A identidade de um “povo enfermo”: a dialética
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A identidade de um “povo enfermo”: a dialética
ANIMA Ano II – nº3 - 2012 história, teoria & cultura A não-representação na obra de Daniel Senise entrevistaS Por Lucia Meneghini [Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura Pontífícia Universidade Católica do Rio de Janeiro] Esta entrevista apresenta o ponto de vista da não-representação na obra de Daniel Senise. Expoente da geração 80, Senise ocupa lugar de destaque entre os pintores voltados para a representação. Fiel ao suporte da tela e movimentando-se entre a figuração e a abstração, o questionamento da tradição pictórica e a reflexão crítica são uma constante na sua produção. Percorridos 30 anos de carreira, sua pintura afirma-se como um espaço em construção, um diálogo com múltiplas impressões. A manipulação de resíduos e lembranças, ao lado da fragmentação de espaços e restos culturais, permitem que sua obra seja contemplada no terreno da Antiguidade. São vestígios que emergem da relação entre presente e passado num processo contínuo, trabalho de uma arquitetura mental. Incorporado ao texto estão alguns aspectos da literatura crítica do vazio, além da descrição de costumes, objetos e lugares que moldam a estrutura e perfil da obra do artista. A entrevista estabelece um diálogo de Senise com as obras de Markus Lüpertz e Anselm Kiefer; exemplo de uma conexão multicultural que vai do modernismo ao neoexpressionismo na arte contemporânea, sem deixar de contemplar a “concepção romântica”i atribuída à sua pintura. Romântica de natureza transcendental e clássica na “nobre simplicidade e serena grandeza” (WINCKELMANN, 1975: p.55), a obra do artista encontra sua expressividade no silêncio e no estado em que repousa a matéria. Em depoimento sobre a mostra 2892 que hoje ocupa a Casa França Brasil, “(…) eu penso que tem representação ali, mas é um nível limite da idéia de representação” (SENISE, 2011). Nada. Um lugar que o não resiste. A não-representação na obra de Daniel Senise. O encontro com o artista Daniel Senise aconteceu por ocasião da mostra 2892 realizada no sábado, 14 de maio de 2011, na Casa França Brasil e concretizouse na forma dessa entrevista cedida pelo artista em seu atelier na Rua Silvio Romero 34, mesmo título de uma das obras que se encontram nas salas do atual centro cultural onde, em 13 de maio de 1820, foi inaugurada a Praça do Comércio. Sob a arquitetura neoclássica de Granjean de Montigny, o artista ergueu um corredor monumental formado por duas grandes faces de lençóis. A Casa França-Brasil abriga uma outra série de obras do artista denominada Mil ( Thousand, 2010 ). O conjunto é composto por 4 telas ou blocos de tijolos brancos que mantém uma relação de proporção com o observador, e a primeira coisa a figurar-se na mente foi a parede de tijolos do escritório da Wall Street através da qual Bartleby, o escriturário (MELVILLE, 2003), contemplava o Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social Cultura (PUC-Rio) 86 ANIMA Ano II – nº3 - 2012 história, teoria & cultura mundo. Absorvidos na sensação do vazio, sobre os tijolos a ausência do olhar e o gosto pelo nada eram dominados por um mundo fragmentário e pulverizado de informações. Na sala ao lado, operando com a desmaterialização da imagem, estavam as reproduções Rua Silvio Romero, 34. Assim como os vestígios das pegadas deixadas nos painéis que estão na Casa França Brasil, a impressão de que o artista passou por ali já faz parte do passado. Naquela noite de sábado, desolados e ofuscados pela brancura dos lençóis, não encontramos nada além de sinais discretos e marcas efêmeras na superfície das obras. Chegamos a cogitar que o artista não apareceria na abertura da mostra 2892. Rio de Janeiro, 26 de maio de 2011. Rua Silvio Romero nº 34, local de trabalho do artista Daniel Senise. Hora da entrevista: 14:00 hs – 14:45 hs É bastante relevante o fato dessa conversa ter início nesse espaço, o espaço do atelier, mesmo ambiente que está representado na sequência da obra Silvio Romero 34 na Casa França Brasil, o mesmo que foi reproduzido na 29º Bienal de São Paulo, em 2010. Apesar do tema estar endereçado à não-representação na sua obra, talvez o discurso do atelier possa funcionar como uma base ou lugar onde se possam colocar outras questões. Para continuar trabalhando com a ausência, gostaria que você começasse falando do atelier em Nova York. Lucia Meneghini – Você gostaria de falar um pouco sobre a mudança de atelier para Nova York no final da década de 90 ? Daniel Senise – Eu trabalhei neste espaço de 1991 até dezembro de 1999 e fui morar em Nova York. Quando eu trabalhava aqui o atelier era muito simples. Eu tinha dois assistentes e fazia quase tudo sozinho. Em 1999 eu tive que programar um trabalho que não tinha nenhum assistente, praticamente, e comecei a trabalhar de uma maneira mais projetada, com menos embates, idas e vindas; quer dizer, o embate acontecia de uma outra forma. Sempre houve. Mas comecei a projetar os trabalhos no computador antes de começar a executá-los. Executar e elaborar com menos variações. Quando eu voltei para cá, em 2004, eu acho que retomei minha maneira própria de trabalhar, um pouco perdida e procurando coisas, como era no início. E foi assim que criei o território que uso até hoje, descobrindo coisas aqui no espaço; meu trabalho tem muito a ver com o local onde estou. Então, de 2004 para cá eu comecei a ficar mais. Tentei usar essas duas coisas: a maneira de trabalhar que eu tinha em Nova York, mais programada, e a maneira mais aleatória e sem um objetivo definido como era antes. LM – No texto “Território dos sentidos”, sobre as obras do início dos anos 80, Ivo Mesquita comenta que seu foco naquele momento não eram as obras históricas, mas o expressionismo alemão, como a pintura de Baselitz, Lüpertz e Kiefer. Nessa mesma fase foram exploradas as relações da figura com o fundo e criados uma série de “objetos inexistentes”. O autor traz ainda uma citação de Wilson Coutinho, referindo-se a sua pintura como um “teatro de sensações mutiladas” e “uma atmosfera de catástrofe e terror noturno” (MESQUITA, 1998: p.13). Markus Lüpertz fez surgir, na década de 60, uma série de pinturas denominadas “ditirâmbicas”.ii Inspirado no “antigo canto litúrgico em homenagem a Dionísio”, Lüpertz bati- Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social Cultura (PUC-Rio) 87 ANIMA Ano II – nº3 - 2012 história, teoria & cultura zou seu próprio estilo pictórico: “O ditirambo inventado por mim” afirmou “restitui o perceptível fascínio do século XX”.iii Você poderia falar da representação cenográfica dessas pinturas, havia algum tipo de encenação trágica nos anos 80? DS – Nos anos 80, na época em que comecei a pintar, fui muito influenciado por Lüpertz, por essas pinturas que ele chama “ditirâmbicas”. Mas na verdade eu acho que esse ditirambo, a idéia de ditirambo, é um problema interno dele para fazer aquelas pinturas que tinham uma complexidade pictorica em si. Tinham uma certa alusão ao monumento, a uma entidade. Eu gostei daquilo basicamente pela atitude que ele tinha com relação à pintura. Não era nenhuma coisa genial, não era nenhuma invenção – era a recuperação de algumas coisas que o modernismo fez, através dele, do indivíduo Lüpertz. E ele me influenciou muito nesse momento. A minha atitude foi pegar imagens do meu cotidiano e tentar pintá-las de uma maneira desconstruída. Tentei usar uma forma contemporânea do expressionismo, pensando na alma latente, na aura daquele negócio. Não só na sua forma, usando uma paleta muito simplificada, uma pintura rápida. Mas isso foi muito no início do meu trabalho. Essa forma de trabalhar me serviu para começar a ter um território a circular e a partir daí descobrir coisas. Esse trabalho (deu certo) porque dois anos depois, em 1985, eu estava na Bienal de São Paulo. Eu me dei conta que era o momento de começar a pesquisar pra ver qual era a minha história nesse negócio. Então eu deixei essa coisa do Lüpertz, porque comecei a usar tinta a óleo, e comecei a criar uma complexidade no sentido de usar elementos, no sentido técnico, o que fez com que a pintura ficasse mais lenta, mais confusa e mais complicada. Meu espaço físico começou a colar nas telas, que era muito embate, e daí eu acho que no final dos 80, início dos 90, eu comecei a ter uma idéia do que me interessava. Sempre passou pela idéia da representação, de como a pintura pode representar as coisas nos dias de hoje. LM – Percebe-se um “jogo-livre” nas relações da figura com o fundo nas pinturas do início da década de 90, como por exemplo, a tela Despacho (1993) e outra pintura de formato similar, sem título, da mesma data. A inversão do espaço ou do vão existente entre as duas imagens do “Retrato da mãe do artista”iv é destacado. Através das datas, percebe-se um desdobramento das telas, como se houvesse um diálogo. O espaço se transformou num vaso, o vaso evoluiu para uma paisagem ou montanha imaginária onde aparecem silhuetas de animais estranhos, que não se sabe ao certo se são pássaros. Essa última obra se intitula Casamento (1994). Você poderia falar um pouco sobre esse jogo de sombras e o desaparecimento gradual da figura no desenvolvimento da sua obra? DS – Ah… Isso é interessante. Quando eu comecei a imagem, estava representando alguma coisa. A partir de um determinado momento, devido a essas experiências, eu percebi que o que queria representar não era um objeto do meu cotidiano, mas era uma sensação. Então eu optei, isso no final dos 80, por não usar mais elementos inventados por mim e comecei a me apropriar de coisas que já existiam. Porque eu já estava usando vestígios do meu atelier, sabe, imprimindo o chão. A tela já tinha a presença física do lugar onde eu circulava. Então pensei em fazer isso na pintura, usar imagens ou coi- Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social Cultura (PUC-Rio) 88 ANIMA Ano II – nº3 - 2012 história, teoria & cultura sas que me eram caras, que eu lembrava e que me interessavam. E durante uma época eu usei imagens de alguns artistas ou pedaços de telas. A “Mãe do artista”, uma tela de James Whistler, é uma tela da minha infância, que eu lembro desde criança. Co-reprodução. Então, como eu já estava imprimindo o chão do espaço, fiz a tela do Whistler com preguinhos na superfície. E pensei em continuar aquilo, porque existe um vazio. A própria tela do Whistler sugere uma maneira muito estranha de você pintar um retrato; sobretudo da sua mãe. Eu ficava muito no atelier experimentando coisas... eu lembro bem essa do Whistler. Eu fiz uma tela com o perfil da mãe feito com um de óxido de ferro, fiz um corte de papel e coloquei ele em frente refletido e ví que o espaço negativo entre os dois era interessante, então eu fiz essa segunda tela. A terceira, já o espaço negativo entre os dois passou a ser um objeto mais importante para mim; e a quarta, a mãe do Whistler já tinha ido embora, praticamente; e aquilo me parecia uma fonte onde os pássaros bebem, então quis fazer algumas silhuetas de pássaros lá, quer dizer… essa série toda se desdobra a partir da tela da mãe do Whistler. E as coisas, os elementos que entravam, eram silhuetas,… Silhueta é uma coisa muito interessante que eu adotei também; é quase como se fosse a última coisa da representação, é muito residual, não tem quase… a informação é ambígua, como se fosse uma imagem calcinada de uma pessoa. Então eu comecei a usar silhuetas antigas que eu pegava por aí e nessa tela do Casamento eu peguei algumas e dei umas mexidas, é claro… passava pela minha vida também; todo esse trabalho tem a ver com o meu espaço - eu estava casando e naquele espaço tem quatro figuras: dois pequenos e dois maiores, eu acabei tendo dois filhos, então… eu acho que funcionou. LM – A série de pinturas que leva o título “Ela que não está” (1994) trabalha com a exclusão de uma forma arquitetônica que fôra construída sobre um afresco de Giotto na Capela Bardi em Florença; com o passar do tempo essa estrutura foi retirada e revelou-se o lado danificado da pinturav. Existe um momento específico em que a arquitetura (pura) é assumida como objeto da sua pintura? DS – Em 2000, quando fui para Nova York, eu resolvi com essas impressões de chão representar o espaço. Foi uma coisa pensada um dia em um aeroporto, no meu vôo. Pensei em representar o espaço, mas pensei: não sei que espaço eu vou fazer. Então imaginei que poderia representar em meu atelier alguns espaços de museus, então tive que pegar esses espaços e representá-los. Tem sempre essa idéia da presença, da não-presença. Da presença do meu espaço e do chão do atelier que está agora representado no espaço de um museu. Fiz uma outra série depois que eram espaços de salas, de pinturas onde eu retirava as pessoas e refazia o espaço com uma colagem. Eu imprimia o chão e era uma maneira de refazer a colagem reproduzindo aquele espaço. Durante um bom tempo eu fiz isso, aproximadamente até 2005, quando comecei a ficar um pouco cansado e comecei a complicar esse espaço. LM – As paisagens de Caspar David Friedrich representam uma ruptura com os padrões artísticos do início do século XIX: o distanciamento das cenas heróicas e eventos históricos; uma certa banalização dos objetos religiosos. É conhecido o as- Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social Cultura (PUC-Rio) 89 ANIMA Ano II – nº3 - 2012 história, teoria & cultura pecto austero do atelier do artista, que é atribuído ao estado meditativo e à concentração mental com que Friedrich trabalhava, distante do mundo exterior.vi No vídeo apresentado na mostra 2892 aparece um local onde você armazena fragmentos e resíduos de lugares por onde você passa. Você poderia falar desse processo de armazenamento, qual o tipo de relação desse colecionismo (dadaísmo) com a construção da paisagem? DS – Bem… eu entendi, mas acho que aí tem umas três perguntas. Eu imprimo o chão dos espaços onde estou e vou empilhando aqui no atelier. Eventualmente, eu uso essas coisas nos trabalhos; mas esse, como se chama, “colecionismo”, também ocorre quando eu junto catálogos de convites de exposição, reciclo e faço tijolo. Também quando junto esses lençóis que foram usados no hospital e no hotel ou outras coisas. Eu tenho uma coleção de sobras de silhuetas cortadas, por causa das silhuetas de Monmartre; eu fui até lá e comprei as sobras dos caras durante dois anos e é uma coisa que já tem uns oito anos, (não, não) tem treze anos que fiz isso e não sei muito bem como vou fazer esse trabalho. Quer dizer, eu gosto das coisas que tem um certo uso. Quando viajei ao Peru ví que as índias faziam panos e usavam esses panos. Quando eles estavam usados, elas os vendiam. O tecido ficava mais curtido, passara a ter um sentido, então, eu gosto dessa idéia do material que já tem uma qualidade de vida, para depois usá-lo na tela. O que vou fazer com eles é outra coisa; é a complexidade, é outra coisa. É como vou lidar com essas questões pictóricas do espaço, da ausência - um tema recorrente. Eu posso dizer que é uma tentativa, às vezes, de representar essa não- presença. LM – A obra “O sol me ensinou que a história não é tudo” apresentada na 29º Bienal de São Paulo, em 2010, apresenta uma estrutura de tijolos de proporção geométrica diferenciada, que excede a referência do padrão dos tijolos que compõe os quatro blocos, ou as 4 telas de Mil. Por que a instalação da 29º Bienal, a qual representa a dimensão física do seu atelier, lida com uma medida arquitetônica diferente da que é vista nos tijolos que compõem a série de Mil ? DS – (…) Eu fiz os tijolos. Foi a primeira coisa que eu fiz, porque eu tinha muitos catálogos e estava a fim de reciclar esses papéis e fazer papel para desenhar. Quando fiz alguns eu ví que não sabia o que ia desenhar neles. Pensei em fazer objetos com eles. E o objeto que eu acho que fazia mais sentido, era fazer um tijolo. Que com esse tijolo se podia construir muitas coisas… Quando fui convidado para a Bienal pensei em preencher aquele espaço com tijolos, mas era muito tijolo por uma proposta que não precisava ter esse tipo de espessura, esse tipo de esforço; então eu fiz quadros de 50 x 50 cm por 1,5 cm de espessura, com o mesmo material. Eu revesti, montei uma sala que tinha as dimensões da sala do meu atelier (embora o pé direito lá era mais baixo) e revesti toda essa sala com essas placas de papel reciclado. É uma… bem, tem várias leituras; eu não interpreto o trabalho, mas é uma transposição do espaço; do meu espaço de trabalho para um espaço expositivo. Como todo artista, a maioria deles, eu sou observador privilegiado do trabalho – eu faço o trabalho mas a coisa realmente só fecha para mim, ou começa a fechar, Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social Cultura (PUC-Rio) 90 ANIMA Ano II – nº3 - 2012 história, teoria & cultura quando eu vejo o trabalho na minha frente. Então, várias outras coisas que estavam anotadas, também começaram a se manifestar depois, quer dizer… esses trabalhos todos são uma tentativa de estimular o pensamento em torno da idéia do espaço, da presença, da pintura - eu acho que tem várias entradas aí, não é uma… o meu desejo é que cada um possa ter uma liberdade de organização em relação a isso, tanto as telas como essa sala, essa instalação da Bienal. LM – Existe uma situação análoga entre a montagem da mostra 2892 e a Monumenta 2007 realizada por Anselm Kiefer no Grand Palais do Louvre. Ambas foram inseridas na arquitetura neoclássica. Kiefer opera com a representação da catástrofe (o próprio significado judaico da palavra Shoah)vii nos limites da sua relação cultural com a Alemanha e a Monumenta foi dedicada aos poetas Ingeborg Bachmann e Paul Celan. A reapropriação da linguagem poética na obra de Kiefer indica uma afinidade com o “aspecto citacional”viii do romantismo. Gostaria que você falasse da montagem da obra 2892. O que significa intervir na arquitetura de Granjean de Montigny e como a idéia das marcas ou lembranças dos lençóis estão vinculadas às proposições numéricas do Branco 462 e Branco 2430 ? DS – Bom, primeiro eu acho interessante o que Kiefer faz, embora eu ache que já tenha um certo esgotamento, mas para o meu trabalho eu não tenho o interesse em usar História como um dos pilares de… para mostrar, sabe? Embora no passado eu tenha usado a pintura, que é uma forma indireta de usar a história, ou talvez direta, mas… eu também não ví essa instalação do Kiefer, para ser sincero. Esse trabalho dos lençóis foi feito há muito tempo atrás… e… a pergunta qual é mesmo? LM – O que significa intervir na arquitetura neoclássica, a questão do monumentalismo na sua obra… e a relação da reminiscência, das lembranças dos lençóis com os títulos, com as notações… os números. DS – Esse trabalho dos lençóis eu pensei há uns 16, 17 anos atrás quando eu estava numa tentativa de ter mais controle sobre o meu trabalho. Controle assim, elaborar um trabalho e mentalmente poder executá-lo, sem tanto sofrimento, entende? Então eu cheguei a um trabalho que poderia executar sem colocar a “mãona-massa”. Eu organizei um trabalho em que eu comprava lençóis, doava para o hospital e eles me devolviam depois de velho; e comprava lençóis de casal, doava para o motel e eles me devolviam depois de um certo tempo, já no fim da vida. Mas eu nunca mostrei esse trabalho. Acho que foi difícil achar um lugar para mostrar e então, pelas circunstâncias, pensei durante muitos anos que bastava tê-lo feito para me apaziguar. Me deixar tranquilo… Mas esse ano agora, depois da sala da Bienal, vi que esse trabalho dos lençóis, visualmente é muito parecido com esse trabalho, entendeu? Embora tenha sido elaborado há 15, 16 anos atrás. Na época em que eles foram feitos, não pareciam como trabalho; embora eu os considerasse a partir do que fazia na pintura. Então, como eu te falei (eu sou um observador privilegiado), eu tive que tomar algumas decisões em relação a esse trabalho. Primeiro, quando entrei na Casa França Brasil achei que era um lugar muito… o lugar Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social Cultura (PUC-Rio) 91 ANIMA Ano II – nº3 - 2012 história, teoria & cultura ideal para mostrar aquilo. Esse trabalho tem uma visão… ele é muito simples, parece que está faltando alguma coisa nele, ele simplesmente… é um vazio. Talvez; eu penso que tem representação ali, mas eu acho que é um nível limite da idéia de representação. E a Casa tem todo um visual muito bonito; é quase como uma moldura para esse trabalho. Então eu achei ideal, inclusive pela extensão da casa, fazer um corredor e durante um tempo pensei em como iria mostrá-los; então resolvi fazer essas estruturas de madeira que mostram e lembram um pouco essas telas que eu faço, com impressões de chão, mas que também você pode circular por trás… Os lençóis, eu resolvi colocá-los, cada um esticado num bastidor, para você ainda ter a sensação de que está olhando para uma tela, uma pintura. E o trabalho também está colocado ali de modo que você indo por trás, ainda vê a casa. Ele não se impõe à casa de uma forma definitiva. Tem um caminho que você vai e ainda vê a casa. Ele não a anula completamente. Os títulos desses dois brancos 462 e 2430, que são duas telas brancas: uma com os lençóis de solteiro, do Hospital do Câncer aqui do centro (INCA) e outra com os lençóis de casal do motel lá do Flamengo; é o cálculo, é o número médio de pessoas que passou por cada uma dessas superficies. Então, eu dei esses títulos para voltar um pouco também a visão para a idéia de que se está vendo uma representação em branco… tem um jogo com o azul do Ives Klein – tem um número meu, (…) Branco, quer dizer, tem dois Brancos e esse Branco, quem dá a qualidade desse branco, é esse número médio, que é o número calculado por uma estatística de pessoas que passaram por essa superfície. LM – Eu tenho uma citação para fechar com essa coisa da “notação”. Retornando à literatura do vazio, gostaria de mencionar a obra do filósofo Ludwig Wittgenstein: o Tractatus Logico-Philosophicus (1918). Para Wittgenstein, “O mundo resolvia-se em fatos” e pouco lhe importava a originalidade ou o indício de fontes na sua escrita. Ele dizia: “também não indico fontes, porque me é indiferente que alguém mais já tenha, antes de mim, pensado o que pensei”. Embora exista uma indiferença e frieza na lógica desses pensamentos, o filósofo acreditava na “figuração dos fatos”. ix A minha pergunta dos números era com relação à isso: à frieza e ao distanciamento da experiência pessoal e da existência das marcas, com essa ligação com a numerologia; que não deixa de ser uma forma fria de ver as coisas. DS – Hum… Isso é uma pergunta? LM – Estou fazendo uma constatação. DS – Ah… Mas eu acho que todo o fato, por mais dramático que seja; isso é uma coisa muito forte; ele… depois que acontece,… a nossa tendência é uma cura. O Holocausto - depois do Holocausto, você tem… - o Holocausto repercute até hoje pelos números, pela quantidade de pessoas que foram mortas, pelas pessoas que sobreviveram, pelos números marcados nos braços; você pode dizer que tem uma frieza aí, não é? Mas isso é o que transmite a intensidade daquele drama. Todo fato, depois de passado dentro da história; a tentativa de quem viveu aquilo é curar, esquecer, e alguns tentam fazer com que o mundo seja melhor a partir daí. Quer dizer, eu acho que a frieza a que você se Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social Cultura (PUC-Rio) 92 ANIMA Ano II – nº3 - 2012 história, teoria & cultura refere, não anula o drama; talvez seja uma questão até de repercutir esse drama. LM – Você ocupa o cofre, a sala (simbolicamente) mais segura da Casa França Brasil, com uma referência descritiva de uma obra clássica de Grünewald, a “Crucifixão”x. Você acha que essa atribuição de valor ao que é desvalorizado, poderia ser encarada da mesma forma por um historiador de arte como por um crítico de arte ? DS – O que é desvalorizado? LM – A destituição da presença da obra de Grünewald, a própria pintura. Você; a sua obra é uma descrição de uma pintura clássica. DS – Mas não há desvalorização. LM – Estou pensando na mensagem da sua mostra que trata com essa questão do “ruído acrítico do excesso de informações” (LABRA, abril de 2011) e da nãorepresentação da obra de arte. Você está representando uma forma crítica. DS – Na verdade eu não sei; eu acho que quando faço e depois vejo as coisas, eu penso num território onde as coisas não chegam a se tornar palavras, sabe? Eu tenho a sensação de que esse trabalho, do Grünewald, ele funciona bem naquele conjunto. A tela do Grünewald não está lá, como as pessoas que deixaram as marcas e não estão lá, entendeu? Não está lá. Mas você vê a tela do Grünewald e você vê as marcas, obviamente você sente, você pensa, cada um vê o que quiser, tem gente que não vê nada. Mas não importa, algumas pessoas veem e elas veem coisas que eu estou alertando que estiveram lá. Nos tijolos de catálogos e de convites, você vê a matéria que é - onde haviam pensamentos escritos e propostas, imagens de exposições e objetos de arte - e eles todos se tornaram matéria novamente. “O sol nos ensinou que a história não é tão importante assim”, que é uma frase do Camusxi – eu gostei de associar a esses tijolos porque ela, de uma certa forma, é uma idéia de que a natureza um dia vai ganhar o embate com a cultura e tudo vai sumir, vai ficar silencioso. Assim, a presença desse trabalho do Grünewald entra nesse grupo por essa alusão à representação através de um chamado à memória. LM – Já que você falou da natureza, você poderia definir em poucas palavras, o Sublime? Pouquíssimas palavras. DS – Não! Há! Há! Há! É a palavra mais curta que eu tenho para definir o Sublime; eu não conseguiria definir o sublime… eu não sei; tem caras que escrevem tão bem sobre essas coisas, entendeu? Eu sinto o que pode ser o sublime, ele pode estar… Eu não gosto de gatos, mas eu tenho um gato; às vezes estou com ele e penso… é perfeito. Outro dia ouvi uma música que sempre achei muito chata; e a situação fez com que eu, quando estava ouvindo aquela música, pensasse: essa música é a música que eu quero que toque no dia em que eu estiver sendo incinerado, entendeu? Cremado, né? (Incinerado é no lixo). Quer dizer, a manifestação do sublime se dá de uma forma que não é projetada, o que interessa é que existe essa sensação do sublime, e ela pode ser apreendida, ou vivida ou percebida por pessoas em situações diferentes. Eu tenho um flerte com a idéia do sublime nesse trabalho, que é tentar aproximar o observador dessa impressão, mas eu não Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social Cultura (PUC-Rio) 93 ANIMA Ano II – nº3 - 2012 história, teoria & cultura tenho garantia nenhuma de que o que estou pensando ou o que estou colocando ali vai repercutir nesse nível para ele. Rothko pensava no sublime dentro de uma moldura completamente moderna. Se você coloca hoje um Rothko na sua frente, para pensar no sublime como um aspecto do trabalho dele, você vai ter que ter uma abordagem histórica; você não pode dissociar aquilo que ele fez da época em que aquilo foi feito – como talvez o sublime na época medieval, na Rússia: você podia ter essa sensação por um retábulo feito por um pintor; que hoje você não tem a mesma sensação. Tem uma relação da época com o que é feito, para que aquilo se transmita. Eu estou falando isso porque a minha pintura, o meu desejo é que essas coisas que eu faço tivessem uma aparência atemporal (eu acho que todo autor talvez tenha esse desejo, não sei) mas o meu desejo aqui, se você vai se aproximar da sensação do sublime, é que esse trabalho possa repercutir daqui a 200 anos, 500 anos, da mesma maneira. Só o desejo faz a gente realizar as coisas. Notas i “Ivo Mesquita, por exemplo, ao situar o artista, toma como referência uma nova concepção romântica da pintura que ‘se manifesta em geral de maneira representativa e figurativa, às vezes um tanto abstrata e em outras bastante realista, no entanto sempre expressando a força da pintura e da representação’”. (ADES, 1998: p.17) ii Caracterizadas pelo aspecto monumental atribuído a simples objetos; tratados com a mesma intensidade um tronco de madeira (Baumstam III – ditirambish, 1966), um ramo de centeio (Ähre – ditirambishe, 1972) ou a forma abstrata de um ditirambo (Dithyrambe-schwebend, 1964 e Zelt 9 – Dithyrambisch, 1965), essas pinturas representavam a figura de forma escultórica. (CARADANTE, 1994: p.5) iii Texto publicado em forma de manifesto, sobre o bilhete ou convite da primeira mostra berlinense do artista na Galleria Potsdamer em 1966. (CARADANTE, 1994: p.5) iv Pintura original: “Portrait of the artist’s mother”, 1872 - James Abott McNeil Whistler. (ADES, 1998: p.22) v “Morte de São Francisco”, 1325. Giotto. Capela Bardi, Santa Croce, Florença. (ADES, 1998: p.21) vi Com referência à pintura: “Caspar David Friedrich em seu estúdio”, 1819. Georg Friedrich Kersting. Berlin, Nationalgalerie, Staatliche Museen zu Berlin – Preussicher Kulturbesitz. (WOLF, 2003: p.7) vii “Também a palavra Schoa como alternativa para o Holocausto é enraizada religiosamente. Na bíblia hebraica a palavra significa: desgraça, calamidade temporal - arruinar, corromper – no contexto da provação divina.” (ex: B. Jesaja 10,3 : salmo 35.8) (KLEMM, RUPEL, 1999: p.145). viii “(…), Kiefer possui um trabalho muito burilado, e acredito que se pode pensar sua obra em um tipo de reapropriação de certo número de dados. Há em sua obra um aspecto citacional que reenvia ao romantismo, com nomes, obras, etc, (…) In: “Compreender é julgar”. Entrevista com Daniéle Cohn, Glória Ferreira e Cezar Bartholomeu (Paris, 23 de junho de 2007). Revista Arte & Ensaio Nº 15 . p.136. ix “O que toda figuração, qualquer que seja a sua forma, deve ter em comum com a realidade, para poder de algum modo – correta ou falsamente – afigurá-la é a forma lógica, isto é, a forma da realidade”. (WITTGENSTEIN, 2001: p.135, 131 e 145). x A célebre obra-prima de Grünewald “Crucifixão” (269 cm x 304 cm) ocupa a parte central do “Altar de Isenheim”, um políptico formado por nove telas. A obra teria sido executada entre 1512 e 1515 no Convento de Isenheim, na região da Alsácia, e está conservado no Museu Unterlinden, na cidade francesa de Colmar, no departamento do alto Reno. (CIVITA, 1968: p.2). xi “Para corrigir uma indiferença natural, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol. A miséria, impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na história; o sol ensinou-me que a história não é tudo. Mudar a vida, sim, mas não o Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social Cultura (PUC-Rio) 94 ANIMA Ano II – nº3 - 2012 história, teoria & cultura mundo do qual eu fazia minha divindade”. Essas palavras co-existem com o prefácio da primeira obra de Albert Camus, O avesso e o direito; coletânea de 5 peças, publicada em 1937, na Argélia, quando Camus tinha apenas 22 anos, e classificada pelo autor de “ensaios literários” - (CAMUS, 2007: p.18) Referências Bibliográficas: CARADANTE, Giovanni. Markus Lüpertz. Milano: Fabbri Editori, 1994. “Compreender é julgar”. Entrevista com Daniéle Cohn, Glória Ferreira e Cezar Bartholomeu (Paris, 23 de junho de 2007). Revista Arte & Ensaio Nº 15 CAMUS, Albert. O Avesso e o direito. Rio de Janeiro: Record, 2007. MESQUITA, I.; ADES, D.; PÉREZ-BARREIRO, G. Daniel Senise. Ela que não está. Cosac & Naify. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. CIVITA, V. (Ed.) Grünewald. Gênios da Pintura. São Paulo: Abril, 1968. LABRA, Daniela. Cat. DANIEL SENISE 2892. Abril de 2011. LOHRBÄCHER, A.; RUPPEL. H.; SCHMIDT, I.; THIERFELDER, J (orgs). SCHOA. Schweigen ist unmöglich. Erinnern, Lernen, Gedenken. Sttutgart: Kohlhammer, 1999. MELVILLE, Henry. 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