De que Género é o Norte de África? Reflexões em torno da

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De que Género é o Norte de África? Reflexões em torno da
PONENCIA PLENARIA 3
ELS ESTUDIS DE GÈNERE: LA DONA EN EL FUTUR D'ÀFRICA
LOS ESTUDIOS DE GÉNERO: LA MUJER EN EL FUTURO DE ÁFRICA
De que Género é o Norte de África ?
Reflexões em torno da produção de antropologia, género e território em
contexto africano.
Maria Cardeira Da Souza
Universidade Nova de Lisboa
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Não é de mais repetir um dos corolários óbvios de várias décadas de estudos sobre mulheres e com
mulheres no seio da Antropologia: o género é uma conceptualização cultural cujos efeitos nas definições e
redefinições identitárias só pode ser analisado transversalmente a outras categorias sociais e culturais,
como a raça, a nacionalidade (ou outras formas de etnicidade), a classe, a idade, ou o estatuto social. O
género só pode ser isolado para fins heurísticos, como categoria de análise e, assim, servir
pragmáticamente a constitutição de fora de discussão, como a mesa deste colóquio. Nesse sentido, pode
ser útil para a dinamização da vertente comparativa que é uma vertente que a disciplina antropológica
tem, ultimamente, descurado.
Participar num congresso de africanistas é para mim uma estreia. E, no entanto, sempre trabalhei em
contextos africanos: só que norte africanos. Na verdade, reflectindo agora, eu própria também nunca me
considerei africanista. Mesmo do ponto de vista teórico sempre me inscrevi na genealogia de autores que
trabalharam sobre "os contextos árabes ou islâmicos". Nunca me haviam convidado para uma mesa de
africanistas, nem nunca me havia ocorrido essa ideia. O convite fez-me pensar porquê.
Esta é, claro está, uma pergunta retórica, mas parece-me um bom exercício para desmontar os
essencialismos - e a desconstrução de essencialismos que a Antropologia vem empreendendo, pelo
menos desde os anos setenta - e que tocaram, frequentemente, os universos que aqui estamos
discutindo: o dos homens, o das mulheres e o dos continentes culturais.
Na verdade, quando, nos anos oitenta, comecei a trabalhar em Antropologia inscrevi-me na área cultural
Árabes/Islão, por razões estritamente académicas. No meu departamento universitário era preciso
alguém que cobrisse esse domínio, que já estava "administrativamente" criado. Ao fazê-lo, integrei-me
passivamente na genealogia teórica pré-existente, com seus paradigmas, e sujeitei-me àquilo que
Appadurai designou como "gatekeeping concepts" e "freezing metonimics" (conceitos encarcerantes ou
metonimias congelantes: 1986, 1988) e Marilyn Strathern apelidou de "concrete topographies" (1988).
Particularmente, o universo antropológico dos contextos árabes foi, como mostrou Leila Abu-Lughod num
texto já clássico (1989), explorado à luz de três grandes paradigmas: o do Islão, o da segmentaridade e
do harem (quer dizer: o das mulheres). Quase contra-vontade me vi empurrada para trabalhar naquele que de acordo com uma lógica de segregação sexual que marca também a escolha de terrenos dentro
desse universo - me era mais apropriado por ser mulher: o do harem. Com medo de me perder num
mundo que ainda conhecia mal, comecei por escolher um terreno bem localizado. O meu primeiro
trabalho, ainda dos anos oitenta, debruçou-se sobre o hammam, os banhos públicos, em Marrocos
(1988). Então ainda francamente tributária de um modelo funcional-estruturalista (que era a que
dominava a classe académica dos meus professores, alguns dos quais recém chegados do exílio de
dominava a classe académica dos meus professores, alguns dos quais recém chegados do exílio de
França, depois da Revolução) trabalhei sobre as representações culturais relativas aos banhos públicos
para, a partir daí, analisar as conceptualizações de género. Quando falo de representações culturais aqui
estou falando das representações endógenas produzidas pela tradição oral, pela literatura de ficção, pelo
discurso islâmico e, também, pelo próprio discurso antropológico que se havia desenvolvido até então
sobre os espaços femininos ou feminizados.
O Islão que eu conhecia dos livros fechava as mulheres em casa. A Antropologia que eu conhecia
também. Mas, na verdade, no decurso de um breve trabalho de campo inicial, apercebi-me que a sua
sociabilidade e a sua mobilidade no espaço público ultrapassava em muito o universo doméstico para os
quais ambos os discursos as remetiam. Rapidamente compreendi que as mulheres eram duplamente
segregadas: por um discurso teórico que as colocava em casa e por um discurso religioso que não as
deixava sair à rua. Essa foi a primeira percepção difusa que tive de que existia uma espécie de
colonização recíproca entre a teoria antropologica e o contexto de análise, e que a miopia do discurso
académico não se limitava, como os primeiros estudos sobre mulheres e para mulheres haviam
denunciado, apenas a um enviezamento masculino da perspectiva dos investigadores. Claro, que o facto
de ser mulher, em trabalho de campo, teve um papel decisivo na desconstrução das clássicas dicotomias
que opõe feminino/masculino, natureza/cultura, espaço público/espaço doméstico. Como outras autoras
(Altorki, El-Solh, Fawzi 1988; Bell, Caplan, e Karim 1993) já notaram, em contextos de grande
segregação sexual as mulheres investigadoras acabam por ter um maior grau de mobilidade intergéneros, do que os homens investigadores e, na verdade, também maior do que as mulheres
origináriasdos contextos sobre os quais se está trabalhando (e isso, atenção, pode provocar outa espécie
de miopia).
Comprovei isso relativamente a Latifa Laghzaoui (1992), uma antropologa marroquina que estava
trabalhando precisamente no mesmo contexto que eu: o da medina de Salé. No seu trabalho (1992) ela
refere que, enquanto marroquina, mulher e solteira, ser-lhe-ia impossível morar dentro da medina
conservadora de Salé, porque isso restringiria muito a sua mobilidade, preferindo, por isso, fazer o seu
trabalho a partir de Rabat, de onde se deslocava regularmente a Salé.
Enquanto estrangeira, eu vivi, certamente, com menor constrangimento durante dois anos (1992 e 1993)
no coração da medina, e com o acolhimento que é devido aos estrangeiros (maior ainda por ser mulher,
só e, como tal, mais carente de protecção).
Será importante dizer, contudo, que enquanto Laghzaoui estava a investigar no seio das grandes famílias
de Salé e sobre a importância das confrarias dominantes eu trabalhava com mulheres consideradas pelas
primeiras como barrania-s, provincianas, e de muito mais baixo extracto social. Logo: como nos ensinou
há muito Bourdieu, as mulheres com que Laghzaoui trabalhava tinham um capital simbólico, uma
reputação, muito mais elevada a defender, o que lhes restringia a mobilidade e dificultava o trabalho de
campo a Laghzaoui. Na verdade, uma questão de classe atravessava, dividia mesmo, os nossos terrenos
geográficos, ao mesmo tempo que as nossas diferentes nacionalidades condicionavam os procedimentos
metodológicos de cada uma.
Mais tarde, nas posteriores revisitações a Marrocos, apercebi-me de como o facto de já não ser
residente, e como a minha evolução em idade e estatuto (sobretudo a minha maternidade, mas também
o meu novo grau académico de doutora), condicionavam, novamente, as minhas mais breves missões de
terreno, abrindo-me algumas novas portas, enquanto me franqueavam caminhos anteriormente abertos.
Todos estes contrastes, estas comparações de perspectivas empíricas e experiências me levaram,
definitivamente, a colocar em agenda permanente duas ideias fundamentais: a primeira é a de que a
colonização do discurso antropológico não é unívoca: quer dizer, existe uma colonização recíproca entre o
terreno de análise e o discurso antropologico; a segunda, é a de que a gestão dessa interacção é
fortemente dependente, entre muitas outras coisas, do género do investigador.
Ora estas considerações, que são hoje evidências teóricas no meio académico, produziram-se de forma
Ora estas considerações, que são hoje evidências teóricas no meio académico, produziram-se de forma
muito óbvia, também em contextos norte africanos. Durante muito tempo, e no que respeita os contextos
árabes e islâmicos, foi o paradigma da segmentaridade que estruturou grande parte do discurso
antropológico (como, mais uma vez, Leila Abu-Lughod, constatara). Esse era o eixo de prestígio
masculino com seus heróis fundadores como Evans-Pritchard e seus descendentes, como Ernest Gellner.
De um modo geral, as mulheres (tanto as antropólogas quanto as "nativas") viam-se excluídas desse
paradigma. Ambas eram de algum modo segregadas: as mulheres muçulmanas eram remetidas à esfera
doméstica (pelo paradigma da segmentaridade) e a um "baixo islão" (pelo paradigma paralelo do Islão);
as mulheres investigadoras aos espaços domésticos e urbanos, onde as "tribos" pareciam não ter tanta
importância como nos meios rurais, e onde parecia estar ausente a política.
Claro que estou essencializando. Yolanda Aixelá, no seu livro Mujeres en Marruecos (2000), faz uma boa
resenha deste processo, onde se destacam muitas excepções, e eu também tive que o fazer para
legitimar a minha própria genealogia teórica (Silva 1999a). Mas, por razões de ordem histórica e política,
os homens - tanto os locais, por motivo do forte fluxos migratórios que caracterizaram progressivamente
o período pós-independentista, quanto os académicos, que por razões de ordem política não eram bem
vistos a explorar clivagens "tribalistas" - vêem-se obrigados a convergir, cada vez mais, para a cidade….
Retomou-se, necessariamente, a velha questão orientalista de como conceptualizar a cidade islâmica?
"Existe uma cidade islâmica?" pergunta, por exemplo, Eickelman no início de setenta (1974). Quais são as
formas de organização social permanente sobre as quais pode o antropólogo trabalhar? Onde estão as
"tribos"? Num período de grande contestação académica interna, ao mesmo tempo, à própria disciplina,
deitaram-se as "tribos" fora, não sem antes se gastarem várias páginas esgrimindo argumentos pró e
contra. Lutas de guerreiros.
O meu argumento, aqui, é o de que este momento de passagem política para a independência e a
concomitante confluência dos terrenos da Antropologia para a cidade, foram importantes para a evolução
teórica da Antropologia do Norte de África e não só. Atentemos apenas num dos casos mais
paradigmáticos.
Como sabemos Clifford Geertz, o pai - depois sujeito a parricídio - dos pós-modernos, trabalhou em
Marrocos, como uma espécie de cheikh daquilo que ficou designado na história da Antropologia local como
a "equipa de Sefrou". Essa equipa, onde participavam directamente Hildred Geertz e Lawrence Rosen,
mas à qual estiveram também ligados, directa ou indirectamente, Paul Rabinow e Dale Eickelman, teve
especial importância na desmontagem dos arquétipos clássicos da Antropologia. Sefrou era uma cidade
como tantas outras, com várias categorias sociais e religiosas (muçulmanos de diferentes confrarias,
judeus), em pleno período de pós-independência, de revisão de valores culturais e grelhas sociais. Os
esquemas rígidos da Antropologia clássica dificilmente davam conta de uma sociedade que parecia estar
em constante "negociação" (Rosen 1978, 1979 e 1984). Descobria-se a necessidade de "interpretar as
culturas" (Geertz 1978 [1973]) à luz dos seus próprios enunciados, em vez de o traduzir de acordo com
conceptualizações que lhes pareciam estranhas. Este, como outros contextos (por exemplo a Indonésia
de então), pareciam propícios a inspirar idéias como as de que "a cultura é contexto" (Idem).
Mas se o que estou tentando relembrar aqui, novamente, é como o contexto de análise, o terreno
específico, foi determinante na inversão do paradigma teórico - e como, nesse sentido, assistimos à
colonização recíproca entre terreno e Antropologia - este caso serve também para ilustrar a segunda ideia
que mantive em agenda: a de que a gestão dessa interacção é também determinada, entre outras coisas
mais, pelo género do investigador.
Embora o trabalho de Clifford Geertz tenha tido muito mais eco na história da Antropologia, a pequena
produção de Hildred Geertz, então sua mulher, parece-me ter sido especialmente profícua porque,
embora mais incidente no seu campo de análise, acabou por apontar uma via sólida e sensata para a
construção teórica sobre um terreno. E o meu argumento, agora, é que, neste caso e nesse momento
histórico, essa proficuidade se deveu também, em grande parte, ao facto de Hildred ser mulher.
"The Meaning of Family Ties" (1979) é um texto magnífico e pouco explorado, de grande subtileza
"The Meaning of Family Ties" (1979) é um texto magnífico e pouco explorado, de grande subtileza
etnográfica. Ali ela percorre paulatinamente os discursos e as práticas exclusivas e inclusivas em termos
sociais até conseguir dar consistência às redes sociais de Sefrou para mostrar como elas se constroem,
simultaneamente sobre diferentes registos - a casa, a família, os círculos de vizinhança e as relações de
amizade - sem, contudo, negligenciar os laços agnáticos, o parentesco de classificação e as genealogias,
igualmente estruturantes. O que ela empreende - mimeticamente com as mulheres marroquinas - é um
procedimento de reciclagem: as genealogias, a ideologia segmentar, não vão fora com a água do banho:
elas são antes maleabilizadas, pelas práticas e negociações sociais que também têm em conta outras
condicionantes e acervos culturais o que permite, ao mesmo tempo, incluir as mulheres nas dinâmicas
sociais e culturais.
Embora existam outros textos, produzidos no mesmo contexto, que indiciam no mesmo sentido - por
exemplo de Combs-Schiling (1985) e de Dale Eickelman (1981[1976]) e, para Salé, o de Brown (1976) -,
Hildred Geertz parece-me mais paradigmática desta proficuidade teórica do encontro do terreno com o
género e com o contexto de produção teórica. A esta capacidade de adequação teórica e metodológica a
um terreno não deve ter sido alheio o facto de ser mulher.
Não estou aqui a referir-me à essência de um género feminino, a uma qualquer sensibilidade especial
para um entendimento próprio, nem à tortuosa dimensão militante do feminismo antropológico (Cf.
Strathern:1987): refiro-me, tão somente, à evidência de que um espaço de segregação sexual,
determina, necessariamente também as mobilidades espaciais e sociais dos investigadores. E isso sim,
tem efeitos, não apenas, na produção académica relativa aos géneros per si, quanto, de forma mais
alargada na construção do edifício teórico da Antropologia. E apesar de, como diz Strathern, a relação
entre Feminismo e Antropologia ter sido muitas vezes desajeitada (Idem), convem não esquecer que, tal
como as vozes dos indígenas, ou dos halfies, também as das mulheres têm contribuído, desde os anos
setenta, para a constante revisão antropológica.
O clássico exemplo de Hildred Geertz - que tentei seguir no meu trabalho posterior - parece-me, então,
importante por várias razões: a) como vimos, revela a colonização mútua do terreno e com isso
relativiza, de alguma forma, a carga imperialista com que alguma crítica antropológica (e também alguma
Antropologia feminista) têm sobrecarregado a disciplina; b) revela a importância do presente etnográfico
e a necessidade da sua constante actualização e consequente reaferimento teórico; c) revela a eficácia da
especial incidência nas relações sociais em detrimento das suas representações culturais; d) recoloca as
mulheres no seu mundo de relações (onde existem homens e mulheres, parentes e vizinhos, patronos e
clientes) - não as segregando como alguns patriarcas antropólogos e como algumas matriarcas feministas
- para um mundo onde existem apenas mulheres; e) ao mesmo tempo que coloca, também, as mulheres
antropólogas na história da Antropologia. Ou seja retoma a perspectiva de que o mundo das mulheres é,
ao mesmo tempo, o de todos os outros que o partilham e interpretam enquanto actores de dramas
comuns, num mesmo palco cultural.
Foram estes tópicos que mantive para me guiarem no meu trabalho, e foram eles que orientaram, depois
ainda, a minha pesquisa para o doutoramento sobre as tácticas e enunciados identitários das mulheres de
um bairro da medina de Salé, donde resultou um livro, publicado em 1999, que decidi chamar um Islão
Prático. Entretanto, empreendi pequenas missões de campo e escrevi vários artigos de revisitação (1991,
1993, 1994, 1998, 1999b, 2002, 2003). O último publicado chama-se "O hammam dez anos depois"
(2003). Reporta-se a 2002 e já carece de actualização.
Mantendo-me fiel à minha agenda, preocupada com a objectivação do presente etnográfico, assumi
revisões e contradições e mesmo alterações de perspectiva face a novas evidências etnográficas. Mas foi
esse trabalho lento e continuado - sempre acompanhando as negociações identitárias femininas para
prossecução dos seus objectivos num mercado de escassos bens materiais e simbólicos - que me impediu
de ficar perplexa perante realidades apresentadas pelos media, como "notícia". Primeiro perante o
crescimento do discurso fundamentalista entre as mulheres marroquinas. E, mais recentemente, perante
a unanimidade das mulheres - tanto feministas 'emancipatórias' quanto feministas 'islamizantes', para
utilizar a terminologia de Yolanda Aixelá - face às recentes alterações da Moudauana (o Código do
utilizar a terminologia de Yolanda Aixelá - face às recentes alterações da Moudauana (o Código do
Estatuto Pessoal marroquino).
Não é minha intenção explorar o tema da Moudawana, nem gostaria que a discussão fosse por aí. Este foi
apenas mais um exemplo retirado da minha experiência para sustentar o leque de propostas que gostaria
agora, de fazer-vos. De acordo com essa experiência, e respondendo aos desafios que atravessam toda a
Antropologia e não apenas a do género (na verdade as questões que se colocam ao género não são tão
diferentes do que as que se colocam em relação á "cultura") as minhas propostas são as de que:
1 . Nos coloquemos num plano de constante actualização etnográfica e de objectificação dos contextos
de produção dos nosso próprios discursos que nos permitam, um descolamento - de forma, de
conteúdo e de legitimidade - em relação ao discurso mediático e político.
2 . Que multipliquemos e contextualizemos a produção, de forma a produzirmos aquilo que Leila AbuLughod designou como "etnografias do particular" que possam servir como armas de arremesso
antropológico contra todo e qualquer essencialismo ou fundamentalismo culturalista.
3 . Que, dentro da mesma lógica, atentemos sobretudo às práticas e relações sociais em detrimento
das representações culturais de género por duas ordens de razões:
porque estas são políticamente mais reificáveis, transformando-se mais facilmente em
emblemas de fundamentalismos culturais recíprocos (como é o caso do hijab)
porque, como Strathern disse falando de Shifting Contexts (1995), só acompanhando
as relações sociais se podem resolver outro tipo de desafios colocados à Antropologia
contemporânea: os que decorrem da interacção entre o local e o global.
Estratégicamente, eu não teria problemas em colocar-me na linha do humanismo proposto por Said,
Leila-Abu-Lughod e melhor matizado por Strathern (Idem): um humanismo em que a humanidade é
entendida como "sociabilidade" e "co-presença" e que, por isso deve ter o seu foco de inspecção ao nível
das relações sociais. Nesse quadro, a Antropologia terá que estar necessariamente implicada: foi,
também, a Antropologia que deu a "cultura" ao "mundo" (como também lhe deu o "género"). Como pode
colocá-la, agora, ao serviço das pessoas?
Às sugestões de Hildred Geertz associei, no início do meu trabalho, muitas outras de outros autores,
homens e mulheres, que foram povoando os escritos académicos. Umas ficaram, outras, fui-as
abandonando nesse processo de revisão a que me obriguei constantemente. Uma das que guardei para
sempre foi de Eickelman quando diz:
"A ligação existente entre a unidade de estudo do antropólogo e o todo em que ela se insere não é
do tipo daquela que liga o microcosmos ao macrocosmos - como uma geração mais antiga de
estudiosos das comunidades presumiu, muitas vezes, ingenuamente - mas antes da que que se
forja numa arena cujo estudo permite a elaboração de hipóteses relativamente a certos problemas
culturais." (Eickelman 1989:21).
O termo "constelação" parece-me sugestivo para definir aquilo que entendo como unidade de estudo do
antropólogo porque lhe dá uma coesão interna ao mesmo tempo que lhe concede abertura para dialogar
com outras constelações, em outros contextos - temáticos ou geográficos, permitindo mapeamentos
vários e flexíveis das culturas.
A Antropologia tem descurado o esforço comparativo. Por isso me satisfaz colocar-me num plano de
intersecção, de fronteira entre dois mundos para cuja construção a academia também contribuíu. Os
limites da África académica não são os da África geográfica. É inegável a contribuição da Antropologia, e
sobretudo dos "area studies" para a etnicização e racialização da África. Parece-me a mim que é nestes
casos especiais que a categoria do género pode ser especialmente útil: servindo de plataforma
comparativa entre diferentes contextos que possam ser reciprocamente iluminados. Por exemplo: um
recorte africano mais alargado, que abarque a àfrica Sub-Sahariana e a Àfrica do Norte, para uma análise
comparativa do género, pode contribuir para uma certa "desislamização" necessária dos estudos do
comparativa do género, pode contribuir para uma certa "desislamização" necessária dos estudos do
género patente nos contextos do Magrebe. Devemos rentabilizar aquilo que temos: neste caso, a
intersecção de dois essencialismos pode resultar heuristicamente de forma profícua.
Gostaria ainda de terminar dizendo que, eventualmente as antropologias "periféricas" de Portugal e
Espanha, de homens e mulheres (porque estas propostas têm ainda a vantagem de não ser sexistas)
podem ter mais êxito na persecução destas medidas no que respeita uma gestão eventualmente mais
descomprometida politicamente, tanto da prática, quanto da conceptualização antropológica. Sem querer
cair no habitual optimismo dos discursos "luso-tropicalistas", parece-me poder dizer que o facto de, pelo
menos durante parte do nosso percurso, nos termos encontrado na periferia dos paradigmas hegemónicos
da teoria antropológica e de alguns dos jogos maiores da política internacional, nos permite,
eventualmente, uma maior capacidade de objectivação da militância culturalista de todos os tipos. Essa
posição de relativa periferia coloca-nos, portanto, em melhor posição para nos manifestarmo nós,
militantemente, contra os efeitos, frequentemente nefastos, desse tipo de militantismo radical.
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