O direito possível
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O direito possível
CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/FEVEREIRO DE 2007 O D IREITO POSSÍVEL: À GUISA DE UM DIÁLOGO José Eisenberg1 No ano que vem, celebraremos vinte anos de vigência da Constituição de 1988, aquela que o Dr. Ulysses Guimarães cunhou de Constituição-cidadã. Ela tem mais de 8000 artigos, o que lhe dá a impressão de densidade e história, mas é, como suas predecessoras, jovem, além de ser somente a segunda constituição democrática na história de nosso país. A primeira (1946) não durou nem duas décadas, e dentre as republicanas, somente a de 1891 teve maior sobrevida. Curiosamente, talvez seja esta a que mais se assemelha a que hoje vige em nosso país. A longevidade da atual Constituição é testemunha de uma história, ainda que comparativamente compacta em sua temporalidade, carrega importantes traços republicanos desde a sua fundação: o primeiro traço reside no fato de ter nascido de um esforço intelectual – a chamada “Comissão Afonso Arinos” – que respondia a anseios de uma sociedade que clamava por mais eleições desde a abertura do final dos anos 70. Destarte, permaneceu conosco, para o bem da pedagogia de nossa vida social, o voto obrigatório, e hoje ele encontra-se ampliado para quem outrora se pensava inconcebível. Os direitos políticos estão universalizados, todos os cidadãos incluídos. Os pilares da representação política instituídos em 1988 persistem, entretanto, como um anacronismo venenoso no seio de nossa sociedade. Refeito o sistema partidário a partir da correlação de forças que se apresentava no momento da transição democrática de 1984-1985, ficamos reféns dos interesses de um centro democrático que tem pouco gosto pelo liberalismo e que, na maior parte das vezes, age de maneira oligárquica na defesa de seus interesses eleitorais, sempre convergentes com os interesses econômicos daqueles que os elegeram ontem e os elegem hoje. Nos pólos do espectro político, uma burocracia sindical que ontem prometia a renovação da esquerda, hoje atraída para o centro, pouco renovada, crescentemente populista, e incrustada no poder sem saber exatamente com que objetivos; no outro pólo, uma direita igualmente renovada e populista, que sabe ser autoritária quando precisa e 1 Professor do IUPERJ e coordenador do CEDES. 1 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/FEVEREIRO DE 2007 liberal quando é chique, mas que sofre para ter maior penetração eleitoral, coisa que até mesmo a ARENA conseguia durante a ditadura militar. O outro traço republicano marcante da nossa vida política contemporânea, e que carregamos desde e por causa da Constituição de 1988, é o protagonismo que conferimos às corporações jurídicas do Estado, a quem confiamos inúmeras tarefas, muitas delas democratizantes – e louváveis por isso – mas cujo sentido maior está em seu caráter eminentemente republicano. A Constituição de 88 investiu juízes, defensores e promotores com um poder político que representa uma verdadeira inovação constitucional em nossa tradição jurídica e uma substantiva transformação institucional nas práticas cotidianas que convergem normativamente para decisões vinculantes do Estado de Direito. São estas corporações as protagonistas do que chamo do “direito possível” na sociedade brasileira hoje. Como lembra François Ost, o tempo do direito o torna possível em relação ao passado, tempo pretérito, quando o limita e lhe impõe constrangimentos; o torna possível em relação ao futuro, tempo do devir, quando carrega consigo aquilo que é potência e que pode se converter em realidade. O nosso direito hoje é possível porque a Constituição permite inúmeras práticas inovadoras para além do paroquialismo da aplicação cega da lei cujas palavras presumem-se cristalinas em seu sentido e emprego. É, por outro lado, um direito possível porque é direito demarcado pela Carta de 88 e pelos limites democráticos que ela impõe ao exercício da interpretação constitucional. Ela foi, ao seu tempo, a Constituição possível. Hoje temos o direito possível que ela nos deixou. Vinte anos depois, este direito possível confere protagonismo a estes atores do Estado sem lhes conferir, entretanto, a prerrogativa do ativismo judicial que sempre tentou a atividade jurídica dos norte-americanos. O direito possível no Brasil outorga a esses atores um protagonismo defensivo da ordem jurídica, particularmente na defesa dos direitos dos cidadãos contidos em entrelinhas do texto constitucional. Li o artigo de Cláudio Luis Braga Dell’Orto e de Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho que publicamos no Boletim CEDES de fevereiro de 2007 nesse sentido: como um convite para uma reflexão política sobre o papel social da magistratura. Um convite a que se pense esse papel da perspectiva do juiz que pratica o direito ciente da confiança que nele foi depositada, e que conhece os dilemas enfrentados por aquele que decide, na maior parte das vezes, em um estado que não guarda nenhuma semelhança com um estado de exceção que justificasse a ação de justiceiros do mal 2 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/FEVEREIRO DE 2007 ou do bem, os Robin Hoods a que aludem Dell’Orto e Carvalho. Esse estado é determinado por um cotidiano de experiências reais, vividas, sobretudo, no contexto da paróquia, isto é, de uma comunidade que, nesse caso, é de intérpretes e não de vizinhos de bairro ou de fé. Com os olhos voltados para a República, o juiz de cada paróquia deve e precisa decidir dentro da legalidade porque só assim tem o seu papel social legitimado por aqueles que à corte comparecem com (ou sem) seus advogados. Fosse essa legalidade estritamente determinada pela vontade geral da paróquia, estaríamos entregues ao primeiro jovem magistrado disposto a violar a Lei em nome de interesses escusos ou mesmo em nome da justiça social. Pelo contrário, esta legalidade tem como referência uma República, uma Nova República, e os direitos conferidos por ela a todos os seus cidadãos definem os limites da nossa grande Paróquia. Ela é uma legalidade que defende, por dever, seus cidadãos contra os ataques da vontade geral, ela mesma tão freqüentemente paroquial, e que tantas vezes se veste de Lei, materializando-se assim em uma leitura míope – uma interpretação cega a que todos textos estão sujeitos, inclusive (talvez especialmente) os jurídicos. Fica, ao final da leitura, entretanto, uma dúvida: é a justiça social que tem como imperativo o contexto da legalidade, ou será a legalidade que tem como contexto a experiência concreta da justiça social por parte dos cidadãos da Nova República? A federação de paróquias chamada Brasil é extremamente injusta e desigual. Só a democracia vigente em nosso país pode amenizar essa situação. Esta federação dispensa Robin Hoods, como dispensa muitas outras maneiras de “fazer justiça com as próprias mãos”. Não dispensa, entretanto, e são indispensáveis a ela, juízes menos paroquiais em suas decisões, principalmente porque os que têm em suas mãos o poder legítimo de fazer justiça não podem continuar pendendo cegamente a balança em favor dos mais favorecidos. Uma decisão jurídica não é como o tempo, irreversível, mas o tempo do direito, mesmo com suas instâncias de recurso, sempre tem um momento de irreversibilidade, desenhado no caso da nossa Constituição, em algumas das atribuições do STF. O tempo do direito, restrito pela memória do que é impossível e liberto pela promessa do que é possível, é o tempo da república, não o tempo da democracia. E se o tempo antecede o mundo, como nos lembra Ilya Prigogine, talvez a cadência republicana do direito deve sempre anteceder a batida forte dos tambores da política. 3