Nos dois lados do Atlântico
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Nos dois lados do Atlântico
Primavera | Verão 2008 02 ISSN 1646-883X Nos dois lados do Atlântico: Participação política Internacionalização da língua portuguesa Encontro de escritores "Os Estados Unidos nação reinventada por Hollywood" entrevista exclusiva a Eduardo Lourenço ESPECIAL ELEIÇÕES EUA’08 A tesouraria virtual de Obama Hillary e as mulheres "Simplex" McCain Fundação Luso-Americana Conselho Directivo: Teodora Cardoso (Presidente) Thomas F. Stephenson Jorge Figueiredo Dias Jorge Torgal Luís Braga da Cruz Luís Valente de Oliveira Maria Gabriela Canavilhas Michael de Mello Vasco Graça Moura Conselho Executivo: Rui Chancerelle de Machete (Presidente) Charles Allen Buchanan, Jr Mário Mesquita Secretário-Geral: Fernando Durão DIRECTORes: Maria Idalina Salgueiro, Fátima Fonseca, Paulo Zagalo e Melo, Miguel Vaz subdIRECTORes: António Vicente, Rui Vallêra Responsável pelos Serviços Financeiros: Maria Fernanda David Responsável pelos Serviços Administrativos: Luiza Gomes Assessores: João Silvério, Paula Vicente Rua do Sacramento à Lapa, 21 1249-090 Lisboa | Portugal Tel.: (+351) 21 393 5800 • Fax: (+351) 21 396 3358 Email: [email protected] • www.flad.pt Paralelo DIRECTOR: Rui Chancerelle de Machete EDITORA: Sara Pina coordenadora: Paula Vicente secretariado da redacção: Cristina Cambezes e Sofia Roquete Colaboram neste número: António Vicente, Branca Cardoso, Carla Baptista, Carla Maia de Almeida, Clara Pinto Caldeira, Fábio Silva, Filipa Brazona, Filipa Melo, Filipa Oliveira, Filipe Vieira, Francisco Belard, Guto Ferreira, Isabel Braga, José Cutileiro, Luís Nunes, Marco Silva, Maria Elisa Domingues, Mário Ruivo, Michael Werz, Nuno Costa Santos, Onésimo Teotónio de Almeida, Rita Siza, Rui Catalão, Rui Hermenegildo Gonçalves, Rui Ochôa, Teodora Cardoso, Susana Neves, Victor K. Mendes, Victor Melo Design: José Brandão | Susana Brito [Atelier B2] Revisão: am edições | antónio alves martins Impressão: Textype TIRAGEM: 3000 exemplares [email protected] Depósito legal: 269 114/07 ISSN 1646-883X © Copyright: Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento Todos os direitos reservados Nunca se viu tão grande interesse dos cidadãos portugueses numa campanha eleitoral norte-americana Caro leitor “T oo close to call” é a frase que mais temos ouvido e lido durante a cobertura noticiosa da campanha para Presidente dos Estados Unidos da América. A corrida renhida dos candidatos democratas tem gerado um enorme interesse, não só no seu país (onde a participação política e eleitoral dos cidadãos tem comprovadamente aumentado) mas também por todo o mundo. Nunca se viu tão grande interesse dos cidadãos portugueses numa campanha eleitoral norte-americana. De todo o ambiente, a campanha, as consequências para a política externa, a participação dos imigrantes portugueses, a Paralelo dá conta neste especial eleições norte-americanas – um número para guardar. Nesta edição, o apoio da Fundação ao programa do MIT, contribuindo para o desenvolvimento português na área da ciência, tecnologia e educação, e, também, ao Cohitec para criação de empresas com projectos inovadores. Além disso, o ciclo de literatura “Asas sobre a América”, que durante meses tem enchido o auditório da FLAD com espectadores ávidos de ouvir escritores portugueses a falar sobre escritores norte-americanos. De salientar, ainda, duas iniciativas da Fundação. Uma é totalmente nova: o Acordo de Mobilidade Antero de Quental que permitirá o intercâmbio de estudantes e professores da Universidade dos Açores com universidades norte-americanas. A outra reinicia-se agora, embora em termos inovadores: os programas “José Rodrigues Miguéis” (nacional) e “Alfredo Mesquita” (Região Autónoma dos Açores) para formação de jornalistas portugueses na América. Sara Pina Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 4VMQEZIVE`:IVnS índice -772< 2SWHSMWPEHSWHS%XPlRXMGS 4EVXMGMTEpnSTSPuXMGE -RXIVREGMSREPM^EpnS HEPuRKYETSVXYKYIWE )RGSRXVSHIIWGVMXSVIW %ZMHEGSQSRS GMRIQEEQIVMGERS CAPA especial eleições norte-americanas 16 páginas IRXVIZMWXEI\GPYWMZEE )HYEVHS0SYVIRpS )74)'-%0)0)-e£)7 )9%« %XIWSYVEVMEZMVXYEPHI3FEQE ,MPPEV]IEWQYPLIVIW 7MQTPI\1G'EMR 10 [portuGAL/euA] Entrevista ao senador luso-americano Marc Pacheco 14 | A língua especial portuguesa no mundo EUA‘08 06 | REVISTA DE IMPRENSA 21 | O voto português por António Vicente 18 | A escolha do próximo Presidente norte-americano 24 | Consequências 26 | O financiamento para a União Europeia por José Cutileiro das campanhas e a internet 28 | A influência 30 | As mulheres e Hillary dos latino-americanos por Michael Werz 62 | A terceira [email protected] | Caglecartoons.com 44 [CuLturA] Escritores portugueses falam sobre escritores norte-americanos margem do rio por Mário Mesquita 46 | Eduardo Lourenço em entrevista 50 | Jornalistas portugueses nos EUA 54 | Acordo Antero de Quental: mobilidade de estudantes portugueses e americanos Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 3 �������� A incerteza aumenta após as primárias democratas ‘ A alternância do Partido Democrata, após os oito anos do Presidente George W. Bush, não parece estar adquirida. Terminadas as primárias com a vitória de Barack Obama, nada está ainda decidido. Tudo está mais obscuro e enevoado. ’ “Não, Obama não é negro, pelo menos, em Nova Iorque. Eu sou nova-iorquina. Para mim, ‘Barack is mixed, not black’”. Quem o afirma é uma habitante de Manhattan. Convicta. Talvez tenha razão, no que se refere aos meios cosmopolitas, onde existe sempre a hipótese da “terceira via”, por exemplo entre a pele branca e a negra. Na outra América, dita profunda, nas pequenas e médias cidades, no “velho Sul”, só há preto e branco. Um cidadão de etnia negra, nascido no Hawai, a disputar um lugar na Casa Branca. O impensável. Ou quase. A vantagem de Obama sobre McCain é muito pequena. A incerteza permanece. Comentários e reportagens sobre as eleições americanas pp. 6-8, 18-30 e 62-63 O qualificativo “histórico” está muito enfraquecido pelo excessivo uso jornalístico. Banalizou-se. Por tudo e por nada, invoca-se a História com maiúscula a propósito de acontecimentos destinados a desaparecer como areia entre os dedos. Mas, apesar do desgaste da palavra, ninguém contestará, presume-se, a sua apli- cação à vitória de Obama nas primárias: ele é o primeiro negro – se preferirem, mulato – a disputar a Casa Branca. Da mesma forma que Hillary Clinton teria sido, se conseguisse ser nomeada, a primeira mulher a lutar pela Presidência dos Estados Unidos. Olhando a história da América, desde o tempo da escravatura e da Guerra da Secessão, este é um momento de viragem, que desenvolve os combates pelos Direitos Cívicos da década de 1960. Mas também é possível observar a pré-campanha em curso na perspectiva da luta pela hegemonia republicana ou democrata. Desse ponto de vista, a vantagem que, nos finais de 2007, os observadores concediam aos democratas parece, agora, incerta e reduzida quase à distância da margem de erro de uma sondagem. A ousadia de Obama e de Clinton já teve o seu preço. A campanha eleitoral (propriamente dita) começará em Setembro de 2008 com maior incerteza do que seria previsível há um ano. A alternância do Partido Democrata, após os oito anos do Presidente George W. Bush, não parece estar adquirida. Terminadas as primárias com a vitória de Barack Obama, nada está ainda decidido. Tudo está mais obscuro e enevoado. MM Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 editorial A comunidade luso-descendente nas presidenciais americanas Rui Chancerelle de Machete Vive-se com grande entusiasmo nos Estados Unidos a primeira fase do processo eleitoral para a escolha do próximo Presidente. Apesar de alguns analistas conjecturarem já o que será o “Post-American World”, a América será ainda num futuro previsível o mais importante país do mundo, cujas decisões, vida política e económica para além de eventuais crises irradiam consequências sobre os restantes Estados. ‘ A solidariedade entre portugueses de cá e portugueses e luso-descendentes de lá torna as eleições presidenciais americanas ainda mais relevantes para nós. ’ Permanecerá igualmente o palco privilegiado onde se ganha ou perde a influência e o prestígio das potências e dos políticos estrangeiros e onde se joga a sorte de múltiplas iniciativas internacionais. Daí que, o modo como se desenrola a designação do futuro Presidente e, sobretudo, a personalidade e ideias dos principais candidatos, interesse sobremaneira não apenas ao Povo americano, mas também aos outros Estados e respectivos cidadãos. Compreende-se assim que Portugal e os portugueses estejam atentos a este processo de transferência de poder e de sucessão do titular do cargo mais relevante do sistema político americano. Os Estados Unidos são o líder do Ocidente, o aliado preponderante da NATO, o parceiro mais importante da União Europeia. Mas são também um país que alberga uma numerosa comunidade de emigrantes lusófonos. A solidarieParalelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 dade entre portugueses de cá e portugueses e luso-descendentes de lá torna as eleições presidenciais americanas ainda mais relevantes para nós. É sabido que poucas vezes o que se promete nas campanhas eleitorais, mesmo quando há programas formais de governo, tem correspondência no que os eleitos realmente fazem uma vez em posto. Apesar disso, e particularmente na América do Norte, os candidatos são sensíveis quando governantes, e sobretudo se aspiram a uma reeleição, às opiniões e desejos dos seus eleitores e governados. A participação nas múltiplas eleições a nível federal, dos Estados federados e municipal constitui conditio sine qua non para que a nossa comunidade se torne mais visível naquele grande País. Por isso, a Fundação Luso-Americana está profunda mente empenhada, há já vários anos, num programa – o “Portuguese American Citizenship Project” – que, sem quebra dos laços político-culturais com Portugal, pro mova a aquisição da nacionalidade americana por parte dos nossos emigrantes e incite a comunidade lusófona a participar intensamente nas eleições a todos os níveis. A FLAD, como instituição portuguesa que tem, entre os seus propósitos mais significativos, reforçar a cooperação transatlântica, desenvolve também programas específicos que facultem um conhecimento mais aprofundado do sistema político norte-americano. Com a proximidade das eleições esses esforços serão intensificados de modo a atingirem-se audiências mais vastas através do uso dos meios de comunicação social. Um melhor conhecimento facilita o reforço dos laços de amizade e cooperação. especial EUA‘08 REVISTA DE IMPRENSA George Bush, afirmou que, mais do que “inverter a situação no Iraque”, o aumento de tropas “abriu a porta a uma importante vitória estratégica na guerra mais geral contra o terrorismo”. Foi Os candidatos à Presidência e o Iraque uma afirmação no mínimo prematura, atendendo à fragilidade dos progressos no domínio da segurança e à lentidão dos diri- (...) gentes iraquianos em estabelecer os acordos políticos necessários O quinto aniversário da invasão do Iraque deu azo a uma profusão para estabilizar verdadeiramente o país. de discursos por parte do Presidente Bush e dos candidatos demo- O Presidente pelo menos reconhece, graças à sua “dura expe cratas que esperam herdar a Casa Branca no próximo ano. riência”, que, no Iraque, os progressos alcançados podem ser Lamentavelmente, um aspecto comum a todos eles foi a incapacidade de enfrentarem as realidades – a começar pela impossibilidade de discernir qualquer caminho claro ou rápido para chegar à “vitória” prometida por Bush O charme republicano com os media ou à promessa de Hillary Clinton e de Barack Obama de “acabar com esta guerra”. (…) ‘ [...] no Iraque, os progressos alcançados podem ser rapidamente anulados. ’ Ao contrário dos jornalistas que giram na órbita da senadora Hillary Rodham Clinton e do senador Barack Obama – que se queixam diariamente da falta de acesso aos seus candidatos –, John McCain fala diariamente com os jornalistas que estão a cobrir a sua campanha, tanto assim que este vosso blogger já ouviu mais de um jornalista dizer que gostaria que “aquele tipo que fala sem rodeios” se calasse de uma vez por todas. Mas não é inteiramente verdade que esse seja o seu desejo, pois até reconhecem que McCain faz um esforço considerável para manter satisfeito o seu bando de jornalistas habituais. E o que se passou com os poucos jornalistas americanos que seguiram o candidato republicano até Londres e Paris? John McCain respondeu às perguntas de quase todos, ainda que, para o Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 especial EUA‘08 REVISTA DE IMPRENSA rapidamente anulados. Ontem, prometeu não ordenar retira- está em jogo para os Estados Unidos está divorciada da rea- das de tropas para além das cinco brigadas que deverão regres- lidade, que foi aquilo de que acusaram Bush quando este sar aos Estados Unidos no Verão deste ano, “a não ser que as decidiu invadir o Iraque. condições no terreno e as recomendações dos nossos coman- (...) dantes” o justifiquem. Isto significa que, se Barack Obama ou Barack Obama e Hillary Clinton propõem-se ambos retirar as Hillary Clinton se tornarem presidentes, um deles passará a tropas americanas ao ritmo mais rápido que o Pentágono diz ser comandante-chefe de pelo menos 100 mil militares ame- ser possível – uma brigada por mês. Durante os cerca de 16 ricanos que se encontram no Iraque. No entanto, os seus meses que levaria a retirar as tropas, imaginam conseguir discursos sugerem que a sua visão do conflito e daquilo que realizar milagrosamente todos os objectivos políticos que a Administração Bush se propôs alcançar em cinco anos, desde o estabelecimento de um governo fazer, tenha sido obrigado a esquivar-se aos insistentes jorna estável à concordância dos países vizinhos em listas britânicos e aos mal-humorados jornalistas franceses. apoiarem esse governo. Supõem que o facto de se saber que as forças americanas iriam partir inspi- E como são os seus fins-de-semana? Depois de uma fase inicial em que fez campanha ininterruptamente, assim que a sua nomeação ficou garantida McCain começou a passar os fins- ‘ McCain fala diariamente com os jornalistas que estão a cobrir a sua campanha ’ raria esses acordos. Na verdade, o mais provável é que a partida das tropas levaria todas as partes a ignorarem a influência americana e a prepararem ‑se para preencher violentamente o vazio deixado -de-semana no seu pela retirada dos americanos. apartamento dilecto (...) em Cornville, no [ Editorial, 20 de Março de 2008 ] Arizona, não muito longe de Sedona. Enquanto os jornalistas que o acompanham se dirigem para um local espectacular chamado Enchantment Resort. (…) [ Joseph Curl, correspondente principal para a Casa Branca, 26 de Março de 2008 ] Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 especial EUA‘08 REVISTA DE IMPRENSA tempo e não será concedida de bom grado. Muito dependerá do tipo de forças residuais que os Estados Unidos entenderem manter O sabor amargo da vitória no Iraque. Nas melhores circunstâncias, o Iraque nunca se tornará uma Alemanha, nem um Japão, nem uma Coreia do Sul, onde uma presença permanente de forças americanas passou a fazer parte da (...) rede de segurança regional. Uma presença americana a longo prazo A resposta à pergunta “E se nós ganharmos?” depende, obviamente, no Iraque, mesmo que essa presença seja pequena e discreta, pre- da definição de “ganhar” no Iraque. Para mim, significa o seguin- judicará a legitimidade do regime de Bagdade. te: as tendências da situação de segurança já estabelecidas durante A “vitória” que acabamos de definir encerra uma importante o aumento de tropas mantêm-se num rumo positivo, a violência contradição. Os Estados Unidos não podem vencer sem que o diminui para níveis aceitáveis, a capacidade das forças de seguran- Irão vença também. Esta vitória do Irão será medida pela aqui- ça do Iraque aumenta, e o Governo central resiste a ponto de os sição de pelo menos um “cliente” no Sul do Iraque sobre o qual, Estados Unidos poderem contemplar a possibilidade de reduzirem em última análise, exercerá muito mais influência do que os substancialmente as suas forças sem que o país caia no caos. Estados Unidos. Isto reduzirá significativamente o valor da vitó- O Governo continuará a ser fraco e corrupto e permanecerá divi- ria, a não ser que admitamos outros acontecimentos, como, por dido, mas pelo menos continuará a governar. Postular mais do que exemplo, uma mudança de regime em Teerão ou um afastamen- isto tornaria este raciocínio circular e inútil. to entre Teerão e os seus “clientes” iraquianos – duas hipóteses Ironicamente, uma “vitória” neste sentido representaria enormes que não parecem ter grande probabilidade de se concretizar num problemas para um Presidente democrata em Janeiro de 2009. futuro próximo. Haveria uma base positiva de segurança que apenas se deterioraria (...) se os Estados Unidos retirassem as suas tropas demasiado depressa [Francis Fukuyama vol. II, n.º4, Março-Abril de 2008] e, portanto, uma pressão considerável para que não fossem respeitadas as promessas de uma retirada rápida feitas durante a campanha. Se conseguimos pressupor uma vitória nestes termos, também podemos pressupor as condições necessárias para permitir uma retirada total, mas é muito difícil imaginar como é que isso poderia acontecer a não ser durante um período prolongado e, portanto, politicamente desconfortável. A grande interrogação consistirá em saber como é que os diferentes actores políticos irão interpretar o legado de tal “vitória”. No que respeita aos actores da região, uma vitória poderá ser a salvação da reputação americana, mas o momento de obter um efeito de demonstração positivo com a substituição de Saddam por um Iraque democrático já passou. A aceitação deste novo actor made-inAmerica pelos países árabes vizinhos virá, mas levará Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 RELAÇÕES INTERNACIONAIS REVISTA TRIMESTRAL DE Política Externa e Assuntos Internacionais ) *$ ! $ # " "$ # %"" !% %"$ EDITADA PELO INSTITUTO PORTUGUÊS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS da Universidade Nova de Lisboa Rua de D. Estefânia, 195 - 5º, D.to 1000-155 Lisboa | PORTUGAL Tel.: +351 21 314 1176 Fax: +351 21 314 1228 Email: [email protected] www.ipri.pt Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 9 PORTUGAL/EUA Senador luso-americano Apelo à participação portuguesa na vida política americana Eleito pelo Partido Democrata, com vinte anos de experiência política no estado de Massachusetts, o senador Marc Pacheco ocupa o cargo de maior relevo atribuído a um luso-descendente. Além da representação da comunidade portuguesa, ocupa-se da legislação de questões que interessam a todos os cidadãos, desde a saúde às alterações climáticas e ao aquecimento global. A Paralelo visitou-o na State House de Boston. Por CARLA MAIA DE ALMEIDA FOTOGRAFIAS GUTO FERREIRA O que significa para si ser senador estadual e como é que repre senta a comunidade portuguesa de Massachusetts? Em primeiro lugar, é uma grande honra, porque é um cargo para o qual se é eleito por sufrágio directo pelos cidadãos e porque em todo o estado de Massachusetts apenas 40 pessoas o podem desempenhar. Mas também tenho a honra de ser o senador principal, eleito oficialmente, neste estado cujo legado português é tão importante. Represento uma população numerosa de comunidades portuguesas, respon sabili dade 10 que levo muito a sério. Desde muito jovem que mantenho ligações com a comunidade portuguesa. A minha família nunca me deixou esquecer as minhas raízes e fez-me apreciá-las. Mas represento um círculo eleitoral muito diversificado, não só em termos de etnicidade e religião, mas também em termos económicos, e isso é muito estimulante e implica uma grande satisfação pessoal. Em comparação com outros grupos, considera que é mais difícil exercer pressão política quando se trata de fazer aprovar leis destinadas a apoiar e defender a comunidade portuguesa? É verdade. Embora neste estado haja muitas pessoas de origem portuguesa com direito de voto nos Estados Unidos, não há muitos americanos de ascendência portuguesa eleitos na assembleia legislativa do Massachusetts. De certa maneira, isto deve ‑se ao tipo de cidadãos que somos, enquanto americanos de ascendência portuguesa. A maioria das pessoas que tenho representado ao longo dos anos e que tenho conhecido ocupa-se, em primeiro lugar, da família e da Igreja, independentemente de há quantos anos se encontram neste país. Quando essas pessoas decidem exercer o seu direito e participar na vida política, são tão competentes como outro grupo qualquer, sobretudo a nível local. No entanto, a decisão de o fazer não é tão frequente como eu gostaria que fosse. E os membros da c o mu n i d a d e portuguesa PORTUGAL/EUA ‘ Represento uma população numerosa de comunidades portuguesas, responsabilidade que levo muito a sério. ’ não votam necessariamente a favor de uma pessoa com base na sua origem étnica... o que me parece ser um bom princípio. “Quando vou a uma certa zona de Boston, assim que as pessoas vêem o meu nome (“Pacheco”) pronunciam-no “Patchéco”, porque pensam que é um nome latino-americano […] Na zona norte […] pensam que é um nome italiano”. MASSACHUSETTS: DEZ FACTOS QUE FIZERAM A DIFERENÇA • A Boston Latin School, a primeira escola pública dos EUA, foi fundada em 1635. Ali se graduaram cinco dos subscritores da Declaração de Independência: John Hancock, Samuel Adams, Benjamin Franklin, Robert Treat Paine e William Hooper. • Em 1773, é publicado em Boston um livro intitulado Poems on Various Subjects, Religious and Moral. A autora é uma adolescente negra trazida num barco de escravos e adoptada por uma família que a ensina a ler e a escrever. • “Todos os homens nascem livres e iguais”, escreve John Adams no primeiro artigo da Constituição de Massachusetts, em 1780. Dezasseis anos mais tarde, será eleito segundo Presidente dos EUA. • Em 1820, um baleeiro vindo de Nantucket é totalmente destruído por uma baleia de grande porte. O facto inspirou Herman Melville na escrita do clássico Moby Dick. • Em 1837, Mary Lyon funda a primeira universidade para raparigas do país, Mount Holyoke College. “Vai aonde mais ninguém for. Faz o que mais ninguém fizer”, eis o seu lema. • Em 1845, Henry David Thoreau constrói a sua cabana no lago Walden. Com Ralph Waldo Emerson, Emily Dickinson e outros transcendentalistas da Nova Inglaterra, o seu pensamento vive até hoje. • O primeiro congresso nacional dos Direitos das Mulheres realiza-se em Worcester, em 1850. • Em Boston, Alexander Graham Bell e o seu assistente Thomas Watson demonstram aos jornalistas a invenção patenteada em 1876: o telefone. • Em 1944, nos laboratórios de Harvard e do MIT (Massachusetts Institute of Technology), cientistas trabalham em protótipos de calculadoras, abrindo caminho para a era digital. • O senador de Massachusetts J. F. Kennedy é eleito Presidente dos EUA em 1960. Em 1972, Massachusetts será o único estado do país a não votar em Nixon, preferindo o democrata John McGovern. (do livro The 101 Events that Made Massachusetts, de Christopher Kenneally, Commonwealth Editions, 2005) Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 Ter um nome português traz-lhe mais vantagens ou mais desvantagens no desempenho das suas funções? Bem, só lhe posso falar da minha experiência pessoal. Quando vou a uma certa zona de Boston, assim que as pessoas vêem o meu nome (“Pacheco”), pronunciam-no “Patchéco”, porque pensam que é um nome latino-americano, um nome espanhol. Mas se eu for à zona norte da cidade pensam que é um nome italiano. Portanto, as vantagens e as desvantagens são muitas, consoante a zona da cidade onde me encontro! (Ri-se.) Tive uma experiência muito real em 2001, quando decidi concorrer ao Congresso dos Estados Unidos. Passei tempos difíceis. Para o fazer, é preciso ter recursos financeiros para conseguirmos transmitir a nossa mensagem às massas. Infelizmente, este é um aspecto em que estamos bastante aquém dos outros grupos. Alguns, como os gregos ou os italianos, têm uma grande capacidade de angariação de fundos. Há centenas de estudantes portugueses a frequen tar as melhores universidades americanas. Considera que eles também representam o futuro da comunidade portuguesa? Sim. Estou absolutamente convencido de que nos estabelecimentos de ensino superior da América inteira – e particularmente nos estados em que existe uma grande percentagem de luso-americanos – temos suficientes pessoas qualificadas com capacidade para ascender aos cargos mais altos e a posições de autoridade na administração pública. Está a começar a acontecer com bastante frequência. O Dr. Mello (Craig C. Mello, Prémio Nobel da Medicina em 2006, em conjunto com Andrew Z. Fire) é um exemplo disso. Sentimos muito orgulho nele. Porque uma coisa que ouvimos dizer constantemente acerca dos portugueses é que têm excelentes características e uma óptima 11 PORTUGAL/EUA ‘ uma maior compreensão do que permitir, através do processo educativo, que os nossos jovens participem em programas de intercâmbio, aprendam mais sobre os seus antepassados e sobre as origens das suas famílias, frequentando aulas no estrangeiro... e também recebendo aqui estudantes portugueses para frequentar aulas nos Estados Unidos. Julgo que isto representa um enorme benefício para os nossos dois países e também para os cidadãos. Mas será que o intercâmbio que tem havido é suficiente? Julgo que não, e a questão é precisamente essa. Massachusetts perdeu cerca de dois mil estudantes estrangeiros nos últimos dois anos, e isso equivale a uma perda de aproximadamente 63 milhões de dólares de receitas. Temos de redobrar esforços e tentar encontrar escolas do ensino superior e universidades que desejem estabelecer parcerias com os Estados Unidos, neste contexto, e vamos ter de tentar resolver eventuais problemas de burocracia. Temos de trabalhar com os líderes do Congresso e as pessoas aqui nos Estados Unidos que desejam facilitar a promoção de programas deste género e proporcionar este tipo de oportunidades aos estudantes estrangeiros que queiram vir para cá. Especialmente em Massachusetts, porque, a longo prazo, isso só nos beneficiará. Desde 1993 que Marc R. Pacheco ocupa um lugar no Senado de Massachusetts. Descendente de açorianos, a educação na língua inglesa não impede que se mantenha a par das questões que interessam à comunidade portuguesa. Ilda Marques, sua assistente há muitos anos, fluente em português, espanhol e inglês, é a res- ponsável pela recepção das muitas perguntas que chegam ao gabinete 312-B, na State House de Boston. Convicto de que hoje é mais fácil ser-se imigrante nos Estados Unidos da América do que há trinta anos, aguarda as próximas “eleições históricas” enquanto torce por Hillary Clinton. [...] os membros da comunidade portuguesa não votam necessariamente a favor de uma pessoa com base na sua origem étnica... o que me parece ser um bom princípio. ’ reputação: são trabalhadores, honestos, íntegros, constituem boas famílias – tudo valores positivos. Mas não é muito frequente, na nossa comunidade, ouvirmos louvar pes soas ligadas ao ensino superior, pessoas do campo da medicina, do campo jurídico, do campo literário... Ao mesmo tempo, não é verdade que se está a tornar cada vez mais difícil ensinar português às crianças luso-americanas? Durante muitos anos tivemos em Massachusetts um ensino bilingue, mas os eleitores votaram a favor da sua supressão. Opus-me veementemente a essa decisão, assumi publicamente uma posição contra a eliminação do ensino bilingue, mas mesmo em cidades como New Bedford, que é talvez uma das cidades com maior número de eleitores portugueses, o ensino bilingue foi suprimido. Por que é que isso aconteceu? Porque se fizeram sentir grandes pressões no sentido de se avançar para o ensino emergente, como alternativa. Em vez de haver aulas em que o ensino é ministrado em inglês e português, nos programas do ensino emergente tudo é ensinado em língua inglesa. De facto, funciona melhor para os alunos muito novos, mas quando se chega aos alunos um pouco mais velhos ou do secundário, não resulta. O problema aqui em Massachusetts, ou nos Estados Unidos, é que somos um melting pot, e tentar escolher uma língua, ou duas línguas, passa a ser um braço-de-ferro político. Haverá sempre um grupo a perguntar: “Por que não a minha língua?” No que toca às últimas gerações, acha que há alguma coisa que se pode fazer para reavivar a sua identidade cultural, ou considera que terão mais benefícios quanto mais se integrarem na sociedade americana? Penso que é absolutamente fundamental para o futuro da América e de Portugal trabalharmos juntos no sentido de renovar esses laços. Estamos num mundo diferente, um mundo em que necessitamos de ser mais bem compreendidos entre os nossos concidadãos. E julgo que não há melhor maneira de promover 12 Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 BREVES Transatlânticas Novo embaixador dos EUA em Portugal Thomas F. Stephenson é o novo embaixador dos Estados Unidos para Portugal. Até ao final do ano passado, altura em que tomou posse, foi sócio de uma empresa de capital de risco em Silicon Valley – a Sequóia Capital, dedicando-se, especialmente, a empresas de tecnologias da informação e prestação de cuidados de saúde. Natural de Wilmington, Delaware, Stephenson licenciou-se em Economia em Harvard e em Direito no Boston College, tendo completado o MBA na Harvard Business School, mantendo, ainda, relações estreitas com esta universidade onde é, actualmente, membro do quadro de decuriões e da comissão executiva. Com 38 anos de experiência no sector do capital de risco e tendo pertencido a mais de uma dezena de quadros de administração de empresas públicas e privadas, Thomas F. Stephenson mudou-se para Lisboa com a sua mulher e um dos filhos apresentando credenciais ao Presidente Cavaco Silva em Fevereiro passado. pela FLAD e pelo Governo Regional dos Açores, é positivo. As principais conclusões foram apresentadas em Abril, com a participação de Alzira Silva, da Direcção Regional das Comunidades, Charles Buchanan, da FLAD, Sam Sutter, procurador-geral do condado de Bristol (EUA) e Thomas Hodgson, xerife de Bristol, entre outros. A reunião contou ainda com as participações de representantes do Centro de Assistência ao Emigrante (EUA), da Arrisca e da Novo Dia, entidades que operacionalizam o projecto no terreno. “Projecto Regressos” em avaliação Facilitar a integração nos Açores dos cidadãos portugueses repatriados pelos Estados Unidos e estabelecer uma ligação entre o regressado e a família no país de acolhimento foram objectivos cumpridos do “Projecto Regressos”. Dois anos após a sua criação, o balanço do “Projecto Regressos”, iniciativa financiada Alzira Silva, James Maclinchey e Charles Buchanan na apresentação das conclusões do “Projecto Regressos” (na foto, da esquerda para a direita). Arte contemporânea em Angra do Heroísmo Jorge Paulus Bruno, director do IAC (terceiro a contar da esquerda) ouve as explicações de João Silvério, curador da FLAD. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 “Corpo Intermitente”, exposição de arte contemporânea, que incluiu obras de Álvaro Lapa, Ana Jotta, Eduardo Batarda, Jorge Queiroz, José Loureiro, Miguel Branco, Rui Chafes, Rui Leitão, Rui Moreira e Rui Sanches, pôde ser visitada, durante dois meses, no Museu de Angra do Heroísmo. A exposição teve como objectivo dar a conhecer a diversidade de propostas artísticas integradas na colecção da FLAD e estimular a descentralização. João Silvério, curador da FLAD, apresentou esta exposição como: “Pensada especificamente para o Museu de Angra do Heroísmo. [...] O museu é como um corpo reconstruído que resguarda e projecta dentro de si um outro corpo dinâmico, multifacetado e versátil.” “Corpo Intermitente” esteve integrada num projecto da FLAD em colaboração com o Governo Regional dos Açores e do Instituto Açoriano de Cultura que incluiu a publicação de um catálogo. 13 PORTUGAL/EUA A internacionalização da língua portuguesa “Da minha língua vê-se o mar”, escreveu Vergílio Ferreira, para quem uma língua “é o lugar donde se vê o mundo e se traçam os limites do nosso pensar e sentir”. Na sede da FLAD reuniram-se representantes das embaixadas dos PALOP, Instituto Camões, CPLP, Instituto Cervantes, Ministério da Educação, Ministério dos Negócios Estrangeiros, British Council, Comissão Europeia e Parlamento Europeu, diversas universidades, Assembleia da República e outras instituições, para debater a “dimensão política da língua portuguesa e as estratégias de articulação da política cultural externa com a política de internacionalização da economia portuguesa”. Segundo a revista Ethnologue, a bíblia dos linguistas, existem cerca de sete mil idiomas no planeta. A maioria serve comunidades reduzidas e apenas 12 são usadas por cerca de 50 por cento da população mundial. “O português está no top ten, ocupando a sétima posição, com cerca de 200 milhões de falantes espalhados por oito países em quatro continentes”, afirmou Nicholas Ostler, um dos oradores convidados pela FLAD para participar no encontro. A herança histórica e cultural do português coloca-o em boa posição, acima do alemão, do francês e do japonês, mas abaixo do espanhol, do russo e do bengali, para competir no futuro mercado global das línguas. No entanto, aquele especialista alertou para o facto de a glória de uma língua (como, de resto, de tudo o mais) ser transitória e só permanecer se a comunidade de origem se mantiver como centro de visibilidade e prestígio. 14 victor K. MENDES Por CARLA BAPTISTA Seminário de Português na Universidade de Massachusetts – Dartmouth. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 Rui Ochôa ‘ Existem cerca de sete mil idiomas no planeta. [...] “O português está no top ten, ocupando a sétima posição, com cerca de 200 milhões de falantes espalhados por oito países em quatro continentes”, afirmou Nicholas Ostler. ’ A difusão do português beneficia de uma forte pressão demográfica positiva do Brasil. Neste momento, por cada português existem 16,7 falantes brasileiros, o que constitui, de longe, o ratio mais favorável de todas as antigas colónias e metrópoles. No caso do espanhol, por exemplo, a proporção é de três mexicanos para cada espanhol, ou, para o inglês, de quatro americanos para cada britânico. Também é previsível um aumento do número de falantes em Angola e Moçambique, tanto por razões demo gráficas como de crescimento do investimento estrangeiro naqueles países. “Mas existem outras economias e respectivas línguas a considerar”, afirmou David Graddol, outro dos participantes no evento, que apresentou o cenário de um mundo em acelerada transformação. É previsível que línguas como o português, o russo e o hindi cresçam bastante após 2010, mas os maiores impactos virão dos gigantes China (o mandarim está a implantar-se fortemente como segunda língua, mesmo nos países ocidentais), Índia e do bloco dos países árabes. Entre 2025 e 2050, é possível que o árabe se torne a língua mais difundida no mundo. A tendência actual também nos ensina que a riqueza material dos países de origem já não é o principal factor que contribui para o sucesso da difusão das respectivas línguas. O mais importante, disse David Graddol, é o número de pessoas que virá a reconhecer alguma utilidade em usá-las como segundo idioma. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 Na sua intervenção na FLAD, Nicholas Ostler falou sobre os usos políticos e económicos da língua. As línguas do passado, do presente e do futuro Dois académicos britânicos falam sobre as tendências históricas que fazem aparecer e desaparecer as línguas do mundo. “Padre, quem te trouxe a esta terra tão longe da Índia?”, terá sido a frase pronunciada num português impecável por um comandante militar persa e dirigida a um espantado frei Gaspar de São Bernardino que, em 1606, parou na região para se abastecer de água. Nicholas Ostler, académico inglês com graus em Grego, Latim, Filosofia e Economia (Universidade de Oxford) e um doutoramento em Linguística pelo MIT, foi um dos especialistas convidados pela FLAD para discursar sobre os usos políticos e económicos da língua, tendo apresentado este exemplo para ilustrar como o português foi usado como língua franca em vastíssimas regiões do mundo até ao século XVIII. Outros casos são relatados no seu último livro, Empires of the Word: A Language History of the World, e contam uma história fascinante de como, alicerçado numa política expansionista e comercial baseada no estabelecimento de feitorias costeiras, paróquias e missões religiosas no interior, o império colonial português conseguiu a proeza de pôr todos os que pretendiam comerciar com as nações europeias (mesmo, mais tarde, com os franceses, ingleses e holandeses) a falar a língua de Camões, incluindo uma vasta população de árabes, arménios, hindus, japoneses e africanos. Já em 1551, o inglês Thomas Wyndham, viajando com o piloto António Pinteado ao longo da Costa da Guiné, descobriu que podia conversar em português com o rei do Benim, que tinha aprendido a língua em criança. Em 1600, quando o Japão recebeu o seu primeiro visitante inglês, o piloto Will 15 Rui Ochôa Há potencial de crescimento para o ensino do português nos EUA David Graddol: mandarim, espanhol e árabe, competidores da “língua franca” inglesa. ‘ [...] o império colonial português conseguiu a proeza de pôr todos os que pretendiam comerciar com as nações europeias [...] a falar a língua de Camões, incluindo uma vasta população de árabes, arménios, hindus, japoneses e africanos. ’ Adams, este serviu-se de um intérprete português para conseguir comunicar com o xógum Tokugawa Ieyasu. Actualmente, graças a uma política de ensino e difusão da língua a nível mundial, o inglês impôs-se como linguagem universal. A globalização do inglês foi explicada por David Graddol, linguista e autor do relatório English Next, encomendado em 2006 pelo British Council. Nele são analisadas as principais tendências económicas e demográficas que irão afectar a posição do inglês e de outras línguas ao longo do século XXI. Enquanto a expansão do português se baseou numa política de encontros face-a-face e provocou uma rápida crioulização da língua, o inglês universalizou-se graças a um conjunto de razões demográficas, económicas, tecnológicas e políticas. Ao aumento do número de falantes, juntaram-se factores como a afirmação dos países anglo-saxónicos como os mais ricos do mundo e os fenómenos intrínsecos ao próprio movimento de globalização: maior mobilidade, tanto espacial como 16 cultural, suportada pelas tecnologias de comunicação e a criação de redes transnacionais muito densas em vários níveis das sociedades. A fluência em inglês é consensualmente reconhecida como uma competência básica e os governos de todo o mundo têm introduzido intensivamente o ensino desta língua em níveis escolares cada vez mais básicos – neste momento, as crianças chinesas (e as portuguesas) já aprendem inglês desde o primeiro ano da escola primária. Porém, David Graddol afirma que se o inglês foi claramente a língua franca do século XX, enfrenta sérios competidores no século XXI, entre eles o mandarim, o espanhol, o árabe e o hindi-urdu. As pessoas não vão deixar de falar inglês, que já é visto como uma ferramenta de trabalho mais do que como uma língua estrangeira. Os falantes nativos do idioma de Shakespeare é que podem ficar para trás se persistirem em manterem-se avessos à aprendizagem das outras línguas emergentes. CB A promoção da língua e da cultura portuguesa nos Estados Unidos é um dos objectivos da FLAD desde 1985. Em muitos dos países – entre os quais se incluem a Espanha, a Itália, a França, a Coreia, a Grã ‑Bretanha, a China, a Rússia ou o Japão – que concentram recursos consideráveis na difusão das suas línguas, existe o consenso de que as acções desenvolvidas em território norte-americano possuem um impacto e uma capacidade de irradiação muito superiores à sua base geográfica. Sendo a maior economia mundial e um país de emigrantes, os Estados Unidos oferecem um ambiente muito competitivo e qualquer estratégia ou lóbi em prol de uma língua terá de partir da comunidade local para obter sucesso. Neste sentido, a FLAD tem promovido e coordenado, desde 2004, um conjunto de estudos no âmbito do seu programa “Iniciativa Língua Portuguesa”, que recolheu dados estatísticos rigorosos sobre o número de escolas americanas que ensinam português e a sua relação com as comunidades imigrantes portuguesas sediadas nessas zonas. Esse documento, pioneiro, apurou que cerca de 300 universidades americanas possuem cadeiras de Português e cerca de 110 escolas secundárias públicas, situadas em seis estados (o mais relevante é a Califórnia, onde vivem 28 por cento dos luso-americanos, mas também Massachusetts, Rhode Island, Connecticut, Nova Jérsia, Nova Iorque e Florida são zonas que concentram uma forte emigração de origem portuguesa), oferecem este idioma como segunda língua. O relatório permitiu ainda perceber que existe um grande potencial de crescimento no número de alunos que poderão frequentar aulas de Português. Neste momento, a nível do ensino secundário, eles são à volta de 11 mil estudantes. No entanto, só na Califórnia existem cerca de 79 mil pessoas com mais de cinco anos que falam português em casa, das quais quase 10 mil têm entre cinco e 17 anos de idade, ou seja, são luso-descendentes de segundas e terceiras gerações. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 PORTUGAL/EUA Outro dado encorajador é que o sistema escolar americano possui uma grande responsiveness, sendo bastante flexível e adaptável à diversidade cultural das comuni dades locais. Em Massachusetts, por exemplo, basta um pedido formulado por 30 alunos ou encarregados de educação solicitando uma determinada cadeira de opção para o estado ser obrigado a criar a disciplina, contratar um professor e certificar a qualidade. As más notícias é que, neste momento, ainda existem poucos factores, para além de uma legítima nostalgia pela terra-mãe, que levem os luso-descendentes a querer estudar português. A FLAD tem conduzido iniciativas para levar o Colllege Board, a entidade mais credível que certifica os exames de acesso à maioria das universidades, a permitir a criação de um exame de língua portuguesa que possibilite aos estudantes liceais o acesso ao ensino superior. Estes exames são designados por Advanced Placement Courses and Exams (AP), e a sua aprovação garante a atribuição de créditos universitários existindo em cerca de 19 áreas temáticas, incluindo as línguas (inglês, francês, alemão, latim, italiano, coreano e, em breve, japonês e chinês). Se o objectivo da criação desta prova for alcançado, abrem-se inúmeras oportuni- A maior concentração geográfica da comunidade luso-americana nos EUA encontra-se assinalada a encarnado. ‘ […] cerca de 300 universidades americanas possuem cadeiras de Português e cerca de 110 escolas secundárias públicas, situadas em seis estados, oferecem este idioma como segunda língua. A laranja, universidades onde se ensina português. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 ’ dades para expandir o ensino do português. A existência de um exame de coreano, por exemplo, disponibilizada desde 1997, levou a que apenas em quatro anos o número de liceus que oferecem essa língua subisse de 17 para 70. Em paralelo, a FLAD continuará a apoiar os departamentos de estudos portugueses e lusófonos em várias universidades, promovendo uma política de encontro entre académicos do mundo lusófono, bem como outras acções de menor âmbito, como o apoio a campos de férias com temáticas portuguesas e brasileiras, muito populares entre as famílias norte-americanas e que podem deixar memórias e estímulos positivos (embora dificilmente quantificáveis) nas centenas de crianças e jovens que os frequentam. CB 17 �������� Primárias norte-americanas: “Simplex” republicano facilita escolha de McCain Para se ser designado à Casa Branca pelos dois principais partidos, o escolhido tem de obter o apoio da maioria dos delegados que participam nos congressos dos respectivos partidos e que decorrem no Verão. Por FILIPE VIEIRA* A inexistência de uma recandidatura, quer por parte de George W. Bush, quer do próprio Vice-Presidente Dick Cheney, deixou campo aberto a todos os republicanos com aspirações à Casa Branca. E foi vê-los digladiarem-se à conquista da liderança, do Iowa à Florida, onde John McCain, apesar dos amargos de boca causados ao longo da jornada por Mike Huckabee, finalmente se definiu como o virtual candidato republicano. Mas foram, na realidade, os candidatos democratas que emprestaram a estas primárias de 2008 um interesse e um dinamismo verdadeiramente invulgares. Em termos demográficos, não há memória recente de uma adesão tão entusiástica por parte do sector mais jovem da sociedade americana ao processo de nomeação do próximo Presidente. Milhões de votantes, acabados de registar, foram às urnas, arrastados sobretudo pelo apelo sedutor que lhe fora lançado pelo candidato Barack Obama, prome tendo “mudança” e semeando esperança, qual flautista de Hamelin, enchendo estádios a abarrotar de gente jovem. Em resultado de toda a mobilização do campo democrata, a que também não foi alheia Hillary Clinton, a taxa de participação, tradicionalmente baixa e com tendência para se agravar, alterou-se significativamente. Comparativamente às presidenciais de 2000, o New Hampshire registou nestas primárias 52,5 por cento de afluência às urnas (contra 44,4), a Carolina do Sul 30,4 (contra 20,2), o Alabama 31,7 (contra 15,3), a Georgia 18 32 (contra 17,7), sendo Nova Jérsia o caso mais paradigmático, onde uma afluência de 4,4 por cento há oito anos se transformou agora numa percentagem de 32,2 por cento. Para se ser designado candidato à Casa Branca pelos dois principais partidos, o escolhido tem de obter o apoio da maioria dos delegados que participam nos congressos dos respectivos partidos e que decorrem no Verão que antecede as presidenciais, eleições aprazadas este ano para o dia 4 de Novembro. Os democratas vão reunir-se de 25 a 28 de Agosto, na cidade de Denver, no Colorado, enquanto os republicanos têm o seu conclave marcado cesso complexo que nem sempre é fácil de entender em todas as suas nuances. E se, em termos percentuais, os resultados das primárias facilmente tornam visível, a olho desarmado, um vencedor – pelo menos no que toca aos candidatos republicanos –, o facto é que, do lado dos democratas, esses números não se traduzem numa proporcionalidade directa em termos de delegados eleitos. Neste particular, o método adoptado pelo Partido Republicano é absolutamente linear. A começar pelos caucuses eleitorais, que são reuniões partidárias, geralmente realizadas em pequenas localidades, onde a votação é feita de braço no ar entre pessoas que se reúnem numa igreja, numa sala de Não há memória recente uma qualquer associação cívica ou de uma adesão tão entusiástica mesmo em casas de por parte do sector mais jovem particulares, como foi o caso do Iowa, da sociedade americana o estado talismã, ao processo de nomeação onde todo o processo das primárias arranca, do próximo Presidente. cada quatro anos. Os caucuses, que tivepara as cidades gémeas de Minneapolis ram lugar em mais de 15 estados e territó‑Saint Paul, no estado do Minnesota, de rios sob administração americana, constituem 1 a 4 de Setembro. um invulgar caso do exercício da democraA escolha dos delegados resulta, por sua cia de base, que os republicanos resolvem vez, dos chamados caucuses e das eleições numa única votação individual, conferindo primárias, que são disputadas estado a a vitória ao candidato com maior apoio. No estado, num sistema de eliminatórias que caso dos democratas, os votantes congreacaba por afastar os candidatos com menor gam-se em grupos de apoio aos diversos arcaboiço e correspondente falta de apoio candidatos e cada um desses núcleos vota popular e financeiro. Trata-se de um pro- em bloco. Se não for achado de imediato ‘ ’ Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 �������� LUSA / EPA STEFAN ZAKLIN No princípio do ano, Bill Richardson, Hillary Clinton, John Edwards e Barack Obama na corrida às presidenciais. Hillary e Obama ainda estavam bem-dispostos. um vencedor, que obtenha um mínimo de 15 por cento do total dos votos, os dois grupos mais votados procuram cooptar o apoio dos que estão em minoria, num diálogo directo e, às vezes, moroso, até se encontrar um front-runner em sucessivas votações. Nos estados onde decorrem eleições primárias, que são a maioria, os republicanos adoptam o sistema the winner takes it all, o que permite ao candidato mais votado arrebatar todos os delegados em jogo naquele estado, independentemente da posição do segundo classificado, mesmo que este tenha obtido uma percentagem muito próxima da do vencedor. No que toca à escolha do seu candidato, o Partido Republicano revela, uma vez mais, o seu pragmatismo ao adoptar um processo extremamente linear para a definição do seu candidato à Casa Branca. O vencedor terá apenas de reunir sob o mesmo tecto da sala do congresso do partido 1191 delegados dispostos a indicar o seu nome, não exisParalelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 tindo, na nomenclatura republicana, a figura dos superdelegados. Entre os democratas, a divisão dos delegados começa por não corresponder, de todo, à percentagem total obtida pelos candidatos e obedece a um sistema extremamente intrincado de contagem, círculo eleitoral a círculo eleitoral, numa proporcionalidade que tem a ver com o número de inscritos em cada assembleia de voto. Caso concreto destas eleições, na Califórnia, Hillary Clinton conseguiu 52 por cento dos votos e ganhou 195 delegados, enquanto o seu rival, Barack Obama, obteve 43 por cento, tendo-lhe sido atribuídos 152 delegados. No estado da Virginia, onde Obama conquistou 64 por cento do eleitorado, foram-lhe atribuídos 54 delegados contra 29 para Hillary, que ficou pelos 35 por cento. A atestar a dificuldade processual está a discrepância na contagem dos delegados atribuída a Obama e a Hillary pelos diversos meios de comunicação social ameri- canos. A determinada altura, os números da CNN não correspondiam aos da MSNBC e estes diferiam também dos da Associated Press (AP). Os dados fornecidos pela AP acabariam por revelar-se mais correctos, dado que os seus repórteres se deram ao trabalho de acompanhar localmente o processo, falando com os dirigentes partidários e, às vezes mesmo, com os próprios delegados. Para obter a nomeação, o candidato vencedor terá de receber o mandato expresso de uma maioria de 2025 delegados presentes ao congresso do Partido Democrata. Os delegados eleitos são, no total, 3253. Mas há ainda os chamados “superdelegados” que não são eleitos. São figuras de proa do partido, antigos presidentes, governadores estaduais, membros do Congresso dos Estados Unidos. E a esta lista acrescem os nomes de democratas de menor notoriedade, que são escolhidos, supostamente, para garantir a diversidade étnica e regional e, nalguns casos, 19 �������� ‘ seu rival democraA existência dos “superdelegados” ta, Walter Mondale, passa, em regra, despercebida, que obteve um maior número de mas a importância destes 796 votos delegados, ainda pode muito bem determinar que insuficientes para garantir a um vencedor vitória no con gresso. Os “superdelegados” acabaram por pôr a nomeação nas mãos de a candidatura Mondale-Ferraro revelou-se Mondale, uma decisão a que não terá sido um autêntico fracasso frente a um carisalheio o escândalo extramatrimonial em mático Ronald Reagan, que garantiu a sua que Gary Hart se viu envolvido, com hon- permanência no cargo para um segundo ras de fotografias de primeira página, tira- mandato por uma esmagadora maioria. das no tombadilho de um veleiro iro- Mondale conseguiu apenas ganhar as eleinicamente chamado Monkey Business. Mondale ções no Minnesota, o seu estado natal, e acabou por concorrer à Casa Branca, pro- na capital americana, Washington, um pondo para a sua vice-presidência Geraldine reduto dos democratas. Ferraro, a primeira mulher a candidatar-se àquele cargo na história da América. Mas * Jornalista em Washington DC ’ LUSA / EPA joshua gates weisberg como retribuição por pequenos-grandes favores, que é preciso reconhecer. A existência dos “superdelegados” passa, em regra, despercebida, mas a importância destes 796 votos pode muito bem determinar um vencedor se, perante o congresso, se apresentarem dois candidatos sem uma maioria clara. Foi esse o caso do congresso democrata de 1984, ao preferir a candidatura do ex-Vice-Presidente Walter Mondale à de Gary Hart. O senador Hart tinha conseguido recriar junto dos media a mística e o carisma de um outro senador, igualmente jovem e ambicioso e que conquistou a Casa Branca. Hart pretendia seguir as pegadas de John Kennedy, o primeiro e único Presidente católico americano, tragicamente assassinado durante o seu mandato. E a nomeação parecia estar ao alcance de Gary Hart: havia ganho mais primárias e caucuses do que o McCain em campanha na Califórnia: nos estados onde decorrem eleições primárias, que são a maioria, os republicanos adoptam o sistema the winner takes it all. 20 Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 �������� A comunidade luso-americana e a política Por António Vicente* A emigração tem uma curiosa relação com o tempo – os que partem tendem a ‘parar’ o país no momento em que o deixam, e os que ficam cristalizam a imagem dos emigrantes no momento da partida; anos mais tarde, tanto uns como outros surpreendem-se quando constatam as enormes mudanças ocorridas. Uma curiosa e pouco conhecida mudança nos últimos anos tem sido o surgimento de um número cada vez maior de políticos luso-americanos com considerável sucesso na vida americana. Alguns são emigrantes, outros são filhos ou netos de emigrantes portugueses. Mas todos assumem e projectam a sua “herança” portuguesa. Ainda menos conhecida é a influência política da comunidade luso-americana em alguns contextos específicos. Estes dados deviam talvez ser mais discutidos em Portugal não só pela importância que os Estados Unidos têm no mundo, mas também porque a comunidade luso-americana pode assumir um papel cada vez mais importante nas relações económicas e diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos. Há quase duas décadas, a FLAD iniciou um programa específico destinado a conhecer melhor a comunidade e a apoiar projectos apresentados por associações luso-americanas. Para além do apoio a estudos académicos sobre a temática, as prioridades da Fundação têm sido a educação – bolsas universitárias a jovens luso-descendentes, ensino da língua portuguesa, apoio a estudos portugueses em universidades situadas em zonas da emigração portuguesa – e a promoção da intervenção cívica e eleitoral da comunidade. Neste último campo, a Fundação criou, em 1998, o Portuguese American Citizenship Project, um programa que actua em 16 cidades americanas com forte concentração demográfica portuguesa e que reúne líderes da comunidade, promove campanhas de naturalização e de recenseamento eleitoral e organiza debates políticos com candidatos eleitorais onde se discutem assuntos relevantes. Um dos aspectos mais inovadores do projecto foi o desenvolvimento Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 de uma ferramenta informática que cruza de forma rápida e eficiente as bases de dados de clubes e associações luso-americanos com os dados oficiais de recenseamento e voto. Com esta informação, consegue-se compreender a força eleitoral do clube e empreender campanhas personalizadas de apelo ao voto. Assim, umas semanas antes de uma determinada eleição, os voluntários do projecto enviam centenas (por vezes milhares) de cartas personalizadas relembrando ao destinatário a eleição que se aproxima, o local onde vota e o respectivo horário. Na carta, é feito ainda um apelo à importância do voto. Uns meses mais tarde, consegue-se medir o impacto da campanha, pois nos Estados Unidos a informação sobre se uma dada pessoa se absteve ou votou é pública. Este método tem permitido constatar que, ao contrário do que se pensava, a comunidade luso ‑americana tende a votar em percentagens superiores à média da dos locais onde vive. Comprova-se também que a intervenção do Portuguese American Citizenship Project permite aumentar de forma visível e consistente a taxa de participação eleitoral dos luso-americanos. Esta informação tem sido amplamente divulgada junto dos luso-americanos e dos políticos locais, o que tem constituído uma fonte de empowerment da comunidade. Mas muito antes do surgimento deste e de outros projectos semelhantes, vários luso-americanos obtinham importantes vitórias eleitorais nos Estados Unidos. Embora a comunidade luso-americana ainda não tenha gerado um candidato à Casa Branca (ao contrário da comunidade grega, com Michel Dukakis, em 1988), nos últimos anos emanaram da mesma dezenas de congressistas federais (durante a anterior legislatura havia quatro congressistas luso-americanos na Câmara de Representantes em Washington DC; actualmente, são três), representantes e senadores estaduais, membros do executivo estadual e presidentes de câmara. Muitos mantêm estreitos laços com Portugal, todos continuam intimamente ligados 21 RUI OCHÔA �������� Imigrantes portugueses em Fall River. ‘ à comunidade luso-americana, até porque muitas vezes o seu cargo depende do voto desta. Em alguns momentos (como durante a crise desencadeada pelo referendo em Timor Leste em 1999), este grupo, assim como alguns políticos eleitos por zonas de forte concentração portuguesa, acabam por mostrar uma maior liderança e sensibilidade em matérias importantes para a comunidade e para Portugal. Comprova-se [...] que a intervenção do Portuguese American Citizenship Project permite aumentar de forma visível e consistente a taxa de participação eleitoral dos luso-americanos. ’ Naturalmente, a força da comunidade luso-americana revela-se principalmente na política local (a nível nacional, talvez apenas a hispânica tenha um poder efectivo). Mas, como referiu o conhecido político americano, Tip O’Neill, na América “all Politics is local”. O facto de os representantes federais serem eleitos por círculos uninominais faz com que alguns congressistas precisem do voto e do apoio da comunidade luso-americana, o que em alguns assuntos específicos permite dar uma dimensão nacional a um poder local. Quando, por exemplo, a Fundação iniciou um programa de promoção do ensino da língua portuguesa nos Estados Unidos e precisou do apoio de uma iniciativa federal, pôde contar com a cooperação de alguns destes congressistas. 22 Como tantos outros grupos de imigração recente, a comunidade portuguesa nos Estados Unidos tende a votar mais no campo democrata. Acresce que um dos principais locais de concentração da comunidade é precisamente um dos estados mais democratas da União – Massachusetts (também conhecido entre alguns republicanos como a “People’s Republic of Massachusetts”). Embora a maior parte dos políticos de origem portuguesa pertença ao Partido Democrata, existem, no entanto, importantes excepções. Do grupo de quatro congressistas federais luso-americanos referidos anteriormente, dois eram democratas e dois republicanos. Na actual eleição presidencial não se revela possível nem mesmo particularmente útil apurar com rigor se a comunidade luso-americana está mais próxima de Obama ou de Hillary. Importante, sim, é constatar a cada vez mais intensa participação cívica da comunidade luso-americana e os benefícios que daí advêm para a comunidade. Como referem os materiais de campanha produzidos pelo Portuguese American Citizenship Project, na democracia americana “quem não vota, não conta” e “sem voto, sem voz”. Um outro poster, desenhado por um grupo de luso-americanos de Fall River, acaba por invocar a tal ideia da “paragem” e “avanço” do tempo, assim como a vida entre dois mundos e duas culturas – junto à imagem da bandeira americana e do Uncle Sam lê-se a frase “Vota! O Voto é a Arma do Povo”. * Subdirector da FLAD Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 �������� O voto português na América Historicamente, a comunidade luso-americana favorece os candidatos do Partido Democrata. Estas eleições primárias não constituem excepção. Por FILIPE VIEIRA* Nos estados de Rhode Island e de Massachusetts, para falar da Costa Leste dos EUA, os votos luso-americanos têm sido determinantes para a vitória dos demo cratas, tanto a nível local como nacional. O mesmo se passa noutros centros urbanos, onde é numerosa a presença dos luso ‑descendentes. Refira-se Newark, no estado de Nova Jérsia, ali às portas de Manhattan. Ou a Manassas, no estado da Virginia, a cerca de uma hora de distância da Casa Branca, onde se instalou a mais recente comunidade emigrante. Mas é na Costa Leste que está a parte mais visível da franja de poder partilhada pelos luso-descendentes. Foi onde Bob Correia foi recentemente eleito presidente da Câmara de Fall River, numa corrida que envolveu outro luso-americano: Alfredo Alves, antigo vereador daquela edilidade. Alves é, aliás, uma excepção no que toca à generalidade das escolhas feitas nestas presidenciais, já que o seu voto está reservado para o senador republicano John McCain, porque “McCain representa estabilidade e, numa altura de guerra como Alfredo Alves Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 a que vivemos, não podemos estar a brincar à presidência”. Apesar desta sua argumentação, Alfredo Alves faz, porém, questão em sublinhar que a sua inten ção de voto poderá mudar, daqui até Novembro! Observador atento ao que se passa nos estados da Nova Inglaterra, é director do Portuguese Times, uma das mais antigas publi cações em língua portuguesa na América. Manuel Adelino Ferreira apoia a candidatura da senadora Hillary Clinton e não o esconde. Disse-o publicamente, num seu programa de televisão que vai para o ar todos os sábados à noite no Portuguese Channel, um canal local dirigido à comunidade. Adelino Ferreira recordou à Paralelo ter “manifestado desde logo a sua simpatia pela senadora Clinton, dado que a acha a mais experiente, porque é uma figura de mais prestígio, capaz de restaurar a imagem dos EUA, muito abalada pela Administração Bush, a nível nacional e internacional”. E é preciso não esquecer a Califórnia, onde os luso-americanos detêm já uma apreciável fatia do poder no plano regio- João Luís de Medeiros Manuel Adelino Ferreira nal, incluindo ao nível do Senado estadual, em Sacramento, a capital. João Luís de Medeiros, um açoriano que vive em Rancho Mirage, na Califórnia, é um indefectível apoiante da campanha de Barack Obama, político que, na sua opi nião, “aparece em cena como uma das mais credíveis apostas presidenciais do sécu lo XXI, um político que veio de baixo para cima no panorama nacional, à revelia dos patrões do aparelho do Partido Democrata”. Para Medeiros, que, nos anos 70, foi deputado à Assembleia Regional dos Açores e à Assembleia da República (PS) “ao contrário de Hillary Clinton, Obama não se apresenta como servo ‘noblesse oblige’ da renovação na continuidade. O seu carisma tem sido testado e consolidado pela maciça adesão popular à sua candidatura”. John Bento, arquitecto com ateliê na Califórnia do Sul, preside ao PALCUS, a asso ciação para a defesa dos interesses da comunidade portuguesa nos Estados Unidos, sediada em Washington. Em declarações à Paralelo, Bento não manifestou a sua intenção de voto, mas admitiu “que John McCain não terá muitas hipóteses de vencer, porque qualquer candidato que esteja associado ao actual Presidente Bush irá ter uma grande dificuldade em ganhar a Casa Branca”. Comentou, por outro lado, estar surpreendido pela forma como o senador Barack Obama conseguiu arrancar de uma situação de quase total anonimato e assumir a liderança. “À partida, esperaria que quem quer que fosse competir com Hillary Clinton acabasse esmagado, o que não aconteceu com Obama”, disse John Bento. * Jornalista em Washington DC 23 �������� As eleições presidenciais americanas e a União Europeia Por José Cutileiro* Em 1995, numa conversa no State Department com o subsecretário de Estado Peter Tarnoff, em que discutíamos problemas de defesa europeia, eu disse a certa altura: “A Europa é um lugar complicado...” “Eu sei”, respondeu Tarnoff. “É por isso que nós estamos aqui.” ‘ Economicamente, não há dois blocos no mundo com relações mais estreitas do que a União Europeia e os Estados Unidos. ’ Lembro-me muitas vezes deste esclarecimento. Embora adoptando e venerando valores europeus, os Estados Unidos nasceram e cresceram convencidos de terem deitado para trás das costas as zaragatas históricas do Velho Continente. O século XX veio dar emenda realista a essa convicção ingénua: estão com efeito do outro lado do mar mas, na Primeira Grande Guerra, na Segunda Grande Guerra e na Guerra Fria tiveram de passar para este lado para ajudarem a pôr a Europa – e o resto do mundo – em ordem. Das duas primeiras vezes com custos penosos que os cemitérios militares da Flandres e da Normandia atestam. (Conta-se que quando De Gaulle, em 1966, retirou a França da estrutura militar integrada da NATO e a organização se mudou para a Bélgica, Lyndon Johnson lhe mandou perguntar se queria que os americanos levassem também as sepulturas). Quando, em 1995, Tarnoff marcava a diferença entre a Europa e os Estados Unidos, fazia-o durante uma conversa sobre a partilha de encargos da nossa defesa comum. Hoje, num mundo em constante e desordenada mutação, com as chamadas potências emergentes 24 a crescerem como bambus, a olhos vistos, europeus e americanos continuam detentores de património de valores e interesses, defendido e promovido por laços militares, comerciais e financeiros e por esforços na protecção e disseminação dos Direitos do Homem e de decência cívica e política. Os laços transatlânticos são fortíssimos. Militarmente, a NATO – a mais poderosa aliança do mundo – aumentou o âmbito da sua acção desde o colapso da União Soviética: juntou à protecção que nos dava contra a guerra, aptidão para exportar paz. Continua não só a assegurar a defesa territorial dos seus Estados-membros mas também, de vez em quando com debate interno muito duro, a ir-lhes proteger interesses materiais ou morais onde for preciso: Kosovo, Afeganistão, Mediterrâneo, são as missões em curso. Dada como morta várias vezes desde o fim da Guerra Fria, por várias vezes tem vindo a mostrar que está viva e sã. Economicamente, não há dois blocos no mundo com relações mais estreitas do que a União Europeia e os Estados Unidos; na realidade, trocas comerciais e investimentos cruzados dão ao conjunto dos dois uma força incomparável e ilustram o benefício da associação, sobretudo agora que a concorrência exterior de outros blocos – Japão, China, Índia, Rússia, Brasil – é mais poderosa e acesa do que alguma vez foi. Na Europa, espíritos tão isentos quanto o de Jacques Delors, que recomenda também maior cooperação transatlântica em defesa e segurança, dão-se conta disso: Édouard Balladur escreve sobre as vantagens de uma comunidade atlântica – e Nicolas Sarkozy aproximou a França dos Estados Unidos de maneira inédita, pelo menos desde o regresso de De Gaulle ao poder em 1958. Por outro lado, nos Estados Unidos há quem sugira que o país vive um momento palmerstoniano (Lord Palmerston, estadista inglês do século XIX, disse que a Inglaterra não tinha amigos nem inimigos permanentes – tinha interesses permanentes) Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 �������� externas), sobretudo no decurso do primeiro mandato. No segundo, o bom senso de vez em quando veio ao de cima e, do lado de cá do Atlântico, entre os Estados-membros da União Europeia houve alternâncias políticas favoráveis a Washington. Assim, no fim de Janeiro do ano que vem, o homem ou a mu lher do Oval Office estará em condições de repor as Com as presidenciais, a imagem relações transados Estados Unidos na Europa tlânticas na calha de onde George e no Mundo começa a sair W. Bush parecia do buraco negro onde entrara. quase a fazê-las sal tar – que é o que os europeus também querem. Sem esquecermos, nem nós nem eles, que eles estão do lado de lá porque nós somos como somos, acudiremos todos (outra vez Palmerston...) aos interesses permanentes que nos unem. Entretanto, a campanha eleitoral americana tem mostrado tal intensidade de vida política, tal riqueza de participação, tal entusiasmo e cogitação quanto ao futuro do país, tal alegria, que a imagem dos Estados Unidos na Europa e no mundo começa a pouco e pouco a sair do buraco negro onde entrara. E, se se comparar tudo isso com a eleição que levou Medvedev ao Kremlin, percebe-se, mais uma vez, a sorte grande que foi a Guerra Fria ter sido ganha por este lado. ‘ ’ * Embaixador LUSA / EPA MICHAL CZERWONKA no qual, por divergência de interesses – por exemplo, falta de empenho em capacidade militar dos europeus –, a centralidade da Europa será mais fraca na política externa norte-americana durante o(s) mandato(s) do 44.° Presidente americano do que foi na segunda metade do século XX. Não tenho a certeza. Se por “centralidade” se entender a prioridade imposta pela situação geográfica da Europa durante a Guerra Fria, com certeza que esta já desapareceu. Se, porém, “centralidade” tiver a ver com um conjunto de valores e interesses que aproxima os dois lados do Atlântico mais do que aproxima qualquer deles de qualquer outro centro de poder no mundo multipolar que se avizinha, o laço transatlântico continuará a ser central na política externa dos Estados Unidos – e a exigir mais da Europa na partilha dos encargos de defesa e segurança. Seja John McCain, Barack Obama ou Hillary Clinton o 44.° Presidente dos Estados Unidos, a sua política externa não poderá afastar-se muito da de George W. Bush. As sementes de muito do que Bush fez, incluindo a invasão do Iraque, tinham sido deitadas por Clinton; outras há mais tempo ainda e os interesses americanos permanecem. Mas mudará com certeza a maneira de fazer. Washington terá um discurso mais racional e compreensivo das posições de outros, o que trará uma lufada de ar fresco e ajudará a tentar resolver algumas questões pendentes. O próximo Presidente americano chegará com parti pris favorável só por não ser George W. Bush, que acumulou demasiados erros de política externa (e de política interna com implicações Dia de votação em Circleville, Ohio. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 25 �������� Obama combate Hillary com tesouraria virtual Estas eleições estão a mudar a face política da América. Por FILIPE VIEIRA* A sua história está a ser escrita a cada ciclo noticioso, que há muito deixou de ser de vinte e quatro horas e cuja memória se transferiu das primeiras páginas dos jornais e dos telejornais para passar a assumir a perenidade fugaz dessa ardósia virtual que é a internet. As campanhas estão cientes disso mesmo e simulam, assim, a pose que julgam mais adequada para o combate eleitoral. Os comícios populares são ainda a arena final, a prova real para o frente-a-frente entre os candidatos e os eleitores. Mas a nova realidade mediática é mais complexa do que nunca. Esta campanha começa por fazer história pelo simples facto de colocar, pela primeira vez, na corrida à Casa Branca um candidato negro e uma mulher. De uma assentada, a América confronta-se com dois desafios na aceitação social de si própria: Barack Obama, o senador do Illinois, filho de um queniano e de uma americana branca; e Hillary Clinton, a mais combativa de todas as ex-primeiras-damas. Ambos conquistaram facilmente o centro das atenções, que dividem o país e a unidade do próprio Partido Democrata. O senador John McCain, já definido como o candidato do Partido Republicano, acabou por ser empurrado para os destaques menores, esperando o seu dia ao sol. Hillary Clinton começou por ser vista como a vencedora inevitável da nomeação democrata. Essa era a dinâmica decorrente do reconhecimento dado ao seu nome, reforçada pela influência que Bill Clinton tem na máquina partidária. Habilmente e desde o início, os Clinton garantiram o apoio financeiro e o dos principais apoiantes do Partido Democrata, esgotando, em primeira análise, o acesso àquelas fontes por parte de novos candidatos. Barack Obama arrancou para a sua campanha com conhecimento de que os Clinton 26 consumiram, de facto, todo o “oxigénio financeiro” à volta de novos concorrentes e que seria necessário encontrar outros meios de sustentação. Já em 2004, a campanha do ex-governador pelo estado de Vermont, Howard Dean, havia demonstrado a utilidade da internet na angariação de fundos a partir de pequenos doadores anónimos. Obama agarrou nessa ideia e expandiu-a para a transformar num instrumento que utilizasse as tecnologias on-line para organizar a sua campanha ao nível comunitário. Na prática, o senador pretendia usar a internet para fazer uma campanha de porta-a-porta virtual, em tudo semelhante às que efectuou enquanto activista comunitário nos bairros pobres de Chicago, nos primórdios da sua carreira política. Para isso contou com o apoio de diversos gurus da informática, como foi o caso do criador do famoso site “FaceBook”, um dos mais populares pontos de encontro de toda a net. “Barackobama.com” tem sido o portal usado para gerir toda a sua campanha, um endereço afectuosamente conhecido entre os militantes como “MyBo”. pela primeira vez, a marca de um milhão de dólares em dinheiro canalizado via internet. A par da angariação de fundos, a campanha de Obama criou uma enorme e complexa comunidade on-line que, nalguns estados, mantém em contacto permanente e instantâneo mais de 100 mil apoiantes. Isso permite a mobilização das bases, quarteirão a quarteirão, bairro a bairro, cidade a cidade, estado a estado, numa reinterpretação beni gna do poder popular à dimensão continental da América. Não é, pois, de estranhar que a sua campanha seja considerada a melhor em termos de coordenação e administração durante estas primárias. Ainda que utilizando a internet, Hillary Clinton recorre com frequência aos media mais convencionais. E a sua organização, em geral, tem revelado muitos pontos fracos no que toca à mera gestão, que se revelou convulsiva com o despedimento e substituição da sua principal coordenadora, para não falar de um episódio verbal entre os dois principais estrategos trocando insultos ao telefone numa chuva de “efes” ‘ A par da angariação de fundos, a campanha de Obama criou uma enorme e complexa comunidade on-line que, nalguns estados, mantém em contacto permanente e instantâneo mais de 100 mil apoiantes. ’ A angariação de fundos tem sido um êxito absoluto. Só em Fevereiro, Obama angariou 55 milhões de dólares, contra os 35 milhões que Hillary arrecadou utilizando os métodos tradicionais. Naquele mesmo mês, no site de Obama mais de 385 mil doadores individuais ultrapassou, que serviu para gáudio dos tablóides. Ocorre falar também na decerto não menos importante súbita falta de fundos, que obrigou a candidata a fazer um auto ‑empréstimo de cinco milhões de dólares – até que novo fluxo de dinheiro fosse injectado pelos doadores –, e pôs a nu Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 LUSA / EPA STEVE C. MITCHELL �������� Barack Obama discursa em Plainfield, Indiana. A sua campanha é considerada a melhor em termos de coordenação e administração. gastos sumptuários, uns, e aparentemente desnecessários, outros. As vitórias de Hillary no Ohio, no Texas e em Rhode Island, depois de 12 derrotas consecutivas frente a Obama, serviram de lenitivo e permitiram-lhe relançar a campanha. A notável habilidade política dos Clinton transformou aquela super-terça ‑feira num fulminante contra-ataque que deixou sem fôlego a campanha de Obama, um Obama subitamente abandonado pelos media, agora seduzidos por esta nova versão no feminino do comeback kid. Hillary contou, desde o início, com o apoio das figuras institucionais do Partido Democrata (incluindo os “superdelegados”) e, ao contrário de Al Gore, não enjeitou o apoio expresso do antigo Presidente Bill Clinton. A presença do seu ex-marido tem sido, nalguns casos, uma bênção política, e, noutros, quase uma maldição. Os seus adversários chegaram mesmo a designar a candidata por “Billary”, numa maldosa simbiose dos seus nomes. Bill Clinton, que começou por vender as virtualidades da sua presidência como razão para votar na Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 mulher, mudou várias vezes o tom do seu discurso para se adaptar a ventos e marés, sem conseguir verdadeiramente achar-se neste seu novo papel secundário. À sombra destas primeiras figuras, o candidato republicano John McCain viu, de certo modo, diminuído o seu protagonismo nestas primárias para as presidenciais de Novembro. E o feito de McCain não foi coisa pouca. Perante múltiplos candidatos republicanos com os cofres cheios (caso de Mitt Romney) e com um inegável carisma (caso de Mike Huckabee), McCain pôs à prova, uma vez mais, a sua capacidade de sobrevivência. Prisioneiro de guerra no Vietname, aquele senador esteve cinco anos detido na famigerada prisão vietcongue ironicamente conhecida como “Saigon Hilton”, onde lhe partiram os dois braços, de tal forma que ainda hoje não os consegue sequer levantar para se pentear. Também no que toca a estas eleições, McCain parece ter renascido das cinzas quando a sua campanha, antes da votação de New Hampshire, se viu reduzida a 40 mil dólares dos três milhões que o senador havia pedido emprestados ao seu seguro de vida, no início da corrida. Os fundos eram tão esparsos, que um dos administradores da campanha, numa determinada altura, trocou o voo do candidato de uma companhia para outra para poder poupar uns trocados... Já em 2000, McCain havia adoptado o autocarro como a forma ideal de fazer campanha, baptizando-o de Straight Talk, o que se pode traduzir por “sem papas na língua”. E McCain cultiva essa imagem de linguagem directa com o eleitorado e, sobretudo, com os jornalistas que com ele viajam no autocarro o dia inteiro, com acesso permanente ao candidato. McCain, que sobreviveu a uma das mais mortíferas formas de cancro da pele (melanoma), tem uma personalidade a um tempo jovial e abrasiva e a sua relação aberta com os repórteres já lhe valeu ser considerado um media darling, o que terá decididamente mudado com o surgimento de uma outra estrela no firmamento político: Barack Obama. * Jornalista em Washington DC 27 �������� “Viva La Raza!” Como as eleições hispanizam a América Por Michael Werz* É um dado adquirido que nas eleições se decide democratas precisaram de encontrar novas ideias, uma orientação para o futuro de uma sociedade. de forma a conquistarem a participação do eleitoMas nos EUA iniciou-se, em vez disso, e para espanto rado daquela que é a primeira minoria do país, de muitos americanos, uma intensa discussão sobre com mais de 40 milhões de membros. a actualidade. Pela primeira vez na história ameriNo entanto, há que salientar que entre a Califórnia cana as eleições não vão ser disputadas entre dois e o Texas, dois estados com mais de 40 por cento homens brancos. E o mais interessante é que as tra- de população hispânica, existem enormes diferendições dos fluxos migratórios e as alterações nas ças. Basta recuar à fundação do estado do Texas, em relações raciais se tornaram o centro do concurso Dezembro de 1845, quando a região ainda pertendas decisões políticas, sendo o peso dos latino- cia ao México, para relembrar a história da ocupa-americanos decisivo na corrida à Presidência. ção dos hispânicos. A expressão “não fomos nós Foi isto mesmo que John Kerry provou quando que atravessámos as fronteiras, foram elas que nos há poucas semanas, após uma viagem ao Afeganistão, atravessaram a nós”, não é de maneira nenhuma em vez de regressar a Washington, voou directa- uma mera piada política. No Texas, os hispânicos mente para Del Rio, Texas, para apoiar Barack vêem-se a si próprios no centro e não à margem Obama nestas eleições. Del Rio, o limite sul dos da sociedade. Na Califórnia, pelo contrário, existem EUA, é o verdadeiro Sul. O número de habitantes ronda os 36 mil, dos quais mais de 80 por cento As minorias de origem hispânica são hispânicos e 17 por cento são brantêm uma grande influência na nomeação. cos. Em poucos minuDois terços dos hispânicos vivem no Texas, tos chega-se a pé ao rio Bravo. Na outra na Florida e na Califórnia. margem, situa-se a cidade-irmã mexi cana, a Ciudad Acuña. Não admira, por isso, que John Kerry, já no palco, perguntasse, num tom muitos imigrantes de primeira e segunda geração meio irónico, onde é que se encontrava. O Sul do provenientes do México. Texas dista tanto de Boston como Copenhaga de Barack Obama utilizou, por isso, estratégias comFaro e, ainda assim, esta região fronteiriça encon- pletamente diferentes para se dirigir a estes dois tra-se no centro político dos EUA. grupos distintos. Na Califórnia, nos preparativos A disputa das eleições primárias que este ano se das eleições primárias a 5 de Fevereiro, lembrou o realizam cedo tem sido bastante renhida e, pela seu pai queniano, e num comício realizado na parte primeira vez, as minorias de origem hispânica têm oriental de Los Angeles afirmou: “O meu pai não uma grande influência na nomeação. Dois terços aparentava ter vindo [da Europa] no Mayflower para dos hispânicos vivem no Texas, na Florida e na a América.” Este discurso sobre a viagem é muito Califórnia, estados que nos anos 80 não tinham útil no Sul californiano mas não no Texas, onde nenhuma relevância política porque as eleições mais de metade dos hispânicos se vêem como ‘branprimárias só começavam quando a corrida às urnas cos’ e olham para Obama percepcionando-o projá estava decidida. Por isso, este ano os candidatos vavelmente mais negro do que ele é. ‘ ’ 28 Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 �������� ‘ A melodia e o ritmo da campanha eleitoral de Hillary Clinton são claramente hispanizados. ’ Para além disso, no Sul, o nome Clinton, principalmente para os hispânicos mais velhos, é sinónimo de Partido Democrata, o que está directamente ligado às lutas pelos direitos civis. Isto é relevante no Texas, porque até aos anos 60 do século passado a discriminação contra os hispânicos era muito forte. Como minoria estabelecida, em pleno gozo de todos os direitos civis, os hispânicos do Texas denunciaram, no âmbito da sua própria luta, as más experiências vividas noutras partes do país. No entanto, devido ao facto de os cargos políticos do Texas reservados para a minoria não branca estarem ocupados por afro-americanos, desenvolveu-se uma concorrência pelo status de minoria par excellence. Isto levou a que os hispânicos se vissem muitas vezes forçados a defender os seus interesses através de alianças com políticos e activistas brancos progressistas. As eleições primárias no Texas transformaram esta constelação (comunidade) num tema de discussão em toda a América. A discussão pública sobre hispânicos texanos, cuja experiência política foi negra apesar da representação política ser branca, tornou-se tema permanente de um debate mais alar gado sobre o status quo da cultura e da política. Este debate, iniciado no Outono passado, incendiou-se e intensificou-se devido às eleições, levando a que muitos milhões de americanos nele participassem. Debate que diz respeito a todos, tanto a minorias como a maiorias. É cada vez mais difícil ignorar que esta época tão marcada pelos movimentos dos direitos civis, pelo debate sobre o racismo e as demonstrações de afirmação, esteja a chegar ao seu Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 fim, sem negligenciar os problemas existentes. As eleições e as suas alianças de 2008 mostram que não só uma parte da classe média instruída se vê como uma fracção de uma sociedade em que a colour line já não é uma linha divisória inflexível. Isto é visível nos apoios de ambos os candidatos democratas, uma vez que estes não recolhem simpatia apenas pela cor da pele mas também pela formação do eleitorado. Eleitores que acabaram o ensino secundário, com posses e consciência pós-étnica, sentem-se fortemente identificados com o discurso de Barack Obama e a retórica da “mudança” e de um mundo melhor. Para os trabalhadores migrantes provenientes da América Latina e de outras regiões, com um nível de formação abaixo da média, Hillary Clinton orientou o seu discurso para os temas do “pão e da manteiga”, de modo a garantir os cerca de dois terços dos votos da Califórnia. Também no Texas os hispânicos contribuíram para aquele que poderá vir a ser o mais importante sucesso da sua carreira. Foi lá que muitos deles viram em Hillary Clinton uma personagem política mais familiar do que Barack Obama, o filho de imigrantes radicado no Havai e formado em Harvard. No entanto, conseguiu ganhar a simpatia dos hispânicos mais jovens que relacionam o nome Clinton com a velha mentalidade americana – o clássico conflito geracional no seio de uma minoria que se diferencia rapidamente. As eleições lançam para a ribalta um dos momentos históricos ainda em aberto nos EUA; um momento sobre o qual os candidatos têm visões políticas diferentes, seja qual for a cor de pele. A melodia e o ritmo da campanha eleitoral de Hillary Clinton são claramente hispanizados, enquanto Barack Obama projecta a imagem do visionário intelectual. No entanto, ambos sabem que, pelo menos por agora, o futuro dos EUA depende do Sudoeste do país. * Transatlantic Fellow do German Marshall Fund e Visiting Scholar na Universidade de Georgetown, em Washington DC http://www.gmfus.org/experts/espert.cfm?id=48 Traduzido do alemão por Luís Nunes 29 �������� Hillary e as mulheres Nos estados que já votaram até agora o grupo estatístico das mulheres entre os 40 e os 50 anos tem-se revelado o principal bloco de apoio de Hillary Clinton. Por RITA SIZA* 30 Mas a verdade é que as mulheres têm uma reacção mais emocional à candidatura de Hillary Clinton: adoram-na ou odeiam-na muito mais convictamente (e talvez mais irracionalmente). Para umas, Hillary é a representante máxima da geração baby-boomer: uma mulher que lutou pela igualdade de oportunidades, afirmou a sua compe tência e ganhou a admiração dos seus pares. Mas para outras, não passa de uma política ambiciosa e calculista, capaz de fazer qualquer sacrifício para vencer – um comportamento rejeitado como a repetição de uma fórmula de sucesso machista. Aliás, bastou a apresentação da sua candidatura para se relançar o debate sobre o actual movimento feminista na América. O que pretendem agora as mulheres: liderar ou derrubar o status quo? Qual deverá ser a sua estratégia: juntar-se ao clube ou incendiar as suas instalações? É um debate para já estéril – pelo menos no que diz respeito ao futuro da campanha eleitoral. À Carol essa discussão não interessa. “Há décadas que esta mulher se sujeita ao mais apertado escrutínio do mundo. Olho para ela e penso: não há hipótese de ela poder ser encarada como uma pessoa normal, porque não há nada de normal na sua vida”, assinala. A simpatia que sente por Hillary é antes de mais uma questão de solidariedade. “Basta pensar em tudo por que ela passou por causa do ‘affaire’ do marido, tudo o que ela aguentou para chegar a este momento. Agora, às vezes, pergunto-me se, caso perca a eleição, ela se vai finalmente divorciar…” * Correspondente do jornal Público nos EUA LUSA / EPA MICHAL CZERWONKA Carol e Susie, duas mulheres de meia-idade de Austin, no Texas, admitem que estavam decididas a apoiar o senador democrata do Illinois Barack Obama nas eleições primárias do seu estado – só que na hora da verdade, quando entraram no cubículo reservado aos eleitores e se confrontaram com o ecrã da máquina de voto, o dedo fugiu-lhes para o quadrado que assinalava a candidatura de Hillary Clinton. “Ela é uma excelente candidata, mas, mais importante do que isso, é uma mulher. Naquele momento apercebi-me que não podia cometer essa traição e votar num homem”, justificou-se Susie, que reúne todas as características que as estatísticas apontam como comuns aos mais fiéis apoiantes da senadora de Nova Iorque e antiga primeira-dama: mulher, branca, 47 anos, casada, habitante dos subúrbios, com qualificações mas sem terminar um curso superior. “Li um artigo com uma estatística que dizia que 11 por cento dos americanos nunca votariam numa mulher, contra seis por cento que nunca votariam num negro. E senti-me insultada”, lamentou Susie, explicando que foi esse facto que a fez mudar de ideias e votar em Hillary. “Afinal, neste país a misoginia é muito pior do que o racismo”, considerou. Nos estados que já votaram até agora o grupo estatístico das mulheres entre os 40 e os 50 anos tem-se revelado o principal bloco de apoio de Hillary Clinton. Não admira, por isso, que a sua candidatura continue a investir fortemente na realização de eventos direccionados para o público feminino. Nessas ocasiões, como destaca a imprensa norte-americana, o discurso da candidata concentra-se em torno de assuntos como a saúde, a educação, a criação de empregos ou mesmo a religião – temas alegadamente mais ‘queridos’ pelo eleitorado feminino. Apoiantes femininas de Hillary no Ohio. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 POLÍTICA A Turquia é uma mistura da UE a 27 Por FILIPA BRAZONA ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA... À margem do encontro, Ian Lesser respondeu a algumas questões. As relações entre a Turquia, a União Europeia (UE) e os Estados Unidos da América (EUA) não enfrentam novas dificuldades pois nunca existiu uma situação consideravelmente melhor. Esta foi uma das várias opiniões partilhadas numa discussão cujo mote foi dado pelo lançamento do livro Beyond Suspicion: Rethinking US Turkish Relations, de Ian Lesser, especialista em relações internacionais do German Marshall Fund, e que contou, ainda, com a presença de Omer Kaya Turkmen, embaixador da República da Turquia, Armando Marques Guedes, presidente do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Ahmet Evin, director do Istambul Policy Center, e Charles Buchanan, administrador da FLAD. Kaya Turkmen defendeu que a Turquia e os EUA são “aliados, embora, em alguns aspectos, pensem de forma distinta”, considerando um “exagero” julgar que se assiste a uma crise relacional pois, como admitiu, “nunca se viveu uma situação melhor”. “O lugar da Turquia é no Ocidente” – disse o embaixador, acrescentando que acredita na rápida adesão do seu país à UE, apesar da longa espera de já cinquenta anos. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 Por sua vez, Marques Guedes, recorrendo à obra de Ian Lesser, apresentou uma perspectiva histórica das relações entre os três actores. À semelhança do primeiro orador, assegurou “firmemente” que “o lugar da Turquia é com o Ocidente”. Apesar desta convicção, acrescentou que “seria desastroso se a Turquia aderisse à UE”, mas que seria um desastre “ainda maior se tal não viesse a acontecer”. Ahmet Evin acredita ser imperioso estabelecer uma data limite para a adesão da Turquia à UE, admitindo que o grande obstáculo no processo de adesão da Turquia à UE prende-se com a difícil definição da Turquia enquanto país: “A Turquia é uma mistura da UE a 27.” É essa amálgama de valores que confunde o mundo e que a impede de ser totalmente parte do Ocidente ou do Oriente. O título do livro – Beyond Suspicion: Rethinking US Turkish Relations – foi escolhido pelo autor para sublinhar a ideia de suspeição mútua. A Turquia mantém hoje relações com o Irão e o Iraque, situação que a Administração Bush não encara de forma pacífica, olhando estes países, muitas vezes, como um todo, “um bloco de problemas e não países diferenciados”, disse Lesser. O estreitar de relações com a UE dá à Turquia a possibilidade de melhores relações com os EUA? Tal dependerá do estado das relações transatlânticas. Se estas forem positivas, poderá ser uma ajuda ter uma base formal para uma relação triangular forte entre a Turquia, a Europa e os EUA. Por outro lado, simplificará as coisas para a Turquia porque o país não vai querer estar na posição de ter de escolher entre uma orientação pró-América e uma pró-Europa. Alienar ou isolar a Turquia, é uma possibilidade? Qual seria o pior cenário? O colapso do projecto europeu da Turquia seria o pior que poderia acontecer, porque os turcos iriam tornar-se mais nacionalistas e isolados. Também não é positivo que as relações entre os EUA e a UE continuem a deteriorar-se devido a questões como o Iraque. Poderíamos chegar a um triângulo de alienação… com os EUA a perderem os seus aliados, a Turquia a isolar ‑se e a UE com dificuldade em relacionar-se com os seus parceiros. Há um sério risco de nacionalismo… mas esse é o pior cenário e não creio que venha a suceder. Que tipo de iniciativas deveriam ser levadas a cabo para enfatizar a relação transatlântica? Algumas dessas iniciativas terão mesmo de esperar por um novo governo norte-americano. As opiniões na Turquia e na Europa são, hoje, muito negativas e é difícil contrariar essa posição. Só com uma nova Administração haverá oportunidade para um tipo diferente de relação. Teremos de esperar para ver. Em qualquer caso, penso que é essencial ter caras novas com outras ideias para se pensar a sério nestas parcerias. 31 POLÍTICA Quando a NATO mora ao lado Rede de bases militares norte-americanas discutida em Lisboa No Instituto de Estudos Superiores Militares debateu-se "O impacto político e social das bases militares da NATO". Mas uma questão ficou no ar: com uma Europa cada vez mais forte como serão as relações transatlânticas? Por marco silva Embora a NATO estivesse em causa, a referência à União Europeia (UE) foi transversal a todas as comunicações, numa altura em que os líderes europeus estavam reunidos em Lisboa. Foi evocada a situação de uma Europa cada vez mais forte e discutidas as repercussões dessa evolução na estratégia transatlântica. LUSA A convite do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), especialistas oriundos de vários pontos do globo participaram num workshop de “Pesquisa Avançada” (ver caixa) promovido pela NATO em Lisboa. Durante três dias foi analisado o impacto da instalação de bases militares norte-americanas nos vários continentes. Soldados aguardam junto do AWACS da NATO (Warning and Control System/Sistema Aéreo de Alerta e Controle) equipado com radares para defesa e táctica militares. 32 O desafio europeu Com uma Europa a Vinte e Sete, novos são os desafios que se colocam às relações internacionais, sobretudo no que respeita às estratégias de defesa e de segurança comuns – uma ideia consensual entre os oradores. Para Simon Duke, do European Institute of Public Administration em Maastricht, “Sendo a Europa um actor cada vez mais activo ao nível da política externa, ela terá de definir o seu próprio papel global em conjunto com os EUA e vice-versa […] a Europa vai querer ser encarada não como um parceiro inferior, mas antes de igual para igual”. Apesar das dificuldades em encontrar consensos políticos entre a Europa e os EUA, os oradores reconheceram que existem condições para o desenvolvimento das relações transatlânticas, ainda que esse seja um desafio entregue em parte ao futuro Presidente norte-americano. Entre os convidados encontrava-se o antigo embaixador da Roménia, Sebastian Mitrache. Actualmente ao serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros romeno (Departamento da NATO), falou sobre a política externa romena na última década. Tendo entrado para a UE há um ano atrás, a Roménia não virou contudo as costas à NATO: “Apoiamos tanto a NATO como a UE e acreditamos que ambas as estruturas deveriam cooperar no futuro.” Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 POLÍTICA Na Cimeira de Bucareste, que decorreu em Abril, esta cooperação foi posta à prova; da agenda fazem parte a participação militar da NATO no Afeganistão e a parceria com a Ucrânia. Marco Silva A herança da Guerra Fria Os oradores originários de países de Leste não deixaram de fazer referência à Rússia e aos efeitos da sua política externa na definição da estratégia da NATO e da UE. Numa altura em que a NATO se encontra a desenvolver fortes laços com os países da Europa de Leste, Volodymiyr Dubovyk, da Universidade de Odessa, na Ucrânia, afirmou contudo que “a expansão da NATO não se pode traduzir numa militância contra a Rússia pois, nesse caso, verificar-se-á uma aproximação deste país aos tempos da Guerra Fria”. Da mesma opinião é Gevorg Melikyan, da organização não governamental arménia “Solidariedade dos Estudantes”, que afirma ser necessário “aliviar algumas das posições da NATO em relação à Rússia”. Volodymiyr Dubovyk revelou-se ainda preocupado com o rumo político que o Kremlin está a tomar, sobretudo no domínio da política externa: “A Rússia está a mover-se na direcção errada, no que diz respeito, por exemplo, à consolidação de práticas autoritárias.” Por isso, considera que “Workshops deste tipo são essenciais para chamar a atenção para os problemas em territórios como a Crimeia, a Tchechénia, a Transnístria ou a Geórgia”. O que são os Workshops de Pesquisa Avançada (WPA)? Luís Nuno Rodrigues, co-director do encontro, com o antigo embaixador da Roménia, Sebastian Mitrache, e Carlos Gaspar, presidente do IPRI. Os WPA são encontros de académicos e especialistas, promovidos pela NATO. Têm como objectivo a construção de um diálogo transatlântico em diversos domínios do conhecimento, desde o ambiente às Forças Armadas. Proporcionam aos participantes a hipótese de partilharem conhecimentos de uma maneira informal. Estes workshops não são abertos ao público, fazendo-se a entrada mediante convite. Geralmente, têm a duração média de quatro dias e são financiados na íntegra pelo Programa Científico da NATO para a Paz e para a Segurança. Para mais informações, consultar: http://www.nato. int/science/ “Aqui produziu-se conhecimento” No final dos três dias do workshop, a Paralelo entrevistou Luís Nuno Rodrigues, membro do IPRI e co-director do encontro. Paralelo [P] Agora que o workshop chegou ao fim, que balanço faz da iniciativa? Luís Nuno Rodrigues [LNR] Faço um balanço altamente optimista e favorável. Acho que se deram vários passos significativos em prol de um conhecimento mais profundo desta problemática (a existência de bases militares da NATO espalhadas pelo globo). Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 Durante três dias, aqui produziu-se conhe cimento. [P] Num mundo com novos centros de poder, ainda há espaço para a NATO? [LNR] Penso que sim. Independentemente das alterações que se venham a verificar na sua rede de bases militares, a NATO continuará a ter um papel fundamental (senão mesmo decisivo) na manutenção da segurança e da defesa da Europa, dos próprios países que fazem parte da organização. Para além disso, a NATO tem procurado dar resposta a um conjunto de outras questões fora da área geográfica tradicional da sua acção. Por tudo isto, acredito que temos um papel crucial a desempenhar no futuro. 33 SOCIEDADE Alunos de Harvard estudam arquitectura lisboeta “Re-inventar” Lisboa como Capital Europeia do Atlântico foi o tema da sessão organizada pelo Lisbon Design Studio, iniciativa dos arquitectos Bernardo Vaz Pinto e Levi Dacosta Maia. O objectivo era transmitir aos 12 estudantes de Harvard presentes no auditório da FLAD uma visão global da história da cidade de Lisboa, das suas condições urbanísticas, sociais e económicas. Esta delegação norte-americana, dirigida pelo professor Rodolfo Machado, deslocou ‑se a Portugal integrada num mestrado do Departamento de Urbanismo da Graduate School of Design. O projecto, desenvolvido pelos dois arquitectos formados igualmente em Harvard, conta com o apoio da FLAD e visa promover a cidade de Lisboa num âmbito internacional. A visita de uma semana dos estudantes a Lisboa constitui, por isso, um dos principais momentos deste curso. Têm assim a possibilidade de contactar com a realidade lisboeta, observando directamente o objecto do seu trabalho. As propostas académicas que resultarem desta formação podem constituir, no futuro, soluções urbanísticas para a capital portuguesa. Mário Mesquita, administrador da FLAD, deu as boas-vindas aos estudantes de Harvard e a Rodolfo Machado, abrindo a sessão com um incentivo: “O sucesso do vosso trabalho contribuirá para o sucesso de Lisboa.” Defendeu a ideia de que Lisboa é um “desafio” e uma “mais-valia” para quem a procura estudar e enquadrou a iniciativa na estratégia da Fundação, falando na vontade em “fomentar um olhar crítico, distanciado, mas informado, sobre as questões centrais do desenvolvimento da cidade”. O colóquio prosseguiu com uma breve apresentação do projecto, a cargo do arquitecto Bernardo Vaz Pinto. O responsável pelo Lisbon Design Studio deu a conhecer à audiência a área da cidade sobre a qual o estudo destes estudantes incide, numa extensão que vai de Santa Apolónia à Ponte 25 de Abril. Numa alu- 34 Rui Ochôa Por RUI CATALÃO Vista aérea de Lisboa. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 Fábio Silva SOCIEDADE “Lisboa é um local único” Eugenio Simoneti, 28 anos, do Chile, e Ya Gao, 23, chinesa, alunos de Harvard e participantes do projecto partilharam as suas opiniões sobre Lisboa... Paralelo [P] Agora que já tiveram o primeiro contacto com a cidade, o que mais vos cativou em Lisboa? Eugenio Simoneti [ES] A história, a forte identidade da cidade e do país e as potencialidades de Lisboa enquanto imagem de marca. Ya Gao [YG] Surpreendeu-me pela interessante localização e pela grande ligação com o oceano. [P] Tendo em conta o que tiveram a oportunidade de ouvir e de conhecer, qual é o maior desafio deste projecto? [YG] Lisboa é um local único. Só por isso já é um desafio. [ES] Reinventar a cidade sem perder a identidade. Acho que essa é a tarefa mais árdua. Depois de Lisboa, o que esperam do futuro? [ES] Ir para a Índia trabalhar como arquitecto, pois é um país que precisa muito de gente da nossa área. [YG] Primeiro quero trabalhar em Portugal. Depois espero voltar aos Estados Unidos e mais tarde à China. são ao título deste exercício, Bernardo Vaz Pinto reconheceu a ambição de elevar a cidade de Lisboa a Capital Europeia do Atlântico, uma “visão optimista do desenvolvimento da cidade”. Por outro lado, não poupou elogios ao professor Rodolfo Machado, de quem foi aluno, afirmando que “Lisboa só tem a ganhar com a sua experiência”. Sob a orientação do “mestre”, acredita que os estudantes de Harvard “têm todas as capacidades para perceber e analisar os problemas actuais da cidade, propondo soluções interessantes para o futuro”. O grupo de alunos assistia com um misto de interesse, atenção e descontracção às palavras dos oradores. À primeira vista, sobressaía a pluralidade de nacionalidades: dois chineses, dois taiwaneses, cinco norte-americanos, um libanês, um porto-riquenho e um chileno. Conhecendo um pouco mais estes alunos, tornava-se fácil constatar que a pluralidade se estende igualmente à profissão. Uns provêm da área da arquitectura, outros do design urbanístico, outros ainda do planeamento urbano. O olissipógrafo José Sarmento de Matos propôs olhar para Lisboa numa perspectiva mais histórica, alertando para a necessi dade de “entender o desenvolvimento e crescimento da cidade”. Este especialista em história da capital portuguesa traçoulhe o perfil desde a tomada do castelo aos Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 mouros até à reconstrução após o terramoto de 1755. Aos estudantes, procurou transmitir a noção de que “todos os projectos têm de ser muito bem pensados, tendo em conta a carga histórica” que Lisboa encerra, bem como a importância da relação entre a cidade e o rio. Aproveitando a deixa de José Sarmento de Matos, Ana Tostões – também ela especialista em história da cidade – partiu da explicação do plano de reconstrução da Baixa para dar o seu contributo. Mostrou inúmeras imagens e falou de monumentos e outras construções, desde o Elevador de Santa Justa ao Parque Florestal de Monsanto, da Avenida da Liberdade à Ponte 25 de Abril. Após um pequeno coffee-break e dois dedos de conversa, o advogado José Miguel Júdice e o gestor Rolando Borges Martins assumiram o papel de oradores. O primeiro intitulou-se um “cidadão de Coimbra com ideias sobre Lisboa”, reforçando o argumento de que é preciso “voltar a juntar Lisboa e o rio”. Para José Miguel Júdice, a frente ribeirinha é como o “jardim” de Lisboa, pelo que “não se deve construir em cima dos jardins”. Nesse sentido, vê com bons olhos o trabalho dos 12 estudantes de Harvard, de quem espera resultados que tenham uma aplicação efectiva. A última exposição da tarde coube ao responsável máximo pela Parque Expo, entidade criada pelo Governo para a requalificação da zona do Parque das Nações, iniciada logo após o encerramento da Expo’98. Rolando Borges Martins procurou explicar aos presentes a estratégia urbanística e ambiental que esteve na base da intervenção na zona do Parque das Nações. Partindo deste exemplo, apresentou os novos projectos para a cidade de Lisboa, divididos em três frentes distintas: a Grande Lisboa, mais concretamente a frente ribeirinha da Baixa pombalina; a zona oeste, nos eixos Ajuda-Belém e Pedrouços-Dafundo; e a zona este, com a consolidação do investimento no Parque das Nações. Tal como Rolando Borges Martins assegurou, todas estas intervenções têm como vector fundamental a “multifuncionalidade”, isto é, a articulação de áreas distintas como os espaços verdes, as zonas residenciais e os centros de negócios. Todos os oradores estiveram de acordo quanto à necessidade de apostar na cidade de Lisboa enquanto imagem de marca. Já os estudantes saíram da sessão com a certeza de que se deparam com um desafio complexo, mas que lhes permitirá desenvolver as suas competências. 35 ECONOMIA MIT Portugal na hora do balanço O Programa MIT Portugal, iniciado em Outubro de 2006, começou por se centrar no domínio dos “Sistemas de Engenharia”. O sector energético e a indústria automóvel são as áreas que até agora melhor responderam a este programa. Em finais de Fevereiro, o MIT Portugal estendeu-se à área da gestão. O Programa MIT Portugal, envolvendo o Massachusetts Institute of Technology (MIT), o Governo português, universidades e laboratór ios nacionais e vár ias empresas, lançado em Outubro de 2006 pelo ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Mariano Gago, tem como objectivo demonstrar que um investimento em ciência, tecnologia e educação ao nível mais avançado pode ter um impacto positivo e duradouro na economia portuguesa. “O nosso objectivo é desenvolver a interacção universidade-empresa e criar valor com a investigação desenvolvida”, sublinha Paulo Ferrão, professor do Instituto Superior Técnico e coordenador do Pro grama MIT Portugal. O MIT Portugal desenvolve-se em duas vertentes principais, os sistemas de engenharia e a gestão, sendo que esta última se encontra ainda numa fase inicial, uma vez que o protocolo que permite a obtenção do MBA (Master in Business Administration), ao abrigo da cooperação entre o MIT e as universidades portuguesas, só no passado dia 21 de Fevereiro foi assinado. “Os projectos já em curso inserem-se no domínio dos sistemas de engenharia, uma ideia que significa, simplesmente, pôr a funcionar um conjunto de áreas que até agora funcionavam separadamente, como a engenharia, a economia e as ciências sociais”, afirma o mesmo responsável. Um exemplo concreto deste funcionamento pode encontrar-se ao nível dos graus académicos proporcionados pelo MIT Portugal. “Faculdades de Engenharia 36 MIT Por ISABEL BRAGA Experiência laboratorial MIT. e de Economia juntaram-se para oferecer, no domínio das energias sustentáveis, os dois graus académicos que o MIT Portugal proporciona, ou seja, doutoramentos e mestrados profissionais”, sublinha Paulo Ferrão. As outras áreas de sistemas de engenharia em que o MIT Portugal aposta são a de três a quatro anos, um dos quais passado no MIT. Os três mestrados profissionais criados pelo MIT Portugal destinam-se a quadros de empresas, têm a duração de nove meses, em horário pós-laboral, e envolvem já 130 alunos. A estes cursos candidataram-se alunos portugueses e de países como o Brasil, a Finlândia, a Grécia, a Itália, a Moldávia e a Roménia. Cinquenta bolsas de doutoramento e cerca de 20 para estágios de pósdoutoramento foram atribuídas em instituições portuguesas em colaboração com o MIT. Segundo o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), no trabalho realizado durante o primeiro ano colaboraram cerca de 60 professores do MIT, incluindo um Prémio Nobel e três Institute Professors (distinção atribuída apenas ‘ Os projectos já em curso inserem-se no domínio dos sistemas de engenharia, uma ideia que significa, simplesmente, pôr a funcionar um conjunto de áreas que até agora funcionavam separadamente, como a engenharia, a economia e as ciências sociais. engenharia de concepção e fabrico avançado, os sistemas de bioengenharia e os sistemas de transporte. As quatro áreas proporcionam quatro doutoramentos – “completamente novos”, afirma o coordenador do programa – com a duração ’ a 14 dos mil professores do MIT), e 180 professores e investigadores das sete universidades e onze instituições portuguesas envolvidas no programa. Como exemplos de projectos concretos em desenvolvimento no âmbito do MIT Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 ECONOMIA Rui Ochôa O relatório divulgado pela FCT cita também um grupo de empresas do sector automóvel que se comprometeram, de forma inédita, a duplicar as suas despesas em I&D, em Portugal, até finais de 2009, devendo essas despesas atingir em média seis por cento do total da facturação no período entre 2007 e 2013. Essas empresas são a VW Autoeuropa, a Amorim Industrial Solutions, a Celoplás – Plásticos para Indústria, SA, a Iber Oleff – Componentes em Plástico SA, a Inapal Metal SA, a Inapal Plásticos SA, a Manuel da Conceição Graça LDA., a Plasdan, a Simoldes Plásticos LDA., a Paulo Ferrão, coordenador do Programa MIT Portugal. Portugal, Paulo Ferrão cita aquele que está em curso na Autoeuropa – no domínio da concepção e fabrico dos componentes automóveis –, os que envolvem a GALP, a EFACEC e a EDP – para promover a eficiência energética em centros urbanos actuando na gestão da energia em edifícios, as redes energéticas inteligentes – e o projecto desenvolvido com a AGNI – de criação de pilhas de combustível que vai permitir produzir equipamentos de microgeração, capazes de produzir frio ou calor e de importar ou exportar energia, consoante as necessidades. O relatório elaborado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), instituição do MCTES, sobre os primeiros doze meses de actividade do programa, sublinha que o MIT Portugal tem-se saldado por um “enorme sucesso”, uma vez que tem atraído “excelentes alunos” para os programas de ensino criados e recebido respostas muito positivas do sector empresarial, com destaque para a indústria automóvel e o sector energético. O lançamento, em Portugal, no âmbito deste programa, da área de “Sistemas de Engenharia”, permitiu identificar 30 áreas prioritárias de investigação e desenvolvimento, com importância estratégica quer para Portugal, quer para o MIT. Segundo o relatório de avaliação do programa, no âmbito dos sistemas sustentáveis de energia, o conceito de redes de equipamento de microgeração em edifícios, de Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 ‘ O relatório elaborado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), instituição do MCTES, sobre os primeiros doze meses de actividade do programa, sublinha que o MIT Portugal tem-se saldado por um “enorme sucesso” […] ’ metabolismo urbano e de tecnologia de aproveitamento de energia das ondas são algumas das novas áreas prioritárias. No que se refere à engenharia de concepção e sistemas avançados de produção, destaca-se, entre outras áreas, a aplicação ao automóvel. Dentro dos sistemas de bioengenharia, a nanotecnologia e biomateriais, as prioridades em termos de investigação e desenvolvimento vão para a engenharia celular e de tecidos, e a interacção homem ‑robot, factores humanos e interacções com o cérebro. Finalmente, no que respeita aos sistemas de transportes, as áreas prioritárias são os sistemas inteligentes, o projecto de aeroportos e o transporte ferroviário de alta velocidade. Sunviauto Indústria de Componentes Automóveis TMG-Automotive e o CEIIA (Centro de Excelência e Inovação da Indústria Automóvel). Adicionalmente, a Autoeuropa vai apoiar o desenvolvimento dos programas de formação avançada e disponibilizar, no âmbito do MIT Portugal, estágios profissionalizantes e programas de doutoramento. A FCT apoiará a formação avançada de recursos humanos e a contratação de investigadores doutorados pelo CEIIA, os quais desenvolverão actividades dentro do enquadramento científico dos grupos académicos envolvidos no Programa MIT Portugal. Uma resposta muito positiva surgiu também do sector energético, tendo aderido ao MIT Portugal, a Agni-Inc, a Deimos Engenharia, SA, a EDP, SA, a EDP Inovação, a EFACEC, SA, a GALP Energia, SA, a MARTIFER, SA, a REN – Redes Energéticas Nacionais, SA. Garantir o ingresso de mais de 20 quadros superiores por ano nos cursos de programação avançada promovidos pelo Programa MIT Portugal é um compromisso das empresas afiliadas nas áreas da engenharia de concepção e fabrico avançado. A acrescentar a isto há ainda o compromisso das empresas também ligadas ao MIT Portugal, que se comprometem a garantir o ingresso de mais de 20 quadros superiores por cada ano nos cursos de formação avançada promovidos pelo programa. A Agência Ciência Viva também se encontra vinculada a este programa, assegurando a interacção deste com as camadas mais jovens. “Sempre que vem a Portugal um professor do MIT, levamo-lo a fazer uma palestra em escolas secundárias de todo o país”, lembra ainda Paulo Ferrão. 37 MIT ECONOMIA Sede do MIT em Cambridge, Massachusetts. FLAD apoia MIT Portugal A FLAD assinou um protocolo com o MIT Portugal, mediante o qual se compromete a contribuir com 500 mil dólares para este programa, durante os próximos quatro anos. Rui Machete, presidente da FLAD, considera o MIT Portugal “um salto em frente” no chamado Plano Tecnológico do Governo português. “Já tínhamos uma colaboração antiga com o MIT, mas nada que atingisse esta dimensão. Agora, além de apoiarmos financeiramente o MIT Portugal com uma soma importante, procuramos apostar em iniciativas convergentes e complementares, que o Estado tinha dificuldade em realizar, 38 ou promover acções que possam conferir maior flexibilidade ao programa”, sublinhou. Zagalo e Melo, director da FLAD para a área da educação, ciência, tecnologia e inovação, enumerou as áreas a que a FLAD irá dar especial atenção no apoio ao MIT Portugal: os sistemas de energia sustentável, o empreendedorismo – visando fomentar uma atitude proactiva na criação de negócios –, o transporte e logística, especialmente na componente marítima, e a inovação em ciência e tecnologia. O programa das iniciativas a concretizar durante o ano corrente e parte de 2009 no âmbito do acordo entre a FLAD e o MIT Portu gal estará definido “até finais de Abril”, afirmou Zagalo e Melo. No entanto, a FLAD já se comprometeu a apoiar um projecto concreto, a Conferência MIT Europa 2008, que, a 26 e 27 de Março deste ano, reuniu em Lisboa a rede dos antigos alunos e colaboradores do programa, espalhados por toda a Europa. Neste encontro participaram especialistas norte-americanos nas áreas da energia, do ambiente, da engenharia civil e da bioquímica, aeronáutica e astronáutica, ciência dos materiais, gestão e transportes, com directores de grandes empresas, na área dos plásticos, da indústria farmacêutica e da informática. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 ECONOMIA Conhecer, inovar, experimentar o COHITEC O que aconteceria se, numa mesma sala, estivessem reunidos gestores e cientistas? O que aconteceria se ambos partilhassem um mesmo projecto de trabalho? A resposta é dada pelo COHITEC, um programa que visa a criação de empresas de base tecnológica. Por MARCO SILVA O conceito é simples: juntar o faro para o negócio dos estudantes de MBA à investigação de ponta desenvolvida pelos cientistas. Os resultados são notórios: projectos de negócio de forte componente tecnológica emergem. Em traços gerais, assim se define o COHITEC – um programa de valorização do conhecimento promovido pela COTEC (Associação Empresarial para a Inovação). Numa altura em que o “Choque Tecnológico” está na ordem do dia, programas como o COHITEC asseguram aos gestores e investigadores uma oportunidade de se associarem na criação de um plano de negócio. “Quando foi projectado, em 2003, o COHITEC era uma iniciativa pioneira. Não havia ninguém, na altura, que fizesse a ponte entre cientistas e gestores”, afirma Pedro Vilarinho, um dos responsáveis pelo programa. Seguindo o modelo proposto pelo centro HITEC (parte da North Carolina State University), criou-se então este programa com a ajuda de alguns parceiros: a FLAD, a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (FEUNL) e a Escola de Gestão do Porto (EGP). De ambas as instituições de ensino saem os estudantes de MBA, prontos para colaborar com os cientistas no desenvolvimento de planos de negócio. Do projecto para o mercado O COHITEC está estruturado em duas fases distintas. Num primeiro momento, são admitidos cerca de 80 participantes (50 investigadores e 30 estudantes de MBA). Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 Nesta fase do programa, todos os participantes são divididos por equipas de trabalho e submetidos a acções de formação, que decorrem tanto no Porto (EGP) como em Lisboa (FEUNL). Nelas, os formandos adquirem as competências necessárias para o desen volvimento dos respectivos planos de negócio. Desde a fundação do COHITEC, já aconteceram seis edições destas acções de formação. Concluída esta fase, são seleccionados cerca de 10 projectos de negócio, que passam por um conjunto de filtros, antes de serem apresentados aos investidores. Caso algum dos projectos seja considerado viável, é-lhe dado então acesso à segunda fase do programa: a altura em que é criada uma “empresa virtual” (financiada pelo IAPMEI) e se preparam os projectos de negócio para apresentação aos investidores. Embora o COHITEC só tenha entrado na segunda fase uma vez desde a sua fundação (em 2005), Pedro Vilarinho não se revela preocupado: “A nossa actividade visa sobretudo a globalização do conhecimento. O mais importante não é propriamente o número de empresas criadas, mas antes a valorização do conhecimento.” Apostar na inovação Ano após ano, o número de candidaturas tem excedido o número de vagas – tendência que demonstra, segundo Pedro Vilarinho, o sucesso do COHITEC. “Os custos de um programa como este são elevados, já que os participantes não ‘ Numa altura em que o “Choque Tecnológico” está na ordem do dia, programas como o COHITEC asseguram aos gestores e investigadores uma oportunidade de se associarem na criação de um plano de negócio. ’ pagam nada. Mas enquanto houver investigadores dispostos a participar, o programa vai continuar”, garante. A este nível, Pedro Vilarinho aponta a FLAD como um parceiro fundamental: “Estão connosco desde que começámos. São o nosso primeiro parceiro.” Assegurando o financiamento do programa, a FLAD tem garantido a continuidade da iniciativa – um investimento que, de acordo com o secretário-geral da FLAD, Fernando Durão, se justifica: “A FLAD tem desenvolvido uma forte aposta na inovação e o apoio ao COHITEC faz parte dessa aposta.” Abrangendo, de ano para ano, domínios comerciais cada vez mais diversos (desde a alimentação ao domínio do software), o programa tem “andado um passo à fren- 39 ECONOMIA te na criação de conceitos de negócio”, afirma Fernando Durão. Da mesma opinião é Pedro Vilarinho, que considera muitos dos projectos inseridos no COHITEC “tão bons como os da North Carolina University”, onde o modelo do programa surgiu. Talvez por essa razão o sucesso do programa tenha sido reconhecido em 2006 pela Universidade de Stanford através do prémio Price Foundation Innovative Entrepreneurship Educators Award. Tendo sido atribuído pela primeira vez a um programa fora dos Estados Unidos, este prémio representa para Pedro Vilarinho “aquilo que qualquer pessoa que anda nesta área gostaria de receber: é o maior prémio de reconhecimento a nível mundial”. Um sucesso em tons de verde Embora só tenha entrado uma vez na segunda fase, o COHITEC lançou já as bases de uma empresa: a Consumo em Verde – Biotecnologia das Plantas S.A. (ver entrevista a Ricardo Boavida Ferreira, p. 41). Tendo como objectivo a produção de um Novos projectos Rui ochôa Com os olhos postos em novos projectos empresariais, a COTEC deu já início a mais uma edição deste programa. Durante o mês de Dezembro de 2007, decorreram no Porto e em Lisboa sessões de apresentação do COHITEC com novas equipas de investigadores e gestores. Prevê-se agora que no início de Junho sejam apresentados os projectos de negócio. A partir daí, a Comissão Executiva da COTEC decidirá quais os projectos viáveis para propor aos investidores. Uma das grandes novidades este ano tem que ver com a estreia de uma instituição do ensino politécnico no programa – o Instituto Superior de Engenharia do Porto. fungicida bioquímico, esta empresa foi a primeira, no quadro do programa, a encontrar investidores privados dispostos a financiar o projecto. Associando a investigação desenvolvida em torno de uma proteína (base do fungicida) ao contributo de um conjunto de estudantes de MBA da Universidade Nova de Lisboa, o COHITEC proporcionou condições para que o projecto fosse apresentado a um consórcio de empresas portuguesas, que decidiu investir no projecto quase 12,5 milhões de euros. Dentro em breve, um outro projecto deverá entrar na segunda fase. É tutelado pela Universidade do Minho e propõe uma autêntica revolução ao nível dos materiais de construção: a substituição do aço utilizado nas construções por polímeros. De ano para ano, novos investigadores se juntam ao programa, na esperança de encontrarem nele uma porta para o mercado, a chave para a industrialização. Casos como o da empresa Consumo em Verde demonstram que é possível a criação e desenvolvimento de empresas de base tecnológica. Porque, afinal, como afirma Pedro Vilarinho: “O conhecimento tem de ser transferido para a sociedade.” Entrega do prémio COTEC 2007. Eduardo Marçal Grilo (administrador da Fundação Calouste Gulbenkian), José Carlos Marques dos Santos (reitor da Universidade do Porto), Mariano Gago (ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior), Rui Machete (presidente da FLAD), António Santos Silva (presidente do BPI) e José Carlos Pinto (Optimus). 40 Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 Ricardo Boavida Ferreira Marco Silva ECONOMIA “A COTEC ajudou-nos a escolher os investidores e transmitiu-lhes confiança.” A Consumo em Verde – Biotecnologia das Plantas S.A. (CEV) foi a primeira empresa a emergir graças ao apoio do COHITEC. Para conhecer melhor o projecto de negócio que deu origem a esta empresa, a Paralelo falou com Ricardo Boavida Ferreira, um dos investigadores que a lidera. É com ambição que fala do futuro, que pode muito bem passar pela distribuição à escala global de um poderoso fungicida descoberto em Portugal. É a partir da planta do tremoço que a CEV – Biotecnologia das Plantas extrai a proteína que age como fungicida. cotec tura não só como fungicida, mas também como bioestimulante. [P] Quem estava envolvido no projecto na altura? [RBF] Eu e o professor Artur [Paralelo] Em que circunstâncias surge o projecto Ricardo Teixeira liderávamos na altura o grupo de trabalho. Mais tarde, quando descobrimos a actividade fungicida, juntou-se a nós a professora Sara Monteiro. Finalmente, em 2005, pudemos contar com a participação de um colega que introduziu no grupo uma componente de empreendedorismo: o professor Virgílio Loureiro, com quem já tínhamos anteriormente colaborado. [Ricardo Boavida Ferreira] Tudo começou há [P] De que forma é que o COHITEC contribuiu da CEV? 16 anos, com a descoberta acidental de uma proteína. Durante 10 anos, estudámos essa proteína no Instituto Superior de Agronomia e no Instituto de Tecnologia Química e Biológica. Durante esse período, fomos levados a deduzir que ela teria propriedades antifúngicas surpreendentes. Ao contrário da maioria das proteínas, esta teria uma resistência extrema a agentes físicos, podendo ser utilizada na agriculParalelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 para o sucesso do projecto? [RBF] Até 2004 publicámos artigos científicos, onde demos a conhecer esta proteína. Mas, a certa altura, quando nos apercebemos do seu potencial comercial, parámos de escrever e contactámos algumas multinacionais. Como estávamos sozinhos, esse contacto não deu quaisquer resultados. Meses depois, entrámos no COHITEC, que se revelou uma ajuda ines- timável para ultrapassar o fosso entre a investigação e o desenvolvimento comercial. Na segunda fase do programa, a COTEC ajudou-nos a escolher os investidores e transmitiu-lhes confiança. Isso foi muito gratificante para nós. [P] Encontrar um investidor foi um processo fácil? [RBF] Desde o início, tivemos a noção de que este projecto poderia chegar a valer uma enormidade. Depois de apresentarmos o nosso projecto aos investidores, ficámos com sete ou oito investidores dos quais escolhemos os dois melhores. Mas tivemos muita dificuldade em tomar uma decisão, porque havia propostas excelentes – o que me surpreendeu pela positiva. Às vezes, achava que nós tínhamos mais dúvidas sobre o produto do que os próprios investidores. [P] Quais são os planos para o futuro da CEV? [RBF] Tentar pôr o produto no mercado o mais depressa possível. Agora que os desafios de laboratório já foram ultra passados, o grande desafio é mesmo o desenvolvimento industrial. Isto, é claro, depois de resolvermos as formalidades da patente e da homologação. 41 Rui Ochôa ECONOMIA As universidades e a nova sociedade Por Teodora Cardoso* Em 1989, um artigo da Harper’s Magazine1 resumia as ideias expostas por Robert Reich (que viria a ser responsável pelo Trabalho na Administração Clinton) aos seus alunos da Kennedy School of Government com respeito ao futuro do trabalho. Afirmava ele: “À medida que a economia americana se funde com o resto do mundo, quem se dedicar a tarefas relativamente pouco qualificadas, que possam ser executadas com menores custos noutros locais, não pode esperar manter-se próspero por muito tempo. [...] Muitas tarefas de rotina vão desaparecer, tanto na indústria como nos serviços. As que restam serão de dois tipos: serviços complexos, parte dos quais será vendida ao resto do mundo em troca de importações, e serviços pessoais que não podem ser fornecidos à distância. “Os serviços complexos (como a engenharia, a finança, o direito, a informática, etc.) implicam trabalhar com dados e conceitos abstractos. Mesmo na indústria, são as tarefas executivas e de gestão que vão desenvolver-se mais rapidamente e também elas envolvem esse tipo de competências. [...] O equipamento intelectual necessário às tarefas do futuro é a capacidade de definir problemas, de assimilar rapidamente os dados relevantes, de conceptualizar e reorganizar a informação, de extrair conclusões, tanto dedutiva como intuitivamente, de fazer as perguntas difíceis, de discutir os resultados com os colegas, de colaborar na busca de soluções e de convencer outros.” Por seu turno, Peter Drucker, num dos seus últimos textos, escrito quando o autor já ultrapassara os 90 anos, mas não tinha perdido nada da sua excepcional capacidade de análise da sociedade que o rodeava2, afirmava em 2001: “A próxima sociedade será a sociedade do conhe cimento. O conhecimento será o seu recurso-chave e os trabalhadores do 42 conhecimento serão o grupo dominante da sua força de trabalho. As suas três características principais serão: “A ausência de fronteiras, porque o conhecimento se dissemina ainda mais facilmente que o dinheiro. “A capacidade de ascensão social, promovida por sistemas de educação formal acessíveis a todos. “O potencial de falhar, tal como de ser bem-sucedido. Todos podem adquirir os ‘meios de produção’, isto é, os conhecimentos necessários a uma profissão, mas nem todos sairão vencedores.” E acrescenta: “A sociedade do conhecimento é a primeira sociedade humana em que o potencial de ascensão social é potencialmente ilimitado. O conhecimento difere de todos os outros meios de produção pelo facto de não poder ser herdado ou doado. Tem de ser adquirido de novo por cada indivíduo e todos partem da mesma total ignorância.” nhada numa profunda reforma do ensino superior, que vai desde o Processo de Bolonha, ao financiamento das universidades e à articulação com a investigação. O reforço do financiamento é um dos pontos-chave da questão, bem caracterizado pelo facto de a despesa total (pública e privada) com o ensino superior a atingir apenas 1,3 por cento do PIB na UE25 contra 3,3 por cento nos Estados Unidos, o que se traduz num gasto por aluno inferior a 10 mil euros na Europa contra mais de 35 mil euros nos Estados Unidos3. A agravar o problema – e também a dificultar a solução – está a má qualidade da governança das instituições na Europa, a sua insuficiente autonomia e os incentivos perversos a que estão sujeitas. Todos estes factores estão presentes em Portugal, em geral em maior grau que na média europeia. Questões como a ausência de articulação com o ensino secundário, a dispersão de cursos com um pequeno número de candidatos, a desadequação dos Gasto por aluno inferior a 10 mil euros apoios financeiros aos estudantes, os na Europa contra mais de 35 mil euros elevados custos nos Estados Unidos. administrativos (por vezes resultantes de imposições regulamentares), a “conEste conjunto de ideias tem estado, por sanguinidade” dos corpos docentes, todo o mundo, na base de muito do deba- recrutados entre os diplomados da própria te sobre os temas da educação e das polí- escola, ou a progressão nas carreiras, ticas do sector, em particular no que determinada pela existência de vagas e não respeita ao ensino superior. Contudo, ao pelo desempenho, estão entre os factores fim de duas décadas, verificamos que a críticos apontados pela OCDE na sua avamaior parte das políticas foram ineficazes liação recente do ensino superior em e, nalguns casos, agravaram mesmo os Portugal4. problemas, em especial no que respeita à Quanto ao financiamento, essa análise ligação com a investigação científica e a defende que o seu aumento deve ser preinovação. Toda a Europa, onde o problema cedido de uma revisão do actual sistema se tornou evidente, está, por isso, empe- de distribuição de fundos baseado em ‘ ’ Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 ECONOMIA ‘ Factores críticos apontados pela OCDE na sua avaliação recente do ensino superior em Portugal. ’ to e num sistema de indicadores que permita uma avaliação eficaz do desempenho, reduzindo simultaneamente a carga burocrática que pesa sobre as instituições, com um muito reduzido proveito em matéria de acompanhamento efectivo. Não pode esperar-se que a adopção deste tipo de medidas, já parcialmente consagrada em lei, coloque imediatamente Portugal em pé de igualdade com os Estados Unidos nesta matéria tão essencial para o desenvolvimento da economia 1 The Future of Work, Abril de 1989. “Survey: The Near Future”, The Economist, 1 de Novembro de 2001. 3 Ver, por exemplo, “Why reform Europe’s universities?”, Brugel Policy Brief, n.º 4, 2007. 4 Tertiary Education in Portugal, 2007. 2 * Economista, administradora do Banco de Portugal e presidente do Conselho Directivo da FLAD LUSA / EPA DAVIS TURNER fórmulas que se revelam desincentivadoras das instituições mais dinâmicas, substituindo-o por contratos entre as instituições e o Governo, baseados em planos estratégicos e em objectivos negociados e sujeitos a acompanhamento quanto aos indicadores de desempenho. O sistema deve igualmente incentivar a captação de fundos privados e a articulação com a investigação científica, favorecendo a autonomia de gestão, com base na definição de estratégias de investimen- e da sociedade. Elas constituem, no entanto, um passo indispensável para a necessária melhoria de resultados e para a capacidade de simultaneamente atrair investimento privado e incentivar a inovação, o binómio em que assenta o bom desempenho americano. Cerimónia de formatura enchendo de estudantes o Care Stadium em Blacksburg, Virginia. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 43 CULTURA ASAS SOBRE A AMÉRICA Um encontro transatlântico entre irmãos em universo Portugal Infinito, onze de Junho de mil novecentos e quinze... Hé-lá-á-á-á-á-á-á! Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, dirige-se em saudação a Walt Whitman, seu “irmão em Universo”. Por FILIPA MELO FOTOGRAFIAS RUI OCHÔA Enquanto tira a gravata e o colarinho, porque “não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço”, garante-lhe: Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te, E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias, Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente. Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste, Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer, Quer pela Rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a Rua do Ouro, E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas, De mãos dadas,Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma. Os mais de duzentos versos de Saudação a Walt Whitman são talvez o testemunho mais efusivo de ligação decisiva de um autor português a um autor norte-americano. É simbólico também o facto de Fernando Pessoa ter nascido poucos anos antes (1888) da morte de Whitman (1892), as duas obras unindo assim dois séculos de criação poética dos dois lados do Atlântico. E é pela carga simbólica da união criativa entre a dupla de poetas que esta foi escolhida como matriz tutelar para o ciclo “Asas sobre a América – Wings over America”, a decorrer na sede da FLAD até Julho próximo. A ideia inicial foi de Mário Mesquita, administrador da Fundação que tem a seu 44 cargo a área cultural, abrangendo as huma- Zink, tradutor de obras de Saul Bellow, ou nidades, as ciências sociais e as artes. “Asas para a poeta Ana Luísa Amaral, doutorada sobre a América – Wings over America” foi em Literatura Norte-Americana com uma pensado primeiro como proposta de refle- tese sobre Emily Dickinson. Noutros casos, xão sobre as possíveis pontes entre a foi feita uma sugestão inicial, que depois literatura portuguesa e a literatura norte correspondeu, ou não, ao conjunto de preferências de cada autor português, pro ‑americana, o modo como se manifestaram no passado e se manifestam no presente. curando ajustar-se a opção final dentro A abordagem queria-se não exaustiva, mas dessas preferências a um conjunto coerente antes particular e criativa, e daí o objectivo de referências a autores que representassem de interpelar autores portugueses para que uma parte da melhor literatura norte-amedissertassem sobre os laços afectivos, inte- ricana, desde o século XIX até à actualidade: lectuais, formativos e mesmo técnicos, que Ezra Pound, Emily Dickinson, William os uniram e unem ao seu autor (ou um Faulkner, Carson McCullers, Flannery dos seus autores) norte-americano e obra O’Connor, Saul Bellow e Philip Roth. ou conjunto de obra de eleição e possíveis “Asas sobre a América – Wings over influências destes sobre as suas próprias America” serve também uma abordagem criações. Gonçalo M. Tavares, Manuel António Pina, O ciclo afirma-se como incentivo Inês Pedrosa, Lídia Jorge, Pedro Mexia, ao debate criativo sobre o que poderá Ana Luísa Amaral e Rui unir a ficção e a poesia portuguesas Zink, os autores convidados, representam contemporâneas a um legado várias gerações e várias da literatura norte-americana. expressões distintas da prosa e da poesia contemporâneas, e relativamente a todos é manifesto o reconhecimento da qualidade à edição e ao ensino da literatura nortedas suas obras. O convite teve em conta -americana em Portugal não só através da uma provável experiência estética de liga- realização de dois debates sobre o tema e ção à literatura norte-americana. Em alguns do convite a várias editoras para a exposicasos, foi endereçado a partir do conheci- ção e venda das suas traduções em paralelo mento prévio da escolha mais provável de a cada sessão do ciclo, como também atraum determinado autor norte-americano, vés de parcerias entre a Fundação e várias como, por exemplo, para o ficcionista Rui universidades para a deslocação de estu- ‘ ’ Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 CULTURA > Philip Roth pinta um quadro geral, mas não esquece os pormenores. Os grandes e os pequenos movimentos da mão. Como falar do organismo e ainda da História, eis duas das tarefas de Roth. Ligadas de modo improvável. GONÇALO M. TAVARES > Ezra Pound encontra-se de forma manifesta em alguns poemas que escrevi, mas tenho razões para suspeitar de que está presente em muitos mais sem ser visível em parte nenhuma deles. MANUEL ANTÓNIO PINA > Com The Heart is a Lonely Hunter, de Eduardo Lourenço abriu o ciclo acompanhado por Filipa Melo (escritora), Rui Machete e Abílio Hernandez (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra). dantes com o objectivo de assistirem às sessões. Vários docentes dessas universidades são também convidados a intervir nas sessões do ciclo, nomeadamente participando na condução do debate com o público. A relação entre Fernando Pessoa e Walt Whitman foi analisada por Richard Zenith, tradutor e ensaísta norte-americano e importante investigador pessoano há anos a residir em Portugal. “Asas sobre a América – Wings over America” acompanha um esforço recente de edição em língua portuguesa de inúmeras obras fundamentais da literatura norte-americana. O ciclo afirma-se como incentivo ao debate criativo sobre o que poderá unir a ficção e a poesia portuguesas contemporâneas a um legado da literatura norte-americana. Serve também de incitação para um entendimento daquilo que, na sessão inaugural, o filósofo e ensaísta Eduardo Lourenço definiu como “um continente futurante”, referindo-se sobretudo ao contributo dos Estados Unidos para uma mitologia planetária. Ao longo de cinco meses, a América, como “uma espécie de realidade objectiva incontornável”, surgirá reflectida no olhar subjectivo de criadores que, do lado de cá do Atlântico, colheram na melhor literatura norte-americana noções, inquietações, memórias e fascínios vários. Através do dinamismo desses trânsitos literários, saúdam-se possíveis irmandades, como a que levou o engenheiro e poeta sensacionista Álvaro de Campos a meter esporas e a convidar Whitman, “lá do outro mundo”, para uma dança furiosa, exclamando: “Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!” Carson McCullers, descobri que a adolescência é eterna e que a poesia pode nascer da limpidez da prosa. INÊS PEDROSA > Walt Whitman, autor de Canto de Mim Mesmo, ajudou Pessoa a libertar-se de si próprio e para si próprio. RICHARD ZENITH > Admiro profundamente a obra de William Faulkner. Não conheço outro escritor que melhor tenha entrado no coração profundo dos homens. Ainda por cima, relê-lo é surpreender a própria escrita na fonte da modernidade. LÍDIA JORGE > O mais fascinante em Flannery O’Connor é talvez a ilustração ao mesmo tempo cruel e compassiva dos caminhos ínvios para a salvação. PEDRO MEXIA > “Habito a Possibilidade, uma Casa mais bela do que a Prosa”, declarou a maior poeta de língua inglesa. Emily Dickinson escreve uma poesia em que se propõe dizer toda a verdade, mas de forma oblíqua, e assim antecipa o radical gesto moderno do fingimento poético. “O meu ofício é a Circunferência”, disse ainda – que melhor cartão de visita? ANA LUÍSA AMARAL > Saul Bellow começa por ser uma voz, uma grande voz, que conversa comigo. E me faz aceitar um bocadinho mais o humano terno e ridículo e vivo que há em mim. (Nem sempre é fácil.) RUI ZINK Sessão do ciclo “Asas sobre a América” no auditório da FLAD. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 45 CULTURA A Pietá impiedosa Querendo representar uma “espécie de cowboy armado” que “impõe a democracia” no mundo inteiro, os Estados Unidos criam a figura do “anticowboy”, defende Eduardo Lourenço. Assim, o “anjo” bélico do século XXI continua o imaginário de um “Continente violado na origem”, no qual o exercício da liberdade incluía o direito à violência. Por SUSANA NEVES FOTOGRAFIAS RUI OCHÔA Reflectir sobre os Estados Unidos a partir do cinema, tema da conferência de Eduardo Lourenço (ver caixa, p. 48) que abriu o ciclo “Asas sobre a América – Wings over America”, na Fundação Luso ‑Americana, implica inevitavelmente analisar o western, género cinematográfico paradigma da cultura americana. Nesta entrevista inédita, onde se procura descobrir se a genealogia do cowboy é europeia ou por que razão a Humanidade ainda tem sede de mitos, revela-se em Eduardo Lourenço em entrevista. Um pensador capaz de “perscrutar a vocação das Nações”, disse Rui Machete. 46 Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 CULTURA simultâneo a capacidade ensaística e a independência intelectual do autor de, entre outras obras, A Morte de Colombo – Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito (Gradiva, 2005). Como bem definiu Rui Chancerelle de Machete, presidente da FLAD, no dia da sessão inaugural, Eduardo Lourenço não é só “por excelência um ensaísta na literatura e na história”, mas um pensador capaz de “perscrutar a vocação das Nações”. André Bazin diz que “o western nasceu do encontro de uma mitologia com um meio de expressão”. Que mitologia é esta que o cinema americano, e em particular o género western, recriou e divulgou? O western veicula a posse virtual ou real de um espaço que não pertencia aos americanos. Lembra a epopeia da sua conquista e colonização, o momento em que se formou uma identidade. Quando os cowboys, heróis desta conquista, começam a desaparecer é quando começam a ser interessantes como objectos de ficção. Porque as histórias do western situam-se sempre no passado, manifestam uma nostalgia por uma época de ouro, uma nostalgia dos grandes espaços, do contacto com a terra, a América fundamental. Podemos considerar que os westerns legitima ram a usurpação de um território e a violência contra um ‘outro’ que não foi reconhecido como ‘outro’ e como igual? Sem dúvida. Numa primeira fase, de total boa consciência, o western oscila entre o divertimento, com conotação épica, e uma maneira de tornar heróico aquilo que foi uma usurpação, e uma colonização, por vezes, particularmente violenta; que, de resto, não se exerceu apenas contra os índios, mas também contra o México, a quem foi roubada uma parte imensa do território, a que posteriormente se veio a chamar Texas, fonte de grande riqueza devido à existência de petróleo. No livro La Grande Aventure du Western, de Jean-Louis Rieupeyrout [Les Éditions du Cerf, Paris, 1971], encontrei um anúncio de 1860, que recrutava cavaleiros para o Pony Express. Neste anúncio, divulgado por um periódico de São Francisco, pedia-se um cavaleiro jovem, que não tivesse mais de 18 anos, fosse excelente cavaleiro e estivesse disposto a enfrentar o risco de morte diária – preferiam órfãos. Fiquei a pensar no perfil do cowboy e em qual seria a sua genealogia. Será que podemos encontrar um equivalente ao cowboy, por exemplo, num cruzado? Não creio que seja essa a genealogia. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 O primeiro número da Paralelo sob o olhar atento de Eduardo Lourenço. O mito do cowboy não é de origem inglesa mas mais de origem hispânica, enraíza-se na longínqua ascendência do cavaleiro da Ibéria. O que é curioso é que o cowboy, em princípio, não tem a conotação aristocrática ou nobre que representa o cavaleiro na Europa, é pura e simplesmente um elemento da cultura das grandes fazendas, a sua extracção é muito mais humilde. O western é que elevou, pouco a pouco, esses personagens a heróis, sobretudo os positivos, os que fazem respeitar a lei e a justiça num mundo onde o poder central não tem grande eficácia. Eram simples vaqueiros, assalariados, os cowboys eram uma Pietá, e talvez até por isso o género foi imediatamente muito popular. Acha que os Estados Unidos já se libertaram dos seus westerns ou a sociedade norte-americana vive refém desta cultura popular? Não, creio é que a natureza épica, de acção contínua, veiculada pelo cinema, impregna todo o sistema social americano. Os americanos não são actores de uma cultura ou civilização adquiridas, têm sempre de impor a sua lei com mais ou menos violência, o que era natural na primeira fase de conquista do Oeste. Ainda hoje, são uma nação armada, sem inimigo à vista. Na Idade Média, só o cavaleiro tinha direito de andar armado, mas para o americano é legal e honroso, é um direito. Esta atitude guerreira impregnou todo o inconsciente da cultura americana; digamos que os Estados Unidos, no seu conjunto, e a cultura americana em particular, são uma espécie de cowboy armado. Michael Moore realizou Tiros em Colombine (“Bowling for Colombine”, 2002), sobre o mas sacre na escola secundária de Colombine. Recentemente, houve mais um massacre no meio universitário americano. Que tipo de herói/cowboy é este que mata sem ter inimigo? É preciso uma sociologia complexa para explicar este tipo de fenómenos mas eu penso que desde o início toda a América, não só a do Norte, nasceu de um acto de violência, é como se um continente tivesse sido violado na Origem. É preciso não esquecer que essa América são sempre duas Américas, a que existia há milhares de anos, que desconhecia a existência de um outro mundo, e a que vem da Europa, ou seja, literalmente de outro planeta, e destrói a primeira. Os vestígios dessa violência ainda estão latentes. A verdade é que essa violência quase natural e estrutural das Américas se repercute a nível simbólico em todos os campos: na literatura, na arte, em tudo. A nossa necessidade de construir mitos fez-me pensar em Marcel Proust. Na obra Em Busca do Tempo Perdido, defende que a ascensão ao conhecimento significa também a destruição dos mitos, ou seja, a passagem da “Idade dos Nomes à Idade das Palavras”. Ora nós, e quan do digo “nós” refiro-me à cultura toda, a Humanidade, continuamos agarrados aos mitos, venham eles de onde vierem. O cinema é óptimo, é uma máquina visual, auditiva e sensorial for tíssima. Se tivermos em conta as ideias de Proust significa que não crescemos, não atingimos ainda a maturidade? Continuamos na Idade dos Nomes, dos Mitos e não chegámos ainda à das Palavras? 47 CULTURA Os mitos não são uma criação nem uma leitura da realidade intrinsecamente falsa ou aparente, mas uma leitura da realidade em imagem. A mitologia é a primeira expressão da verdade e nunca desaparece. Depois pode haver outras versões que se desmistificam sucessivamente, mas o enraizamento do nosso imaginário é imediatamente mítico. Fernando Pessoa dizia que tinha o sentimento de não existir mas tinha conseguido transformar-se num mito. Nenhuma cultura em tão pouco tempo criou uma mitologia tão eficaz e tão partilhada pelo mundo inteiro como o cinema americano. Por que é que o western teve tanta eficácia, tanto impacto, sobretudo nos primeiros tempos? Porque de uma forma simples mostrou o confronto entre o Bem e Mal. Na fase mais inocente e maniqueísta, o cowboy é uma espécie de Deus ex-machina, restaura a ordem e a paz quando a comunidade já não sabe o que há-de fazer perante os crimes, arbitrariedades e injustiças que se cometem. Quando a paz social foi corroída pelo medo, pelo pânico e pela cobardia. O Comboio Apitou Três Vezes (“High Noon”, 1952, de Fred Zinnemann), com Gary Cooper, é um filme paradigmático e uma metáfora do mundo dominado pelo medo, temática muito forte da sociedade americana, onde se teme voltar ao caos. “A América é a vida como cinema” Embora o professor Eduardo Lourenço tenha começado por anunciar que a sua presença na abertura do ciclo de conferências “Asas sobre a América – Wings over America" era “um erro de casting”, uma vez que não é “americanista” nem expert em cinema americano, a sua intervenção constituiu um momento ensaístico decisivo para o entendimento dos Estados Unidos como nação reinventada por Hollywood, fábrica de mitos de carácter universal e “futurante”. No seu habitual tom pausado, falando para um auditório a transbordar de visitantes, o autor de O Esplendor do Caos (Gradiva, 2007) explicou que os Estados Unidos não só forjaram a sua identidade a partir do cinema como através da Sétima Arte conseguiram suscitar nos outros povos o desejo de ser americano, disseminando desta forma os seus sonhos, valores e padrões de comportamento. Máquina de colonização simbólica prodigiosa, o cinema americano foi também um instrumento de reinvenção e “comentário” da história americana, à medida que ela ia acontecendo. O Nascimento de Uma Nação ("The Birth of a Nation"), de D. W. Grifffith, 1915, E Tudo O Vento Levou ("Gone with the Wind"), de Victor Fleming, 1939, ou ainda As Vinhas da Ira ("The Grapes of Wrath"), de John Ford, 1940, seriam para Eduardo Lourenço alguns dos filmes paradigmáticos da cinematografia americana enquanto lugar de História, os dois primeiros por abordarem o conflito Norte-Sul que dividiu os Estados Unidos entre abolicionistas e defensores da escravatura, o terceiro por ser uma referência à Grande Depressão de 1929. “Espaço mitológico por excelência”, sobre tudo a partir dos anos de 1940 e 1950, o cinema americano soube “reciclar” todas as temáticas e mitologias ocidentais (Cleópatra, 48 João Lopes e Almeida Faria (na foto da direita para a esquerda) no auditório a transbordar para ouvir Eduardo Lourenço. Joseph L. Mankiewicz, 1963) e não ocidentais, impondo-se também pela invenção no âmbito dos seus vários géneros e a originalidade dos seus personagens que ascenderam ao estatuto de ícones universais. Se Tarzan se tornou um símbolo da “heroicidade medida não pela relação do Homem com os outros homens mas com a Natureza”, “sem precedentes no imaginário europeu”, Charlot conquistaria uma universalidade equivalente a D. Quixote, enquanto Fred Astaire, herói aéreo, capaz de dançar até no tecto (You Are All the World to Me, 1951), é um dos mais carismáticos representantes da comédia musical, género cinematográfico que foi de “uma novidade total” na história do cinema, porventura, também um dos mais “abstractos”. “Duplo do mundo” mas com uma “capaci dade de emocionar superior à vida”, o cinema, e em particular o americano, tornou-se em si mesmo um Continente onde são possíveis todas as viagens no tempo. Quer seja ao passado, sob a forma nostálgica da revisitação da “origem absoluta de si mesmo”, de que o género western é um paradigma exemplar, quer seja rumo ao futuro, unidade temporal onde é possível reinventar o Paraíso à maneira americana, ou seja, pela acção. “A América é a vida como cinema e sobretudo como cinema americano”, conclui Eduardo Lourenço, e o público aplaudiu. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 CULTURA Podemos encontrar na cultura e literatura ociden tais narrativas que sejam equivalentes às narra tivas do western? A Odisseia [atribuída a Homero] não é propriamente um western, mas Ulisses é submetido a uma série de provas, com um conteúdo iniciático, é alguém que também vai atravessar e vencer uma série de obstáculos no Mar – que é uma metáfora da existência, uma substância imprevisível, na qual os homens estão sempre em perigo de naufragar. É exactamente o mesmo esquema da mitologia americana. Nela, os heróis lançam-se em perigos diversos, sempre com a ideia de chegarem a um espaço mítico onde se encontra uma espécie de paz, a Terra Prometida. Nos nossos clássicos, o herói também procura chegar a um lugar específico, no caso de Ulisses é a casa. Mas o problema de Ulisses é que ele não queria muito regressar a casa. O que distingue a mitologia americana em relação a qualquer mitologia ocidental é que nela há um fundo de optimismo superior. A mitologia americana nasceu de um sonho, de gente que encontrou qualquer coisa que alegoricamente era o Paraíso, era o que o Colombo procurava. Uma coisa é querer que todos os povos do mundo sejam cada vez mais democráticos, outra coisa é impor a democracia à força, através da violência e, sobretudo, uma violência absolutamente desproporcionada. Quando os Estados Unidos vieram salvar a Europa da ameaça hitleriana, quando durante vários anos enfrentaram a ameaça soviética, confrontavam forças iguais; agora, mobilizar as armas mais sofisticadas do mundo para pôr na ordem um país de décima quinta categoria isso é o cúmulo da violência e da injustiça. [No 11 de Setembro] os Estados Unidos foram atacados pela primeira vez no seu solo, mas atacados por quem? Por nenhum Estado. Punir o mundo inteiro porque uma espécie de loucos decidiu castigar os Estados Unidos pelos seus pecados, significa entrar já não num western mas num género dramático e eticamente pouco aceitável. Mas que ele se encarregou de destruir rapida mente. Sim, mas essa ideia ficou. Toda a mitologia americana está ligada à ideia de que aquela é a Terra da Liberdade. Onde cada um, na medida do possível, é capaz de concretizar os seus sonhos até ao fim. E, sobretudo, ser ele mesmo, ser responsável pela sua vida. Os Estados Unidos herdaram essa pulsão messiânica que vem do texto bíblico, que se tornou o texto cultural por excelência dos colonos e depois da maioria dos americanos. É muito interessante verificar que logo nos primeiros anos do século XX, toda essa gente que tem um papel importante na criação do cinema americano, na altura o espectáculo mais popular do mundo, são judeus. Não só os proprietários das majors, por exemplo, Warner, Mayor e Goldwyn, mas também os realizadores como [Josef von] Sternberg ou grandes actores como Chaplin. Acha possível o regresso dos cowboys? Se os cowboys são essa espécie de anjos cinematográficos que incarnam os valores mais preciosos na tradição ocidental, enquanto restauradores da justiça, esperemos que haja sempre cowboys! O problema é se a América se institui cowboy para fazer reinar a justiça no mundo inteiro – nessa altura, contraria o ideal de liberdade que defende e torna-se anticowboy. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 “Uma coisa é querer que todos os povos do mundo sejam cada vez mais democráticos, outra coisa é impor a democracia à força.” 49 CULTURA Jornalistas portugueses nos EUA Dez jornalistas portugueses estão de partida para os Estados Unidos com bolsas de curta duração. Vão ao abrigo dos programas “Alfredo Mesquita” (Açores) e “Rodrigues Miguéis” (Continente), criados pela FLAD com o objectivo de favorecer o intercâmbio na área jornalística. Os seleccionados irão visitar diversas instituições norte-americanas – como o Congresso, o Senado e O jornalista José Rodrigues Miguéis, escritor Por ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA O escritor José Rodrigues Miguéis foi também um jornalista assíduo que pelos jornais derramou prolífica colaboração. Muitos dos seus livros foram mesmo surgindo primeiro na imprensa, se bem que em textos escritos com intenção de serem mais tarde reunidos em volume. A sua vinda para os Estados Unidos em 1935 proporcionou-lhe (ou, se preferirmos, empurrou-o para) um contacto intenso com as comunidades emigrantes portuguesa e hispânica. No período de adaptação é comum os recém-chegados a um país procurarem relacionar-se com as comunidades que lhes são culturalmente mais próximas. Miguéis tinha, por um lado, o na altura pequeno núcleo português de Nova Iorque (e Newark, ali perto); por outro, a Guerra Civil de Espanha agarrou a sua sensibilidade de animal político, fazendo-o envolver-se fortemente na causa republicana. Numa entrevista à revista Gávea-Brown, por sinal a última que conce- 50 o Supremo Tribunal de Justiça –, bem como universidades, e contactar com personalidades de áreas públicas e privadas. Participarão, também, num curso do Committee of Concerned Journalists e em seminários dirigidos pelos jornalistas Bill Kovacs e Tom Rosenthiel. Os programas contam com o apoio do Departamento de Estado e da Embaixada dos EUA em Lisboa. CPC deu, afirmava: “Colaborei muito em jornais luso-americanos como o Diário de Notícias, de New Bedford, o Independente, de Fall River, etc.; em jornais e revistas do segmento hispano-americano, por vezes ao abrigo de pseudónimos; no diário republicano La Voz, de Nova Iorque, na revista Norte e na revista Nueva Democracia (escrevia espanhol correntemente). Colaborei em inglês em revistas como The Nation e The Protestant.” Alguns desses escritos têm sido recuperados. Duarte Barcelos Mendonça reuniu toda a colaboração no Diário de Notícias, de New Bedford, que será publicada em breve na revista Gávea-Brown, com uma introdução do investigador. O professor George Monteiro procurou identificar a colaboração em La Voz, mas sem êxito. Os pseudónimos diferentes não facilitam o trabalho. Apesar do auxílio da viúva, Camila Miguéis, que indicou a George Monteiro alguns dos mais usados pelo escritor. Foram dez anos de intensa participação política e jornalística que não deixaram boas recordações no escritor. Na citada entrevista ele explica porquê. Ao ser-lhe pedido que explicitasse melhor uma afirmação feita sobre ter sido um erro dedicar demasiado tempo aos problemas dos emigrantes, esclareceu-se nestes termos: “Não tanto aos imigrantes, como à política em que eles se envolviam – na mino- ria! Foi um erro na medida em que vim a verificar que, em troca da minha dedicação total, conheci a ingratidão e o abandono. Mas até no erro se aprende – talvez melhor! Também, enquanto me dediquei aos nossos emigrantes não produzi literariamente. Identifiquei-me com eles! Já antes tinha escrito: ‘O homem em nós mata o escritor’ – ao que acrescentei: ‘Diante das lágrimas que escorrem pela face interior do mundo, cai-nos das mãos a pena’. O escritor em mim tinha morrido às mãos do sectário! Mas, um dia, como que renasceu das cinzas, acreditando que a função do escritor é a de realizar-se fazendo obras e que a essência da sua vocação é exprimir-se – exprimindo os Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 CULTURA ‘ sua perspicaz atenção ao quotidiano ditaA crónica foi, a par do conto ram-lhe sempre crónicas que foi regular(e dos aforismos), mente enviando para a o modo perene imprensa lisboeta, da presença jornalística sobretudo o Diário Popular, onde tinha de Miguéis. como arrimo o seu indefectível, infatigável e sempre leal amigo Jacinto Baptista. Continuou escreme com o título The Polyedric Mirror. Tales of vendo para a imprensa periódica em American Life foi publicado em 2007 pela parte por necessidade económica, pois editora Gávea‑Brown, do Departamento de decidira ser escritor a tempo inteiro e Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown precisava de conseguir algum suporte University, em Providence, Rhode Island. económico. No espólio doado à Biblioteca Mais um na infelizmente ainda magra série John Hay, da Brown University, há várias de livros de Miguéis traduzidos para inglês. cartas tratando de assuntos contabilísticos (Os outros são uma colectânea de contos com os jornais reveladores de como os – Steerage and Ten Other Stories, coordenada por tostões eram todos contados. A crónica George Monteiro e também da responsafoi, por isso, a par do conto (e dos afo- bilidade da Gávea-Brown, e A Man Smiles at rismos), o seu modo perene de presença Death – with half-a-face, tradução por George jornalística. Crónicas sobretudo tomando Monteiro de Um Homem Sorri à Morte – com como tema a América do Norte, mais Meia-Cara, publicado pela University Press precisamente Nova Iorque. Escritas em of New England). português, uma selecção delas foi finalSó resta espaço para lembrar a impormente traduzida para inglês pelo profes- tância de se reler Miguéis, quanto mais sor David Brookshaw, da Universidade de não seja para se saborear uma escrita de Bristol, no Reino Unido, que tem dedi- altíssima qualidade estilística. Nos tempos cado algum tempo da sua pesquisa a que correm, já não é pouco. Há, porém, investigar o espólio de Miguéis. Um volu- muito mais. ’ dramas dos outros.” (“Entrevista com José Rodrigues Miguéis”, conduzida por Carolina Matos, enviada pela revista a Nova Iorque: Gávea-Brown, Janeiro-Junho de 1980, p. 44). No entanto, Miguéis nunca mais largaria os jornais. Deixou, sim, o artigo de opinião, mas o seu impulsivo reagir ao que à sua volta se passava bem como a Alfredo Mesquita, a diplomacia ao correr da pena Por carlA baptistA Alfredo Mesquita, escritor e jornalista, natural de Angra do Heroísmo onde nasceu em 1871, deixou-nos belas páginas de ensaio histórico-filosófico sobre a vida e os costumes de vários países, incluindo Portugal, a Espanha, a Holanda e os Estados Unidos da América. A sua obra inclui livros passados em Lisboa (Alfacinhas e Rua do Ouro), e em Angra (O Jarrão da Índia), e crónicas de viagens com detalhes sobre os lugares onde serviu como diplomata (Espanha, Holanda, Estados Unidos da América). É dele a seguinte descrição do grupo dos “Vencidos da Vida”, da qual faziam parte personalidades como Eça de Queirós, Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 Ramalho Ortigão, Jaime Batalha Reis e outros intelectuais da chamada “Geração de 70”: “A redacção [do jornal Tempo] era nas vizinhanças do Hotel Bragança, e os Vencidos da Vida, que lá tinham os seus habituais jantares, costumavam invadir-nos a casa ao levantarem-se da mesa, enchendo-nos as salas com o alarido confuso da sua conversação, que o champanhe espiritualizava e risonhamente requintava. “Umas vezes era Eça de Queirós, desengonçando-se em pequenos pulos, dando volta à sala onde escrevíamos, vindo de mesa em mesa apresentar a cada um de nós os seus ‘mais respeitosos cumprimentos’, tratando por ‘vossa excelência’ e perguntando com voz aflautada pela esposa e os meninos ao paladino do celibato que era Alberto Braga. Depois, ao fim desta estúrdia, pedia a um de nós o lugar para escrever a notícia do banquete; mas a meio da segunda linha escrita suspendia a pena e declarava peremptoriamente não se lembrar já do que lá se passara, nem do que se comera, e ia adormecer num sofá, soluçando e implorando do conde de Ficalho a conclusão da notícia. “Ficalho, por sua vez desmemoriado miserimamente, como ele dizia, recorria à memória, incomparavelmente pronta 51 CULTURA Ilustração do livro América do Norte. de António Cândido; mas mesmo esse apenas se recordava, de um modo muito incerto e vago, de que houvera perdizes. Só Carlos de Lima Mayer parecia convencido de que haviam sido devoradas duas lagostas opíparas.” Estas linhas integram um livro que Alfredo Mesquita dedicou ao seu grande amigo João Chagas, que começa com um parágrafo comovente: “Na terça feira passada, 31 de Janeiro, ao fim da tarde, fui ao alto de S. João para estar 52 ainda uns instantes com o meu amigo João Chagas, que ali tem a sua última morada. Encontrei-o só, estivemos sós, e durante muito tempo não trocámos duas palavras. Decerto o meu silêncio não lhe causou surpresa, porque me foi sempre hábito, estando em sua companhia, ouvi-lo e calar-me.” Partilhando o fel habitual entre os intelectuais da época que viveu, foi mordaz em relação aos hábitos lusos. No livro de memórias, intitulado justamente Memórias de Um Fura-Vidas (1905), encontramos frases como “A ambição de todo o português é ser empregado público – e não ir à repartição”, para depois prestar homenagem aos que, sendo funcionários públicos, vão à repartição: “A legião dos magros, dos pálidos, dos escanifrados que já por volta das nove e meia da manhã, em todos os dias úteis, vêm chegando à formiga dos bairros velhos e pobres da cidade, atravessam as Arcadas e arrastam pelas infinitas escadarias dos ministérios as solas rotas e os tacões gastos das suas botas esbeiçadas, se perdem depois pelos corredores daqueles imensos casarões e se somem por aquelas mil e uma portas misteriosas, que se não abrem a pessoas estranhas ao serviço.” O seu último livro foi também o mais bem-sucedido, tendo conhecido várias edições depois da primeira, em 1916. Intitula-se América do Norte e é um misto de diário jornalístico e ensaio sociológico sobre a paisagem e as instituições americanas, justificando a sua fama de ser o “Tocqueville português”. ‘ Partilhando o fel habitual entre os intelectuais da época que viveu, foi mordaz em relação aos hábitos lusos. No livro Memórias de Um Fura-Vidas (1905), encontramos frases como “A ambição de todo o português é ser empregado público – e não ir à repartição”. ’ Alfredo Mesquita foi redactor da Democracia Portuguesa, Revista Ilustrada, de António Maria Pereira, O Nacional, de Mariano Pina, Portugal, Correio Nacional, Jornal do Comércio e Diário de Notícias, tendo sido delegado da Associação dos Jornalistas de Lisboa nos congressos de Imprensa em Itália, na Suíça e em França. Em 1911, foi nomeado cônsul de segunda classe em Durban, transitando depois para Orense, Melbourne, Constantinopla, Roma, Nova Iorque, Hamburgo e Paris. Finda a carreira diplomática, decidiu ficar em Paris, tornou-se gerente de um hotel e aí morreu, em 1931. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 CULTURA O homem que estava sempre a ler No 15.º aniversário da Bolsa Ernesto de Sousa Arte Experimental Intermedia recordamos o artista transversal. Por SUSANA NEVES Rui Ochôa Contra “a austera, apagada e vil tristeza” dos portugueses, já observada em Camões, Ernesto de Sousa (1921-1988), em sintonia com Raúl Brandão, defendia: “a pedra há-de dar flor”. O mais importante, para o realizador do filme Dom Roberto, 1962, premiado em Cannes, pioneiro e divulgador da arte intermedia em Portugal, não era o espectá- “Ele [Ernesto de Sousa] vivia no futuro”, lembra Isabel Alves. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 ‘ culo, nem a arte, mas a vida, a comunicação, Leitor contínuo, estudioso e criador o encontro plural, proimparável, tinha “projectos e trabalho pício à festa. Para ele, conversar para vários séculos”. com Man Ray ou com o mítico Joseph Beuys (Documenta 5, Kassel, 1972) era equivalente à descoberta de actual orientador da Bolsa Ernesto de artistas portugueses quase anónimos e Sousa, co-financiada pela FLAD e pela esquecidos como Rosa Ramalho ou o ile- Fundação Calouste Gulbenkian. trado Franklin que um dia lhe dissera: “Ernesto só foi aos Estados Unidos uma vez, em 1983, a convite de Phill Niblock, “O Sol descobre a arte.” Para a “invenção do dia claro”, frase de para apresentar o mixed media Ultimatum. Ele Almada Negreiros, com quem muito con- vivia no futuro. Lembro-me de nessa viaviveu e sobre quem realiza o filme Almada, gem, quando era preciso acertar os últiUm Nome de Guerra, 1983, todas as “pro- mos detalhes da apresentação, já estar a vocações” eram indispensáveis, sobretudo, falar do projecto seguinte”, recorda Isabel as que punham em causa “a cultura asfi- Alves, sua companheira ao longo de vinte xiante”, burguesa, tanto ética como este- e dois anos, autora do site documental de ticamente rígida e parcelar. referência: www.ernestodesousa.com. Na linhagem de Dubuffet, influenciado Leitor contínuo, estudioso e criador pelo Living Theatre e os artistas Fluxus, imparável, tinha “projectos e trabalho Ernesto de Sousa defendia que a verda- para vários séculos”, Ernesto de Sousa foi deira vanguarda só é possível através do também um crítico controverso e um aproveitamento da memória e da “aven- divulgador apaixonado das obras de tura da tradição”. outros. Recorde-se, entre muitos eventos, Luis Vaz 73, obra mixed media, apresentada o comissariado de várias representações no V Festival Internacional de Mixed portuguesas na Bienal de Veneza bem Media (Gent, 1975), é um bom exemplo como a notável exposição “Alternativa desse princípio. Inspirando-se na poesia Zero”, realizada em Belém, em 1977, camoniana, Ernesto de Sousa concebe um e a abertura da inovadora Galeria conjunto de imagens enquanto Jorge Diferença, da qual foi um dos fundadores. Peixinho compõe música sem qualquer Ao final da tarde, na “sala branca” da R. relação de complementaridade ou ilus- S. Filipe Nery, havia tertúlia, muitos artistração. E é a partir desta obra transversal tas de várias gerações apareciam para o que no futuro se propicia o encontro com ouvir falar. Ele que estava sempre a ler, e Phill Niblock, director da Experimental cultivara a “ingenuidade voluntária”, Intermedia Foundation, Nova Iorque, atraía e metia medo. ’ 53 CULTURA Açores e Estados Unidos da América Universidades em partilha A partir de agora, professores e estudantes da Universidade dos Açores poderão trabalhar, durante o máximo de um ano, em vários estabelecimentos de ensino superior norte-americanos, assim como destes virão universitários para os Açores, pelo mesmo período de tempo, graças ao Acordo de Mobilidade Antero de Quental. Por sara pina FOTOGRAFIA victor melo Assinado em Ponta Delgada, em Março, este acordo é financiado (para o ano de 2008) em 100 mil euros pela FLAD e em 25 mil pela Fundação Calouste Gulbenkian. Mário Mesquita, administrador da FLAD responsável pelo projecto, explica a escolha do nome do programa: “Antero de Quental terá sido, de entre os grandes nomes da cultura portuguesa do século XIX, aquele que, desde a juventude, mais se interessou pela cultura norte-americana, conforme sustenta a anterianista Ana Maria de Almeida Martins. Talvez a sua condição de açoriano seja responsável por essa simpatia, tendo em conta que a emigração açoriana para os Estados Unidos, já considerável a partir de 1860, fazia parte da vida social dos insulares.” O acordo funcionará, para já, entre a Universidade dos Açores e o consórcio de universidades norte-americanas situadas em áreas onde se concentram as comunidades de emigrantes portugueses: Universidade de Brown; Universidade de Massachusetts – Dartmouth; Universidade de Massachusetts – Amherst; Universi dade da Califórnia – Berkeley e Bristol Community College. Outras universidades americanas poderão vir a aderir. Tanto os docentes como os estudantes, bem como os coordenadores deste projecto, serão seleccionados pelas respectivas universidades. E já há candidatos... Por ocasião da assinatura do Acordo de Mobilidade Antero de Quental foi organizado um colóquio na Universidade dos Aço res sobre “Dinâmicas da Língua Portuguesa em Contexto Multilingue”, no qual foi discutida e analisada, ao longo de todo o dia, a difusão do português no Mundo e, em especial, nos Estados Unidos. A abrir o colóquio, Luís Andrade, pró ‑reitor da Universidade dos Açores, 54 agradeceu o apoio da FLAD. Desta universidade intervieram, ainda, Clara Rolão Bernardo, Helena Montenegro, Paulo Meneses e Graça Castanho. Para além dos subscritores do acordo, da Universidade de Massachusetts participou, também, Anna Klobucka, responsável pela coordenação de Ponto de Encontro, um manual de ensino de português. António Vicente, da FLAD, apresentou dados actualizados sobre o estado e perspectivas de crescimento da língua portuguesa que, nos Estados Unidos, é grande. Entre os 5 e os 17 anos de idade há mais de 85 mil pessoas que falam português em casas norte-americanas. A FLAD tem vindo a trabalhar com o College Board, em Nova Iorque, para que a língua portuguesa seja uma língua dos exames de acesso às universidades americanas e em breve apresentará, através do seu site (www.flad.pt), um programa interactivo sobre o português nos Estados Unidos. O presidente do Conselho Executivo, Rui Machete, encerrou o debate congratulando-se por este Acordo de Mobilidade constituir um instrumento de preservação e desenvolvimento da língua portuguesa. Assinatura do Acordo. Da esquerda para a direita: Onésimo T. Almeida (Universidade de Brown e em representação da Universidade da Califórnia – Berkeley), Rui Machete, presidente da FLAD, Avelino de Meneses, reitor da UAC, Manuel Carmelo Rosa, em representação da Gulbenkian, e Victor C. Mendes (Universidade de Massachusetts – Dartmouth). José Francisco Costa do Bristol Comunity College, em representação da Universidade de Massachusetts – Amherst subscreveu, também, o acordo. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 Rui Gageiro CARTA BRANCA O dia do meu aniversário Maria Elisa Domingues* ‘ Nova Iorque proporcionou-me muitas alegrias: entre elas, o prazer de ouvir Frank Sinatra ao vivo, o puro deleite de ver Rex Harrison interpretar o Professor Higgins de My Fair Lady, George C. Scott dominar magistralmente o notável elenco de Twelve Angry Men. ’ No dia em que fiz 50 anos, estava profundamente apaixonada e em Nova Iorque: era-me difícil imaginar conjugação mais feliz. Depois de me arranjar para o jantar, registei esse momento numa daquelas fotos que só empolgam quem visita a cidade pela primeira vez ou os namorados: diante das inebriantes cortinas de néon de Times Square. Nova Iorque proporcionou-me muitas outras alegrias: entre elas, o prazer de ouvir Frank Sinatra por duas vezes ao vivo, no Metropolitan e no Radio City Hall, o puro deleite de ver Rex Harrison interpretar o Professor Higgins de My Fair Lady (hélas! sem Audrey Hepburn), George C. Scott dominar magistralmente o notável elenco de Twelve Angry Men. Pelo amor ao teatro, segui afoita, por vielas esconsas, atrás de um enorme negro que me prometera arranjar bilhetes para um hit do momento absolutamente esgotado. A história só não acabou mal porque o cavalheiro tinha cadastro e havia dois polícias no seu encalço que intervieram no exacto momento em que ele se preparava, com competência, para me assaltar; enquanto um dos agentes da lei se afastava com o delinquente algemado, a outra pregava-me um violento raspanete, olhando-me como se estivesse a dirigir-se a alguém apoucado. Foi também em Nova Iorque, instalados no Soho, que passei as últimas grandes férias a sós com o meu filho, antes daquele momento natural, mas melancólico para uma mãe, em que ele passou a preferir outras companhias femininas à minha. É provavelmente a pessoa com quem partilho mais afinidades e um grande companheiro de viagem. Tenho, muitas vezes, saudades desse Verão. Mas foi igualmente em Nova Iorque que vivi, na coincidência de um outro aniversário, a maior desilusão da minha vida, daquelas que rasgam o peito e nos fazem questionar toda a nossa existência, dilacerarmo-nos a procurar o m omento em que falhámos, tentando em vão encontrar um sentido para continuar. Creio que nunca me recompus dessa graça perdida. E como os grandes amores não existem sem o reverso, foi em Nova Iorque ou graças a ela que, por duas vezes, me soube traída: da primeira, fugi do hotel – que, de qualquer modo odiava, imenso, impessoal – e regressei no primeiro avião para Lisboa, perdendo o que deveriam ter sido umas deliciosas férias nas ilhas Keys, tontice de que ainda hoje me arrependo, tanto mais que acabei por voltar para os braços do traidor. Da segunda vez foi mais grave: no rescaldo do 11 de Setembro, o homem que jurava ser eu a mulher da sua vida, publicou num jornal o relato emotivo das suas recordações de Nova Iorque contando, entre outros detalhes igualmente íntimos, que se declarara à mulher que amava no cimo do Empire State Building. O que jamais poderia ocorrer comigo pois detesto alturas, ainda que o clima seja da maior paixão. Dessa vez, não perdoei, foi corte definitivo. Por algum tempo, remoí a ideia de que a culpa era da cidade, perdi a vontade de lá voltar. Mas durou pouco. Como poderia eu virar costas ao sítio do mundo onde, no intervalo de poucos quarteirões, me senti morrer de dor e morrer de amor? * Jornalista da RTP Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 55 LIVROS Estante FLAD ‘ [...] apesar dos progressos verificados no conhecimento de alguns dos habitats menos estudados do planeta, como é o caso dos montes submarinos e dos organismos que os habitam, estes continuam a ser “um mistério” Seamounts: Ecology, Fisheries & Conservation Pitcher, T. J., Morato, T., et al. (eds.) 2007, Oxford: Blackwell Publishing ’ Montes submarinos Por Mário Ruivo Professor, presidente do Comité Português para a Comisssão Oceanográfica Intergovernamental A publicação deste livro é particularmente oportuna, tendo em conta o tema e a abordagem polifacetada seguida, bem como o contexto da exploração e conservação do Oceano em que se enquadra. Num conjunto de capítulos de grande qualidade, esta obra oferece um panorama sobre o estado actual dos conhecimentos e das implicações socioeconómicas da exploração dos seamounts (montes submarinos, terminologia que entrou em uso na década de 1930), numa perspectiva de gestão dos recursos e do meio marinho com base científica e da avaliação dos impactos de origem antropogénica. O interesse deste livro é acentuado pelo equilibrado plano a que obedece e que traduz a estreita interacção entre os autores e as abordagens interdisciplinares, apoiadas numa vasta bibliografia das mais recentes investigações na matéria. É de notar a preocupação em inserir os temas numa perspectiva contextualizada, ecológica e norteada pelos objectivos de um desenvolvimento sustentável. O professor Tony J. Pitcher sublinha, porém, no “Series Editors Forward”, que apesar dos progressos verificados no conhecimento de alguns dos habitats menos estudados do planeta, como é o caso dos montes submarinos e dos organismos que os habitam, estes continuam a ser “um mistério”, desbravado nos 21 capítulos, estruturados em 56 quatro partes, da autoria de 57 especialistas mundiais, entre os quais vários portugueses: I – Metodologias e técnicas; II – Interacção biofísica da produtividade dos montes submarinos; III – Visão sinóptica da ecologia dos montes submarinos e dos recursos pesqueiros; e, IV – Gestão e conservação. O “triunfo da colaboração” entre institutos e autores de reconhecidas competências nas matérias abordadas e a atmosfera que caracterizou o encontro realizado na Horta, Faial, Açores, em Maio de 2005, é visível na expressão dos participantes na fotografia comemorativa. Não se trata, efectivamente, de um livro ocasional integrado na prestigiada série “Fish and Aquatic Resources Series”. Resulta de uma longa colaboração e de um rigoroso e paciente trabalho preparatório entre os autores-investigadores, no âmbito de uma rede científica que se tem vindo a consolidar ao longo dos anos e na qual o Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores, liderado pelo Doutor Ricardo Serrão Santos, tem estado activamente envolvido. É de notar, ainda, a preocupação de colocar os conhecimentos científicos ao ser- viço da gestão e da governação do Oceano, apoiada numa leitura responsável da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) e de outros instrumentos relevantes, cuja implementação requer consciencialização e envolvimento da sociedade civil. Este objectivo exprime-se no tratamento equilibrado da gestão dos recursos vivos/pesqueiros e da biodiversidade dos fundos marinhos, nomeadamente nos montes submarinos, num enquadramento ecossistémico e de desenvolvimento sustentável apoiado no conhecimento científico e, quando apropriado, no princípio da precaução. A consulta e leitura deste livro (525 páginas, enriquecidas com ilustrações e gráficos de alta qualidade) é facilitada pelo estilo adoptado pelos autores, que contribui para a boa compreensão dos temas abordados não só por especialistas como também pelo público em geral. Seamounts: Ecology, Fisheries & Conservation constitui, pois, uma valiosa contribuição para uma governação mais adequada e eficaz do Oceano, na linha da recente decisão da União Europeia de definir uma Política Marítima Europeia para os Mares e Oceanos, e, no que diz respeito a Portugal, da adopção da Estratégia Nacional para o Mar. Neste contexto, mereceria projectar-se uma versão de divulgação sobre estes “habitats menos conhecidos” do espaço interior do nosso planeta. Estão de parabéns os autores e as instituições que contribuíram para a organização do encontro da Horta e para a edição deste livro. Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 LIVROS Por Rui Hermenegildo Gonçalves Doutorando da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 ’ "1 /" -Ñ Ñ1,"*\ÑÑ-* /- O livro As Fundações na Europa: Aspectos Jurídicos, uma edição bilingue da FLAD, de Janeiro de 2008, coordenada por Rui Chancerelle de Machete e Henrique Sousa Antunes, transcreve as comunicações apresentadas no seminário internacional organizado pela própria FLAD, em parceria com a Fundação Bertelsmann, com o mesmo título, em Junho de 2005, bem como os animados debates que se seguiram às diferentes sessões. O objectivo fundamental deste seminário, resumido por Rui Chancerelle de Machete no discurso de abertura, consistia em proporcionar um debate público sobre os dois projectos de “estatuto de Fundação Europeia” existentes àquela data, do Centro Europeu de Fundações e do consórcio liderado pela Fundação Bertelsmann, que são reproduzidos integralmente no final do livro. Se, em Junho de 2005, se revelava oportuno discutir os projectos referidos, em 2008, devido às recentes evoluções ao nível da União Europeia, a questão é de uma profunda actualidade. Com efeito, em Abril de 2007, a Direcção-Geral do Mercado Interno e Serviços da Comissão Europeia, também em resposta a um apelo reiterado ‘ .'( Fundações e direito da União Europeia %.,( &+"' Rui Chancerelle de Machete e Henrique Sousa Antunes (coord.) Janeiro de 2008, Lisboa: Fundação Luso-Americana das fundações europeias, lançou finalmen- rosamente no reforço do movimento de te um concurso público para a apresentação integração europeia, tão carecido de novos de um estudo sobre a viabilidade de intro- agentes e factores que o dinamizem”. duzir um “estatuto de Fundação Europeia”, A mudança de paradigma que o Tratado cujos resultados deverão ser conhecidos até de Lisboa aportará à União Europeia pasao final de 2008. O estudo será realizado sará necessariamente por um crescimento pelo Max Planck Institute for International do papel e da importância das fundações Private Law, em Hamburgo, e pelo Centre e das demais organizações da sociedade for Social Investment, em Heidelberg, diri- civil. Tendo em conta a reconhecida capagidos por Klaus J. Hopt e Volker Then, cidade de intermediação das fundações respectivamente, que participaram activa- entre a sociedade civil e as instituições mente no seminário de 2005. A decisão da públicas, o estatuto de fundação europeia FLAD de publicar o livro As Fundações na poderia por isso incentivar o exercício da Europa: Aspectos Jurídicos permite, por isso, filantropia como uma expressão de cidarecuperar a memória da relevante discussão dania europeia e de concretização do bem sobre um assunto que influenciará neces- comum europeu. sariamente o futuro das fundações na O estatuto de fundação europeia, que traduziria Europa. Sem prejuízo das um instrumento jurídico optativo ou adicional para diferenças entre os as fundações de interesse público, contribuiria projectos em comassim para terminar com as restrições dos paração no livro, diferentes ordenamentos jurídicos nacionais […]. devidamente assinaladas por Klaus J. Hopt na sua intervenção, pode afirmar-se que ambos concretizam uma aspiração legítima das fundações europeias .'( de obter um enquadramento jurídico ver%.,( &+"' dadeiramente europeu para as suas actividades transfronteiriças, pelo menos dentro da União Europeia. O estatuto de fundação europeia, que traduziria um -Ñ1 )instrumento jurídico optativo ou adicional Ñ1,"* para as fundações de interesse público, -* /"-Ñ1, "contribuiria assim para terminar com as "1 /" restrições dos diferentes ordenamentos Ñ1,"* jurídicos nacionais às actividades intracoÑ-* /munitárias das fundações, designadamente discriminações fiscais em função da nacionalidade ou da residência, indo de encontro à jurisprudência mais recente 25)#(!.#%2%,,%$%-!#(%4% do Tribunal de Justiça da União Europeia. (%.2)15%3/53!!.45.%3 #OORDENA½áO%DITORS Por último, a adopção de um estatuto de fundação europeia poderia ainda contribuir para o aprofundamento da integração europeia bem como para a diminuição do distanciamento entre os cidadãos europeus e as instituições da União. Tal como reconhece Rui Chancerelle de Machete, “as fundações ajudarão pode-Ñ1 )-Ñ Ñ1,"*\Ñ-* /"-Ñ1, "- As Fundações na Europa: Aspectos Jurídicos 57 LIVROS In Pursuit of Their Dreams Jerry R. Williams 2005, Massachusetts: Center for Portuguese Studies and Culture, University of Massachusetts O sonho açoriano Por NUNO COSTA SANTOS Escritor Comecemos pela foto da capa – que é todo um romance. Uma foto a preto e branco de uma família açoriana nos Estados Unidos. Nove pessoas. Nove rostos de entre os milhares e milhares que, desde o início do século XIX, deixaram as ilhas e as suas biografias de pobreza, em busca de oportunidades de trabalho. Há homens, mulheres, crianças. E um relógio por cima deles, sublinhando o tempo que corre. ‘ […] um tempo de esforço e de labor. Não há alegria nem tristeza nestes rostos fechados. Apenas a serena resignação de quem viajou por necessidade – não por turismo. ’ Curiosamente, percorre esta fotografia a ideia de suspensão desse tempo – um tempo de esforço e de labor. Não há alegria nem tristeza nestes rostos fechados. Apenas a serena resignação de quem viajou por necessidade – não por turismo. Ou, noutra perspectiva: para fugir a problemas como o excesso de população, o decréscimo da produtividade agrícola e as condições naturais adversas. É destas famílias, tantas vezes igno radas, que trata o livro de Jerry R. Williams, In Pursuit of Their Dreams – a History 58 of Azorean Immigration to the United States, obra da sobrevivência pura e simples, foi útil e informada para quem perceber aprendendo a impor-se, social e cultu com alguma profundidade a questão ralmente, nas complexas e multiétnicas sociedades para as quais transportou da emigração açoriana para as várias Américas – a da Costa Leste, a da Costa um sonho e uma ambição. O e s t e, a d o H ava i . Emigração esta que, como lembra o autor, teve vários ciclos – iniciou-se com os Uma homenagem a uma comunidade baleeiros da Nova Inglaterra que, depois de ter ultrapassado do início do século XIX, a fase da sobrevivência pura e simples, imortalizados pela pena de foi aprendendo a impor-se, social Melville, e tem, como última vaga reconhecida, a que e culturalmente, nas complexas e multiétnicas se iniciou nos anos 60, sociedades para as quais transportou um nuns Estados Unidos pós sonho e uma ambição. ‑Segunda Guerra Mundial, mais abertos a receber estrangeiros e as suas experiências. Jerry R. Williams faz aquilo que o jargão da imprensa não consegue fazer: pormenoriza. Distingue, em termos de ocupações laborais e hábitos de vida, os vários destinos da emigração (a título de exemplo, os destinos dos operários fabris e dos pescadores da Costa Leste nada tiveram a ver com os dos agricultores e dos mineiros da Califórnia). Trajectórias diferentes e diversas que se unificam num conjunto de valores de “portuguesidade” (e de, arrisque-se uma palavra menos consensual, “açoria nidade”) que se mantêm ao longos dos anos: a importância da família, a figura paterna como marca de autoridade e a manutenção de laços com a família alargada. In Pursuit of Their Dreams é, apesar dos seus intentos especificamente académi c o s , u m a h o m e n ag e m . Uma homenagem a uma comunidade que, depois de ter ultrapassado a fase ‘ ’ Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 LIVROS Aventuras de Um Nabogador Onésimo Teotónio Almeida 2007, Lisboa: Bertrand Contares do andarilho Por Francisco Belard Jornalista freelance Navegar é preciso, viver idem, podia dizer o autor de Aventuras de Um Nabogador & Outras Estórias-em-Sanduíche, ou desventuras de um navegador. A dupla qualidade do narrador – autor e protagonista – marca as histórias ou “estórias”, “ensanduichadas em crónicas”. Português nos EUA, a dupla pertença terá marcado a predilecção por um termo que aspira a demarcar story de history e trocar “conto” por short story (mesmo short é mais ampla semanticamente), contornando na volta a questão da “história” com e sem maiúscula. Este viajante, não turista, dado a recriar mas não a mentir, narra episódios que viveu ou lhe foram contados, que assim aconteceram ou podiam acontecer. Onésimo é um dos nossos melhores navegantes em fim de século ou começo de outro. Faz-se ao mar de avião, e, se tal não ocorre, mete água metafórica, como no episódio que encerrao livro e lhe dá título. Neste livro reitera o jeito raro de contar acontecimentos (reais, passe a redundância) e efabular em torno. A realidade irrompe tão rica, interessante e até prodigiosa que dispensa ficções propriamente mentidas. O escrúpulo dissuade-o de ser ficcionista, não lhe faltando experiências e arte que dele fariam “escritor” na acepção de matriz continental. Detecta-se na sua “poética” uma indecisão central entre ficção e registo (como cronista, testemunha, repórter ou revelador de indiscrições); talvez viesse ao caso discutir a natureza dos seus Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 textos não académicos a partir do conceito de paralaxe, ou parallax view, mas não serei eu a fazê-lo. Este homem, que defronta certezas infundadas do establishment intelectual e moral, que é atrevido a contar histórias reais e fictícias, poupa-se ao salto não mortal para a ficção “pura” que eliminaria problemas. Pairam sobre as andanças de Onésimo a exposição ao olhar próximo (mãe, mulher, conhecidos, pudor na linguagem e em identificar pessoas; “excesso de pruridos”, “frágil vergar aos conselhos da minha primeira leitora”) e o medo de nos maçar, tão consentido que talvez lhe corte asas para voos de outra ordem. Sente-se a tensão fecunda entre olhar nativo e olhar estranho. É neste olhar movente que a sua perspicácia tão fundamente assenta, esteja aqui ou ali, observando todos como outros e, ao mesmo tempo, nossos. São textos que a voz do narrador torna homogéneos, em livro capaz de dispensar o itálico como separador entre “estórias”. Nuns casos, estas seriam fragmentos ou esboços de uma campus novel (e Onésimo o nosso David Lodge), noutros, a literatura de viagens e a narrativa cómico-marítima que nos faltaram na viragem do século. Ao mesmo tempo, em digressão pelos espaços, ele condensa as expressões de mundos atlânticos e pacíficos, com as virtualidades da perspectiva luso-americana e da mundividência universalista. A sensibilidade às tragédias do povo de origem é patente, sem proclamações patéticas. Se a isto juntarmos o humor (subtil, subliminar ou de understatement nuns casos, aberto e descarado noutros), encontramos um escritor só tolhido por modéstia e autodepreciação (ficam-lhe bem, de resto), de que se evade em invenção vocabular e recursos estilísticos. Onésimo é o bom contrabandista de géneros literários, que o seu talento guarda em gaveta indefinível de material confessável e inconfessável, contável e incontável. Na sua escrita vigiada, evita ser mais um romancista português. Toma diversas vozes; a pessoal, de actor e testemunha, e as que ecoam no poder de observador e contador, conjugando peças de descolagem variável em relação ao “que realmente aconteceu” (Ranke), acenando ‘ Onésimo é o bom contrabandista de géneros literários, que o seu talento guarda em gaveta indefinível de material confessável e inconfessável, contável e incontável. ’ ao que podia ter acontecido. Um uni verso sedutor, verdadeiro mesmo quando inverosímil (é também isso a realidade), marginal ao emprego deste investigador e professor, que escapa a ossos mais sisudos do ofício para dar o humor com que sobrevoa os oceanos e aterra em terras novamente descobertas. Essa harmonia polifónica não é manto fantasioso sobre a verdade nua; é desvio subtil entre nós e a crueza do mundo interpretado. 59 COLECÇÃO FLAD Rui Moreira Encarnar o desenho O campo de intervenção e pesquisa de Rui Moreira é o desenho. Para este artista, desenhar não é apenas um fazer, é um modo de pensar. Pensar a arte e pensar o mundo. Cada desenho que realiza no seu ateliê pressupõe uma viagem que o antecede. Deserto do Sara, Amazónia, Trás-os-Montes. O seu desenho inicia-se com a experiência física de um determinado lugar, a experiência directa do viver, sentir, cheirar, encontrar. Esta imediatez é ‘armazenada’ no seu corpo e transposta, já na interioridade do seu ateliê, para a folha de papel. O espaço entre os dois acontecimentos é fundamental para que a experiência se transforme em matéria artística, para que se transforme em linguagem visual. A proposição filosófica de Heidegger – o ser-no-mundo – pode ser invocada aqui para pensar a prática artística de Rui Moreira. Não há uma dissociação entre a sua vida e a sua arte. O fazer arte, o desenhar, constitui um prolongamento do seu estar no mundo. E o seu estar no mundo, embebido e imerso no quotidiano tangível, traduz-se no seu desenho. Um “desenho alar gado”, como o denomina. O projecto que realizou em Trás-os-Montes iniciou-se em 2004. A sua proposta era estudar as festas pagãs (orgiásticas em tempos) que ainda subsistiam no Norte do País, e em particular debruçar ‑se sobre a figura do careto. Esta figura, também uma antiga tradição nacional, é um homem comum que, através do vestir de indumentárias típicas, se transforma noutro ser. Um ente possuído pela magia, em forte comunhão com a natureza e transportando uma forte tensão sexual. Os desenhos de Rui Moreira sobre estas personagens apresentam seres em processo de mutação (entre o homem, o animal e o vegetal) e armados de uma poderosa força sexual. O trabalho de execução de cada um destes desenhos (como é habitual na sua obra) é caracterizado por um extraordinário detalhe. A cruz é um elemento recorrente na sua obra. Simboliza a unidade, o indivíduo. Enquanto adorno das vestes do careto, ela traduz a comunidade (presente mas também do passado, do tempo da história) que este personifica naquele momento. Recorrente é ainda a cor. O azul que escolhe e que emprega de forma monocromática, alude igualmente a uma história e a uma tradição portuguesa. Apesar de esta série se alinhar na continuidade dos trabalhos que havia desenvolvido anteriormente (e daí a repetição de determinados elementos), ela representa uma mudança no traço do artista que passa a renunciar a linha geometrizante e rigorosa para adoptar um fluir manual. Rui Moreira nasceu no Porto, em 1971. Formou-se no Ar.Co, tendo começado a expor em meados da década de 1990. Das suas exposições individuais destacam-se as realizadas na Galeria Lisboa 20 (2007, 2005 e 2003). Prepara uma mostra antológica na Fundação Carmona e Costa, a inaugurar no decorrer deste ano. Das exposições colectivas em que participou destacam-se: “Portugal Agora”, Mudam, 2007; “Bouzean”, Faro Capital da Cultura, 2005; “Os Últimos Dias”, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. 60 FILIPA OLIVEIRA Curadora de arte contemporânea Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 COLECÇÃO FLAD Sem Título, 2004, tinta de caneta sobre papel, 121 × 160 cm Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 61 bLoCo De notAs A terceira margem do rio ‘ mário mesQuitA As três candidaturas, ainda em disputa, situam-se fora dos binómios que moldam a cultura americana. “o (número) três – escreve Damatta – é a sábia e sempre próxima (mas invisível e paradoxal) terceira margem do rio”. ’ “Se na sociedade brasileira as relações entre as pessoas obrigam a mentir e calcular constantemente quem nos deve e a quem devemos, aqui, nos Estados Unidos, o problema é a ilusão de que tudo pode ser resolvido formalmente por meio de instituições impessoais.” Estas palavras são de Roberto DaMatta, antropólogo brasileiro traduzido em múltiplas línguas, autor de estudos sobre a vida quotidiana brasileira, o carnaval e o futebol, a rua e o jogo do bicho. DaMatta compilou em livro as colunas do Jornal da Tarde (1993-2001), do Estado de S. Paulo (2001-2004) e de periódicos de menor difusão, sob o título sedutor de Tocquevilleanas – Notícias da América (Rio de Janeiro, Rocco, 2005). o autor foi professor da Universidade de Notre Dame (Indiana) durante os dezassete anos a que correspondem estes ensaios e crónicas. o contraste entre os tipos de sociedade a que DaMatta alude remete para as teses de Edward hall (Beyond Culture). Nas sociedades pobres em contexto (as anglo-americanas) os códigos comunicativos quase dispen- 62 sam a compreensão aprofundada do ambiente circundante. Nas culturas ricas em contexto (as sul-americanas), a comunicação interpessoal e não-verbal relega para segundo plano a lei, a regra ou o código. DaMatta não afirma coisa diferente: “No Brasil todo o mundo personaliza; aqui (nos Estados Unidos) todo o mundo impessoaliza”. Textos jornalísticos, mas simultaneamente ensaios de investigador que procura evitar que “os factos canibalizem as teorias ou, para ser menos pedante, os vários estilos pelos quais os acontecimentos são anestesiados de suas repercussões pelo uso de receitas interpretativas rotineiras”. Ao contrário dos que se encerram no jargão especializado, Roberto DaMatta assume a sua atitude de procurar traduzir para públicos mais vastos os resultados da pesquisa e da reflexão universitárias. o contraste entre sociedades desenvolvidas e “pobres em contexto” e sociedades em vias de desenvolvimento “ricas em contexto” – teorizado por Edward hall – não adquire na obra do antropólogo bra- um tocqueville antropólogo e brasileiro em pleno século xxi. sileiro significado normativo. Equivale antes a um esforço de interpretação. A ilusão anglo-americana é que tudo pode ser resolvido sem a interferência das relações entre as pessoas, através do respeito da legalidade e do culto das instituições. A ilusão sul-americana é que a amizade e o compadrio bastam para regular a socieParalelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 BLOCO DE NOTAS dade enquanto a lei e a regra são pormenores de menor relevância. A personalização sulista provoca o recurso frequente à mentira, enquanto a impessoalidade do Norte, sob a inspiração de certa cultura protestante, conduz muitas vezes à hipocrisia. No Brasil, o acento tónico nas relações interpessoais redunda, muitas vezes, na “corrupção e (na) incapacidade de, no plano público, separar o joio do trigo”, enquanto nos Estados Unidos, “o preço de uma radical institucionalização da vida social tem sido o mal ‑estar causado pelo desencanto com um mundo que não tem lugar para as contradições, as dualidades e as ambiguidades”. Este exercício comparativo não conduz a adoptar uma das sociedades como “modelo” a imitar e a outra como “antimodelo” a exorcizar. Em muitos aspectos, Roberto DaMatta admira a organização social norte-americana. Noutros, a simpatia do colunista e investigador vai para a raiz brasileira. Mas nunca a admiração pelo Norte se converte em culto basbaque, nem o amor do Sul em autocontemplação alheia ao espírito crítico. DaMatta: “No Brasil e em outros países (como o Chile) muita gente está convencida de que falta muito pouco para sermos como eles [os americanos]: adiantados, grandes, desenvolvidos, hiperconsumistas e obviamente felizes. Mas, quando chegarmos lá, eles serão muito diferentes, provavelmente, muito mais parecidos connosco do que gostaria a nossa vã sociologia ou economia.” A eterna questão do terceiro partido norte-americano foi reavivada pelas candidaturas de Ross Perot e de Ralph Nader (tácticas ou não, pouco importa). Colin Powell, negro republicano e centrista, sustentou, sem ambiguidades, que os Estados Unidos precisam de um terceiro partido. Sucede que – como sublinha o antropólogo brasileiro – “o número três não é bem visto nesta terra que representa-se a si mesma como dual e que sempre imaginou que o tudo ou nada, o preto ou o branco, o leste ou o oeste, o sul ou o norte, constituem as opções de uma moralidade suficiente e superior”. A questão do terceiro termo não se resume, claro, ao terceiro partido ou ao terceiro candidato presidencial. Na actualidade, o número três inscreve-se por todos os ecrãs televisivos nos relatos e especulações sobre as próximas eleições norte-americanas. As três candidaturas, ainda em disputa, situam-se fora dos binómios que moldam a cultura americana. “O (número) três – escreve DaMatta – é Paralelo n.o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 A excelente montagem da capa da Time Magazine acentua que só haverá lugar para um dos pré-candidatos – Obama ou Hillary – nas eleições americanas, mas a presença de uma mulher e de um mulato na luta pela Casa Branca deixará traço na história da América. a sábia e sempre próxima (mas invisível e paradoxal) terceira margem do rio.” A ironia da história poderá ditar a “renovação na continuidade”, com a vitória do candidato republicano (isto não é uma previsão, mas uma hipótese), mas a presença de Hillary e Barack – uma mulher e um mulato – na margem democrática da política americana, representa já uma enorme mudança que, sejam quais forem os resultados finais, deixará traço na história da América. Desde as primeiras sufragistas a Hillary Clinton, desde a escravatura a Barack Obama, os americanos perfizeram um enorme percurso. O longo caminho não está terminado, nem para a América, nem para o mundo, longe disso, mas ganha novo alento neste ano de 2008. Ao fundo, na linha do horizonte, esconde-se, sob o nevoeiro da esperança, a tal “terceira margem” – utópica, mas, por certo, necessária. Nunca chegaremos a vê-la, provavelmente, mas sabemos de ciência certa que lá está, em lugar incerto, sob o denso nevoeiro, à nossa espera. 63