figurações do duplo em dois irmãos, de milton hatoum

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figurações do duplo em dois irmãos, de milton hatoum
AMBIVALÊNCIAS DO SUJEITO: FIGURAÇÕES DO DUPLO
EM DOIS IRMÃOS, DE MILTON HATOUM
Mariana Jantsch de Souza*
ABSTRACT: Starting from the philosophical perspective of Clement Rosset, the issue of dual
"implies in itself a paradox: to be both itself and others." ". Following this path, the
investigation of the implications by double of Hatoum's novel points to reflections of nature
identity as alert Ana Maria Lisboa de Mello. Given this theoretical framework, this paper
presents a reading of the novel Dois irmãos (2000), Milton Hatoum. The narrative is
anchored in a set of duplicates that it discusses the relationship between the Self and the
Other and the tensions caused by contact with otherness, showing that this part of the subject.
The relationship with others in the narrative is marked by antagonism and duplicate images
by twins Omar and Yaqub - the most frequent forms of figuration of the double.
KEYWORDS: Double, Ambivalences, Dois irmãos.
RESUMO: Partindo da perspectiva filosófica de Clement Rosset, a questão do duplo
“implica nela mesma um paradoxo: ser ao mesmo tempo ela própria e outra”. Seguindo por
este caminho, a investigação das implicações do duplo no romance de Hatoum aponta para
reflexões de cunho identitário, como alerta Ana Maria Lisboa de Mello. Levando em conta
este aporte teórico, o presente artigo apresenta uma leitura do romance Dois irmãos (2000),
de Milton Hatoum. A narrativa ancora-se em um jogo de duplicidades que põe em discussão
a relação entre o Eu e o Outro e as tensões decorrentes do contato com a alteridade,
mostrando que esta faz parte do sujeito. A relação com o outro na narrativa é marcada pelo
antagonismo e pelas imagens duplicadas dos gêmeos Yaqub e Omar - as formas mais
freqüentes de figuração do duplo.
PALAVRAS-CHAVE: Duplo, Ambivalências, Dois irmãos.
*
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – Literatura Comparada, da Universidade Federal de
Pelotas - UFPel. Orientada pelo Prof. Dr. Alfeu Sparemberger. Integrante do projeto de pesquisa Estudos
Comparados de Literatura, Cultura e História, sob a coordenação do Prof. Dr. Aulus Mandagará Martins.
Bolsista CAPES. O duplo na literatura: breves considerações teóricas
Esta comunicação encontra fontes teóricas na obra de Clement Rosset e nas
considerações de Ana Maria Lisboa de Mello acerca do tema do duplo.
A questão em discussão envolve a imagem e o confronto do Eu e do Outro, está
relacionada à duplicação do Eu, ao seu desdobramento. A representação mais antiga/clássica
da imagem desdobrada do sujeito é a duplicação gêmea: os irmãos gêmeos.
A ideia do duplo, portanto, atrela-se primordialmente à imagem, à imagem duplicada,
à imagem especular. Para a professora Ana Maria Lisboa de Mello “toda a antítese, toda a
cisão, toda fusão, todo o fenômeno especular inscrevem-se no duplo, o qual está na origem de
tudo, já que o próprio Deus, consciência absoluta, cria o mundo para nele se refletir” (2007, p.
229).
Clement Rosset, na obra O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão, trata a questão a
partir de uma perspectiva filosófica que remonta explicitamente a Nietzsche, considerando o
duplo como rejeição do real. Neste sentido, “o real só é admitido sob certas condições e
apenas até certo ponto: se ele abusa e mostra-se desagradável, a tolerância é suspensa”
(ROSSET, 2008, p. 14). A noção de duplo “implica nela mesma um paradoxo: ser ao mesmo
tempo ela própria e outra” (Idem, p. 24). Para o autor, o duplo se enquadra numa espécie de
ilusão, pois o real é visto pelo sujeito, mas de modo duplicado: “Na ilusão, quer dizer, na
forma mais corrente de afastamento do real, não se observa uma recusa de percepção
propriamente dita. Nela a coisa não é negada: mas apenas deslocada, colocada em outro lugar.
Mas no que concerne à aptidão de ver, o iludido vê a sua maneira” (Idem, p. 17).
Com isso, Clement relaciona o duplo com a percepção, com a visualização de uma
imagem, pois ao considerar o duplo como espécie de ilusão [relacionada a forma de ver o
mundo exterior: vez que o iludido vê o mundo de forma cindida, “a percepção do iludido é
como que cindida em dois” (p. 17)], retorna a ideia de duplo como uma imagem desdobrada,
que não se pode saber qual é a imagem real e qual é apenas um desdobramento. Sendo assim,
partindo das considerações de Rosset, o duplo pode ser visto como recusa da diferença,
rejeição do real que se opõe ao sujeito. É deste aspecto do duplo que surge o conflito que
envolve a questão.
Na literatura o duplo, não raro, é retratado por meio de algum conflito entre
personagens rivais ou por um conflito interno em que se desdobra a personagem. Para a
professora Ana Maria a literatura é um dos principais âmbitos no qual o tema é retratado com
profundidade
a literatura tem uma vocação especial para tematizar o duplo, já que no ato de criar o
autor se desdobra em narrador e, através de seus heróis, libera partes aprisionadas
em si mesmo, que estão sob a máscara de um Eu particular, fixo no molde da
personalidade. O imaginário do duplo enseja a liberação de medos e angustias
reprimidos, dá vazão a sonhos de habitar espaços e tempos fantásticos, escapando à
rotina sufocante do cotidiano. [...] Enfim, é na alteridade, revelada nas diferentes
situações, que o Eu descobre faces inusitadas de si mesmo (MELLO, 2000, p. 123).
Ana Maria esclarece que o duplo pode encarnar o bem ou o mal, o complemento ou o
avesso, pode ser representado por um rival ou ser projetado no pai ou em um irmão (2007, p.
229). Reafirmando a ligação do duplo com a percepção, a autora diz que o duplo pode surgir
como o resultado de um fenômeno em que a visão está em jogo. Neste caso, o duplo pode ser
uma imagem refletida, a projeção de uma sombra, ou alucinações. A alma, igualmente, pode
ser retratada como o duplo do corpo, por isso a separação entre esses elementos é fatal, pois
esse desdobramento faz com que o Eu se perca.
Levando em conta este aporte teórico, será desenvolvida, no presente artigo, uma
leitura do romance Dois irmãos (2000), de Milton Hatoum. A narrativa está ancorada num
jogo de duplicidades que discute a relação entre o Eu e o Outro e as tensões decorrentes do
contato com a alteridade, demonstrando que esta, em boa medida, atua sobre a conformação
do sujeito.
Como o duplo surge na narrativa de Hatoum?
Dois Irmãos apresenta a história de uma família de origem libanesa que vive na
Manaus dos anos 20. O foco da narrativa está nos filhos gêmeos do casal Halim e Zana:
Yaqub e Omar. Pela voz do mestiço bastardo Nael, filho da empregada/escrava da casa com
um dos homens da família de Zana, a história dos libaneses de Manaus ganha forma. Porém, a
narração de Nael mostra-se como uma tentativa de desvelar sua origem, descobrir qual desses
homens o atrela à família libanesa. Para isso, o jovem percorre os trilhos das memórias
familiares, memórias suas e de outros, na intenção de recompor os resquícios da família que a
desavença dos gêmeos dispersou no passado:
Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as
origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados,
nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer
uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe
(HATOUM, 2006p. 54).
Dessa vez Halim parecia baqueado. Não bebeu, não queria falar. Contava esse e
aquele caso, dos gêmeos, de sua vida, de Zana, e eu juntava os cacos dispersos,
tentando recompor a tela do passado. Certas coisas a gente não deve contar a
ninguém”, disse ele, mirando nos meus olhos. Relutou, insistiu no silêncio. Mas para
quem ia desabafar? Eu era o seu confidente, bem ou mal era um membro da família,
o neto de Halim (HATOUM, 2006, p. 101, grifo nosso). Enriquece a trama a personalidade de uma matriarca dominadora e extremamente
amorosa com o chamado caçula de sua prole, Omar. Em contrapartida, há um pai passivo e
permissivo diante da esposa, que omite seus desgostos e desagrados com relação à postura da
matriarca para sempre atender suas vontades.
Desde a infância dos meninos a dissonância de tratamento entre o primogênito e o
Caçula é ressaltada na narrativa. A mãe sempre pronta a oferecer algum privilégio ao seu
Caçula e o pai as voltas tentando instalar a igualdade entre os filhos. Um dos eventos mais
marcantes e que instaura definitivamente a desavença e o desamor entre os irmãos é a briga
pela namoradinha de infância, Lívia, que resultou em um corte no rosto de Yaqub, cuja
cicatriz eternizaria o episódio e a discórdia, pondo à flor da pele todas as diferenças. Após
esse acontecimento, com a intenção de resolver o conflito entre os filhos e dissolver qualquer
desavença, Halim decide mandar os dois para o sul do Líbano, para tornarem-se irmão de
verdade. Porém, “Zana relutou, e conseguiu persuadir o marido a mandar apenas Yaqub”
(HATOUM, 2006, p. 12). Foi assim que aos treze anos os gêmeos foram separados por cinco
anos e Yaqub foi exilado da família sem saber por que.
Yaqub é o filho preterido, desdenhado por Zana, enquanto Omar é o filho
privilegiado, mimado pela mãe. São estes mimos que iniciam a degradação familiar. Primeiro,
é a relação de Halim com Zana que sofre com os mimos excessivos entre a esposa e o Caçula:
“convencido de que o nascimento dos filhos havia interferido em suas noites de amor tanto
quanto a morte de Galib. [...] Omar era o mais ousado: entrava no quarto dos pais durante a
sesta e dava cambalhotas na cama até expulsar Halim” (HATOUM, 2006, p. 51-2).
Depois, a relação de Zana com Yaqub, que não consegue manter uma relação íntima
e afetuosa com ela, pois Omar exige atenção e carinho exclusivos da mãe, age como se fosse
o único homem na vida dela, sem deixar espaço para o pai e para o irmão:
Omar se dirigiu à mãe, abriu os braços para ela, como se fosse ele o filho ausente, e
ela o recebeu com uma efusão que parecia contrariar a homenagem a Yaqub.
Ficaram juntos, os braços dela enroscados no pescoço do Caçula, ambos entregues a
uma cumplicidade que provocou ciúmes em Yaqub e inquietação em Halim
(HATOUM, 2006, p. 19).
Zana se dedicava quase exclusivamente ao Caçula, enquanto Domingas ficava com
Yaqub, e Halim sobrava. O nascimento dos filhos interferiu negativamente na vida amorosa
de Halim e Zana e o patriarca tinha consciência disso, por isso nunca quis filhos. Omar
sempre dava um jeito de se por no meio do casal e à frente dos irmãos: se impunha sempre
como o único e Zana permitia.
Os gêmeos eram absolutamente iguais, os anos de separação não foram capazes de
amenizar tamanha semelhança: “Agora ele [Yaqub] estava de volta: um rapaz tão vistoso e
alto quanto o outro filho, o Caçula. Tinham o mesmo rosto anguloso, os mesmos olhos
castanhos e graúdos, o mesmo cabelo ondulado e preto, a mesmíssima altura.” (HATOUM,
2006, p. 13).
No entanto, ao longo da narrativa, as diferenças entre os gêmeos são apresentadas e
Yaqub e Omar são revelados como adversários um do outro, sempre em polos opostos:
Quando chovia, os dois trepavam na seringueira do quintal da casa, e o Caçula
trepava mais alto, se arriscava, mangava do irmão, que se equilibrava no meio da
árvore, escondido na folhagem, agarrado ao galho mais grosso, tremendo de
medo, temendo perder o equilíbrio. A voz de Omar, o Caçula: “Daqui de cima eu
posso enxergar tudo, sobe, sobe.” Yaqub não se mexia, nem olhava para o alto:
descia com gestos meticulosos e esperava o irmão, sempre o esperava, não gostava
de ser repreendido sozinho (HATOUM, 2006, p. 14, grifo nosso).
O andar era o mesmo: passos rápidos e firmes que davam ao corpo um senso de
equilíbrio e uma rigidez impensável no andar do outro filho, o Caçula
(HATOUM, 2006, p. 11, grifo nosso).
Já Omar era presente demais: seu corpo estava ali, dormindo no alpendre. O corpo
participava de um jogo entre a inércia da ressaca e a euforia da farra noturna.
Durante a manhã, ele se esquecia do mundo, era um ser imóvel, embrulhado na
rede. No começo da tarde, rugia, faminto, bon-vivant em tempo de penúria
(HATOUM, 2006, p. 46, grifo nosso).
Omar e Yaqub se completam, o que falta em um há no outro, são como duplos
complementares: Omar é corajoso, destemido, mulherengo, espaçoso, sem talento para os
estudos, mas com talento de sobra para aproveitar a vida e gozar todos prazeres mundanos;
enquanto Yaqub é inteligente, tímido, comedido, sério, galanteador, esforçado e bem
sucedido. Omar é o selvagem que habita a rede da varanda e vive o conforto da casa, que se
comunica por grunhidos com as mulheres da família. Yaqub é a imagem do sucesso, é o galã
fardado, o engenheiro inteligente e promissor que vive na cidade grande.
Os gêmeos, portanto, estão envoltos em uma ambiguidade nas lembranças do
narrador, ainda que a distinção das personalidades seja feita de maneira definida, as imagens
mesclam-se e os traços opostos complementam-se. Ao final, esta ambiguidade se resolve e o
narrador entende quem é quem nesta teia de imagens duplicadas formada pelos gêmeos.
Inicialmente, Yaqub é apresentado como detentor de boas qualidades, sem qualquer defeito,
enquanto Omar é retratado como um ser pequeno, fraco e sem caráter. Yaqub é melhor em
tudo, melhor como pessoa, é o preferido de Nael, enquanto Omar é o preferido de Zana.
Sendo assim, a partir de um maniqueísmo extremo, o conflito dos gêmeos constrói-se no
discurso de Nael à semelhança da história de Esaú e Jacó - da narrativa bíblica e também da
narrativa machadiana:
Era o mais silencioso da casa e da rua, reticente ao extremo. Nesse gêmeo
lacônico, carente de prosa, crescia um matemático. O que lhe faltava no manejo do
idioma sobrava-lhe no poder de abstrair, calcular, operar com números. [...] O
matemático, e também o rapaz altivo e circunspecto que não dava bola para
ninguém; o enxadrista que no sexto lance decidia a partida. [...] Que noites, que
nada! Ele [Yaqub] desprezava, altivo e sua solidão, os bailes carnavalescos, [...]
Trancava-se no quarto, o egoísta radical, e vivia o mundo dele, e de ninguém mais
(HATOUM, 2006, p. 25, grifo nosso).
O outro, o Caçula, exagerava as audácias juvenis: gazeava lições de latim,
subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para a noite, fardado,
transgressor dos pés ao gogó, rondando os salões da Maloca dos Barés, do
Acapulco, do Cheik Clube, do Shangri-Lá (HATOUM, 2006, p. 26, grifo nosso).
Nael idealiza Yaqub ao longo de toda a narrativa, deixa clara sua preferência e
estima por esse gêmeo: “Durante anos, essa imagem do galã fardado me impressionou”
(HATOUM, 2006, p. 45). Também evidencia que gostaria que ele fosse seu pai, que gostaria
de descobrir no passado a tão esperada resposta e nela encontrar a imagem de Yaqub:
A imagem que faziam dele [Yaqub] era de um ser perfeito, ou de alguém que
buscava a perfeição. Pensei nisso: se for ele o meu pai, então sou filho de um
homem quase perfeito. [...] Eu o considerava um homem tenaz, respeitado em casa,
a ponto de ser elogiado pelo pai, que não sabia até onde o filho queria chegar. Certa
vez, Halim me disse que Yaqub era capaz de esconder tudo: um homem que não se
deixa expor, revestido de uma armadura sólida. De um filho assim, disse o pai,
pode-se esperar tudo. Omar, ao contrário, se expunha até as entranhas (Hatoum,
2006, p. 83, grifo nosso).
Esta postura assumida pelo narrador enfatiza o antagonismo dos irmãos, opondo
ainda mais os filhos de Zana. A duplicidade dos irmãos, portanto, é destacada pelo narrador,
que busca no passado argumentos para construir a imagem de Yaqub como o homem ideal,
como o pai ideal, enquanto monta a imagem de Omar como sendo exatamente o oposto: um
homem sem caráter e sem qualquer virtude.
Porém, ao fim de sua narração, Nael percebe que esta oposição entre os gêmeos não
é real. No percurso narrativo do jovem, a memória é o instrumento para reconstituir o passado
familiar e remontar as imagens do passado, principalmente as imagens dos gêmeos. É na
tentativa de reconstruir essas imagens e dar-lhes forma por meio do discurso que Nael
entendo que Yaqub é igual a Omar e vice e versa. Os gêmeos têm os mesmos defeitos, a
mesma personalidade vingativa e os olhos guiados pelo mesmo conflito e cada um, a sua
maneira, não mede as consequências
Mas bem antes de sua [Yaqub] morte, há uns cinco ou seis anos, a vontade de me
distanciar dos dois irmãos foi muito mais forte do que essas lembranças. A loucura
da paixão de Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo e contra todos neste
mundo não foram menos danosas do que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez
de sua ambição calculada (HATOUM, 2006, p. 196).
Percebe-se, então, que a narrativa está ancorada num jogo de duplicidades que discute
a relação entre o Eu e o Outro e as tensões decorrentes do contato com a alteridade,
demonstrando que esta, em boa medida, atua sobre a conformação do sujeito. A relação com o
outro, na narrativa, é marcada pelo antagonismo e pelas imagens duplicadas dos gêmeos
Yacub e Omar, caracterizadoras das formas mais freqüentes de figuração do duplo. Tal
fenômeno, no contexto de miscigenação de culturas e etnias presentes na narrativa, revela as
tensões do eu, as dicotomias, os antagonismos e as ambivalências que constituem o sujeito.
Sendo assim, a partir dessa zona conflituosa de desdobramentos, a alteridade revela-se como
suporte constituinte do sujeito, sendo este o cerne dos conflitos de Dois irmãos.
Seguindo este caminho, a investigação das implicações do duplo no romance de
Milton Hatoum aponta para reflexões de cunho identitário, como alerta Ana Maria Lisboa de
Mello: “através do tema do duplo, dos irmãos rivais, o romance suscita um debate cultural
sobre a compreensão do Outro e a capacidade de conviver com as diferenças” (2007, p. 232).
Sendo assim, no contexto da narrativa de Hatoum, a ideia de duplo como recusa do
real (conforme defendida por Rosset) pode ser lida como recusa da diferença: pois, com
relação aos gêmeos, ainda que um seja a réplica/ imagem especular do outro, as diferenças são
radicais e todos os conflitos da família têm origem na não aceitação dessa diferença. A
semelhança física entre os gêmeos sugere igualdade absoluta e assim maquia ou impede que
sejam percebidas as diferenças, dificultando a relação e a aceitação das diferenças.
Dessa forma, o duplo em Dois irmãos apresenta relação estreita com as questões
identitárias. Os gêmeos são como réplicas um do outro, como o desdobramento do outro e por
isso é difícil perceber a individualidade de cada um e as diferenças que os separam. Com isso,
as identidades de cada um não são efetivamente construídas, pois a imagem e a presença
duplicada do outro está sempre às voltas, impedindo que cada um se construa independente do
reflexo do outro. A chave dos conflitos da narrativa está nessa imagem duplicada que os
gêmeos representam, a qual não permite que as identidades de Yaqub e Omar se consolidem
como únicas uma diante da outra. Para resolver os conflitos da narrativa é preciso separar um
do outro, desligá-los, romper com a fusão das imagens, vez que a relação conflituosa dos
filhos de Zana centra-se na duplicidade. A semelhança física dissimula as diferenças e impede
que se enxergue o outro, que se enxergue Yaqub e Omar individualmente, desligados do
fenômeno especular.
Outro aspecto evidenciado na história dos irmãos é a rivalidade, também decorrente do
fenômeno especular: fisicamente Yaqub e Omar são os mesmos e da tentativa de estabelecer
suas diferenças e a partir delas construir identidades próprias e desvinculadas da imagem do
outro surge a rivalidade fatal entre eles. Então, ao mesmo tempo em que é difícil lidar com as
diferenças, é necessário enfrenta-las para delimitar as fronteiras entre o Eu e o Outro e
construir identidades individuais.
Ana Maria Lisboa de Mello destaca que a figura do rival é outra forma de
configuração do duplo, daí o antagonismo que a duplicidade evoca/provoca, o qual é retratado
ao extremo no romance de Hatoum. No caso dos irmãos, o duplo é percebido como um outro,
como o diferente e a não aceitação da diferença produz a rivalidade.
Considerações finais
A narrativa que se constrói a partir da busca por um pai: um dos gêmeos. O jovem
Nael narra a história de um pai que se mostra como dois: o ideal de filho e o ideal de
perfeição de caráter, pois ora a figura do pai é encarnada em Omar, ora transferida a Yaqub e
o dilema não tem fim. A dúvida suscitada por esse duplo não se resolve, porque o problema
com o outro é permanente. Essa dúvida que perpassa toda a narrativa enfatiza, então, a
problemática da relação com o outro e as tensões que a diferença produz, sinalizando que é
preciso conviver com ela, aceita-la, já que a diferença sempre vai estar ao lado.
De acordo com observação de Ana Maria Lisboa de Mello, o duplo em Dois Irmãos é
o é ponto a partir do qual são destacadas as desigualdades, as diferenças:
Através do tema do duplo, dos irmãos rivais, o romance suscita um debate cultural
sobre a compreensão do Outro e a capacidade de conviver com as diferenças; sobre
as desigualdades sociais que tornam o homem objeto de outro ser humano; sobre a
manipulação ideológica que veicula mentiras e forma o “pensamento único”,
impedindo a avaliação isenta do presente (MELLO, 2007, p. 232).
As duplicidades constantes na narrativa demonstram, portanto, as múltiplas faces do
eu e as ambivalências da identidade. Elas rejeitam qualquer tendência à unidade identitária.
Mais ainda: o romance de Milton Hatoum mostra que a estrutura do indivíduo é, por natureza,
paradoxal. O encontro com a alteridade, que nem sempre é amistoso, é determinante pelo que
contém de produtividade na constituição do indivíduo. Desta forma, o olhar comparatista
lançado sobre a obra de Milton Hatoum evidencia o outro como parte do mesmo, numa
inconteste aproximação que reforça esta nova configuração, demonstrando a importância que
a alteridade assume na narrativa.
Para fim, Ana Maria Mello explica que o duplo é tema recorrente na literatura por
tratar e retratar os temas mais inquietantes para o ser humano: a sua identidade e o seu
destino. Por isso, o duplo envolve questionamentos como “quem sou eu?” “quem é o outro?”.
“São indagações perenes do homem que se projetam na criação arquetípica de todos os
tempos” (MELLO, 2007, p. 234).
São estas indagações que guiam a narrativa de Nael, é o desejo de descobrir-se que faz
o jovem buscar no passado as raízes que o vincula a família libanesa e neste percurso surge o
duplo por meio dos irmãos Yaqub e Omar, os quais bifurcam a identidade do filho de
Domingas, mas independente do caminho que suas origens seguem o resultado é o mesmo, ou
seja, não importa se ele é filho de Omar ou Yaqub.
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