livro – o amor e suas variantes
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livro – o amor e suas variantes
O amor e suas variantes Textos por Tati Bernardi São Paulo | Editora Panda Books 2011 Projeto Gráfico: Ilustração Capa: Ilustração Miolo: Diagramação: Revisão: Formatação: Marina Lacerda Marina Lacerda Nathalia Queiroz Marina Lacerda Marina Lacerda Marina Lacerda © 2011, Editora Panda Books | © 2011, Tati Bernardi Este livro ou parte dele só poderá ser reproduzido mediante citação da fonte. O amor e suas variáveis | Tati Bernardi - São Paulo: Editora Panda Books , 2011. www.tatibernardi.com.br Elaborado conforme os dados internacionais de catalogação na publicação (CIP) Panda Books | Editora Original Rua Henrique Schaumann, 286 cj. | 4º andar CEP: 05413-010 - São Paulo [SP] Tel.: 55 11 2628-1323 | 55 11 3088-8444 www.pandabooks.websiteseguro.com [email protected] Sumário Apresentação 7 Texto 1 O amor 9 Texto 2 Eu preciso saber 11 Texto 3 Na fila do supermecado 15 Texto 4 O único lugar pra sempre 19 Texto 5 Tudo errado 23 Texto 6 O homem mais bonito do mundo 25 Texto 7 Sexo 29 Texto 8 Insuportável 32 Texto 9 Música 35 Texto 10 A louca do jardim 37 Texto 11 Vencedor 41 Texto 12 À espera de Leopoldo 43 Texto 13 Isso não é amor, menina 45 Texto 14 Consideração 49 Sobre a autora 56 Memorial Descritivo 58 Apresentação O amor e suas variantes é um livro que reuni quatorze textos de tamanhos pequenos à medios, que abordam o amor de diversas formas. Foram todos escritos pela escritora Tati Bernadi e publicados pela mesma em seu site. O interesse pelos textos dela partiu do encanto pelo modo natural, espontâneo e engraçado que ela escreve; onde estes são adjetivos semelhantes na definição, mas tratande-se de Tati Bernardi cada um insere-se em algum trecho de seus textos. Com a intenção de homenageà-la, reuni quatorze textos que relatam o amor de diversas formas e os sentimentos variantes à ele. São textos que descrevem amor de amigo, amor eterno, amor de uma noite, amor platônico e até amor que nem existe, mostrando assim que o amor está, ou pelo menos deveria estar, em quase todos os momentos que nos acontecem. Por fim é um livro que tem o objetivo de entreter e mostrar o trabalho incrivel de uma escritora que esquece a razão na hora de escrever. 7 O amor Semana passada liguei pro meu melhor amigo e convidei para um cinema. A gente não se falava desde o ano novo, quando tudo deu errado pro nosso lado. De tempos em tempos sumimos, falamos umas coisas horríveis de quem se conhece demais. Ele topou desde que fosse daqui pra frente, preguiça de conversar da briga e tal. E fomos. Cheguei antes, comprei. Ele chegou depois, comprou água. Porque eu comprei os ingressos, ele comprou também uns doces e disse que pagaria o estacionamento. Porque ele pagaria o estacionamento, eu disse que daria a carona da volta. E com meu coração tão calmo eu voltei a sentir o soninho de sofá de casa com manta que sinto ao lado dele. A gente não se beija nem nada, mas quando vai ver pegou na mão um do outro de tanto que se gosta e se cuida e se sabe. Já tivemos nossos tempos de transar e passar nervoso e aquela coisa toda de quem ama prematuramente. Mas evoluímos para esse amor que nem sei explicar. Ele me conta das meninas, eu conto dos caras. Eu acho engraçado quando ele fala “ah, enjoei, ela era meio sem assunto” e olha pra mim com saudade. Ele também ri quando eu digo “ah, ele não entendeu nada” e olho pra ele sabendo que ele também não entende, mas pelo menos não vai embora. Ou vai mas sempre volta. Não temos ciúmes e nem posse porque somos pra sempre. Ainda que ele case, more na Bósnia, são quase quinze anos. Somos pra sempre. Ele conta do filme que tá fazendo, eu do livro. Os 9 mesmos há mil anos. Contar é sem pressa de acabar. Se ele me corta é como se a frase que eu fosse falar fosse mesmo dele. É um exibicionismo orgânico, como se meu silêncio pudesse continuar me vendendo como uma boa pessoa. São quinze anos. É isso. Ele me viu de cabelo amarelo enrolado. Eu lembro dele gordinho e mais baixo. Ele sempre comprou meus testes de gravidez, mesmo a suspeita nunca sendo nossa. Eu já fui bem bonita numa festa só porque ele queria me fazer de namorada peituda pra provocar a ex mulher. Minha maior tristeza é que todo novo amor que eu arrumo vem sempre com algum velho amor tão longo e bonito. E eu sofro porque com pouco tempo não consigo ser melhor que o muito tempo. E de sofrer assim e enlouquecer assim, nunca dou tempo de ser muito para esses amores porque estrago antes. Mas meu melhor amigo é meu único amor. O único que consegui. Porque ele sempre volta. E meu coração fica calmo. E ele vai comigo na pizzaria e todos meus amigos novos morrem de rir porque ele é naturalmente engraçado e gente boa e sabe todos os assuntos do mundo. E todo mundo adora meu melhor amigo. E eu amo ele. E sempre acabamos suspirando aliviados ‘‘alguém é bobo como eu, alguém tem esse humor’’ e mais uma vez rimos da piada que inventamos, do pai que chega pro filho e fala: sua mãe não é sua mãe, eu transei com outra. E esse é meu presente dessa fase tão terrível de gente indo embora. Quem tem que ficar, fica. 10 Eu preciso saber A recaída de amor acontece como num daqueles pesadelos que se está caindo. De repente você acorda sentado na cama: Meu Deus, eu preciso saber! Mas se eu já estava tão bem há semanas. Volte a dormir, volte a dormir. Você já tinha decidido lembra? Nada a ver com você, chato, bobo, não deu certo. Mas eu preciso saber. Não, não precisa. Pra quê? Vai te machucar. Não! Eu preciso saber. Então levanto da cama. Facebook, a desgraça em formato de parquinho virtual. Nome dele, aparece a foto azulada e ele de perfil. É tão bonito. Mas não há mais nada que eu possa ver. Nos deletamos mutuamente pra evitar justamente esse tipo de inspecão noturna. Mas isso não vai ficar assim. Ligo pra nossa amiga em comum. Ela não atende, afinal, são duas da manhã. Mando mensagem ‘‘me manda sua senha do Facebook agora ou vou ficar te ligando até amanhã cedo’’. Ela manda a senha e um palavrão. Acesso. Vamos ver. Eu preciso saber. Eu preciso. Então vejo que ele não posta nada há cinco semanas. Fotos, fotos. A única foto nova é o flyer de uma festa que eu fui e ele não estava. Nada. Jogo o nome dele no Google. Aparece uma foto dele alcoolizado dando entrevista em uma festa de mídia. Como é lindo. Tento o Twitter mas ele só escreve piada de político. Tento o Facebook, Twitter e blogs de amigos. Está ficando tarde. Se eu tivesse essa mesma concentração e minuciosidade e empenho e energia para o trabalho estaria rica. Estou retesadamente motivada e atenta. Mas não consegui nenhuma informação e eu 11 ainda preciso saber. São seis da manhã. Estou cansada. Coloco a música de quando você forçou a porta do quarto e entrou. Black Swan. Não sou boa de inglês como você, mas sei que é a história de algo que já começou fodido porque cresceu demais antes da hora, você que pegue um trem e suma daqui. Que bela música pra começar. Ok, agora estou chorando. Lembrei que eu me sentia tão viva com você me olhando bem sério e bem no fundo dos olhos e machucando meu braço. Sim, é definitivamente uma recaída e eu acabo de decidir que te amo mais que tudo no universo e que amanhã, ou hoje, porque já são sete e meia da manhã, vou resolver isso. Agora preciso dormir só um pouquinho. Volto pra cama. Coração disparado. Não tem posição na cama. O que eu faço? Não tô a fim de ler, não tô a fim de ver TV. Aquelas outras coisas que se faz pra acalmar tô com preguiça agora, minha imaginação está indo toda para traçar um plano para que eu descubra. Descubra o quê? Não sei, mas sei que algo está acontecendo, ou eu não estaria assim. Porque eu sinto quando ele está com alguém, sabe? Eu sinto. Sim! A cartomante! Ligo pra Zuleide. Você atende hoje? Mas é domingo, Tati! Atende? Só se for por telefone. Tá bom, então joga aí: ele está com alguém? Mas Tati, você quer mesmo saber isso? Quero, mulher. Eu preciso saber. Joga aí: ele está com alguma puta? Tati, eu não posso perguntar isso pras cartas. Pergunta aí: ele tá com alguma piranhuda desgraçada vagabunda vaca dos infernos? Zuleide pede desculpas e desliga. Preciso do Lexapro mas ele acabou há semanas, igual meu amor. E agora, de repente, preciso tanto dos dois novamente. Você acha que ele está com alguém? Não sei, Tati, eu ainda tô dormindo, posso te ligar mais tarde? Você acha que ele está com alguém? E se estiver, Tati, quer ir ao cinema mais tarde? Você acha que ele está com 12 alguém? Putz, sei lá, homem sempre tá comendo alguém né? Você acha que ele está com alguém? Tati, do jeito que ele gostava de você? Claro que não! Chega, chega. Preciso me acalmar. Pra que isso? Se ele estiver com alguém agora, e daí? Terminamos não terminamos? Ele e eu não temos nada a ver, certo? Decidimos que era melhor assim, certo? Eu não tava bem com ele e nem ele comigo, certo? Porque era bom e tal. Aliás, meu Deus, como era bom. Mas não era bom pra ficar junto, certo? Então pronto. Chega. Adulta, adulta. Qual o problema se ele estiver agora, justamente agora, lambendo a virilhazinha de alguma desgraçada? Qual o problema? Ok, eu posso morrer. Eu definitivamente posso morrer. Chega, vou acabar com essa palhaçada agora mesmo. Tomo banho, me visto, pego a bolsa, entro no carro. Considerando que ele não mora em São Paulo, não sei exatamente o que eu pretendo com isso. Mas me faz bem enganar o cérebro e fazer de conta que estou indo atrás da verdade. Na verdade vou só na casa de outro, preciso fazer qualquer coisa que não seja sofrer, mas não consigo. O outro não conhece Black Swan, não ri da história da Zuleide, não me aperta o braço. Volto pra casa, destruída. Sinto tanto amor dentro de mim que posso explodir e bolhas de corações vermelhas atingiriam o Japão. Quase não consigo respirar. Chega, chega. Ligo pra ele. Ele não atende. Ligo de novo. Ele atende falando baixinho. Você está com alguém? Estou. Desligamos. Pronto, agora eu já sei. Depois de um final de semana inteiro de palpitacões, descargas de adrenalina, músicas, textos, amigos, danças, gritos, sensações, assuntos, choros, dores, vida. Agora eu já sei. O que eu nunca vou saber é porque faço tudo isso comigo só porque tenho tanto pavor do tédio. Era só isso o que eu precisava saber. 13 Na fila do supermercado Quando ele colou meus livros na boca eu entendi que era uma maneira de encostar em mim sem encostar em mim. Ele tava de ressaca de pinga e eu de tudo. Não era pra gente se beijar. Apesar de eu estar fazendo bico sem parar, uma mistura de vontade de chegar mais perto com vontade de me proteger. Ele se desculpava pelo cheiro e pela cara feia. E eu não desculpava nada. Era tudo tão bom. O cheiro e a cara feia. Tudo tão bom e nada feio. Seu nariz ganhou o prêmio de melhor coisa do ano. Eu disse e ele riu. E já que ele não trouxe a gaita, que pelo menos fizesse a dancinha pra mim. E ele quase fez mas foi mexer nos meus livros e eu tive a idéia de emprestar meu amado Martin Page só pra depois ter desculpa de pegar de volta. E ele topou. É um livro sobre como tudo é insuportável e a gente quer morrer mas de repente tudo fica incrível e a gente quer viver. E ele entendeu. E melhor uma das primeiras visitas pra minha casa nova não podia ter. Mas já? Já? E então ele tomou minha água de coco e foi ficando melhor. E eu fui ficando melhor. Ressaca passa. É isso, simples. Você pensa que vai morrer, mas passa. As mulheres não me aguentam porque sou muito desligado. Ele disse. Os homens não me aguentam porque sou ligada demais. Coisas soltas ditas enquanto ele me contava que tinha o pôster do ‘‘Homem que amava as mulheres’’ igual ao meu e gostava de House. Você vai na minha casa um dia? Claro. Você vem na minha de novo? 15 Claro. A gente vai se ver o ano que vem? Claro. Adoro coisas claras. Mas já? E então ele pediu dedicatória e eu comecei a chupar a caneta. E ele continuava encostando meu livro na boca. Até que a gente percebeu e deu risada. Essa coisa é mesmo absurda. Mas já? Tô achando minha dor duvidosa, porque agora, por exemplo, não tenho dor nenhuma. E ele riu e disse que também não tinha dor nenhuma naquele momento. E quando ele riu, eu percebi. Eu percebi que eu estava na merda. Porque adoro esses caras que dão risada com a cara inteira mas continuam com os olhos um pouco tristes e parados. E adoro que a ressaca dele não permitia muita emoção e por isso ele fechava um pouco os olhos e ficava quietinho. É impressionante como eu não gosto de ninguém mas, de vez em quando, escapa um momento, um gesto, uma pessoa perdida e linda e única. E eu fico nessa felicidade de ser uma pessoa boa e capaz dessas coisas boas. E então eu contei pra ele que não fumava e ele que já tinha tomado drogas pesadas com aquele cantor fodão que faz as mulheres ajoelharem. E dos amigos que morreram e tudo muito rock and roll e achei divertido se é que se pode achar isso. Eu nunca namorei escritoras. E eu que nunca namorei. Acho. E então falamos do melhor japonês do bairro e do melhor livro do Philip Roth e ele confundiu Quarto do Filho com filho do quarto e quase falou mal do John Fante e de repente tudo ficou tão bem, tão bem. Mas já? Todo mundo é um pouco triste e um pouco louco e já estava muito tarde. E na televisão tava passando um filme brasileiro idiota. E ele imitou viado pra mim, porque achei o fim do mundo ele ser um comunista rock and roll que fala francês e gosta de coelhinhos. E tudo era legal, tudo, qualquer coisa nele é tão legal. Vai da camisa até o nariz. E do jeito dele falar até o 16 tempo todo que ele fica quieto. É tudo tão legal. E a força que saia de dentro dele aquele dia e agora ele sem forças. E tudo forte e ao mesmo tempo eu quase com sono e calma. E de como ele fala de coisas terríveis quase sorrindo. E de como ele diz que me liga em meses e liga no dia seguinte. E de como ele chegou até aqui completamente bêbado e completamente bom moço. E de como ele disse, da maneira mais sensual do mundo, que queria, um dia, fazer sacanagens meigas comigo. E eu perguntei se eram bregas, os textos. E ele disse que eram no limite, porque ninguém diz verdades sem ser. E nada disso me descontrolou porque a voz dele é quase uma meditação. E ele disse que precisava me contar uma coisa que ia me deixar triste. E eu disse vai com tudo. E ele disse que não tinha nenhuma música falando «na fila do supermercado». Eu tinha imaginado tudo. Era outra frase, era outra coisa, eu tinha imaginado tudo. É isso que eu faço, baby. Eu imagino tudo. A sua profissão é escrever para os outros imaginarem, a minha é imaginar para eu escrever. E ele me achou inteligente e eu adoro isso porque é um tipo de sexo que se faz que não enlouquece e nunca sacia. E ele ficou melhor e foi embora. E eu fiquei melhor e voltei. Não quero mais morrer, eu só quero meu livro de volta. Viver é bom demais. 17 O único lugar pra sempre Mesmo sabendo que eu colocaria em risco essas coisas que faço e me soam tão bem. O Pilates, por exemplo, que faço às terças e quintas duas horas após almoçar na minha mãe. Isso me parece um pedaço agradável de uma agenda encantada, dias felizes, nada demais. A aula de dança das segundas e quartas, a acupuntura da sexta, a análise quinta cedinho, o parque do sábado a hora que der na telha, o japonês com a Letícia, meu emprego na televisão e na editora que me permitem mandar em boa parte do meu tempo sem ser, por isso, uma louca duranga, o costume de escrever até tarde ouvindo Beck ou Antony and the Johnsons, os mocinhos que aparecem, com intervalos de dez ou vinte dias, e me abastecem de um gostar possível e descartável, algum bar chato que serve pra me tirar de casa e até mesmo rir de um ou outro ser humano mais parecido com o que eu acho que deveria ser um ser humano. Nada disso me soa banal e aprendi mesmo a chamar de minha vida. Agora serão dias achando tudo idiota e até mesmo medíocre. O Pilates, os almoços em família, os bares, tudo uma tortura. Ainda assim, mesmo sabendo que depois é cheia de dor que carrego minhas horas, ainda assim eu cortei o cabelo um dia antes e comprei uma jaquetinha preta em promoção. Ainda que sentir de verdade pareça uma outra vida, às vezes cansa viver dentro das coisas que invento. Com você, mesmo eu inventando tudo também, dá pra ter essa 19 sensação de desordem, atropelamento, vida dizendo e não minha cabeça falastrona. Mesmo sendo ofensivo pra minha existência que pessoas como você existam. Mesmo que sua tristeza e preguiça e desistência mostrem pra minha frescura de sentidos como tudo pode ser amargo e pior: mostre que tudo sempre foi e eu é que, vai ver, sou forte ou abençoada demais pra não sucumbir. Mesmo que sua alegria nunca seja por mim. E que sua alegria torne, quando por mim, minha vida intolerável. Sua existência é um absurdo e isso é a maior verdade que me vem à mente quando penso em você ou estou ao seu lado. Passamos a tarde juntos. Foi leve e eu estava quieta, coisa que nunca aconteceu nenhuma das vezes que saímos. Eu estava sempre histérica e hoje eu estava muito quieta, até demais. Talvez seja porque eu não tenho mais a euforia louca de ser amada. Eu piro quando alguém me ama e ao ver em você a calmaria dos vencedores corriqueiros, larguei o corpo. Acabou sendo boa, a sensação de tarde ordinária, encontro ordinário. Eu pude habitar o papel de amiga caminhando ao lado, uma forma de ouvir por perto sua respiração pigarrenta que amo como se fosse o único sopro saudável do mundo. Eu permaneci e isso foi diferente, triste, insuportável, mas possível. Como os mortos que ficam em qualquer lugar, até mesmo embaixo da terra. Morto não deseja e por isso mesmo permanece. Acho que seu desejo morreu e talvez o meu também, já que boa parte desse amor enorme que eu sentia e sinto por você, vinha e venha da minha alegria desmesurada em me sentir amada pelos meus próprios sonhos. Você encerrava em mim eu mesma e era uma loucura tudo, como eu sentia, como eu queria me vomitar e ensanguentar e explodir e rodopiar em mim até furar o chão como uma broca desgovernada 20 e depois sair derrubando o mundo como o único pião que sabe a verdade e precisa chacoalhar seu entorno pra não enlouquecer sozinho. Era uma loucura tudo. Mas a morte, o fim, nós, andando calmos, ao lado um do outro, isso me permitiu estar de alguma forma sem querer habitar cada instante do estar e para isso me retirando o tempo todo. E isso pode ser viver mas viver é terrível. E antes, quando eu não sabia viver e me sentia amada, era ainda mais terrível. Daí que sobra essa sensação de uma solidão filha da puta mil vezes pois em nada dá pra ser com você. E tudo bem, não é você, nunca foi, mas escuta a maluquice: é que nada disso impede que eu sinta um amor absurdo por você. Me peguei uma hora, olhando você, andar, tão feinho, seu ombro encolheu um pouco, cada dia que passa mais e mais é uma concha o que você se torna. Dessas que é mentira a pérola e o som do mar, mas eu os vejo, o tempo todo. Você andando desse seu jeito meio de louco, que chacoalha a cabeça. E se veste mal quando pouco se importa, eu sei, eu entendi. E a manga suja de café. A roupa bege da cor de tudo que é você. Você é tão errado e cheio de estragos. E me peguei olhando pra tudo isso e amando tanto, tanto, tanto. Como se nada mais no mundo fosse tão bonito ou correto ou mesmo perfeito porque perfeito é o que não tem mesmo cabimento. O resto nem existe porque vemos ou explicamos. Na sua varanda sem céu, certa vez, você se sentou naquela cadeira sem fundo. Me colocou no seu colo e me deu o abraço que disparava corações em mim como se eu tivesse um em cada nó de veia. E me disse, com sua voz tão bonita, a mais bonita que eu já ouvi, que eu tinha subido todos os seus andares. Eu entendi que você era o homem da cobertura de aço e eu uma espécie rara de passarinho que tinha algum tipo de chave que 21 se autodestruiria em poucos segundos. E eu entendi também que agora que tinha chegado ali, só me restava pular, já que ninguém aguenta o alto tão alto muito tempo. A vertigem que era o nosso amor. Minhas olheiras, meu cansaço, meus quarenta e dois quilos. Eu poderia morrer porque você tinha uma carninha mais mole atrás da sua orelha direita e isso me impossibilitava, dia após dia, que eu vivesse sem sentir você o tempo todo. Mas quem é mesmo que morre dessas coisas? Não, não podemos, com tanta coisa pra fazer, os meninos de dez a vinte dias, os bares, e almoços, o Pilates, a dança, os empregos, escrever, tudo isso que é minha vida antes e depois de você. Tudo isso que daqui a pouco, quando a sensação desgraçada de absurdo e solidão passar, tudo isso volta, se acomoda, a agenda mágica, o gostosinho no peito, esquecer você todo dia um pouco pra vida e todo dia muito pro dia. Mas agora, hoje, guarda isso, eu amo demais você. Por que escrevo? Porque é a minha vingança contra todas as palavras e sensações que morrem todos os dias mostrando pra gente que nada vale de nada. Toma esse texto, o único lugar seguro e eterno pra gente. 22 Tudo errado A primeira parte da primeira vez que fomos jantar foi um completo fracasso. Eu escolhi o restaurante, eu peguei ele em casa, eu paguei a maior parte da conta porque “você que inventou de pedir o vinho” e ele estava muito mal vestido e não tinha tomado banho depois de um dia inteiro de trabalho. Erro, erro, erro. Assim que paguei sozinha o manobrista e me vi andando na chuva até ele, que aguardava o carro tranquilamente embaixo de um toldo, tive a certeza: esse não serve nem pra amigo que você cumprimenta quando cruza na rua uma vez a cada quinze anos. Mas eu estava uns bons meses sem transar, sem o menor saco de conhecer gente nova, sem a menor cara de pau para ligar para ex namorados e ele havia sido recomendado por amigas limpinhas “vai que é bom” e, por total falta de opção numa terça fria, deixei ele subir no meu apartamento. Na manhã seguinte, já éramos melhores amigos. Cantamos todas as músicas do Radiohead tão alto que a vizinha de baixo bateu com o cabo da vassoura no teto. Fizemos campeonato de quem imitava melhor a dança epilética do Ian Curtis, falamos mal das meninas que usavam saltos muito altos nos domingos ensolarados, pulamos de alegria quando descobrimos que estávamos lendo o mesmo livro do Philiph Roth e ele instalou todos os aparatos eletroeletrônicos que, assim como eu, aguardavam um homem inteligente dentro de uma caixinha semi aberta. Ele foi embora se despedindo de mim com um beijo amigo 23 e pela primeira vez na vida achei essa ideia ótima “ele está indo embora sem promessas de amor eterno e eu não estou sofrendo nem um pouco com isso”. Sem mensagenzinhas de carinho ou e-mails fofos, seis dias depois nos encontramos de novo para mais uma maratona de sexo sem amor, e assim ficamos por uma vida. Com intervalos para quando ele arrumava uma namorada ou eu achava que arrumava um namorado. Era leve, divertido, gostoso e uma experiência incrível para a minha pessoa ciumenta: eu ajudava ele a paquerar em baladas e me divertia quando ele ligava na manhã seguinte “a mala da mina apaixonou, e agora?” E agora vamos no cinema mais tarde. E pronto. Esse ano ainda não havíamos nos encontrado. Ele porque arrumou uma mulher bem ao seu estilo (que escolhe restaurante que aceita Visa Vale, usa chinelas crocs com meias de lã coloridas e super se preocupa mesmo com aquelas passeatas dentro do prédio de sociais da USP) e eu porque estava tão apaixonada por outra pessoa que preferia deitar na cama sozinha, só com a voz dele do outro lado da linha, a milhões de quilômetros de mim. Ontem nos encontramos numa festa de um amigo em comum. Ele estressado, com a menina ciumenta ligando no seu celular de meia em meia hora; e eu pelos cantos, suspirando por mais um amor perdido pelo excesso. Ficamos abraçados por horas. Meu coração não disparou e nem o dele. E só por isso o abraço durou tanto. 24 O homem mais bonito do mundo Uma vez eu conheci o homem mais bonito do mundo. Eu estava sentada no chão de uma festa com pocinhas. Toda festa de jornalista forma pocinhas, pode reparar. E ele veio falar comigo “vai molhar a calça”. Ah, mas vou mesmo. Se tratava do homem mais bonito do mundo, eu não tinha nenhuma dúvida. Quem poderia ser mais bonito do que ele? Javier Bardem? Não. Basta vê-lo no filme da cólera pra saber o potencial que ele tem pra feiúra. O Brad Pitt? Eu prefiro os morenos. O Jesus Luz? Acho fraco, ele tem aquele lapso de vergonha suburbana no branco dos olhos. Não gosto de homem que se sente devendo algo ao cosmos. Homem que faz pose de topo de cadeia alimentar mas sofre as dores de uma coluna ainda arredondada pelo começo da evolução. Enfim, tratava-se do homem mais bonito do mundo. E ele veio falar comigo. E eu estava sentada no chão. E ali mesmo trocamos uns beijos e telefones e confissões e eu lembro que, apesar de estar com muito sono e cansaço e desesperança com a vida, fiquei tentando descobrir o que um homem daquele nível supremo de beleza (um metro e noventa, olhos azuis, cabelos castanhos cacheados, ombros que iam até o Chile) tinha visto numa garota bem mediana que estava sentada no chão em um dos dias de menor brilho de sua carreira social. Apliquei o teste do cotovelo durante o beijo (a leve roçadinha sem querer pra saber se o membro 25 promete ou não promete). Apliquei o teste da sapiência média (você comenta que quando você olha pro abismo, o abismo olha pra você, e espera pra ver se ele tem alguma cultura de filosofia de almanaque). Apliquei o teste da bobeira erudita, uma merda qualquer que você lança no ar tipo “ai que vontade de chafurdar por essas lamas universais” e se o cara for minimamente interessante ele compra a besteira e devolve uma outra melhor ainda. Se ele for um tapado ele ri e fala algo idiota tipo “quero o mesmo que você está tomando” e daí você sabe que está, novamente, sozinho no mundo. Como sempre. E ele, do alto de sua absurda e dolorosa beleza, foi tirando nota sete e meio em todos os quesitos. Devolveu uma besteira à altura, conhecia frases pessimistas perfeitas para uma noite estrelada e passou com certo louvor no teste do cotovelo. No dia seguinte, já pela manhã, chegou uma mensagem de texto do homem mais bonito do mundo “quero te ver”. E foi então que resolvi pedir ajuda. Juntei a mulherada em casa. E todas nós, em silêncio, começamos a “googla-lo”. Até que uma foto bem grande, dele só de bermuda, sorrindo, ocupou a tela inteira e o coração de todas nós. Algumas suspiraram. Algumas tiveram ataque de riso nervoso. Uma ficou bem irritada e foi embora. Outras me olharam com a miopia bem apertada tentando descobrir que é que eu tinha pra merecer aquilo tudo. Ele era realmente o homem mais bonito do mundo. Todas concordaram. Não existe homem mais bonito do que esse e talvez nunca existirá. E, ao que tudo indica, trabalhador, com amigos do bem, amante da natureza e das crianças. A ficha. com estava limpíssima. Mas você viu se ele Vi, vi, sim, ele passou no teste do cotovelo. Burro? Não. Então o quê hein? Pois é, amigas tão honestas, eu também não sei o que ele viu em mim. Tentaram uma última explicação, olhando para 26 os meus pés “ah, vai ver ele gosta de sexo bizarro”. É, vai ver. Outra explicou assim ‘‘ah, tem tanto casal que a gente vê e não se conforma’’. Pois é. Fiquei quarenta e sete dias com o homem mais bonito do mundo. Todo mundo olhava pra ele. Homens, mulheres, velhinhos, crianças, cachorros, pombas, formigas. Ele poderia ter qualquer uma das anjinhas da Victoria’s Secret (caso além de perfeito fosse trilhardário também. . . não era o caso, mas era bem de vida) mas preferia estar comigo. Ele definitivamente não tinha nenhum problema sexual, aliás, muito pelo contrário: fazia parte do seletíssimo grupo de homens que, apesar de não fazer feio em medidas, são adeptos do sexo minimalista (aquele que sabe o valor da delicadeza pontual, ritmada, paciente e amorosa), entendia os filmes do Reserva Cultural e me explicava as palavras mais difíceis das músicas do Radiohead. Tudo ia muito bem até que um dia, na fila pra comprar uma bomba de chocolate numa rua de Higienópolis, eu resolvi explodir aquela relação. Ele era tão bonito que me... que me... que... sei lá. Lembro que na hora pensei algo assim ‘‘ah, má vá ser bonito assim lá na puta que o pariu’’. E ele foi. 27 Sexo Na semana passada, ele pintou um pontinho de caneta azul no meu dedinho. Isso foi a coisa mais sexual que me aconteceu nos últimos cem anos. Um pontinho de caneta azul no dedinho. Meu coração disparou e meu dedão do pé direito tentou estalar mesmo com a bota apertada. Um pontinho de caneta azul no dedinho. Uma língua na orelha é pau. Uma língua dentro da boca é pau. Pau é pau. Dedo é pau. Mas um pontinho de caneta azul no dedinho é como um espaço gigantesco de um pau que não existe. O maior pau do mundo que não existe. Não sei explicar, mas sei que é mais pau que pau. Na semana passada, ele encostou o braço no meu, quando pediu emprestado meu carregador de celular. Eu emprestei e depois descobri que ele tem um Iphone. Então o quê? Não sei. Mas sei que aquele braço no meu foi a coisa mais sexual que me aconteceu nos últimos cem anos. Minha língua lutou bravamente contra o céu da minha boca. Uma vontade de me enfiar num buraco dentro do meu próprio buraco. Nem nos olhamos, mal trocamos palavras, nem sei o nome dele, só o apelido. Mas eu gosto quando ele chuta sem querer a minha cadeira, no meio de uma reunião chata, e pede desculpas. Desculpa, e fala meu nome. Eu gosto de sentir os poucos centímetros que o pé dele causa no espaço entre a rodinha da cadeira e o meu corpo. Gosto de mudar de lugar no mundo por sua distração. Eu gosto que o chute é seco e decidido. E curto. E daqui a 29 pouco mais um pouco. E desculpa, e fala meu nome. Tudo isso é minha vida sexual do momento. Quando no elevador ele vira de costas pra apertar o andar e eu meço com meus dentes quantas mordidas dá uma lateral de pescoço. Quando ele espreguiça e o pedacinho de barriga que aparece tem o tamanho exato de uma lambida rápida. Essas coisas que quando vou ver, já pensei. Não, eu não quero mudar o texto, repensar o roteiro, arquitetar o layout. Eu queria mesmo era saber se sua cervical inteira secaria a minha língua numa lambida sem intervalo. E chego mesmo a abrir um pouco a boca, mas por fora é apenas um misto de cara de atenção com sinusite. Na semana passada, porque talvez algumas coisas nos ultrapassem mesmo, ele beliscou com toda a força a minha cintura. E disse. Não sei. Acho que não disse nada. Ele riu à vontade, porque o tesão natural parece mesmo a coisa mais íntima do mundo. Nos conhecemos há mil anos, apesar de ser apenas a semana passada. E eu retribui unhando o seu cotovelo num belisquinho. Também sem dizer nada. E até agora não me caiu a ficha do quanto isso foi estranho. Ou caiu e eu nem pude experimentar essa estranheza, já que estou ocupada demais tentando entender porque algumas pessoas nos agradam pelo cheiro do pelo e não do perfume. São tantas obrigações entre uma sala e outra que ser bicho na copa parece férias. Tudo isso foi a coisa mais sexual que me aconteceu nos últimos cem anos. E talvez eu nunca mais cruze com ele, porque ele nem é do meu andar e eu nem sinto nada de bonito. Mas por via das dúvidas me depilei e tenho sorrido mais. Uma mulher não precisa transar para estar transando. 30 Insuportável Que tem por trás dessas merdas todas que você fala, sempre iguais, sempre mudando a voz porque você mesmo não suporta dizê-las e diz misturando espanhol, francês, americano e favelado. Sempre diz rápido demais, se atropelando, pra dizer como lembra, medo de perder as vírgulas. E não como traduzindo pro seu mundo, com seu oxigênio pra pontuar e tocar nas pessoas. Você sopra pum dos outros no meu ouvido. E me olha feio porque desdobro a boca num muxoxo de não quero. Mas me conquista dizendo coisas tipo “não vou te deixar ir sozinha ao casamento”. Mexendo com minha velha dor de ser sempre menos um. Dor que nem sei explicar porque é só me imaginar chegando com alguém dos tipos que o mundo oferece, para eu lembrar que não me restou ser assim mas ser assim é o que me resta. Eu não gosto de você. É muito importante que isso fique bem claro. Não porque sou boa e não quero te iludir, mas porque preciso sempre deixar claro quando não gosto de alguém. Me sinto muito grandiosa me separando de gente assim «olha, eu sou gente o suficiente pra saber que tipo de gente eu não sou e eu não sou você». Mas você é bonito e de repente é só uma terça sem nada. E deixo você aparecer pra me dizer essas coisas que eu não suporto. Você lê sem absorver e vomita em mim como papel amassado, sem nenhum pouco de gosma, você não digere essas coisas que me diz. Não passam por você além de anotações de 31 bloquinhos que despencam de você sem nunca pegar seu cheiro. Não tem nem cheiro, você parece um banho de desinfetante sem cheiro. Nada seu vem com sangue, catarro ou porra. Vem tudo branquinho e digitado e novo. Talvez um pouco amassado, pra ver se alguém se engana que você vale a pena. Você decora ser um cara interessante, mas não é. Não gosto de você, mas porque você tem mania de segurar minhas duas mãos juntas, num bolinho que você faz, quando me abraça por trás, antes de pegar no sono. Às vezes tenho saudade de você. Você é o que me resta de vontade de ter alguém. É como se por um segundo eu experimentasse. E se fosse sempre assim, sempre esse bolinho de mãos? E ele indo comigo a esses eventos que sempre me obrigo e que sempre me sinto pisando em cacos de vidros de presentes que eu mesma quebrei. Sempre sozinha. E sei lá, mesmo eu sabendo que está bom e é como posso, porque todo mundo me olha com curiosidade lanço ela pra mim também. Há algum problema comigo? E se fosse sempre assim? Até que ele lê umas coisas, escuta outras, assiste outras. Não é um completo imbecil. E esse montinho de mão, rezar de vez em quando, ser presa de vez em quando. Sair sem fazer barulho do banheiro. Enfim, ter a delicadeza do limite de outra pessoa na minha casa. Não ser mais o cavalo pelado que desbrava sua jaula como uma criança num dia sem escovar dentes ou um cego cagado ou um bicho estranho que se dá o direito de exagerar sem lâminas. E se fosse sempre assim? Poder levar alguém no almoço do domingo. Ter alguém pra ligar quando chove e a cidade para. Ter alguém pra fazer a droga de montinhos nas minhas mãos que doem tanto. Meu corpo dói demais. Minha cabeça não para. Sempre lista de tudo, para eu poder saber, nos mínimos detalhes, todas as coisas chatas que não vou fazer. Junto tudo, boto números, pra saber do 32 que abro mão e chuto longe e deixo voar. As coisas mas eu fico. E daí já estou presa a outras coisas todas que preciso organizar pra não fazer. Eu organizo minha impossibilidade o tempo todo. Pra saber que deixei de e não fui deixada de. De de quê? Pra ter controle do que não consigo. Eu listo minha preguiça. Eu sei de cor a chatice de tudo que tô desdenhando. E sofro porque sou a certinha da anarquia. Sempre com o cansaço de defender o lugar do meio, com tanta porrada vindo dos dois lados. O morno de ser. O quase de tentar. A corda bamba de se manter. Nem lá nem lá. Cá mesmo. Meu dente aperta demais os de cima com os de baixo. E não é charminho de gente que escreve ou sei lá que coisa. O fato é que agora que perdeu a graça sofrer pra fazer graça, sobrou só essa verdade que nem merece destaque, que nem me assusta mais, de que eu sofro mesmo. Eu sofro muito mais do que consigo sofrer. Então, será, alguém pra valer a pena colocar flores em cima da mesa? Se eu soubesse quem é você. Se eu visse mesmo. Se você me trouxesse o veneno do mundo. Se você me dissesse coisas malucas que estão antes de tudo isso que você diz, querendo tanto estar depois. Se você pudesse calar a boca. Se ao invés dessas besteiras decoradas que você fala sem parar, pra me mostrar que lê e vê e escuta, você ficasse quieto um pouco, me invadindo do mistério desgraçado de outra pessoa no mundo. Se você fosse só bonito sem comprar roupas e cabelos e notícias que ilustrem isso. O bonito estragado. Eu queria que você fosse o bonito estragado. Mas você se melhora o tempo todo e eu tenho nojo de você. Se eu amasse você, não poderia estar agora, que nem uma panaca, te esperando chegar, calma e alisada, o interfone tocar, você feliz, você bonito, sua boca boa de beijar. Você sem cheiro de rua, de suor, de cigarro, de velhice, de dor. Você com seu cheiro insuportável de menino 33 bom e desinfetado. Eu com fome, jantamos. Eu como. Conversamos. Eu posso. Tenho a voz doce, me mantenho ereta, sorrio como nessas mesas de mocinhas que não sentem o desespero apesar da situação de vitrine. Com você eu posso. Eu durmo. Não tenho olheiras. Com você eu posso amar, porque não penso «olha: eu amo». Com você eu posso sentir porque não sinto tanto que preciso parar de sentir. E é isso que me entristece. Você é uma piscina de plástico pra criança. Pra eu retomar meu contato com a água depois do trauma com a cachoeira de milhões de metros e velocidades. E eu molho os pés e posso. Você é uma via acolchoada, para eu voltar a dar os passos, depois do acidente que me deixou sem músculo desejoso. E você segura bem forte na minha mão e diz ‘‘eu posso ir com você, eu posso dormir aqui, eu posso ficar’’. E eu serei eternamente grata, mas não eternamente. As pessoas rompidas pelos amores que não puderam suportar, se juntam e seguem. Anos. Casamentos. Mãos fechadas, quentinhas. Isso não é pra mim, ainda que o oposto também não seja. Daqui a pouco, eu sozinha, cacos de vidro. Nem cachoeira e nem piscina. Eu seca. Porque só sei viver esperando ser molhada e não molhada. Molhada me resfrio, gripo, tenho medo de acabar. Seca é a espera e é como posso. Esse tempo com você, preciso que você saiba: uma saudade imensa de quando eu lambia o diabo. O que secou minhas plantas, minhas larguras, meus líquidos. O amor bom deixa sempre a melancolia de não estar mais morrendo. A saudade do abismo insuportável de se sentir viva. A certeza de que uma hora se volta pro amor ruim, sabendo, de algum lugar que não se pode jamais interferir, que ruim não é exatamente a palavra. A palavra que não se sabe e daí chamamos de ruim. 34 Música As pessoas seguram uma risada quase de pena. Mas se ele nem morava aqui, mas se ele não ficou mais do que uma semana com você, mas se já faz tempo que ele se foi, sem nunca ter sido. Então o quê? Nem eu sei. Mas sei da minha enxaqueca que já dura uma semana. Latejando sem parar. O coração que subiu nos meus ouvidos. Gritando que sente falta e pronto. Eu sinto falta de ligar o celular, depois do avião aterrissar, e ter uma mensagem sua dizendo que vai dar tudo certo. E sorrir mesmo estando numa fila gigantesca para o táxi, embaixo daqueles 78 graus do Rio de Janeiro. Não tem poesia nem palavra difícil e nem construção sofisticada. O amor é simples como sorrir numa droga de fila. E não se sentir mais sozinho e nem esperando e nem desesperado e nem morrendo e nem com tanto medo. Eu sinto falta de querer fazer amigos em qualquer festa, só pra conhecer gente estranha e te contar depois. Agora, eu fico pelos cantos das festas. Voltei a achar todo mundo feio e bobo e sem nada a dizer. Porque eu acho que estava gostando mais das pessoas só porque te via em tudo. Agora as pessoas voltaram a me irritar. E eu voltei a ter que fazer muita força pra sair de casa. Quando alguém não entende o meu amor, eu lembro daquele dia que você não queria tocar violão pra mim. Até que dedilhou reclamando que não era o seu violão. Daí tentou uma música conhecida. Tentou uma menos conhecida. Daí tocou uma sua, com a voz baixinha 35 e olhando pro nada. E então me encarou e cantou com a voz alta. E então largou o violão, me encarou e cantou bem alto a sua dor, de pé, na minha frente, e eu achei que meu peito ia explodir. E ri achando que você ia sair correndo e dar um show na padoca da frente. E naquele momento eu pensei que poderíamos ser infinitos se fossemos música. E isso explica tudo, mas ninguém entende. Você entende. Mas cadê você? Quando vai dando assim, tipo umas onze da noite, o horário que a gente se procurava só pra saber que dá pra terminar o dia sentindo algum conforto. Quando vai chegando esse horário, eu nem sei. É tão estranho ter algo pra fugir de tudo e, de repente, precisar principalmente fugir desse algo. E daí se vai pra onde? 36 A louca do jardim Pra onde vai o amor? De manhã eu preciso buscar um remédio pra minha mãe, depois tenho pilates e às 11 em ponto preciso estar na agência pra decidir um roteiro de vídeo para uma apresentação interna que o cliente vai fazer para a área comercial. Pra onde vai o amor? Quero aparecer na sua agência, subir as escadas correndo porque essa pergunta precisa ser feita de peito ofegante. Pra onde vai o amor? Você tem a apresentação de uma concorrência. E tem uma equipe, uma mesa, um lixo, um carro alto, um cabelo grande, um sobrenome importante, um quadro caro, uma ex-namorada top model, dezenas de garotinhas apaixonadas. Pra onde vai o amor? Porque quando deitamos no chão da sua sala e você me perguntou “quanto tempo você demora pra dizer que ama?”. Porque quando você me mandou aquele e-mail falando que dormiu bem quando me conheceu. Porque a gente estava tão nervoso no dia do Astor, Subastor. Porque eu tinha uma escova de dente aí e você tinha uma escova de dente aqui. Pra onde vai o amor? O que você fez com o seu? Deu descarga? O que eu faço com o meu? Dai eu te ligo, escondida no jardim da agência que eu trabalho. Chorando horrores. E te peço desculpas. «Eu sei que faz só um mês que estamos juntos mas o que você fez com o nosso amor?». Por que você ficou frio e sumiu e esqueceu e secou e matou e deletou e resolveu e foi? E você diz que está trabalhando e eu me sinto idiota. 37 Me sinto esfolada viva pelo mundo. Me sinto enganada por anjos. Me sinto inteira uma enganação. Respiro mentiras. Visto desculpas. Ajo disfarces. Porque a gente estava sim se amando mas você correu pra levantar antes a bandeira do «se fudeu trouxa, o amor não existe». Justo você que eu escolhi pra fugir comigo das feiúras do mundo. Porque você me emprestava a mão dormindo e pedia colo vendo tv e queria me fazer camarões fritos e escondia as meias suadas quando eu chegava antes do que você esperava. E você me perguntava o tempo todo se eu percebia como era legal a gente. E então, só pra fazer parte da merda universal de toda a bosta da vida, você se bandeou pro lado do impossível e se foi e me deixou como louca, escondida no jardim da agência, chorando, te perguntando pra onde foi o amor. E você riu e disse «mas eu só estou fazendo minhas coisas». E eu me senti idiota e louca e chata e isso foi muito cruel ainda que seja tão normal. Normal não me serve não encaixa não acalma. E eu achei que a gente podia ter uma bolha nossa pra ser louco e improvável e protegido do lugar comum do mundo mediano adulto das pessoas que riem e fazem suas coisas. E tudo ficou feio, até você que é lindo ficou feio. E eu quis me fazer cortes. Porque viver é difícil demais. E todo mundo me olhando, rindo, fazendo suas coisas. E daqui a pouco eu rindo e fazendo minhas coisas. E no fundo, abafado, dolorido, retraído, medicado, maduro, podre: onde está o amor? Onde ele vai parar? Onde ele deixou de nascer? Onde ele morreu sem ser? Por que eu sigo fazendo de conta que é isso. As pessoas seguem fazendo de conta que é isso. E por dentro, mais em alguns, quase nada em outros, ainda grita a pergunta. O mundo inteiro está embaixo agora do seu lindo e refinado e chique e rico prédio empresarial de milionários. 38 Gritando nas janelas, batendo nas portas, tirando você da sua reunião: o que você fez com o amor? Esse dinheiro todo, essa responsabilidade toda, esses milhões todos, essas pessoas todas que você quer que te achem um homem. E o amor, o que você fez com ele? Enfiou no cu? Colocou na máquina de picar papel? Reaproveitou a folha pra escrever atrás? Reciclou? Remarcou pra daqui dois anos? Cancelou? Reagendou o amor? Demitiu o amor? É o amor que vai fazer você ser isso tudo e não isso tudo que você usa pra dar essas desculpas pro amor. Porque quando eu sentei no cantinho da cama e você leu seu livro de poesias de quando era criança. Porque quando você ficou nervoso porque queria me dizer que naquele minuto não estava me amando porque você acha que amor é isso além do que você pode. Amor é só o que você já estava podendo. O que você fez com esse pouco que virou nada? Com o muito que poderia virar? Eu aleijada, engessada, roxa, estropiada, quebrada, estou na porta, esperando você, por favor, me ensina, o que fazer, vou fazer o mesmo com o meu. Vou mandar junto com o seu. Nosso amor pro inferno, longe, explodido, nada. E a gente almoçando em paz falando sobre o tempo e as pessoas escrotas e o filme da semana. Bela merda isso tudo, bela merda você, bela merda eu, bela merda todos os sobreviventes que riem e fazem suas coisas e almoçam e falam de filmes. E por dentro o buraco gigante preenchido por antidepressivos, ansiolíticos, calmantes, cervejas, maconhas, viagens e mais reuniões. Pra onde foi o amor? De pé seguimos pra nunca saber, pra nunca responder, pra nunca entender. Pra onde? Você lendo o texto mais lindo da minha vida sobre o último dia morando com seus pais, você achando as moedinhas que o seu pai escondia no jardim quando você era criança, 39 você me contando isso tudo baixinho e eu sentindo tantas milhares de coisas lindas, você falando da merda boiando e a dor dos seus fins de amor, você dormindo com seus cachinhos virados para o meu nariz, você fazendo a piada dos ombrinhos mais altos e mais baixos pra tirar sarro dos homens artistas e burocráticos, você por um mês e tanto amor. Todos os cheiros de todos os seus cantos. E agora eu louca porque não se pode sentir, porque senti sozinha, porque não se pode sentir em tão pouco tempo. Que tempo é esse quando o amor se apresenta tão mais forte e sábio que as regras de proteção? Quem quer pensar em acento flutuante quando se está voando? Quem quer pensar em pouso de emergência quando se está chegando em outro mundo melhor? E agora nada e você nada e tudo nada. O amor no planeta das canetas Bic que somem. O amor mais um como se pudesse ser mais um. O amor da vida de um mês. Você com medo de ser mais um e você único e tanto amor e tão pouco tempo. O que você fez com ele para eu nunca fazer igual? Eu prefiro ser quem te espera na porta pra entender. Eu prefiro ser quem te espera na outra linha pra entender. Eu prefiro ser a louca do jardim enquanto o mundo ri e faz suas coisas. Do que ser quem se tranca nessas salas infinitas suas pra nunca entender ou fazer que não sente ou não poder sentir ou ser sem tempo de sentir ou ser esquecido e finalmente não ser. 40 Vencedor Venho por meio dessa lhe informar do prêmio. Será entregue em sua residência. Em plástico bolha, fita crepe, caixa de papelão, papel dourado espelhado. Pode colocar na mesinha preta, ao lado daquele troço legal que sua mãe te deu. Uma peça de design chique e um coração ensanguentado. Vão te perguntar de onde vem aquele coração e você vai ter mais uma história pra contar baixinho, no ouvido das garotas: essa é boa, quer ouvir? Eu no meio de suas carrancas, cabeças de faraós, estrelas e leões. O vencedor. Pode voltar a respirar, pode fechar a janelinha emperrada da cozinha. Caso fique pesado para a sua decoração, me deixe com os bonequinhos do banheiro. Não serviu a saudade que eu sentia só porque você espremia saquinho por saquinho do shoyo longe de mim. Nem era longe, era logo ali, mas eu sentia saudade. Você queria uma prova, você queria a cabeça pra levar pro rei do seu peito. Você queria decapitar a mente que poderia te magoar. Eu jurei, um dia, vendo você dormir e gostando tanto de você pra pouco tempo, que não teria medo e seria doce e não escreveria uma linha e você seria o escolhido pra não ser mais um escolhido. Mas você levou meu coração, então só me resta a maldade, a bondade contrariada, que sempre me faz recorrer ao lugar comum de escrever um texto. O lugar onde tanta gente já esteve, 41 o que é uma mentira só pra te ferir. O amor não é um jogo, mas você ganhou. Daqui a pouco você vai se pergunta o que faz exatamente com isso, se não era melhor ter me deixado com o coração, assim eu poderia continuar gostando de você. Eu gostar de você só é um mérito se eu puder ir junto. Talvez você me mande de volta o prêmio, a caixa rasgada, o papel dourado amassado, o laço frouxo, o coração assustado. E me peça que continue apenas sentindo saudade de quando você demora com os saquinhos de shoyo. Pra gente voltar de onde se tem coragem. De onde a pressa é angustia solitária e não um caminhão de lixo que se joga no outro. De onde a insegurança é um gatinho preso numa jaula alta e não um tigre alimentado pelo ego. O amor recémnascido e alimentado com água pura. Eu estava nele quando você achou que diminuindo seu ritmo você aumentaria suas chances. O triste, e por isso eu te ligo e reclamo que é solitário, é que enquanto você pensa em chances, ritmos e ganhos, eu só penso em você. 42 À espera de Leopoldo Foi depois do almoço das casadas que me deu a louca. Uma tava de regime porque o marido reclamou do seu peso. A outra tava de aplique porque o marido reclamou do cabelo curto surpresa. A outra, maquiada tal qual uma palhaça e usando saltos desproporcionais ao propósito da tarde, disse que seu marido pedia «esteja sempre linda, para que eu nunca enjoe». Isso era de pronto e resumido, o disparado mais chocante. Mas nuances e pontos eram a cada minuto assustadoramente colocados. Eu jamais poderia ser uma dessas, jamais. Diferente do que é saudavelmente sugerido ou sedutoramente instigado, ao mandado de um homem ou de qualquer ser humano eu só poderia, tentar até o fim, dizer não. Nem água eu serviria. Nem o tom da voz eu baixaria. Até uma mão no braço me incomoda, caso eu não tenha, antes, encaminhado o braço até a altura da mão. De que país ou século ou sistema solar saíram aquelas mulheres? O que eu estava fazendo ali? Foi então que entendi tudo. Como uma daquelas surpresas que faz a gente sair correndo de volta pra casa pra se encarar rindo, pelada, de frente pro espelho. Aquilo que me dizem o tempo todo, quando reclamo de meus amores que não passam de semanas e de minha solidão. Que escrevendo, fica difícil. Que sendo assim, fica difícil. Que com meu egoísmo fica quase impossível. Meu jeito crítico ou não mocinha ou não delicado ou agressivo, nunca sei. Fica 43 difícil. E então e então e então. Pela primeira vez desde que comecei com a ideia de que talvez estivesse mesmo na hora de ter alguém dentro de casa, talvez um filho também. Pela primeira vez eu entendi, clamar das profundezas da minha alma. Um grito sufocado. A verdade enterrada. Você, minha querida, não quer. Você, fulana aí do topo de tudo o que tem aqui dentro. Escuta isso: você não quer essa vida pra você! Não era, definitivamente, de um marido o que eu precisava. Era de Leopoldo. O garoto durango de sotaque perfeito que me comeria num quarto de hotel com mantas nojentas numa cidade pequena bem longe daqui. Se isso não é ser mulher pra casar, mais um motivo para ser. Perceber isso foi entender tudo. Tão libertador quanto, depois de trinta anos sofrendo por não parecer com nada, descobrir o prazer salvador de não parecer com nada. Amanhã, querida, quando ele for embora com seu violão e falta de jeito com mulheres de dia seguinte, não sucumba ao que dizem ser o amor e você por muitos anos acreditou. Amor não é pedir saltos, cabelos, magrezas, espaços no armário, silêncios, desejos. Amor é o que dá pra fazer da vida enquanto somos honestos com nossa vontade de ser livre. 44 Isso não é amor, menina Apesar da gente nunca ter namorado ou casado ou feito planos, hoje completamos oito anos juntos. Se nosso primeiro encontro não tivesse se dado numa data tão conhecida, jamais saberíamos. Nunca contamos o tempo ou demos nomes aos nossos sentimentos de compromisso. Simplesmente tudo se desenrolou sem drama ou pedido ou conjecturações ou vingança. Foi e foi e foi. Aquilo que dizem sobre o que é pra ser. Simplesmente fomos e continuamos sendo. Quem diria que um dia eu seria tão feliz a ponto de não contar ou reduzir sensações a palavras? Mas é isso, sou feliz com você. Sem esforço e mesmo sendo, muitas vezes, bem infeliz. Sou feliz. Não faz muito tempo que nos mudamos pra essa casa maior. A cama gigante que sempre cabe mais gente quando a noite dá medo no vizinho de quarto. O jardim, o quartinho dos brinquedos e livros, a janela do lavabo que tem a melhor vista da casa. As figurinhas coladas perto do rodapé parecendo um cineminha de forminhas, os coquinhos destruídos na garagem, a casinha termômetro que você me deu porque eu disse que lembrava meu avô. Daqui, deitada nesse ângulo quase indecente, vejo você, safado, acender seu cigarro de domingo e me olhar sabendo que, inexplicavelmente, justo eu, te aceito seja lá como for. Você, idem. Não fomos fáceis a nada e nem a ninguém, mas cá estamos. Sem a comemoração deslumbrada e terrivelmente 45 curta do amor e por isso mesmo podendo celebrar o pouco cabível de cada instante. E por isso mesmo, vai ver, amando. Sabemos tanto que é amor que nem parece aquele coisa que dizem: amor. A-m-o-r. Ah, deve ser. Mas não o que um dia quisemos tanto e por isso mesmo afastamos, mas o que podemos e por isso mesmo nos soa tão possível. Sei que parece óbvio, mas só agora. E eu continuo nessa pose quase indecente, retardando a vontade do xixi e do banho, olhando você e querendo apenas um presente pra comemorar nossos oito anos juntos. Olhando seu ombro que eu curto tanto desde o primeiro segundo. Seu pé direito retesado e tão diferente do esquerdo sempre relaxadão. A sua mania de entregar um pouco mais de ‘‘cofrinho’’ do que permitido, quando concentrado e um pouco curvado. Vai começar a chover e eu posso chorar. Hoje completamos oito anos juntos e eu só queria um presente. Voltar no tempo, me encontrar e chacoalhar meu corpo. Aquela época em que eu já estava quase cínica, mas ainda acreditava em um relacionamento com todas as forças do mundo. Porque quanto mais cinismo e cansaço, mais força fazemos e mais forte parece. Eu queria me chacoalhar e dizer que ele existe, sim, o tal do amor, mas você, querida, não sabe ainda nada disso. Isso que você acha que é amor, menina, não passa nem perto. Eu me faria uma visita naquele apartamentinho pequeno e cheio de tentativas de charme e maturidade. E diria pra mim o que ninguém, sabe-se lá porquê, foi capaz de me dizer numa época tão necessária e quase triste. Época de tentar de tudo pra chegar perto do que, um dia, simplesmente acontece mesmo a gente achando que só funciona para os disciplinados na cultura da imbecilidade. Esse povo estranho 46 que divide armário e sorriso de foto. Eu diria: menina, amar a dúvida, o silêncio, a ingratidão, o fim, o atraso, a invenção, a lacuna, o pode ser, as hipóteses, a não resposta, a raiva, o absurdo, o não, a impossibilidade, o depois que foi, o antes de chegar, o difícil, o pode não, amar essas coisas, menina, é amar o mistério e não um homem. Amar um homem não é o telefone que não toca, é o telefone que toca e ele tá daquele jeito que te irrita justamente porque está irritado com você e você desliga logo e ele liga de novo e vocês morrem de rir. Ah, e aí vai dando certo. Foi e foi e foi e cá estamos. Você apaga o cigarro de domingo, a luz e some. Eu escrevo esse texto na mente, tomo banho e me chacoalho. Daqui a pouco a gente, sem se dar conta de plurais e segredos, se encontra no corredor e decide o que faz do resto do dia. 47 Consideração Já tinha um mês e resolvi ir nessa festa com cara de festa que você vai. Toda pessoa de cabelo cheio que entrava eu achava que era você. Assim como acho quando estou na rua, no supermercado, na fila do cinema, dormindo. Virei uma caçadora de pessoas cacheadas. Virei uma caçadora de você em todas as pessoas. Então você chegou na festa. E eu apenas sorri e sorri e sorri. Porque era isso. Eu queria te ver apenas. A dor numa caixinha embaixo dos meus pés e eu mais alta pra poder te abraçar sem dor, perto da sua nuca e por um segundo. Eu te acho bonito de formas tão variadas e profundas e insuportáveis. Eu vejo você parecendo um leãozinho no fundo da festa. Suando e analisando. O rei escondido escolhendo a presa que não vai atacar. Com sua eterna tristeza cheia de piadas afiadas. Suas facas afiadas de graças para defender as tristezas que nadam baixas nos seus olhos de quem não quer fazer mal. Mas faz. Seus olhos. Em volta um riozinho melancólico e no centro o sol feliz e novinho chegando. E tudo isso vem forte como um soco de buquê de flores de aço no meu estômago. E eu quero ir até você e te dizer que eu sei que você desmaia quando faz exame de sangue. E como eu gosto de você por isso. E como eu queria tirar todo meu sangue em pé pra você jamais cair. E como eu gosto de você por causa do e-mail que você mandou pro seu amigo com problemas. Como gosto quando você lembra de alguém e precisa demonstrar naquela hora 49 porque tem medo da frieza das suas distrações. Suas listas de culturas e atenções. Os vasinhos. Os vasinhos coloridos da cozinha me matam. A história do milagre que te salvou da queda da estante. Você arrepiado falando em anjos. Essas suas delicadezas em detalhes dormem e acordam comigo. Acariciam e perfuram meu peito vinte e quatro horas por dia. Uma saudade dos mil anos que passamos, ou das três semanas. A loucura de gostar tanto pra tão pouco ou simplesmente a loucura de tanto acabar assim. Fora tudo o que guardei de você, me restou a consideração que você guardou por mim. Sua ligação depois, quando me encontra. Sua mão estendida. Sua lamentação pela vida como ela é. Sua gentileza disfarçada de vergonha por não gostar mais de mim. A maneira que você tem de pedir perdão por ser mais um cara que parte assim que rouba um coração. Você é o mocinho que se desculpa pelo próprio bandido. Finjo que aceito suas considerações mas é apenas pra ter novamente o segundo. Como o segundo do meu nariz na sua nuca quando consigo, por um segundo, te abraçar sem dor. O segundo do seu nome na tela do meu celular. O segundo da sua voz do outro lado como se fosse possível começar tudo de novo e eu charmosa e você me fazendo rir e tudo o que poderia ser. O segundo em que suspiro e digo alô e sinto o cheiro da sua sala. Então aceito a sua enorme consideração pequena, responsável, curta, cortante. Aceito você de longe. Aceito suas costas indo. Aceito o último cacho virando a esquina. O último fio preso no pé da minha cama. Não é que aceito. Quem gosta assim não come migalhas porque é melhor do que nada, come porque as migalhas já constituem o nó que ficou na garganta. Seus pedaços estão colados na gosma entalada de tudo o que acabou em todas 50 as instâncias menos nos meus suspiros. Não se digere amor, não se cospe amor, amor é o engasgo que a gente disfarça sorrindo de dor. Aceito sua consideração de carinho no topo da minha cabeça, seu dedilhar de dedos nos meus ombros, seu tchauzinho do bem partindo para algo que não me leva junto e nunca mais levará, seu beijinho profundo de perdão pela falta de profundidade. Aceito apenas porque toda a lama, toda a raiva, todo o nojo e toda a indignação se calam para ver você passar. 51 Essa foi a Tati Bernardi abrindo o coração para viver o amor de diversas formas. Sobre a autora Tati Bernardi, como é mais conhecida, nasceu em 1979 em São Paulo e formouse em Propaganda e Marketing pela Universidade Mackenzie. Além da publicidade, Tati também dedicase a literatura, já tendo quatro livros publicados, sendo os mais conhecidos: “A mulher que não prestava” e “Tô com vontade de alguma coisa que eu não sei o que é”. Tati Bernardi consagrou-se com seu site, onde a maior parte do público são mulheres. Além disto, Tati também é colunista e cronista de revistas, como a Viagem & Turismo, blogueira e redatora da TV Globo. Além disto, fez cursos de pós-gradução na área de roteiro e cinema, e trabalhou muitos anos como redatora publicitária nas principais agências de propaganda de São Paulo, tais como W/Brasil, Talent, Leo Burnett e AgênciaClick. 55 Memorial Descritivo O refente memorial será descrito em duas partes, onde a primeira descreverá a estrutura fisica e elementar do livro e a segunda os conceitos aplicados à essa estrutura, proporcionando entedimento do que foi utilizado e o porque dessa utilização. Em relação à estrutura física e elementar, trata-se de um livro cuja página encontra-se em Formato A5, onde o miolo possui um papel com uma gramatura menor em relação à capa, a qual tem gramatura espessa. O fundo dele é branco e a variação de cor encontra-se apenas entre a cores preta e rosa. A fonte utilizada no título do livro e no fólio foi a heartfont. No miolo, o conteúdo textual é composto pela fonte Calibri, cujo corpo é de tamanho 12 e pela fonte eurofuence, de corpo 22, nos títulos dos textos que compõe o livro. Já nos conteúdos pré e pós textuais houve uma variação entre as três fontes citadas anteriormente e os seus tamanhos também variaram, onde estes vão desde o tamanho 11 ao 30. As margens superiores e externas medem 2 cm, as inferiores 3 cm e internas 2,5 cm, em sua maioria. Porém algumas páginas dos conteúdos pré e pós textuais possuem uma margem superior de 3 cm. Por fim, a a entrelinha aplicada nos textos é de 15 pontos. Com relação aos conceitos aplicados no livro, pode-se dizer que ele foi pensado e projetado para um grupo femino de jovens-adultas, o que explica a aplicação da cor rosa para 57 algumas partes de destaque. O fundo branco e uma única ilustração na parte do conteúdo textual foi escolhido com a intenção do livro passar uma idéia de simplicidade, conforto, clareza e proporcionar uma leitura agradável e harmoniosa para quem o ler. Por ser um livro cujo tema é o amor, houve apllicações de fontes com detalhes que fazem referencia ao amor, ilustrações com foco nesse tema e o fólio foi envolvido por um coração, o qual veio anexado à fonte Pffft Regular encontrada na internet. Por fim as ilustrações, onde a que foi escolhida para a capa e a que encontra-se após os textos trazem consigo um conceito de semelhança, visto que possuem elementos figurativos que recordam à escritora Tati Bernardi. Visto todos esses aspectos citados acima é possivel concluir que o livro possui base elementar, estrutural e conceitual no tema do mesmo e no publico para o qual este foi feito, onde é pretendido dessa forma não deixar duvidas quanto às aplicações feitas à ele. 58 A presente edição foi composta no ano de 2011 e impressa na Gráfica Copyshop, localizada na Rua Dom Bosco, 1082 | Recife - PE. A encadernação foi de tipo bruchura e os papéis utilizados na impressão da capa e do miolo foram Cartão 250g e Offset 90g, respectivamente.