LIMITES E IMPLICAÇÕES DO PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE

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LIMITES E IMPLICAÇÕES DO PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE
LIMITES E IMPLICAÇÕES DO PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE DETEGERE NAS
INTERVENÇÕES CORPORAIS PROBATÓRIAS
Ludmila Corrêa Dutra1
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo analisar a incidência do princípio
nemo tenetur se detegere, que confere a qualquer pessoa a prerrogativa de recusarse a praticar qualquer ação que possa incriminá-la, sem que isto lhe acarrete
qualquer prejuízo, nas provas que demandam intervenções corporais. No Brasil, o
aludido direito foi interpretado de forma ampla, o que limita a atuação estatal na
busca pela solução de crimes, tendo em vista que o Estado não pode contar com a
ajuda do acusado se este não quiser colaborar, principalmente em provas que
implicam em ingerência corporal. Assim, serão apresentados os argumentos usados
por diversos autores, estudiosos do assunto sob análise, para limitar o uso do
princípio nemo tenetur se detegere, como direito do acusado de não ser obrigado a
colaborar, ativa ou passivamente, com provas que demandam intervenções
corporais e que possam acarretar em sua incriminação, tecendo considerações
acerca do tema.
PALAVRAS-CHAVES: Ônus da prova. Nemo tenetur se detegere. Intervenções
corporais.
1 O PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE DETEGERE NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
O nemo tenetur se detegere é uma máxima que decorre do latim e que
pode ser traduzida como “ninguém é obrigado a se descobrir”. Neste contexto, há
outros brocardos latinos que expressam a mesma ideia, tais como: nemo tenetur se
accusare2, nemo tenetur se ipsum accusare3, nemo tenetur se ipsum prodere4 e
nemo tenetur prodere seipsum, quia nemo tenetur detegere turpitudinem suam 5.
1
Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Direito
Processual pelo IEC PUC Minas. Advogada. Presidente da comissão OAB Jovem e Estágios da 197ª
Subseção da OAB/MG.
2
Ninguém é obrigado a acusar-se.
3
“Ninguém é obrigado a se acusar a si próprio”.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
Em síntese, o nemo tenetur se detegere é o direito conferido a pessoa de
não produzir provas que lhe possam ser desfavoráveis e acarretar em sua
incriminação, não podendo sofrer qualquer prejuízo diante de sua recusa ou
omissão.
Possui ampla dimensão. Sua versão mais tradicional é conhecida por
direito ao silêncio, entretanto, abrange o direito de não confessar, de não colaborar
com a investigação ou instrução criminal, de não declarar contra si, direito de
declarar o inverídico, desde que não haja prejuízos para terceiros, direito de não
apresentar provas prejudiciais, direito de não produzir ou não contribuir ativamente
para a produção de provas contra si, direito de não ceder o corpo, seja total ou
parcialmente, para produção probatória, entre outras expressões que podem ser
encontradas no âmbito jurídico, que se adéquem ao sentido expresso no conceito do
princípio nemo tenetur se detegere, que de acordo com Carlos Henrique Borlido
Haddad, abarca
(...)todas as ações, verbais ou físicas, capazes de contribuir para a
incriminação de alguém. A recusa em submeter-se a intervenções corporais
– colheita de sangue para exame de DNA – e a participar da reconstituição
do crime, a negativa em sujeitar-se ao exame de dosagem etílica em delitos
de trânsito, a oposição à entrega de documentos que possam comprometer
seu possuidor. Todos esses comportamentos, por trazerem potencial lesão
6
ao direito de defesa do acusado, estão encobertos pela máxima.
O princípio nemo tenetur se detegere faz-se presente no ordenamento
jurídico pátrio sob diversos fundamentos. O direito ao silêncio encontra-se
expressamente previsto no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, que prevê
que o preso deve ser “informado de seus direitos entre os quais o de permanecer
calado”. As outras versões do princípio, dentre as quais, o direito a não autoincriminação, devem ser extraídas de outros princípios constitucionalmente
assegurados e diplomas internacionais ratificados pelos Brasil.
Em 06 de julho de 1992, o Brasil ratificou o Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos, por meio do Decreto nº. 592, e em 06 de novembro do mesmo ano,
4
Nenhuma pessoa pode ser obrigada a trair a si mesma em público.
Ninguém pode ser compelido a depor contra si mesmo, pois ninguém é obrigado à auto-incriminarse.
6
HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O interrogatório no processo penal. Belo Horizonte: Del Rey,
2000, p.136.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
5
ratificou também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ou como é mais
conhecida, Pacto São José da Costa Rica, através do Decreto nº. 678, dos quais em
seus artigos 14, § 3º, g7 e 8º, § 2º, g8, respectivamente, tratam do princípio nemo
tenetur se detegere.
Os aludidos tratados foram recepcionados pelo nosso ordenamento
jurídico como normas supralegais, de acordo com o entendimento do Supremo
Tribunal Federal, a respeito de como seriam considerados os tratados internacionais
que adentraram nosso ordenamento jurídico, mas que não passaram pelo
procedimento previsto no art. 5º, § 3º, que foi incorporado a nossa Constituição
Federal pela Emenda Constitucional nº. 45, de 2004, e que dispõe que os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos serão equivalentes as emendas
constitucionais, desde que aprovadas em cada casa do Congresso Nacional, em
dois turnos, por três quintos dos votos de seus membros.
Com o advento da Lei nº. 10.792, de 01 de dezembro de 2003, outra
expressão do direito ao silêncio foi introduzida na legislação pátria, sendo esta o
parágrafo único, do artigo 186, do Código de Processo Penal, que dispõe que o
silêncio do acusado não irá importar em confissão e nem será interpretado em seu
prejuízo.
Vale salientar, que o artigo supracitado acarretou numa parcial
inconstitucionalidade do artigo 198, do mesmo diploma legal, tendo em vista que
este prevê que o “silêncio do acusado (...) poderá constituir elemento para a
formação do convencimento do juiz”, o que não mais pode ser admitido se
considerarmos o direito ao silêncio como garantia individual do acusado no processo
criminal.
Contudo, mesmo que os diplomas legais acima dispostos não tratassem
expressamente do princípio nemo tenetur se detegere ou de expressões que
decorrem do mesmo, este estaria presente no ordenamento jurídico brasileiro, como
fruto dos princípios da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal e da
7
“Art. 14, § 3 Durante o processo, toda a pessoa acusada de um delito terá direito, em plena
igualdade, às seguintes garantias mínimas: g) A não ser obrigada a prestar declarações contra si
própria nem a confessar-se culpada”.
8
“Art. 8, § 2 Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência,
enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em
plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigada a depor contra si
mesma, nem a confessar-se culpada”.
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presunção de inocência, pois conforme determina o artigo 5º, § 2º, da CF/88, “os
direitos e garantias expressos na constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados.”
O princípio nemo tenetur se detegere possui natureza jurídica de direito
fundamental, pois visa proteger o acusado diante de excessos que podem ser
cometidos pelo Estado na persecução criminal, assegurando que sua integridade
física e moral sejam preservadas, quando o Estado necessita de sua colaboração
para produção de provas.
É uma garantia que não se destina somente aos acusados, mas a
qualquer pessoa, embora não caiba invocá-lo quando não há pretensão do Estado
em apurar fatos, pois para ser aplicado deve haver uma relação entre autoridade e
indivíduo.
Quanto sua incidência, é cabível em toda a persecução penal, contudo
não se restringe somente ao interrogatório, seja policial ou judicial, ou ao processo,
aplicando-se a qualquer outra instância não penal ou situação cotidiana em que
recaia uma acusação sobre a pessoa.
2 O PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE DETEGERE E AS PROVAS QUE
DEMANDAM INTERVENÇÃO CORPORAL
2.1 Definição das provas que demandam intervenção corporal
O termo intervenção corporal, também conhecido pelos nomes de
ingerência humana ou investigação corporal, pode ser definido como procedimento
realizado no corpo humano, podendo ser invasivo ou não, prescindindo ou não de
um comportamento ativo da pessoa. Haja vista o pioneirismo espanhol no
desenvolvimento de estudos sobre o tema, traz-se a baila conceitos de autores
daquele país.
Para Ângel Gil Hernándes, intervenções corporais são “a realização de
atos de investigação ou obtenção de provas no corpo do próprio acusado”9.
9
HERNÁNDEZ, Ángel Gil. Intervenciones corporales y derechos fundamentales. Madrid:
Colex,1995, p. 37.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
Nicolas
Gonzales-Cuellar
Serrano,
define
provas
que
exigem
intervenções corporais, como medidas de investigação que se realizam no corpo dos
indivíduos, não sendo necessário seu consentimento, e caso preciso, poderá ser
utilizada coação direta, com a finalidade de descobrir circunstâncias fáticas
importantes ao processo, em relação às condições físicas e psíquicas do acusado,
ou com o objetivo de encontrar objetos no corpo escondidos10. Este é um conceito
de intervenção corporal bastante amplo e que não se adéqua a realidade brasileira,
onde o consentimento do acusado é fundamental para a produção destas provas,
em razão da ampla abrangência do princípio nemo tenetur se detegere, embora seja
considerada na Espanha, uma das definições mais completas sobre o tema.
Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho observa que:
há uma distinção entre intervenções corporais e registro corporais,
elaborada na Alemanha, pela qual as intervenções são realizadas no corpo
mesmo e os registros o são na superfície do corpo, incluindo as cavidades
naturais do corpo humano. A doutrina, porém, não tem prestado maior
atenção à diferença sob o argumento de que o tratamento legislativo é
11
idêntico para ambas as situações.
A par dos entendimentos citados, vale exemplificar as provas demandam
intervenções corporais, dentre as quais se destaca os exames de sangue em geral;
exalação de ar para verificação do nível de álcool no organismo (etilômetro, ou como
é vulgarmente conhecido, bafômetro), previsto no artigo 277, da Lei nº. 9.503, que
dispõe sobre o Código de Trânsito brasileiro; exame ginecológico; cirurgias no corpo
da pessoa suspeita; endoscopia; exame em cavidades do corpo ou exame do reto;
identificação dentária; coleta de urina; extração de substâncias contidas debaixo das
unhas da pessoa acusada (finger scrapings); coleta de impressões digitais; entre
outras provas que compartilham entre si o fato de recaírem sobre o corpo humano,
de forma direta ou indireta.
Eugênio Pacelli de Oliveira considera ainda, que o fornecimento de
padrões gráficos para exame pericial é também um exemplo de prova que necessita
10
GONZALEZ-CUELLAR SERRANO, Nicolas. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el
proceso penal. Madrid: Colex, 1990, p. 290.
11
CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. A constituição e as intervenções corporais
no processo penal: existirá algo além do corpo?. Revista eletrônica de direito processual. Volume II,
p. 12. Disponível em: <http://www.arcos.org.br/periodicos/revista-eletronica-de-direito-processual/
volume-ii/a-constituicao-e-as-intervencoes-corporais-no-processo-penal-existira-algo-alem-do-corpo>.
Acesso em: 24 maio 2015.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
de intervenção corporal12, estando ele previsto no art. 174, do CPP13, assim como a
identificação criminal regulada pela Lei nº. 12.037, de outubro de 2009, que envolve,
de acordo com seu art. 5°14, a identificação datiloscópica e fotográfica, a quem for
submetido à persecução penal15.
Com a Lei nº. 12.654, de 28 de maio de 2012, que promoveu alterações
na Lei nº. 12.037, que trata da identificação criminal do civilmente identificado, e na
Lei nº. 7.210, Lei de Execução Penal, prevendo a coleta de perfil genético como
forma de identificação criminal, foi regulamentada mais uma espécie de intervenção
corporal na legislação brasileira.
As provas que exigem intervenção no corpo do acusado dividem-se em
invasivas e não invasivas. Provas invasivas são as intervenções corporais que
pressupõem uma penetração, por meio de substâncias ou instrumentos, dentro do
organismo humano. Provas não invasivas são as intervenções corporais que não
necessitam de penetração no corpo humano, sendo realizadas externamente. 16
Alguns exemplos de intervenções corporais invasivas são os exames de
sangue em geral, exame ginecológico, identificação dentária, endoscopia, exame no
reto e verificação do nível alcoólico por meio do bafômetro, auferido pelo ar soprado
no instrumento. Intervenções corporais não invasivas são os exames de materiais
fecais, identificação datiloscópica, radiografias, exames de DNA realizados em fios
de cabelos e pêlos, impressões de pés, unhas e palmar, entre outros.
12
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011, p. 399.
13
“Art. 174. No exame para o reconhecimento de escritos, por comparação de letra, observar-se-á o
seguinte: I - a pessoa a quem se atribua ou se possa atribuir o escrito será intimada para o ato, se for
encontrada; II - para a comparação, poderão servir quaisquer documentos que a dita pessoa
reconhecer ou já tiverem sido judicialmente reconhecidos como de seu punho, ou sobre cuja
autenticidade não houver dúvida; III - a autoridade, quando necessário, requisitará, para o exame, os
documentos que existirem em arquivos ou estabelecimentos públicos, ou nestes realizará a
diligência, se daí não puderem ser retirados; IV - quando não houver escritos para a comparação ou
forem insuficientes os exibidos, a autoridade mandará que a pessoa escreva o que lhe for ditado. Se
estiver ausente a pessoa, mas em lugar certo, esta última diligência poderá ser feita por precatória,
em que se consignarão as palavras que a pessoa será intimada a escrever”.
14
“Art. 5°. A identificação criminal incluirá o processo datiloscópico e o fotográfico, que serão juntados
aos autos da comunicação da prisão em flagrante, ou do inquérito policial ou outra forma de
investigação”. BRASIL. Lei nº. 12.037, de 1 de outubro de 2009. Dispõe sobre a identificação criminal
do civilmente identificado, regulamentando o art. 5º, inciso LVIII, da Constituição Federal.
15
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011, p. 399.
16
Nesse sentido, QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o
princípio do nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva,
2003, p. 245.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
Os exames de urina, esperma, saliva e buscas pessoais, também
conhecidas por revistas, são provas que podem ser realizadas mediante técnicas
invasivas ou não invasivas.
As intervenções corporais invasivas e não invasivas são objeto de grande
discussão entre os operadores do direito, acerca de sua admissibilidade ou não no
processo penal, haja vista implicar numa antinomia entre a afirmação de que o
acusado é um sujeito que possui direitos dentro de um processo democrático e o
reconhecimento do uso do seu corpo como fonte de prova.
Nesse sentido, Guilherme Alberto Marinho indica que:
A problemática que se apresenta na atualidade, tempos de grande
desenvolvimento tecnológico, é a possibilidade de utilização das modernas
técnicas científicas no terreno das provas, principalmente a respeito da
admissibilidade da intervenção corporal no indiciado ou acusado, com o
objetivo de obter material biológico para exames laboratoriais destinados a
fornecer dados probatórios e, conseqüentemente, formar elementos de
17
juízo.
2.2 O posicionamento do Brasil com relação à incidência do princípio nemo
tenetur se detegere nas intervenções corporais probatórias
No Brasil, o primeiro questionamento acerca da obrigatoriedade do
acusado se sujeitar a colaborar com a produção de provas que implicam em
intervenção corporal, determinadas pelo juízo, surgiu em ações de investigação de
paternidade, com relação ao fornecimento de material genético.
Atualmente, alguns procedimentos que demandam intervenções corporais
encontram-se disciplinados em leis brasileiras, a exemplo do etilômetro, ou como é
mais conhecido, bafômetro, e a coleta de perfil genético para identificação criminal,
entretanto, não são considerados obrigatórios, em razão de não haver regra
específica que discipline o dever de colaboração do acusado na produção de
provas.
17
GONÇALVES, Guilherme Alberto Marinho. A concretização do princípio constitucional da não
auto incriminação: a compreensão do direito ao silêncio no paradigma do estado democrático de
direito. 2001. 162 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Minas Gerais, 2001, p. 146.
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O entendimento majoritário é de que o acusado não tem obrigação de
participar ativamente na produção de provas, principalmente as que importam em
intervenção corporal, em razão do nemo tenetur se detegere.
A respeito do assunto, Eugênio Pacelli de Oliveira observa que:
a posição de nossa jurisprudência, particularmente a do Supremo Tribunal
Federal, é em sentido absolutamente ampliativo do princípio da não auto
incriminação. Sustenta-se a existência de um direito a não produzir qualquer
tipo de prova contra si, sem que, entretanto, haja qualquer previsão
18
constitucional nesse sentido.
Na mesma esteira Maria Elizabeth Queijo afirma que:
A orientação predominante na jurisprudência brasileira não reconhece a
existência de dever de colaboração do acusado na produção de provas, no
processo penal, no que tange às que dependam de colaboração ativa do
acusado. Nem mesmo no processo civil se tem reconhecido o aludido dever
de colaboração. (...) Na doutrina também se registra o entendimento de que
o acusado não tem dever de fornecer elementos de prova contra si mesmo,
19
em razão da incidência do nemo tenetur se detegere.
Sustenta-se ainda, que as intervenções corporais praticadas sem o
consentimento do réu, além de violarem o princípio nemo tenetur se detegere,
afetam outros direitos como a dignidade humana, a integridade física e moral, a
liberdade da pessoa com relação a seu corpo, a preservação de sua intimidade e o
direito a saúde, tendo em vista que alguns tipos de intervenções corporais podem
colocar a vida em risco, devendo nestes casos ser afastada a prova, mesmo que
haja consentimento do acusado quanto a sua realização, conforme previsto no artigo
15, do Código Civil20.
Neste diapasão, Aury Lopes Junior leciona que quando há o
consentimento do acusado, as intervenções corporais poderão ser realizadas, pois o
conteúdo da autodefesa é disponível e renunciável, entretanto, quando houver a
recusa deste, tais provas não poderão ser produzidas, pois a prova da alegação dos
fatos incumbe a acusação e o sujeito passivo não é obrigado a colaborar com a
18
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011, p. 401.
19
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo
tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 266.
20
“Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou
a intervenção cirúrgica”.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
mesma, além do mais submeter o acusado a intervenção corporal sem o seu
consentimento seria equiparado a tortura.21
Sob o mesmo prisma, Antônio Magalhães Gomes Filho tratando sobre as
intervenções corporais afirma que:
o que se deve contestar com relação a essas intervenções, é a violação do
direito à não auto-incriminação e a liberdade pessoal, pois se ninguém pode
ser obrigado a declarar-se culpado, também deve ter assegurado o seu
22
direito a não fornecer provas incriminadoras contra si mesmo.
Para Guilherme de Souza Nucci, exigir que o acusado colabore com a
colheita de elementos que possam embasar sua incriminação seria o mesmo que
admitir a fraqueza das autoridades e a falência da maquina estatal.23
Percebe-se, portanto, que no direito brasileiro o nemo tenetur se detegere
tem aplicação ampla, compreendendo a possibilidade do réu se recusar a produzir
qualquer tipo de prova que lhe possa prejudicar, acarretando em sua incriminação,
mesmo estando esta prevista em lei. A recusa do réu não pode ser usada na
formação do convencimento do juízo, poderá constituir apenas violação a uma regra
de dever, cujas conseqüências encontram-se previstas em lei.
Partindo-se desse raciocínio, vale trazer à tona a manifestação de Carlos
Henrique Borlido Haddad, que afirma que:
Nenhum método de obtenção da verdade poderá ser usado contrariamente
a vontade do acusado. O consentimento, desde que não marcado pelo
receio de que não se submetendo aos métodos extraordinários será
presumida a culpabilidade, é indispensável, e o desrespeito a vontade
24
constitui crime.
3 A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE DETEGERE EM RELAÇÃO
ÀS PROVAS QUE DEMANDAM INTERVENÇÃO CORPORAL SOB A ÓTICA DA
PROVA ILÍCITA
21
LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, p. 322-324.
22
GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito a prova no processo penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997, p. 119.
23
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007, p. 91.
24
HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O interrogatório no processo penal. Belo Horizonte: Del Rey,
2000, p. 267.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
A intervenção corporal para ser realizada deve ser autorizada pelo
acusado e este deve estar ciente de seus direitos, inclusive do nemo tenetur se
detegere, ou a prova produzida será considerada ilícita. Assim, a manifestação da
prova ilícita com relação ao princípio nemo tenetur se detegere e às intervenções
corporais probatórias, se dá quanto a advertência ao acusado da inexistência de
obrigação de colaborar com a produção da prova.
Neste contexto, às autoridades devem abster-se de práticas omissivas,
comissivas e enganosas que visem à participação do acusado, que por desconhecer
seus direitos ou por temer represálias, acabe por cooperar na produção de provas
que demandem intervenção corporal.
O acusado não deve agir por coação, violência ou erro, mas consentir em
colaborar com a produção da prova por livre e espontânea vontade, devendo ser
cientificado dos direitos atinentes ao princípio nemo tenetur se detegere. Assim, ao
ter ciência da sua não obrigação em cooperar, o acusado poderá autorizar a
produção da prova que implique em intervenção corporal.
Em todo caso, as ingerências corporais capazes de colocar em risco a
saúde e a vida do acusado, mesmo quando autorizadas, não poderão ser
praticadas, pois a vida é um direito indisponível, conforme disposto no art. 5°, caput,
da Constituição Federal25.
Caso o consentimento do acusado para produção de provas que exigem
intervenções corporais estiver contaminado por vício, a prova ilícita estará
caracterizada.
A prova ilícita é aquela produzida com infração as normas e princípios
legais, sendo, portanto, inadmissível ao processo, de acordo com o artigo 5º, LVI, da
Constituição Federal26 e artigo 157, do Código de Processo Penal27, por não possuir
eficácia, não existindo no plano jurídico.
A prova eivada de ilicitude deve ser retirada do processo, caso nele venha
a ingressar. Se não for retirada, o juiz deverá desconsiderá-la e não poderá usá-la
como elemento para formação de sua convicção. Referida prova também não pode
25
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade (...)”.
26
“Art. 5º, LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”..
27
“Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim
entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
ser explorada pelo órgão de acusação. Se a sentença proferida valorar a prova
ilícita, o Tribunal deverá declará-la nula, determinar seu desentranhamento do
processo e elaborar nova sentença.
Ocorre que, mesmo não podendo ser usada como elemento para
formação da convicção do juiz, ao ser juntada aos autos, a prova ilícita poderá
contaminar a visão dos fatos do magistrado, o que poderá
prejudicar o réu.
Entretanto, em alguns casos, se a prova ilícita não puder ser considerada, poderá
haver risco de impunidade e a sociedade se sentirá desprotegida, o que nos remete
a discussão sobre a (in) admissibilidade da prova ilícita.
A congregação sobre o uso da prova ilícita não é uniforme e nem pacífica,
os doutrinadores dividem opiniões sobre o tema. Apesar da Constituição Federal e o
Código de Processo Penal se posicionarem quanto a inadmissibilidade da prova
ilícita no processo e este ser o posicionamento majoritário sobre o tema, há quem
defenda sua admissibilidade em prol da segurança da sociedade.
A
discussão
gira
em
torno
da
aplicação
do
princípio
da
proporcionalidade/razoabilidade nas provas ilícitas, como forma de se relativizar a
aplicação formal e rigorosa do texto constitucional e por fim a conflitos de interesses,
questão que voltará a ser abordada mais adiante.
4 RESTRIÇÃO AO PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE DETEGERE COM RELAÇÃO
ÁS INTERVENÇÕES CORPORAIS PROBATÓRIAS
Os autores expressam diferentes posicionamentos quanto a forma de se
restringir o princípio nemo tenetur se detegere, para fazer com que às provas que
dependem de intervenções corporais possam ser produzidas validamente e aceitas,
mesmo sem a autorização do acusado, em um processo criminal, afastando a
ilicitude. Todos eles, porém, compartilham o entendimento de que a saúde e a vida
da pessoa nunca podem ser colocadas em risco, e que deve ser assegurada a
dignidade humana, não podendo o acusado ser submetido a nenhum procedimento
vergonhoso ou vexatório.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
João Cláudio Couceiro sustenta que o acusado jamais pode ser obrigado
a tolerar intervenções corporais, contudo sua recusa em submeter a pratica de
exames “deve implicar em indício de culpabilidade, invertendo-se o ônus da prova”28.
Não se pode concordar com esse entendimento, pois o acusado está
exercendo um direito que lhe foi conferido pelo ordenamento jurídico brasileiro,
assim está agindo de forma lícita, não podendo sua atitude implicar em
culpabilidade, obrigando-lhe a provar sua inocência. Além do mais, todos são
considerados inocentes até sentença penal condenatória, de acordo com o princípio
da presunção de inocência.
Eugênio Pacelli de Oliveira, por sua vez, acredita que o nemo tenetur se
detegere é aplicado para proteger a integridade física e psíquica do acusado, bem
como sua capacidade de autodeterminação e a dignidade humana, assim, não se
justificaria a recusa do acusado em produzir provas que demandam intervenções
corporais quando as garantias supracitadas não se encontrarem em risco. Desta
forma, o autor defende que se deve valorar a recusa do acusado em colaborar com
a produção da prova, quando esta não coloque sua pessoa em risco, equivalente a
(...) presunção acerca da existência de um fato, ainda que não provado,
mas estabelecida por dedução, a partir de outro fato, não justificado
29
racionalmente(...).
A solução encontrada por Eugênio Pacelli de Oliveira nada mais é do que
a aplicação da presunção relativa, disciplinada na Súmula 301, do STJ, para o caso
de recusa de um suposto pai em realizar o exame de DNA, em ação de investigação
de paternidade.
Ocorre que no âmbito civil as presunções podem ser aceitas,
principalmente no que tange a investigação de paternidade, onde para se provar o
contrário ao estabelecido pela presunção, basta realizar o exame de DNA
anteriormente recusado, para, no caso deste ter resultado negativo, ser afastada a
presunção de paternidade.
28
COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 358.
29
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011, p. 402.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
Contudo, no âmbito penal, ao ser aplicada a presunção relativa com
relação a uma prova que demanda intervenção corporal, que em muitos casos é
essencial para comprovação da culpa do acusado, poderá acarretar na condenação
de um inocente que apenas não quis realizá-la, o que gerará incerteza jurídica e
ferirá o princípio do in dúbio pro réu e da presunção de inocência.
Marcelo Schirmer Albuquerque, considera que o nemo tenetur se
detegere confere ao acusado um status de intocável, sendo ele dotado de poderes
em relação ao andamento processual, assim, traz a proposta de restrição a esta
garantia de não auto-incriminação em razão do princípio do contraditório, que
estabelece que as partes devem provar, em igualdade de condições, a sua versão
dos fatos.30
Este pensamento em parte pode ser considerado correto, pois o nemo
tenetur se detegere tem aplicação ampla no direito brasileiro, por ele o acusado
pode fazer uso da prerrogativa de se escusar em colaborar com a produção de
qualquer prova. No entanto, o princípio do contraditório31 visa garantir que as partes
participem do processo em condições igualitárias, assim, ao fazer uso do nemo
tenetur se detegere, o acusado está utilizando um direito que lhe foi conferido
visando evitar abusos por parte do Estado,
que por criar e aplicar as leis se
encontra em situação superior ao acusado.
O nemo tenetur se detegere, como fundamento de recusa para
autorização, participação ou colaboração na produção de provas, pode até ser
limitado, mas jamais suprimido ou o acusado se encontrará desprotegido em face
do Estado.
Carlos Henrique Borlido Haddad, propõe que o nemo tenetur se detegere
pode ser invocado sempre que for exigido do acusado uma colaboração ativa, sendo
este direito afastado quando lhe for requerido apenas uma sujeição passiva, onde
não será necessário que o acusado aja, mas apenas tolere a ação de agentes
estatais.
30
ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. A garantia de não auto- incriminação: extensão e limites.
Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 47.
31
“Também denominado princípio da audiência bilateral, é o princípio pelo qual o juiz não deverá
decidir sem ouvir ambas as partes. Dar ao réu, no processo, oportunidade de se defender é premissa
fundamental do Estado de Direito, prevista em todas as Constituições democráticas”. ACQUAVIVA,
Marcus Cláudio. Dicionário jurídico brasileiro acquaviva. 13. ed. São Paulo: Editora jurídica
brasileira, 2006, p. 678.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
O referido autor sustenta que na produção da prova decorrente de ato
comissivo, prevalece ao acusado o direito de não ser obrigado a se auto-incriminar,
contudo este princípio é inaplicável no que tange as condutas omissivas, e aposta
que a extensão do nemo tenetur se detegere decorre da falta de previsão legal para
a colaboração do acusado, sendo então necessário que haja lei regulando os limites
a serem impostos ao nemo tenetur se detegere a fim de se evitar abusos e garantir a
validade da prova.32
Parece-nos acertada as observações realizadas por Haddad quanto à
participação ativa ou passiva do acusado, pois quando se trata de um agir ativo, que
somente depende do acusado, não há como obrigá-lo a realizar o procedimento,
como por exemplo, o que ocorre com o etilômetro ou bafômetro, em que não há
como obrigar a pessoa a assoprá-lo quando a mesma se recusa. Porém, quando ao
acusado recai somente um agir passivo, que implique em mera tolerância e desde
que a prova não fira sua dignidade humana ou implique em risco a sua saúde ou
vida, poderá ele suportar sua produção.
Haddad considera ainda, que a limitação imposta ao princípio nemo
tenetur se detegere deverá ser feita por lei, o que se assemelha a tese defendida por
Maria Elizabeth Queijo, que pressupõe que, devido ao nemo tenetur se detegere ser
um direito fundamental, ele só poderá ser restringido por lei anterior ao ato que o
limita para realização de uma prova, adequando-se assim ao princípio da legalidade
e anterioridade:
O diploma legal que vier a estabelecer as limitações ao nemo tenetur se
detegere deverá atender ao princípio da legalidade. Deverão tais limitações
ser impostas por lei estrita e prévia. Portanto, deverão ser elas de caráter
geral e abstrato, claras e objetivas, não contendo indeterminações. Vedamse, assim, as restrições casuísticas a direitos fundamentais. Além disso,
deverá a lei respeitar o princípio da anterioridade, para maior proteção da
33
segurança jurídica e da liberdade.
De acordo com a autora, a aludida lei deve ser submetida a controle
jurisdicional, que diante do caso concreto deverá analisar se é cabível o princípio da
proporcionalidade. A mesma ainda frisa que em se tratando de intervenções
32
HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Conteúdos e contornos do princípio contra a autoincriminação. Campinas: Bookseller, 2005, p. 75-84
33
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo
tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 356-357.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
corporais, o controle deverá ser prévio, não podendo o Ministério Público requerer a
produção de tais provas.34
Para Maria Elizabeth Queijo:
Cuidando-se de restrição a direito fundamental, como é o nemo tenetur se
detegere, operada no plano do processo penal, as limitações a ele deverão
operar-se, necessariamente, por lei, que deverá observar o princípio da
proporcionalidade, para que não haja inconstitucionalidade, tendo-se em
vista que tanto o nemo tenetur se detegere como o princípio da
proporcionalidade têm status de norma constitucional. Desse modo, evitamse atuações arbitrárias por parte do Estado. As restrições ao nemo tenetur
se detegere, que repercutem diretamente sobre a liberdade de
autodeterminação do acusado, não poderão ser determinadas
35
casuisticamente pelo julgador.
E observa que a restrição ao nemo tenetur se detegere deverá ser
indispensável, sendo a medida aplicada a menos gravosa possível ao acusado, de
modo que quanto maior for a restrição ao nemo tenetur se detegere, maior deverá
ser a gravidade do crime, com maiores indícios de ser o acusado autor do crime ou
deste ter participado.36
Maria Elizabeth Queijo realiza também uma divisão entre a intervenção
corporal invasiva e a não invasiva, dizendo que, recaindo a restrição ao
nemo
tenetur se detegere em intervenções corporais invasivas, essencial se faz que o
acusado consinta previamente sua realização, porém, se a medida colocar em risco
sua saúde ou vida, mesmo com o consentimento do acusado ela não deverá ser
realizada. Já em se tratando de intervenções corporais não invasivas, a prova
poderá ser realizada mesmo sem o consentimento do acusado, desde que não seja
necessária uma cooperação ativa deste.37
Acreditamos que as ponderações realizadas pela autora estão corretas. O
nemo tenetur se detegere é um direito fundamental, assim o mesmo só poderá ser
limitado por lei, que não deve conter um rol taxativo, pois
somente algumas
intervenções corporais são previstas por lei e na medida que a tecnologia avança
34
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo
tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 357.
35
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo
tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 356.
36
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo
tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 361.
37
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo
tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 361-364.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
mais meios de provas vão surgindo, tornando-se impossível a legislação
acompanhar esta evolução.
O princípio da proporcionalidade também deve ser aplicado, para que
diante do caso concreto se avalie se compensa restringir um direito fundamental do
acusado, que não está obrigado a produzir provas contra si mesmo, em detrimento
do interesse coletivo, em ver restabelecida a segurança pública e a paz social,
aplicando-se a lógica prevista para admissibilidade de provas consideradas ilícitas.
Concordamos também que deverá ser feito um controle jurisdicional,
cabendo ao magistrado avaliar a aplicação do princípio da proporcionalidade ao
caso concreto, verificando se estão presentes seus subprincípios (pertinência ou
adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), entretanto, não
podemos aceitar a divisão realizada pela autora com relação às intervenções
corporais invasivas e não-invasivas.
Pensamos que independente da intervenção corporal ser realizada
interna ou externamente ao corpo do acusado, dispensável será o seu
consentimento, pois se for necessária a sua autorização para que se produza uma
prova que demande intervenção corporal, não se justifica limitar o nemo tenetur se
detegere, já que este é o procedimento realizado atualmente. O que se deve
proteger são a dignidade humana, a saúde e a vida da pessoa.
Se a intervenção corporal, seja ela invasiva ou não, for segura e não
oferecer riscos poderá ser realizada, independente de autorização, aplicando-se o
mesmo quando a intervenção corporal é medida necessária para salvar a vida do
acusado, como por exemplo, nos casos de ingestão de saquetas contendo drogas
para transporte entre países, que quando não expulsas do organismo por meios
naturais ou farmacológicos, necessitam de extração por via endoscópica ou
cirúrgica, para salvaguardar o acusado.
A tese defendida por Maria Elizabeth Queijo não explica a quem caberá
requisitar a restrição ao nemo tenetur se detegere.
Nesta seara, Joel Tovil leciona que “o interesse privado jamais deve ficar
acima do interesse público, mas ao lado dele, no mesmo patamar, equilibrando-se
ambos como os pratos da balança que simboliza a justiça”38, assim é necessário
38
TOVIL, Joel. A proteção contra a auto- acusação compulsória aplicada à persecução penal.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 21, dez/jan. 2008.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
aplicar na incidência do nemo tenetur se detegere sobre as provas que demandam
intervenções corporais, o mesmo raciocínio que em alguns casos admite
excepcionalmente no processo às provas ilícitas, ou seja, o acusado, via decisão
judicial fundamentada poderá ser compelido a colaborar na produção de provas.
Segundo o autor,
(...) a parte interessada pode fundamentadamente requerer ao juiz, em sede
cautelar inominada, que restrinja este direito, assim como pode fazê-lo
relativamente ao direito à liberdade, também passível de mitigação, via
39
decretação da prisão provisória, em caso de absoluta necessidade.
Ressalta-se que o Código de Processo Penal não traz nenhuma vedação
quanto à aplicação das cautelares inominadas em sede criminal, sendo elas então
permitidas, devido ao referido diploma legal admitir interpretação extensiva e
aplicação analógica de outros dispositivos legais, conforme expresso em seu artigo
3°40.
A respeito das medidas cautelares, Humberto Theodoro Júnior vaticina:
Ao regular o poder cautelar do juiz, a lei, segundo a experiência da vida e a
tradição do direito, prevê várias providências preventivas, definindo-as e
atribuindo-lhes objetivos e procedimentos especiais. A essas medidas
atribui-se a denominação medidas cautelares “típicas” ou “nominadas”. Mas
a função cautelar não fica restrita ás providencias típicas, porque o intuito
da lei é assegurar meio de coibir qualquer situação de perigo que possa
comprometer a eficácia e utilidade do processo principal. Daí existir,
também, a previsão de que caberá ao juiz determinar outras medidas
provisórias, além das específicas, desde que julgadas adequadas, sempre
que houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide,
cause ao direito da outra lesão de grave e difícil reparação (CPC, art.798).
Esse poder de criar providências de segurança, fora dos casos típicos já
arrolados pelo Código, recebe, doutrinariamente, o nome de “poder geral de
41
cautela .
E aponta como requisitos da mesma que haja:
39
TOVIL, Joel. A proteção contra a auto- acusação compulsória aplicada à persecução penal.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 21, dez/jan. 2008.
40
“Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o
suplemento dos princípios gerais de direito”.
41
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Processo de Execução e
Cumprimento da Sentença, Processo Cautelar e Tutela de Urgência. Volume II. 43ª Edição. Rio de
Janeiro: Forense, 2008, p. 507.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
a) um interesse em jogo num processo principal (direito plausível ou fumus
boni iuris); b) fundado receio de dano, que há de ser grave e de difícil
reparação, e que se tema possa ocorrer antes da solução definitiva da lide,
42
a ser encontrada no processo principal (periculum in mora) .
O fumus boni iuris ou fumaça do bom direito está presente, quando a
parte ao exercer seu direito de ação, demonstra a possibilidade do mérito lhe ser
favorável, a partir dos elementos disponíveis no momento, e o periculum in mora ou
perigo da demora, diz respeito à demonstração dos riscos que a natural demora do
acertamento do direito das partes poderá acarretar a tutela definitiva, ou seja, a
sentença futura.43
Neste raciocínio, Joel Tovil aponta alguns exemplos em que a restrição
ao princípio nemo tenetur se detegere deveria ser admitida:
A pequena intervenção no corpo do investigado pouco afeta sua dignidade
e privacidade, sendo que esta restrição de direitos está plenamente
justificada diante do bem maior interesse público na apuração do hediondo
crime cometido, que ceifou a vida e violou a liberdade sexual de outra
pessoa. Da mesma forma, não é irrazoável que as autoridades policiais,
munidas de mandado, procedam a radiografias ou mesmo a uma lavagem
intestinal, via aplicação de enema, em pessoa suspeita de transportar
drogas previamente ingeridas, até porque nestes casos a intervenção pode
mesmo salvar a vida delas, vez que muitas morrem em razão do
rompimento dos invólucros que embalam o entorpecente abrigado em seus
44
corpos.
Verifica-se então, que as considerações de Joel Tovil complementam o
pensamento de Maria Elizabeth Queijo, podendo a parte interessada, seja ela um
particular ou o Ministério Público, requerer ao juiz, por meio de medida cautelar, que
limite o princípio nemo tenetur se detegere para que uma prova essencial ao
processo seja produzida.
Acreditamos, porém, que o Juiz poderá de ofício restringir o nemo tenetur
se detegere quando verificar que uma prova que demande intervenção corporal é
fundamental para se comprovar a autoria ou participação e a materialidade de um
42
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Processo de Execução e
Cumprimento da Sentença, Processo Cautelar e Tutela de Urgência. Volume II. 43ª Edição. Rio de
Janeiro: Forense, 2008, p. 508.
43
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Processo de Execução e
Cumprimento da Sentença, Processo Cautelar e Tutela de Urgência. Volume II. 43ª Edição. Rio de
Janeiro: Forense, 2008, p. 503.
44
TOVIL, Joel. A proteção contra a auto- acusação compulsória aplicada à persecução penal.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 21, dez/jan. 2008.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
crime, sempre visando o respeito ao sentido do princípio da dignidade da pessoa
humana e o resguardo a saúde e a vida do acusado.
CONCLUSÃO
Todas as considerações aqui colacionadas, embora discorram sobre o
posicionamento de autores, estudiosos do tema sob análise, quanto a forma de
limitar o princípio do nemo tenetur se detegere, não tratam da questão referente à
como obrigar o acusado a cooperar com a produção de provas que demandam
intervenção corporal e que podem acarretar em sua incriminação.
Para obrigar as pessoas a seguirem o que está previsto em lei, o Estado
aplica sanções. Neste sentido, acreditamos que para obrigar alguém a submeter-se
a provas que demandam intervenções corporais, sejam elas invasivas ou não,
necessitando de um comportamento ativo da pessoa ou apenas que esta tolere
passivamente o procedimento, será necessário fazer uso de coerção, imposição de
multas e imputação de crime de desobediência.
Aplicar multas e imputar crime de desobediência a quem se negue a
colaborar com a produção de provas que necessitam de ingerência corporal não
resolve o problema da limitação do princípio do nemo tenetur se detegere e nem
ajuda o Estado a solucionar os crimes.
A coerção faz com que o acusado se torne objeto do processo ao ser
obrigado a submeter-se a algo que voluntariamente não aceitaria, o que pode ser
comparado as torturas praticadas em períodos medievais e totalitários.
Talvez este seja o motivo pelo qual o princípio do nemo tenetur se
detegere não tenha até hoje sofrido limitações, sendo aplicado de forma ampla e
irrestrita as mais diversas situações e principalmente nos casos que implicam na
produção de provas que demandam intervenção corporal.
Entretanto, resta evidenciado a necessidade de reformulação do princípio
do nemo tenetur se detegere, com previsão expressa em lei de sua dimensão e
abrangência, para que se confirme sua essência, sem que haja prejuízos para a
produção de provas que demandam intervenções corporais, que só têm a contribuir
com o direito penal.
Revista Pensar Direito, v.6, n. 2, Jul./2015
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