Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Transcrição

Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X
PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional desde
1992, à FEPAL e à Associação Brasileira de Psicanálise
v. 6, n. 1, 2004
EDITOR
Heloisa H. Poester Fetter
CONSELHO EDITORIAL
Ana Rosa C. Trachtenberg • Elfriede Susana Lustig de Ferrer • João Baptista
Novaes Ferreira França • Leonardo Wender • Samuel Zysman • Sara Zac de
Filc
COMISSÃO EDITORIAL
Carmen Lúcia M. Moussalle • Carmen Saile Willrich • Rosa Beatriz S.
Squef f • Vera Dolores Mainieri Chem
BIBLIOTECÁRIA
Geisa Costa Meirelles
EDITORAÇÃO
Luiz Cezar F. de Lima
LAY-OUT
Josimo Silva Lopes – Speed Press
DIGITAÇÃO
Nilza Cidade Cardarelli
SECRETÁRIA
Antonia Lima Iohann
REVISÃO DE PORTUGUÊS
Professor Antônio Paim Falcetta
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/Fax: (55-51) 3330.3845 • E-mail: [email protected]
(55-51) 3333.6857
[email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
1
Capa:
AMENHOTEP I E AMÓSIS-NOFRETIRI
22
Egito, Novo Império (XVIII Dinastia), provavelmente de
Amenhotep III, 1390-1353 a.C.
Pedra-sabão, 9 x 8,3 cm
3072
A figura principal desta díade fragmentada é o deificado Amenhotep I, que é mostrado usando uma peruca
núbia curta, saiote, braceletes e segurando um mangual em sua mão direita. Está ao lado de sua mãe, a rainha deificada
Amósis-Nofretiri, que usa um elaborado ornamento para cabeça com a forma de um abutre, um vestido justo e um colar
largo. Buracos de encaixe no topo da cabeça de cada uma das figuras tinham provavelmente a função de fixar adornos.
Nas costas da peça estão gravados dois pares opostos de colunas de hieróglifos, uma coluna dupla para cada figura.
No tex to atrás do rei lê-se: “O bom deus, filho de Amon, (...)/ Rei do Alto e Baixo Egito, Djeserkare (...).” A coluna atrás
da rainha pode ser traduzida deste modo: “A esposa do deus, nascida de um deus, a esposa do rei (...)/ sua mãe, a mãe
do rei, Amósis-Nofretiri (...).”
Depois de suas mortes, tanto Amenhotep I, segundo rei da XVIII Dinastia (cerca de 1514-1493 a.C.), quanto
sua mãe Amósis-Nofretiri, esposa do Rei Amósis I (cerca de 1539-1514 a.C.) foram venerados como protetores divinos
da enorme necrópole de Tebas. Desfrutavam de especial popularidade entre os trabalhadores oficiais da necrópole,
instalada no vilarejo de Deir el-Medina. A razão para a devoção prestada ao casal não é de todo clara, embora já se tenha
especulado que Deir el-Medina teria sido fundada durante o reinado de Amenhotep I. Parece que ambos compartilharam
uma sepultura em Dra Abu’l Naga, em uma tumba a princípio preparada para Amósis-Nofretiri e mais tarde ampliada
para um segundo sepultamento. Em 1913-14 esta tumba foi aberta em nome do quinto Conde de Carnarvon por Howard
Carter, o arqueólogo conhecido pela descoberta da tumba de Tutancâmon em 1922.
Sua escultura, que talvez seja proveniente de um pequeno santuário doméstico, está ligada a um grupo de
estatuetas em pedra-sabão esmaltadas que representam a própria Amósis-Nofretiri ou a Rainha Tiye, esposa de
Amenhotep III, o faraó sob cujo reinado esta peça foi provavelmente esculpida..
—CNR
Esta rainha-mãe, retratada afetuosa e intimamente ao lado de seu filho-rei, deve ter atraído Freud, que foi primogênito e
filho favorito. “Se um homem foi, sem concorrência, o filho predileto de sua mãe, conserva ao longo da vida o sentimento
triunfante, a confiança no sucesso, que não raro traz consigo o sucesso real.” (SE, 17, p.156).
Ao longo de sua vida, Freud acompanhou avidamente as notícias de escavações, e certamente deve ter sabido
da descoberta da tumba de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, realizada por Howard Carter. O autor do complexo de Édipo
pode ter ficado intrigado com esta disposição funerária – mãe e filho, dispostos lado a lado em uma tumba comum, para
toda a eternidade.
—FM
Sobre Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver W. Helck et al., Lexikon der Ägyptologie (Wiesbaden, 1972-), I, cols. 102-109,
s.v. “Ahmose Nofretere” (M. Gitton), e ibid., cols. 201-203, s.v. “Amenophis I” (E. Hornung), com referências. Sobre o
sepultamento de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver C. N. Reeves, Valley of the Kings: The Decline of a Royal Necropolis
(Londers, 1990), pp.3-5. Para outras esculturas relacionadas, ver C. Aldred, “Ahmose-Nofretari Again”, Artibus Aegypti.
Studia in honorem Bernardi V. Bothmer a collegis amicis discipulis conscripta (Bruxelas, 1983), pp. 7-14.
P975
Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. v. 6, n. 1, 2004.
Porto Alegre: SBPdePA, 2004.
1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre.
ISSN 1518-398X
CDU: 616.891.7
Tiragem: 300 exemplares
Bibliotecária Responsável: Geisa Costa Meirelles
2
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
CRB 10/1110
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional
DIRETORIA
Presidente
Dr. New ton M. Aronis
Tesoureiro
Dr. Lores Pedro Meller
Secretária
Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg
Coordenador da Comissão Científica
Dr. Fernando Linei Kunzler
Vogais
Dr. César Augusto Antunes
Dra. Heloísa Helena P. Fetter
Dr. Flávio Roithmann
INSTITUTO DE PSICANÁLISE
Diretor
Secretário
Dr. Gley Silva de P. Costa
Dr. Antônio L. B. Mostardeiro
Coordenador de Formação
Dr. Luiz Gonzaga Brancher
Coordenador de Seminários
Dr. Leonardo A. Francischelli
Núcleo de Infância e Adolescência
Clínica Social
Dra. Vera Maria H. P. de Mello
Dr. José L. F. Petrucci
PSICANÁLISE – Revista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Editor
Dra. Heloisa H. Poester Fetter
BIBLIOTECA
Diretora
Dra. Augusta Heller
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
3
MEMBROS FUNDADORES
Alberto Abuchaim
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Antonio Luiz Bento Mostardeiro
David Zimmermann
Gildo Katz
Gley Silva de Pacheco Costa
Izolina Fanzeres
José Facundo Passos de Oliveira
José Luiz Freda Petrucci
Júlio Roesch de Campos
Leonardo Adalberto Francischelli
Lores Pedro Meller
Luiz Gonzaga Brancher
Marco Aurélio Rosa
New ton Maltchik Aronis
Renato Trachtenberg
Sérgio Dornelles Messias
MEMBRO HONORÁRIO
Dr. David Zimmermann (Falecido)
4
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Revista da SBPdePA
SUMÁRIO
SAUDAÇÕES
Palavras do Presidente
New ton Aronis
•
11
EDITORIAL
Palavras do Editor
Heloisa Fet ter
•
15
ARTIGOS/ENSAIOS/REFLEXÕES
Qual o Valor da Consulta? • 19
Augusta G. Heller, César Augusto Antunes, Eluza M. Nardino Enck
Os Efeitos Cognitivos do Trauma: reversão da função alfa e a formação da tela
beta • 29
Lawrence J. Brown
Caos, Petrificação... ou Quê? A Incerteza na Subjetivação do Analista • 53
Raquel Zak de Goldstein
Estudo da Desmentida em um Quadro de Adição: Maradona com Sade • 69
Gabriel Guillermo Jure
Investigação Psicanalítica Contemporânea • 93
David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz
O Psicanalista como Artesão da Técnica • 131
José Luiz F. Petrucci
De Esaú e Jacob à Reprodução Assistida – a Gemelaridade à Luz da
Psicanálise • 145
Rosana Igor Rehfeld
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
5
John Klauber, um Clínico Independente • 159
Neville Symington
Édipo: Configuração e Complexo: um Adolescente no Desfiladeiro • 183
Ana Rosa Chait Trachtenberg
CONFERÊNCIA na SBPdePA
Amor, Transferência e Loucura • 195
Serapio J. Marcano
ENTREVISTA da SBPdePA
SBPdePA Entrevista Raquel Zak de Goldstein • 213
6
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Revista da SBPdePA
CONTENTS
ARTICLES/ESSAYS/MEDITATIONS
How much does an Appointment Cost? • 19
Augusta G. Heller, César Augusto Antunes, Eluza M. Nardino Enck
The Cognitive Ef fects of Trauma: reversal of alfa function and the creation of beta
screen • 29
Lawrence J. Brown
Chaos, Petrification... or What? The Uncertainty [inherent] in the Analyst’s
Subjectiveness • 53
Raquel Zak de Goldstein
Disavower Study in Addition Case: Maradona with Sade • 69
Gabriel Guillermo Jure
Contemporaneus Psychoanalytic Investigation • 93
David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz
The Psychoanalyst as an Artisan in Technics • 131
José Luiz F. Petrucci
From Esau and Jacob to in Vitro Fertilization – Multiple Births in the Light of
Psychoanalysis • 145
Rosana Igor Rehfeld
John Klauber, an Independent Clinician • 159
Neville Symington
Oedipus: Configuration and Complex: an Adolescent in the Narrow • 183
Ana Rosa Chait Trachtenberg
LECTURE at SBPdePA
Love, Transfer and Madness • 195
Serapio J. Marcano
INTERVIEW of SBPdePA
SBPdePA Interviews Raquel Zak de Goldstein • 213
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
7
8
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Saudações
Newton Aronis
Estamos iniciando uma nova
gestão na Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre, e muito nos honra o lançamento de mais
um número de nossa Revista.
Em cinco anos de existência,
contamos com a colaboração de
inúmeros colegas, coordenados sucessivamente de forma competente
e entusiasmada por nossos editores
Ana Rosa Chait Trachteberg e Gildo
Katz.
Durante esse tempo, consolidamos nossa publicação com qualidade e características próprias. Trata-se de uma revista pluralista, com
espaço não só para os seus membros, como também para outros autores com produção psicanalítica de
interesse. A opção vem sendo de
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 11
Newton Aronis
Palavras do
Presidente
PALAVRAS
DO
PRESIDENTE
uma revista não temática, o que poderá mudar ao longo do tempo.
Acreditamos que o estímulo à Escrita Psicanalítica é o complemento
fundamental de nossa atividade societária, juntamente à nossa atividade
formativa e científica.
As inquietações teóricas ou clínicas deverão servir como uma moção
suficiente para uma atividade criativa, que implique sempre em um
interlocutor curioso e crítico. Escritor e leitor formam, nesse sentido, uma
unidade indissociável. É, de certa forma, indispensável para todos nós, que
trabalhamos com psicanálise, sermos simultaneamente leitores e escritores. A escuta, no seu sentido mais amplo, e o pensamento criativo, podem
muito bem ser representados pela dualidade leitor/escritor.
Isso implica que devemos ter em conta o caráter transitório de nossos
conhecimentos e estar com o espírito sempre aberto ao que nos questiona.
Esperamos que nossa Revista siga inquietando a todos e estimulando
uma leitura crítica.
Este número conta com uma nova equipe editorial, coordenada pela
nova editora Heloisa Fetter. É a presença de um membro formado em nossa
Instituição, o que muito nos orgulha. O ciclo de fundação de uma nova
Sociedade deverá dar lugar ao desafio de manter aceso o espírito criativo
na nossa Instituição.
Um bom trabalho para os novos editores e uma boa leitura para todos.
Newton Aronis
Porto Alegre, julho de 2004
12
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Editorial
Heloisa Fetter
Ter sido convidada para assumir o cargo de editora da Revista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre gerou, em mim,
sentimentos de orgulho pelo reconhecimento profissional e de medo
(estaria à altura de tal responsabilidade?). No entanto, deixando as
vaidades e inseguranças de lado, assumi a editoria de bom grado, da
maneira que me é peculiar, propiciando as condições para que a tarefa
fosse levada a cabo com empenho e
dedicação e, especialmente, com
prazer. Cabe dizer que tive a sorte
de contar com um grupo de colegas
que também se identificou com essa
tarefa, formando o que podemos
chamar de grupo de trabalho, no
sentido de Bion. A Vera Chem, a
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 15
Heloisa Fetter
Palavras
do Editor
PALAVRAS
DO
EDITOR
Carmem Moussalle, a Carmem Saile Willrich e a Rosa Squeff estão pegando junto, tornando nosso convívio muito agradável.
Entrando no seu sexto ano de idade, podemos dizer que a Revista já é
uma criança com identidade própria, com expectativas futuras, tanto no
sentido de contribuições científicas, como no processo de indexação, buscando cada vez mais o padrão de qualidade necessário. E para a criança
nascer e crescer bem, é fundamental a presença de pais adequados. Nesse
sentido, não posso deixar de mencionar a qualificação de meus
antecessores, que assumiram, com suas características pessoais, as funções
de mãe e de pai da criança. No casal metafórico, a Ana Rosa, na sua gestão
(gestação), foi uma mãe dedicada, competente, sensível, enquanto que o
Gildo, como pai, preencheu todos os requisitos básicos, com a sua perspicácia intelectual, com seu amor pelo estudo, estimulando o crescimento
desta criança. Nesse caldo de cultura, também fui aprendendo as nuances
do ofício e espero fazer jus à confiança depositada em mim pela direção da
Sociedade.
Este número, como tem ocorrido até agora, tem uma orientação
pluralista, contando com a participação de autores dos vários continentes:
norte-americanos, europeus, sul-americanos, além da prata da casa. Isso
mantém o caráter internacional que já vinha apresentando, o que favorece
seu crescimento como publicação.
Heloisa Fetter – Editor
Porto Alegre, julho de 2004
16
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Artigos/Ensaios/Reflexões
Augusta G. Heller
Psicóloga; Psicanalista; Membro
Associado da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de Porto Alegre.
César Augusto Antunes
Médico; Psicanalista; Membro
Associado da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de Porto Alegre.
Eluza M. Nardino Enck
Psicóloga; Candidata Egressa do
Instituto da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre.
Freqüentemente surgem em
nossos consultórios duas preocupações básicas e que aparecem logo
no início do tratamento. A primeira
diz respeito à duração do processo
analítico. Os pacientes desejam saber quanto tempo ficarão em análise. O que será que os leva a essa préocupação? Poderia ser resultante do
próprio processo que os leva à consulta? Uma luta interna entre aspiração à independência e à autonomia e seus aspectos dependentes?
Freud, em seu trabalho “Sobre
o início do tratamento” (1913), respondia a essa questão através da fábula de Esopo, no diálogo entre o
filósofo e o caminhante que queria
saber quanto tempo teria sua jornada, ao que o filósofo respondia: “comece a andar”.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 19
Augusta G. Heller, César Augusto
Antunes, Eluza M. Nardino Enck
Qual o Valor
da Consulta?
QUAL
O
VALOR
DA
CONSULTA?
Dessa maneira, procurava esclarecer que a dificuldade em determinar
a duração de uma análise estaria relacionada à imprevisibilidade inerente a
todo processo que envolve a complexidade de cada ser humano, no sentido
de que o caminho só pode ser conhecido conforme for percorrido; o tempo,
só depois de percorrê-lo.
A segunda questão também requer que pensemos atentamente no seu
sentido: “Qual o valor da consulta?”
Com relação ao “custo da sessão”, Freud acreditava que: “Um analista não discute que o dinheiro deve ser considerado, em primeira instância,
como meio de autopreservação e de obtenção de poder, mas sustenta que,
ao lado disto, poderosos fatores sexuais acham-se envolvidos no valor que
lhe é atribuído” (1913, p.173).
Ele percebeu que as questões relativas ao dinheiro tendiam a ser tratadas pelas pessoas civilizadas da mesma maneira que as questões sexuais,
com a mesma incoerência, pudor e hipocrisia, e recomendava que se evitasse lidar com esse assunto sob domínio dessas resistências.
Na busca de um entendimento para essa questão, abriram-se, para nós,
alguns vértices de investigação, pois, no encontro de dois sujeitos, existe,
no discurso de cada participante, um sentido manifesto e um sentido latente.
Em seu sentido manifesto, o valor da consulta para o analista pode
representar o reconhecimento de sua capacidade como analista. Para o paciente, o quanto ele se dispõe a investir em um tratamento que dê conta de
seu sofrimento psíquico.
Porém, a questão central deste trabalho reside na busca do sentido
latente, implicado no valor da consulta.
Mateus liga para o analista e estabelece o seguinte diálogo:
“Olá, eu queria marcar uma hora, quem me deu o teu nome foi a Joana,
que é terapeuta da minha namorada, só que tem duas coisas, eu tenho dois
nomes de terapeutas, porque eu tenho que ver horário, pois trabalho em
outra cidade, mas o principal é saber qual o valor da tua consulta”.
Somos levados a pensar, porque, na busca de amenizar seu sofrimen20
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 21
Augusta G. Heller, César Augusto
Antunes, Eluza M. Nardino Enck
to, é este um aspecto com o qual a pessoa tanto se preocupa – o quanto,
mais do que com o como (aliviar sua dor). Pensamos que Mateus não poderia estar se referindo somente à quantia a ser gasta – conteúdo manifesto.
Na função de analista, teríamos que pensar que outros sentidos estariam
imbricados nesta pergunta. A que se refere a indagação? Onde está o desconhecido? Ele irá se construir a partir do encontro.
O valor financeiro irá sustentar o valor da análise durante algum tempo, enquanto não se constituir o campo analítico.
Um outro paciente, Amanda, manifesta esse conflito da seguinte maneira: procura análise devido a freqüentes brigas que vem tendo com os
pais e que se iniciaram quando a mãe descobriu seu relacionamento homossexual. Para Amanda, a mãe sempre foi uma mulher passiva e submissa ao pai, descrito como dominador e autoritário. Ela tem a fantasia que o
pai tenta controlar seus pensamentos. Da história infantil chama atenção
que ela sempre esteve muito ligada ao pai, enquanto a irmã, mais ligada à
mãe. Os dois nunca permitiram a proximidade da mãe e da irmã, a ponto de
essas se considerarem excluídas da relação. No primeiro encontro, apesar
de dizer que sabe que a análise se realiza com a freqüência de quatro vezes
por semana, ela pensa em fazer duas. Ao retornar, na sessão seguinte, diz
que saiu triste e deprimida. Considerando-se fechada, acha que pela primeira vez conseguiu se abrir com alguém e assim chega sugerindo a possibilidade de fazer análise quatro vezes por semana.
Nesse momento, esbarra na questão do “valor” da análise. Amanda
alega que, para que ela pudesse fazer quatro sessões semanais, precisaria
da ajuda financeira da mãe. Esta se negou a ajudá-la, dizendo que seria
conveniente que desistisse, porque não teria o retorno que ela, mãe, esperava. Dessa maneira, expressa um conflito que, apesar de estar colocado em
sua relação com a mãe, nos fala da luta interna entre os aspectos dependentes e o desejo de autonomia psíquica.
Que valor se poderia pensar em atribuir a um trabalho de resgate do
“si mesmo”, quando o preço pago ao longo de cada uma dessas histórias
teria sido tão alto, a ponto de levar ao aprisionamento do sujeito?
QUAL
O
VALOR
DA
CONSULTA?
Qual o valor da consulta, quando a dúvida que se ergue é por quanta
dor se precisará passar para vir a “ser” o contador da sua história? A dor de
ser colocado em contato com a sua verdade?
Betty Joseph (1972, p.97) diz que: “Existem pessoas que são tão intolerantes à dor ou à frustração (ou em quem dor e frustração são tão intoleráveis) que sentem a dor, mas não sofrem e, portanto, não se pode dizer
que a descobrem”.
Já Bion (1991, p.19) diz que “o paciente que não sofre dor é incapaz
de ‘sofrer’ prazer”.
Há um tipo de dor que emerge em momentos em que acontece um
rearranjo no equilíbrio mantido pela personalidade e que se faz acompanhar por uma alteração do estado mental que, em alguns casos, é o que traz
o paciente à análise.
“Em outros momentos, esse movimento é parte do processo analítico
e, se puder ser resolvido, poderá ser um passo muito positivo em termos de
progresso e integração” (JOSEPH, 1972, p.97).
Joseph sugere que essa dor está ligada a uma sensação de existir separadamente. Diante disso, nos perguntamos: será que Amanda desiste de
existir quando desiste da análise – des-existe? Será que Mateus, que inicia
e permanece em tratamento, apesar de seus temores e desconfianças, permanece em busca da existência de seu ser?
De alguma maneira, quando alguém procura um tratamento, é porque,
embora sua vida, até então, pudesse ser aparentemente satisfatória e importantes áreas de ansiedades psicóticas e defesas viessem funcionando de
forma relativamente bem-sucedida, o tipo de modalidade patológica particular sucumbe, e o que ele vivencia é algo novo e desconhecido.
Thomas Ogden (1996, p.5), ao se referir ao sujeito da psicanálise, o
analisando, diz que este “não vivencia novamente seu passado; o analisando vivencia seu passado como sendo criado pela primeira vez no processo de estar sendo vivido no e por meio do terceiro analítico”. Já o analista “não vivencia o passado do analisando; ele vivencia sua própria criação do passado do analisando, gerada na sua vivência do terceiro analítico”.
22
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 23
Augusta G. Heller, César Augusto
Antunes, Eluza M. Nardino Enck
Esse passado resgatado só poderia ser criado por esse par, em cada
encontro, onde nunca se está absolutamente só consigo mesmo e a experiência de existir está sendo criada com o outro. Isso dá condições a uma
recontextualização fundamental de vivências até então clivadas, impossíveis de integrar e utilizar.
Então, por tudo isso, qual o valor da consulta?
Esse poderá ser um dos enigmas que permeia o nosso trabalho, o qual
teremos de suportar, evitando assim uma resposta manifesta que nos colocaria no lugar do Oráculo que responde a Édipo. O valor da consulta estará no espaço do encontro de duas pessoas e deverá ser construído pelo par
analítico.
Que valor tem o paciente para si mesmo? É muito difícil responder a
isso quando as teias narcisistas não permitem o pensar em si, ou só permitem o pensar em si enquanto outro metido em si, e não separadamente,
como Amanda.
O encontro que se pensa vir a acontecer se dará através da análise e da
relação com o analista, gerando a possibilidade de ressignificações de vivências desde o mais remoto passado.
Assim, o paciente se coloca diante de um binômio: tenho que dar tanto
(todo o próprio ser) e é tudo (do nada) que tenho, tudo do qual fui destituído.
Para Amanda, no seu aspecto identificado com o narcisismo materno,
qualquer preço, por menor que seja, é muito; para o seu nada, mesmo que
hipoteticamente pudesse ser um tratamento gratuito, mesmo assim seria
caro. Para o resgate de sua individualidade, percebe que precisará tanto da
função do analista, que pensa que jamais poderá pagar ou deverá pagar
com seu próprio ser, como o fez com a mãe.
Qual o significado de dizermos que uma análise é cara ou barata? Qual
os diferentes sentidos para essas palavras? No dicionário “Aurélio”
(FERREIRA, 1986) encontramos os seguintes significados para barato:
“que custa um preço baixo, módico; [...] que não exige grandes despesas;
[...] comum, vulgar, banal” (p.231). Para caro encontramos: “que custa
QUAL
O
VALOR
DA
CONSULTA?
um preço elevado; [...] que exige grandes despesas; [...] obtido com grandes sacrifícios; [...] que é tido em grande valor ou estima; querido, amado” (p.355). Assim, a questão trazida pelo paciente de ser uma análise cara
ou barata vai muito além do mero problema monetário, porque, como vimos na definição dos termos, vai dizer respeito também aos atributos desse
encontro.
Talvez essa descoberta comece a se tornar possível quando o processo
analítico conseguir liberar os fragmentos da verdade histórico-vivencial de
desfigurações, transfigurações e marcas deixadas no presente real objetivo.
Assim, ressituá-la nos lugares do passado aos quais pertencem poderá possibilitar a emergência de um ser mais verdadeiro.
O paciente que, naquele momento, indagava o valor da consulta necessitará de um tempo significativo de caminhada para obter a verdadeira
resposta a sua pergunta.
Serge Leclaire (1990, p.10-13) diz que:
La práctica psicoanalítica se funda en la revelación del trabajo constante de una fuerza de muerte: la que consiste en matar al niño
maravilloso (o terrorífico) que de generación en generación atestigua
los sueños y deseos de los padres; no hay vida sin pagar el precio del
asesinato de la imagen primera, extraña, en la que se inscribe el nacimiento de todos. [...] No basta en absoluto matar a los padres; lejos de
ellos, se debe matar también la representación tiránica del niño-rey: yo
(je) empieza en esse instante, marcado ya por la inexorable segunda
muerte, la outra, de la que nada hay que decir.
A partir do aporte freudiano, pensamos na ação específica e no auxílio
alheio como caminhos para a construção do “si mesmo”. Por um lado, alguém que ainda não está constituído como sujeito emite um grito, forma de
expressar sua necessidade, esperando que um outro, que ainda não é reconhecido como outro, vá ao seu encontro, preferencialmente carregado de
desejo. Assim se dá o primeiro encontro, mítico, de uma necessidade que
busca um desejo no outro para satisfazer essa demanda.
24
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Encontro você;
Você sobrevive ao que lhe faço à medida que
A reconheço como um não-eu;
Uso você;
Esqueço-me de você;
Você, no entanto, se lembra de mim;
Estou sempre me esquecendo de você;
Perco você;
Estou triste.
Essa é a dor: dor do desencontro e de um novo e criativo encontro com
o “si mesmo”. Esse é o tributo do crescimento e do reconhecimento do
“valor”.
A maioria das pessoas que nos procuram vem com uma necessidade
de auxílio que é objetiva dentro da sua subjetividade, apesar de não sabêlo. O que se põe nesse primeiro momento poderá ser da ordem do sinistro –
tão familiar, íntimo e assustador, porque permaneceu dentro do sujeito
como registro e que poderá vir a ser representação.
Será que os pacientes de hoje expressam mais intensamente essa necessidade, ou nós é que estamos mais bem “aparelhados” para escutar a
demanda do necessário, acompanhando-os ao longo dessa trajetória do registro à representação-palavra, da necessidade ao desejo? Abrindo mais
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 25
Augusta G. Heller, César Augusto
Antunes, Eluza M. Nardino Enck
Amanda vai atrás de uma necessidade que ainda não foi satisfeita: ser
encontrada por uma mãe que a deseje, sem que para isso tenha de perverter
aquilo que poderia ser um encontro, mas que na sua vivência se tornou um
aprisionamento. Quando nos encontra, estamos nós com o desejo disparado, desejo de analisar, de entender, de dar sentido ao sem-sentido – ou ao
não-sentido.
O que Amanda procura é poder “ser” desejada como outro, quando o
outro possa reconhecer o que é a sua necessidade, enquanto “vir a ser”.
Winnicott (1968, p.92) diz, através de uma poesia, o que representa
para o bebê o encontro com a mãe:
QUAL
O
VALOR
DA
CONSULTA?
espaços simbólicos nesse encontro, podemos permitir essa trajetória através de elementos que estão presentes na transferência.
Existe na pergunta Qual o valor da consulta uma metáfora a ser compreendida e decifrada, que implica um longo caminho em que muitos “valores” precisarão ser contemplados, “contados”, “contabilizados”, num
contexto em que o valor da consulta, dito em seu conteúdo manifesto, é a
fantasia do personagem que clama por ser descoberto e reconhecido.
O pagamento, o custo e o valor do tratamento, vistos de forma concreta e objetiva por muitos de nossos pacientes, contêm imbricada em sua
essência uma subjetividade que não pode ser alcançada no momento da
busca. Freud diz: “Nada na vida é tão caro quanto a doença – e a estupidez” (FREUD, 1913, p.176).
Sinopse
Em nossa prática diária, em nossos consultórios, freqüentemente nos deparamos com esta questão: Qual o valor da consulta? A partir de duas situações
clínicas, procuraremos uma compreensão de alguns fatores inconscientes presentes nessa interrogação. Quando um paciente nos questiona sobre o valor da consulta, do que estará falando? Parece ser importante pensar que não se trata somente de uma questão financeira. Por mais realísticos que possam ser os motivos
concretos que levam a essa preocupação, acreditamos que a neurose ou, de outro
modo, a disponibilidade interna para os investimentos psíquicos e a forma de sua
aplicação interferem significativamente na condição de gasto e investimento a
que o paciente se propõe para o tratamento. Na busca de pensar um pouco mais
sobre essas questões foi que decidimos discuti-las, resultando neste breve estudo.
Summary
How much does an Appointment Cost?
In our daily practice, in our offices, a question is frequently presented to us:
How much is a psichoanalyst’s visit worth? From two clinical situation we will
look for a comprehension of some inconscious factors present in this questioning.
When a pacient asks us about the cost of a visit, what is he talking about? It seems
rather important to think that it is not merely a financial issue. As much realistic
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Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sinopsis
¿Cuál es el Valor de la Consulta?
En nuestra práctica cotidiana, en nuestros consultorios, frecuentemente nos
deparamos con esta cuestión: ¿Cuál es el valor de la consulta?A partir de dos
situaciones clínicas procuraremos una comprensión de algunos factores inconscientes presentes en esta interrogación. Cuando un paciente nos cuestiona sobre
el valor de la consulta, ¿de qué estará hablando?. Parece ser importante pensar
que no se trata solamente de una cuestión financeira. Aunque sean reales los motivos concretos que llevam a esta preocupación, acreditamos que la neurosis, o de
otro modo, la disponibilidad interna para las investiduras psíquicas y su forma de
aplicación, interfieren significativamente en la condición de gasto e investidura a
que el paciente se propone para el tratamiento. En la búsqueda de pensar un poco
más estas cuestiones fue que decidimos discutirlas y resultó en este breve estudo.
Palavras-chave
Valor; Descoberta de si mesmo; Encontro.
Key-words
Worth; Self discovering; Meeting.
Palabras-llave
Valor; Descubierta de sí mismo; Encuentro.
Referências
BION, W.R. A medicina como modelo. In:______. A atenção e interpretação.
Rio de Janeiro: Imago, 1991.
FERREIRA, A.B.H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 27
Augusta G. Heller, César Augusto
Antunes, Eluza M. Nardino Enck
as the real reason leading to this concern can be, we believe that the neurosis or
even the internal availability for the psychic investiments and it’s way of aplication
interfere greatly in the condition of spending an investing to wich the pacient
agrees to undergo for his treatment. This paper aims to reflect upon these
questionings.
QUAL
O
VALOR
DA
CONSULTA?
FREUD, S. (1913). Sobre o início do tratamento. In:______. S.E. Rio de Janeiro:
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JOSEPH, Betty. (1972). Em direção à experiência da dor psíquica. In: FELDMAN,
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selecionados de Betty Joseph. Rio de Janeiro: Imago.
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o bebê: convergências e divergências. In:______. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
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Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Meu filme [Apocalypse Now] não
é sobre o Vietnam.
Ele é o Vietnam
Francis Ford Coppola,
Cannes, 1979
Lawrence J. Brown
Analista Supervisor Infantil do
Instituto Psicanalítico de Boston.
Analista do Corpo Docente e
Supervisor do Instituto de
Psicanálise de Massachusetts.
Instrutor Clínico da Escola de
Medicina de Harvard.
Psicanálise e trauma são velhos
companheiros que mantêm uma relação ambivalente. Nos seus primórdios, a psicanálise adotou o papel central da emocionalidade,
potencializando os eventos formadores da histeria. Breuer e Freud
(1895) inicialmente consideraram o
fenômeno histérico como sendo o
resultado de seduções reais que “estrangulavam o afeto” e necessita-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 29
Lawrence J. Brown
Os Efeitos
Cognitivos do
Trauma:
reversão da
função alfa e
a formação da
tela beta
OS EFEITOS COGNITIVOS
DO
TRAUMA:
REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA
vam de um tratamento ab-reativo (BREUER e FREUD, 1893) para libertar
as emoções reprimidas e as memórias associadas aos eventos traumáticos.
Entretanto, o aumento da experiência clínica conduziu Freud a questionar
sua hipótese da sedução, à medida que podia apreciar mais profundamente
a importância da fantasia inconsciente (FREUD, 1905, 1911, 1915). Essa
retirada de ênfase sobre as experiências traumáticas gerou a crença que
Freud teria abandonado totalmente a importância da realidade, mas se trata
de uma leitura equivocada do seu trabalho (BLASS e SIMON, 1994). Os
horrores da Primeira Guerra Mundial, mais uma vez, chamaram
inexoravelmente sua atenção para o impacto sobre a psique de uma realidade debilitadora e avassaladora. Freud (1920) observou que pesadelos
repetitivos em soldados traumatizados não tinham exatamente o sentido
mais comum dos sonhos, isto é, expressões simbólicas de um conflito inconsciente, mas eram primeiramente uma tentativa de libertação dos eventos traumáticos. Freud chegou à conclusão que esses sonhos repetitivos
representavam uma tentativa da mente para administrar as memórias traumáticas e postulou a compulsão à repetição para explicar tal condição. Finalmente, a introdução de Freud (1923) à teoria estrutural estabelece o ego
como a “sede da ansiedade”; uma formulação que ofereceu ao analista um
instrumento na compreensão da luta de seus pacientes para lidar e adaptarse à avassaladora ansiedade traumática.
Recentemente, o tema voltou a merecer atenção da psicanálise, vértice esse que produziu uma rica literatura, surgindo paralelamente ao aumento da consciência na cultura popular sobre os eventos traumáticos. Para
o propósito da presente discussão, utilizarei a definição de Grotstein (1997)
do trauma como uma súbita e opressora estimulação externa do self que
excede a capacidade do indivíduo para contê-la. Do ponto de vista teórico,
as perspectivas contemporâneas (YORKE, 1986; BRENNER, 2001;
REISNER, 2003; TARANTELLI, 2003) tendem a enfatizar os esforços do
ego, tanto do lado adaptativo como do das dificuldades de adaptação, para
lidar com uma ansiedade esmagadora e o terror. A literatura clínica tem
sido especialmente pródiga para esclarecer as poderosas reações
30
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 31
Lawrence J. Brown
contratransferenciais geradas por pacientes traumatizados (DALENBERG,
2000; LEVINE, 1990; GABBARD e WILKINSON, 2000; ALHANATI.,
2002) para elucidar a pressão que tais indivíduos exercem sobre o analista
para obter um contato físico (CASEMENT, 1982), para evidenciar a possibilidade de que os relatos de abusos passados possam ser comunicados
pelo aqui e agora da experiência transferencial do paciente (BRENNEIS,
1997).
Essa breve introdução oferece, no máximo, uma visão geral e um olhar
rápido sobre um assunto vasto e complexo; todavia, existe uma questão
que dá forma ao presente trabalho e que gostaria de introduzir neste ponto.
Existe algum fator subjacente da personalidade que pode ajudar a explicar
os efeitos aparentemente distintos do trauma – os sonhos repetitivos
(evacuativos), a deformação de pelo menos um componente do funcionamento do ego, a freqüente e improdutiva repetição de representações, e as
reações contratransferenciais peculiarmente constrangedoras?
Em resumo, acredito que o fator central encontrado por detrás dos
vários aspectos das dificuldades de um paciente traumatizado é um tipo de
limitação cognitiva, e essa limitação pode ser mais bem entendida pela
ótica da Teoria do Pensar de Bion (1962a, 1962b, 1963, 1967; MELTZER,
1978, 1981; REISENBERG-MALCOLM, 2001). Além disso, enfatizo ainda que as idéias de Bion podem aprofundar nosso conhecimento dos efeitos do trauma e ajudar nossa abordagem clínica do problema. Minha tese
principal afirma que as experiências traumáticas afetam a psique pela produção de uma reversão da função alfa, resultando na formação de uma tela
beta rigidamente organizada que condena o paciente traumatizado a padrões aparentemente infindáveis de representações, que o impedem de
aprender da experiência. Em síntese, é a qualidade da organização da tela
beta, produzida pelo trauma, que se encontra no âmago da situação traumática e se caracteriza por um certo tipo de déficit cognitivo. De fato,
Kennedy (1986) e Yorke (1986), ao discutir o papel do trauma na infância,
entenderam-no como tendo um tipo de efeito organizador sobre o indivíduo, mas deixaram inexplorada a questão de como o trauma reorganiza a
OS EFEITOS COGNITIVOS
DO
TRAUMA:
REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA
estrutura da personalidade. De modo similar, Levine (1990) descreveu a
forma como o trauma infantil organiza a experiência do self e a transferência. Todavia, sua discussão direciona o assunto para um nível puramente
clínico-descritivo. Com relação a possíveis seqüelas cognitivas do trauma,
Van der Kolk (1994, 1991 com Van der Hart) postulou uma forma especial
de processo mnêmico das experiências traumáticas e, em essência, afirma
que tais memórias são armazenadas de uma forma diferenciada das outras
memórias. Brown e Kulik (1977) cunharam o termo “memórias de flash
fotográfico” para descrever o modo como as memórias traumáticas supostamente preservam o incidente traumático real de uma forma pura. Tais
idéias sobre o processo especial de memória pela qual o trauma é codificado têm sido seriamente questionadas por autores psicanalíticos (p.ex.,
BRENNEIS, 1997); entretanto, parece existir uma singularidade com a
qual as experiências traumáticas são registradas internamente. É o que irei
examinar agora, à luz das idéias de Bion.
Certa vez, uma mulher terrivelmente traumatizada por uma situação
de abuso na família me perguntou, no meio de uma sessão analítica: “Dr.
Brown, conheces algo sobre napalm?” Indaguei o que ela queria dizer. Ela
me explicou que o napalm tinha sido projetado para aderir à pele e, por
isso, era impossível livrar-se dele. Enquanto fiquei bastante mobilizado
por essa informação, minha paciente prosseguiu: “É como acontece comigo. Tenho essa coisa horrível dentro de mim, que queima debaixo de minha
pele e de que não consigo me livrar”. Essa breve vinheta ilustra o uso da
identificação projetiva normal dessa paciente (BION, 1959; JOSEPH,
1983), que, na tentativa de comunicar seu conflito, despertou em mim o
sentimento inescapável de horror. Entretanto, existe algo mais na experiência da minha paciente que a teoria da identificação projetiva não explica
adequadamente: o fato de se sentir sitiada por uma experiência concreta
que não tem significado além de um fato sensorial tosco, uma coisa em si
(FREUD, 1900, 1915; BION, 1962a) Esse é certamente o território que foi
ricamente investigado por Bion.
Voltarei a desenvolver essa investigação, após um breve parêntese, em
32
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 33
Lawrence J. Brown
que coloco alguns dados da história pessoal de Bion, relevantes para esse
ponto do trabalho. Embora Bion não tenha especificamente mencionado a
questão do trauma em seus escritos, foram suas próprias experiências pessoais com o trauma da Primeira Guerra Mundial que deixaram uma marca
indelével em sua personalidade e moldaram seu pensamento psicanalítico.
Na sua autobiografia, The long weekend (BION, 1982), ele descreve os
inimagináveis horrores da Primeira Guerra Mundial, durante a qual testemunhou um oficial preferir ser baleado a se render, um outro ter a cabeça
explodida enquanto conversava com Bion, e a falta de sentido na morte de
muitos amigos e inimigos. Ele foi condecorado com a Victory Cross, em
reconhecimento por sua bravura em combate, mas rejeitava essa medalha,
pois se considerava um covarde. De acordo com Grotstein (1997b), o sentido subjetivo de covardia provém da percepção de que falhamos em encarar adequadamente os inevitáveis desafios da vida. Agregado a isso, é possível aventar que tal sentimento reflete a inabilidade de Bion para processar, nessa ocasião, as terríveis experiências que permaneceram como coisas em si não digeridas. Os Symingtons (SYMINGTON e SYMINGTON,
1996) concluem que “as experiências coisas-em-si da Primeira Guerra
Mundial” foram de tal modo horripilantes que permitem pensar que se tenha gasto o resto da vida tentando assimilá-las (as aspas são minhas).
Seguindo a definição de Freud de consciência como um “órgão sensorial para perceber qualidades psíquicas” (BION, 1962a,1962 b), tornou-se
consciente de que certas experiências sensoriais, particularmente de natureza emocional, embora de impacto poderoso, podiam não ser pensadas
através do processo secundário e do pensamento racional. Em vez disso, a
consciência de tais experiências, como a da minha paciente da metáfora do
napalm e a de Bion sobre os episódios na Primeira Guerra Mundial, permanecem na psique como elementos-beta, que são descritos da seguinte forma: “não submetidos ao uso como pensamentos oníricos, mas são adequados para uso como identificação projetiva. Eles são geradores de atuações. São objetos que podem ser evacuados ou usados para um tipo de
pensamento que depende da manipulação do que é sentido como coisa em
OS EFEITOS COGNITIVOS
DO
TRAUMA:
REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA
si, como para substituir tal manipulação por palavras e idéias” (BION,
1962 a, p. 6).
A necessidade de ser capaz de aprender da experiência origina dentro
da psique a função alfa, em si mesma um aspecto do funcionamento do
ego, que age sobre os elementos-beta para transformá-los (BION, 1965)
“em elementos-alfa que se assemelham, e podem na verdade ser idênticos
a imagens visuais com as quais estamos familiarizados nos sonhos, ou
seja, os elementos que Freud entendia como dando saída ao conteúdo latente quando o analista os interpretava” (BION, 1962 a, p. 7).
Quando a função alfa é bem-sucedida na transformação de elementosbeta em elementos-alfa, esses últimos se associam para formar o que Bion
chama de barreira de contato – um tipo de membrana que permite “o estabelecimento do contato entre o consciente e o inconsciente, e a passagem
seletiva de elementos de um para o outro” (p.17).
Todavia, esse processo é reversível e, como outras funções do ego,
pode retornar a estágios mais primitivos, nos quais um paciente pode ter o
sentimento de que aquilo que está dizendo tem significado, mesmo que se
encontre incapaz de compreender esse significado. Experiências que previamente foram codificadas como elementos-alfa retornam como elementos-beta. De acordo com Bion, um ataque invejoso é o fator primário na
reversão da função alfa e, conseqüentemente, na destruição da barreira de
contato. Eu sugiro que um fator adicional nessa situação é a formação de
uma tela beta, organizada de forma rígida, dando à psique um sentido de
organização que não pode ser alterado.
O que é a tela beta? Bion (1962a, p.22) afirma que, ao contrário do
estado confusional no qual o paciente emite uma corrente de elementosbeta desconexos, a tela beta é “coerente e interativa”. Um dos seus propósitos é “evocar um tipo de resposta desejada pelo paciente”, que pode ser
uma forte contratransferência. Do mesmo modo que a psique nunca pode
retornar ao que ocorreu anteriormente, também a formação da tela beta não
é simplesmente um retorno aos elementos-beta originais. Bion diz que “a
reversão da função alfa de fato afetou o ego e, portanto, não produz um
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Lawrence J. Brown
simples retorno aos elementos-beta, mas a objetos que diferem em aspectos importantes dos elementos-beta originais, e que não têm a tintura da
personalidade aderida a eles” (p.25).
Desse modo, o antigo elemento-alfa retorna à sua origem concreta,
porém, com um novo tipo de fantasma, sem o significado do antigo self:
um elemento-beta que mais uma vez não pode se fazer concorrente. Esses
novos elementos-beta, ex-elementos-alfa “desnudados de todas as características que os separam dos elementos-beta” (p.25), são então projetados
para formar uma tela beta “coerente e interativa”.
Meltzer (1981) destacou como a noção de Bion de reversão da função
alfa expande as descrições de Klein dos ataques destrutivos sobre o self.
Klein descreveu os ataques sádicos sobre os objetos internos e o self, enquanto Bion esclareceu como uma função do ego, nesse caso a função alfa,
pode ser atacada e desmantelada.
Meltzer afirma que “o processo alfa tem a possibilidade de reverter,
canibalizando os elementos-alfa que estavam criados, para produzir seja
a tela beta ou os objetos bizarros” (p.530).
Bion (1962a) diz que a formação regressiva da tela beta é “bem compatível” com o que descreveu (BION, 1959) como objetos bizarros, formados por elementos-beta amalgamados com fragmentos do ego e do superego, mas é fato que não se refere mais a ela em nenhum outro trabalho. Em
Elementos de psicanálise (1963), Bion afirma que os elementos-beta podem atingir um nível de organização, entretanto “esta está mais próxima
de um aglomerado do que de uma integração ou coerência” (p.41). Embora ele esteja falando sobre os elementos-beta ainda não transformados pela
função alfa, podem ser caracterizados por uma organização que é uma
“aglomeração”, enquanto os elementos-beta, que são ex-elementos-alfa,
são capazes de um nível mais elevado de organização que é “coerente e
interativa”.
Sandler (1997) propôs a existência de uma “antifunção alfa”, definida como uma tendência universal para reverter a função alfa e para “substituir a realidade psíquica por realidade material” (p.47). Assim, a função
OS EFEITOS COGNITIVOS
DO
TRAUMA:
REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA
alfa parece englobar tanto um meio de adaptação transitório como “estruturas rígidas, concretizadas na mente.” (p.47). Clinicamente, uma manifestação da antifunção alfa é uma situação na qual falsas verdades se demonstram com credibilidade, uma espécie de fábula de análise cujo intuito
é eliminar a verdadeira análise. Ele afirma que a antifunção alfa pode ser
provocada no analista de forma que inadvertidamente faça um conluio com
o disfarce da verdade do paciente, criando o que Langs (1982) chamou de
“conspiração psicoterápica”. Sandler prossegue nomeando duas categorias de elementos-beta: “os aparentemente inteligíveis e os aparentemente
ininteligíveis”. Estes últimos são o tipo descrito por Bion na confusão e
nas experiências mentais concretas e sem significado. Por outro lado, os
elementos-beta aparentemente inteligíveis obtêm disfarce do conluio social (p.49), compreendendo o que passa por pensamento racional com conteúdo latente não-diluído, e o que pode ser bastante bizarro se passa por
normal. Sandler não liga esses subtipos de elementos-beta ao conceito de
tela beta, mas parece razoável concluir que uma tela beta pode ser formada
pelas várias combinações desses dois subtipos de elementos-beta.
Outra das contribuições exclusivas de Bion para nossa compreensão
da natureza do pensar foi relacionar a capacidade para o pensamento maduro com as primeiras formas de relações objetais. A capacidade do indivíduo para o funcionamento alfa foi considerada como uma internalização
das projeções infantis de elementos-beta na mãe, que por sua vez as contém e as transforma em elementos-alfa através de sua rêverie. Assim, a
capacidade para pensar não é vista como uma função autônoma do ego,
como é para Freud, mas sobretudo como uma aquisição que depende da
qualidade das primeiras relações com a doação de atenção materna. O modelo continente/conteúdo é familiar a muitos leitores, e gostaria de
enfatizar um aspecto do mesmo, a saber, a afirmação de Bion que “o pensamento pode ser visto como parte do conteúdo da situação edípica”
(p.44). Com relação a isso, ele introduziu o significado do papel do pai no
reforço da capacidade materna para lidar com as projeções dolorosas do
bebê. Gooch (2002) elaborou essa noção ilustrando como os pais são um
36
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 37
Lawrence J. Brown
par continente, com o pai tomando a iniciativa de absorver e modificar com
sua própria função alfa o fluxo de elementos-beta que a mãe é incapaz de
lidar. Esse continente materno/paterno internalizado, com a função alfa do
pai apoiando a da mãe, gera o aparelho para pensar. Herzog (2001) não se
refere ao par internalizado, mas aos pais reais, trabalhando
colaborativamente para estimular o crescimento e reduzir a agressão da
criança, ajudando a construir uma estrutura que fortalece a capacidade para
enfrentar traumas futuros com plasticidade. Desse modo, Bion ampliou o
conceito de situação edípica (BROWN, 2002), ao ligá-lo à sua Teoria do
Pensar.
Eu gostaria de retornar à minha hipótese de que um trauma psicológico maciço tem o efeito destrutivo de reverter a função alfa desenvolvida,
levando à formação de uma tela beta rigidamente organizada, que fornece à
psique um senso de organização que não pode ser modificado. Emoções
intoleráveis para uma função alfa plena de sentido são gerenciadas por uma
concretização defensiva (BROWN, 1984, 1985, 1987), que oferece ao ego
conflitado um tipo de justificativa defensiva: em vez de lidar com a experiência de manejar com os elementos alfa intoleráveis, o ego se desvia defensivamente para um tipo de atividade muscular (BION, 1962a), na tentativa de expelir concretamente os elementos-beta através de violenta identificação projetiva. Os elementos-beta que se formam como resultado do
trauma são compostos de percepções do evento traumático que foram rapidamente comprimidas a experiências associadas com o passado do paciente. Em indivíduos com a função alfa intacta na ocasião do trauma, alguns
desses recém-formados elementos-beta tenderão a ser “aparentemente inteligíveis”, enquanto outros serão “aparentemente ininteligíveis”, sendo
ambos compactados numa tela beta que é “coerente e interativa”. Essa
tela beta se transforma na “história” do paciente traumatizado, organizando seu caos interno, e é repetitivamente elaborada nas associações dos pacientes, nas representações transferenciais persistentes e nas respostas
contratransferenciais. Uma reação contratransferencial particular é a pergunta do analista: “o que realmente aconteceu com meu paciente?”
OS EFEITOS COGNITIVOS
DO
TRAUMA:
REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA
(LEVINE, 1990), e a tendência para chegar a um conluio que vê o paciente
como vítima (REISNER, 2003) – e que acredito ser o resultado de elementos-beta “aparentemente inteligíveis”, uma parte da tela beta do paciente
traumatizado.
Caso clínico
R., uma cientista pesquisadora, 35 anos de idade, inicialmente consultou-me em virtude de problemas no casamento. Muito inteligente, atraente
e desinibida, estava casada há vários anos e não tinha filhos até aquela
ocasião. Ela suspeitava que seu marido era alcoólatra, e mascarava isso
negando e minimizando o problema. Isso a deixava muito insegura no casamento. Ela descreveu seu marido como exageradamente interessado em
sexo, mantinha relações sexuais freqüentes com ele, mas R. nunca chegava
ao orgasmo. Quase entre parênteses, ela contou que tinha sido brutalmente
estuprada quando tinha vinte e poucos anos de idade, mas no presente sentia que isso ficara para trás, depois de muitos anos de tratamento intensivo
que se seguiram à violência. Nós nos encontramos por um ano, duas vezes
por semana, numa psicoterapia, e começamos a análise quando se tornou
claro que o estupro tinha produzido um impacto profundo em sua vida,
muito mais do que ela inicialmente acreditava.
R. provinha de uma família de cinco filhos. O primeiro filho morreu
na infância. Seus pais adotaram uma filha alguns meses após a perda trágica. Sua mãe ficou grávida de R. quando o processo de adoção estava próximo de se completar. Desse modo, sua mãe teve dois bebês para cuidar.
Quando ela tinha dois anos de idade, seus pais adotaram outra criança,
dessa vez um garoto asiático com seis anos de idade. Outro filho foi adotado quando R. estava com quatro anos. R. sentia que sua mãe nunca se
enlutara com a morte do filho e buscara rapidamente substituir a perda. Ela
descreveu sua mãe como uma bonne vivant, que buscava ser sempre o centro das atenções, muito atraente, vestindo-se para realçar suas formas, e aos
70 anos de idade ainda era uma “gata”. Sua mãe também era uma
“Pollyana” que não queria ouvir más notícias e, quando escutava uma his38
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 39
Lawrence J. Brown
tória desagradável, era conhecida por dizer logo após: “eu morreria se isso
acontecesse comigo”. Quando R. contou para sua mãe o estupro, esta foi
incapaz de confortar a filha, e depois se referia ao ataque como sendo simplesmente um assalto. R. era muito ligada ao pai, um executivo bem-sucedido e o mais educador do casal. Ele foi capaz de confortá-la após o estupro, mas apenas de uma forma limitada, pois lhe contou uma história sobre
como os soldados tinham de voltar da batalha e prosseguir numa nova missão.
Ela se lembra dos primeiros anos em casa como próximos ao idílio,
exceto por uma mancha. O garoto asiático adotado, P., tornou-se cada vez
mais bizarro à medida que ficava mais velho. P. estava obcecado por violência e sexo, e certa vez disse que um marinheiro havia forçado o pênis em
sua boca. Ele também freqüentemente fazia comentários rudes a sua mãe.
R. lembrou-se de uma ocasião, na hora do jantar, quando P. disse: “eu gostaria de foder com você, mãe”, ao que a mãe respondeu, fazendo uma onda
com a mão e com uma voz algo lisonjeada, que ele estava sendo inconveniente. R. também se lembrou que P. era tão provocador, que seu pai, geralmente uma pessoa que não se zangava facilmente, explodiu de raiva e surrou o garoto. Posteriormente, P. foi diagnosticado na adolescência como
esquizofrênico e estava internado na época em que R. se tratava comigo.
No início da faculdade, R. com mais duas outras mulheres, quando
caminhavam à noite do campus para casa, foram abordadas por três homens. Cada um deles agarrou uma delas, arrastando-as para o mato com
intuito de estuprá-las. R. disse a si mesma que ela não permitiria que aquilo
acontecesse, recusou submeter-se e lutou contra seu atacante com todas as
suas forças. Ela se lembrou de que seu estuprador fora ajudado pelos outros
dois, provavelmente porque já tinham terminado seus atos brutais, e os três
tentaram subjugá-la. Ela se recorda que fechou bem as pernas para resistir
ao estupro vaginal e que eles decidiram estuprá-la oralmente. Eles obrigaram-na a abrir a boca, e um dos agressores aí forçou seu pênis. R. afirmou
que mordeu o pênis desse homem tão fortemente quanto pôde, até o ponto
de ele ter de esmurrá-la para se libertar. Ela também disse que um dos
OS EFEITOS COGNITIVOS
DO
TRAUMA:
REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA
homens pegou uma garrafa e tentou introduzi-la em seu ânus. Por alguma
razão, os estupradores desistiram subitamente, provavelmente porque escutaram alguém chegando. R. disse que uma das mulheres estupradas mais
tarde se suicidou, e que a outra estava na cadeia por ter matado o próprio
filho.
Antes do estupro, ela dizia que não se sentia perturbada pelos fatos de
sua infância, e que tinha sido capaz de experimentar relações sexuais
prazerosas, atingindo o orgasmo. Entretanto, o terrível incidente parecia ter
tido um efeito magnético sobre esses fatos de infância, tal como um imã
faz com lascas de ferro, juntando-os todos numa nova estrutura definida
pelo estupro. Essa nova organização, rigidamente organizada e impermeável a mudanças, tornou-se o foco de nosso trabalho analítico. Diversos
componentes dessa organização traumática foram repetidamente representados na análise de R. que, como poderíamos esperar, era tumultuada e
turbulenta (BION, 1976) para ambos os participantes. Por vezes, R. percebeu-me como se eu fosse sua mãe impenetrável e, por isso, me provocava
com freqüência para verificar se eu conseguiria “agüentar”, me testando
para se certificar se eu repudiaria suas tentativas de me afetar, ou se podia
tolerá-las e conter as insuportáveis experiências concretas – que ela era
capaz de “pensar” apenas através de identificação projetiva. Em outras ocasiões, ela me identificou com P., seu irmão adotivo, quando minhas interpretações eram sentidas como eu sendo o marujo que supostamente teria
tentado estuprar oralmente o irmão. Em outros momentos, ela se tornava o
agressor, uma mistura de estupradores e P., dizendo que desejava me jogar
no chão e me estuprar “com toda raiva acumulada de cada mulher que
havia sido estuprada”. Entendi isso como sendo sua própria raiva, sentida
como tão ampla, que necessitava espalhá-la em fragmentos, que uma vez
projetados enchiam as outras mulheres.
Por algum tempo, R. tentou seduzir-me sexualmente, algumas vezes
deitando-se de bruços para me olhar enquanto passava lascivamente a língua nos lábios. Ela dizia que desejava me excitar e se ofereceu para me
40
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Lawrence J. Brown
fazer um fellatio, o que eventualmente pudemos entender como uma manipulação para me transformar em estuprador, que ela no aqui e agora da
transferência podia controlar e sobre quem exercer poder. À medida que
seu casamento foi investigado, ficou claro que a história sobre o apetite
sexual de seu marido era encobridora e não retratava a verdade; na realidade, fomos capazes de aprender como ela também provocava o marido sexualmente, transformando-o num predador libidinoso. Ela explicou que
preferia o coito por trás, pois se sentia claustrofóbica na posição papai e
mamãe. Mais adiante, fomos capazes de compreender mais plenamente
sua forte reação à propensão de seu marido para beber muito. As garrafas
de vinho vazias tornaram-se um ícone, no qual facetas do estupro estavam
atreladas: seu marido era como um estuprador, com seu hálito alcoólico,
forçando a garrafa dentro dela ao penetrá-la por trás.
Eu gostaria de enfocar um trecho do trabalho analítico em maiores
detalhes para ilustrar outra manifestação de sua organização traumática.
Aproximadamente dois anos após o início da análise, R. deu à luz a uma
menina saudável. Ela adorou a filha e descobriu que amamentar lhe trazia
imensa e verdadeira satisfação. Então, após seis meses, sua filha parou de
ganhar peso e passou para alimentação sólida junto com o peito. Diversas
avaliações médicas não encontraram nenhuma razão para o problema, e ela
começou a pensar se poderia existir uma base psicológica envolvida. Eu
recomendei para R. uma colega que trabalha com mães e bebês para
observá-la enquanto amamentava. Essa colega imediatamente notou que
R. ficava rígida e inibida quando amamentava sua filha, e não havia prazer
no ato. R. se deu conta de que a observação estava correta e começamos a
investigá-la na análise. Na sessão que antecedeu a que apresentarei em detalhes, R. estivera falando sobre o fato de o seu pai ter sido diagnosticado
com câncer, sobre sua tristeza a esse respeito, sobre sua raiva por ele a ter
deixado com a mãe – parte da raiva dirigida contra mim.
R. começou a sessão falando de sua raiva contra mim, dizendo: “eu
desejo seu bem-estar físico, mas em seguida quero transformá-lo em algo
OS EFEITOS COGNITIVOS
DO
TRAUMA:
REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA
violento para você, destruir sua cabeça1”. Seus pensamentos deram continuidade ao desejo de passar mais tempo comigo durante a doença de seu
pai e evidenciaram o quão envergonhada estava com sua forma de me tratar. Ela então me falou sobre ter procurado a terapeuta mãe/bebê no dia
anterior e sobre como sua filha não queria comer de forma alguma enquanto estava lá. Ela e a filha tomaram banho juntas à noite, a bebê riu enquanto
brincava com os seios da mãe, e que naquela noite teve um sonho
aterrorizante, no qual sua filha se afogava na banheira enquanto ela pegava
no sono. No sonho, ela estava indo para a cadeia, porque o exame médico
revelara que a bebê havia se afogado no leite materno. O que lhe veio à
mente em seguida foi ter dado à sua irmã adotiva adolescente um livro
chamado Nossos corpos, nós mesmos, para ajudá-la no aprendizado sobre
sexo. Ela prosseguiu, dizendo que também tivera um sonho comigo na noite anterior que lhe recordava da noite que consentiu ao desejo do marido
por sexo. Isso parece ter estimulado o trabalho analítico. Ela estava envergonhada em me contar o sonho, porque parecia uma invasão de privacidade. Ela sonhou que:
“Estava deitada no divã, sentei-me e andei em sua direção. Então o
empurrei para fora da poltrona – não, você me pediu para fechar as venezianas e o fiz. Você disse ‘não’, mas eu o obriguei a sair para fora da poltrona,
e não podia me impedir como meu marido fez naquela noite. Eu o forçei, e
você disse que seu próximo paciente me veria, e então você disse que seu
pai o estava vendo e por isso ele estava doente e morrendo”.
Sua associação foi com uma professora que seduziu um adolescente
de quatorze anos e que alguém os pegou no ato. R. conjeturou sobre como
foram descobertos e suspeitava que alguém podia estar espionando da janela.
Esse material é tão denso e disposto em camadas, que é difícil saber
bem onde e como intervir. O tema da invasão ressaltou e o sonho sobre a
filha me pareceu muito importante, dado os problemas alimentares na oca1. No original; fuck your brains out. Note-se que a palavra fuck tem também o significado de ato
sexual. (N. do T.)
42
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Discussão
R. experimentou na infância conflitos na sexualidade associados a temas de agressividade. O estilo histérico de sua mãe parece ter impregnado
a família com uma atmosfera erótica, uma carga de eletricidade sexual que
sobrecarregou o limitado circuito do irmão adotivo. Sua capacidade de provocar estimulava o pai a tal extremo que ele, em uma ocasião, perdeu o
controle e bateu no filho. Nenhum dos pais individualmente, nem o casal,
foi capaz de prover um continente adequado para a dificuldade de lidar
com fortes emoções. A afirmação da mãe “se isso acontecesse comigo eu
me mataria” foi escutada de uma forma infeliz, assinalando a convicção de
que ela não podia lidar com notícias ruins. Quando confrontada com a perda do bebê, a mãe parece ter desenvolvido um esforço maníaco para negar
a dor tendo mais bebês; portanto, excluindo qualquer luto. Devemos também conjeturar sobre a capacidade do pai para lidar com a dor da perda,
assim como para assistir sua esposa a lidar com a tristeza. Em termos das
contribuições de Gooch (2002) e Herzog (2001) com relação ao papel central e real dos pais intrapsíquicos de ajudar a criança a lidar com o trauma,
a habilidade de R., que era rígida quando confrontada pelo trauma, parece
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 43
Lawrence J. Brown
sião. Eu disse a R. que o dar e receber conforto parecia estar ligado a medos
de ser invadida e dolorosamente penetrada, e que o sonho sobre o bebê
parecia expressar o sentido não-verbal de que alimentar a criança era a
mesma coisa que invadi-la com leite. Ela disse que minha colega havia
sido muito útil, que apreciou minha indicação, e que estava tentando ser
brincalhona enquanto alimentava a filha. Ela me pediu uma sessão extra
naquela semana, e quando fui incapaz de fornecer o horário que se ajustasse ao seu, R. pediu-me para coçar suas costas. Eu assinalei que ela estava
me pedindo um conforto que invadiria sua privacidade e que a inundaria
com emoções muito complicadas. Ela reagiu com tristeza e falou sobre
suas preocupações com seu pai. Em conseqüência dessa fase do trabalho
analítico, R. e sua filha foram capazes de descobrir o prazer nas trocas
alimentares e a bebê começou a ganhar peso.
OS EFEITOS COGNITIVOS
DO
TRAUMA:
REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA
ter sido decrescida (LISMAN-PIECZANSKI, 1990).
Embora seja impossível saber completamente como essas questões da
infância afetaram R. antes do estupro, ela descreveu satisfação com sua
vida pessoal e relações prazerosas com os homens. É provável que tais
experiências de infância estivessem adormecidas, talvez como sementes
que poderiam florescer no futuro como sintomas neuróticos. Tragicamente
para R., ela foi vítima de um ataque perverso que excedeu sua capacidade
de contê-lo. Quando sua mãe foi informada de que a filha havia sido estuprada, reduziu o horror da situação, referindo-se ao fato como “assalto”. O
pai, por sua vez, foi disponível para ajudar R. a começar a manejar a experiência avassaladora do brutal estupro; entretanto, ele rapidamente mudou
para uma abordagem estóica e advogou prosseguir como se nada tivesse
ocorrido. Assim, não tendo a ajuda efetiva dos pais para elaborar a situação, nem tendo um casal interno capaz de transformar a experiência traumática (BION, 1962a, 1965), R. foi catapultada em uma cesura psíquica
(BION, 1977) na qual “o impacto da catástrofe explode a psique e desarticula sua organização, precipitando a mente nos mais primitivos estados de
atividade mental” (TARANTELLI, 2003, p.923).
Incapaz de conter o afeto avassalador, o ego de R. recorreu aos melhores meios de se adaptar, ou seja, pela formação de uma organização traumática que apoiava sua psique despedaçada. O que eu gostaria de enfatizar
aqui é que o trauma maciço na vida adulta reviveu experiências infantis
latentes que foram então organizadas pelo que ocorreu na vida adulta. Em
lugar da situação que ocorre quando há um trauma infantil que se organiza
no pico máximo sob experiências mais tardias, o trauma maciço na vida
adulta pode, ao contrário, organizar o que ocorreu no passado. Essa proposição é muito intimamente relacionada ao conceito nachtraglichkeit de
Freud (1918), delineado no caso do “Homem dos Lobos”. Ele afirma que
uma experiência primitiva adormecida da cena primária permaneceu latente até o surgimento de um sonho, quando o Homem dos Lobos tinha quatro
anos de idade. Cada vez que a reminiscência primitiva atingia um significado psicológico, era acordada pelo sonho subseqüente. Eu estou me refe44
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 45
Lawrence J. Brown
rindo à situação na qual um trauma presente se funde com experiências
equivalentes passadas, formando um amálgama que não pode ser pensando
e nem sonhado. Fink (2003) recentemente relatou os efeitos das experiências dos campos de concentração nazistas sobre a personalidade, concluindo que as experiências prévias ao campo tinham pouca conexão com a
forma da apresentação traumática dos sobreviventes. O estupro de R. não
foi como o horror implacável de um campo de morte, mas penso que existe
algo comum no sentido de ter que resistir a um ataque ao seu corpo e sua
mente, incluindo o conhecimento de que as outras duas mulheres ficaram
irremediavelmente lesadas.
O feroz ataque de R. detonou uma explosão intrapsíquica que destruiu
suas defesas e a deixou cambaleante em busca de um novo equilíbrio. Um
efeito dessa explosão em sua psique foi produzir uma reversão da função
alfa para lidar rapidamente com os efeitos do estupro, que ficaram
condensados com experiências agressivas sexuais da infância sob a forma
de elementos-beta. Registrar os vários componentes do estupro como elementos-beta é uma estratégia adaptativa primitiva do ego que permite “pensar” sobre tais experiências através da identificação projetiva. Um efeito
secundário do choque desestabilizador na mente de R. foi a formação de
uma tela beta que aglomerou os elementos-beta derivados de partes do estupro com aqueles derivados de partes de experiências infantis. Essa tela
beta criou na psique dividida um senso de organização, embora rigidamente estruturado, condenando R. a contínuas representações e a uma inabilidade de aprender da experiência. Tal formulação é semelhante à descrição
de Steiner (1993) da organização patológica, uma espécie de submundo
entre as posições esquizo-paranóide depressiva, para o qual o paciente psiquicamente se retira como se fosse um santuário. Steiner não liga seu conceito às teorias de Bion: minha ênfase aqui é na natureza concreta dessa
organização traumática e na natureza adaptativa da tela beta, trazendo ordem a uma psique destruída por eventos reais, uma organização que tragicamente oferece pouco conforto ao paciente.
Essa organização traumática foi desconstruída em sua análise, cada
OS EFEITOS COGNITIVOS
DO
TRAUMA:
REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA
componente atuado na transferência, e também presente em minhas fortes
reações contratransferenciais, exatamente na forma como Bion (1962a)
descreveu com a tela beta, em parte desenhada para despertar uma resposta
no analista. Algumas vezes, o uso violento da identificação projetiva de R.,
como na ocasião em que ela queria me estuprar “com toda raiva acumulada
de todas as mulheres que haviam sido estupradas”, me deixou inicialmente
chocado e atônito, produzindo um estado de paralisação do pensar, assaltando-me pelo que Sandler (1997) chamou de elementos-beta
ininteligíveis. Em outras ocasiões me senti aprisionado numa crença de
que estava deixando algo valioso escapar bem na minha frente, o que é
uma óbvia indicação de que os elementos-beta inteligíveis estavam sendo
atuados. Essa impressão era particularmente intensa quando ela me contava sobre o alegado apetite sexual voraz do marido. Os relatos repetitivos de
suas façanhas sexuais preencheram-me com um desejo de protegê-la desse
macho predador. Eu não me senti perseguido por tal reação, mas senti que
algum conhecimento sobre o que isso significava permanecia na periferia
da minha mente, fora de alcance. Mais tarde, quando R. fez um considerável esforço para tentar me seduzir e transformar-me num estuprador, fui
capaz finalmente de entender sua ação, que transformava o marido em uma
fera sexual e de quem eu a teria que proteger. Assim, a análise da organização traumática de R. foi feita pedaço por pedaço, com as várias facetas da
tela beta ativada em momentos distintos, induzindo uma
contratransferência diversificada que requereu a elaboração pela função
alfa de meu casal internalizado (BROWN, 2003).
A sessão que apresentei em detalhes mostra como um componente da
tela beta densamente compactada foi representado na transferência, e que
também se expressou através das dificuldades alimentares da filha de R.
Desejosa de ser confortada por mim, ela sabia transformar esse anseio em
afirmativas violentas de que desejava destruir minha mente2, e que a deixava envergonhada de tratar-me dessa forma. Eu notei para mim mesmo que
ela em seguida descreveu o encontro com a terapeuta mãe/bebê, no qual
2. No original, fuck my brains out. (N. do T.)
46
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
3. Mantido no original, tal como aparece em Cogitations (Bion, 1992). O termo dream-work alpha
foi substituído pela conhecida expressão função alfa. (N. do T.)
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 47
Lawrence J. Brown
sua filha não comeu, pensando que deveria haver alguma conexão entre
destruir minha mente e os problemas de alimentação; o significado, entretanto, me escapou. Seus pensamentos rapidamente foram do sonho da filha
se afogando em leite para o livro Nossos corpos, nós mesmos, e daí para a
memória da relação sexual possivelmente danosa que estimulou o trabalho. Alguma concepção começou a se desenvolver em minha mente que
tinha a ver com força, alimentar a força, e o corpo não sendo da própria
pessoa. Foi quando ela introduziu o sonho no qual me pegava pela palavra,
ao dizer que ela sentia como uma invasão de privacidade; a palavra “invasão” tinha o efeito magnético de juntar todas as associações dispersas em
um “fato selecionado” (BION, 1962a). Ao escutar tal sonho, foi possível
confirmar o tema da invasão forçada, e minha interpretação dirigiu-se tanto
para a transferência como para a fantasia inconsciente de afogar a criança
com leite materno. A capacidade de R. para ter esse sonho foi em si um
importante marco cognitivo que indicava o sucesso de seu nascente
“dream-work alpha” 3 (BION, 1992), capaz de converter o que tinha sido
um componente da tela beta traumática em elementos-alfa adequados ao
sonhar. O prosseguimento do trabalho, nesse aspecto de sua organização
traumática, contribuiu para que R. elaborasse as dificuldades de alimentação e provavelmente preveniu que seu trauma pessoal fosse transmitido
para a geração seguinte (BERGMAN e JACOVI, 1982; HERZOG, 2001).
Nas Conferências de São Paulo, Bion (1978) disse “nós temos que
avaliar como dizer ao paciente a verdade sobre si mesmo sem assustá-lo”
(p.173). Na realidade, quando se trabalha com um paciente aprisionado no
mecanismo psíquico repetitivo de uma organização traumática, somos desafiados de forma profunda a lhe dizer a verdade sobre si mesmo. Todavia,
existem muitas verdades. Uma diz que algo singularmente horrível aconteceu, algo tão horripilante que não pode ser pensado, mas que está requerendo ser pensado. Também temos de dizer ao nosso paciente a verdade, que
ele fez o melhor possível na ocasião, e que os esforços podem ter criado
OS EFEITOS COGNITIVOS
DO
TRAUMA:
REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA
novas dificuldades, a saber, a resultante organização traumática que se tornou encistada na personalidade. Existe ainda uma última verdade que é
mais assustadora de aceitar: que a despeito da experiência hedionda de que
foi vítima, seja qual for, no presente terá que se modificar ao reconhecer
como continua se aprisionando através de atuações repetidamente
destrutivas. Eu acredito que é essa última verdade, produtora do reconhecimento da responsabilidade pessoal no próprio destino, o que levou Freud a
expandir a “teoria da sedução” para incluir o conceito de fantasia inconsciente. O trabalho analítico cuidadoso é o que redireciona o significado
inconsciente que o trauma carrega para o paciente, destrancando os grilhões da organização traumática, sobre o que o gênio de Wilfred Bion nos
forneceu uma chave importante.
Sinopse
Neste trabalho, o autor retoma a noção de trauma em Freud e em outros
pensadores contemporâneos, mostrando como surge na clínica, através da transferência. Utilizando-se das idéias de Bion sobre o Pensar, Brown expõe seu ponto
de vista de que um trauma psicológico intenso tem o efeito de reverter a função
alfa, levando à formação de uma tela beta rigidamente organizada, condenado o
paciente a repetições de funcionamento que o impedem de aprender com a experiência. O artigo é ilustrado com um relato clínico que exemplifica a teoria exposta, acompanhado de uma detalhada discussão, concluindo que o trabalho analítico pode redirecionar o significado inconsciente que o trauma provoca no paciente.
Summary
The Cognitive Effects of Trauma: reversal of alfa function and the
creation of beta screen
In this article the author goes over the notion of trauma by Freud and other
contemporary thinkers, showing how it appears in the clinic through the transfer.
By using Bion’s ideas on Thinking, Brown expresses his viewpoint that an intense
psychological trauma has the effect of reverting the alpha function, leading to the
formation of a rigidly organized beta screen, subjecting the patient to repetitions
of functioning that prevent him from learning by experience. The article is
illustrated by a clinical account that exemplifies the theory set forth, accompanied
48
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sinopsis
Los Efectos Cognitivos del Trauma: reversion de la función alfa y la
formacion de la pantalla beta
En este trabajo, el autor recobra la noción de trauma en Freud y en otros
pensadores contemporáneos, mostrando como surge en la clínica, através de la
transferencia. Utilizándose de las ideas de Bion sobre el Pensar, Brown expone su
punto de vista de que un trauma psicológico intenso posee el efecto de revertir la
función alfa, llevando a la formación de una pantalla beta rigidamente ordenada,
condenado el paciente a repeticiones de funcionamiento que le impiden de aprender con la experiencia. El artículo es ilustrado con un relato clínico que ejemplifica
la teoría expuesta, acompañado de una minuciosa discusión, concluyendo que el
trabajo analítico puede redireccionar el significado inconsciente que el trauma
promueve en el paciente.
Palavras-chave
Bion; Trauma; Função alfa; Tela beta.
Key-words
Bion; Trauma; Alfa-function; Beta screen.
Palabras-llave
Bion; Trauma; Función alfa; Pantalla beta.
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
O autor deseja agradecer aos Drs. Arnaldo Chuster, James
Grotstein e Howard Levine por suas valiosas sugestões
na realização deste trabalho.
Tradução: Arnaldo Chuster
Dr. Lawrence J. Brown
37 Homer Street
Newton Center
MA 02459, U.S.A
Fone: 16172447587
E-mail: [email protected]
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Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
No outro lado da calçada
estão os donos da verdade
escriturada
os proprietários da
segurança
do ignorante
deste lado estamos nós
os donos das dúvidas
sentados a uma longa mesa
em chamas.
Extrato do poema “Os donos das
dúvidas”, de Eliahu Toker
Raquel Zak de
Goldstein
Médica; Psicanalista; Membro
Titular da Associação
Psicanalítica Argentina.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 53
A concepção equivocada da ciência se trai a si mesma por sua ânsia de certeza.
Karl Popper, “The logic of
scientific discovery”
Raquel Zak de Goldstein
Caos,
Petrificação...
ou Quê?
A Incerteza na
Subjetivação
do Analista
CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ?
A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA
Introdução
Este pré-congresso didático situa a problemática da formação do analista em seu próprio centro: a transmissão. Os avanços realizados nos recentes congressos internacionais evidenciam que, nem neste momento nem
no futuro – pensamos nós –, pode haver “ortodoxia” psicanalítica que se
possa apresentar como “o pensamento psicanalítico”.
Além disso, deixamos de lado um mito, o de que a psicanálise pode se
constituir como um campo de investigação objetiva, com uma técnica derivada dos conhecimentos adquiridos nesse campo e uma validação “rigorosa” dos resultados.
Aceitemos a presença – nem sempre resistencial – no campo científico atual e de sempre, de dificuldades perante o discurso psicanalítico.
Se os conhecimentos psicanalíticos são verdadeiros – e o são –,
irrompem certos esquemas epistemológicos e, embora não seja
empiricamente demonstrável o que se diz do sujeito na psicanálise, nesse
caso, temos de ampliar a extensão do termo “científico”.
Esse estado de coisas não nos leva a nenhuma perturbação interna:
não nos sentimos em uma Torre de Babel, pelo contrário, coloca-nos diante
de uma nova problemática: que teorias ou que prática podemos aceitar
como realmente psicanalíticas?
É precisamente no ponto marcado por essa interrogação que se estabelece o problema específico da transmissão da psicanálise.
I – A especificidade da transmissão da psicanálise
Faz tempo que os analistas se dão conta de que a transmissão da psicanálise não pode se comparar, em absoluto, com o ensino da Botânica ou da
Fisiologia. Não há nem duas Botânicas, nem duas Fisiologias; o que varia
são as teorias, que podem ser mais adiantadas ou mais atrasadas.
Em Psicanálise, a situação se formula de uma forma totalmente diferente. Não temos UM OBJETO PERMANENTE, como o tem a Botânica
ou a Fisiologia.
Por isso, a relação entre os conhecimentos teóricos e a ação prática
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Raquel Zak de Goldstein
não pode ser entendida como “aplicação” de conhecimentos teóricos a um
doente, mas como um trabalho de esclarecimento que resulta útil para
“esse” enfermo e que “ele possa assumir que lhe é útil”.
Se isso é verdadeiro, não podemos encarar a transmissão da psicanálise, a não ser levando em conta (e a IPA, em particular desde o trabalho do
Dr. R. Wallerstein, em Montreal – 1987, enfatizou essa tendência) essas
diversas correntes de pensamento e de ação correlativa (WALLERSTEIN,
1988).
Como vemos, tampouco possuímos UM corpo de teoria, mas vários.
E todos esses corpos de teoria estão radicados na obra de Freud, da maneira
como a podemos entender.
Visto que não se trata de UM CORPO DE DOUTRINA UNITÁRIO
ou INAMOVÍVEL – como também evidencia que não há manual que possa resumir o conhecimento psicanalítico em determinado momento da história (intentaram-no Jones, Fenichel e outros) –, nem uma técnica aplicando conhecimentos teóricos a UM OBJETO, que seria o analisando, então é
obvia essa diferença essencial entre a transmissão da Psicanálise e a transmissão em outras ciências.
Da transmissão – tal como é na atualidade, no mundo –, deduz-se,
outrossim, a conveniência (e Robert Wallerstein previu-o) de aceitar o espírito de pluralismo científico internacional com suas variáveis locais.
A expansão multi-referencial resultante (os muitos esquemas
referenciais já vigentes no pensamento psicanalítico atual) deve ser encarada como uma proliferação de teorias, com o perigo resultante de dissolução.
Evidencia-se, então, que a formação psicanalítica leva – sine qua non
– a enfrentar o problema da certeza.
Por sua vez, essas evidências – “não há uma só verdade, nem é completa” – são também poderosos fatores de desidealização e desilusão, e
podem arrastar as desidealizações – às vezes patológicas – e a criação – às
vezes transgressiva –, como veremos posteriormente.
No ensino pluralista (APA, 1974), o tripé clássico se complica, porque
CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ?
A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA
apresenta contradições em suas três partes: análise didática, supervisão e
seminários, visto que para o pluralismo não há uma teoria oficial. Em seus
efeitos, no entanto, isso protege contra o retorno do temido UM: a autoridade portadora da última palavra da verdade. Esse tripé complicado pelo
pluralismo, em última instância, afasta a almejada e temível certeza. Por
isso, dizemos que funcionalmente é um protetor.
A psicanálise é uma empresa de subjetivação. Leva-nos a decifrar a
demanda de alguém que se pergunta e nos pergunta alguma coisa sobre si
mesmo sobre seu sofrimento e seu desejo. Pede-nos atender a sua singularidade, ao mais íntimo de si mesmo. Situa-se na singularidade do inconsciente. Essa singularidade da psicanálise também se opõe, desde a base, a
um tipo de generalização científica habitual, pois nos afastamos das precisões e das certezas. Faz tempo que temos renunciado, com Freud, ao ideal
das ciências objetivas.
“Formação” e “subjetivação” aparecem contrapostas; apresenta-se,
então, um paradoxo central: formar subjetivando.
É um paradoxo insolúvel?
Entre uma formação monolítica “compacta”, que pode levar à
petrificação, e uma formação frouxa, atenuada, que pode deslizar para o
“caos”..., perguntamo-nos: trata-se de um justo meio... ou se trata de “outra
coisa”?
O que é, então, essa “outra coisa”, o específico da formação de um
analista? Como procurá-lo na transmissão? Como consegui-lo?
Formar subjetivando. Esse é o desafio. Formar subjetivando continuamente através de um segundo olhar que, mesmo sendo bom e se sabendo fazê-lo, não é o olhar de Deus. Porque ainda esse segundo olhar não está
isento... de incerteza e de “o que significa para cada um ser analista”, quer
dizer, da incidência pessoal de “seu eixo ideológico”. O esforço de abstinência ideológica do analista à moda da regra fundamental é um pressuposto que deve permanecer como um ideal necessário, embora seja impossível de se atingir (BARANGER, 1957).
Quer dizer que nos treinamos para sustentar a incerteza... mas... sus56
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 57
Raquel Zak de Goldstein
tentar a incerteza?... Há risco de caos, de desilusão e de pessimismo; rapidamente retornarão as buscas, as modas, as escolas...
Onde estará “a resposta, a verdade?” Alguns, perante a incerteza,
tendem à rígida adesão a um esquema referencial que preserve a ordem.
Ser analista, como o entendemos faz tempo, tampouco é uma qualidade definitivamente adquirida. É saber um pouco mais do que acontece com
a gente, é ser capaz de permanecer na incerteza, “com sua correlativa
possibilidade de criatividade”.
Em síntese: somos “aprendizes da incerteza”.
Agora, se considerarmos:
1) nossa ideologia a respeito de “o analista que queremos formar”;
2) o esquema referencial supostamente verdadeiro ou científico que
lhe queremos ensinar;
3) a atitude que esperamos do candidato (identificação, lealdade, etc.)
perante a Instituição, evidencia-se que o problema da transmissão é, diante
de tudo e apesar de tudo, um problema ideológico.
Um ensinamento é, naturalmente, uma ideologia. Nessa situação,
como evitá-la?
A desejada estabilidade e proteção contra a incerteza e a Hilflosigkeit
ameaçam reintroduzir as “crenças”, a “ortodoxia” e o temível “leito de
Procusto”.
Psicanalisar e psicanalisar-se é uma experiência singular e
intransferível... não podemos sintetizá-la, dar-lhe “uma forma”, nem abstrair fórmulas de aplicação... ou simplesmente generalizá-la.
A formação analítica não pode ser, de outro modo, senão o resultado
da evolução de um sujeito – a quem chamamos candidato –, evolução que
compreende: o insight (a percepção) que o candidato pode adquirir em sua
própria análise, a compreensão de sua situação como psicanalista com
seus analisandos (por exemplo, em suas supervisões), e uma evolução científico-ideológica adquirida pela continuidade dos mestres da psicanálise:
Freud em primeiro lugar.
CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ?
A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA
A psicanálise, como as ciências do homem, debate-se entre ciência
e ideologia (WALLERSTEIN, 1988).
II – A idealização e os microgrupos ideológicos
nas Instituições pluralistas
O movimento psicanalítico adquire, através da idealização, a força e o
caráter de uma “mística”, cuja função – agrupar e afirmar a vigência de
determinados ideais – conspira, por sua vez, contra alguma coisa do essencial do descobrimento: desideologizar e devolver a singularidade criativa.
Vamos considerar o futuro colega como matéria ideologicamente virgem? Estaríamos muito errados. Não podemos nos cegar quanto a seus
conhecimentos prévios, quaisquer sejam as falácias e/ou distorções que as
encerrem. Além disso – e o mais provável –, já terá se decidido por algum
dos microgrupos existentes, e isso terá orientado, outrossim, sua escolha
de analista didático.
O candidato não é, pois, o mesmo que J.J. Rousseau considerara a
respeito do “bom selvagem”, no sentido de virgindade natural
(ROUSSEAU, 1762). Pensando concretamente em um candidato, comprovamos que esse tem se aproximado da análise por numerosos motivos, mas
essencialmente por ideologia. Isso se evidencia, também, no fato de que o
candidato não chega, no início, em condições de poder considerar que há
distintas verdades e, sobretudo, de poder aceitar que não temos a posse de
nenhuma verdade última. Por isso, afirmamos que chega movido por uma
ideologia (BARANGER, 1957).
Poderia se pensar que o que convém para a formação de um psicanalista é que se entusiasme por um grupo ou por uma ideologia e, posteriormente, passe a outra coisa, eventualmente. O risco seria que fique “preso”
a essa primeira ideologia, ou a esse primeiro mestre, e não possa se abrir
mais.
Quer dizer que o candidato se aproxima da Instituição geralmente por
pertencer a um grupo psicanalítico. Isso implica pertencer a uma ideologia
e a uma idealização especial, à idealização de determinadas pessoas. Isso
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Raquel Zak de Goldstein
não é algo negativo em si. É uma situação que o candidato teria de poder
superar. Às vezes, não a supera. No melhor dos casos, sim. Porque, como
anteriormente dissemos, se não existe essa idealização inicial, o candidato não “se faz psicanalista” de nenhuma maneira.
O ponto absolutamente essencial é, nessa situação, o relacionamento
do candidato com a psicanálise. O que quer dizer a relação do candidato
com a teoria psicanalítica de seu analista e com a da Instituição psicanalítica a que aspira pertencer – aspectos que, mesmo sendo diferentes, se mantêm, não obstante, em muitas áreas –, e o grau de idealização que supõe sua
existência nesses diversos domínios.
O curso do processo analítico do candidato levará também, necessariamente, à revisão e à colocação em risco dessa idealização em algum
momento de sua formação. Muitas vezes, isso acontece após essa formação.
Esse processo da substituição da idealização pela valorização e suas
conseqüências é desencadeado quando a idealização tropeça em fatos evidentes, como por exemplo a descoberta de que as associações psicanalíticas não são tão melhores que as outras associações profissionais ou científicas. Deveriam ser melhores, mas não o são. E o que dizer do momento em
que isso se evidencia também em relação aos psicanalistas?
Esses são fatores fundamentais de desidealização.
O que pensamos a respeito e a título de conclusão, a partir de nossa
experiência, é que o contato, tal como queira fazê-lo o candidato com os
diferentes esquemas referenciais existentes dentro da Instituição, é o que
mais O pode auxiliar perante O risco de ficar aferrado a sua primeira ideologia, a esse primeiro mestre que o motivou a “tornar-se psicanalista”.
A respeito da questão de quando, consideramos que desde o início o
ensino deve ser assim: expressado em diferentes esquemas referenciais.
Dizíamos que não está errado que o candidato se entusiasme, inicialmente,
por um esquema, mas também que conheça os outros, inclusive que trabalhe nos outros, à medida que a Instituição o permita e possibilite.
Isso tem sido formulado assim e posto em prática na APA desde 1974
CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ?
A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA
(APA, 1974).
Neste tipo de Instituto pluralista, os candidatos – não-virgens e, a
princípio, entusiastas, como dizíamos, de uma opção teórica
ineludivelmente ideologizada – escutam em seminários seus colegas candidatos e são levados a pôr à prova suas respostas prévias, as próprias de
seu esquema referencial de origem.
Pensamos que esse leque de esquemas referenciais, com suas divergências e questionamentos discriminados e formulados psicanaliticamente, gera flexibilidade conceitual e se contrapõe eficazmente à tendência à
ideologização, impulsionada pelo “desejo de certeza, pureza e ordem”.
III – Procusto ou Prometeu?
Se não formamos – porque não queremos agir como Procusto, esticando e/ou recortando o candidato –, o que é que fazemos? Abrimos caminho a um estado não formado, in-forme, do qual esperamos a criatividade
que caracteriza o analista. A esse estado incerto, prometéico... como
suportá-lo? Como permanecer assim? Como não desejar fugir dessa condição? Como não ficar tentando com criações-desviações que prometem
aliviar esse estado?
Mesmo à beira do equívoco, preferimos permanecer “no incerto”, porque o dizer do analista é criação e comporta risco. Pode-se enganar, visto
que nem a verdade histórica, nem a verdade material são acessíveis como
tais. Somente por mediação da transferência e da palavra.
A ortodoxia – inevitavelmente procustiana – não garantiu uma solução a esse dilema de se manter psicanalistas, nem diminuiu a proporção de
desvios e perdas dentro do movimento; ao contrário, introduziu outro malestar: uma tendência à rigidez e à ideologização.
A experiência mostra que podemos limitar a “fogosidade juvenil” analítica prometéica em uma Instituição firme, precisa e plural (SECHAN,
1960). O que não poderemos é esperar “fogo” de um morto, e quem se
deitou no leito de Procusto, sem dúvida, amanhece morto ou disforme.
60
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sabemos que funcionamos sem certezas.
Além disso, evitamos aquilo que S. Leclaire (1983) denominou “a tentação de Deus”: a tentação de tomar-se por Deus.
O futuro analista percebe que a necessária revisão de seu esquema
referencial de origem põe em jogo uma parte medular de suas identificações, a que Willy Baranger (1956) denominou baluarte individual, que
talvez foi sustentáculo de sua identidade. Esse é um momento iniludível,
inerente ao trajeto do “tornar-se psicanalista...”, precioso momento que
demanda do analista didático vencer qualquer tentação de conivência
(GOLDSTEIN, 1973).
Mas a incerteza que se gera convida a se fugir em direção à
“salvadora” adesão a um esquema referencial, que indefectivelmente se
sacraliza e se torna uma crença particular. Volta a desejada certeza... às
custas de ceder à ideologização.
Se não queremos o Caos, nem a Petrificação... se também não queremos ceder à tentação de tomar-nos por Deus ou ideologizar, nem queremos
procustizar... o que resta? A aprendizagem da difícil, eterna tarefa de
tolerar a incerteza.
V – Criar é risco...
É obvio que esse estado – manter-se na incerteza e sem certezas para
criar – implica, além do mais, o risco de enganar-se.
A criatividade é a reação de um sujeito que, perante esse estado de
incerteza que se gera pela perda da idealização e de sua ideologia
subjacente, vai à procura de novas respostas para tolerar a incerteza e suas
perguntas.
Esta oscilação criativa, “ir à procura de”, funciona como um verdadeiro by pass e suporte da incerteza, e se afirma quando, na transmissão, considera-se e consolida-se a singularidade do candidato também em
sua produtividade, incentivando o trabalho crítico e o compromisso, e
quando o analista que transmite faz-se partícipe, marcando sua excentriSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 61
Raquel Zak de Goldstein
IV – Tolerar a incerteza
CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ?
A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA
cidade: não é o centro de um saber preexistente constituído.
Somente nesse momento, movido pela angústia perante a incerteza
que provocou o reconhecimento da queda do objeto idealizado protetor, “a
criança brinca, brinca de Fort-Da” (GOLDSTEIN, 1982; GREEN, 1990).
Mas essa posição “ingênua”, em abstinência ideológica e sem certeza,
capaz de “descobrir o inconsciente”, corre de par com o risco de perder-se
no desejo de mudar as coisas e criar alguma coisa nova.
Seu defeito, a criação transgressiva, está ilustrado por algumas personalidades que se perderam para o movimento (Adler, Jung, Steckel, Reich,
etc.).
O ideal da IPA foi manter uma ortodoxia para tentar lutar contra isso,
para que as pessoas não se perdessem para o movimento. Mas essa solução
não foi tal, visto que, mesmo assim, muita gente se perdeu.
Conclusões
O dilema da formação, hoje em dia, consistiria em: transitar entre
nosso Escila e Caríbdis e escapar de Procusto procurando Prometeu nos
analistas. Mas... um Prometeu psicanalista, consciente do desejo de saber e
de que a verdade resiste a ser formulada “toda”. Entre a tentação –
narcisística – de ocupar o lugar desejado e temido do Pai Ideal, portador
“da verdade”, e sua rejeição, só se permanece analista sustentando-se perante a finitude, alteridade e incerteza.
Como fazê-lo?
Sabemos quanto e como a resistência, apatia ou conivência de analista
e analisando para encarar a análise da idealização e da ideologia no pano de
fundo, tanto do enquadre psicanalítico quanto na Instituição, pospõem e, às
vezes, impedem a indispensável desidealização compartilhada,
obstaculizando a necessária subjetivação do analista (APA, 1959).
Isso dá lugar, às vezes, a baluartes de idealização mitificante, inclinados, além disso, às transformações autoritárias. Mais ou menos larvadas,
às vezes não desejadas, essas estruturas paternalistas se instalam e
esclerosam. A organização institucional, alguns ideais científicos ou algu62
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 63
Raquel Zak de Goldstein
ma verdade oficial tendem a ser “tomados” pela resistência e, insensivelmente, asfixiam-se em suas malhas o pensamento de tipo crítico-reflexivo e a criatividade.
Como se sustentar, então, na escorregadia dimensão paradoxal do inconsciente, entre literalidade e metáfora, na dialética entre o fantasma da
dissolução – que nos aproxima à angustia pura, sem objeto (BARANGER,
BARANGER e MOM, 1987) –, e a desejada certeza que se oferece sempre
confortável, tentadora e protetora... com seu inevitável corolário de cristalização petrificante?
Como se proteger dessa “proteção”, dessa mortífera “salvação”?
O projeto pluralista é – estamos praticando-o desde 1974 – um bom
dispositivo-suporte para enfrentar o risco do Caos ou da Petrificação. Fugindo do tentador ideal coletivo que levaria à certeza ideologizada, colocamos em jogo os diversos esquemas referenciais no trabalho da transmissão. Esse posicionamento, sustentado no tripé clássico, mantém-nos abertos àquele “sentimento de realidade”, Wirklichgefuhl, específico do descobrimento do inconsciente, e do “tornar-se analista” (GREEN, 1990).
Que se transmite, então? Através do essencial da psicanálise freudiana, habilita-se uma capacidade para conter o estado de incerteza, que possibilita a busca criativa do que está “Além...” (FREUD, 1920g), a angustiante exploração – teórico-clínica e pessoal – de “o sinistro” (FREUD,
1919h) tão familiar, tão estranho!
Essa capacidade se consolida no estudo do leque freudiano e dos vários esquemas referenciais surgidos dele, e no reencontro indispensável –
de analista, analisando e candidato –, com a vulnerabilidade e o desamparo
essencial, (Hilflosigkeit). Em troca, abre-se o estado de criatividade que
acompanha a permeabilidade analítica.
Trata-se, dessa forma, da transmissão de um descobrimento e de uma
disposição através do texto vivo – legado simbólico de Freud e seus seguidores, tal como pode ser entendido –, que permita “pensar” as diferentes
correntes psicanalíticas radicadas em sua obra, com seus efeitos e conseqüências. Outrossim, induz-se a uma atitude crítico-reflexiva, através “des-
CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ?
A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA
se segundo olhar” sobre o campo analítico, que nos leva a ser sujeito e
objeto da experiência clínica.
Oscilação com precisão seriam características dessa necessária mobilidade conceitual criativa, cujo impulso está dado pela curiosidade infantil
e pela angústia perante a perda, exemplificadas no “jogo do carretel”.
Comportando-nos com a causa freudiana como com o objeto
transicional de Winnicott, o paradoxo se “situa” como a qualidade do inconsciente na presença do não-sentido, “em montagem” com a matéria de
fabricação humana: “fraldinha” e conceitos em transição. Entendemos por
que Winnicott disse: “a psicanálise é o jogo mais sofisticado do século
XX” (GREEN, PONTALIS et al., 1979).
A mais importante conseqüência que se deriva, então, do tema de fundo que formula o próprio título – a pergunta proposta pela IPA para o précongresso didático: “Petrificação ou Caos?” – é que se trataria de um falso
dilema.
O dilema da transmissão, hoje em dia – a transmissão da psicanálise –
, é preservar sua força, aceitando o desafio de evitar objetivar, aplicar,
diluir, ou ideologizar..., para que surja Prometeu, o que cria e mantém esse
estado de permeabilidade e incerteza viva. Tentaremos, outrossim – a qualquer custo –,preservar a indispensável coerência interna teórico-clínica,
conscientes sempre da diversidade de níveis e problemas
epistemológicos que essa posição comporta.
Além disso – se, como Freud disse, a psicanálise é uma das profissões
impossíveis, e o ensino também o é –, como pretender que o
posicionamento das Instituições seja tranqüilo ou fácil? Na prática, e perante tudo isso, pensamos que o contato pluralista, tal como queira fazê-lo
o candidato, contato não obrigado com os diferentes esquemas
referenciais existentes dentro de uma Instituição, é o que mais lhe pode e
nos pode ajudar na transmissão da psicanálise, contato esse desde o início.
Do mesmo modo, seu contato com a vida institucional.
Pensamos que isso contribui, além do mais, às condições para resolver a desilusão provocada pela desidealização e pela ausência de certeza.
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Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sinopse
A autora aborda a especificidade da transmissão da Psicanálise e salienta o
que a diferencia essencialmente em relação à transmissão de outras ciências. Alerta
sobre o processo de idealização no transcorrer da formação psicanalítica e sobre a
necessária substituição deste pelo processo de valorização. Mostra que na transmissão de psicanálise se habilita uma capacidade para conter o estado de incerteza que possibilita a busca criativa do que está “Mais além...”, a angustiosa exploração teórico-clínica e pessoal, de o “Sinistro” tão familiar! tão estranho!
Summary
Chaos, Petrification... or What? The Uncertainty [inherent] in the
Analyst’s Subjectiveness
The author addresses the specificity of the teaching of Psychoanalysis and
emphasizes what essentially differentiates it from the teaching of other sciences.
She calls our attention to the idealization process throughout the psychoanalytical
education and to the necessary replacement of that process with the valuing process.
She shows that in teaching psychoanalysis one enables a capacity to contain the
state of uncertainty, which makes it possible to creatively search for what is “farther
away...”, the anguishing theoretical-clinical and personal exploration of that so
familiar and so strange “sinisterness”!
Sinopsis
Caos, Petrificación... ¿o Qué? La Incertidumbre en la Subjetivación del
Analista
La autora aborda la especificidad de la transmisión del Psicoanálisis y destaca cuál es la diferencia esencialmente con relación a la transmisión de otras ciencias.
Alerta sobre el proceso de idealización en el transcurrir de la formación
psicoanalítica y sobre la necesaria sustitución de este por el proceso de evaluación.
Muestra que en la transmisión del psicoanálisis se habilita una capacidad para
contener el estado de incertidumbre que posibilita la búsqueda creativa de lo que
está “Más allá...”, la angustiosa exploración teórico-clínica y personal, del
“Siniestro” tan familiar! ¡Tan extraño!
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 65
Raquel Zak de Goldstein
Se o candidato pode se identificar com a Instituição e com a psicanálise, poderá substituir a idealização pela valorização.
CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ?
A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA
Palavras-chave
Subjetividade; Singularidade; Idealização; Desidealização; Ideologização.
Key-words
Subjectiveness; Singularity, Idealization; De-idealization; Ideologization.
Palabras-llave
Subjetividad; Singularidad; Idealización; Desidealización; Ideologización.
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ROUSSEAU, J.J. (1762). Del contrato social. Madrid: Alianza.
66
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Maria Matilde Graña
Dra. Raquel Zak de Goldstein
Ramón Castilla, 2943
1425 – Buenos Aires – Argentina
Fone: (5411) 48028554
Fax: (5411) 48053245
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 67
Raquel Zak de Goldstein
SECHAN, L. (1960). El mito de Prometeo. Buenos Aires: Eudeba.
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Apresentação
Gabriel Guillermo Jure
Membro Associado da Associação
Psicanalítica Argentina.
A aplicação da psicanálise é
uma das práticas possíveis surgida
com o advento dessa nova ciência
da natureza, como o próprio Freud
quis posicioná-la, em defesa de interesses que queriam situar a psicanálise como uma ciência do espírito. O método, aplicado a âmbitos
exteriores ao estudo do funcionamento da mente humana, é, talvez,
uma das possibilidades mais controversas, em relação às outras três
modalidades: como instrumento
terapêutico, como teoria do comportamento humano e, por último,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 69
Gabriel Guillermo Jure
Estudo da
Desmentida
em um
Quadro de
Adição:
Maradona
com Sade
ESTUDO
DA
DESMENTIDA EM UM QUADRO
MARADONA COM SADE
DE
ADIÇÃO:
como metodologia de investigação. Por outro lado, os trabalhos sociais na
obra de Freud possuem riqueza tal que têm permitido uma visão profunda
de certos fenômenos de massas e de fatos históricos, resultando em compreensões inéditas sobre a cultura. O presente trabalho tem a incumbência
de articular desenvolvimentos de ambos, Psicanálise aplicada e Psicologia
das massas, através do que foi publicamente informado sobre a vida de um
sujeito e seu ambiente, no caso, Diego Maradona, que chegou a ser uma
das pessoas mais populares em certo momento da história da humanidade,
uma vez que, através de pesquisas realizadas nesses anos, deduziu-se ser
mais conhecido mundialmente que Jesus Cristo e o Papa.
Protagonismo histórico
A Argentina viu-se, periodicamente, comovida pelos avatares da vida
desse personagem, tornado um ídolo internacional e nacional, devido às
extraordinárias condições futebolísticas, que o levaram a se situar no cume
desse esporte mundial. Somente valia a comparação histórica a Pelé, o indiscutível nº 1, até o aparecimento do astro argentino.
Pela experiência em psicanálise, é freqüente encontrar, na vida adulta
de um sujeito, um fator desencadeante que impulsiona a irrupção de determinada problemática mental de índole diversa. É a partir de 1986, com a
possibilidade de ultrapassar o destacado desportista brasileiro, que começam a derrocada desportiva e pessoal na história de Diego Maradona. A
situação de rivalidade que evoca a conflitiva edípica de um filho com seu
pai (real ou simbólico) é habitual disparadora de transtornos mentais.
O primeiro doping positivo levou Maradona a deixar o país europeu
em que jogava, recebendo na época pagamentos multimilionários por mostrar suas virtudes no futebol, o esporte mais popular do planeta. Despedese, acusando persecutoriamente a máfia e o racismo existentes naquele
país, mas sem se responsabilizar, sequer minimamente, pelo assunto. É
importante assinalar que as ansiedades paranóides ou persecutórias são
incrementadas pelo cloridrato de cocaína, alcalóide derivado da planta de
Erythroxylon coca. O povo argentino, aferrado fortemente à idealização do
70
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 71
Gabriel Guillermo Jure
“Maradona gênio”, acredita em sua explicação e reforça a idolatria, transformando-o no defensor das camadas discriminadas e marginalizadas do
mundo.
Antes de ser transferido a clubes europeus começa a se destacar o
chamado “meio de Maradona”, no qual se misturam novos e antigos amigos e empresários encarregados de fazer os contratos comerciais futebolísticos e publicitários, geralmente de milhões de dólares. Encobre-se, a essa
altura, um enlace digno de se sublinhar, pois vai além de um serviço de
gerenciamento ou de um vínculo afetivo de amizade. Começa a se gestar
um pacto entre um corruptor e, nesse momento, seu partenaire, similar
à união entre Dolmancé e Eugênia, os protagonistas de “A Filosofa na
Alcova”, do Marquês de Sade.
Em um trabalho apresentado no XX Simpósio da Associação Psicanalítica Argentina, em 1988, sobre “Perversão”, Willy Baranger e colaboradores, mediante a aplicação da psicanálise ao texto literário, desenvolvem
a idéia de que em sujeitos com tendências perversas podem se rastrear, na
infância, cenas de iniciação parafílicas. Nessas últimas, é muito freqüente
encontrar a figura do corruptor, que é introjetada no psiquismo da criança e
reatualizada ativa ou passivamente, na vida adulta.
No texto de o “Divino Marquês”, Dolmancé é um instrutor dedicado à
educação sexual libertina de jovens. Aí é enfocado o encontro de iniciação
da jovem Eugênia, partenaire desejosa de uma vida com grande liberdade
sexual, identificada com o pai, a quem se refere possuidor de uma vida
promíscua e que aprova esse tipo de educação para a filha. A mãe, muito
diferente, trata, no fim do drama, de salvar a filha, mas Eugênia, em união
com Dolmancé e o grupo, a submetem a uma terrível profanação.
Embora, na história de Maradona, a iniciação e o doutrinamento não
estejam diretamente relacionados à sexualidade, como no texto de Sade,
mas à provisão de cocaína, a estimulação ao desenfreio e à diversão, contra
a disciplina necessária em um esporte de alto rendimento como o futebol
profissional, podemos pensar que o mecanismo instrumentado é similar.
Dolmancé, no texto literário, é a cabeça pensante, o encarregado das con-
ESTUDO
DA
DESMENTIDA EM UM QUADRO
MARADONA COM SADE
DE
ADIÇÃO:
versas teóricas sobre sexualidade perversa e, ao mesmo tempo, o
organizador das lições práticas no doutrinamento de Eugênia, que demonstra ser uma aluna bem disposta.
Nesse círculo de Maradona, deve ter atuado um instrutor na direção de
“a vida com cocaína”, o que vai além da droga e encontra predisposição
no futebolista, o qual certamente então não era de todo consciente do prejuízo que acompanhava dita vida licenciosa. Tal perda pode servir de símbolo do custo da doença mental do astro argentino, o que podemos economicamente estimar: foi muito mais o que Maradona deixou de ganhar em
termos monetários pela adição à cocaína que o montante que ganhou em
sua carreira esportiva. O “Dolmancé” do “entorno” não foi ingênuo nem
bobo nessa história, sabia que a dependência criada através dessa substância daria muito mais domínio e poder sobre ele, “multimilionário novo”,
que não poderia mudar caprichosamente de amigos ou de representantes.
Se era vinculado através da provisão de atividades proibidas que deviam se
manter no mais rigoroso segredo, o pacto e a dependência criada se transformaria em algo forte e seguro. Além disso, a cocaína, ao ser fonte de
intenso gozo narcisista e hedonista, era capaz de competir exitosamente
com as ovações de estádios lotados, contratos milionários, fama e
transcendência internacional.
Ao realizar este trabalho, resultou surpreendente a concordância com
algumas concepções que Henri Ey tinha em 1971, seis anos antes de sua
morte. Esse psiquiatra francês, que foi companheiro de internato de Lacan
no Hospital Saint Anne, durante a década de 1930, defendeu uma concepção humanista e psicanalista da Psiquiatria. Fundou em 1950 a primeira
Associação Mundial dessa especialidade, da qual os norte-americanos se
apropriaram, criando a WPA (World Psychiatric Association), que seria
precursora da Associação Psiquiátrica Americana, difusora e criadora do
DSM-IV, o qual, em partes substanciais, promove o organicismo e as terapias cognitivas de encontro à psicanálise que tanto foi defendida por Henri
Ey.
Também foram famosos os Colóquios de Bonneval ditados por ele,
72
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Nenhum tema da prática psiquiátrica sofreu uma modificação tão profunda desde a primeira redação desse Tratado de 1960, como o das
toxicomanias: a evolução na América e depois na Europa das toxicomanias nos jovens como fenômeno massivo transformou os termos do
problema. [...] A conduta do toxicômano constitui uma perversão que
satisfaz completamente sua necessidade (busca de prazer e evitação do
sofrimento mediante a absorção habitual e imperiosamente exigida de
um ou vários produtos chamados tóxicos, precisamente a causa de sua
escolha por adeptos dessa conduta). Assemelha-se às perversões sexuais à medida que possui a característica fundamental: a regressão a
um prazer parcial; seria um abuso de linguagem falar em toxicomania
fora de tais critérios. Não se pode definir a toxicomania como o uso
habitual de um ou vários produtos (nem todos os alcoólatras, por exemplo, são toxicômanos), senão que deve ser definida pela conduta específica de tipo perverso que constitui uma regressão instintiva afetiva,
um verdadeiro desequilíbrio da integração de pulsões.
Vivenciar traumático acidental
O fator atual como co-participante na etiopatogenia foi pensado por
Freud como terceira série complementar. Segundo alguns autores pósfreudianos, como Ricardo Bernardi, psicanalista uruguaio, as circunstâncias atuais têm sido menosprezadas ou pouco tidas em conta na tarefa clínica e em desenvolvimentos psicanalíticos praticamente durante um século.
Cito fragmentos do seu trabalho de 1988, intitulado “Vulnerabilidade, deSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 73
Gabriel Guillermo Jure
que congregavam grande parte da intelligenza francesa de meados do século passado: psiquiatras, psicanalistas e intelectuais de outros campos reunidos em um clima aberto e adogmático. Todo esse desenvolvimento científico e profissional, junto dos textos publicados, o levou à seguinte comparação paradigmática: Henri Ey foi para a história da psiquiatria francesa o
que Lacan foi para a França psicanalítica.
Esse preâmbulo só serve para introduzir valiosas citações do Tratado
de Psiquiatria de Ey, Bernard e Brisset, de 1978, no qual se encontram
coincidências importantes com certas postulações desse escrito:
ESTUDO
DA
DESMENTIDA EM UM QUADRO
MARADONA COM SADE
DE
ADIÇÃO:
samparo psicossocial e desvalimento psíquico na idade adulta”, para
exemplificar:
O que Freud denominou “vivenciar traumático acidental do adulto”,
considerando-o como fator desencadeante [...] não conseguiu atrair a
atenção da produção psicanalítica, que se ateve mais aos estudos sobre
o condicionamento ou a aprendizagem que procuraram relacionar as
modificações do comportamento com aqueles estímulos que poderiam
explicar sua aparição ou sua manutenção [referência ao cognitivismo e
ao neocondutismo]. [...] O grosso do interesse psicanalítico se dirigiu,
ao contrário, às raízes infantis das vivências atuais [...].
Outra citação de interesse:
Sem dúvida [...] o impacto dos microtraumatismos do presente sobre a
saúde física ou mental parece hoje em dia inquestionável. Por sua vez,
diversos autores (citados por Lazarus e Folkman, 1986) têm assinalado que a idade adulta é também o assento de transformações psíquicas
maiores. Isso reabre o interesse a respeito do “vivenciar traumático do
adulto”: [...] A investigação psicossocial do mesmo tem apontado a
distintas variáveis [...] duas de especial relevância:
a) Os acontecimentos vitais interessantes: [...] Para esse fim, leva-se
em conta [...] a intensidade e a mudança que um dado acontecimento
introduz na vida de uma pessoa [...]. Comprovou-se que, quanto maior
é o grau de mudança na vida de uma pessoa durante um ou dois [ou
mais] anos, tanto maior é a possibilidade de adoecer nos anos seguintes.
A introdução da cocaína na vida do jogador de futebol é um fato impossível de se negar a esta altura dos acontecimentos. Talvez não se possa
precisar o momento histórico exato e, portanto, a quantidade de anos de
comprometimento, bem como se houve momentos livres de adição, mas,
pelas conseqüências últimas, pode se conjeturar que foi muito tempo de
adição de tóxicos. Tampouco poderíamos falar literalmente de que tal in-
74
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Queda
Pouco tempo depois, essa relação anteriormente citada entre o
corruptor e sua vítima muda de um vínculo de loja maçônica fraterna e
sociedade secreta para a diversão, passando a ser os dois co-responsáveis
pelo aprofundamento na carreira da poliadição: supõe-se que se foram associando à cocaína, anfetaminas, anabólicos, estimulantes do Sistema Nervoso Central e do rendimento físico, assim como álcool e psicofármacos.
Certamente, essa outra carreira paralela começou diminuindo a capacidade
esportiva de Maradona e depois a suprimindo totalmente. Inclusive o
deterioramento mental e físico agiu como mecanismo de anulação das glórias do passado, com atos bizarros de violência e dano a terceiros, transgressões da lei, infinidade de problemas de casal e familiares.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 75
Gabriel Guillermo Jure
trodução foi um acontecimento “vital”, pelas conseqüências destrutivas
que teve tanto para o físico do outrora jogador magistral, quanto para sua
carreira profissional e sua vida afetiva.
“Um importante número de investigadores, seguindo Seyle e Cannon,
têm mostrado as modificações que se produzem nos diferentes setores do
organismo: vasculares, endócrinas, hormonais, e imunológicas, em conseqüência das situações estressantes.” A condição estressante da cocainomania em Maradona, com as repercussões sobre o aparato cardiovascular e
o Sistema Nervoso Central, são passíveis de investigação médica, bem
como suas seqüelas.
b) O suporte social: “tem se podido demonstrar que o suporte social
atua não só como colchão ou ‘buffer’ frente aos agentes estressantes, mas
também como fator relacionado ao aparecimento das diversas enfermidades físicas e mentais, inclusive associado à taxa de mortalidade”.
Pode se relacionar aqui o mencionado meio social e familiar de
Maradona como um dado a ser levado em conta. Na realidade, tal meio,
que participou como suporte social, poderia ser entendido como antibuffer,
já que impulsionou mais para a queda do futebolista nos transtornos
drogadependentes do que como defesa ou suporte contra mesmos.
ESTUDO
DA
DESMENTIDA EM UM QUADRO
MARADONA COM SADE
DE
ADIÇÃO:
Sobre os transtornos de adição a substâncias no capítulo dedicado à
cocaína, desenvolvido em 1998 pelos psiquiatras dinâmicos norte-americanos Kaplan, Sadock e Grebb (baseados no DSM-IV), destacam-se os
seguintes conceitos: “A cocaína é uma das substâncias de adição das que
mais se abusa e uma das mais perigosas”. Como relato histórico, aparecem dados de interesse: foi isolada pela primeira vez em 1860, e foi a partir
de 1914 que foi classificada no grupo dos narcóticos, juntamente com a
heroína e a morfina, devido à descoberta de seu marcado potencial de adição, descrevendo-se importantes prejuízos à saúde, como acompanhantes
de sua utilização crônica.
Cito os seguintes dados epidemiológicos obtidos nos Estados Unidos,
país de notável desenvolvimento nessa área:
Em 1998, havia um milhão e novecentos mil norte-americanos que
haviam consumido cocaína no último mês [...] Não obstante, o consumo dessa substância está atualmente em declínio. Esse fato se deve
basicamente ao maior conhecimento dos riscos que comporta seu consumo. O conhecimento tem sido potencializado pelas campanhas sanitárias públicas [...] Notou-se pouco a diminuição do uso na sociedade
norte-americana, devido ao aumento na última década do consumo de
crack, uma forma de cocaína mais potente e econômica [...] Em 1991,
12% da população dos EUA havia consumido pelo menos uma vez, e
1,9% havia consumido crack.
Como estudo nos grupos populacionais diferentes em condição
socioeconômica e etnia, é de se destacar o seguinte:
O consumo de cocaína é mais alto entre os desempregados, embora
também a droga seja consumida por pessoas de grupos
socioeconômicos altos, e entre os homens duas vezes mais que entre as
mulheres. Tem se reduzido seu consumo entre as pessoas brancas e de
cor, enquanto que entre os hispânicos têm se incrementado.
76
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
A cocaína é uma substância perigosa associada não somente a transtornos de conduta muito importantes, mas também a problemas médicos graves [...] os efeitos cerebrovasculares mais comuns são os
infartos cerebrais não hemorrágicos. O mecanismo fisiopatológico que
subjaz a esses transtornos vasculares é, sem dúvida, a vasoconstrição
[de artérias e arteríolas que irrigam os hemisférios cerebrais]. [...] os
infartos de miocárdio e as arritmias são, seguramente, os transtornos
desse tipo mais relacionados à cocaína. Os infartos cerebrais
cardioembólicos podem ser a complicação que se seguiria” [aumentariam como conseqüência].
Ao regressar da Europa, Maradona é detido em Buenos Aires, muito
perturbado por compartilhar com outros homens, importante quantidade
de droga que, pelo montante, os convertia em “portadores”, situação que
requereu intervenção da Justiça da Nação. Pela primeira vez assume, publicamente, a adição à cocaína, e o fato tem um seguimento judicial, à
maneira argentina: é famoso e líder das massas, pelo que recebe tratamento
especial, mais condescendente que qualquer cidadão comum.
Nosso país, Argentina, com sua tendência à desmentida, minimiza a
doença de seu ídolo nacional, e a opinião pública prescreve-lhe uma ilusória direção de cura: voltar a jogar futebol e fazer gols, recebendo o amor
passional das massas, rodeado de amigos e família, sob o manto brando da
terra que o viu nascer.
Infiro que o fator da participação do Poder Judiciário, nesse caso, agiu
como facilitador do consecutivo fenômeno de massas que se deu na Argentina nesse momento: a renegação da doença. A Argentina, desmentindo
situações muito mais graves e estranhas, como torturas, desaparições, abolição dos Direitos Humanos, havia tido um excelente treinamento durante
as passadas ditaduras militares.
A partir desse momento, as intenções do Dolmancé de Maradona coSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 77
Gabriel Guillermo Jure
Referindo-se às conseqüências sobre a saúde física, é de se destacar os
seguintes parágrafos:
ESTUDO
DA
DESMENTIDA EM UM QUADRO
MARADONA COM SADE
DE
ADIÇÃO:
meçam a sair fora de controle: ele, até então discípulo mancebo, transforma-se em um apaixonado praticante, desenfreado pela “branca” forma de
obtenção de prazer, e se entrega intensamente ao hedonismo por substâncias. Assim, o anterior corruptor se vê superado pelo outrora aluno, aparecendo situações de descontrole e complicações legais cada vez mais reiteradas na vida do craque. Reduz-se, dessa maneira, o negócio Maradona,
rescindem-se contratos de megaempresas pelo mau exemplo público que
dá sua enfermidade e, após uma curta passagem pelo futebol espanhol,
nenhum clube importante fora da Argentina se interessa por ele. Abandonos e retornos à competência profissional nacional, algumas muito bem
sucedidas, outras de pobre rendimento, marcam o transcurso do início da
década de 1990. Até que, em 1994, outra vez por um controle antidoping
positivo, deixam-no fora de uma competição mundial e é punido a dois
anos de exclusão do futebol profissional.
Tristeza, raiva e dor sacode o povo argentino, que chora junto a seu
herói, que anuncia a quatro ventos: “Cortou-me as pernas o presidente da
FIFA, por ser líder de corporação”. Repete-se a projeção em um inimigo
externo; uma parte da Argentina começa a duvidar da credibilidade dos
discursos de Maradona e seu meio, mas a outra, a grande maioria, se aferra
ao futebolista e nega a gravidade de sua enfermidade, apelando à repetição
quase publicitária dos melhores momentos esportivos desse prodígio no
gramado, olhando assim somente seu melhor perfil. Ele passa a ser elenco
do “jet set argentino”, rodeando-se de políticos, atores, modelos e alguns
empresários, que enchem páginas coloridas de revistas nacionais de atualidade, com algum fato tempestivo, ou escândalo habitual, que alimenta o
status de “famoso e ser público”.
Final
Com o início do século, Maradona sofre uma afecção cardíaca, produto de excessos de substâncias de adição, que causam deterioração em mais
de um terço do coração, em um homem de 40 anos. É internado em distintas instituições médicas, onde se porta um “paciente difícil”, pela impossi78
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 79
Gabriel Guillermo Jure
bilidade de frear a impulsão às drogas. Chama a atenção que não se fazem
ou não se fala de exames neurológicos de última geração para determinar
quanto pode estar atingido o SNC, particularmente o córtex cerebral. Em
mais de dez anos de adição crônica a múltiplas drogas pesadas, é possível
que o dano seja visível.
Outra vez, uma parte da Argentina, comovida, o observa, acompanhando impávida o notório deterioramento físico e a pobreza discursiva de
quem foi seu ídolo nacional. Outra parte o desmente, imagina uma melhora
rápida, deduz que, se pôde ser tão grande esportista, poderá ser capaz de
reabilitar-se, pois basta uma mudança de ar, a cor do cabelo, do sistema
político e de uns meses de reabilitação especial para curar-se. Mas, dia a
dia, os incidentes que ocasionam Maradona e seu meio, junto a seus
vaivéns anímicos, a perda de controle de seus impulsos e a pobreza ideativa
que se transmite na mídia atentam contra a feroz renegação popular. O
prognóstico é reservado, ainda mais quando Maradona e seu meio não adquirem consciência da gravidade da afecção mental, primeiro passo indispensável para depois lutar contra o mau hábito. A pergunta começa a pairar: como alguém que foi tão dotado para dar alegria ao coração dos povos
preferiu o gozo auto-erótico e egoísta da estimulação das drogas?
Esse tema é de interesse para investigá-lo metapsicologicamente: que
relação pode haver entre chegar a ser “ídolo de massas” e o auto-erotismo?
Surge, então, a possibilidade de nos introduzirmos na compreensão de dois
aspectos relevantes: o da evolução libidinal e o do destino pulsional.
O primeiro, o evolutivo, resulta mais original ao formularmos a hipótese da existência de um estágio de “auto-erotismo primário” durante o
desenvolvimento psíquico inicial. Seria um estado análogo ao descrito por
Freud como narcisismo primário durante o primeiro ano de vida, em seu
trabalho “Introdução ao Narcisismo”, de 1914, mas de nenhuma maneira
excludente dele.
De fato estaria aludindo a tal tempo evolutivo, quando Freud formula
a idéia de que, por um “novo ato psíquico”, se gestará o narcisismo como
passagem consecutiva de um estágio prévio de pulsões auto-eróticas
ESTUDO
DA
DESMENTIDA EM UM QUADRO
MARADONA COM SADE
DE
ADIÇÃO:
polimorfas, sem que chame a este último de auto-erotismo primário, mas
dando-lhe os adjetivos de “iniciais e primordiais”.
Tal estado procura, mediante a idolatria das massas, reeditar-se e, por
sua vez, reviver-se. A excitação heterogênea, irregular e com diferentes
estados de intensidade do auto-erotismo primário guarda similitude com o
que se observa nas massas com seu líder. Pensa-se, dessa maneira, o ídolo
popular projetando seu corpo nas pessoas que o aclamam, como se fosse
um magma único em estado de excitação prazerosa, embora vivido esse
encontro por ambas as partes sem percepção consciente. No estágio inicial
de auto-erotismo primário, as pulsões são parciais, anárquicas e
desordenadas como também pode se observar em uma visão panorâmica
de um evento de massas.
Pode se supor, em conseqüência, que o ideal que leva um sujeito a
procurar uma atividade como o esporte de massas, as artes, a oratória e a
política, é o que funciona como guia inconsciente para mover-se no caminho de retornar, mediante a sublimação pulsional, ao prazer desse estágio
infantil antigo, habitualmente superado e esquecido. É a situação daqueles
indivíduos que, mediante o desenvolvimento de dotes extraordinários em
alguns desses campos, conseguem obter o reconhecimento das massas, a
fama e o êxito. A concretização desse ideal na maturidade poderia ser denominado “auto-erotismo secundário”, porque reencontra o estado de autoerotismo primário renunciado.
É conveniente aqui realizar alguns esclarecimentos de certos pontos
do marco referencial teórico que se utiliza neste trabalho para, dessa maneira, deixar assentado o posicionamento e quem o escreve. Estes conceitos são os seguintes: relação de objeto, teoria das pulsões e a introdução da
palavra auto-erotismo na doutrina da psicanálise.
Fundamentos teóricos
Como foi investigado e desenvolvido por diversos autores, Sigmund
Freud tomou o termo auto-erotismo do sexólogo Havelock Ellis, que o
utilizava em sentido amplo, descritivo e também popular. Ellis, em seu
80
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 81
Gabriel Guillermo Jure
tratado de 1898, referia-se ao auto-erotismo como as condutas sexuais de
indivíduos adultos que se satisfazem com alguma parte de seu corpo, na
ausência de outra pessoa, praticamente como sinônimo de condutas
masturbatórias.
De igual maneira como fez com o narcisismo, Freud introduz o conceito de auto-erotismo, desenvolvendo-o de forma profunda e com
especificidade científica. Assim aparece em seus “Três ensaios de teoria
sexual”, de 1907, nos quais, além disso, lhe outorga um status
metapsicológico. Foi a partir dessa última obra citada que podemos encontrar articulações entre os desenvolvimentos do conceito de pulsão e a condição auto-erótica das mesmas durante a primeira infância . O criador da
psicanálise formulou, então, que um dos elementos constitutivos da pulsão
é o objeto, além de seus outros três componentes: força, fonte e meta.
Proceder-se-á à explicação de como se articula, nessa investigação, o
auto-erotismo, o narcisismo e o desenvolvimento pulsional na primeira infância. No auto-erotismo, o objeto das pulsões é o próprio corpo, inicialmente fragmentado, anárquico e polimorfo; é onde existem as denominadas “pulsões parciais”, sem referência ainda à imagem unificada do próprio corpo, que é atingida quando se constitui o narcisismo e o primeiro
esboço do ego.
Esse estágio de vivências corporais anárquicas e parciais é denominado por Lacan “imagem do corpo fragmentado”, que o exemplifica a pintura
de Jerônimo Bosch e o observa com marcada freqüência como fenômeno
regressivo nas sensações hipocondríacas de desestabilizações psicóticas.
A unificação da imagem de si não invalida o acionar das pulsões parciais,
que funcionam, às vezes, tomando como objeto partes do próprio corpo e,
outras vezes, objetos externos. Nem a primazia genital faz desaparecerem
as pulsões parciais, em todo caso, a subordinam e integram, naqueles indivíduos com desenvolvimento psíquico trófico.
A noção de auto-erotismo adquire uma especial significação a partir
da teoria sexual que foi contribuição da psicanálise. A investigação que
realiza Freud em numerosos de seus escritos sobre a atividade infantil pre-
ESTUDO
DA
DESMENTIDA EM UM QUADRO
MARADONA COM SADE
DE
ADIÇÃO:
coce leva-o a descobrir uma situação de marcada importância para a
estruturação do aparato psíquico: o objeto da pulsão é contingente. O cientista vienense observa que existem formas de obtenção de prazer que se
separam das necessidades de autoconservação e também dos objetos amorosos externos. Na sexualidade humana, essa condição acima mencionada
é criadora do campo simbólico e do mundo fantasmático.
O conceito de “relação de objeto”, ambíguo e pouco desenvolvido na
obra freudiana, é transformado em uma temática de discussão em psicanálise e dá lugar a importantes desenvolvimentos teóricos. Começam, a partir
de 1924, quando Karl Abraham evidenciou tal conceito, ao formular, desde
um ponto de vista estrutural, os diferentes estágios das vivências infantis.
Mas sem dúvida foi a escola inglesa de Psicanálise, com os trabalhos iniciados por Melanie Klein e continuados por Balint, Bion e Winnicott, que
hierarquizou a idéia de relação de objeto. Eles inverteram a posição freudiana, ao postularem que as modalidades fantasmáticas que o sujeito adquire e escolhe no mundo exterior se baseiam na relação objetal. Surge,
dessa maneira, o enfoque controvertido de que as atividades do sujeito são
modeladas pelos próprios objetos, sejam esses parciais, totais, reais ou fantasiados.
A meu ver, com essa inversão, corre-se o risco de desresponsabilizar o
indivíduo e sua realidade psíquica, condicionando a construção do aparato
mental à influência dos objetos. Como conseqüência, substitui-se a noção
de “estádio” pela de “relação de objeto”, e se acentua de maneira privilegiada o papel inicial da mãe, em lugar de “imago parental”, proposto desde
as origens da Psicanálise por Freud.
A partir da década de 1950, Jacques Lacan critica o crescente lugar do
fenômeno relacional da Escola inglesa com a intenção de trazer à tona novamente o lugar do “objeto em si”, no sentido freudiano: a questão de
pensar um certo tipo de satisfação, frustração ou trauma na inter-relação do
sujeito com os objetos, sejam estes pessoas totais (pai, mãe ou outros seres
do meio familiar significativo na infância), sejam estes objetos parciais na
concepção de pulsão gestada a partir de “Três ensaios de uma teoria sexual
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Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
não existe nenhuma via pré-formada que encaminhe o sujeito a um
determinado objeto [...] Esta teoria não implica a afirmação de um
estado primitivo ‘não objetal’. Com efeito, o sugar, que Freud considera como modelo de auto-erotismo, segue uma primeira etapa em que a
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 83
Gabriel Guillermo Jure
infantil”, de 1905. A mesma teoria pulsional sofre, mais tarde, em Freud,
uma complexidade progressiva, com a possibilidade de dar resposta ao dilema que apresenta a verdade histórica e a realidade psíquica como
determinantes do comportamento ulterior do ser humano.
Posteriormente aos seminários de 1956, Lacan levanta a sua própria
teorização, intermediária entre a idéia clássica de Freud, o movimento
kleiniano e o enfoque de Winnicott, ao introduzir, com status
metapsicológico, o conceito de perda estrutural do objeto e de falta. Denomina-o “objeto a”, objeto causa do desejo que reduz o sujeito ao
determinismo inconsciente e à linguagem, outorga a tal elemento o caráter
de não-representável, como também de formar parte estrutural na constituição do psiquismo humano. Como se torna evidente, a noção de “relação
de objeto” resulta complexa, controversa e gera teorizações diferentes,
segundo o esquema referencial que uma investigação psicanalítica adquire.
Esse trabalho se vincula a um posicionamento próximo ao freudiano,
seguindo desenvolvimentos de Jean Laplanche e Jean Bertrand Pontalis,
nos quais se encontram certas articulações entre relações objetais e a noção
de auto-erotismo: o fato de prescindir de um objeto externo não quer dizer
que o auto-erotismo primário seja uma fase anobjetal na vida precoce. A
ação de seres significativos em uma criança, desde seu nascimento até a
latência, é registrada pelas distintas formas de percepção do infante em
crescimento, já sejam visuais, motrizes, auditivas, cutâneo-mucosas, olfativas, proprioceptivas, do equilíbrio labiríntico ou gustativas. Vão se fixando, dessa forma, as pulsões parciais em relação aos desejos, cuidados e
afetos do meio imediato e familiar, também poderia se dizer em função do
desejo de outros.
Cito, para exemplificar, Laplanche e Pontalis:
ESTUDO
DA
DESMENTIDA EM UM QUADRO
MARADONA COM SADE
DE
ADIÇÃO:
pulsão sexual se satisfaz apoiada na pulsão de autoconservação (a
fome) e mercê de um objeto externo: o peito materno.
O segundo aspecto da investigação é o destino pulsional. Surge a idéia
da utilização do mecanismo de defesa estruturante denominado “transformação no contrário” e apresentado como um destino possível por Freud,
em 1915, no texto “Pulsões e destinos de pulsão”. O enfoque seria, nessa
situação, que as pulsões auto-eróticas se inverteriam em forma desfigurada
à realização de prazer nas massas para aquele indivíduo virtuoso, em algum sentido, que conseguisse consumá-lo e, dessa maneira, revivê-lo através dos outros: seus inúmeros seguidores.
Pode servir de analogia o formulado nos escritos de Freud a respeito
do “altruísmo”, em que afirma que uma grande quantidade de libido narcisista se transforma no contrário e se desloca como libido objetal à sociedade, em geral com o beneplácito e a admiração da massa. Essa idéia foi
apresentada em 1917, em “Conferências de introdução à psicanálise”. Cito
parte do texto da 26ª Conferência, intitulada “A teoria da libido e o
narcisismo”:
Quando se fala de egoísmo, tem-se em vista a utilidade para o indivíduo; quando se menciona narcisismo, leva-se em conta também sua
satisfação libidinal. Com fins práticos, os dois podem se estudar em
separado um longo trecho. Pode-se ser absolutamente egoísta e, não
obstante, na medida em que a satisfação libidinosa no objeto se encontra entre as necessidades do ego, o egoísmo cuidará depois que as aspirações ao objeto não tragam prejuízos ao ego. [...] [Em troca] [...]
Pode-se ser egoísta e ao mesmo tempo extremadamente narcisista,
quer dizer, ter uma muito escassa necessidade de objeto.
Uma das reflexões que apresento nesta investigação é a de que a reversão de quantidades de auto-erotismo chamado primário, mediante sua
transformação no contrário, se verte às vivências de intenso prazer
heterônimas nos indivíduos conglomerados em massas, ao deleitar-se com
84
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 85
Gabriel Guillermo Jure
ações de seu ídolo. Tal mecanismo permite ao líder projetar seus aspectos
auto-eróticos reprimidos. Como se desenvolverá mais adiante e em correspondência ao citado recentemente, os dois – auto-erotismo e narcisismo –
podem ser estudados com fins práticos durante um longo período.
O destino da libido narcisista do ídolo popular que acompanha o montante libidinoso auto-erótico delineado entre a massa e seu líder poderá
seguir dois caminhos diferentes: o primeiro, verter-se a si mesmo, gerando
uma hipertrofia do sentimento de grandiosidade do ego separadamente, ou
um segundo caminho, mais saudável, em que a libido narcisista do ídolo
popular, aumentada pelas paixões da massa, se dirija de maneira objetal
sobre ele, de tal forma que a excitação gerada pelo ídolo em seus admiradores seja a fonte e o motor de suas produções, sejam essas artísticas, esportivas ou políticas. Também servirá, este último destino de libido, como
barreira protetora frente à primeira possibilidade de megalomania individual e, por sua vez, condicionará a magnitude dessa última à repercussão
que consiga em seu público admirador. Desaparecida a união passional
entre o ídolo e a massa, pela lógica involução que traz a passagem do tempo o aparecimento de um substituto “de moda” mais convincente em algum sentido, o dotado sujeito em questão poderá realizar o luto da situação
de gozo, canalizando sua energia libidinal para meios menores e reservados.
Menção especial requerem as pulsões parciais de olhar e ser olhado
para qualquer uma das atividades mencionadas: o esporte profissional, as
artes (especialmente as visuais), na oratória e na política, tal par antitético
intervém de maneira destacada. A construção dinâmica que leva ao intenso
prazer infantil de olhar passivamente a exibição estética de seres significativos é revivida em seu inverso na maturidade, ao convocar o olhar de multidões mediante alguma destreza montada ativamente, seja em um estádio
lotado, nas exposições de museus ou de salas cinematográficas, ou desde
algum cenário para um comício político massivo.
É certo, também, que o terreno pulsional recentemente mencionado se
mistura com facilidade a importantes ressarcimentos narcisistas, como po-
ESTUDO
DA
DESMENTIDA EM UM QUADRO
MARADONA COM SADE
DE
ADIÇÃO:
demos esmiuçá-lo na conjunção gramatical de ser olhado e admirado. O
primeiro eixo refere-se mais à realização do prazer exibicionista e o segundo à satisfação narcisista. Resulta quase repetitivo confirmar que “ser olhado” e “ser admirado” constituem duas metas significativas nas atividades
laborais mencionadas, mas acredito que tal redundância serve ao esclarecimento da proposta e da investigação.
Na situação daqueles sujeitos excepcionais que conseguem consumar
o ideal de ser ídolo de povos, podem ser observadas duas possibilidades
diferentes, que estariam sujeitas ao destino do componente da libido narcisista (entendida esta última de forma estrutural como acompanhante de
todo comportamento humano). Por um lado, encontram-se aqueles que,
perante o êxito massivo, a fama e a idolatria, não se vêem afetados e persistem no exercício de sua disciplina até que chega o momento da sua retirada
natural e bem sucedida. Em geral, são aqueles que passam a formar parte
das celebridades na história da humanidade. Por outro lado, estão aqueles
que caem na vivência megalômana quando se transformam em ídolos de
massa, são os de que popularmente a gente diz: “a fama subiu à cabeça”.
Não se sustentam e acabam prematuramente suas epopéias e façanhas com
ruidosos fracassos, sucessivas derrotas inconvenientes e, algumas vezes,
de forma trágica.
Epílogo
Possivelmente uma substância que provoca uma intensa excitação
hedonista, como a cocaína, comporta-se como o combustível ideal para
impelir à megalomania. Parece ser o caso de Maradona e as drogas. Utilizando uma expressão muito freqüente: “se achou Deus” com a cocaína,
diferentemente do astro brasileiro Pelé, que dizia que os êxitos esportivos
por ele alcançados foram por vontade de Deus, confessando-se muito católico. Esse último posicionamento de referir forças poderosas alheias ao ego
o coloca em uma posição terceira com referência ao Grande Outro e o salva
de cair na armadilha da megalomania narcisista. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que a invocação a Deus (que para uma leitura psicanalítica é
86
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 87
Gabriel Guillermo Jure
a alusão ao inconsciente) sustenta-o como sujeito barrado, mantendo separado seu Ego do Ego Ideal, enquanto a fusão do Ego e o Ideal, como expôs
Jorge Kury em um desenvolvimento sobre megalomania e libido homossexual, obtura a castração simbólica e o suporte da estrutura do desejo, caindo em um estado de gozo absoluto.
Para concluir, esta investigação utiliza elementos que são de público
conhecimento e que permitem pensar psicanaliticamente acontecimentos
históricos que têm grandes repercussões afetivas nas pessoas, como “o fenômeno Maradona”. Nossa disciplina se vê enriquecida com a proximidade de e a articulação a vivências que adquirem transcendência na sociedade
a que pertencemos, evitando o risco do isolamento intelectual em comunidades acadêmicas que funcionem dissociadamente das pessoas.
Desde praticamente a origem da psicanálise, o interesse múltiplo e
aberto por outros campos se opôs a que códigos crípticos e fechados a afastem de seu relacionamento com a comunidade. A problemática das adições, o comportamento das massas, a dinâmica das relações intersubjetivas
e a alternância do princípio de prazer e do gozo, assim como sua distribuição, são temas que conduzem a desenvolvimentos metapsicológicos, permitindo o maior crescimento teórico da psicanálise, bem como aplicações
mais eficientes na prática.
As mudanças culturais na evolução da humanidade, os fatos históricos que têm repercussão nos povos, as criações artísticas e o progresso de
outras ciências e da tecnologia trariam inconvenientes maiores a nossa
ciência, se encontrassem os psicanalistas indiferentes ante isso ou imersos
somente em profundas discussões teóricas, que aumentam, inclusive, o
grau de rivalidade e hostilidade entre pares, como acontece na dinâmica de
todo grupo humano endogâmico. Este trabalho somente tenta explorar algumas idéias; seguramente diferentes concepções psicanalíticas poderão
levantar outras perguntas e encontrar outras respostas.
ESTUDO
DA
DESMENTIDA EM UM QUADRO
MARADONA COM SADE
DE
ADIÇÃO:
Sinopse
Neste trabalho, o autor destaca o fenômeno da psicologia das massas, através da análise de um ídolo, Diego Maradona, e sua relação com o meio que o
idolatra. Traça um paralelo com a obra do Marquês de Sade, onde os personagens, Dolmancé e Eugênia, protagonizam uma relação perversa, uma relação de
corruptor e aluna disposta a aprender todas as armas da sedução. O autor embasa
metapsicologicamente o seu trabalho, investigando a relação entre ser o “ídolo
das massas” e o auto-erotismo. Disserta sobre a evolução libidinal e o destino
pulsional. Finaliza, acrescentando que no “fenômeno Maradona” as drogas se
tornaram o combustível que o impeliu a cair na armadilha da megalomania
narcísica, utilizando a expressão “se achou Deus”. Pontua que a problemática das
adições, o comportamento das massas, a dinâmica das relações intersubjetivas e a
alternância do princípio de prazer e do gozo, assim como sua distribuição, são
temas que conduzem a desenvolvimentos metapsicológicos, permitindo o maior
crescimento da psicanálise, bem como aplicações mais eficientes na prática.
Summary
Disavower Study in Addition Case: Maradona with Sade
In this work, the author highlights the phenomenon of the psychology of
masses through the analysis of an idol, Diego Maradona, and his relationship
with the environment that idolises him. He makes a parallel with the work of the
Marquis de Sade in which the characters Dolmancé and Eugênia are the
protagonists of a perverse relationship between a corruptor and a student willing
to learn how to use all the weapons of seduction. The author bases his work on
metapsychology by investigating the relationship between being a “mass idol”
and autoerotism. He lectures on libidinal evolution and pulsional destiny. He
finalises by saying that, in the “Maradona phenomenon”, drugs have become the
fuel that drove him into the trap of artistic megalomania, by using the expression
“he felt he was God.” He punctuates that the problem of addictions, the behaviour
of masses, the dynamics of intersubjective relationships and the alternation of the
principal of pleasure and joy, as well as its distribution, are topics that lead to
metapsychological developments, thus allowing for a greater growth of
psychoanalysis, as well as more effective applications in practice.
88
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Estudio de la Desmentida en un Cuadro de Adicción: Maradona con
Sade
En este trabajo, el autor destaca el fenómeno de la psicología de las masas, a
través del análisis de un ídolo, Diego Maradona, y su relación con aquellos que le
idolatran. Establece un paralelo con la obra del Marqués de Sade, donde los
personages, Dolmancé y Eugenia, protagonizan una relación perversa, una relación de corruptor y alumna dispuesta a aprender todas las armas de la seducción.
El autor sustenta metapsicologicamente su trabajo, investigando la relación entre
ser el “ídolo de las masas” y el auto-erotismo. Diserta sobre la evolución libidinal
y el destino pulsional. Finaliza, añadiendo que en el “fenómeno Maradona” las
drogas se volvieron en el combustible que le llevó a caer en la armadilla de la
megalomanía narcísica, utilizando la expresión “se creyó Dios”. Resalta que la
problemática de las adicciones, la conducta de las masas, la dinámica de las relaciones intersubjetivas y la alternancia del principio del placer y del goce, como su
distribución, son temas que conducen a desarrollos metapsicológicos, permitiendo
el mayor crecimiento del psicoanálisis, y también aplicaciones más eficientes en
la práctica.
Palavras-chave
Drogas; Psicologia das massas; Relação de objeto; Auto-erotismo.
Key-words
Drugs; Psychology of masses; Relationship of object; Autoerotism;
Narcissism.
Palabras-llave
Drogas; Psicología de las masas; Relación de objeto; Auto-erotismo;
Narcisismo.
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Gabriel Guillermo Jure
Sinopsis
ESTUDO
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MARADONA COM SADE
DE
ADIÇÃO:
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90
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Maria Matilde Graña
Revisão: Heloisa Helena Poester Fetter
Dr. Gabriel Guillermo Jure
Guatemala, 5959 C1425BVO
Buenos Aires – Argentina
E-mail: gjure@a intramed.net.ar
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 91
Gabriel Guillermo Jure
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Introdução
David Maldavsky
Diretor do Instituto de Altos
Estudos em Psicologia e Ciências
Sociais (UCES, Buenos Aires).
Gley P. Costa
Membro Efetivo da Sociedade
Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre.
José Facundo Oliveira
Membro Efetivo da Sociedade
Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre.
Gildo Katz
Membro Efetivo da Sociedade
Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre.
Durante os últimos cinco anos,
estivemos concentrados em desenvolver sistematicamente um método de investigação do material analítico, o qual decidimos denominar
Algoritmo David Liberman (ADL),
desenhado para a investigação da
erogeneidade e das defesas testemunhadas na linguagem. Até agora, vínhamos tentando mostrar sua utilidade para os estudos clínicos. No
entanto, neste trabalho, além disso,
desejamos pôr em evidência o valor
desse método para a investigação de
um ponto de vista mais teórico, a
partir dos mencionados estudos clínicos. Para tanto, vamos expor o
método e depois nos concentrare-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 93
David Maldavsky, Gley P. Costa,
José Facundo Oliveira, Gildo Katz
Investigação
Psicanalítica
Contemporânea
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
mos num de seus setores, a linguagem do erotismo oral primário, em cujas
vicissitudes procuraremos nos aprofundar teoricamente, a partir das investigações clínicas.
Nosso método: Algoritmo David Liberman (ADL)
O ADL pretende aportar para um estudo sistemático das
erogeneidades e das defesas no processo psicanalítico. À diferença de outros métodos, que têm seu ponto de partida na lingüística ou nos modelos
cognitivos e como ponto de chegada a sessão psicanalítica, o ADL tem
como ponto de partida a teoria freudiana, referente à erogeneidade e à
defesa.
Assim, pois, nos interessa investigar a erogeneidade e a defesa expressas na linguagem. Já expusemos, em outras ocasiões (MALDAVSKY,
1998b, 1999; MALDAVSKY et al., 2001), tanto o conjunto quanto os detalhes desse método, assim que, nesta oportunidade, somente vamos
sintetizá-lo em seus aspectos mais gerais. Começaremos inventariando as
erogeneidades e as defesas. Cada grupo é exaustivo e, no caso das defesas,
inclui uma organização com hierarquias internas. As erogeneidades são:
libido intra-somática, oral primária, sádico-oral secundária, sádico-anal
primária, sádico-anal secundária, fálico-uretral e fálico-genital. As defesas, por sua vez, configuram cinco grupos, quatro deles correspondentes a
estruturas clínicas e um a condições normais. Entre as configurações clínicas, em um grupo (neuroses de transferência) predomina a repressão, em
outro (estruturas narcisistas não psicóticas) a recusa (desmentida,
verleugnung), em outro (psicoses), o repúdio da realidade e da instância
paterna (desestimación, verwerfung) e, em outro (neuroses tóxicas e traumáticas), por fim, a desvalorização do afeto.
Os níveis da linguagem em que estudamos a erogeneidade e a defesa
são três: palavra, frase, relato. Com o intuito de tornar mais claras e sistemáticas as nossas propostas, elaboramos três instrumentos para o estudo da
erogeneidade, um para cada nível acima mencionado. Para o estudo das
palavras, criamos um dicionário, em um programa de computador, que ana94
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Linguagem do erotismo oral primário
O gozo oral primário se dá, inicialmente, no seio de uma cavidade, a
boca (SPITZ, 1955), por projeção da tensão da necessidade à periferia
erógena. Essa projeção segue o caminho inverso ao do alimento, no trato
digestivo. O gozo oral primário culmina na voluptuosidade descrita por
Freud (1905d), como a dos lábios beijando-se a si mesmos, e que se combina com certos desempenhos motrizes por onde tramita essa erogeneidade:
da atividade da língua na boca, da musculatura da mandíbula inferior (ao
esfregar as gengivas, por exemplo), da motilidade implicada na sucção, da
percepção (por exemplo, coordenação ou divergência entre os olhos), das
mãos e dos dedos, da atividade fonatória, etc. Essa motricidade não só é
uma forma de processar a exigência pulsional oral primária, senão também
de neutralizar a pulsão de morte, mediante uma forma precária de sadismo,
que exporemos mais adiante. Por ora, digamos somente que esse sadismo
coordena-se com a passagem do sugar passivo ao sugar ativo, conforme foi
mencionado por Freud (1931b).
Com respeito à percepção, o erotismo oral primário se caracteriza por
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 95
David Maldavsky, Gley P. Costa,
José Facundo Oliveira, Gildo Katz
lisa o discurso que lhe for apresentado. Esse programa possui um arquivo
com aproximadamente 600.000 palavras. Para o estudo das frases, desenvolvemos uma grade, assim como para o estudo dos relatos (ver grades no
final do trabalho).
Em nosso método, a defesa também é investigada tanto no âmbito das
palavras e das frases quanto no do relato. Partimos da hipótese de que a
defesa é um destino e, também, uma linguagem de pulsão. Como conseqüência, afirmamos que a cada erogeneidade se acoplam certas defesas,
normais ou patológicas. Porém, além disso, as defesas patológicas se expressam no nível das palavras e das frases como perturbações retóricas e,
no nível do relato, como certas posições do narrador nas cenas que expõe
ou que se desdobram durante as sessões. Com nosso método, é possível
investigar a questão da mudança clínica em termos da substituição de uma
defesa por outra.
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
apresentar um canal único, no sentido de que a visão ainda não se combina
com o tato, apreensão ou o olfato. Além disso, pode ocorrer que, em princípio, um olho não se coordene com o outro, ou as sensações táteis obtidas
com uma mão não se articulem com as da outra. E, mais ainda, a realidade
percebida está composta do mesmo modo que o ego, ou seja, por partículas
equiparáveis. Na verdade, o mundo sensorial adquire uma formalização
derivada da projeção da própria espacialização psíquica (MALDAVSKY,
1990). Freud (1915e), ao descrever um paciente esquizofrênico, referiu que
o paciente via na superfície de seu corpo somente poros, todos idênticos,
cuja única diferença era posicional. De fato, a perda da garantia posicional
gera um estado anímico de caos, correspondente ao pânico.
Outro aspecto central, quanto à atividade perceptiva própria de um
ego, que dá sustentação psíquica ao erotismo oral primário como a linguagem, pode-se entender a partir de um processo prévio. Com efeito, como
destacaram Freud (1950a) e Lacan (1964), o mundo sensorial vale, inicialmente, como período, como freqüência, e então se ordena em semelhanças
e diferenças que se expressam numericamente: um estímulo visual e um
auditivo valem o mesmo se têm a mesma distribuição temporal (MALDAVSKY, 1992, 1995a). Assim ocorre para o ego real primitivo, que se vê
cominado a dar cabimento anímico à libido intra-somática. Contudo, com
o desenvolvimento da linguagem do erotismo oral primário, o mundo sensorial adquire um caráter qualitativo, diferencial: no plano visual, vermelho, verde, azul, amarelo; no plano gustativo, doce, amargo, salobro, ácido;
no plano auditivo, um som agudo e um mais grave já terão um valor próprio. Freud (1915c) afirmou que, para o ego real primitivo, o mundo exterior (perceptivo) é indiferente. Indiferente pode ser entendido de dois modos: não-diferenciado e não-investido. Consideramos que existe um requisito para que um mundo sensorial receba a investidura pulsional por parte
do ego, isto é, que primeiro ele seja diferenciado. O processo que vai da
diferenciação à investidura egóica culmina com o fato de que o mundo
sensorial se tornou significativo. Essa significância é uma conseqüência da
migração da investidura pulsional dos órgãos internos (por projeção
96
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 97
David Maldavsky, Gley P. Costa,
José Facundo Oliveira, Gildo Katz
intracorporal) na direção da cavidade oral, com a qual a erogeneidade pode
abrir caminho no ego para o nexo com um universo perceptivo. Esse caminho, que vai da erogeneidade ao sensorial, implica um processo projetivo,
porém já não intracorporal, mas direcionado para o mundo.
Bion (1962) considerou, com razão, que a convergência binocular se
faz acompanhar de uma investidura de atenção. Quando prevalece a inveja,
os olhos podem captar um mundo qualificado e significativo, ou um mundo só qualificado, ou, então, um mundo que é somente freqüência. No último caso, os olhos captam os estados orgânicos próprios e alheios, ou seja,
têm um funcionamento radiográfico, introduzem-se sob a pele do outro, e
aquilo que captam no outro é sua caveira, sua decomposição corporal. Esse
olhar é, pois, mortífero. Também os olhos podem captar um mundo qualificado, porém não-significativo, lembrando as supostas marcas deixadas
na Terra por seres extraterrestres, que resultam indecifráveis. Quando não
se conseguiu (ou se perdeu) a convergência binocular, a realidade adquiriu
um caráter plano. Por último, os olhos podem captar um mundo sensorial
diferenciado e significativo (investido), a partir do qual estão dadas as condições para a inscrição psíquica de um universo simbólico, disponível
como linguagem para o ego.
Com isso, aludimos a um desinvestimento ou não-investimento do
mundo, que sofre, em conseqüência, os efeitos de uma alucinação negativa, de uma rejeição ativa que se expressa no plano da motricidade
perceptiva, no olho desviado do centro da atenção. Nesse caso, triunfa uma
defesa: o repúdio da realidade, que pode ou não ter um caráter funcional.
Esse emprego da motricidade sensorial de forma hostil é um modo elementar e precário de ligar a pulsão de morte a Eros. Outra maneira, menos
custosa, mas que tem numerosos requisitos, consiste no sugar ativo, cujo
complemento é a conquista da investidura de atenção, que é uma condição
para a introjeção simbólica.
Quando se dá esse passo, a situação psíquica torna-se mais complexa:
a partir de então, a projeção adquire outro valor. Com efeito, já não só
dirige a investidura em direção ao mundo para torná-lo significativo como,
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
além disso, culmina no desenvolvimento de alucinações, como forma de
fazer consciente o inconsciente. Então o mundo da percepção fica composto por elementos de diversas origens: os aportados pelos influxos mundanos atuais, pela captação do próprio corpo e por via alucinatória. Com relação a isso, consideramos interessante estudar o valor dos aportes do segundo tipo ao mundo perceptivo, especialmente as palmas das mãos e o movimento dos dedos. Esse tipo de percepção faz parte de outra forma de conexão com os processos endopsíquicos, que é ora o complemento, ora a alternativa para a alucinação. De fato, às vezes, o movimento dos dedos aporta
ao olhar uma percepção diferenciada, como quando alguém comprime as
teclas de um piano e obtém uma melodia; em outras ocasiões, a mão e,
sobretudo, a palma da mão serve de pantalha de projeção para uma alucinação. Em ambas as possibilidades, as mãos e os dedos constituem recursos
para tornar conscientes os processos endopsíquicos. Seja como for, a coexistência entre percepções e alucinações na consciência cria um mundo
complexo, no qual as últimas passam a ter crescente hegemonia, derivada
do incremento da ligação, do refinamento psíquico, do poder do desejo e
da necessidade de tramitar a vida pulsional. Isso conduz a que se desenvolva no ego a questão de como reinstalar a percepção em sua vigência como
orientadora no mundo, quando, como afirma Freud (1920g), a percepção
conquista o espaço das marcas mnêmicas.
Para a lógica anímica, inerente ao erotismo oral primário, a percepção
é que gera o objeto, correspondendo ao sentimento oceânico (FREUD,
1930a). Somente depois, quando se relacionam entre si vários canais sensoriais, a percepção passa a captar unicamente um objeto mundano, que
causa a impressão sensorial.
Quando ao conjunto se acrescenta a atividade alucinatória, o órgão
sensorial conserva o valor de gerador de uma realidade, que, no fundo, é
produzida pelo espírito. Para esclarecer esse ponto é conveniente levar em
conta que a alucinação permite o reencontro com a marca mnêmica, sendo,
nesse sentido, uma forma de recordar. O que ocorre é que, com a memória,
adquire vigência outra atividade anímica, o pensar, o qual Freud (1923b)
98
Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 99
David Maldavsky, Gley P. Costa,
José Facundo Oliveira, Gildo Katz
definiu como um deslocamento de energia da pulsão para a ação, para a
descarga. Por outro lado, o pensar inconsciente também interfere na produção alucinatória, de modo que, no fundo, o sentimento oceânico constitui a
matriz de uma cosmovisão idealista, que pressupõe ser a realidade material
um efeito da atividade intelectual, espiritual, e os órgãos dos sentidos, os
instrumentos empregados para gerar o suposto mundo objetivo.
Na prática, pode ocorrer uma coexistência de alucinação e percepção.
A primeira, como forma de tornar conscientes os processos endopsíquicos,
até que a tensão de necessidade conduza à investidura desiderativa de lembranças e pensamentos inconscientes, com o que a alucinação fica sobreinvestida em detrimento da percepção, embora continue funcionando, sobretudo como um meio de tornar consciente o inconsciente. Se a insatisfação persiste, começam a predominar certas defesas, como o repúdio da
realidade, expressado como alucinação negativa. Por sua vez, pode ocorrer
uma crescente substituição desta por uma alucinação positiva, a serviço da
defesa. A alucinação tem um caráter prazeroso e pode se fazer acompanhar
das motricidades anteriormente descritas: a descoordenação perceptiva, a
movimentação da língua, a atividade de sugar e deglutir no vazio, a autoestimulação das gengivas, a fonação, etc. À medida que a insatisfação pulsional persiste, a alucinação vai adquirindo um caráter desprazeroso, colérico e invejoso, até que o terror e o pânico se tornam hegemônicos. Então a
alucinação muda de sinal, transforma-se no correlato figurativo de uma
angústia que fica cada vez mais insuportável. Finalmente, num estado de
extenuação sedenta, a alucinação claudica em sua função defensiva, e o
mundo perceptivo apresenta-se como um conjunto puntiforme
desqualificado (como o “chuvisco” na tela de TV), projeção da sensação
de estar com areia na língua, que atormenta a economia pulsional como um
abrasamento inextinguível. Assim, só será possível abandonar o mundo
alucinatório defensivo de duas maneiras: ou pela satisfação pulsional,
quando a mãe aparece ali onde a criança a espera, e a criança supõe que foi
ela (criança) que engendrou a mãe (WINNICOTT, 1971), ou pelo
arruinamento do mundo simbólico e a claudicação da defesa, que conduz à
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
vivência de estar imerso em um mundo carente de significado.
Se os processos acima descritos tiveram uma relevância relativa, desenvolve-se uma fixação. Em conseqüência, tais processos se mantêm na
atividade psíquica ulterior, interferindo nos conflitos da situação edípica.
Nesse momento pode aportar ao conjunto uma orientação para a recusa ou
para o repúdio da realidade, enfatizando o pensamento abstrato, como forma de acentuar que a realidade material é somente um produto do espírito.
Também pode ocorrer o desenvolvimento de uma atividade sublimatória
que, em certas ocasiões, proporciona notáveis rendimentos à cultura. Seja
como for, esse tipo de erogeneidade se expressa de um modo diferenciado
no plano da motricidade, da mímica facial, como recurso para a
inexpressividade, no plano de certas linhas melódicas e de certas palavras
(extraterreste, telescópio, dedo, língua, solução, areia e muitas outras), no
plano de frases e relatos, e de certos processos retóricos, em especial os
metalogismos (GRUPO μ, 1970), entre eles as contradições lógicas. (As
duas grades apresentadas no final do trabalho dão uma visão panorâmica
das cenas nos relatos e das estruturas-frase próprias do erotismo oral primário que podem ser contrastadas com as demais.)
As defesas prevalentes relacionadas ao erotismo oral primário são a
recusa e o repúdio da realidade, que podem ou não ter um caráter patológico. É possível avaliar a eficácia das defesas no terreno do relato. A cena é
inerente à linguagem do erotismo, porém a posição do relator nessas cenas
testemunha a defesa. A título de esclarecimento, consideremos uma cena
característica da linguagem do erotismo oral primário, a do acesso
cognitivo a uma fórmula abstrata. Esse recurso tem o caráter de uma revelação realizada por um processo de ascese, de despojamento prévio das
limitações decorrentes do pensar, derivadas da tradição ou da falência dos
recursos disponíveis para alcançar o núcleo da verdade. Nesse acesso à
revelação, um personagem opera como instrumento, ou como objeto de
extração de uma essência, outro opera como o protagonista dessa aventura
cognitiva abstrata, enquanto um terceiro pretende plagiar aquele que dispõe da chave. Outro, por fim, pode operar como mestre, como referente ou
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ideal, reconhecendo aquele que teve acesso à revelação. Também importam o valor e a eficácia de um personagem violento, que dispõe do poder
material, que se volta contra o sujeito da epopéia cognitiva.
Em determinadas ocasiões, pode-se despregar um discurso somente
inteligível no marco de uma luta entre dois que pretendem, reciprocamente, detectar a chave da lógica que rege o pensamento do outro. Ambos
contendores desenvolvem apresentações fictícias, na tentativa de que o
outro exponha a sua lógica e fique preso cognitivamente pelo poder do
intelecto do seu contendor. Igualmente, é necessário interrogar-se sobre o
lugar dado a outros personagens, cujas ações se regem pela aspiração à
realização estética, à dignidade, ao respeito pela ordem. O personagem violento e injusto representa a linguagem do erotismo sádico-anal primário, da
qual a que estamos descrevendo é uma transformação regressiva. Os personagens com aspirações de outro tipo são representantes das linguagens do
erotismo fálico-genital, fálico-uretral ou sádico-anal secundário, que podem se colocar ao lado do reconhecimento da realidade e da lei, embora
também possam ficar subordinados às outras duas linguagens do erotismo
(oral primária e sádico-anal primária). A posição nuclear do narrador, entretanto, é desempenhada de algum dos outros lugares. Pode colocar-se
como instrumento para que outro aquiesça uma revelação, que logo depois
perde o valor, ou como um objeto do qual se pode obter a chave abstrata e,
em seguida, é descartado como um despojo inservível.
Essa é a posição em que se acha um paciente esquizofrênico, no qual
se desenvolve o repúdio da realidade. Também pode ocorrer que o relator
se coloque como sujeito dessa epopéia cognitiva, na qual alcança um descobrimento renovador. Nesse caso, encontramo-nos diante dos efeitos de
defesas não-patogênicas. Algo similar ocorre se o relator se coloca no lugar
do modelo que reconhece o valor do achado alheio. Em troca, se o narrador
se posiciona como o plagiador invejoso do saber alheio, prevalece a recusa
da realidade como defesa patológica, situação inerente às caracteropatias
esquizóides. Em todas essas ocasiões podem aparecer os aparelhos. O paciente pode: (1) empregar o aparelho; (2) ser objeto gerado ou estudado
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
pelo aparelho; (3) ser o aparelho; (4) plagiar aquele que emprega o aparelho; e (5) consagrar aquele que emprega o aparelho, no marco de um êxtase
cognitivo. Nessas situações, muda o lugar dado aos personagens que aspiram à realização estética, à dignidade e à ordem. Eles podem ser empregados como instrumentos, de cuja ingenuidade abusam (quando prevalece a
recusa), ou como fragmentos atacados sem empatia, para colocar seus despojos a serviço de uma simulação vazia, no caso da psicose. Os personagens também podem ter o valor de ponto de partida, de argumento central
para o desenvolvimento da aventura cognitiva, ocorrendo quando predominam as defesas não patológicas. Interessam ao estudo as transações possíveis de serem realizadas, conforme prevaleça uma ou outra defesa, com
os personagens que operam como donos do poder político: o narrador pode
descrever-se como submetido e emudecido, quando prevalece o repúdio da
realidade; como quem simula e maltrata a terceiros, quando predomina a
recusa; ou como aquele que lhe faz oposição, mediante um deslocamento
do centro da luta para o terreno intelectual, situação em que passa a ter
hegemonia uma defesa funcional.
Desenvolvimentos teóricos recentes
1. Erogeneidade oral primária e defesas expressas no discurso
Comecemos por um dos resultados do emprego do ADL para o discurso na sessão de um paciente adepto à Internet (ALMASIA, 2001). Tratavase de um homem que tinha deixado o consumo de drogas e que possuía, no
entanto, um discurso resistencial, que na sessão estudada (e em muitas outras) oscilava entre dois tipos de relato. Um se referia aos movimentos que
fazia com seus olhos (estrabismo), com sua boca (deslocava a mandíbula
do lugar), com sua língua dentro da boca, com seus dedos (que também
tirava do lugar), assim como ao fato de que o cérebro enviava uma ordem
ao braço para que este se mexesse, realizando a ação correspondente. O
outro tipo de discurso aludia a sua relação com as outras pessoas, que para
o paciente parecia inútil, já que todos vivíamos entre sonhos, éramos sonhos e logo estaríamos mortos, se é que já não estávamos. A análise no
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âmbito das palavras, das frases e do relato reuniu informações que possibilitaram diferenciar ambos os discursos. No primeiro, a linguagem do erotismo oral primário (dominante) complementou-se com a do erotismo oral
secundário e com a do fálico-uretral. No segundo, predominou a mesma
linguagem do erotismo como no primeiro, a oral primária, porém combinada com a sádico-anal secundária e com a fálico-genital. O comum nos dois
discursos foi a prevalência da linguagem do erotismo oral primário; a diferença foi que, no primeiro, predominou a retirada narcisista (êxito da recusa) e, no segundo, o restabelecimento da conexão com o mundo (retorno do
recusado). Essa reconexão com o mundo, embora penosa, era o correlato
do abandono do consumo de drogas. Temos constatado que essas combinações de linguagens não são mais estáveis do que parecem, como expressão
tanto da retirada narcisista quanto da passagem à restituição.
Esse achado articula-se com as hipóteses expostas por Freud (1914c):
“Posto que a parafrenia amiúde (se não na maioria das vezes) traz consigo um desligamento parcial da libido com relação aos objetos; dentro do
seu quadro podem-se distinguir três grupos de manifestações: (1) as da
normalidade conservada ou da neurose (manifestações residuais); (2) as
do processo patológico (desligamento da libido com relação aos objetos e,
a partir daí, o delírio de grandeza, a hipocondria, a perturbação afetiva,
todas as regressões); e (3) as da restituição, que deposita de novo a libido
nos objetos ao modo de uma histeria (dementia praecox, parafrenia propriamente dita) ou ao modo de uma neurose obsessiva (paranóia). Essa
nova investidura libidinal se produz desde um nível diverso e sob outras
condições do que a investidura primária. A diferença entre as neuroses de
transferência geradas por ela e as formações correspondentes ao ego normal deveria poder nos proporcionar o sentido mais profundo da estrutura
do nosso aparelho anímico” (p.83-84). Destaquemos que Freud descreve
“o modo” da restituição psicótica, que se assemelha ao da histeria e da
neurose obsessiva, nas quais prevalecem, respectivamente, as linguagens
do erotismo fálico-genital e sádico-anal secundário. Não descreve, em troca, “o modo” no qual se desenvolve o processo patológico, quer dizer, a
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
retirada narcisista, o desligamento da libido com relação aos objetos. Em
nossa pesquisa foi possível advertir que, em tais momentos, prevalecem
outras duas linguagens do erotismo que acompanham a do oral primário,
isto é, a do sádico oral-secundário e a do fálico-uretral.
Está claro que Freud alude às psicoses, nas quais a retirada narcisista é
mais radical, ao passo que o caso acima descrito corresponde muito mais a
uma caracteropatia esquizóide, na qual predomina a recusa, e não o repúdio da realidade, resultando em um desligamento libidinal do mundo menos catastrófico. Porém, muito além dessas diferenças, os movimentos
libidinais de desligamento e reconexão com o mundo são comuns, e talvez
o sejam também as linguagens do erotismo implicadas em cada momento.
Cabe destacar que nesse caso foi possível investigar os dois momentos: o desligamento e a restituição. Entre ambos, aquele que tem o acesso
mais difícil à investigação é o que corresponde ao desligamento da libido,
ou seja, o do êxito da defesa patológica (recusa, repúdio). Conjecturamos
que o consumo de drogas, em um período prévio, ocorreu no lugar da restituição. Então, a retirada narcisista torna-se tóxica ao fracassar o delírio
magalomaníaco próprio da retração libidinal com relação ao ego. Enfatizou
Freud (1914c): “Nas parafrenias, o delírio de grandeza permite esse tipo
de processamento da libido de volta ao ego: quiçá somente depois de frustrado esse delírio de grandeza, a estase libidinal no interior do ego tornase patológica e provoque o processo de cura que nos aparece como doença” (p 83). No paciente estudado, a estase libidinal, a erogeneidade que se
torna tóxica, tinha cedido seu lugar ao processo restitutivo.
2. Retirada narcisista tóxica do erotismo oral primário
O material exposto sumariamente pertence a um dos pacientes que
foram analisados na Argentina. Procuramos apresentá-lo como introdução
a uma investigação mais extensa de um caso analisado no Brasil, que será,
a seguir, descrito. Desejávamos verificar se o ADL, que mostrou sua utilidade para analisar processos psicanalíticos em espanhol, podia ser empregado do mesmo modo com pacientes que falassem o português. Tendo em
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vista esse objetivo, estudamos detidamente o material de três casos, utilizando o método ADL (MALDAVSKY et al., 2001). O caso escolhido para
esse trabalho (Ana K.) corresponde a uma paciente cocainômana com prática homossexual.
Ana K. ligou do seu celular para o analista, a fim de combinar sua
primeira consulta, logo após seu carro ter sido abalroado, na traseira, por
um Mercedes-Benz, quando se encontrava parado em uma barreira policial. O motivo explícito da consulta era o fato de estar se separando de J.,
seu parceiro por seis anos, porque havia chegado à conclusão que não o
amava, que só tinha uma relação de amizade com ele. Outro motivo era sua
preocupação com o fato de estar consumindo cocaína todos os dias, o que
poderia lhe causar danos irreparáveis.
Iniciara seu primeiro tratamento psicoterápico aos 15 anos, o qual fora
seguido por uma análise (quatro sessões por semana) que durou nove anos.
Devido ao fato de continuar consumindo drogas, inicialmente maconha e,
mais recentemente, cocaína, a analista havia combinado com ela a interrupção da análise e o encaminhamento a uma psiquiatra que se dedicava ao
atendimento de pacientes adictos. Ficou um tempo com ela, mas como não
se submeteu ao programa de abandono da droga, esse tratamento também
foi interrompido. Nesse momento desejou, pela primeira vez, ter uma experiência de terapia com um homem, procurando-o no momento descrito
acima. As referências que tinha do novo terapeuta levaram-na a colocá-lo
numa posição profissional muito idealizada. Na entrevista inicial, ela disse
que, enquanto estava na sala de espera, se sentira muito assustada pensando em quanto ele lhe cobraria, para poder pagar as maçanetas douradas das
portas do consultório, que ela notara ser novo. Ficou tranqüila quando o
analista informou que elas já haviam sido pagas. Também a preocupou o
fato de que ele não quisesse atendê-la devido à gravidade do seu caso e
assegurou-lhe que faria um esforço para frear o uso de cocaína. Ela pretendia realizar, inicialmente, apenas duas sessões por semana, o que era possível pagar com seus próprios recursos. Durante o tratamento analítico anterior, tinha sido ajudada pela mãe.
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Ana K. tinha 27 anos e era uma mulher alta, bonita e de aparência
jovem, apesar de encontrar-se com um sobrepeso de 12 a 14 quilos. Nascera e passara a infância e parte da juventude em uma cidade de fronteira,
onde a família possuía extensa propriedade rural. Ao longo do período escolar e durante a universidade, sempre demonstrou grande facilidade para
matemática e uma clara dificuldade para o desenho: não conseguia manejar noções básicas de perspectiva, tridimensionalidade e sombra. Havia jogado tênis desde pequena. Custou-lhe aprender porque, embora fosse canhota, ensinaram-lhe a jogar com o braço direito. Na adolescência, chegou
a participar, com êxito, em torneios. Sua mãe, que a estimulou na carreira
esportiva, acompanhava-a nessas disputas e se exibia com seus triunfos.
Naquela época, os irmãos de Ana K. se queixavam de que a mãe só tinha
olhos para a paciente. Esta teve alguns acidentes derivados da prática esportiva e necessitou ser operada em um ombro e um tornozelo, o que a
obrigou afastar-se das quadras por um longo período. Coincidentemente,
nessa época a mãe começou uma relação com um namorado. Ana K. engordou e não voltou a jogar tênis.
Atualmente, além do trabalho, participa da diretoria de uma associação de empresários. Não gosta de sair à noite e prefere ficar em casa sozinha, onde dispõe de cocaína, pizzas e cerveja, além do computador e dos
aparelhos de TV e de som, todos funcionando ao mesmo tempo. Costuma
navegar pela Internet até 3 ou 4 horas da madrugada, em busca de informações na sua área de trabalho e sobre esoterismo. Ela também participa do
cibersex e mantém prolongadas conversas em português, espanhol, inglês
e alemão, geralmente com mulheres, em busca de possíveis intercâmbios
homossexuais.
Ana K. nasceu prematuramente, no oitavo mês de gestação. Referindo
esse fato, estabeleceu uma relação com um traço de seu caráter: realizar
tudo apressadamente. Iniciou sua vida sexual aos 16 anos e teve experiências nessa área com vários homens. Aos 21 anos, um pouco depois de sua
mãe ter começado um namoro, passou a ter relações homossexuais. Quan-
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do a mãe descobriu, deu início ao relacionamento com J., que já conhecia e
era muito atencioso com ela.
A paciente teve inúmeros acidentes, tanto a pé quanto de carro, alguns
graves. É muito ansiosa e não tolera esperar. Minutos antes da sessão, costuma avisar pelo celular que está a caminho. Quando viaja para o exterior,
preenche previamente os documentos exigidos pelo país na chegada, assim
como a ficha de hóspede do hotel em que vai ficar, obtida por fax, solicitando que lhe informem, com antecedência, o número do quarto para não
perder tempo. Quando o analista abre a porta da sala de espera, geralmente
encontra Ana K. em plena conversa pelo telefone celular. A paciente entra
na sala falando ao telefone celular até sentar-se. Um dia em que o terapeuta
se atrasou por cinco minutos, golpeou a porta do consultório com desespero, e quando ele a abriu, ela o olhou com uma expressão de pânico e raiva.
Até aqui foi a nossa apresentação, que preferimos não torná-la mais
extensa, posto que já contamos com elementos suficientes para avançar na
pesquisa. Começaremos considerando algumas cenas ligadas com temas
como as barreiras, as portas e os trâmites, em torno dos quais reuniremos
algumas situações caracterizadas pela espera e pela acometida de violência
impaciente. O acidente (choque) teve um valor determinante na decisão de
Ana K. de solicitar tratamento. Com efeito, a seqüência inicial, ligada ao
momento da consulta, inclui um acidente automobilístico, no qual uma
detenção, diante de uma barreira policial, fez-se acompanhar de um
abalroamento de outro carro que não freou. A cena do choque tem uma
seqüência: (1) deslocamento espacial com o carro; (2) uma barreira policial obriga a paciente a deter o seu carro; (3) ela é abalroada por trás por um
Mercedes-Benz em alta velocidade; e (4) liga por telefone para solicitar
uma primeira consulta.
O deslocamento espacial (primeira cena) parece expressar sobretudo a
linguagem do erotismo sádico-anal primário, embora possua algo do procedimento autocalmante (linguagem do erotismo intra-somático) e algo do
avanço ambicioso (linguagem do erotismo fálico-uretral). Todas essas linguagens se combinam (segunda cena) com a sádico-anal secundária, que se
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expressa como o respeito à lei e à ordem (detenção da marcha do veículo
diante de uma barreira). No fato da batida por trás, na cena seguinte, participam as mesmas linguagens do erotismo, porém a prevalência fica por
conta da linguagem do erotismo intra-somático (intrusão corporal). Quanto à quarta cena, a da ligação telefônica, parece uma tentativa de se resgatar
o impacto da cena prévia, na qual a paciente poderia ter-se sentido multiplamente envolvida: não somente na posição de quem sofre uma batida,
mas também na de quem investe desenfreadamente contra o outro. A ligação para o terapeuta parece expressar, novamente, a linguagem do erotismo sádico-anal secundário.
A segunda cena põe em evidência a tentativa da paciente de frear-se,
de respeitar as normas, enquanto a terceira manifesta a situação inversa, o
desenfreio atropelador que leva pela frente as barreiras. Tal cena evidencia
uma defesa, o repúdio da realidade e da instância paterna (localizada em
quem atropela) e outra defesa (o repúdio do afeto) em quem sofre o atropelamento e padece uma intrusão orgânica. Essa aproximação inicial à referida seqüência admite um maior aprofundamento ulterior. Sugerimos aquilo
que é mais evidente do sistema defensivo da terceira cena, porém não o das
restantes. Também não fica claro o processo que vai da parada na barreira
(segunda cena) até o abalroamento (terceira cena). Várias dessas questões
podem se esclarecer depois.
Outra seqüência, bastante similar à recém-estudada, corresponde ao
momento no qual a paciente, na primeira entrevista, faz alusão ao que pensou enquanto esperava para ser atendida: (1) Ana K. se reconhece necessitada e espera do outro lado da porta; (2) fica impactada pelo brilho e pelo
custo (suposto) das maçanetas douradas; e (3) acredita-se dependente de
um personagem especulador e endividado, que terá de abusar da necessidade que ela tem de tratamento. A seqüência tem duas partes: (1) a espera do
outro lado da porta e o impacto diante do brilho e do custo das maçanetas
das portas; e (2) seus pensamentos acerca da inermidade em que fica ante
um analista abusivo e especulador. A parte inicial pode, por sua vez , decompor-se: (1) detenção diante de uma porta fechada; e (2) impaciência na
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espera e deslumbramento diante do brilho das maçanetas douradas. Enquanto que o momento inicial (detenção) expressa a linguagem do erotismo sádico-anal secundário (com respeito aos limites), o segundo põe em
evidência o desenvolvimento de uma gama complexa de desejos. Por um
lado, aparece uma urgência quase orgânica (reunindo as linguagens do erotismo intra-somático e sádico-oral secundário), junto à fascinação diante
daquilo que brilha (linguagem do erotismo fálico-genital). A situação culmina com a vivência de ser objeto de especulação (linguagem do erotismo
intra-somático) e abuso (linguagem do erotismo sádico-anal primário).
Também participa nessa cena a angústia diante da aproximação e do contato (linguagem do erotismo fálico-uretral).
Na seqüência, advertimos uma série de transformações similares
àquela que precedeu a consulta ao terapeuta. A diferença é que a consulta
já havia sido realizada. Contudo, observamos outras diferenças, entre as
quais destacamos a questão da impaciência, própria da linguagem do erotismo sádico-oral secundário. Nesse caso, em lugar de ser abalroada por
outro, surge nela uma tendência à irrupção. O analista figura, então, incluído na própria seqüência narrativa. A paciente fica, finalmente, localizada
numa posição disfórica no marco de duas linguagens do erotismo: a intrasomática (outro terá que tirar proveito econômico às custas dela) e a sádico-anal primária (outro abusará injustamente do poder que tem).
Nessa mesma linha, acha-se a descrição do modo como Ana K. ingressa na sessão ou em um hotel. Essas cenas, unidas com a obrigação de
deter-se para realizar os trâmites necessários, põem em evidência uma solução encontrada pela paciente. Vejamos a seqüência: (1) Ana K. antecipa
um momento de detenção em seu avanço; e (2) recorre a um aparelho (telefone, fax, etc.) para evitar a espera. Uma situação similar ocorre enquanto
aguarda para ser atendida. Nesse caso, a solução consiste no uso do celular,
de modo que não haja espera da sua parte. Os afetos em jogo vão da impaciência ao desespero insustentável, que a paciente tem de achar modos de
eludir. Tais afetos correspondem à linguagem do erotismo sádico-oral secundário. Os instrumentos (o celular ou o fax) aportam uma solução para
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atenuar o problema, ao lhe permitirem irromper sem demora em um espaço
e transformar seu sentimento insuportável em algo diferente. Nas cenas nas
quais tem de esperar antes de ser atendida pelo analista, observa-se a mesma situação: (1) antecipação de um freio; e (2) recurso de um aparelho.
Porém, além disso, evidencia-se outro matiz, já que ingressa na sessão
conectada com outro/a. Dessa forma, inverte o seu sentimento de exclusão
e faz com que o analista sinta isso, como se fosse uma forma de vingança
pela afronta que ela supôs que ele lhe infligiu ao fazê-la esperar.
Essa última seqüência (sala de espera) evidencia a articulação entre
três linguagens do erotismo que potencializam sua eficácia para conduzi-la
a uma situação de atropelo, assim como um recurso, apelando para outra
linguagem do erotismo. As três linguagens do erotismo articuladas são a
fálico-genital (dependência erótica de um homem), a sádico-anal primária
(vivência de ser vítima do abuso de poder por parte de um homem) e a
sádico-oral secundária (incremento da impaciência). Para frear o processo
de recíproca potencialização entre essas três orientações erógenas, a paciente recorria aos aparelhos que lhe permitiam comunicar-se à distância
(linguagem do erotismo oral primário), como um meio que lhe possibilitasse tornar-se ativa e vingar-se do seu interlocutor imediato.
Assim, pois, contamos com quatro seqüências narrativas, centralizadas na questão da espera: (1) a que antecedeu à consulta (acidente); (2) a
que antecedeu ao ingresso na primeira consulta; (3) as ligadas aos trâmites
aduaneiros e hoteleiros; e (4) as da sala de espera (enquanto aguardava que
o analista a atendesse). A primeira e a segunda deixavam a paciente em
uma condição similar: vítima de abusos (linguagem do erotismo sádicoanal primário) e de intrusões orgânico-econômicas (linguagem do erotismo intra-somático). Nesses relatos, também o momento inicial era o mesmo: aceitação de uma lei, de um compromisso social que exige espera,
respeito a certos mandamentos. Entre o estado inicial (espera) e o final
(disfórico) observamos um segundo momento, no qual desperta um fascínio diante de algo brilhante (maçaneta) e vai se transformando em impaciência para culminar em uma condição orgânico-econômica (choque, taxa110 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
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ção). A seqüência implica uma passagem da linguagem do erotismo fálicogenital ao sádico-anal primário (abuso), e dali ao sádico-oral secundário
(impaciência), para terminar com um predomínio da linguagem do erotismo intra-somático. Para evitar o desenlace disfórico correspondente ao
momento final, é necessário interferir no desenvolvimento dos processos
prévios, começando pela espera inicial, da qual deriva a captação de um
brilho fascinante, seguido pela vivência do abuso, da impaciência e da
intrusão ou taxação. Conseqüentemente, nas situações nas quais Ana K.
não conseguia antecipar a espera, recorria a aparelhos para esgueirar-se ou
para não ficar na posição de quem aguarda. O recurso desses aparelhos,
quando procurava prevenir os estados disfóricos, expressava a eficácia da
linguagem do erotismo oral primário. No conjunto, parecia ter peso o incremento da impaciência, potencializada pela mescla entre as linguagens
do erotismo fálico-genital e sádico-anal primário. O problema central, no
entanto, consistia nessa passagem da ênfase numa impaciência insuportável e, para resolver o problema, recorria à linguagem do erotismo oral primário.
Seus costumes noturnos colocavam em evidência uma volta a si mesma, como se dá na retirada narcisista. Quando a paciente se achava nessa
condição, sofria um estado tóxico no qual se auto-estimulava, apelando a
diferentes recursos. A concomitância de cerveja, pizza, cocaína, TV, música e computação constituía um conjunto de incitações desmesuradas, nãoprocessáveis, correspondendo às contradições orgânicas, quer dizer, aquelas nas quais o central consiste em que o estímulo para o sistema nervoso
atenta contra as limitações que este tem para processar a informação
(MALDAVSKY, 1992, 1995a, 1998b, 1999). Uma forma de expressar a
legalidade em jogo nas contradições orgânicas poderia ser “quanto mais
farto me sinto, mais quero ingerir”, termo esse que abarca várias alternativas: devorar, consumir drogas, beber álcool, perceber simultaneamente informações complexas de fontes diversas (TV, computador, aparelho de
som). Essa contradição orgânica é testemunho de uma fixação no erotismo
intra-somático e do emprego patológico do repúdio do afeto.
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Também se releva nesse marco a navegação insone pela Internet, que
parece ter três metas: busca de informação, esoterismo e conexão com possíveis parceiros homossexuais, utilizando pseudônimos. O apego à Internet
costuma evidenciar uma retirada narcisista de caráter tóxico, com uma aparência de conexão com o mundo, mediante identificações inconsistentes
(os pseudônimos). Além disso, a relação com o outro está mediada por um
aparelho, como é inerente à linguagem do erotismo oral primário. Cabe
perguntar se essa linguagem do erotismo oral primário não é mais um meio
para conservar uma incitação duradoura que, como o uso de outros aparelhos (TV, equipamento de som), conduz a (ou mascara) uma alteração
somática, como é o caso da insônia.
Os aparelhos apareciam como um meio para se conectar com pessoas
cujo nome e origem desconhecia, do mesmo modo com que ela ocultava o
próprio nome mediante a utilização de pseudônimos. Tudo ficava anônimo. Ao mesmo tempo, via Internet, desempenhava uma conduta
desafiante, secreta e rebelde diante do poder materno, no sentido de que
buscava as mulheres para estabelecer nexos eróticos. Tal prática homossexual oculta parecia ser a resposta dada às críticas maternas que a conduziram a estabelecer parceria com J., de modo que, no fundo, a paciente, em
segredo, estava animada por um afã revanchista e justiceiro. Combinavamse, portanto, a linguagem do erotismo intra-somático (insônia), do oral primário (aparelhos) e do sádico-anal primário (afã justiceiro). A substituição
da rotina apaziguadora (com J.) pelo descontrole quanto ao consumo de
drogas e pelo estabelecimento de contatos homossexuais constituíam uma
cena que se assemelha à de falta de freios, já analisada anteriormente. Talvez fosse um indício da transformação transitória na defesa da recusa ao
repúdio.
Com relação ao uso de aparelhos, essa história poderia engajar-se com
a da sala de espera, quando Ana K. falava ao telefone enquanto aguardava
o momento de começar a sessão. Também se pode relacionar à cena da
consulta depois de seu carro ter sido abalroado. O aparelho (linguagem do
erotismo oral primário) funciona tanto a serviço da consumação do afã
112 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
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vingativo (linguagem do erotismo sádico-anal primário) quanto da
tramitação da impaciência (linguagem do erotismo sádico-oral secundário)
e do freio à tendência à irrupção orgânica (linguagem do erotismo intrasomático). O comum a todas as cenas nas quais aparecia um aparelho de
conexão à distância reside em que isso permitia que Ana K. se resgatasse
do desamparo nas situações em que ela se sentia objeto de injustiça, devorada pela impaciência e arrasada por uma intrusão orgânica. Nesse último
sentido, recordemos que, logo depois do acidente, ela recorreu ao celular
para marcar uma consulta com o analista. Assim, pois, nesse caso o aparelho também servia para sobrepor-se a uma vivência de atropelamento. O
aparelho permitia-lhe sair da passividade e recuperar uma posição ativa,
até que o contato com o aparelho em si mudava de sinal, tornava-se tóxico,
como quando juntava incitações que chegavam pelo equipamento de som,
pela TV e pelo computador, de um modo simultâneo. A mudança de sinal
do aparelho, que deixa de estar a serviço do freio às irrupções pulsionais
insuportáveis para converter-se no caminho para que se consuma a referida
irrupção, parece evidenciar a substituição de uma defesa (recusa) por outra
(repúdio).
Até aqui reunimos relatos da paciente concernentes às barreiras, às
portas e aos trâmites. Referir-nos-emos, agora, a outros relatos, centrados
em torno de seu mancinismo contrariado e o fracasso dos procedimentos
autocalmantes. Com relação aos antecedentes de sua história, vários aspectos merecem um comentário. Um deles é a preferência da paciente pela
matemática, como o Homem dos Lobos e muitos outros pacientes para os
quais os números, as percentagens e as operações contábeis adquirem realce, como expressão de um discurso especulador (linguagem do erotismo
intra-somático). A anedota com respeito às maçanetas douradas da porta
do analista resultam esclarecedoras: uma imagem atrativa, brilhante, foi
transformada em número, em especulação monetária. Nesse episódio curioso observa-se que a imagem visual (a maçaneta) se entrelaça com o ato de
apreender, implicando um desempenho motriz que leva em conta a questão
da cisão esquerdo-direita do corpo. Precisamente, no caso de Ana K., ad-
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quire importância seu mancinismo contrariado, que abrangeu, ao menos, a
atividade do tênis. O mancinismo contrariado conduz a uma perturbação
dos processos projetivos que tomam como base o corpo em movimento,
centrado no critério da imagem especular, própria da linguagem do erotismo sádico-anal primário. A violência exercida sobre o próprio corpo em
movimento, a partir da imposição de uma condição especular que não parte
das disposições motoras próprias, costuma promover acidentes e problemas que afetam a musculatura esquelética, e que, nesse caso, conduziu às
intervenções cirúrgicas.
Assim, pois, encontramos uma seqüência: (1) mancinismo; (2) violação de sua disposição corporal; e (3) acidentes, problemas corporais. Nessa
seqüência se reúnem a linguagem do erotismo intra-somático e do sádicoanal primário, ambas com desenlaces disfóricos. A atividade motora
aloplástica, desenvolvida durante a adolescência, tinha um grande valor
como tentativa de ligar a tensão voluptuosa do erotismo fálico-genital através do processamento de um erotismo a ele associado, o sádico-anal primário. Tal desdobramento motor constituía, ademais, um procedimento
autocalmante (linguagem do erotismo intra-somático). A impossibilidade
de continuar apelando para essa solução motora levou a paciente a um incremento de sua voracidade, da qual derivou seu sobrepeso. Nesse ponto,
podemos construir outra seqüência narrativa: (1) equilíbrio de tensões, apelando a procedimentos autocalmantes; (2) operações cirúrgicas
invalidantes; e (3) comer excessivo. Na realidade, o primeiro momento
pode, por sua vez, ser decomposto: (1) busca de equilíbrio de tensões corporais; (2) apelação a recurso autocalmante; e (3) fracasso do recurso e
dano orgânico (doenças que exigiram intervenções cirúrgicas). Trata-se de
uma história inerente à linguagem do erotismo intra-somático, com um
desenlace disfórico. Como complemento, advertimos a participação da linguagem do erotismo sádico-anal primário também numa versão disfórica.
O que fez fracassar o procedimento autocalmante talvez tenha sido a
impossibilidade de desenvolver a motricidade aloplástica, a partir da projeção da própria disposição corporal, e, em seu lugar, instalou-se na paciente
114 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 115
David Maldavsky, Gley P. Costa,
José Facundo Oliveira, Gildo Katz
um condicionamento motor devido a uma projeção alheia. Assim que, entre o momento 1 e 2, anteriormente descritos (tentativa de conseguir um
equilíbrio e fracasso), podemos interpolar o fato de que a tentativa em si
estava viciada em sua base, já que o procedimento autocalmante (acompanhado do erotismo sádico-anal primário) continha um critério interno quanto ao desempenho motor, alheio à disposição da paciente.
Conseqüentemente, a paciente realizou uma troca quanto à motilidade
implicada no procedimento autocalmante: da motricidade aloplástica (linguagem do erotismo sádico-anal primário) passou à incorporativa (que expressa o erotismo sádico-oral secundário). O seu comer em excesso
corresponde a esse emprego da linguagem do erotismo sádico-oral secundário a serviço dos procedimentos autocalmantes. Também esse recurso
fracassou, talvez pelo mesmo motivo: o mecanismo projetivo foi substituído por uma adequação incorporativa à projeção alheia.
Nessa paciente ficou evidente uma transformação regressiva do sentimento de injustiça e do emprego da musculatura aloplástica em uma luta
revindicante. Em seu lugar aparecia um estado de urgência, de impaciência
que culminava em desespero. Porém, ao mesmo tempo, e isso era gritante,
adquiria importância o recurso a aparelhos que punham em evidência o
privilégio do nexo cognitivo com a realidade. Esse recurso tinha como
meta mitigar sua impaciência e tolerar a espera sem lançar-se vorazmente
sobre o mundo, através da comilança e do consumo de cocaína. A passagem à incorporação (comida, cocaína) colocava em evidência uma degradação do processamento simbólico do erotismo sádico-oral secundário,
pelo qual a introjeção de representações ficava relevada pela alteração
somática mediante o consumo de algo. Assim, pois, no processo regressivo, podemos observar que a linguagem do erotismo sádico-anal primário
era substituída pela linguagem do erotismo sádico-oral secundário, o qual,
por sua vez, se degradava, perdia uma dimensão simbólica. O intrigante,
no conjunto, era o lugar que tinha a linguagem do erotismo oral primário.
Parecia ter um valor para frear a passagem da impaciência ao desespero,
porém talvez indicasse algo mais, como se disséssemos que desse conta do
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
tipo de interlocutor que a paciente possuía cada vez que tinha que processar as exigências derivadas de sua erogeneidade sádico-oral secundária.
Pensamos que nessa paciente o interlocutor, ativado cada vez que devia
processar essa exigência pulsional, tinha o caráter de um aparelho, como
ocorre com os objetos que povoam o mundo próprio da linguagem do erotismo oral primário. E também nele acontecia um desenlace disfórico,
como os que anteriormente foram consignados. Ou, para explicá-lo melhor, ocorreu uma passagem, desde os desenlaces eufóricos (quando conseguia refrear sua própria irrupção pulsional) até os desenlaces disfóricos
(quando, inclusive, os aparelhos fracassavam em sua função e se tornavam
o caminho pelo qual se estabelecia uma intrusão somática).
3. Avanços teóricos contemporâneos
Reunimos, até aqui, diferentes investigações, nas quais se combinam
condições tóxicas (pela retirada narcisista que persiste, sem passagem à
restituição) e a linguagem do erotismo oral primário em um desenlace
disfórico quanto aos relatos, quer dizer, com uma claudicação da postura
megalomaníaca.
Cabe questionar o valor de nossas hipóteses precedentes (teoria
standard), que privilegiavam as linguagens do erotismo sádico-anal primário e intra-somático em consonância com as propostas de outros autores
como Sami Ali (1990), que relacionaram psicossomática e delírio. Podemos responder que essas hipóteses se referiam bem mais à estrutura
subjacente e não tanto às manifestações. Em outras oportunidades procuramos esclarecer (MALDAVSKY, 1992, 1995a) que nas patologias tóxicas o
componente paranóico delirante não se desenvolve, já que o mencionado
processo corresponde à restituição e não à retirada narcisista, na qual triunfa a defesa. No lugar da restituição, mantém-se a retirada narcisista, que se
torna tóxica. Então emergem os processos regressivos que mencionamos:
torna-se vigente a linguagem do erotismo sádico-oral secundário, que se
degrada para um processamento orgânico pela mediação da linguagem do
erotismo oral primário, todas elas no marco do fracasso da tramitação psí116 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 117
David Maldavsky, Gley P. Costa,
José Facundo Oliveira, Gildo Katz
quica da pulsão. Esses são alguns dos achados derivados do emprego do
ADL, que aportam maior precisão a uma investigação dessa natureza.
Podemos afirmar que o erotismo sádico-anal primário carece de representação, que não se desenvolveu a linguagem egóica capaz de expressálo, pelo menos naqueles momentos em que sobressai a somatização ou a
ingesta. Algo disso é evidenciado no caso de Ana K. Nela, as referências ao
sentimento de injustiça eram pouco freqüentes, somente despontavam por
momentos, e prevaleciam com estridência as anedotas, como a que foi descrita em detalhes. Recordemos, nesse sentido, que as somatizações são freqüentes na infância, até que se desenvolve uma linguagem aloplástica hostil, como expressão da ligadura egóica da erogeneidade sádico-anal primária, como Freud (1920g) exemplificou ao aludir ao jogo da criança com o
carretel. De fato, nos casos de pacientes que padecem de patologias tóxicas, pode não haver um relato daquelas cenas ligadas à expressão da referida linguagem do erotismo, como os relatos nos quais se põe em jogo o
sentimento de injustiça, a vivência de ser vítima de abusos de poder. Às
vezes, essas cenas são narradas efetivamente, porém possuem o valor de
relatos laterais, carentes de importância, como Freud (1922b) afirmou acerca dos delírios pobremente investidos por certos pacientes com estrutura
paranóica não evidente. Em outras ocasiões, são os familiares do paciente
que colocam em evidência as situações de maus-tratos em que esse se coloca. Tais realidades não são respondidas, no entanto, com a linguagem do
erotismo que lhe é inerente, de modo que uma possível tarefa no tratamento consiste em favorecer seu aparecimento. Por outra parte, podemos inferir um dos motivos pelos quais as outras duas linguagens do erotismo em
jogo, mais claramente no discurso manifesto (oral primária e sádico-oral
secundária), têm desenlaces disfóricos. Com efeito, esses desenlaces ocorrem, em boa medida, pelo fato de o ego pretender tramitar regressivamente
com essas linguagens uma exigência pulsional correspondente ao erotismo
sádico-anal primário, não processado.
Essas observações, por sua vez, nos conduzem a uma interrogação
sobre as limitações dos métodos (tanto o ADL quanto qualquer outro, in-
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
clusive o clássico) para investigar as manifestações discursivas de alguns
pacientes. Sugerimos que pode haver uma falha ao ligar a pulsão sádicoanal primária à linguagem, e que esse fato cria dificuldade para detectar a
eficácia dessa mobilização libidinal para processar a pulsão de morte pelo
caminho da agressividade. Em situações desse tipo, nas quais falha a ligadura da pulsão, o método de investigação, centrado no dizer do paciente,
tem suas limitações, a menos que contemos com certas hipóteses adicionais, que nos coloquem em alerta. Por exemplo, alguma que diga o seguinte: quando em um paciente os relatos combinam desenlaces disfóricos das
seqüências narrativas das linguagens do erotismo oral primário e sádicooral secundário (sobretudo se ao conjunto se acrescentam manifestações
da linguagem do erotismo intra-somático, também numa versão disfórica),
podemos inferir a vigência de uma condição tóxica, com a qual uma retirada narcisista substitui uma restituição inerente à linguagem do erotismo
sádico-anal primário.
Possui maior interesse ainda outro problema: o valor da linguagem do
erotismo oral primário nas manifestações dos pacientes com processos tóxicos. Considerar esse problema põe em evidência o valor do ADL, já que
é um método surgido das próprias entranhas da reflexão freudiana e, portanto, não requer resolver questões de extrapolação nem realizar trabalhosos enlaces entre hipóteses de campos diversos. O método põe em evidência não somente erogeneidades e defesas específicas em cada ocasião,
como também certas constelações psíquicas e certos processos internos, tal
como foi exposto cada vez que nos referimos aos caminhos pelos quais
uma erogeneidade se transforma em linguagem no ego.
Comecemos com uma breve revisão bibliográfica sobre os pontos
afins com a questão que estamos considerando. Freud (1914a) aludiu, com
relação à convicção, a um indivíduo que tinha tido uma alucinação infantil:
um dedo de uma mão caía ao ser castigado depois de uma travessura, e ele
supôs depois que um dedo estava faltando – convicção que só retificou
quando aprendeu a contar. A sua mãe faleceu prematuramente e essa lembrança de ter sido castigado era uma das poucas que conservava dela. Po118 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 119
David Maldavsky, Gley P. Costa,
José Facundo Oliveira, Gildo Katz
demos situar esse episódio no marco de um luto patológico duradouro, no
qual uma alucinação fica relevada, de um modo regressivo, pelo emprego
dos números, das contas. Para dizê-lo de outro modo, um processo
alucinatório, inerente à linguagem do erotismo oral primário, foi substituído pelos números, que expressam a captação de freqüências, próprias da
linguagem do erotismo intra-somático.
Quase 60 anos depois, Liberman (1970) referiu-se a um paciente
traumatofílico que não empregava as mãos em coordenação com o sentido
de equilíbrio para proteger o rosto quando caía, a partir do começo da
bipedestação e do caminhar. Sustentou, a partir das narrativas do paciente,
que nele o emprego das mãos havia ficado fixado a um processamento
psíquico mais primitivo, que consistia na busca, nas palmas da mão, de
uma alucinação precocemente perdida, arruinada. A cena parece similar à
descrita por Freud, igualmente em um marco de um luto patológico. Cerca
de 20 anos depois, Maldavsky (1993) analisou alguns contos de Kafka para
pôr em evidência que a anorexia que o autor descrevia tinha como meta ter
acesso a uma alucinação que não se fazia presente. Em nosso estudo, destacamos a combinação entre as linguagens do erotismo oral primário e do
intra-somático (evidente na tendência à alteração somática ao se negar a
comer).
Na vigência de um luto patológico, parece pertinente mencionar as
hipóteses de Green (1972), referentes ao desinvestimento pela mãe, para
quem o filho passa a ser sua alucinação negativa. Por sua vez, esse
desinvestimento materno parece corresponder a uma retirada narcisista no
marco de um luto patológico. Diante da retirada narcisista materna, a criança responde em simetria, com o que se abre o caminho para um
estancamento pulsional.
Se reunirmos todas essas hipóteses podemos inferir que Ana K., a paciente cocainômana, achava-se imersa em um mundo de objetos aos quais
recorria, infrutiferamente, na tentativa de ligar sua pulsão oral primária,
como modo de neutralizar, por sua vez, a pulsão de morte. O fracasso do
seu intento se fazia evidente em seu recurso a objetos inanimados que a
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
deixavam encerrada em um mundo carente de significado.
Inclusive, podemos estabelecer nexos entre esses desenlaces e a utilização de certas defesas da gama da perda do repúdio da realidade e da
função paterna. Na verdade, essa defesa tem um caráter normal no seio da
linguagem do erotismo oral primário, e torna-se patológica quando interfere uma maior complexidade psíquica, como ocorre nesse caso. Um fracasso na tramitação em uma linguagem do erotismo antecipa uma maior exigência de processamento pulsional transladada a momentos posteriores,
quando promove desenlaces similares e gera efeitos retroativos. Antecipação e retroação são potencializados reciprocamente de um modo patológico, como se observa no caso de Ana K.
Pontualizemos, ademais, que, nos casos que consideramos, se dá uma
combinação entre os processos alucinatórios e outro tipo de atividade
anímica e vincular, centrada na tramitação do erotismo sádico-oral secundário. Parece ter importância nesse marco a passagem da impaciência ao
desespero, na qual estão combinadas angústia e dor (esta última derivada
da decepção de um anseio, de uma investidura narcisista de objeto). Esse
parece ser o caminho para o retorno de uma alteração somática. O
devoramento substitui a introjeção simbólica.
Claro está que, com essas considerações, somente pretendemos dar
conta da complexidade do processo, no qual a alteração somática substitui
a tramitação simbólica. Por um e outro caminho (os fracassos no
processamento psíquico inerentes às linguagens do erotismo oral primário
e sádico-oral secundário), nos vemos conduzidos ao estudo de um momento logicamente mais originário no desenvolvimento psíquico e de um critério para a tramitação pulsional mais elementar, centrado na alteração interna (FREUD, 1950a “Proyecto”), responsável pela tendência à incorporação ou à somatização, ou seja, à modificação na fonte pulsional, prescindindo da ação específica.
Já mencionamos em vários livros (MALDAVSKY, 1986, 1992, 1993,
1995a, 1997, 1998b) que o mundo sensorial adquire significado a partir de
um momento anterior, no qual predomina o ego real primitivo, para o qual
120 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 121
David Maldavsky, Gley P. Costa,
José Facundo Oliveira, Gildo Katz
os estímulos mundanos são indiferentes, a menos que surjam a tensão de
necessidade e a conseqüente perturbação narcisista. Para esse ego,
enfatizamos, o mundo exterior vale como conjunto de freqüências
(FREUD, 1950a “Proyecto”, LACAN, 1964), as quais, para a vida anímica
ulterior, ficam transcritas como números, como contas. Uma defesa própria desse momento do desenvolvimento egóico é a habituação, consistente no dormir defensivo diante de incitações excessivas, que falta nas crianças prematuras (como em Ana K.), e que também parece evidenciar-se em
insônias ulteriores. Esse dormir, como refúgio diante dos estímulos mundanos, é tenso, não tem a ver com a recuperação energética, e conduz a que
nos perguntemos pelos meios aos quais recorre Eros inicialmente para neutralizar a pulsão de morte, quando não estão disponíveis ainda os desempenhos motores (inclusive a motricidade implicada na percepção) que comportem algum tipo de sadismo. Aqueles que não apelam cedo para esse
recurso podem ter uma patologia da atenção refletiva, aquela que, segundo
Freud (FREUD, 1950a “Proyecto”), é comandada desde o objeto que, nesse caso, continua sem receber investidura desde a vida pulsional. Portanto,
o mundo perceptivo não tem significação diferencial, não vale como qualidade senão como freqüência. A passagem desde a formalização do mundo
sensorial, em termos de freqüências, até a sua organização como um universo de qualidades requer uma investidura desde a vida erógena, o que
exige um passo intermediário. Esse passo consiste na abertura das zonas
erógenas, processo que corresponde ao tempo no qual se desenvolve a linguagem do erotismo oral primário.
Ao se referir ao apego, Widlöcher (2000) afirma que ele acompanha
as diferentes fases da libido. De nossa parte, consideramos que o apego é
inerente, sobretudo, ao momento em que prevalece a freqüência sobre a
qualificação, e que depois, ao desenvolver-se a vida pulsional, sexual, podem acontecer duas alternativas: o apego fica crescentemente disperso no
entrelaçamento do erotismo com o mundo objetal, ou ele impõe à sexualidade o seu selo, centrado em uma falha na qualificação do mundo sensorial, na falta de desenvolvimento da consciência ligada à percepção e na
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
tendência à alteração interna. Algo disso, afirmamos com respeito ao erotismo sádico-oral secundário na paciente cocainômana. Em outros pacientes, pode se dar um processamento similar para o erotismo sádico-anal; por
exemplo, defecar por açodamento.
Voltemos, por fim, aos relatos anteriormente estudados. Neles se adverte o fracasso da aspiração para ter acesso a um conhecimento abstrato, a
uma chave ou a uma revelação. Em outras ocasiões, como nos contos de
Borges ou nos discursos de pacientes esquizóides, observamos que por
momentos aparecem essas manifestações de uma condição de triunfo
(como Ana K., quando tinha êxito ao empregar o telefone celular para neutralizar sua impaciência). Por outro lado, na esquizofrenia, outro goza
cognitivamente, tomando o paciente como objeto do qual extrai um saber
essencial ou como instrumento para ter acesso à referida chave abstrata.
Em troca, nos casos aqui descritos, o paciente não é a sede dessa ilusão de
êxito, de consumação do desejo cognitivo, nem coloca essa condição de
triunfo em outro. Ninguém é o sujeito do gozo cognitivo, e essa característica do relato nos parece uma evidência da retirada narcisista tóxica da
linguagem do erotismo oral primário. Fracassou a tramitação megalomaníaca da apreensão do mundo e da sobreinvestidura egóica inerente à defesa
patológica (recusa, repúdio), e em seu lugar abre-se o caminho para o acesso à alteração na própria fonte pulsional.
Novas perspectivas
Realizamos um extenso e fatigante percurso na tentativa de evidenciar
os aportes de um método investigativo, o ADL (surgido do âmago dos desenvolvimentos freudianos), para o refinamento e a complexidade da teoria psicanalítica. Com isso, pretendemos destacar que é possível realizar
uma investigação sistemática inerente a uma ciência de base empírica. Inclusive, com nosso método temos realizado investigações sobre escritos
clínicos de outros autores, como os de Freud (MALDAVSKY, 1976, 1997),
Klein (MALDAVSKY, 1991), Lacan (MALDAVSKY, 1986) e Green
(MALDAVSKY, 1998b). Em muitas ocasiões concordamos com as afir122 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Grade I: As estruturas-frase e as linguagens do erotismo
LI
Contas
O1
Dedução
abstrata
Inferência
abstrata
O2
Lamento
A1
Injúrias
A2
Sentenças
FU
Refrões
FG
Elogio
Queixa
Denúncias
Ditos
populares
Dramatizações
Banalidades Orações
cifradas
Adulação
Pensamento
metafísico
Resmungo
Delações
Inconsistência
Censura
Confissões
renhidas com
a lei ou a moral
Provocações
Máximas
e provérbios
Frases
interrompidas
Fofocas
Promessa
Imploração
Informações
de fatos
concretos
Imperativos
condicionais
Juramentos
Catarse
“Se… então”
(inferência
abstrata)
Perguntas
tipo onde
Comparação:
“tanto…
quanto...”
Convite
“Eu poderia
ter sido...
porém”
“Se eu
pudesse ter
tido... teria
sido... porém...”
Referências a
estados afetivos
Tergiversações
Apresentação
de alternativas
Presságios
Pergunta: como
Acusações
Dedução ou
inferência
concreta
Atenuação
do volume
da voz
Exclamação
Calúnias
Comparação
entre traços
Localização
espacial
Referências
a estados
de coisas
Ordens
Enlace causal
Cumprimentos
(forma de
estabelecer
o contato)
Relação causal:
“tão… que”
“tal… que”
“tanto… que”
Exagerações
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 123
David Maldavsky, Gley P. Costa,
José Facundo Oliveira, Gildo Katz
mações de tais autores, para as quais só aportamos comentários complementares; porém, também pretendemos pôr em evidência que, se aproveitarmos tais investigações, poderemos enriquecer nosso acervo com um tesouro de experiências compartilhadas e formalizadas em um método que,
como o nosso, pretende constituir-se no instrumento para o qual possam
confluir as práticas clínicas da comunidade psicanalítica, em um marco
sistemático.
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
LI
O1
O2
Referências
de estar
realizando
uma ação
Compaixão
A1
Ameaças
A2
Objeções
“Se… então”
(ameaça)
Frases
adversativas
Juízos críticos
FU
Clichês
Rezas
Descrição da
posição no marco
de uma ordem ou
hierarquia social
Citações
“Não… porque…”
(imperativos
condicionais,
relações causais
concretas)
“Se… então…”
(mandatos concretos,
relações causais
concretas)
“Ou seja”
“Quer dizer”
Frases denegridoras
“Ou…ou”
“Seja… seja”
“Não… tanto”
“Não… pouco”
“Por um lado…”
“Por outro lado…”
“Por uma parte…”
“Por outra parte...”
Negação de uma
afirmação
Argumentos distributivos: cada
Nem… nem…
124 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
FG
Devaneio
Embelezamento
Redundância
sintática
Erotismo
Cena
Estado
inicial
Primeira
transformação:
despertar
do desejo
Fálicogenital
Harmonia
estética
Desejo de
completude estética
Fálicouretral
Rotina
Segunda
transformação:
tentativa de
consumar o
desejo
Terceira
transformação:
conseqüências da
tentativa de
consumar
o desejo
Recepção
de um dom
presente
Encontro
com uma
marca
paterna no
fundo do
objeto
Desafio
aventureiro
Embaraço
Desejo
ambicioso
Sádico-anal
secundário
Ordem
hierárquica
Desejo de
dominar um
objeto no
marco de um
juramento
público
Discernimento
de que o
objeto é fiel
a sujeitos
corruptos
Sádico-anal Sadico-oral
primário
secundário
Equilíbrio
Paraíso
jurídico natural
Desejo
Tentação
justiceiro
Expiação
Oral
primário
Paz
cognitiva
Desejo
cognitivo
abstrato
Libido intrasomática
Equilíbrio
de tensões
Desejo
especulatório
Vingança
Acesso
a uma
verdade
Ganância
de gozo
pela intrusão
orgânica
Reconhecimento por
sua virtude
Consagração
e reconhecimento da
liderança
Reconhecimento da
genialidade
Euforia
orgânica
Desorganização
estética
Desafio
rotineiro
Estado final Harmonia
compartilhada
Aventura
Paz moral
Rotina
Tormento
pessimista
moral
Sentimento
duradouro
de asco
Condenação
social e
expulsão
moral
Pecado
Reparação
Impotência
motora,
aprisionamento
e humilhação
Evocação
do passado
heróico
Retorno à
paz natural
Ressentimento
duradouro
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 125
Expulsão
do paraíso
Perdão e reco- Perda de
nhecimento lucidez
amoroso
para gozo
cognitivo
alheio
Vale de
Gozo na
lágrimas
revelação
Recuperação
do paraíso
Perda da
essência
Astenia
Equilíbrio
de tensões
sem perda
de energia
Tensão ou
astenia
duradoura
David Maldavsky, Gley P. Costa,
José Facundo Oliveira, Gildo Katz
Grade II: Esquema das cenas inerentes às seqüências narrativas
de cada linguagem do erotismo
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
Sinopse
Os autores pretendem colocar em evidência o valor do Algoritmo David
Liberman (um método de estudo da linguagem como expressão da erogeneidade
e da defesa) na investigação psicanalítica teórica e clínica. Começam sintetizando
o método, que inclui um programa de computador para o estudo das palavras e
duas grades, uma para a análise das frases e outra para o estudo dos relatos, todos
como expressão da erogeneidade. Na seqüência, examinam questões
epistemológicas, sobretudo para salientar o nexo entre o Algoritmo David Liberman
(ADL) e as hipóteses metapsicológicas freudianas. A partir dessas considerações,
chamam a atenção para uma das linguagens como expressão da erogeneidade: o
erotismo oral primário. Essa descrição permite apresentar alguns desenvolvimentos recentes, derivados de investigações de diferentes tipos. Estes desenvolvimentos dizem respeito, por um lado, às características distintivas da retirada narcisista e do restabelecimento do nexo libidinal com o mundo nas caracteriopatias
esquizóides e na esquizofrenia. Por outro lado, esses desenvolvimentos se referem àquelas situações em que a retirada narcisista de tais estruturas se mantém e
se torna tóxica, conduzindo ao aparecimento de manifestações tóxicas e/ou
traumatofílicas. Por fim, esses desenvolvimentos concernem também ao plano
teórico, em particular com referência: (1) à eficácia de uma erogeneidade não
figurada na linguagem e que, no entanto, é possível inferir; (2) à claudicação
prematura (ou ao não desprendimento) do processo alucinatório, na infância precoce; e (3) ao valor dos erotismos sádico-oral secundário e intra-somático, este
último expressado nos vínculos de apego. Os autores finalizam, enfatizando a
utilidade do ADL como método de investigação teórica e clínica na psicanálise
contemporânea.
Summary
Contemporaneus Psychoanalytic Investigation
The authors pretend to show the value of the David Liberman Algorithm (a
method for the study of the language as an expression of the erogeneicity and the
defense) in theoretical research, psychopathology and clinic. They begin
summarizing the method that includes a computational program for the study of
the words, and two grids, one for the analysis of the phrases and the other one for
the narrative sequences, all of them as an expression of the erogeneicity. Then
they consider epistemological issues, specially to show the links between the David
Liberman Algorithm and Freudian’s metapsychologic hypothesis. Backing in this
considerations, the authors pay attention to one of the languages as an expression
126 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sinopsis
Investigación Psicoanalítica Contemporánea
Los autores pretenden poner de relieve el valor del Algoritmo David Liberman
(un método de estudio del lenguaje como expresión de la erogeneidad y de la
defensa) en la investigación psicoanalítica teórica y clínica. Empiezan sintetizando el método, que incluye un programa de computador para el estudio de las
palabras y dos grillas, una para el análisis de las frases y otra para el estudio de los
relatos, todos como expresión de la erogeneidad. A continuación, examinan
cuestiones epistemológicas, sobre todo para destacar la conexión entre el Algoritmo
David Liberman (ADL) y las hipótesis metapsicológicas freudianas. A partir de
esas consideraciones, llaman la atención para uno de los lenguajes como expresión
de la erogeneidad: el erotismo oral primario. Esta descripción permite presentar
algunos desenvolvimientos recientes, derivados de investigaciones de diferentes
tipos. Estes desenvolvimientos se refieren, por una parte, a las características distintivas de la retirada narcisista y del restablecimiento del vínculo libidinal con el
mundo en las caracteriopatias esquizoides y en la esquizofrenia. De otra parte,
eses desenvolvimientos se refieren a aquellas situaciones en que la retirada narcisista de tales estructuras se mantiene y se vuelve tóxica, conduciendo al
aparecimiento de manifestaciones tóxicas y/o traumatofílicas. Al fin eses
desenvolvimientos conciernen también al plan teórico, particularmente con
referencia: 1) a la eficacia de una erogeneidad no figurada en el lenguaje y que,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 127
David Maldavsky, Gley P. Costa,
José Facundo Oliveira, Gildo Katz
of the erogeneicity: the oral primary eroticism. This description allows them to
present some recent developments, as a consequence of different kinds of
investigations. This developments concern, in one side, on the distinctive
characteristics of the narcissistic retraction and the reestablishment of the libidinal
link with the world in the schizoid characteropaties and the schizophrenia. In the
other side, this development concern on to those situations in which the narcissistic
retraction of such structures is maintained and becomes toxic, and then conduces
to the emergence of toxic manifestations and/or traumatofilias. Finally, those
developments also concern on the theoretical level, specially (1) about the efficacity
of an erogeneicity no figurated in the language, and nevertheless possible to be
inferred, (2) about the premature claudication (or the lack of development) of the
alucinatory process in the early infancy, and (3) about the value of the secondary
oral sadistic language of the eroticism and of the intrasomatic one, this last
expressed in the attachment. The authors end the paper putting the emphasis in
the relevance of the David Liberman Algorithm as a theoretical and clinic research
method in contemporary psychoanalysis.
INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
entretanto, es posible inferir; 2) a la falla temprana ( o al no desprendimiento) del
proceso alucinatorio, en la infancia precoz; 3) al valor de los erotismos sádico
oral secundario e intrasomático, este último expresado en los vínculos de apego.
Los autores finalizan enfatizando la utilidad del ADL como método de investigación
teórica y clínica en el psicoanálisis contemporáneo.
Palavras-chave
Erogeneidade; Linguagem verbal; Investigação; Teoria psicanalítica;
Epistemologia.
Key-words
Erogenity; Verbal language; Investigation; Psychoanalytical theory;
Epistemology.
Palabras-llave
Erogeneidad; Lenguaje verbal; Investigación; Teoria psicoanalitica;
Epistemología.
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Artigo
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130 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Uma breve introdução
de agradecimento
José Luiz F. Petrucci
Médico; Psicanalista Didata da
Sociedade Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre e do Grupo de
Estudos Psicanalíticos Rio3;
Professor da Fundação
Universitária Mario Martins.
Este trabalho foi escrito para a
introdução ao curso que dei sobre o
tema, a pedido de alguns profissionais das áreas da psicanálise e da
psicoterapia, como preparação para
o XVIII Congresso Brasileiro de
Psicanálise, realizado na cidade de
São Paulo, em setembro de 2001,
cujo tema, “O Futuro da Psicanálise: das Construções Teóricas às Evidências Terapêuticas”, tinha por
uma de suas metas estudar a técnica
psicanalítica como uma criação individual do analista. Assim, devo
agradecer a todos os participantes
do curso pelo conteúdo do trabalho,
e sobretudo ao Grupo Estudos
Avançados de Porto Alegre, que patrocinou o evento.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 131
José Luiz F. Petrucci
O Psicanalista
como Artesão
da Técnica
O PSICANALISTA
COMO
ARTESÃO
DA
TÉCNICA
Cada peça individual executada por um artesão, ou cada obra de um
artista, será única, jamais poderá ser repetida. As condições pessoais do
artesão, variáveis a cada momento, bem como as condições do material
que emprega e as pequenas e imperceptíveis mudanças da própria técnica
empregada produzirão, a cada execução, o encontro de duas identidades –
o artesão e sua técnica de um lado, e a inconstância natural dos materiais de
outro, que precisarão de uma negociação para o sucesso de cada encontro.
Não há dúvida de que a emoção do artesão será um dos grandes fatores
dessa inconstância, como também não temos dúvida de que é o particular
de cada obra artesanal aquilo o que nos impacta, diferentemente do que é
feito com a monótona constância de uma máquina. Nessa ordem de pensamentos, um encontro psicanalítico estará sempre no campo do artesanato –
ou da obra de arte. Tento aqui encontrar alguns princípios científicos desse
fato, tirados da experiência clínica de alguns autores e da minha própria.
Fica, portanto, difícil viabilizar este curso, dentro das idéias que estou
propondo, se ele se der unilateralmente, sem que eu e vocês estabeleçamos
um diálogo do qual se possam criar idéias. Dessa forma, vou propor, em
cada uma das quatro noites em que nos vamos encontrar, algumas idéias
para discussão. Procuro com isso fazer com que exerçamos encontros em
forma de seminários, que já conhecemos bem. As teorias a serem apresentadas não são criações minhas, claro, mas idéias de autores bastante conhecidos, o que possibilitará a ampla participação de vocês.
Os objetivos da psicanálise
Considerando a evolução da psicanálise como método de tratamento,
é possível pensar que ela sofreu em seus objetivos uma transformação gradual, a ponto de hoje, num estágio já bem adiantado, podermos dizer que
esse objetivo deixou de ser a análise de uma história para se tornar a análise
de uma relação. E evoluiu ainda mais, a partir daí: cada vez mais tem ela
incluído em suas postulações técnicas a análise concomitante dos acontecimentos na vida mental do analista, diretamente conseqüentes de seu
envolvimento no processo terapêutico do seu paciente. Conceitos antes
132 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sobre identificação projetiva
Penso que toda a base do que pretendo dizer está na teoria das relações
de objeto e em um desenvolvimento dessa teoria, a identificação projetiva.
Segundo Ogden, e muitos autores o acompanham nessa idéia, há uma fase
do mecanismo de identificação projetiva na qual aquele que projeta força
seus objetos internos para dentro daquele que recebe a projeção, e com isso
induz o receptor a funcionar como esse objeto interno. Se isso tem sido,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 133
José Luiz F. Petrucci
muito bem estabelecidos, como “neutralidade”, “o analista como uma tela
em branco” e “relação assimétrica”, precisaram, no mínimo, ser
recalculados em sua presença na relação terapêutica.
Uma outra evolução dos objetivos da psicanálise foi aquela anotada e
descrita por John Steiner: num primeiro momento, o objetivo era detectar
pontos de fixação nos quais a libido permanecia represada, sem descarga,
portanto; depois, priorizou-se a análise do conflito com o superego; posteriormente, isso evoluiu para a análise das representações deformadas e da
perversão da realidade (ou dos objetos). Até esse ponto, Steiner acompanha as teses de Money-Kyrle. Acrescenta então uma nova postulação para
os objetivos da psicanálise: com base na evolução do entendimento do conceito de identificação projetiva, propõe como objetivo a restauração das
partes perdidas do self (STEINER, 1992).
Posso verificar que as duas últimas postulações estão bastante próximas uma da outra, mas uma análise das filigranas nos levará a uma sutil
mas poderosa diferença: enquanto a análise das representações deformadas
e perversas da realidade demandam a análise da relação entre objetos internos entre si, ou entre esses e os objetos externos, a análise das partes perdidas do self, através da identificação projetiva, tomam em conta o funcionamento desse mecanismo na transferência. A direta conseqüência disso é a
possibilidade de analisar a contratransferência, isto é, aquilo que, perdido
pelo paciente dentro da mente do analista, acaba por influenciar o funcionamento dela (ver Ogden, em seu estudo do mecanismo da identificação projetiva no processo psicoterapêutico).
O PSICANALISTA
COMO
ARTESÃO
DA
TÉCNICA
classicamente, considerado uma atuação (acting-out) do paciente, a partir
dos desenvolvimentos que sigo é exatamente esse acting-out que permite a
criatividade da relação e o trabalho artesanal do analista de criar a técnica.
É fundamental aqui reconhecer a contrapartida disso: esse ato de o paciente
enfiar seu objeto interno para dentro do analista pode ser de tal ordem violento que leve o último a um forte impulso para atuar, para funcionar realisticamente como o objeto interno do paciente nele projetado. Essa violência, é necessário notar, não é relacionada a diagnóstico, mas a necessidades
específicas de qualquer paciente que não consiga chegar a simbolizar um
conflito objetal interno, a ponto de comunicá-lo na forma mais corrente da
transferência, a simbólica.
O acting-out do analista, nesses casos, que poucas vezes chega a se
manifestar de uma forma abertamente hostil ao paciente ou ao setting, toma
no mais das vezes formas muito sutis. Uma delas é a de evadir-se para a
teoria, ou para formulações aparentemente interpretativas, mas que são na
verdade pré-conceitos. Uma outra forma, menos sutil, é a partida em busca
de um “diagnóstico”, a ser enfiado de volta no paciente, livrando-se assim
o analista da frustração do não-saber (momentaneamente) ou do estar lidando com os aspectos mais primitivos da experiência emocional, para o
que jamais encontrará palavras. E é aí que reside um dos principais pontos
de onde nasce a criatividade no analista, pois não será através das palavras
em si que responderá às demandas do paciente, mas através do que está
implícito, emocionalmente, na formulação ou mesmo na postura do analista. Nesses momentos, muitas regras estabelecidas pela técnica psicanalítica tradicional podem chegar a ser, digamos, “transgredidas”, ou pelo menos reprimidas, restringidas.
O trabalho necessário e útil nesses momentos exige continência, exige
a possibilidade de relação com a não-coisa, com o objeto ausente. Partindo
do mesmo processo de simbolização por que deverá passar o paciente para
chegar a nomear seus objetos, precisa o analista desenvolver, antes, processo semelhante dentro de si. Assim fazendo, estará, a partir de uma relação com a não-coisa, com o espaço vazio, a criar nesse mesmo espaço algo
134 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 135
José Luiz F. Petrucci
que, resultante da ação do paciente sobre a realidade mental do analista,
será um “conhecimento” único daquela relação, algo que muito pouco ou
nada terá a ver com o sensível, mas com a emoção. A meu ver, esse é o
fator criativo da psicanálise, aquele que faz de sua prática uma arte. Voltarei a falar nisso logo.
É, entretanto, necessário enfatizar a visão que tenho do mecanismo de
identificação projetiva.
Para alguns psicanalistas, esse mecanismo é visto a modo de uma panacéia, que “explica tudo”. Claro, só posso imaginar pensarem assim aqueles que leram Klein e seus seguidores muito superficialmente. A identificação projetiva foi uma dedução de Klein a partir de um primeiro movimento
nas relações de objeto, e toda uma gama de mecanismos a compõe, de
forma a dar seguimento ao interjogo de projeções e introjeções que perpetuam aquelas relações. Assim, como base de toda a teoria das relações de
objeto, esse mecanismo, mesmo que não seja reconhecido, estará presente
sempre que se falar em dinamismos entre sujeito e objeto, ou entre self e
objeto. No meu entendimento, a identificação projetiva funciona como um
anteparo, uma lâmina semitransparente pela qual tem passagem, e é modificado, tudo aquilo que é projetado e introjetado. Assim, é a identificação
projetiva que dá vida própria às relações, é a responsável pela afirmação de
que toda a relação é única e incapaz de ser reproduzida ou repetida. Não
tenho dúvida que, vista dessa forma, é a identificação projetiva o fator criativo de qualquer relação. Como já reconheceu o filósofo da ciência Karl
Popper, não existe observação sem teoria prévia. Assim, qualquer comunicação será recebida “a meio do caminho”, isto é, o receptor a receberá já
“contaminada” por sua teoria prévia a respeito do que é comunicado. Para
o analista, é fundamental perceber não só a teoria prévia que seu paciente
desenvolve, mas também dar-se conta de suas próprias teorias prévias, para
que saiba em que podem elas causar modificações no que seu paciente
comunica. Esse é o complexo funcionamento da identificação projetiva na
comunicação.
O PSICANALISTA
COMO
ARTESÃO
DA
TÉCNICA
Sobre a teoria das transformações
O que é capaz de fazer a distinção entre criatividade e invenção
fantasiosa é a relação entre as transformações e as invariantes. É importante que se repise essa idéia, porque, em meio a todas as idéias, teorias,
sensações, intuições que possamos ter, há algo que identifica, que permite
o reconhecimento da individualidade do paciente. Chamamos a isso de
invariantes. Ao falar sobre invariantes, Bion nos alerta para o fato de que,
se o artista reproduz em sua tela uma estrada como duas linhas que se
encontram, porque essa é a sua perspectiva, as bordas da estrada serão, de
fato, paralelas; quer dizer, há uma invariante, independentemente da perspectiva do artista (observador), que não é captada pelos órgãos do sentido,
mas que precisa ser reconhecida como pano de fundo de tudo, portando,
captada por algum tipo de “percepção”. Como “perceber” algo que não
está disponível para aqueles sentidos que estamos acostumados a usar para
perceber coisas? Invariante representa a experiência original, transformada
por sua representação através de um desenho ou em psicanálise através de
uma interpretação. Penso que uma revisão do conceito de fantasia inconsciente pode nos dar algum caminho para pensar melhor sobre isso.
Certa vez, um psicanalista, em conferência aqui em Porto Alegre, disse que, aprofundando a análise de um paciente até seus extremos, vamos
acabar por encontrar a nós mesmos, psicanalistas. A intenção do conferencista não era a de chegar ao que aqui vou dizer, mas encontrei uma razão
paralela para a sua afirmação: de fato, nenhuma análise poderá chegar a
seus termos se não encontrarmos a nós mesmo dentro do paciente, ou seja,
se não compartilharmos nossa emoção com a do paciente. Chegamos à
invariante, àquilo que o paciente é capaz de induzir no analista como a sua
(do analista) parte na experiência. Atingido isso, estamos realmente acompanhando o paciente em seu caminho.
Discutindo se deve ou não o analista revelar seus sentimentos
contratransferenciais ao paciente, Bollas disse que o importante não é revelar ou não sentimentos, mas que o fundamental é dar ao paciente a convicção de que somos capazes de compartilhar com ele suas emoções, isto é,
136 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sobre fantasia inconsciente
De novo nos vemos diante de um conceito que parece cansado,
saturado, como uma coisa antiga. Na minha perspectiva, no entanto, é um
conceito muito próximo de uma invariante no pensamento psicanalítico –
pelo menos em certas correntes desse pensamento. Quer esteja ou não representada graficamente em descrições psicanalíticas, ela está presente
como pano de fundo de tudo o que somos. Vamos ver por que eu penso
assim. Aliás, devo dizer que, em meu entendimento, a psicanálise não foi
modificada pelos autores que se seguiram a Freud. Em todos os pensamentos psicanalíticos, creio que de Klein, Lacan, Bion, Hartmann, Kohut, foram estabelecidos desenvolvimentos da teoria freudiana, seguindo cada um
seu vértice próprio na leitura de Freud. Dessa forma, o conceito kleiniano
de fantasia inconsciente, como o de identificação projetiva, não “envelheceram”, evoluíram, e hoje estão na base de conceitos mais atuais, como
intersubjetividade, por exemplo.
A fantasia inconsciente é o início mesmo de tudo aquilo que dizemos
ser a nossa experiência, aquilo que, num início de nossa vida mental, foi
tido por Freud como o Ego corporal, e que a evolução psíquica levará a ser
traduzido por representações (primeiro de coisas, depois de palavras), e
mais tarde transformado em idéias, pensamentos, memória. Em sua definição mais correta, é a primeira manifestação psíquica da experiência corporal. Em muitos momentos da obra de Bion, quando ele nos fala de uma
“postura em busca de O”, penso que ele está nos falando desse “O”, ou
coisa em si, desse momento primevo da vida mental, quando corpo e mente
ocupam um espaço único na ordem das coisas. Também a mim parece que
essa é uma invariante da nossa vida psíquica. Temos palavras, ou tentamos
estabelecê-las, para designar coisas como prazer, dor. No entanto, não as
temos para descrevê-las. E são as experiências de prazer e dor que “detonam” o big bang da formação do psíquico. Aliás, mesmo que isso possa
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 137
José Luiz F. Petrucci
que ele é capaz de produzir emoções em nós. Quando falar sobre formulação da interpretação, voltarei a isso.
O PSICANALISTA
COMO
ARTESÃO
DA
TÉCNICA
não ser reconhecido, a fantasia inconsciente, creio, é uma invariante para
todas as correntes teóricas da psicanálise, porque é o nascedouro do emocional.
Sobre ecletismo e técnica psicanalítica
É considerável o número de psicanalistas que valorizam o conhecimento de variadas correntes psicanalíticas ou como forma de entendimento de uma diversificada tipologia de pacientes, ou para o entendimento de
diferentes situações de uma mesma análise. Para os propósitos que tenho
em relação à criatividade na técnica, esse é um ponto de vista que apresenta
consideráveis desvantagens. A seguinte questão se me coloca: qual é o conhecimento teórico disponível para a criatividade? Para abordar as citadas
desvantagens e encontrar respostas para a pergunta, preciso abordar o tema
da intuição.
Sobre intuição
Há várias condições capazes de produzir intuição, que é uma qualidade sempre inconsciente e que tem forma e intensidade pessoais. Posso reconhecer, nesse momento, pelo menos três dessas condições. A primeira
delas é aquela que reconhecemos como uma espécie de “sexto sentido”,
formada possivelmente de experiências aleatórias e repetidas. Uma segunda é a que acompanha os funcionamentos psicóticos, nos quais estará sempre presente uma intensa necessidade de perscrutar o mundo com finalidades paranóides. E uma terceira, a que nos interessa, é a que posso chamar
de intuição instrumentada. Ela é também o resultado de um encadeamento
de experiências, porém não aleatórias. Ela é conseqüência de alguns fatores, como o conhecimento que temos de nossos funcionamentos psíquicos
através da análise pessoal, que no caso dos psicanalistas se encontra
articulada com nosso conhecimento teórico e com nossas vivências
transferenciais e contratransferências do dia-a-dia de nossa clínica. Ela depende de vértice, não admite o ecletismo, já que o vértice, aqui, se refere
àquele que temos para observar nossa vida psíquica, adquirido na análise
138 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sobre o formular a interpretação
Vou me referir aqui ao que entendo como interpretação psicanalítica,
que difere de interpretação psicoterápica, embora esta última exista durante a análise sob a denominação genérica de “intervenções preparatórias”.
Do meu ponto de vista, a interpretação não se resume a um conjunto de
idéias que expressamos verbalmente ao paciente. Este será, sim, um
coroamento necessário da interpretação, mas ela começa bem antes de chegarmos a isso e contém muitos elementos não passíveis de verbalização.
Começo a falar de algo que vou chamar de “postura mental”. A postura já é bem conhecida e costumamos denominá-la “atenção flutuante”, ou,
numa linguagem já com elementos mais evoluídos, “postura sem memória
e sem desejo”. Será que a condição de atenção flutuante, introduzida pelo
gênio de Freud, foi de imediato entendida? Será que ainda hoje todos entendem com clareza o que isso significa? Vejam que Freud aconselhou essa
postura como uma forma de pôr o inconsciente do analista em contato com
o do paciente. Mas, a que elementos do inconsciente Freud se referia? Não
posso aceitar que ele se referisse ao que, numa postura assim, pudesse ser
revelado a nós, como, por exemplo, o conflito edípico ou outros conteúdos
mentais dessa ordem. O que é captado nessa postura, penso eu, é a
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 139
José Luiz F. Petrucci
pessoal. Isto é, como parte da análise pessoal, ela é conseqüência de experiência emocional, e a experiência emocional é condição fundamental para
validar nosso conhecimento e torná-lo disponível para a prática da psicanálise.
Posso imaginar a intuição instrumentada, essa que serve para o entendimento do material do paciente, como a resultante de duas vertentes que
se articulam: a vertente de nossa experiência psicanalítica (e quero aqui
distingui-la de um puro conhecimento teórico) e a vertente de tudo aquilo
que o paciente identifica projetivamente no analista. Logo se verifica que
tornar essa intuição disponível para o pensamento requer algo que Freud
chamou de “atenção flutuante”, e Bion, de uma postura mental “sem memória e sem desejo”.
O PSICANALISTA
COMO
ARTESÃO
DA
TÉCNICA
invariante, a experiência emocional. Os conteúdos nos serão revelados,
mesmo que de forma simbólica, pelos nossos órgãos do sentido, e a atenção flutuante busca a ação da intuição.
Banir memória e desejo de nossa postura é a forma de seguir a
postulação de Bollas, acima referida. Excluir memória e desejo do presente
da sessão analítica nos afastará de uma atitude defensiva de fugir para elementos que não são presentes, afastando aí a dor da emoção (memória) ou
a busca de um futuro (imposto) ao paciente (desejo). Não foram poucas as
experiências, minhas e que ouvi descritas por colegas e li em alguns autores (H. Rosenfeld, por exemplo), em que o fugir para o passado ou o expressar desejos de um futuro desencadearam materiais ou atuações expressando o sentimento de rejeição por parte do paciente, quer dizer, de sentir
que não estamos dispostos a ser emocionalmente “perturbados” por ele, a
compartilhar a emoção.
Um outro elemento prévio à interpretação é o silêncio. Não o silêncio
por si só, nem o silêncio curioso, mas o silêncio continente. É bem conhecido da técnica psicanalítica o fato de que responder à identificação
projetiva maciça com interpretações é devolver ao paciente aquilo que ele
precisa evacuar para dentro de nós, porque não o suporta no seu interior. O
silêncio continente gera confiabilidade e segurança, porque, em primeiro
lugar, “diz” ao paciente que estamos dispostos a experimentar dentro de
nós suas emoções, por pior que ele as sinta, e, em segundo, porque produz
uma gradativa sensação no paciente de que aquilo que evacuou em nós é
suportável. O estabelecimento dessa confiabilidade e dessa nova tradução
da emoção, mais benigna, é absolutamente fundamental para desencadear
no paciente sua capacidade introjetiva, e então poder ouvir interpretações.
Sobre isso aliás, deve-se dizer que, ao procurar entrar em contato com
a experiência emocional do paciente, estamos expostos, nós mesmos, necessariamente, às nossas próprias emoções, induzidas em nós pela identificação projetiva. Isso, em outros tempos visto como falha na neutralidade, é
hoje, seguindo o nosso ponto de vista, inevitável. No entanto, acometido
pelos efeitos da identificação projetiva, perturbado pela
140 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sobre linguagem de êxito
Segundo o nosso raciocínio, que segue os caminhos do pensamento de
Bion, a linguagem de êxito é decorrência da tolerância à frustração. É frustrante abdicarmos de uma verdade racional, aquela decorrente da memória.
Faz-se referência aqui à postura chamada de “ato de fé”, quer dizer, acreditar em algo que não é disponível no momento, mas que será descoberto
pela intuição. É uma experiência frustrante que inclui abdicarmos da idéia
de que tal ou qual caminho é o melhor para o paciente, para que ele nos
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 141
José Luiz F. Petrucci
contratransferência, está o analista num momento em que sua única atitude
possível será a de pensar. Pensar sobre si, “procurar” em si a tradução de
sua experiência emocional, e não uma interpretação ou um comentário
qualquer para o paciente. Esse é o momento de procurar a auto-análise da
contratransferência, já que esta, em princípio, tem motivações inconscientes. Paula Heimann chamou esse espaço de silêncio e contenção que precisamos nos dar de time lag. Ele coincidirá, certamente, com o espaço de
silêncio continente de que falamos antes, e a experiência é que seja assim
sentido pelo paciente, mesmo porque este não deseja uma simples devolução do que identificativamente projetou. Qualquer tentativa de manifestação que não a do silêncio continente por parte do analista será sem dúvida
uma atuação da contratransferência, porque não existe, nesses momentos,
o estado mental necessário para formular. O paciente, diria, diante da atitude “sem atuação” e pensativa do analista, que muito provavelmente terá a
sensação de estar sendo contido num espaço de compreensão. A experiência subjetiva do paciente, por seu turno, lhe dará uma convicção de que
estimulou o analista a pensar nele.
Esse espaço que estou neste trabalho chamando de silêncio continente
é o espaço de criação na relação terapêutica, e é nele que se exercerá a
formulação da única forma de interpretação que, segundo meu ponto de
vista, promove evolução, porque orienta o paciente em direção à sua realidade psíquica. É nesse espaço que encontraremos a formulação que
corresponderá ao que se chama “linguagem de êxito”.
O PSICANALISTA
COMO
ARTESÃO
DA
TÉCNICA
aponte, através de sua indução sobre nós, o real caminho do que precisamos conhecer, sua realidade psíquica. A linguagem de êxito está muito
próxima da atuação, já que se constitui de um acontecimento “compulsivo”, independente de nossa vontade. Ela é o resultado da convergência de
fatores que, até ali, estiveram dispersos, e que se juntam num ato de pensar
único, sem qualquer participação de memória (lembrar teoria, esforçar-se
para lembrar de momentos anteriores da análise daquele paciente) ou desejo (aquilo que pensamos ser melhor para o paciente, ou pensar em
psicopatologia – o que é sadio ou o que é patológico).
Como distinguir, então, a ocorrência da linguagem de êxito de uma
atuação contratransferencial, ou, como chamou Grimberg, de uma contraidentificação projetiva? Ocorre que a linguagem de êxito tem o fundo da
experiência emocional do analista, e não sua experiência sensorial (racional).
Sobre “pacientes difíceis”
Costumamos classificar alguns pacientes como “casos difíceis”. Do
ponto de vista aqui exposto, “dificuldade” é uma experiência do analista,
não um rótulo apresentado por nossos pacientes. Assim, “dificuldade”,
numa análise ou sessão analítica, apenas será transposta se considerada
como pertencente ao analista, não ao paciente. Estabelecer “dificuldade”
como pertencente ao paciente é forma de projetar identificativamente no
paciente nossa intolerância à frustração de um não-entendimento imediato.
Alguns princípios básicos da linguagem de êxito
Em um trabalho meu sobre pacientes de difícil acesso, de 1987, cheguei a formular uns poucos tópicos que poderiam ajudar na formulação da
linguagem de êxito. São eles:
a. a possibilidade de o paciente dar-se conta de que está o analista
presente ao interpretar, o que corresponde a ter podido analisar seus sentimentos contratranferenciais e, assim, situar-se no presente da relação (silêncio continente);
b. uma forma que dê ao paciente a sensação de estar sendo compreen142 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sinopse
Neste trabalho, o autor pretende atingir as mais profundas e subjetivas relações entre analista e analisando, procurando examinar o que está subjacente às
palavras, para chegar a algumas idéias sobre o “diálogo das emoções” na relação
analista-analisando. Esse diálogo resulta naquilo que conhecemos como “uma
relação única e não-reproduzível”, e que, ao mesmo tempo, é responsável pelo
ato criativo que é o psicanalizar e pelo emprego, enfim, correto, da técnica psicanalítica.
Summary
The Psychoanalyst as an Artisan in Technics
In this work, the author intends to attain deep and subjective relations between
patient and therapist. He intends to examine what underlines words to reach some
ideas about “emotional dialogue” in the relationship between patiente and therapist.
Such dialogue results in what we know as “a unique and non-reproducible
relationship”, and is responsible for the psychoanalysis as a creative act and for
the correct employment of the psychoanalytical technique.
Sinopsis
El Psicoanalista como Artesano de la Técnica
En este trabajo el autor pretende alcanzar las más profundas y subjetivas
relaciones entre analista y analisando, procurando examinar lo que está subyacente
a las palabras para llegar a algunas ideas sobre el “diálogo de las emociones” en la
relación analista-analisando, diálogo este que resulta en aquello que conocemos
como “una relación única y no reproducible”, y que al mismo tiempo es responsable
por el acto creativo que es el psicoanalizar y por emplear por fin, correctamente,
la técnica psicoanalítica.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 143
José Luiz F. Petrucci
dido, o que quer dizer que, na interpretação, não existem vestígios de juízo
de valor, traços de memória, desejos ou projetos a respeito de sua evolução
na vida externa, ou alterações em sua concepção de vida;
c. uma linguagem que revele, de forma definitiva, que não estamos
estabelecendo nele a causa da dificuldade (inevitável em qualquer relação
terapêutica). Esse último tópico está presente, por exemplo, no modelo preconcebido e insistente de interpretar a inveja à sabedoria do analista.
O PSICANALISTA
COMO
ARTESÃO
DA
TÉCNICA
Palavras-chave
Técnica psicanalítica; Criatividade; Diálogo intersubjetivo.
Key-words
Psychoanalitical technique; Creativity; Intersubjective dialogue.
Palabras-llave
Técnica psicoanalítica; Creatividad; Diálogo intersubjetivo.
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Dr. José Luiz F. Petrucci
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144 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
I – Gemelaridade e Cultura
Rosana Igor Rehfeld
Membro Associado da Sociedade
Psicanalítica do Rio de Janeiro;
Membro Pleno do Centro de
Estudos, Atendimento e Pesquisa
da Infância e Adolescência;
Membro Correspondente do
Centro de Estudos Psicanalíticos
de Porto Alegre.
Nos últimos anos, temos nos
defrontado com um maior número
de gestações múltiplas, fruto da
evolução científica e da reprodução
assistida. Observamos o nascimento de gêmeos, trigêmeos e
quadrigêmeos com até certa naturalidade, visto que são cada vez mais
freqüentes.
Nesse sentido, psicanalistas
vêem-se com questões novas. Pais
grávidos de gestações múltiplas
procuram orientação, e crianças gêmeas ou trigêmeas são trazidas para
análise.
Lawrence Wright (1997), jornalista americano interessado nesse
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 145
Rosana Igor Rehfeld
De Esaú e Jacob
à Reprodução
Assistida – a
Gemelaridade à
Luz da
Psicanálise
DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA
– A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE
tema, diz que “os gêmeos têm confundido a humanidade desde o princípio
dos tempos, quase como se fora uma brincadeira divina para pôr em dúvida nosso sentido de individualidade e de ser únicos no mundo”.
Todas as culturas têm de fazer frente ao fenômeno dos Gêmeos e chegar às suas próprias conclusões. Sabe-se, por exemplo, que em algumas
sociedades indígenas o nascimento de gêmeos era vivido de forma trágica.
Achavam, os índios, que um gêmeo era dotado de uma “alma boa”, enquanto o outro tinha uma “alma do diabo” . Como não sabiam quem era o
representante do bem e quem era o do mal, sacrificavam os dois bebês para
que nada de ruim ocorresse na tribo.
Na antigüidade, em algumas culturas os homens cortavam um de seus
testículos, com a crença de que, assim, evitariam ter filhos gêmeos. Por
outro lado, os participantes de Vodu da África Ocidental e do Haiti exaltam
os gêmeos como seres sobrenaturais com uma só alma, que devem ser venerados e temidos.
Na bíblia, encontramos a conhecida história de Esaú e Jacob, narrada
no livro de Gênesis, capítulo XXV. O mito gira em torno dos filhos gêmeos
de Isaac e Rebeca. Trata-se da história do roubo da primogenitura de Esaú
por Jacob, ajudado por sua mãe Rebeca.
Psicanalistas valeram-se desse relato para colocar em evidência as fantasias inerentes ao complexo fraterno em gêmeos, as conseqüências
patogênicas das colusões conscientes e inconscientes entre mãe-filho, bem
como a luta de poder entre os sexos no casal e suas conseqüências atuadas
nos filhos.
Na literatura mundial e no cinema, vários escritores valeram-se de
gêmeos como personagens de histórias e biografias. Na mitologia, temos
Rômulo e Remo; no cinema, temos Beverly e Elliot Mantle (“Gêmeos,
mórbida semelhança”); apenas para citar alguns.
A partir do estudo teórico e da prática clínica, observei que a questão
da gemelaridade pode ser entendida desde pelo menos três pontos de vista:
– da mãe em relação a cada um dos bebês;
– de cada bebê em relação a sua mãe;
146 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
II – Narcisismo Primário, Duplo e Complexo
Fraterno: Intersecções e Questionamentos
Para iniciar o estudo teórico acerca de gêmeos, precisamos nos remeter ao narcisismo primário e à criação do duplo.
Freud (1920) traz o conceito de narcisismo primário e demonstra a
passagem do auto-erotismo ao estágio constitutivo da unidade do sujeito,
ou seja, à investidura das pulsões parciais auto-eróticas.
Emergindo da fragmentação, esse ego incipiente realiza um duplo
movimento. Mediante a projeção, funda uma primeira exterioridade como
modo de fazer consciente os processos inconscientes antes do advento da
palavra. Configura-se uma primeira realidade sensorial, criando um duplo
sobre o qual recai o narcisismo inicialmente colocado no corpo. Num movimento seguinte, o ego apodera-se identificatoriamente daquilo que foi
projetado no objeto. É o momento da identificação primária e da constituição do sentimento de ser.
Formam-se, assim, os duplos da época do narcisismo primário. Em
1919, Freud, no trabalho intitulado “O Estranho”, descreveu três tipos de
duplos: imagem especular, sombra e espírito . Esses se igualam devido à
forma de produção (projeção e identificação) e se diferenciam através do
tipo de representação-corpo que será projetado no mundo sensorial como
duplo.
Cabe salientar ainda um outro tipo de duplo, descrito por Freud em
1911, numa carta a Jung: a placenta (McGUIRE, 1993). Nesse caso, configura-se o tipo primordial de duplo, que remete ao feto e sua placenta na
criação do indivíduo. Freud ilustra esse tipo de duplo com o mito de
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 147
Rosana Igor Rehfeld
– do complexo fraterno, ou seja, o olhar de cada bebê em relação ao
seu irmão.
Pretendo, assim, neste trabalho, trazer alguns aportes teóricos de
Freud e Winnicott com relação ao duplo, ao narcisismo e à formação da
identidade, bem como trabalhar o complexo fraterno em gêmeos a partir de
autores contemporâneos com Kancyper e Braier.
DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA
– A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE
Rômulo e Remo, em que o mais frágil dos dois haverá de morrer, igual à
placenta. Ainda nessa carta a Jung, Freud lembra Frazer e menciona que
em povos primitivos se dava à placenta o nome de irmão ou de gêmeo, e,
como tal, tratava-se de alimentá-la e cuidá-la por muito tempo. Consistirá,
então, em um duplo mais primitivo e elementar, como uma placenta mesmo, destinada a perder-se.
Vimos, então, que a unidade do ego só poderá se fazer mediante a
projeção do interior de um corpo sobre o outro, objeto externo, corpo materno que recebe a projeção e, como um espelho, permite a identificação.
Sempre a unidade egóica implica um par ego-objeto, dentro-fora, consciente-inconsciente: uma mãe, um bebê. Entretanto, no caso de gêmeos,
trigêmeos ou mais, não existe EU, e sim NÓS. Dois ou mais bebês necessitam de uma mesma mãe para nascerem psiquicamente como sujeitos.
Joyce McDougall (1988) trabalha com o conceito de um só corpo para
dois, quando se refere às estruturas narcísicas. Ana Maria Baceiro (1991,
p. 175), quando fala em gêmeos e sua mãe, propõe pensar um “aparelho
psíquico para dois”. Diz essa psicanalista argentina:
No caso de gêmeos, o ego não se coloca em uma posição sujeito ativo.
Não consegue uma identificação plena com o duplo ou modelo. Fica
interferida a capacidade de ligar a pulsão que ameaça o aparelho psíquico com o surgimento de um afeto insuportável, como conseqüência
de uma falha na identificação primária. Não é que o sujeito não se
constitua, mas fica descentrado do ego e realiza uma identificação
substitutiva com o outro sujeito identificado com o modelo ou ideal: o
outro gêmeo. O sentimento de ser, que deveria surgir como ganho da
identificação primária, fica substituído por um sentimento de
inalteridade que protege, entretanto, de um colapso afetivo .
A potencialidade psíquica de cada bebê de gerar seu próprio duplo
sempre está presente. Mas, como lembra Baceiro (1991), essa produção
deverá dar-se em um contexto vincular em que a possibilidade de a mãe
cumprir uma dupla função está em jogo. Aqui, a mãe, objeto refletor, de148 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 149
Rosana Igor Rehfeld
volve uma só imagem para dois.
Quando penso nessa idéia, pergunto-me: Será isso possível? Uma
mesma mãe reflete a mesma imagem para dois? Poderá ser a mesma mãe
para dois bebês diferentes?
Winnicott (1957, p. 154), em seu artigo “Gêmeos”, diz que a maioria
das mães, se tivessem sido consultadas, não teriam optado por terem mais
de um filho numa mesma gestação. Também diz que, apesar de muitos
gêmeos parecerem bastante satisfeitos com sua situação, usualmente “confessam que teriam preferido chegar cada um por sua vez”.
Segue dizendo que, logo ao nascer, o bebê inicia a formar a base de
sua personalidade, individualidade, e a descobrir a própria importância.
Isso só se dará se esse bebê puder experimentar um “egoísmo primário”
(WINNICOTT, p. 155): a vivência de uma mãe suficientemente boa, capaz
de adaptar-se totalmente às exigências pulsionais de seu bebê e que esteja
apta a propiciar a seu filho o sentido de posse e a sensação de que a mãe foi
criada para a ocasião.
O fato de um gêmeo ter sempre um ou mais bebês com quem se defrontar reveste seu desenvolvimento psíquico de algumas peculiaridades.
Winnicott (p.156) diz que é possível e determinante para o desenvolvimento normal que os gêmeos sintam, de fato, que cada um exerce, a seu modo,
a posse da mãe no princípio de suas vidas. Para tanto, “a mãe de gêmeos
tem uma tarefa extra, acima de todas as outras, que é dar-se toda a dois
bebês ao mesmo tempo”.
Ilustrarei o exposto acima com material clínico.
Recebi A. em análise quando esta tentava engravidar já há alguns
meses, sem sucesso. Precisou submeter-se a um tratamento e engravidou
de gêmeos. Num primeiro momento assustou-se muito, apesar de saber
que a gravidez gemelar poderia ocorrer, como havia sido esclarecida pelo
médico. Fez uma fantasia de que não conseguiria levar a gravidez a termo
e que perderia os bebês. Entrou em angústia e também desenvolveu sintomas fóbicos. Só saia de casa para ir à análise.
As sessões giravam em torno de seus sentimentos ambivalentes e de
DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA
– A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE
suas dúvidas com relação ao que chamava de seu “talento materno”. Perguntava-se: Como poderei ser justa? Como saberei a quem eu amamentei
primeiro da última vez? E se eu confundir os nomes?
A angústia de A. foi cedendo à medida que a gravidez ia evoluindo
bem e seus sentimentos podiam ser compartilhados e entendidos. Vimos
em análise que seus receios em relação aos bebês eram legítimos e justificáveis, visto que uma só mãe não pode atender às necessidades de dois
bebês ao mesmo tempo. Entretanto, foi a partir de um sonho que a angústia
e o medo da paciente puderam ser melhor compreendidos.
A. sonhou que sua irmã mais velha havia recebido da mãe, que era
doceira, a responsabilidade de entregar duas encomendas a duas clientes.
A irmã levou apenas uma das caixas e deixou a outra sobre o sofá da casa.
Quando voltou, à noite, a casa estava cheirando mal. Os doces esquecidos
haviam estragado, e a mãe perdeu uma das clientes.
A partir das associações, A. contou-me que possuía uma irmã do mesmo sexo dez meses mais velha, muito parecida fisicamente com ela e que
“bem poderia ser tomada por sua gêmea”. Falou pela primeira vez dessa
irmã quase gêmea, da competição pela atenção da mãe, do amor e do ódio
que sentiam uma pela outra, e da enorme amizade que possuíam hoje em
dia.
Nesse momento, A. estava identificada com seus bebês. Contou que a
mãe colocou-a em um turno diferente do da irmã na escola para que pudesse cuidar de uma de cada vez. Em função do trabalho e também da quantidade de filhos, A. fora esquecida muitas vezes na escola. Voltava para casa
acompanhada por uma servente que morava perto, e às vezes a mãe nem
havia dado por sua falta. Entendemos que se sentia, naquelas ocasiões,
como a caixa de doces esquecida no sofá, e que o mau cheiro representava
para ela suas dificuldades emocionais, que a faziam duvidar de sua capacidade para cuidar de seus bebês, assim como a mãe.
Também a questão da perda de uma das clientes talvez estivesse ligada ao seu projeto original de ter apenas um bebê.
A partir do estudo teórico da experiência clínica, penso que a psicaná150 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
O duplo, que desde sempre fascina, representa o companheiro ideal,
aquele que entende tudo no primeiro olhar. Na verdade, essa fantasia
permite que nos projetemos em outra existência. O gêmeo imaginário,
a maneira de um anjo da guarda, conta a outra vida que cada um de nós
sonhou.
Kancyper (2002, p. 7) enuncia algumas fantasias que são típicas do
complexo fraterno. São exemplos as fantasias fratricidas, furtivas, de
complementaridade, de bissexualidade, de confraternidade, dentre outras.
Com relação ao complexo fraterno em gêmeos, diz esse autor que encontramos uma particular fantasia, a da existência de um só espaço, de um
só tempo e de uma só possibilidade para dois. Por exemplo, existe só uma
carreira profissional, uma beleza excludente, uma posição econômica e
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 151
Rosana Igor Rehfeld
lise precisa desenvolver um olhar atento para esse momento da sociedade
em que um grande número de gêmeos está nascendo.
Um aporte técnico interessante e indispensável ao atendimento psicanalítico de gêmeos diz respeito ao estudo desenvolvido por Luis Kancyper
(1995) sobre o complexo fraterno. Coloca esse autor que, na estrutura fraterna, intervém a dinâmica do duplo, mas com uma singularidade: é um
duplo consangüíneo. Assim, a filiação consangüínea e o duplo como objeto de projeção narcisista operam de forma conjunta e são estruturantes da
personalidade, possuindo uma fantasmática particular em cada sujeito.
Kancyper (p. 50) diz que “o irmão é um semelhante demasiado semelhante”. Essa colocação refere-se a toda classe de irmãos, mesmo aqueles
que não são gêmeos. Uma colega psicanalista conta que seu filho menor,
ao olhar-se no espelho, quando tinha em torno de 2 anos, disse: “Lipe?”
Felipe é seu irmão maior, na época com três anos e meio.
O irmão é simultaneamente um duplo e um estranho, e sua proximidade consangüínea favorece ser ele o depositário de certos aspectos inaceitáveis de si mesmo.
Por outro lado, Marcel Rufo (2002, p. 40) comenta:
DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA
– A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE
social. Se uma irmã é mãe, a outra é tia, se uma é inteligente, a outra é
burra, e assim por diante. “Esta dimensão de sacrifício entre os gêmeos é
uma conseqüência de fantasias superpostas de roubo e de simbiose (de fusão e de confusão, de apropriações mútuas de papéis e de funções) e opera
como as raízes que nutrem os remorsos e os ressentimentos mais virulentos”.
Para encerrar, gostaria de voltar a Freud e ao duplo. Na fratria gemelar,
o duplo especular se impõe. Ele tem um caráter familiar e ao mesmo tempo
estranho, e corresponde a uma época primitiva do desenvolvimento infantil, em que ego e mundo externo ainda não estavam bem delimitados. Ainda no artigo de 1919, Freud diz que existe um efeito estranho, repulsivo,
quando se anulam os limites entre fantasia e realidade. No momento em
que aparece à nossa frente como real algo que havíamos tido como
fantasmático, um símbolo assume a plena operação do simbolizado. O duplo opera com os limites da mesmice e da alteridade, e pode ser fonte de
angústias confusionais e de relações de objeto narcisistas: “se instala na
espacialidade psíquica do sujeito como um inquilino violentador que impede o ego de ser o dono de sua própria casa e o transforma em seu próprio
escravo”.
O duplo especular manifesta-se de uma forma eloqüente na
gemelaridade, como já foi mencionado acima. É o suporte da tensão
surgida entre a impossibilidade de uma exata coincidência espelhada em
um outro e pela inquietante ameaça da perda ou roubo parcial ou total da
identidade. Caracteriza-se pela bipolaridade. Como diz Lacan (1936,
p. 14), “evocam a predestinação e a antecipação de uma permanência e
imortalidade [...] e, por outro lado, suscitam o terror a um enfrentamento
com o similar, portanto, com o redundante que ameaça a unicidade”.
Marcel Rufo (2002, p.147), psiquiatra francês, refere-se aos gêmeos
como “fratria extrema”, sintetizando o que busquei expor acima.
152 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Gostaria de dividir com os colegas uma experiência que julgo singular:
Celso tinha 6 anos quando o conheci. Era tão pequeno que cabia num
carrinho de bebê, que efetivamente era seu meio de transporte. Ele só tinha
uma perna e ainda não podia usar prótese. Usava fraldas, e várias partes de
seu corpo, especialmente os órgãos internos, como aparelho digestivo e
urinário, eram frutos de várias cirurgias reconstrutivas funcionais e estéticas. Ou seja, como costuma dizer Luis Kancyper, poderia ser considerado
um “sobremorrente”. Ele era o gêmeo vivo de uma dupla de xifópagos que
havia sido separada com algumas semanas de vida. Para que ele vivesse,
seu irmão teve de morrer.
Levei muitos anos para escrever sobre esse caso, tanto devido ao sigilo quanto em função de meus sentimentos contratransferenciais.
O que lembro de Celso é que ele não era um “sobremorrente”, e sim
um “sobrevivente”. Se em seu corpo faltavam pedaços, em seu mundo interno sobravam fantasias, desejos, questões. Muito inteligente, aprendeu a
ler e escrever naquele ano.
Um pedagogo ia a sua casa e trabalhava com ele no computador. Também freqüentava uma clínica de fisioterapia, três vezes por semana, e aí era
seu único contato com crianças de sua idade.
Em sua caixa de jogo, havia um cachorrinho peludo e pequeno, alguns
carrinhos, cordão, pedaços de pano, papel, lápis, tesoura e cola.
Celso já fazia psicoterapia desde muito pequeno. Sua terapeuta mudou-se de cidade e eu fui convidada por ela a seguir com o caso. Fizemos
muitas reuniões, eu, minha colega e sua supervisora. Optamos por uma
passagem gradual e o mais cuidadosa possível, pois imaginávamos o que
significaria para Celso essa separação. Fizemos sessões conjuntas eu, ela e
Celso. Também eu, minha colega e os pais de Celso.
Celso brincava com cordões. Fazia e desfazia nós. Cortava cordões
com tesoura. Naquela situação de passagem, trabalhávamos a separação da
antiga terapeuta e o início da relação comigo. Celso tinha dificuldades em
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 153
Rosana Igor Rehfeld
III – Gemelaridade e Prática Clinica
DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA
– A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE
expressar raiva e mesmo tristeza. Minha colega assinalou a separação de
Celso de seu irmão gêmeo, e o medo que este estava de que ela morresse
como o irmão. Combinou com o menino de mandar-lhe cartões de sua nova
cidade e que, se ele quisesse, poderiam manter uma correspondência para
que ele ficasse tranqüilo de que ela se mantinha bem de saúde.
Durante os três anos em que trabalhei com ele, Celso não permitia que
falássemos diretamente do irmão gêmeo que morreu para que ele continuasse vivo. Esse luto da antiga terapeuta suscitou o antigo luto que aparecia
em desenhos de “dragões de duas cabeças”, “caixas pretas e pequenas que
eram enterradas num jardim e se transformavam em raízes perigosas que
poderiam pegar o pé do menino que dormia naquela casa”.
Eu tentava interpretar os desenhos de Celso com outros desenhos. Por
exemplo, juntos cortamos muitas vezes as cabeças dos dragões, fazíamos
caixas e enterrávamos no fundo de sua caixa de jogo. Fazíamos um “teatro” do enterro no qual chorávamos, e ele dizia: “só de brincadeira... só de
brincadeira”.
Depois de um tempo de análise comigo, Celso passou a desenhar personagens e suas sombras. No início, as sombras eram muito grandes, maiores do que seus donos. Com o tempo, as sombras foram diminuindo até
sumirem.
Também o jogo infantil de esconde-esconde era muito utilizado por
Celso para expressar suas emoções mais primitivas, ainda que o deslocamento do menino pelo chão do consultório se fazia difícil. Certa vez, perguntei-lhe: O que será que tu procuras Celso? Ele respondeu: “o outro Celso!” Depois dessa fala, tratou logo de mudar de jogo, não permitindo que
eu lhe falasse nada e não voltando a brincar de esconde-esconde.
A mãe de Celso era muito resistente a ter sessões comigo, dizia que
trazia o Celso mas não gostava muito de conversar. Penso que a separação
da antiga terapeuta foi vivida por ela como um novo trauma, que atualizava
a perda do outro gêmeo. A mãe acabou encerrando a análise de Celso prematuramente. Não tolerou o fato de eu e a equipe que trabalhava com ele
termos conseguido uma escola pública que aceitou Celso com toda a sua
154 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
IV – Conclusão
Para Winnicott, a gemelaridade é uma desvantagem inata. Kancyper
também concorda que a condição de gêmeos tem uma potencialidade traumática, à medida que esta é uma condição existente desde a “entrada” na
vida.
No entanto, ambos os autores concordam que a condição especial de
gêmeos só se constituirá traumática à medida que as crianças e seus pais
não puderem transitar pela mesma com espontaneidade. O principal é que
os pais enalteçam as diferenças, em vez das semelhanças, entre os filhos.
Com relação à abordagem terapêutica de gêmeos, esta não supõe modificações na técnica. Resulta evidente, entretanto, que a situação de gêmeos deve ser considerada um fator relevante, relacionada com um singular complexo fraterno, mas não como o único fator, e sim como outro entre
os diversos fatores determinantes.
Kancyper (2002, p. 24) alerta que o importante é que o paciente e seu
analista não convertam a situação inicial de gêmeos em uma categoria particular, com o risco de criar-se um tipo de “subidentidade de
excepcionalidade”.
A valorização excessiva dessa “subidentidade gemelar” poderá assumir um teor defensivo, através do qual o sujeito se arma e se esconde,
como uma “condenada vítima” credora de um pré-fixado e imutável destino. Isso determinaria um caso de fracasso do tratamento analítico.
Sinopse
Devido ao aumento do número de gestações múltiplas na atualidade, fruto
da reprodução assistida e da evolução da ciência, a autora faz uma breve revisão
da literatura psicanalítica a respeito da gemelaridade e ilustra com material clínico.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 155
Rosana Igor Rehfeld
deficiência. Só aceitaria se pudesse acompanhá-lo todo o tempo. Não estava preparada para deixá-lo ir e enfrentar a vida. Ela era o “outro Gêmeo”,
tinha com o filho uma ligação siamesa. Tirou, assim, Celso da análise.
DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA
– A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE
Summary
From Esau and Jacob to in Vitro Fertilization – Multiple Births in the
Light of Psychoanalysis
The increasing number of multiple pregnancy in our days is a result of
techniques of fertilization and science evolution. The author gives us a short revision
of psychoanalysis literature about twins.
Sinopsis
De Esaú e Jacob a la Reproducción Asistida – La Gemelaridad a la Luz
de la Psicoanálisis
Debido al aumento del número de gestaciones múltiples en la actualidad,
fruto de la reproducción asistida y de la evolución de la ciencia, la autora hace una
breve revisión de la literatura psicoanalítica al respecto de la gemelaridad e ilustra
con un caso clínico.
Palavras-chave
Gêmeos; Duplo; Complexo fraterno.
Key-words
Twins; Double; Fraternal complex.
Palabras-llave
Gemelos; Duplo; Complejo fraterno.
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
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Rosana Igor Rehfeld
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Neville Symington
Membro Titular da Sociedade
Psicanalítica Britânica; Membro
Titular da Sociedade Psicanalítica
Australiana.
Faz pouco mais de quatro anos
que John Klauber faleceu. Acredito
que ele deu uma contribuição muito
importante para a psicanálise, mas
mesmo assim tenho um sentimento
de que essa contribuição é subestimada e que, de fato, está ameaçada
de desaparecer sem ser conhecida.
Ele pode ser parcialmente responsável por isso, pois era um homem
modesto e não pretendia inovar em
outras bases, da mesma maneira
como fizeram Balint e Winnicott.
Sua contribuição, entretanto, foi naquela área da psicanálise que para
todos os clínicos é a mais importante: a prática clínica da psicanálise.
Por ser um homem profundamente
ponderado, suas inovações técnicas
foram embasadas em uma estrutura
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 159
Neville Symington
John Klauber,
um Clínico
Independente
JOHN KLAUBER,
UM
CLÍNICO INDEPENDENTE
teórica. Quero começar olhando para sua prática e, então, passar para sua
fundamentação teórica e terminar mostrando como as duas estão estreitamente interligadas.
Fui analisado por John Klauber. Cheguei a ele muito doente, num estado de desordem interna e externa, e emergi da análise cerca de sete anos
e meio mais tarde como uma pessoa diferente. Embora tenha contribuído
para esse resultado, sei que sua mediação no processo analítico foi bastante
vital. Durante anos tive momentos ociosos e tentei descobrir aqueles elementos que pareciam decisivos para um resultado terapêutico bem-sucedido. Classifiquei esses elementos em três títulos: ortodoxo, heterodoxo e
neutro.
Pode parecer supérfluo falar sobre o ortodoxo, e recentemente passei a
acreditar que em algumas vezes as questões sobre as quais mais falamos
são aquelas que na realidade praticamos. Assim, desde o início da análise
até seu final, Klauber interpretou a transferência. Muito raramente falou
sobre o que eu estava fazendo para ele, mas procurou pelas suposições
subjacentes o que eu tinha sobre ele. Bem no início da análise, colocou em
palavras como me sentia em relação a ele. Penso que tecnicamente foi extremamente importante que ele não repudiasse minhas suposições sobre
ele, seja pelo seu tom quanto por palavras. De forma bastante simples ele
interpretou as fantasias da transferência. Não dizia que essa era uma forma
incorreta de vê-lo. Durante longo tempo pensei que isso era o que todos os
analistas faziam; que isso era o que significava interpretar a transferência,
embora eu tivesse percebido que não era o que muitos analistas queriam
dizer. Ouvi muitas apresentações nas quais o analista aponta o que o paciente está fazendo para o analista, a maneira como o paciente está tratando
o analista, ou se, para abreviar, for feita uma interpretação de Klauber, o
analista logo aponta para o paciente o erro de seus caminhos e como ele
está percebendo erroneamente a situação. Vou dar um exemplo muito simples do que quero dizer. Em uma apresentação clínica, ouvi um colega que
relatou como seu paciente dizia que ele (o analista) era um freudiano rígido. Ele repudiava essa acusação e apontava o quanto se adaptava e era
160 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 161
Neville Symington
flexível. A versão de Klauber daquilo que poderia ser era observar o que o
paciente sentia sobre ele e fazer uma interpretação que deixasse o paciente
livre para dizer que era um freudiano rígido. Ele não sugeriria ao paciente
que estava percebendo erroneamente a situação. Klauber acreditava que eu
pensava que, se o analista suportasse essas percepções errôneas durante
um período razoável, os impulsos dos quais elas eram derivadas se modificavam. Desse modo, penso que alguém poderia conceituar o método de
Klauber dizendo que ele desempenhava o papel do container para as projeções do paciente na fase inicial da análise, especialmente do modo como
Bion disse que a boa mãe faria para seu bebê. Após um período razoável,
ele favoreceria a desilusão do paciente do mesmo modo como Winnicott
disse que a mãe deve desiludir o seu bebê. No caso de ser mal compreendido quando utilizo a expressão “período razoável”, talvez devesse dizer que
no meu caso, especialmente com as fantasias mais profundas, eu as interpretaria regularmente, mas somente iniciaria a desilusão após cinco ou seis
anos. Acredito que essa sua capacidade de conter uma transferência durante vários anos foi profundamente terapêutica. Creio que esse foi o meu
caso; eu não queria discutir o que seria para todos. Durante meu período
como analista, supervisionando, sendo supervisionado, ouvindo estudos,
escutando apresentações clínicas, eu não ouvi de um analista que ele contivesse a transferência como Klauber fez comigo, nem ouvi uma apresentação na qual um analista interpretou a transferência de modo tão consistente
como o fez Klauber.
Na interpretação da transferência, ele deu atenção especial à transferência negativa. Novamente, não apontou minhas atitudes negativas em
relação a ele, mas interpretou de forma consistente as imagens negativas
como direcionadas a ele. Aquilo que freqüentemente é descrito como a
interpretação da transferência negativa é uma condenação velada dos impulsos hostis ou agressivos para com o analista. Existe uma grande diferença entre o analista que diz, depois que uma paciente falou depreciativamente de alguém chamado John Smith, “Você está zombando de mim de
modo velado”, e o analista que diz “Penso que os sentimentos que você
JOHN KLAUBER,
UM
CLÍNICO INDEPENDENTE
está expressando para com John Smith se referem, na realidade, a mim”. A
primeira afirmação pode facilmente ser sentida pelo paciente como significando: “você não deveria estar zombando de mim”, ou “é injusto de sua
parte estar zombando de mim”, ao passo que no segundo caso o paciente
pode sentir que esses impulsos hostis podem ser recebidos pelo analista.
Meu sentimento completo sobre Klauber foi de que eu havia sido recebido
totalmente por ele. Penso que é provavelmente significativo nessa conexão
que faço de não me lembrar de ele ter alguma vez feito uma interpretação
do tipo “Há uma parte de você”. Havia um sentido definido do todo de ser
recebido totalmente por ele. Nunca tive a sensação de estar sendo mandado
embora. Somente me lembro de uma vez em que ele foi momentaneamente
defensivo. Interpretar a transferência negativa significa, segundo Klauber,
que o analista aceite a concepção equivocada do paciente. Isso é diferente
de ser apontado de tal maneira que fique claro que o analista não a está
recebendo.
Esse é o ponto principal que gostaria de enfatizar sobre a ortodoxia de
Klauber. Ele sempre se manteve dentro do tempo de cinqüenta minutos
para a sessão, e penso que nunca passou do tempo. Ocasionalmente mudava o horário de uma sessão e raramente cancelava uma. Sempre houve um
sentido de confiabilidade nele. Porém, enfatizava os elementos da nãotransferência na organização analítica. Acreditava que o paciente era capaz
de escrutinar, com considerável precisão, os fatores da personalidade verdadeira do analista. No estudo “O Psicanalista como Pessoa”, ele diz:
Quando o paciente visita o psicanalista para uma consulta, não é somente o psicanalista que faz uma avaliação do paciente – o paciente
também tenta fazer uma avaliação do analista. Embora a transferência,
que começa a se formar antes da consulta, exerça um papel importante
na reação posterior do paciente, a capacidade de seu ego para avaliar
não é paralisada, como a análise posterior tende a revelar.
Assim como o psicanalista inicia o relatório sobre um paciente descrevendo sua aparência, como ele se movimenta, se veste, o paciente também reúne informações sobre o psicanalista – sua capacidade para res162 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Nessa ligação, ele pensou que, às vezes, seria próprio que um analista
reconhecesse a precisão da percepção de um paciente. Uma ocasião disse a
ele que imaginava que ele tinha ido para uma escola pública, mas que de
alguma maneira não podia colocá-lo como alguém que tivesse estudado
em um internato, e ele respondeu bem-humorado que eu não pensasse que
ele parecia ser asceta o bastante, devido aos rigores de um internato. Então,
ele disse que havia ido a St. Paul, uma das poucas escolas públicas que não
é internato. Como acreditava que havia um elemento de não-transferência
na relação psicanalítica, ele não pensava que toda a comunicação tinha de
ter uma interpretação e, no seu estudo “Elementos da Relação Psicanalítica
e suas Implicações Terapêuticas”, diz: “Algumas vezes pagamos um preço
muito alto pela sofisticação de nossas técnicas, como por exemplo quando
respondermos somente com uma interpretação?”
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 163
Neville Symington
ponder, seus gostos e atitudes pessoais como, por exemplo, pelos quadros nas paredes. Alguns psicanalistas parecem considerar isso impróprio e tentam limitar essa efetividade, estabelecendo um ambiente
“neutro”. Acredito que a segunda atitude não dá suficiente crédito à
inteligência humana e ao inconsciente.
Uma mulher, indubitavelmente sofrendo de tendências paranóicas, deu
como fundamento para sua recusa em tratar-se com um psicanalista
particular o fato de que ela jamais poderia ser analisada por alguém
que tivesse decorado seu consultório com tanto mau gosto. A própria
paciente possuía uma sensibilidade considerável em relação às artes
visuais que tinham sido demonstradas em seu discernimento para as
compras.
Um psicanalista relatou essa decisão como a evidência mais importante de irracionalidade do paciente. Um segundo pensou que o
discernimento que marcava o seu caráter, em alguns aspectos aguçado
por suas tendências paranóicas, a fizeram entender imediatamente que
um psicanalista com tal gosto para quadros somente a duras penas adquiriria afinidade suficiente com sua própria personalidade para entender isso.
JOHN KLAUBER,
UM
CLÍNICO INDEPENDENTE
Muito freqüentemente ele respondia a uma comunicação minha com
uma resposta que não era uma interpretação, e essas ocupavam três diferentes classes. Na primeira classe, no momento, não parecia uma interpretação, mas na realidade o era. A segunda era uma resposta afirmando emocionalmente o momento em que eu tinha dado um passo no desenvolvimento, e a última era uma discussão direta sobre algo. Darei um exemplo
da primeira aula, e então vou me referir a um exemplo meu, para então
passar aos próximos dois. Durante essa fase da análise, eu estava trabalhando meio turno na Prisão de Grendon, além de Aylesbury, e passava
uma ou duas noites por semana no albergue.
Assim, por exemplo, eu teria análise em uma manhã de quarta-feira,
depois de ver os meus pacientes de formação, e então me dirigiria para
Grendon, ficava lá durante a noite e retornava na quinta-feira para ver meus
dois casos e ir à análise. Numa ocasião, ele estava apresentando um estudo
na Sociedade, a respeito do qual eu não havia feito nenhuma menção, e ele
chamou minha atenção para o meu silêncio. Eu me justifiquei dizendo que
havia passado a noite fora e que, de qualquer maneira, era uma longa distância a percorrer somente para ouvir uma palestra.
Ele simplesmente disse: “Alguns analisandos dirigiriam de mais longe do que isso para ouvir seus analistas apresentarem um estudo”, e riu-se
bem humorado. Estava claro que era uma interpretação, embora pensasse
que ela somente penetrara algum tempo mais tarde. Penso que o estilo
ritualístico de interpretação era algo que ele evitava tanto quanto podia.
Para com isso sinto uma total compreensão. Novamente tenho um sentimento tão óbvio e, ainda assim, ouvindo apresentações, sou atingido pelo
estilo ritualístico das interpretações, e penso que a dificuldade se dá pelo
fato de, por causa dessa forma ritual, muitas interpretações não estabelecerem contato emocional.
Gostaria somente de mencionar um exemplo que ocorreu durante o
verão com um paciente que estava terminando sua análise no final de julho.
Ele optou por antecipar o final do tratamento não continuar comigo até
uma data posterior, quando estava encerrando com todos meus pacientes
164 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 165
Neville Symington
em preparação para emigração. Um fator para terminar antes de minha partida era que ele sentia que seria um tempo difícil para mim, de dizer adeus
a todos os meus pacientes, e ele teve momentos de pânico, quando pensava
que ele teria de me apoiar, ou seja, animar o analista triste e deprimido.
Quase no final da sessão, eu disse: “Mas, na realidade, eu não preciso de
seu apoio”. A partir de experiências anteriores, pensei que isso teria o efeito que realmente teve. Quando ele voltou no dia seguinte, disse que havia
percebido isso desde o início, e ele deve ter pensado profundamente que eu
precisaria que ele me animasse em minha depressão. Ele continuou dizendo que tudo isso havia sido estabelecido em uma sucessão, e que eu dissera, no dia anterior, que não precisaria dele. Minha afirmação era uma interpretação. Eu também tenho certeza de que, se eu tivesse dito a ele “Você
sente que eu preciso de seu apoio”, isso não teria penetrado.
Com aquele paciente havia duas razões para isso. Primeiro, se eu tivesse posto isso de forma estilizada, ele sentiria que eu estava favorecendo
a “conversa analítica”. E pensaria que eu estava mais preocupado em ser
obediente para com uma autoridade do que em preocupar-me com ele. Em
segundo lugar, penso que a fantasia de que preciso de seu apoio para minha
depressão estava tão arraigada, que se eu dissesse: “Você sente que preciso
de seu apoio”, imagino que ele teria ouvido somente as palavras “eu preciso de seu apoio”; se opor à fantasia com um “Não” definitivo fez com que
ficasse disponível para alcançar a consciência. Em meu próprio caso, a
risada de Klauber comunicava claramente o sentido de que ele dava os
ombros para a velha e rabugenta natureza humana, mas se sentia razoavelmente em casa com isso e compartilhava da mesma humanidade maculada.
Klauber era muito íntegro, mas apreciava encontrar a corrupção em classes
altas, e isso era agradável para mim, que fui educado como um católico.
O segundo tipo de comunicação era de afirmação emocional. Como se
eu tivesse saído de uma passagem para um novo sentido emocional de coisas que ele invariavelmente afirmava, e acredito que isso era muito
terapêutico. Era o equivalente da mãe que sorri de forma encorajadora para
o seu bebê quando ele é bem-sucedido num novo esforço. Infelizmente,
JOHN KLAUBER,
UM
CLÍNICO INDEPENDENTE
não posso pensar num exemplo preciso. Sempre teria a sua forma, acrescentando seus próprios comentários, e muito freqüentemente relacionando-os a atitudes sociais. Agora, quero me voltar para o terceiro tipo de
resposta, que era quando ele falava diretamente comigo. Desejo gastar algum tempo nisso, porque penso que era o aspecto mais controverso da sua
técnica.
Klauber freqüentemente falava sobre aspectos da vida, seja a discussão sobre um livro, uma pintura, uma notícia ou uma atitude religiosa ou
social. Ele sabia que fazia isso. Quando o desafiei a respeito do que dizia,
ele disse que sabia que havia falado muito mais sobre assuntos gerais do
que a maioria dos bons analistas. Penso que vale a pena discutir e pensar
sobre isso. A conversa sobre muitos tópicos de interesse psicológico e social era claramente consoante com a sua natureza, mas ele também acreditava desempenhar um papel importante no processo psicanalítico. Um aspecto está bastante claro a respeito disso: ele acreditava que a transferência
era um processo tão forte que não se romperia pelos tipos de trocas que
estou descrevendo. Lembro-me de uma ocasião em que senti que um comentário discursivo foi insensível. Com exceção de um paciente de
psicoterapia, nunca tive esse tipo de “conversa” com meus pacientes no
mesmo grau que Klauber teve comigo, mas se me pergunto o porquê, tenho
um sentimento furtivo de que se devia à falta de coragem de minha parte,
pois, quando reflito sobre minha análise com Klauber, meu sentimento é de
que essas conversas eram terapêuticas.
Não quero dizer que eram terapêuticas em si próprias, mas pertencentes a um padrão, e eram a parte essencial desse padrão. Primeiramente,
desejo dar o meu significado à experiência e, então, discutir o
embasamento teórico que cercava esse elemento discursivo da análise de
Klauber.
Até agora tenho falado como se essas incursões discursivas fossem
totalmente desligadas do trabalho interpretativo que estava em andamento,
e se eu dei essa impressão, foi equivocada. Normalmente eram, embora
não sempre, ligadas ao intercâmbio interpretativo. Eu sempre derivei mui166 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 167
Neville Symington
ta autocompreensão dos processos de leitura, e meu próprio desenvolvimento emocional foi consideravelmente auxiliado por ela. Quando fazia
análise, muito material meu entrou em forma de diálogo com o autor de
qualquer livro que eu estivesse lendo. Em uma ocasião, estava lendo “Servidão Humana”, de Somerset Maugham, e não conseguia lembrar-me do
ponto específico que cristalizou dentro de mim. Pode ter sido uma satisfação narcisista, ao descobrir a declaração de Maugham de que todos os homens fracos enfatizam de forma exagerada a não mudança da mente das
pessoas. Seja lá o que for, lembro-me de Klauber dizer que considerava
“Servidão Humana” o maior livro de Maugham. Penso que continuei falando muito sobre “A Lua e Seis Vinténs” e, se me lembro disso corretamente, penso que ele considerava “Servidão Humana” acima do restante
de seus livros; embora eu também pensasse se tratar de um grande livro,
considerava ainda que “A Lua e Seis Vinténs”, “Cakes and Ale”, “The
Summing-Up” e alguns de seus contos tinham o mesmo valor. Acredito
que essas conversas tiveram o efeito de unir a psicanálise e as interpretações que ele fazia no entrelaçamento da vida, de forma que a vida e a psicanálise se interpenetrassem. Depois da análise de Klauber, eu, com a maior
dificuldade, pude colocar a psicanálise em um compartimento mental e o
resto da vida em outro. Essas conversas eram um tipo de dupla livre-associação-interação, com o insight psicanalítico encaixado nas minhas próprias relações e sistema de valores. Penso que Klauber também confiava
profundamente no processo psicanalítico e que essas conversas foram geradas devido a isso.
Nos últimos anos de sua vida, Klauber dizia com bastante freqüência
em Reuniões Científicas que, ao fazer interpretações, o analista precisava
lembrar-se do dia em que o paciente deixou o consultório pela última vez.
Eu lamento nunca ter-lhe perguntado como esse fator influenciava especificamente a estrutura de seu trabalho interpretativo. Mas minhas conjeturas são as seguintes: ele acreditava que o objetivo da psicanálise era o de
promover o desenvolvimento da própria individualidade, da criatividade e
da atitude de vida do paciente. Ele também era consciente de que o proce-
JOHN KLAUBER,
UM
CLÍNICO INDEPENDENTE
dimento psicanalítico era o que influenciava sobremaneira o paciente, e
que era impossível para este não incorporar algumas das atitudes próprias
do analista. Em especial, ele pensava que esse era o caso para o qual o
paciente era um candidato à análise, porque o analisado estaria seguindo a
carreira de seu mentor e assumindo o mesmo papel em relação a seus pacientes, da mesma maneira que o analista em formação tem em relação a
ele ou ela.
Por isso ele via como um perigo a identificação de um paciente de
psicanálise com a forma particular pela qual ele ou ela haviam experimentado isso. Acreditava que, embora não pudesse existir sem o analista, o
processo de psicanálise deveria ser diferenciado das qualidades particulares que inevitavelmente recebe de cada analista individual. Portanto, até o
máximo possível, as necessidades dos pacientes devem ser auxiliadas, para
que possam diferenciar entre o processo de análise que está sendo fornecido através da ação de muitos analistas com atitudes discrepantes, e o tom
particular que está recebendo deste analista em particular. Acredito que era
por isso que Klauber favorecia alguma compreensão pelo paciente do analista como uma pessoa com seus próprios preconceitos e atitudes.
Minha própria experiência foi a de que essa sua revelação surtiu alguns efeitos benéficos sobre mim. Penso que me ajudou, até certo ponto, a
separar a análise de meu próprio analista. O que eu disse até aqui pode não
parecer assim, mas na realidade eu discordava e ainda discordo consideravelmente dele a respeito de certas atitudes em termos de técnica psicanalítica (por exemplo: a sua não utilização da interpretação “parte de você”) e
de atitudes mais gerais (penso que ele estava mais sujeito a pressões do que
lhe parecia necessário). Outro fruto muito importante dessas conversas foi
o fato de eu pensar que podia ver algumas áreas, as quais eram improváveis
de ele analisar bem. Posso pensar em uma área que não foi de modo algum
analisada e eu sentia, daquilo que conhecia de seu caráter, que não era provável que ele tivesse muito êxito nessa tentativa. Considero tal questão
verdadeira para todos os analistas, mas penso que suas conversas significavam que isso não estava escondido e, portanto, era mais verdadeiro. Para
168 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Para reduzir a divisão entre o analista da fantasia e o analista preso aos
detalhes pelo ego, deve-se buscar constantemente facilitar a integração
das duas imagens pela interpretação das percepções repelidas da realidade do paciente e, às vezes, na minha opinião, pelo reconhecimento
de sua exatidão pelo analista.
Klauber acreditava ser necessário permitir que aspectos reais do caráter do analista emergissem no tratamento, especialmente no seu final. Diz
isso de forma muito óbvia em seu estudo “Uma Forma Especial de TransSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 169
Neville Symington
Klauber foi a verdade que curou. Na introdução de seu livro “Dificuldades
no Encontro Analítico”, ele diz: “Acredito que a verdade é o grande corretivo, através do qual, com a ajuda do analista, os pacientes se curam”.
Suponho que todo o analista tem áreas que considera que devam ser
analisadas em especial. Klauber foi especialmente resoluto ao analisar a
paranóia e a concepção paranóica. Penso que ele achava que grupos paranóicos eram especialmente prejudiciais à vida social, que ele acreditava
que a paranóia sempre se mascarou debaixo de uma fachada de idealização, e ele lidou com tendências de idealização em todas as frentes. É lógico
que reconheceu que alguma idealização é necessária à vida, e que as ilusões e os sonhos de um homem são fator motivador poderoso, mas, se ele
detectasse alguma crença na imagem idealizada, ele a atacava. Em especial, ele atacou qualquer idealização de sua pessoa ou da psicanálise. Aqui
novamente está o paradoxo: ele acreditava profundamente na psicanálise.
Mas acredito que essas “conversas” e admissões sobre si contribuíram consideravelmente para a redução da paranóia. Se o analista conspira para a
imagem de parte-objeto de seu paciente, ele conspira para as fantasias paranóicas do paciente. Fantasias paranóicas são a cunhagem de uma estrutura de relação parte-objeto. Se o analista é uma parte para o paciente, as
fantasias paranóicas permanecem, e somos coniventes com elas. Por isso
Klauber acreditava que as percepções reais, mas negadas do analista, deveriam ser interpretadas. No estudo “Elementos da Relação Psicanalítica e
suas Implicações Terapêuticas”, ele diz:
JOHN KLAUBER,
UM
CLÍNICO INDEPENDENTE
ferência na Depressão Neurótica”, e eu penso que vale a pena citá-lo por
inteiro:
A liberação da agressão no contexto amoroso resulta em uma diminuição da distância entre as auto-imagens e as objeto-imagens. As objetoimagens já não parecem tão inacessíveis. Isso permite que o paciente
se sinta mais livre para avaliar o caráter do analista. Ele procura as
suas fraquezas e, desse modo, procura testar a realidade de suas autoimagens contra a realidade ou, de outra forma, das objeto-imagens
onipotentes. Portanto, é necessário para o teste da realidade e para a
cura do paciente deprimido que esse processo não seja reprimido. Ele
precisa confiar no seu teste da realidade e ter permissão para ratificar
tais fraquezas reais quanto à competência e personalidade do analista,
conforme pôde observar. Somente se ele puder ver que o analista está
sinceramente preparado para as reconhecer, e, caso tenha de confrontar com elas, admiti-las, poderá ganhar a confiança necessária para
tolerar as partes degradadas da sua própria personalidade.
No caso característico, o paciente trará diretamente essa agressão e
confrontará o analista com muitas de suas dificuldades mais dolorosas.
Em minha opinião, é um erro interpretar tais confrontações, em termos
de transferência, sem primeiro reconhecer a possibilidade da realidade. Isso pode ser sumamente doloroso, e acredito que a maioria dos
analistas terá se deparado com tais experiências.
Ao mesmo tempo em que o paciente traz abertamente algumas das
fraquezas do analista, ele também traz outras de forma dissimulada. É essencial que o analista observe as implicações escondidas, dolorosas para
ele na transferência do paciente, e não deve hesitar em interpretá-las. Novamente, isso não será meramente doloroso, mas até certo ponto impossível, e o analista também deve evitar o perigo de uma confissão masoquista.
Mas à medida que ele as reconhecer, uma interpretação corajosa dos pensamentos secretos do paciente se faz necessária, se o paciente tiver que deixar o analista com uma confiança que o faça buscar suas ambições, apesar
de suas deficiências.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 171
Neville Symington
Nesse contexto fica claro que Klauber não acreditava que qualquer
analista era capaz de analisar tudo e complementa que uma segunda análise
sempre revela coisas que o paciente não sentia, ou que não podia dizer ao
analista anterior.
Antes de deixar essa área por mim denominada heterodoxa, darei apenas alguns exemplos. Eu nasci e me criei na cidade do Porto, em Portugal,
e meu pai, tios e a maioria dos amigos da família trabalhavam no comércio
de vinho do Porto. No início de minha análise, falei bastante sobre o Porto.
Um dia, disse a ele que me parecia que ele era bastante parcial quanto ao
Porto, o que ele reconheceu entusiasticamente. Em outra ocasião, conteilhe que meu pai sempre gostou de piqueniques no estilo português: isto é,
com mesas, cadeiras etc., e ele disse imediatamente que era assim que um
piquenique deveria ser. Ele também era bastante claro a respeito de certos
aspectos de convicções religiosas, e assim por diante. Também falou muito
sobre uma pintura de Lhote que estava em sua parede. Minha impressão
era a de que tudo isso não diminuía as fantasias de transferência de forma
alguma, e na realidade penso que o autorizei a interpretar diferenciações
mais sutis da transferência, o que não ocorreria de outra forma. Ele tinha,
porém, uma falha que eu penso séria: às vezes ele não continha uma ansiedade e reagia. Penso que isso era melhor do que adornar a reação com o
traje interpretativo, mas conter a ansiedade teria sido melhor. Não acredito
que essa falha sua estivesse necessariamente ligada às suas “conversações”, mas penso que se originavam de alguma outra dificuldade sua.
Uma pergunta válida sobre esse aspecto de sua técnica seria: Como o
analista decide, face à comunicação de um paciente, se deve interpretar ou
responder de algum outro modo? A única resposta é de que isso depende
inteiramente da percepção-apreciação do próprio analista. A percepçãoapreciação é a única coisa que o analista tem para confiar. Na falta disso,
são invocados regras e princípios. Como você pode educar alguém na percepção-apreciação? Um superego forte enfraquece a percepção-apreciação.
Penso que um sentimento de reciprocidade auxilia a dar origem à percepção-apreciação. Apegar-se a regras ou teorias são manifestações daquilo
JOHN KLAUBER,
UM
CLÍNICO INDEPENDENTE
que penso que Bion denominou de elementos beta. A capacidade de utilizar a percepção-apreciação é uma manifestação da função alfa. Entendo
que, freqüentemente, analistas e supervisores intensificam o superego interior e ajudam a enfraquecer a percepção-apreciação.
Quero mencionar aqueles aspectos do estilo de Klauber, os quais penso serem terapeuticamente benéficos. Só vou me referir a três coisas. A
primeira era sua absoluta imparcialidade, e isso surgia em todos os seus
relacionamentos. A segunda era que ele não fazia uma “grande” interpretação até que aquilo que ele desejava dizer estivesse claramente cristalizado.
Não era possível persuadi-lo de alguma coisa. Se ele não tivesse cristalizado internamente, seria desperdício de tempo. A terceira coisa era sua convicção de que a verdade era suprema e que a psicanálise deveria servir à
verdade, ou seria nada; não que ele detivesse a verdade, mas servia a ela.
Em tudo o que tenho dito, tenho transmitido alguma coisa de minha
experiência com ele e conjeturas sobre por que ele analisava daquela maneira. Desejo agora discorrer sobre aquilo que tenho dito e, em especial,
sobre suas “conversações” no contexto de sua teoria de análise como um
processo de pranto e des-traumatização. Na realidade, Klauber diz que um
trauma ocorre quando um paciente entra em análise: quando ele deita no
sofá e deixa a presença do analista longe de seus olhos, perdendo o contato
com a resposta gestual e facial do analista, e se volta para as suas imagens
internas arcaicas e é subjugado pelo analista da fantasia. Klauber insiste
que a primeira exigência de técnica analítica é facilitar a capacidade do
paciente de comunicar seus sentimentos e pensamentos de maneira tão
completa quanto possível. Klauber pensava que pensamentos secretos
freqüentemente são abrigados pelo paciente, e que isso explica a freqüente
e violenta revolta das pessoas para com a análise algum tempo depois que
terminou. Se o paciente também estiver dominado pelo analista da fantasia, bloqueará a capacidade do paciente de comunicar sentimentos e pensamentos. Klauber pensava que a qualidade traumática da situação analítica
não podia ser mitigada somente através da interpretação. Penso que aqui
Klauber estava tentando encorajar os analistas a não se comportarem de
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Neville Symington
maneira inusitada, mas a serem tão naturais quanto possível. Se você caminhar por um corredor em Tavistock e olhar para os consultórios, você imediatamente detectará aqueles analistas ou terapeutas que estão esperando
por um paciente. Há uma rigidez na postura e na atitude. Isso só pode ter o
efeito de endurecer também a atitude do paciente. Klauber acreditava que o
trauma do paciente poderia ser aliviado pela receptividade e pela interpretação. O paciente somente pode prantear efetivamente seu analista se puder
avaliar seus reais atributos e lentamente separar essas fantasias que projetou no analista de suas reais percepções a respeito do mesmo. Quando o
paciente vivenciou a experiência do analista que contém essas projeções,
ele poderá reintegrá-la de forma modificada. Ele pode deixar o analista
como um homem mais ou menos comum e administrar suas próprias fantasias no futuro. Quando penso sobre minha experiência de ter sido analisado
por Klauber, e a diferença entre o antes e o depois, penso essencialmente
que parece que tenho dentro de mim um tipo de amortecedor que pode lidar
com uma maior quantidade de ansiedade do que antes. Penso que o método
de Klauber permite que o paciente chore pelas ilusões e fantasias em face
de um analista realmente bom. Dessa maneira, o processo de destraumatização e de luto são partes do mesmo processo. Na realidade, o
paciente normalmente resiste de forma muito violenta ao processo através
do qual o analista procura desmamar o paciente de longas e estimadas ilusões e fantasias. No início da análise, o paciente mergulha profundamente
em um mundo narcisista, e o analista retira-o através de sua receptividade e
interpretações. Nesse aspecto há uma semelhança entre a visão de Klauber
e a de Fairbairn, expressa em seu estudo de 1958, no qual afirma que faz
parte da tarefa do analista colidir com o mundo interior narcisista. Em seus
últimos anos, Klauber começou a questionar a necessidade do sofá. Novamente, penso que isso fazia parte da des-traumatização e de forçar mais
ativamente o paciente a chorar por suas ilusões. Ele não era a favor de
análises muito longas.
Quero enfatizar três coisas. Posso ter dado a impressão de que Klauber
suavizou a vanguarda da análise. Não foi isso. Seu objetivo era falar a ver-
JOHN KLAUBER,
UM
CLÍNICO INDEPENDENTE
dade, e esse era seu guia central. Nunca deixou o sentimentalismo perpassar as coisas, muitas vezes terríveis, que tinha que dizer. Acredito que,
como ele sabia que teria coisas muito dolorosas a dizer, procurava assegurar um ambiente analítico apropriado para que isso fosse emocionalmente
recebido. Em segundo lugar, o foco na transferência, juntamente com sua
receptividade (da qual as “conversações” faziam parte), trouxe uma experiência muito rica, e entendo que, no final das contas, esse foi o fator transformador. Por último, percebo que mudei mais após terminar a análise do
que durante, e penso que esse é um testemunho de eficácia de seu método,
orientado para o dia quando o paciente deixasse o consultório pela última
vez.
Estabelecer contato emocional era mais importante do que fazer interpretações. Você não pode dizer a um aprendiz como estabelecer contato
emocional. Pode-se imaginar a cena na qual um aprendiz pergunta para o
analista experiente como estabelecer contato com Joseph, paciente desse
analista. O analista explica ao aprendiz o que dizer e fazer, e os olhos deste
se iluminam com um flash de entendimento. Ele vai embora satisfeito, pois
parece que a coisa funciona com Joseph. Mas ao tentar o mesmo com Mary,
as coisas ficam piores. Assim, ele corre até outro supervisor, e este diz:
“Diga isso a Mary”, e, que maravilha, isso funciona tão bem, que ele tenta
com Tom, e Tom cai em uma depressão catastrófica e abandona a análise e
começa a beber. Penso que vocês entenderam minha idéia. Travar um contato emocional só e possível quando vindo de um só lugar: do centro criativo de cada indivíduo. Por isso, Klauber enfatizava a espontaneidade. A
espontaneidade, para diferençar de impulsividade, emerge do ego livre dos
ditames do superego. Claro que dizer que a espontaneidade é essencial
para a análise é o mesmo que um terrível obstáculo para qualquer comissão
envolvida na formação de um estudante, porque, por definição, é algo que
está totalmente fora de seu controle; é algo para o qual não se pode legislar.
Que escândalo para uma comissão cujo amor-próprio está tão ligado ao
estabelecimento de ordens para os outros!
A espontaneidade é uma qualidade essencial em um analista, e
174 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 175
Neville Symington
Klauber menciona que, às vezes, quando ele estava começando a interpretar, uma outra se interpunha. Ele recomendaria seguir aquela que surgia no
último momento. O próprio ato de falar pode, muitas vezes, evocar um
insight na mente do analista. É por isso que Klauber acreditava numa fala
mais livre com o paciente do que aquela que seria habitual em uma análise
clássica. Ele pensou, seguindo Ferenczi, que, se o analista permanecer
muito separado, ele freqüentemente repetirá o trauma original – o de uma
criança com um pai muito distante. Se o analista fizer isso, ele estará
“atuando dentro” e assumindo o papel do pai no trauma original. Ele pensava que o início de uma análise era um trauma para o paciente, e que o
analista des-traumatizava o paciente através da interpretação, permitindo
que o paciente fizesse identificações parciais com o analista. Ele acreditava na espontaneidade do analista e na auto-expressão máxima do paciente.
Por exemplo, às vezes, ocorre que um paciente que alcançou um certo desenvolvimento se sinta brabo e hostil para com aqueles pelos quais foi
escravizado, e também que esse paciente exiba uma extravagância onipotente, surgida de uma liberdade recentemente encontrada. Klauber acreditava ser melhor deixar essa auto-expressão correr seu curso normal do que
saltar sobre ela. Assim, acreditava que a onipotência se tornaria mais bem
integrada na personalidade. Era absolutamente contra forçar seu ponto de
vista para com o paciente. Ele não pensava que necessariamente sabia qual
era a melhor maneira de viver a vida. Certa ocasião, um jovem analista
começou a ver um paciente que, anteriormente, fizera terapia em várias
ocasiões. A história do paciente mostrou que era provável que ele não ficaria muito tempo em tratamento. O analista disse: “Ele não está levando o
seu tratamento a sério”; Klauber respondeu: “Ele provavelmente abandonará novamente o tratamento, voltará a ele, e abandonará novamente”. O
analista jovem disse: “Mas você não pensa que essa atitude é errada?”;
Klauber respondeu: “Essa é a vida dele, não é a sua”.
É nesse contexto de espontaneidade e liberdade que o contato emocional mais profundo acontece, porque abre as áreas de devaneio no analista e
o paciente estimula isso através de sua própria expressão livre. A rigidez é
JOHN KLAUBER,
UM
CLÍNICO INDEPENDENTE
sempre uma defesa contra uma área psicótica dentro da personalidade, e
significa que essa área não está disponível para estabelecer contato com o
paciente. Freud recomendou “atenção flutuante livre”; Bion recomendou o
“estado de devaneio”; e Klauber recomendou a espontaneidade, que é quase um sinônimo. Eu digo “quase”, porque penso que a troca na conversação está incluída na palavra “espontaneidade”, e que está ausente nas outras duas. Espontaneidade era tão importante a Klauber, que ele pensava
ser melhor para o analista dar expressão às coisas do que se retrair. Isso o
levou a falar com seus pacientes mais do que era necessário. Falava sobre
vários tópicos que não eram estritamente necessários. Em si mesmo, isso
não era prejudicial, mas, às vezes, interferia na continuidade do momento
analítico. Desse modo, ele também reagia muito à ativação não-verbal do
paciente sobre o analista, em vez de suportá-la e então analisá-la. Acredito
que ele ampliou demais a estrutura necessária para a espontaneidade, mas
estou seguro de que foi um erro no lado direito da linha que divide a rigidez
e a liberdade de ação.
Para estabelecer contato emocional com o paciente, é necessário ser
tão aberto quanto possível. Se um paciente intuísse corretamente alguma
coisa sobre o analista, ele acreditava que, reconhecendo-a, ajudaria a reparar a divisão na mente do paciente entre o analista da fantasia e o analista
real. Caso recusasse isso pelo seu tom de voz, pareceria estar traindo um
pré-conceito. Dessa maneira, um paciente poderia sentir que seus ataques
podiam ser realmente sustentados pelo analista. Fica tão claro em suas
apresentações que os analistas não são capazes de administrar ataques
destrutivos de seus pacientes, especialmente quando eles vêm na forma de
identificação projetiva considerável.
Essa falta de defensiva, que é tão essencial para que o contato emocional seja estabelecido, pode permitir que o analista “esteja” com o paciente.
Os pacientes sentem que há uma reciprocidade no trabalho, e isso fortalece
o próprio ego do paciente e aumenta sua auto-estima.
Klauber acreditava que as interpretações eram cruciais. Elas consolidavam o processo e colocavam dentro da personalidade uma boa
176 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 177
Neville Symington
estruatura. Uma vez acontecido o insight, a personalidade estrutura-se de
maneira diferente, não se podendo retornar ao estado anterior das coisas.
Klauber pensava que somente teriam um verdadeiro significado e seriam
efetivas se fossem a expressão de um acontecimento emocional alcançado.
Agora a pergunta é “Por que Klauber não criou uma teoria para
estruturar seus conceitos?” Na sua quinta e inacabada conferência, ele diz:
“Eu esboçarei superficial e tendenciosamente algumas das tendências no
desenvolvimento de nossa teoria, indicando o impasse ao qual elas conduziram”.
Ele estava insatisfeito com a teoria clássica recebida, e permanece um
ponto de interrogação sobre se ele teria tentado criar uma teoria nas suas
conferências posteriores. De alguma maneira, duvido disso. Ele era crítico
da teoria e da técnica recebidas. Pensava que era demasiado reducionista.
Pensava não ter dado importância suficiente aos elementos pessoais na ligação entre analista e paciente, e que o centralismo do contato emocional
não tinha, teoricamente, seu próprio lugar. Então, por que ele não forjou
uma nova teoria? A resposta para essa pergunta deve estar em algum elemento de sua personalidade.
Em cada indivíduo existe uma luta entre o indivíduo e o coletivo,
como enfatizou Jung. John Klauber sentia que podia ser espontâneo com
segurança, contanto que respeitasse a sociedade da qual ele era parte e sua
voz interior. Era muito consciente desses seus dois lados e expressou isso
numa série de ocasiões. Acreditava profundamente na importância de escutar a luz interior e, certa feita, disse que pensava que aqueles que tiveram
uma educação Quaker tinham potencial para serem bons psicoterapeutas;
por outro lado, respeitava o grupo, o coletivo. Isso se manifestou na exagerada admiração pelo gênio de Freud. Uma vez, disse que nós, analistas,
estamos todos trabalhando sob a sombra de um gênio. Parece que se opunha a adulterar as teorias do fundador da psicanálise. Ele reconhecia os
enormes avanços ocorridos desde Freud, mas pensava que ninguém havia
proposto uma substituição plausível para a sua metapsicologia, e não gostava das tentativas de alterá-la. Em uma ocasião, o Dr. Denis Duncan apre-
JOHN KLAUBER,
UM
CLÍNICO INDEPENDENTE
sentou um estudo em uma reunião científica na Sociedade Britânica, no
qual tentava moldar novamente a teoria dentro da forma do conhecimento
intersubjetivo, sabendo que Klauber o criticara por estar “remendando a
teoria”. Ele não gostava do livro de Ellenburger sobre o Inconsciente, porque pensava que degradava injustamente Freud. Suspeito que ele achava
que nenhum de nós, comuns mortais, poderia alcançar as profundezas da
mente de Freud e, por isso, era um engano “remendar” sua teoria. Era como
se sentisse que era melhor para todos nós aceitarmos a herança que Freud
nos deixou, até que alguém de sua estatura surgisse. Klauber se conhecia
bem, o que significa que conhecia suas limitações. Estava insatisfeito com
a teoria e a técnica às quais estava ligado. Criticava vigorosamente isso,
mas parece que temia mudar a teoria. Estava preparado para conduzir o seu
approach pessoal junto aos pacientes e justificar sua posição. Talvez é por
isso que não estava disposto a fundar uma nova escola teórica dentro da
psicanálise. Nisso ele se assemelhava a Ferenczi, a quem admirava, e também a Balint e Winnicott. Nisso ele era o epítome do Grupo Independente
de analistas dentro da Sociedade britânica. Os sócios desse grupo são contra fundar escolas.
Freud se sentiu traído quando Jung discordou de uma das doutrinas
centrais de sua teoria. De um modo semelhante, Melanie Klein se sentiu
traída por Paula Heimann. Isso só pode significar que a teoria é sentida
como a sua criação, e criticá-la é um ataque pessoal. Eles sentem-se tão
suscetíveis quanto Miguel Ângelo, quando um dos cardeais criticou suas
figuras nuas na cena do julgamento na Capela Cistina. Mas há um elemento adicional naquele Freud que quis moldar a atitude mental de seus seguidores de acordo com seus próprios conceitos, e sob esse ângulo Melanie
Klein fez o mesmo. Agora talvez possamos entender algo do dilema de
Klauber. Se ele forjasse uma nova teoria, ele iria contra um de seus próprios princípios mais profundos: é um bem para os indivíduos acharem a
sua própria expressão pessoal livre. Com tal visão, como você pode querer
forjar os outros segundo sua própria imagem e semelhança? Esse é o dilema da pessoa que abraça a liberdade de forma profunda. Esse foi o dilema
178 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Comentário
Penso que dois dos princípios de mais valor de Klauber que eu guardei
foi seu respeito instintivo pela liberdade do indivíduo e seu dictum não
declarado que o primeiro trabalho do analista é o de estabelecer contato
emocional com o paciente. Eu parafrasearia a última para: “estabelecer
uma relação com o paciente”. Digo isso porque penso que “estabelecer
uma relação” ou “formar uma amizade” não é uma capacidade que todos
têm. Essa habilidade para a comunicação é formada muito cedo na infância, mas freqüentemente não cria raízes. Alguns psicanalistas e
psicoterapeutas sofrem esse dano, e “fazer uma interpretação” se torna um
mecanismo compensatório para substituir a inabilidade para estabelecer
uma relação.
Assim, olhando para trás, vinte anos após a morte de Klauber e
dezesseis anos após este estudo, minha conclusão é que ele conseguia estabelecer uma relação de um modo profundo, mas não entendeu suficientemente como a idealização e a paranóia ocorriam. Interpretou o fato que
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 179
Neville Symington
de Klauber, como também foi o dilema daqueles que acreditam na liberdade pessoal. Isaiah Berlim, em seu livro “Against the Current”, exemplifica
alguns pensadores dentro da tradição européia de idéias que se fixaram
contra os grandes sistemas de pensamento monocausal: Vico, Herder,
Montesquieu e outros, mas seus nomes nunca serão tão famosos quanto os
de Descartes, Karl Marx ou Freud.
Parece então que estar individualmente casado com a liberdade pode
significar “vivendo dentro da sombra de um gênio”; que é necessário ser
um seguidor para ter uma vida interna e interpessoal, porque ser o escultor
das vidas de outros é intolerável para quem acredita na liberdade. Mas isso
deixa uma ferida no centro de seu ser. Rousseau sentia esse dilema, quando
dizia exasperado que: “Os homens devem ser forçados a serem livres”.
Mas penso que pode ser que aqueles que sentem essa ferida no centro de
seu ser são os que têm capacidade para curar. Klauber era um curandeiro
muito bom. Ele ficaria satisfeito com este epitáfio.
JOHN KLAUBER,
UM
CLÍNICO INDEPENDENTE
minha percepção dele ou de outros foi idealizada, mas não foi capaz de
iluminar as correntes emocionais que deram origem à idealização e à paranóia. Teve a habilidade para estabelecer uma relação, mas não teve as ferramentas necessárias para analisar essas emoções, que deram origem aos
mesmos fenômenos que ele estava ansioso para analisar: a idealização e a
paranóia. Assim ele podia estabelecer a relação, mas não podia analisar as
atividades emocionais que eram responsáveis pela geração da idealização
e da paranóia. Foi capaz de observar a presença desses fenômenos, mas
não pôde analisar suas estruturas. No princípio, pensei que essa deficiência
era peculiar a ele, mas mais tarde percebi que era algo que ele compartilhava com todos os membros do Grupo Independente no qual ele e eu fomos
educados: a área da personalidade denominada psicótica, pré-edípica, arcaica ou primitiva.
Eu acreditava que os kleinianos entendiam dessa área da personalidade e, depois de me qualificar como analista, participei de seminários clínicos quinzenais com Herbert Rosenfeld e aprendi muito sobre essa área com
ele. Os kleinianos reivindicam para si o conhecimento dessa área da personalidade. Porém, com o passar do tempo, cheguei à conclusão que eles
também não a entendiam. Havia exceções, é claro, mas depois de ouvir
muitas apresentações de casos, tive certeza de que os kleinianos eram tão
cegos como os independentes em relação às correntes emocionais essenciais dessa área primitiva da personalidade. Havia algumas exceções notáveis. Quando percebi tudo isso, me senti novamente mais caloroso para
com John Klauber. Digamos que, para analisar um paciente, existem dois
procedimentos essenciais: primeiro, ser capaz de estabelecer uma relação;
segundo, ser capaz de analisar os padrões emocionais que geram as
distorções que nós associamos à psicose. John Klauber era capaz do primeiro, mas não foi eficiente no segundo.
Estou bastante seguro de que os analistas que não conseguem realizar
o primeiro também não podem fazer o segundo. O primeiro é a pedra fundamental sobre a qual o processo analítico é estruturado. A personalidade
estabiliza se essa base for colocada corretamente e sobre ela o trabalho da
180 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Ensaio
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Este estudo foi apresentado em 1985, em um
encontro do Instituto de Psicanálise em Londres.
Dr. Neville Symington
88 B, Warragal Road, Turramurra,
Sydnei NSW 2074 – Australia
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 181
Neville Symington
análise pode prosseguir. Penso que existem poucos psicanalistas que podem estabelecer tanto uma relação como também analisar as correntes
emocionais que geram os fenômenos psicóticos.
Sua outra falha, muito relacionada a isso, foi que ele não viu os estados internos de mente, dos quais as figuras externas freqüentemente são os
símbolos. Minha mãe era minha mãe, meu pai era meu pai, e assim por
diante. Ele não viu os estados internos que eles representaram em mim.
Penso que essa foi uma falha muito grande que percebi quando assistia aos
seminários de Rosenfeld.
A outra grande virtude de Klauber era sua habilidade para reconhecer
verdades dolorosas sobre si próprio, quando desafiado. Nunca era defensivo e reconheceria um preconceito, ou algum defeito em seu caráter. Penso
que ficaria furioso se eu tivesse sido um desses analistas que imediatamente desconhecem uma crítica e a colocam sobre o paciente. Klauber acreditava que a verdade era a grande curandeira, e era fiel a esse ideal. Deu-me
o bastante para poder construir nos anos posteriores. Faz agora vinte e cinco anos que terminei minha análise com ele, e meu desenvolvimento emocional e compreensão analítica cresceram espetacularmente desde então.
Acredito que tenho que agradecer a ele por ter-me iniciado nessa viagem.
Este estudo foi publicado em 1987, no livro “John Klauber and
Others”, pela Editora Free Association Books, London, England.
“Em si, a dor não tem nenhum
valor nem significado. Ela está
ali, feita de carne ou de pedra [...].
A dor só existe sobre uma base de
amor.”
J. D. Nasio
Ana Rosa Chait
Trachtenberg
Médica; Psicanalista; Membro
Titular em função didática da
Sociedade Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre; Membro
Associado da APdeBA (Associação
Psicanalítica de Buenos Aires).
Pretendo, nesta comunicação,
contar uma história: a de Édipo e
Laio. Um filho e um pai como tantos outros. Seu início é o Édipo
freudiano, neurótico, que rapidamente se encontra com a sua faceta
narcísica, para logo, então, cruzarse com Laio – paradigma do pai narcisista – no desfiladeiro. Desses encontros, ou desencontros, nasce o
futuro de uma relação.
Penso, em sintonia com Nasio
(1997), que experimentar a dor psí-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 183
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Édipo:
Configuração e
Complexo: um
Adolescente no
Desfiladeiro
ÉDIPO: CONFIGURAÇÃO E COMPLEXO:
UM ADOLESCENTE NO DESFILADEIRO
quica é um privilégio daqueles que possuem uma viva muralha/barreira de
dor feita de carne, que protege o sujeito de outra muralha, a de pedra, a do
narcisismo, que tenta, sem êxito, espantar a loucura e a morte.
Entendo que o Complexo de Édipo, enquanto complexo nuclear das
neuroses, é um paradigma de sexualidade, dor, renúncias e vida. Em oposição, ao nos aproximarmos das fronteiras do narcisismo, encontramos a dor
não tocada, a vida e a sexualidade evitadas, destituídas, esvaziadas em seus
eternos esconderijos nas muralhas feitas de pedra.
Existem vários momentos dolorosos no ciclo vital do ser humano, e
eu gostaria de destacar dois deles: o da hospitalidade, que requer a penetração da presença do outro, o que impõe dores e renúncias, tal como ocorre,
por exemplo, com o nascimento de um filho. Noutro momento do ciclo
vital, está, justamente, a dor de deixar partir. Partição, partida do filho que
fora acolhido prevê, porém, vida compartida, diferenciada, definida, mas,
curiosamente, continuada. Outra vez, renúncias e dores.
O Complexo de Édipo tem um lugar no tempo tanto sincrônico quanto
diacrônico, pois a sua relação com a temporalidade está dada não só pela
sexualidade infantil, com a diferença entre os sexos, mas também pela diferença entre gerações. É na dupla diferença do Complexo de Édipo
(GREEN, 1993, 1996), a diferença de sexos e de gerações, que reside o seu
alcance estrutural e histórico para a organização do desejo humano.
Conforme Green, as hipóteses de C. Lévi-Strauss sobre a proibição do
incesto, como norma e fundamento para a diferença entre natureza e cultura, tiveram enorme influência nos desenvolvimentos psicanalíticos pósfreudianos, especialmente quando Lacan propõe uma interpretação do
Complexo de Édipo que relaciona o desejo, a satisfação natural da sexualidade incestuosa, com a lei, através da proibição paterna. A importância da
proibição do incesto reside em estabelecer um sistema de relações de parentesco como relações de relações; a reprodução biológica se encontra,
portanto, regulada pela proibição do incesto.
O grande desafio do ser humano, também colocado no enigma da Esfinge e especialmente ativo ao longo do processo adolescente, é o de des184 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 185
Ana Rosa Chait Trachtenberg
cobrir como o filho do rei pode também tornar-se rei como o pai, ocupar
seu lugar sem se chocar com ele ou afastá-lo. Com o fluxo das gerações, a
sucessão dos estágios que marcam a humanidade, e que estão ligados à
temporalidade e à imperfeição, reis e filhos de reis podem conviver lado a
lado com uma ordem social harmoniosa.
Como é do conhecimento de todos nós, o mito de Édipo,
universalizado por Sófocles (1970) e utilizado magistralmente por Freud
(1892-1899), enfatiza o aspecto do desejo erótico do filho por sua mãe,
bem como o desejo parricida do mesmo para com o rival, seu pai. Essa
clássica descrição corresponde ao Complexo de Édipo positivo, cujos desdobramentos, observados desde a perspectiva intrapsíquica, nos são já bastante familiares. Para esse filho, que é incestuoso e parricida, há um pai
castrador, que ameaça simbolicamente com a castração, e também um pai
proibidor, que instala a lei, impedindo a consecução do incesto. Esse filho,
ao utilizar a repressão como eficaz defesa de autopreservação, está se deixando atravessar pela dolorosa experiência da renúncia de seu objeto erótico. Assim procedendo, o sujeito tolera postergar até a idade adulta as satisfações buscadas, quando então entram em ação os objetos substitutos, que
o são graças aos vários deslocamentos que sofrem ao longo da vida. Essa
artimanha, bem como o reconhecimento da diferença de gerações, que torna a exogamia possível, está perpassada por um pai que se faz edípico ao
proibir uma mulher específica. Assim, edípico, permite ao filho a concepção de um projeto exogâmico próprio para seu futuro. Essa novela neurótica possibilita um desfecho favorável, no qual existem pelo menos dois espaços psíquicos discriminados, havendo lugar para dois homens e duas
mulheres.
Jean-Pierre Vernant (2000) desenhou algo diferente para o mito de
Édipo, dizendo que seu destino excepcional, bem como a façanha que lhe
concedeu a vitória sobre a Esfinge, o colocaram acima dos outros cidadãos,
além da condição humana – semelhante ou igual a um deus – e o parricídio
e o incesto que consagraram seu acesso ao poder também provocaram a
sua rejeição para aquém da vida civilizada e o excluíram da comunidade
ÉDIPO: CONFIGURAÇÃO E COMPLEXO:
UM ADOLESCENTE NO DESFILADEIRO
dos homens. Os dois crimes que ele cometeu, sem saber nem querer, o
tornaram: (a) ele mesmo – o adulto firme sobre seus dois pés; (b) semelhante a seu pai – ajudado por uma bengala, velho de três pés cujo lugar
ele assumiu ao lado de Jocasta; e também (c) semelhante a seus filhos
pequenos – ainda andando de quatro, e dos quais ele era tanto irmão quanto pai. Seu erro inexpiável foi misturar em si mesmo três gerações, que
deviam seguir-se sem jamais se confundir nem se superpor no seio de uma
linhagem familiar.
Vernant acrescenta que o monstro de quem falava a Esfinge era também Édipo, que tem dois, três e quatro pés, ao misturar num único sujeito o
curso regular das estações da existência humana.
Essa vertente, que evidencia a importância da diferença de gerações
no seio do Complexo de Édipo e que é desrespeitada por seu clássico protagonista, se inscreve, com clareza, na linha dos transtornos do narcisismo.
Tal faceta está marcada não somente pela impossibilidade de reconhecimento do outro, como também pela grandiosidade de suas posições.
Vernant nos mostra um Édipo diferente da visão que dele temos como vítima do destino, que a profecia denuncia como vítima de seus desejos
parricidas. Este outro Édipo é o protagonista do que denomino Parricídio
Mudo, que representa a face narcisista do Complexo de Édipo e nos aproxima da idéia na qual quero penetrar no momento, que é a da configuração
edípica.
Robert Graves (1998), outro importante estudioso da Mitologia, oferece um aspecto novo, complementar, do mito de Édipo, chamando a nossa
atenção para a cena do encontro de Édipo e Laio num estreito desfiladeiro.
O primeiro tentava escapar da predição do oráculo, que fazia dele um futuro parricida, fugindo de Corinto, onde moravam seus pais adotivos. Édipo
desconhecia a verdade da adoção, bem como a história da tentativa de
filicídio praticada por Laio quando do seu nascimento. A ótica de Graves,
que salienta o encontro de ambos, pai e filho, desconhecedores dessa relação, num desfiladeiro, onde só há passagem para um, nos permite seguir
Haydée Faimberg (1996, 2000) no que ela chamou Configuração Edípica.
186 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 187
Ana Rosa Chait Trachtenberg
O centro da reflexão sobre a configuração edípica parte da mentira, do nãodito, e vai na direção do problema que desejo salientar, o do filicídio/
parricídio. Vale destacar que Laio tinha uma decisão filicida antes do nascimento de Édipo; para ele, o sentido de ter um filho era um sentido filicida.
Esse seria um severo e extremado transtorno da hospitalidade, ao qual nos
referimos inicialmente, já que esse filho, Édipo, é recebido por seu pai com
e para a morte.
Para entendermos essa idéia, é necessário, antes de mais nada, incluir
a intersubjetividade, já que a perspectiva intrapsíquica, suficiente para a
compreensão dos fenômenos ligados ao Complexo de Édipo, neste caso
os desejos parricidas de Édipo, deixa de sê-lo se quisermos estender o conceito para além das relações e desejos dos filhos para com seus pais. Na
ótica intersubjetiva interessa estudar não só essa relação fantasiosa, mas
também a relação de pais para filhos, lembrando sempre que a mesma é
assimétrica desde o começo da vida da criança, graças ao seu desamparo.
Além disso, importa de que forma um sujeito mostra-se capaz de se deixar
penetrar pela presença do outro (hospitalidade), e penetrá-lo também com
a sua subjetividade, permitindo e propiciando diferenças, bordas, transformações e contato com a dor.
Na abordagem da configuração edípica é essencial entender os mecanismos de regulação narcisista na relação do pai narcisista com seu filho:
não existem dois espaços psíquicos separados; a dor da diferença se vê
eliminada pelo funcionamento de apropriação e intrusão, bem como pela
eliminação dos bordos de subjetividade entre os indivíduos. Assim, ao tentarmos visualizar o encontro de Édipo e Laio num estreito desfiladeiro onde
só havia passagem para um, duas situações se apresentam: nenhum deles
se reconheceu como diferente ao outro, jovem um deles e ancião o outro.
Édipo não considerou a diferença geracional existente entre ambos, pois a
sua história estava regida pela mentira da adoção e pela tentativa de
filicídio, bem como pela grandiosidade de seu parricídio mudo, a face
narcísica de seu Complexo de Édipo. Laio, em ação complementar,
narcisicamente, repete a tentativa de filicídio do passado. Ambos lutam
ÉDIPO: CONFIGURAÇÃO E COMPLEXO:
UM ADOLESCENTE NO DESFILADEIRO
para obter a passagem pelo desfiladeiro, metáfora do poder e do domínio
de um espaço psíquico único, que domina a lógica do narcisismo, a lógica
do ou/ou.
Laio, paradigma do pai narcisista, considera que existe um único objeto de amor e de ódio, e esse modo de funcionamento conduz a uma solução
narcisista da rivalidade edípica: um deve viver e o outro, morrer; é a lógica
do filicídio/parricídio.
Esse é um desfecho que não contempla uma proibição, mas sim a
morte. Aqui, não há lugar para dois homens e duas mulheres, ao contrário
da saída exogâmica, postergada, que a dolorosa passagem pelo canal, desfiladeiro do Complexo de Édipo, impõe. O que ocorre na configuração
edípica, narcísica, é que, tal como no desfiladeiro, só há lugar para um
homem e uma mulher. Um deles morre, física ou psiquicamente, enquanto
a mulher do desejo erótico é invariavelmente a mesma. Não há deslocamentos para outras escolhas objetais, não há futuro, aqui vale somente o
presente.
Essa seqüência, que é compatível com a dor de pedra, a da muralha de
pedra, uma vez que o progenitor realiza uma apropriação indevida da carne
e da alma de seu filho, tornando-o portador de uma angústia impensável, a
de não ter sido querido como filho vivo.
A. Green (1996) sustenta que a vida psíquica do sujeito se organizará
ao redor de pelo menos dois paradigmas. Ele os chama de angústia vermelha e angústia branca. A primeira se relaciona ao Complexo de Édipo,
enquanto a segunda está vinculada às idéias de configuração edípica. Angústia vermelha seria o conjunto de angústias ligadas à “pequena coisa que
se desprende do corpo” (pênis, fezes), todas ligadas à castração, por se
relacionarem com uma ferida corporal associada a um ato sanguinário, uma
mutilação.
A angústia branca, ao contrário, relacionada às perdas de objetos, do
peito, bem como às ameaças de abandono, não está revestida de um caráter
sanguinário, apesar de poder ser um produto da destrutividade. A angústia
branca compõe a série branca, descrita por Green, e está constituída pela
188 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
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Ana Rosa Chait Trachtenberg
alucinação negativa, pela psicose branca e pelo luto branco. Trata-se de
fenômenos ligados à clínica do vazio ou do negativo e são resultantes de
um desinvestimento massivo, radical, que deixa marcas no inconsciente
sob forma de “buracos psíquicos”.
Como uma forma de exemplificar, entre muitas possíveis, vamos nos
valer das belas observações que fazem os cronistas do cotidiano, quando
nos dão a impressão de uma cena de filme que fica congelada, lenta, em
que parece que tudo parou, onde nada se transforma. Vemos filhos que
vivem ad eternum na casa paterna, muitas vezes sem trabalhar, outras vezes com o sustento de uma pensão de um pai falecido, sem aparentes preocupações ou inquietações; dão a impressão de que o tempo lá não passou,
nem passará, e temos a nítida visão de que, naquela família, a transmissão
e a continuidade ali se interrompem. O elo criativo entre as gerações, a
continuidade através das mesmas, que produz o “alívio da mortalidade”,
não podemos aqui encontrar. Nesses casos, a mortalidade, a sexualidade, a
dor e a diferença são violentamente desmentidas: não há movimento, não
há dor, não há novas gerações. A pretendida imortalidade está ali, na cena
congelada daquelas duas gerações, com suas histórias colapsadas, coladas
umas às outras. Tudo está preenchido e se esgota em apenas duas gerações;
por antecipação, mata-se a terceira, a dos filhos dos filhos. Observa-se,
assim, uma forma bastante particular de filicídio. Não se trata do filicídio
praticado por Laio, atuado, mas sim de um filicídio mudo, com inibição da
exogamia, dos projetos, da construção de um espaço psíquico diferenciado
e vivo. Rompe-se a cadeia ou o elo criativo entre as gerações, e esse
filicídio mudo, que traz o mito e a configuração edípica para o nosso cotidiano, mostra uma resolução narcisista e pretensamente não-dolorosa das
diferenças entre sujeitos, sexos e gerações.
Quem sabe, no seio dessa muralha feita de pedra, ainda vigora a esperança de que algum dia se rasgue nela uma janela, e se o Chico Buarque nos
ajudar, possamos ver Carolina e depois a Banda, passando, em seus versos,
convocando para a vida:
ÉDIPO: CONFIGURAÇÃO E COMPLEXO:
UM ADOLESCENTE NO DESFILADEIRO
“Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
Só Carolina não viu”
mas, depois,
“Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida esqueceu-se da dor
Pra ver banda passar cantando coisas de amor”.
COMPLEXO DE ÉDIPO
CONFIGURAÇÃO EDÍPICA
1.
2.
3.
4.
5.
1.
2.
3.
4.
5.
Neurose
Angústia de castração
Defesa: repressão
Pai castrador, proibidor, edípico
Filho tolera dor da renúncia do
objeto incestuoso
6. Lei – respeito à proibição do incesto
7. Fantasias parricidas (série vermelha)
8. Diferença gerações, espaço psíquico
próprio no filho
9. Desfecho da rivalidade edípica:
identificação, saída exogâmica
(2 homens e 2 mulheres)
10. Desfiladeiro: há lugar para um e
depois o outro (e/e); 2 mulheres
diferentes
Narcisismo – patologias do vazio
Angústia de morte
Defesa: desmentida
Pai filicida, narcisista
Filho angústia impensável de não
ter sido querido como filho vivo
6. Transgressão à proibição do incesto
7. Parricídio mudo – filicídio mudo (série
branca)
8. Gerações indiferenciadas, relações
narcísicas, telescopagem
9. Desfecho da rivalidade edípica: morte,
saída endogâmica
10. Desfiladeiro: só há lugar para um, o
outro deve morrer (ou/ou); 1 mesma
mulher
190 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
O trabalho busca traçar uma diferença entre o conceito clássico, freudiano,
de Complexo de Édipo e o conceito de configuração edípica. Este último se relaciona com os transtornos narcísicos (série branca de A. Green), com as patologias
do vazio, e deve ser entendido sob a ótica da intersubjetividade. A autora apresenta um quadro sinóptico das principais idéias do texto.
Summary
Oedipus: Configuration and Complex: an Adolescent in the Narrow
This paper brings a differentiation between the freudianian concept of Oedipus
Complex and the Oedipus configuration. The latest one is related to narcissistic
disorders (white serial described by André Green), to emptiness, and has to be
seen under intersubjectivity studies. The author presents a table with the main
ideas of this paper
Sinopsis
Edipo: Configuración y Complejo: un Adolescente nel Desfiladero
El trabajo busca establecer una diferenciación en el clásico concepto freudiano de Complejo de Edipo y el concepto de configuración edipica. El último
está relacionado a los trastornos narcísicos (serie blanca de A. Green), a las
patologías del vazio, y debe ser entendido bajo la optica de la intersubjetividad.
La autora presenta un cuadro sinóptico con las ideas principales del texto.
Palavras-chave
Narcisismo; complexo Édipo; Configuração Edípica; Adolescência;
Parricídio; Filicídio; Incesto.
Key-words
Narcissism; Oedipus complex; Edipie Configuration; Adolescence; Parricide;
Filicide; Incest.
Palabras-llave
Narcisismo; Complejo Edipico; Configuración edípica; Adolescencia;
Parricidio; Filicidio; Incesto.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 191
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Sinopse
ÉDIPO: CONFIGURAÇÃO E COMPLEXO:
UM ADOLESCENTE NO DESFILADEIRO
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Trabalho apresentado na IV Jornada Interna da
SBPdePA, novembro de 2003.
Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg
Rua Florencio Ygarthua, 391/404
90430-010 – Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/fax: (55 51) 3330-6453
E-mail: [email protected]
192 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Conferência na SBPdePA
Amor. Estruturação Mental.
Fantasia Inconsciente
Serapio J. Marcano
Médico; Psicanalista; Membro
Efetivo da Sociedade Psicanalítica
de Caracas – Venezuela.
O amor é um afeto ou uma
emoção básica dos seres humanos
que, para fins práticos e expositivos, estuda-se separado dos outros
afetos básicos, mas que na realidade
psíquica está indissoluvelmente ligado aos mesmos em uma constante interação, e particularmente ao
outro afeto antitético que é o ódio.
Esses afetos marcham sobre as
vicissitudes de gratificação ou frustração das necessidades dos seres
humanos desde o momento em que
se inicia a vida de relação com outros seres humanos, sendo o primeiro objeto de relação a mãe e, mais
especificamente, alguns aspectos da
mãe, que nós, psicanalistas, concei-
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Serapio J. Marcano
Amor,
Transferência
e Loucura
AMOR, TRANSFERÊNCIA
E
LOUCURA
tuamos como qualidades da função materna com as quais se estabelece
fundamentalmente o vínculo. Essas qualidades são a capacidade de alimentar e cuidar, de fazer presença, de dar calor, de proteger, e que, além de
servirem de instrumentos para satisfazer as necessidades pulsionais, irão
proporcionar um plus de prazer sensual ou de desprazer, sensações que
adquirirão uma conotação de afeto amoroso ou de ódio, de acordo com a
gratificação ou frustração de tais necessidades e da maneira como as mesmas sejam satisfeitas ou não pelos objetos da realidade exterior que sustentam a vida desses seres humanos em formação. É muito difícil definir com
exatidão os modos como a criança experimentou seus vínculos com os
objetos da realidade exterior e a maneira pela qual tais vínculos foram internalizados, e passarão a formar parte de suas marcas mnêmicas. Na psicanálise, somente o podemos inferir através de suas revivências durante a
experiência analítica e ao fazer inferências com a ajuda de uma disciplina
auxiliar, como a observação de bebês orientada psicanaliticamente. Sobre
as vivências primárias serão sobrepostas as novas experiências, as quais,
por sua vez, ou abrirão espaço à possibilidade de modificação das experiências primitivas, ou serão uma reprodução das anteriores. Quando as
experiências vividas são integradas a um contexto significativo, tais experiências vão-se estruturando em um processo de significações cada vez
mais complexas e harmônicas, que configuram organizações e diferenciações mentais dentro do mundo interno, que inclui os objetos internos e sua
interação com os objetos externos. Mas também têm lugar outras experiências que não são integradas plenamente em um contexto significativo no
momento de serem vividas, e cujo protótipo constituem as experiências
traumáticas, as quais serão objeto de uma elaboração retroativa, segundo o
que diz Freud (Nachträglichkeit em alemão, Après-coup em francês), e
essa reorganização ou reinscrição que é experimentada, de vez em quando,
em função de novas condições, confere-lhe um sentido e uma eficácia ou
um poder patógeno (FREUD, 1896).
Tanto as experiências plenamente integradas em um contexto significativo como aquelas que não o são serão constituídas nas fantasias in196 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 197
Serapio J. Marcano
conscientes, as quais determinarão, em boa medida, as modalidades vinculares nas relações com os objetos da realidade externa, ainda que seja nas
formas mais maduras de relação, como nas que configuram as chamadas
estruturas clínicas, se aceitamos um critério nosológico psicanalítico para
organizar tais estruturas. Mas também essas fantasias irão organizar-se de
diferente maneira nos diversos momentos integradores da mente humana
que, desde já devo esclarecer, não seguem uma direção unívoca linear, paralela ao padrão de desenvolvimento biológico ou neurofisiológico, ainda
que se sobreponham a ele, mas que alternam momentos de progressão ou
regressão, ou de maior ou menor integração, e que, para fins teóricos, as
diversas correntes psicanalíticas sistematizam a partir de diferentes vértices, dependendo de seus interesses particulares. Assim, as fantasias correspondentes a cada um dos diferentes blocos constitutivos da estruturação
psíquica conterão uma particular organização das pulsões, desejos, pensamentos, afetos, concepção do tempo e do espaço, e mecanismos mentais
das formações do inconsciente.
Pode-se hipotetizar que, nos níveis mais primitivos de funcionamento
da mente, não havia diferenciação entre o sujeito e o objeto, assim como as
experiências afetivas e de prazer ou de desprazer estariam indiferenciadas.
A partir daí, integrar-se-iam até um estado de prazer e de desprazer mais
específicos, juntamente com a diferenciação mais elaborada das imagens
“boas” e “más” de si mesmo e do objeto, até chegar a uma integração das
qualidades e dos afetos “bons” e “maus”, prazerosos e desprazerosos, dentro de um mesmo sujeito e um mesmo objeto. À medida que se avança na
integração, há também uma evolução na dimensionalidade da visão do
mundo que passa de um nível de relação linear – no qual não se distinguiria
entre a distância e o tempo que, como diz Meltzer (1979), “não é um mundo que conduz à emocionalidade fora da forma mais simples e polarizada” e na qual “a gratificação não poderia diferenciar-se da fusão com o
objeto” – até um nível em que o tempo adquire a dimensionalidade do
processo secundário, tal como o propôs Freud nos “Dois Princípios do Funcionamento Mental” (1911). Neste nível, o tempo, como um poderoso fa-
AMOR, TRANSFERÊNCIA
E
LOUCURA
tor que nos chega a partir do mundo exterior, adquiriu uma tendência
direcional própria, acompanhado de uma discriminação importante do sujeito e do objeto que ocorre paralela à transformação do predomínio dos
mecanismos de identificação projetiva e identificação adesiva, constituintes principais das identificações narcisistas que encontramos na base de
múltiplos transtornos psicopatológicos regressivos. Fica preeminente então a identificação introjetiva como mecanismo mental que dará lugar não
apenas a essa maior discriminação de si mesmo e do objeto, mas também
dos afetos, e onde tem lugar a capacidade de espera vinculada à oportunidade para a gratificação, predominando os sentimentos amorosos sobre os
hostis, que agora são conteúdos dentro do sujeito. Todas essas experiências
dadas nos diferentes níveis de integração do funcionamento mental vão
deixando uma sucessão de inscrições de signos no inconsciente que constituem as representações inconscientes da pulsão, as quais estão dispostas na
forma de fantasias que, por sua vez, são os cenários imaginários aos quais
se fixa a pulsão e que podem conceber-se como verdadeiras encenações do
desejo (LAPLANCHE e PONTALIS, 1974). A pulsão diferencia-se do instinto, uma vez que seu objeto não está predeterminado biologicamente, e
busca uma satisfação prazerosa mais além da necessidade biológica, e que
o prazer que procura observa-se como componente parcial e incorporado
ao prazer do amor sexual genital adulto, e por isso na Psicanálise falamos
de psicossexualidade no lugar de simplesmente sexualidade.
Quando a necessidade é satisfeita, e fica a marca mnêmica do objeto
que produziu prazer, surge o desejo, buscando satisfação na identidade de
percepção, reproduzindo alucinatoriamente as percepções que se converteram em signos dessa satisfação. Dirige-se uma demanda a um objeto, buscando que o mesmo seja provedor de tal satisfação, mas a mesma é impossível de satisfazer, já que é uma demanda de amor que busca ser preenchida
de uma vez por todas e cresce em uma relação espiralada sem fim. Assemelha-se ao jogo infantil do “Conto do Galo Pelón”, o qual nunca termina.
A demanda é de natureza absolutamente incondicional; em troca, o desejo
introduz uma condição absoluta, ao ligar a possibilidade de prazer a uma
198 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
O que são as Transferências?
Trata-se de um fenômeno geral do funcionamento da mente, universal
e espontâneo, que consiste em unir o passado com o presente, mediante um
falso enlace que cruza os desejos pretéritos implícitos nas fantasias inconscientes e vinculados aos objetos do passado com os objetos atuais, dando à
conduta um cunho racional.
Como processo psíquico presente no tratamento psicanalítico, começa a ser desenvolvido por Freud desde muito cedo em sua produção teórica,
e ele continua o elaborando em diversos trabalhos até o final de sua obra,
no “Esboço de Psicanálise” (1938).
Para Freud, a transferência é produzida quando o desejo prende-se a
um elemento muito particular que é a pessoa do analista, a qual é esvaziada
de significado, como os restos diurnos do sonho, e lhe é conferida uma
significação distinta da original, com a qual o desejo se disfarça para permanecer inconsciente.
A transferência é a mesma na análise e fora dela. De um lado, é o
maior aliado da análise e, de outro, é o maior obstáculo. A análise é feita
graças à transferência e apesar dela, como diz J. A. Miller (1979), parafraseando Freud. Isso corresponde aos dois aspectos da transferência. Um é o
da repetição inconsciente, descrita por Freud como um estereótipo ou
clichê que se repete de forma constante no decurso da vida de uma pessoa,
dirigindo-se à realidade, buscando satisfazer-se em uma pessoa de tal realidade externa, e na análise dão-se todas as circunstâncias para que o analista ocupe o lugar para onde serão dirigidas essas demandas libidinais, que
não são mais que demandas de amor. Em níveis conscientes, a busca desse
objeto da realidade é aplicada em forma racional, mas, inconscientemente,
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Serapio J. Marcano
determinação estrita, como a de que o objeto apresente uma característica
particular, como no fetichismo. O desejo consiste em um mecanismo
lingüístico, mediante o qual são distorcidos e modificados certos elementos dentro de outros. Aparecem distorções e opacidades nos pontos de ruptura do discurso associativo.
AMOR, TRANSFERÊNCIA
E
LOUCURA
é uma relação ilusória, irracional, ou imaginária, como diria Lacan. O outro aspecto da Transferência é o da resistência, que é um dos três tipos de
resistências do Eu. A transferência pode ser positiva e negativa, desde o
ponto de vista dos afetos, e a positiva pode ser de afetos carinhosos,
dessexualizados ou amorosos sexualizados. Esses últimos, junto aos negativos, são os que se constituem em resistência ao buscar satisfação em lugar de recordar. Assim, por exemplo, quando uma pessoa sente rechaço e
hostilidade a tudo o que provenha do analista, pode ser porque no inconsciente o analista representa uma figura parental intrusiva, que não permite
a necessária narcisização do infante, o que não exclui que o analista realmente se contra-identifique com esses objetos intrusivos. O analisante repete e o analista também, em vez de recordar esses afetos, como um modelo vincular do passado. A transferência amorosa ou positiva sublimada é a
que permite operar sobre o paciente por sugestão. Segundo Freud (1912),
por sugestão devemos entender a forma de influenciar uma pessoa mediante os fenômenos de transferência possíveis em seu caso. A sugestão é, nesse caso, e não sempre, para Freud, a mesma que para Ferenczi (1909): “a
criação artificial de condições em que a tendência universal à obediência
cega e à confiança incondicional, resíduos do amor e do ódio infantilerótico para com os pais, transfere-se à pessoa do hipnotizador” (nesse
caso, à pessoa do analista). Estão dadas, assim, as condições, como dissemos antes, para que o analista, ao ser objeto de transferência para o
analisante, adquira e concentre em si uma nova significação, o valor do
sintoma, e surja a neurose de transferência.
Segundo a teoria lacaniana, o analista passa então a ocupar o lugar do
grande Outro, que escuta a demanda do paciente de buscar a verdade sobre
si mesmo, sobre sua identidade, sobre seu desejo. O analista será colocado
no lugar do Sujeito Suposto Saber. Manter essa relação ilusória e imaginária é o que permite que o inconsciente faça pressão para manifestar-se. O
analista consegue-o ao não identificar-se com esse Sujeito Suposto Saber,
pois, do contrário, se o encarna, a experiência analítica desencadeia uma
psicose alucinatória crônica e que, na prática, observamos quando o pa200 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
O Amor de Transferência
Nas páginas anteriores, mostramos como, desde o vértice psicanalítico, o amor pode ser conceituado como um componente dos afetos que se
fazem presentes nos vínculos humanos, em suas relações não somente com
os objetos da realidade externa mas também com os da realidade psíquica,
e que aparece nas diversas expressões das fantasias inconscientes, as quais
revelam os diversos níveis de complexidade de integração da mente humana. O amor, inextrincavelmente ligado ao ódio, aparece nas estruturas primitivas narcisistas, predominando nas relações duais, especulares, nas relações parciais sujeito-objeto, em que se ama predominantemente o outro
que representa a imagem do sujeito, dando-lhe uma esperança ilusória de
completude, e aparecendo o ódio como efeito da diferença desse outro com
o que dele se espera que seja. Esse outro representa o objeto parcial da
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Serapio J. Marcano
ciente diz que sabemos tudo sobre ele e que, portanto, não tem que dizernos mais nada. Além disso, se desde o lugar do analista recorremos a qualquer saber para tapar essa abertura, o que conseguiremos é fechar o caminho através do qual o inconsciente buscava expressar-se. Mas isso também
pode ser visto de outra perspectiva, que é a seguinte: o sujeito, na análise,
dirigirá ao analista suas demandas, mediante as quais repetirá toda uma
série de sucessos de sua vida psíquica anterior e as viverá não como experiências do passado, mas como relação atual com a pessoa do analista. As
diversas estruturas são reeditadas nessa relação. As modalidades estruturais narcisísticas, nas quais predomina uma relação dual, especular, imaginária, buscam sua própria imagem na imagem do analista, que é a sua, e é
a do outro, como nos começos de seu desenvolvimento humano, identificando-se com ela e pondo em evidência os elementos constitutivos do eu
primitivo, com suas identificações imaginárias. A estrutura edípica, na qual
predomina a relação triangular pela presença de um terceiro, com o predomínio da linguagem, é simbólica, e a identificação que se estabelece é simbólica; contém em si a lei do pai, os ideais e as aspirações dentro do Ideal
do Eu e do Superego, herdeiro do Complexo de Édipo.
AMOR, TRANSFERÊNCIA
E
LOUCURA
pulsão confundido com o sujeito mesmo, que viria a preencher a falha da
separação. Esse objeto parcial é sucessivamente o mamilo, as fezes e, logo,
o falo, onde os significantes prévios se transmutam nos novos, o que
corresponde a um processo de luto sucessivo, segundo uma das leituras
possíveis da teoria das etapas freudianas. Todas essas demandas de amor
aos objetos parciais e o desejo que busca satisfação na identidade de percepção serão penetradas pela aparição de um terceiro, que desde o começo
está presente através das normas da cultura, passando o objeto da pulsão a
constituir-se em objeto total, ao aparecer a situação edípica. Esse terceiro
se materializa na imagem paterna que marca a Lei que proíbe ter acesso ao
objeto do desejo. Introduz, assim, o sujeito na ordem simbólica, na linguagem e no simbolismo sociocultural, em oposição ao imaginário não simbolizado. O amor aparece então dirigido a uma outra pessoa que não é o objeto original da pulsão, mas outro objeto que, por deslocamento, simbolizará
o objeto original.
O amor que acompanha essas relações de objeto, nos diversos componentes estruturais, pode cobrar uma inusitada força na relação com o analista, inundando todo o campo da análise, no qual o analista deixa de ser
tomado, pelo analisante, pelo que realmente é: um analista que supostamente sabe sobre o desejo do sujeito e passa a ser esse objeto do desejo.
Pode-se dizer que a irrupção violenta ou precipitada, intensa, tenaz e
irredutível que alcança esse tipo de demanda amorosa e que não cede diante de explicação racional alguma deve-se a que muitos impulsos estão dirigidos do inconsciente para objetos arcaicos, o que evidencia as condições
imaginárias, próprias do predomínio das organizações narcisistas presentes nos diferentes níveis de integração mental e das fantasias inconscientes
concomitantes. As erotizações do vínculo denotarão as relações de objeto
parcial correspondentes a esses diferentes níveis e colocarão em evidência
a maior ou menor integração dos afetos, das qualidades dos objetos e dos
mecanismos mentais postos em jogo. Esses diferentes níveis correspondem
às várias formas de amor de transferência que aparecem nas neuroses, na
loucura e nas psicoses.
202 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
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Serapio J. Marcano
É bom aclarar que minha posição é a de que em todo indivíduo organizam-se, dentro de seu aparato psíquico, as diversas estruturas nas mais variadas proporções, e que em um nível de integração ótimo constituiriam as
modalidades de vinculação com predomínio do eixo edípico sobre o eixo
narcísico, do simbólico sobre o imaginário, e no qual, como diz Liberman
(1976), a ação e a expressão das idéias e a regulação dos afetos combinamse com o maior grau de adequação. Mas também penso que cada ser humano apresenta uma organização estrutural predominante. Isso eventualmente pode dar lugar à aparição de outro tipo de estrutura de maior ou menor
integração, apoiando-nos, para propor isso, em que “toda estrutura tem um
lugar vazio que possibilita as permutações” (RABINOVICH, 1977).
Nos analisantes com predomínio neurótico e nos quais o conflito
edípico genital, com suas angústias de castração, é o que rege a cena transferencial, aparecem enamoramentos com diversos graus de intensidade
passional, nos quais a idealização do objeto amoroso está dirigida à pessoa
do analista, dissociada das inclinações e expectativas sexuais em relação
ao mesmo, as quais serão dirigidas a outros objetos da realidade externa
que, devido a alguma característica particular, atraem até eles os desejos
eróticos correspondentes ao progenitor desejado. Os afetos negativos, por
sua vez, são dirigidos a outros objetos que também têm características que
os ligam, de um modo simbólico, aos objetos edípicos, em que a rivalidade
com o progenitor do mesmo sexo pode adquirir características passionais,
dentre as quais aparece o ódio, ao atribuir-lhe a proibição da sexualidade –
mas por quem também subjaz uma mescla de admiração e ciúmes pelo
lugar que esse objeto ocupa ao lado do objeto de amor, lugar que deseja
inconscientemente tomar posse e que, por sua vez, teme, pois por ser apanhado ali não pode fazer a exogamia, acrescentando-se a tais temores o
correspondente ao da castração.
Amar é, para o sujeito que se encontra predominantemente em uma
posição narcisista, que o objeto se preste a prover uma ilusão de igualdade,
de completude, de constância, de não-separação. Desde a posição do obje-
AMOR, TRANSFERÊNCIA
E
LOUCURA
to marcado pela Lei que impõe o reconhecimento do impossível da
completude, que impõe assumir a renúncia, amar é não confirmar ao sujeito essa expectativa de união, é não sustentar essas identificações, e assim
procurar a identificação simbólica através da qual o sujeito incorpora a Lei
que lhe impõe aceitar-se em falta. Mas quando o amor adquire um caráter
passional, em nome do que a intensidade do afeto e o apego ao objeto
cegam completamente o sujeito, aparecem as mais intensas sensações de
êxtase ou de sofrimento doloroso, que pode eventualmente conduzir ao
suicídio e/ou homicídio, se tal amor for proibido. Nos atos passionais
estamos frente à loucura de transferência, chamada também por alguns de
Psicose transferencial, ou diante da transferência psicótica do indivíduo
psicótico. A linguagem coloquial, assim como o conteúdo manifesto do
discurso de alguns analisantes, mostra-nos como com freqüência chamamos de loucura a certos pensamentos que se impõem dominando a razão,
subvertendo-a, da mesma forma que a todo seu funcionamento psíquico.
Ali o sujeito é atuado por essa paixão que o aliena.
A origem dessa loucura passional remonta às primeiras relações mãebebê, que os kleinianos qualificam como uma psicose infantil originária e
que André Green (1981) prefere chamar de loucura original. Nelas podemos observar a superposição inseparável dos cuidados maternos e a atividade erótica de sedução. Nelas a criança, já desde a gravidez, é para a mãe
o que a mãe será para a criança: um objeto único e insubstituível, como
será o objeto de desejo para o sujeito da paixão. Green recorre às palavras
de Freud no “Esboço de Psicanálise” (1938), citando-o: “Nestas duas relações (cuidado e erotização) arraiga a significação única da mãe, que é
incomparável e fixa-se imutável para toda a vida como o primeiro e mais
intenso objeto de amor, como protótipo de todos os vínculos amorosos posteriores em ambos os sexos”. A que Green agrega: “se essas relações amorosas mostram-nos em seu pleno florescimento essa breve loucura, devemos supor que se acha presente desde a origem e em princípio na mãe e
que acompanha, portanto, todas as vicissitudes desse Eros primordial. Na
perversão, na neurose e até nas formas mais elaboradas de sublimação”.
204 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
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Serapio J. Marcano
De acordo com o que Green propõe, pensamos que o amor materno
tem por objetivo favorecer na criança a eclosão da vida pulsional e fazê-la
tolerável, servindo-lhe de continente e espelho. Quando a mãe é excessivamente frustrante ou excessivamente gratificante, converte-se em um objeto
de excitação pulsional que transborda as possibilidades do eu nascente de
elaborar, ligar e integrar tais pulsões.
Dessa forma, a angústia de intrusão e de separação transborda o eu,
como podemos observar nos casos limites. O efeito é similar ao que observamos nas pessoas que foram vítimas de incesto. Isso corresponde à loucura privada que se manifesta quando o sujeito põe em ato suas transferências
em relação ao analista ou a qualquer objeto significativo da realidade externa. Esses podem dar lugar, com suas atitudes, à facilitação dessas transferências, mas não é um requisito indispensável para que as mesmas
emerjam. Na análise, uma atividade interpretativa intrusiva ou excessivamente distante por parte do analista pode corresponder a elementos pulsionais que correspondem à loucura do objeto que, assim como o objeto original excitante, faz com que não se consiga a ligação pulsional e que apareça
a loucura amorosa. Denomino tal atividade do analista como “loucura de
contratransferência”, na qual o analista é o sujeito simétrico, não continente, não especular, ao analisante. Ao contrário, se o analista é mobilizado
pela demanda pulsional do sujeito e em alguns momentos sente-se transbordar, e cai em atos intrusivos ou de distância e separação excessiva, mas
se recupera deles, pode utilizá-los para entender tais fenômenos, tanto em
si mesmo como no sujeito, e devolvê-los em uma atitude que convide o
analisante a unir-se a ele na interrogação de tais transferências e assumi-las
como eventos a serem explicados dentro de uma cadeia de significações –
o que eventualmente permitiria apossar-se dos mesmos, com a correspondente diminuição do sofrimento e do gozo que busca o prazer absoluto.
A ajuda que oferece o objeto, como auxiliar do eu e como continente,
na luta do sujeito contra as excitações pulsionais internas e externas, mantém a loucura como algo privado. Nessas loucuras, conserva-se a relação
do eu com a realidade, o pensamento racional segue intacto, mas a sensa-
AMOR, TRANSFERÊNCIA
E
LOUCURA
ção dos analisantes, dos objetos da realidade que o rodeiam e do analista,
em sua contratransferência manifesta, é que se trata de um funcionamento
louco, “fora de si”. Essa loucura é uma desordem afetiva, passional, que
elege um objeto parcial ou total e se apega a ele mais ou menos exclusivamente, reorganizando a percepção do mundo ao redor dele, convertendo-o
em único e insubstituível.
Nos consultórios podemos observar, se não nos assustamos, como assustou Anna O. a Breuer, ou Dora a Freud, a emergência da loucura amorosa em forma de transferência e permitir-lhes que se expressem e contê-las
para buscar sua ressignificação, em vez de iludi-las ao privilegiar as representações inconscientes ou alguns componentes isolados da fantasia inconsciente, como o estatuto do desejo, do objeto, da cena ou da defesa, em
lugar de reconhecer a totalidade do fenômeno com a primazia do afeto
sobre as representações, e assim manter a transferência dentro da análise.
Nos historiais clínicos de Freud vemos como, por exemplo, no caso
do pequeno Hans, este é dominado pelo amor por sua mãe, a qual o torna
“louco”, no mesmo sentido em que um namorado diz estar louco por seu
objeto de amor. Quantos objetos amorosos não se encontram atrás dos sintomas fóbicos? Como o fazer-se acompanhar para sair à rua no agorafóbico
para proteger-se de uma compulsão sexual de sedução. No caso do “Homem dos Ratos”, que se torna louco no intelecto ao erotizar seu pensamento, o amor não aparece como o expoente da loucura, mas como as defesas:
repressão, deslocamento e isolamento, que transferem a perversão que
conota o desejo de sodomizar o objeto ao sintoma revelador de uma perversão do pensamento. Toda a transformação do pensamento é de tal magnitude aqui que se parece com o delírio, o que levou Freud a dizer que tais
fenômenos merecem o nome de delírios. Quando, em um analisante de
traços obsessivos, observamos o uso do pensamento, das palavras, da comunicação para transmitir e ou explorar o estado afetivo em sua relação
com o analista, podemos dizer que, salvando a distância com o delírio do
“Homem dos Ratos”, estaremos diante do amor na transferência, que pode
206 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 207
Serapio J. Marcano
assumir movimentos passionais ao transformar-se em compulsão a compreender ou na coerção interpretativa.
No caso do “Homem dos Lobos”, Freud nos mostra os mecanismos
fundamentais que se encontram nas atualmente chamadas desordens
fronteiriças ou casos limites, que estão na clivagem entre a loucura e a
psicose. Ali descreve como mecanismo fundamental o que em alemão escreve-se como Verwerfung, que em espanhol traduziu-se como Repúdio, e
que Lacan traduziu como Forclusão, reconhecendo em tal mecanismo uma
modalidade da repressão na estrutura psicótica e que consiste, segundo
Freud (1894), “que o eu desestima a representação intolerável junto com
seu afeto, e se comporta como se a representação nunca tivesse comparecido. Somente no momento em que se conseguiu isso, a pessoa se encontra
em uma psicose que não admite outra classificação que confusão
alucinatória’”. O repúdio consiste, segundo Lacan, em não simbolizar o
que deveria sê-lo (a castração): trata-se de uma “abolição simbólica”. Para
Lacan, o repudiado reaparece no Real (no não-simbolizado). Esse repúdio
da castração é diferente da repressão (Verdrangung) do neurótico, no qual
ficam reprimidos os aspectos perversos da sexualidade, e também é diferente do mecanismo da Desmentida (Verleunung), que utiliza o perverso e
mediante o qual o sujeito recusa reconhecer a realidade de uma percepção
traumatizante, principalmente a ausência de pênis na mulher (a mãe).
No “Homem dos Lobos”, a loucura reside em sua bissexualidade, ligada à fixação à cena primária e sua raiva por ser excluído do gozo dos
pais. Seu desejo é gozar pelo ânus como a mãe, ou pelo pênis como o pai,
mas em nenhum caso se evita a castração. Sua raiva destrutiva oscila para
um ou outro progenitor. Sua oscilação afetiva está entre os planos erótico e
agressivo. Sua psicose expressa-se através do repúdio desejando não querer saber nada disso e em seu duplo funcionamento afetivo e intelectual. Na
lógica afetiva admite a coexistência dos contrários e a outra funciona sobre
o princípio do terceiro excluído, coexistindo com uma psicose latente da
qual a castração está forcluída, repudiada. Sua loucura, à medida que fun-
AMOR, TRANSFERÊNCIA
E
LOUCURA
cione nela a angústia de castração, serve de barreira contra a eclosão da
psicose e para que não fique no delírio.
Nos casos limítrofes, podem surgir na transferência reações amorosas
e de ódio muito intensas, de caráter primitivo e esmagador, que adquirem
qualidade delirante no nível do pensamento. Essas reações amorosas ou
loucuras transferenciais, que, como dissemos, alguns chamam de psicoses
transferenciais, para diferenciá-las das transferências psicóticas dos
psicóticos, estão baseadas em uma idealização do objeto como defesa diante da ansiedade persecutória de que tal objeto se transforme em intrusivo e
excessivamente excitante. A inveja que gera tal objeto idealizado desencadeia ataques desvalorizantes ao mesmo. A erotização do vínculo é tão
opressora que a palavra erotizada é equiparada a um contato sexual
intrusivo de tipo pré-genital, de objeto parcial, o que produz impossibilidade de estabelecer a escuta. Não obstante, não está totalmente perdido o
teste de realidade, como está no psicótico que faz transferências psicóticas
dentro e fora do enquadre terapêutico. Nessas é notória a falta de discriminação entre o objeto original e a réplica, os quais sempre têm uma
conotação narcisista e de objeto parcial, ainda que as maneiras como se
expressem as pulsões sejam através do pênis, objeto parcial, e, se houvesse
contato sexual, o que o mesmo contém é a busca de fusão simbiótica com o
objeto. Recordo de um paciente esquizofrênico que passava as horas de
sessões sentado frente a mim com o olhar fixo, quase sem pestanejar, e
com uma torrente de saliva que lhe saía pela boca como um bebê babado
diante do objeto de desejo que, para o esquizofrênico, está no real não
simbolizado.
Caberia perguntar-se finalmente se é possível falar de amor nas transferências psicóticas a menos que, tomando emprestado um critério da antropologia, digamos que o psicótico, que com sua boca quer devorar o objeto, ama igual ao canibal que come seu objeto conquistado como expres-
208 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Conferência
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Conferência realizada no Ciclo de Conferências “Clínica
Psicanalítica sobre o Amor”, na Sociedade Psicanalítica de
Caracas, Venezuela, 1998.
Tradução: Viviane Freitas
Dr. Serapio J. Marcano
Calle San Rafael, Quinta “Shuruata”, Urb. Santa Fé Norte,
Caracas, 1080 – Venezuela
Fone: 582212.9763813
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 209
Serapio J. Marcano
são máxima do amor. Os planos erótico amoroso e destrutivo coexistem,
fusionando-se como o sujeito se fusiona e se confunde com o objeto, passando a ser ele.
Entrevista da SBPdePA
SBPdePA – Gostaríamos de
saber um pouco da sua vida, da sua
trajetória profissional, do que a senhora acha do seu percurso pela
psicanálise.
Raquel Zak de
Goldstein
Médica; Psicanalista; Membro
Titular da Associação Psicanalítica
Argentina.
Raquel – Entendo que muito
cedo me entusiasmou o ser humano
na sua íntegra. Sou médica por formação, gosto muito da medicina,
mas me dei conta muito cedo de que
não ia poder pensar no corpo sem
tratar da pessoa no seu todo. Isso,
acompanhado de algumas leituras
de Freud, através de amigos que estavam fazendo formação, mais o
encontro com alguns professores
especialmente interessantes me levou, naturalmente, a começar a carreira psicanalítica com o intuito de
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 213
Raquel Zak de Goldstein
SBPdePA
Entrevista
Raquel Zak
de Goldstein
SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK
DE
GOLDSTEIN
conhecer a psicanálise em sua maior profundidade possível.
Um autor que me influenciou bastante foi Florêncio Escardo, que naquele momento era um inovador muito audaz da pediatria, o que acabou
fazendo com que me interessasse por essa especialidade, para a qual me
voltei quando terminei minha carreira médica. Fui ao hospital de crianças e
me deparei com esse homem, que era um precursor aos moldes de
Winnicott. Isso me pareceu tão forte que, quando comecei a tratar de bebês,
me interessei logo pelo grupo de mães. Havia no hospital um pessoal da
sociedade psicanalítica que ia nesse lugar fazer grupos psicoterápicos com
os pais. Também faziam grupos de reflexão com os médicos. Isso foi por
volta de 1957. Logo depois comecei minha formação psicanalítica. Escolhi
Garma, de uma lista em que havia doze didatas, para ser meu analista.
Supervisionei com Arnaldo Rascovski, que também era uma pessoa muito
inovadora. Estive ainda em contato com Arminda Aberastury, quando fui
conhecer a formação. Ela tinha um grupo de estudos sobre psiquismo fetal
para o qual me convidou. Passei a observar grupos terapêuticos e também
me desenvolvi como terapeuta de grupos.
Então, primeiro iniciei com o consultório médico para crianças e logo
comecei a formação. Acho que tive sorte de pertencer a uma época com
capacidade de fazer as pessoas se apaixonarem pela psicanálise. Éramos
capazes de viajar muito para estudar, enamorados pelos conhecimentos.
Falo no plural, porque logo conheci meu noivo, que se tornou meu marido,
e que também estava interessado em psicanálise.
Criamos os filhos em contemporaneidade a amizades como a de
Susana Ferrer, o que foi muito lindo e estimulante. Depois, passei a me
interessar por determinados itens clínicos. Meu trabalho para membro associado foi com um paciente tuberculoso, e Garma me proporcionou bibliografias sobre tuberculosos célebres. Quando jovens, somos atrevidos.
Lembro que postulei a existência de uma introjeção respiratória. Não retomei ainda o tema, mas é bastante interessante, porque eu relacionava a
respiração com a alma, com a ânima, com toda a força dos mitos. Supervisionei também com Beth Garma, Marie Langer, Rodrigués. Em determina214 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 215
Raquel Zak de Goldstein
do momento, apareceu na Argentina, para ajudar nos seminários, Willi
Baranger. Desse momento em diante, nos escolhemos mutuamente para
seguir dali para frente como professor e aluna, e trabalhei com ele até sua
morte. Também participei de um grupo de estudos com Garma, depois que
terminei a minha análise, com Baranger, que era formado em filosofia antes da formação, co-fundador da sociedade uruguaia APU, e com sua esposa, Madeleine Baranger.
Ficamos muito amigos do casal e éramos vizinhos de bairro. Tínhamos um grupo que se reunia uma ou duas vezes por semana, formado por
meu marido, Néstor Goldstein, por Jorge Garcia Badaracco e Jaime Spilka,
que começou a estudar uma variedade de temas, percorrendo enorme bibliografia internacional. Em determinado momento, nos focalizamos no
estudo crítico da obra de Lacan, e nunca vou terminar de agradecer a
Baranger pela sua capacidade de ler Lacan, inclusive em francês, com
Freud ao lado, às vezes em alemão, porque Baranger, como bom europeu,
se saía bem no alemão. Foi um período muito bom, possivelmente por ser
uma época muito tranqüila do ponto de vista político e econômico.
Assim foi crescendo nossa vida pessoal. Tivemos dois filhos, que se
casaram: o filho é arquiteto, era tenista profissional antes de se dedicar à
arquitetura, e tem uma filha linda; e nossa filha, que tem duas lindas filhas,
é arquiteta e também pintora desde muito pequena. No mês de junho, vai
expor novamente no exterior. Está nesse momento expondo em Nova York,
o que é muito estimulante. Cursou psicologia e fez formação psicanalítica,
que terminou há dois anos, sendo atualmente membro associado. Um de
seus amores é a investigação precoce da experiência estética. Creio que
meus filhos são pessoas muito capazes criados em uma época talvez menos
traumática que a de hoje.
Baranger havia sido o tradutor de dois livros de Melanie Klein. Minha
formação é muito enraizada nas escolas clássicas: Freud, Melanie Klein,
Bion, Meltzer e Lacan, e em determinado momento surgiu o interesse por
ler Winnicott. Um dos primeiros trabalhos que fiz com muito carinho foi
um estudo da novela de Hermann Hesse, “Demian”, para ilustrar o tema da
SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK
DE
GOLDSTEIN
adolescência. Voluntariamente tentei não me envolver em atividades políticas, o que não pude evitar totalmente, porque nos últimos tempos, em
parte como um compromisso interno, me postulei ao cargo para o Board da
comissão diretiva da IPA, do qual faço parte desde o ano passado. O fiz por
achar que não estava certo ser tão comodista nesse sentido. Tenho aprendido muito e é muito bom estar com gente inteligente, além de ser outro
campo psicológico que vale a pena conhecer bem. Compartilho o Board
com um grupo de vinte e uma pessoas de todo o mundo, sete por região:
América Latina, América do Norte e Europa. Viajo muito a convite, dos
quais um foi relevante, o de Otto Kernberg. Convidou-me para levar uma
introdução Freud-lacaniana ao instituto de Nova York, onde recebi com
honra o convite para dar uma conferência na cadeira de medicina da Universidade de Nova York. Todas situações que gratificam.
SBPdePA – Que preocupações deveriam ter os psicanalistas em relação ao futuro exercício da psicanálise, considerando as novas demandas
de hoje?
Raquel – Gostaria de pensar com vocês o que chamam de novas demandas, para podermos ficar em acordo e para poder buscar minhas idéias
sobre o tema. De qualquer maneira, podem-se dizer algumas palavras.
Novas demandas, ou patologias que anteriormente não buscavam tratamento? Novas demandas ou mais demandas, pois, apesar de a psicanálise se
preocupar por não estar solidamente arraigada na prática, como há muitos
anos esteve, ou seja, em relação à recepção de pacientes, de candidatos
para se formar, muito mais gente a tem em conta como terapia eletiva na
América Latina, e talvez isso seja parte dos fatores que geram a impressão
de nova demanda. Poderíamos pensar que há menos pacientes, mas talvez
haja mais pacientes do que em tempos passados; somente não tantos para
que cada profissional tenha um consultório suficientemente solicitado, uma
vez que o número de profissionais aumentou.
Também poderíamos pensar se não seria o progresso do pensamento
216 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 217
Raquel Zak de Goldstein
analítico, nos últimos anos, o que poderia estar fazendo com que nossa
escuta ouvisse novas complexidades das patologias que antes talvez escutávamos com um ouvido “clássico”. Há muitos escritos sobre isso. Perguntas: as neuroses da atualidade são como as neuroses clássicas? As patologias graves são isso mesmo, ou são neuroses atuais? As neuroses e psicoses
estão tão distantes das histerias? As histerias têm sido pensadas em termos
de elementos de ansiedades psicóticas? Pessoas como Maleval, que desenvolveram uma avaliação seletiva entre loucuras histéricas e psicoses
dissociativas, nos dão uma oportunidade de outras reflexões e outra escuta
sobre quadros que há tempos trataríamos com medicação – ainda que eu
não tenha nada contra as medicações, pois em algumas circunstâncias também indico, com outro colega, um aporte medicamentoso como parte de
um tratamento.
Antes, certas histerias eram tratadas somente com o psiquiatra, e agora as temos no consultório. Certas psicoses que iam parar no depósito de
psicóticos agora são tratadas em grupos terapêuticos com pessoas como
Badaracco. Os filhos desses psicóticos são atendidos por nós, porque entendemos mais e melhor os efeitos que tem a loucura transgeracional. Então, quanto à demanda, estou convencida de que há uma zona da patologia
que tem a ver com as épocas. Leio bastante certos filósofos como Adorno,
Benjamin etc., e me dou conta de que o progresso e a modernidade e pósmodernidade trazem tanto as correntes benéficas quanto as das complicações, que vão por caminhos distintos. Suponho que com o tempo haverá
cada vez mais precisão na resposta a esse tipo de pergunta: haverá quem
sabe estatísticas, ou estudos mais detalhados sobre o que está acontecendo
com as psicopatologias, com as regiões, as épocas, os espaços sociais, os
problemas étnicos, e mais compreensão sobre as demandas e variedades a
respeito dos quadros clínicos. Acredito que existem patologias características da nossa época, mas não são tudo. Segue havendo neuroses atuais, neuroses de angústia, patologias borderline, dinâmicas familiares patogênicas
em importantes setores, e segue havendo investigações sobre paradoxos e
contraparadoxos na família.
SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK
DE
GOLDSTEIN
Podemos nomear enormes quantidades e qualidades de campos analíticos em desenvolvimento e em fertilização cruzada, como a define um
amigo de quem gosto muito, Robert Wallerstein. Os campos analíticos pósfreudianos e pós-lacanianos vão se reproduzindo em função do progresso
e, em algum momento, entram em intercâmbio, surgindo novas perspectivas que ajudam a escuta do psicanalista. Se me perguntassem o que seguiria fazendo frente ao que se chama a crise da psicanálise, eu diria que seguiria fazendo possivelmente isso que estou dizendo. Aos que gostam de
ler, pensar, refletir, correlacionar avanços, progressos, perguntas, enfoques,
aconselho ler autores complicadamente ricos, como Piera Aulagnier ou
Green, de difícil leitura, mas que fazem parte da psicanálise do futuro.
SBPdePA – A respeito de Piera, que a senhora citou, o que salientaria de mais positivo no pensamento dessa autora?
Raquel – É uma pós-lacaniana muito honesta e uma freudiana extraordinariamente sutil e honesta também. Entendeu a psicossomática, entendeu a psicose e entendeu novidades que apresenta como aportes pessoais.
Aferra-se a alguns dos melhores pontos de Lacan, como o discurso, a linguagem, a violência da interpretação, que implica a necessária marca do
desejo dos pais, e tem, sem pretensão acadêmica, uma paciência e delicadeza ao explicar cada um dos elementos que compõem o que para nós é o
grande mapa dos conhecimentos analíticos a partir de Freud, e que permitem entender o funcionamento psíquico, que vem a ser uma de nossas paixões. Ela é capaz de explicar o processo primário e o processo secundário
de uma forma tão assombrosamente interarticulada com seu próprio pensamento, ou com os de Freud e Lacan, que ou a gente a lê linha por linha e
volta atrás, ou não entende nada, sobretudo do corpus que ela apresenta na
primeira parte de seu livro sobre a violência. Uma vez que se possa incorporar o essencial das articulações que faz, podemos acompanhá-la falando
como fala de psicoses, psicossomática e da clínica. Sei que não posso explicar como deveria. Só posso dizer que tratem de lê-la, porque faz parte da
218 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
SBPdePA – E a senhora, quando vai produzir o próximo artigo?
Raquel – Estou preparando um tomo com artigos sobre Winnicott, reSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 219
Raquel Zak de Goldstein
psicanálise do futuro. Todos falamos de psicossexualidade; não dizemos
psiquismo e sexualidade. Muitas vezes Freud assinala especificamente esse
termo – psicossexualidade – e o articula, mas somente com ela se consegue
alcançar toda a significação que tem o desenvolvimento psíquico, no sentido da constituição de um sujeito subjetivo em paralelo com as zonas
erógenas, com o prazer, com o desejo, com a pulsão de vida, pulsão de
morte, e poderíamos seguir desenvolvendo por horas, de forma tal que seria outro modo de se apresentarem as articulações.
Green é outra figura enorme que se entrega com absoluta generosidade a produzir, como Piera, o máximo possível do que entendeu, por amor à
psicanálise. Também Laplanche, Pontalis, Bollas e Joyce McDougall. Na
obra desta última há reflexos da obra de Piera, e vice-versa. A
psicossomática passou a ser pensada de outra forma depois dessas duas
autoras. As perversões também, e Freud foi novamente lido depois delas.
O Projeto, por exemplo, é re-significado por nossas mentes depois de novas leituras, re-processado, e dizemos: caramba! Lacan tinha um grande
respeito pelo Projeto, e muitos lacanianos o retomam, não para buscar a
neurofisiologia, mas para não sair de uma zona que não é psíquica nem
somática, a zona da psicanálise. Talvez fosse de se dizer: ah, essa é a zona
de Winnicott! Porque é ele quem coloca o objeto virtual, o objeto criado
como objeto transicional na zona intermediária, como ponte. Nesses dias
estará na APA um homem que aprecio muito, um psicanalista muito conhecido e de valor nos Estados Unidos, Gilbert Rose, que se dedica à psicanálise e à arte, não como psicanálise aplicada, senão exatamente como
metapsicologia, e agora vai apresentar um artigo sobre música. Falei com o
presidente de vocês sobre a possibilidade de pedir autorização a Gilbert
para que possamos publicar esse artigo. Temos muita gente produzindo e, é
claro, temos que saber escolher.
SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK
DE
GOLDSTEIN
lidos e pensados atualmente, muitos artigos em andamento, e o mais atual,
que mais vem me interessando, está relacionado à cura psicanalítica e à
desidentificação, um dos artigos de “Artesanias” que se intitula “Próximo
da desidentificação”, e o comento porque, quanto mais passa o tempo desde que escrevemos isso, mais o encaro com a idéia de uma das crises mais
atuais, que é a desilusão nos tempos modernos e o efeito que tem sobre o
funcionamento psíquico latente. Nesse ponto me junto à idéia de trabalhar
para lograr trazer à clínica de cada dia, à cura, as estratégias de campo que
dispõem as coisas para que seja possível um processo de desidealização,
obviamente do objeto mau patógeno. Pensamento em termos de identificação precoce e de desidentificação como desalienação, buscando o contexto
e as condições para que haja desalienação, sim, mas não com lapso da
identidade. Esse é um dos temas que mais me interessa, a clínica e a cura
enfocando essas questões dificílimas.
Outro dos temas se refere à relação entre a etapa da cura (final da
análise) e a destituição do analista dessa posição de pai-falo a que é destinado sempre (Lacan a chama “sujeito suposto saber”) e a relação que isso
tem com os três tempos precoces do Édipo, pois sigo em parte a posição de
Lacan sobre isso.
Brevemente sairá o primeiro livro publicado pela APA, cujo título é
“Alteridade, intersubjetividade e o outro”. A respeito disso tenho um artigo
que continua a elaboração desse assunto e em que particularmente avanço
um dos temas que me interessa mais, que é quanto e como implica o processo da destituição do pai no terceiro tempo, para que o processo edípico
se realize adequadamente e se ingresse na ordem simbólica. Dito em outras
palavras, que duro que é para os pais renunciar a ser o rei, o falo da família!
O quanto temos nós, mulheres, que nos ajudar, ajudar os filhos e ajudar
esse homem que durante muito tempo teve de ser o pai interditor e que
depois tem de se transformar num cidadão simples, transmissor da lei;
quanta delicadeza tem de se colocar para que esse procedimento se realize
sem danos. Isso, eu busco em confrontação com o processo da análise do
analista, da posição do analista no campo, que também tem de ser capaz de
220 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
SBPdePA – Em dezembro de 1999, a senhora proferiu uma conferência sobre angústia na nossa sociedade e falou das riquezas sublimatórias.
Poderia nos falar um pouco sobre isso?
Raquel – O princípio é simples, porque para Freud um dos destinos da
pulsão é a sublimação. Para todos, exceto para Lacan. Não sei se vocês
sabem que Lacan não aceita a idéia de sublimação, como também não aceita a idéia de contratransferência. Riqueza sublimatória significaria, longe
de ser uma desgraça passar pelo Édipo e ser capaz de reconhecer a
incompletude, a castração simbólica, a alteridade, a finitude, ser uma bênção e uma liberação. Isso seria a síntese do que quis dizer.
(Nesse momento a fita do gravador termina, e, na tentativa de virá-la,
ocorreram algumas atrapalhações com o aparelho, motivando o seguinte
comentário da Dra. Raquel:)
Raquel – Por que as mulheres se atrapalham tanto com aparelhos eletrônicos, em geral? Se estudamos e não temos dificuldade para entender, se
nos orientamos no mundo e não temos dificuldades para entender e para
existir, se a maioria de nós pode parir e criar filhos, não deveríamos ter
dificuldades para fazer coisas difíceis. Por que temos dificuldades supostamente com a tecnologia? Primeiro, com a maior modéstia possível, recomendaria reler o meu artigo sobre o continente negro e seus enigmas, que
está no livro “La erótica”. Também recomendaria que tenham um pouco de
paciência, pois ainda não terminei de escrever sobre o corpo carnal feminino, que é um capítulo que me devo há muito tempo, e sobre as diferenças
do trato com o carnal e o simbólico no homem e na mulher. Não me parece
que o homem tenha menos trato com o carnal e que a mulher tenha menos
trato com o simbólico. Parece-me, sim, que é de outra maneira. Para um
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 221
Raquel Zak de Goldstein
transitar desde a investidura daquele que sabe para uma posição na qual
“libera a pomba para que viva”, isto é, libera o sujeito para o que seria uma
atitude permissiva do pai ou do analista. Faço correlato com “Totem e
tabu”, além de outros, mas não vou contar o final do artigo.
SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK
DE
GOLDSTEIN
homem, por exemplo, os aparelhos são um grande alívio, são concretos,
bem limitados. Ao contrário, quando o homem trata com o carnal é muito
temeroso, quase como nós mulheres com os aparelhos, porque não é sua
natureza psicossexual. Tudo isso considerando sempre a natureza bi-sexual, no sentido de que há algo de feminino conservado em todos os níveis
no homem, e há algo de masculino conservado em diversos níveis na mulher. O feminino do homem é à maneira masculina, e o masculino da mulher é à maneira feminina. Por isso é que o trato com os aparelhos é complicado para as mulheres. Digo isso, porque na troca da fita cassete brincamos
com o comportamento um pouco mais que cuidadoso, o que é comum em
geral no primeiro momento em que uma mulher vai lidar com um aparelho.
Poderíamos apagar o aparelho e dizer algo pornográfico. Quando a mulher
tem de tratar do aparelho masculino sexual, sabe que é algo muito sutil,
sabe que responde de maneira insólita, imprevista, ou não tão fácil de prever. É uma espécie de magia, e o mesmo acontece com o homem em relação ao corpo feminino; além dos temores inconscientes que ambos podem
ter desde sua sexualidade infantil ou de suas neuroses da infância.
Voltando à riqueza sublimatória, como disse, é uma bênção ficar liberado do lugar narcísico imaginário de completude “ideal” de uma funcionalidade mortífera. Tudo o que vem depois é riqueza, tudo o que se pode ir
fazendo irá depender das habilidades pessoais, da história própria de cada
um, do que cada um pode fazer com suas habilidades naturais, com o conhecimento adquirido, com os professores, mas é infinito! O infinito de
riquezas simbólicas do universo simbólico do tesouro significante, como o
chama Lacan, fica à nossa disposição quando atravessamos a barreira do
aprisionamento narcísico, que é o primeiro aprisionamento em que nos escondemos. Não estou falando de patologia, e sim da bolha narcísica, que é
outro artigo que estou agora preparando, como o primeiro habitat que tem
o infante à medida que se preserva e faz essa segunda pele psíquica e
narcísica, a chamo eu. Psíquica no conceito de Anzieu, do eu-pele, que
tomo em relação a uma bolha narcísica que inicialmente é protetora, como
uma segunda pele perimetral, a partir da qual se pratica a permeabilidade,
222 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 223
Raquel Zak de Goldstein
não a ruptura nem a esclerose, mas uma troca metabólica dinâmica. Tomo
como metáfora a ameba de Freud, com as funções metabólicas dos seus
vacúolos alimentícios, seus processos de estudo que verificam o conteúdo
do que entrou mas não se incorporou. Nesse processo, escolhe o que é ego
sintônico ou construtivo e expulsa o que é distônico ou tanático. Para fazer
isso é preciso estar confiante de que todo o perímetro está a salvo, de que
ninguém vai entrar de surpresa. Meu marido escreveu um trabalho muito
bonito sobre a surpresa na clínica. Ultimamente tenho também uma paixão
analítica. Interessa-me estudar o destino dos resíduos. No caso da ameba,
por exemplo, o que faz com o que não pode metabolizar? O expulsa onde?
São metáforas, naturalmente, mas têm muito a ver, e nessa linha torna-se
apaixonante a relação com o outro, porque estamos sempre em relação com
outros, e sempre estamos envolvendo o outro para que ele ou nos ajude a
limpar o que lhe demos, para que nos limpe, ou para que faça o que possa,
ou para matá-lo, se o odiamos ou nos fez mal. É uma fórmula mais evoluída do conceito de identificação projetiva. Em relação às
intersubjetividades, o que ocorre entre as pessoas? Gostaria de nomear novamente meu grande amigo Jorge Garcia Badaracco, que no trabalho com
grupos multifamiliares para psicóticos e borderline presta especial atenção
às interdependências. Põe manifesto o que é tão visível: que todos dependemos de todos em algum grau, de alguma forma. Dentro das
interdependências, agora no meu ponto de vista, há relações parecidas com
o que Lacan chama de “nós de escravidão imaginários”, na busca do olhar
que nos reconhece, que nos qualifica: pode-se avaliar isso quando uma
pessoa emigra e se encontra em um lugar no qual não a tratam mal, mas não
a conhecem: agüenta pouco. Outro grande exemplo é o prisioneiro isolado;
agüenta pouco sem os parâmetros de tempo, espaço, realidade interior e
exterior, e o olhar dos outros. Com tantos campos, penso que não há crise
da psicanálise. Há crises econômicas, sociais, culturais, religiosas, políticas, tirânicas. Pode ser que haja crises do psicanalista, que tem de voltar a
levantar seus ideais com a psicanálise, porque a psicanálise não se cuida
sozinha. Temos resistências, medos. É normal que atuem à nossa sombra,
SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK
DE
GOLDSTEIN
temos repressão. Queremos viver sem os monstros do inconsciente. Quem
quer estar todo o tempo perto dos monstros do inconsciente? Lembram
quando Freud dizia: se convocarmos os monstros, não os expulsemos sem
antes interrogá-los. Quando iniciamos uma experiência analítica ou uma
leitura analítica, vão aparecer os monstros, que são as pulsões e o arcaico.
Bem, espero não tê-las cansado.
SBPdePA – Absolutamente. Por nós iríamos até tarde da noite, mas
sabemos que a senhora tem um compromisso.
Raquel – Já está na hora? Vou tomar mais uns minutos para encerrar.
Agradeço muito a vocês.
SBPdePA – Nós é que agradecemos. O prazer foi todo nosso, aprendemos muito hoje, aqui nesse encontro. A forma como a senhora expõe é
muito clara e agradável.
Raquel – Agradeço essa reação. Bom, é por isso que viajo muito. Obviamente é só por isso, porque me apaixona.
SBPdePA – Na sua resposta à primeira pergunta, já deu para perceber que essa paixão começou há muito, e ela é contagiante, porque nos
deixou encantadas tanto pela senhora como pela psicanálise.
Raquel – Talvez seja essa uma de minhas motivações. Voltar a acender a paixão nas pessoas. Ampliando a resposta à primeira pergunta, quero
destacar, especialmente porque é notável e conhecido, o meu amor pelo
Brasil e minha relação divertida, amistosa e estimulante com as pessoas
deste país, em todos os lugares em que estive, de norte a sul. Destaco particularmente minha relação de amor amplo com Porto Alegre, e com as
pessoas que neste momento estão me entrevistando, que fazem parte de um
grupo humano com o qual me sinto muito ligada e que me provocou tanto
224 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
SBPdePA – Bem, Dra. Raquel, mais uma vez muito obrigada por este
momento tão proveitoso.
Entrevista
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Participaram da entrevista, representando a comissão editorial:
Carmen Moussalle, Carmen Saile Willrich, Rosa Beatriz Squeff.
Tradução: Heloisa Fetter
Dra. Raquel Zak de Goldstein
Ramon Castilla 2943
1425 Buenos Aires – Argentina
Fone: (54 11) 4802-8554
Fax: (5411) 4805-3245
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 225
Raquel Zak de Goldstein
entusiasmo que conseguiu que eu estivesse viajando para cá desde aproximadamente dez anos. Se tivesse de escolher outro lugar para morar, certamente seria o Brasil. Aliás, minha lua-de-mel foi no Rio, e minha filha foi
concebida lá.
PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE
PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES
NORMAS GERAIS PARA PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS*
1.
Os manuscritos que se publicam na Revista devem ajustar-se a alguns
requisitos formais:
a.
O trabalho deve ser inédito (excetuam-se trabalhos publicados em anais de
Congressos, Simpósios, Mesas Redondas, ou Boletins de circulação interna
b.
c.
de Sociedades Psicanalíticas; exceções serão consideradas);
O trabalho não pode infringir nenhuma norma ética e todos os esforços devem
ser feitos de modo a proteger a identidade dos pacientes mencionados em
relatos clínicos;
d.
O trabalho deve respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor;
e.
ofensivo ou difamatório;
f.
O trabalho não deve conter nenhum material que possa ser considerado
O autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Por to Alegr e ele está transferindo
automaticamente o “copyright” para essa, salvo as exceções previstas pela
lei;
O trabalho não deve estar sendo encaminhado simultaneamente para outra
publicação sem o conhecimento explícito e confirmado por escrito do
Conselho Editorial. A Revista normalmente não colocará obstáculos a
divulgação do artigo em outra publicação, desde que informada previamente.
Quaisquer violações destas regras que impliquem em ações legais serão de
responsabilidade exclusiva do autor.
* Baseado na Revista Brasileira de Psicanálise da Associação Brasileira de Psicanálise.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 227
2.
Os trabalhos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Revista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, sendo vedada a
sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização da Revista.
3.
As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exatidão, adequação e
procedência das referências e citações bibliográficas, são de exclusiva
responsabilidade dos autores.
4.
Os originais deverão obedecer as seguintes exigências mínimas:
a.
b.
Os originais enviados para a publicação deverão ser endereçados ao
Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre, cujo endereço é Quintino Bocaiúva, 1362. Em três vias e cópia em
disquete (gerado em Word for Windows);
c.
enviadas em duplicatas de tamanho adequado. O conteúdo total de
ilustrações não deverá exceder ¼ do espaço ocupado pelo artigo; exceções
serão consideradas;
d.
espanhol) e endereço do autor;
5.
Referências:
Ex tensão máxima de vinte (20) páginas digitadas só na frente, em espaço
duplo em papel formato A4. Cada linha deve conter 70 toques e cada página
30 linhas sendo numerado no ângulo superior direito. Tabelas gráficos,
desenhos e outras ilustrações sob forma de cópias fotográficas devem ser
Os ensaios e reflexões deverão obedecer a seguinte estrutura: título, nome
do autor, titulação do autor, tex to, palavras-chave (em português, Inglês e
A sinopse deverá conter em torno de 150 palavras e ser capaz de transmitir
ao leitor os pontos principais que o autor deseja expressar.
As seguintes normas estão baseadas nas publicadas pelo International
Journal of Phychoanalysis e na Revista Brasileira de Psicanálise.
As referências deverão incluir somente trabalhos estritamente relevantes e
necessários, não se deve acumular uma vasta bibliografia. As referências no
decorrer do tex to serão dadas citando-se o nome do autor seguido do ano
de publicação entre parênteses, por exemplo, Freud (1918) ou (Freud, 1918).
228 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004
Se dois co-autores são citados, os dois nomes deverão ser mencionados,
por exemplo Marty , de M’Uzan (1963) ou (Marty, de M’Uzan, 1963). Se
houver mais de dois autores, a referência no tex to indicará o primeiro, por
exemplo: Rodrigues et al.(1983) ou (Rodrigues et al.,1983).
A referência completa das obras citadas figurará na lista das referências
bibliográficas, colocada no final do artigo, lista essa que deverá corresponder
exatamente às obras citadas, sem referências suplementares.
Os autores são mencionados em ordem alfabética e suas obras pela ordem
cronológica de publicação.
(para as obras de Freud, as datas correspondentes são indicadas entre
parênteses na Standard Edition).
Se várias obras foram publicadas no mesmo ano, deve-se acrescentar à
data de publicação, as letras a, b, c etc. Quando um autor é citado
individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as obras onde
ele é o único autor, seguidas das publicações em que ele é o co-autor. Os
nomes dos autores não serão repetidos, mas indicados por um traço.
Os títulos dos livros grifados, sendo que as palavras mais importantes serão
escritas em letras maiúsculas, o lugar da publicação e o nome do editor
serão igualmente indicados. Se uma referência é dada a partir de outra edição
que a original, a data da edição utilizada deverá figurar no final da referência.
Nos títulos dos artigos (e igualmente nas obras de Freud) somente a primeira
palavra figurará em letra maiúscula. O título do ar tigo será seguido da
abreviação grifada da revista, do número do volume, e dos números da
primeira e da última página. Para as abreviações dos títulos das revistas,
poder-se-ão consultar os números que já foram mencionados ou no caso de
dúvida, citar o nome por ex tenso.
Nos exemplos seguintes, podem-se obser var a utilização das letras
maiúsculas, a pontuação, os dados e sua ordem de apresentação.
6.
Procedimentos de Avaliação:
a.
Todo ar tigo entregue para publicação será avaliado através de critérios
padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre;
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 229
b.
O avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que o
c.
mesmo seja mantido pelo próprio avaliador.
d.
editorial estabelecido;
Sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado,
em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de
sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa
Artigos que não forem publicados em 6 (seis) meses, a partir da data de sua
aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha
liberdade de enviá-lo a uma outra publicação.
PS. Para mais detalhes consultar revistas.
230 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004

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