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Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 Os Rituais Funerários do Antigo Egito: Os materiais, as práticas e crenças que fundamentam a passagem para a vida eterna The Funeral Rituals of Ancient Egypt: Materials, practices and beliefs that underlie the passage to eternal life CORONA,George Francisco Resumo O presente ensaio bibliográfico lança um olhar sobre as práticas funerárias do Egito Antigo, mais especificamente de acordo com as pesquisas do egiptólogo e arqueólogo britânico Wallis Budge, baseadas principalmente no papiro de Ani, um manuscrito funerário da XIX dinastia, datado aproximadamente entre 1300 a 1200 a.C. Verifica-se como o ritual mortuário e cada material usado nele estão intimamente ligados com os mitos da criação e da ressurreição do deus Osíris, e o desenvolvimento das ideias de julgamento da conduta moral (o juízo final), salvação e aniquilação da alma, paraíso e vida eterna. O egípcio morto devia empreender uma passagem desta vida para a outra, mas para tanto ele devia enfrentar os perigos do mundo dos mortos. A mumificação, os amuletos, as palavras e fórmulas de poder sobre os espíritos e sobre a matéria, os hieróglifos, as pinturas, as estátuas e os túmulos eram elementos obrigatórios e preciosos para que se atingisse a imortalidade. Palavras-chave: Livro dos Mortos - Imortalidade - Mumificação Abstract This bibliographic essay takes a look at the burial practices of Ancient Egypt, more specifically according to research by the British archaeologist and Egyptologist Wallis Budge, based mainly on papyrus of Ani, an undertaker manuscript of the nineteenth dynasty, dating from approximately 1300 Mestre em Ciências das Religiões - Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões - Faculdade Unida de Vitória Rua Engenheiro Fábio Ruschi - Nº 161 - Bento Ferreira - Vitória - ES - Brasil - CEP.: 29.050-670 - Tel.: (27) 3325 - 2071 / 0800 770 2071 Vínculo Institucional: Professor da Faculdade Castelo Branco, Colatina-ES. Contato: (27) 99721-9285 (27) 3721-2846 - (27) 3722-0014 E-mail: [email protected]. Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 1 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 to 1200 BC it is found as mortuary ritual and every material used in it are closely connected with the myths of creation and resurrection of the god Osiris, and the development of ideas and judgments of moral conduct (the final judgment), salvation and annihilation of the soul, paradise and eternal life. The dead Egyptian should undertake a passage from this life to another, but to do so he must face the dangers of the underworld. The mummification, amulets, words and formulas of power over the spirits and matter, hieroglyphics, paintings, statues and tombs are mandatory and precious in order to attain immortality elements. Keywords : Book of the Dead - Immortality - Mummification 1. AS CRENÇAS NA VIDA APÓS A MORTE 1.1 A Crença na Imortalidade Entre os egípcios a ideia de imortalidade, que permaneceu inalterada por milhares de anos, formou o eixo sobre o qual a vida religiosa e social dos egípcios antigos realmente girou. Do início ao fim de sua vida, o principal pensamento do egípcio era sobre a vida além-túmulo: esculturas, sepulturas, mobílias, ou seja, tudo estava firme no pensamento deles para a hora que a múmia seria levada para sua morada eterna (Cf. BUDGE, 2004, p.10). "A ressurreição era o objetivo com que se recitava cada oração e se celebrava cada cerimônia, e todos os textos, amuletos e fórmulas, de todos os períodos, destinavam-se a permitir ao mortal revestir-se de imortalidade e viver eternamente num corpo transformado e glorificado". (BUDGE, 1990, p.119) De fato essa crença na vida após a morte se encontra registrada em hieróglifos, nas paredes das Câmaras mortuárias, em templos religiosos, nos sarcófagos e especialmente em diversos manuscritos em tiras de linho e folhas de papiro. Esses manuscritos, uma grande compilação de textos religiosos, são conhecidos como Livro dos Mortos (Cf. BUDGE, 2004, p.10). A Crença na vida futura, a doutrina da ressurreição, os ideais e aspirações, as reverências a objetos sagrados, ritos mágicos e encantamentos, ou seja, uma tradição que cobre um período de cerca de cinco mil anos se encontra condensada nesse livro. Essa obra será o centro de investigação desta pesquisa. A obra base para a investigação desses textos funerários é O Livro Egípcio dos Mortos, uma tradução inglesa dos hieróglifos empreendida pelos egiptólogos Kegan Paul, Trench e Trübner, além do autor da referida obra analisada, o egiptólogo britânico Sir. Ernest Alfred Thompson Wallis Budge (1857-1934). O livro supracitado é de tradução para o português de Octavio Mendes Cajado, da editora Pensamento, obra que a princípio era em três Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 2 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 volumes, mas que na última edição foi organizada em volume único, publicada em 1993. Também será confrontado com outra tradução do Livro dos Mortos do Antigo Egito, de Edith de Carvalho Negraes, da editora Hemus, publicado em 1982. A análise e interpretação da escrita hieroglífica, assim como das vinhetas e símbolos que se encontram nos rolos, serão embasadas nas obras do egiptólogo britânico Ernest Alfred Thompson Wallis Budge (1857-1934). Foi Budge quem encontrou o Papiro de Ani, em 1887, a versão mais famosa e bem conservada do Livro dos Mortos. Esse manuscrito foi elaborado na XIX dinastia, entre 1307 a 1196 a.C., sendo que muitas das mesmas ideias dos egípcios sobre a crença no pós-morte também são encontradas em escritos da V e VI dinastias, por volta de 3500 a.C (Cf. BUDGE, 1993, p.10-11). 1.2 O Livro Egípcio dos Mortos O chamado Livro dos Mortos forma uma coleção representativa das várias composições que os egípcios inscreveram nas paredes de túmulos e sarcófagos, esquifes e estelas fúnebres, papiros e amuletos, a fim de assegurar aos seus mortos o bem-estar no mundo do além-túmulo. Esse livro é uma tradução de hieróglifos encontrados sobretudo em Tebas, e por isso são conhecidos, em conjunto, como Recensão Tebana do Livro dos Mortos, ou seja, a Recensão da grande obra funerária nacional, copiada pelos escribas para si mesmos, para reis e rainhas, nobres, pessoas de elevada posição social e inclusive para os humildes, desde 1600 a.C até 900 a.C. aproximadamente (Cf. BUDGE, 1993, p.09). O nome Livro dos Mortos em si é insatisfatório, pois não traduz o antigo título egípcio dado aos manuscritos: Reu Nu Pert Em Hru, cuja tradução seria Capítulos do Sair à Luz, ou De como sair à Luz (Cf. BUDGE, 1993, p.13). O Nome Livro dos Mortos provém de uma primeira tradução dos hieróglifos dos papiros funerários que foram publicados pelo egiptólogo alemão Karl Richard Lepsius, em 1842, sob o título de Das Todtenbuch der Aegypter, título em alemão que se traduz por O Livro dos Mortos, a mesma tradução que Budge usa: The Book of de Dead (Cf. BUDGE, 1993, p.10-11). Grande parte das composições do Livro se refere aos mortos e ao que acontece com eles no mundo alémtúmulo, sendo que uma pequena parte se refere aos rituais a serem praticados pelos sacerdotes e pelos Recensão: do latim, Recensione, ou seja, o conjunto, uma relação dos manuscritos antigos; um confronto do texto de uma edição com os manuscritos originais, um exame crítico de um texto. Cf. Dicionário Latim-Português, Portiguês-Latim. Porto: Porto Editora, 2011. p.426. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro, 1986. p.1461. Castelo Branco Científica - Ano III - Nº 06 - julho/dezembro de 2014 - www.castelobrancocientifica.com.br 3 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 próprios mortos durante a passagem para a outra vida. Nenhum papiro contém todos os capítulos e vinhetas da Recensão Tebana do Livro dos Mortos, e não existem dois papiros que concordem no conteúdo ou no número de capítulos. Portanto, só foi possível organizar uma edição do Livro dos Mortos recorrendo-se a vários papiros (Cf. BUDGE, 1993, p.10). O Livro contém cerca de duzentos capítulos - ou estrofes - além de hinos e rubricas. Não há, por assim dizer, um volume do Livro dos Mortos completo: a escolha das estrofes escritas em cada papiro variava de acordo com o tamanho do rolo de papiro, a preferência do cliente e a opinião do sacerdote e do escriba que fazia a escrita; um Livro dos Mortos continha, em média, de quarenta a cinquenta estrofes (ou capítulos) (Cf. NETTO, 2013). Posto que os capítulos do Livro dos Mortos representam crenças pertencentes a vários períodos da longa vida da nação egípcia, desde o período pré-dinástico, cerca de 3200 a.C., e opiniões sustentadas por diversas escolas de pensamento, pode-se dizer que o objetivo de todos eles é beneficiar o morto. Davam-lhe o poder de possuir a vida eterna, além de tudo o que precisasse no Outro Mundo, como a vitória sobre os inimigos e armadilhas e a amizade dos seres benéficos que ali habitavam. Dava-lhe poder de ir e vir, como e quando quisesse a todas as partes, e também dava o dom de conservar intactas e unidas todas as partes de seu corpo mumificado. Também permitia ao morto atingir os Campos Elísios, a morada dos deuses, o Reino de Osíris, onde havia a felicidade eterna (Cf. BUDGE, 1993, p.47). De acordo com a crença dos egípcios esse conjunto de textos era considerado como obra do deus Thoth. As fórmulas contidas nesses escritos garantiam ao falecido uma viagem segura para a outra vida, e como estavam grafadas sobre o papiro, um material de baixo custo, proporcionavam que qualquer pessoa tivesse acesso ao mundo da vida eterna (Cf. NETTO, 2013). 1.3 O mito da Criação e a história de Osíris Para que se possa compreender o sentido das práticas funerárias dos antigos egípcios se faz necessário o conhecimento do mito que forneceu os principais elementos da crença na ressurreição e na imortalidade do ser humano. O mito não é um fruto de pura ficção de mentalidades primitivas. O Mito justifica e explica as práticas rituais. Como diz Regis Debray, a função verdadeira dos mitos é reparar, em nós, os desgastes do tempo. Se uma religião não fosse anacrônica, perderia a mais profunda razão de ser, que é medicar nossa contingência, conferindo ao ontem a dimensão de um sempre (DEBRAY, 2004, p.160; p.361). Tal mito é a história do homem-deus sofredor Osíris, uma história que embasou Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 4 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 uma crença amplamente espalhada pelo Egito antigo: a história que relata sobre a possibilidade de o ser humano continuar a viver após a morte (Cf. BUDGE, 2004, p.53). Assim se expressa Budge antes de iniciar a narrativa do Mito de Osíris: Os primeiros autores dos antigos textos hieroglíficos fúnebres e seus compiladores recentes assumiram tão completamente que a história de Osíris era conhecida por todos os homens, que nenhum deles, até onde nós sabemos, pensou que fosse necessário registrar uma narrativa relacionada à vida e sofrimentos desse deus sobre a terra, ou se eles o fizeram, não chegou até nós (BUDGE, 2004, p.41). Budge quis afirmar que não há uma compilação crítica e oficial do Mito da criação do mundo e da história de Osíris. Os desenhos nas paredes dos templos e papiros apenas relatam uma história já conhecida dos egípcios. Portanto, Budge lança mão do texto do autor grego Plutarco, do séc. I d.C, o qual, apesar das impróprias relações que faz entre os deuses gregos e egípcios, traça uma narrativa cheia de elementos da cultura egípcia (Cf. BUDGE, 2004, p.42). Pode-se descrever, de modo generalizado, o mito de Osíris da seguinte forma: No começo não havia nada, a não ser apenas um imenso oceano primitivo e informe, repleto de um espírito divino e do germe de todas as coisas, conhecido por Nu (ou Num) (Cf. BUDGE, 2004, p.84), e a sua volta havia apenas o silêncio, as trevas e o caos em fim. Então, misteriosamente esse oceano desperta de seu sono profundo, e poderosas tempestades fazem suas águas se agitarem intensamente. De dentro desse oceano informe surge uma ilha, uma porção de terra seca. Do meio dessa ilha surge uma flor de lótus (ou em outras versões, um Ovo) (Cf. Cf. BUDGE, 2004, p.27), e de dentro dessa flor - ou Ovo - surge o deus-sol Rá, que é a encarnação do poder onipotente do espírito divino. Ao abrir seus olhos, o deus Rá enche todo aquele espaço vazio com sua forte luz. Essa luz deu início à criação. Do olho de Rá escorre uma lágrima, da qual surgem os seres humanos. Em seguida, Rá fecha seus olhos e começa a criar os deuses que lhe farão companhia: Tefnut (deusa da água) e Shu (deus do ar). Os deuses Shu e Tefnut deram luz a Geb e a Nut. Geb - ou Keb, ou Seb, dependendo da tradução - (deus da terra) e Nut (deusa do céu), deram luz a quatro filhos: Osíris, Ísis, Seth e Néftis. Osíris era irmão e marido de Ísis, enquanto Seth era irmão e marido de Néftis (Cf. COUTO, 2008, p.68). Osíris governou toda a terra conhecida - ou seja, tornou-se o rei do Egito - e começou a civilizar os seres humanos através da educação, criando leis, ensinando técnicas agrícolas, o modo de dominar os animais e ensinou a reverência e o culto aos deuses. Osíris viaja então pelo mundo para disciplinar Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 5 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 outros povos, enquanto isso sua irmã-esposa Ísis governava o Egito em seu lugar. Seu irmão Seth, invejoso do sucesso de Osíris, trama um plano para matá-lo. Conspirou com outras 72 pessoas e construiu um magnífico sarcófago, com as medidas exatas do corpo de Osíris. Seth e os conspiradores armam um banquete importante e convidam o rei. Durante a festa, Seth quis agradar aos convidados, dizendo que daria de presente o belo sarcófago para aquele que tivesse o tamanho certo para caber nele. Os convidados experimentavam e não se encaixavam nas medidas, até que chegou a vez de Osíris. Ao entrar no sarcófago para experimentar, Seth e os conspiradores fecharam rapidamente o sarcófago, pregando a tampa e jogando chumbo derretido por cima (Cf. BUDGE, 2004, p.44). Então jogaram o sarcófago no Rio Nilo, cuja correnteza arrastou-o até o Mar Mediterrâneo, parando entre os ramos de uma pequena árvore de tamarisco, na cidade de Biblos, na região dos pântanos de papiros do delta. Essa árvore cresceu e envolveu o sarcófago, escondendo-o dentro do seu tronco. Tempos depois, o Rei dessa cidade, maravilhado com o esplendor e tamanho daquela árvore, mandou cortá-la para servir de coluna em seu palácio. Ao saber da tragédia, Ísis saiu angustiada à procura de seu marido Osíris. Durante a sua busca, ficou sabendo que Osíris havia sido enganado por sua irmã Néftis, que estava apaixonada por ele. Osíris havia tido uma relação com Néftis, pensando ser ela Ísis, e dessa relação nasceu um filho. Néftis, temendo a reação de seu marido Seth, decidiu abandonar a criança. Ísis então se empenha em procurar a criança abandonada, e depois de muita dificuldade consegue achar a criança com a ajuda de cães, que a conduziram ao local exato onde ela se encontrava. Ísis então criou essa criança, e ele se tornou seu constante guardião e servo, assim como os cães fazem com os homens. Esse filho de Osíris se chamou Anúbis (Cf. BUDGE, 2004, p.47). Através de informantes, Ísis chegou até a cidade de Biblos. Depois de ter feito uma profunda amizade com a rainha da cidade, Ísis conseguiu que lhe desse a coluna daquele palácio, a qual cortou e tirou dali o sarcófago. Ela enrolou o restante da coluna com linho, derramou óleo perfumado sobre ela e devolveu aos reis de Biblos (Cf. COUTO, 2008, p.69). Ísis pranteou e lamentou muito sobre o corpo morto de seu marido, e depois disso trouxe de volta para o Egito e o escondeu em lugar secreto. Seth, ao saber do resgate do corpo de Osíris, consegue localizar Osíris e então corta seu corpo em vários pedaços e os espalha por todo o Egito. O número de pedaços em que o corpo foi cortado varia, de acordo com as versões da história, de 14 a 42, pois seriam associados ao número de dias entre a lua cheia e a lua nova (14) e o número de nomos - ou províncias - que formavam o Egito (42) (Cf. COUTO, 2008, p.69). Ísis parte mais uma vez à procura dos fragmentos espalhados do corpo de seu marido, Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 6 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 dessa vez com ajuda da sua irmã Néftis. Ela utilizou um barco feito de junco para navegar pelos pântanos de papiro do Rio Nilo. Ísis fazia um sepulcro para Osíris em cada cidade, à medida que ela encontrava os pedaços do corpo, a fim de homenagear tal local e ao mesmo tempo enganar e dificultar a maliciosa procura de Seth e seus seguidores. Ísis encontrou e juntou todas as partes do corpo de Osíris, exceto uma: seu pênis. Esta parte foi lançada no Rio Nilo por Seth, logo que cortou seu corpo, e os peixes o devoraram. Para substituir esse órgão, Ísis criou um pênis com caules vegetais (Cf. COUTO, 2008, p.69). Ocorre então o primeiro processo de mumificação, em que Ísis e Néftis recebem ajuda de Anúbis - filho de Osíris com Néftis. O corpo do morto foi embalsamado, recebeu uma série de amuletos que o protegiam de todo mal existente e foram recitadas várias fórmulas mágicas, escritas por Thoth, ditas por Ísis (Cf. BUDGE, 1993, p.18). Então Ísis se transforma em um milhafre, e, planando sobre o corpo de Osíris, bate as asas e faz um vento mágico que o ressuscita. Ao mesmo tempo, a Ísis em forma de milhafre tem uma relação com Osíris e nasce assim Hórus. Ísis, tendo dado luz a Hórus, amamentou-o e este cresceu e se tornou forte. Quando adulto guerreou contra Seth diversas vezes e sempre o vencia, vingando a morte de seu pai Osíris e sendo assim seu sucessor no trono do Egito (Cf. BUDGE, 1993, p.53). Osíris passa a governar, então, o mundo dos mortos, chamado de Amenti (ou Amentet), enquanto Hórus governa o mundo dos vivos (Cf. BUDGE, 1993, p.95). 1.4 A Crença em Osíris e na vida após a morte. A crença na vida após a morte e na ressurreição do homem está baseada nesse mito, onde Osíris, deushomem e rei, sofreu a morte e a mutilação, foi mumificado, recebeu de suas irmãs Ísis e Néftis uma série de amuletos que o protegiam de todo o mal no mundo dos mortos, além de ter recebido várias fórmulas mágicas, recitadas por elas e escritas por Thoth, alcançando assim a vida eterna. Esta era a mais importante de todas as crenças encontrada no Livro dos Mortos (Cf. BUDGE, 1993, p.18). Era muito ampla a fé no deus Osíris por todo o Egito desde tempos muito antigos. O seu culto era quase universal, e foi considerado um tipo de deus nacional. Foram atribuídos a Osíris os poderes e qualidades dos outros deuses mais antigos, e era visto não só como o deus dos mortos, mas também como fonte e origem de toda a realidade existente. Foi igualado ao seu pai, o deus Rá, e posto praticamente como o maior dos deuses (Cf. BUDGE, 1993, p.56). Osíris passou a representar para os egípcios a ideia de um homem-deus, que viveu como um homem, Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 7 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 sofreu os sofrimentos humanos, morreu e ressuscitou, vivendo eternamente em seguida, no outro mundo. Por ter uma personalidade humana, os egípcios se identificaram facilmente com Osíris. Portanto, se Osíris viveu, morreu, passou por rituais de mumificação e de palavras e atos mágicos e por isso ressuscitou, então o egípcio poderia seguir o mesmo caminho. Os egípcios criaram todo um aparato religioso, incluindo templos, sacerdotes, sepulturas, materiais para mumificação, amuletos, estátuas, símbolos, fórmulas mágicas e toda sorte de rituais a fim de imitar a passagem que Osíris fez para o outro mundo, para a vida eterna. A grande ênfase dessa passagem é a múmia: Símbolo do mistério que a civilização egípcia representa, as múmias são bem mais do que um simples corpo humano transformado em objeto de estudo. Aquelas tentativas de preservação dos corpos de seus poderosos monarcas fornecem vários e precisos dados sobre o pensamento religioso vigente na civilização faraônica e são testemunhas mudas de suas antigas crenças numa ressurreição da alma por meio da conservação de seu "habitat natural", por assim dizer (COUTO, 2008, p.64). Assim como Osíris, o corpo devia ser conservado após a morte, pois sem ele seria impossível alcançar a imortalidade (COUTO, 2008, p.70). Mais adiante será analisada a questão da importância da imitação do gesto fundador, ou seja, a imitação das atitudes de Osíris. Foram exatamente por causa de palavras escritas, fórmulas mágicas e o modo de recitá-las sobre o defunto que se garante, de acordo com o mito, a ressurreição do morto. Tais palavras foram criadas e escritas - de acordo com a crença - por Thoth e ditas pela boca de Ísis (Cf. BUDGE, 1990, p.104). Logo, o que se procura, então, nos rituais funerários de mumificação é garantir os meios materiais necessários para que, ao proferir as palavras sagradas, ocorra a ressurreição e a passagem para a vida eterna. Antes de tratar das palavras sagradas do Livro dos Mortos é importante compreender a concepção de homem para o egípcio antigo. 1.5 As palavras sagradas na mumificação de Osíris Como relatado no mito, foi o deus Thoth que deu à deusa Ísis as palavras sagradas que possibilitaram a ressurreição de Osíris e um corpo sahu eterno (Cf. BUDGE, LM, 1993, p.33). O Livro dos Mortos fornecia a coleção de todos os textos e fórmulas que sobre o falecido teriam de ser recitados a fim de Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 8 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 garantir êxito. Porém as palavras deviam ser pronunciadas da maneira adequada e ditas num tom apropriado de voz, para que tivessem efeito sobre os poderes do mundo inferior (Cf. BUDGE, 1990, p. 90). Ou seja, as palavras deviam ser as mesmas de Thoth, e pronunciadas da mesma forma que Ísis as pronunciou sobre o corpo de Osíris. Pelo fato de serem executadas sobre o corpo do falecido as mesmas ações que Ísis, Néftis e Anúbis fizeram sobre Osíris, acreditava-se que tudo o que ocorreu com o deus ressuscitado ocorreria com o falecido, o que levou a haver uma identificação muito forte do morto com o próprio Osíris (Cf. BUDGE, LM, 1993, 31). Por isso, em toda parte dos textos do Livro dos Mortos o falecido é chamado de Osíris, desde 3400 a.C aproximadamente (Cf. BUDGE, 1990, p.90). No papiro de Ani, o texto do Livro dos Mortos mais bem conservado da atualidade, assim está escrito: Ó Senhor do Amentet, estou em tua presença. Não há pecado em mim, não menti de caso pensado, nem fiz coisa alguma com o coração falso. Concede que eu seja um Osíris muito favorecido do formoso deus e amado do Senhor do mundo, [eu], o escriba real de Maat, que o ama, Ani, triunfante diante de Osíris (BUDGE, 1990, p.93). Também era aplicada ao falecido a expressão maa kheru, que se traduz por triunfante, verdadeiro de voz, certo de palavra. Aquele que adquiria essa expressão por título passava a ter poder de usar sua voz de maneira que todos os seres que encontrasse no outro mundo pudessem ser dominados. Isso evitava causar problemas no uso das fórmulas sagradas, visto que o emprego do som ou do tom da voz de maneira errada poderiam acarretar desastrosas consequências ao homem que as pronunciasse, inclusive a própria destruição (Cf. BUDGE, 1990, p.90). Os egípcios acreditavam que toda palavra dita em certas circunstâncias sempre gerava um efeito bom ou mau. Se a palavra fosse proferida por um homem cerimonialmente puro, em nome de uma divindade benéfica, no lugar apropriado e do modo e no tom de voz devidos, em favor de algo ou alguém, um efeito bom e favorável aconteceria por força dessa palavra. Do contrário, uma palavra proferida contra algo ou alguém, em nome de um ser maléfico, resultaria fatalmente em maldição para o homem que proferiu ou o para aquele que fosse objeto dessa palavra (Cf. BUDGE, 1993. p.41). Tudo isso resulta da crença mítica de que todo o universo foi criado pelo poder da palavra dita pelos deuses primordiais, e que foram interpretadas e escritas pelo deus Thoth. O correto conhecimento do nome de um deus, demônio ou ser humano implicava domínio sobre o ser dele (Cf. BUDGE, 1986, p.107). Se as palavras foram potentes em eficácia para criar todas as coisas e para ressuscitar Osíris, as Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 9 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 mesmas eram empregadas pelo sacerdote diante do cadáver, de forma falada ou escrita. 1.6 O Tribunal de Osíris e Maat - O Julgamento Será descrito detalhadamente o ponto alto da passagem definitiva da alma do falecido para a eternidade, ou seja, o momento do julgamento em um tribunal. Existe aqui uma clara questão de avaliação moral do indivíduo que terá julgado pelos deuses seu comportamento quando estava em vida no corpo físico (Cf. BUDGE, 2004, p.91). Desde o momento em que se iniciam os rituais de mumificação, procede-se ao início da viagem da alma pela região dos mortos - o Ament (ou Amentet) - que é cheio de perigos e demônios. Entenda-se aqui que a expressão Demônio, que é de origem grega (δαίμων - daimon), significa um ser divino em geral, porém secundário, abaixo das divindades superiores (Cf. ABBAGNANO, 2003, p.239), representam divindades inferiores e inimigas do deus-sol Rá, que pretendem dificultar e impedir a chegada da alma até o Tribunal do Julgamento. Antes de comparecer ao julgamento, o falecido declama hinos em louvor a Rá e a seu filho Osíris (Cf. BUDGE, 2004, p.100). Logo depois ele se encontra para o julgamento no chamado Tribunal de Maat. De acordo com Budge, "desde os tempos mais antigos, a Maat eram as duas deusas Ísis e Néftis, e elas eram assim chamadas porque representavam as ideias da honestidade, integridade, justeza, o que é correto, a verdade (...)" (BUDGE, 2004, p.100). Essas deusas permaneciam ao lado de Osíris, deus e juiz dos mortos. Juntamente com estes se encontravam mais 42 deuses. Então, diante dessas divindades, o finado enumerava os pecados que ele não cometeu. Passando diante de cada deus, o falecido citava seu nome sagrado e a ofensa que não empreendeu em vida. Esse momento ficou conhecido como Confissão Negativa, por ser uma negação do cometimento de faltas morais (Cf. BUDGE, 2004, 107). Em seguida era colocada uma balança onde o coração do falecido seria pesado. Enquanto num dos pratos era depositado o coração do falecido - Ib - no outro prato era colocada uma pluma de Maat, símbolo da lei, da justiça, da verdade. O nível da balança era examinado pelo deus Anúbis e um animal em forma de macaco, que se encontrava acima da balança, avisavam ao deus Thoth para registrar o resultado. Caso houvesse desequilíbrio entre o coração e a pluma de Maat, esse coração - ou seja, todo o ser do falecido - seria imediatamente devorado por uma criatura com corpo de leão e cabeça de crocodilo chamado de Am-mit (Cf. BOVO, 2008, p.16). Caso o coração se equilibrasse em peso com a Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 10 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 pluma de Maat, o deus Thoth registraria tal resultado e proferiria o seguinte discurso aos deuses presentes: Ouçam agora o julgamento. O coração de Osíris foi pesado com muita verdade e sua alma permaneceu como uma testemunha para ele; foi julgado verdadeiro pela prova na Grande Balança. Não foi encontrada nenhuma perversidade; ele não inutilizou as oferendas nos templos; ele não causou prejuízos com seus atos; e ele não espalhou más notícias pelo mundo afora enquanto esteve sobre a terra (BUDGE, 2004, p.112). Perante esse discurso proferido por Thoth, o Grande grupo de deuses respondia, emitindo assim o resultado da sentença: Aquele que sai da tua boca, oh Thoth, (...) está confirmado. Osíris, o escriba Ani, triunfante, é sagrado e justo. Ele não pecou nem fez maldade contra nós. O Devorador Am-mit não será permitido preponderar sobre ele, e oferendas de alimento e a entrada à presença do deus Osíris serão consentidas para ele, em conjunto com uma morada para sempre no Campo da Paz, como para os seguidores de Hórus (BUDGE, 2004, p.112). Depois disso o falecido, absolvido no julgamento, era tomado pela mão pelo deus Hórus e conduzido ao santuário. Ali se encontrava sentado em seu trono o deus Osíris, usando uma coroa branca com plumas, e nas mãos um cetro, um cajado e um chicote, que representavam sua soberania e poder. Ao lado direito estava Néftis e à esquerda Ísis. Diante dele, de pé por cima de uma flor de lótus estavam os quatro filhos de Hórus: Mestha, Hapi, Tuamutef e Qebhsennuf. Esses quatro deuses habitavam as chamadas nuvens divinas, e eram os deuses dos pontos cardeais, e os pilares que sustentavam o piso da Morada dos deuses, os Campos Elísios. Esses quatro deuses presidiam os principais órgãos internos do corpo humano (Cf. BUDGE, 2004, p.96). Então, deixando ali o falecido, Hórus se dirigia a seu pai Osíris com as seguintes palavras: "Eu vim a ti, oh Un-Nefer, e te trouxe o Ani de Osíris a ti. Seu coração foi julgado justo e saiu da balança; ele não pecou contra nenhum deus ou nenhuma deusa. Thoth o pesou de acordo com o decreto emitido para ele pelo grupo dos deuses; e é muito verdadeiro e justo. Concede-lhe doces e ale [uma espécie de cerveja escura-amarga]; e deixa-o entrar em tua presença; e que ele possa ser como os seguidores de Hórus para sempre!" (Cf. BUDGE, 2004, p.114). A seguir o falecido se postava de joelhos perante Osíris e declamava um discurso perante todos os Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 11 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 deuses, com voz de um maa Kheru, ou seja, com poder sobre as palavras e poder de convencer (Cf. BUDGE, 1990, p.90). O finado fazia várias súplicas e preces implorando a proteção e aceitação de sua presença no meio dos deuses, sendo também um deus, assim como eles. Após as preces o finado travava um diálogo com cada parte do tribunal de Maat, numa espécie de jogo enigmático de perguntas e respostas. As partes do Tribunal eram os ferrolhos das portas, as colunas, a soleira, a argola do cadeado e o chão. Cada uma dessas partes representava um ser, e o falecido devia conhecer o nome de cada um para assim obter permissão de passar. A parte final se dava quando o porteiro questionava o falecido se ele sabia seu nome, o qual revelava ser Thoth. Então ocorria o momento crucial para a entrada do falecido no convívio eterno no outro mundo: Thoth fazia a menção de seu nome (Ren) perante todos os deuses. Depois de passar por estas difíceis provações do Tribunal de Maat, o falecido se tornava um deus junto dos outros deuses (Cf. BUDGE, 2004, p.119). 1.7 O paraíso: os Campos Elísios Graças ao poder de proferir palavras verdadeiras (maa kheru) e reconhecidas como tal perante todas as divindades, as portas do paraíso se abriam e todos os seres que ali se encontravam obedeciam as ordem do morto triunfante no julgamento. Esse paraíso era conhecido como Campos Elísios e nele havia regiões distintas como o Sekhet Hetep ou Sekhet Hetepet (Campos da Paz), o Sekhet-Aaru (Campo dos Juncos). Este era um local onde as almas dos bem-aventurados que foram absolvidos no julgamento do Tribunal de Osíris viveriam eternamente em felicidade. O lugar tinha as características parecidas com a vida na terra, e acreditava-se que era uma continuação da outra. Era uma espécie de grande fazenda, cortada de canais e lagoas, campos com plantações e várias regiões, assim como a terra dos vivos. O falecido esperava ter no outro mundo, em abundância, os confortos materiais que havia desfrutado enquanto vivo, bem como encontrar seu pai, mãe, esposa, filhos e seu próprio deus. O egípcio fazia do seu mundo futuro um equivalente do Egito que ele conhecia e amava, e dava-lhe equivalentes celestiais de todas as suas cidades sagradas, (...) da existência de um curso de água como o Nilo, com tributários e ramificações, em que pudesse navegar e levar a cabo suas jornadas (BUDGE, 1993, p.40). Os Campos Elísios estavam acima da terra, no céu, e era uma grande superfície de ferro que constituía o chão do lugar. Cada um dos quatro cantos dessa superfície era sustentado por um pilar, um em cada ponto cardeal. Para alcançar esse lugar era necessário uma escada sagrada (Cf. BUDGE, 1993, p.41). Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 12 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 O Céu era considerado pelos antigos egípcios como a morada das divindades, pois era a parte que ocupava o lugar mais próximo da circunferência externa do universo, onde se acham o Sol, a Lua e os demais astros. Era um local incorruptível e eterno (Cf. ABBAGNANO, 2003, p.133). Os Campos Elísios fornecem uma compreensão bem próxima do que se entende pelo Céu do cristianismo e do Islamismo. Também era assim chamado, na mitologia grega, o lugar para onde iriam os heróis e os justos após a morte (Cf. CUNHA, 2012, p. 238). 2. OS RITUAIS FUNERÁRIOS EGÍPCIOS 2.1 A Mumificação No mito relatado, Ísis encontra o corpo do marido, reúne as partes dispersadas, e o protege dos inimigos que querem destruí-lo. Em seguida, com a ajuda de Néftis e Anúbis preparam o cadáver de Osíris para que a própria deusa Ísis, sob a forma de uma ave de rapina, recite as palavras sagradas de Thoth e faça Osíris ressuscitar para uma existência eterna. Logo, o corpo de todo e qualquer morto precisava ser conservado porque sem ele era impossível alcançar a imortalidade da mesma maneira que Osíris a obteve (Cf. COUTO, 2008, p.70). Aqui então está a justificação mítica para que se conserve o corpo. Com esta inspiração os egípcios começaram a desenvolver técnicas para que o cadáver fosse preservado da ação da natureza, do tempo, dos perigos do Amenti (Mundo dos Mortos) e inclusive maneiras de protegê-lo de profanadores. Os mortos eram mumificados e envolvidos em ataduras de linho, e, por meio de cerimônias e palavras mágicas, procurava-se devolver aos seus membros o vigor necessário para que pudessem comer, beber, falar, pensar e caminhar à vontade tanto no mundo dos vivos como no dos mortos. Tudo exatamente como se acreditava que teria acontecido com o deus Osíris (Cf. BUDGE, 1986, p.120). De acordo com o historiador grego Herótodo (Cf. HERÓDOTO apud COUTO, 2008, p.72), os embalsamadores começavam por extrair o cérebro pelas narinas com um gancho de ferro. Em seguida abriam o abdômen e retiravam as vísceras e limpavam cuidadosamente a cavidade, preenchendo-a com substâncias e ervas aromáticas. Depois o cadáver ela colocado em submersão em natrão - um mineral que era natural da região do Egito, composto de carbonato de sódio hidratado (Cf. FERREIRA, 1986. p.1182) - onde permanecia por cerca de setenta dias. Este procedimento visava à desidratação dos tecidos internos e externos do corpo e o combate às bactérias, preservando assim o corpo. Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 13 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 Então o cadáver era lavado e se iniciava um longo processo de aplicação de óleos e ataduras em cada parte do corpo: na cabeça, nos braços, nas mãos, nos pés, nas pernas, no abdômen e coluna. A cada parte enfaixada, o pedaço de atadura usada era consagrado a um deus específico, e entre as ataduras eram depositados diversos amuletos sagrados (os quais serão descritos mais adiante). Os sacerdotes acompanhavam cada detalhe desse processo, seja depositando os amuletos, enfaixando e pronunciando as palavras sagradas do Livro dos Mortos (Cf. BUDGE, 1986, p.123). As vísceras da múmia eram depositadas em recipientes chamados Vasos Canopos. Eram quatro vasos feitos de pedra, porcelana, cerâmica ou madeira. Cada um deles era consagrado às quatro divindades filhas de Hórus, que representavam também os quatro pontos cardeais: Mestha (ou Amset ou Imset), com cabeça humana, representava o sul, e guardava o estômago; Hapi, com cabeça de macaco, representava o norte, e guardava os intestinos; Tuamutef (ou Duamoutef), com cabeça de cão (ou chacal), representava o leste e guardava os pulmões e o coração; e Qebhsennuf (ou Quebekhsnouf), com cabeça de falcão, representava o oeste e guardava o fígado (Cf. COUTO, 2008, p.75; Cf. BUDGE, 1986, p.64). Esses órgãos eram removidos do corpo antes que fosse mumificado e embebidos em substâncias conservantes, como o betume, depois envoltas em ataduras e depositadas nestas quatro jarras. Suas tampas tinham o formato da cabeça da divindade a qual era consagrada. Cada jarra continha uma inscrição sagrada, e assim passava a ser a morada do deus. Logo, os egípcios acreditavam que o órgão do morto permanecia realmente dentro do deus. Era realmente importante para o morto que seus órgãos fossem consagrados a estes quatro deuses, pois somente assim poderia se realizar o desejo de se mover livremente no outro mundo, visto que cada um desses deuses eram os guardiões e suportes dos quatro cantos da terra (Cf. BUDGE, 1986, p.66). Ao terminar a cerimônia de enfaixamento do corpo, cada um dos seus membros estava protegido por toda a eternidade, pois as palavras mágicas pronunciadas mudavam as substâncias perecíveis em imperecíveis. Por fim, a múmia era coberta por um lençol de púrpura ou linho branco, depositada em seu sarcófago e assim estava pronta para o túmulo (Cf. BUDGE, 1986, p.124). 2.1.1 Os Amuletos Sagrados Amuleto é o nome dado a uma classe de objetos feitos de várias substâncias que eram usados pelos egípcios para proteger o corpo humano, vivo ou morto, das más influências e dos ataques inimigos Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 14 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 visíveis e invisíveis de toda espécie. Devido à crença de que o corpo físico (Khat) deve ser protegido contra a putrefação por ser a base da qual surge o corpo incorruptível e eterno (Sahu), vários amuletos eram empregados na mumificação (Cf. BUDGE, 1986, p.31). Com a finalidade de proteger cada parte do corpo de serpentes, vermes, mofo, desgaste, apodrecimento e perigos do Mundo dos Mortos, eram introduzidos entre as faixas que cobriam a múmia os seguintes amuletos, principalmente: a) Amuleto Udjad (ou Udjat ou Udyat ou Utchat): representa o Olho de Hórus e significa a integridade física reconquistada (Cf. BOVO, 2008, p.16); O Olho de Hórus podia ser representado como virado do lado esquerdo e direito, sendo os dois olhos de Hórus. Representam também o Sol e a Lua. Tal amuleto, para a finalidade de ser depositado na múmia, deveria ser feito de dois tipos: um de pedra lápis-lazúli e folheado a ouro, e outro de pedra jaspe, e deveriam ser apresentados como oferendas ao solstício de verão. Nessa época é que o Sol está mais forte e brilhante, e seriam essas características de força, saúde, vigor que seriam passadas ao morto em sua outra vida (Cf. BUDGE, 1986, p.48). No capítulo CXL do Livro dos Mortos se encontram as palavras que o sacerdote devia recitar no ato de oferecer e consagrar o amuleto Udjat no Solstício de Verão: Olha, um deus poderoso se levanta no Horizonte! Eis que surge Tum rodeado de nuvens odoríferas. Todo o céu está, vede, abrasado por causa das radiações dos espíritos Santificados (...) Que o Olho divino se aproxime dos seus membros! Que torne poderosos seus braços, para que executem as ordens do deus! (LIVRO DOS MORTOS, 1982, p.164) Depois de ofertado e consagrado ao Sol, o amuleto era depositado entre as faixas de linho da múmia e realizava seus efeitos de transmitir as forças solares ao morto. b) Amuleto Djed (ou Tet): um pilar com quatro barras horizontais: a primeira barra significa a ressurreição, a segunda a eternidade, a terceira a imutabilidade e a quarta a força inesgotável; esse símbolo representa a coluna onde, no mito, Ísis encontrou o corpo de Osíris. Significa também a coluna vertebral de Osíris, o eixo do mundo. A cerimônia de colocação do Djed consistia no endireitamento da múmia, onde esta era colocada de pé e isto simbolizava a vitória sobre a inércia e a morte, ao mesmo tempo que significava a ressurreição de Osíris (Cf. BOVO, 2008, p.16). Esse amuleto era colocado na mão esquerda da múmia e era feito ora de madeira, ora de ouro (Cf. BUDGE, 1986, p.43). c) Amuleto da Fivela: Representa a fivela do cinto de Ísis e era feito de pedra jaspe vermelha ou de ouro. Geralmente se inscrevia neste amuleto a seguinte passagem do Capítulo CLVI do Livro dos Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 15 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 Mortos: "O sangue de Ísis e o vigor de Ísis e as palavras mágicas de Ísis serão bem fortes para agirem como poderes para proteger este grande divino ser, e para livrá-lo de qualquer coisa que ele abomine" (BUDGE, 1986, p.41). O Amuleto assegurava ao morto a proteção do sangue de Ísis e de suas palavras mágicas, as mesmas que fizeram com que o cadáver de Osíris ressuscitasse. Também dava ao morto acesso a todos os lugares do Amenti, ou seja, liberdade de se mover no Mundo dos mortos (Cf. BUDGE, 1986, p.42). Esse amuleto era colocado na mão direita da múmia. d) Amuleto do Escaravelho: Este amuleto representava um animal sagrado, e era comparado com o Sol e com o deus Quepera, que era a força invisível da criação e movimentadora do Sol. O rolar da bolota de excremento pelo inseto foi comparado com o curso do Sol durante o dia. O escaravelho deposita seus ovos dentro da bolota e de dentro dela saem seus filhotes, assim como o Sol, que era visto como a fonte da vida e de toda criação: O corpo humano morto, porém, de certo modo continha o germe da vida, quer dizer, o germe do corpo espiritual, que era chamado à existência por meio de preces recitadas e cerimônias realizadas no dia dos funerais; sob este ponto de vista, a bolota com os ovos do inseto e o cadáver eram idênticos (BUDGE, 1986, p.39). Assim, o escaravelho era símbolo e exemplo da ressurreição, da geração da nova vida. Ele era depositado no lugar do coração da múmia, o qual representava a sede da vida e da consciência da pessoa. O Amuleto garantia a proteção de Rá e de Osíris contra o inimigo devorador de corações do Amenti (Mundo dos Mortos), e nele havia palavras mágicas que afirmavam que o morto praticou o bem e merecia entrar no Paraíso (BUDGE, 1986, p.35). Esses são, de acordo com o egiptólogo Budge, os amuletos mais encontrados nas múmias. No entanto além destes havia outros, mais raros, como o de Sam, o do Chen, o de Degraus, o da Rã, da Coroa Branca do Sul, a Coroa Vermelha do Norte, do Horizonte, do Ângulo, dos Chifres, do Disco e Plumas e do Fio de Prumo. Além desses, os anéis, pingentes, ornamentos ou qualquer objeto no qual fosse escrito ou gravado o nome de um deus, seu emblema, figura ou palavras sagradas do Livro dos Mortos tornava-se um amuleto repleto de poderes protetores (Cf. BUDGE, 1986, p.52). 2.1.2 O Ritual de Abertura da Boca Este era o ritual mais importante do processo de mumificação, pois visava fazer o morto recuperar as Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 16 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 capacidades de comer, beber e principalmente falar, visto que as palavras tinham enorme poder sobre os deuses e também os inimigos do outro mundo. Devido ao fato de a múmia estar com a cabeça envolta em faixas, sua boca estava comprimida e coberta. Tais obstáculos à fala era atribuídos à intervenção do deus Seth, inimigo de Hórus e Osíris. Era suplicado ao deus Thoth, deus das palavras mágicas, que fossem desatadas tais faixas e lançadas nas bocas daqueles que pretendiam prendê-lo com elas. De acordo com a crença mítica egípcia, o deus Hórus desamarrou as faixas que tapavam a boca dos deuses e o deus Anúbis lhes abriu a boca com uma faca de ferro (Cf. BUDGE, 1993, p.58). Esse ritual era realizado na própria múmia ou em uma estátua que representava o morto, visto que os egípcios acreditavam que a estátua em si era habitação da alma do falecido. Ou seja, o que se fizesse com a estátua da pessoa falecida era como se fosse feito à própria múmia. Desta cerimônia participavam sacerdotes, um amigo íntimo do falecido, o filho do falecido ou seu representante, duas mulheres que representavam Ísis e Néftis, e um certo número de pessoas que representavam a guarda armada de Hórus. Todos esses rememoravam os mesmos acontecimentos feitos no funeral mítico de Osíris, deus com o qual o morto era identificado (Cf. BUDGE, 1986, p.124.). O ritual se iniciava com uma purificação do local e da múmia - ou sua estátua - usando água e queimando incenso. Esse ato tinha o objetivo de ajudar a abrir a boca do defunto, fortalecer seu coração e restituir o uso de sua cabeça. Ao fim das purificações os presentes acreditavam que o caibit (sombra) voltava a se unir ao Khat (corpo físico) do falecido, que haviam se separado no momento de sua morte. Terminada as purificações, os homens que representavam a guarda de Hórus se aproximavam. Um deles, representando o próprio Hórus filho de Osíris e de Ísis, tocava a boca da múmia - ou da estátua com o dedo. Um dos sacerdotes iniciava os sacrifícios de animais, o que rememorava a matança mítica dos comparsas de Seth, que ajudaram a matar Osíris. Eram sacrificados um ou dois touros, duas gazelas ou antílopes e patos. A pata dianteira e o coração do touro eram retirados e oferecidos à estátua ou à sua múmia. O sacerdote tocava a boca do morto por quatro vezes usando a pata do touro. Os antílopes e patos eram apenas oferecidos diante do falecido. Em seguida outro sacerdote se aproximava e tocava a boca do morto com dois instrumentos chamados de Seb-ur e Tutnet - que tinham formas de instrumentos de carpintaria. Esses instrumentos representavam aquele que o deus Anúbis havia usado no mito. Ao tocar a boca da múmia o sacerdote proferia o seguinte discurso: A tua boca estava fechada, mas pus em ordem para ti a tua boca e os teus dois olhos. Abri para ti a tua boca com o instrumento de Anúbis, com a ferramenta com que são abertas as bocas dos deuses. Hórus, abre a boca! Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 17 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 Hórus, abre a boca! Hórus abriu a boca do morto, como nos velhos tempos abriu a boca de Osíris, com o ferro que veio de Seth, com a ferramenta com que abriu as bocas dos deuses. Ele abriu a tua boca com ela. O morto caminhará e falará, e o seu corpo estará com o grande séquito dos deuses, na Grande Casa do Ancião em Anu, e receberá ali a coroa ureret de Hórus, o senhor da humanidade (BUDGE, 1986, p.126). Assim era aberta a boca do morto. Em seguida outro sacerdote tomava em suas mãos um instrumento de madeira sinuosa na qual uma das extremidades era em forma de cabeça de carneiro com um Uraeus (imagem de serpente). Este instrumento se chamava ur-Hecau, que significa Poderoso em Palavras, e com ele tocava a boca do morto quatro vezes. Assim, o morto teria o poder da palavra nos quatro cantos do mundo, ou seja, em toda a parte. Durante esse ato outro Sacerdote pronunciava uma longo discurso, no qual afirmava que estavam sendo asseguradom ao morto todos os benefícios assegurados ao deus Osíris. Em seguida procedia-se a finalização do ritual em que era ensinado ao morto o hecau, ou seja, as palavras mágicas e a maneira certa de recitá-las no outro mundo. Desse modo os deuses e qualquer outro ser se submeteria e obedeceria ao falecido, pelo poder dessas palavras. Mas isso só foi possível graças ao ritual que abriu a boca do morto (Cf. BUDGE, 1986, p.126). 2.1.3 As Oferendas Sepulcrais Além de recuperar as funções de comer, beber, falar, se movimentar livremente, era oferecida regularmente à múmia uma série de oferendas destinadas a alimentar o seu Ka e para a manutenção da capela mortuária e dos sacerdotes que trabalhavam ali. Era crença firme entre todos os egípcios que se o Ka do morto não fosse devidamente alimentado este seria obrigado a deixar o túmulo e vagar pelos arredores, comendo imundícies - ou seja, alimentos impuros - que encontrasse pelo caminho. No Livro dos Mortos isso pode ser verificado no capítulo LII e no capítulo CLXXXIX, onde o morto pede para que não seja obrigado a beber água suja (Cf. BUDGE, 1986, p.76). Muitas vezes essa manutenção com oferendas orgânicas era possível apenas aos mais ricos da sociedade, devido ao alto custo. No entanto, havia outra maneira de suprir o Ka com oferendas alimentares necessárias: podia-se esculpir em pedras os alimentos ofertados ou mesmo pintá-los nas paredes do túmulo ou nos papiros. Para que surtisse o efeito desejado, eram recitadas palavras mágicas sobre tais objetos e pinturas, a fim de se tornarem oferendas reais para o Ka consumir e assim evitar ter Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 18 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 que comer imundícies e beber água suja. Eram ofertados vasos com água, cerveja, pães, bolos, frutas, carnes, leite, azeitonas e ervas. Além disso, eram também depositados junto à múmia sandálias, bastão, vestimentas, armas de combate, móveis e objetos de uso cotidiano (Cf. LIVRO DOS MORTOS, p.171; p.211). Também esses objetos de uso podiam ser pintados nas paredes ou nos papiros, pois ao se recitar as palavras ritualísticas determinadas, tudo se tornava real para o morto no outro mundo. No Livro dos Mortos, em diversas passagens, percebe-se que o morto ficava aterrorizado com a possibilidade de lhe faltar ar para respirar, água para beber e os alimentos necessários. Isso era resolvido graças aos desenhos e fórmulas mágicas presentes nos papiros (Livros dos Mortos) que eram depositados juntos das múmias (Cf. BUDGE, 1986, p.78). 3. Conclusão Como observado nos detalhes e cuidados das práticas de preparação do corpo para ser depositado no túmulo, pode-se verificar como os antigos egípcios davam extrema importância à questão da morte. Como a natureza, os egípcios aprenderam que a vida segue um ritmo eterno: se o sol nasce todas as manhãs, se o Nilo transborda todos os anos, se os grãos brotam da terra todos os verões, então devia ser possível que os homens ressurgissem dos mortos. O tema central é que a vida é cíclica e recomeça muitas e muitas vezes e por isso é eterna, por isso todo esforço era feito para poder ajudar os mortos em sua ressurreição. Nenhuma outra civilização no mundo investiu tanto tempo e recursos na construção de túmulos. A decoração com as pinturas, hieróglifos das fórmulas sagradas e o mobiliário eram essenciais para que empreendessem uma jornada segura para a vida póstuma. Tudo isso se transformou em uma fonte preciosa de dados para a arqueologia, história, filosofia, ciências das religiões, psicologia, antropologia e todas as áreas do conhecimento que desejam conhecer a fundo o ser humano naquilo que ele pensa sobre a morte, sobre si mesmo e a realidade. A morte de um faraó poderia ser um caos, a não ser que ele pudesse passar para a vida no além. Para isso, as pinturas e hieróglifos tinham que ser perfeitos. Mesmo após a morte, o faraó tinha que manter a ordem no mundo dos vivos. E ele precisava do seu corpo preservado para que tudo isso fosse possível, assim como aconteceu com o deus Osíris, na crença egípcia, e conhecer cuidadosamente cada palavra contida no Livro dos Mortos era de extrema importância, pois ali estavam todas as orientações para que a passagem para a vida eterna pudesse acontecer, principalmente no momento do julgamento final Castelo Branco Científica - Ano IV - Nº 07 - janeiro/junho de 2015 - www.castelobrancocientifica.com.br 19 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 perante Osíris. Pode-se dizer que a religião no Antigo Egito era uma cola que mantinha o povo unido, algo que realmente criava um vínculo emocional entre todos os egípcios. Para eles, vida, morte e vida póstuma eram uma só coisa, celebrada em monumentos maravilhosos que resistiram aos milênios. Pirâmides, textos, amuletos, ferramentas, objetos cotidianos, templos e túmulos testemunham a ideia de como o povo interpretava a vida e a morte. 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