O inconsciente jacques andre – SITE 2
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O inconsciente jacques andre – SITE 2
O inconsciente, desespero da política Jacques André Agosto de 2014 Porto Alegre A promulgação da lei data de maio de 2012. Ela estabelece que toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua identidade de gênero. Esta é definida como a experiência interna e individual do gênero, do modo como é vivenciada por cada pessoa, podendo ou não corresponder ao sexo designado no momento de seu nascimento. Essa vivência pessoal inclui a eventual modificação da aparência e da função corporal não só por meios farmacológicos ou cirúrgicos, mas também pela maneira de vestir e falar. A lei autoriza qualquer pessoa a requerer a retificação do registro civil (sexo, nome e foto) quando este não corresponder à identidade de gênero autopercebida. Primazia legal do gênero sobre o sexo. Em caso algum, será exigido, para essa troca, o ato cirúrgico de uma redesignação genital total ou parcial, tampouco o recurso a terapias hormonais ou a um tratamento psicológico. Embora se refira aos adultos, a lei não exclui as crianças nem os adolescentes. A mesma troca pode ser realizada tão logo a criança expresse o desejo de fazê-lo, desde que esteja acompanhada pelos pais e por um advogado. A lei argentina segue o espírito da época, aquele que confere ao gênero sua autonomia e o liberta das amarras do sexo. É apenas a versão mais avançada de disposições legais que interpelam hoje todo o mundo ocidental. Os argentinos foram muitas vezes às ruas nos últimos anos, mas não para isso. Fora o protesto convencional da Igreja e protestos de alguns fiéis, a lei sobre a identidade de gênero foi aprovada sem empecilho. O inferno de ontem é o politicamente correto de hoje. Antes, para mudar de gênero era preciso mudar de língua: “O sol tem encontro com a lua...”, Die Sonne hat ein Stelldichein MIT dem Mond. O alemão, justamente, dispõe de uma riqueza a mais: o gênero neutro, Es, isso. Foi isso que permitiu que a lei alemã acrescentasse um capítulo à questão do gênero? Em Hamburgo e em outras localidades, os pais podem, hoje, fazer constar no registro de nascimento de seus filhos a indeterminação sexual da criança, nem menino nem menina. Não é tanto a preocupação de reconhecer um terceiro gênero, mas dar aos pais o direito da incerteza biológica e conceder-lhes um tempo psicológico e médico antes de decidirem. As peripécias mais recentes que dissociam sexo e gênero são inseparáveis da história mais antiga da sexualidade humana, ou até mesmo de sua pré-história. O homem, um primata, já tinha alguns milhões de anos quando tudo começou. Segundo os paleontólogos (de André Leroi-Gourhan a Jean-Paul Demoule1), isso deve provavelmente ter acontecido entre 500.000 e 100.000 anos atrás, afetando tanto o homem de Neandertal quanto o homo sapiens. A sexualidade humana adquiriu uma primeira liberdade, fundadora de todas as outras e porta aberta para o desconhecido, dissociando-se da finalidade instintual e reprodutiva. Como e por quê? Nossas perguntas de criança curiosa diante da cena primitiva da humanidade têm todas as chances de permanecer sem respostas. O que parece certo, contudo, é que o cérebro tem muito a ver com isso. É na cabeça que acontece. A história da hominização confunde-se com a da cerebralização. A conquista da posição ereta permitiu um desenvolvimento da massa cerebral sem outro equivalente no mundo animal. A emancipação 1 da sexualidade é provavelmente contemporânea da aquisição da linguagem articulada e da atividade simbólica que ela possibilita. Entre 500.000 e 100.000 anos, o homem, pela primeira vez, dá atenção aos mortos, destinando-lhes uma sepultura, e começa a copular por prazer, fora do período fértil, o qual se torna simplesmente, pelo menos do ponto de vista olfativo, o período da ovulação. Preocupar-se com os mortos ou copular em qualquer tempo e lugar não serve para nada, não é de utilidade alguma para a vida do indivíduo ou da espécie. Muitas cavernas foram habitadas tanto por ursos quanto pelo homem, podendo gerar até confusão dos restos. O que fornece ao paleontólogo a prova indiscutível de uma passagem do homem é a descoberta de um objeto inútil, como um sinal gravado numa pedra, por exemplo. A inutilidade é a honra do homem. Não existe sexualidade natural, nem contra a natureza. A sexualidade humana é des-naturada, e quando a natureza tenta voltar à tona, no momento da puberdade, é para tropeçar num terreno minado pelo infantil. Desnaturada não quer dizer desregulada, e sim aquilo que o instinto não controla mais, cabendo então à instituição, ao socius, encarregar-se disso. Não há sociedade que não trace suas linhas de demarcação entre o obrigado, o permitido e o proibido. Duas observações complementares para encerrar essa viagem no tempo. A liberdade conquistada pela sexualidade não deixa intacta a reprodução. Ela também sofre o golpe, pelo menos parcial, da inutilidade, a dos sistemas de parentesco, suas prescrições e proibições no plano social, a do desejo de ter filhos ou uma descendência no plano individual. Um desejo também submetido ao conflito psíquico, tão capaz de multiplicar a prole quanto causar esterilidade. A reprodução tornou-se simultaneamente simbólica e sexual; o enigma “de onde vêm as crianças?” é menos uma indagação da natureza do que da cena primitiva. Como assinala Maurice Godelier, um homem e uma mulher não são suficientes para gerar uma criança; se deus não participar da concepção, a criança não terá alma... e mesmo que deus esteja morto, nenhuma criança é concebida sem sua inserção numa ordem simbólica que contribui para gerá-la, tanto quanto o encontro dos gametas. Por uma curiosa ironia da história, hoje é entre os defensores mais radicais da ideologia do gênero, entre os mais culturalistas, os mais construtivistas, aqueles, portanto, para os quais é essencial dissociar reprodução e coito heterossexual, que o argumento genético, naturalista, tem a última palavra. Atribui-se a Beatriz Preciado, amazona catalã dos gender studies, a seguinte declaração: “A ideologia heterossexista faz da união sexo-política de um homem e uma mulher a condição de possibilidade da reprodução. Sob a defesa da heterossexualidade como única forma de reprodução natural esconde-se a confusão falaciosa entre reprodução sexual e prática sexual. A reprodução sexual humana é meiótica: a maior parte das células do nosso corpo é diploide, isto é, possui duas séries de 23 cromossomos. Inversamente, os espermatozoides e os óvulos são células haploides: têm um único jogo de 23 cromossomos. A reprodução sexual não exige a união nem sexual nem política de um homem com uma mulher: nem hetero nem homo, trata-se de um processo de recombinação do material genético de duas células haploides.”2 A segunda observação diz respeito à mulher. É em seu corpo que se separam o instintual e o sexual. Ela é a única fêmea mamífera que se presta ao ato sexual fora do período fértil. Nessa condição, ela parece ter-se tornado a representante por excelência do enigma (o que quer dizer sexual?) e, ao mesmo tempo, o corpo a controlar. A dominação masculina, por sua vez, também remonta à noite dos tempos, a política da sexualidade 2 Libération, 27 de setembro de 2013. tem a idade da sexualidade. Os primeiros documentos sobre o assunto, pinturas e esculturas com as quais nasce a figura, são, infelizmente, muito recentes, não datando de mais de 35.000 anos. O homem aparece aí como um motivo relativamente desprezado, enquanto a mulher é pintada ou esculpida; menos que uma mulher, ela não tem rosto. Em contrapartida, tem formas desmedidas, seios, nádegas e, sobretudo, vulva, sendo muitas vezes pintada sozinha; são representações da mulher ou de sua genitália, que, como observa Leroi-Gourhan, não correspondem à verdade anatômica, tanto quanto as mulheres de Picasso não poderiam servir para definir o tipo antropológico da francesa moderna3. Tudo acontece como se assim se configurasse, nessa desmedida, uma das possíveis traduções da diferença dos sexos, aquela que Tirésias celebrizará: existem dois sexos, um dos dois, o feminino, goza nove vezes mais que o outro no ato sexual. A mulher perdeu seu apetite sexual cíclico, ela o mantém o tempo todo. Na outra ponta da história, a história continua. É impossível dissociar os desafios políticos contemporâneos em relação ao questionamento sobre o gênero, de uma crítica, senão da própria diferença dos sexos (ainda que...), pelo menos de sua tradução em termos de dominação; uma dupla dominação, primeiramente a do privilégio atribuído à heterossexualidade, e depois a do homem no casal homem/ mulher. “Desnaturar a ordem sexual ao falar de gênero, não é tanto politizar o sexo, mas revelar abertamente o quanto ele sempre foi politizado”4. As grandes figuras dos gender studies, Monique Wittig, Gail Rubin, Catharine Mackinnon, Judith Butler são mulheres, feministas e lésbicas. Do mesmo modo que isso não é suficiente para determinar o alcance de seu discurso, não poderíamos ter essa comunidade como indiferente. A obra principal de Judith Butler, Gender Trouble, busca tanto os aborrecimentos e a discórdia (primeira acepção de trouble em 3 4 Leroi-Gourhan, op.cit. p.126. Éric Fassin (et V.Margron), Homme, femme, quelle différence ? Salvator, 2011, p.30-31. inglês) quanto embaralhar as distinções muito claras entre homem e mulher. Ela escreve: “o gênero deveria ser derrubado, abolido ou tornado inevitavelmente ambíguo porque sempre é sinal da subordinação das mulheres.”5 Uma declaração militante que ela mesma trata de nuançar por outro lado, assinalando que não se poderia construir ou desconstruir o gênero de forma voluntarista, não sendo ele um simples artifício a endossar ou a descartar à vontade. E a psicanálise em tudo isso? Freud e outros depois dele, que foram mais longe, acrescentam um capítulo decisivo ao que aconteceu certo dia na escuridão da caverna. Sem desvincular o sexual e o genital – o pênis e a vagina não são totalmente desconectados e sua conexão continua fazendo parte da vida sexual dos homens – a teoria psicanalítica do sexual relativiza o genital, o integra num vasto conjunto polimorfo que, do primeiro dedo do pé ao cabelo, não deixa de fora nenhum recôndito do corpo. É num tom quase ingênuo que Freud observa: “Do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que requer uma explicação, e não algo que seja óbvio.”6 Por que, afinal, a heterossexualidade? A descoberta da sexualidade infantil é mais aquela do infantilismo da sexualidade que da sexualidade da criança, contribuindo mais um pouco para a desnaturação; uma felação nunca alimentou a boca que a recebe, e se ela deve muito à amamentação é porque esta já não era muito honesta. Definir como “pré-genital” a sexualidade infantil é, em muitos aspectos, um mal-entendido e um modo de a psicanálise recuar diante do desconforto de sua própria descoberta. Em primeiro lugar, porque significa reservar ao “genital” um privilégio terminal a que muitas vidas sexuais de adultos não 5 6 J.Butler, Trouble dans le genre (1990), La découverte, 2005, p.34. Freud, Trois essais sur la théorie sxuelle, Gallimard, 1987, p.51. correspondem. Em segundo lugar, porque significa fazer do infantil o primeiro tempo de um desenvolvimento cuja forma acabada seria a sexualidade púbere. A sexualidade infantil não é uma sexualidade preliminar, embora as “preliminares” lhe devam tudo. Por fim, porque isso prejulga uma entrada tardia da genitalidade na cena sexual, mas nada é mais incerto. O que a mãe, a mesma que toma seu filho por “substituto de um objeto sexual por completo” (Freud), “introduz” na boca de seu bebê quando lhe dá o seio? Só os seus sonhos nos dizem. A anatomia imaginária é o destino. Por certo, da fantasia do adulto ao que se imprime no psicossoma da criança, a transferência foge a qualquer observação. Tudo na nossa experiência psicanalítica, no entanto, nos convida a crer em sua existência. Lucie é uma mulher jovem dividida pela bissexualidade de maneira quase paritária, sem que a democracia conte aí em alguma coisa. A confusão de gênero a que o mundo atual nos convida lhe permite viver um momento sexual ou uma relação amorosa tanto com um homem quanto com uma mulher. Ela é também bi no terreno das gerações, podendo amar tanto um homem ou uma mulher com idade próxima da de seus pais quanto um parceiro ou uma parceira de sua faixa etária. Como se, de certa forma, todas as possibilidades do leque edípico se mantivessem acessíveis a ela. A problemática da castração, no entanto, não lhe é estranha, embora nela não tome a forma do “tê-lo ou não tê-lo”, e sim do “por que um único sexo e não dois?”. A angústia de perda de amor tem papel decisivo na escolha a que ela acaba por se restringir: “Com um homem, virá inevitavelmente o momento em que ele procurará uma mulher mais jovem.” Depois de muitas peripécias sexuais e amorosas, Lucie estabeleceu então uma relação duradoura com uma mulher de sua idade. Muito rápido, ela fala a sua companheira sobre seu desejo de ter um filho. Segue-se então uma busca tortuosa do melhor caminho reprodutivo. Se pudesse concretizar seu desejo, teria pedido esse favor a um de seus amigos, “bonito e inteligente”. Esse caminho, porém, em fantasia, pareceu a Lucie e a sua companheira poder trazer muitos aborrecimentos futuros, a começar pela impossibilidade de controlar um sentimento de paternidade no homem em questão. As duas mulheres optaram, então, pela doação de gameta e pela reprodução assistida no exterior. O país foi escolhido por permitir a eventual revelação do anonimato do doador, senão um amigo, pelo menos um homem desconhecido. Tal empreitada é uma verdadeira peregrinação; Lucie fora informada do baixo índice de êxito, 30%. Ela engravida na primeira tentativa: a força da transferência poderia ter-se aplicado também à reprodução assistida? Ela deseja um menino, seu desejo é atendido, completando, de certa maneira, sua bissexualidade ao dar à luz a parte masculina dela mesma, mantendo à distância, ao mesmo tempo, sua angústia de um “excesso de mulher”. A escolha de falar de Lucie está diretamente ligada ao debate com os genders studies. À primeira vista, ela está prestes a realizar uma das fantasias organizadoras da teoria/ideologia do gênero: “o sonho que me parece mais atraente, escreve Gail Rubin, é o de uma sociedade andrógina e sem gênero (mas não sem sexo), em que a anatomia sexual nada tenha a ver com quem se é, com o que se faz, nem com quem se faz amor.” 7 É com uma mescla de espanto e humor que Lucie constata o modo como a divisão dos gêneros atinge a ela e sua companheira, justamente quando tudo na vida sexual e social delas indicava até então uma liberdade máxima em relação à atribuição cultural dos papéis. Ela se tornou a mulher grávida e a mãe que amamenta, deleitada (e angustiada) com um estado e com o outro. Mas é sua companheira que se revela a mãe-de-bebê mais investida, 7 Gayle S. Rubin, Judith Butler, Marché au sexe, EPEL, 2001. quando Lucie não esconde sua impaciência para retomar plenamente sua vida social intensa; é preciso trazer dinheiro para casa... A amplitude do campo antropológico envolvido faz perder qualquer esperança de abraçar todas as questões. Vou ater-me a uma única questão que deverá ser suficiente ao nosso trabalho: em que medida a indagação contemporânea sobre o gênero leva o psicanalista a repensar a diferença dos sexos e a relação desta com a bissexualidade? Bissexualidade e diferença dos sexos dizem respeito a todos nós, não uma ou a outra – o próprio binarismo faz parte do problema –, mas as duas. A reflexão sobre o modo como interagem deveria, portanto, poder ser concebida a partir de qualquer tratamento analítico, inclusive o do paciente mais heterossexual. Mas o mundo de hoje facilita a existência de vidas sexuais que, se não são novas, pelo menos concretizam e realizam mais facilmente o que antes permanecia contido pelo recalque no registro da fantasia. Penso, sobretudo, naqueles homens cuja escolha de objeto está principalmente voltada para a mulher, mas que se permitem algumas breves aventuras sexuais com outro homem. Será preferencialmente ao tratamento psicanalítico de mulheres ou de homens entre homossexualidade e bissexualidade que farei referência. Sob o título “gender studies”, encontramos, na verdade, uma proliferação de textos que torna vã a esperança de extrair uma argumentação homogênea. Privilegiarei a referência a Judith Butler tanto porque seu livro Gender trouble contribuiu muito para lançar o debate, como também porque ela não cessa de dialogar com a psicanálise, sendo interessante o que ela extrai desta e ao mesmo tempo o que recusa. Com exceção de Freud, os autores que ela convoca mais espontaneamente são Lacan, Laplanche, Shaeffer ou então Bollas. Sua ênfase na natureza performática do gênero encontra um ponto de apoio na concepção linguageira do inconsciente, em Lacan. O lugar que ela reserva à atribuição na construção do gênero (ou mesmo do sexo) encontra em Laplanche, no “primado do outro” e nas mensagens enigmáticas endereçadas à criança pelo adulto, uma confirmação de seu ponto de vista. Mas, sem dúvida, é entre os narrativistas, como Roy Shaeffer, que o empréstimo se aprofunda, através da ideia de que a história é uma narrativa, uma construção que pode eventualmente ser desfeita e reescrita: “o analisando é o historiador de sua própria vida”. O que ela extrai de Bollas, tudo o que toma o sentido de uma simetria transferência/ contratransferência, nos leva ao cerne da questão, aquela de uma “assimetria essencial na psicanálise”8 e nas psicossexualidades do homem e da mulher. “É uma menina! É um menino!”, a atribuição de gênero e a massa de representações que ela abarca – rosa/azul, boneca/ espingarda – já começa no primeiro enunciado. Um enunciado que não se contenta em registrar, mas também “performa”, faz advir o que é nomeado. O gênero é um efeito de linguagem. Inclusive, no exemplo extremo das sociedades que praticam o infanticídio das meninas, a primeira palavra pode até ser a última, duplamente performativa, produzindo a existência e sua destruição ao mesmo tempo. Daí a se voltar contra a linguagem... Monique Wittig foi provavelmente a primeira a contestar a pertinência de chamar de “menina” ou “menino” a criança que acaba de nascer9. Uma creche sueca (numa língua que dispõe de um pronome neutro, hen) fez disso sua regra. De maneira mais impressionante, certos pais canadenses, seguidos desde então por muitos outros, enviaram aos amigos uma participação de nascimento com os seguintes dizeres: “Anunciamos o nascimento de Storm.” O comunicado de tempestade é imediatamente seguido por uma declaração: “Não informamos qual é o sexo, para que a criança possa escolher mais 8 9 Título de um artigo de Pierre Fédida, NRP n°7, 1973. Citado por J.Butler, Humain, inhumain, Éditions Amsterdam, 2005, p.111. tarde.”10 A condensação/confusão entre sexo e gênero é aqui como uma epígrafe ao problema que se apresenta. O combate contra a língua, contra a política dos sexos a que a língua contribui de forma decisiva, não poupou a língua francesa, em que o abuso sexual reduz o neutro ao masculino. Será que a troca da palavra muda a coisa em si? O performativo, neste caso, vai ao encontro da crença: se a palavra faz ser, criemos então as palavras que mudam o mundo. Isso significa ignorar que a dominação masculina tem mais de um coelho na cartola. Um paciente, homem de letras, comenta as últimas novidades nos seguintes termos: “Em auteure [autora], a letra e permanece desesperadamente muda e, em écrivaine [escritora], a rima é infeliz.” O debate sobre o gênero nem sempre foge ao ridículo da cena conjugal, mas, ao contrário disso, o que define as reflexões de Judith Butler é uma extrema sutileza. O homem que exalta, por menos que seja, sua masculinidade ou a mulher que exagera, mesmo que sejam apenas uns cílios falsos, na sua feminilidade, não estariam revelando, tanto quanto a “louca” mais extravagante ou a butch mais absoluta, o jogo do gênero, o jogo no gênero? Em momento algum, Judith Butler assume por sua própria conta a noção proposta por Stoller de uma identidade de gênero, de tão suspeita que lhe parece ser a identidade. Se há uma verdade do travesti, é exibir a natureza imitativa do gênero. “Quando estou disfarçada de mulher, diz uma paciente lésbica numa notável condensação, fico uma gata.” Toda posição sexual exibida é uma comédia que deixa nos bastidores aquilo do que ela preza tanto em se distinguir. Se, de todas essas posições, a heterossexualidade é a mais cômica, é porque ignora ser apenas uma posição dentre outras e se toma pela norma. Se a heterossexualidade deve reelaborar-se, reproduzir-se ela mesma ritualmente em todo lugar, é 10 Entrevista com o pai de Storm no Toronto Star. justamente porque a natureza não a garante e ela precisa vencer o sentimento de sua própria fragilidade constitutiva. Como explicar tal fragilidade? “É, na verdade, uma maneira bastante curiosa de estar no mundo. Pois, afinal, como é que – Freud faz a mesma pergunta nos Três Ensaios – esse ser polimorfo, ou pelo menos bissexual, organiza sua sexualidade de maneira a concentrá-la exclusivamente nos membros do sexo oposto e ter com eles relações sexuais genitais?”11. “A heterossexualidade oferece posições sexuais normativas intrinsecamente impossíveis de encarnar, e o fracasso persistente em identificar-se plenamente e sem incoerência com essas posições revela a heterossexualidade não somente como uma lei obrigatória, mas também como uma comédia inevitável.” Uma comédia que eventualmente vira tragédia: por ser uma norma que traveste seu arbitrário instituindo-se como natureza (a ideia de uma “instituição natural”, no entanto, é uma contradição nos termos), a heterossexualidade é ainda mais violenta, por se tornar tão difícil resistir às suas injunções. Da crítica do gênero àquela do sexo, falta um passo, fatalmente dado. O travestir que faz o gênero não imita nenhum original. O gênero é uma “imitação que produz a própria noção de original como efeito e consequência dessa imitação”12. Em outras palavras, o sexo não é um pedaço de natureza original cuja tradução cultural seria o gênero. Por certo, o corpo existe, mas ele mesmo é “o produto de uma história social incorporada”. A desnaturação não poupa sequer o sexo. A tese é sustentada por Judith Butler numa obra intitulada Bodies that matter. As palavras zombam tanto do gênero como do sexo, sendo que o título não é por acaso um jogo de palavras (intraduzível em francês [e em português]). Ele significa literalmente “esses corpos que contam”, ou que têm importância, 11 12 Ibid.* J.Butler, Marché au sexe, op.cit. p.154. mas coloca, ao mesmo tempo, a tônica em matter, “matéria”. Matéria, materialidade, materialização do sexo... tais palavras são o fio condutor de uma argumentação que pode resumir-se nos seguintes termos: “Interpretar o „sexo‟ não mais como um dado corporal sobre o qual a construção do gênero seria artificialmente imposta, mas como uma norma cultural que governa a materialização dos corpos.”13 O gênero é a construção social do sexo, e é impossível o acesso ao segundo sem passar pelo primeiro. O sexo é absorvido pelo gênero, “torna-se algo como uma ficção, uma fantasia talvez, instalada de maneira retroativa num lugar pré-linguístico ao qual o acesso direto não é possível”14. Não pode haver referência a um corpo puro que não participe da formação desse corpo. O sexo não é “um fato simples ou uma condição estática do corpo, mas um processo pelo qual normas reguladoras (o) materializam”; nunca é um processo acabado, na medida em que os “corpos nunca se conformam totalmente com as normas que lhes impõem sua materialização”15. Tudo o que o programa político tem a fazer é seguir, como, por exemplo, a proposta da lei argentina que elimina definitivamente o obstáculo da natureza e permite que cada um opte pelo gênero de sexo de sua escolha. Por que, afinal, a heterossexualidade? Por que, com base numa sexualidade infantil ainda mais polimorfa que bissexual, que multiplica os sexos bem além de dois, conceder algum privilégio aos dois sexos confirmados e à diferença entre eles? A boca do anorético, o ânus (ou o pensamento) do obsessivo não estariam aí para lembrar-nos que a vida psíquica faz sexo de todas as partes do corpo? À primeira vista, a teoria do gênero na versão Butler só faz a psicanálise recuar às últimas trincheiras de sua própria descoberta. À primeira vista apenas, a discussão crítica é 13 14 15 Ces corps qui comptent (1993), Éd.Amsterdam, 2009, p.17. idem, p.19. evidentemente necessária, mas é particularmente complicada pela diversidade dos níveis que ela envolve. Quando Judith Butler usa a voz do coração: “O problema que as visões de Freud sobre a bissexualidade me trazem está no fato de se tratar, na verdade, de heterossexualidade. A parte feminina quer um objeto masculino, e a parte masculina, um objeto feminino. Esplendido! Temos aí dois desejos heterossexuais, e vamos chamar isso de bissexualidade. Não, não posso aceitar isso.”16 Pelo tom, podemos adivinhar que a declaração envolve outra coisa que não é a teoria. Embora não seja explícito, o inaceitável parece justamente residir no não reconhecimento de um desejo homossexual que nada deveria a ninguém, ou pelo menos, nada deveria ao outro sexo. “Homossexualidade” e “heterossexualidade”, duas palavras inventadas no final do século XIX, são mais palavras-tampão do que palavras fecundas. A respeito do casal que Florent forma com seu companheiro, ele diz: “É uma loucura como somos parecidos.” Dois homens, mais que duas mulheres, dão seguidamente esse espetáculo da duplicação: mesma altura, mesma aparência, mesmos óculos, mesmos gostos... são iguais, homos, na medida especular da participação do narcisismo na construção de tal escolha de objeto. A transferência repete inevitavelmente isso: Florent avistou o Gaffiot* na minha biblioteca. A partir desse dia, ele multiplicou as citações latinas, de Sêneca a Cícero, sem se preocupar em traduzir: “já que estou diante de um homem culto, aproveito”. Mas a homossexualidade de Florent não se limita a isso. Nada o excita mais do que ver um casal jovem “hetero” se beijando na rua, colados um no outro... Ele é a garota que sente colado nele, nela, o membro ereto do namorado. Não há cena psíquica de um homossexual, homem ou mulher, em que o outro sexo não imponha sua presença, sua exigência, seja por imitação, pela penetração anal na posição mamãe-papai ou com um 16 * Humain, inhumain, op.cit. p.26. N.T.: Dicionário do latim para o francês, usual e clássico. Seu autor é Félix Gaffiot. pênis artificial; seja pela fuga dela como se foge da peste. James se viu mais ou menos forçado pelo companheiro do momento, uma vez em toda a sua vida, a contragosto, a ter relação genital com uma mulher. Ele logo correu ao banheiro para limpar sua genitália “com eau de javel [água sanitária]... ah não, desculpa, com álcool 90º”. A cena psicossexual da homossexualidade talvez seja mais hetero que a cena heterossexual, na medida em que a alteridade do outro sexo ganha ainda mais força. Do lado da mulher, o que marca a presença do outro é menos o pênis artificial do que a recusa radical da penetração em proveito de uma erótica da superfície. “Homossexualidade” é uma palavra que mascara essa alteridade, essa presença dos dois sexos na cena, e quanto mais o outro é expulso, mais (inconscientemente) presente ele está. Quanto ao vocábulo “heterossexualidade”, é uma forma de pleonasmo, sendo a alteridade em vários sentidos a característica do sexual. A teoria do gênero paga aqui sua dívida a sua vertente “defesa e ilustração” do direito dos homossexuais. Não se pode desvencilhar-se da dualidade dos sexos, pelo fato de que um não anda sem o outro, mesmo que estejam longe de navegar juntos e o que os “ligue” tenha se tornado definitivamente um enigma, longe da complementaridade instintual. Outro nível de discussão é político. A teoria do gênero é inseparável de um desafio democrático, do desejo de levar a igualdade para onde ela está muito pouco presente, entre os homens e as mulheres, entre as “orientações” sexuais. Submetida à dupla dificuldade, a mulher homossexual é também a teórica do gênero por excelência. Nesse patamar da discussão, a psicanálise só pode se retirar na ponta dos pés. O inconsciente é tão politicamente incorreto quanto ineducável; a igualdade, a justiça, como qualquer virtude democrática, provém da formação reacional: “Se eu não posso ser privilegiado, que ninguém mais o seja.”17 O inconsciente leva uma vida infernal, nada melhor que dominação ou servidão para deleitá-lo. Pela medida dos processos primários, a democracia é tão aborrecedora quanto o paraíso. Daí a tratar a questão social com indiferença... O conjunto intacto dos sintomas da vida sexual tanto masculina quanto feminina indica suficientemente, nestes tempos de “liberação”, que não há tratamento social e político para a coisa sexual,para o Sexual*,como diz Laplanche ao se referir ao sexual infantil em termos freudianos. Deve-se, contudo, erigir o inconsciente em transcendência intemporal, surda aos rumores do mundo? Não há quase nenhuma chance de que a conflituosidade de um desejo homossexual seja a mesma em Peschawar e em São Francisco. Embora o inconsciente, principalmente através de tudo o que ele deve ao exercício do supereu, nunca seja o simples registro dos dados empíricos do ambiente cultural, é, mesmo assim, a partir dessa massa de restos diurnos e de seu impacto traumático que ele constrói suas representações. Da rebelião contra a posição passiva em relação a outro homem, Freud fazia um obstáculo privilegiado ao término de uma análise de homem18 - mas o obstáculo é transferencial ou contratransferencial? Certamente não retomarei esse assunto hoje. Por certo, isso ainda se vê, mas, se tivéssemos que considerar uma novidade na paisagem transferencial proposta pelo divã nos dias de hoje, seria a de um homem cuja escolha de objeto é voltada para a mulher, mas que se permite uma aventura com um homem (três sessões por semana), na maioria das vezes limitada a uma cena sexual “parcial”, felação, por exemplo. As mulheres dispõem dessa liberdade há mais tempo, talvez porque um 17 OCF XVI, 59. N.T.: SexuAL é um neologismo cunhado por Jean Laplanche para fazer referência ao sexual polimorfo segundo Freud, distinguindo-o, assim, em francês, do adjetivo sexuel. Em português, não dispomos de dois sufixos diferentes para manter a mesma distinção. Por isso, optamos por usar tal neologismo em maiúscula e em itálico. 18 OCF XX, 54-55. * momento homossexual não ponha em xeque a feminilidade de uma mulher, enquanto que a mesma situação coloca um homem diante de uma negociação delicada com as figuras da castração. O ângulo político mais pertinente do debate diz respeito à noção de liberdade psíquica. A vida sexual e amorosa de Lucie se presta a duas leituras. Por um lado, ela demonstra uma incontestável plasticidade, que se encontra tanto no seu funcionamento psíquico como na atividade criativa no centro de sua vida profissional. Por outro lado, será que ela dispõe de uma liberdade tão grande a ponto de livrá-la da atribuição de gênero? De um ponto de vista psicanalítico, a questão está mal formulada. Paradoxalmente, sua bissexualidade não lhe deixa escolha. Sua determinação inconsciente tem sua fonte na força relativamente simétrica de seus investimentos e suas identificações edípicas. É sempre com um pouco de pavor que Lucie percebe em determinado parceiro “escolhido livremente” um traço que lhe lembra... Sua plasticidade não fere em nada o determinismo que governa suas escolhas de objeto. Em cada uma de suas posições sexuais, ela é mais quem se submete do que autora, mas tudo está muito bem assim e sua bissexualidade não precisa de nenhuma reforma. As infâncias de hoje não são mais as de ontem, e nascer menina na Meca ou em Estocolmo não é a mesma coisa. Porém, o que não muda é o modo como essas infâncias de ontem e de hoje, daqui e de qualquer outro lugar, imprimem sua marca nas vidas amorosas e sexuais. O programa político “desfazer o gênero” esbarra no infantilismo do inconsciente. Judith Butler admite certa vez, em palavras espantosamente dolorosas: “O aprendizado das normas está ligado a uma barganha do amor; trata-se de algo inevitável, na medida em que a criança, apesar do seu bom senso, é inevitável e apaixonadamente apegada àqueles que a criam. É o quinhão humilhante de todos os seres humanos: amamos esses seres humanos que são nossos pais ou que cuidam de nós; é terrível descobrir que não temos outra escolha senão amá-los e que esse amor é absoluto.”19 O Sexual soltou todas as amarras, com o instinto, com o genital e, portanto, com a relação sexual. Sua liberdade, no entanto, não é a nossa, seria antes nosso determinismo, mesmo que a experiência da psicanálise repouse justamente na esperança de que uma renegociação dos termos do tratado seja possível. O seguimento da discussão toca no essencial: diferenças dos sexos e bissexualidade. Em que medida o “transtorno do gênero”, na teoria e na vida social, leva a psicanálise a rever as bases de seu próprio edifício? Deve-se integrar a noção de gênero no nosso aparelho teórico, mas qual seria o seu valor heurístico? Seria um pouco simplista opor à questão do gênero a boa e velha resposta: rocha originária biológica da sexuação e destino da anatomia. O conhecimento biológico da sexuação data de ontem, enquanto a representação da diferença dos sexos tem a idade das cavernas. O homem é um cavalo, a mulher, um bisão: é a mais antiga codificação conhecida, aquela que Leroy-Gourhan identifica em cada caverna, da Espanha à Ucrânia. Durante séculos, até o século XVIII, a medicina teve como verdade científica a teoria sexual infantil de Galeno, médico grego do século II: existe um único sexo, a diferença é que os homens têm externamente o que as mulheres têm internamente, como uma luva do avesso. O paradoxo é que essa “ciência”, a biologia histórica, sempre ouvida no divã ao sabor do infantilismo de cada um, está mais próxima do inconsciente do que a racionalidade de hoje. “A Sexualtheorie não é uma Geschlechtstheorie.”20 Armand é paciente no divã e ginecologista na vida. Nada faz duvidar de sua competência profissional nem de seus conhecimentos em biologia. Isso não o impede de não se conformar: a localização da entrada da vagina não deveria estar ali, tão embaixo, deveria 19 20 Humain, inhumain, op.cit. p.119. J.Laplanche, Sexual, PUF, 2007, p.155. ser mais em cima; uma ameaça de confusão cloacal que não teve um papel desprezível em sua escolha profissional. A anatomia, aquela do destino, não é mais a do fisiologista, é uma “anatomia popular”, como observa Jean Laplanche21. O enunciado “é um menino, é uma menina” segue uma percepção visual. Merleau-Ponty e muitos outros antes dele mostraram a impossibilidade de isolar o acontecimento da percepção da experiência humana na qual ela se insere. Não há percepção ingênua, não há um ver que não seja informado por um mundo simbólico que o antecede. A serpente e a medusa, o cavalo e o bisão estão aí bem antes da percepção do sexo da criança que acaba de nascer. A coisa vista deve ser circuncidada, extirpada, acariciada, não tocada, mostrada, escondida? E aquele que vê nada quando vê uma vulva não é apenas um míope, mas um homem cegado pela angústia de castração. Até então, pode-se concordar com o construtivismo das teorias do gênero que o corpo, o sexo, não foge à atividade simbólica e não nos é acessível aquém da ordem da representação. O momento delicado é quando a teoria se torna ideologia, quando o performático acaba por acreditar na magia de seu próprio poder. A atribuição de gênero nunca abolirá o acaso do que acaba de ser visto. Paradoxalmente, é a perplexidade e a angústia que invadem os pais da criança hermafrodita quando aquilo que veem é indeterminável, nem menino nem menina, indicando em negativo a dívida psíquica definitiva com a dimensão propriamente visual da percepção. A coisa vista pode ser reconhecida, recusada ou denegada, seu impacto não é certamente menor quando o tratamento psíquico é mais alucinatório que perceptivo. Não se sabe qual é o sexo de Storm, mas isso não impediu que seus pais o registrassem no Canadá como menino ou menina. Talvez seja o 21 J.Laplanche, op.cit., p.171. transexual, aquele que é operado, que se submete ao máximo à realidade da “realidade” perceptiva. Amália é uma mulher jovem, lésbica. Qual é o seu gênero? Ela lembra menos um menino do que um menino travestido de menina. Seu pai (sua mãe também, de maneira mais obscura) desejava um menino, ele teve um menino. A escolha amorosa de Amália é fiel a essa primeira identificação, ela gosta do outro sexo que não é o seu sexo psíquico. No entanto, há um resto; ela se lembra de sua raiva no dia em que seu irmão menor nascera, no dia da circuncisão. A prova do pênis está no fato de poder ser cortado. “Eu também!” “Mas é só um pedaço de pele”, lhe dissera o pai. “Se é só isso, por que não eu?” Toda a vida de Amália é pontuada por pequenos pedaços, à imagem da angústia que tomou conta dela quando perdeu um ponto na carteira de motorista. Decidir por uma identidade de gênero masculina seria ignorar não só sua bissexualidade, mesmo que essa também traga a marcar da masculinidade – aceitando o risco de ser penetrada é a la enculada que ela se submete. Mas também ignorar uma complexidade da qual participa o conflito psíquico no pai entre o que ele viu e o que ele quis. Durante toda a infância, ele chamou sua filha de Macha. Como “macho”, certo, mas uma letrinha mantém a diferença e a lembrança da coisa vista. “Sexo psíquico”, mais do que “gênero”, pareceme ter alguma chance de nomear esse imbróglio do qual sempre toma parte a coisa vista. Ao “gênero”, justamente, falta um pouco de “sexo”. É impossível, no entanto, voltar à diferença dos sexos como se nada fosse. A primeira questão é tópica: em que estágio da vida psíquica ela se manifesta? Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem e o primado do significante é também o do falo, nada impede que a referida diferença encontre aí seu lugar. Mas se o inconsciente ignora o tempo assim como a negação, não há nenhuma chance de encontrar aí uma diferença, seja dos sexos ou de outra coisa. Toda diferença, opondo dois fonemas ou dois sexos, baseia-se num não que mantém os dois termos à distância um do outro. Essa hesitação tópica convida a reinterrogar a expressão: “diferenças dos sexos”. O modo como certos psicanalistas a exibem, como um credo, na face diabólica daqueles que querem multiplicar os gêneros (errados), é mais um convite a retomar a análise do que a se juntar à procissão. A dificuldade se deve talvez ao fato de que a referida “diferença” confunde dois níveis heterogêneos. No nível mais elevado, o da ordem simbólica, que só é inconsciente no sentido das “estruturas inconscientes” de Lévi-Strauss ou de Françoise Héritier, a diferenciação dos sexos opõe, distingue, divide o mundo, atribui papéis, em suma, põe ordem onde não há mais ordem, por falta de “natureza”. O animal não se faz tantas perguntas; para ele, os sexos não são diferentes, mas complementares, tão ajustados um ao outro no momento do cio quanto a junção de duas peças macho-efêmea. O ordenamento simbólico coletivo tem sua garantia na escala do indivíduo, através da organização, da estruturação do que é ameaçado pelo caos polimorfo do Sexual. Este faz sexo de tudo e qualquer coisa: a boca, o ânus, a pele, o polegar, a atividade de pensamento... e, em tempos de violências edípicas, faz da criança “brinquedo erótico” e objeto de desejo irreprimível os pais dos dois sexos. O complexo de Édipo pouco se importa com a diferença dos sexos e das gerações, Jocasta se deita com Édipo, somente o fato de sair disso, a catástrofe que põe fim22, permite que o mundo se mantenha de pé. As coisas são obviamente mais complicadas, na medida em que o que chamamos de “diferença dos sexos” mantém o traço daquilo que ela tenta afastar. Ordenamento simbólico por um lado, ela traz, por outro lado, 22 Freud, La disparition du complexe d‟Œdipe, OCF XVII. as marcas da confusão imaginária que combate. O não que a constitui a aparenta aos processos secundários e a situa topicamente no nível do eu, mas o detalhe de cada um de seus possíveis enunciados tem a forma de uma teoria sexual infantil e da fantasia que a produz. A expressão “diferença dos sexos” é uma generalidade que mascara o fato de que sempre lidamos com ela somente através de suas interpretações. A política é o ofício de Jerome, suas convicções democráticas o levaram a votar sem nenhuma hesitação todas as leis sobre a paridade, mantendo intacta sua versão sobre as diferenças dos sexos: “Existem dois sexos, os homens e as secretárias.” Desde o par cavalo-bisão até a concepção singular proposta por tal ou qual paciente, a diferença dos sexos se expressa numa multiplicidade de traduções cujo inventário antropológico, histórico e individual preencheria várias estantes de biblioteca. Uma multiplicidade na medida do caráter irredutível do enigma, no fundo do enigma do Sexual, desde que ele perdeu a orientação pelo instinto e pelo genital. Que diferença existe entre os sexos? Somente as mulheres fazem filhos, tanto menina como menino. A mulher sangra, o homem faz sangrar; o homem é uma azagaia, a mulher, um animal caçado e ferido. Não há um mito originário que não invente sua tradução: a mulher é o osso sobressalente do homem (Bossuet, traduzindo Gênesis). Tirésias, Galeno e muitos outros acrescentaram sua pedra ao edifício, à imagem da “loucura Althusser”: “O menino tem somente dois orifícios, a menina tem três.”23 De maneira bastante curiosa, nessa polifonia das interpretações, a teoria sexual infantil dos psicanalistas tende a seguir a crença do primeiro dos seus, Hans: não há diferença dos sexos, pela simples razão de que não há dois sexos, mas um só, aquele que se tem ou não se tem. Faz parte da “lógica” imaginária do primado do Falo o fato de se tomar pela única teoria que valha. É mais espantoso ver os próprios psicanalistas entoar o refrão, numa confusão que 23 Louis Althusser, L’avenir dure longtemps. não permite mais distinguir, teorizar e fantasiar. Se o sexo da mulher fosse apenas uma castração, passada ou prometida, como explicar o fato de que tantos homens continuam correndo para elas? Por certo, a Viagem ao centro da terra ou Vinte mil léguas submarinas comportam algumas armadilhas, mas esse é o preço a pagar para descobrir o Graal. O sucesso da lógica fálica se deve provavelmente ao seu notável poder de simplificação. Como destaca Freud, essa passagem da Vershiedenheit a Unterschied constitui uma “deterioração do intelecto infantil”24, a mesma que faz com que os seguidores da escola de Wundt digam: não existem fatos psíquicos inconscientes, há apenas os fatos conscientes e aqueles que ainda não o são, mas essa redução ao binarismo presença/ ausência não deixa de ter uma notável eficácia classificatória. A perda da bússola instintual desorienta o viajante que chega de Sírius25 e o mergulha na maior perplexidade: por que dois sexos? Ao percorrer as variantes interpretativas da diferença, tem-se mesmo assim o sentimento de que um dos dois sexos, o sexo feminino, é mais alter que o outro. No cavalo, vemos e, eventualmente, admiramos; quanto ao bisão, isso se perde no pêlo, o que pode inquietar. E não é a vulva desmedida às vezes pintada nos seus flancos que vai serenar. Diante dessa alteridade dos sexos, pode-se formular a hipótese de que há duas grandes maneiras de a psique escamotear a dificuldade: a maneira que consiste em reduzir dois a um, o desconhecido ao conhecido, o outro ao ausente, a alteridade à diferença. A redução fálica é exemplar nesse aspecto. A outra maneira está muito em voga hoje, seguindo uma aritmética inversa: 2 mais n. “Não sou mulher nem sou homem, sou lésbica”, diz também aquela que fica “gata” quando se veste de mulher. Mulher, homem, gay, lésbica, butch, femme, intersexuado, assexuado, transexual, transgênero, drag queen, drag king... 24 25 OCF IX, 10. Freud. o gênero encobre o sexo, a multiplicação dos gêneros, a passagem de um ao outro mergulha a dualidade dos sexos numa diversidade que se diz subversiva e deleitável e torna um tanto cafona a bissexualidade em si. A bissexualidade une apenas dois, sempre os mesmos e, além disso, nunca um sem o outro. A psicanálise mais cafona, a nossa, poderia dificilmente, contudo, prescindir dessa noção. Mas também em relação a esta, a hesitação tópica permanece. Seria original, figura primitiva do Sexual, ou seria reacional, uma maneira de opor-se aos limites da sexuação, de vencer a castração? Ela precederia a diferença dos sexos ou responderia a ela? Essa maneira binária de fazer a pergunta tem o mérito da clareza, correndo o risco de perder certa complexidade. J-B. Pontalis inclina-se nitidamente para o segundo termo da alternativa: “a bissexualidade não visaria menos, sob o manto de um ser total, sem fenda, vencer a diferença do que preservar-se de seus efeitos? [...] A atribuição de um sexo priva dos órgãos e dos poderes do outro sexo, daquele que não se tem; o bissexual (outro nome para Narciso) aparece como completo.” A redução, própria da lógica fálica, conduz o raciocínio: “Longe de negar o primado do falo (ser Um e indivisível), a bissexualidade o consagra.”26 Eu formulo atualmente as coisa de maneira muito menos definida... e muito menos clara. A clínica da criança hermafrodita e de seus pais tende a mostrar que, se a criança se vê psiquicamente privada de algo é, paradoxalmente, do jogo da bissexualidade27. A confusão biológica violenta a ordem simbólica, aquela que diferencia sem sombra de dúvida menina e menino. No imaginário, não se pode reforçar isso, levando à plasticidade identificatória, as mensagens superegóicas dos pais procuram fechar, enrijecer a atribuição. Seguindo essa linha, pode-se levantar a hipótese de que a diferença dos sexos na ordem simbólica, na qual a criança por nascer vai se inserir, é a condição 26 27 J-B.Pontalis, L‟insaisissable entre-deux, Nouvelle Reviue de Psychanalyse, Gallimard, n°7, 1973. Karinne Guéniche. de possibilidade, o enquadramento antropológico que permite a abertura individual do campo dos possíveis; de que a identificação com as duas posições sexuais só é suportável se estiver apoiada num fundo de simbolização que as distinga. Concebendo-a por esse ângulo, a bissexualidade não é uma formação reacional à diferença dos sexos, mas, quase inversamente, um jogo psíquico (combinando o desejo e a identificação) oferecido por ela. As homossexualidades masculinas e femininas são múltiplas, as bissexualidades também. O movimento de redução psíquica a uma figura teórica do Um faz parte da própria coisa. A fantasia bissexual como variante da recusa da castração certamente não deixa de se fazer ouvir com frequência. Mas essa história não é a única ou a última palavra, é uma história entre outras. A vertente unificadora, à qual a teoria jamais foge completamente, é a dívida paga a Narciso. Um é o seu algarismo. Swann não ama mais Odette, ele a deixou e reata com sua “malandrice intermitente”: “Dizer que desperdicei anos da minha vida, quis morrer, tive meu maior amor por uma mulher que não me agradava, que não era meu gênero.”28 Tradução: Vanise Dresch 28 Proust , Pléiade, t.I, 382.