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DIÓGENES COMO UM TRANSGÊNERO: O KINISMO QUEER INCOMODANDO O CINISMO ATUAL Alice Maria Vasconcelos Lara (UnB) Resumo: Este artigo visa comparar o kinismo antigo na forma como ele é apresentado pelo autor alemão Sloterdijk as vivências dos sujeitos considerados queers (aqueles que transgridem normas impostas para seus gêneros) na atualidade. No livro Crítica da razão cínica (1983) o autor analisa momentos históricos que demonstram como o cinismo se tornou o principal espírito de nossos tempos, onde a tão prometida escolarização se tornou claramente incapaz de promover felicidade e bem estar. Em contraste, ele nos apresenta o kinismo grego da antiguidade traduzido na figura de Diógenes um filósofo que promovia seus ensinamentos na zombaria da sociedade e em uma busca pela felicidade no nomadismo, sem nenhuma acumulação de bens materiais. Em sua análise de como este personagem se adaptaria a contemporaneidade Sloterdijk acredita que o kinismo se perderia em nossa infeliz sociedade cínica. Discordando deste pensamento, este artigo propõe que o kinismo ainda está vivo nas ações dos sujeitos queers. Sujeitos que mesmo oprimidos e excluídos dos processos educacionais ainda podem modificar a sociedade cínica. QUEER KINISMO “eram, quase no sentido antigo, corpos desnudados kinicamente, corpos como argumento, corpos como armas.” (Sloterdijk,1983, p156) Nossos tempos são cínicos!1 E os sujeitos principalmente nas esferas urbanas partilham desse sentimento de forma massificada e homogênea, distantes do caráter de diferenciação que o termo “cinismo” teve outrora. Infelizes, cumprimos nossas tarefas cotidianas vivendo nossas naturezas e desejos nos intervalos que intercalam nossa confortável realidade do desprazer. Não estamos assim por estupidez ou alienação, pois somos conscientes, ou “falsamente conscientes”. 1 Não fica claro se o tempo de Sloterdijk é a modernidade, a contemporaneidade (o livro foi escrito em 1983) ou a um período anterior a estes. Minha proposta e relacioná-los a eventos que classifico como contemporâneos. 1 Não há esperanças e não nos preocupamos com isso. Todos os esclarecimentos que nos prometiam libertações foram apenas uma troca por novas doutrinas por nós escolhidas/aceitas como um tratado de paz entre nossos grupos sociais. A educação que nos prometia bem estar trouxe o contrário disso2. Se hoje o cinismo é assim vivido, em sua provável origem ele foi muito diferente. Para explicar isso Sloterdijk evoca a figura de Diógenes “Homem-cão, filósofo, Zé-ninguém” (p.209). Desapegado de bens materiais, este kínico vagava pelo mundo antigo carregando apenas o que lhe era necessário, nos apresentando “a aliança originária entre a felicidade, a ausência de necessidades e a inteligência” (p.212). Não era uma ode à pobreza (como no cristianismo primitivo), mas uma rejeição daquilo que nos prende. Como filósofo a riqueza de seu pensamento está mais em sua vida do que nos escritos. Em uma existência bastante política, fazia chacota com os colegas filósofos e diminuía os poderosos. Sua acidez era vista por alguns como cura e por outros como remédio. A politica de corpo que adotava era de negação: tinha uma barba longuíssima, sem cuidado algum. O que não impelia Laís e Frineia, consideradas as melhores prostitutas de Atenas, de lhe fazerem favores sexuais especiais numa relação de desapego incompreensível e inacessível para quem só vivencia relações de troca comercial. Ao redor deste kínico não há qualquer vestígio da tristeza do existencialismo contemporâneo. A partir dessa apresentação de Diógenes, Sloterdijk reflete sobre o que aconteceria a Diógenes no mundo contemporâneo. Vindo para incomodar Diógenes veria tudo o que aconteceu com a sociedade nesses séculos como as guerras mundiais, os campos de concentração e a mídia. Acabaria com vontade de parecer sábio, de ensinar. A simplicidade do que tem para dizer precisaria dar diversas voltas para ser 2 Sendo alemão o autor tem uma realidade de educação formal muito diferente da educação brasileira. Mas mesmo diante de nossa realidade é importante refletir se de fato a educação brasileira é capaz de promover aos seus alunos além de ascensão social (o que a experiência demonstra que sim) felicidade. 2 aceita3. Seriam escritas teses dialéticas e ontológicas para que seu pensamento fosse aceito e seu vigor corporal seria ignorado nesse processo. Teria o kinismo perdido sua força? Existiria alguém que pudesse ser realmente ter uma força kínica nesta contemporaneidade. Essa força teria poder politico? Seriam esses novos kínicos os hippies, os mendigos, os viajantes? Proponho que são os transgêneros os melhores representantes do kinismo na contemporaneidade. Lésbicas, gays, travestis, transexuais, drag queens e kings, crossdressers entre outros embora tenham feito importante conquistas politicas não esperaram a aceitação da sociedade para viverem suas vontades. KINISMO NA CONTEMPORANEIDADE É UMA QUESTÃO DE LUGAR Embora em alguns contextos eles já estejam aceitos e vivam condutas consideradas normativas, o termo queer vai nos traduzir melhor como se dá sua conduta kínica. Originário da cultura anglo-saxônica, este termo era usado para falar de gays e lésbicas de forma depreciativa. Sua tradução seria algo como deslocado, estranho, esquisito. E para evidenciar a própria agressividade do termo alguns movimentos a favor da liberdade sexual desses indivíduos o adotaram como termo guarda-chuva para englobar todas as ações e momentos que dentro de seu contexto social são estranhas e transgressoras. Um beijo entre homens em uma boate gay não é necessariamente transgressor enquanto provavelmente o mesmo ato em uma igreja católica teria uma conotação completamente queer. É nesse ponto que os trans se encontram com o kinismo no sentido em que sua transgressão depende do meio em eu vivem. Se Diógenes teve atitudes que espantavam, e seduziam seus contemporâneos, seus atos se perderiam na atualidade. Enquanto as 3 Neste trecho me ocorreu que Sloterdijk pela sua posição social (filosofo, acadêmico, midiático) se identifica profundamente com este Diógenes perdido na atualidade. 3 práticas sexuais entre homens eram regra na Grécia antiga, nos mundo contemporâneo se revelam escandalosas. Kinismo é uma questão de contexto. Revela-se então outro caráter do cinismo atual: sua capacidade de absorver e enfraquecer os atos kínicos que o desafiam. Primeiro (na impressa, na Mass media, na sociedade) é criado um espanto em torno desses atos que, diante de todos os outros atos igualmente espantosos nos fazem míopes. É assim com as paradas gays, com a morte de travestis, com o amor queer, com a violência contra homossexuais... Tudo e todos já estão em catalogações do sujeito: o louco, o depravado, o aidético, a sapatona, a bicha, o viado... São nomenclaturas indicadoras de que posição o kínico vai ocupar dentro desse discurso. Se já existe este espaço pré-determinado no discurso fica evidente que apesar de ameaçar o kínico também reforça o discurso cínico. Despreocupados com verdades o cínico fala (geralmente de seu local de poderoso) aquilo que bem quer sobre o kínico que não tem aonde se defender (não tem poder, por que não quer, ou por que não conseguir alcançá-lo). Traçando o limite da heterossexualidade cínica, o queer kínico acaba por reforçá-la, afirmando o que é ou não normal e criando uma fronteira sensual, que os cínicos irão aproveitar como uma polêmica. O CORPO VERDADEIRO E A PRÓTESE Ao contrário de Diógenes, que aparentemente se descuidava de seu corpo e parecia buscar sua natureza, o projeto de corpo que alguns transgêneros realizam consiste exatamente em uma criação bastante complexa, um produto da tecnologia para artificializar este corpo, deixando ele mais próximo de suas vontades. Silicones, hormônios, cortes, apertos e modelagens podem gerar extrema ojeriza social, mas podem também ser o cúmulo da lascívia e a maior representação da originalidade do indivíduo. 4 A travesti Agrado do filme Tudo sobre minha mãe em uma cena que descreve em público todas as intervenções plásticas pelas quais passou: “porque se é mais autêntica quanto mais se parece com o que sonhou para si mesma” CU, O REI DO CORPO Na parte intitulada de “Secção fisionômica” (p.187) Sloterdjk faz uma análise de como partes específicas do corpo humano significam e importam dentro de nossa cultura cínica. E há uma análise especialmente dedicada ao cu, “o órgão kínico elementar” (p.199). O cu é a periferia mais sórdida do corpo, da mente e do mundo. Mas é ao mesmo tempo internacional; todos em seu estado de saúde o utilizam, e para ele não há “estatutos, ideologias e quotas” (p. 199) Existe uma piada popular que diz explicar por que o cu é o rei do corpo: o corpo humano tinha acabado de ser inventado e então os órgãos decidiram conversar sobre qual deles deveria ser escolhido como o chefe do corpo. O cérebro disse que era ele já que ele era o responsável pelos pensamentos. Então a boca se manifestou e disse que era ela, pois era quem trazia energia ao corpo. As mãos alegaram que deveriam ser elas já que trazia comida à boca. Os pés reclamaram serem os que sustentavam o corpo e o levavam até a comida e por isso deveriam ser os reis do corpo. Surpreendentemente o cu se manifestou e disse que ele deveria se o rei do corpo, e todos os outros órgãos riram dele, pois como “aquilo” poderia se considerar a parte mais importante do corpo. Então enraivecido, o cu decidiu fazer greve: o cérebro começou a doer, a boca ficou seca, as mãos tremulavam e os pés não se sustentavam. E desde então o cu é o rei do corpo. 5 Como aponta Sloterdijk “o cu ultrapassa todas as fronteiras, ao contrário da cabeça, à qual muito importam as fronteiras e as propriedades” (p. 199). As bonecas Barbies, símbolos em nossa cultura da beleza feminina, não têm esse esfíncter: o hétero cínico o negou infinitamente, enquanto este músculo é praticamente em alguns casos a própria identidade do trans. É o rei de seu discurso, e é também o foco do discurso a ele destinado: queima-rosca, pau-no-cu... E se tolos vão usar isso como ofensa: -vai dar o cu, viado! O queer vai assumi-las kinicamente: -não me venha com agradinhos! O cu é um órgão que vai servir ao trans de diversas modalidades para além daquela limitada. E neste corpo ele terá também um tratamento especial que não é nem imaginado no mundo hetero: passará pela xuca, será depilado, e em caso de uso prolongado pode até passar por plásticas e cirurgias. O cu do transgênero é um cu das técnicas e dos conhecimentos. MERDA “Diógenes é o único filosofo ocidental do qual sabemos que fazia suas necessidades naturais conciente e publicamente e temos motivos para interpretar isso como um elemento constitutivo de uma teoria pantonimica. Essa teoria remete-nos para uma consciência da natureza que avalia positivamente o lado animal e não permite que se isole o que é baixo ou penoso. (...) O filosofo kínico é alguém que não sente nojo. Nisto é aparentado com as crianças que não sabem ainda nada da negatividade de seus excrementos” (Sloterdijk, p 204, 1983) Essa descrição de um ato comum de Diógenes remete a duas cenas do filme trash Pink Flamingos, em que a drag queen usa a merda como elemento principal: em uma ela caga em público, e em outro ela come cocô de cachorro. Neste filme de baixíssimo orçamento realizado por diversão entre um grupo de amigos, a personagem vivencia “a inutilidade do inútil, a produtividade do improdutivo” (p.204) e choca tão profundamente a sociedade cínica que é quase impossível não gorfarmos ao assisti-las. 6 Divine na cena de Pink Flamingos, em que come cocô de cachorro. XANTIPAS, LAÍSES E FRINEIAS Se as prostitutas serviam aos filósofos lhes fazendo favores sexuais exclusivos, ou lhes cavalgando como cavalos, os transgêneros são nossas Xantipas, Laises e Frineias servindo a todas as camadas da sociedade. Deitam-se com poderosos e ameaçam seus status enquanto também são ameaçados fisicamente. Gerar desejos proibidos é ainda bastante arriscado. Como as prostitutas, os transgêneros estão confinados em seus guetos onde há permissividade para suas vontades. Como o nômade Diógenes são os viajantes que saem de suas cidades. No lugar do barril que ele carregava levam sua pequena mala4 transgênera, e excluídos de qualquer privilégio social não se prendem a nenhum espaço e se tornam cidadãos do 4 Ouvi o conceito das malas transgêneras durante as aulas do professor Belidson Dias, que nos questionava diante de diversas representações cinematográficas de sujeitos queers que carregavam uma mala em suas viagens: O que carregam o trans dentro dessas malas? Acredito que o principal conteúdo dessa mala seria a artificialidade do corpo queer: vibradores, maquiagens, próteses, roupas... 7 mundo. Como no trecho “o kínico sacrifica a sua identidade social e renuncia ao conforto psíquico da pertença incontestada a um grupo político, para salvar sua identidade existência e cósmica”. São os agentes duplos, os verdadeiros vigaristas sobreviventes a contemporaneidade das fachadas do poderoso colarinho branco; se aproveitam da beleza e dos prazeres que podem oferecer, transitam por meios sociais bastante exclusivos, onde encontram riqueza financeira e cultural Sem inocência é claro deve-se admitir que os trans ocupam este gueto não por opção mas como uma das poucas designações sociais que podem ocupar ao assumirem suas sexualidades. Uma das histórias mais cínicas que circularam na impressa: o jogador Ronaldo, considerado um dos mais importantes do futebol brasileiro, aparece na companhia de travestis, entrando em um motel, mas afirma não saber que eram travestis. Misteriosamente uma das travestis que apareceram no caso morre um ano após o ocorrido. Ronaldo apenas separou sua imagem do fato e continua garoto propaganda de diversas marcas consideradas familiares. A LICENÇA ARTÍSTICA PARA O KINISMO Se a arte nos nossos dias, de acordo com Sloterdijk esta “confinada pela ficção”, a performance artística queer ainda não goza totalmente deste mesmo confinamento. Em toda a sua historia este grupo foi associado à arte e à representação: pintores, atores, escritores, músicos; é raro não se julgar a sexualidade dos virtuosos. E personalidades trans povoam todo tipo de representação, se projetando no imaginário popular. 8 Existe a representação do homossexual que se origina dentro do discurso heterossexual, e que não ameaça ninguém. Geralmente servindo a um humor de gargalhadas já “pré-ensaiadas”. A grande ameaça acontece quando a representação surge de forma realista: lésbicas que são simplesmente mulheres reais e não ninfas insaciáveis, beijos entre homens, atrações pelo vestuário do sexo oposto incomodam duramente. Em um mundo que vive em sonhos hollywoodianos, esses personagens se materializam na mente do outro que nega da mesma maneira que nega a realidade. Diante dessa constatação é estranho que seja a representação o espaço na qual os trans conquistaram seu maior espaço nos últimos tempos. Talvez seja o kinismo presente nestas representações que façam com que mesmo diante de tanta negação elas tenham força. SEM EDUCAÇÃO, COM FELICIDADE? Inúmeros são os que já não estão dispostos a acreditar que começar a <<aprender qualquer coisa>> levará mais tarde a melhorar sua situação. Neles, creio, cresce um pressentimento que no antigo kynismós era certeza: que uma pessoa tem que começar a ter uma vida melhor para depois poder vir a aprender qualquer coisa razoável. (Sloterdijk, p.15, 1983) Se a educação não foi a chave na busca por trazer alegria aos cidadãos alemães, ainda não tivemos oportunidade de ver o que ela poderia se fosse realmente acessível aos brasileiros, mesmo que já possamos acompanhar outros processos como a massificação das universidades. A questão aqui é: se educação formal não garante felicidade, os transgêneros não recebem essa educação, pois são marginalizados assim que decidem se assumir. Sofrendo tanto preconceito e violência nesta área da sociedade onde eles não estão presentes em nenhum momento como sujeitos do discurso o abandono escolar por parte deste grupo é imenso. Sendo recente a comemoração do primeiro travesti que conseguem atingir seu doutorado em uma universidade brasileira questiono se é essa deseducação a explicação para tanta felicidade trans? O RISO KÍNICO AINDA RESSOA 9 Enquanto o cínico sorri com melancolia e desprezo, do alto de seu poderio e da sua desilusão o que caracteriza o kínico é rir-se forte e desbragadamente a ponto das pessoas educadas abanarem a cabeça. (Sloterdijk, p 195, 1983) Como já foi dito acima o transgênero aparece no discurso cínico heterossexual para motivo de humor. Mas distante deste discurso talvez seja mesmo o humor uma das principais forças deste grupo. A própria sátira que seus corpos fazem dos corpos heterossexuais “verdadeiros” acaba por desconstruir essas verdades e mostrar que todos os seres humanos estão aprendendo continuamente a viver seus gêneros supostamente naturais. Como um travesti que aprende a adocicar sua voz ou uma drag que se maquia, somos todos falsos. O ARMÁRIO CÍNICO Todos sabem ou jugam saber o que é a homossexualidade, este é um dos conhecimentos formadores de nossa sociedade e todos têm que se posicionar diante dele. A existência da heterossexualidade provem de uma sexualidade que é oposta a ela. As atitudes afirmativas que tem acontecido nos últimos tempos não resgataram uma separação entre o que são os sujeitos e suas práticas, mas definiram os homossexuais como uma frágil minoria. Em nossa sociedade, uns acreditam que há cura para essas práticas incessantemente afirmando que são as piores práticas possíveis. Há ainda outro grupo que diz não se incomodar com elas desde que sejam exercidas sem serem expostas para a sociedade, não fazendo as mesmas exigências as condutas heteronormativas. Diante disso os sujeitos trans jogam o jogo do “armário”, uma estrutura analisada por Eve Kosofsky Sedgwick. Ela nos diz serem raros os sujeitos trans que em alguma instância da vida não tiveram que manter seus desejos em segredo, sejam nas relações pessoais ou trabalhistas, devido às retaliações que essas revelações poderiam provocar. Movimentando toda a localização do sujeito essas revelações modificam também a posição de todos aqueles que com eles estão ligados, que passam a ter também poderes e culpas sobre o conteúdo deste armário. 10 Estranhamente o fato do grupo trans ter feito diversas conquistas inclusive na sua representatividade nos objetos de cultura visual, parece ter aumentado a atmosfera de “surpresa e prazer” seguidora da revelação homossexual ao invés de sua estimada diminuição. E ao contrário de muitos discursos que anunciavam essa revelação como a própria libertação, vimos que em certas instancias ela conseguiu sim grandes conquistas, mas também gerou ondas reacionárias tão fortes quanto ela. Há nesse jogo uma série de peculiaridades que não se aplicam outras questões identitárias. Não se revela a raça, por exemplo, pois ela geralmente está na superfície, enquanto os desejos se encontram no intímo dos seres, e não são sólidos, podem ser emulados. A sociedade ainda questiona sua legitimidade, mesmo sem um crivo para isso. Como coloca Sedgwick “Como você sabe que é realmente gay? Por que a pressa de chegar a conclusões? Afinal, o que você diz se baseia apenas em poucos sentimentos e não em ações reais [ou, alternativamente, em algumas ações e não necessariamente em seus verdadeiros sentimentos]; que tal falar com um terapeuta e descobrir?” Tais respostas – e sua ocorrência. A epistemologia do armário nas pessoas que se assumiram pode parecer um eco retardado de sua ocorrência na pessoa que se assume – revelam quão problemático no presente é o conceito mesmo de identidade gay, e também quão intensa é a resistência a ela e o quanto a autoridade sobre sua definição se distanciou da própria pessoa gay – ele ou ela. (Sedgwick, p. 37,2007) Por essas argumentações defendo o armário a estrutura mais cínica de nossa sociedade. O HERÓI, O COVARDE, E O EXERCITO Renegando o “heroísmo de massas” o transgênero (que transvia do masculino para o feminino principalmente) é a exata figura do covarde que foge da guerra (que não é dele, nem vai lhe trazer qualquer beneficio) para se salvar. Um ato totalmente kínico de acordo com Sloterdijk que é bastante recorrente nas representações queers. Em um episódio do programa humorístico de rádio virtual Las bibas from Vyscaia, cujos temas são todos relacionados aos travestis, uma das locutoras, a travesti Marisa, descreve o dia 11 em que teve que se apresentar para o serviço obrigatório do exército, mesmo contra sua vontade. Decidida a ser dispensada, ela vai “montada” como travesti usando roupas em estampa militar. Chegando ao quartel, lugar que ela vai chamar desejosamente de Necolandia (Neca=pênis), a cada exame que passa ao mesmo tempo em que é xingada seduz todos os homens supostamente heterossexuais que ali estão. E todos os superiores lhe questionam: “Um homem! Não deveria ter vergonha de se vestir assim?” e ela responde debochadamente com seu sotaque nordestino “U senho que qui eu cite nomes?” No mesmo momento ela é dispensada de cada teste. No final do processo ela seduz tantos homens que diz ter ficado morando no quartel mais de dois meses. É uma narração que expõem como a covardia kínica queer é comum, e como o heroísmo hétero não é tão heróico nem tão hétero assim. O BUDA, A BOMBA E AIDS Em um dos trechos mais poéticos e tristes de Critica da Razão Cínica, intitulado “Meditação da bomba” (p. 179), Sloterdijk nos descreve um dos espíritos presentes na exata época que o livro foi escrito, durante a guerra fria, em que as bombas atômicas geravam ao mesmo tempo uma esfera de medo e paz. Para tamanha destruição não haveria heróis, poderosos ou fracos ela traria enfim igualdade aos seres humanos. Gorda, pesada, parada, sentada e redonda a bomba atômica era a própria representação do Buda ocidental que com sua simples presença nos diria tudo que há para ser dito. “Sua calma e ironia são infinitas” (p.183). Se houve em alguma bomba no mundo queer foi com certeza o vírus da AIDS. Sua descoberta foi marcada por uma associação aos homossexuais. Houve muitas mortes que expuseram o grupo e as relações de desigualdade aos quais ele estava exposto e que acabaram por mobilizar politicamente diversas ações. O vírus parecia um resultado e acima de tudo uma punição as suas práticas sexuais. Mas surpreendentemente ele acabou se tornando ao mesmo tempo uma bomba matadora e salvadora que transita e marca todos os corpos, que mostra que este muro que separa o 12 mundo hetero do mundo homossexual simplesmente não existe. Não há heróis para a AIDS que não vê gênero, sexo, classe, ou cor. E embora seja clara essa relação de “igualdade” que o vírus causa isso parece deixar o cinismo que o cerca mais cínico, pois que são muitos os que negam este fato matem suas práticas sexuais acreditando que estão imunes a esta relação e culpando os homossexuais pelo vírus. Deputado Jair Bolsonaro pretende fazer projeto de lei para separar o sangue “gay” do sangue “hetero”. Se a bomba atômica era resultado de uma guerra, a AIDS é a originadora da guerra das indústrias farmacêuticas pela venda de remédios caríssimos para a amenização da doença. Sem contar os bilhões gerados pela venda de camisinhas. Sendo essa bomba já detonada seus principais efeitos podem ser vistos no continente africano onde jogos de poder extremamente cínicos fazem com que a população nunca tenha acesso à informação, proteção de qualidade, e medicação. O continente parece ser o próprio campo de testes desta bomba mais silenciosa que o Buda, mas que mata tanto quanto a outra. PORNOGRAFIA É KÍNICA? É QUEER? 13 Tendo a pornografia perdido a surpresa que teve em outro momento, e se tornado mais um espaço da sexualidade cínica, talvez o mesmo possa se dizer da pornografia trans. Estamos vivendo graças à internet um momento de fácil acesso ao “circo de horrores” onde todas as curiosidades do “como” e das “formas” podem ser sanadas em alguns segundos. A pornografia virou o território da liberdade do desejo. E não é necessário fazer qualquer revolução para o acesso e a fabricação desses prazeres. É um período que pode nos trazer conhecimentos sexuais nunca acessíveis em outras épocas que proporcionaram mais liberdade, como também pode nos trazer apenas mais obrigações sexuais e novas doutrinações sobre o que é ou não permitido. Tem se observado isso no aumento da procura por cirurgias para a “melhoria” da estética de órgãos sexuais: o que antes nunca era visto, agora é visto, é comparado, é metrificado. O amor parece ser o elemento menos necessário nesse processo que alem de pronta satisfação não garante alegria. CONCLUSÕES Se as próteses significaram em outros contextos massificação e desnaturalização, no corpo trans elas são a própria manifestação da originalidade e associadas à uma série de significações podem chegar a se tornam naturais. Esta originalidade do corpo também será alcançada pelos trans no deslocamento das evidenciações que partes do seu corpo sofreram. O corpo queer parece mesmo mais rico em suas vivencias. A prostituição é o lugar destinado a alguns trans e o local aonde podemos observar o seu poder e onde verificamos também a ausência de outras oportunidades de trabalho e estudo obrigando-os a se manterem na marginalização. Se a arte queer está em certo confinamento, assim como os sujeitos que representa, também ultrapassa espaços, e atinge com muita força toda a sociedade mesmo que negada. 14 Sem acesso a educação, os trans riem e têm sua imagem associada à alegria. Fica verificado que não é a educação que trás alegria a um grupo. Analisada a estrutura do armário e suas violentas incoerências concluiu-se que não pode haver estrutura mais cínica dentro da vida trans. A associação do covarde kínico que foge do exercito para se salvar se adequou perfeitamente a do gay que simplesmente por assumir sua sexualidade não pode assumir o cargo no exército brasileiro demonstrando o quanto essa veia kínica ainda esta viva. Conclui-se que a bomba atômica do mundo queer foi a AIDS. Além de seus efeitos devastadores ela trouxe identidade e união ao grupo demostrando que não existe a tão construída separação com o mundo hétero. Constatou-se que embora a pornografia tenha trazido conhecimentos sexuais nunca antes acessíveis também pode servir como mais uma obrigação social sem muita alegria. Sendo o mundo cínico, não acredito na isenção do grupo trans: certas condutas típicas deste grupo são bastante cínicas. Mas como aponto este novo kinismo é questão de lugar. BIBLIOGRAFIA SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemologia do Armário. Cadernos Pagu. Campinas, v.28, p.19-54. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010483332007000100003&l ang=pt>. Acesso em 16 de novembro de 2010. SLOTERDIJK. Peter. Crítica da razão cínica. Lisboa. Editora Rélogio d’Água. 1983. 669 p. 15 16
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