Nos dois lados do Atlântico

Transcrição

Nos dois lados do Atlântico
Primavera | Verão
2008
02
ISSN 1646-883X
Nos dois lados do Atlântico:
Participação política
Internacionalização da
língua portuguesa
Encontro de escritores
"Os Estados Unidos
nação reinventada
por Hollywood"
entrevista exclusiva a
Eduardo Lourenço
ESPECIAL ELEIÇÕES
EUA’08
A tesouraria virtual de Obama
Hillary e as mulheres
"Simplex" McCain
Fundação Luso-Americana
Conselho Directivo:
Teodora Cardoso (Presidente)
Thomas F. Stephenson
Jorge Figueiredo Dias
Jorge Torgal
Luís Braga da Cruz
Luís Valente de Oliveira
Maria Gabriela Canavilhas
Michael de Mello
Vasco Graça Moura
Conselho Executivo:
Rui Chancerelle de Machete (Presidente)
Charles Allen Buchanan, Jr
Mário Mesquita
Secretário-Geral: Fernando Durão
DIRECTORes: Maria Idalina Salgueiro, Fátima
Fonseca, Paulo Zagalo e Melo, Miguel Vaz
subdIRECTORes: António Vicente, Rui Vallêra
Responsável pelos Serviços Financeiros:
Maria Fernanda David
Responsável pelos Serviços Administrativos:
Luiza Gomes
Assessores: João Silvério, Paula Vicente
Rua do Sacramento à Lapa, 21
1249-090 Lisboa | Portugal
Tel.: (+351) 21 393 5800 • Fax: (+351) 21 396 3358
Email: [email protected] • www.flad.pt
Paralelo
DIRECTOR: Rui Chancerelle de Machete
EDITORA: Sara Pina
coordenadora:
Paula Vicente
secretariado da redacção: Cristina Cambezes
e Sofia Roquete
Colaboram neste número: António Vicente,
Branca Cardoso, Carla Baptista, Carla Maia
de Almeida, Clara Pinto Caldeira, Fábio Silva,
Filipa Brazona, Filipa Melo, Filipa Oliveira,
Filipe Vieira, Francisco Belard, Guto Ferreira,
Isabel Braga, José Cutileiro, Luís Nunes,
Marco Silva, Maria Elisa Domingues,
Mário Ruivo, Michael Werz, Nuno Costa Santos,
Onésimo Teotónio de Almeida, Rita Siza,
Rui Catalão, Rui Hermenegildo Gonçalves,
Rui Ochôa, Teodora Cardoso, Susana Neves,
Victor K. Mendes, Victor Melo
Design: José Brandão | Susana Brito [Atelier B2]
Revisão: am edições | antónio alves martins
Impressão: Textype
TIRAGEM: 3000 exemplares
[email protected]
Depósito legal: 269 114/07
ISSN 1646-883X
© Copyright: Fundação Luso-Americana
para o Desenvolvimento
Todos os direitos reservados
Nunca se viu tão grande interesse
dos cidadãos portugueses numa campanha
eleitoral norte-americana
Caro leitor
“T
oo close to call” é a frase que mais temos ouvido e lido
durante a cobertura noticiosa da campanha para Presidente dos Estados Unidos da América. A corrida renhida dos
candidatos democratas tem gerado um enorme interesse, não só no seu
país (onde a participação política e eleitoral dos cidadãos tem comprovadamente aumentado) mas também por todo o mundo. Nunca se viu
tão grande interesse dos cidadãos portugueses numa campanha eleitoral norte-americana.
De todo o ambiente, a campanha, as consequências para a política
externa, a participação dos imigrantes portugueses, a Paralelo dá conta
neste especial eleições norte-americanas – um número para guardar.
Nesta edição, o apoio da Fundação ao programa do MIT, contribuindo para
o desenvolvimento português na área da ciência, tecnologia e educação, e,
também, ao Cohitec para criação de empresas com projectos inovadores.
Além disso, o ciclo de literatura “Asas sobre a América”, que durante
meses tem enchido o auditório da FLAD com espectadores ávidos de ouvir
escritores portugueses a falar sobre escritores norte-americanos.
De salientar, ainda, duas iniciativas da Fundação. Uma é totalmente
nova: o Acordo de Mobilidade Antero de Quental que permitirá o intercâmbio de estudantes e professores da Universidade dos Açores com universidades norte-americanas. A outra reinicia-se agora, embora em termos
inovadores: os programas “José Rodrigues Miguéis” (nacional) e “Alfredo
Mesquita” (Região Autónoma dos Açores) para formação de jornalistas
portugueses na América. Sara Pina
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
4VMQEZIVE`:IVnS
índice
-772<
2SWHSMWPEHSWHS%XPlRXMGS
4EVXMGMTEpnSTSPuXMGE
-RXIVREGMSREPM^EpnS
HEPuRKYETSVXYKYIWE
)RGSRXVSHIIWGVMXSVIW
%ZMHEGSQSRS
GMRIQEEQIVMGERS
CAPA
especial eleições
norte-americanas
16 páginas
IRXVIZMWXEI\GPYWMZEE
)HYEVHS0SYVIRpS
)74)'-%0)0)-e£)7
)9%«
%XIWSYVEVMEZMVXYEPHI3FEQE
,MPPEV]IEWQYPLIVIW
7MQTPI\1G'EMR
10 [portuGAL/euA]
Entrevista ao senador
luso-americano
Marc Pacheco
14 | A língua
especial
portuguesa no mundo
EUA‘08
06 | REVISTA DE IMPRENSA
21 | O voto português
por António Vicente
18 | A escolha do próximo
Presidente norte-americano
24 | Consequências
26 | O financiamento
para a União Europeia
por José Cutileiro
das campanhas e a internet
28 | A influência
30 | As mulheres e Hillary
dos latino-americanos
por Michael Werz
62 | A terceira
[email protected] | Caglecartoons.com
44 [CuLturA]
Escritores portugueses
falam sobre escritores
norte-americanos
margem do rio
por Mário Mesquita
46 | Eduardo Lourenço
em entrevista
50 | Jornalistas
portugueses nos EUA
54 | Acordo Antero de
Quental: mobilidade de
estudantes portugueses
e americanos
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
3
��������
A incerteza aumenta
após as primárias democratas
‘
A alternância do Partido Democrata, após os oito anos
do Presidente George W. Bush, não parece estar adquirida.
Terminadas as primárias com a vitória de Barack Obama,
nada está ainda decidido. Tudo está mais obscuro
e enevoado.
’
“Não, Obama não é negro, pelo
menos, em Nova Iorque. Eu sou
nova-iorquina. Para mim, ‘Barack is
mixed, not black’”. Quem o afirma é
uma habitante de Manhattan.
Convicta. Talvez tenha razão, no que
se refere aos meios cosmopolitas,
onde existe sempre a hipótese da
“terceira via”, por exemplo entre a
pele branca e a negra. Na outra
América, dita profunda, nas pequenas
e médias cidades, no “velho Sul”, só
há preto e branco. Um cidadão de
etnia negra, nascido no Hawai, a disputar um lugar na Casa Branca. O
impensável. Ou quase.
A vantagem de Obama sobre McCain é muito
pequena. A incerteza permanece.
Comentários e reportagens
sobre as eleições americanas
pp. 6-8, 18-30 e 62-63
O qualificativo “histórico” está
muito enfraquecido pelo excessivo
uso jornalístico. Banalizou-se. Por
tudo e por nada, invoca-se a História
com maiúscula a propósito de acontecimentos destinados a desaparecer
como areia entre os dedos. Mas, apesar do desgaste da palavra, ninguém
contestará, presume-se, a sua apli-
cação à vitória de Obama nas primárias: ele é o primeiro negro – se
preferirem, mulato – a disputar a
Casa Branca. Da mesma forma que
Hillary Clinton teria sido, se conseguisse ser nomeada, a primeira
mulher a lutar pela Presidência dos
Estados Unidos.
Olhando a história da América,
desde o tempo da escravatura e da
Guerra da Secessão, este é um
momento de viragem, que desenvolve os combates pelos Direitos Cívicos
da década de 1960. Mas também é
possível observar a pré-campanha
em curso na perspectiva da luta pela
hegemonia republicana ou democrata. Desse ponto de vista, a vantagem
que, nos finais de 2007, os observadores concediam aos democratas
parece, agora, incerta e reduzida
quase à distância da margem de erro
de uma sondagem. A ousadia de
Obama e de Clinton já teve o seu
preço. A campanha eleitoral (propriamente dita) começará em
Setembro de 2008 com maior incerteza do que seria previsível há um ano.
A alternância do Partido Democrata,
após os oito anos do Presidente
George W. Bush, não parece estar
adquirida. Terminadas as primárias
com a vitória de Barack Obama,
nada está ainda decidido. Tudo está
mais obscuro e enevoado. MM
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
editorial
A comunidade
luso-descendente
nas presidenciais americanas
Rui Chancerelle de Machete
Vive-se com grande entusiasmo nos Estados
Unidos a primeira fase do processo eleitoral para a escolha do próximo Presidente.
Apesar de alguns analistas conjecturarem
já o que será o “Post-American World”, a
América será ainda num futuro previsível
o mais importante país do mundo, cujas
decisões, vida política e económica para
além de eventuais crises irradiam consequências sobre os restantes Estados.
‘
A solidariedade entre portugueses de cá
e portugueses e luso-descendentes de lá
torna as eleições presidenciais americanas
ainda mais relevantes para nós.
’
Permanecerá igualmente o palco privilegiado onde se ganha ou perde a influência
e o prestígio das potências e dos políticos
estrangeiros e onde se joga a sorte de múltiplas iniciativas internacionais. Daí que, o
modo como se desenrola a designação do
futuro Presidente e, sobretudo, a personalidade e ideias dos principais candidatos,
interesse sobremaneira não apenas ao Povo
americano, mas também aos outros Estados
e respectivos cidadãos.
Compreende-se assim que Portugal e os
portugueses estejam atentos a este processo de transferência de poder e de sucessão
do titular do cargo mais relevante do sistema político americano. Os Estados Unidos
são o líder do Ocidente, o aliado preponderante da NATO, o parceiro mais importante da União Europeia. Mas são também
um país que alberga uma numerosa comunidade de emigrantes lusófonos. A solidarieParalelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
dade entre portugueses de cá e portugueses
e luso-descendentes de lá torna as eleições
presidenciais americanas ainda mais relevantes para nós.
É sabido que poucas vezes o que se promete nas campanhas eleitorais, mesmo quando
há programas formais de governo, tem correspondência no que os eleitos realmente
fazem uma vez em posto. Apesar disso, e
particularmente na América do Norte, os
candidatos são sensíveis quando governantes, e sobretudo se aspiram a uma reeleição,
às opiniões e desejos dos seus eleitores e
governados. A participação nas múltiplas
eleições a nível federal, dos Estados federados e municipal constitui conditio sine qua non
para que a nossa comunidade se torne mais
visível naquele grande País. Por isso, a
Fundação Luso-Americana está profunda­
mente empenhada, há já vários anos, num
programa – o “Portuguese American
Citizenship Project” – que, sem quebra dos
laços político-culturais com Portugal, pro­
mova a aquisição da nacionalidade americana por parte dos nossos emigrantes e incite
a comunidade lusófona a participar intensamente nas eleições a todos os níveis.
A FLAD, como instituição portuguesa que
tem, entre os seus propósitos mais significativos, reforçar a cooperação transatlântica, desenvolve também programas
específicos que facultem um conhecimento mais aprofundado do sistema político
norte-americano. Com a proximidade das
eleições esses esforços serão intensificados
de modo a atingirem-se audiências mais
vastas através do uso dos meios de comunicação social. Um melhor conhecimento
facilita o reforço dos laços de amizade e
cooperação.
especial
EUA‘08
REVISTA DE IMPRENSA
George Bush, afirmou que, mais do que “inverter a situação no
Iraque”, o aumento de tropas “abriu a porta a uma importante
vitória estratégica na guerra mais geral contra o terrorismo”. Foi
Os candidatos à
Presidência e o Iraque
uma afirmação no mínimo prematura, atendendo à fragilidade
dos progressos no domínio da segurança e à lentidão dos diri-
(...)
gentes iraquianos em estabelecer os acordos políticos necessários
O quinto aniversário da invasão do Iraque deu azo a uma ­profusão
para estabilizar verdadeiramente o país.
de discursos por parte do Presidente Bush e dos candidatos demo-
O Presidente pelo menos reconhece, graças à sua “dura expe­
cratas que esperam herdar a Casa Branca no próximo ano.
riência”, que, no Iraque, os progressos alcançados podem ser
Lamentavelmente, um aspecto comum a todos eles foi
a incapacidade de enfrentarem as realidades – a começar
pela impossibilidade de discernir qualquer caminho claro
ou rápido para chegar à “vitória” prometida por Bush
O charme republicano
com os media
ou à promessa de Hillary Clinton e de Barack Obama de
“acabar com esta guerra”.
(…)
‘
[...] no Iraque,
os progressos alcançados
podem ser rapidamente
anulados.
’
Ao contrário dos jornalistas que giram na órbita da ­senadora
Hillary Rodham Clinton e do senador Barack Obama – que se
queixam diariamente da falta de acesso aos seus candidatos –,
John McCain fala diariamente com os jornalistas que estão a
cobrir a sua campanha, tanto assim que este vosso blogger já
ouviu mais de um jornalista dizer que gostaria que “aquele
tipo que fala sem rodeios” se calasse de uma vez por todas.
Mas não é inteiramente verdade que esse seja o seu desejo,
pois até reconhecem que McCain faz um esforço ­considerável
para manter satisfeito o seu bando de jornalistas habituais. E o
que se passou com os poucos jornalistas americanos que seguiram o candidato republicano até Londres e Paris? John McCain
respondeu às perguntas de quase todos, ainda que, para o
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
especial
EUA‘08
REVISTA DE IMPRENSA
rapidamente anulados. Ontem, prometeu não ordenar retira-
está em jogo para os Estados Unidos está divorciada da rea-
das de tropas para além das cinco brigadas que deverão regres-
lidade, que foi aquilo de que acusaram Bush quando este
sar aos Estados Unidos no Verão deste ano, “a não ser que as
decidiu invadir o Iraque.
condições no terreno e as recomendações dos nossos coman-
(...)
dantes” o justifiquem. Isto significa que, se Barack Obama ou
Barack Obama e Hillary Clinton propõem-se ambos retirar as
Hillary Clinton se tornarem presidentes, um deles passará a
tropas americanas ao ritmo mais rápido que o Pentágono diz
ser comandante-chefe de pelo menos 100 mil militares ame-
ser possível – uma brigada por mês. Durante os cerca de 16
ricanos que se encontram no Iraque. No entanto, os seus
meses que levaria a retirar as tropas, imaginam conseguir
discursos sugerem que a sua visão do conflito e daquilo que
realizar milagrosamente todos os objectivos políticos que a
Administração Bush se propôs alcançar em cinco
anos, desde o estabelecimento de um governo
fazer, tenha sido obrigado a esquivar-se aos insistentes jorna­
estável à concordância dos países vizinhos em
listas britânicos e aos mal-humorados jornalistas franceses.
apoiarem esse governo. Supõem que o facto de se
saber que as forças americanas iriam partir inspi-
E como são os seus fins-de-semana? Depois de uma fase inicial em que fez campanha ininterruptamente, assim que a sua
nomeação ficou garantida McCain começou a passar os fins-
‘
McCain fala diariamente
com os jornalistas
que estão a cobrir
a sua campanha
’
raria esses acordos. Na verdade, o mais provável é
que a partida das tropas levaria todas as partes a
ignorarem a influência americana e a prepararem­
‑se para preencher violentamente o vazio deixado
-de-semana no seu
pela retirada dos americanos.
apartamento dilecto
(...)
em Cornville, no
[ Editorial, 20 de Março de 2008 ]
Arizona, não muito
longe de Sedona.
Enquanto os jornalistas que o acompanham se dirigem
para um local espectacular chamado Enchantment
Resort.
(…)
[
Joseph Curl, correspondente principal para a Casa Branca,
26 de Março de 2008 ]
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
especial
EUA‘08
REVISTA DE IMPRENSA
tempo e não será concedida de bom grado. Muito dependerá do
tipo de forças residuais que os Estados Unidos entenderem manter
O sabor amargo da vitória
no Iraque. Nas melhores circunstâncias, o Iraque nunca se tornará
uma Alemanha, nem um Japão, nem uma Coreia do Sul, onde uma
presença permanente de forças americanas passou a fazer parte da
(...)
rede de segurança regional. Uma presença americana a longo prazo
A resposta à pergunta “E se nós ganharmos?” depende, obviamen­te,
no Iraque, mesmo que essa presença seja pequena e discreta, pre-
da definição de “ganhar” no Iraque. Para mim, significa o seguin-
judicará a legitimidade do regime de Bagdade.
te: as tendências da situação de segurança já estabelecidas durante
A “vitória” que acabamos de definir encerra uma importante
o aumento de tropas mantêm-se num rumo positivo, a violência
contradição. Os Estados Unidos não podem vencer sem que o
diminui para níveis aceitáveis, a capacidade das forças de seguran-
Irão vença também. Esta vitória do Irão será medida pela aqui-
ça do Iraque aumenta, e o Governo central resiste a ponto de os
sição de pelo menos um “cliente” no Sul do Iraque sobre o qual,
Estados Unidos poderem contemplar a possibilidade de reduzirem
em última análise, exercerá muito mais influência do que os
substancialmente as suas forças sem que o país caia no caos.
Estados Unidos. Isto reduzirá significativamente o valor da vitó-
O Governo continuará a ser fraco e corrupto e permanecerá divi-
ria, a não ser que admitamos outros acontecimentos, como, por
dido, mas pelo menos continuará a governar. Postular mais do que
exemplo, uma mudança de regime em Teerão ou um afastamen-
isto tornaria este raciocínio circular e inútil.
to entre Teerão e os seus “clientes” iraquianos – duas hipóteses
Ironicamente, uma “vitória” neste sentido representaria enormes
que não parecem ter grande probabilidade de se concretizar num
problemas para um Presidente democrata em Janeiro de 2009.
futuro próximo.
Haveria uma base positiva de segurança que apenas se deterioraria
(...)
se os Estados Unidos retirassem as suas tropas demasiado depressa
[Francis Fukuyama vol. II, n.º4, Março-Abril de 2008]
e, portanto, uma pressão considerável para que não fossem respeitadas as promessas de uma retirada rápida feitas durante a campanha.
Se conseguimos pressupor uma vitória nestes termos, também
podemos pressupor as condições necessárias para permitir uma
retirada total, mas é muito difícil imaginar como é que isso
poderia acontecer a não ser durante um período prolongado
e, portanto, politicamente desconfortável. A grande interrogação consistirá em saber como é que os diferentes
actores políticos irão interpretar o legado de tal “vitória”. No que respeita aos actores da região, uma vitória
poderá ser a salvação da reputação americana, mas o
momento de obter um efeito de demonstração positivo
com a substituição de Saddam por um Iraque democrático já passou. A aceitação deste novo actor made-inAmerica pelos países árabes vizinhos virá, mas levará
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
REVISTA TRIMESTRAL DE
Política Externa e
Assuntos Internacionais
) *$
!
$
#
"
"$ # %"" !%
%"$
EDITADA PELO
INSTITUTO PORTUGUÊS DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
da Universidade Nova de Lisboa
Rua de D. Estefânia, 195 - 5º, D.to
1000-155 Lisboa | PORTUGAL
Tel.: +351 21 314 1176
Fax: +351 21 314 1228
Email: [email protected]
www.ipri.pt
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
9
PORTUGAL/EUA
Senador luso-americano
Apelo à participação portuguesa
na vida política americana
Eleito pelo Partido Democrata, com vinte anos de experiência política no estado de Massachusetts,
o senador Marc Pacheco ocupa o cargo de maior relevo atribuído a um luso-descendente.
Além da representação da comunidade portuguesa, ocupa-se da legislação de questões que interessam
a todos os cidadãos, desde a saúde às alterações climáticas e ao aquecimento global.
A Paralelo visitou-o na State House de Boston.
Por CARLA MAIA DE ALMEIDA
FOTOGRAFIAS GUTO FERREIRA
O que significa para si ser senador
estadual e como é que repre­
senta a comunidade portuguesa de
Massachusetts?
Em primeiro lugar, é uma
grande honra, porque é um
cargo para o qual se é eleito
por sufrágio directo pelos
cidadãos e porque em todo o
estado de Massachusetts apenas
40 pessoas o podem desempenhar.
Mas também tenho a honra de ser
o senador principal, eleito oficialmente, neste estado cujo legado português é tão importante.
Represento uma
população
numerosa de
comunidades portuguesas,
res­pon­
sa­bi­li­­
da­de
10
que levo muito a sério. Desde muito jovem
que mantenho ligações com a comuni­dade
portuguesa. A minha família nunca me
deixou esquecer as minhas raízes e fez-me
apreciá-las. Mas represento um círculo
eleitoral muito diversificado, não só em
termos de etnicidade e religião, mas também em termos económicos, e isso é
muito estimulante e implica uma grande
satisfação pessoal.
Em comparação com outros grupos, considera que
é mais difícil exercer pressão política quando se
trata de fazer aprovar leis destinadas a apoiar
e defender a comunidade portuguesa?
É verdade. Embora neste estado haja muitas pessoas de origem portuguesa com
direito de voto nos Estados Unidos, não há
muitos americanos de ascendência portuguesa eleitos na assembleia legislativa do
Massachusetts. De certa maneira, isto deve­
‑se ao tipo de cidadãos que somos, enquanto americanos de ascendência portuguesa.
A maioria das pessoas que tenho representado ao longo dos anos e que tenho conhecido ocupa-se, em primeiro lugar, da
família e da Igreja, independentemente de
há quantos anos se encontram neste país.
Quando essas pessoas decidem exercer
o seu direito e participar na vida política, são tão competentes como
outro grupo qualquer, sobretudo a nível local. No entanto, a decisão de o fazer
não é tão frequente
como eu gostaria
que fosse. E os
membros da
c o mu n i d a d e
portuguesa
PORTUGAL/EUA
‘
Represento uma
população numerosa
de comunidades
portuguesas,
responsabilidade
que levo muito
a sério.
’
não votam necessariamente a favor de uma
pessoa com base na sua origem étnica... o
que me parece ser um bom princípio.
“Quando vou a uma certa zona de Boston, assim que as pessoas vêem o meu nome (“Pacheco”)
pronunciam-no “Patchéco”, porque pensam que é um nome latino-americano […]
Na zona norte […] pensam que é um nome italiano”.
MASSACHUSETTS: DEZ FACTOS
QUE FIZERAM A DIFERENÇA
• A Boston Latin School, a primeira escola pública dos EUA, foi fundada em 1635. Ali se
graduaram cinco dos subscritores da Declaração de Independência: John Hancock, Samuel
Adams, Benjamin Franklin, Robert Treat Paine e William Hooper.
• Em 1773, é publicado em Boston um livro intitulado Poems on Various Subjects, Religious
and Moral. A autora é uma adolescente negra trazida num barco de escravos e adoptada por
uma família que a ensina a ler e a escrever.
• “Todos os homens nascem livres e iguais”, escreve John Adams no primeiro artigo da
Constituição de Massachusetts, em 1780. Dezasseis anos mais tarde, será eleito segundo
Presidente dos EUA.
• Em 1820, um baleeiro vindo de Nantucket é totalmente destruído por uma baleia de grande
porte. O facto inspirou Herman Melville na escrita do clássico Moby Dick.
• Em 1837, Mary Lyon funda a primeira universidade para raparigas do país, Mount Holyoke
College. “Vai aonde mais ninguém for. Faz o que mais ninguém fizer”, eis o seu lema.
• Em 1845, Henry David Thoreau constrói a sua cabana no lago Walden. Com Ralph Waldo
Emerson, Emily Dickinson e outros transcendentalistas da Nova Inglaterra, o seu pensamento
vive até hoje.
• O primeiro congresso nacional dos Direitos das Mulheres realiza-se em Worcester, em
1850.
• Em Boston, Alexander Graham Bell e o seu assistente Thomas Watson demonstram aos
jornalistas a invenção patenteada em 1876: o telefone.
• Em 1944, nos laboratórios de Harvard e do MIT (Massachusetts Institute of Technology),
cientistas trabalham em protótipos de calculadoras, abrindo caminho para a era digital.
• O senador de Massachusetts J. F. Kennedy é eleito Presidente dos EUA em 1960. Em 1972,
Massachusetts será o único estado do país a não votar em Nixon, preferindo o democrata
John McGovern.
(do livro The 101 Events that Made Massachusetts, de Christopher Kenneally, Commonwealth Editions, 2005)
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
Ter um nome português traz-lhe mais vantagens
ou mais desvantagens no desempenho das suas
funções?
Bem, só lhe posso falar da minha experiência pessoal. Quando vou a uma certa
zona de Boston, assim que as pessoas
vêem o meu nome (“Pacheco”), pronunciam-no “Patchéco”, porque pensam que
é um nome latino-americano, um nome
espanhol. Mas se eu for à zona norte da
cidade pensam que é um nome italiano.
Portanto, as vantagens e as desvantagens
são muitas, consoante a zona da cidade
onde me encontro! (Ri-se.) Tive uma
experiência muito real em 2001, quando
decidi concorrer ao Congresso dos Estados
Unidos. Passei tempos difíceis. Para o fazer,
é preciso ter recursos financeiros para
conseguirmos transmitir a nossa mensagem às massas. Infelizmente, este é um
aspecto em que estamos bastante aquém
dos outros grupos. Alguns, como os gregos ou os italianos, têm uma grande capacidade de angariação de fundos.
Há centenas de estudantes portugueses a frequen­
tar as melhores universidades americanas.
Considera que eles também representam o ­futuro
da comunidade portuguesa?
Sim. Estou absolutamente convencido de que
nos estabelecimentos de ensino superior da
América inteira – e particularmente nos
estados em que existe uma grande percentagem de luso-americanos – temos suficientes pessoas qualificadas com capacidade para
ascender aos cargos mais altos e a posições
de autoridade na administração pública. Está
a começar a acontecer com bastante frequência. O Dr. Mello (Craig C. Mello, Prémio
Nobel da Medicina em 2006, em conjunto
com Andrew Z. Fire) é um exemplo disso.
Sentimos muito orgulho nele. Porque uma
coisa que ouvimos dizer constantemente
acerca dos portugueses é que têm excelentes características e uma óptima
11
PORTUGAL/EUA
‘
uma maior compreensão do que permitir, através do processo educativo, que
os nossos jovens participem em programas de intercâmbio, aprendam mais
sobre os seus antepassados e sobre as
origens das suas famílias, frequentando
aulas no estrangeiro... e também recebendo aqui estudantes portugueses para
frequentar aulas nos Estados Unidos.
Julgo que isto representa um enorme
benefício para os nossos dois países e
também para os cidadãos.
Mas será que o intercâmbio que tem havido é
suficiente?
Julgo que não, e a questão é ­precisamente
essa. Massachusetts perdeu cerca de dois
mil estudantes estrangeiros nos últimos
dois anos, e isso equivale a uma perda
de aproximadamente 63 milhões de dólares de receitas. Temos de redobrar esforços e tentar encontrar escolas do ensino
superior e universidades que desejem
estabelecer parcerias com os Estados
Unidos, neste contexto, e vamos ter de
tentar resolver eventuais problemas
de burocracia. Temos de trabalhar com os
líderes do Congresso e as pessoas aqui
nos Estados Unidos que desejam facilitar
a promoção de programas deste género
e proporcionar este tipo de oportunidades aos estudantes estrangeiros que queiram vir para cá. Especialmente em
Massachusetts, porque, a longo prazo,
isso só nos beneficiará.
Desde 1993 que Marc R. Pacheco ocupa
um lugar no Senado de Massachusetts.
Descendente de açorianos, a educação na
língua inglesa não impede que se mantenha a par das questões que interessam
à comunidade portuguesa. Ilda Marques,
sua assistente há muitos anos, fluente
em português, espanhol e inglês, é a res-
ponsável pela recepção das muitas perguntas que chegam ao gabinete 312-B,
na State House de Boston. Convicto de
que hoje é mais fácil ser-se imigrante nos
Estados Unidos da América do que há
trinta anos, aguarda as próximas “eleições
históricas” enquanto torce por Hillary
Clinton.
[...] os membros da comunidade portuguesa não votam
necessariamente a favor de uma pessoa com base
na sua origem étnica... o que me parece ser
um bom princípio.
’
reputação: são trabalhadores, honestos, íntegros, constituem boas famílias – tudo valores positivos. Mas não é muito frequente,
na nossa comunidade, ouvirmos louvar pes­
soas ligadas ao ensino superior, pessoas do
campo da medicina, do campo jurídico,
do campo literário...
Ao mesmo tempo, não é verdade que se está a
tornar cada vez mais difícil ensinar português às
crianças luso-americanas?
Durante muitos anos tivemos em
Massachusetts um ensino bilingue, mas
os eleitores votaram a favor da sua supressão. Opus-me veementemente a essa decisão, assumi publicamente uma posição
contra a eliminação do ensino bilingue,
mas mesmo em cidades como New
Bedford, que é talvez uma das cidades com
maior número de eleitores portugueses,
o ensino bilingue foi suprimido.
Por que é que isso aconteceu?
Porque se fizeram sentir grandes pressões
no sentido de se avançar para o ensino
emergente, como alternativa. Em vez de
haver aulas em que o ensino é ministrado
em inglês e português, nos programas do
ensino emergente tudo é ensinado em
língua inglesa. De facto, funciona melhor
para os alunos muito novos, mas quando
se chega aos alunos um pouco mais velhos
ou do secundário, não resulta. O ­problema
aqui em Massachusetts, ou nos Estados
Unidos, é que somos um melting pot, e tentar escolher uma língua, ou duas línguas,
passa a ser um braço-de-ferro político.
Haverá sempre um grupo a perguntar:
“Por que não a minha língua?”
No que toca às últimas gerações, acha que há
alguma coisa que se pode fazer para reavivar a
sua identidade cultural, ou considera que terão
mais benefícios quanto mais se integrarem na
sociedade americana?
Penso que é absolutamente fundamental
para o futuro da América e de Portugal
trabalharmos juntos no sentido de renovar esses laços. Estamos num mundo
diferente, um mundo em que necessitamos de ser mais bem compreendidos
entre os nossos concidadãos. E julgo que
não há melhor maneira de promover
12
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
BREVES
Transatlânticas
Novo embaixador dos EUA
em Portugal
Thomas F. Stephenson é o novo embaixador
dos Estados Unidos para Portugal. Até ao
final do ano passado, altura em que tomou
posse, foi sócio de uma empresa de capital
de risco em Silicon Valley – a Sequóia
Capital, dedicando-se, especialmente, a
empresas de tecnologias da informação e
prestação de cuidados de saúde.
Natural de Wilmington, Delaware,
Stephenson licenciou-se em Economia em
Harvard e em Direito no Boston College,
tendo completado o MBA na Harvard
Business School, mantendo, ainda, relações
estreitas com esta universidade onde é,
actualmente, membro do quadro de
­decuriões e da comissão executiva.
Com 38 anos de experiência no sector
do capital de risco e tendo pertencido a
mais de uma dezena de quadros de administração de empresas públicas e privadas,
Thomas F. Stephenson mudou-se para
Lisboa com a sua mulher e um dos filhos
apresentando credenciais ao Presidente
Cavaco Silva em Fevereiro passado.
pela FLAD e pelo Governo Regional dos
Açores, é positivo. As principais conclusões
foram apresentadas em Abril, com a participação de Alzira Silva, da Direcção Regional
das Comunidades, Charles Buchanan, da
FLAD, Sam Sutter, procurador-geral do condado de Bristol (EUA) e Thomas Hodgson,
xerife de Bristol, entre outros.
A reunião contou ainda com as participações de representantes do Centro de
Assistência ao Emigrante (EUA), da Arrisca
e da Novo Dia, entidades que operacionalizam o projecto no terreno.
“Projecto Regressos”
em avaliação
Facilitar a integração nos Açores dos cidadãos portugueses repatriados pelos Estados
Unidos e estabelecer uma ligação entre o
regressado e a família no país de acolhimento foram objectivos cumpridos do
“Projecto Regressos”.
Dois anos após a sua criação, o balanço do
“Projecto Regressos”, iniciativa financiada
Alzira Silva, James Maclinchey e Charles Buchanan
na apresentação das conclusões do “Projecto
Regressos” (na foto, da esquerda para a direita).
Arte contemporânea
em Angra do Heroísmo
Jorge Paulus Bruno, director do IAC (terceiro a contar da esquerda)
ouve as explicações de João Silvério, curador da FLAD.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
“Corpo Intermitente”, exposição de arte
contemporânea, que incluiu obras de Álvaro
Lapa, Ana Jotta, Eduardo Batarda, Jorge
Queiroz, José Loureiro, Miguel Branco, Rui
Chafes, Rui Leitão, Rui Moreira e Rui
Sanches, pôde ser visitada, durante dois
meses, no Museu de Angra do Heroísmo.
A exposição teve como objectivo dar
a conhecer a diversidade de propostas
artísticas integradas na colecção da FLAD
e estimular a descentralização.
João Silvério, curador da FLAD, apresentou esta exposição como: “Pensada especificamente para o Museu de Angra do
Heroísmo. [...] O museu é como um
corpo reconstruído que resguarda e projecta dentro de si um outro corpo dinâmico, multifacetado e versátil.” “Corpo
Intermitente” esteve integrada num projecto da FLAD em colaboração com o
Governo Regional dos Açores e do Instituto
Açoriano de Cultura que incluiu a publicação de um catálogo.
13
PORTUGAL/EUA
A internacionalização
da língua portuguesa
“Da minha língua vê-se o mar”, escreveu Vergílio Ferreira, para quem uma língua
“é o lugar donde se vê o mundo e se traçam os limites do nosso pensar e sentir”.
Na sede da FLAD reuniram-se representantes das embaixadas dos PALOP, Instituto
Camões, CPLP, Instituto Cervantes,
Ministério da Educação, Ministério dos
Negócios Estran­geiros, British Council,
Comissão Europeia e Parlamento Europeu,
diversas universidades, Assembleia da
República e outras instituições, para debater a “dimensão política da língua portuguesa e as estratégias de articulação da
política cultural externa com a política de
internacionalização da economia portuguesa”.
Segundo a revista Ethnologue, a bíblia dos
linguistas, existem cerca de sete mil idiomas
no planeta. A maioria serve comunidades
reduzidas e apenas 12 são usadas por cerca
de 50 por cento da população mundial. “O
português está no top ten, ocupando a sétima
posição, com cerca de 200 milhões de falantes espalhados por oito países em quatro
continentes”, afirmou Nicholas Ostler, um
dos oradores convidados pela FLAD para
participar no encontro.
A herança histórica e cultural do português coloca-o em boa posição, acima do
alemão, do francês e do japonês, mas
­abaixo do espanhol, do russo e do bengali, para competir no futuro mercado global
das línguas. No entanto, aquele especia­lista
alertou para o facto de a glória de uma
língua (como, de resto, de tudo o mais)
ser transitória e só permanecer se a comunidade de origem se mantiver como centro
de visibilidade e prestígio.
14
victor K. MENDES
Por CARLA BAPTISTA
Seminário de Português na Universidade de Massachusetts – Dartmouth.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
Rui Ochôa
‘
Existem cerca
de sete mil idiomas
no planeta. [...]
“O português
está no top ten,
ocupando a sétima
posição, com cerca
de 200 milhões
de falantes
espalhados por
oito países em quatro
continentes”, afirmou
Nicholas Ostler.
’
A difusão do português beneficia de uma
forte pressão demográfica positiva do
Brasil. Neste momento, por cada português
existem 16,7 falantes brasileiros, o que
constitui, de longe, o ratio mais favorável
de todas as antigas colónias e metrópoles.
No caso do espanhol, por exemplo, a proporção é de três mexicanos para cada
espanhol, ou, para o inglês, de quatro
americanos para cada britânico.
Também é previsível um aumento do
número de falantes em Angola e
Moçambique, tanto por razões demo­
gráficas como de crescimento do investimento estrangeiro naqueles países.
“Mas existem outras economias e respectivas línguas a considerar”, afirmou David
Graddol, outro dos participantes no evento,
que apresentou o cenário de um mundo em
acelerada transformação. É previsível que
línguas como o português, o russo e o hindi
cresçam bastante após 2010, mas os maiores
impactos virão dos gigantes China (o mandarim está a implantar-se fortemente como
segunda língua, mesmo nos países ocidentais), Índia e do bloco dos países árabes. Entre
2025 e 2050, é possível que o árabe se torne
a língua mais difundida no mundo.
A tendência actual também nos ensina
que a riqueza material dos países de origem
já não é o principal factor que contribui
para o sucesso da difusão das respectivas
línguas. O mais importante, disse David
Graddol, é o número de pessoas que virá
a reconhecer alguma utilidade em usá-las
como segundo idioma.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
Na sua intervenção na FLAD, Nicholas Ostler falou sobre os usos políticos e económicos da língua.
As línguas
do passado, do presente
e do futuro
Dois académicos britânicos falam sobre as tendências
históricas que fazem aparecer e desaparecer
as línguas do mundo.
“Padre, quem te trouxe a esta terra tão
longe da Índia?”, terá sido a frase pronunciada num português impecável por
um comandante militar persa e dirigida
a um espantado frei Gaspar de São
Bernardino que, em 1606, parou na região
para se abastecer de água.
Nicholas Ostler, académico inglês com
graus em Grego, Latim, Filosofia e
Economia (Universidade de Oxford)
e um doutoramento em Linguística pelo
MIT, foi um dos especialistas convidados
pela FLAD para discursar sobre os usos
políticos e económicos da língua, tendo
apresentado este exemplo para ilustrar
como o português foi usado como língua franca em vastíssimas regiões do
mundo até ao século XVIII.
Outros casos são relatados no seu último
livro, Empires of the Word: A Language History of
the World, e contam uma história fascinante
de como, alicerçado numa política expansionista e comercial baseada no estabelecimento de feitorias costeiras, paróquias e
missões religiosas no interior, o império
colonial português conseguiu a proeza de
pôr todos os que pretendiam comerciar
com as nações europeias (mesmo, mais
tarde, com os franceses, ingleses e
ho­landeses) a falar a língua de Camões,
incluindo uma vasta população de árabes,
arménios, hindus, japoneses e africanos.
Já em 1551, o inglês Thomas Wyndham,
viajando com o piloto António Pinteado
ao longo da Costa da Guiné, descobriu
que podia conversar em português com
o rei do Benim, que tinha aprendido a
língua em criança.
Em 1600, quando o Japão recebeu o seu
primeiro visitante inglês, o piloto Will
15
Rui Ochôa
Há potencial
de crescimento
para o ensino
do português
nos EUA
David Graddol: mandarim, espanhol e árabe,
competidores da “língua franca” inglesa.
‘
[...] o império colonial português conseguiu a proeza
de pôr todos os que pretendiam comerciar com as
nações europeias [...] a falar a língua de Camões,
incluindo uma vasta população de árabes, arménios,
hindus, japoneses e africanos.
’
Adams, este serviu-se de um intérprete
português para conseguir comunicar com
o xógum Tokugawa Ieyasu.
Actualmente, graças a uma política de
ensino e difusão da língua a nível mundial, o inglês impôs-se como linguagem
universal. A globalização do inglês foi
explicada por David Graddol, linguista e
autor do relatório English Next, encomendado em 2006 pelo British Council. Nele
são analisadas as principais tendências
económicas e demográficas que irão afectar a posição do inglês e de outras línguas
ao longo do século XXI.
Enquanto a expansão do português se
baseou numa política de encontros face-a-face e provocou uma rápida crioulização
da língua, o inglês universalizou-se graças
a um conjunto de razões demográficas,
económicas, tecnológicas e políticas.
Ao aumento do número de falantes, juntaram-se factores como a afirmação dos
países anglo-saxónicos como os mais ricos
do mundo e os fenómenos intrínsecos ao
próprio movimento de globalização:
maior mobilidade, tanto espacial como
16
cultural, suportada pelas tecnologias de
comunicação e a criação de redes transnacionais muito densas em vários níveis
das sociedades.
A fluência em inglês é consensualmente
reconhecida como uma competência
bá­sica e os governos de todo o mundo
têm introduzido intensivamente o ensino
desta língua em níveis escolares cada vez
mais básicos – neste momento, as crianças
chinesas (e as portuguesas) já aprendem
inglês desde o primeiro ano da escola
primária.
Porém, David Graddol afirma que se o
inglês foi claramente a língua franca do
século XX, enfrenta sérios competidores
no século XXI, entre eles o mandarim, o
espanhol, o árabe e o hindi-urdu.
As pessoas não vão deixar de falar inglês,
que já é visto como uma ferramenta de
trabalho mais do que como uma língua
estrangeira. Os falantes nativos do idioma
de Shakespeare é que podem ficar para
trás se persistirem em manterem-se avessos à aprendizagem das outras línguas
emergentes. CB
A promoção da língua e da cultura portuguesa nos Estados Unidos é um dos objectivos da FLAD desde 1985. Em muitos dos
países – entre os quais se incluem a
Espanha, a Itália, a França, a Coreia, a Grã­
‑Bretanha, a China, a Rússia ou o Japão –
que concentram recursos consideráveis na
difusão das suas línguas, existe o consenso
de que as acções desenvolvidas em território norte-americano possuem um impacto
e uma capacidade de irradiação muito
superiores à sua base geográfica.
Sendo a maior economia mundial e um
país de emigrantes, os Estados Unidos
oferecem um ambiente muito competi­tivo
e qualquer estratégia ou lóbi em prol de
uma língua terá de partir da comunidade
local para obter sucesso. Neste sentido, a
FLAD tem promovido e coordenado, desde
2004, um conjunto de estudos no âmbito do seu programa “Iniciativa Língua
Portuguesa”, que recolheu dados estatísticos rigorosos sobre o número de escolas
americanas que ensinam português e a
sua relação com as comunidades imigrantes portuguesas sediadas nessas zonas.
Esse documento, pioneiro, apurou que
cerca de 300 universidades americanas
possuem cadeiras de Português e cerca de
110 escolas secundárias públicas, situadas
em seis estados (o mais relevante é a
Califórnia, onde vivem 28 por cento dos
luso-americanos, mas também
Massachusetts, Rhode Island, Connecticut,
Nova Jérsia, Nova Iorque e Florida são
zonas que concentram uma forte emigração de origem portuguesa), oferecem este
idioma como segunda língua.
O relatório permitiu ainda perceber
que existe um grande potencial de crescimento no número de alunos que poderão frequentar aulas de Português. Neste
momento, a nível do ensino secundário,
eles são à volta de 11 mil estudantes. No
entanto, só na Califórnia existem cerca de
79 mil pessoas com mais de cinco anos
que falam português em casa, das quais
quase 10 mil têm entre cinco e 17 anos
de idade, ou seja, são luso-descendentes
de segundas e terceiras gerações.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
PORTUGAL/EUA
Outro dado encorajador é que
o sistema escolar americano possui uma grande ­responsiveness, sendo
bastante flexível e adaptável à
diversidade cultural das comuni­
dades locais. Em Massachusetts,
por exemplo, basta um pedido
formulado por 30 alunos ou
encarregados de educação solicitando uma determinada cadeira
de opção para o estado ser obrigado a criar a disciplina, contratar
um professor e certificar a qualidade.
As más notícias é que, neste
momento, ainda existem poucos
factores, para além de uma legítima nostalgia pela terra-mãe, que
levem os luso-descendentes a querer estudar português.
A FLAD tem conduzido iniciativas para levar o Colllege Board,
a entidade mais credível que certifica os exames de acesso à maioria das universidades, a permitir a criação
de um exame de língua portuguesa que
possibilite aos estudantes liceais o acesso
ao ensino superior.
Estes exames são designados por Advanced
Placement Courses and Exams (AP), e a
sua aprovação garante a atribuição de créditos universitários existindo em cerca de
19 áreas temáticas, incluindo as línguas
(inglês, francês, alemão, latim, italiano,
coreano e, em breve, japonês e chinês).
Se o objectivo da criação desta prova for
alcançado, abrem-se inúmeras oportuni-
A maior concentração geográfica da comunidade luso-americana nos EUA
encontra-se assinalada a encarnado.
‘
[…] cerca de 300 universidades americanas possuem
cadeiras de Português e cerca de 110 escolas
secundárias públicas, situadas em seis estados,
oferecem este idioma como segunda língua.
A laranja, universidades onde se ensina português.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
’
dades para expandir o ensino do
português. A existência de um
exame de coreano, por exemplo,
disponibilizada desde 1997,
levou a que apenas em quatro
anos o número de liceus que
oferecem essa língua subisse de
17 para 70.
Em paralelo, a FLAD continuará a apoiar os departamentos de
estudos portugueses e lusófonos
em várias universidades, promovendo uma política de encontro
entre académicos do mundo
lusófono, bem como outras
acções de menor âmbito, como
o apoio a campos de férias com
temáticas portuguesas e brasileiras, muito populares entre as
famílias norte-americanas e que
podem deixar memórias e estímulos positivos (embora dificilmente quantificáveis) nas
centenas de crianças e jovens que
os frequentam. CB
17
��������
Primárias norte-americanas:
“Simplex” republicano facilita
escolha de McCain
Para se ser designado à Casa Branca pelos dois principais partidos,
o escolhido tem de obter o apoio da maioria dos delegados que participam
nos congressos dos respectivos partidos e que decorrem no Verão.
Por FILIPE VIEIRA*
A inexistência de uma recandidatura, quer
por parte de George W. Bush, quer do
próprio Vice-Presidente Dick Cheney, deixou campo aberto a todos os republicanos
com aspirações à Casa Branca. E foi vê-los
digladiarem-se à conquista da liderança,
do Iowa à Florida, onde John McCain,
apesar dos amargos de boca causados ao
longo da jornada por Mike Huckabee,
finalmente se definiu como o virtual candidato republicano.
Mas foram, na realidade, os candidatos
democratas que emprestaram a estas primárias de 2008 um interesse e um dinamismo verdadeiramente invulgares. Em
termos demográficos, não há memória
recente de uma adesão tão entusiástica por
parte do sector mais jovem da sociedade
americana ao processo de nomeação do
próximo Presidente.
Milhões de votantes, acabados de registar, foram às urnas, arrastados sobretudo
pelo apelo sedutor que lhe fora lançado
pelo candidato Barack Obama, prome­
tendo “mudança” e semeando esperança,
qual flautista de Hamelin, enchendo estádios a abarrotar de gente jovem.
Em resultado de toda a mobilização do
campo democrata, a que também não foi
alheia Hillary Clinton, a taxa de participação, tradicionalmente baixa e com
­tendência para se agravar, alterou-se significativamente. Comparativamente às
presidenciais de 2000, o New Hampshire
registou nestas primárias 52,5 por cento
de afluência às urnas (contra 44,4),
a Carolina do Sul 30,4 (contra 20,2),
o Alabama 31,7 (contra 15,3), a Georgia
18
32 (contra 17,7), sendo Nova Jérsia o caso
mais paradigmático, onde uma afluência
de 4,4 por cento há oito anos se transformou agora numa percentagem de 32,2
por cento.
Para se ser designado candidato à Casa
Branca pelos dois principais partidos,
o escolhido tem de obter o apoio da maioria dos delegados que participam nos
congressos dos respectivos partidos e que
decorrem no Verão que antecede as presidenciais, eleições aprazadas este ano para
o dia 4 de Novembro. Os democratas vão
reunir-se de 25 a 28 de Agosto, na cidade
de Denver, no Colorado, enquanto os
republicanos têm o seu conclave marcado
cesso complexo que nem sempre é fácil
de entender em todas as suas nuances.
E se, em termos percentuais, os resultados das primárias facilmente tornam visível, a olho desarmado, um vencedor – pelo
menos no que toca aos candidatos republicanos –, o facto é que, do lado dos
democratas, esses números não se traduzem numa proporcionalidade directa em
termos de delegados eleitos. Neste particular, o método adoptado pelo Partido
Republicano é absolutamente linear.
A começar pelos caucuses eleitorais, que são
reuniões partidárias, geralmente realizadas
em pequenas localidades, onde a votação
é feita de braço no ar entre pessoas que
se reúnem numa
igreja, numa sala de
Não há memória recente
uma qualquer associação cívica ou
de uma adesão tão entusiástica
mesmo em casas de
por parte do sector mais jovem
particulares, como
foi o caso do Iowa,
da sociedade americana
o estado talismã,
ao processo de nomeação
onde todo o processo
das primárias ­arranca,
do próximo Presidente.
cada quatro anos.
Os caucuses, que tivepara as cidades gémeas de Minneapolis­ ram lugar em mais de 15 estados e territó‑Saint Paul, no estado do Minnesota, de rios sob administração americana, constituem
1 a 4 de Setembro.
um invulgar caso do exercício da democraA escolha dos delegados resulta, por sua
cia de base, que os republicanos resolvem
vez, dos chamados caucuses e das eleições numa única votação individual, conferindo
primárias, que são disputadas estado a
a vitória ao candidato com maior apoio. No
estado, num sistema de eliminatórias que
caso dos democratas, os votantes congreacaba por afastar os candidatos com menor
gam-se em grupos de apoio aos diversos
arcaboiço e correspondente falta de apoio
candidatos e cada um desses núcleos vota
popular e financeiro. Trata-se de um pro- em bloco. Se não for achado de imediato
‘
’
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
��������
LUSA / EPA STEFAN ZAKLIN
No princípio do ano, Bill Richardson, Hillary Clinton, John Edwards e Barack Obama na corrida às presidenciais. Hillary e Obama ainda estavam bem-dispostos.
um vencedor, que obtenha um mínimo de
15 por cento do total dos votos, os dois
grupos mais votados procuram cooptar o
apoio dos que estão em minoria, num diálogo directo e, às vezes, moroso, até se
encontrar um front-runner em sucessivas votações.
Nos estados onde decorrem eleições primárias, que são a maioria, os republicanos
adoptam o sistema the winner takes it all,
o que permite ao candidato mais votado
arrebatar todos os delegados em jogo
naquele estado, independentemente da
posição do segundo classificado, mesmo
que este tenha obtido uma percentagem
muito próxima da do vencedor.
No que toca à escolha do seu candidato,
o Partido Republicano revela, uma vez mais,
o seu pragmatismo ao adoptar um processo
extremamente linear para a definição do seu
candidato à Casa Branca. O vencedor terá
apenas de reunir sob o mesmo tecto da sala
do congresso do partido 1191 delegados
dispostos a indicar o seu nome, não exisParalelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
tindo, na nomenclatura republicana, a figu­ra
dos superdelegados.
Entre os democratas, a divisão dos delegados começa por não corresponder, de
todo, à percentagem total obtida pelos
candidatos e obedece a um sistema extremamente intrincado de contagem, cír­culo
eleitoral a círculo eleitoral, numa proporcionalidade que tem a ver com o número
de inscritos em cada assembleia de voto.
Caso concreto destas eleições, na Califórnia,
Hillary Clinton conseguiu 52 por cento
dos votos e ganhou 195 delegados,
enquanto o seu rival, Barack Obama, obteve 43 por cento, tendo-lhe sido atribuídos
152 delegados. No estado da Virginia,
onde Obama conquistou 64 por cento do
eleitorado, foram-lhe atribuídos 54 delegados contra 29 para Hillary, que ficou
pelos 35 por cento.
A atestar a dificuldade processual está a
discrepância na contagem dos delegados
atribuída a Obama e a Hillary pelos diversos meios de comunicação social ameri-
canos. A determinada altura, os números
da CNN não correspondiam aos da MSNBC
e estes diferiam também dos da Associated
Press (AP). Os dados fornecidos pela AP
acabariam por revelar-se mais correctos,
dado que os seus repórteres se deram ao
trabalho de acompanhar localmente o
processo, falando com os dirigentes partidários e, às vezes mesmo, com os próprios delegados.
Para obter a nomeação, o candidato vencedor terá de receber o mandato expresso
de uma maioria de 2025 delegados presentes ao congresso do Partido Democrata.
Os delegados eleitos são, no total, 3253.
Mas há ainda os chamados “superdelegados” que não são eleitos. São figuras de
proa do partido, antigos presidentes,
governadores estaduais, membros do
Congresso dos Estados Unidos. E a esta
lista acrescem os nomes de democratas de
menor notoriedade, que são escolhidos,
supostamente, para garantir a diversidade
étnica e regional e, nalguns casos, 19
��������
‘
seu rival democraA existência dos “superdelegados”
ta, Walter Mondale,
passa, em regra, despercebida,
que obteve um
maior número de
mas a importância destes 796 votos
delegados, ainda
pode muito bem determinar
que insuficientes
para garantir a
um vencedor
vitória no con­
gresso. Os “superdelegados” acabaram por pôr a nomeação nas mãos de a candidatura Mondale-Ferraro revelou-se
Mondale, uma decisão a que não terá sido
um autêntico fracasso frente a um carisalheio o escândalo extramatrimonial em mático Ronald Reagan, que garantiu a sua
que Gary Hart se viu envolvido, com hon- permanência no cargo para um segundo
ras de fotografias de primeira página, tira- mandato por uma esmagadora maioria.
das no tombadilho de um veleiro iro- Mondale conseguiu apenas ganhar as eleinicamente chamado Monkey Business. Mondale ções no Minnesota, o seu estado natal, e
acabou por concorrer à Casa Branca, pro- na capital americana, Washington, um
pondo para a sua vice-presidência Geraldine reduto dos democratas.
Ferraro, a primeira mulher a candidatar-se
àquele cargo na história da América. Mas
* Jornalista em Washington DC
’
LUSA / EPA joshua gates weisberg
como retribuição por pequenos-grandes
favores, que é preciso reconhecer.
A existência dos “superdelegados” passa,
em regra, despercebida, mas a importância destes 796 votos pode muito bem
determinar um vencedor se, perante o
congresso, se apresentarem dois candidatos sem uma maioria clara. Foi esse o caso
do congresso democrata de 1984, ao preferir a candidatura do ex-Vice-Presidente
Walter Mondale à de Gary Hart.
O senador Hart tinha conseguido recriar
junto dos media a mística e o carisma de
um outro senador, igualmente jovem e
ambicioso e que conquistou a Casa Branca.
Hart pretendia seguir as pegadas de John
Kennedy, o primeiro e único Presidente
católico americano, tragicamente assassinado durante o seu mandato. E a nomeação
parecia estar ao alcance de Gary Hart: havia
ganho mais primárias e caucuses do que o
McCain em campanha na Califórnia: nos estados onde decorrem eleições primárias, que são a maioria,
os republicanos adoptam o sistema the winner takes it all.
20
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
��������
A comunidade
luso-americana e a política
Por António Vicente*
A emigração tem uma curiosa relação com o tempo
– os que partem tendem a ‘parar’ o país no ­momento
em que o deixam, e os que ficam cristalizam a imagem dos emigrantes no momento da partida; anos
mais tarde, tanto uns como outros surpreendem-se
quando constatam as enormes mudanças ocorridas.
Uma curiosa e pouco conhecida mudança nos
últimos anos tem sido o surgimento de um ­número
cada vez maior de políticos luso-americanos com
considerável sucesso na vida americana. Alguns são
emigrantes, outros são filhos ou netos de emigrantes portugueses. Mas todos assumem e projectam
a sua “herança” portuguesa. Ainda menos conhecida é a influência política da comunidade luso-americana em alguns contextos específicos. Estes
dados deviam talvez ser mais discutidos em Portugal
não só pela importância que os Estados Unidos têm
no mundo, mas também porque a comunidade
luso-americana pode assumir um papel cada vez
mais importante nas relações económicas e diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos.
Há quase duas décadas, a FLAD iniciou um programa específico destinado a conhecer melhor a comunidade e a apoiar projectos apresentados por
associações luso-americanas. Para além do apoio a
estudos académicos sobre a temática, as prioridades
da Fundação têm sido a educação – bolsas universitárias a jovens luso-descendentes, ensino da língua
portuguesa, apoio a estudos portugueses em universidades situadas em zonas da emigração portuguesa
– e a promoção da intervenção cívica e eleitoral da
comunidade. Neste último campo, a Fundação criou,
em 1998, o Portuguese American Citizenship Project,
um programa que actua em 16 cidades americanas
com forte concentração demográfica portuguesa e
que reúne líderes da comunidade, promove campanhas de naturalização e de recenseamento eleitoral e
organiza debates políticos com candidatos eleitorais
onde se discutem assuntos relevantes. Um dos aspectos mais inovadores do projecto foi o desenvolvi­mento
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
de uma ferramenta informática que cruza de forma
rápida e eficiente as bases de dados de clubes e associações luso-americanos com os dados oficiais de
recenseamento e voto. Com esta informação, consegue-se compreender a força eleitoral do clube e
empreender campanhas personalizadas de apelo ao
voto. Assim, umas semanas antes de uma determinada eleição, os voluntários do projecto enviam centenas (por vezes milhares) de cartas personalizadas
relembrando ao destinatário a eleição que se aproxima, o local onde vota e o respectivo horário. Na carta,
é feito ainda um apelo à importância do voto. Uns
meses mais tarde, consegue-se medir o impacto da
campanha, pois nos Estados Unidos a informação
sobre se uma dada pessoa se absteve ou votou é
pú­blica. Este método tem permitido constatar que,
ao ­contrário do que se pensava, a comunidade luso­
‑americana tende a votar em percentagens superiores
à média da dos locais onde vive. Comprova-se também
que a intervenção do Portuguese American Citizenship
Project permite aumentar de forma visível e consistente a taxa de participação eleitoral dos luso-americanos. Esta informação tem sido amplamente
divulgada junto dos luso-americanos e dos políticos
locais, o que tem constituído uma fonte de empowerment
da comunidade.
Mas muito antes do surgimento deste e de outros
projectos semelhantes, vários luso-americanos obtinham importantes vitórias eleitorais nos Estados
Unidos. Embora a comunidade luso-americana ainda
não tenha gerado um candidato à Casa Branca (ao
contrário da comunidade grega, com Michel Dukakis,
em 1988), nos últimos anos emanaram da mesma
dezenas de congressistas federais (durante a anterior
legislatura havia quatro congressistas luso-americanos
na Câmara de Representantes em Washington DC;
actualmente, são três), representantes e senadores
estaduais, membros do executivo estadual e presidentes de câmara. Muitos mantêm estreitos laços com
Portugal, todos continuam intimamente ligados 21
RUI OCHÔA
��������
Imigrantes portugueses em Fall River.
‘
à comunidade luso-americana, até porque muitas
vezes o seu cargo depende do voto desta. Em alguns
momentos (como durante a crise desencadeada pelo
referendo em Timor Leste em 1999), este grupo,
assim como alguns políticos eleitos por zonas de
forte concentração portuguesa, acabam por mostrar
uma maior liderança e sensibilidade em matérias
importantes para a comunidade e para Portugal.
Comprova-se [...] que a intervenção do
Portuguese American Citizenship Project permite
aumentar de forma visível e consistente a taxa
de participação eleitoral dos luso-americanos.
’
Naturalmente, a força da comunidade luso-americana revela-se principalmente na política local (a nível
nacional, talvez apenas a hispânica tenha um poder
efectivo). Mas, como referiu o conhecido político
americano, Tip O’Neill, na América “all Politics is
local”. O facto de os representantes federais serem
eleitos por círculos uninominais faz com que alguns
congressistas precisem do voto e do apoio da comunidade luso-americana, o que em alguns assuntos
específicos permite dar uma dimensão nacional a um
poder local. Quando, por exemplo, a Fundação iniciou
um programa de promoção do ensino da língua portuguesa nos Estados Unidos e precisou do apoio de
uma iniciativa federal, pôde contar com a cooperação
de alguns destes congressistas.
22
Como tantos outros grupos de imigração recente,
a comunidade portuguesa nos Estados Unidos tende
a votar mais no campo democrata. Acresce que um
dos principais locais de concentração da comuni­dade
é precisamente um dos estados mais democratas da
União – Massachusetts (também conhecido entre
alguns republicanos como a “People’s Republic of
Massachusetts”). Embora a maior parte dos políticos
de origem portuguesa pertença ao Partido Democrata,
existem, no entanto, importantes excepções. Do
grupo de quatro congressistas federais luso-americanos referidos anteriormente, dois eram democratas e dois republicanos.
Na actual eleição presidencial não se revela possível nem mesmo particularmente útil apurar com
rigor se a comunidade luso-americana está mais
próxima de Obama ou de Hillary. Importante, sim,
é constatar a cada vez mais intensa participação
cívica da comunidade luso-americana e os benefícios que daí advêm para a comunidade. Como
referem os materiais de campanha produzidos pelo
Portuguese American Citizenship Project, na democracia americana “quem não vota, não conta” e
“sem voto, sem voz”. Um outro poster, desenhado
por um grupo de luso-americanos de Fall River,
acaba por invocar a tal ideia da “paragem” e “avanço” do tempo, assim como a vida entre dois mundos e duas culturas – junto à imagem da bandeira
americana e do Uncle Sam lê-se a frase “Vota!
O Voto é a Arma do Povo”.
* Subdirector da FLAD
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
��������
O voto português
na América
Historicamente, a comunidade luso-americana favorece os candidatos do Partido Democrata.
Estas eleições primárias não constituem excepção.
Por FILIPE VIEIRA*
Nos estados de Rhode Island e de
Massachusetts, para falar da Costa Leste dos
EUA, os votos luso-americanos têm sido
determinantes para a vitória dos demo­
cratas, tanto a nível local como nacional.
O mesmo se passa noutros centros urbanos, onde é numerosa a presença dos luso­
‑descendentes. Refira-se Newark, no
estado de Nova Jérsia, ali às portas de
Manhattan. Ou a Manassas, no estado da
Virginia, a cerca de uma hora de distância
da Casa Branca, onde se instalou a mais
recente comunidade emigrante.
Mas é na Costa Leste que está a parte
mais visível da franja de poder ­partilhada
pelos luso-descendentes. Foi onde Bob
Correia foi recentemente eleito presi­dente
da Câmara de Fall River, numa corrida que
envolveu outro luso-americano: Alfredo
Alves, antigo vereador daquela edilidade.
Alves é, aliás, uma excepção no que toca
à generalidade das escolhas feitas nestas
presidenciais, já que o seu voto está reservado para o senador republicano John
McCain, porque “McCain representa estabilidade e, numa altura de guerra como
Alfredo Alves
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
a que vivemos, não podemos estar a brincar à presidência”. Apesar desta sua argumentação, Alfredo Alves faz, porém,
questão em sublinhar que a sua inten­
ção de voto poderá mudar, daqui ­até
Novembro!
Observador atento ao que se passa nos
estados da Nova Inglaterra, é director do
Portuguese Times, uma das mais antigas publi­
cações em língua portuguesa na América.
Manuel Adelino Ferreira apoia a candidatura da senadora Hillary Clinton e não o
esconde. Disse-o publicamente, num seu
programa de televisão que vai para o ar
todos os sábados à noite no Portuguese
Channel, um canal local dirigido à comunidade. Adelino Ferreira recordou à Paralelo
ter “manifestado desde logo a sua simpatia
pela senadora Clinton, dado que a acha a
mais experiente, porque é uma figura de
mais prestígio, capaz de restaurar a imagem
dos EUA, muito abalada pela Administração
Bush, a nível nacional e internacional”.
E é preciso não esquecer a Califórnia,
onde os luso-americanos detêm já uma
apreciável fatia do poder no plano regio-
João Luís de Medeiros
Manuel Adelino Ferreira
nal, incluindo ao nível do Senado ­esta­dual,
em Sacramento, a capital.
João Luís de Medeiros, um açoriano que
vive em Rancho Mirage, na Califórnia,
é um indefectível apoiante da campanha
de Barack Obama, político que, na sua opi­
nião, “aparece em cena como uma das mais
credíveis apostas presidenciais do sécu­
lo XXI, um político que veio de baixo para
cima no panorama nacional, à revelia dos
patrões do aparelho do Partido Democrata”.
Para Medeiros, que, nos anos 70, foi deputado à Assembleia Regional dos Açores e à
Assembleia da República (PS) “ao contrário
de Hillary Clinton, Obama não se apre­senta
como servo ‘noblesse oblige’ da renovação na
continuidade. O seu carisma tem sido testado
e consolidado pela maciça adesão ­popular
à sua candidatura”.
John Bento, arquitecto com ateliê na
Califórnia do Sul, preside ao PALCUS, a asso­
ciação para a defesa dos interesses da comunidade portuguesa nos Estados Unidos,
sediada em Washington. Em declarações à
Paralelo, Bento não manifestou a sua intenção
de voto, mas admitiu “que John McCain
não terá muitas hipóteses de vencer, porque
qualquer candidato que esteja associado ao
actual Presidente Bush irá ter uma grande
dificuldade em ganhar a Casa Branca”.
Comentou, por outro lado, estar surpreendido pela forma como o senador Barack
Obama conseguiu arrancar de uma situação
de quase total anonimato e assumir a liderança. “À partida, esperaria que quem quer
que fosse competir com Hillary Clinton
acabasse esmagado, o que não aconteceu
com Obama”, disse John Bento.
* Jornalista em Washington DC
23
��������
As eleições
presidenciais americanas
e a União Europeia
Por José Cutileiro*
Em 1995, numa conversa no State Department com
o subsecretário de Estado Peter Tarnoff, em que discutíamos problemas de defesa europeia, eu disse a
certa altura:
“A Europa é um lugar complicado...”
“Eu sei”, respondeu Tarnoff. “É por isso que nós
estamos aqui.”
‘
Economicamente, não há dois blocos no mundo
com relações mais estreitas do que a União
Europeia e os Estados Unidos.
’
Lembro-me muitas vezes deste esclarecimento.
Embora adoptando e venerando valores europeus,
os Estados Unidos nasceram e cresceram convencidos de terem deitado para trás das costas as zaragatas históricas do Velho Continente. O sé­culo XX
veio dar emenda realista a essa convicção ingénua:
estão com efeito do outro lado do mar mas, na
Primeira Grande Guerra, na Segunda Grande Guerra
e na Guerra Fria tiveram de passar para este lado
para ajudarem a pôr a Europa – e o resto do mundo –
em ordem. Das duas primeiras vezes com custos
penosos que os cemitérios militares da Flandres e
da Normandia atestam. (Conta-se que quando
De Gaulle, em 1966, retirou a França da estrutura
militar integrada da NATO e a organização se
mudou para a Bélgica, Lyndon Johnson lhe mandou perguntar se queria que os americanos levassem também as sepulturas). Quando, em 1995,
Tarnoff marcava a diferença entre a Europa e os
Estados Unidos, fazia-o durante uma conversa sobre
a partilha de encargos da nossa defesa comum.
Hoje, num mundo em constante e desordenada
mutação, com as chamadas potências emergentes
24
a crescerem como bambus, a olhos vistos, europeus
e americanos continuam detentores de património
de valores e interesses, defendido e promovido por
laços militares, comerciais e financeiros e por esforços na protecção e disseminação dos Direitos do
Homem e de decência cívica e política. Os laços
transatlânticos são fortíssimos.
Militarmente, a NATO – a mais poderosa aliança
do mundo – aumentou o âmbito da sua acção desde
o colapso da União Soviética: juntou à protecção
que nos dava contra a guerra, aptidão para exportar paz. Continua não só a assegurar a defesa territorial dos seus Estados-membros mas também,
de vez em quando com debate interno muito duro,
a ir-lhes proteger interesses materiais ou morais
onde for preciso: Kosovo, Afeganistão, Mediterrâneo,
são as missões em curso. Dada como morta várias
vezes desde o fim da Guerra Fria, por várias vezes
tem vindo a mostrar que está viva e sã.
Economicamente, não há dois blocos no mundo
com relações mais estreitas do que a União Europeia
e os Estados Unidos; na realidade, trocas comerciais
e investimentos cruzados dão ao conjunto dos dois
uma força incomparável e ilustram o benefício da
associação, sobretudo agora que a concorrência
exterior de outros blocos – Japão, China, Índia,
Rússia, Brasil – é mais poderosa e acesa do que
alguma vez foi. Na Europa, espíritos tão isentos
quanto o de Jacques Delors, que recomenda também
maior cooperação transatlântica em defesa e segurança, dão-se conta disso: Édouard Balladur escreve
sobre as vantagens de uma comunidade atlântica
– e Nicolas Sarkozy aproximou a França dos Estados
Unidos de maneira inédita, pelo menos desde o
regresso de De Gaulle ao poder em 1958.
Por outro lado, nos Estados Unidos há quem
su­gira que o país vive um momento palmerstoniano (Lord Palmerston, estadista inglês do século XIX,
disse que a Inglaterra não tinha amigos nem inimigos permanentes – tinha interesses permanentes)
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
��������
externas), sobretudo no decurso do primeiro mandato. No segundo, o bom senso de vez em quando
veio ao de cima e, do lado de cá do Atlântico, entre
os Estados-membros da União Europeia houve
alternâncias políticas favoráveis a Washington.
Assim, no fim de Janeiro do ano que vem, o
homem ou a mu­­
lher do Oval Office
estará em condições de repor as
Com as presidenciais, a imagem
relações transados Estados Unidos na Europa
tlânticas na calha
de onde George
e no Mundo começa a sair
W. Bush parecia
do
buraco negro onde entrara.
quase a fazê-las sal­
tar – que é o que
os europeus também querem. Sem esquecermos,
nem nós nem eles, que eles estão do lado de lá
porque nós somos como somos, acudiremos todos
(outra vez Palmerston...) aos interesses permanentes que nos unem.
Entretanto, a campanha eleitoral americana tem
mostrado tal intensidade de vida política, tal
ri­queza de participação, tal entusiasmo e cogitação
quanto ao futuro do país, tal alegria, que a imagem
dos Estados Unidos na Europa e no mundo começa a pouco e pouco a sair do buraco negro onde
entrara. E, se se comparar tudo isso com a eleição
que levou Medvedev ao Kremlin, percebe-se, mais
uma vez, a sorte grande que foi a Guerra Fria ter
sido ganha por este lado.
‘
’
* Embaixador
LUSA / EPA MICHAL CZERWONKA
no qual, por divergência de interesses – por exemplo, falta de empenho em capacidade militar dos
europeus –, a centralidade da Europa será mais
fraca na política externa norte-americana durante
o(s) mandato(s) do 44.° Presidente americano do
que foi na segunda metade do século XX. Não
tenho a certeza. Se por “centralidade” se entender
a prioridade imposta pela situação geográfica da
Europa durante a Guerra Fria, com certeza que esta
já desapareceu. Se, porém, “centralidade” tiver a
ver com um conjunto de valores e interesses que
aproxima os dois lados do Atlântico mais do que
aproxima qualquer deles de qualquer outro centro
de poder no mundo multipolar que se avizinha,
o laço transatlântico continuará a ser central na
política externa dos Estados Unidos – e a exigir
mais da Europa na partilha dos encargos de defesa
e segurança.
Seja John McCain, Barack Obama ou Hillary
Clinton o 44.° Presidente dos Estados Unidos, a
sua política externa não poderá afastar-se muito da
de George W. Bush. As sementes de muito do que
Bush fez, incluindo a invasão do Iraque, tinham
sido deitadas por Clinton; outras há mais tempo
ainda e os interesses americanos permanecem. Mas
mudará com certeza a maneira de fazer. Washington
terá um discurso mais racional e compreensivo das
posições de outros, o que trará uma lufada de ar
fresco e ajudará a tentar resolver algumas questões
pendentes. O próximo Presidente americano chegará com parti pris favorável só por não ser George
W. Bush, que acumulou demasiados erros de política externa (e de política interna com implicações
Dia de votação em Circleville, Ohio.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
25
��������
Obama combate Hillary
com tesouraria virtual
Estas eleições estão a mudar a face política da América.
Por FILIPE VIEIRA*
A sua história está a ser escrita a cada ciclo
noticioso, que há muito deixou de ser de
vinte e quatro horas e cuja memória se
transferiu das primeiras páginas dos jornais e dos telejornais para passar a assumir
a perenidade fugaz dessa ardósia virtual
que é a internet. As campanhas estão cientes disso mesmo e simulam, assim, a pose
que julgam mais adequada para o combate eleitoral. Os comícios populares são
ainda a arena final, a prova real para o
frente-a-frente entre os candidatos e os
eleitores.
Mas a nova realidade mediática é mais
complexa do que nunca. Esta campanha
começa por fazer história pelo simples
facto de colocar, pela primeira vez, na
corrida à Casa Branca um candidato negro
e uma mulher. De uma assentada,
a América confronta-se com dois desafios
na aceitação social de si própria: Barack
Obama, o senador do Illinois, filho de um
queniano e de uma americana branca; e
Hillary Clinton, a mais combativa de todas
as ex-primeiras-damas. Ambos conquistaram facilmente o centro das atenções, que
dividem o país e a unidade do próprio
Partido Democrata. O senador John
McCain, já definido como o candidato do
Partido Republicano, acabou por ser
empurrado para os destaques menores,
esperando o seu dia ao sol.
Hillary Clinton começou por ser vista
como a vencedora inevitável da nomeação
democrata. Essa era a dinâmica decor­rente
do reconhecimento dado ao seu nome,
reforçada pela influência que Bill Clinton
tem na máquina partidária. Habilmente e
desde o início, os Clinton garantiram o
apoio financeiro e o dos principais apoiantes do Partido Democrata, esgotando, em
primeira análise, o acesso àquelas fontes
por parte de novos candidatos.
Barack Obama arrancou para a sua campanha com conhecimento de que os Clinton
26
consumiram, de facto, todo o “oxigénio
financeiro” à volta de novos concorrentes
e que seria necessário encontrar outros
meios de sustentação. Já em 2004, a campanha do ex-governador pelo estado de
Vermont, Howard Dean, havia demonstrado a utilidade da internet na angariação de
fundos a partir de pequenos doadores anónimos. Obama agarrou nessa ideia e expandiu-a para a transformar num instrumento
que utilizasse as tecnologias on-line para
organizar a sua campanha ao nível comunitário. Na prática, o senador pretendia usar
a internet para fazer uma campanha de
porta-a-porta virtual, em tudo semelhante
às que efectuou enquanto activista comunitário nos bairros pobres de Chicago, nos
primórdios da sua carreira política. Para isso
contou com o apoio de diversos gurus da
informática, como foi o caso do criador do
famoso site “FaceBook”, um dos mais populares pontos de encontro de toda a net.
“Barackobama.com” tem sido o portal
usado para gerir toda a sua campanha, um
endereço afectuosamente conhecido entre
os militantes como “MyBo”.
pela primeira vez, a marca de um milhão
de dólares em dinheiro canalizado via
internet.
A par da angariação de fundos, a campanha
de Obama criou uma enorme e complexa
comunidade on-line que, nalguns estados,
mantém em contacto permanente e instantâneo mais de 100 mil apoiantes. Isso permite a mobilização das bases, quarteirão a
quarteirão, bairro a bairro, cidade a cidade,
estado a estado, numa reinterpretação beni­
gna do poder popular à dimensão continental da América. Não é, pois, de estranhar
que a sua campanha seja considerada a
melhor em termos de coordenação e administração durante estas primárias.
Ainda que utilizando a internet, Hillary
Clinton recorre com frequência aos media
mais convencionais. E a sua organização,
em geral, tem revelado muitos pontos
fracos no que toca à mera gestão, que se
revelou convulsiva com o despedimento
e substituição da sua principal coordenadora, para não falar de um episódio verbal
entre os dois principais estrategos ­tro­cando
insultos ao telefone numa chuva de “efes”
‘
A par da angariação de fundos, a campanha de Obama
criou uma enorme e complexa comunidade on-line que,
nalguns estados, mantém em contacto permanente
e instantâneo mais de 100 mil apoiantes.
’
A angariação de fundos tem sido um
êxito absoluto. Só em Fevereiro, Obama
angariou 55 milhões de dólares, contra
os 35 milhões que Hillary arrecadou utilizando os métodos tradicionais. Naquele
mesmo mês, no site de Obama mais de
385 mil doadores individuais ultrapassou,
que serviu para gáudio dos tablóides.
Ocorre falar também na decerto não
menos importante súbita falta de fundos,
que obrigou a candidata a fazer um auto­
‑empréstimo de cinco milhões de dólares
– até que novo fluxo de dinheiro fosse
injectado pelos doadores –, e pôs a nu
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
LUSA / EPA STEVE C. MITCHELL
��������
Barack Obama discursa em Plainfield, Indiana. A sua campanha é considerada a melhor em termos de coordenação e administração.
gastos sumptuários, uns, e aparentemente
desnecessários, outros.
As vitórias de Hillary no Ohio, no Texas
e em Rhode Island, depois de 12 derrotas
consecutivas frente a Obama, serviram de
lenitivo e permitiram-lhe relançar a campanha. A notável habilidade política dos
Clinton transformou aquela super-terça­
‑feira num fulminante contra-ataque que
deixou sem fôlego a campanha de Obama,
um Obama subitamente abandonado pelos
media, agora seduzidos por esta nova versão
no feminino do comeback kid.
Hillary contou, desde o início, com o
apoio das figuras institucionais do Partido
Democrata (incluindo os “superdelegados”)
e, ao contrário de Al Gore, não enjeitou o
apoio expresso do antigo Presidente Bill
Clinton. A presença do seu ex-marido tem
sido, nalguns casos, uma bênção política,
e, noutros, quase uma maldição. Os seus
adversários chegaram mesmo a designar a
candidata por “Billary”, numa maldosa simbiose dos seus nomes. Bill Clinton, que
começou por vender as virtualidades da sua
presidência como razão para votar na
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
mulher, mudou várias vezes o tom do seu
discurso para se adaptar a ventos e marés,
sem conseguir verdadeiramente achar-se
neste seu novo papel secundário.
À sombra destas primeiras figuras, o candidato republicano John McCain viu, de
certo modo, diminuído o seu protagonismo
nestas primárias para as presidenciais de
Novembro. E o feito de McCain não foi
coisa pouca. Perante múltiplos candidatos
republicanos com os cofres cheios (caso de
Mitt Romney) e com um inegável carisma
(caso de Mike Huckabee), McCain pôs à
prova, uma vez mais, a sua capacidade de
sobrevivência. Prisioneiro de guerra no
Vietname, aquele senador esteve cinco anos
detido na famigerada prisão vietcongue
ironicamente conhecida como “Saigon
Hilton”, onde lhe partiram os dois braços,
de tal forma que ainda hoje não os consegue sequer levantar para se pentear.
Também no que toca a estas eleições,
McCain parece ter renascido das cinzas
quando a sua campanha, antes da votação
de New Hampshire, se viu reduzida a 40
mil dólares dos três milhões que o senador
havia pe­dido emprestados ao seu seguro
de vida, no início da corrida. Os fundos
eram tão esparsos, que um dos administradores da campanha, numa determinada
altura, trocou o voo do candidato de uma
companhia para outra para poder poupar
uns trocados... Já em 2000, McCain havia
adoptado o autocarro como a forma ideal
de fazer campanha, baptizando-o de Straight
Talk, o que se pode traduzir por “sem papas
na língua”. E McCain cultiva essa imagem
de linguagem directa com o eleitorado e,
sobretudo, com os jornalistas que com ele
viajam no autocarro o dia inteiro, com
acesso permanente ao candidato. McCain,
que sobreviveu a uma das mais mortíferas
formas de cancro da pele (melanoma), tem
uma personalidade a um tempo jovial e
abrasiva e a sua relação aberta com os
repórteres já lhe valeu ser considerado um
media darling, o que terá decididamente
mudado com o surgimento de uma outra
estrela no firmamento político: Barack
Obama.
* Jornalista em Washington DC
27
��������
“Viva La Raza!”
Como as eleições hispanizam a América
Por Michael Werz*
É um dado adquirido que nas eleições se decide
democratas precisaram de encontrar novas ideias,
uma orientação para o futuro de uma sociedade. de forma a conquistarem a participação do eleitoMas nos EUA iniciou-se, em vez disso, e para es­panto rado daquela que é a primeira minoria do país,
de muitos americanos, uma intensa discussão sobre com mais de 40 milhões de membros.
a actualidade. Pela primeira vez na história ameriNo entanto, há que salientar que entre a Califórnia
cana as eleições não vão ser disputadas entre dois e o Texas, dois estados com mais de 40 por cento
homens brancos. E o mais interessante é que as tra- de população hispânica, existem enormes diferendições dos fluxos migratórios e as alterações nas
ças. Basta recuar à fundação do estado do Texas, em
relações raciais se tornaram o centro do concurso
Dezembro de 1845, quando a região ainda pertendas decisões políticas, sendo o peso dos latino- cia ao México, para relembrar a história da ocupa-americanos decisivo na corrida à Presidência.
ção dos hispânicos. A expressão “não fomos nós
Foi isto mesmo que John Kerry provou quando
que atravessámos as fronteiras, foram elas que nos
há poucas semanas, após uma viagem ao Afeganistão, atravessaram a nós”, não é de maneira nenhuma
em vez de regressar a Washington, voou directa- uma mera piada política. No Texas, os hispânicos
mente para Del Rio, Texas, para apoiar Barack
vêem-se a si próprios no centro e não à margem
Obama nestas eleições. Del Rio, o limite sul dos da sociedade. Na Califórnia, pelo contrário, existem
EUA, é o verdadeiro
Sul. O número de
habitantes ronda os
36 mil, dos quais
mais de 80 por cento
As minorias de origem hispânica
são hispânicos e 17
por cento são brantêm uma grande influência na nomeação.
cos. Em poucos minuDois terços dos hispânicos vivem no Texas,
tos chega-se a pé ao
rio Bravo. Na outra
na Florida e na Califórnia.
margem, situa-se a
cidade-irmã mexi­
cana, a Ciudad Acuña.
Não admira, por isso,
que John Kerry, já no palco, perguntasse, num tom muitos imigrantes de primeira e segunda geração
meio iró­nico, onde é que se encontrava. O Sul do provenientes do México.
Texas dista tanto de Boston como Copenhaga de
Barack Obama utilizou, por isso, estratégias comFaro e, ainda assim, esta região fronteiriça encon- pletamente diferentes para se dirigir a estes dois
tra-se no centro político dos EUA.
grupos distintos. Na Califórnia, nos preparativos
A disputa das eleições primárias que este ano se das eleições primárias a 5 de Fevereiro, lembrou o
realizam cedo tem sido bastante renhida e, pela
seu pai que­niano, e num comício realizado na parte
primeira vez, as minorias de origem hispânica têm
oriental de Los Angeles afirmou: “O meu pai não
uma grande influência na nomeação. Dois terços
aparentava ter vindo [da Europa] no Mayflower para
dos hispânicos vivem no Texas, na Florida e na a América.” Este discurso sobre a viagem é muito
Califórnia, estados que nos anos 80 não tinham
útil no Sul californiano mas não no Texas, onde
nenhuma relevância política porque as eleições mais de metade dos hispânicos se vêem como ‘branprimárias só começavam quando a corrida às urnas cos’ e olham para Obama percepcionando-o projá estava decidida. Por isso, este ano os candidatos
vavelmente mais negro do que ele é.
‘
’
28
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
��������
‘
A melodia e o ritmo
da campanha eleitoral
de Hillary Clinton
são claramente
hispanizados.
’
Para além disso, no Sul, o nome Clinton,
principalmente para os hispânicos mais velhos,
é sinónimo de Partido Democrata, o que está
directamente ligado às lutas pelos direitos civis.
Isto é relevante no Texas, porque até aos anos 60
do século passado a discriminação contra os hispânicos era muito forte. Como minoria estabelecida, em pleno gozo de todos os direitos civis, os
hispânicos do Texas denunciaram, no âmbito da
sua própria luta, as más experiências vividas noutras partes do país. No entanto, devido ao facto de
os cargos políticos do Texas reservados para a minoria não branca estarem ocupados por afro-americanos, desenvolveu-se uma concorrência pelo status
de minoria par excellence. Isto levou a que os hispânicos se vissem muitas vezes forçados a defender
os seus interesses através de alianças com políticos
e activistas brancos progressistas.
As eleições primárias no Texas transformaram esta
constelação (comunidade) num tema de discussão
em toda a América. A discussão pública sobre hispânicos texanos, cuja experiência política foi negra
apesar da representação política ser branca, tornou-se tema permanente de um debate mais alar­
gado sobre o status quo da cultura e da política. Este
debate, iniciado no Outono passado, incendiou-se
e intensificou-se devido às eleições, levando a que
muitos milhões de americanos nele participassem.
Debate que diz respeito a todos, tanto a minorias
como a maiorias. É cada vez mais difícil ignorar
que esta época tão marcada pelos movimentos dos
direitos civis, pelo debate sobre o racismo e as
demonstrações de afirmação, esteja a chegar ao seu
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
fim, sem negligenciar os problemas existentes. As
eleições e as suas alianças de 2008 mostram que
não só uma parte da classe média instruída se vê
como uma fracção de uma sociedade em que a
colour line já não é uma linha divisória inflexível.
Isto é visível nos apoios de ambos os candidatos
democratas, uma vez que estes não recolhem simpatia apenas pela cor da pele mas também pela
formação do eleitorado. Eleitores que acabaram o
ensino secundário, com posses e consciência pós-étnica, sentem-se fortemente identificados com o
discurso de Barack Obama e a retórica da “mudança” e de um mundo melhor. Para os trabalhadores
migrantes provenientes da América Latina e de
outras regiões, com um nível de formação abaixo
da média, Hillary Clinton orientou o seu discurso
para os temas do “pão e da manteiga”, de modo
a garantir os cerca de dois terços dos votos da
Califórnia. Também no Texas os hispânicos contribuíram para aquele que poderá vir a ser o mais
importante sucesso da sua carreira. Foi lá que muitos deles viram em Hillary Clinton uma personagem
política mais familiar do que Barack Obama, o filho
de imigrantes radicado no Havai e formado em
Harvard. No entanto, conseguiu ganhar a simpatia
dos hispânicos mais jovens que relacionam o nome
Clinton com a velha mentalidade americana – o
clássico conflito geracional no seio de uma minoria que se diferencia rapidamente.
As eleições lançam para a ribalta um dos momentos
históricos ainda em aberto nos EUA; um momento
sobre o qual os candidatos têm visões políticas diferentes, seja qual for a cor de pele. A melodia e o ritmo
da campanha eleitoral de Hillary Clinton
são claramente hispanizados, enquanto Barack Obama
projecta a imagem do visionário intelectual. No
entanto, ambos sabem que, pelo menos por agora, o
futuro dos EUA depende do Sudoeste do país.
* Transatlantic Fellow do German Marshall Fund e Visiting Scholar
na Universidade de Georgetown, em Washington DC
http://www.gmfus.org/experts/espert.cfm?id=48
Traduzido do alemão por Luís Nunes
29
��������
Hillary e as mulheres
Nos estados que já votaram até agora o grupo estatístico das mulheres entre
os 40 e os 50 anos tem-se revelado o principal bloco de apoio de Hillary Clinton.
Por RITA SIZA*
30
Mas a verdade é que as mulheres têm
uma reacção mais emocional à candidatura de Hillary Clinton: adoram-na ou
odeiam-na muito mais convictamente (e
talvez mais irracionalmente).
Para umas, Hillary é a representante
máxima da geração baby-boomer: uma
mulher que lutou pela igualdade de
oportunidades, afirmou a sua compe­
tência e ganhou a admiração dos seus
pares. Mas para outras, não passa de uma
política ambiciosa e calculista, capaz de
fazer qualquer sacrifício para vencer –
um comportamento rejeitado como a
repetição de uma fórmula de sucesso
machista.
Aliás, bastou a apresentação da sua candidatura para se relançar o debate sobre
o actual movimento feminista na América.
O que pretendem agora as mulheres:
liderar ou derrubar o status quo? Qual
deverá ser a sua estratégia: juntar-se ao
clube ou incendiar as suas instalações?
É um debate para já estéril – pelo menos
no que diz respeito ao futuro da campanha eleitoral.
À Carol essa discussão não interessa. “Há
décadas que esta mulher se sujeita ao mais
apertado escrutínio do mundo. Olho para
ela e penso: não há hipótese de ela poder
ser encarada como uma pessoa normal,
porque não há nada de normal na sua
vida”, assinala. A simpatia que sente por
Hillary é antes de mais uma questão de
solidariedade. “Basta pensar em tudo por
que ela passou por causa do ‘affaire’ do
marido, tudo o que ela aguentou para
chegar a este momento. Agora, às vezes,
pergunto-me se, caso perca a eleição, ela
se vai finalmente divorciar…”
* Correspondente do jornal Público nos EUA
LUSA / EPA MICHAL CZERWONKA
Carol e Susie, duas mulheres de meia-idade de Austin, no Texas, admitem que
estavam decididas a apoiar o senador democrata do Illinois Barack Obama nas eleições
primárias do seu estado – só que na hora
da verdade, quando entraram no cubículo
reservado aos eleitores e se confrontaram
com o ecrã da máquina de voto, o dedo
fugiu-lhes para o quadrado que assinalava
a candidatura de Hillary Clinton.
“Ela é uma excelente candidata, mas,
mais importante do que isso, é uma
mulher. Naquele momento apercebi-me
que não podia cometer essa traição e votar
num homem”, justificou-se Susie, que
reúne todas as características que as estatísticas apontam como comuns aos mais
fiéis apoiantes da senadora de Nova Iorque
e antiga primeira-dama: mulher, branca,
47 anos, casada, habitante dos subúrbios,
com qualificações mas sem terminar um
curso superior.
“Li um artigo com uma estatística que
dizia que 11 por cento dos americanos
nunca votariam numa mulher, contra seis
por cento que nunca votariam num negro.
E senti-me insultada”, lamentou Susie,
explicando que foi esse facto que a fez
mudar de ideias e votar em Hillary. “Afinal,
neste país a misoginia é muito pior do que
o racismo”, considerou.
Nos estados que já votaram até agora o
grupo estatístico das mulheres entre os
40 e os 50 anos tem-se revelado o principal bloco de apoio de Hillary Clinton.
Não admira, por isso, que a sua candidatura continue a investir fortemente na
realização de eventos direccionados para
o público feminino.
Nessas ocasiões, como destaca a imprensa
norte-americana, o discurso da candidata
concentra-se em torno de assuntos como a
saúde, a educação, a criação de empregos
ou mesmo a religião – temas alegadamente
mais ‘queridos’ pelo eleitorado feminino.
Apoiantes femininas de Hillary no Ohio.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
POLÍTICA
A Turquia é uma mistura
da UE a 27
Por FILIPA BRAZONA
ACIMA DE QUALQUER
SUSPEITA...
À margem do encontro, Ian Lesser
respondeu a algumas questões.
As relações entre a Turquia, a União
Europeia (UE) e os Estados Unidos da
América (EUA) não enfrentam novas
dificuldades pois nunca existiu uma
situação consideravelmente melhor. Esta
foi uma das várias opiniões partilhadas
numa discussão cujo mote foi dado
pelo lançamento do livro Beyond Suspicion:
Rethinking US Turkish Relations, de Ian Lesser,
especialista em relações internacionais
do German Marshall Fund, e que contou,
ainda, com a presença de Omer Kaya
Turkmen, embaixador da República da
Turquia, Armando Marques Guedes,
presidente do Instituto Diplomático do
Ministério dos Negócios Estrangeiros,
Ahmet Evin, director do Istambul Policy
Center, e Charles Buchanan, administrador
da FLAD.
Kaya Turkmen defendeu que a Turquia e
os EUA são “aliados, embora, em alguns
aspectos, pensem de forma distinta”,
considerando um “exagero” julgar que
se assiste a uma crise relacional pois,
como admitiu, “nunca se viveu uma
situação melhor”. “O lugar da Turquia
é no Ocidente” – disse o embaixador,
acrescentando que acredita na rápida
adesão do seu país à UE, apesar da longa
espera de já cinquenta anos.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
Por sua vez, Marques Guedes, recorrendo
à obra de Ian Lesser, apresentou uma
perspectiva histórica das relações entre os
três actores. À semelhança do primeiro
orador, assegurou “firmemente” que “o
lugar da Turquia é com o Ocidente”.
Apesar desta convicção, acrescentou que
“seria desastroso se a Turquia aderisse à
UE”, mas que seria um desastre “ainda
maior se tal não viesse a acontecer”.
Ahmet Evin acredita ser imperioso
estabelecer uma data limite para a adesão
da Turquia à UE, admitindo que o grande
obstáculo no processo de adesão da
Turquia à UE prende-se com a difícil
definição da Turquia enquanto país: “A
Turquia é uma mistura da UE a 27.”
É essa amálgama de valores que confunde
o mundo e que a impede de ser totalmente
parte do Ocidente ou do Oriente.
O título do livro – Beyond Suspicion:
Rethinking US Turkish Relations – foi escolhido
pelo autor para sublinhar a ideia de
suspeição mútua. A Turquia mantém hoje
relações com o Irão e o Iraque, situação
que a Administração Bush não encara
de forma pacífica, olhando estes países,
muitas vezes, como um todo, “um bloco
de problemas e não países diferenciados”,
disse Lesser.
O estreitar de relações com a UE dá à Turquia
a possibilidade de melhores relações com os
EUA?
Tal dependerá do estado das relações
transatlânticas. Se estas forem positivas,
poderá ser uma ajuda ter uma base formal
para uma relação triangular forte entre a
Turquia, a Europa e os EUA. Por outro lado,
simplificará as coisas para a Turquia porque
o país não vai querer estar na posição de ter
de escolher entre uma orientação pró-América
e uma pró-Europa.
Alienar ou isolar a Turquia, é uma possibilidade?
Qual seria o pior cenário?
O colapso do projecto europeu da Turquia seria
o pior que poderia acontecer, porque os turcos
iriam tornar-se mais nacionalistas e isolados.
Também não é positivo que as relações entre
os EUA e a UE continuem a deteriorar-se devido
a questões como o Iraque. Poderíamos chegar
a um triângulo de alienação… com os EUA a
perderem os seus aliados, a Turquia a isolar­
‑se e a UE com dificuldade em relacionar-se
com os seus parceiros. Há um sério risco de
nacionalismo… mas esse é o pior cenário e não
creio que venha a suceder.
Que tipo de iniciativas deveriam ser levadas a
cabo para enfatizar a relação transatlântica?
Algumas dessas iniciativas terão mesmo de
esperar por um novo governo norte-americano.
As opiniões na Turquia e na Europa são, hoje,
muito negativas e é difícil contrariar essa
posição. Só com uma nova Administração
haverá oportunidade para um tipo diferente
de relação. Teremos de esperar para ver. Em
qualquer caso, penso que é essencial ter caras
novas com outras ideias para se pensar a sério
nestas parcerias.
31
POLÍTICA
Quando a NATO mora ao lado
Rede de bases militares norte-americanas
discutida em Lisboa
No Instituto de Estudos Superiores Militares debateu-se
"O impacto político e social das bases militares da NATO".
Mas uma questão ficou no ar: com uma Europa cada vez mais forte
como serão as relações transatlânticas?
Por marco silva
Embora a NATO estivesse em causa,
a referência à União Europeia (UE) foi
transversal a todas as comunicações,
numa altura em que os líderes europeus
estavam reunidos em Lisboa. Foi evocada
a situação de uma Europa cada vez mais
forte e discutidas as repercussões dessa
evolução na estratégia transatlântica.
LUSA
A convite do Instituto Português de Relações
Internacionais (IPRI), especialistas oriundos
de vários pontos do globo participaram
num workshop de “Pesquisa Avançada” (ver
caixa) promovido pela NATO em Lisboa.
Durante três dias foi analisado o impacto
da instalação de bases militares norte-americanas nos vários continentes.
Soldados aguardam junto do AWACS da NATO (Warning and Control System/Sistema Aéreo de Alerta
e Controle) equipado com radares para defesa e táctica militares.
32
O desafio europeu
Com uma Europa a Vinte e Sete, novos
são os desafios que se colocam às relações
internacionais, sobretudo no que respeita
às estratégias de defesa e de segurança
comuns – uma ideia consensual entre os
oradores.
Para Simon Duke, do European Institute
of Public Administration em Maastricht,
“Sendo a Europa um actor cada vez mais
activo ao nível da política externa, ela terá
de definir o seu próprio papel global em
conjunto com os EUA e vice-versa […] a
Europa vai querer ser encarada não como
um parceiro inferior, mas antes de igual
para igual”.
Apesar das dificuldades em encontrar
consensos políticos entre a Europa e
os EUA, os oradores reconheceram que
existem condições para o desenvolvimento
das relações transatlânticas, ainda que esse
seja um desafio entregue em parte ao
futuro Presidente norte-americano.
Entre os convidados encontrava-se o
antigo embaixador da Roménia, Sebastian
Mitrache. Actualmente ao serviço do
Ministério dos Negócios Estrangeiros
romeno (Departamento da NATO), falou
sobre a política externa romena na última
década. Tendo entrado para a UE há um
ano atrás, a Roménia não virou contudo
as costas à NATO: “Apoiamos tanto a
NATO como a UE e acreditamos que
ambas as estruturas deveriam cooperar
no futuro.”
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
POLÍTICA
Na Cimeira de Bucareste, que decorreu
em Abril, esta cooperação foi posta à prova;
da agenda fazem parte a participação
militar da NATO no Afeganistão e a
parceria com a Ucrânia.
Marco Silva
A herança da Guerra Fria
Os oradores originários de países de
Leste não deixaram de fazer referência
à Rússia e aos efeitos da sua política
externa na definição da estratégia da
NATO e da UE.
Numa altura em que a NATO se encontra
a desenvolver fortes laços com os países
da Europa de Leste, Volodymiyr Dubovyk,
da Universidade de Odessa, na Ucrânia,
afirmou contudo que “a expansão
da NATO não se pode traduzir numa
militância contra a Rússia pois, nesse
caso, verificar-se-á uma aproximação
deste país aos tempos da Guerra Fria”.
Da mesma opinião é Gevorg Melikyan, da
organização não governamental arménia
“Solidariedade dos Estudantes”, que
afirma ser necessário “aliviar algumas das
posições da NATO em relação à Rússia”.
Volodymiyr Dubovyk revelou-se ainda
preocupado com o rumo político que
o Kremlin está a tomar, sobretudo no
domínio da política externa: “A Rússia
está a mover-se na direcção errada,
no que diz respeito, por exemplo,
à consolidação de práticas autoritárias.”
Por isso, considera que “Workshops deste
tipo são essenciais para chamar a atenção
para os problemas em territórios como a
Crimeia, a Tchechénia, a Transnístria ou
a Geórgia”.
O que são os
Workshops de
Pesquisa Avançada
(WPA)?
Luís Nuno Rodrigues, co-director do encontro, com o antigo embaixador da Roménia,
Sebastian Mitrache, e Carlos Gaspar, presidente do IPRI.
Os WPA são encontros de académicos e
especialistas, promovidos pela NATO. Têm
como objectivo a construção de um diálogo
transatlântico em diversos domínios do
conhecimento, desde o ambiente às Forças
Armadas. Proporcionam aos participantes a
hipótese de partilharem conhecimentos de
uma maneira informal. Estes workshops não
são abertos ao público, fazendo-se a entrada
mediante convite. Geralmente, têm a duração
média de quatro dias e são financiados na
íntegra pelo Programa Científico da NATO
para a Paz e para a Segurança. Para mais
informações, consultar: http://www.nato.
int/science/
“Aqui produziu-se conhecimento”
No final dos três dias do workshop, a Paralelo
entrevistou Luís Nuno Rodrigues, membro do
IPRI e co-director do encontro.
Paralelo [P] Agora que o workshop chegou
ao fim, que balanço faz da iniciativa?
Luís Nuno Rodrigues [LNR] Faço um balanço
altamente optimista e favorável. Acho que
se deram vários passos significativos em
prol de um conhecimento mais profundo
desta problemática (a existência de bases
militares da NATO espalhadas pelo globo).
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
Durante três dias, aqui produziu-se conhe­
cimento.
[P] Num mundo com novos centros de poder,
ainda há espaço para a NATO?
[LNR] Penso que sim. Independentemente das
alterações que se venham a verificar na sua
rede de bases militares, a NATO continuará
a ter um papel fundamental (senão mesmo
decisivo) na manutenção da segurança e da
defesa da Europa, dos próprios países que
fazem parte da organização. Para além disso,
a NATO tem procurado dar resposta a um
conjunto de outras questões fora da área
geográfica tradicional da sua acção. Por tudo
isto, acredito que temos um papel crucial a
desempenhar no futuro.
33
SOCIEDADE
Alunos de Harvard
estudam arquitectura lisboeta
“Re-inventar” Lisboa como Capital Europeia do Atlântico foi o tema da sessão
organizada pelo Lisbon Design Studio, iniciativa dos arquitectos Bernardo Vaz Pinto
e Levi Dacosta Maia. O objectivo era transmitir aos 12 estudantes de Harvard
presentes no auditório da FLAD uma visão global da história da cidade de Lisboa,
das suas condições urbanísticas, sociais e económicas.
Esta delegação norte-americana, dirigida
pelo professor Rodolfo Machado, deslocou­
‑se a Portugal integrada num mestrado do
Departamento de Urbanismo da Graduate
School of Design.
O projecto, desenvolvido pelos dois
arquitectos formados igualmente em
Harvard, conta com o apoio da FLAD e
visa promover a cidade de Lisboa num
âmbito internacional. A visita de uma
semana dos estudantes a Lisboa constitui,
por isso, um dos principais momentos
deste curso. Têm assim a possibilidade de
contactar com a realidade lisboeta, observando directamente o objecto do seu trabalho. As propostas académicas que
resultarem desta formação podem constituir, no futuro, soluções urbanísticas para
a capital portuguesa.
Mário Mesquita, administrador da FLAD,
deu as boas-vindas aos estudantes de
Harvard e a Rodolfo Machado, abrindo a
sessão com um incentivo: “O sucesso do
vosso trabalho contribuirá para o sucesso
de Lisboa.” Defendeu a ideia de que Lisboa
é um “desafio” e uma “mais-valia” para
quem a procura estudar e enquadrou a
iniciativa na estratégia da Fundação, falando na vontade em “fomentar um olhar
crítico, distanciado, mas informado, sobre
as questões centrais do desenvolvimento
da cidade”.
O colóquio prosseguiu com uma breve
apresentação do projecto, a cargo do
arquitecto Bernardo Vaz Pinto. O responsável pelo Lisbon Design Studio deu a
conhecer à audiência a área da cidade
sobre a qual o estudo destes estudantes
incide, numa extensão que vai de Santa
Apolónia à Ponte 25 de Abril. Numa alu-
34
Rui Ochôa
Por RUI CATALÃO
Vista aérea de Lisboa.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
Fábio Silva
SOCIEDADE
“Lisboa é um local único”
Eugenio Simoneti, 28 anos, do Chile, e Ya Gao,
23, chinesa, alunos de Harvard e participantes
do projecto partilharam as suas opiniões sobre
Lisboa...
Paralelo [P] Agora que já tiveram o primeiro
contacto com a cidade, o que mais vos cativou
em Lisboa?
Eugenio Simoneti [ES] A história, a forte
identidade da cidade e do país e as
potencialidades de Lisboa enquanto imagem
de marca.
Ya Gao [YG] Surpreendeu-me pela interessante
localização e pela grande ligação com o
oceano.
[P] Tendo em conta o que tiveram a
oportunidade de ouvir e de conhecer, qual é
o maior desafio deste projecto?
[YG] Lisboa é um local único. Só por isso já
é um desafio.
[ES] Reinventar a cidade sem perder a identidade.
Acho que essa é a tarefa mais árdua.
Depois de Lisboa, o que esperam do
futuro?
[ES] Ir para a Índia trabalhar como arquitecto,
pois é um país que precisa muito de gente
da nossa área.
[YG] Primeiro quero trabalhar em Portugal.
Depois espero voltar aos Estados Unidos e
mais tarde à China.
são ao título deste exercício, Bernardo Vaz
Pinto reconheceu a ambição de elevar a
cidade de Lisboa a Capital Europeia do
Atlântico, uma “visão optimista do desenvolvimento da cidade”.
Por outro lado, não poupou elogios ao
professor Rodolfo Machado, de quem foi
aluno, afirmando que “Lisboa só tem
a ganhar com a sua experiência”. Sob a
orientação do “mestre”, acredita que os
estudantes de Harvard “têm todas as capacidades para perceber e analisar os problemas actuais da cidade, propondo soluções
interessantes para o futuro”.
O grupo de alunos assistia com um
misto de interesse, atenção e descontracção às palavras dos oradores. À primeira
vista, sobressaía a pluralidade de nacionalidades: dois chineses, dois taiwaneses,
cinco norte-americanos, um libanês, um
porto-riquenho e um chileno. Conhecendo
um pouco mais estes alunos, tornava-se
fácil constatar que a pluralidade se es­tende
igualmente à profissão. Uns provêm da
área da arquitectura, outros do design
urbanístico, outros ainda do planeamento
urbano.
O olissipógrafo José Sarmento de Matos
propôs olhar para Lisboa numa perspec­tiva
mais histórica, alertando para a necessi­
dade de “entender o desenvolvimento e
crescimento da cidade”. Este especialista
em história da capital portuguesa traçoulhe o perfil desde a tomada do castelo aos
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
mouros até à reconstrução após o terramoto de 1755. Aos estudantes, procurou
transmitir a noção de que “todos os projectos têm de ser muito bem pensados,
tendo em conta a carga histórica” que
Lisboa encerra, bem como a importância
da relação entre a cidade e o rio.
Aproveitando a deixa de José Sarmento
de Matos, Ana Tostões – também ela especialista em história da cidade – partiu da
explicação do plano de reconstrução
da Baixa para dar o seu contributo. Mostrou
inúmeras imagens e falou de monumentos
e outras construções, desde o Elevador de
Santa Justa ao Parque Florestal de Monsanto,
da Avenida da Liberdade à Ponte 25 de
Abril.
Após um pequeno coffee-break e dois dedos
de conversa, o advogado José Miguel
Júdice e o gestor Rolando Borges Martins
assumiram o papel de oradores. O ­primeiro
intitulou-se um “cidadão de Coimbra com
ideias sobre Lisboa”, reforçando o argumento de que é preciso “voltar a juntar
Lisboa e o rio”. Para José Miguel Júdice,
a frente ribeirinha é como o “jardim” de
Lisboa, pelo que “não se deve construir
em cima dos jardins”. Nesse sentido, vê
com bons olhos o trabalho dos 12 estudantes de Harvard, de quem espera resultados que tenham uma aplicação
efectiva.
A última exposição da tarde coube ao
responsável máximo pela Parque Expo,
entidade criada pelo Governo para a
requalificação da zona do Parque das
Nações, iniciada logo após o encerramento da Expo’98. Rolando Borges Martins
procurou explicar aos presentes a estratégia urbanística e ambiental que esteve
na base da intervenção na zona do Parque
das Nações. Partindo deste exemplo, apresentou os novos projectos para a cidade
de Lisboa, divididos em três frentes distintas: a Grande Lisboa, mais concretamente a frente ribeirinha da Baixa
pombalina; a zona oeste, nos eixos Ajuda-Belém e Pedrouços-Dafundo; e a zona
este, com a consolidação do ­investimento
no Parque das Nações. Tal como Rolando
Borges Martins assegurou, todas estas
intervenções têm como vector fundamental a “multifuncionalidade”, isto é, a articulação de áreas distintas como os
espaços verdes, as zonas residenciais e
os centros de negócios.
Todos os oradores estiveram de acordo
quanto à necessidade de apostar na cidade
de Lisboa enquanto imagem de marca. Já
os estudantes saíram da sessão com a certeza de que se deparam com um desafio
complexo, mas que lhes permitirá desenvolver as suas competências.
35
ECONOMIA
MIT Portugal
na hora do balanço
O Programa MIT Portugal, iniciado em Outubro de 2006,
começou por se centrar no domínio dos “Sistemas de Engenharia”. O sector energético
e a indústria automóvel são as áreas que até agora melhor responderam a este programa.
Em finais de Fevereiro, o MIT Portugal estendeu-se à área da gestão.
O Programa MIT Portugal, envolvendo o
Massachusetts Institute of Technology (MIT), o Governo português, universidades e
laboratór ios nacionais e vár ias
empresas, lançado em Outubro de 2006
pelo ministro da Ciência, Tecnologia e
Ensino Superior, Mariano Gago, tem como
objectivo demonstrar que um investimento em ciência, tecnologia e educação ao
nível mais avançado pode ter um im­pacto
positivo e duradouro na economia portuguesa.
“O nosso objectivo é desenvolver a interacção universidade-empresa e criar valor
com a investigação desenvolvida”, sublinha Paulo Ferrão, professor do Instituto
Superior Técnico e coordenador do Pro­
grama MIT Portugal.
O MIT Portugal desenvolve-se em duas
vertentes principais, os sistemas de engenharia e a gestão, sendo que esta última se
encontra ainda numa fase inicial, uma vez
que o protocolo que permite a obtenção
do MBA (Master in Business Administration),
ao abrigo da cooperação entre o MIT e as
universidades portuguesas, só no passado
dia 21 de Fevereiro foi assinado.
“Os projectos já em curso inserem-se
no domínio dos sistemas de engenharia,
uma ideia que significa, simplesmente, pôr
a funcionar um conjunto de áreas que até
agora funcionavam separadamente, como
a engenharia, a economia e as ciências
sociais”, afirma o mesmo responsável.
Um exemplo concreto deste funcionamento pode encontrar-se ao nível dos
graus académicos proporcionados pelo
MIT Portugal. “Faculdades de Engenharia
36
MIT
Por ISABEL BRAGA
Experiência laboratorial MIT.
e de Economia juntaram-se para oferecer, no domínio das energias sustentáveis, os dois graus académicos que o
MIT Portugal proporciona, ou seja, doutoramentos e mestrados profissionais”,
sublinha Paulo Ferrão.
As outras áreas de sistemas de engenharia em que o MIT Portugal aposta são a
de três a quatro anos, um dos quais passado no MIT.
Os três mestrados profissionais criados
pelo MIT Portugal destinam-se a quadros
de empresas, têm a duração de nove
meses, em horário pós-laboral, e envolvem
já 130 alunos.
A estes cursos candidataram-se alunos
portugueses e de países como o Brasil,
a Finlândia, a Grécia, a Itália, a Moldávia e
a Roménia. Cinquenta bolsas de doutoramento e cerca de 20 para estágios de pósdoutoramento foram atribuídas em
instituições portuguesas em colaboração
com o MIT.
Segundo o Ministério da Ciência,
Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), no
trabalho realizado durante o primeiro ano
colaboraram cerca de 60 professores
do MIT, incluindo um Prémio Nobel e três
Institute Professors (distinção atribuída apenas
‘
Os projectos já em curso inserem-se no domínio
dos sistemas de engenharia, uma ideia que significa,
simplesmente, pôr a funcionar um conjunto de áreas
que até agora funcionavam separadamente, como
a engenharia, a economia e as ciências sociais.
engenharia de concepção e fabrico avançado, os sistemas de bioengenharia e os
sistemas de transporte. As quatro áreas
proporcionam quatro doutoramentos
– “completamente novos”, afirma o coordenador do programa – com a duração
’
a 14 dos mil professores do MIT), e 180
professores e investigadores das sete universidades e onze instituições portuguesas
envolvidas no programa.
Como exemplos de projectos concretos
em desenvolvimento no âmbito do MIT
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
ECONOMIA
Rui Ochôa
O relatório divulgado pela FCT cita também um
grupo de empresas do sector automóvel que
se comprometeram, de forma inédita, a duplicar as suas despesas em I&D, em Portugal, até
finais de 2009, devendo essas despesas atingir em média seis por cento do total da facturação no período entre 2007 e 2013.
Essas empresas são a VW Autoeuropa, a Amorim Industrial Solutions, a Celoplás – Plásticos
para Indústria, SA, a Iber Oleff – Componentes
em Plástico SA, a Inapal Metal SA, a Inapal
Plásticos SA, a Manuel da Conceição Graça
LDA., a Plasdan, a Simoldes Plásticos LDA., a
Paulo Ferrão, coordenador do Programa MIT Portugal.
Portugal, Paulo Ferrão cita aquele que
está em curso na Autoeuropa – no domínio da concepção e fabrico dos componentes automóveis –, os que envolvem
a GALP, a EFACEC e a EDP – para promover a eficiência energética em centros
urbanos actuando na gestão da energia
em edifícios, as redes energéticas inteligentes – e o projecto desenvolvido com
a AGNI – de criação de pilhas de combustível que vai permitir produzir equipamentos de microgeração, capazes de
produzir frio ou calor e de importar ou
exportar energia, consoante as necessidades.
O relatório elaborado pela Fundação para
a Ciência e a Tecnologia (FCT), instituição
do MCTES, sobre os primeiros doze meses
de actividade do programa, sublinha que
o MIT Portugal tem-se saldado por um
“enorme sucesso”, uma vez que tem
atraído “excelentes alunos” para os programas de ensino criados e recebido respostas muito positivas do sector
empresarial, com destaque para a indústria
automóvel e o sector energético.
O lançamento, em Portugal, no âmbito
deste programa, da área de “Sistemas de
Engenharia”, permitiu identificar 30 áreas
prioritárias de investigação e desenvolvimento, com importância estratégica quer
para Portugal, quer para o MIT.
Segundo o relatório de avaliação do programa, no âmbito dos sistemas sustentáveis
de energia, o conceito de redes de equipamento de microgeração em edifícios, de
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
‘
O relatório elaborado pela
Fundação para a Ciência
e a Tecnologia (FCT),
instituição do MCTES,
sobre os primeiros doze
meses de actividade
do programa, sublinha
que o MIT Portugal
tem-se saldado por um
“enorme sucesso” […]
’
metabolismo urbano e de tecnologia de
aproveitamento de energia das ondas são
algumas das novas áreas prioritárias.
No que se refere à engenharia de concepção e sistemas avançados de produção,
destaca-se, entre outras áreas, a aplicação
ao automóvel.
Dentro dos sistemas de bioengenharia,
a nanotecnologia e biomateriais, as prioridades em termos de investigação e
desenvolvimento vão para a engenharia
celular e de tecidos, e a interacção homem­
‑robot, factores humanos e interacções
com o cérebro. Finalmente, no que respeita aos sistemas de transportes, as áreas
prioritárias são os sistemas inteligentes,
o projecto de aeroportos e o transporte
ferroviário de alta velocidade.
Sunviauto Indústria de Componentes Automóveis
TMG-Automotive e o CEIIA (Centro de Excelência
e Inovação da Indústria Automóvel).
Adicionalmente, a Autoeuropa vai apoiar o
desenvolvimento dos programas de formação
avançada e disponibilizar, no âmbito do MIT
Portugal, estágios profissionalizantes e programas de doutoramento.
A FCT apoiará a formação avançada de recursos humanos e a contratação de investigadores
doutorados pelo CEIIA, os quais desenvolverão
actividades dentro do enquadramento científico dos grupos académicos envolvidos no
Programa MIT Portugal.
Uma resposta muito positiva surgiu também
do sector energético, tendo aderido ao MIT
Portugal, a Agni-Inc, a Deimos Engenharia, SA,
a EDP, SA, a EDP Inovação, a EFACEC, SA, a
GALP Energia, SA, a MARTIFER, SA, a REN –
Redes Energéticas Nacionais, SA.
Garantir o ingresso de mais de 20 quadros
superiores por ano nos cursos de programação
avançada promovidos pelo Programa MIT
Portugal é um compromisso das empresas afiliadas nas áreas da engenharia de concepção
e fabrico avançado.
A acrescentar a isto há ainda o compromisso
das empresas também ligadas ao MIT Portugal,
que se comprometem a garantir o ingresso de
mais de 20 quadros superiores por cada ano
nos cursos de formação avançada promovidos
pelo programa.
A Agência Ciência Viva também se encontra
vinculada a este programa, assegurando a interacção deste com as camadas mais jovens.
“Sempre que vem a Portugal um professor do
MIT, levamo-lo a fazer uma palestra em escolas
secundárias de todo o país”, lembra ainda
Paulo Ferrão.
37
MIT
ECONOMIA
Sede do MIT em Cambridge, Massachusetts.
FLAD apoia MIT Portugal
A FLAD assinou um protocolo com o MIT
Portugal, mediante o qual se compromete
a contribuir com 500 mil dólares para este
programa, durante os próximos quatro
anos.
Rui Machete, presidente da FLAD, considera
o MIT Portugal “um salto em frente” no
chamado Plano Tecnológico do Governo
português. “Já tínhamos uma colaboração
antiga com o MIT, mas nada que atingisse
esta dimensão. Agora, além de apoiarmos
financeiramente o MIT Portugal com uma
soma importante, procuramos apostar em
iniciativas convergentes e complementares,
que o Estado tinha dificuldade em realizar,
38
ou promover acções que possam conferir maior
flexibilidade ao programa”, sublinhou.
Zagalo e Melo, director da FLAD para a
área da educação, ciência, tecnologia e
inovação, enumerou as áreas a que a FLAD
irá dar especial atenção no apoio ao MIT
Portugal: os sistemas de energia sustentável,
o empreendedorismo – visando fomentar uma
atitude proactiva na criação de negócios –,
o transporte e logística, especialmente na
componente marítima, e a inovação em
ciência e tecnologia.
O programa das iniciativas a concretizar
durante o ano corrente e parte de 2009 no
âmbito do acordo entre a FLAD e o MIT Portu­
gal estará definido “até finais de Abril”, afirmou
Zagalo e Melo. No entanto, a FLAD já se
comprometeu a apoiar um projecto concreto, a
Conferência MIT Europa 2008, que, a 26 e 27
de Março deste ano, reuniu em Lisboa a rede
dos antigos alunos e colaboradores do
programa, espalhados por toda a Europa.
Neste encontro participaram especialistas
norte-americanos nas áreas da energia, do
ambiente, da engenharia civil e da bioquímica,
aeronáutica e astronáutica, ciência dos
materiais, gestão e transportes, com
directores de grandes empresas, na área dos
plásticos, da indústria farmacêutica e da
informática.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
ECONOMIA
Conhecer, inovar,
experimentar o COHITEC
O que aconteceria se, numa mesma sala, estivessem reunidos gestores e cientistas?
O que aconteceria se ambos partilhassem um mesmo projecto de trabalho?
A resposta é dada pelo COHITEC, um programa que visa
a criação de empresas de base tecnológica.
Por MARCO SILVA
O conceito é simples: juntar o faro para o
negócio dos estudantes de MBA à investigação de ponta desenvolvida pelos cientistas.
Os resultados são notórios: projectos de
negócio de forte componente tecnológica
emergem. Em traços gerais, assim se define
o COHITEC – um programa de valorização
do conhecimento promovido pela COTEC
(Associação Empresarial para a Inovação).
Numa altura em que o “Choque
Tecnológico” está na ordem do dia, programas como o COHITEC asseguram aos
gestores e investigadores uma oportunidade de se associarem na criação de um
plano de negócio. “Quando foi projectado,
em 2003, o COHITEC era uma iniciativa
pioneira. Não havia ninguém, na altura,
que fizesse a ponte entre cientistas e gestores”, afirma Pedro Vilarinho, um dos
responsáveis pelo programa.
Seguindo o modelo proposto pelo centro
HITEC (parte da North Carolina State
University), criou-se então este programa
com a ajuda de alguns parceiros: a FLAD,
a Faculdade de Economia da Universidade
Nova de Lisboa (FEUNL) e a Escola de Gestão
do Porto (EGP). De ambas as instituições de
ensino saem os estudantes de MBA, prontos
para colaborar com os cientistas no desenvolvimento de planos de negócio.
Do projecto para o mercado
O COHITEC está estruturado em duas fases
distintas. Num primeiro momento, são
admitidos cerca de 80 participantes (50
investigadores e 30 estudantes de MBA).
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
Nesta fase do programa, todos os participantes são divididos por equipas de trabalho e
submetidos a acções de formação, que decorrem tanto no Porto (EGP) como em Lisboa
(FEUNL). Nelas, os formandos adquirem as
competências necessárias para o desen­
volvimento dos respectivos planos de negócio. Desde a fundação do COHITEC, já
aconteceram seis edições destas acções de
formação.
Concluída esta fase, são seleccionados cerca
de 10 projectos de negócio, que passam por
um conjunto de filtros, antes de serem apresentados aos investidores. Caso algum dos
projectos seja considerado viável, é-lhe dado
então acesso à segunda fase do programa: a
altura em que é criada uma “empresa vir­tual”
(financiada pelo IAPMEI) e se preparam os
projectos de negócio para apresentação aos
investidores.
Embora o COHITEC só tenha entrado na
segunda fase uma vez desde a sua fundação
(em 2005), Pedro Vilarinho não se revela
preocupado: “A nossa actividade visa sobretudo a globalização do conhecimento. O mais
importante não é propriamente o número
de empresas criadas, mas antes a valorização
do conhecimento.”
Apostar na inovação
Ano após ano, o número de candidaturas tem excedido o número de vagas –
tendência que demonstra, segundo Pedro
Vilarinho, o sucesso do COHITEC. “Os
custos de um programa como este são
elevados, já que os participantes não
‘
Numa altura em que
o “Choque Tecnológico”
está na ordem do dia,
programas como o
COHITEC asseguram
aos gestores
e investigadores
uma oportunidade
de se associarem
na criação de um
plano de negócio.
’
pagam nada. Mas enquanto houver
investigadores dispostos a participar, o
programa vai continuar”, garante. A este
nível, Pedro Vilarinho aponta a FLAD
como um parceiro fundamental: “Estão
connosco desde que começámos. São o
nosso primeiro parceiro.”
Assegurando o financiamento do programa,
a FLAD tem garantido a continuidade da iniciativa – um investimento que, de ­acordo
com o secretário-geral da FLAD, Fernando
Durão, se justifica: “A FLAD tem desenvolvido uma forte aposta na inovação e o apoio ao
COHITEC faz parte dessa ­aposta.”
Abrangendo, de ano para ano, domínios
comerciais cada vez mais diversos (desde
a alimentação ao domínio do software),
o programa tem “andado um passo à fren-
39
ECONOMIA
te na criação de conceitos de negócio”,
afirma Fernando Durão. Da mesma opinião é Pedro Vilarinho, que considera
muitos dos projectos inseridos no
COHITEC “tão bons como os da North
Carolina University”, onde o modelo do
programa surgiu.
Talvez por essa razão o sucesso do programa tenha sido reconhecido em 2006
pela Universidade de Stanford através do
prémio Price Foundation Innovative
Entrepreneurship Educators Award. Tendo
sido atribuído pela primeira vez a um programa fora dos Estados Unidos, este prémio
representa para Pedro Vilarinho “aquilo que
qualquer pessoa que anda nesta área gostaria de receber: é o maior prémio de reconhecimento a nível mundial”.
Um sucesso em tons de verde
Embora só tenha entrado uma vez na
segunda fase, o COHITEC lançou já as bases
de uma empresa: a Consumo em Verde
– Biotecnologia das Plantas S.A. (ver entrevista a Ricardo Boavida Ferreira, p. 41).
Tendo como objectivo a produção de um
Novos projectos
Rui ochôa
Com os olhos postos em novos projectos empresariais, a COTEC deu já início a mais
uma edição deste programa. Durante o mês de Dezembro de 2007, decorreram no Porto
e em Lisboa sessões de apresentação do COHITEC com novas equipas de investigadores
e gestores. Prevê-se agora que no início de Junho sejam apresentados os projectos de
negócio. A partir daí, a Comissão Executiva da COTEC decidirá quais os projectos viáveis
para propor aos investidores. Uma das grandes novidades este ano tem que ver com a
estreia de uma instituição do ensino politécnico no programa – o Instituto Superior de
Engenharia do Porto.
fungicida bioquímico, esta empresa foi
a primeira, no quadro do programa, a
encontrar investidores privados dispostos
a financiar o projecto.
Associando a investigação desenvolvida
em torno de uma proteína (base do fungicida) ao contributo de um conjunto de
estudantes de MBA da Universidade Nova
de Lisboa, o COHITEC proporcionou condições para que o projecto fosse apresentado a um consórcio de empresas
portuguesas, que decidiu investir no projecto quase 12,5 milhões de euros.
Dentro em breve, um outro projecto
deverá entrar na segunda fase. É tutelado
pela Universidade do Minho e propõe
uma autêntica revolução ao nível dos
materiais de construção: a substituição do
aço utilizado nas construções por polímeros.
De ano para ano, novos investigadores
se juntam ao programa, na esperança de
encontrarem nele uma porta para o mercado, a chave para a industrialização. Casos
como o da empresa Consumo em Verde
demonstram que é possível a criação e
desenvolvimento de empresas de base tecnológica. Porque, afinal, como afirma
Pedro Vilarinho: “O conhecimento tem de
ser transferido para a sociedade.”
Entrega do prémio COTEC 2007. Eduardo Marçal Grilo (administrador da Fundação Calouste Gulbenkian), José Carlos Marques dos Santos (reitor da Universidade do Porto),
Mariano Gago (ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior), Rui Machete (presidente da FLAD), António Santos Silva (presidente do BPI) e José Carlos Pinto (Optimus).
40
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
Ricardo
Boavida Ferreira
Marco Silva
ECONOMIA
“A COTEC ajudou-nos a
escolher os investidores
e transmitiu-lhes
confiança.”
A Consumo em Verde – Biotecnologia das
Plantas S.A. (CEV) foi a primeira empresa a
emergir graças ao apoio do COHITEC. Para
conhecer melhor o projecto de negócio que
deu origem a esta empresa, a Paralelo falou
com Ricardo Boavida Ferreira, um dos
investigadores que a lidera. É com ambição
que fala do futuro, que pode muito bem
passar pela distribuição à escala global de
um poderoso fungicida descoberto em
Portugal.
É a partir da planta do tremoço que a CEV – Biotecnologia das Plantas extrai a proteína
que age como fungicida.
cotec
tura não só como fungicida, mas
também como bioestimulante.
[P] Quem estava envolvido no projecto na
altura?
[RBF] Eu e o professor Artur
[Paralelo] Em que circunstâncias surge o projecto
Ricardo Teixeira liderávamos na
altura o grupo de trabalho. Mais
tarde, quando descobrimos a actividade fungicida, juntou-se a nós
a professora Sara Monteiro.
Finalmente, em 2005, pudemos
contar com a participação de um
colega que introduziu no grupo
uma componente de empreendedorismo: o professor Virgílio
Loureiro, com quem já tínhamos
anteriormente colaborado.
[Ricardo Boavida Ferreira] Tudo começou há
[P] De que forma é que o COHITEC contribuiu
da CEV?
16 anos, com a descoberta acidental de
uma proteína. Durante 10 anos, estudámos
essa proteína no Instituto Superior de
Agronomia e no Instituto de Tecnologia
Química e Biológica. Durante esse ­período,
fomos levados a deduzir que ela teria propriedades antifúngicas surpreendentes. Ao
contrário da maioria das proteínas, esta
teria uma resistência extrema a agentes
físicos, podendo ser utilizada na agriculParalelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
para o sucesso do projecto?
[RBF] Até 2004 publicámos artigos científicos, onde demos a conhecer esta proteína. Mas, a certa altura, quando nos
apercebemos do seu potencial comercial,
parámos de escrever e contactámos algumas multinacionais. Como estávamos sozinhos, esse contacto não deu quaisquer
resultados. Meses depois, entrámos no
COHITEC, que se revelou uma ajuda ines-
timável para ultrapassar o fosso entre a
investigação e o desenvolvimento comercial. Na segunda fase do programa, a
COTEC ajudou-nos a escolher os investidores e transmitiu-lhes confiança. Isso foi
muito gratificante para nós.
[P] Encontrar um investidor foi um processo
fácil?
[RBF] Desde o início, tivemos a noção de
que este projecto poderia chegar a valer
uma enormidade. Depois de apresentarmos o nosso projecto aos investidores,
ficámos com sete ou oito investidores dos
quais escolhemos os dois melhores. Mas
tivemos muita dificuldade em tomar uma
decisão, porque havia propostas excelentes – o que me surpreendeu pela positiva.
Às vezes, achava que nós tínhamos mais
dúvidas sobre o produto do que os próprios investidores.
[P] Quais são os planos para o futuro da CEV?
[RBF] Tentar pôr o produto no mercado
o mais depressa possível. Agora que os
desafios de laboratório já foram ultra­
passados, o grande desafio é mesmo o
desenvolvimento industrial. Isto, é claro,
depois de resolvermos as formalidades da
patente e da homologação.
41
Rui Ochôa
ECONOMIA
As universidades
e a nova sociedade
Por Teodora Cardoso*
Em 1989, um artigo da Harper’s Magazine1
resumia as ideias expostas por Robert Reich
(que viria a ser responsável pelo Trabalho
na Administração Clinton) aos seus alunos
da Kennedy School of Government com
respeito ao futuro do trabalho. Afirmava ele:
“À medida que a economia americana
se funde com o resto do mundo, quem se
dedicar a tarefas relativamente pouco qualificadas, que possam ser executadas com
menores custos noutros locais, não pode
esperar manter-se próspero por muito
tempo. [...] Muitas tarefas de rotina vão
desaparecer, tanto na indústria como nos
serviços. As que restam serão de dois tipos:
serviços complexos, parte dos quais será
vendida ao resto do mundo em troca de
importações, e serviços pessoais que não
podem ser fornecidos à distância.
“Os serviços complexos (como a engenharia, a finança, o direito, a informática,
etc.) implicam trabalhar com dados e conceitos abstractos. Mesmo na indústria, são
as tarefas executivas e de gestão que vão
desenvolver-se mais rapidamente e também elas envolvem esse tipo de competências. [...] O equipamento intelectual
necessário às tarefas do futuro é a capacidade de definir problemas, de assimilar
rapidamente os dados relevantes, de conceptualizar e reorganizar a informação, de
extrair conclusões, tanto dedutiva como
intuitivamente, de fazer as perguntas difíceis, de discutir os resultados com os
colegas, de colaborar na busca de soluções
e de convencer outros.”
Por seu turno, Peter Drucker, num dos
seus últimos textos, escrito quando o
autor já ultrapassara os 90 anos, mas não
tinha perdido nada da sua excepcional
capacidade de análise da sociedade que o
rodeava2, afirmava em 2001: “A próxima
sociedade será a sociedade do conhe­
cimento. O conhecimento será o seu
recurso-chave e os trabalhadores do
42
conhecimento serão o grupo dominante
da sua força de trabalho. As suas três características principais serão:
“A ausência de fronteiras, porque o
conhecimento se dissemina ainda mais
facilmente que o dinheiro.
“A capacidade de ascensão social, promovida por sistemas de educação formal
acessíveis a todos.
“O potencial de falhar, tal como de ser
bem-sucedido. Todos podem adquirir os
‘meios de produção’, isto é, os conhecimentos necessários a uma profissão, mas
nem todos sairão vencedores.”
E acrescenta: “A sociedade do conhecimento é a primeira sociedade humana em
que o potencial de ascensão social é
potencialmente ilimitado. O conhecimento difere de todos os outros meios de
produção pelo facto de não poder ser herdado ou doado. Tem de ser adquirido de
novo por cada indivíduo e todos partem
da mesma total ignorância.”
nhada numa profunda reforma do ensino
superior, que vai desde o Processo de
Bolonha, ao financiamento das universidades e à articulação com a investigação.
O reforço do financiamento é um dos
pontos-chave da questão, bem caracterizado pelo facto de a despesa total (pública e privada) com o ensino superior a
atingir apenas 1,3 por cento do PIB na
UE25 contra 3,3 por cento nos Estados
Unidos, o que se traduz num gasto por
aluno inferior a 10 mil euros na Europa
contra mais de 35 mil euros nos Estados
Unidos3. A agravar o problema – e também
a dificultar a solução – está a má quali­dade
da governança das instituições na Europa,
a sua insuficiente autonomia e os incentivos perversos a que estão sujeitas.
Todos estes factores estão presentes em
Portugal, em geral em maior grau que na
média europeia. Questões como a ausência de articulação com o ensino secundário, a dispersão de cursos com um
pequeno número
de candidatos, a
desadequação dos
Gasto por aluno inferior a 10 mil euros
apoios financeiros
aos estudantes, os
na Europa contra mais de 35 mil euros
elevados custos
nos Estados Unidos.
administrativos (por
vezes resultantes de
imposições regulamentares), a “conEste conjunto de ideias tem estado, por
sanguinidade” dos corpos docentes,
todo o mundo, na base de muito do deba- recrutados entre os diplomados da própria
te sobre os temas da educação e das polí- escola, ou a progressão nas carreiras,
ticas do sector, em particular no que determinada pela existência de vagas e não
respeita ao ensino superior. Contudo, ao pelo desempenho, estão entre os factores
fim de duas décadas, verificamos que a críticos apontados pela OCDE na sua avamaior parte das políticas foram ineficazes
liação recente do ensino superior em
e, nalguns casos, agravaram mesmo os Portugal4.
problemas, em especial no que respeita à
Quanto ao financiamento, essa análise
ligação com a investigação científica e a defende que o seu aumento deve ser preinovação. Toda a Europa, onde o problema
cedido de uma revisão do actual sistema
se tornou evidente, está, por isso, empe- de distribuição de fundos baseado em
‘
’
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
ECONOMIA
‘
Factores críticos apontados pela OCDE na sua avaliação
recente do ensino superior em Portugal.
’
to e num sistema de indicadores que permita uma avaliação eficaz do desempenho,
reduzindo simultaneamente a carga burocrática que pesa sobre as instituições, com
um muito reduzido proveito em matéria
de acompanhamento efectivo.
Não pode esperar-se que a adopção
deste tipo de medidas, já parcialmente
consagrada em lei, coloque imediatamente Portugal em pé de igualdade com os
Estados Unidos nesta matéria tão essencial para o desenvolvimento da economia
1
The Future of Work, Abril de 1989.
“Survey: The Near Future”, The Economist, 1 de Novembro
de 2001.
3
Ver, por exemplo, “Why reform Europe’s universities?”,
Brugel Policy Brief, n.º 4, 2007.
4
Tertiary Education in Portugal, 2007.
2
* Economista, administradora do Banco de Portugal e presidente do
Conselho Directivo da FLAD
LUSA / EPA DAVIS TURNER
fórmulas que se revelam desincentivadoras das instituições mais dinâmicas, substituindo-o por contratos entre as
instituições e o Governo, baseados em
planos estratégicos e em objectivos negociados e sujeitos a acompanhamento
­quanto aos indicadores de desempenho.
O sistema deve igualmente incentivar a
captação de fundos privados e a articulação com a investigação científica, favorecendo a autonomia de gestão, com base
na definição de estratégias de investimen-
e da sociedade. Elas constituem, no
entanto, um passo indispensável para a
necessária melhoria de resultados e para
a capacidade de simultaneamente atrair
investimento privado e incentivar a inovação, o binómio em que assenta o bom
desempenho americano.
Cerimónia de formatura enchendo de estudantes o Care Stadium em Blacksburg, Virginia.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
43
CULTURA
ASAS SOBRE A AMÉRICA
Um encontro transatlântico
entre irmãos em universo
Portugal Infinito, onze de Junho de mil novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!
Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa,
dirige-se em saudação a Walt Whitman, seu “irmão em Universo”.
Por FILIPA MELO
FOTOGRAFIAS RUI OCHÔA
Enquanto tira a gravata e o colarinho,
porque “não se pode ter muita energia
com a civilização à roda do pescoço”,
garante-lhe:
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que
morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou
contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez
anos antes de eu nascer,
Quer pela Rua do Ouro acima pensando em tudo que
não é a Rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de
mãos dadas,
De mãos dadas,Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.
Os mais de duzentos versos de Saudação a
Walt Whitman são talvez o testemunho mais
efusivo de ligação decisiva de um autor
português a um autor norte-americano.
É simbólico também o facto de Fernando
Pessoa ter nascido poucos anos antes
(1888) da morte de Whitman (1892), as
duas obras unindo assim dois séculos de
criação poética dos dois lados do Atlântico.
E é pela carga simbólica da união criativa
entre a dupla de poetas que esta foi escolhida como matriz tutelar para o ciclo “Asas
sobre a América – Wings over America”,
a decorrer na sede da FLAD até Julho próximo.
A ideia inicial foi de Mário Mesquita,
administrador da Fundação que tem a seu
44
cargo a área cultural, abrangendo as huma- Zink, tradutor de obras de Saul Bellow, ou
nidades, as ciências sociais e as artes. “Asas para a poeta Ana Luísa Amaral, doutorada
sobre a América – Wings over America” foi
em Literatura Norte-Americana com uma
pensado primeiro como proposta de refle- tese sobre Emily Dickinson. Noutros casos,
xão sobre as possíveis pontes entre a foi feita uma sugestão inicial, que depois
literatura portuguesa e a literatura norte­ correspondeu, ou não, ao conjunto de preferências de cada autor português, pro­
‑americana, o modo como se manifestaram
no passado e se manifestam no presente. curando ajustar-se a opção final dentro
A abordagem queria-se não exaustiva, mas dessas preferências a um conjunto ­coerente
antes particular e criativa, e daí o objectivo
de referências a autores que representassem
de interpelar autores portugueses para que uma parte da melhor literatura norte-amedissertassem sobre os laços afectivos, inte- ricana, desde o século XIX até à actuali­dade:
lectuais, formativos e mesmo técnicos, que
Ezra Pound, Emily Dickinson, William
os uniram e unem ao seu autor (ou um Faulkner, Carson McCullers, Flannery
dos seus autores) norte-americano e obra O’Connor, Saul Bellow e Philip Roth.
ou conjunto de obra de eleição e possíveis
“Asas sobre a América – Wings over
influências destes sobre as suas próprias
America” serve também uma abordagem
criações.
Gonçalo M. Tavares,
Manuel António Pina,
O ciclo afirma-se como incentivo
Inês Pedrosa, Lídia
Jorge, Pedro Mexia,
ao debate criativo sobre o que poderá
Ana Luísa Amaral e Rui
unir a ficção e a poesia portuguesas
Zink, os autores convidados, representam
contemporâneas a um legado
várias gerações e várias
da literatura norte-americana.
expressões distintas da
prosa e da poesia contemporâneas, e relativamente a todos é
manifesto o reconhecimento da qualidade à edição e ao ensino da literatura nortedas suas obras. O convite teve em conta -americana em Portugal não só através da
uma provável experiência estética de liga- realização de dois debates sobre o tema e
ção à literatura norte-americana. Em alguns do convite a várias editoras para a exposicasos, foi endereçado a partir do conheci- ção e venda das suas traduções em para­lelo
mento prévio da escolha mais provável de a cada sessão do ciclo, como também atraum determinado autor norte-americano, vés de parcerias entre a Fundação e várias
como, por exemplo, para o ficcionista Rui
universidades para a deslocação de estu-
‘
’
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
CULTURA
> Philip Roth pinta um quadro geral,
mas não esquece os pormenores. Os
grandes e os pequenos movimentos da
mão. Como falar do organismo e ainda
da História, eis duas das tarefas de Roth.
Ligadas de modo improvável.
GONÇALO M. TAVARES
> Ezra Pound encontra-se de forma
manifesta em alguns poemas que escrevi,
mas tenho razões para suspeitar de que
está presente em muitos mais sem ser
visível em parte nenhuma deles.
MANUEL ANTÓNIO PINA
> Com The Heart is a Lonely Hunter, de
Eduardo Lourenço abriu o ciclo acompanhado por Filipa Melo (escritora), Rui Machete
e Abílio Hernandez (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra).
dantes com o objectivo de assistirem às
sessões. Vários docentes dessas universidades são também convidados a intervir nas
sessões do ciclo, nomeadamente participando na condução do debate com o público. A relação entre Fernando Pessoa e Walt
Whitman foi analisada por Richard Zenith,
tradutor e ensaísta norte-americano e
importante investigador pessoano há anos
a residir em Portugal.
“Asas sobre a América – Wings over
America” acompanha um esforço recente
de edição em língua portuguesa de inúmeras obras fundamentais da literatura
norte-americana. O ciclo afirma-se como
incentivo ao debate criativo sobre o que
poderá unir a ficção e a poesia portuguesas contemporâneas a um legado da literatura norte-americana. Serve também de
incitação para um entendimento daquilo
que, na sessão inaugural, o filósofo e ensaísta Eduardo Lourenço definiu como “um
continente futurante”, referindo-se sobretudo ao contributo dos Estados Unidos
para uma mitologia planetária. Ao longo
de cinco meses, a América, como “uma
espécie de realidade objectiva incontornável”, surgirá reflectida no olhar subjectivo de criadores que, do lado de cá do
Atlântico, colheram na melhor literatura
norte-americana noções, inquietações,
memórias e fascínios vários. Através do
dinamismo desses trânsitos literários, saúdam-se possíveis irmandades, como a que
levou o engenheiro e poeta sensacionista
Álvaro de Campos a meter esporas e a
convidar Whitman, “lá do outro mundo”,
para uma dança furiosa, exclamando:
“Meu velho Walt, meu grande Camarada,
evohé!”
Carson McCullers, descobri que a
adolescência é eterna e que a poesia
pode nascer da limpidez da prosa.
INÊS PEDROSA
> Walt Whitman, autor de Canto de Mim
Mesmo, ajudou Pessoa a libertar-se de
si próprio e para si próprio.
RICHARD ZENITH
> Admiro profundamente a obra de
William Faulkner. Não conheço outro
escritor que melhor tenha entrado no
coração profundo dos homens. Ainda por
cima, relê-lo é surpreender a própria
escrita na fonte da modernidade.
LÍDIA JORGE
> O mais fascinante em Flannery
O’Connor é talvez a ilustração ao mesmo
tempo cruel e compassiva dos caminhos
ínvios para a salvação.
PEDRO MEXIA
> “Habito a Possibilidade, uma Casa
mais bela do que a Prosa”, declarou a
maior poeta de língua inglesa. Emily
Dickinson escreve uma poesia em que
se propõe dizer toda a verdade, mas de
forma oblíqua, e assim antecipa o radical
gesto moderno do fingimento poético.
“O meu ofício é a Circunferência”, disse
ainda – que melhor cartão de visita?
ANA LUÍSA AMARAL
> Saul Bellow começa por ser uma voz,
uma grande voz, que conversa comigo.
E me faz aceitar um bocadinho mais o
humano terno e ridículo e vivo que há
em mim. (Nem sempre é fácil.)
RUI ZINK
Sessão do ciclo “Asas sobre a América” no auditório da FLAD.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
45
CULTURA
A Pietá impiedosa
Querendo representar uma “espécie de cowboy armado” que “impõe a democracia”
no mundo inteiro, os Estados Unidos criam a figura do “anticowboy”,
defende Eduardo Lourenço. Assim, o “anjo” bélico do século XXI
continua o imaginário de um “Continente violado na origem”,
no qual o exercício da liberdade incluía o direito à violência.
Por SUSANA NEVES
FOTOGRAFIAS RUI OCHÔA
Reflectir sobre os Estados Unidos a partir
do cinema, tema da conferência de
Eduardo Lourenço (ver caixa, p. 48) que
abriu o ciclo “Asas sobre a América –
Wings over America”, na Fundação Luso­
‑Americana, implica inevitavelmente
analisar o western, género cinematográfico
paradigma da cultura americana.
Nesta entrevista inédita, onde se procura descobrir se a genealogia do cowboy
é europeia ou por que razão a Humanidade
ainda tem sede de mitos, revela-se em
Eduardo Lourenço em entrevista. Um pensador capaz de “perscrutar a vocação das Nações”, disse Rui Machete.
46
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
CULTURA
simultâneo a capacidade ensaística e a
independência intelectual do autor de,
entre outras obras, A Morte de Colombo –
Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito
(Gradiva, 2005).
Como bem definiu Rui Chancerelle de
Machete, presidente da FLAD, no dia da
sessão inaugural, Eduardo Lourenço não
é só “por excelência um ensaísta na literatura e na história”, mas um pensador
capaz de “perscrutar a vocação das
Nações”.
André Bazin diz que “o western nasceu do
encontro de uma mitologia com um meio de
expressão”. Que mitologia é esta que o cinema
americano, e em particular o género western,
recriou e divulgou?
O western veicula a posse virtual ou real de
um espaço que não pertencia aos americanos. Lembra a epopeia da sua conquista
e colonização, o momento em que se formou uma identidade. Quando os cowboys,
heróis desta conquista, começam a desaparecer é quando começam a ser interessantes como objectos de ficção. Porque as
histórias do western situam-se sempre no
passado, manifestam uma nostalgia por
uma época de ouro, uma nostalgia dos
grandes espaços, do contacto com a terra,
a América fundamental.
Podemos considerar que os westerns legitima­
ram a usurpação de um território e a violência
contra um ‘outro’ que não foi reconhecido como
‘outro’ e como igual?
Sem dúvida. Numa primeira fase, de total
boa consciência, o western oscila entre o
divertimento, com conotação épica, e uma
maneira de tornar heróico aquilo que foi
uma usurpação, e uma colonização, por
vezes, particularmente violenta; que, de
resto, não se exerceu apenas contra os
índios, mas também contra o México,
a quem foi roubada uma parte imensa do
território, a que posteriormente se veio a
chamar Texas, fonte de grande riqueza
devido à existência de petróleo.
No livro La Grande Aventure du Western,
de Jean-Louis Rieupeyrout [Les Éditions du Cerf,
Paris, 1971], encontrei um anúncio de 1860,
que recrutava cavaleiros para o Pony Express.
Neste anúncio, divulgado por um periódico de
São Francisco, pedia-se um cavaleiro jovem, ­que
não tivesse mais de 18 anos, fosse excelente
­cavaleiro e estivesse disposto a enfrentar o risco
de morte diária – preferiam órfãos. Fiquei
a ­pensar no perfil do cowboy e em qual seria
a sua genealogia. Será que podemos encontrar
um equivalente ao cowboy, por exemplo, num
cruzado?
Não creio que seja essa a genealogia.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
O primeiro número da Paralelo sob o olhar atento de Eduardo Lourenço.
O mito do cowboy não é de origem inglesa
mas mais de origem hispânica, enraíza-se
na longínqua ascendência do cavaleiro da
Ibéria. O que é curioso é que o cowboy, em
princípio, não tem a conotação aristocrática ou nobre que representa o cavaleiro na
Europa, é pura e simplesmente um elemento da cultura das grandes fazendas, a sua
extracção é muito mais humilde. O western
é que elevou, pouco a pouco, esses personagens a heróis, sobretudo os positivos, os
que fazem respeitar a lei e a justiça num
mundo onde o poder central não tem grande eficácia. Eram simples vaqueiros, assalariados, os cowboys eram uma Pietá, e talvez
até por isso o género foi imediatamente
muito popular.
Acha que os Estados Unidos já se libertaram dos
seus westerns ou a sociedade norte-americana
vive refém desta cultura popular?
Não, creio é que a natureza épica, de acção
contínua, veiculada pelo cinema, impregna
todo o sistema social americano. Os americanos não são actores de uma cultura ou
civilização adquiridas, têm sempre de
impor a sua lei com mais ou menos violência, o que era natural na primeira fase
de conquista do Oeste. Ainda hoje, são uma
nação armada, sem inimigo à vista. Na
Idade Média, só o cavaleiro tinha direito
de andar armado, mas para o americano é
legal e honroso, é um direito. Esta atitude
guerreira impregnou todo o inconsciente
da cultura americana; digamos que os
Estados Unidos, no seu conjunto, e a cultura americana em particular, são uma
espécie de cowboy armado.
Michael Moore realizou Tiros em Colombine
(“Bowling for Colombine”, 2002), sobre o mas­
sacre na escola secundária de Colombine.
Recentemente, houve mais um massacre no meio
universitário americano. Que tipo de herói/cowboy é este que mata sem ter inimigo?
É preciso uma sociologia complexa para
explicar este tipo de fenómenos mas eu
penso que desde o início toda a América,
não só a do Norte, nasceu de um acto de
violência, é como se um continente tivesse sido violado na Origem. É preciso não
esquecer que essa América são sempre duas
Américas, a que existia há milhares de anos,
que desconhecia a existência de um outro
mundo, e a que vem da Europa, ou seja,
literalmente de outro planeta, e destrói a
primeira. Os vestígios dessa violência ainda
estão latentes. A verdade é que essa violência quase natural e estrutural das Américas
se repercute a nível simbólico em todos os
campos: na literatura, na arte, em tudo.
A nossa necessidade de construir mitos fez-me
pensar em Marcel Proust. Na obra Em Busca
do Tempo Perdido, defende que a ascensão
ao conhecimento significa também a destruição
dos mitos, ou seja, a passagem da “Idade dos
Nomes à Idade das Palavras”. Ora nós, e quan­
do digo “nós” refiro-me à cultura toda, a
Humanidade, continuamos agarrados aos mitos,
venham eles de onde vierem. O cinema é óptimo,
é uma máquina visual, auditiva e sensorial for­
tíssima. Se tivermos em conta as ideias de Proust
significa que não crescemos, não atingimos ainda
a maturidade? Continuamos na Idade dos
Nomes, dos Mitos e não chegámos ainda à das
Palavras? 47
CULTURA
Os mitos não são uma criação nem uma
leitura da realidade intrinsecamente falsa
ou aparente, mas uma leitura da realidade
em imagem. A mitologia é a primeira
expressão da verdade e nunca desaparece.
Depois pode haver outras versões que se
desmistificam sucessivamente, mas o enraizamento do nosso imaginário é imediatamente mítico. Fernando Pessoa dizia que
tinha o sentimento de não existir mas tinha
conseguido transformar-se num mito.
Nenhuma cultura em tão pouco tempo
criou uma mitologia tão eficaz e tão partilhada pelo mundo inteiro como o cinema americano. Por que é que o western
teve tanta eficácia, tanto impacto, sobretudo nos primeiros tempos? Porque de
uma forma simples mostrou o confronto entre o Bem e Mal. Na fase mais inocente e maniqueísta, o cowboy é uma
espécie de Deus ex-machina, restaura a
ordem e a paz quando a comunidade já
não sabe o que há-de fazer perante os
crimes, arbitrariedades e injustiças que
se cometem. Quando a paz social foi
corroída pelo medo, pelo pânico e pela
cobardia. O Comboio Apitou Três Vezes (“High
Noon”, 1952, de Fred Zinnemann), com
Gary Cooper, é um filme paradigmático
e uma metáfora do mundo dominado
pelo medo, temática muito forte da sociedade americana, onde se teme voltar ao
caos.
“A América é a vida como cinema”
Embora o professor Eduardo Lourenço tenha
começado por anunciar que a sua presença
na abertura do ciclo de conferências “Asas
sobre a América – Wings over America" era
“um erro de casting”, uma vez que não é
“americanista” nem expert em cinema americano, a sua intervenção constituiu um
momento ensaístico decisivo para o entendimento dos Estados Unidos como nação
reinventada por Hollywood, fábrica de mitos
de carácter universal e “futurante”.
No seu habitual tom pausado, falando para
um auditório a transbordar de visitantes, o
autor de O Esplendor do Caos (Gradiva, 2007)
explicou que os Estados Unidos não só forjaram a sua identidade a partir do cinema como
através da Sétima Arte conseguiram suscitar
nos outros povos o desejo de ser americano,
disseminando desta forma os seus sonhos,
valores e padrões de comportamento.
Máquina de colonização simbólica prodigiosa, o cinema americano foi também um
instrumento de reinvenção e “comentário”
da história americana, à medida que ela ia
acontecendo. O Nascimento de Uma Nação
("The Birth of a Nation"), de D. W. Grifffith,
1915, E Tudo O Vento Levou ("Gone with
the Wind"), de Victor Fleming, 1939, ou
ainda As Vinhas da Ira ("The Grapes of
Wrath"), de John Ford, 1940, seriam para
Eduardo Lourenço alguns dos filmes paradigmáticos da cinematografia americana
enquanto lugar de História, os dois primeiros por abordarem o conflito Norte-Sul que
dividiu os Estados Unidos entre abolicionistas e defensores da escravatura, o terceiro
por ser uma referência à Grande Depressão
de 1929.
“Espaço mitológico por excelência”, sobre­
tudo a partir dos anos de 1940 e 1950, o
cinema americano soube “reciclar” todas as
temáticas e mitologias ocidentais (Cleópatra,
48
João Lopes e Almeida Faria (na foto da direita para a esquerda) no auditório a transbordar
para ouvir Eduardo Lourenço.
Joseph L. Mankiewicz, 1963) e não ocidentais,
impondo-se também pela invenção no âmbito dos seus vários géneros e a originalidade
dos seus personagens que ascenderam ao
estatuto de ícones universais.
Se Tarzan se tornou um símbolo da “heroicidade medida não pela relação do Homem
com os outros homens mas com a Natureza”,
“sem precedentes no imaginário europeu”,
Charlot conquistaria uma universalidade
equivalente a D. Quixote, enquanto Fred
Astaire, herói aéreo, capaz de dançar até no
tecto (You Are All the World to Me, 1951),
é um dos mais carismáticos representantes
da comédia musical, género cinematográfico
que foi de “uma novidade total” na história
do cinema, porventura, também um dos mais
“abstractos”.
“Duplo do mundo” mas com uma “capaci­
dade de emocionar superior à vida”, o cinema, e em particular o americano, tornou-se
em si mesmo um Continente onde são possíveis todas as viagens no tempo. Quer seja
ao passado, sob a forma nostálgica da revisitação da “origem absoluta de si mesmo”,
de que o género western é um paradigma
exemplar, quer seja rumo ao futuro, unidade
temporal onde é possível reinventar o Paraíso
à maneira americana, ou seja, pela acção.
“A América é a vida como cinema e sobretudo como cinema americano”, conclui Eduardo
Lourenço, e o público aplaudiu.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
CULTURA
Podemos encontrar na cultura e literatura ociden­
tais narrativas que sejam equivalentes às narra­
tivas do western?
A Odisseia [atribuída a Homero] não é
propriamente um western, mas Ulisses
é submetido a uma série de provas, com
um conteúdo iniciático, é alguém que
também vai atravessar e vencer uma série
de obstáculos no Mar – que é uma metáfora da existência, uma substância imprevisível, na qual os homens estão sempre
em perigo de naufragar. É exactamente
o mesmo esquema da mitologia americana. Nela, os heróis lançam-se em perigos diversos, sempre com a ideia de
chegarem a um espaço mítico onde se
encontra uma espécie de paz, a Terra
Prometida. Nos nossos clássicos, o herói
também procura chegar a um lugar específico, no caso de Ulisses é a casa. Mas o
problema de Ulisses é que ele não queria
muito regressar a casa.
O que distingue a mitologia americana
em relação a qualquer mitologia ocidental é que nela há um fundo de optimismo
superior. A mitologia americana nasceu
de um sonho, de gente que encontrou
qualquer coisa que alegoricamente era o
Paraíso, era o que o Colombo procurava.
Uma coisa é querer que todos os povos
do mundo sejam cada vez mais democráticos, outra coisa é impor a democracia à
força, através da violência e, sobretudo,
uma violência absolutamente desproporcionada. Quando os Estados Unidos vieram salvar a Europa da ameaça hitleriana,
quando durante vários anos enfrentaram
a ameaça soviética, confrontavam forças
iguais; agora, mobilizar as armas mais
sofisticadas do mundo para pôr na ordem
um país de décima quinta categoria isso
é o cúmulo da violência e da injustiça.
[No 11 de Setembro] os Estados Unidos
foram atacados pela primeira vez no seu
solo, mas atacados por quem? Por nenhum
Estado. Punir o mundo inteiro porque uma
espécie de loucos decidiu castigar os
Estados Unidos pelos seus pecados, significa entrar já não num western mas num
género dramático e eticamente pouco
aceitável.
Mas que ele se encarregou de destruir rapida­
mente.
Sim, mas essa ideia ficou. Toda a mitologia americana está ligada à ideia de que
aquela é a Terra da Liberdade. Onde cada
um, na medida do possível, é capaz de
concretizar os seus sonhos até ao fim. E,
sobretudo, ser ele mesmo, ser responsável
pela sua vida. Os Estados Unidos herdaram
essa pulsão messiânica que vem do texto
bíblico, que se tornou o texto cultural por
excelência dos colonos e depois da maioria dos americanos. É muito interessante
verificar que logo nos primeiros anos do
século XX, toda essa gente que tem um
papel importante na criação do cinema
americano, na altura o espectáculo mais
popular do mundo, são judeus. Não só os
proprietários das majors, por exemplo,
Warner, Mayor e Goldwyn, mas também
os realizadores como [Josef von] Sternberg
ou grandes actores como Chaplin.
Acha possível o regresso dos cowboys?
Se os cowboys são essa espécie de anjos
cinematográficos que incarnam os valores
mais preciosos na tradição ocidental,
enquanto restauradores da justiça, esperemos que haja sempre cowboys! O problema é se a América se institui cowboy para
fazer reinar a justiça no mundo inteiro
– nessa altura, contraria o ideal de liberdade que defende e torna-se anticowboy.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
“Uma coisa é querer que todos os povos do mundo sejam cada vez mais democráticos,
outra coisa é impor a democracia à força.”
49
CULTURA
Jornalistas portugueses
nos EUA
Dez jornalistas portugueses estão de partida para
os Estados Unidos com bolsas de curta duração. Vão
ao abrigo dos programas “Alfredo Mesquita”
(Açores) e “Rodrigues Miguéis” (Continente), criados pela FLAD com o objectivo de favorecer o intercâmbio na área jornalística.
Os seleccionados irão visitar diversas instituições
norte-americanas – como o Congresso, o Senado e
O jornalista José
Rodrigues Miguéis,
escritor
Por ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA
O escritor José Rodrigues Miguéis foi
também um jornalista assíduo que pelos
jornais derramou prolífica colaboração.
Muitos dos seus livros foram mesmo surgindo primeiro na imprensa, se bem que
em textos escritos com intenção de serem
mais tarde reunidos em volume.
A sua vinda para os Estados Unidos em
1935 proporcionou-lhe (ou, se preferirmos, empurrou-o para) um contacto
intenso com as comunidades emigrantes
portuguesa e hispânica. No período de
adaptação é comum os recém-chegados a
um país procurarem relacionar-se com as
comunidades que lhes são culturalmente
mais próximas. Miguéis tinha, por um
lado, o na altura pequeno núcleo português de Nova Iorque (e Newark, ali perto);
por outro, a Guerra Civil de Espanha agarrou a sua sensibilidade de animal político,
fazendo-o envolver-se fortemente na causa
republicana. Numa entrevista à revista
Gávea-Brown, por sinal a última que conce-
50
o Supremo Tribunal de Justiça –, bem como universidades, e contactar com personalidades de áreas
públicas e privadas. Participarão, também, num
curso do Committee of Concerned Journalists e em
seminários dirigidos pelos jornalistas Bill Kovacs e
Tom Rosenthiel.
Os programas contam com o apoio do Departamento
de Estado e da Embaixada dos EUA em Lisboa. CPC
deu, afirmava: “Colaborei muito em jornais luso-americanos como o Diário de
Notícias, de New Bedford, o Independente, de
Fall River, etc.; em jornais e revistas do
segmento hispano-americano, por vezes
ao abrigo de pseudónimos; no diário
republicano La Voz, de Nova Iorque, na
revista Norte e na revista Nueva Democracia
(escrevia espanhol correntemente).
Colaborei em inglês em revistas como The
Nation e The Protestant.” Alguns desses escritos têm sido recuperados. Duarte Barcelos
Mendonça reuniu toda a colaboração no
Diário de Notícias, de New Bedford, que será
publicada em breve na revista Gávea-Brown,
com uma introdução do investigador.
O professor George Monteiro procurou
identificar a colaboração em La Voz, mas
sem êxito. Os pseudónimos diferentes não
facilitam o trabalho. Apesar do auxílio da
viúva, Camila Miguéis, que indicou a
George Monteiro alguns dos mais usados
pelo escritor.
Foram dez anos de intensa participação
política e jornalística que não deixaram
boas recordações no escritor. Na citada
entrevista ele explica porquê. Ao ser-lhe
pedido que explicitasse melhor uma afirmação feita sobre ter sido um erro dedicar demasiado tempo aos problemas dos
emigrantes, esclareceu-se nestes termos:
“Não tanto aos imigrantes, como à política em que eles se envolviam – na mino-
ria! Foi um erro na medida em que vim
a verificar que, em troca da minha dedicação total, conheci a ingratidão e o abandono. Mas até no erro se aprende – talvez
melhor! Também, enquanto me dediquei
aos nossos emigrantes não produzi literariamente. Identifiquei-me com eles! Já
antes tinha escrito: ‘O homem em nós
mata o escritor’ – ao que acrescentei:
‘Diante das lágrimas que escorrem pela
face interior do mundo, cai-nos das mãos
a pena’. O escritor em mim tinha morrido às mãos do sectário! Mas, um dia,
como que renasceu das cinzas, acredi­tando
que a função do escritor é a de realizar-se fazendo obras e que a essência da sua
vocação é exprimir-se – exprimindo os
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
CULTURA
‘
sua perspicaz atenção
ao quotidiano ditaA crónica foi, a par do conto
ram-lhe sempre crónicas que foi regular(e dos aforismos),
mente enviando para a
o modo perene
imprensa lisboeta,
da presença jornalística
sobretudo o Diário
Popular, onde tinha
de Miguéis.
como arrimo o seu
indefectível, infatigável e sempre leal
amigo Jacinto Baptista. Continuou escreme com o título The Polyedric Mirror. Tales of
vendo para a imprensa periódica em American Life foi publicado em 2007 pela
parte por necessidade económica, pois
editora Gávea­‑Brown, do Departamento de
decidira ser escritor a tempo inteiro e Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown
precisava de conseguir algum suporte University, em Providence, Rhode Island.
económico. No espólio doado à Biblioteca Mais um na infelizmente ainda magra série
John Hay, da Brown University, há várias de livros de Miguéis traduzidos para inglês.
cartas tra­tando de assuntos contabilísticos (Os outros são uma colectânea de contos
com os jornais reveladores de como os – Steerage and Ten Other Stories, coordenada por
tostões eram todos contados. A crónica George Monteiro e também da responsafoi, por isso, a par do conto (e dos afo- bilidade da Gávea-Brown, e A Man Smiles at
rismos), o seu modo perene de presença Death – with half-a-face, tradução por George
jornalística. Crónicas sobretudo tomando
Monteiro de Um Homem Sorri à Morte – com
como tema a América do Norte, mais Meia-Cara, publicado pela University Press
precisamente Nova Iorque. Escritas em
of New England).
português, uma selecção delas foi finalSó resta espaço para lembrar a impormente traduzida para inglês pelo profes- tância de se reler Miguéis, quanto mais
sor David Brookshaw, da Universidade de não seja para se saborear uma escrita de
Bristol, no Reino Unido, que tem dedi- altíssima qualidade estilística. Nos tempos
cado algum tempo da sua pesquisa a que correm, já não é pouco. Há, porém,
investigar o espólio de Miguéis. Um volu- muito mais.
’
dramas dos outros.” (“Entrevista com José
Rodrigues Miguéis”, conduzida por
Carolina Matos, enviada pela revista a Nova
Iorque: Gávea-Brown, Janeiro-Junho de
1980, p. 44).
No entanto, Miguéis nunca mais largaria os jornais. Deixou, sim, o artigo de
opinião, mas o seu impulsivo reagir ao
que à sua volta se passava bem como a
Alfredo Mesquita,
a diplomacia ao correr da pena
Por carlA baptistA
Alfredo Mesquita, escritor e jornalista, natural de Angra do Heroísmo onde nasceu em
1871, deixou-nos belas páginas de ensaio
histórico-filosófico sobre a vida e os costumes de vários países, incluindo Portugal, a
Espanha, a Holanda e os Estados Unidos da
América. A sua obra inclui livros passados
em Lisboa (Alfacinhas e Rua do Ouro), e em
Angra (O Jarrão da Índia), e crónicas de viagens
com detalhes sobre os lugares onde serviu
como diplomata (Espanha, Holanda, Estados
Unidos da América).
É dele a seguinte descrição do grupo dos
“Vencidos da Vida”, da qual faziam parte
personalidades como Eça de Queirós,
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
Ramalho Ortigão, Jaime Batalha Reis e
outros intelectuais da chamada “Geração
de 70”: “A redacção [do jornal Tempo] era
nas vizinhanças do Hotel Bragança, e os
Vencidos da Vida, que lá tinham os seus
habituais jantares, costumavam invadir-nos
a casa ao levantarem-se da mesa, enchendo-nos as salas com o alarido confuso da
sua conversação, que o champanhe espiritualizava e risonhamente requintava.
“Umas vezes era Eça de Queirós, desengonçando-se em pequenos pulos, dando
volta à sala onde escrevíamos, vindo de
mesa em mesa apresentar a cada um de nós
os seus ‘mais respeitosos cumprimentos’,
tratando por ‘vossa excelência’ e perguntando com voz aflautada pela esposa e os
meninos ao paladino do celibato que era
Alberto Braga. Depois, ao fim desta estúrdia, pedia a um de nós o lugar para escrever a notícia do banquete; mas a meio da
segunda linha escrita suspendia a pena e
declarava peremptoriamente não se lembrar já do que lá se passara, nem do que
se comera, e ia adormecer num sofá, soluçando e implorando do conde de Ficalho
a conclusão da notícia.
“Ficalho, por sua vez desmemoriado
miserimamente, como ele dizia, recorria à
memória, incomparavelmente pronta 51
CULTURA
Ilustração do livro América do Norte.
de António Cândido; mas mesmo esse apenas se recordava, de um modo muito incerto e vago, de que houvera perdizes. Só
Carlos de Lima Mayer parecia convencido
de que haviam sido devoradas duas lagostas opíparas.”
Estas linhas integram um livro que
Alfredo Mesquita dedicou ao seu grande
amigo João Chagas, que começa com um
parágrafo comovente:
“Na terça feira passada, 31 de Janeiro, ao
fim da tarde, fui ao alto de S. João para estar
52
ainda uns instantes com o meu amigo João
Chagas, que ali tem a sua última morada.
Encontrei-o só, estivemos sós, e durante
muito tempo não trocámos duas palavras.
Decerto o meu silêncio não lhe causou surpresa, porque me foi sempre hábito, estando em sua companhia, ouvi-lo e calar-me.”
Partilhando o fel habitual entre os intelectuais da época que viveu, foi mordaz
em relação aos hábitos lusos. No livro de
memórias, intitulado justamente Memórias
de Um Fura-Vidas (1905), encontramos frases como “A ambição de todo o português
é ser empregado público – e não ir à repartição”, para depois prestar homenagem aos
que, sendo funcionários públicos, vão à
repartição: “A legião dos magros, dos pálidos, dos escanifrados que já por volta das
nove e meia da manhã, em todos os dias
úteis, vêm chegando à formiga dos bairros
velhos e pobres da cidade, atravessam as
Arcadas e arrastam pelas infinitas escadarias
dos ministérios as solas rotas e os tacões
gastos das suas botas esbeiçadas, se perdem
depois pelos corredores daqueles imensos
casarões e se somem por aquelas mil e
uma portas misteriosas, que se não abrem
a pessoas estranhas ao serviço.”
O seu último livro foi também o mais
bem-sucedido, tendo conhecido várias
edições depois da primeira, em 1916.
Intitula-se América do Norte e é um misto de
diário jornalístico e ensaio sociológico
sobre a paisagem e as instituições americanas, justificando a sua fama de ser o
“Tocqueville português”.
‘
Partilhando o fel habitual
entre os intelectuais
da época que viveu,
foi mordaz em relação
aos hábitos lusos.
No livro Memórias de
Um Fura-Vidas (1905),
encontramos frases
como “A ambição
de todo o português é
ser empregado público
– e não ir à repartição”.
’
Alfredo Mesquita foi redactor da
Democracia Portuguesa, Revista Ilustrada,
de António Maria Pereira, O Nacional, de
Mariano Pina, Portugal, Correio Nacional, Jornal
do Comércio e Diário de Notícias, tendo sido
delegado da Associação dos Jornalistas de
Lisboa nos congressos de Imprensa em
Itália, na Suíça e em França.
Em 1911, foi nomeado cônsul de segunda classe em Durban, transitando depois
para Orense, Melbourne, Constantinopla,
Roma, Nova Iorque, Hamburgo e Paris.
Finda a carreira diplomática, decidiu ficar
em Paris, tornou-se gerente de um hotel
e aí morreu, em 1931.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
CULTURA
O homem que estava
sempre a ler
No 15.º aniversário da Bolsa Ernesto de Sousa Arte Experimental Intermedia
recordamos o artista transversal.
Por SUSANA NEVES
Rui Ochôa
Contra “a austera, apagada e vil tristeza”
dos portugueses, já observada em Camões,
Ernesto de Sousa (1921-1988), em sintonia com Raúl Brandão, defendia: “a
pedra há-de dar flor”.
O mais importante, para o realizador do
filme Dom Roberto, 1962, premiado em
Cannes, pioneiro e divulgador da arte
intermedia em Portugal, não era o espectá-
“Ele [Ernesto de Sousa] vivia no futuro”,
lembra Isabel Alves.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
‘
culo, nem a arte, mas a
vida, a comunicação,
Leitor contínuo, estudioso e criador
o encontro plural, proimparável, tinha “projectos e trabalho
pício à festa.
Para ele, conversar
para vários séculos”.
com Man Ray ou com
o mítico Joseph Beuys
(Documenta 5, Kassel,
1972) era equivalente à descoberta de actual orientador da Bolsa Ernesto de
artistas portugueses quase anónimos e Sousa, co-financiada pela FLAD e pela
esquecidos como Rosa Ramalho ou o ile- Fundação Calouste Gulbenkian.
trado Franklin que um dia lhe dissera:
“Ernesto só foi aos Estados Unidos uma
vez, em 1983, a convite de Phill Niblock,
“O Sol descobre a arte.”
Para a “invenção do dia claro”, frase de para apresentar o mixed media Ultimatum. Ele
Almada Negreiros, com quem muito con- vivia no futuro. Lembro-me de nessa viaviveu e sobre quem realiza o filme Almada, gem, quando era preciso acertar os últiUm Nome de Guerra, 1983, todas as “pro- mos detalhes da apresentação, já estar a
vocações” eram indispensáveis, sobretudo, falar do projecto seguinte”, recorda Isabel
as que punham em causa “a cultura asfi- Alves, sua companheira ao longo de vinte
xiante”, burguesa, tanto ética como este- e dois anos, autora do site documental de
ticamente rígida e parcelar.
referência: www.ernestodesousa.com.
Na linhagem de Dubuffet, influenciado
Leitor contínuo, estudioso e criador
pelo Living Theatre e os artistas Fluxus, imparável, tinha “projectos e trabalho
Ernesto de Sousa defendia que a verda- para vários séculos”, Ernesto de Sousa foi
deira vanguarda só é possível através do também um crítico controverso e um
aproveitamento da memória e da “aven- divulgador apaixonado das obras de
tura da tradição”.
outros. Recorde-se, entre muitos eventos,
Luis Vaz 73, obra mixed media, apresentada o comissariado de várias representações
no V Festival Internacional de Mixed portuguesas na Bienal de Veneza bem
Media (Gent, 1975), é um bom exemplo como a notável exposição “Alternativa
desse princípio. Inspirando-se na poesia Zero”, realizada em Belém, em 1977,
camoniana, Ernesto de Sousa concebe um
e a abertura da inovadora Galeria
conjunto de imagens enquanto Jorge
Diferença, da qual foi um dos fundadores.
Peixinho compõe música sem qualquer Ao final da tarde, na “sala branca” da R.
relação de complementaridade ou ilus- S. Filipe Nery, havia tertúlia, muitos artistração. E é a partir desta obra transversal tas de várias gerações apareciam para o
que no futuro se propicia o encontro com ouvir falar. Ele que estava sempre a ler, e
Phill Niblock, director da Experimental
cultivara a “ingenuidade voluntária”,
Intermedia Foundation, Nova Iorque, atraía e metia medo.
’
53
CULTURA
Açores e Estados Unidos da América
Universidades em partilha
A partir de agora, professores e estudantes da Universidade dos Açores poderão trabalhar,
durante o máximo de um ano, em vários estabelecimentos de ensino superior norte-americanos,
assim como destes virão universitários para os Açores, pelo mesmo período de tempo,
graças ao Acordo de Mobilidade Antero de Quental.
Por sara pina
FOTOGRAFIA victor melo
Assinado em Ponta Delgada, em Março, este
acordo é financiado (para o ano de 2008)
em 100 mil euros pela FLAD e em 25 mil
pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Mário Mesquita, administrador da FLAD
responsável pelo projecto, explica a escolha do nome do programa: “Antero de
Quental terá sido, de entre os grandes
nomes da cultura portuguesa do século
XIX, aquele que, desde a juventude, mais
se interessou pela cultura norte-ameri­cana,
conforme sustenta a anterianista Ana Maria
de Almeida Martins. Talvez a sua condição
de açoriano seja responsável por essa simpatia, tendo em conta que a emigração
açoriana para os Estados Unidos, já considerável a partir de 1860, fazia parte da
vida social dos insulares.”
O acordo funcionará, para já, entre a
Universidade dos Açores e o consórcio de
universidades norte-americanas situadas
em áreas onde se concentram as comunidades de emigrantes portugueses:
Universidade de Brown; Universidade de
Massachusetts – Dartmouth; Universidade
de Massachusetts – Amherst; Universi­
dade da Califórnia – Berkeley e Bristol
Community College. Outras universidades
americanas poderão vir a aderir.
Tanto os docentes como os estudantes,
bem como os coordenadores deste projecto, serão seleccionados pelas respectivas
universidades. E já há candidatos...
Por ocasião da assinatura do Acordo de
Mobilidade Antero de Quental foi organizado um colóquio na Universidade dos Aço­
res sobre “Dinâmicas da Língua Portuguesa
em Contexto Multilingue”, no qual foi
discutida e analisada, ao longo de todo o
dia, a difusão do português no Mundo e,
em especial, nos Estados Unidos.
A abrir o colóquio, Luís Andrade, pró­
‑reitor da Universidade dos Açores,
54
­agradeceu o apoio da FLAD. Desta universidade intervieram, ainda, Clara Rolão
Bernardo, Helena Montenegro, Paulo
Meneses e Graça Castanho. Para além dos
subscritores do acordo, da Universidade
de Massachusetts participou, também,
Anna Klobucka, responsável pela coordenação de Ponto de Encontro, um manual de
ensino de português.
António Vicente, da FLAD, apresentou
dados actualizados sobre o estado e perspectivas de crescimento da língua portuguesa que, nos Estados Unidos, é grande.
Entre os 5 e os 17 anos de idade há mais
de 85 mil pessoas que falam português
em casas norte-americanas. A FLAD tem
vindo a trabalhar com o College Board,
em Nova Iorque, para que a língua portuguesa seja uma língua dos exames de
acesso às universidades americanas e em
breve apresentará, através do seu site
(www.flad.pt), um programa interactivo
sobre o português nos Estados Unidos.
O presidente do Conselho Executivo, Rui
Machete, encerrou o debate congratulan­do-se por este Acordo de Mobilidade constituir um instrumento de preservação e
desenvolvimento da língua portuguesa.
Assinatura do Acordo. Da esquerda para a direita: Onésimo T. Almeida (Universidade de Brown
e em representação da Universidade da Califórnia – Berkeley), Rui Machete, presidente da FLAD, Avelino
de Meneses, reitor da UAC, Manuel Carmelo Rosa, em representação da Gulbenkian, e Victor C. Mendes
(Universidade de Massachusetts – Dartmouth). José Francisco Costa do Bristol Comunity College,
em representação da Universidade de Massachusetts – Amherst subscreveu, também, o acordo.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
Rui Gageiro
CARTA BRANCA
O dia do meu aniversário
Maria Elisa Domingues*
‘
Nova Iorque proporcionou-me muitas alegrias:
entre elas, o prazer de ouvir Frank Sinatra ao vivo,
o puro deleite de ver Rex Harrison interpretar
o Professor Higgins de My Fair Lady,
George C. Scott dominar magistralmente
o notável elenco de Twelve Angry Men.
’
No dia em que fiz 50 anos, estava profundamente apaixonada e
em Nova Iorque: era-me difícil imaginar conjugação mais feliz.
Depois de me arranjar para o jantar, registei esse momento
numa daquelas fotos que só empolgam quem visita a cidade
pela primeira vez ou os namorados: diante das inebriantes cortinas de néon de Times Square.
Nova Iorque proporcionou-me muitas outras alegrias: entre elas,
o prazer de ouvir Frank Sinatra por duas vezes ao vivo, no
Metropolitan e no Radio City Hall, o puro deleite de ver Rex
Harrison interpretar o Professor Higgins de My Fair Lady (hélas! sem
Audrey Hepburn), George C. Scott dominar magistralmente o notável elenco de Twelve Angry Men. Pelo amor ao teatro, segui afoita, por
vielas esconsas, atrás de um enorme negro que me prometera arranjar bilhetes para um hit do momento absolutamente esgotado.
A história só não acabou mal porque o cavalheiro tinha cadastro e
havia dois polícias no seu encalço que intervieram no exacto
momento em que ele se preparava, com competência, para me
assaltar; enquanto um dos agentes da lei se afastava com o delinquente algemado, a outra pregava-me um violento raspanete, olhando-me como se estivesse a dirigir-se a alguém apoucado.
Foi também em Nova Iorque, instalados no Soho, que passei
as últimas grandes férias a sós com o meu filho, antes daquele
momento natural, mas melancólico para uma mãe, em que ele
passou a preferir outras companhias femininas à minha. É provavelmente a pessoa com quem partilho mais afinidades e um
grande companheiro de viagem. Tenho, muitas vezes, saudades
desse Verão.
Mas foi igualmente em Nova Iorque que vivi, na coincidência de um outro aniversário, a maior desilusão da minha
vida, daquelas que rasgam o peito e nos fazem questionar
toda a nossa existência, dilacerarmo-nos a procurar o
­m omento em que falhámos, tentando em vão encontrar um
sentido para continuar. Creio que nunca me recompus dessa
graça perdida.
E como os grandes amores não existem sem o reverso, foi
em Nova Iorque ou graças a ela que, por duas vezes, me
soube traída: da primeira, fugi do hotel – que, de qualquer
modo odiava, imenso, impessoal – e regressei no primeiro
avião para Lisboa, perdendo o que deveriam ter sido umas
deliciosas férias nas ilhas Keys, tontice de que ainda hoje me
arrependo, tanto mais que acabei por voltar para os braços
do traidor.
Da segunda vez foi mais grave: no rescaldo do 11 de Setembro,
o homem que jurava ser eu a mulher da sua vida, publicou
num jornal o relato emotivo das suas recordações de Nova
Iorque contando, entre outros detalhes igualmente íntimos,
que se declarara à mulher que amava no cimo do Empire State
Building. O que jamais poderia ocorrer comigo pois detesto
alturas, ainda que o clima seja da maior paixão.
Dessa vez, não perdoei, foi corte definitivo. Por algum
tempo, remoí a ideia de que a culpa era da cidade, perdi a
vontade de lá voltar. Mas durou pouco. Como poderia eu
virar costas ao sítio do mundo onde, no intervalo de poucos
quarteirões, me senti morrer de dor e morrer de amor?
* Jornalista da RTP
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
55
LIVROS
Estante FLAD
‘
[...] apesar dos progressos
verificados no conhecimento
de alguns dos habitats menos
estudados do planeta, como
é o caso dos montes submarinos
e dos organismos que
os habitam, estes continuam
a ser “um mistério”
Seamounts: Ecology,
Fisheries & Conservation
Pitcher, T. J., Morato, T., et al. (eds.)
2007, Oxford: Blackwell Publishing
’
Montes
submarinos
Por Mário Ruivo
Professor, presidente do Comité Português
para a Comisssão Oceanográfica Intergovernamental
A publicação deste livro é particularmente oportuna, tendo em conta o tema e a
abordagem polifacetada seguida, bem
como o contexto da exploração e conservação do Oceano em que se enquadra.
Num conjunto de capítulos de grande
qualidade, esta obra oferece um pa­norama
sobre o estado actual dos conhecimentos
e das implicações socioeconómicas da
exploração dos seamounts (montes submarinos, terminologia que entrou em uso
na década de 1930), numa perspectiva de
gestão dos recursos e do meio marinho
com base científica e da avaliação dos
impactos de origem antropogénica.
O interesse deste livro é acentuado pelo
equilibrado plano a que obedece e que
traduz a estreita interacção entre os autores e as abordagens interdisciplinares,
apoiadas numa vasta bibliografia das mais
recentes investigações na matéria. É de
notar a preocupação em inserir os temas
numa perspectiva contextualizada, ecológica e norteada pelos objectivos de um
desenvolvimento sustentável. O professor
Tony J. Pitcher sublinha, porém, no “Series
Editors Forward”, que apesar dos progressos verificados no conhecimento de alguns
dos habitats menos estudados do planeta,
como é o caso dos montes submarinos e
dos organismos que os habitam, estes
continuam a ser “um mistério”, desbravado nos 21 capítulos, estruturados em
56
quatro partes, da autoria de 57 especialistas mundiais, entre os quais vários portugueses: I – Metodologias e técnicas; II
– Interacção biofísica da produtividade
dos montes submarinos; III – Visão sinóptica da ecologia dos montes submarinos
e dos recursos pesqueiros; e, IV – Gestão
e conservação.
O “triunfo da colaboração” entre institutos e autores de reconhecidas competências nas matérias abordadas e a
atmosfera que caracterizou o encontro
realizado na Horta, Faial, Açores, em Maio
de 2005, é visível na expressão dos participantes na fotografia comemorativa.
Não se trata, efectivamente, de um livro
ocasional integrado na presti­giada série
“Fish and Aquatic Resources Series”.
Resulta de uma longa colaboração e de
um rigoroso e paciente trabalho preparatório entre os autores-investigadores, no
âmbito de uma rede científica que se tem
vindo a consolidar ao longo dos anos e
na qual o Departamento de Oceanografia
e Pescas da Universidade dos Açores, liderado pelo Doutor Ricardo Serrão Santos,
tem estado activamente envolvido.
É de notar, ainda, a preocupação de colocar os conhecimentos científicos ao ser-
viço da gestão e da governação do Oceano,
apoiada numa leitura responsável da
Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito do Mar (UNCLOS) e de outros
instrumentos relevantes, cuja implementação requer consciencialização e envolvimento da sociedade civil. Este objectivo
exprime-se no tratamento equilibrado da
gestão dos recursos vivos/pesqueiros e da
biodiversidade dos fundos marinhos,
nomeadamente nos montes submarinos,
num enqua­dramento ecossistémico e de
desenvolvi­mento sustentável apoiado no
conhe­cimento científico e, quando apropriado, no princípio da precaução.
A consulta e leitura deste livro (525
páginas, enriquecidas com ilustrações e
gráficos de alta qualidade) é facilitada pelo
estilo adoptado pelos autores, que contribui para a boa compreensão dos temas
abordados não só por especialistas como
também pelo público em geral.
Seamounts: Ecology, Fisheries & Conservation
constitui, pois, uma valiosa contribuição
para uma governação mais adequada e
eficaz do Oceano, na linha da recente
decisão da União Europeia de definir uma
Política Marítima Europeia para os Mares
e Oceanos, e, no que diz respeito a
Portugal, da adopção da Estratégia Nacional
para o Mar.
Neste contexto, mereceria projectar-se
uma versão de divulgação sobre estes
“habitats menos conhecidos” do espaço
interior do nosso planeta. Estão de parabéns os autores e as instituições que contribuíram para a organização do encontro
da Horta e para a edição deste livro.
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
LIVROS
Por Rui Hermenegildo Gonçalves
Doutorando da Faculdade de Direito
da Universidade Nova de Lisboa
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
’
"1 /" -Ñ Ñ1,"*\ÑÑ-*
/-
O livro As Fundações na Europa: Aspectos Jurídicos,
uma edição bilingue da FLAD, de Janeiro
de 2008, coordenada por Rui Chancerelle
de Machete e Henrique Sousa Antunes,
transcreve as comunicações apresentadas
no seminário internacional organizado
pela própria FLAD, em parceria com a
Fundação Bertelsmann, com o mesmo
título, em Junho de 2005, bem como os
animados debates que se seguiram às diferentes sessões. O objectivo fundamental
deste seminário, resumido por Rui
Chancerelle de Machete no discurso de
abertura, consistia em proporcionar um
debate público sobre os dois projectos de
“estatuto de Fundação Europeia” existentes àquela data, do Centro Europeu de
Fundações e do consórcio liderado pela
Fundação Bertelsmann, que são reproduzidos integralmente no final do livro.
Se, em Junho de 2005, se revelava oportuno discutir os projectos referidos, em
2008, devido às recentes evoluções ao nível
da União Europeia, a questão é de uma
profunda actualidade. Com efeito, em Abril
de 2007, a Direcção-Geral do Mercado
Interno e Serviços da Comissão Europeia,
também em resposta a um apelo reiterado
‘
.'”“(
Fundações
e direito da
União Europeia
%.,(
&+"'
Rui Chancerelle de Machete
e Henrique Sousa Antunes (coord.)
Janeiro de 2008, Lisboa: Fundação
Luso-Americana
das fundações europeias, lançou finalmen- rosamente no reforço do movimento de
te um concurso público para a apresentação integração europeia, tão carecido de novos
de um estudo sobre a viabilidade de intro- agentes e factores que o dinamizem”.
duzir um “estatuto de Fundação Europeia”, A mudança de paradigma que o Tratado
cujos resultados deverão ser conhecidos até de Lisboa aportará à União Europeia pasao final de 2008. O estudo será realizado sará necessariamente por um crescimento
pelo Max Planck Institute for International do papel e da importância das fundações
Private Law, em Hamburgo, e pelo Centre e das demais organizações da sociedade
for Social Investment, em Heidelberg, diri- civil. Tendo em conta a reconhecida capagidos por Klaus J. Hopt e Volker Then, cidade de intermediação das fundações
­respectivamente, que participaram activa- entre a sociedade civil e as instituições
mente no seminário de 2005. A decisão da públicas, o estatuto de fundação europeia
FLAD de publicar o livro As Fundações na poderia por isso incentivar o exercício da
Europa: Aspectos Jurídicos permite, por isso, filantropia como uma expressão de cidarecuperar a memória da relevante discussão
dania europeia e de concretização do bem
sobre um assunto que influenciará neces- comum europeu.
sariamente o futuro
das fundações na
O estatuto de fundação europeia, que traduziria
Europa.
Sem prejuízo das
um instrumento jurídico optativo ou adicional para
diferenças entre os
as fundações de interesse público, contribuiria
projectos em comassim para terminar com as restrições dos
paração no livro,
diferentes ordenamentos jurídicos nacionais […].
devidamente assinaladas por Klaus J.
Hopt na sua intervenção, pode afirmar-se que ambos concretizam uma
aspiração legítima das fundações europeias
.'”“(
de obter um enquadramento jurídico ver%.,(
&+"'
dadeiramente ­ europeu para as suas actividades transfronteiriças, pelo menos
dentro da União Europeia. O estatuto de
fundação europeia, que traduziria um
-Ñ1 )instrumento jurídico optativo ou adicional
Ñ1,"*
para as fundações de interesse público,
-*
/"-Ñ1,
"contribuiria assim para terminar com as
"1 /" restrições dos diferentes ordenamentos
Ñ1,"*
jurídicos nacionais às actividades intracoÑ-*
/munitárias das fundações, designadamente discriminações fiscais em função da
nacionalidade ou da residência, indo de
encontro à jurisprudência mais recente
25)#(!.#%2%,,%$%-!#(%4%
do Tribunal de Justiça da União Europeia.
(%.2)15%3/53!!.45.%3
#OORDENA½áO%DITORS
Por último, a adopção de um estatuto
de fundação europeia poderia ainda contribuir para o aprofundamento da integração europeia bem como para a
diminuição do distanciamento entre os
cidadãos europeus e as instituições da
União. Tal como reconhece Rui Chancerelle
de Machete, “as fundações ajudarão pode-Ñ1 )-Ñ Ñ1,"*\Ñ-*
/"-Ñ1,
"-
As Fundações na Europa:
Aspectos Jurídicos
57
LIVROS
In Pursuit
of Their Dreams
Jerry R. Williams
2005, Massachusetts: Center for
Portuguese Studies and Culture,
University of Massachusetts
O sonho açoriano
Por NUNO COSTA SANTOS
Escritor
Comecemos pela foto da capa – que é
todo um romance. Uma foto a preto e
branco de uma família açoriana nos
Estados Unidos. Nove pessoas. Nove rostos
de entre os milhares e milhares que, desde
o início do século XIX, deixaram as ilhas
e as suas biografias de pobreza, em busca
de oportunidades de trabalho. Há homens,
mulheres, crianças. E um relógio por cima
deles, sublinhando o tempo que corre.
‘
[…] um tempo de esforço e de labor.
Não há alegria nem tristeza nestes
rostos fechados. Apenas a serena
resignação de quem viajou por
necessidade – não por turismo.
’
Curiosamente, percorre esta fotografia a
ideia de suspensão desse tempo – um
tempo de esforço e de labor. Não há alegria nem tristeza nestes rostos fechados.
Apenas a serena resignação de quem viajou por necessidade – não por turismo.
Ou, noutra perspectiva: para fugir a problemas como o excesso de população,
o decréscimo da produtividade agrícola e
as condições naturais adversas.
É destas famílias, tantas vezes igno­
radas, que trata o livro de Jerry R.
Williams, In Pursuit of Their Dreams – a History
58
of Azorean Immigration to the United States, obra da sobrevivência pura e simples, foi
útil e informada para quem perceber aprendendo a impor-se, social e cultu­
com alguma profundidade a questão ralmente, nas complexas e multiétnicas sociedades para as quais transportou
da emigração açoriana para as várias
Américas – a da Costa Leste, a da Costa
um sonho e uma ambição.
O e s t e, a d o H ava i .
Emigração esta que, como
lembra o autor, teve vários
ciclos – iniciou-se com os
Uma homenagem a uma comunidade
baleeiros da Nova Inglaterra
que, depois de ter ultrapassado
do início do século XIX,
a fase da sobrevivência pura e simples,
imortalizados pela pena de
foi aprendendo a impor-se, social
Melville, e tem, como última vaga reconhecida, a que
e culturalmente, nas complexas e multiétnicas
se iniciou nos anos 60,
sociedades para as quais transportou um
nuns Estados Unidos pós­
sonho e uma ambição.
‑Segunda Guerra Mundial,
mais abertos a receber ­
estrangeiros e as suas experiências.
Jerry R. Williams faz aquilo que o jargão da imprensa não consegue fazer:
pormenoriza. Distingue, em
termos de ocupações laborais e hábitos de vida, os
vários destinos da emigração (a título de exemplo, os
destinos dos operários fabris
e dos pescadores da Costa
Leste nada tiveram a ver
com os dos agricultores e
dos mineiros da Califórnia).
Trajectórias diferentes e diversas que se unificam num
conjunto de valores de
“portuguesidade” (e de,
arrisque-se uma palavra
menos consensual, “açoria­
nidade”) que se mantêm ao
longos dos anos: a importância da família, a figura
paterna como marca de
autoridade e a manutenção
de laços com a família alargada.
In Pursuit of Their Dreams é,
apesar dos seus intentos
especificamente aca­démi­
c o s , u m a h o m e n ag e m .
Uma homenagem a uma
comunidade que, depois
de ter ultrapassado a fase
‘
’
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
LIVROS
Aventuras
de Um Nabogador
Onésimo Teotónio Almeida
2007, Lisboa: Bertrand 
Contares
do andarilho
Por Francisco Belard
Jornalista freelance
Navegar é preciso, viver idem, podia dizer
o autor de Aventuras de Um Nabogador & Outras
Estórias-em-Sanduíche, ou desventuras de um
navegador. A dupla qualidade do narrador – autor e protagonista – marca as
histórias ou “estórias”, “ensanduichadas
em crónicas”. Português nos EUA, a dupla
pertença terá marcado a predilecção por
um termo que aspira a demarcar story de
history e trocar “conto” por short story
(mesmo short é mais ampla semanticamente), contornando na volta a questão da
“história” com e sem maiúscula. Este viajante, não turista, dado a recriar mas não
a mentir, narra episódios que viveu ou lhe
foram contados, que assim aconteceram
ou podiam acontecer. Onésimo é um dos
nossos melhores navegantes em fim de
século ou começo de outro. Faz-se ao mar
de avião, e, se tal não ocorre, mete água
metafórica, como no episódio que
en­cerrao livro e lhe dá título. Neste livro
reitera o jeito raro de contar acontecimentos (reais, passe a redundância) e efabular
em torno. A realidade irrompe tão rica,
interessante e até prodigiosa que dispensa ficções propriamente mentidas.
O escrúpulo dissuade-o de ser ficcionista,
não lhe faltando experiências e arte que
dele fariam “escritor” na acepção de
matriz continental. Detecta-se na sua “poética” uma indecisão central entre ficção e
registo (como cronista, testemunha, repórter ou revelador de indiscrições); talvez
viesse ao caso discutir a natureza dos seus
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
textos não académicos a partir do conceito de paralaxe, ou parallax view, mas não
serei eu a fazê-lo. Este homem, que
defronta certezas infundadas do establishment intelectual e moral, que é atrevido a
contar histórias reais e fictícias, poupa-se
ao salto não mortal para a ficção “pura”
que eliminaria problemas. Pairam sobre
as andanças de Onésimo a exposição ao
olhar próximo (mãe, mulher, conhecidos,
pudor na linguagem e em identificar pessoas; “excesso de pruridos”, “frágil vergar
aos conselhos da minha primeira leitora”)
e o medo de nos maçar, tão consentido
que talvez lhe corte asas para voos de outra
ordem. Sente-se a tensão fecunda entre
olhar nativo e olhar estranho. É neste olhar
movente que a sua perspicácia tão fundamente assenta, esteja aqui ou ali, observando todos como outros e, ao mesmo
tempo, nossos. São textos que a voz do
narrador torna homogéneos, em livro
capaz de dispensar o itálico como separador entre “estórias”. Nuns casos, estas
seriam fragmentos ou esboços de uma
campus novel (e Onésimo o nosso David
Lodge), noutros, a literatura de viagens e
a narrativa cómico-marítima que nos faltaram na viragem do século. Ao mesmo
tempo, em digressão pelos espaços, ele
condensa as expressões de mundos atlânticos e pacíficos, com as virtualidades da
perspectiva luso-americana e da mundividência universalista. A sensibilidade às
tragédias do povo de origem é patente,
sem proclamações patéticas. Se a isto juntarmos o humor (subtil, subliminar ou de
understatement nuns casos, aberto e descarado noutros), encontramos um escritor só
tolhido por modéstia e autodepreciação
(ficam-lhe bem, de resto), de que se evade
em invenção vocabular e recursos estilísticos. Onésimo é o bom contrabandista
de géneros literários, que o seu talento
guarda em gaveta indefinível de material
confessável e inconfessável, contável e
incontável. Na sua escrita vigiada, evita
ser mais um romancista português. Toma
diversas vozes; a pessoal, de actor e testemunha, e as que ecoam no poder de
observador e contador, conjugando peças
de descolagem variável em relação ao “que
realmente aconteceu” (Ranke), acenando
‘
Onésimo é o bom contrabandista
de géneros literários, que
o seu talento guarda em gaveta
indefinível de material confessável
e inconfessável, contável
e incontável.
’
ao que podia ter acontecido. Um uni­
verso sedutor, verdadeiro mesmo quando
inverosímil (é também isso a realidade),
marginal ao emprego deste investigador
e professor, que escapa a ossos mais sisudos do ofício para dar o humor com que
sobrevoa os oceanos e aterra em terras
novamente descobertas. Essa harmonia
polifónica não é manto fantasioso sobre
a verdade nua; é desvio subtil entre nós e
a crueza do mundo interpretado. 59
COLECÇÃO FLAD
Rui Moreira
Encarnar o desenho
O campo de intervenção e pesquisa de Rui Moreira é o desenho.
Para este artista, desenhar não é apenas um fazer, é um modo de
pensar. Pensar a arte e pensar o mundo. Cada desenho que realiza no seu ateliê pressupõe uma viagem que o antecede. Deserto
do Sara, Amazónia, Trás-os-Montes. O seu desenho inicia-se com
a experiência física de um determinado lugar, a experiência directa do viver, sentir, cheirar, encontrar. Esta imediatez é ‘armazenada’ no seu corpo e transposta, já na interioridade do seu
ateliê, para a folha de papel. O espaço entre os dois acontecimentos é fundamental para que a experiência se transforme em
matéria artística, para que se transforme em linguagem visual.
A proposição filosófica de Heidegger – o ser-no-mundo – pode
ser invocada aqui para pensar a prática artística de Rui Moreira.
Não há uma dissociação entre a sua vida e a sua arte. O fazer
arte, o desenhar, constitui um prolongamento do seu estar no
mundo. E o seu estar no mundo, embebido e imerso no quotidiano tangível, traduz-se no seu desenho. Um “desenho alar­
gado”, como o denomina.
O projecto que realizou em Trás-os-Montes iniciou-se em 2004.
A sua proposta era estudar as festas pagãs (orgiásticas em tempos)
que ainda subsistiam no Norte do País, e em particular debruçar­
‑se sobre a figura do careto. Esta figura, também uma antiga
tradição nacional, é um homem comum que, através do vestir
de indumentárias típicas, se transforma noutro ser. Um ente
possuído pela magia, em forte comunhão com a natureza e transportando uma forte tensão sexual. Os desenhos de Rui Moreira
sobre estas personagens apresentam seres em processo de mutação (entre o homem, o animal e o vegetal) e armados de uma
poderosa força sexual.
O trabalho de execução de cada um destes desenhos (como é
habitual na sua obra) é caracterizado por um extraordinário
detalhe. A cruz é um elemento recorrente na sua obra. Simboliza
a unidade, o indivíduo. Enquanto adorno das vestes do careto,
ela traduz a comunidade (presente mas também do passado, do
tempo da história) que este personifica naquele momento.
Recorrente é ainda a cor. O azul que escolhe e que emprega de
forma monocromática, alude igualmente a uma história e a uma
tradição portuguesa.
Apesar de esta série se alinhar na continuidade dos trabalhos
que havia desenvolvido anteriormente (e daí a repetição de
determinados elementos), ela representa uma mudança no traço
do artista que passa a renunciar a linha geometrizante e rigorosa
para adoptar um fluir manual.
Rui Moreira nasceu no Porto, em 1971. Formou-se no Ar.Co,
tendo começado a expor em meados da década de 1990. Das suas
exposições individuais destacam-se as realizadas na Galeria Lisboa
20 (2007, 2005 e 2003). Prepara uma mostra antológica na
Fundação Carmona e Costa, a inaugurar no decorrer deste ano.
Das exposições colectivas em que participou destacam-se: “Portugal
Agora”, Mudam, 2007; “Bouzean”, Faro Capital da Cultura, 2005;
“Os Últimos Dias”, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.
60
FILIPA OLIVEIRA
Curadora de arte contemporânea
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
COLECÇÃO FLAD
Sem Título, 2004, tinta de caneta sobre papel, 121 × 160 cm
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
61
bLoCo De notAs
A terceira margem do rio
‘
mário mesQuitA
As três candidaturas, ainda em disputa, situam-se
fora dos binómios que moldam a cultura americana.
“o (número) três – escreve Damatta – é a sábia
e sempre próxima (mas invisível e paradoxal) terceira
margem do rio”.
’
“Se na sociedade brasileira as relações
entre as pessoas obrigam a mentir e calcular constantemente quem nos deve e a
quem devemos, aqui, nos Estados Unidos,
o problema é a ilusão de que tudo pode
ser resolvido formalmente por meio de
instituições impessoais.”
Estas palavras são de Roberto DaMatta,
antropólogo brasileiro traduzido em múltiplas línguas, autor de estudos sobre a
vida quotidiana brasileira, o carnaval e o
futebol, a rua e o jogo do bicho. DaMatta
compilou em livro as colunas do Jornal da
Tarde (1993-2001), do Estado de S. Paulo
(2001-2004) e de periódicos de menor
difusão, sob o título sedutor de
Tocquevilleanas – Notícias da América (Rio de
Janeiro, Rocco, 2005). o autor foi professor da Universidade de Notre Dame
(Indiana) durante os dezassete anos a que
correspondem estes ensaios e crónicas.
o contraste entre os tipos de sociedade
a que DaMatta alude remete para as teses
de Edward hall (Beyond Culture). Nas sociedades pobres em contexto (as anglo-americanas)
os códigos comunicativos quase dispen-
62
sam a compreensão aprofundada do
ambiente circundante. Nas culturas ricas
em contexto (as sul-americanas), a comunicação interpessoal e não-verbal relega
para segundo plano a lei, a regra ou o
código. DaMatta não afirma coisa diferente: “No Brasil todo o mundo personaliza;
aqui (nos Estados Unidos) todo o mundo
impessoaliza”.
Textos jornalísticos, mas simultaneamente ensaios de investigador que procura
evitar que “os factos canibalizem as teorias
ou, para ser menos pedante, os vários
estilos pelos quais os acontecimentos são
anestesiados de suas repercussões pelo uso
de receitas interpretativas rotineiras”. Ao
contrário dos que se encerram no jargão
especializado, Roberto DaMatta assume
a sua atitude de procurar traduzir para
públicos mais vastos os resultados da pesquisa e da reflexão universitárias.
o contraste entre sociedades desenvolvidas e “pobres em contexto” e sociedades
em vias de desenvolvimento “ricas em
contexto” – teorizado por Edward hall –
não adquire na obra do antropólogo bra-
um tocqueville antropólogo e brasileiro
em pleno século xxi.
sileiro significado normativo. Equivale
antes a um esforço de interpretação.
A ilusão anglo-americana é que tudo pode
ser resolvido sem a interferência das relações entre as pessoas, através do respeito
da legalidade e do culto das instituições.
A ilusão sul-americana é que a amizade e
o compadrio bastam para regular a socieParalelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
BLOCO DE NOTAS
dade enquanto a lei e a regra são pormenores de menor relevância.
A personalização sulista provoca o recurso frequente à mentira, enquanto a impessoalidade do Norte, sob a inspiração de
certa cultura protestante, conduz muitas
vezes à hipocrisia. No Brasil, o acento
­tónico nas relações interpessoais redunda,
muitas vezes, na “corrupção e (na) incapacidade de, no plano público, separar o
joio do trigo”, enquanto nos Estados
Unidos, “o preço de uma radical institucionalização da vida social tem sido o mal­
‑estar causado pelo desencanto com um
mundo que não tem lugar para as contradições, as dualidades e as ambiguidades”.
Este exercício comparativo não conduz
a adoptar uma das sociedades como
“modelo” a imitar e a outra como “antimodelo” a exorcizar. Em muitos aspectos,
Roberto DaMatta admira a organização
social norte-americana. Noutros, a simpatia do colunista e investigador vai para
a raiz brasileira. Mas nunca a admiração
pelo Norte se converte em culto basbaque,
nem o amor do Sul em autocontemplação
alheia ao espírito crítico. DaMatta: “No
Brasil e em outros países (como o Chile)
muita gente está convencida de que falta
muito pouco para sermos como eles [os
americanos]: adiantados, grandes, desenvolvidos, hiperconsumistas e obviamente
felizes. Mas, quando chegarmos lá, eles
serão muito diferentes, provavelmente,
muito mais parecidos connosco do que
gostaria a nossa vã sociologia ou economia.”
A eterna questão do terceiro partido
norte-americano foi reavivada pelas candidaturas de Ross Perot e de Ralph Nader
(tácticas ou não, pouco importa). Colin
Powell, negro republicano e centrista, sustentou, sem ambiguidades, que os Estados
Unidos precisam de um terceiro partido.
Sucede que – como sublinha o antropólogo brasileiro – “o número três não é
bem visto nesta terra que representa-se a
si mesma como dual e que sempre imaginou que o tudo ou nada, o preto ou o
branco, o leste ou o oeste, o sul ou o
norte, constituem as opções de uma moralidade suficiente e superior”.
A questão do terceiro termo não se resume, claro, ao terceiro partido ou ao terceiro candidato presidencial. Na
actualidade, o número três inscreve-se por
todos os ecrãs televisivos nos relatos e
especulações sobre as próximas eleições
norte-americanas. As três candidaturas,
ainda em disputa, situam-se fora dos binómios que moldam a cultura americana.
“O (número) três – escreve DaMatta – é
Paralelo n.o 2
| PRIMAVERA | VERÃO 2008
A excelente montagem da capa da Time Magazine acentua que só haverá lugar para um dos
pré-candidatos – Obama ou Hillary – nas eleições americanas, mas a presença de uma mulher
e de um mulato na luta pela Casa Branca deixará traço na história da América.
a sábia e sempre próxima (mas invisível
e paradoxal) terceira margem do rio.”
A ironia da história poderá ditar a “renovação na continuidade”, com a vitória do
candidato republicano (isto não é uma
previsão, mas uma hipótese), mas a presença de Hillary e Barack – uma mulher
e um mulato – na margem democrática
da política americana, representa já uma
enorme mudança que, sejam quais forem
os resultados finais, deixará traço na história da América.
Desde as primeiras sufragistas a Hillary
Clinton, desde a escravatura a Barack
Obama, os americanos perfizeram um
enorme percurso. O longo caminho não
está terminado, nem para a América, nem
para o mundo, longe disso, mas ganha
novo alento neste ano de 2008. Ao fundo,
na linha do horizonte, esconde-se, sob o
nevoeiro da esperança, a tal “terceira margem” – utópica, mas, por certo, necessária. Nunca chegaremos a vê-la,
provavelmente, mas sabemos de ciência
certa que lá está, em lugar incerto, sob o
denso nevoeiro, à nossa espera.
63