Pancreatite aguda: o que mudou?

Transcrição

Pancreatite aguda: o que mudou?
Artigo de Atualização
Pancreatite aguda: o que mudou?
TARCISIO TRIVIÑO, GASPAR DE JESUS LOPES FILHO e FRANZ ROBERT APODACA TORREZ
Disciplina de Gastroenterologia Cirúrgica do Departamento de Cirurgia
da Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo
RESUMO
Os autores realizam uma análise dos fatos mais importantes que aconteceram no decorrer das últimas
décadas, com respeito à pancreatite aguda, enfatizando aspectos laboratoriais e, especialmente, de imagem,
que mudaram substancialmente a abordagem da pancreatite aguda. Da mesma forma, fazem uma rápida
revisão das mudanças do tratamento cirúrgico da pancreatite aguda, seja na forma leve, assim como na
grave. GED 21(2):69-76,2002
INTRODUÇÃO
A pancreatite aguda é uma doença que tem como substrato
um processo inflamatório da glândula pancreática, decorrente
da ação de enzimas inadequadamente ativadas, que se traduz
por edema, hemorragia e até necrose pancreática e peripancreática, acompanhado de repercussão sistêmica que vai da
hipovolemia ao comprometimento de múltiplos órgãos e sistemas e, finalmente, ao óbito(4).
Reconhecida no seus aspectos anatomopatológicos por Fitz,
em 1889(13), e tendo nas descrições de Opie(24), em 1901, as
primeiras tentativas de explicação etiopatogênica, a doença
permanece bastante controvertida em todos os seus aspectos.
A pancreatite aguda atravessou a primeira metade do século imersa em absoluto desconhecimento. Das controvérsias
etiopatológicas, das dificuldades diagnósticas e dos conflitos
terapêuticos, resultou total impossibilidade na avaliação dos
resultados.
Os últimos 30 anos foram pródigos com a pancreatite aguda.
Na década de 70, Acosta e Ledesma(1) e Kelly(20) resgataram
a teoria da obstrução do confluente biliopancreático, destacando, assim, a litíase biliar como uma das maiores responsáveis pelos quadros de pancreatite aguda.
Na década de 80, observou-se acentuada preocupação com
a classificação da doença e suas complicações, bem como a
caracterização da gravidade, através de parâmetros clínicos,
Unitermos – Pâncreas
Pancreatite aguda
Key words – Pancreas
Acute pancreatitis
laboratoriais e de imagem, além de novas propostas terapêuticas em busca de melhores resultados(28,31).
A década de 90 busca técnicas de diagnóstico precoce da
doença e suas complicações; monitorização agressiva dos
doentes com prognóstico grave; cuidados intensivos em unidades especializadas; tratamento das complicações respiratórias, hemodinâmicas, renais e sépticas; diagnóstico de sepse
pancreática; abordagem terapêutica adequada; e redução dos
índices de morbilidade e mortalidade, ainda tão elevados.
Este artigo pretende rever os avanços testemunhados nessas décadas, dando-lhes a importância por nós observada em
nossa vivência na clínica gastroenterológica.
ETIOLOGIA
A etiologia da pancreatite aguda permaneceu obscura por
muito tempo. Em 1901, Opie(24) relacionou a doença à obstrução litiásica da via biliar; em 1917, Symmers atribui à ingestão
de álcool a gênese do processo(35).
Seguiram-se inúmeras propostas etiológicas, tais como traumas cirúrgicos, infecciosas, parasitárias, por drogas e idiopáticas.
Endereço para correspondência – Gaspar de Jesus Lopes Filho, Rua Original, 156, apto. 11 – 05435-050 – São Paulo, SP. Tel. (11) 3834-2615. E-mail:
[email protected]
GED – Vol. 21, Nº 2 – Mar/Abr, 2002
69
Em 1974, Acosta & Ledesma(1) e, em 1976, Kelly(20) demonstraram, nas fezes de pacientes com pancreatite aguda, cálculos semelhantes aos encontrados na vesícula dos mesmos por
ocasião da colecistectomia, o que vinha sugerir sua migração,
com obstrução transitória do confluente biliopancreático, na
gênese da pancreatite(20). Era a confirmação da teoria de Opie
e a definição da litíase biliar como uma das mais importantes
causas de pancreatite aguda.
O advento de novos métodos de imagem, notadamente a
ultra-sonografia, a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica e a tomografia computadorizada, contribuiu não só para
o diagnóstico, mas, principalmente, para definir as causas da
doença e sua evolução.
Com base em evidências epidemiológicas, admite-se, na
atualidade, que aproximadamente 80% das pancreatites agudas estão relacionadas à doença biliar litiásica ou ao álcool.
Embora muitas outras etiologias já estejam estabelecidas
(trauma, drogas, infecciosas, vasculares e manuseio endoscópico), uma parcela não desprezível permanece com a etiologia desconhecida, sendo, portanto, denominada idiopática(29).
O quadro 1 procura agrupar os fatores etiológicos da pancreatite aguda, segundo Ranson (1997)(30).
FISIOPATOLOGIA
Apesar dos estudos exaustivos, inúmeras lacunas persistem na fisiopatologia da pancreatite aguda.
QUADRO 1
Fatores etiológicos na pancreatite aguda
Metabólicos
Álcool
Hiperlipoproteinemia
Hipercalcemia
Drogas
Genéticas
Veneno de escorpião
Mecânicos
Colelitíase
Pós-operatório
Pâncreas divisum
Pós-trauma
Pancreatocolangiografia retrógrada endoscópica
Obstrução do ducto pancreático (neoplasias, ascaridíase)
Sangramento do ducto pancreático
Obstrução duodenal
Vasculares
Pós-operatório (bypass cardiopulmonar)
Periarterite nodosa
Ateroembolismo
Infecciosas
Caxumba
Coxsackie B
Citomegalovírus
Criptococo
70
Acredita-se que a exposição a um fator causal, como cálculos biliares, álcool e trauma, desencadeia uma cascata de eventos patológicos, resultando nas alterações locais e sistêmicas
tão bem conhecidas.
Há mais de 100 anos, Chiari propôs que a ativação intrapancreática dos zimogênios resultaria em autodigestão pancreática. Hoje, aceita-se que essa ativação ocorre na célula
acinar(8) e que uma das enzimas ativadas, provavelmente a tripsina, determinaria a ativação de outras enzimas, desencadeando assim uma reação em cadeia. Essas enzimas, ativando-se
no pâncreas e nos tecidos peripancreáticos, ocasionariam as
alterações já bem conhecidas (edema, fenômenos vasculares
e hemorrágicos, necrose gordurosa do tecido pancreático e
peripancreático), além de promover alterações a distância, por
via sanguínea e linfática, principalmente sobre os pulmões e
rins(8).
Além das enzimas, uma série de substâncias tóxicas e vasoativas é liberada pelo pâncreas, extravasada para a retrocavidade e cavidade peritoneal, causando irritação química, aumento do terceiro espaço, redução do volume circulante,
hipotensão e choque. Na circulação sistêmica, essas substâncias agiriam em diversos órgãos, notadamente pulmões, coração, rins e cérebro, determinando o aparecimento de insuficiências de múltiplos órgãos e sistemas(5).
Uma vez desencadeado o processo, independente de sua
etiologia, a doença apresenta uma fase precoce e outra tardia,
sem que entre elas exista diferenciação nítida, o que dificulta
sua abordagem terapêutica(4).
O descobrimento do gene responsável pela pancreatite aguda hereditária tem ajudado a conhecer melhor a doença e o
papel das citocinas na resposta inflamatória da pancreatite(8).
Na tentativa de melhor explicação da fisiopatologia da doença(15), uma série de seqüências tem sido proposta (fig. 1).
Entretanto, dados recentes atribuem maior importância aos
eventos que aconteceriam no interior da célula pancreática
(fig. 2)(8).
DIAGNÓSTICO
Nem sempre o quadro clínico da pancreatite aguda é característico, o que, por vezes, torna difícil o seu diagnóstico. São
importantes, pela freqüência, a dor abdominal, intensa, inicialmente epigástrica e irradiada para o dorso, em faixa ou para
todo o abdome, além de náuseas e vômitos, acompanhada de
parada de eliminação de gases e fezes(4). O polimorfismo no
quadro clínico da doença é o principal responsável pelo erro
no seu diagnóstico.
Dentre os exames laboratoriais, a dosagem da amilase sérica,
proposta por Elman e col. em 1929(12), continua sendo o mais
importante recurso diagnóstico na pancreatite aguda, sendo
bastante significativos os valores superiores a 1.000UI(20). A
GED – Vol. 21, Nº 2 – Mar/Abr, 2002
Fator desencadeante
Lesão da célula acinar
Ativação da tripsina
Ativação da
kinina-calicreína
Ativação da
quimiotripsina
Ativação
da elastase
Ativação da
fosfolipase-A
Ativação
da lipase
Edema e
inflamação
Edema e
lesão vascular
Lesão vascular
e hemorragias
Necrose e
coagulação
Esteatonecrose
Fig. 1 – Características fisiopatológicas do desenvolvimento da pancreatite aguda
Enzimas ativas e
outros fatores solúveis
Agressão
Ativação e
retenção de
zimogênio
Edema, lesão
vascular
Isquemia
Citocinas
Citocinas
Inflamação
Efeitos sistêmicos
Célula acinar
Apoptose
Fig. 2 – Eventos celulares que resultam em pancreatite aguda
dosagem da lipase sérica, também útil no diagnóstico da pancreatite aguda, tem os seus níveis elevados mais tardiamente
do que a da amilase(16).
Outros exames laboratoriais, tais como o leucograma, transaminases, desidrogenase láctica, cálcio sérico, glicemia, gasometria e creatinina, são particularmente úteis na caracterização da gravidade da doença(5,31), o mesmo acontecendo com
a dosagem da proteína C reativa(22) e, mais recentemente, da
interleucina 6(26).
GED – Vol. 21, Nº 2 – Mar/Abr, 2002
Com o advento das técnicas de radioimunoensaio, novos
parâmetros foram propostos, tais como a dosagem da tripsina, quimiotripsina, arilsulfactase, betaglucoronidase, nenhuma delas superando, contudo, a dosagem sérica da amilase.
A grande revolução no diagnóstico e no estadiamento da
pancreatite aguda deve-se, no entanto, aos métodos de imagem(2).
Os anos 70 conheceram a ultra-sonografia, útil na identificação da doença biliar litiásica na gênese da pancreatite, e já
71
capaz de identificar as alterações no parênquima pancreático
e as coleções peripancreáticas.
Os anos 80 acrescentaram a essa propedêutica a tomografia computadorizada do abdome, permitindo um estudo detalhado da glândula e das regiões adjacentes(2,3).
Nos anos 90, passou-se a valorizar a tomografia computadorizada, com contraste endovenoso em bolus(14), a qual permitiu estudar a irrigação da glândula e, por conseqüência, as
áreas isquêmicas, necrosadas, daí decorrendo uma classificação prognóstica bastante aceita(3).
Esse exame é, também, de grande valia na identificação de
coleções, pseudocistos, abscessos e flegmões, auxiliando no
tratamento e nas eventuais decisões de indicações cirúrgicas(3,17).
Também na década de 80, a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica esteve em discussão, seja pelo seu valor
diagnóstico, seja pelo terapêutico, permanecendo discutíveis
suas indicações e seus resultados(23).
O final dos anos 90 reservou um espaço para a ressonância
nuclear magnética, cujas imagens são cada vez mais bem definidas, de interpretação também mais adequada, tendo como
grande aliado o fato de não utilizar contraste iodado, cuja nefrotoxicidade limita o uso da tomografia computadorizada em
doentes com insuficiência renal.
Da mesma forma, a colangiopancreato-ressonância magnética mostrou-se um bom recurso no diagnóstico dos fenômenos obstrutivos e das alterações morfológicas da árvore biliopancreática, independente do uso de contrastes.
Na atualidade, tendo à disposição todos os recursos propedêuticos anteriormente relacionados, é possível suspeitar do
diagnóstico de pancreatite aguda pela história, antecedentes
e exame físico, ficando a confirmação e a caracterização da
gravidade e do prognóstico por conta dos exames laboratoriais e de imagem, os quais também são úteis na escolha da
melhor opção terapêutica(4,17).
Vale lembrar que a evolução da pancreatite grave é imprevisível e enganosa, ficando para os médicos, clínicos e cirurgiões a responsabilidade, baseada no acompanhamento permanente, de adequar-se às necessidades terapêuticas do
doente.
CLASSIFICAÇÃO
Desde as primeiras observações clínicas e anatomopatológicas vem-se buscando classificar as pancreatites, utilizando
parâmetros etiológicos, clínicos, evolutivos ou histológicos. No
entanto, a diversidade nas classificações constituiu-se no principal obstáculo à comparação dos resultados das diferentes
casuísticas.
Preocupados em padronizar conceitos e terminologias, estudiosos da pancreatite organizaram os simpósios de Marselha em 1963, e, posteriormente, em 1984(6), dos quais se
72
obteve uma classificação baseada, principalmente, em aspectos clínicos, anatomopatológicos e evolutivos, a qual pode ser
resumida da seguinte forma:
1 – pancreatite aguda
2 – pancreatite crônica
a) com necrose focal
b) com fibrose difusa ou segmentar
c) com cálculo
d) sem cálculo
3 – pancreatite crônica obstrutiva
Apesar de aceita pela maioria, a diversidade na caracterização e na denominação dos fenômenos locais que acompanham a doença levou a um novo simpósio, em Atlanta, em
1992, com o objetivo de estabelecer uma classificação simples, objetiva, precisa e não invasiva, além de definir melhor a
terminologia freqüentemente utilizada de forma conflitante(10).
A classificação, então proposta, pode ser expressa como
segue:
1) pancreatite aguda
2) pancreatite aguda grave
3) pancreatite aguda leve
4) coleção líquida aguda peripancreática
5) necrose pancreática
6) pseudocisto agudo
7) abscesso pancreático
CRITÉRIOS PROGNÓSTICOS
Considerando a ampla variedade de apresentações da pancreatite aguda, bem como o grande potencial de gravidade da
doença, há muito constitui preocupação a caracterização das
formas leves e das formas graves da pancreatite. A diferenciação entre essas formas pode ser feita pelos critérios prognósticos com base em dados clínicos, laboratoriais e de imagem(2,3,31).
Em 1974, Ranson e col.(32) elaboraram uma relação de critérios, que foram, posteriormente, em 1982(29), modificados para
a pancreatite aguda de etiologia biliar e que analisavam os doentes por ocasião da admissão e 48 horas após.
Esses critérios, relacionados no quadro 2(30), tiveram grande aceitação e permitiram a estratificação da doença, bem como
a comparação de diferentes casuísticas.
A presença de um ou dois critérios caracteriza a pancreatite
aguda leve; de três a seis critérios são observados na pancreatite aguda grave; acima de seis critérios indicam a pancreatite aguda gravíssima. Índices de mortalidade de 1 a 2%
são observados nas formas leves e de até 80 a 100% nas formas mais graves.
Inúmeros outros critérios foram propostos por Pickford
(1977)(27), Imrie e col. (1978)(19), Osborne e col. (1981)(25), Harness e col. (1981)(17), mas sua aceitação teve caráter restrito.
GED – Vol. 21, Nº 2 – Mar/Abr, 2002
Em 1983, Bank e col.(6) elaboraram uma relação de critérios
clínicos e laboratoriais, expressos no quadro 3, e que definiam
como pancreatite aguda grave aquela que manifestasse um ou
mais desses critérios.
Em 1984, Blamey e col.(9) estabeleceram os critérios de Glasgow, apresentados no quadro 4.
A partir de 1985 (Knaus e col.)(21), passou-se a empregar,
para a avaliação da pancreatite aguda, os critérios de Apache
II (acute physiology and chronic health evaluation), cuja maior
qualidade é a de permitir uma avaliação momentânea e seqüencial dos fenômenos que envolvem o processo. Nessa ava-
QUADRO 2
Critérios de Ranson
Admissão
Idade
Leucócitos
Glicemia
DHL
TGO
P.A. alcoólica e outras
> 55 anos
> 16.000/mm3
> 200mg/100ml
> 350U/I
> 250U/I
P.A. biliar
>
>
>
>
>
liação, o escore de até sete pontos caracteriza a pancreatite
aguda leve e o escore de oito ou mais pontos define a doença
como grave (quadro 5).
Esse escore é calculado somando A (soma dos 12 itens das
variáveis fisiológicas) + B (pontuação conforme a idade) + C
(pontuação conforme as doenças crônicas).
Em 1985, Balthazar e col.(2) propuseram índices de gravidade da pancreatite aguda, com base em achados de imagem
obtidos por tomografia computadorizada.
Essa classificação, expressa no quadro 6, relaciona baixos
índices de morbidade e mortalidade aos estádios A e B, ao
contrário dos estádios D e E.
Em 1990(3), os mesmos autores acrescentaram a esses critérios prognósticos os percentuais de necrose do parênquima
glandular, fornecidos pela tomografia computadorizada com
contraste endovenoso em bolus (14), a qual possibilita definir
melhor as áreas pancreáticas cuja perfusão se encontra comprometida.
70 anos
18.000/mm3
220mg/100ml
250U/I
250U/I
QUADRO 4
Critérios de Glasgow
48 horas
Nas primeiras 48 horas
Hematócrito
Nitrogênio uréico
Cálcio
PO2
BE
Seqüestro líquido
↓ 10%
↑ 5mg/100ml
< 8mg/100ml
< 60mmHg
< –4mEq/L
> 6.000ml
↓ 10%
↑ 2mg/100ml
< 8mg/100ml
< –5mEq/L
> 4.000ml
QUADRO 3
Critérios de Bank e col.
Idade
Leucócitos
Glicemia
Uréia
DHL
Albumina
Cálcio
PO2
QUADRO 5
Escore de Apache II
Cardíacos
Choque, taquicardia > 130bpm, arritmias, alterações do ECG
Pulmonares
Dispnéia, estertores, PO2 < 60mmHg, SARA
A) Variável fisiológica
B) Idade
C) Doenças crônicas
Renais
Débito urinário < 50ml/h, elevação do nitrogênio uréico e/ou
creatinina
Metabólicas
Queda do cálcio, queda do pH, queda da albumina
Hematológicas
Queda do hematócrito, CIVD
Neurológicas
Irritabilidade, confusão, sinais de localização
> 55 anos
> 15.000mm3
> 180mg/dl
> 45mg/dl
> 600U/I
< 3,3g/dl
< 8mg/dl
< 60mmHg
QUADRO 6
Classificação tomográfica da PA
A) Pâncreas normal
B) Pâncreas aumentado
Hemorragia peritoneal
Presença de equimose na parede abdominal
C) Edema peripancreático
Distensão abdominal
Íleo paralítico grave, líquido peritoneal
E) Presença de duas ou mais coleções ou ar na região peripancreática.
GED – Vol. 21, Nº 2 – Mar/Abr, 2002
D) Presença de uma coleção peripancreática
73
Essa nova classificação, expressa no quadro 7, tem recebido aceitação bastante grande dos cirurgiões, servindo como
o principal critério de avaliação, ao lado dos critérios de Ranson e Apache II.
TRATAMENTO E RESULTADOS
O tratamento inicial da pancreatite aguda é clínico, devendo ser realizado em unidades de terapia intensiva, na dependência de sua gravidade.
As medidas iniciais não sofreram grandes modificações nas
últimas décadas, sendo caracterizadas por: jejum oral, hidratação parenteral, nutrição parenteral e analgesia sistêmica(4).
Ainda hoje discute-se o valor da utilização rotineira de sonda nasogástrica, bloqueadores da secreção gástrica, bloqueadores da secreção pancreática, análogos da somatostatina e
antibióticos(18,19).
O quadro 8 resume a abordagem terapêutica da pancreatite
aguda, independente de sua gravidade(30).
O tratamento cirúrgico da pancreatite aguda sofreu modificações nas últimas décadas(34).
A partir dos anos 40, analisando os altos índices de mortalidade operatória quando a cirurgia era realizada precocemente, passou-se a empregar este recurso apenas para os pacientes com comprovado obstáculo biliopancreático.
Após o simpósio de Marselha, em 1963, quando a pancreatite aguda de etiologia biliar foi reconhecida como entidade clínica bem definida, passou-se a considerar a remoção da
vesícula e eventuais obstáculos à drenagem biliar como conduta obrigatória. Desde então, discute-se se a colecistectomia
deve ser “precoce”, até 72 horas após o início do surto, “postergada”, entre sete e 10 dias, porém na mesma internação,
ou “tardia”, após 30 a 60 dias da alta hospitalar.
Embora muito se discuta quanto ao valor da colangiopancreatografia retrógrada endoscópica e papilotomia endoscópica(23), estas estão bem indicadas em doentes com obstáculo
Alteração
pancreática
Pontos
Necrose
pancreática (%)
Pontos
A
B
C
D
E
0
1
2
3
4
Sem necrose
Até 30% de necrose
De 30 a 50% de necrose
Acima de 50% de necrose
0
2
4
6
74
QUADRO 8
Abordagem clínica na pancreatite aguda
a) Limitar a intensidade da inflamação pancreática
• Inibidores da secreção pancreática
• Inibidores das enzimas pancreáticas
• Inibidores dos mediadores inflamatórios
b) Interromper a patogênese das complicações
• Antibióticos
• Antiácidos
• Heparina, fibrolisina
• Dextrano de baixo peso molecular
• Vasopresina
• Lavado peritoneal
c) Medidas de suporte e tratamento das complicações
• Restauração e manutenção do volume intravascular
• Reposição de eletrólitos
• Suporte ventilatório
• Suporte nutricional
• Analgesia
• Heparina
(Ranson, 1997)
QUADRO 9
Modalidades cirúrgicas na pancreatite aguda necrotizante
QUADRO 7
Índice de gravidade tomográfica (Balthazar e col., 1990)
0 – 3 pontos = 3% de mortalidade e 8% morbidade
4 – 6 pontos = 6% de mortalidade e 35% de morbidade
7 – 10 pontos = 17% de mortalidade e 92% de morbidade
ao nível da ampola biliopancreática, seja por cálculo, seja por
processo inflamatório, particularmente na vigência de colangite.
O tratamento cirúrgico das formas graves da pancreatite
aguda foi o que mais mudou nos últimos 20 anos.
Até o início dos anos 80, a intervenção precoce sobre a
necrose pancreática era a conduta preconizada, sendo seguida de índices de mortalidade que oscilavam entre 30 e 70%(5).
Inúmeros estudos clínicos ensinaram que a intervenção retardada era mais efetiva, estando a necrose bem delimitada, e
seguindo-se índices de mortalidade bem inferiores(7).
A intervenção precoce ficou, então, reservada para os casos de infecção da necrose pancreática, diagnosticada por to-
Tratamento convencional
Ressecção ou necrosectomia com drenagem
Reoperações se necessário
Procedimentos abertos
Ressecção ou necrosectomia e relaparotomias programadas
Tratamento abdominal aberto
Tratamento com fechamento abdominal temporário
Procedimentos fechados
Necrosectomia e lavagem local fechada contínua
Reoperações se necessário
Rau & Beger, 1997
GED – Vol. 21, Nº 2 – Mar/Abr, 2002
mografia computadorizada ou ressonância nuclear magnética
e, principalmente, por punção com agulha fina(33).
Também se reserva a intervenção precoce aos pacientes
graves, com insuficiência de múltiplos órgãos, que não apresentaram melhora após 72 horas de cuidados intensivos(7,11,30).
Quanto à intervenção sobre a necrose não infectada, esta
deve ser postergada ao máximo, se possível após a terceira
semana, e para sua abordagem diversas modalidades cirúrgicas podem ser empregadas, como registra o quadro 9.
Atualmente, os resultados do tratamento da pancreatite aguda leve são excelentes, com mortalidade inferior a 1%. Para as
formas graves, mortalidade de 20 a 30% pode ser observada
em serviços onde cirurgiões e intensivistas possam dar ao
paciente atendimento multidisciplinar de excelência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. ACOSTA, J.M. & LEDESMA C.L. – Gallstone migration as a cause of acute
pancreatitis. N Engl J Med 290: 484-487, 1974.
2. BALTHAZAR, E.J., RANSON, J.H.C., NALDICH, D.P., MEGIBOW, A.J.,
CACCAVALE, R. & COOPER, M.M. – Acute pancreatitis: prognostic value of CT. Radiology 156: 767-772, 1985.
3. BALTHAZAR, E.J., ROBINSON, D.L., MEGIBOW, A.J. & RANSON, J.H.C.
– Acute pancreatitis: value of CT in establishing prognosis. Radiology
174: 331-336, 1990.
4. BANK, P.A. – Practice guidelines in acute pancreatitis. Am J Gastroenterol 92: 377-386, 1997.
5. BANK, S., WISE, L. & GERSTEN, M. – Risk factors in acute pancreatitis.
Am J Gastroenterol 78: 637-640, 1983.
6. BANK, P.A., BRADLEY III, E.L. & DREILING, D.A. – Classification of pancreatitis: Cambridge and Marseille. Gastroenterology 89: 928-930, 1985.
7. BEGER, H.G., KRAUTZBERGER, W., BITTNER, R., BLOCK, S. & BÜCHLER,
M. – Results of surgical treatment of necrotizing pancreatitis. World J
Surg 9: 972-979, 1985.
8. BHATIA, M., SALUJA, A.K. & HOFBAUER, B. – Role of substance P and
the neurokinin 1 receptor in acute pancreatitis and pancreatitis: associated lung injury. Physiology 95: 4760-4765, 1998.
9. BLAMEY, S.L., IMRIE, C.W., O’NEIL, J., GILMOUR, W.H. & CARTER, D.C.
– Prognostic factors in acute pancreatitis. Gut 25: 1340-1346, 1984.
10. BRADLEY, E.L. – A clinically based classification system for acute pancreatitis. Arch Surg 128: 586-590, 1993.
11. BRANUM, G., GALLOWAY, J., HIRCHOWITZ, W., FENDLEY, M. & HUNTER, J. – Pancreatic necrosis. Results of necrosectomy, packing, and
ultimate closure over dreins. Ann Surg 227: 870-877, 1998.
12. ELMAN, R., AVNESON, N. & GRAHAM, E.A. – Value of blood amylase
estimation in the diagnosis of pancreatic disease: a clinical study. Arch
Surg 19: 943-946, 1929.
13. FITZ, R.H. – Acute pancreatitis: a consideration of pancreatic hemorrhage, hemorrhagic, suppurative and gangrenous pancreatitis. Boston
Med Surg J 70: 181-235, 1889.
14. FREENY, P.C. – Incremental dynamic bolus computed tomography of
acute pancreatitis. Int J Pancreatol 13: 147-158, 1993.
15. GENZINI, T., MIRANDA, M.P., CASTRO, O.A.P., CARVALHO, C.A., FERREIRA, C.C.O., GATTI, L.F.C., GOMES, A.E.O., COSTA, A.F., CHAIB, E. &
RODRIGUES, J.G. – Pancreatite aguda. Fisiopatologia, diagnóstico, fatores prognósticos e tratamento. An Paul Med Cir 124: 6-22, 1997.
16. GUMASTE, V.V., RODITIS, N. & MEHTA, D. – Serum lipase levels in nonpancreatic abdominal pain versus acute pancreatitis. Am J Gastroenterol
88: 2051-2055, 1993.
17. HARNESS, J.K., HOVERSTEIN, C.H. & KNOL, J.A. – Acute pancreatitis,
surgical therapy. Em: DENT, T.L. (ed.) – Pancreatic disease. Diagnosis
and therapy. New York, Grune & Stratton, 1981, p. 205-220.
18. HO, S.H. & FREY, C.F. – The role of antibiotic prophylaxis in severe acute
pancreatitis. Arch Surg 132: 487-493, 1997.
GED – Vol. 21, Nº 2 – Mar/Abr, 2002
19. IMRIE, C.W., BENJAMIN, I.S. & FERGUSON, J.C. – A single center double-blind trial of trasylol therapy in primary acute pancreatitis. Br J Surg
65: 337-341, 1978.
20. KELLY, T.R. – Gallstone pancreatitis: pathophysiology. Surgery 80: 488492, 1976.
21. KNAUS, W.A., DRAPER, E.A., WAGNER, D.P. & ZIMMERMAN, J.E. –
Apache II: a severity of disease classification system. Crit Care Med 13:
818-829, 1985.
22. MAYER, A.D., Mc MAHON, M.J., BOWEN, M. & COOPER, E.H. – C reactive protein: an aid to assessment and monitoring of acute pancreatitis. J
Clin Pathol 37: 207-211, 1984.
23. NEOPTOLEMOS, J.P., CARR-LOCKE, D.L. & LONDON, N.J. – Controlled
trial of urgent endoscopic retrograde cholangiopancreatography and
endoscopic sphincterotomy versus conservative treatment for acute
pancreatitis due gallstones. Lancet 2: 979-983, 1988.
24. OPIE, E.L. – The etiology of acute hemorrhagic pancreatitis. Bull Johns
Hopkins Hosp 12: 182-188, 1901.
25. OSBORNE, D.H., IMRIE, C.W. & CARTER, D.C. – Biliary surgery in the
same admission for gallstones associated acute pancreatitis. Br J Surg
68: 759-751, 1981.
26. PEZZILLI, R., BILLI, P., MINIERO, R., FIOCCHI, M., CAPPELLETI, O.,
MORSELLI-LABATE, A.M., BARAKAT, B., SPROVIERI, G. & MIGLIOLI,
M. – Serum interleukin-6, interleukin-8, and β2 microglobulin in early
assessment of severity of acute pancreatitis. Comparison with serum Creative protein. Dig Dis Sci 40: 2341-2348, 1995.
27. PICKFORD, I.R., BLACKETT, R.L., MacMAHON, M.J. – Early assessment
of severity of acute pancreatitis using peritoneal lavage. Br Med J 2: 13771379, 1977.
28. POLLOK, A.V. – Acute pancreatitis: analysis of 100 patients. Br Med J 1:
6-8, 1959.
29. RANSON, J.H.C. – Etiological and prognostic factors in human acute
pancreatitis: a review. Am J Gastroenterol 77: 633-638, 1982.
30. RANSON, J.H.C. – Acute pancreatitis. Em: STAMFORD, C.T. & ZINNER,
M.J. – Maingot’s abdominal operation, 10th ed., 2, 1997.
31. RANSON, J.H.C., BALTHAZAR E.J., CACCAVALE, R. & COOPER, M. –
Computed tomography and the prediction of pancreatic abscess in acute
pancreatitis. Ann Surg 201: 656-663, 1985.
32. RANSON, J.H.C., RIFKIND, K.M., ROSES, D.F., FINK, S.D., ENG, K. &
SPENCER, F.C. – Prognostic signs and the role of operative management in acute pancreatitis. Surg Gynecol Obstet 139: 69-81, 1974.
33. SARR, M.G., NAGORNEY, D.M., MUCHA, Jr. P., FARNELL, M.B. &
JOHNSON, C.D. – Acute necrotizing pancreatitis: management by
planned, staged pancreatic necrosectomy/debridement and delayed
primary wound closure over drains. Br J Surg 78: 576-581, 1991.
34. STEINBERG, W.M., BARKIN, J., BRADLEY, E.L. III, DI MAGNO, E. & LAYER, P. – Controversies en clinical pancreatology. Pancreas 13: 219225, 1996.
35. SYMMERS, W.S.C. – Acute alcoholic pancreatitis. Dublin J Med Sci 143:
244-247, 1917.
75
Acute pancreatitis: what has changed?
SUMMARY
The authors analyze the most important factors concerning acute pancreatitis over the last decades. They
emphasize laboratory and, more particularly, imaging aspects that substantially changed the approach to
acute pancreatitis. On the other hand, the authors make a brief review of surgical treatment changes for both
mild and severe pancreatitis. GED 21(2):69-76,2002
76
GED – Vol. 21, Nº 2 – Mar/Abr, 2002

Documentos relacionados

Pancreatite Aguda

Pancreatite Aguda em casos graves, geralmente associados à presença de necrose infectada pancreática, mas existe controvérsias sobre a indicação  Ciprofloxacina + metronidazol  Imipenem 500 mg 6/6 hs. o Indicação ...

Leia mais

Pancreatite - Animaniacs

Pancreatite - Animaniacs O tratamento consiste principalmente em manter boa perfusão tecidual, com fluidoterapia (cristalóides e coloides), as sociada ao uso de antibióticos, protetores gástricos e antieméticos. O suporte ...

Leia mais

pancreatite aguda - Acta Médica Portuguesa

pancreatite aguda - Acta Médica Portuguesa eventualmente, em casos de degradação do estado clínico4,12. Outra utilização possível é o estudo da pancreatite aguda idiopática recidivante. Não está demonstrado qual-

Leia mais

Abordagem moderna da pancreatite aguda Modern approach in

Abordagem moderna da pancreatite aguda Modern approach in Nos últimos anos, observa-se um aumento crescente na incidência da pancreatite aguda, em muito justificada pela alta do consumo de álcool e incremento nos casos de pancreatites biliares numa popula...

Leia mais

ISSN 2318-9509 | Volume III - Número II - novembro de

ISSN 2318-9509 | Volume III - Número II - novembro de evolução da criança com pancreatite; que mais estudos são necessários para melhor elucidar aspectos relacionados ao diagnóstico clínico da pancreatite em crianças e aos aspectos da terapêutica nutr...

Leia mais