O inconsciente jacques andre – SITE 2

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O inconsciente jacques andre – SITE 2
O inconsciente, desespero da política
Jacques André
Agosto de 2014
Porto Alegre
A promulgação da lei data de maio de 2012. Ela estabelece que toda
pessoa tem direito ao reconhecimento de sua identidade de gênero. Esta é
definida como a experiência interna e individual do gênero, do modo como
é vivenciada por cada pessoa, podendo ou não corresponder ao sexo
designado no momento de seu nascimento. Essa vivência pessoal inclui a
eventual modificação da aparência e da função corporal não só por meios
farmacológicos ou cirúrgicos, mas também pela maneira de vestir e falar. A
lei autoriza qualquer pessoa a requerer a retificação do registro civil (sexo,
nome e foto) quando este não corresponder à identidade de gênero
autopercebida. Primazia legal do gênero sobre o sexo. Em caso algum, será
exigido, para essa troca, o ato cirúrgico de uma redesignação genital total
ou parcial, tampouco o recurso a terapias hormonais ou a um tratamento
psicológico. Embora se refira aos adultos, a lei não exclui as crianças nem
os adolescentes. A mesma troca pode ser realizada tão logo a criança
expresse o desejo de fazê-lo, desde que esteja acompanhada pelos pais e
por um advogado.
A lei argentina segue o espírito da época, aquele que confere ao
gênero sua autonomia e o liberta das amarras do sexo. É apenas a versão
mais avançada de disposições legais que interpelam hoje todo o mundo
ocidental. Os argentinos foram muitas vezes às ruas nos últimos anos, mas
não para isso. Fora o protesto convencional da Igreja e protestos de alguns
fiéis, a lei sobre a identidade de gênero foi aprovada sem empecilho. O
inferno de ontem é o politicamente correto de hoje.
Antes, para mudar de gênero era preciso mudar de língua: “O sol tem
encontro com a lua...”, Die Sonne hat ein Stelldichein MIT dem Mond. O
alemão, justamente, dispõe de uma riqueza a mais: o gênero neutro, Es,
isso. Foi isso que permitiu que a lei alemã acrescentasse um capítulo à
questão do gênero? Em Hamburgo e em outras localidades, os pais podem,
hoje, fazer constar no registro de nascimento de seus filhos a
indeterminação sexual da criança, nem menino nem menina. Não é tanto a
preocupação de reconhecer um terceiro gênero, mas dar aos pais o direito
da incerteza biológica e conceder-lhes um tempo psicológico e médico
antes de decidirem.
As peripécias mais recentes que dissociam sexo e gênero são
inseparáveis da história mais antiga da sexualidade humana, ou até mesmo
de sua pré-história. O homem, um primata, já tinha alguns milhões de anos
quando tudo começou. Segundo os paleontólogos (de André Leroi-Gourhan
a Jean-Paul Demoule1), isso deve provavelmente ter acontecido entre
500.000 e 100.000 anos atrás, afetando tanto o homem de Neandertal
quanto o homo sapiens. A sexualidade humana adquiriu uma primeira
liberdade, fundadora de todas as outras e porta aberta para o desconhecido,
dissociando-se da finalidade instintual e reprodutiva. Como e por quê?
Nossas perguntas de criança curiosa diante da cena primitiva da
humanidade têm todas as chances de permanecer sem respostas. O que
parece certo, contudo, é que o cérebro tem muito a ver com isso. É na
cabeça que acontece. A história da hominização confunde-se com a da
cerebralização. A conquista da posição ereta permitiu um desenvolvimento
da massa cerebral sem outro equivalente no mundo animal. A emancipação
1
da sexualidade é provavelmente contemporânea da aquisição da linguagem
articulada e da atividade simbólica que ela possibilita. Entre 500.000 e
100.000 anos, o homem, pela primeira vez, dá atenção aos mortos,
destinando-lhes uma sepultura, e começa a copular por prazer, fora do
período fértil, o qual se torna simplesmente, pelo menos do ponto de vista
olfativo, o período da ovulação. Preocupar-se com os mortos ou copular em
qualquer tempo e lugar não serve para nada, não é de utilidade alguma para
a vida do indivíduo ou da espécie. Muitas cavernas foram habitadas tanto
por ursos quanto pelo homem, podendo gerar até confusão dos restos. O
que fornece ao paleontólogo a prova indiscutível de uma passagem do
homem é a descoberta de um objeto inútil, como um sinal gravado numa
pedra, por exemplo. A inutilidade é a honra do homem.
Não existe sexualidade natural, nem contra a natureza. A sexualidade
humana é des-naturada, e quando a natureza tenta voltar à tona, no
momento da puberdade, é para tropeçar num terreno minado pelo infantil.
Desnaturada não quer dizer desregulada, e sim aquilo que o instinto não
controla mais, cabendo então à instituição, ao socius, encarregar-se disso.
Não há sociedade que não trace suas linhas de demarcação entre o
obrigado, o permitido e o proibido.
Duas observações complementares para encerrar essa viagem no
tempo. A liberdade conquistada pela sexualidade não deixa intacta a
reprodução. Ela também sofre o golpe, pelo menos parcial, da inutilidade, a
dos sistemas de parentesco, suas prescrições e proibições no plano social, a
do desejo de ter filhos ou uma descendência no plano individual. Um
desejo também submetido ao conflito psíquico, tão capaz de multiplicar a
prole quanto causar esterilidade. A reprodução tornou-se simultaneamente
simbólica e sexual; o enigma “de onde vêm as crianças?” é menos uma
indagação da natureza do que da cena primitiva. Como assinala Maurice
Godelier, um homem e uma mulher não são suficientes para gerar uma
criança; se deus não participar da concepção, a criança não terá alma... e
mesmo que deus esteja morto, nenhuma criança é concebida sem sua
inserção numa ordem simbólica que contribui para gerá-la, tanto quanto o
encontro dos gametas. Por uma curiosa ironia da história, hoje é entre os
defensores mais radicais da ideologia do gênero, entre os mais culturalistas,
os mais construtivistas, aqueles, portanto, para os quais é essencial
dissociar reprodução e coito heterossexual, que o argumento genético,
naturalista, tem a última palavra. Atribui-se a Beatriz Preciado, amazona
catalã dos gender studies, a seguinte declaração: “A ideologia
heterossexista faz da união sexo-política de um homem e uma mulher a
condição
de
possibilidade
da
reprodução.
Sob
a
defesa
da
heterossexualidade como única forma de reprodução natural esconde-se a
confusão falaciosa entre reprodução sexual e prática sexual. A reprodução
sexual humana é meiótica: a maior parte das células do nosso corpo é
diploide, isto é, possui duas séries de 23 cromossomos. Inversamente, os
espermatozoides e os óvulos são células haploides: têm um único jogo de
23 cromossomos. A reprodução sexual não exige a união nem sexual nem
política de um homem com uma mulher: nem hetero nem homo, trata-se de
um processo de recombinação do material genético de duas células
haploides.”2
A segunda observação diz respeito à mulher. É em seu corpo que se
separam o instintual e o sexual. Ela é a única fêmea mamífera que se presta
ao ato sexual fora do período fértil. Nessa condição, ela parece ter-se
tornado a representante por excelência do enigma (o que quer dizer
sexual?) e, ao mesmo tempo, o corpo a controlar. A dominação masculina,
por sua vez, também remonta à noite dos tempos, a política da sexualidade
2
Libération, 27 de setembro de 2013.
tem a idade da sexualidade. Os primeiros documentos sobre o assunto,
pinturas e esculturas com as quais nasce a figura, são, infelizmente, muito
recentes, não datando de mais de 35.000 anos. O homem aparece aí como
um motivo relativamente desprezado, enquanto a mulher é pintada ou
esculpida; menos que uma mulher, ela não tem rosto. Em contrapartida,
tem formas desmedidas, seios, nádegas e, sobretudo, vulva, sendo muitas
vezes pintada sozinha; são representações da mulher ou de sua genitália,
que, como observa Leroi-Gourhan, não correspondem à verdade anatômica,
tanto quanto as mulheres de Picasso não poderiam servir para definir o tipo
antropológico da francesa moderna3. Tudo acontece como se assim se
configurasse, nessa desmedida, uma das possíveis traduções da diferença
dos sexos, aquela que Tirésias celebrizará: existem dois sexos, um dos dois,
o feminino, goza nove vezes mais que o outro no ato sexual. A mulher
perdeu seu apetite sexual cíclico, ela o mantém o tempo todo. Na outra
ponta da história, a história continua. É impossível dissociar os desafios
políticos contemporâneos em relação ao questionamento sobre o gênero, de
uma crítica, senão da própria diferença dos sexos (ainda que...), pelo menos
de sua tradução em termos de dominação; uma dupla dominação,
primeiramente a do privilégio atribuído à heterossexualidade, e depois a do
homem no casal homem/ mulher. “Desnaturar a ordem sexual ao falar de
gênero, não é tanto politizar o sexo, mas revelar abertamente o quanto ele
sempre foi politizado”4. As grandes figuras dos gender studies, Monique
Wittig, Gail Rubin, Catharine Mackinnon, Judith Butler são mulheres,
feministas e lésbicas. Do mesmo modo que isso não é suficiente para
determinar o alcance de seu discurso, não poderíamos ter essa comunidade
como indiferente. A obra principal de Judith Butler, Gender Trouble, busca
tanto os aborrecimentos e a discórdia (primeira acepção de trouble em
3
4
Leroi-Gourhan, op.cit. p.126.
Éric Fassin (et V.Margron), Homme, femme, quelle différence ? Salvator, 2011, p.30-31.
inglês) quanto embaralhar as distinções muito claras entre homem e
mulher. Ela escreve: “o gênero deveria ser derrubado, abolido ou tornado
inevitavelmente ambíguo porque sempre é sinal da subordinação das
mulheres.”5 Uma declaração militante que ela mesma trata de nuançar por
outro lado, assinalando que não se poderia construir ou desconstruir o
gênero de forma voluntarista, não sendo ele um simples artifício a endossar
ou a descartar à vontade.
E a psicanálise em tudo isso? Freud e outros depois dele, que foram
mais longe, acrescentam um capítulo decisivo ao que aconteceu certo dia
na escuridão da caverna. Sem desvincular o sexual e o genital – o pênis e a
vagina não são totalmente desconectados e sua conexão continua fazendo
parte da vida sexual dos homens – a teoria psicanalítica do sexual relativiza
o genital, o integra num vasto conjunto polimorfo que, do primeiro dedo do
pé ao cabelo, não deixa de fora nenhum recôndito do corpo. É num tom
quase ingênuo que Freud observa: “Do ponto de vista da psicanálise, o
interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema
que requer uma explicação, e não algo que seja óbvio.”6 Por que, afinal, a
heterossexualidade?
A descoberta da sexualidade infantil é mais aquela do infantilismo da
sexualidade que da sexualidade da criança, contribuindo mais um pouco
para a desnaturação; uma felação nunca alimentou a boca que a recebe, e se
ela deve muito à amamentação é porque esta já não era muito honesta.
Definir como “pré-genital” a sexualidade infantil é, em muitos aspectos,
um mal-entendido e um modo de a psicanálise recuar diante do desconforto
de sua própria descoberta. Em primeiro lugar, porque significa reservar ao
“genital” um privilégio terminal a que muitas vidas sexuais de adultos não
5
6
J.Butler, Trouble dans le genre (1990), La découverte, 2005, p.34.
Freud, Trois essais sur la théorie sxuelle, Gallimard, 1987, p.51.
correspondem. Em segundo lugar, porque significa fazer do infantil o
primeiro tempo de um desenvolvimento cuja forma acabada seria a
sexualidade púbere. A sexualidade infantil não é uma sexualidade
preliminar, embora as “preliminares” lhe devam tudo. Por fim, porque isso
prejulga uma entrada tardia da genitalidade na cena sexual, mas nada é
mais incerto. O que a mãe, a mesma que toma seu filho por “substituto de
um objeto sexual por completo” (Freud), “introduz” na boca de seu bebê
quando lhe dá o seio? Só os seus sonhos nos dizem. A anatomia imaginária
é o destino. Por certo, da fantasia do adulto ao que se imprime no
psicossoma da criança, a transferência foge a qualquer observação. Tudo na
nossa experiência psicanalítica, no entanto, nos convida a crer em sua
existência.
Lucie é uma mulher jovem dividida pela bissexualidade de maneira
quase paritária, sem que a democracia conte aí em alguma coisa. A
confusão de gênero a que o mundo atual nos convida lhe permite viver um
momento sexual ou uma relação amorosa tanto com um homem quanto
com uma mulher. Ela é também bi no terreno das gerações, podendo amar
tanto um homem ou uma mulher com idade próxima da de seus pais quanto
um parceiro ou uma parceira de sua faixa etária. Como se, de certa forma,
todas as possibilidades do leque edípico se mantivessem acessíveis a ela. A
problemática da castração, no entanto, não lhe é estranha, embora nela não
tome a forma do “tê-lo ou não tê-lo”, e sim do “por que um único sexo e
não dois?”. A angústia de perda de amor tem papel decisivo na escolha a
que ela acaba por se restringir: “Com um homem, virá inevitavelmente o
momento em que ele procurará uma mulher mais jovem.” Depois de muitas
peripécias sexuais e amorosas, Lucie estabeleceu então uma relação
duradoura com uma mulher de sua idade. Muito rápido, ela fala a sua
companheira sobre seu desejo de ter um filho. Segue-se então uma busca
tortuosa do melhor caminho reprodutivo. Se pudesse concretizar seu
desejo, teria pedido esse favor a um de seus amigos, “bonito e inteligente”.
Esse caminho, porém, em fantasia, pareceu a Lucie e a sua companheira
poder trazer muitos aborrecimentos futuros, a começar pela impossibilidade
de controlar um sentimento de paternidade no homem em questão. As duas
mulheres optaram, então, pela doação de gameta e pela reprodução
assistida no exterior. O país foi escolhido por permitir a eventual revelação
do anonimato do doador, senão um amigo, pelo menos um homem
desconhecido. Tal empreitada é uma verdadeira peregrinação; Lucie fora
informada do baixo índice de êxito, 30%. Ela engravida na primeira
tentativa: a força da transferência poderia ter-se aplicado também à
reprodução assistida? Ela deseja um menino, seu desejo é atendido,
completando, de certa maneira, sua bissexualidade ao dar à luz a parte
masculina dela mesma, mantendo à distância, ao mesmo tempo, sua
angústia de um “excesso de mulher”.
A escolha de falar de Lucie está diretamente ligada ao debate com os
genders studies. À primeira vista, ela está prestes a realizar uma das
fantasias organizadoras da teoria/ideologia do gênero: “o sonho que me
parece mais atraente, escreve Gail Rubin, é o de uma sociedade andrógina e
sem gênero (mas não sem sexo), em que a anatomia sexual nada tenha a ver
com quem se é, com o que se faz, nem com quem se faz amor.” 7 É com
uma mescla de espanto e humor que Lucie constata o modo como a divisão
dos gêneros atinge a ela e sua companheira, justamente quando tudo na
vida sexual e social delas indicava até então uma liberdade máxima em
relação à atribuição cultural dos papéis. Ela se tornou a mulher grávida e a
mãe que amamenta, deleitada (e angustiada) com um estado e com o outro.
Mas é sua companheira que se revela a mãe-de-bebê mais investida,
7
Gayle S. Rubin, Judith Butler, Marché au sexe, EPEL, 2001.
quando Lucie não esconde sua impaciência para retomar plenamente sua
vida social intensa; é preciso trazer dinheiro para casa...
A amplitude do campo antropológico envolvido faz perder qualquer
esperança de abraçar todas as questões. Vou ater-me a uma única questão
que deverá ser suficiente ao nosso trabalho: em que medida a indagação
contemporânea sobre o gênero leva o psicanalista a repensar a diferença
dos sexos e a relação desta com a bissexualidade?
Bissexualidade e diferença dos sexos dizem respeito a todos nós, não
uma ou a outra – o próprio binarismo faz parte do problema –, mas as duas.
A reflexão sobre o modo como interagem deveria, portanto, poder ser
concebida a partir de qualquer tratamento analítico, inclusive o do paciente
mais heterossexual. Mas o mundo de hoje facilita a existência de vidas
sexuais que, se não são novas, pelo menos concretizam e realizam mais
facilmente o que antes permanecia contido pelo recalque no registro da
fantasia. Penso, sobretudo, naqueles homens cuja escolha de objeto está
principalmente voltada para a mulher, mas que se permitem algumas breves
aventuras sexuais com outro homem. Será preferencialmente ao tratamento
psicanalítico de mulheres ou de homens entre homossexualidade e
bissexualidade que farei referência.
Sob o título “gender studies”, encontramos, na verdade, uma
proliferação de textos que torna vã a esperança de extrair uma
argumentação homogênea. Privilegiarei a referência a Judith Butler tanto
porque seu livro Gender trouble contribuiu muito para lançar o debate,
como também porque ela não cessa de dialogar com a psicanálise, sendo
interessante o que ela extrai desta e ao mesmo tempo o que recusa. Com
exceção de Freud, os autores que ela convoca mais espontaneamente são
Lacan, Laplanche, Shaeffer ou então Bollas. Sua ênfase na natureza
performática do gênero encontra um ponto de apoio na concepção
linguageira do inconsciente, em Lacan. O lugar que ela reserva à atribuição
na construção do gênero (ou mesmo do sexo) encontra em Laplanche, no
“primado do outro” e nas mensagens enigmáticas endereçadas à criança
pelo adulto, uma confirmação de seu ponto de vista. Mas, sem dúvida, é
entre os narrativistas, como Roy Shaeffer, que o empréstimo se aprofunda,
através da ideia de que a história é uma narrativa, uma construção que pode
eventualmente ser desfeita e reescrita: “o analisando é o historiador de sua
própria vida”. O que ela extrai de Bollas, tudo o que toma o sentido de uma
simetria transferência/ contratransferência, nos leva ao cerne da questão,
aquela
de
uma
“assimetria
essencial
na
psicanálise”8
e
nas
psicossexualidades do homem e da mulher.
“É uma menina! É um menino!”, a atribuição de gênero e a massa de
representações que ela abarca – rosa/azul, boneca/ espingarda – já começa
no primeiro enunciado. Um enunciado que não se contenta em registrar,
mas também “performa”, faz advir o que é nomeado. O gênero é um efeito
de linguagem. Inclusive, no exemplo extremo das sociedades que praticam
o infanticídio das meninas, a primeira palavra pode até ser a última,
duplamente performativa, produzindo a existência e sua destruição ao
mesmo tempo. Daí a se voltar contra a linguagem... Monique Wittig foi
provavelmente a primeira a contestar a pertinência de chamar de “menina”
ou “menino” a criança que acaba de nascer9. Uma creche sueca (numa
língua que dispõe de um pronome neutro, hen) fez disso sua regra. De
maneira mais impressionante, certos pais canadenses, seguidos desde então
por muitos outros, enviaram aos amigos uma participação de nascimento
com os seguintes dizeres: “Anunciamos o nascimento de Storm.” O
comunicado de tempestade é imediatamente seguido por uma declaração:
“Não informamos qual é o sexo, para que a criança possa escolher mais
8
9
Título de um artigo de Pierre Fédida, NRP n°7, 1973.
Citado por J.Butler, Humain, inhumain, Éditions Amsterdam, 2005, p.111.
tarde.”10 A condensação/confusão entre sexo e gênero é aqui como uma
epígrafe ao problema que se apresenta.
O combate contra a língua, contra a política dos sexos a que a língua
contribui de forma decisiva, não poupou a língua francesa, em que o abuso
sexual reduz o neutro ao masculino. Será que a troca da palavra muda a
coisa em si? O performativo, neste caso, vai ao encontro da crença: se a
palavra faz ser, criemos então as palavras que mudam o mundo. Isso
significa ignorar que a dominação masculina tem mais de um coelho na
cartola. Um paciente, homem de letras, comenta as últimas novidades nos
seguintes
termos:
“Em
auteure
[autora],
a
letra
e
permanece
desesperadamente muda e, em écrivaine [escritora], a rima é infeliz.”
O debate sobre o gênero nem sempre foge ao ridículo da cena
conjugal, mas, ao contrário disso, o que define as reflexões de Judith Butler
é uma extrema sutileza. O homem que exalta, por menos que seja, sua
masculinidade ou a mulher que exagera, mesmo que sejam apenas uns
cílios falsos, na sua feminilidade, não estariam revelando, tanto quanto a
“louca” mais extravagante ou a butch mais absoluta, o jogo do gênero, o
jogo no gênero? Em momento algum, Judith Butler assume por sua própria
conta a noção proposta por Stoller de uma identidade de gênero, de tão
suspeita que lhe parece ser a identidade. Se há uma verdade do travesti, é
exibir a natureza imitativa do gênero. “Quando estou disfarçada de mulher,
diz uma paciente lésbica numa notável condensação, fico uma gata.” Toda
posição sexual exibida é uma comédia que deixa nos bastidores aquilo do
que ela preza tanto em se distinguir. Se, de todas essas posições, a
heterossexualidade é a mais cômica, é porque ignora ser apenas uma
posição dentre outras e se toma pela norma. Se a heterossexualidade deve
reelaborar-se, reproduzir-se ela mesma ritualmente em todo lugar, é
10
Entrevista com o pai de Storm no Toronto Star.
justamente porque a natureza não a garante e ela precisa vencer o
sentimento de sua própria fragilidade constitutiva. Como explicar tal
fragilidade? “É, na verdade, uma maneira bastante curiosa de estar no
mundo. Pois, afinal, como é que – Freud faz a mesma pergunta nos Três
Ensaios – esse ser polimorfo, ou pelo menos bissexual, organiza sua
sexualidade de maneira a concentrá-la exclusivamente nos membros do
sexo oposto e ter com eles relações sexuais genitais?”11. “A
heterossexualidade oferece posições sexuais normativas intrinsecamente
impossíveis de encarnar, e o fracasso persistente em identificar-se
plenamente
e
sem
incoerência
com
essas
posições
revela
a
heterossexualidade não somente como uma lei obrigatória, mas também
como uma comédia inevitável.” Uma comédia que eventualmente vira
tragédia: por ser uma norma que traveste seu arbitrário instituindo-se como
natureza (a ideia de uma “instituição natural”, no entanto, é uma
contradição nos termos), a heterossexualidade é ainda mais violenta, por se
tornar tão difícil resistir às suas injunções.
Da crítica do gênero àquela do sexo, falta um passo, fatalmente dado.
O travestir que faz o gênero não imita nenhum original. O gênero é uma
“imitação que produz a própria noção de original como efeito e
consequência dessa imitação”12. Em outras palavras, o sexo não é um
pedaço de natureza original cuja tradução cultural seria o gênero. Por certo,
o corpo existe, mas ele mesmo é “o produto de uma história social
incorporada”. A desnaturação não poupa sequer o sexo. A tese é sustentada
por Judith Butler numa obra intitulada Bodies that matter. As palavras
zombam tanto do gênero como do sexo, sendo que o título não é por acaso
um jogo de palavras (intraduzível em francês [e em português]). Ele
significa literalmente “esses corpos que contam”, ou que têm importância,
11
12
Ibid.*
J.Butler, Marché au sexe, op.cit. p.154.
mas coloca, ao mesmo tempo, a tônica em matter, “matéria”. Matéria,
materialidade, materialização do sexo... tais palavras são o fio condutor de
uma argumentação que pode resumir-se nos seguintes termos: “Interpretar
o „sexo‟ não mais como um dado corporal sobre o qual a construção do
gênero seria artificialmente imposta, mas como uma norma cultural que
governa a materialização dos corpos.”13 O gênero é a construção social do
sexo, e é impossível o acesso ao segundo sem passar pelo primeiro. O sexo
é absorvido pelo gênero, “torna-se algo como uma ficção, uma fantasia
talvez, instalada de maneira retroativa num lugar pré-linguístico ao qual o
acesso direto não é possível”14. Não pode haver referência a um corpo puro
que não participe da formação desse corpo. O sexo não é “um fato simples
ou uma condição estática do corpo, mas um processo pelo qual normas
reguladoras (o) materializam”; nunca é um processo acabado, na medida
em que os “corpos nunca se conformam totalmente com as normas que lhes
impõem sua materialização”15. Tudo o que o programa político tem a fazer
é seguir, como, por exemplo, a proposta da lei argentina que elimina
definitivamente o obstáculo da natureza e permite que cada um opte pelo
gênero de sexo de sua escolha.
Por que, afinal, a heterossexualidade? Por que, com base numa
sexualidade infantil ainda mais polimorfa que bissexual, que multiplica os
sexos bem além de dois, conceder algum privilégio aos dois sexos
confirmados e à diferença entre eles? A boca do anorético, o ânus (ou o
pensamento) do obsessivo não estariam aí para lembrar-nos que a vida
psíquica faz sexo de todas as partes do corpo? À primeira vista, a teoria do
gênero na versão Butler só faz a psicanálise recuar às últimas trincheiras de
sua própria descoberta. À primeira vista apenas, a discussão crítica é
13
14
15
Ces corps qui comptent (1993), Éd.Amsterdam, 2009, p.17.
idem, p.19.
evidentemente necessária, mas é particularmente complicada pela
diversidade dos níveis que ela envolve. Quando Judith Butler usa a voz do
coração: “O problema que as visões de Freud sobre a bissexualidade me
trazem está no fato de se tratar, na verdade, de heterossexualidade. A parte
feminina quer um objeto masculino, e a parte masculina, um objeto
feminino. Esplendido! Temos aí dois desejos heterossexuais, e vamos
chamar isso de bissexualidade. Não, não posso aceitar isso.”16 Pelo tom,
podemos adivinhar que a declaração envolve outra coisa que não é a teoria.
Embora não seja explícito, o inaceitável parece justamente residir no não
reconhecimento de um desejo homossexual que nada deveria a ninguém, ou
pelo menos, nada deveria ao outro sexo. “Homossexualidade” e
“heterossexualidade”, duas palavras inventadas no final do século XIX, são
mais palavras-tampão do que palavras fecundas. A respeito do casal que
Florent forma com seu companheiro, ele diz: “É uma loucura como somos
parecidos.” Dois homens, mais que duas mulheres, dão seguidamente esse
espetáculo da duplicação: mesma altura, mesma aparência, mesmos óculos,
mesmos gostos... são iguais, homos, na medida especular da participação
do narcisismo na construção de tal escolha de objeto. A transferência repete
inevitavelmente isso: Florent avistou o Gaffiot* na minha biblioteca. A
partir desse dia, ele multiplicou as citações latinas, de Sêneca a Cícero, sem
se preocupar em traduzir: “já que estou diante de um homem culto,
aproveito”. Mas a homossexualidade de Florent não se limita a isso. Nada o
excita mais do que ver um casal jovem “hetero” se beijando na rua, colados
um no outro... Ele é a garota que sente colado nele, nela, o membro ereto
do namorado. Não há cena psíquica de um homossexual, homem ou
mulher, em que o outro sexo não imponha sua presença, sua exigência, seja
por imitação, pela penetração anal na posição mamãe-papai ou com um
16
*
Humain, inhumain, op.cit. p.26.
N.T.: Dicionário do latim para o francês, usual e clássico. Seu autor é Félix Gaffiot.
pênis artificial; seja pela fuga dela como se foge da peste. James se viu
mais ou menos forçado pelo companheiro do momento, uma vez em toda a
sua vida, a contragosto, a ter relação genital com uma mulher. Ele logo
correu ao banheiro para limpar sua genitália “com eau de javel [água
sanitária]... ah não, desculpa, com álcool 90º”. A cena psicossexual da
homossexualidade talvez seja mais hetero que a cena heterossexual, na
medida em que a alteridade do outro sexo ganha ainda mais força. Do lado
da mulher, o que marca a presença do outro é menos o pênis artificial do
que a recusa radical da penetração em proveito de uma erótica da
superfície.
“Homossexualidade” é uma palavra que mascara essa alteridade,
essa presença dos dois sexos na cena, e quanto mais o outro é expulso, mais
(inconscientemente)
presente
ele
está.
Quanto
ao
vocábulo
“heterossexualidade”, é uma forma de pleonasmo, sendo a alteridade em
vários sentidos a característica do sexual. A teoria do gênero paga aqui sua
dívida a sua vertente “defesa e ilustração” do direito dos homossexuais.
Não se pode desvencilhar-se da dualidade dos sexos, pelo fato de que um
não anda sem o outro, mesmo que estejam longe de navegar juntos e o que
os “ligue” tenha se tornado definitivamente um enigma, longe da
complementaridade instintual.
Outro nível de discussão é político. A teoria do gênero é inseparável
de um desafio democrático, do desejo de levar a igualdade para onde ela
está muito pouco presente, entre os homens e as mulheres, entre as
“orientações” sexuais. Submetida à dupla dificuldade, a mulher
homossexual é também a teórica do gênero por excelência. Nesse patamar
da discussão, a psicanálise só pode se retirar na ponta dos pés. O
inconsciente é tão politicamente incorreto quanto ineducável; a igualdade, a
justiça, como qualquer virtude democrática, provém da formação reacional:
“Se eu não posso ser privilegiado, que ninguém mais o seja.”17 O
inconsciente leva uma vida infernal, nada melhor que dominação ou
servidão para deleitá-lo. Pela medida dos processos primários, a
democracia é tão aborrecedora quanto o paraíso. Daí a tratar a questão
social com indiferença... O conjunto intacto dos sintomas da vida sexual
tanto masculina quanto feminina indica suficientemente, nestes tempos de
“liberação”, que não há tratamento social e político para a coisa sexual,para
o Sexual*,como diz Laplanche ao se referir ao sexual infantil em termos
freudianos. Deve-se, contudo, erigir o inconsciente em transcendência
intemporal, surda aos rumores do mundo? Não há quase nenhuma chance
de que a conflituosidade de um desejo homossexual seja a mesma em
Peschawar e em São Francisco. Embora o inconsciente, principalmente
através de tudo o que ele deve ao exercício do supereu, nunca seja o
simples registro dos dados empíricos do ambiente cultural, é, mesmo assim,
a partir dessa massa de restos diurnos e de seu impacto traumático que ele
constrói suas representações. Da rebelião contra a posição passiva em
relação a outro homem, Freud fazia um obstáculo privilegiado ao término
de uma análise de homem18 - mas o obstáculo é transferencial ou
contratransferencial? Certamente não retomarei esse assunto hoje. Por
certo, isso ainda se vê, mas, se tivéssemos que considerar uma novidade na
paisagem transferencial proposta pelo divã nos dias de hoje, seria a de um
homem cuja escolha de objeto é voltada para a mulher, mas que se permite
uma aventura com um homem (três sessões por semana), na maioria das
vezes limitada a uma cena sexual “parcial”, felação, por exemplo. As
mulheres dispõem dessa liberdade há mais tempo, talvez porque um
17
OCF XVI, 59.
N.T.: SexuAL é um neologismo cunhado por Jean Laplanche para fazer referência ao sexual polimorfo
segundo Freud, distinguindo-o, assim, em francês, do adjetivo sexuel. Em português, não dispomos de
dois sufixos diferentes para manter a mesma distinção. Por isso, optamos por usar tal neologismo em
maiúscula e em itálico.
18
OCF XX, 54-55.
*
momento homossexual não ponha em xeque a feminilidade de uma mulher,
enquanto que a mesma situação coloca um homem diante de uma
negociação delicada com as figuras da castração.
O ângulo político mais pertinente do debate diz respeito à noção de
liberdade psíquica. A vida sexual e amorosa de Lucie se presta a duas
leituras. Por um lado, ela demonstra uma incontestável plasticidade, que se
encontra tanto no seu funcionamento psíquico como na atividade criativa
no centro de sua vida profissional. Por outro lado, será que ela dispõe de
uma liberdade tão grande a ponto de livrá-la da atribuição de gênero? De
um ponto de vista psicanalítico, a questão está mal formulada.
Paradoxalmente, sua bissexualidade não lhe deixa escolha. Sua
determinação inconsciente tem sua fonte na força relativamente simétrica
de seus investimentos e suas identificações edípicas. É sempre com um
pouco de pavor que Lucie percebe em determinado parceiro “escolhido
livremente” um traço que lhe lembra... Sua plasticidade não fere em nada o
determinismo que governa suas escolhas de objeto. Em cada uma de suas
posições sexuais, ela é mais quem se submete do que autora, mas tudo está
muito bem assim e sua bissexualidade não precisa de nenhuma reforma. As
infâncias de hoje não são mais as de ontem, e nascer menina na Meca ou
em Estocolmo não é a mesma coisa. Porém, o que não muda é o modo
como essas infâncias de ontem e de hoje, daqui e de qualquer outro lugar,
imprimem sua marca nas vidas amorosas e sexuais. O programa político
“desfazer o gênero” esbarra no infantilismo do inconsciente. Judith Butler
admite certa vez, em palavras espantosamente dolorosas: “O aprendizado
das normas está ligado a uma barganha do amor; trata-se de algo inevitável,
na medida em que a criança, apesar do seu bom senso, é inevitável e
apaixonadamente apegada àqueles que a criam. É o quinhão humilhante de
todos os seres humanos: amamos esses seres humanos que são nossos pais
ou que cuidam de nós; é terrível descobrir que não temos outra escolha
senão amá-los e que esse amor é absoluto.”19 O Sexual soltou todas as
amarras, com o instinto, com o genital e, portanto, com a relação sexual.
Sua liberdade, no entanto, não é a nossa, seria antes nosso determinismo,
mesmo que a experiência da psicanálise repouse justamente na esperança
de que uma renegociação dos termos do tratado seja possível.
O seguimento da discussão toca no essencial: diferenças dos sexos e
bissexualidade. Em que medida o “transtorno do gênero”, na teoria e na
vida social, leva a psicanálise a rever as bases de seu próprio edifício?
Deve-se integrar a noção de gênero no nosso aparelho teórico, mas qual
seria o seu valor heurístico? Seria um pouco simplista opor à questão do
gênero a boa e velha resposta: rocha originária biológica da sexuação e
destino da anatomia. O conhecimento biológico da sexuação data de ontem,
enquanto a representação da diferença dos sexos tem a idade das cavernas.
O homem é um cavalo, a mulher, um bisão: é a mais antiga codificação
conhecida, aquela que Leroy-Gourhan identifica em cada caverna, da
Espanha à Ucrânia. Durante séculos, até o século XVIII, a medicina teve
como verdade científica a teoria sexual infantil de Galeno, médico grego do
século II: existe um único sexo, a diferença é que os homens têm
externamente o que as mulheres têm internamente, como uma luva do
avesso. O paradoxo é que essa “ciência”, a biologia histórica, sempre
ouvida no divã ao sabor do infantilismo de cada um, está mais próxima do
inconsciente do que a racionalidade de hoje. “A Sexualtheorie não é uma
Geschlechtstheorie.”20 Armand é paciente no divã e ginecologista na vida.
Nada faz duvidar de sua competência profissional nem de seus
conhecimentos em biologia. Isso não o impede de não se conformar: a
localização da entrada da vagina não deveria estar ali, tão embaixo, deveria
19
20
Humain, inhumain, op.cit. p.119.
J.Laplanche, Sexual, PUF, 2007, p.155.
ser mais em cima; uma ameaça de confusão cloacal que não teve um papel
desprezível em sua escolha profissional.
A anatomia, aquela do destino, não é mais a do fisiologista, é uma
“anatomia popular”, como observa Jean Laplanche21. O enunciado “é um
menino, é uma menina” segue uma percepção visual. Merleau-Ponty e
muitos outros antes dele mostraram a impossibilidade de isolar o
acontecimento da percepção da experiência humana na qual ela se insere.
Não há percepção ingênua, não há um ver que não seja informado por um
mundo simbólico que o antecede. A serpente e a medusa, o cavalo e o bisão
estão aí bem antes da percepção do sexo da criança que acaba de nascer. A
coisa vista deve ser circuncidada, extirpada, acariciada, não tocada,
mostrada, escondida? E aquele que vê nada quando vê uma vulva não é
apenas um míope, mas um homem cegado pela angústia de castração.
Até então, pode-se concordar com o construtivismo das teorias do
gênero que o corpo, o sexo, não foge à atividade simbólica e não nos é
acessível aquém da ordem da representação. O momento delicado é quando
a teoria se torna ideologia, quando o performático acaba por acreditar na
magia de seu próprio poder. A atribuição de gênero nunca abolirá o acaso
do que acaba de ser visto. Paradoxalmente, é a perplexidade e a angústia
que invadem os pais da criança hermafrodita quando aquilo que veem é
indeterminável, nem menino nem menina, indicando em negativo a dívida
psíquica definitiva com a dimensão propriamente visual da percepção. A
coisa vista pode ser reconhecida, recusada ou denegada, seu impacto não é
certamente menor quando o tratamento psíquico é mais alucinatório que
perceptivo. Não se sabe qual é o sexo de Storm, mas isso não impediu que
seus pais o registrassem no Canadá como menino ou menina. Talvez seja o
21
J.Laplanche, op.cit., p.171.
transexual, aquele que é operado, que se submete ao máximo à realidade da
“realidade” perceptiva.
Amália é uma mulher jovem, lésbica. Qual é o seu gênero? Ela
lembra menos um menino do que um menino travestido de menina. Seu pai
(sua mãe também, de maneira mais obscura) desejava um menino, ele teve
um menino. A escolha amorosa de Amália é fiel a essa primeira
identificação, ela gosta do outro sexo que não é o seu sexo psíquico. No
entanto, há um resto; ela se lembra de sua raiva no dia em que seu irmão
menor nascera, no dia da circuncisão. A prova do pênis está no fato de
poder ser cortado. “Eu também!” “Mas é só um pedaço de pele”, lhe
dissera o pai. “Se é só isso, por que não eu?” Toda a vida de Amália é
pontuada por pequenos pedaços, à imagem da angústia que tomou conta
dela quando perdeu um ponto na carteira de motorista. Decidir por uma
identidade de gênero masculina seria ignorar não só sua bissexualidade,
mesmo que essa também traga a marcar da masculinidade – aceitando o
risco de ser penetrada é a la enculada que ela se submete. Mas também
ignorar uma complexidade da qual participa o conflito psíquico no pai entre
o que ele viu e o que ele quis. Durante toda a infância, ele chamou sua filha
de Macha. Como “macho”, certo, mas uma letrinha mantém a diferença e a
lembrança da coisa vista. “Sexo psíquico”, mais do que “gênero”, pareceme ter alguma chance de nomear esse imbróglio do qual sempre toma parte
a coisa vista. Ao “gênero”, justamente, falta um pouco de “sexo”.
É impossível, no entanto, voltar à diferença dos sexos como se nada
fosse. A primeira questão é tópica: em que estágio da vida psíquica ela se
manifesta? Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem e o
primado do significante é também o do falo, nada impede que a referida
diferença encontre aí seu lugar. Mas se o inconsciente ignora o tempo
assim como a negação, não há nenhuma chance de encontrar aí uma
diferença, seja dos sexos ou de outra coisa. Toda diferença, opondo dois
fonemas ou dois sexos, baseia-se num não que mantém os dois termos à
distância um do outro. Essa hesitação tópica convida a reinterrogar a
expressão: “diferenças dos sexos”. O modo como certos psicanalistas a
exibem, como um credo, na face diabólica daqueles que querem multiplicar
os gêneros (errados), é mais um convite a retomar a análise do que a se
juntar à procissão.
A dificuldade se deve talvez ao fato de que a referida “diferença”
confunde dois níveis heterogêneos. No nível mais elevado, o da ordem
simbólica, que só é inconsciente no sentido das “estruturas inconscientes”
de Lévi-Strauss ou de Françoise Héritier, a diferenciação dos sexos opõe,
distingue, divide o mundo, atribui papéis, em suma, põe ordem onde não há
mais ordem, por falta de “natureza”. O animal não se faz tantas perguntas;
para ele, os sexos não são diferentes, mas complementares, tão ajustados
um ao outro no momento do cio quanto a junção de duas peças macho-efêmea. O ordenamento simbólico coletivo tem sua garantia na escala do
indivíduo, através da organização, da estruturação do que é ameaçado pelo
caos polimorfo do Sexual. Este faz sexo de tudo e qualquer coisa: a boca, o
ânus, a pele, o polegar, a atividade de pensamento... e, em tempos de
violências edípicas, faz da criança “brinquedo erótico” e objeto de desejo
irreprimível os pais dos dois sexos. O complexo de Édipo pouco se importa
com a diferença dos sexos e das gerações, Jocasta se deita com Édipo,
somente o fato de sair disso, a catástrofe que põe fim22, permite que o
mundo se mantenha de pé.
As coisas são obviamente mais complicadas, na medida em que o
que chamamos de “diferença dos sexos” mantém o traço daquilo que ela
tenta afastar. Ordenamento simbólico por um lado, ela traz, por outro lado,
22
Freud, La disparition du complexe d‟Œdipe, OCF XVII.
as marcas da confusão imaginária que combate. O não que a constitui a
aparenta aos processos secundários e a situa topicamente no nível do eu,
mas o detalhe de cada um de seus possíveis enunciados tem a forma de
uma teoria sexual infantil e da fantasia que a produz. A expressão
“diferença dos sexos” é uma generalidade que mascara o fato de que
sempre lidamos com ela somente através de suas interpretações. A política
é o ofício de Jerome, suas convicções democráticas o levaram a votar sem
nenhuma hesitação todas as leis sobre a paridade, mantendo intacta sua
versão sobre as diferenças dos sexos: “Existem dois sexos, os homens e as
secretárias.” Desde o par cavalo-bisão até a concepção singular proposta
por tal ou qual paciente, a diferença dos sexos se expressa numa
multiplicidade de traduções cujo inventário antropológico, histórico e
individual preencheria várias estantes de biblioteca. Uma multiplicidade na
medida do caráter irredutível do enigma, no fundo do enigma do Sexual,
desde que ele perdeu a orientação pelo instinto e pelo genital. Que
diferença existe entre os sexos? Somente as mulheres fazem filhos, tanto
menina como menino. A mulher sangra, o homem faz sangrar; o homem é
uma azagaia, a mulher, um animal caçado e ferido. Não há um mito
originário que não invente sua tradução: a mulher é o osso sobressalente do
homem (Bossuet, traduzindo Gênesis). Tirésias, Galeno e muitos outros
acrescentaram sua pedra ao edifício, à imagem da “loucura Althusser”: “O
menino tem somente dois orifícios, a menina tem três.”23 De maneira
bastante curiosa, nessa polifonia das interpretações, a teoria sexual infantil
dos psicanalistas tende a seguir a crença do primeiro dos seus, Hans: não há
diferença dos sexos, pela simples razão de que não há dois sexos, mas um
só, aquele que se tem ou não se tem. Faz parte da “lógica” imaginária do
primado do Falo o fato de se tomar pela única teoria que valha. É mais
espantoso ver os próprios psicanalistas entoar o refrão, numa confusão que
23
Louis Althusser, L’avenir dure longtemps.
não permite mais distinguir, teorizar e fantasiar. Se o sexo da mulher fosse
apenas uma castração, passada ou prometida, como explicar o fato de que
tantos homens continuam correndo para elas? Por certo, a Viagem ao
centro da terra ou Vinte mil léguas submarinas comportam algumas
armadilhas, mas esse é o preço a pagar para descobrir o Graal. O sucesso
da lógica fálica se deve provavelmente ao seu notável poder de
simplificação. Como destaca Freud, essa passagem da Vershiedenheit a
Unterschied constitui uma “deterioração do intelecto infantil”24, a mesma
que faz com que os seguidores da escola de Wundt digam: não existem
fatos psíquicos inconscientes, há apenas os fatos conscientes e aqueles que
ainda não o são, mas essa redução ao binarismo presença/ ausência não
deixa de ter uma notável eficácia classificatória.
A perda da bússola instintual desorienta o viajante que chega de
Sírius25 e o mergulha na maior perplexidade: por que dois sexos? Ao
percorrer as variantes interpretativas da diferença, tem-se mesmo assim o
sentimento de que um dos dois sexos, o sexo feminino, é mais alter que o
outro. No cavalo, vemos e, eventualmente, admiramos; quanto ao bisão,
isso se perde no pêlo, o que pode inquietar. E não é a vulva desmedida às
vezes pintada nos seus flancos que vai serenar. Diante dessa alteridade dos
sexos, pode-se formular a hipótese de que há duas grandes maneiras de a
psique escamotear a dificuldade: a maneira que consiste em reduzir dois a
um, o desconhecido ao conhecido, o outro ao ausente, a alteridade à
diferença. A redução fálica é exemplar nesse aspecto. A outra maneira está
muito em voga hoje, seguindo uma aritmética inversa: 2 mais n. “Não sou
mulher nem sou homem, sou lésbica”, diz também aquela que fica “gata”
quando se veste de mulher. Mulher, homem, gay, lésbica, butch, femme,
intersexuado, assexuado, transexual, transgênero, drag queen, drag king...
24
25
OCF IX, 10.
Freud.
o gênero encobre o sexo, a multiplicação dos gêneros, a passagem de um ao
outro mergulha a dualidade dos sexos numa diversidade que se diz
subversiva e deleitável e torna um tanto cafona a bissexualidade em si.
A bissexualidade une apenas dois, sempre os mesmos e, além disso,
nunca um sem o outro. A psicanálise mais cafona, a nossa, poderia
dificilmente, contudo, prescindir dessa noção. Mas também em relação a
esta, a hesitação tópica permanece. Seria original, figura primitiva do
Sexual, ou seria reacional, uma maneira de opor-se aos limites da sexuação,
de vencer a castração? Ela precederia a diferença dos sexos ou responderia
a ela? Essa maneira binária de fazer a pergunta tem o mérito da clareza,
correndo o risco de perder certa complexidade. J-B. Pontalis inclina-se
nitidamente para o segundo termo da alternativa: “a bissexualidade não
visaria menos, sob o manto de um ser total, sem fenda, vencer a diferença
do que preservar-se de seus efeitos? [...] A atribuição de um sexo priva dos
órgãos e dos poderes do outro sexo, daquele que não se tem; o bissexual
(outro nome para Narciso) aparece como completo.” A redução, própria da
lógica fálica, conduz o raciocínio: “Longe de negar o primado do falo (ser
Um e indivisível), a bissexualidade o consagra.”26 Eu formulo atualmente
as coisa de maneira muito menos definida... e muito menos clara. A clínica
da criança hermafrodita e de seus pais tende a mostrar que, se a criança se
vê psiquicamente privada de algo é, paradoxalmente, do jogo da
bissexualidade27. A confusão biológica violenta a ordem simbólica, aquela
que diferencia sem sombra de dúvida menina e menino. No imaginário, não
se pode reforçar isso, levando à plasticidade identificatória, as mensagens
superegóicas dos pais procuram fechar, enrijecer a atribuição. Seguindo
essa linha, pode-se levantar a hipótese de que a diferença dos sexos na
ordem simbólica, na qual a criança por nascer vai se inserir, é a condição
26
27
J-B.Pontalis, L‟insaisissable entre-deux, Nouvelle Reviue de Psychanalyse, Gallimard, n°7, 1973.
Karinne Guéniche.
de possibilidade, o enquadramento antropológico que permite a abertura
individual do campo dos possíveis; de que a identificação com as duas
posições sexuais só é suportável se estiver apoiada num fundo de
simbolização que as distinga. Concebendo-a por esse ângulo, a
bissexualidade não é uma formação reacional à diferença dos sexos, mas,
quase inversamente, um jogo psíquico (combinando o desejo e a
identificação) oferecido por ela. As homossexualidades masculinas e
femininas são múltiplas, as bissexualidades também. O movimento de
redução psíquica a uma figura teórica do Um faz parte da própria coisa. A
fantasia bissexual como variante da recusa da castração certamente não
deixa de se fazer ouvir com frequência. Mas essa história não é a única ou a
última palavra, é uma história entre outras. A vertente unificadora, à qual a
teoria jamais foge completamente, é a dívida paga a Narciso. Um é o seu
algarismo.
Swann não ama mais Odette, ele a deixou e reata com sua
“malandrice intermitente”: “Dizer que desperdicei anos da minha vida, quis
morrer, tive meu maior amor por uma mulher que não me agradava, que
não era meu gênero.”28
Tradução: Vanise Dresch
28
Proust , Pléiade, t.I, 382.