Viagens na Minha Terra Almeida Garret

Transcrição

Viagens na Minha Terra Almeida Garret
Viagens na Minha Terra
Almeida Garrett
Resumo de Obras Literárias
Autor do resumo: Jairo José Batista Soares
Viagens na Minha Terra [1846]
Almeida Garrett [1799-1854]
1. Apresentação
O ponto de partida em Viagens na Minha Terra (1846), do escritor
Almeida Garrett (1799-1854), é uma viagem feita pelo autor, de
Lisboa a Santarém, em 1843, a convite do político Passos Manuel.
O livro é um grande mosaico em que, ao longo de seus 49 capítulos,
o autor, de maneira livre, mistura diversos elementos: a narrativa
da viagem; a descrição das paisagens e dos lugares históricos
visitados; considerações sobre a conservação dos edifícios e
monumentos históricos; opiniões sobre a história antiga e recente
de Portugal, principalmente os acontecimentos envolvendo a luta
entre liberais constitucionalistas e conservadores realistas e o
surgimento dos barões (a elite capitalista que tomava conta do
país), bem como a decadência da religião e de sua influência na
sociedade portuguesa.
Entremeada a tudo isso, está a narrativa da trágica história de amor e de família, envolvendo Carlos, um
jovem liberal, sua prima Joaninha (a “menina dos rouxinóis”, com seus belos olhos verdes como esmeralda),
sua avó D. Francisca e Frei Dinis, o guardião do Convento de São Francisco de Santarém, frade severo que
esconde em seu passado um crime que lhe desgraçou a vida e fará perder a felicidade de todos a sua volta.
Livro fundamental do nascimento do Romantismo e da narrativa moderna em língua portuguesa, as Viagens
na Minha Terra são também uma importante reflexão sobre os rumos históricos de Portugal no momento em
que foram escritas. Caso você, leitor, tenha dificuldades para entender o “resumo” que segue, em virtude das
referências históricas nele contidas, sugerimos que antecipe a leitura do item “3. Contexto histórico: Portugal
dividido”, como forma de embasar sua leitura.
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2. Resumo da obra
Capítulo I
O autor inicia registrando sua intenção de fazer a crônica — registrando o que ver, ouvir, pensar e sentir
— de uma viagem a Santarém1 que começa no dia 17 de julho de 1843, quando ele toma um velho barco,
em companhia de amigos, em Lisboa. O autor cita a derrocada do governo da Restauração que, nas suas
palavras, tinha a intenção de “livrar a gente de um governo de patuscos, que é mais odioso e engulhoso dos
governos possíveis”. Faz então o elogio de fumar a bordo, ao lado de alguns viajantes: um grupo de atletas de
Alhandra que voltava das touradas de Praça de Santana e um grupo de homens de beira-mar da região entre
Porto e Aveiro. Disputavam os do norte contra os do sul para saber qual era o homem mais forte: o boiadeiro
ou o homem do mar. Um dos marinheiros decide a peleja ao perguntar: quem é mais forte? Um touro ou o
mar? Pois se é o mar, claro está que será mais forte o homem que luta contra o touro que o homem que luta
contra o mar!
Capítulo II
O autor afirma que sua obra será uma “obra-prima, erudita, brilhante de pensamentos novos”, que será ao
mesmo tempo “símbolo” e “mito” do “progresso social português”, que ele define como resultado de dois
princípios opostos que andam sempre juntos: o “espiritualista”, simbolizado por Dom Quixote, e o “materialista”,
representado por Sancho Pança.
A expedição chega a Vila Nova da Rainha, que o autor define como “asqueroso lugarejo”. De lá, parte de carona
na carroça de um amigo, L. S. Reclama do estado das estradas e defende que os ministros sejam obrigados a
viajar pelo reino, única maneira de mantê-las cuidadas. Chegam ao povoado de Azambuja, mais asseado e bem
cuidado. Espera-os, à entrada do antro que lhes servirá de hotel-restaurante-café, uma bruxa à porta...
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Santarém, conquistada pelos mouros em 715 d.C. foi reconquistada pelos portugueses definitivamente em 15 de março de 1147
por D. Afonso Henriques de maneira audaciosa. Com um pequeno exército, assaltou a cidade à noite e ali se instalou. A cidade foi
sede de inúmeras Cortes portuguesas. É conhecida como a “capital do gótico” de Portugal, devido a seus inúmeros monumentos
que traçam vestígios desse estilo artístico medieval. Mas muitos desses monumentos estão hoje completamente desfigurados. O
empastelamento (alteração por conta de inúmeras reformas) ou depredação desses monumentos já era denunciada por Almeida
Garrett em Viagens em Minha Terra.
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Capítulo III
O autor assume que desapontará o leitor de seu tempo, ávido de romantismo, com a sinceridade do seu
relato. Dito isso, muda de assunto: “E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam
o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização,
à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?”
“Logo a nação mais feliz, não é a mais rica.”
A estalagem está lotada de literatos românticos: Sancho (o utilitarismo) reina em Portugal, mas D. Quixote
(o idealismo) domina, hipocritamente, a literatura. O autor diz que não fará como os literatos românticos,
não iludirá o leitor com descrições falsas. Na estalagem de Azambuja, o que havia era uma velha suja e
maltrapilha que lembrava uma bruxa, sua filha nojenta como ela, um velho paralítico e demente. A água era
infecta, o vinho era atroz. Fez-se então uma limonada de limões velhos e açúcar indescritível. Partiram todos,
depois, em direção ao pinhal de Azambuja.
Capítulo IV
Durante todo o caminho de Azambuja ao Cartaxo, o autor discorre sobre a modéstia e seu valor, usando para
isso o poeta e ministro inglês Addison, e se questiona por que Portugal não pode ter um escritor, filósofo e
poeta como ministro de Estado. Faz, enfim, a defesa da modéstia como principal virtude, principalmente, das
mulheres, “realce de beleza às formosas, disfarce de fealdade às que o não são”.
Capítulo V
O autor chega ao pinhal do Azambuja e decepciona-se com o local. Explica ao leitor, então, como se faz um
romance: cria-se um núcleo banal de personagens, recortam-se dos figurinos franceses os modelos com os
quais se veste os personagens e se formam as situações, retira-se meia dúzia de nomes das velhas crônicas
– está pronta a obra! Imagina o autor que as árvores do pinhal do Azambuja foram arrastadas por um Orfeu
moderno, que se juntou a outros e envolveu-se em companhias, bancos, elegeu-se por algum distrito e foi
parar na comissão da fazenda ou em algum ministério.
Vê-se, de repente, o autor sem sua condução, e é obrigado a trotar em uma mulinha velha até Santarém, o
que lhe lembra de um respeitável e excêntrico português que conhecera em Paris e era um amante dos trotes,
homem notável, do qual ele muito mais poderia falar.
Capítulo VI
O autor se confessa um admirador de Camões e de Os Lusíadas, mas reconhece na obra um grande erro: foi
o poeta misturar no poema o maravilhoso pagão da Antiguidade com os símbolos do cristianismo. Reconhece
que ao poeta não havia muito que fazer: foi obrigado a entrelaçar às crenças de seu país as tradições da
poesia clássica que tinha por modelo. Vivesse ele nos tempos do Romantismo e tudo lhe seria permitido.
Já Dante, este passeou por Inferno, Purgatório e Paraíso sem que a Inquisição o queimasse, mas fizesse
isso nos dias atuais e seria perseguido pelos censores, pelos delegados que vigiam os abusos à liberdade de
imprensa e pelos críticos literários.
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Mas também o autor precisa passear pelo mundo dos mortos, por querer fazer uma pergunta ao digno
Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, Marquês de Pombal, ministro do rei D. José I. E vai
encontrá-lo em um jogo de cartas, que interrompe para lhe perguntar o motivo de ter ele mandado arrancar as
vinhas do Ribatejo, se elas se multiplicaram de tal maneira que já invadiam os pinhais do Azambuja.
De volta a este mundo, o poeta se vê ao pé de um café do Cartaxo.
Capítulo VII
O leitor acredite que o autor, ao descer de sua mulinha à porta do café do Cartaxo, sentia-se mais feliz que se
tivesse descido de uma carruagem confortável em algum lugar chique de Paris. Os lisboetas que não viajam,
não saem e pensam que são o umbigo do mundo, não conhecem o café do Cartaxo, que, como todo café, é
retrato da alma do lugar.
Conversaram sobre política local com o dono do café, tomaram uma limonada horrível e saíram com o amigo
D., que já vinha ao seu encontro para um passeio pelo Cartaxo, local que se tornava- cada vez mais afamado
pelo seu bom vinho. Os ingleses, que, antigamente, pelo menos, tomavam o vinho português do Porto, da
Madeira, de Carcavelos ou do Cartaxo, agora traíam suas tradições, entregando-se aos vinhos de Bordéus ou
Borgonha. Como podia um bom patriota inglês cantar sem molhar a garganta com um bom vinho português?
Azar então da Inglaterra, que perdia por trair a antiga aliança com os portugueses e seus vinhos.
Mas o Cartaxo tinha também alguma história recente: lá se refugiaram, doze anos antes da viagem do autor,
as tropas miguelistas quando expulsas de Santarém, durante as duras batalhas pela sucessão do trono.
Capítulo VIII
A comitiva cortou a plantação de videiras e chegou à charneca (ao campo). O autor recolhe-se ao seu mundo
interior e aprecia a bela paisagem ao pôr do sol, que tanto toca seu coração, até ser despertado por um dos
colegas que afirma: “-— Foi aqui! Não há dúvida...”
De fato, fora naquele sítio que o Imperador D. Pedro passara pela última vez em revista às tropas do exército
liberal, logo depois da batalha de Almoster2, uma das mais ensanguentadas da Guerra Civil portuguesa.
Guerra triste como qualquer outra, sem sentido como qualquer outra, mas mais dolorosa porque fratricida,
acontecida entre irmãos portugueses. O autor, que visitou os campos da batalha de Waterloo e se entristeceu
ao pensar no sangue nela derramado, perante o campo da batalha de Almoster sentiu uma mais profunda
tristeza, a tristeza de saber que nenhum pecado do passado, nenhum ideal do presente ou sonho do futuro
valeria o sofrimento de uma guerra entre irmãos. E nesse estado de espírito chegou à ponte da Asseca.
Capítulo IX
O autor lembra-se de um antigo autor português, Ênio Manuel de Figueiredo3, grande aproveitador de assuntos
nacionais em suas peças, mas de medíocre talento dramático. Fala de algumas de suas obras e de uma que
lhe ficou na lembrança pela beleza do título: Poeta em Anos de Prosa. Pois, de fato, o XIX não era um século
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A Batalha de Almoster, na qual os liberais foram comandados pelo Marechal Saldanha, foi uma das importantes vitórias dos liberais
sobre os absolutistas na Guerra Civil que varreu Portugal no início da década de 1830. Ocorreu em 18 de fevereiro de 1834.
Ênio Manuel de Figueiredo (1725-1801): escritor dramático português.
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para poetas, só os havia três: Napoleão, o poeta da espada; Silvio Pélico4, o poeta da paciência; Barão de
Rothschild5, o poeta do dinheiro. Destes três poetas, apenas o último traduziu-se para o português, aliás, em
péssima edição...
A ponte da Asseca tem história: nela, Junot, comandante das tropas napoleônicas durante a invasão a
Portugal, fora ferido. O autor confessa que desde criança foi um admirador político de Napoleão. E por esse
mau início infantil, exilar-se-ia anos depois na França, já contaminado pela doença do Liberalismo. Em Paris,
levado por um velho fidalgo português, conheceu a esposa de Junot, Madame de Abrantes, senhora já idosa,
mas de um charme e uma conversa encantadoras, que seduziram o jovem autor. Mas é hora de voltar à ponte
da Asseca e atravessá-la.
“Cá estamos num dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o vale de Santarém, pátria dos rouxinóis e das
madressilvas, cinta de faias belas e de loureiros viçosos. Disto é que não tem Paris, nem França nem terra alguma
do Ocidente senão a nossa terra, e vale bem por tantas, tantas coisas que nos faltam.”
Capítulo X
O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as
plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem
sublime, mas há uma como simetria de cores, de sons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que
não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar
ali um reinado de amor e benevolência.
O autor, encantado com a vista do vale, não deixa de reparar em uma habitação antiga e fechada, em cuja
janela os rouxinóis trinam. Pronto o lugar, a janela, os rouxinóis, só lhe faltava uma moça nela debruçada, de
olhos... talvez pretos...
“— Pois eram verdes!”
Atalha um amigo, que informa ter morado lá, há dez anos, uma moça, a menina dos rouxinóis, que para
sempre partira. Curioso, o poeta quer saber dessa história pronta, para contá-la aos seus leitores e leitoras,
mesmo que eles prefiram romances em francês. Mas não se trata de um romance, é apenas uma história
verdadeira e singela, a da menina dos rouxinóis.
Capítulo XI
O autor confessa-se poeta e, sem entrar em detalhes, com a alma recentemente enamorada, por isso, com
direito a contar a história de amor que ora inicia. Era uma tarde de verão de 1832. Entre o arvoredo à porta
da casa, estava uma velha dos seus mais de 70 anos trabalhando intermitentemente na dobadoura (um tipo
de máquina de fiar, própria para enrolar o fio em novelos). Tinha os olhos fixos no poente. Parou de repente
a velha, pousou o novelo e as mãos sobre o colo e chamou, para dentro da casa, a Joaninha, que pronto
atendeu para ajudá-la a desembaraçar o fio da meada. Era cega a velha.
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Silvio Pélico (1788-1854): escritor italiano que ficou muito tempo preso, experiência descrita em Minha Prisão.
Barão de Rothschild (1773-1855): banqueiro de uma tradicional casa financeira europeia.
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Capítulo XII
Joaninha aparece, ajuda a avó a desembaraçar a meada e traz a merenda para as duas. A velha, antes tão
feliz com os cuidados da neta, durante a refeição assume um ar de suave tristeza, o mesmo que abate o
semblante da jovem.
Joaninha tinha dezesseis anos, não era bela nem galante, mas possuía uma gentileza e uma elegância nobre
e natural. Por baixo de sua pele de um branco rosado, percebia-se que ondulava um mar de paixões, prontas
para virar em tempestades. O nariz aquilino, a boca pequena e delgada, os cabelos cacheados em canudos e
os olhos... os olhos do verde mais esmeralda que se possa imaginar, capazes de fascinar, dominar e prostrar
quem os enfrentasse. Trajava simplesmente.
A tristeza da velha refletia-se nos olhos da neta. E pediu ela que a moça lhe entregasse o novelo, para
esquecer as aflições. Joana assim fez, mas deixou cair uma lágrima nas mãos da avó, que logo a bebeu
e, enquanto consolava a neta para que deixasse de tristezas, ouviu passos. Eram de Frei Dinis, o austero
guardião de São Francisco de Santarém.
Capítulo XIII
O autor confessa que, bom liberal, não gosta dos frades. Mas acha que eles fazem uma falta danada na
literatura, a enfeitar as cidades e os campos. E que os Liberais fizeram mal em expulsá-los de Portugal para
dar lugar aos barões, como D. Quixotes que deram lugar a Sanchos Pança. O barão português é um usurário
revolucionário e um revolucionário usurário, zebrado de riscas monárquico-democráticas, que só sabe contar
e gritar “contos de réis”. Os frades, que não entenderam o espírito do século XIX e por isso foram expulsos da
vida portuguesa, deveriam ter se mirado nos exemplos da Irlanda e do Brasil, onde são todos liberais. Assim,
talvez pudessem continuar a exercer sua influência moral e intelectual na sociedade, para o bem da Pátria. O
autor lembra, ainda, que em toda sua obra há um convento inteiro de personagens frades, mas a culpa não
é sua: de mil cento e tantos a mil oitocentos e trinta e tantos, não havia coisa pública em Portugal em que o
frade não entrasse.
Capítulo XIV
Frei Dinis chegou e abençoou as mulheres. Mal começou a conversa com D. Francisca, a avó de Joaninha,
pôs-se a ralhar com ela por não ser capaz de suportar a penitência que Deus lhe impôs. Quando ela pergunta
por “ele”, o frei manda Joaninha recolher-se à casa.
Põe-se então a falar sobre o neto de D. Francisca: o rapaz desembarcara no Porto, vindo da Inglaterra, com
as forças liberais. Frei Dinis não tem dúvidas quanto á vitória dos infiéis sobre os realistas: os liberais têm o
vigor de suas ilusões, os realistas têm atrás de si trinta gerações de corrupção e pecados, sustentados em
uma religião hipócrita.
O reconhecimento de que sua religião será derrotada na guerra iminente não abala a sua fé: o frei amaldiçoa
o rapaz que chega e todos os liberais, o que deixa exasperada D. Francisca, que espera rever o neto e
acarinhar-lhe. No auge de sua cólera, frei Dinis amaldiçoa o rapaz, chamando-o de “filho ingrato, coração
derrancado e perverso”. Nesse momento, D. Francisca cai por terra, implorando a Deus que não atenda
as maldições do Frei. O religioso, então, vendo-a prostrada, chama Joaninha para acudi-la e some-se no
caminho por onde viera.
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Capítulo XV
Frei Dinis se fizera frade aos cinquenta anos, já velho e cansado do mundo, sabendo que sua profissão, nos
novos tempos, estava destinada ao escárnio e desprezo de todos. De caráter forte e princípios austeros, sua
lógica, forte nas grandes verdades intelectuais e morais, não admitia contestação. Para ele, o Liberalismo:
“Reduz-se a duas coisas, duvidar e destruir por princípio, adquirir e enriquecer por fim: é uma seita toda material
em que a carne domina e o espírito serve; tem muita força para o mal; bem verdadeiro, real e perdurável, não o
pode fazer. Curar com uma Revolução Liberal um país estragado, como são todos os da Europa, é sangrar um tísico:
a falta de sangue diminui as ânsias do pulmão por algum tempo, mas as forças vão-se, e a morte é mais certa.”
Quanto aos ideais liberais de Liberdade e Igualdade, dizia que para entender o primeiro era necessário crer
em Deus, e para acreditar no segundo era preciso ter o Evangelho no coração. Defendia as instituições
monárquicas e monásticas, defendia-as mesmo atacando-as como imperfeitas; mas sem elas a humanidade
cairia na anarquia e no materialismo brutais.
Aquela casinha onde viviam Joana e D. Francisca era o único lugar que visitava fora do mosteiro. Fora elas,
havia aquele rapaz ausente já há dois anos, do qual pouco se sabia. Que raízes prendiam ainda o frade
àquele chão de terra? Que parte de sua vida escapava à oração e ao suplício e insistia em devolvê-los aos
cinquenta anos vividos antes de ser frei?
Capítulo XVI
O frade chamava-se Dinis de Ataíde. Lutara nas guerras contra os invasores franceses, depois seguiu
carreira na magistratura. Até que, em 1825, veio a Santarém e entrou para o convento dos franciscanos.
Dali a dois anos, reapareceu como pregador eloquente e temível. Num tempo em que as ordens monásticas
(principalmente a franciscana, em que ressaltavam as mundanidades porque devia ser a mais afastada dos
pecados da matéria) estavam todas decaídas e ridicularizadas, a austeridade de frei Dinis impressionava.
Toda a sua fortuna, que não era pequena, deixou-a a D. Francisca Joana, que tinha por família um neto e
uma neta. O filho, pai de Joaninha, e o genro, haviam morrido em uma grande cheia do rio Tejo. Joaninha não
demoraria a ficar órfã de mãe. Carlos, o neto, perdeu a mãe no seu parto.
Nos tempos antigos, Dinis de Ataíde frequentara bastante aquela casa. Ele tornara-se frade no mesmo dia
em que Francisca passou a usar uma túnica roxa, indicando sua entrega à penitência e à contrição. Mas um
dia, já frei Dinis, ele chegou à porta da casa e se anunciou. As crianças foram postas para fora e ele e a velha
passaram o dia a conversar, desde então aparecia todas as sextas-feiras.
Joana respeitava-o muito, e gostava de suas palavras, mas sentia certa aversão pela pessoa. Ele, por sua
vez, não interferia na educação da moça. Mas conduziu o quanto pode a educação de Carlos, vigiando suas
leituras e suas amizades, até que o menino foi para Coimbra. Pelo fim de agosto de 1830, Carlos retornou
sorumbático. Teve uma conversa ríspida com Frei Dinis, que queria proibi-lo de pensar. Mas o rapaz dobrou o
religioso, deixando claro que sabia de onde vinha o sustento daquela casa, resultado do remorso do frade, e
que se envergonhava dos motivos daquele remorso. Anunciou então, ao frei e à avó, sua intenção de emigrar
para a Inglaterra: em Coimbra, eram tais suas ligações com os liberais que somente a fuga podia salvá-lo.
No dia seguinte, Carlos partiu. Na sexta-feira seguinte, Frei Dinis apareceu e conversou longamente com D.
Francisca, a sós. Ela trancou-se no quarto por três dias a chorar. Quando saiu, estava cega. Os cuidados
de Joaninha pela avó redobraram, mas ela nunca mais sorriu para o frei. Este, por sua vez, envelheceu
repentinamente dez anos. Nunca mais houve um dia de alegria no vale. Todas as sextas, Frei Dinis aparecia
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por pouco tempo trazendo as notícias do mundo. Como ocorrera no dia em que a velha prostrou-se a seus
pés. Oito dias depois, tudo mudaria.
Capítulo XVII
Durante toda a semana seguinte, rumores terríveis da guerra que se anunciava chegaram à casinha. Avó e
neta mal seguravam sua ansiedade por notícias. Na sexta-feira, foram surpreendidas pela chegada de Frei
Dinis vindo não do caminho do convento, mas de Lisboa, para onde fora em busca de notícias. Indagado
sobre Carlos, praguejou como sempre, mas a comoção de sua voz traía seu coração. Cansada da violência
do frei, D. Francisca implora a ele pela sua filha morta. Golpeado em sua ferida mais funda, o padre rompeu
em uma imprecação emocionada que o fez desabar sobre a cadeira que Joaninha havia trazido. Recuperado,
suspirou fundo e tirou da manga uma carta que entregou a Joaninha: era de Carlos.
Capítulo XVIII
O frade fez tenção de ir-se embora, mas foi retido pela velha. Deixou-se ficar descaído, em silêncio. Instada
pela avó a ler a carta, Joana hesitou: o sobrescrito endereçava a carta somente a ela, mas não teve coragem
de desobedecer à ordem da velha para ler. Era uma carta falando de saudosas lembranças do passado e
das poucas esperanças de se verem no futuro. Nenhuma palavra para a avó ou para Frei Dinis, o que Joana
tentou remediar, mentindo lembranças e pedidos de bênçãos de Carlos. Tal mentira foi aprovada com mãos
trêmulas e olhos carregados de água por Frei Dinis. D. Francisca bendisse a Deus e fingiu que não percebera
a falsidade de Joaninha. Avó e neta abraçaram-se e choraram.
Uma semana depois, Frei Dinis levou a resposta de Joana a Lisboa. Meses se passaram sem notícia. Sabia-se
que os liberais avançavam e que a guerra tornava-se mais cruenta. Eram meados do ano de 1833. Frei Dinis
apareceu, certo dia, vindo do acampamento das tropas realistas que cercavam Lisboa, tentando recuperála. D. Francisca pediu a Deus pelo neto, no que foi repreendida pelo frade: Carlos, que o odiava, ainda viria
cortar-lhe o pescoço perante o altar do convento. A velha repreendeu-o: o neto não seria capaz disso, e antes
que o fizesse, ele lhe diria toda a verdade. Frei Dinis a ameaça de maldição se ela fizer isso: seria levar Carlos
não a ignorá-los, mas a desprezá-los e mesmo odiá-los. D. Francisca levou as mãos aos olhos e se entregou
à vontade de Deus.
Capítulo XIX
Nesse momento, apareceu Joaninha esbaforida, anunciando a chegada de uma multidão de soldados e povo.
Como previra o frade, os constitucionalistas liberais venciam; era a retirada dos realistas. O vale de Santarém
tornou-se, então, o cenário principal da guerra naqueles dias derradeiros de outono, com suas chuvas e seus
céus sombrios.
A casa de D. Francisca e Joaninha imediatamente se tornou, assim como o convento, hospital para os feridos.
A avó e a neta recusaram-se a acompanhar Frei Dinis, que temia pela segurança das duas, especialmente de
Joaninha, sozinha perante tantos soldados. Mas a velha acalentava a esperança de passar por ali, um dia,
seu neto.
Com o tempo, acostumaram-se todos à guerra e suas desgraças. Passou o outono, o inverno, a primavera
chegou com força em abril. Os soldados inimigos com pouco estavam íntimos em suas escaramuças verbais,
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os combate sangrentos escasseavam. Até da guerra se cansava. Os rouxinóis, com o tempo, aprenderam a
cantar ao som da alvorada e da retreta.
À janela da casa, no mesmo momento em que os rouxinóis concertavam com os clarins de guerra, aparecia
sempre Joaninha que, fora esses momentos, estava entregue a cuidar dos feridos de ambos os lados. Era já
adorada e respeitada pelos soldados liberais e realistas, que lhe apelidaram de “menina dos rouxinóis”.
Um dia, ao final da tarde, quando estava mais ao extremo sul do vale, adormeceu debaixo de um pequeno
grupo de álamos e oliveiras. Um oficial recém-chegado de Lisboa saiu para dispor as sentinelas e a encontrou.
Os soldados antigos do posto esclareceram quem era. Ele postou as sentinelas um pouco distante e entrou
sozinho no pequeno grupo de árvores para admirar o sono solto da menina dos rouxinóis.
Capítulo XX
Joaninha dormia recostada à luz do crepúsculo. Um rouxinol, de uma moita próxima, velava o seu sono e
soltava seus trinados. O oficial que dela se aproximou era um moço admirável, de estatura mediana, vestindo
um sobretudo aberto sobre a farda parda dos caçadores do exército. Aqui, o autor pede licença para imprecar
contra os que baniram esse belo uniforme do exército lusitano, talvez por ele ser português demais. O autor
é como um pintor medieval, que enfeitava seus quadros com sentenças, dísticos, moralidades. Voltado ao
retrato do oficial, acrescente-se que ele tinha olhos pardos e vivos, um ar de superioridade inquestionável, um
caráter móvel, mas grave.
Achegou-se a Joaninha receoso e espantou-se da beleza da moça que deixara ainda menina. Pegou sua
mão e beijou-a. Nesse momento, a menina dos rouxinóis acordou de um sonho mau, em que via seu primo
Carlos morto, para ver diante de si, bem vivo, esse mesmo primo do sonho. Os primos, criados como irmãos,
abraçaram e beijaram-se fortemente. A moça custava a controlar suas emoções; puxou o rapaz atrás de
si, falando do que pensariam de vê-los ali sozinhos àquela hora, da ansiedade da velha avó cega (fato que
Carlos ainda não conhecia), da necessidade de ir até ela. A essa altura, o vale já estava coberto de miríades
de estrelas cintilantes no céu azul.
Capítulo XXI
Carlos se deixou levar, enfeitiçado, pelas mãos da prima. De repente, se viram entre duas linhas de sentinelas
perguntando “quem vem lá?”. Assim, a guerra restitui à realidade e acaba com os sonhos que remetiam à
infância do casal: seu lar se tornara palco de guerra civil, e eles vítimas em potencial da guerra. Joana agiu
prontamente, anunciando-se para o seu lado (o realista); despediu-se e pediu a ele que tornasse no dia
seguinte. Ele pediu a ela que não falasse à avó de sua presença, e tão embevecido ficou a vê-la partir que
se esqueceu de anunciar aos seus homens, os sentinelas dos liberais, que abriram fogo sobre se capitão, a
ponto de feri-lo no ombro de raspão. Os soldados, desfeito o engano, comentaram alegremente a facilidade
do seu comandante para se envolver em aventuras com mulheres, cada uma mais maluca que outra.
Capítulo XXII
Mas nascido o dia seguinte, recebe Carlos uma carta de Joaninha dizendo que falara à avó sobre notícias que
tivera do neto por terceiros, mas que era urgente ela vê-lo, porque definhava dia a dia. Por isso, já acertara
com o comandante dos realistas autorização para que Carlos visitasse a avó doente.
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O jovem capitão liberal passou a noite em claro, excitado. A visão de Joaninha produziu nele sensações
novas, um choque, um reviramento de ideias e sentimentos. Certamente não se esquecera da prima durante
aquele longo tempo afastado de casa. Mas lembrava-se da criança com quem brincava e corria pelos campos,
e encontrara uma mulher feita, que não perdera a graça, o encanto e o perfume da infância, mas ganhara um
ar airoso e gentil de donzela perfeita. Carlos não sabia o que sentia.
Amara muito enquanto estivera fora. E compromissara-se com uma moça bela, nobre, rica, admirada – que
abandonara sua alta posição e seus ricos pretendentes para entregar-se ao amor por ele. Carlos devia amor
a Georgina e sentia que a amava deveras. Mas aquele abraço... aquele beijo de Joaninha... insistiram em
assaltar seu pensamento, suas visões e seu coração durante aquela longa noite. Leu a carta de Joaninha,
refletiu e decidiu encontrá-la novamente naquela tarde.
Capítulo XXIII
Mas a resolução de Carlos abalou-se quando se pôs a pensar. Vinha-lhe à mente a imagem da avó, por quem
se sabia amado em extremo. A pobre estava doente e cega, precisava dele. Mas havia Frei Dinis... aquele
homem que ele desejava odiar, mas que alguma força da alma o impedia de fazê-lo. A infâmia do passado que
fizera Carlos abandonar a casa da avó tinha a ver com Frei Dinis. Sabia Joana do que se tratava? Que nunca
soubesse! E, se soubesse, que fosse para sempre negado! Não, não podia tornar a pôr os pés naquela casa!
Mas como se desculpar com Joana? A princípio, podia culpar a guerra, mas e depois? “Veremos!” Foi essa a
decisão que tomou. Depois, passou o dia tentando ocupar-se para não pensar mais no assunto, mas um dia
de abril é longo. E visões de loirice e morenice vieram perturbar sua tranquilidade. Ocorre que Carlos era um
poeta, no sentido de alguém que tem um fino sentimento de arte, o sexto sentido do belo e do ideal. E suas
aspirações poéticas repousaram sobre os verdes olhos de Joaninha, o verde da natureza, o verde que é triste
e alegre como a vida, o verde de que seus pensamentos não conseguiam se livrar.
Infelizmente, Carlos não pôs suas reflexões em versos. O autor apenas pode supô-las. Caso tivesse escrito
suas divagações, seria capaz de enfrentar qualquer poeta romântico no que sua poesia tem de vaga,
descabelada, vaporosa e nebulosa!
Capítulo XXIV
“Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno
de tolices.” E tornou-se o homem esse sistema quimérico, desarrazoado e impossível, complicado de regras
e cheio de contradições. E ordenou a Sociedade ao homem que só comesse da árvore da ciência do bem e
do mal, e ele obedeceu, entupindo-se até a indigestão para gerar em seu estômago presunção e vaidade. E
quando o homem sente vontade de voltar à Deus e à natureza, a sociedade aprisiona-o e devolve-o à forma
do sistema. Ou morre ou torna-se um aleijão.
Carlos forcejava por sair do molde da sociedade e retornar ao estado primitivo. Mas era fraco e acanhado
perante Deus e a natureza. Punha-se a pensar e a reflexão o arrastava para a vulgaridade da fraqueza, da
hipocrisia e da mentira comum. Quem pensava em Joaninha não era o homem natural, mas o homem social.
Ao encontrar-se com Joaninha, esta o abraçou e beijou e pôs-se a falar. Ela disse que sempre o vira, em seus
sonhos, tal como o encontrara: homem formado, forte e belo. Ele disse que, pelo contrário, sempre a vira
menina e criança.
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Depois, ela confessou que não gostava de Frei Dinis, pelo sofrimento que ele impusera à avó e a levara à
cegueira. Na opinião dela, o que maltratava a alma da pobre velha era a condenação veemente que o Frei
fazia a Carlos, como um perdido para os infernos, por suas posições liberais. Mas a menina dos rouxinóis
reconhecia que havia em Frei Dinis um amor extremado, apesar de severo, por Carlos e D. Francisca. A
princípio, Carlos estremece com a possibilidade de Joaninha saber a verdade, mas seus temores eram
infundados.
Quando a conversa chegou à necessidade de o neto ver a avó, Carlos desvencilhou-se, dando desculpas de
guerra que Joaninha refutou dizendo que o comandante realista lhe permitiria qualquer coisa e fazia todas as
suas vontades. Essa afirmação gerou ciúmes em Carlos, que franziu a testa, o que fez Joana ver nele traços
de Frei Dinis. Carlos tomou suas mãos e beijou-as, com um misto de ternura, compaixão, dor e prazer – e
lágrimas umedecendo-lhe os olhos.
Capítulo XXV
Com suas mãos entre as de Carlos, Joaninha insistiu que ele visse a avó. Ele afirmou que antes precisaria
de autorização de oficiais superiores para entrar em terreno inimigo; até lá ela devia consolar D. Francisca.
Ela o fez prometer, então, que se veriam todos os dias. Carlos prometeu, a não ser que... E quando ele
tentou explicar, confundiu-se, fraquejou, quis mentir. Mas estava claro que aquilo seria impossível. Joaninha
confessou naturalmente a Carlos que nunca pensara em outro homem que não ele, e que esse amor fora
abençoado com lágrimas de alegria pela sua avó. Carlos olhou-a ao mesmo tempo com felicidade e tristeza,
e ela adivinhou tudo e lhe disse: “— Sei: amas outra mulher, outra mulher que te ama, que tu não podes, que
tu não deves abandonar, e que eu...”
Ele tentou, em vão, protestar. Ela disse que não se veriam na sexta-feira. Talvez pudessem se ver no sábado.
Despediram-se com as mãos e os lábios frios, e o coração a bater comprimido no peito. O céu era tão belo
quanto no dia anterior. Mas eles eram outros, tão diferentes do que foram!
Capítulo XXVI
O autor declara que, se algum dia for a Roma, levará seus clássicos todos no bolso, porque será um prazer
andar pela Cidade Eterna a ler autores como Tito Lívio, Tácito, Juvenal ou Horácio. Pegue o leitor a Crônica
del Rei D. Fernando, a menos pior das que escreveu Duarte Nunes, embarque em um daqueles caranguejos a
que chamam barcos em Lisboa, vá até Santarém e ponha-se a ler aquelas histórias antigas: verá como aquelas
relíquias de monumentos – há séculos dilapidadas por vândalos de todas as autoridades administrativas
portuguesas –- ganham vida, como os heróis do passado se levantam perante seus olhos, as pedras falam
das cenas que presenciaram, a poesia do passado reverdece toda. O autor mesmo só entendeu de verdade
Shakespeare quando o leu na paisagem nebulosa da Inglaterra ou acompanhado de um bom old-sack, bem
aconchegado em algum quarto da velha Albion. Falando nisso, não há como negar que o glutão, bêbado e
fanfarrão Falstaff tenha desembarcado em Portugal quando os lusitanos renegaram o castelhano São Tiago e
adotaram o britânico São Jorge. Certamente que a prole de glutões, beberrões e palradores que andava por
Portugal descendia diretamente do legítimo personagem de Shakespeare.
Conta o autor a história de um inglês que desembarcou na Inglaterra para ler, ao túmulo dos dois amantes,
a história de Abelardo e Heloísa, e acabou enlouquecido, bradando por um cônego que lhe purificasse a
alma como à de seu modelo medieval. Também o autor, de certa feita, quando lia Camões à janela, de frente
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para o Tejo, julgou ver a caravela de Vasco da Gama a navegar, com a Torre de Belém ao longe. Custou-lhe
reconhecer, irritado, que era o ministro da Marinha que passava pelo rio.
Toda essa conversa vem a propósito de o leitor saber que a história lida ou ouvida nos próprios sítios onde
aconteceu tem maior graça e força. Por isso o autor demorou-se toda uma tarde a ouvir o amigo narrar-lhe a
história de Joaninha, a menina dos rouxinóis, a menina dos olhos verdes. Mas é hora de montar novamente
as mulinhas e tocar para Santarém, lugar do palácio fortificado del Rei D. Afonso Henriques. O segundo ato
da história de Joaninha fica para mais tarde, pois ele se passa em Santarém.
Capítulo XXVII
A vizinhança mal cuidada em torno da calçada que leva ao alto de Santarém era prova do abandono a que
estava relegado aquele sítio de importância histórica fundamental para Portugal. Apenas os velhos e ricos
olivais, quando o vento fazia murmurar suas folhas, pareciam dar voz aos antepassados, que certamente
suspiravam de vergonha pela degeneração de seus descendentes.
No entanto, a visão de Fora-de-Vila ao cair da tarde, com suas edificações medievais, tudo assimétrico,
deserto e silencioso impressionou vivamente o autor. “E tudo deserto, tudo silencioso, mudo, morto! Cuidase entrar na grande metrópole de um povo extinto, de uma nação que foi poderosa e celebrada mas que
desapareceu da face da Terra e só deixou o monumento de suas construções gigantescas.”
As construções religiosas e monárquicas, a mistura de estilos entre o bizantino e o clássico, entre o pagão
e o cristão; a solidez deselegante, pesada e grandiosa, que expressa o poder do rei e da religião popular (o
mosteiro) ou imposta (a catedral jesuíta); o palácio em ruínas dos condes de Unhão – tudo impressiona e faz
pensar.
Entrando-se em Marvila, dentro dos muros da antiga Santarém, tem-se o velho sem ser antigo, o mouro sem
ser árabe, a sujeira impertinente, o comércio débil. Apenas as igrejas e muralhas e algumas casas particulares
conservam a antiga glória. Alcáçova, onde fica a casa do amigo do autor e sua comitiva, aos pés da igreja de
Santa Maria, é um labirinto de ruínas feias e torpes.
Capítulo XXVIII
A igreja de Santa Maria de Alcáçova, quase-catedral da primeira vila portuguesa, é uma ridícula e mesquinha
massa de alvenaria, completamente desfigurada pelas reformas que, desde sempre, mas principalmente a
partir do grande terremoto de 1750, vem pervertendo toda a história da arquitetura lusitana, maquiando-a com
uma imitação vulgar do que se faz na França.
M.P., insigne amigo do autor, atual dono do castelo de D. Afonso Henriques, recebeu-os de braços abertos.
O palácio está tal qual a antiga capela: nem um traço sequer de sua antiga origem. Mas põe-se o autor a
jantar, que está com uma fome insaciável. Depois, muito se bebeu e conversou, até que o autor desmaiou na
cama. Para acordar com os sinos da Alcáçova, pular da cama, abrir a janela e deparar-se com a mais bela,
grandiosa e amena paisagem em que pôs os olhos por toda sua vida: o rio Tejo a deslizar no fundo do vale,
os salgueiros que o margeiam, mais distantes, os olivedos de Alpiarça e Almeirim; mais próximos, a vila de D.
Manuel, a planície do Rossio com suas casas, hortas e árvores e o pitoresco bairro da Ribeira.
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Capítulo XXIX
O autor faz considerações sobre os poetas que vivem do sentimento sem saber domá-lo e morrem cedo
(Byron, Schiller, Camões, Tasso) e os que vivem da imaginação e sabem temperar o sentimento, por isso
morrem velhos (Homero, Sófocles, Goethe, Voltaire).
Ao almoço, a conversação foi, naturalmente, sobre Santarém e suas histórias. Doía ao autor ver aquele livro
de pedra, que contava as mais ricas histórias da Pátria, decaído e esquecido pela degradação e os reparos
mesquinhos de mais de cem anos de desgoverno em Portugal.
Do que se conversou, o autor destaca a história de Santa Iria, narrada em belas trovas populares que contam
sua história de moça que fez o pai acolher um forasteiro alta noite e acabou por ele raptada, desonrada e
assassinada, até que seu túmulo se tornasse lugar de devoção para romeiros.
Capítulo XXX
O nome Santarém vem de Santa Irene ou Santa Iria. Era donzela nobre e freira, por quem se enamorou e
adoeceu o jovem Britaldo. Ela o consolou, repreendeu, depois curou a doença de amor que o ia matando. Mas
o Monge Remígio apaixonou-se de carne por ela e a tentou, no que foi rejeitado. Então, deu-lhe uma poção
que a fazia parecer grávida, o que gerou muita injúria do povo sobre a moça. Britaldo sentiu se reacenderem
os seus desejos, mas como continuou sendo rejeitado, mandou matá-la por um servo chamado Banam, que
jogou seu corpo em um afluente do Rio Tejo. Enquanto o corpo descia o rio, o abade Célio teve uma visão
em que se revelava toda a verdade. Seguido por uma multidão, desceu o rio até onde a visão indicava estar
o corpo da santa. O monge abade benzeu as águas do Tejo, que se abriu e mostrou um sepulcro de fino
alabastro, de onde não conseguiram tirar o corpo de Iria. As águas tornaram a cobri-lo por seis séculos e meio,
até que a Santa Rainha Isabel foi até o local fazer fervorosas orações. Novamente o rio se abriu, novamente
viram o túmulo, mas não conseguiram resgatar o corpo. El Rei D. Dinis mandou então fazer um padrão muito
alto, que as águas não pudessem cobrir. Pronto o padrão, tornaram as águas a cobrir o túmulo. Em 1644, a
Câmara de Santarém transformou-o de alvenaria em cantaria. O padrão ainda lá está. Em julho de 1644, o
autor o viu, mal cuidado como quase tudo em Santarém. O rio em torno dele secou, apenas durante as cheias
as águas chegam até ele. A história dos frades, como se vê, é bem diferente daquela do romance popular,
muito mais breve e simples, e gravado na memória de boa parte dos portugueses, por todo o país, transmitido
de geração em geração, para louvor de Santa Iria.
Capítulo XXXI
Depois das dez horas da manhã, o autor e seus amigos saíram para passear. Estava deserto tudo em volta.
Passaram a igreja da Alcáçova, repararam nas portas e janelas da residência em estilo moçárabe. Subiram até
a porta do sol, de onde decai uma ribanceira feia e com pouca vegetação até o rio Tejo e seguiram margeando
a muralha, naquele local ainda bem conservada, como nos tempos medievais. Até que o historiador que
contava a história de Joaninha propôs sentarem-se terminar de contar o destino da menina dos rouxinóis,
convite prontamente aceito por todos. O autor promete que não se alongará em digressões e que a história
irá, agora, direita até seu final.
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Capítulo XXXII
Quando Carlos voltou ao acampamento naquela noite, depois da triste despedida de Joaninha, havia agitação
de preparos para batalha. Recebeu ordens de comparecer ao quartel general, que cumpriu imediatamente.
Recebeu instruções de combate, e o que elas ordenavam significavam sua morte. Recebeu-as com satisfação:
elas resolviam o dilema de seu coração e lhe davam um fim heroico, triunfal. Afiou sua espada, limpou
e carregou suas pistolas e esperou o nascer do sol, saudado pelo fuzilar das espingardas e trovejar dos
canhões. Os combates foram longos e encarniçados.
Em um hospital improvisado em Santarém, entravam muitos feridos, entre eles, um todo crivado de balas e
coberto de sangue, mas que ainda respirava bem. Não reclamava de nada, apenas trazia a mão esquerda
fechada firmemente sobre alguma coisa que trazia amarrada ao pescoço por uma fita preta. Ele adormeceu
profundamente, e quando acordou estava em uma boa cama, na cela do convento de São Francisco de
Santarém. Uma bela mulher de longos cabelos loiros ondeados e olhos azuis velava-o com angústia e
ansiedade. À distância, na sombra da cela, um velho frade contemplava em silêncio o enfermo, fazendo o
possível para não se fazer notar.
Carlos reconheceu Georgina logo ao acordar; ela viera ao seu encontro para cuidar dele. Fez o possível
para que se acalmasse; estava muito ferido, mas Carlos queria saber de sua gente (que estava salva, no
mesmo convento), queria mexer-se mesmo com tanta dor, seu espírito não se quietava. Continuava a apertar
nas mãos o que disse a Georgina ser uma medalha com seu cabelo. Fizeram-no calar e descansar à força
de calmantes. Ele queria morrer, a mulher queria que ele vivesse. Passaram-se semanas até que Georgina
pudesse lhe dizer que ele estava salvo e que poderia, enfim, ver a avó e Joaninha, que sequer sabiam de
sua presença no convento. Ela comunicou-lhe, impassível, que partiria imediatamente; já não o amava mais.
Capítulo XXXIII
Carlos não acreditou nas palavras de Georgina nem as aceitou, protestando veementemente seu amor por
ela. Ela, calmamente, reconheceu que ele talvez a amara muito, e lhe fora bastante fiel durante todo o tempo
que se afastara dela para participar da luta dos liberais. Sentia-o por suas cartas, mas estas mesmas cartas
rarearam e se tornaram mais frias à medida que ele se aproximava de Santarém. Por isso viera atrás dele,
e chegara ao vale naquele mesmo dia em que ele se atirou à batalha que quase causou sua morte. Carlos
abraçou-a e cobriu-a de beijos, mas ela conteve as emoções e continuou seu discurso. Encontrou aos pés
dele, semimorto, um frade a quem se apresentou e que também tudo lhe disse de sua história e sua família.
Eles o trouxeram para o convento e, desde então, ela se aproximava de D. Francisca e de Joaninha, a quem
via já quase como irmã. Ela, Georgina, não podia nem pretendia privá-la e a Carlos do amor que sentiam um
pelo outro. Além disso, havia a avó velha e doente e o pobre frade... Ao ouvir novamente a menção ao gênio
mau de sua família, Carlos amaldiçoou-o. Nesse momento, Frei Dinis entrou no quarto e se colocou diante
dele.
Capítulo XXXIV
Carlos estendeu a mão para afastar a cortina que impedia a entrada do sol no quarto. A luz bateu sobre o rosto
de Frei Dinis e seu olhar gelou aos moços. Ele caminhou para perto deles e disse:
— Tu maldisseste-me, filho, e eu venho perdoar-te... Não, venho pedir-te perdão, eu a ti. Tu detestas-me, Carlos, de
todos os poderes da tua alma, com toda a energia de teu coração; e eu venho-te dizer que te amo, que tomara dar
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a minha vida por ti, que do fundo das entranhas se ergue este imenso amor que não tem outro igual, a pedir-te
misericórdia, a clamar-te em nome de Deus e da natureza, a pedir-te, por quanto há santo no céu e de respeito na
terra, que levantes essa maldição, filho, de cima da cabeça de um moribundo.
Carlos sentia-se confuso; Georgina, emocionada. Mas lá de fora vinha um burburinho cada vez mais alto
invadindo o quarto. O frade explicou que era a retirada dos realistas. Os liberais venciam. Frei Dinis queria
morrer para sempre frade, mas queria ter o perdão de Carlos, que lhe retrucou:
“— Padre, padre! e quem assassinou meu pai, quem cegou minha avó, e quem cobriu de infâmia a minha... a toda
a minha família?”
Ao que Frei Dinis respondeu, atirando-se de bruços no chão:
“— Tens razão, Carlos, fui eu; eu fiz tudo isso: mata-me. Mas oh! mata-me, por tuas mãos, e não me maldigas. Matame, mata-me. É decreto da divina justiça que seja assim. Oh! assim, meu Deus! Às mãos dele, Senhor! Seja, e a Vossa
vontade se faça...”
Capítulo XXXV
Georgina aproximou-se do frade, colocou-o de joelhos e amparou-o em meio a seus soluços e lágrimas;
depois ordenou a Carlos que o perdoasse. O jovem ajoelhou-se também e envolveu a ambos em um abraço
longo. Mas Frei Dinis pediu a Carlos que também perdoasse a memória de sua desgraçada mãe. Nisso, o
rapaz se levantou, agarrou um enorme velador e ia arrebentá-lo contra o crânio de Frei Dinis, se não fosse
interrompido por D. Francisca e Joana, que se atiraram sobre o velho. A velha dirigiu-se ao neto, desesperada:
“— ’Filho, meu filho!’ arrancou a velha com estertor do peito: ’é teu pai, meu filho. Este homem é teu pai, Carlos.’”
O velador caiu ao chão. Carlos desmaiou. Um ferimento mal cicatrizado rebentara-lhe no pescoço e jorrava
sangue. A avó e o frei ajoelharam-se ao seu lado para rezar, enquanto as moças, amantes ambas do mesmo
homem, esforçavam-se para estancar o sangramento da ferida.
Antes de ele acordar, Georgina retirou-se: ia para Lisboa.
Quando Carlos tornou a si, soube toda a verdade, pela boca de Frei Dinis: ele amara a mãe do rapaz e, por
isso, fora emboscado, certa noite, em uma charneca, pelo marido e pelo irmão dela. Defendeu-se sem saber
de quem e matou os oponentes. Quando tomou os corpos para jogá-los à enchente do rio, reconheceu-os
e caiu em desespero. Rumou para Santarém e confessou tudo à mãe de Carlos, que morreu de pesares e
remorsos, maldizendo a Dinis. Anos depois, ele confessou a verdade também a D. Francisca, cujos olhos
cegaram de tanto chorar e sangrar.
“— Cuidei que podia morrer sem passar por esta derradeira expiação. Deus não o quis. Aqui estou penitente a teus
pés, filho. Aqui está o assassino de tua mãe, de seu marido, de teu tio... o algoz e a desonra de tua família toda. —
Faz de mim como for tua vontade. Sou teu pai...”
Carlos levantou-se, veio até o velho, tomou-o para sentá-lo na cadeira em que estava; beijou-lhe a mão em
silêncio. Depois abraçou a avó, que o apalpava com força e emoção. Saiu da cela fazendo sinal que voltaria
logo; mas nunca voltou. Daí a três dias, receberam uma carta dele, de Évora, onde juntara-se ao exército
constitucional.
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Capítulo XXXVI
Não se acabou ainda a história e todos querem saber do destino dos personagens. Até mesmo de Carlos?
Um homem imoral e sem princípios... Não; um homem com coração demais. E se o coração dilatar-se
demais, morre-se física ou moralmente. Isso significa que um dia o coração cansa-se e o homem torna-se
um indiferente, um cético dedicado à política ou à agiotagem. Mas disso saberemos mais tarde, que agora o
autor e seus amigos continuam seu passeio por Santarém, agora em companhia do Barão de P. — verdadeiro
e nobre barão, não desses falsos que hoje Portugal produz.
Passam pela porta de Atamarma, o arco de triunfo por onde entrou Afonso Henriques depois de ter tomado
Santarém dos mouros para fundar Portugal. Por cima dela está a capelinha de Nossa Senhora da Vitória,
cuja fundação nenhum documento consegue precisar, mas que a voz do povo afirma ter sido erguida pelo
soberano fundador da monarquia e da independência portuguesas. E essa voz deve ser respeitada porque,
mesmo que por dentro a capela seja miserável e ridícula que só ela, trata-se de um símbolo do passado
grandioso do país.
Pobre e nobre Santarém, a quem tiraram toda a grandeza do passado e deixaram os entulhos, as imundícies,
os monturos.
Santarém, nobre Santarém, a Liberdade não é inimiga da religião do céu nem da religião da terra. Sem ambas não
vive, degenera, corrompe-se, e em seus próprios desvarios se suicida.
A religião de Cristo é a mãe da Liberdade, a religião do Patriotismo a sua companheira. O que não respeita os
templos, os monumentos de uma e outra, é mau amigo da Liberdade, desonra-a, deixa-a em desamparo, entrega-a
à irrisão e ao ódio do povo …
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Capítulo XXXVII
O autor e seus amigos tomaram a esquerda e passaram pela igreja
da Graça, onde está sepultado Pedro Álvares Cabral, que não
puderam visitar por estar fechada. Foram até a casa do Barão de
A., que os acompanharia, como juiz da irmandade, a visitar o Santo
Milagre6. Desceram até a igreja, de péssimo gosto (exceto por uns
quatro medalhões de pedra lavrada em estilo gótico), estragada
por sucessivas reformas. Viram o que dizem ser a hóstia incrustada
no cristal e souberam, pelo pároco, que jazia sepultada na igreja os
restos mortais da Princesa D. Maria da Assunção, filha de D. João
VI, que em Santarém falecera nos últimos meses de ocupação da
vila pelos realistas. Visitaram também a casa onde se operou o
Santo Milagre, uma capelinha elegante e graciosa, com trabalhos
em estilo renascentista filipino, agora completamente desleixada.
Também ouviram a história do homem de botas, golpe aplicado
pelo governo no povo de Lisboa para resolver uma pendência.
Quando da invasão francesa, o Santo Milagre foi levado para
Lisboa, para que não o roubassem ou profanassem. Passado o perigo, o povo de Santarém passou a exigir
seu retornou, mas o povo de Lisboa não o queria devolver. Espalhou-se então em Lisboa o boato de que a
tal dia e a tal hora, um homem cruzaria a pé o rio Tejo, com umas botas de cortiça, maravilhosa invenção.
Acorreu o povo em grande número e esperou pelo espetáculo em vão. Enquanto esperava, o Santo Milagre
saía rio Tejo acima, de volta ao seu local de origem, para alegria e festa do povo de Santarém. Depois de rir
da história, o autor e seus amigos foram jantar à Alcáçova.
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História do Santíssimo Milagre de Santarém - Corria o ano de 1247, segundo uns cronistas, ou o de 1266, segundo outros. Em
Santarém, hoje cidade e, então, vila de Portugal, vivia uma pobre mulher, a quem o marido muito ofendia, andando desencaminhado
com outra. Cansada de sofrer, foi pedir a uma bruxa judia que, com os seus feitiços, desse fim à sua triste sorte. Prometeu-lhe
este remédio eficaz, para o que necessitava uma Hóstia Consagrada. Depois de naturais hesitações, consentiu no sacrilégio a
pobre mulher; foi à Igreja de Santo Estêvão, confessou-se e pediu Comunhão. Recebida a Sagrada Partícula, com suma cautela a
tirou da boca, embrulhando-a no véu. Saiu prestes da Igreja e encaminhou-se para a casa da feiticeira. Mas, então, sem que ela o
notasse, do véu começou a escorrer Sangue, que, visto por várias pessoas, as levou a perguntar à infeliz que ferimentos tinha, que
tanto sangue jorravam. Confusa em extremo, corre logo para casa, e encerra a Hóstia Miraculosa numa das suas arcas. Passou
o dia, entretanto, e, à tarde, voltou o marido. Alta noite, acordam os dois, e veem a casa toda resplandecente. Da arca saíam
misteriosos raios de luz. Inteirado o homem do ato pecaminoso da mulher, de joelhos, passaram o resto da noite, em adoração.
Mal rompeu o dia, foi o pároco informado do prodígio sobrenatural. Espalhado o sucesso, meia Santarém acorreu pressurosa
a contemplar o Milagre. A Sagrada Partícula foi então levada, processionalmente, para a Igreja de Santo Estêvão, onde ficou
conservada dentro duma espécie de custódia feita de cera. Mas, passado tempo, ao abrir-se o sacrário para expor à adoração dos
fiéis, como era costume, o Santo Milagre, encontrou-se a cera feita em pedaços, e, com espanto, se viu estar a Sagrada Partícula
encerrada numa âmbula de cristal, miraculosamente aparecido. Esta pequena âmbula foi colocada numa custódia de prata
dourada onde ainda hoje se encontra. Santo Estêvão é agora a Igreja do Santíssimo Milagre.
(Disponível em: <http://www.ribatejo.com/ecos/santarem/stigmilagre.html#História do Santíssimo Milagre de Santarém>)
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Capítulo XXXVIII
Jantou-se muito bem com os cavalheiros da terra. Depois desceram à Ribeira, a parte mais animada e rica da
vila, por onde passa todo o comércio. Procuraram pela tenda onde teria vivido o Alfageme de Santarém, que
fez o fio da espada de Nuno Álvares e profetizou-lhe que seria Conde de Ourém e salvador da Pátria. Mas lá
já nada há de antigo e original.
À noite, em Marvila, havia no elegante salão da B. de A., agradável reunião social. Falou-se muito de Lisboa,
e mal. Contudo, estavam todos com saudades da capital que, afinal, não era tão má assim. Esta é admirável
condição humana: tudo é menos feio quando visto de longe. O baile público mais sem sabor e lotado de
mulheres feias que houver, a soirée mais maçante de piano, o teatro mais enfadonho ou exageradamente
romântico — tudo, revisto e lembrado da província nos parece agradável e desejável.
Capítulo XXXIX
O leitor tenha paciência, que o autor promete voltar ao vale, à Joaninha e sua tia e ao terrível Frei Dinis. Por
ora, ele continua seu passeio. Primeiramente até o Colégio, edifício vasto, grandioso e magnífico, mandado
erguer pelo rei para educar os seus filhos, outrora seminário jesuíta, hoje sede do governo civil, cujas lições
são de corrupção da moral do povo e falsificação do sistema representativo. Templários e jesuítas foram
ambos potências formidáveis, tiveram poder, riqueza e influência, mas o avanço do elemento democrático
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levou-os a sucumbir à passagem dos tempos. Hoje em Santarém não há ensino, pois a prática é centralizar
burramente todo o ensino em Lisboa.
Dali o autor foi direto a São Domingos, onde pretendia ver o túmulo do Fausto português, Frei Gil de Santarém,
um dos grandes nomes de Portugal, que ele fez questão de eternizar em seus romances. Mas o convento de
São Domingos, para pasmo de todos, era então usado como... palheiro! Seu interior estava completamente
desfigurado por múltiplas reformas e mesmo o túmulo do santo, na capela, tinha a pedra grosseira pintada, a
lousa levantada e quebrada e estava — ó sacrilégio — vazio!
Capítulo XL
Certa noite no ano de 1834, reinavam a confusão, a desordem e o susto nos muros de Santarém. Três
homens vieram bater ao muro do mosteiro de Santa Clara. Traziam como tesouro uma espécie de cofre
que depositaram sobre o altar de uma pequena capela do claustro das freiras. Era Frei Dinis e dois colegas
dominicanos, que haviam roubado da capela os ossos de Frei Gil de Santarém, com medo de os profanarem
os liberais. Entregaram-nos aos cuidados das freiras, porque sabiam que os constitucionalistas não teriam
coragem de expulsá-las dali como haviam feito a eles de seus conventos. Os liberais aprenderam com o
tempo que devem respeitar as ordens religiosas, mas isso depois de os barões terem saqueado os bens
dos frades todos. Agora andam de olho nos bens das freiras. Melhor seria se houvesse em Portugal um
governo de verdade que soubesse aproveitá-los para a verdadeira piedade, o ensino da mocidade, a cura dos
enfermos e o amparo dos inválidos.
Capítulo XLI
Do que aconteceu entre aquela cena de fuga de Carlos e esta em que Frei Dinis veio depositar as relíquias
de Frei Gil no convento de Santa Clara, o autor declara nada saber. Retornando ao seu passeio, foi ele ao
convento dos franciscanos tentar descobrir qualquer coisa do desfecho da história triste daquela família. Mas
no convento agora abandonado, não encontrou sombra de Frei Dinis, apenas soube que ele partira naquela
mesma noite pela estrada de Lisboa para nunca mais ser visto. Pela mesma estrada seguiu Georgina,
acompanhada de D. Francisca e de Joaninha, ambas meio mortas, meio loucas.
E apesar de zangado e nauseado com tantas coisas velhas mal conservadas e abandonadas que viu em
Santarém, o autor confessa que o convento de São Francisco merecia uma bela visita para explorar seus
tesouros góticos. No entanto, o lugar está agora, como tudo em Portugal, corrompido e desonrado.
“Malditas sejam as mãos que te profanaram, Santarém... que te desonraram, Portugal... que te envileceram e
degradaram, nação que tudo perdeste, até os padrões da tua história...
Eheu, eheu, Portugal!”
Capítulo XLII
Perdoe o leitor o que vai escrito no fim do último capítulo. É um desabafo do coração do autor frente ao estado
das ruínas de Santarém, frente a um convento santo transformado em quartel de soldados. Já agora ele quer
se ir embora do lugar. Mas antes é preciso ver o túmulo de el-rei D. Fernando que está no coro alto. Mas o que
se vê lá é o belo jazigo do rei deturpado pela cobiça da soldadesca que, provavelmente, pensando encontrar
ouro e pedras preciosas lá dentro, fez o possível para arrombá-lo com um pé de cabra. Não o conseguiram,
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mas estragaram os belos e finos lavores da pedra da campa. Não satisfeitos, abriram um rombo nas paredes
do sarcófago por onde se podia enfiar uma mão, como o próprio autor fez, para tocar em terra, pó, ossos de
vértebras e duas caveiras.
Será que tal coisa podia acontecer a túmulos de outros reis mais nobres e mais amados? Mas onde estão os
túmulos de Camões e Duarte Pacheco?
Em Portugal não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o
materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio
das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...
Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a
vida da alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação pequena, é impossível; há-de morrer.
Mais dez anos de barões e de regímen da matéria, e infalivelmente nos foge deste corpo agonizante de Portugal o
derradeiro suspiro do espírito. Creio isto firmemente.
Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo está são: os corruptos somos nós os que cuidamos
saber e ignoramos tudo.
O autor não o fala por ser fanático, jesuíta ou hipócrita.
Jesus Cristo, que foi o modelo da paciência, da tolerância, o verdadeiro e único fundador da liberdade e da
igualdade entre os homens, Jesus Cristo sofreu com resignação e humildade quantas injustiças, quantos insultos
Lhe fizeram a Ele e à Sua missão divina; perdoou ao matador, à adúltera, ao blasfemo, ao ímpio. Mas quando viu os
barões a agiotar dentro do templo, não se pôde conter, pegou num azorrague e zurziu-os sem dor.
Capítulo XLIII
O autor vai-se embora de Santarém, fatigado da cidade, com o espírito cansado de pensar muito. Pesa-lhe
que tenha de sair numa sexta-feira, mesmo dia em que Frei Dinis vinha com sua figura terrível assombrar neta
e avó no vale de Santarém. Por isso, mal chegaram ao vale, fez-se o autor distanciar da comitiva e apeou
defronte a casa abandonada.
Apenas passou as árvores e uma visão de encanto apareceu: sentada no mesmo lugar, na mesma cadeira,
estava D. Francisca na dobadoura, enrolando sem parar o mesmo fio. Em frente a ela, sentado numa pedra, a
cabeça baixa, os olhos fixos em um grosso e velho livro, estava o velho e descarnado Frei Dinis. E Joaninha?
— Joaninha está no céu! —respondeu-lhe o Frei, sem levantar os olhos.
— E... e Carlos?
O fradei levantou seus duros olhos e os pôs no autor; chamou-o para junto de si, perguntou o que ele sabia
da história daquela família e entregou-lhe a carta que Carlos escrevera de Évora-Monte para Joaninha.
Capítulo XLIV
(Carta de Carlos a Joaninha, maio de 1834)
“Joana, minha prima e irmã.
A ti só eu posso falar nessa hora em que me perco por causa dos desvarios do meu coração. Não queiras entender;
és mulher, jovem e inexperiente, não queiras entender. Apenas quero que escutes minha história. Sabes que fugi
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da casa materna porque pensei que ela estava poluída por um crime e um pecado originados desse homem que
agora sei que é meu pai. Não posso perdoá-lo, nem a ele nem a essa avó que foi minha mãe, sua cúmplice todos
estes anos. Deus os perdoe, mas eu não posso. E a mim quem perdoará? Não serás tu, a quem também traí. Mas
escuta minha história.
Saí de Portugal sem saber ainda o que era amar. Fui acolhido em Inglaterra por uma família rica e elegante, e
afeiçoei-me àqueles hábitos de alta civilização. Eu não era aquele, era um estranho em terra estranha, mas menti
para afeiçoá-los a mim. Havia três meninas naquela casa, três irmãs que eram como anjos, que se afeiçoaram a
mim, e a quem, por fim, me afeiçoei, e com quem comecei a flertar, como dizem os ingleses. O flirt é um agradável
jogo de sedução para os que o sabem jogar, mas eu acabei por me apaixonar por uma delas, a segunda, que se
chamava Laura.
Capítulo XLV
(Carta de Carlos a Joaninha, continuação)
A palavra que tenho para definir Laura é fascinante. Confessei meu amor a ela certa tarde em um passeio. Ela não
disse palavra, mas não me deixou entrar em casa com ela, e percebi lágrimas em seus olhos na despedida. Não
consegui me deitar aquela noite. Na manhã seguinte, recebi um bilhete de Lady Júlia R., a irmã mais velha, a mais
sensível e carinhosa, para que eu fosse almoçar com ela. Pensei que seria expulso da casa. Almoçamos; ela disse a
sua aia que não queria ser interrompida e ficamos sós completamente no seu aposento particular.
Capítulo XLVI
(Carta de Carlos a Joaninha, continuação)
Júlia intimou-me a contar-lhe a verdade. Pedi-lhe perdão e a contei. Ela afirmou-me que todos me queriam muito
naquela casa e que Laura me amava, mas que tal amor não podia ser: a irmã mais nova estava prometida para
um capitão que servia na Índia, e que chegaria em breve para que se casassem; então partiriam de volta para a
joia do império. Minhas lágrimas misturaram-se com as de Júlia e supliquei-lhe falar mais uma vez com sua irmã.
Ela trouxe Laura e nos deixou conversar toda a tarde. Mais tarde, jantamos juntos, entristecidos. Após a refeição,
levaríamos Júlia até uma estalagem a duas milhas dali, onde ela se encontraria com uma amiga que a levaria para o
País de Gales, onde esperaria seu futuro marido e se prepararia para as bodas. Com que tristeza fiz o trajeto dentro
daquela carruagem, ao lado daqueles três anjos! Se tivesse forças, blasfemaria e amaldiçoaria o próprio Deus. Mas
foi a Sua piedade que, naquele momento de suprema angústia e decepção amorosa, me fez vir à lembrança a
tua imagem, Joana! Então, à minha mente, só que apareceu foi a criança inocente que eu via correr pelos campos
amados de minha infância. Era isso o que eu tinha no coração. Ah, Joana, eu sou um monstro, um aleijão, tenho
espanto e horror de mim mesmo.
Capítulo XLVII
(Carta de Carlos a Joaninha, continuação)
Chegamos à estalagem, despedimo-nos com um aperto de mãos convulsivo e um “adeus” protocolar, britânico. Em
minha mente tua imagem já não pairava, e senti alívio. Voltamos ao parque, tranquei-me por três dias em minha
residência. Quando reapareci, Júlia não conteve sua felicidade em me rever, temia que eu nunca mais voltasse a
vê-las. Por ela, enviei cartas a Laura, por ela, recebi as respostas. Recebi de presente uma bolsa de rede que Laura
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fizera para mim antes de partir, e na qual havia um lindo cinto de vidrilhos que eu um dia lhe elogiara. Nunca me
separei dele, mesmo quando amei outras mulheres, mesmo agora que te amo, Joana, é como um amuleto. Vivi
assim dois meses. Quando Laura voltou de Gales para enfim casar-se, voltei para Londres. Lá fiquei um mês, até
que Júlia escrevesse me avisando de que Laura mandava seu último adeus: era de outro homem e partia para o
Oriente. Entrou outubro e o inverno inglês, eu morria de tristeza e isolamento. Atendendo a um chamado de Júlia,
voltei para a casa das irmãs.
Capítulo XLVIII
(Carta de Carlos a Joaninha, continuação)
Meu coração acalmou-se ao ver o bosque em que viviam as irmãs coberto de neve e neblina. Esperava-me na
cerração a irmã do meio, em quem nunca reparara até aquele momento. Custou-me a reconhecer... Georgina. Júlia
estava doente, mas logo se recuperou, e a partir de então eu olhava para Georgina como se a visse pela primeira
vez, e vi que das três era a mais bela, a mais gentil, a mais interessante. E amei-a muito, mas a honra me obrigava a
partir. Fui para a Ilha Terceira de Açores, reunir-me aos escolhos do partido constitucional. Lá, tentou-me consolar
uma freirinha chamada Soledade, a quem não amei nem desonrei, mas lembro-me dela com simpatia. Viemos
para Portugal e o resto tu sabes: à luz das estrelas do Vale de Santarém, conhecia a verdade: que só a ti sempre
amei, que só a ti podia amar, e que minha estrela havia me afastado do meu destino melhor, da felicidade, da vida
tranquila da família.
Se eu pudesse, amava-te, mas...
Não quero, não posso, não devo amar a ninguém mais.
A desolação e o opróbrio entraram no seio da nossa família. Eu renuncio para sempre ao lar doméstico, a tudo
quanto quis, a tudo quanto posso querer. Deus que me castigue, se ousa fazer uma injustiça, porque eu não me fiz
o que sou, não me talhei a minha sorte, e a fatalidade que me persegue não é obra minha.
Adeus, Joana, adeus, prima querida, adeus, irmã da minha alma! Tu acompanha nossa avó, tu consola esse infeliz
que é o autor da sua e das nossas desgraças. Tu, sim, que podes; e esquece-me.
Eu, que nem morrer já posso, que vejo terminar desgraçadamente esta guerra no único momento em que a podia
abençoar, em que ela podia felicitar-me com uma bala que me mandasse aqui bem direita ao coração, eu que
farei?
Creio que me vou fazer homem político, falar muito na pátria com que me não importa, ralhar dos ministros que
não sei quem são, palrar dos meus serviços que nunca fiz por vontade; e quem sabe?... talvez darei por fim em
agiota, que é a única vida de emoções para quem já não pode ter outras.
Adeus, minha Joana, minha adorada Joana, pela última vez, adeus!
Capítulo XLIX
Terminada a leitura da carta, Frei Dinis contou ao autor que Carlos engordara, enriquecera e tornara-se barão.
Joaninha enlouquecera e morrera nos braços de Georgina naquela casa mesmo. A velha não mais ouvia, via
ou falava. O frade apenas esperava a dissolução do corpo para enterrá-la, se ele não fosse antes.
O autor e Frei Dinis reconhecem que frades e liberais erraram, e o resultado foi o domínio dos barões e o
estado em que se encontrava Portugal, nas palavras do frade:
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“— Errámos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era; — mas muito menos
ainda pode ser o que é. O que há-de ser, não sei. Deus proverá.”
Dito isto, calou-se. O autor montou no cavalo, esporeou-o para encontrar os amigos. Cearam alegremente no
Cartaxo e ele foi dormir. Sonhou com o frade, a velha — e com uma enorme constelação de barões que luziam
em um céu de papel de onde choviam milhões e milhões em dinheiro. No outro dia, acordou com pobres que
pediam esmola à porta. Partiu então para Lisboa no vapor, cheio de tristes pressentimentos. Desembarcou às
cinco horas da tarde no Terreiro do Paço. Assim terminou a viagem a Santarém. O autor confirma que suas
viagens prediletas foram as que fez em sua terra. Se o leitor gostar delas, ele talvez as torne a fazer, mas
promete nunca andar nos caminhos de ferro dos barões. “Que tenha o governo juízo, que faça as estradas de
pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra.”
3. Contexto histórico: Portugal dividido
Viagens na Minha Terra é uma obra saturada de referências históricas. Os leitores atuais de Almeida Garrett
no Brasil (e talvez mesmo os leitores portugueses) certamente terão dificuldades para se situar perante tantas
alusões a datas, nomes e episódios históricos relacionados aos fatos da narrativa. Por isso, elaboramos uma
rápida apresentação do contexto histórico em que se desenvolve a dupla narrativa de Almeida Garrett — a
de sua viagem a Santarém e a do romance entre Carlos e Joaninha —, registrando, inclusive, alguns fatos
anteriores e posteriores a essas narrativas, os quais julgamos essenciais para alcançar a compreensão de
certos episódios e mesmo para a interpretação da obra.
Invasões Napoleônicas, fuga para o Brasil e domínio da Inglaterra
Em 1807, a iminência da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão provoca a vinda de D. João VI e de
boa parte da corte portuguesa para o Brasil. No dia 24 de outubro desse ano, os franceses penetram em
território português (Primeira Invasão); no dia 30, sem encontrarem resistência, estavam em Lisboa. Um ano
depois, uma força britânica derrota os franceses e permite sua retirada, os portugueses, sob proteção inglesa,
retomam o controle de Lisboa.
Em menos de um ano, os franceses retornariam (Segunda Invasão), venceriam algumas batalhas e tomariam
a importante cidade do Porto em 24 de março de 1808. São novamente derrotados e rechaçados na Batalha
do Douro (29 de maio), retirando-se para a Galiza, na Espanha (então sob domínio francês).
Em 1810, os franceses tentam uma Terceira Invasão pelo norte, quase conseguindo chegar a Lisboa, mas são
mais uma vez derrotados por forças inglesas, aliadas à população portuguesa.
Da entrada dos exércitos vindos para combater Napoleão, em 1870 até 1820, Portugal foi, na prática,
administrado (e explorado...) pela Inglaterra, o que causou enorme ressentimento popular e mesmo revoltas
(algumas delas apoiadas pelo que restava do exército português e pelo nascente movimento liberal) sempre
reprimidas violentamente pelo domínio inglês.
A Revolta Liberal de 1820 e a Carta Constitucional
Em 16 de Dezembro de 1815, D. João VI eleva o Brasil à condição de Reino Unido de Portugal e mostra
pouca disposição de retornar à Europa. A partir de então, agitações revolucionárias contra o rei pipocam em
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Portugal. Em 1820, o país era ainda governado por um comandante inglês, Beresford, que vem até o Brasil
com a missão de convencer o rei a retornar.
Os revolucionários defensores de uma reforma liberal aproveitam-se da ocasião e iniciam uma Revolução
Constitucionalista no Porto (24 de Agosto de 1820), que se alastra pelo país; forma-se uma Junta de governo
em Lisboa, expulsam-se os oficiais ingleses do exército e, quando Beresford tenta retornar, sua entrada em
Portugal não é permitida.
Aprova-se uma assembleia constituinte que força o rei João VI a regressar a Portugal (aonde chegou em 3 de
julho de 1821), deixando no governo do Brasil seu filho mais velho, Pedro. O rei jura à Constituição, mas sua
mulher, Carlota Joaquina, e seu filho, D. Miguel, recusam-se a fazê-lo. O passo seguinte dos Constitucionalistas
é forçar o retorno de Pedro a Portugal, o que acaba não ocorrendo, pois o príncipe prefere declarar a nossa
Independência (em 7 de setembro de 1822) para manter o Brasil sob o governo dos Braganças, tornando-se
o Imperador D. Pedro I.
A repercussão negativa dessa derrota para a autoridade dos constitucionalistas permitiu a D. Miguel e a
sua mãe, D. Carlota Joaquina, apelarem às forças absolutistas em Portugal e armarem uma insurreição.
Inicialmente, em 1823, tentam tomar o poder no episódio que ficou conhecido como Vilafrancada. D. João VI
manobra para assumir a liderança dos absolutistas e retornar ao poder, aclamado pelo povo. Em 30 de Abril
de 1824, D. Miguel, ainda sob a influência da mãe e então comandante em chefe do exército, tenta mais uma
vez chegar ao poder (golpe conhecido como Abrilada), mas ministros estrangeiros agem para defender o rei
e D. João VI retoma o poder em junho, condenando o filho ao exílio em Viena, Áustria.
A crise dinástica; a Carta Constitucional de 1826 e a tomada do poder por D. Miguel
D. João VI reconhece a Independência do Brasil em 1825. Falece pouco tempo depois, em 10 de março de
1826, sem deixar indicações sobre a sucessão ao trono português, exceto que sua filha Isabel Maria deveria
ser nomeada regente. O Conselho de Regência reconhece D. Pedro IV como rei de Portugal. Do Brasil, ele
envia uma Carta Constitucional instituindo um regime parlamentar baseado na autoridade da monarquia (e
não somente na soberania do povo) e abdicando do trono condicionalmente em favor de sua filha, Maria da
Glória, ainda no Brasil e com sete anos de idade, sob o arranjo de que ela se casasse com seu tio Miguel.
Este, por sua vez, devia jurar a Carta Constitucional instituída por seu irmão. Provisoriamente, o país ficaria
sob a regência de D. Isabel Maria. Todas as condições foram aceitas por D. Miguel, que ficou na Áustria à
espera da maioridade da sobrinha, para se efetivar o casamento.
Agitações políticas sérias durante a regência e a saúde debilitada da infanta levam D. Pedro, em 3 de julho de
1827, a nomear seu irmão (que ainda estava na Áustria) para regente. D. Miguel chega a Portugal em 22 de
fevereiro de 1828 e é recebido em delírio pelo povo, que o aclamava rei e gritava “morras” ao seu irmão e à
Constituição. Em 13 de março, D. Miguel dissolve as cortes e não convoca novas eleições como determinava
a Constituição; começam perseguições aos liberais em todo o país. Em 25 de abril, o Senado proclama-o rei
D. Miguel I de Portugal. Os liberais tentam resistir, mas são inicialmente arrasados. Apesar da popularidade
do rei, as violentas perseguições acabam por minar o seu carisma e gerar a desconfiança de alguns nomes
importantes do país. Começa a se organizar uma reação liberal aos absolutistas.
A Guerra dos dois irmãos: Guerra Civil de 1832 a 1834
D. Pedro, tendo abdicado da coroa do Brasil (em 7 de abril de 1831), assume pessoalmente o comando do
exército liberal, em 3 de março de 1832, disposto a depor o irmão e empossar sua filha, D. Maria da Glória,
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no trono de Portugal. Desembarca no país com seu exército pelo norte e assume o controle da importante
cidade do Porto em abril de 1833. Em seguida, D. Miguel perde o controle de Lisboa. A sangrenta Guerra
Civil de liberais constitucionalistas contra miguelistas absolutistas prossegue até 1834, quando, no dia 26 de
maio, o exército de D. Miguel é batido definitivamente em Évora-Monte. Em 1 de junho do mesmo ano, parte
novamente para o exílio na Itália. Do exterior, protesta contra a renúncia a que fora obrigado, o que motiva
o fim da pensão que o reino lhe pagaria; a partir de então, passa a viver de uma pensão que os principais
defensores do legalismo — como se chamavam os miguelistas — lhe ofereciam. Em 24 de setembro de 1834,
D. Pedro morre, com 36 anos, 4 dias depois de ter visto a filha ser entronizada rainha pelas novas Cortes
eleitas, com 15 anos de idade.
O regime cartista, o setembrismo e o cabralismo
Os governos de chefes de Estado indicados por D. Maria II foram conturbados. Inicialmente, os liberais
atiraram-se sobre os miguelistas com a sede de vingança pelas perseguições que haviam sofrido.
Principalmente os membros da Igreja Católica, fervorosa aliada e defensora de D. Miguel, são perseguidos
e muitos de seus bens confiscados. Uma série de reformas radicais, ao longo dos anos, transforma o país
política e administrativamente. A pressão pela restauração da Carta Constitucional de 1822, que garantia mais
democracia, atinge seus objetivos em setembro de 1836, com o golpe de estado dos chamados setembristas,
apoiado por Almeida Garrett.
A partir daí, começam a ocorrer divisões entre os próprios liberais, o que gera várias crises políticas e
institucionais, agravadas pela insatisfação dos miguelistas, cuja revolta é insuflada pelos partidários do ex-rei
e por ele mesmo, que continua a se manifestar do exterior e causar agitações populares.
Em 1838, é promulgada uma Nova Constituição, que vigorará somente até 27 de janeiro de 1842, quando o
governo de Costa Cabral restaura a Carta Constitucional de 1826, instituída por D. Pedro IV. Mas em pouco
tempo aparecem divergências contra a administração e a política de Costa Cabral, que instaura um regime
ditatorial, responsável por uma agressiva política de desenvolvimento interno e aumento de impostos (o
que ocasionou o enriquecimento de muitos membros do governo ou a ele aliados, os chamados ‘barões’ de
Viagens na Minha Terra”). Forma-se uma coligação de setembristas (os liberais a favor da Carta de 1822) e
miguelistas contra cabralistas (também chamados de cartistas). Revoltas esporádicas de todo tipo continuam
a pipocar pelo país.
As revoltas de Maria da Fonte e da Patuleia
A queda do governo de Costa Cabral vem em 1846, com a Revolta da Maria da Fonte, nome dado a um
movimento popular iniciado pela jovem Maria da Fonte (natural de Fonte da Arcada, em Póvoa do Lanhoso),
em março de 1845, contra a proibição de enterros em igrejas. Esta rebelião foi o estopim de uma guerra civil
que expressou o descontentamento da população com mais um aumento de impostos ordenado pelo governo
em uma época de instabilidade política, crise econômica e carestia.
As revoltas se alastram pelo país e, a partir de 1847, são fomentadas especialmente pelos setembristas, com
o apoio dos miguelistas que incentivam as desordens que vandalizam as repartições públicas e ocupam os
quartéis. É a chamada Guerra da Patuleia, que se origina nas regiões de Minho e Trás-os-Montes e alastrase pelo país.
Com a queda de Costa Cabral, os setembristas instalam-se no Porto e tentam voltar ao poder, mas são
derrotados pela habilidade política de um antigo e respeitado líder cartista, o General Saldanha, que se torna
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confidente da rainha D. Maria II e consegue o apoio dos demais países membros da chamada Aliança dos
Quatro (Inglaterra, França, Espanha e Portugal), fora fundada em Abril de 1834. Os miguelistas, liderados
pelo escocês Macdonnel, são derrotados completamente em dezembro de 1846; a partir de então, nunca
mais tiveram força política decisiva em Portugal. A Junta do Porto e os patuleias são rendidos em Junho de
1847 por uma força combinada de espanhóis e britânicos. Em 29 de junho de 1847, a Convenção de Gramido
põe fim à guerra.
A pacificação: o Ato Adicional e a Regeneração
O General Saldanha assume o poder e governa até junho de 1849, quando Costa Cabral regressa ao
governo. Em 1851, Saldanha mais uma vez assume a chefia do estado português (ficará no poder até 1856).
Em 5 de Julho de 1852, um Ato Adicional à Carta Constitucional de 1826 põe fim à divisão entre cartistas e
setembristas, e finalmente inicia-se um período de paz que permite o desenvolvimento do país. É a chamada
Regeneração, que durará até 1868.
4. Personagens
Estudaremos aqui os personagens de Viagens na Minha Terra considerando apenas o núcleo da novela
romântica, isto é, da história da “menina dos rouxinóis”. Acreditamos que é possível também considerar o
autor-narrador um “personagem” de si mesmo, mas não desceremos a essas profundidades de análise.
Os acontecimentos giram em torno de uma célula familiar: D. Francisca, seus netos Carlos e Joaninha, e Frei
Dinis que, revela-se ao final, é o pai de Carlos, responsável pelo assassinato de seu tio, de seu suposto pai
e, indiretamente, de sua mãe, em função do que essa mágoa lhe causou.
Há um antagonismo irremediável entre pai e filho: Carlos já não gostava de Frei Dinis antes de saber que
ele era seu pai e quase chega a matá-lo, torna-se incapaz de perdoá-lo ao saber quem de fato o frade é; já
Frei Dinis é um religioso devotado, mesmo ciente dos defeitos da Igreja e dos religiosos, portanto um realista
(no sentido de favorável ao poder do Rei); Carlos é liberal e constitucionalista, portanto anticlerical. Saraiva e
Lopes analisaram assim o conflito:
“Esta situação [a oposição entre pai e filho, que aparece também em O Arco de Sant’Ana] dramática (...) parece
ser imagem obsessiva de uma situação histórica e, talvez também, biográfica. O liberalismo triunfou em Portugal
através de uma guerra civil que dividiu muitas famílias”.
Carlos
A sua estatura era mediana, o corpo delgado, mas o peito largo e forte como precisa um coração de homem para
pulsar livre; seu porte gentil e decidido de homem de guerra desenhava-se perfeitamente sob o espesso e largo
sobretudo militar (...).
Os olhos pardos e não muito grandes, mas de uma luz e viveza imensa, denunciavam o talento, a mobilidade do
espírito — talvez a irreflexão... mas também a nobre singeleza de um carácter franco, leal e generoso, fácil na ira,
fácil no perdão, incapaz de se ofender de leve, mas impossível de esquecer uma injúria verdadeira.
A boca, pequena e desdenhosa, não indicava contudo soberba, e muito menos vaidade, mas sorria na consciência
de uma superioridade inquestionável e não disputada.
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O rosto, mais pálido que trigueiro, parecia comprido pela barba preta e longa que trazia ao uso do tempo. Também
o cabelo era preto; a testa alta e desafogada.
Carlos Felipe Moisés definiu Carlos como “figura heroica do jovem apaixonado, generoso e destemido,
embora imprevisível, empenhado com igual intensidade na aventura tríplice do Amor, da Guerra e da Fé não
como deveres impostos de fora para dentro, pela Igreja ou pelo Estado, mas como determinações íntimas,
forjadas no recesso da alma e do coração do indivíduo”.
Carlos é um herói que se transforma em anti-herói, que se anula por não saber se resolver. Seu coração, contra
a sua vontade, é incapaz de fixar-se em um amor: vai de Laura a Georgina, de Georgina a Joana, incapaz de
estancar ou controlar a fluidez de sentimentos que acabam por prostrar sua sensibilidade; daí tornar se “político”
e “agiota” ou, em outras palavras, “barão”: um ser insensível. É verdadeiramente um drama para um herói
romântico (aquele que dá valor, sobretudo, às coisas do coração): ele quer continuar a amar a mesma mulher
(aferra-se à medalha com o cabelo de Georgina durante a batalha que quase lhe custou a vida) mas, quando
confrontado à verdade (Georgina o faz ver que está claro que agora ele ama Joana), fica completamente perdido,
desorientado, ou seja, ele já não sabe mais o que é verdade ou mentira em seu coração.
O fracasso dos amores e da vida de Carlos coincide com a vitória do liberalismo constitucionalista em Portugal,
mas assim como ele desistiu para sempre do amor, abandona também a paixão por seus ideais políticos e
prepara-se para uma vida política baseada na mentira dessas paixões; o ceticismo é a forma de morte
encontrada, uma vez que, com o fim da guerra, uma bala já não pode lhe tirar a vida. Nas palavras de Saraiva
e Lopes:
Ninguém, antes de Garrett, na ficção portuguesa, entrara tão subtilmente na análise do que há de convencional,
fictício ou autêntico na vida sentimental, na confusão de verdade e de mentira, de vida actual e de sobrevivência
que é o todo afectivo de cada indivíduo; e ninguém pôs em termos tão agudos o problema do desgarrar da
personalidade na mudança de tudo, ligando-o, ao mesmo tempo, ao cepticismo superveniente a uma causa
generosa que degenera: Carlos descrê de um seu amor verdadeiro ao mesmo tempo em que descrê da revolução
que substitui o domínio do frade pelo do barão capitalista do Constitucionalismo, preparando-se ele próprio para
a comédia da vida como futuro trunfo político nesse liberalismo mistificado.
Carlos é, em muitos sentidos, um alterego de Almeida Garrett, até premonitoriamente: assim como o herói
de Viagens na Minha Terra, nosso autor tornou-se, ao final, da vida, um “barão” da política, inclusive tendo
ganhado título de nobreza (Visconde de Almeida Garrett).
Mais adiante, analisaremos a simbologia da personalidade de Carlos, inclusive em suas relações com Frei
Dinis e Joaninha.
Frei Dinis
Frei Dinis, o “austero guardião do Convento de São Francisco de Santarém”, é fisicamente descrito como
“figura seca, alta e um tanto curvada de um religioso franciscano que abordoado em seu pau tosco, arrastando
as suas sandálias amarelas e tremendo-lhe na cabeça o seu chapéu alvadio”; sua personalidade toda se
mostra pelo olhar firme e atemorizador. Moralmente, era “homem de princípios austeros, de crenças rígidas, e
de uma lógica inflexível e teimosa”. Não escondia os erros do clero, mas para ele era inconcebível uma nação
sem as ordens religiosas e sem rei, como queriam os liberais. No passado, fora Dinis de Ataíde, amante da
filha de D. Francisca. Tal romance lhe valeu um filho que não o sabe pai (Carlos) e um crime: matou o marido
de sua amante e seu irmão, sem o saber, quando eles tentavam emboscá-lo. A confissão do crime à mulher
causou a sua morte; a D. Francisca, causou cegueira, de tanto chorar lágrimas de sangue.
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Joaninha
Joaninha não era bela, talvez nem galante sequer no sentido popular e expressivo que a palavra tem em português,
mas era o tipo da gentileza, o ideal da espiritualidade. Naquele rosto, naquele corpo de dezesseis anos, havia, por
dom natural e por uma admirável simetria de proporções, toda a elegância nobre, todo o desembaraço modesto,
toda a flexibilidade graciosa que a arte, o uso e a conversação da corte e da mais escolhida companhia vêm a dar
a algumas raras e privilegiadas criaturas no mundo. (...)
Era branca, mas não desse branco importuno das louras, nem do branco terso, duro, marmóreo das ruivas — sim
daquela modesta alvura da cera que se ilumina de um pálido reflexo de rosa de Bengala. E doutras rosas, destas
rosas-rosas que denunciam toda a franqueza de um sangue que passa livre pelo coração à sua vontade por artérias
em que os nervos não dominam, dessas não as havia naquele rosto: rosto sereno como é sereno o mar em dia de
calma, porque dorme o vento... Ali dormiam as paixões. Que se levante a mais ligeira brisa, basta o seu macio bafejo para encrespar a superfície espelhada do mar. (...)
O nariz, ligeiramente aquilino: a boca pequena e delgada não cortejava nem desdenhava o sorriso, mas a sua
expressão natural e habitual era uma gravidade singela que não tinha a menor aspereza nem doutorice. (...)
Em perfeita harmonia de cor, de forma e de tom com a fina gentileza destas feições, os cabelos de um castanho tão
escuro que tocava em preto, caíam de um lado e outro da face, em três longos, desiguais e mal enrolados canudos,
cuja ondada espiral se ia relaxando e diminuindo para a extremidade, até lhe tocarem no colo quase lisos. (...)
As sobrancelhas, quase pretas também, desenhavam-se numa curva de extrema pureza; e as pestanas longas e
assedadas faziam sombra na alvura da face.
Os olhos porém — singular capricho da natureza, que no meio de toda esta harmonia quis lançar uma nota de
admirável discordância! (...) Os olhos de Joaninha eram verdes... não daquele verde descorado e traidor da raça
felina, não daquele verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não; eram verdes-verdes, puros e
brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate.
Joaninha é a menina pura e dedicada, completamente entregue aos cuidados da avó e à paixão por Carlos,
cuja recusa em amá-la leva-a à morte por amor. A caracterização de Joaninha e do ambiente onde vive e
morre (seus olhos “verdes como esmeralda”, o cortejo de rouxinóis que sempre a acompanha, a paisagem
do Vale de Santarém) foi inspirada em Menina e Moça, célebre romance português do século XVI, de autoria
de Bernardim Ribeiro (1482?-1582?), que conjuga romance pastoril, sentimental e de cavalaria para narrar
histórias de desencontro amoroso como os da personagem Aónia (anagrama de Ioana  Joana), inspiradora
da “menina dos rouxinóis”.
D. Francisca
Era (...) uma velhinha bem passante dos setenta, mas que o não mostrava. Vestia uma espécie de túnica roxa, que
apertava na cintura com um largo cinto de couro preto, e que fazia ressair a alvura da cara e das mãos longas,
descarnadas, mas não ossudas como usam de ser mãos de velhas; toucava-se com um lenço da mais escrupulosa
brancura, e posto de um jeito particular a modo de toalha de freira; um mandil da mesma brancura, que tinha
no peito e que afectava, não menos, a forma de um escapulário de monja, completava o estranho vestuário da
velha. (...) A velha era cega, cega de gota serena, e paciente, resignada como a providência misericordiosa de Deus
permite quase sempre que sejam os que neste mundo destinou à dura provança de tão desconsolado martírio.
29
Georgina
A “irmã do meio” que Carlos conhece na Inglaterra e por quem vai se apaixonar é
uma bela mulher de estatura não acima de ordinária mas nem uma linha menos, (...); a cabeça toucada de finíssima
Bruxelas, com uns laços
de preto e cor de granada que realçavam a transparência das rendas, a infinita graça dos longos e ondados anéis
louros do cabelo, e a pureza simétrica de um rosto oval, clássico, perfeito, sem grande mobilidade de expressão
mas belo, belo, quanto pode ser belo um rosto em que pouco da alma se reflecte, e em que a serena languidez de
uns olhos azuis entibia e modera a energia do sentimento que não é menos profundo talvez, mas certamente se
expande menos.
Georgina é decidida, impetuosa e dedicada, como prova o fato de ter deixado a Inglaterra e ter se aventurado
por Portugal, deflagrado pela guerra, para encontrar o seu amado, ou a dedicação a Joaninha e sua avó
quando abandonadas por Carlos. Mas ela tem a fleuma (serenidade, impassibilidade) inglesa nos momentos
decisivos, como quando faz ver a Carlos que não é possível eles ficarem juntos porque ele agora ama
Joaninha.
Laura e Júlia
A “irmã mais nova” e a “irmã mais velha” das três irmãs que Carlos conheceu na Inglaterra. A primeira amou-o
e foi sua primeira grande paixão, mas estava destinada a outro homem. A segunda parece também tê-lo
amado, mas de um afeto especial, que se comprazia apenas na amizade.
5. Espaço
O trajeto da viagem narrada está bem traçado no livro: o autor (acompanhando seu pequeno grupo de amigos)
sobe de barco pelo rio Tejo, desembarca no Ribatejo em direção a Santarém, passando por localidades
pequenas e pitorescas como Vila Nova da Rainha, Azambuja, Cartaxo, Asseca etc., descritas detalhadamente,
ora com humor sarcástico, denunciando o atraso português, ora com afeto, expressando seu carinho pela
paisagem ou pelas características particulares de cada local.
A cidade de Santarém propriamente dita é, claro, o espaço mais importante, uma vez que é o motivo da viagem
do autor. Mas não só por isso: como fica claro no decorrer das descrições dos monumentos históricos e das
30
digressões do autor, as ruínas de Santarém, empasteladas e descaracterizadas por sucessivas reformas mal
feitas e de mau gosto, abandonadas, depredadas e desprezadas são um símbolo de Portugal em decadência,
rompido com seu passado de glórias que é incapaz de preservar.
O Convento de São Francisco de Santarém é o mais importante destes locais. Palco das cenas cruciais que
definem o destino dos personagens na narrativa: é aonde Carlos vai quando está ferido de guerra, para ser
cuidado por Georgina; lá ela conhece Joaninha e as duas se compreendem; lá Carlos fica sabendo que Frei
Dinis é seu pai e quase o mata; lá ele é incapaz de decidir-se entre as duas mulheres que ama.
Também há referências à Inglaterra na carta que Carlos escreve para Joana explicando os motivos para
desistir do amor, mas elas não parecem ter significado mais profundo para a compreensão da história.
No capítulo X, quando chega finalmente ao Vale de Santarém e vê a casinha e a janela que serão o pretexto
para entrar na história da “menina dos rouxinóis”, Garrett faz brilhantemente a passagem da narrativa da
viagem para a narrativa da história da “menina dos rouxinóis”, como se ele estivesse saindo de si (das suas
impressões de viagem, de suas elucubrações que geram digressões) para falar daquilo que está fora de si (a
história dos moradores daquela casa):
O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas,
o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas
há uma como simetria de cores, de sons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão
que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e
benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir
para longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade
do seu coração.
À esquerda do vale, e abrigado do Norte pela montanha que ali se corta quase a pique, está um maciço de verdura
do mais belo viço e variedade. A faia, o freixo, o álamo entrelaçam os ramos amigos; a madressilva, a mosqueta
penduram de um a outro suas grinaldas e festões; a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam
o chão.
Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela meio aberta de uma habitação
antiga mas não delapidada — com certo ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais
do sul a que está exposta. A janela é larga e baixa; parece mais ornada e também mais antiga que o resto do
edifício que todavia mal se vê...
Interessou-me aquela janela.
Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?
Parei e pus-me a namorar a janela.
Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás... Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino!...
era completo o romance.
Como há-de ser belo ver pôr o Sol daquela janela!...
E ouvir cantar os rouxinóis!...
E ver raiar uma alvorada de Maio!...
(...)
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Estava eu nestas meditações, começou um rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga que há muito tempo me
lembra de ouvir.
Era ao pé da dita janela!
E respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se entre ambos um desafio tão regular, em estrofes alternadas
tão bem medidas, tão acentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro do meu romance, esqueci-me de tudo
mais.
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribeiro, o que se deixou cair na água de cansado.
O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim da tarde... que faltava para completar o romance? Um vulto
feminino que viesse sentar-se àquele balcão — vestido de branco — oh! branco por força... a frente descaída sobre
a mão esquerda, o braço direito pendente, os olhos alçados ao céu... De que cor os olhos? Não sei, que importa! é
amiudar muito de mais a pintura, que deve ser a grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa, desenhar-se
no vago da idealidade poética...
Um procedimento comum na literatura romântica é a associação da natureza aos acontecimentos ou ao
estado de espírito dos personagens. Principalmente na narração da história de Carlos e Joaninha, isso ocorre
frequentemente, e o espaço se torna mais expressivo.
Por exemplo, veja a seguir a descrição (Capítulo XIX) do Vale de Santarém após a chegada das tropas de
guerra, durante o final do outono:
Eram os derradeiros dias do Outono, a natureza parecia tomar dó pelo homem — dar triste e lúgubre decoração
de cena ao sanguento drama de destruição e de miséria que ali se ia concluir. As últimas folhas das árvores caíam,
o céu nublado e negro vertia sobre a terra apaulada torrentes grossas de água, a cheia alagava os baixos, e as terras
altas cobriam-se de ervas maninhas, os trabalhos da lavoura cessavam, o gado e os pastores fugiam, e os soldados
de um e de outro campo cortavam as oliveiras seculares...
Tudo estava feio e torpe, tudo era ruína, desolação e morte em torno da casa do vale, agora transformada em
quartel e reduto militar.
32
6. Tempo – Cronologia
A seguir, temos uma cronologia dos principais fatos citados ou narrados em Viagens da Minha Terra, associados
ao contexto histórico que descrevemos anteriormente (veja “3. Contexto histórico: Portugal dividido”).
Data
Fato - contexto histórico
1800 – por volta de
Carlos tem 30 anos quando estoura a guerra entre D. Pedro (liberais) e D. Miguel
(realistas).
1817 – por volta de
Nascimento de Joaninha (ela tem 15 anos quando aparece pela primeira vez na
narrativa, ao lado da avó, em 1832).
1825
Dinis entra para o convento de São Francisco em Santarém; desaparece por dois
anos e, quando começa a pregar, rapidamente ganha fama de religioso severo e
exemplar.
1830, fins de Agosto
Carlos retorna de Lisboa, declara-se Liberal, rompe com Frei Dinis e embarca para
a Inglaterra.
1830 – 1832
Carlos está na Inglaterra; conhece as “três irmãs”, entre elas Georgina
1832, verão
Frei Dinis visita D. Francisca e Joaninha no vale, para anunciar que Carlos está em
Lisboa com as tropas de D. Pedro I.
1833, meio do ano
Frei Dinis retorna de uma viagem a Lisboa trazendo uma carta de Carlos.
1834, início do ano
Os liberais tomam Santarém.
1834, maio
Carta de Carlos a Joana anunciando seu rompimento definitivo com a família; morte
de Joaninha.
1943, 17 a 26 de julho Viagem de Garrett a Santarém, na qual constata o estado de abandono e depredação
dos sítios históricos, ouve a história de Joaninha, a “menina dos rouxinóis”, e
encontra-se, ao final, com D. Francisca e Frei Dinis. Carlos caminha para tornar-se
“barão”.
Mais adiante, analisaremos o funcionamento da categoria “tempo” como uma das fundamentais para a
mensagem do livro, uma vez que a reflexão que entrelaça o passado de Portugal a sua situação no presente
projetando-a para o futuro (incerto) é uma das principais temáticas do livro.
33
7. Estilo e estrutura
Um romântico elegante
Digamo-lo, pois, ousadamente. Chegou o tempo disso, e seria estranho que, nesta época, a liberdade, como a luz,
penetrasse por toda a parte, exceto no que há de mais nativamente livre no mundo, nas coisas do pensamento.
Destruamos as teorias, as poéticas e os sistemas. Derrubemos este velho gesso que mascara a fachada da arte!
Não há regras nem modelos; ou antes, não há outras regras senão as leis gerais da natureza que plainam sobre
toda a arte, e as leis especiais que, para cada composição, resultam das condições de existência próprias para cada
assunto. Umas são eternas, interiores, e permanecem; as outras, variáveis, exteriores, e não servem senão uma
vez. As primeiras são o madeiramento que sustenta a casa; as segundas, os andaimes que servem para construí-la
e que se refazem para cada edifício. (...) O poeta, insistamos nesse ponto, não deve, pois, pedir conselho senão à
natureza, à verdade, e à inspiração, que é também uma verdade e uma natureza.
(HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime – Prefácio do Cromwell. São Paulo: Perspectiva, s/d. pp. 56-57.)
Almeida Garrett é nome fundamental da introdução das ideias e do estilo do Romantismo em Portugal. Nesse
sentido, a primeira característica que chama a atenção em Viagens na Minha Terra, concordando com o
exposto por Victor Hugo no texto que colocamos de introdução acima, é a liberdade de Almeida Garrett para
encontrar uma forma que não se escravizasse a nenhuma regra ou modelo, mas que fosse adequada à livre
expressão de suas ideias e dos sentimentos. E isso ele fez escrevendo uma obra em que é patente a mistura
ou o entrecruzamento de gêneros. O Viagens na Minha Terra pode ser visto como um mosaico de gêneros:
narrativa de viagem, diário íntimo, memória biográfica, ensaio político e social, novela sentimental.
Mas o livro também pode ser definido como romântico no sentido de realizar um propósito típico desse estilo
de época: produzir uma literatura cuja origem fosse a própria vida traduzida de forma direta na escrita, sem
compromisso com regras ou fixação em modelos. Não só Garrett fez a viagem que narra, como sua vida está
entrelaçada aos fatos políticos e à guerra civil que servem de pano de fundo para o romance de Carlos e
Joaninha.
Em relação ao que se fazia na prosa portuguesa da época, as Viagens na minha terra significaram um
sopro de renovação, que retirou da linguagem escrita a poeira da afetação clássica que a tornava pesada e
envelhecida. A naturalidade e espontaneidade do autor permitiram uma aproximação do público e tornaram
a leitura mais agradável, a comunicação mais direta e a expressão de sentimentos mais sincera. Em outras
palavras, é uma narrativa mais “democrática”, mais adequada aos novos tempos de domínio da ideologia
burguesa.
Mas, é preciso que se diga, essa “naturalidade” é bastante trabalhada estilisticamente, de modo que permita
essa aproximação do leitor, trazendo-o para dentro da narrativa por meio das digressões, da interpelação
direta e do apelo a sua imaginação, bastante comuns no estilo romântico. Um bom exemplo disso é a maneira
como Garrett “atrai” o leitor para dentro da cena e o faz acompanhar sua imaginação na cena de aproximação
à casa do Vale de Santarém que desencadeará toda a história de Carlos e Joaninha.
Apesar disso, em várias passagens do livro, Garrett “desmente” sua adesão ao Romantismo: “Eu não sou
romanesco. Romântico, Deus me livre de o ser — ao menos, o que na algaravia de hoje se entende por essa
palavra”. A crítica literária é quase unânime ao afirmar que Garrett aderiu ao Romantismo muito mais por uma
34
necessidade de adequar-se às modas de seu tempo do que por temperamento ou personalidade7. Mas não há
dúvidas de que a (super) valorização do amor, da poesia, da imaginação, do predomínio do sentimento e da
idealização sobre a razão, do sentimento nacionalista, do passado medieval, presentes em várias passagens
do livro, foram aprendidos na literatura romântica.
A personalidade de Carlos, arrastada para cá e para lá pelo seu coração instável, é exemplo disso; a morte
por amor de Joaninha, também, assim como a vida aventurosa e a personalidade extremada de Frei Dinis, a
quem a tragédia parece perseguir, seja no amor (seu envolvimento com a mãe de Carlos que leva ao crime),
seja no sentimento religioso (ele é obrigado a assistir à ruína, em Portugal, da verdadeira fé e da importância
social do catolicismo).
O entrelaçamento de acontecimentos históricos cheios de agitação e sangue e da vida pessoal (seja a de
Carlos, seja a do próprio Garrett) conduzida de acordo com os ideais do coração (falamos disso de passagem
ao analisar a personalidade de Carlos no item “4. Personagens”) é outra marca romântica.
Há, também, o fascínio pela Idade Média, idealizada como época em que se conjugavam as virtudes guerreiras,
amorosas e religiosas, tempo de nascimento da Pátria, de algum modo fixado nas ruínas de Santarém. Seu
empastelamento, sua destruição e abandono figuram o estado de Portugal nesse momento: terra em que a
guerra, em vez de unir irmãos, separa-os, em que o amor é impossível pelo desnorteamento do coração, em
que a religião ou é falsa ou é massacrada.
Linguagem
Garrett utiliza com maestria vários elementos para dar ao livro o frescor e a capacidade de comunicar-se
diretamente com o leitor. Há uma aproximação da escrita à língua falada, não só pelo vocabulário (que inclusive
incorpora muitos termos estrangeiros — ingleses, franceses — que eram de uso corrente na fala em Portugal,
mas não usados na escrita literária), mas também pelo ritmo espontâneo, frequentemente escrevendo como
se falasse ou encadeando frases por associação livre de ideias, sem preocupação demasiada em seguir um
pensamento lógico, emendando digressões (sobre filologia, filosofia, estilo, humor, história etc.) umas nas
outras, com uso habilidoso das reticências, travessões e pontos de exclamação e interrogação. Tudo isso dá
ao texto um tom à vontade, indisciplinado e irônico.
O autor-narrador dialoga constantemente com o leitor (“Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamonos: o que eu vou contar não é um romance, não tem aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes
raros; é uma história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão”), em alguns momentos
chegando à desfaçatez no tratamento (“Coroai-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos à dama
nova, ide, que não prestais para mais nada, meus queridos Lisboetas; ou discuti os deslavados horrores de
algum melodrama velho que fugiu assoviado da “Porte Saint-Martin” e veio esconder--se na Rua dos Condes.
Também podeis ir aos touros — estão embolados, não há perigo..”).
Almeida Garrett foi um grande autor dramático, e isto se faz notar no texto. Há uma aproximação da estrutura
teatral, com diálogos às vezes longos, às vezes tensos, em momentos fundamentais da narrativa. Garrett é
particularmente habilidoso para fazer os personagens dizerem falando e não falando, isto é, de revelar coisas
importantes nas falas, mas também nos silêncios dos personagens durante os diálogos. Um bom exemplo
disso é o diálogo tenso entre Carlos e Frei Dinis durante a partida do moço de Santarém para se juntar aos
liberais na Inglaterra, no Capítulo XVI.
7
Veja, a propósito, a afirmação de Francisco Maciel Silveira: “Não há dúvida de que a argamassa utilizada por Garrett (...) é
romântica. Todavia a arquitetura do livro é produto de cerebrina técnica clássica e não de desleixada inspiração romântica”.
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Digressão e Intertextualidade
Almeida Garrett abre sua obra com uma epígrafe do escritor francês Xavier de Maistre (1763-1852), célebre
principalmente por Viagem à roda de meu quarto8, obra em que um narrador passa o tempo descrevendo sua
vida dentro do quarto nos mínimos detalhes (levantar-se, deitar-se, as refeições, os objetos de decoração,
a sua cadela Rosina e seu criado Joanetti etc.) ao mesmo tempo em que “viaja” em digressões e reflexões
sobre os mais variados assuntos, principalmente aqueles relacionados à psique humana.
Viagens à roda do meu quarto (1794) foi um livro fundamental no nascimento do romance moderno, nos
princípios do movimento romântico europeu. Nele, temas e estilo serão fundamentais para a literatura que se
fez a partir de então e que podemos ver presentes também nas Viagens na Minha Terra: renovação formal,
mistura do trágico e do cômico, o indivíduo consciente de sua personalidade dividida e tensa, os excessos da
imaginação etc. Mas o que nos interessa ressaltar é que Garrett tomou de empréstimo das Viagens de Xavier
de Maistre o uso da digressão como técnica principal de seu estilo. A digressão consiste em interromper o
discurso narrativo e mudar de tema de maneira intencional, seja para contar uma anedota, fazer uma reflexão
séria, retroceder ou avançar a narrativa para um fato diferente do que está sendo narrado etc.
A presença do substantivo “viagem” em ambos os títulos aproxima as duas obras, apenas em Xavier de
Maistre a viagem é puramente psicológica, enquanto em Garrett é uma viagem de fato: o “quarto” de Garrett
é Portugal. No trecho que segue, Garrett assume claramente seu estilo digressivo e sua inspiração no autor
francês:
QUE viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como
Sampetersburgo — entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na
horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.
Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que
está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos
do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi
sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei-de dar-lho. Vou nada menos
que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica.
A comparação com o Viagem à roda do meu quarto é irônica, mas faz sentido: o narrador/autor das Viagens
na minha terra adotará o mesmo estilo digressivo do autor francês para “fazer crônica de quanto vir e ouvir,
de quanto eu pensar e sentir”.
A digressão permite a Garrett variar a matéria narrativa, compondo um mosaico de gêneros, como ele mesmo
assume no trecho a seguir, em que estabelece uma interessante comparação do seu trabalho ao dos pintores
da Idade Média (repare que essa comparação é uma digressão):
Não pude resistir a esta reflexão: as amáveis leitoras me perdoem por interromper com ela o meu retrato.
Mas quando pinto, quando vou riscando e colorindo as minhas figuras, sou como aqueles pintores da Idade Média
que entrelaçavam nos seus painéis, dísticos de sentenças, fitas lavradas de moralidades e conceitos... talvez
porque não sabiam dar aos gestos e atitudes expressão bastante para dizer por eles o que assim escreviam, e
servia a pena de suplemento e ilustração ao pincel...
Talvez: e talvez pelo mesmo motivo caio eu no mesmo defeito...
8
A epígrafe do Viagens na minha terra remete ao “Prólogo ao leitor” do Memórias póstuma de Brás Cubas , que também cita Xavier
de Maistre. O mesmo estilo digressivo empregado por Garrett em seu livro será utilizado pelo “defunto autor” de Machado de Assis.
36
Assim como os pintores da Idade Média preenchem os espaços de suas pinturas com “dísticos de sentenças,
fitas lavradas de moralidades e conceitos”, Garrett preencherá a narrativa de suas viagens com anedotas,
reflexões filosóficas, históricas, políticas e sociais, referências a inúmeros autores etc.
Em outro momento, Garrett utiliza outra bela imagem para falar de seu estilo: “Neste despropositado e
inclassificável livro das minhas VIAGENS, não é que se quebre, mas enreda-se o fio das histórias e das
observações por tal modo, que, bem o vejo e o sinto, só com muita paciência se pode deslindar e seguir em
tão embaraçada meada.”
As palavras que destacamos nos trechos acima estabelecem uma metáfora para o trabalho de escritor de
Almeida Garrett neste livro. Como D. Francisca, que doba a meada com uma “regularidade de intermitências”,
ou seja, com interrupções regulares no trabalho de tecer, também Garrett vai (des)enrolando sua narrativa
com interrupções regulares para suas digressões. Assim também ele “entrelaça” as histórias (da viagem, de
Portugal, de Carlos e Joaninha), “enredando-as”.
O livro é também uma dobadoura de referências. Nele, Garrett compraz-se em exibir sua erudição, citando
diversos autores, de várias áreas do conhecimento (literatura, história, filosofia, ciência, política etc.), épocas
e idiomas (latim, grego, inglês, francês), muitas vezes no original. Nesse sentido, Garrett é um romântico sem
perder a elegância clássica. A esse procedimento chamamos de intertextualidade.
Estrutura
Cada um dos 49 capítulos das Viagens na Minha Terra começa com um pequeno “resumo” dos assuntos que
serão tratados a seguir. Tal procedimento talvez se deva ao fato de que a obra foi publicada primeiro em jornal,
como se fossem “crônicas” da viagem que Almeida Garrett fez a Santarém.
De fato, os capítulos são bastante curtos, como que feitos para leitura rápida e fácil, um artifício do autor para
prender o leitor, levando-o sempre adiante na leitura. Outro “truque” para prender o leitor é a interrupção da
narrativa da história de Carlos e Joaninha em um momento decisivo (Carlos ficará com Joana ou retornará
para Georgina?) para voltar à narrativa da viagem e retomar a história de amor somente mais adiante.
Podemos organizar os capítulos em blocos, de acordo com a predominância de narração da viagem ou da
história de Joaninha, a menina dos rouxinóis:
• Capítulos I a IX: narração e descrição da viagem, cheia de digressões, até a chegada no Vale de Santarém.
• Capítulos X a XXVI: narração da história de Carlos e Joaninha, incluindo fatos referentes ao passado de
suas famílias e de Frei Dinis. Interrupção antes que se dê o desfecho e o destino dos amantes e demais
envolvidos.
• Capítulos XXVII a XXXI: continuação da narração — com muitas digressões — da viagem para Santarém.
• Capítulos XXXII a XXXVI: retorno aos episódios da desventura amorosa de Carlos e Joaninha,
aparentemente terminados.
• Capítulos XXXVII a XLII: continua o relato da viagem, agora entremeado de inúmeras divagações
relacionadas à história de amor — nesses capítulos ocorre maior entrelaçamento entre a viagem e a
história de amor.
• Capítulos XLIII a XLIX: encontro do autor com Frei Dinis e D. Francisca, carta de Carlos; conclusão da
viagem e do livro.
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8. Portugal no nevoeiro
Nevoeiro
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
define com perfil e ser
este fulgor baço da terra
que é Portugal a entristecer –
brilho sem luz e sem arder,
como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
Valete, Frates
(Fernando Pessoa, Mensagem - 1934)
Os versos acima foram escritos por Fernando Pessoa para falar de Portugal quase um século depois que
Almeida Garrett escreveu a obra que agora estudamos, mas eles bem valem para expressar a visão sobre
Portugal que o autor do século XIX expressa em suas Viagens na Minha Terra, como veremos a seguir.
Em Viagens na Minha Terra, há nitidamente dois planos narrativos que se entrelaçam:
1º) a narrativa da viagem do autor a Santarém;
2º) a narrativa da história de amor de Carlos e Joaninha e do drama envolvendo sua família e Frei Dinis.
A ligar esses dois planos narrativos, estão as digressões que tratam de vários assuntos e acabam por construir
um painel das transformações políticas, sociais, econômicas e culturais de Portugal naquele momento de sua
história.
O entrelaçamento de planos e as digressões colocam a obra para ser julgada simultaneamente de dois
pontos de vista: como expressão da verdade e como representação da realidade.
O autor assume as duas posturas simultaneamente logo no início da narrativa. Por um lado, sua obra quer
atender ao princípio estético da literatura como expressão da verdade para poder se atingir o belo: “(...)
porque eu hei-de viver e morrer na fé de Boileau: Rien n’est beau que le vrai” (nada há de mais belo que a
verdade). Mesmo quando vai entrar na história “romântica” de Carlos e Joaninha, faz questão de frisar: “heide contar o caso como ele foi”.
Mas, antes de assumir esses “compromissos com a verdade” do que vai narrar, o autor já havia apresentado
sua obra como expressão simbólica de certa realidade:
Primeiro que tudo, a minha obra é um símbolo... é um mito, palavra grega, e de moda germânica, que se mete hoje
em tudo e com que se explica tudo... quanto se não sabe explicar.
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É um mito porque — porque... Já agora rasgo o véu, e declaro abertamente ao benévolo leitor a profunda ideia
que está oculta debaixo desta ligeira aparência de uma viagenzita que parece feita a brincar, e no fim de contas é
uma coisa séria, grave, pensada (...).
A seguir, para explicar o “mito” a que se refere, o autor apela para Dom Quixote e Sancho Pança9 como
símbolos do estado do progresso social português:
Houve aqui há anos um profundo e cavo filósofo de além-Reno, que escreveu uma obra sobre a marcha da
civilização, do intelecto — o que diríamos, para nos entenderem todos melhor, o Progresso. Descobriu ele que
há dois, princípios no mundo: o espiritualismo, que marcha sem atender à parte material e terrena desta vida,
com os olhos fitos em suas grandes e abstractas teorias, hirto, seco, duro, inflexível, e que pode bem personalizarse, simbolizar-se pelo famoso mito do Cavaleiro da Mancha, D. Quixote; — o materialismo, que, sem fazer caso
nem cabedal dessas teorias, em que não crê, e cujas impossíveis aplicações declara todas utopias, pode bem
representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho Pança.
Mas, como na história do malicioso Cervantes, estes dois princípios tão avessos, tão desencontrados, andam
contudo juntos sempre; ora um mais atrás, ora outro mais adiante, empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se
poucas, mas progredindo sempre.
E aqui está o que é possível ao progresso humano.
E eis aqui a crónica do passado, a história do presente, o programa do futuro.
Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina el-rei Sancho.
Depois há-de vir D. Quixote.
(...)
Ora, nesta minha viagem Tejo arriba está simbolizada a marcha do nosso progresso social: espero que o leitor
entendesse agora. Tomarei cuidado de lho lembrar de vez em quando, porque receio muito que se esqueça.
O Progresso é determinado por dois princípios contraditórios que constituem “a crônica do passado, a história
do presente”: o “espiritualismo” (Dom Quixote) e o “materialismo” (Sancho Pança): “tão desencontrados,
andam contudo juntos sempre .
Essas dicotomias se entrelaçam: o materialismo do Antigo regime monárquico (anterior à Revolução Liberal)
tinha como complemento o espiritualismo do Clero (os “frades”); o espiritualismo do Regime Liberal (com suas
ideias de Liberdade, Igualdade e Fraternidade emprestadas da Revolução Francesa) produziu o materialismo
dos “barões”, dos políticos e dos agiotas que enriqueceram explorando o país após o (inseguro) sucesso da
Revolução. A dicotomia do passado impedia o progresso social; a dicotomia do presente também o impede.
Essa dicotomia não só é tratada nas digressões do autor, mas também na história da “menina dos rouxinóis”,
por meio da relação entre Carlos e Frei Dinis, as duas personagens em conflito direto na história, como bem
explica Helder Macedo:
As duas personagens motrizes da sequência romanesca são Frei Dinis e Carlos — um absolutista e o outro liberal.
Cada um deles representa D. Quixote e Sancho Pança em fases diferentes das suas vidas. Frei Dinis, que começou
por ser “materialista” porque presa das paixões, espiritualizou-se através do remorso no frade austero em que veio
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Dom Quixote, o “cavaleiro da triste figura”, é uma caricatura do homem cuja fé em um ideal, mesmo impossível ou ridículo, é levada
até o fim. Sancho Pança é o escudeiro de Dom Quixote em suas aventuras por um mundo que não condiz com os seus inusitados
sonhos de cavaleiro. Ao contrário de seu senhor, é um home prático, sempre preocupado primeiro em arranjar algo para forrar sua
enorme pança e descansar seus pobres ossos. Ambos são personagens do clássico Dom Quixote do escritor espanhol Miguel de
Cervantes Saavedra (1547-1616).
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a tornar-se; Carlos, após ter lutado pelos ideais do liberalismo, corrompeu-se e cedeu à matéria ao tornar-se barão.
Ora, da mesma maneira que foram os erros do absolutismo que levaram à Revolução Liberal, assim também o
produto do materialismo de Frei Dinis, manifesto nos seus amores pecaminosos, é o próprio Carlos, seu filho natural
e seu inimigo. Mas como ambos contêm, em fases diferentes das suas vidas e em ordem temporal inversa, os
mesmos elementos antinômicos que o outro, embora fundamentalmente semelhantes, só poderão antagonizarse: cada um deles está espiritualizado ou materializado na altura errada em relação ao outro. Contrabalançam-se,
são espelhos, imagens inversas, um do outro.
Hélder Macedo vê outra dicotomia em Joana e Georgina, símbolos do “ideal moral positivo” comum ao Antigo
Regime monárquico/a sociedade tradicional portuguesa (Joana) e ao Regime Liberal/a moderna sociedade
portuguesa, influenciada pela Inglaterra (Georgina). Por isso, apesar de rivais no amor, respeitam-se e
amam-se.
Quando Carlos renuncia ao seu coração e decide “morrer”, tornando-se um agiota ou político, ambas sofrem:
Joana morre, Georgina recolhe-se a uma ordem religiosa. Ou seja: morrendo o idealismo, desaparecem os
valores morais positivos. Carlos (por nascimento ligado ao Antigo regime e por ideologia ligado à Revolução
Liberal) ama as duas; incapaz de escolher, desiste de ambas. Perde, portanto, suas qualidades morais.
Mas, continua o estudioso, o pecado de Carlos não é apenas não escolher; é ser egocêntrico. O que ele ama
é a si mesmo e ao seu coração. Ama em Joaninha a sua infância idealizada e só a enxerga como reflexo
dela; ama Georgina por acidente, como amou suas duas irmãs, apenas porque ao lado delas sente-se bem,
elas são a “riqueza” e a “civilização” acolhedoras da Inglaterra. Assim também Portugal: abraçou o idealismo
de matriz liberal e lutou por ele, mas quando se tratou de colocá-lo em prática, de tomar decisões, de agir
concretamente, entregou-se à agiotagem e à política superficial, tornou-se “barão”.
A consequência disso é o atraso social, a pobreza do povo representada na degradação dos monumentos
históricos presenciada por Garrett durante sua viagem, cujo ápice se dá no estado lastimável em que encontra
o extinto Convento de São Francisco de Santarém.
A dicotomia também está explícita no diálogo final entre Garrett (o liberal “espiritualizado”) e Frei Dinis (o Frade
preso ao mundo material pela sua vida pregressa), ambos sujeitos, eles mesmos, a essa dicotomia, ambos
desejosos de um regime que melhore a vida dos pobres, ambos reconhecedores dos erros do passado e incapazes de dizer o que será de Portugal (ou seja, sem saber se um dia um regime justo será possível):
— (....) Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberais não tiveram menos.
— Errámos ambos.— Errámos ambos.
— Errámos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era; — mas muito menos
ainda pode ser que é. O que há-de ser, não sei. Deus proverá.
O sonho que Garrett tem na noite anterior a seu retorno para Lisboa também tem sua forte carga de simbolismo:
Mas eu sonhei com o frade, com a velha — e com uma enorme constelação de barões que luzia num céu de papel,
donde choviam, como farrapos de neve, numa noite polar, notas azuis, verdes, brancas, amarelas, de todas as cores
e matizes possíveis. Eram milhões e milhões e milhões...
(...)
Acordei no outro dia e não vi nada... só uns pobres que pediam esmola à porta. Meti a mão na algibeira, e não achei
senão notas... papéis!
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A velha é a pátria portuguesa decrépita, o frade é o passado, os barões são o presente. E a realidade,
o acordar do sonho, é o povo passando fome. O que equivale a dizer: os erros do passado e as ilusões
materialistas do presente levaram o país à decadência e o povo à ruína: “Ó Portugal, hoje és nevoeiro...”.
Logo, na história da “menina dos rouxinóis” está o “símbolo” prometido ao início da narrativa: na relação
entre Carlos e Frei Dinis temos uma metáfora da marcha trôpega da história em Portugal, impedindo o efetivo
“progresso social” do país.
Qual seria, então, a saída do nevoeiro (no poema de Fernando Pessoa, uma metáfora para a impossibilidade
de se enxergar um caminho) para Portugal?
Uma delas é o seu povo:
“Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo está são: os corruptos somos nós os que cuidamos
saber e ignoramos tudo.”
Outra, a adequação da política à realidade:
Nos caminhos-de-ferro dos barões é que eu juro não andar. Escusada é a jura porém. Se as estradas fossem de
papel, fá-las-iam, não digo que não. Mas de metal!
Que tenha o Governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade
e proveito na nossa boa terra.
Os barões querem fazer estradas de ferro em um país que não produz ferro, isto é, querem fazer algo que os
recursos do país não permitem, que está fora da realidade. Mas se as estradas forem de pedra, então serão
possíveis. Ou seja, o governo precisa ter juízo para fazer aquilo que será de utilidade e proveito para o povo
de Portugal. Em outras palavras, precisa adequar-se à realidade e realizar o que for possível, em vez de
sonhar com o impossível, endividar o país e permanecer o povo na miséria.
Viagem interior e exterior
O tema da viagem é um dos mais tradicionais da literatura universal, desde as narrativas primordiais da
Bíblia (a viagem em busca da Terra Prometida, por exemplo) passando pelos poemas épicos da Antiguidade
Clássica (a Odisseia, de Homero).
Vejamos como o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant analisa a simbologia da viagem
em alguns trechos:
O simbolismo da viagem, particularmente rico, resume-se no entanto na busca da verdade, da paz, da imortalidade,
da procura e da descoberta de um centro espiritual. (...)
A viagem exprime um desejo profundo de mudança interior, uma necessidade de experiências novas, mais do
que de um deslocamento físico. Segundo Jung, indica uma insatisfação que leva à busca e à descoberta de novos
horizontes. (...)
Outras viagens, como as de Ulisses, de Hércules, de Menelau, de Salaad e de tantos outros, são interpretadas como
buscas de ordem psíquica e mística.
Em todas as literaturas, a viagem simboliza, portanto, uma aventura e uma procura, quer se trate de um tesouro
ou de um simples conhecimento, concreto ou espiritual. Mas essa procura, no fundo, não passa de uma busca e na
maioria dos casos uma fuga de si mesmo.
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A viagem é expressão e símbolo da vida como aventura e descoberta — do que há dentro e fora do indivíduo;
realização do desejo de experimentar, sem medo de hesitar, fracassar ou desistir, obedecendo à sensibilidade.
Carlos é um viajante, mas por necessidade, uma vez que, ao final, confessa que seu desejo íntimo era ter
permanecido no seio da família. Como bom viajante, entretanto, é incapaz de fixar-se sentimentalmente: seu
coração vai de um amor a outro sem conseguir decidir-se.
A causa de sua ruína moral, existencial, pode parecer ser essa incapacidade de fixação, mas essa é apenas a
desculpa que ele usa para justificar sua fraqueza, seu abandono da vida. A verdadeira causa de seu fracasso
é justamente deixar de obedecer aos seus sentimentos, de enfrentar suas angústias. Ao fazê-lo, “morre” como
herói e torna-se uma pessoa vulgar.
Chamamos atenção acima (veja item “4. Personagens”) para o fato de Carlos ser um alterego de Almeida
Garrett. Carlos muito viajou, mas a viagem narrada aqui é a do próprio Garrett, e nesse sentido, uma
semelhança entre eles nos chama a atenção: assim como Carlos encontra-se, ao final de sua história, numa
vida sem sentido, incapaz de fundar um presente ou imaginar qualquer futuro (que não seja sua anulação
como político ou agiota) por conta de seu passado desastroso, assim também Garrett, no momento dessa
viagem, parece alguém incapaz de encontrar em seu presente (e sem muitas esperanças de fazê-lo no futuro)
um sentido para seu passado dedicado às ideais liberais malogradas que, naquele momento, pareciam
incapazes de melhorar a realidade do país e fazê-lo progredir.
De fato, em duas ocasiões ele se refere à história de Joaninha como a “minha Odisseia”. Na primeira,
ironicamente:
“É o primeiro episódio da minha Odisseia: estou com medo de entrar nele porque dizem as damas e os elegantes
da nossa terra que o português não é bom para isto, que em francês que há outro não sei quê...”
Na segunda, de maneira mais grave e dramática:
“Como hei-de eu então, eu que nesta grave Odisseia das minhas viagens tenho de inserir o mais interessante e
misterioso episódio de amor que ainda foi contado ou cantado, como hei-de eu fazê-lo, eu que já não tenho que
amar neste mundo senão uma saudade e uma esperança — um filho no berço e uma mulher na cova?...”
Mas a viagem de Garrett levou-o a algum lugar? Aparentemente, não. O livro/a viagem começa e termina no
Terreiro do Paço. A história da “menina dos rouxinóis”, alegoria do progresso na história de Portugal também
começa e termina na mesma cena: à entrada do Vale de Santarém, defronte à casinha, está a velha D.
Francisca dobando.
Mas essa circularidade (a história termina como/onde começou) e aparente continuísmo podem estar dizendo
outra coisa: que para Portugal progredir socialmente é preciso que passado e presente se entrelacem, que o
Portugal espiritualista (do passado) e o Portugal materialista (do presente) se enredem, como os fios que D.
Francisca enreda na dobadoura10.
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D. Francisca, o primeiro personagem a aparecer na narrativa da “menina dos rouxinóis”, e que a certa altura é chamada de
“Penélope” pelo autor (outra referência à Odisseia), surge dobando à porta da casa e continua nessa posição ao final da narrativa.
Talvez a velha decrépita cujas esperanças de felicidade com a volta do neto são frustradas pelo desenrolar dos acontecimentos seja
uma metáfora de Portugal, cada vez mais decadente, à espera da volta de “Ulisses”, isto é, à espera do retorno daquele passado
em que “materialismo” e “espiritualismo” se uniram e levaram o país à glória. Referimo-nos à época das grandes navegações,
quando uma burguesia mercantil, em nome de seus interesses comerciais, mas também da expansão da fé cristã sobre os reinos
pagãos, criou um império ultramarítimo e elevou o nome de Portugal entre os povos.
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9. Biografia
João Baptista da Silva Leitão nasceu em 4 de fevereiro de 1799; era
de uma família burguesa ligada à atividade comercial e proprietária de
terras na região do Porto e nas ilhas dos Açores.
Passou a infância, entre 1804 e 1808, em quintas (pequenas
propriedades rurais) no sul do Douro, sob a influência de dois tipos;
pelo paterno, Frei Alexandre da Sagrada Família, bispo de Malaca;
pelo lado materno, João Carlos Leitão, formado em direito e depois
juiz de fora em Faial.
Em 1809, a família parte, fugindo das invasões napoleônicas, para
Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira dos Açores. Passa a adolescência
educando-se sob os cuidados do tio Alexandre, sendo preparado
para a vida eclesiástica. Chega a tomar ordens menores, mas decide
abandonar a carreira na Igreja. Em Portugal, o domínio inglês sucede
ao francês.
De 1816 a 1818, estuda Direito na Universidade de Coimbra. Enquanto mergulha nos livros dos autores
estrangeiros do Iluminismo e do Romantismo, inicia sua carreira política ao lado dos liberais, lutando contra
a tirania e o domínio inglês. Por essa época, decide abandonar o popular “Silva” de seu nome, adotando o
“Almeida” materno e incluindo o sobrenome “Garrett”, de um antepassado irlandês do pai; passa a se chamar,
então, João Baptista Leitão de Almeida Garrett.
Em 1820, estoura no Porto a Revolução Liberal, da qual participa ativamente, que exigia a volta de D. João
VI do Brasil e a proclamação de uma nova constituição. Em 1821, forma-se em Direito e faz uma viagem a
Angra para visitar a família e fazer política. Conhece Luísa Midosi, com quem se casaria em 1822, mesmo
ano em que tem de enfrentar um julgamento público (no qual é absolvido) pela publicação do poema Retrato
de Vênus, considerado materialista e obsceno.
Em 1823, a contrarrevolução absolutista chefiada por D. Miguel abole a Constituição Liberal de 1822 e inicia
uma violenta perseguição aos liberais. Almeida Garret foge para a Inglaterra, deixando a mulher em Lisboa.
Volta clandestinamente e é deportado. Hospeda-se na casa de Thomaz Haddley, em Warwick, e convive com
suas três filhas, com quem se envolve afetivamente. Esse episódio de sua vida certamente serviu de modelo
para o relacionamento de Carlos com as “três irmãs” inglesas de Viagens na minha terra. Luísa Midosi mudase para a Inglaterra. Eles vivem inicialmente em Londres, depois se mudam, em 1824, para o Havre, na
França. Garrett escreve Camões, publicado em 1825 e considerado o marco inicial do Romantismo português.
As dificuldades financeiras aumentam. Garrett e Midosi tentam viver em Paris, não conseguem; retornam ao
Havre. Enfim ela decide voltar sozinha para Portugal, enquanto o poeta retorna a Paris, onde publica duas
obras, em 1826: o poema Dona Branca e o primeiro volume do Parnaso Lusitano – Poesias Seletas dos
Autores Portugueses Antigos e Modernos. No mesmo ano, a promulgação de uma nova Carta Constitucional,
de orientação liberal, permite-lhe voltar a Portugal, onde assume um serviço público, retoma as atividades
políticas e funda o jornal O Português, no ano seguinte, funda também O Cronista.
Em 1827, nova reviravolta: os miguelistas se fortalecem, jornais liberais são perseguidos e Garrett interrompe
seus periódicos. Em Paris, termina a publicação dos cinco tomos do Parnaso Lusitano. Em 1828, D. Miguel é
declarado rei legítimo de Portugal, sucedendo a D. João VI, que morrera em 1826. Garrett retorna à Inglaterra,
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onde novamente passa por dificuldades. Publica Adozinda. Iniciando a reação, os liberais iniciam batalhas
na Ilha Terceira, nos Açores. Entre 1829 e 1830, publica Lírica de João Mínimo, Da Educação e Portugal na
Balança da Europa.
Funda, em Londres, o jornal O Precursor, para defender a união dos liberais em torno de D. Pedro, que
prepara uma expedição militar contra o governo de D. Miguel. Parte para a França. Em 1832, reúne-se ao
exército liberal nos Açores e trabalha na elaboração das leis do novo governo. Os revolucionários liberais
partem para Portugal e tomam a cidade do Porto. Garrett negocia o apoio Inglês a D. Pedro.
Em 1833, o exército liberal desembarca também no Algarve e uma violenta ofensiva derrota as forças realistas
de D. Miguel, que é exilado. Garrett torna-se membro de uma comissão encarregada de reformar o ensino
português. Em 1834, torna-se cônsul na Bélgica, onde se decide a estudar a língua e a literatura alemãs. D.
Pedro IV de Portugal morre, D. Maria II, filha de D. Pedro, torna-se rainha.
Em 1835, Garrett é demitido de seu cargo na Bélgica. Em 1836, divorcia-se de Luísa Midosi e funda o jornal
O Português Constitucional. Eclode a Revolução de Setembro, D. Maria revoga a Carta Constitucional de D.
Pedro e restabelece a de 1822. Uma contrarrevolução é abafada. Garrett é encarregado de propor um plano
de incentivo ao teatro em Portugal. Passa a exercer uma série de cargos públicos e é nomeado “Cavaleiro da
Torre e Espada”. Em 1837, eleito deputado, batalha pelos ideais da Revolução de Setembro. Passa a viver
com Adelaide Pastor.
D. Maria jura uma Constituição em 1838. Garrett exerce novos cargos públicos e publica a peça histórica e
romântica Um Auto de Gil Vicente. Em 1839, é eleito deputado por Angra. Em 1840, passa a representar Lisboa
e continua exercendo intensa atividade parlamentar e no serviço público. Em 1841, mudanças ministeriais
empurram-no para a oposição e morre sua segunda mulher, Adelaide Pastor. Em 1842, a Carta Constitucional
de D. Pedro é restaurada. Garrett combate fortemente a Restauração e publica Alfageme de Santarém. É
reeleito deputado.
Em 1842, escreve Frei Luís de Souza, importante drama histórico. Para descansar, faz uma viagem a Santarém,
da qual nasceriam os artigos que deram origem às Viagens na Minha Terra. A oposição ao ministério se acirra,
o que leva à supressão das garantias constitucionais. Garrett, perseguido, se asila na embaixada do Brasil.
Terminada a crise, retoma suas atividades de deputado na Câmara.
Publica O Arco de Santana e Flores sem fruto em 1845. Em 1846, uma nova lei de impostos leva à revolta
popular da Maria da Fonte. O ministério cai. Garrett volta a colaborar com o governo, mas dissidências entre
diversos grupos liberais levam a uma nova revolução, na qual Garrett fica neutro. A partir de 1847, dedicase mais à carreira literária; só em 1851 seu prestígio político começa a se restabelecer , quando, após nova
revolta política, trabalha para conciliar liberais e absolutistas. Recebe o título de Visconde e é eleito novamente
deputado. Em 1852, exercerá importantes cargos políticos e receberá novas condecorações.
Em 1853, doente e cansado, publica Folhas caídas, livro de poemas resultante de um escandaloso envolvimento
amoroso com a Viscondessa da Luz; neste mesmo ano, morre a rainha D. Maria. Almeida Garrett morre no
dia 9 de dezembro de 1854.
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10. Bibliografia
•GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. São Paulo: FTD, 1992. (Coleção Grandes Leituras)
•GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. São Paulo: Nova Alexandria, 2012.
•CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 13ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1999.
•COELHO, Jacinto do Prado (org.). Dicionário de Literatura brasileira, portuguesa, galega e de estilística
literária. Porto: Livraria Figueirinhas, 1979. 3 vol.
•MACEDO, Helder. As Viagens na Minha Terra e a Menina dos Rouxinóis. In: Colóquio - Letras 51, 1979.
p. 15-24.
•MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa através dos textos. 11ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1981,
•SARAIVA, Antônio José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 6ª ed. Porto: Porto Editora
Ltda.
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