Scintilla vol. 4, n.2

Transcrição

Scintilla vol. 4, n.2
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
SCINTILLA
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
1
MARCO BARTOLI
2
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
SCINTILLA
REVIST
A DE FIL
OSOFIA E MÍSTICA MEDIEV
AL
REVISTA
FILOSOFIA
MEDIEVAL
ISSN 1806-6526
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-214,
jul./dez. 2007
Instituto de Filosofia São Boaventura – FFSB
Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval - SBFM
Curitiba PR
2007
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
3
MARCO BARTOLI
Copyright © 2004 by autores
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Centro Universitário Franciscano do Paraná
IFSB – Instituto de Filosofia São Boaventura
SBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval
NPA – Núcleo de Pesquisa Acadêmica (Área de Filosofia medieval e pensamento franciscano)
Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)
Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR
E-mail: [email protected] ou [email protected]
Reitor: Nelson José Hillesheim
Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo Resende
Diretor: Vicente Keller
Editor: Enio Paulo Giachini
a) Comissão editorial
Dr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJ
Dr. Orlando Bernardi, IFAN
Dr. Luiz Alberto de Boni, PUCRS
Dr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFG
Dr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSC
Dr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP)
Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina)
Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia)
Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP)
Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España)
Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College Estocolmo (Suécia)
Dr. Ulrich Steiner, FFSB
Dr. Jaime Spengler, FFSB
Dr. João Mannes, FFSB
b) Conselho editorial
Dr. Vagner Sassi, FFSB
Dr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEG
Dra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJR
Dr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PR
Dr. Joel Alves de Souza, UFPR
Dr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ
Dr. Hermógenes Harada
Revisão e editoração: Enio Paulo Giachini
Diagramação: Sheila Roque
Capa: Luzia Sanches
Catalogação na fonte
Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia
São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário
Franciscano, v.1, n.1, 2004Semestral
ISSN 1806-6526
1. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.
3. Mística – Periódicos.
CDD (20. ed.) 105
189
189.5
4
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
SUMÁRIO
EDITORIAL ......................................................................................7
ARTIGOS .........................................................................................9
Pietro di Giovanni Olivi e la sanctorum communio:
Riflessione spirituale o modello di economia politica? .....11
Marco Bartoli
Pietro di Giovanni Olivi e la libertà della volontà, tra
metafisica e filosofia politica ............................................33
Luca Parisoli
A trajetória e a obra de Pedro de João Olivi
(c.1248-1298): fundamentos para a elaboração do
pensamento franciscano ..................................................75
Profa. Dra. Ana Paula Tavares Magalhães
“Cristo nosso Sal” – a participatio em Tomás
de Aquino .....................................................................109
Jean Lauand
I filosofi nel tempo e le età della filosofia – L’apporto del
medioevo alla periodizzazione storico-filosofica .............125
Gregorio Piaia
Hermenêutica cristã da temporalidade e historicidade:
polifonia interpretativa – do novo testamento a Pedro de
João Olivi .....................................................................137
Marcos Aurélio Fernandes
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
5
MARCO BARTOLI
COMENTÁRIOS ................................................................................175
Acerca do livre arbítrio ..................................................177
Fr. Hermógenes Harada
Fazer a vontade de Deus e o Beato frei Egídio de Assis ..189
Fr. Hermógenes Harada
TRADUÇÕES ...................................................................................197
Acerca da liberdade da vontade .....................................199
Pedro de João Olivi
O Senhor Deus produziu todo tipo de árvores de bela
aparência e boas para se comer ......................................207
Mestre Eckhart
6
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
EDITORIAL
Enio Paulo Giachini
Era nossa intenção dedicar um número completo de Scintilla ao
franciscano dos primórios da Ordem, Pedro de João Olivi.
Foi com dificuldade que conseguimos reunir alguns preciosos
textos a seu respeito. Tomamos como tarefa deixar espaço aberto para
novas contribuições em números subseqüentes.
Olivi foi um pensador dos primórdios do movimento franciscano (1248-1298), do veio dos espirituais, que tomou o vulto de grande liderança espiritual em seu tempo. P. de J. Olivi, Ângelo Clareno
(1247-1337) e Ubertino de Casale (1259-c.1328) “reuniram em torno de si, na Itália do Norte e Central e na França meridional não só
religiosos mas uma infinidade de leigos, chamados na Itália de bizochi
e na França de béguins”. Foi um homem que se empenhou de pleno
coração na vida de sua época e comunidades. Sua leitura da realidade
também passava pela ausculta dos tempos. Por isso, também foi grande seguidor do pensar de Joaquim de Fiore (1135-1202). No pai
Francisco e na autêntica Ordem franciscana, via o início de uma nova
era para a Igreja e para o mundo, a era da graça e do Espírito.
A revista reuniu cinco contribuições sobre o Olivi. Marco Bartoli
escreve sobre a Sanctorum communio; Luca Parisoli, sobre a liberdade
da vontade; Ana P.T. Magalhães, sobre a trajetória de seu pensamento
nas relações com o início do pensar franciscano; Marcos A. Fernandes,
sobre a hermenêutica da temporalidade e Frei Harada sobre, o livre
arbítrio.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
7
EM
NIO
PAULO
GIACHINI
ARCO
BARTOLI
A revista traz ainda duas contribuições não diretamente referidas
ao tema mas provocativas: Jean Lauand apresenta a parábola de Cristo como Sal, e Gregório Piaia, a contribuição da alta Idade Média
para a periodização da filosofia.
8
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
ARTIGOS
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
9
MARCO BARTOLI
10
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA
SANCTORUM COMMUNIO:
RIFLESSIONE SPIRITUALE O
MODELLO DI ECONOMIA
POLITICA?*
Marco Bartoli
(Libera Università “Maria SS. Assunta” di Roma
bartoli@lumsa,it)
“Il ‘tesoro dei meriti’ è l’amore di Dio che ha fondato la comunità
in Cristo, e nient’altro. La dottrina cattolica del thesaurus è una
razionalizzazione, moralizzazione e umanizzazione del dato di fatto
irrazionale, cioè che l’uomo non può fare mai più di quello che deve,
e che tuttavia nella comunità di Dio ciascuno fa ‘godere’ l’altro; ciò
ha a sua volta il fondamento nel fatto che Cristo è morto per la
comunità, affinché essa conducesse una sola vita basata sullo scambio
e sulla dedizione reciproci.” 1
Con queste parole Dietrich Bonhoeffer, nella sua tesi di dottorato
dedicata alla Sanctorum Communio del 1927, sintetizzava la sua acuta
* Il presente articolo è la riproduzione di una relazione tenuta al Convegno su
“Escatologia, aldilà, purgatorio, culto dei morti”, tenutosi a Tolentino, Italia, dal
26-28 ottobre 2005.
1. D. BONHOEFFER. Sanctorum Communio. Eine dogmatische Untersuchung zur
Soziologie der Kirche, Berlin, 1930, 2 ed. München, 1969, trad. it. Roma-Brescia,
1972, pp. 132-133.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
11
MARCO BARTOLI
rilettura di una dottrina, che pure non aveva cessato di suscitare polemiche
tra le diverse confessioni cristiane2 . Per il pastore della chiesa confessante
questo “scambio e dedizione reciproci” assumono valenze assolutamente
centrali per ogni ecclesiologia. E’ infatti a partire dalla Sanctorum
Communio che si comprende, ad esempio, il valore della preghiera di
intercessione: « Nel mio rapporto isolato con Dio viene introdotto un
terzo elemento –dice Bonhoeffer: nell’intercessione, io mi metto al posto
dell’altro, ed in tal modo la mia preghiera rimane mia, ma è recitata
partendo dal bisogno e dall’angoscia dell’altro; io entro veramente
nell’altro, nella sua colpa e nella sua angoscia, e vengo colpito dai suoi
peccati e dalle sue debolezze3 . »
Il cosiddetto “Simbolo degli Apostoli”, ancora oggi proclamato nel
corso delle celebrazioni liturgiche festive della Chiesa cattolica, recita:
“Credo nello Spirito Santo
La santa Chiesa cattolica,
la comunione dei santi,
la remissione dei peccati,
la resurrezione della carne
la vita eterna.”
In realtà, come è noto, il Simbolo di Nicea (325) e di
Costantinopoli (381), che il concilio di Efeso (431) vietava di
modificare, recitava in modo diverso, dicendo:
“Credo la Chiesa, una santa, cattolica e apostolica,
confesso un solo battesimo per la remissione dei peccati
e attendo la resurrezione dei morti e la vita del mondo che verrà.”
2. Lo stesso Bonhoeffer si era chiesto: “Solo perché la comunità conduce per così
dire una sola vita in Cristo, il cristiano può dire che la castità di altri l’aiuta nelle
tentazioni della concupiscenza, che la preghiera degli altri può essere offerta per lui
e che egli può trarre vantaggio dal digiuno altrui. Ma a questo punto non ci
avviciniamo forse pericolosamente alla dottrina cattolica del thesaurus, che sta al
centro di tutte le recenti concezioni cattoliche attorno alla sanctorum communio?”:
Idem, p. 132.
3. Ibid., p. 136.
12
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
Non vi era cioè nessun accenno alla “communio sanctorum”. Certo
si può sostenere che i Padri abbiano conosciuto questa dottrina, anche
senza utilizzare necessariamente l’espressione. Si può far riferimento
ad esempio alla teologia di Agostino4 o di Girolamo5 , anche se in
questi Padri ancora non compare l’espressione Communio sanctorum.
Il primo documento che attesti la formula comunione dei santi è
probabilmente una Spiegazione del Simbolo, il cui autore sarebbe Niceta,
vescovo di Remesiana del V secolo (amico di Paolino di Nola), che dice:
“Dopo aver professato la Beata Trinità, professa adesso la tua fede
verso la santa Chiesa cattolica. Ora, la Chiesa è forse altra cosa che la
Congregazione di tutti i santi? In effetti dall’origine del mondo,
patriarchi… profeti, apostoli, martiri, tutti gli altri giusti… sono una
chiesa sola; perché, santificati dalla fede comune e dalla vita comune,
segnati da un solo Spirito, essi sono diventati un solo corpo, e di
questo corpo il capo è Cristo, come attesta la Scrittura.
E dico inoltre che anche gli angeli e anche le virtù dei cieli e le
potenze sono confederate in questa unica chiesa… Dunque, in questa
unica chiesa, credi che otterrai la comunione dei santi. Sappi così che
4. D. Bonhoeffer ha sottolineato come «è stata la grande concezione di Agostino
quella di rappresentare la comunione dei santi, il nucleo della chiesa, come la
comunione degli esseri pervasi dall’amore, che, toccati dallo Spirito di Dio, irradiano
amore e grazia. Il perdono dei peccati non lo dà la chiesa organizzata, né il ministero
ufficiale, ma la comunione dei santi. Chi ha ricevuto i sacramenti, deve solo essere
inserito in questa corrente spirituale di vita; tutto ciò che è stato promesso alla
chiesa è promesso alla comunione dei santi, la quale ha il potere spirituale di aprire
e di chiudere, di legare e di sciogliere e può rimettere i peccati; è solo per opera sua
che tutto ciò che intraprende la chiesa ufficiale ha in sé lo Spirito di Dio. Con
questo si ha il modello di tutte le idee sulla sanctorum communio.» D.
BONHOEFFER, Sanctorum communio, p. 125-126; che cita AGOSTINO, De
baptismo contra Donatistas, V, 21, 29: «Sacramentum gratiae dat Deus etiam per
malos, ipsam vero gratiam non nisi per se ipsum vel per sanctos suos.
5. D. BONHOEFFER, Sanctorum communio, p. 83, n.1.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
13
MARCO BARTOLI
questa chiesa cattolica è unica, stabilita su tutta la terra, e di essa tu
devi fermamente custodire la comunione”6 .
Quasi contemporaneamente si registra la stessa espressione in un
piccolo trattato De Spiritu Sancto di Fausto di Riez, morto nel 4957 ;
ed anche in un altro trattato falsamente attribuito ad Agostino, Sulla
fede del Simbolo e i buoni costumi8 si parla ancora della communio
sanctorum. Per lungo tempo però il tema rimase per così dire sullo
sfondo ed i teologi alto medievali vi dedicarono scarso interesse.
I primi tentativi di una sistematizzazione della dottrina si ritrovano
in Bernardo da Chiaravalle 9 , ma anche Anselmo ne parla in
un’omelia10 , mentre Abelardo mostra di avere ancora una concezione
fluttuante dell’espressione Communio sanctorum11 ed Ugo di San
Vittore si rifà ancora essenzialmente alla lex orandi, che vede nella
santa liturgia il momento più intimo di comunione tra chiesa visibile
e chiesa invisibile.12
6. Cfr. PL 52, 871.
7. FAUSTO DI RIEZ, De Spiritu Sancto, l. I, c. II ; in PL 62, 9-40: “Gli articoli
che seguono nel Simbolo il nome del Santo Spirito, appartengono alla sua
conclusione: che noi crediamo alla santa Chiesa, la comunione dei santi, la remissione
dei peccati, la resurrezione della carne, la vita eterna”.
8. PL 39, 2189, nn. 240-244.
9. “Spiritum Sanctum, sanctorum communionem, ut… sanctorum comunione,
nostra insufficientia suppleatur. Si enim in sanctis dilexerimus Deum et ipsi pro
suorum exigentia meritorum nobis communicabunt beatitudinem apud Deum”
BERNARDUS CLARAVALLENSIS, Tractatus de charitate, al c. XXXIII, PL 184,
col. 633. Cf. anche Serm. In Cant., serm. 53, PL 183, col. 1037.
10. ANSELMO D’AOSTA, Homiliae et exortationes, hom. I, in PL 108, col. 587-589.
11. P. BERNARD, Communion des saints, in Dictionnaire de théologie catholique, f.
XIX, Paris, 1910,col. 444.
12. UGO DI SAN VITTORE, De sacramentis, l. II, part. XVI, c. X, PL 176, col.
594: In illo Jesu mysterio angelorum choros adesse, summis ima sociali, terrena
coelestibus jungi, unum quoque ex visibilibus fieri.
14
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
In ogni caso è Pietro Lombardo a fissare per sempre (nella
tradizione cattolica) la dottrina dei meriti dei santi; soprattutto è da
notare la distinzione 45ma del quarto libro, nella quale il Magister
affronta il tema dei suffragi dei defunti, arrivando a formulare
l’espressione merita eorum nobis suffragantur 13 . Anche dopo la
redazione del Libro delle Sentenze però la dottrina rimase per così
dire fluttuante. Per Alberto Magno la Communio sanctorum è la
comunicazione dei beni di tutti i santi, operata individualmente dallo
Spirito che santifica.14 Alessandro di Hales da un lato interpreta la
communio sanctorum come partecipazione ai sacramenti, che conferisce
il perdono dei peccati, dall’altro come la forza dell’unità di tutti coloro che sono membra del corpo di Cristo.15
Tommaso d’Aquino invece preferisce interpretare l’espressione
communio sanctorum come un sostantivo neutro, per cui, a suo avviso,
si tratta della comunione dei beni nella chiesa.16 Affermando però il
principio, secondo il quale, poiché tutti i fedeli costituiscono un solo
corpo, il bene dell’uno si comunica all’altro.17
13. Sent., lib. IV, dist. 45, c. 6, n. 6, in PL 192, col. 950 [ed. Quaracchi, vol. II, p.
529].
14. “non enim potest fieri communio sanctorum in bonis nisi per Spiritum Sanctum
totum corpus mysticum unientem et vivificantem”. ALBERTUS MAGNUS, In
IV Sent., l. III, dist. 24, q. 1, Paris, 1894, t. 15, p. 256.
15. “Vel credo quod unitas Ecclesiae tanta est, quod unusquisque qui membrum
est, particeps est omnium quae sunt totius corporis… Tanta igitur virtus unitatis,
quod quum sit particeps Christi, humiliter dicitur particeps famulorum Christi.”
16. “Unde et inter alia credenda quae tradiderunt apostoli, est quod communio
bonorum sit in ecclesia; et hoc est quod dicitur sanctorum communionem”: Thom,
Expositio in symbolum apostolorum, a. 10.
17. “Quia omnes fideles unum sunt corpus, bonum unius alteri communicatur”:
idem. Vedi anche Summa Theologiae, II-III, 83, a. 11; e Supplementum, s. q. 13,
a. 2; ed infine In IV Sent., dist. 20, q. unica, a. 2, quaestiunc. 3.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
15
MARCO BARTOLI
In ogni caso è nel corso del XIII secolo che la dottrina sulla
sanctorum communio si lega strettamente all’idea della speciale relazione
che unisce la chiesa militante, purgante e trionfante. Contribuisce a
tale evoluzione l’affermarsi della pratica delle indulgenze, che, a partire
dalle crociate, conosce una sempre più larga affermazione in diversi
contesti, fino ad arrivare alla grande celebrazione del giubileo nell’anno
1300; sono gli anni della piena affermazione della dottrina del
Purgatorio come luogo intermedio dell’al di là18 .
Il maestro che forse più di ogni altro ha contribuito
all’affermazione della dottrina della sanctorum communio come reciproca intercessione tra i santi della terra, del cielo e del purgatorio è
secondo il parere di alcuni, Bonaventura. Così il p. Bernard, in un
articolo sul Dictionnaire de théologie catholique del 1910, identificava
otto punti tratti dal Commento al IV libro delle Sentenze, in cui
Bonaventura avrebbe trattato della communio sanctorum. Al di là del
modo un po’ artificioso con cui il p. Bernard ha ricostruito la teologia
della communio sanctorum in Bonaventura a partire da passi che in
realtà sono disomogenei, non vi è dubbio che il dottore serafico abbia
sottolineato con particolare vigore l’importanza della comunione
spirituale nel corpo mistico della Chiesa. E’ questo il caso, ad esempio,
della prima questione del suo commento alla ventesima distinzione
del IV libro delle Sentenze, intitolata «Utrum unus pro alio possit
satisfacere». Gli argomenti “quod sic” si aprono con un passo della
lettera ai Galati, che dice: « Alter alterius onera portate» «portate gli
uni i pesi degli altri»; il commento di Bonaventura è che “i pesi da
portare sono innanzitutto quelli spirituali, perciò, se a qualcuno è
stata imposta una penitenza grave, è evidente che un altro può portare
una parte o anche tutto il peso di tale penitenza. Ed inoltre nella
18. Si fa riferimento, ovviamente, al saggio di J. Le Goff, La nascita del Purgatorio.
16
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
lettera si dice che « il peso della penitenza può essere sollevato con le
preghiere degli amici o l’elargizione di elemosine» e qui si parla di
colui che è gravemente malato.”19 Bonaventura ha una sensibilità
acuta per questa mutua dilezione tra i membri del corpo ecclesiale,
come si vede dall’argumentum successivo, che si basa sulla esperienza
diretta: « Inoltre, che ciò sia vero appare dalla ragione, anzitutto
attraverso la similitudine con le cose naturali. Vediamo infatti in
qualsiasi corpo di animale che un membro si espone per un altro, per
sopportare un colpo o una ferita al suo posto, e così un braccio si alza
in difesa del capo; se dunque nel corpo mistico vi è una connessione
paragonabile a quella del corpo naturale, è evidente che, in maniera
simile, un membro può e deve sostenere il peso di un altro»20 .
Ora tutti questi argomenti sono strettamente legati, in Bonaventura, alla riflessione sul Purgatorio e sul valore delle indulgenze. La
comunione dei santi non conosce i limiti imposti dalla morte, ma si
estende a coloro che attendono il giudizio, per i quali è possibile intercedere e lucrare indulgenze21 . Tutte queste riflessioni sono a loro
19. «Quaeritur igitur primo, utrum possit fieri satisfactionis commutatio, et hoc
est quaestionis fundamentum, scilicet, utrum unus pro alio satisfaciat. Et quod sic,
videtur. Ad Galatas sexto: Alter alterius onera portate; sed onera, quae maxime sunt
portanda, sunt onera spiritualia, ergo si alicui imposita est ponitentia gravis, videtur
quod aliquis partem vel totum possit pro eo portare. Item, in littera dicitur:
“Amicorum orationibus et eleemosynarum largitionibus pondus poenitentiae
sublevandum est”; loquitur de eo qui graviter infirmatur.»
20. «Item, hoc videtur per rationem, primo per simile in rebus naturalibus. Videmus
enim in aliquo corpore animalis, quod unum membrum se exponit, ut sustineat
laesionem et gravamen alterius, sicut patet, quod brachium se exponit pro capite;
si ergo in corpore mystico est connexio per assimilationem ad corpus naturale,
videtur similiter, quod unum membrum onus alterius possit et debeat supportare.»
21. BONAVENTURA DA BAGNOREGIO, In IV Senten., Dist. XX, vol. IV,
Quaracchi, 1889, p. 538: “Dico igitur, quod quia bona et thesaurus Ecclesiae est
in Summi Pontificis potestate, et illi qui sunt in Purgatorio, ratione caritatis idonei
sunt spiritualia beneficia recipere, quod papa potest eis bona Ecclesiae
communicare”.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
17
MARCO BARTOLI
volta intrecciate con un’ecclesiologia centrata sulla figura del papa,
perché la dottrina delle indulgenze appare strettamente connessa con
quella sulla plenitudo potestatis. Alla domanda «Utrum indulgentiae
tantum valeant, quantum predicatur» che risponde evidentemente a
dubbi correnti circa la possibilità di stabilire il valore da attribuire alle
indulgenze, Bonaventura argomenta dicendo che «come ogni vescovo
può concedere qualche indulgenza, ad esempio di 20 o 40 giorni, il
Sommo Pontefice, che può più di tutti i vescovi, perché ha la pienezza
del potere (plenitudinem potestatis) su tutti, può dare più di tutti gli
altri e perciò può condonare tutto, e se tutto, anche qualsiasi parte
del tutto»22 .
Alla fine del XIII secolo la dottrina della sanctorum communio
entra così a far parte della riflessione teologica della Chiesa cattolica;
dopo Bonaventura e Tommaso praticamente tutti i grandi maestri
torneranno sull’argomento.23 Parallelamente, mentre i teologi
sviluppavano il tema della communio sanctorum, i giuristi furono
attratti soprattutto dal tema delle indulgenze.24
Tra tutti i maestri che hanno dedicato attenzione a questa dottrina
merita però particolare attenzione un discepolo diretto di Bonaventura: Pietro di Giovanni Olivi. E’ merito di Ovidio Capitani l’aver
messo in relazione l’elaborazione e la formalizzazione della dottrina
22. «Item, aliquis episcopus potest aliquantam indulgentiam facere, esto quod viginti
dierum, vel quadraginta; sed Summus Pontifex plus potest quam omnes episcopi,
eo quod plenitudinem habet potestatis super omnes: ergo plus potest dare quam
omnes: ergo videtur quod totum possit condonare: ergo si totum, et per consequens
quantamlibet partem.», lib. IV, dist. 20, p. 2, a. 1, q. 6.
23. PIETRO DI TARANTASIA, In IV Sent., lib. III, dist. 25, q. 2, a. 2;
RICCARDO DI MIDDLETOWN, In IV Sent., lib. III, dist. 25, a. 1, q. 2; DUNS
SCOTO, In IV Sent., lib. IV, dist. 45, q. 4, a. 2; EGIDIO ROMANO, In IV Sent.,
lib. III, dist. 23, p. 2, q.1.
24. Si può ricordare ad esempio il tema dell’indulgenza legata al pellegrinaggio
presso una chiesa.
18
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
della communio sanctorum con il pensiero teologico del maestro
provenzale. Diceva Capitani: “la crociata, per le indulgenze plenarie,
le dediche di chiese e di altri edifici pubblici o di pubblica utilità, in
altri casi, sono nel tempo degli uomini: di tutti gli uomini. Ma “circa
finem temporis ecclesiastici”– come ricorda l’Olivi– l’indulgenza assume un valore del tutto particolare: è motivata da se stessa
“nichilominus valde congrua apparet… L’indulgenza ha un senso non
aritmetico, non procedurale, ma escatologico”. 25 E’ chiaro che
Capitani faceva riferimento qui soprattutto alla quaestio de indulgentia
Portiunculae che era stata edita dal p. Péano.
Dopo il 1986 l’interesse verso le opere di Pietro di Giovanni Olivi
ha prodotto tra l’altro una serie di edizioni critiche, che hanno
permesso di valutare appieno l’importanza del maestro provenzale
nella storia del pensiero del tardo medioevo.
Lo stesso Capitani, insieme a diversi altri, ha successivamente
messo in rilievo, ad esempio, il ruolo del tutto specifico di Olivi
nell’elaborazione di una coerente dottrina teologica in materia
economica. Il maestro francescano appare essere il più sistematico
interprete della nuova sensibilità minoritica nei confronti del vissuto
socio economico delle città italiane e provenzali del suo tempo.
L’edizione relativamente recente delle questiones de quodlibet consente di farsi un’idea piuttosto precisa di come il pensatore provenzale
entrasse nelle problematiche anche più concrete della vita associata
del suo tempo. In altra occasione mi sono occupato di alcune di queste
questioni relative al tema del giuramento, in questo caso mi sembrano
interessanti due quaestiones del IV Quodlibet: la quarta, relativa ad
25. O. CAPITANI, L’indulgenza come espressione teologica della “communio sanctorum”
e nella formazione della dottrina canonistica, in Indulgenza nel medioevo e perdonanza
di papa Celestino. Atti del Convegno storico internazionale, l’Aquila 5-6 ottobre
1984, L’Aquila, 1987, p. 29.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
19
MARCO BARTOLI
una compravendita di luoghi di sepoltura a cui ci si impegna con
giuramento (il problema però trattato da Olivi in questa quaestio più
che quello relativo alla comunione tra i santi ed i defunti è quello
relativo al giuramento, che sarebbe inficiato nel caso si trattasse di
simonia) e la 22, in cui ci si pone la domanda An missa, a malo sacerdote celebrata, tantum prosit animabus quantum celebrata a bono.
Il tema era piuttosto comune presso i teologi del tempo e lo si
ritrova, ad esempio, affrontato da Raymond de Peñafort nella sua
Summa, lib. III, tit. XXXIV, in cui si cita l’opinione di alcuni eretici
che citavano il passo evangelico peccatores non exaudit Deus [Gv 9,31],
e si dà la solutio 26 . Il dibattito sul potere di assolvere e sul valore dei
sacramenti risale, come è noto, alla riforma gregoriana, durante la
quale diversi eretici avevano messo in dubbio l’efficacia del suffragio
di una messa celebrata da un sacerdote indegno.
La quaestio di gran lunga più interessante, per il nostro tema, si
trova all’interno di un trattato De novissimis, che, come ha mostrato
Pietro Maranesi, venne in seguito inserito nel codice Vaticano 4986,
per formare l’ultima parte della Summa Quaestionum super IV
Sententiarum.27 La quaestio va datata, secondo Silvain Piron, verso il
1293-94, quando Olivi ormai risiedeva a Narbonne ed aveva superato
le lunge traversie della sua vita.
Il titolo della quaestio, che è la n. 13 nell’edizione Maranesi, è il
seguente: Queritur an sufragia vivorum vel indulgentie papales prosint
spiritibus defunctorum.
26. RAYMOND DE PEÑAFORT nella sua Summa, lib. III, tit. XXXIV, ed.
Vaticana, p. 456.
27. PETRI IOHANNIS OLIVI Quaestiones de novissimis. Ex Summa super IV
Sententiarum, curavit et edidit Petrus Maranesi, Ad Claras Aquas, Grottaferrata
(Roma), 2004.
20
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
E’ chiaro che il tema qui affrontato tocca solo metà del percorso
della communio sanctorum, cioè la forza di intercessione dei vivi per i
defunti, senza fare accenno alla forza dei meriti dei santi in favore dei
viventi. Ciò nonostante si tratta di una delle più chiare esposizioni
della dottrina sulla communio sanctorum alla fine del XIII secolo.
La quaestio presenta anzitutto i 7 argomenti in contrario, secondo
i quali le preghiere dei vivi e le indulgenze dei papi non possono
essere di giovamento ai defunti. Questi argomenti sono i seguenti:
“Primo perché, per la stessa ragione per la quale gli spiriti dei defunti
non possono più acquisire meriti per loro stessi, anche altri non
possono acquisire meriti per loro. O, al contrario, se altri possono
acquisire meriti per loro, appare più ragionevole che essi stessi
possano acquistar meriti per loro.
Secondo, perché la potestà del prelato non si estende se non ai
suoi sudditi, ovvero a quelli che sono sotto la sua gerarchia. Ma gli
spiriti dei defunti sono al di fuori dello stato di ogni nostra gerarchia
ecclesiastica e non sono soggetti alla potestà dei pontefici di questa
vita, perciò nessuna autorità di questi si estende fino a quelli.
Terzo, perché quegli spiriti non sono suscettibili ai nostri
sacramenti, la potestà ecclesiastica d’altra parte opera attraverso i
sacramenti e attraverso il merito di Cristo che si manifesta negli
stessi sacramenti.
Quarto, perché non si deve porre nulla nell’ordine divino che dissolva in tutto o in parte l’ordine della giustizia di Dio e degli stati
solennemente ordinati da Dio; ma, se attraverso i suffragi dei vivi
e le indulgenze dei papi possono essere rimesse in tutto o in parte
le pene soddisfattorie o purgatorie, allora si toglierebbe del tutto o
in parte la giustizia della dovuta soddisfazione e lo stato di
soddisfazione.
Quinto, poiché, se in tal modo si potrà rimettere tutta la pena a
quelli, per la stessa ragione si potrà rimettere tutta la pena, con gli
stessi modi, ai penitenti in questa vita; il ché sarebbe un evidente
incentivo al peccato, e sarebbe gravemente nocivo per la fruttuosa
disciplina e penitenza e l’acquisizione dei meriti.
Sesto, perché i nostri meriti appena sono sufficienti a noi e tutte le
nostre opere buone sono sufficienti e saranno ricompensate a noi
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
21
MARCO BARTOLI
nella gloria, non sembra possibile che oltre a ciò possano aiutare
altri ed essere date ad altri, e se fosse possibile che al di là delle
cose, che sono totalmente mie e totalmente mi saranno
ricompensate, esse possano essere comunicate ad un altro, allora
per la stessa ragione potrebbero essere comunicate ad infinite
persone, secondo quel principio per il quale diciamo che se il corpo potesse essere in due luoghi allora per questa ragione potrebbe
essere in infiniti luoghi.
Settimo, perché, o i nostri suffragi varranno di più per i migliori
tra loro, oppure varranno per quelli per i quali noi lo desideriamo,
anche se sono meno buoni: se varranno per i migliori allora sarà
frustrata la nostra intenzione e invano noi la applichiamo ad alcuni
di loro; se invece varranno per i meno buoni, per i quali più lo
desideriamo, allora sarebbe confuso l’ordine della giustizia e della
grazia di Dio, secondo il quale i benefici maggiori vanno spesi e
procurati per quelli che sono più degni e migliori.”28
28. «Primo, quia qua ratione spiritus defunctorum non possunt sibi ipsis de novo
mereri, videtur quod nec alii possunt eis mereri. Aut e contra, si alii possunt eis
mereri, rationabilius videtur quod ipsi debeant posse sibi ipsis mereri. Secundo,
quia potestas prelati non se extendit nisi ad suos subditos, nec nisi ad eos qui sunt
in statu sue ierarchie. Sed spiritus defunctorum sunt extra statum totius nostre
ecclesiastice ierarchie, nec sunt subditi potestati pontifìcum huius vite, ergo nulla
potestas istorum se extendit ad illos. Tertio, quia spiritus illi non sunt susceptibiles
sacramentorum nostrorum, potestas autem ecclesiastica operatur per intermedia
sacramenta et per meritum Christi ut eisdem sacramentis assistit. Quarto, quia
nichil est in ordine divino ponendum quod totaliter vel partialiter dissolvit ordinem
iusticie Dei et statuum solempniter ordinatorum a Deo; sed si per vivorum suffragia
et per papales indulgentias possunt pene purgatorie aut satisfactorie in toto vel in
parte remitti, tunc iusticia debite satisfactionis et status satisfactorii tollerentur
totaliter vel in parte. Quinto, quia qua ratione posset illis per hos modos tota pena
remitti, eadem ratione et multo maiori posset per eosdem modos tota remitti
penitentibus huius vite; quod utique esset incentivum peccandi, et fructuose discipline et penitentie et meritorum acquisitioni valde nocivum. Sexto, quia cum nostra
merita vix nobis suffìciant et omnia nostra bona opera suffìcient et remunerentur
nobis in gloria, non videtur quod ultra hoc possint alios adiuvare aut aliis dari; et
qua ratione, preter hoc quod sunt totaliter mea in me totaliter remuneranda, possunt
alteri communicari, eadem ratione possunt et infìnitis, iuxta quod et dicimus quod
qua ratione corpus posset esse in duobus locis eadem ratione et in infìnitis. Septimo,
quia aut suffragia nostra plus valebunt melioribus eorum, aut illis pro quibus magis
22
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
Nella risposta Olivi consente di spiegare il legame della dottrina della
communio sanctorum con quella relativa al purgatorio. Dice infatti:
[Rispondo] dicendo che la solenne professione [di fede] di tutta la
chiesa cattolica ritiene con certezza che le cose predette possono
giovare agli spiriti buoni dei defunti non ancora beati, ma non agli
spiriti dei dannati o dei beati.29
E qui riprende la dottrina classica già esposta da Pietro Lombardo:
Di certo non quelli dei dannati, sia perché sono separati da ogni vincolo
e comunione dei santi e di carità e di grazia eternamente ed
irrevocabilmente; sia perché per la stessa ragione per la quale i suffragi
ecclesiastici otterrebbero loro la remissione di una certa pena, per la
stessa ragione potrebbe essere rimessa una pena maggiore, dal che
deriverebbe che tutta la loro pena potrebbe essere del tutto rimessa, il
ché è contro la giustizia e l’immutabile sentenza del giudizio che Dio
ha dato su di loro. Ma nemmeno quelli dei beati, perché essi non
hanno bisogno del nostro aiuto, anzi siamo noi piuttosto ad aver
bisogno del loro aiuto, e la loro gerarchia è nei confronti della nostra
come una [gerarchia] superiore ad una inferiore e una madre verso la
figlia e una beata verso una misera, e come un’avvocata e una mediatrice
per i rei o per i miseri che hanno bisogno di intercessori. E tuttavia, in
quanto tutti i meriti degli inferiori ritornano in gloria dei superiori e
dei beati, si può dire bene che la loro gloria cresca per i meriti dei
fedeli in questa vita.
Agli spiriti dei defunti che si stanno purificando invece [tutte queste
cose] giovano e possono giovare, sia perché c’è il vincolo e la
comunione di grazia e di carità tra loro e i santi in questa vita; sia
perché sono bisognosi d’aiuto e, attraverso la carità che attraverso
intendimus quamvis minus bonis: si plus melioribus, ergo frustratur intentio nostra
et frustra eam alicui eorum appropriamus; si vero minus bonis, pro quibus magis
intendimus, tunc confunditur ordo iustitie et gratie Dei, secundum quem
dignioribus et melioribus sunt malora beneficia impendenda et procurando.»,
PETRI IOHANNIS OLIVI, Quaestiones de novissimis ex Summa super IV
Sententiarum, ed. P. Maranesi, Grottaferrata, 2004, p. 183-184.
29. «[II. Respondeo] Dicendum quod sollempnis professio totius ecclesie catholice
certudinaliter tenet bonos spiritus defunctorum nondum beatos per predicta iuvari,
non autem spiritus dampnatorum nec beatorum». Ibid. p. 184.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
23
MARCO BARTOLI
i buoni meriti, che ebbero mentre vivevano qui, non solo possono
ricevere aiuti superiori e caritatevoli, ma anche sono degni di essere
aiutati sia dai santi di questa vita che dai beati.30
E’ proprio perché la dottrina della communio sanctorum si riferisce in
particolare alla speciale relazione di grazia che lega i fedeli viventi ai fedeli
defunti non ancora beati31 , che la formalizzazione di tale dottrina non
appare prima del XIII secolo inoltrato quando ormai l’idea del purgatorio
30. «Dampnatorum quidem non: tum quia ab omni nexu et communione
sanctorum et caritatis et gratie sunt etemaliter et irrevocabiliter separati; tum quia
qua ratione posset per ecclesiastica suffragia eis tanta pena remitti, eadem ratione
posset per ampliora amplior remitti aut saltem tantumdem; ex quo sequeretur
quod tota eorum pena posset omnino remicti, quod est contra iustitiam et
immobilem sententiam iudicii Dei super eos dati. Beatorum etiam non, quia nostro
subsidio non egent, ymmo potius nos egemus subsidio eomm, eommque ierarchia
omnino se habet ad nostram tamquam supprema ad infìmam et mater ad fìliam et
beata ad miseram et tamquam advocatrix et mediatrix ad reos vel inopes
intercessionibus indigentes. Attamen pro quanto merita omnia inferiorum
redundant in gloriam superiorum et beatorum, bene potest dici eorum gloriam
accrescere ex meritis fìdelium huius vite. Spiritibus autem defunctorum purgandis
prosunt et prodesse possunt, tum quia nexus et communio gratie et caritatis est
inter eos et sanctos huius vite; tum quia auxilio egent, et per caritatem et per bona
merita, que dum hic viverent habuerunt, non solum sunt susceptibiles superni et
caritativi subsidii sed etiam sunt digni et promeriti adiuvari tam a sanctis huius
vite quam a beatis.» Ibid.
31. Olivi riprende qui la dottrina classica ed in particolare, quasi alla lettera, le
parole di Bonaventura nel Breviloquium, VII, 3: «De suffragiis autem ecclesiasticis
hoc tenendum est quod suffragia ecclesiae prosunt mortuis suffragia dico quae
ecclesia pro mortuis facit sicut sunt sacrificia ieiunia eleemosynae et aliae orationes
et poenae voluntarie assumtae pro eorum culpis celerius et facilius expiandis. Prosunt
autem mortuis non quibuscumque sed mediocriter bonis utpote illis qui sunt in
purgatorio non valde malis scilicet illis qui sunt in inferno nec valde bonis scilicet
his qui sunt in caelo quin potius e converso eorum merita et orationes suffragantur
ecclesiae militanti cuius membris multa beneficia impetrant beati. Prosunt autem
secundum magis et minus vel pro diversitate meritorum in mortuis vel pro caritate
vivorum quae magis sollicitatur pro aliquibus quam pro aliis et hoc vel ad poenarum
mitigationem vel celeriorem liberationem secundum quod supernae providentiae
dispensatio melius eis viderit expedire».
24
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
come luogo separato dell’al di là era ormai consolidata nell’immaginario
collettivo e nella cultura teologica dei maestri32 .
In particolare gli argomenti in contrario proposti nella quaestio
sembrano centrarsi attorno a due ordini di problemi: il primo riguarda
la giustizia divina perché la pratica delle indulgenze potrebbe indurre
ad un rilassamento della penitenza, nella speranza di poter acquisire
la grazia a poco prezzo, il secondo problema riguarda la giustizia umana
perché l’applicazione delle indulgenze per la salvezza di altri potrebbe
ledere il principio fondamentale della responsabilità personale in base
al quale ognuno deve rispondere davanti a Dio delle azioni e delle
omissioni da lui compiute.
Le risposte di Olivi sono quanto mai pertinenti. Egli infatti non
si nasconde il rischio di un rilassamento e dice:
Al quinto [argomento in contrario, rispondo] dicendo che per
ottenere le indulgenze papali bisogna osservare soprattutto due
cose. La prima è che colui che riceverà o che godrà dell’indulgenza
l’accolga con reverenza ed in modo degno, infatti se si accosta ad
esse [le indulgenze] con un proposito di una vita più rilassata e
con disprezzo o rifiuto della penitenza e della disciplina forte e
medicinale, allora non solo per ciò stesso è privato dal dono e dal
frutto di esse, ma pecca gravemente e forse in maniera mortale. E
quindi accade, se si pensa di averle ad un modico prezzo o con
poca fatica, considerandole quasi cose vili e venali, e si da o ci si
sforza per esse poco, così che si sia mossi più dal basso prezzo che
dalla grazia di Dio e dalla stima piena di venerazione e devozione
per esse e per essi. [Accade qualcosa di ] simile nel ricevere il corpo
di Cristo o gli ordini sacri, per prendere i quali ognuno è tenuto
ad avere, oltre le prime purificazioni da ogni peccato mortale a sé
noto o che si può conoscere in modo conveniente, anche una
reverenza nella pratica e una devozione fino ad una certa misura
congrua e degna, proporzionata allo stato che si va a ricevere.
32. Il Riferimento obbligato è al classico J. Le Goff, La naissance du pourgoitoire,
Paris, 1981.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
25
MARCO BARTOLI
La seconda cosa [da osservare] è che nel dono di esse
verosimilmente ci sia e si manifesti un certo onore di Dio e del suo
culto; mentre il contrario di ciò è quando verosimilmente dal loro
dono sembra derivare nella Chiesa un rilassamento della disciplina
comune e una diminuzione della devozione verso Dio; in cui infatti è
da temere grandemente che non solo non si ottenga nessun frutto di
indulgenza, ma che anzi tanto chi dà quanto chi prende [tali
indulgenze] non incorra(no) in un peccato mortale.33
La conclusione in ogni caso è che la giustizia divina non è messa
in causa dalle indulgenze, perché
Dove tuttavia la devozione della fede e del culto divino e del merito
di Cristo e l’onore verso le sue misericordie ricompensa potentemente e sufficientemente la giustizia ed il rigore della nostra
penitenza soddisfattoria, allora non si lede l’ordine della giustizia,
né con tale forma di dono si incentiva il peccato (se non forse
casualmente in qualche caso particolare) quando piuttosto si dà
motivo per credere e sperare di più in Dio e per amarlo, adorarlo e
lodarlo più intimamente e soavemente e per stimare e venerare di
33. «Ad quintum dicendum quod indulgentiis papalibus obtinendis duo sunt
precipue attendenda. Primum est, ut susceptor seu obtentor indulgentie reverenter
et digne suscipiat eas, nam si ex proposito laxationis seu vite laxioris et cum
contemptu seu neglectu virtualis et medicinalis penitentie et discipline accedat ad
eas, non solum eo ipso privatur dono et fructu earum, ymmo peccat graviter et
forte mortaliter. Et inde contingit, si quasi viles et venales eas pro modico precio
vel labore se habere estimans, dat pro eis modicum vel laborat, ita quod potius
movetur ab hac vilitate precii quam ex gratia Dei et reverenda estimatione et
devotione earum et eorum. Simile est in suscipientibus corpus Christi aut ordines
sacros in quorum susceptione preter primas emundationes ab omni peccato mortali
sibi noto aut competenter cognoscibili, tenetur quis habere actualem reverentiam
et devotionem usque ad aliquam mensuram congruam et condignam statui
suscipientis proportionatam. Secundum est, ut in earum donatione probabiliter
adsit et pateat aliqua honorifìcentia Dei et sui cultus; cuius contrarium est quando
ex eius donatione probabiliter apparet sequi in ecclesia communis laxatio discipline et remissio devotionis in Deum; in quo enim est valde pertimiscendum, ne non
solum nullus fructus indulgentie impetretur, ymmo etiam tam dans quam suscipiens
reatum mortis eteme incurrant.» Ibid. p. 186.
26
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
più il merito di Cristo e dei suoi santi e per sentire con molta più
umiltà i propri meriti ed avere una percezione molto meno elevata
di essi.34
D’altra parte anche l’applicazione dei suffragi alla salvezza di altri
non lede il principio della responsabilità personale, perché
… le nostre opere buone possono essere considerate in un duplice
modo: uno, rispetto alla loro bontà formale e alla radice interna di
carità dalla quale sgorgano; due, rispetto al debito di talune pene
che esse sciolgono e per il quale esse sono fatte e sono offerte.
Secondo il primo modo esse non giovano a nessuno, se non a
colui che le compie, e perciò nessuno può formalmente divenire
buono o più santo o più degno della vita eterna per i meriti di
qualcun altro, se non in ragione di un’abitudine formale o di un
formale modo di avere, e si intende un modo giurisdizionale di
avere il merito di Cristo, che si ha per una speciale comunicazione
dai suoi membri. Ma è proprio in questo modo che [le opere buone]
possono giovare ad altri oggettivamente o per via di intercessione,
come infatti la luce del sole virtualmente si diffonde negli altri,
benché formalmente non sia in nessun altro se non nel sole; così la
bontà formale dei santi si effonde efficacemente negli altri, benché
formalmente giovi a loro soli. Secondo il secondo modo, non si
può sciogliere il debito superando il suo prezzo, né sciogliere alcun
altro debito, ma solo quello per il quale [le buone opere] sono
fatte. E in questo modo, se un vivente adempie per un defunto
un’opera che doveva adempiere quello, con ciò egli non è per nulla
assolto da quella pena che da vivo meritava per se stesso, se non
soltanto in quanto (secondo il primo modo di vedere [le opere
buone]) diviene grazie a tale opera formalmente migliore e a Dio
più accetto.
34. «Ubi tamen devotio fìdei et divini cultus ac meriti Christi et misericordiarum
eius honorifìcentia prevalenter ac suffìcienter recompensat nostre satisfactorie
penitentie iustitiam et rigorem, tunc non leditur ordo iustitie, nec ex tali forma
dandi datur incentivum peccati, nisi forte per accidens et in particulari, quando
potius datur ratio amplius credendi et sperandi in Deum et in ipsum viscerosius ac
suavius diligendi ac colendi et collaudandi et Christi ac sanctorum suorum meritum
amplius estimandi et venerandi et de propriis meritis humilius sentiendi ac de eis
longe minus presumendi». Ibid. p. 187.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
27
MARCO BARTOLI
L’argomentazione di Pietro di Giovanni Olivi è tutta centrata sul
primato della carità sulla giustizia e quindi del perdono sulla punizione.
La sanctorum communio si presenta quindi come modello della comunità
cristiana ed anzi, in qualche modo, ne rappresenta per così dire l’essenza:
i rapporti vicendevoli che legano tra loro i diversi membri della chiesa
sono tali da superare anche la divisione rappresentata dalla morte.
Cosa può aver spinto il maestro provenzale ad accentuare così
l’importanza dei suffragi e delle indulgenze? Certamente, come aveva
osservato Capitani, la consapevolezza di trovarsi al momento finale
della storia, un momento segnato dalla lotta decisiva tra il bene e il
male e quindi particolarmente bisognoso di speciali effusioni di grazia
quali, appunto, le indulgenze. Ma forse anche un altro ordine di
riflessioni può aver portato Olivi ad accentuare questi aspetti. Mi
riferisco qui alla sua riflessione sulla realtà economica del suo tempo.
Tutto il vocabolario delle indulgenze è infatti un vocabolario tratto
dal linguaggio economico: mereor significa meritare, ma anche
guadagnare e dunque il meritum è il guadagno; e, d’altra parte
satisfacere vuol dire soddisfare, pagare un debito, per cui l’espressione
chiave meritum satisfactorium può essere interpretata come “un
guadagno che salda un debito”.
La teologia delle indulgenze è teologia economica35 . Lo stesso
Bonaventura aveva ampiamente utilizzato il lessico economico per
spiegare la sua teoria della communio sanctorum, non esitando a
presentare Dio più avido di un usuraio che rivuole indietro il suo
denaro ed il papa come un investitore che, avendo preso in prestito
una somma, è tenuto a restituirla non appena è in grado di farlo.36
35. Vedi anche “Misericorditer relaxamus”. Le indulgenze tra teoria e prassi del
Duecento, a cura di L. Pellegrini e R. Paciocco, in “Studi medievali e moderni”, III/
1 (1999).
36. «Item, hoc videtur per simile in humanis actibus. Videmus enim, quod sic est
in actibus, quos si aliquis est alicui debitor, non refert apud creditorem, utrum
ipse, vel alius solvat, immo pro eodem utrumque acceptat: si ergo multo benignior
28
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
I lavori di Chiffoleau e di Todeschini, tra gli altri, hanno mostrato
bene come nel XIII secolo non si avvertisse una netta distinzione di
piani tra economia di mercato ed economia spirituale37 . Beni materiali
e beni celesti si potevano interscambiare in un mercato di cui i conventi
dei frati mendicanti erano uno degli snodi più importanti. Tutta la
riflessione portata avanti in particolare dai teologi francescani (ed Olivi
ha qui un ruolo molto rilevante) è segnata dalla riflessione sulla liceità
del guadagno. La distinzione che viene proposta è quella tra il mercante, che utilmente mette la sua arte al servizio della collettività, per
fornire beni altrimenti irreperibili e per accrescere il bene comune, e
l’usuraio che invece interpreta la propria ricchezza soltanto come
accumulazione improduttiva di beni. In tal senso è lecito solo quel
guadagno (meritum) che, una volta soddisfatti i bisogni legati al
necessarium si ridistribuisce a tutti i poveri cui nel piano divino era
equamente attribuito.
Olivi arriva fino al punto di presentare il mercato come il modello
della società cristiana, perché esso, nella sua lettura, diviene il luogo
dello scambio virtuoso dei beni per il benessere di tutti. Come ha
affermato Todeschini: « Il mercato, lo scambio, il commercio sono
est Deus et avidior ad percipiendam solutionem quam homo terrenus; videtur
quod ipse sit contentus et sibi sufficiat, si alius satisfaciat pro eo.» S.
BONAVENTURAE Opera theologica selecta, t. III: Liber IV Sententiarum, dist.
20, p. 2, a. 1, q.1; « Item, qui promittit aliquantam summam pecuniae alicui
tenetur ei, si est in solvendo; sed Summus Pontifex et alii, qui dant indulgentias,
promittunt aliquam partem poenitentiae relaxare: ergo si potest, solvere tenetur.
Quod autem possit, videtur per illud quod dicitur secundae ad Conrinthos secundo: Si quid donavi in persona Christi; Glossa: “Ac si Christus donasset”; sed Christus
potuit totum condonare, ergo, ecc.» lib. IV, dist. 20, p. 2, a. 1, q. 6.
37. JACQUES CHIFFOLEAU, La comptabilité de l’au-delà, les hommes, la mort
et la religion dans la ragion d’Avignon à la fin du Moyen Age, Rome, 1980; Id.,
Conclusione, in L’economia dei conventi dei frati minori e predicatori fino alla
metà del Trecento, SISF 31, Spoleto, 2004, pp. 405-448.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
29
MARCO BARTOLI
descritti da Olivi come realtà totalmente sociali o, meglio, come il
modo che i laici hanno a disposizione per contribuire secondo le loro
possibilità alla costruzione di una società cristiana”.38 Nel suo trattato
Sulle compere e sulle vendite, rispondendo alla domanda Se chi compra
una cosa qualunque per rivenderla a un prezzo maggiorato, senza averla
trasformata né migliorata, come di solito fanno i mercanti, pecchi ciò
facendo mortalmente o almeno venialmente, sostiene al contrario gli
indiscutibili vantaggi e cose necessarie che provengono alla comunità
dalle azioni e dal mestiere del mercante e, insieme a ciò, dal peso delle
fatiche, dai rischi, spese, industrie e dalle attenzioni sollecite e insonni
che tale ufficio esige. Si sa infatti che molte cose mancano in una città o
territorio, le quali invece abbondano in un altro. Coloro però che sono
occupati nell’agricoltura e negli altri lavori manuali, oppure nel pubblico
governo del paese o nell’esercito, non possono comodamente e agevolmente
recarsi in regioni lontane per comprare e riportare in patria le cose di cui
hanno bisogno. Pochi possiedono infatti industria e perizia adatte a ciò.
Quindi è conveniente alla comunità che a questo compito vengano
deputati alcuni individui a ciò adatti, e ai quali certamente spetta una
qualche ricompensa poiché, secondo l’Apostolo ‘nessuno mai milita a sue
spese’ (I Cor IX,7) e difficilmente si troverebbe chi senza guadagno volesse
impegnarsi in questa opera”.39
Il legame tra tutto questo e la dottrina della communio sanctorum
appare evidente. L’ipotesi è che i due modelli economici, quello celeste (la comunione dei santi) e quello terreno (il mercato della città
cristiana) siano tra loro speculari. Difficile dire quale dei due modelli
sia all’origine dell’altro, e cioè se, nel pensiero di Olivi e degli altri
38. G. TODESCHINI, ricchezza francescana, p. 117.
39. Cfr. PIETRO DI GIOVANNI OLIVI, Usure, Compere e Vendite. La scienza
economica del XIII secolo, a cura di A. Spicciani, P. Vian e G. Andenna, Milano,
1990, p. 90-91.
30
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...
maestri che lo seguiranno, l’economia celeste preceda o segua quella
terrena.
In questo senso la critica alle indulgenze di Martin Lutero, che,
all’inizio del XVI secolo, stigmatizza tra l’altro il legame tra concessione
della indulgenza e offerta pecuniaria da parte del fedele40 , coglierà
un aspetto sostanziale della dottrina della communio sanctorum così
come si era andata elaborando da alcuni secoli. La riflessione e la
pratica economica dei francescani a partire dalla fine del XIII secolo
si è sviluppata infatti dai presupposti che si è cercato di enucleare. In
particolare sarà l’Osservanza, con la riflessione economica di
Bernardino da Siena, come è noto, a riprendere in profondità le tesi
di Pietro di Giovanni Olivi.
Si può infine solo accennare al fatto che, proprio dalla prassi
pastorale dei frati dell’Osservanza nasceranno i primi Monti di Pietà,
che non sono altro che la messa in pratica delle dottrine economiche
da tempo messe a punto dai teologi mendicanti. Il “monte” infatti”
non è altro che il luogo fisico in cui vengono raccolti i guadagni (i
meriti) acquisiti in sovrappiù per essere poi equamente ridistribuiti
secondo il bisogno di ciascuno41 . Il parallelo con l’idea del tesoro dei
meriti da cui la chiesa provvidenzialmente trae le grazie da distribuire
a ciascuno attraverso le indulgenze, appare suggestivo. Si tratta di un
filone di ricerca che potrebbe dare risultati inaspettati.
40. Cfr. MARTINI LUTHERI Disputatio pro Declaratione Virtutis Indulgentiarum
(95 Theses): «XXVII. Hominem predicant, qui statim ut iactus nummus in cistam
tinnierit evolare dicunt animam. XXVIII. Certum est, nummo in cistam tinniente
augeri questum et avariciam posse: suffragium autem ecclesie est in arbitrio Dei
solius.» cfr. PAOLO RICCA – Giorgio Tourn, Le 95 tesi di Lutero, Torino, 1998.
41. Cfr. MARIA GIUSEPPINA MUZZARELLI, Il denaro e la salvezza. L’invenzione
del Monte di Pietà, Bologna, 2001.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
31
MARCO BARTOLI
32
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA
LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ, TRA
METAFISICA E FILOSOFIA POLITICA
Luca Parisoli
(Università della Calabria, Italia; e-mail [email protected])
La natura empirica non determina la volontà e la nostra persona
con una preferenza per questo o quello, e neppure
questa cosa empirica ci determina di più di quell’altra
Unde per naturam non determinatur voluntas nostra
nec persona nostra plus ad hoc quam ad illud nec ipsa
re de vi naturae plus ad hunc quam ad illum
Olivi, Quaestiones de perfectione evangelica 8,
An statu altissime paupertatis sit simpliciter melior
omni statu divitiarum, ed. Schlageter 1989, R. II., 125
Introduzione
Vorrei cercare di mostrare il ruolo assunto da Olivi nel percorso
che porta a fare emergere un concetto cruciale per la storia della cultura dell’Occidente latino1 , quel concetto di diritto soggettivo2 che
si dipana grazie ad una difesa strenua della libertà della volontà come
proprietà essenzialissima della persona (e Olivi gioca un ruolo determinante su questo punto) sino alle libertà costituzionali, ed a una
1. Il materiale di questo articolo è una rielaborazione di mie ricerche precedenti
che ho rivisto e aggiornato per l’occasione. Mentre invio questo testo, mia moglie
Antonella attende di partorire la nostra secondogenita, che vogliamo battezzare
come Rita: a loro due, e al piccolo Francesco-Flavio, dedico queste pagine, perché
senza la loro comprensione non avrei potuto mai elaborarlo.
2. Cf. A.S. BRETT. Liberty, Right and Nature. Cambridge, 1997.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
33
LUCA PARISOLI
nuova maniera di pensare la presenza di un Ordine religioso, quello
francescano, all’interno delle regole del mondo, tanto che l’identità
francescana modella una nuova concezione del diritto (e su questo
punto Olivi rappresenta una corrente minoritaria nell’Ordine per il
suo nominalismo giuridico, che si esplicita senza esitazioni sulla natura
stessa del diritto naturale3 ). Come ho già sostenuto in passato, l’idea
di diritto soggettivo è stata sviluppata all’interno di una filosofia
volontarista e delle dispute sull’identità del frate minore nel mondo
sociale che lo circonda e in cui si muove4 .
Olivi non ha la posizione normativista di Scoto oppure di
Ockham, a loro volta divisi da teorie ontologiche assolutamente
alternative: mentre questi ultimi due condividono la tesi di un uso
delle cose prive di ogni diritto (purché l’utilizzatore, il frate minore,
non voglia avere alcun diritto), Olivi vede un che di ipocrita in questo
atteggiamento e preferisce elaborare una teoria dell’usus pauper che si
3. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, edite a
cura di Bernard Jansen, Quaracchi 1922-26, I-III, q. 82, III, pp. 174-178: la legge
naturale non è concreata né all’intelletto, né alla volontà, quindi dipende da essi:
Olivi distingue i significati della legge naturale, e in ogni variante indipendente
dalla nostra mente ne deduce che la norma non aggiunge nulla a ciò che esiste,
“nihil reale addunt super actus et habitus mentis”. Al contrario, in quanto passione
naturale, per esempio, la legge naturale è reale, ma non è una norma. Nel senso
invece per cui la legge naturale è la volontà di Dio, e la norma recita che siamo
tenuti a conformarci ad essa, allora la norma è reale, tesi ribadita nel Quid ponat
ius, vel dominium, che peraltro riafferma la natura nominale del diritto umano.
Insomma, rispetto al diritto Olivi non è un nominalista ingenuo, bensì analitico e
ben preciso nelle sue posizioni.
4. Cf. P. A. FOLGADO. «La controversia sobre la pobreza franciscana bajo el pontificado de Juan XXII y el concepto del derecho subjetivo», La Ciudad de Dios, 172
(1959) pp. 73-133; G. TARELLO. Profili giuridici della questione della povertà nel
francescanesimo prima di Ockham. Milano, 1964; P. GROSSI. “Usus facti” (1972), in:
P. Grossi. Il dominio e le cose. Milano, 1992; L. PARISOLI. Volontarismo e diritto
soggettivo. Roma, 1999, con una lunga prefazione di Andrea Padovani estremamente
articolata e puntuale.
34
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
focalizza sulla fenomenologia dell’uso da parte del frate minore
piuttosto che sulla struttura normativa di tale uso5 . E’ chiaro che da
un punto di vista spirituale, o meramente psicologico, l’atteggiamento
di Olivi sembra andare all’essenziale, tuttavia la sua posizione mina la
certezza del diritto per un osservatore giuridico della Regola, dato
che la violazione della Regola produce un peccato mortale e se la
teoria dell’usus pauper è valida, allora non si è certi a priori quando la
Regola sarà violata. L’usus pauper, infatti, si accerta completamente
solo a posteriori, trattandosi di una importante variabile psicologica.
Ma Olivi non era imbarazzato da questa conseguenza, poiché si
muoveva a un livello mistico ben più che giuridico (e del resto, in
quanto nominalista giuridico, il diritto e le norme non erano una
realtà indipendente dalle decisioni umane, quindi meramente
convenzionale): i suoi critici erano invece realisti per quanto riguarda
le norme (lo stesso Ockham, nominalista logico, è invece realista sulle
norme, dato che l’onnipotenza divina è per lui certissima, e quindi
sono certissime le norme reali che la volontà di Dio pone), e si
muovono su un altro livello di discorso. La divergenza, quindi, parte
dall’atteggiamento stesso sulla realtà o convenzionalità delle norme:
per Scoto o Ockham le norme sono una guida per il Cielo, per Olivi
non possono esserlo perché non sono reali e invece convenzionali,
mentre reali sono gli esiti della volizioni della persona umana, e su di
esse sarà giudicata.
La seconda metà del XIV secolo ha conosciuto un autore come
Jean Gerson, e dopo di lui Conrad Summenhart, che hanno difeso il
diritto soggettivo, ma non hanno sviluppato una teoria delle libertà
politiche6 . Questo richiede l’applicazione del diritto soggettivo al
5. D. BURR. Olivi and Franciscan poverty: the origins of the usus pauper controversy.
Philadelphia, 1989.
6. A.S. BRETT. Liberty, Right and Nature. pp. 86-87.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
35
LUCA PARISOLI
dominio pubblico, un claim che il cittadino rivendica contro il governo: occorre disporre, affinché questa idea non sia meramente
rivelata da una lotta politica di fatto (come è il caso della Magna
Charta del 1215, che è un fatto politico, non già una teoria), di una
teoria che lega la libertà di ciascuno con la fonte della legittimità del
potere. Né Marsilio da Padova7 , né Enrico di Gand8 producono un
tale manufatto filosofico che resta una primizia della scuola
francescana9 .
L’indagine non può prescindere dalla teoria oliviana del libero
arbitrio proprio perché lo scopo è una teoria generale del diritto e
delle norme dei diritti: i francescani hanno influenzato l’evoluzione
della cultura anche per altre vie più ‘fattuali’, come ho cercato di
mostrare nel mio articolo sul trust in Inghilterra10 . Il caso di Olivi è
particolare, dato che è un nominalista giuridico: la ricchezza di analisi
economiche che egli sviluppa, situazioni concrete e reali di persone
nella loro dimensione sociale, non rinvia alla stessa ricchezza nel
dominio giuridico, che è in senso ontologico irreale. La nascente teoria economica, che deve moltissimo a Olivi, come ha mostrato
7. Ibidem, pp. 63-64, nota 43.
8. Lo sforzo prodotto da R. MACKEN. «Henry of Ghent as Defender of the Personal
Rights of Man», Franz. Studien, 73 (1991) pp. 170-181, è una dimostrazione della
debolezza della ricerca di una teoria dei diritti individuali in Enrico di Gand. Resta
il fatto che i suoi scritti sviluppano una attenzione per le fattispecie della vita sociale
e politica, che mi pare però più ancorata alla teoria orizzontale del potere che non
alla nuova realtà urbana che pure descrive e alla teoria gerarchica del volontarismo
francescano (cf. la voce di F. LAJARD. Henri de Gand, in: Histoire littéraire de la
France. Paris, 1895, vol. XX, pp. 197-199).
9. Sul primato della scuola francescana intorno all’idea di libertà, cf. O. LOTTIN.
«Le concept de liberté chez les Maîtres franciscains du XIIIe siècle», Lumières d’Assise,
3 (1948) pp. 52-65.
10. L. PARISOLI. «Théorie et pratique de la pauvreté: les frères mineurs au Royaume
Uni», in Antonianum, 78 (2003) pp. 627-650.
36
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
Todeschini, diventa una vera e propria economia politica quando si
associa alla sua metafisica, in particolare lo strumento fenomenologico
del l’usus pauper legato alla perfezione evangelica e alle possibilità di
un’antropologia umana incontaminata.
Non voglio sostenere che vi sia un legame necessario tra metafisica
volontarista e teoria dei diritti politici individuali11 , tanto più che
quest’ultima teoria si è sviluppata in età Moderna indipendentemente
da una metafisica volontarista nel senso francescano (anzi, con la
Modernità la stessa nozione di volontà è radicalmente mutata, da
Cartesio in poi). Mi pare che Olivi produca una teoria della libertà
che fonda la persona stessa e la sua libertà, attraverso una volontà che
è causa a sé stessa12 , e con questo la sua metafisica produce una nuova
teoria politica di tipo costituzionale.
I. Precisazioni concettuali, dal diritto soggettivo alle libertà
costituzionali
Posso dire che quando avanzo la tesi che la scuola francescana ha
introdotto l’idea di diritto soggettivo voglio affermare che nella scuola
francescana troviamo:
1) l’idea che esiste un diritto che non fonda il suo titolo legittimo
grazie all’appello ad un ordine naturale delle cose e che non è quindi
invocabile dalla parte giudice a prescindere da una ben determinata
domanda delle parti (ossia l’idea di un diritto non-oggettivo accanto
11. C. ZUCKERMAN. «The Relationship of Theories of Universals to Theories of
Church Goverment in the Middle Ages: A Critique of Previous Views», Journal of
the History of Ideas, 36 (1975) pp. 579-592.
12. Cf. F.X. PUTALLAZ. Figures franciscaines à la fin du XIIIe siècle. Paris, 1997; R.R.
EFFLER. John Duns Scotus and the Principle “Omne quod movetur ab alio movetur”.
Nova York, 1962.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
37
LUCA PARISOLI
a quello oggettivo che fonda tutto il sistema giurdico secondo San
Tommaso)13 ;
2) l’idea che questo diritto è costituito (e non più semplicemente
dichiarato) da una volontà, che può essere sia quella di Dio, sia quella
del legislatore, sia quella di coloro che partecipano al contratto;
3) l’idea che questo diritto, essendo legittimato solo dalla volontà
competente, è tale per cui di volta in volta l’autorità competente può
rinunciare a far valere il suo diritto: Dio può rinunciare ad applicare
una legge che lui stesso aveva stabilito (una specie di misericordia
normativa); il legislatore può porre la deroga ad una legge; la parte
lesa può rinunciare ad agire in giustizia contro la parte che gli ha
procurato un danno.
In questo senso l’elemento teorico che caratterizza gli autori della
scuola francescana è il primato della volontà. E’ questo primato che
diventa un vero e proprio postulato metafisico presso Scoto14 e che,
associato alla diffidenza verso le nuove posizioni aristoteliche15 , riesce
13. A volte si è cercato di dimostrare che San Tommaso utilizza la nozione di
diritto soggettivo (cf. J.M. AUBERT. Le droit romain dans l’oeuvre de Saint Thomas.
Paris, 1955, p. 91, con il rinvio a H. HERING. De iure subjective sumpto apud S.
Thomas, in: Angelicum 12 (1935) pp. 295-297), ma il fatto che vi siano delle
espressioni in San Tommaso che fanno l’equivalenza tra ius e potere (e la cosa non
è per nulla evidente, cf. A. FOLGADO, La controversia sobre la pobreza franciscana)
non significa per nulla che esista una teoria del diritto soggettivo tommasiana,
come del resto Aubert confessa candidamente: “lorsque S. Thomas parle de ‘ius’,
sans aucune spécification, ou de façon officielle, il l’entend alors au sens objectif ”
(loc.cit., nota 2, in fine).
14. Cf. John DUNS SCOTUS. Contingency and Freedom. Lectura I 39. Dordrecht
1994 (testo latino, traduzione inglese, commentario interlineare a cura del Research
Group John Duns Scotus).
15. F. D’AGOSTINO. La tradizione dell’epieikeia nel medioevo latino, Milano 1976;
D. BURR, Petrus Ioannis Olivi and the Philosophers, in Franciscan Studies 9 (1971)
pp. 41-71.
38
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
a fondare una filosofia volontarista che può così riassumersi: la norma (ovvero il significato d’un enunciato normativo) è un atto di
volontà, e null’altro.
Il primo grande protagonista di questo percorso di sviluppo della
nozione di diritto soggettivo, era stato Olivi, anche se sin dalla Summa
fratris Alexandri troviamo elementi utili per ricostruire questo percorso:
Michel Villey non si era sbagliato nella sua intuizione fondamentale16 ,
anche se la forma del suo paradigma è a ragione criticata17 . L’idea (in
cui quasi tutti i frati minori si riconoscono) è che il diritto discende
da un atto della volontà individuale (e non formale). Tanto più che è
proprio questa volontà ad assumere un ruolo chiave nella costruzione
della libertà18 come Frate Simoncioli ha illustrato molto bene. In
particolare, egli sostiene, attribuendolo ad Olivi come maestro di
Gonsalvo, a sua volta maestro di Scoto, che nella tradizione francescana
“la volontà è libera” è “una proposizione analitica” 19 . Ma se
l’affermazione della libertà della volontà è una proposizione analitica,
16. Cf. M. BASTIT, La naissance de la loi. Paris, 1990 (per la contrapposizione tra la
scuola tomista e quella francescana, Idem, Les principes des choses en ontologie médiévale
(Thomas d’Aquin, Scot, Occam), Bordeaux, 1997).
17. Cf. S.G. SWANSON. The Medieval Foundation of John Locke’s Theory of Natural
Rights: Rights of Subsistence and the Principle of Extreme Necessity, in History of Political
Thought, 18 (1997) pp. 399-459.
18. F. SIMONCIOLI. Il problema della libertà umana in Pietro di Giovanni Olivi e
Pietro di Trabibus, Milano, 1956.
19. F. SIMONCIOLI. Il problema della libertà umana, p. 53. La questione rinvia allo
statuto ontologico del principio di contraddizione, che in ultima analisi non può
essere ridotto all’idea semplificatrice che “Dio non può agire contradittoriamente”,
poiché è necessario specificare di quale livello ontologico stiamo predicando questo
enunciato. Ho proposto una interpretazione paraconsistente del pensiero di Scoto
in L. PARISOLI, La contraddizione vera, Roma 2005, che mi pare abbia mostrato che
anche la filosofia può rinunciare al principio di contraddizione, cercando di offrire
un quadro logico razionale alle intuizioni della mistica cristiana, tra cui Olivi.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
39
LUCA PARISOLI
allora la libertà non è una qualità contingente della volontà: dire che
la volontà è libera significa definire la volontà, quindi la volontà è il
definiendum e la libertà è il definiens.
Una cosa che si chiama “volontà” e che non è libera, ebbene questa
cosa non è veramente la volontà: a partire da questa idea, la nozione
di potere del legislatore segue naturalmente. Il legislatore (i.e., il Papa)
deve stabilire delle norme e deve quindi avere la competenza e la
legittimità per poterlo fare (la iurisdictio): Olivi ha sempre proclamato
la propria fedeltà al Papa e non solo in nome del voto di obbedienza
che San Francesco, nei suoi scritti, aveva sempre sottolineato come
fondamentale. Il Papa, infatti, era per Olivi il titolare del potere
legislativo e, in quanto titolare, aveva l’autorità per istituire delle
norme20 . Tuttavia, data la sua diffidenza nei confronti di Aristotele,
Olivi non poteva credere che la legge fosse un atto dell’intelletto,
perché la libertà è altrove, ossia nella volontà. Il Papa dunque, per
Olivi, istituiva le norme per mezzo della sua volontà (necessariamente libera) e nessuno poteva contestare le sue decisioni quando si trattava
di decisioni prese all’interno della giurisdizione necessaria (la
iurisdictio): d’altronde un potere legislativo è libero (la volontà) o
non esiste affatto. Tuttavia il discorso cambia radicalmente se il Papa
non può stabilire una norma perché gli manca la competenza. In
20. Si veda la Quaestiones de perfectione evangelica 11, An vovere alteri homini
oboedientiam in omnibus quae non sunt contraria animae et evangelicae regulae seu
perfectioni, sit perfectionis evangelicae, in: D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of
John Olivi on the Bible. St. Bonaventure, NY, 1997. Olivi non ha la minima
intenzione di sminuire il valore supremo dell’obbedienza, tanto più che è un
volontarista convinto: tuttavia, esprime qui come altrove il suo spirito per cui un
vero superiore non si distingue se non per la qualità della sua azione, discostandosi
dall’atteggiamento dominante nella Chiesa cattolica sin dall’XI secolo, quando si
ammise che il sacerdote indegno celebra validamente. Olivi non ammette un criterio
procedurale di determinazione del vicario di Cristo, quindi la più forte obbedienza
è del tutto compatibile con la ribellione al Papa-Anticristo (non già suo Vicario).
40
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
questo caso infatti il problema non è nelle conseguenze delle norme,
è piuttosto nel fatto che il Papa non è autorizzato ad assumersi una
decisione di questo tipo.
I nessi tra obbligatorietà della Regola e natura del voto di povertà
rappresentano un punto cruciale della letteratura francescana dell’epoca,
siano in esame i Commentari alla Regola oppure i testi agiografici in un
complesso di tematiche che uniscono l’aspirazione alla perfezione spirituale
alla concezione dei rapporti tra diritti degli individui. E quando un giurista
come Bartolo da Sassoferrato cerca di comporre nel suo Tractatus
minoricarum 21 le aspirazioni dei francescani a “restare fuori”
dall’ordinamento con la realtà quotidiana delle donazioni della pietà
popolare, gli interpreti si dividono tra i fautori delle “pie frodi”22 e i
partigiani del diritto come disciplina di qualunque fenomeno sociale23 .
E’ in questo senso che si può leggere la contrapposizione di autori come
Olivi, come Scoto e, soprattutto, come Ockham al potere papale che
metteva in dubbio la possibilità stessa di uniformarsi all’ideale di povertà
francescana. D’altronde, se l’interpretazione papale ha il potere di
convalidare un’interpretazione della Regola (questo è il vincolo), allora
questa pronuncia papale deve essere necessariamente Vera, ossia aderente
alla Rivelazione, perché altrimenti non è stata pronunciata da un Papa
(reazione al vincolo). Tutti gli sviluppi da Olivi in poi che cerco di analizzare
ruotano intorno a questo semplice nucleo originario: di fronte alla
21. L’opera si fa risalire al 1354: la si ritrova in varie edizioni dei Consilia, Quaestiones
et Tractatus (p. es., Venezia, 1590, 106), oltre che in diverse raccolte di interpretazioni
della Regola francescana (p. es., quella di Giacomo da Grumello, ed. Brixiae, 1502).
22. Così A.C. JEMOLO. Il “Liber Minoritarum” di Bartolo e la povertà minoritica nei
giuristi del XIII e XIV secolo, pubblicato nel 1922 e poi raccolto in Scritti vari di
storia religiosa e civile. Milano, 1965.
23. D. SEGOLONI. Aspetti del pensiero giuridico e politico di Bartolo da Sassoferrato, in
Il diritto comune e la tradizione giuridica europea. Perugia, 1980, pp. 382-394.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
41
LUCA PARISOLI
costrizione ad attenersi solo ad una interpretazione della Regola che ha
ricevuto una conferma formale, allora, poiché qualsiasi criterio formale
non è di per sé peruasivo, l’autore di tale conferma formale (il Papa) è
veramente il soggetto legittimato a produrre questa conferma se, e solo
se, ripete le Verità della Rivelazione e della Tradizione. Insomma, solo se
è infallibile, dato che la Rivelazione e la Tradizione sono certamente Vere.
Ma parlare dell’incostanza della realtà e della costanza dell’ordine
dei valori significa scoprire le carte sul dilemma della filosofia
volontarista. Da un lato, il sovrano deve gestire la società mediante
un potere assoluto, dato che se la sua volontà fosse limitata, il suo
potere non sarebbe realmente sovrano. Dall’altro, la libertà del
legislatore umano, che assicura la nomopoiesi, coesiste insieme alla
libertà dei sottoposti e alla libertà divina (anche se quest’ultima si
colloca al livello normativo superiore).
Nella scuola francescana, la soluzione che avrà meno successo
nella successiva storia dell’Europa occidentale è quella di Scoto, che
si limita a contenere il legislatore assoluto facendogli carico della
massima fedeltà ai doveri verso Dio24 . In questo modo, infatti, egli
disegna una teocrazia che non implica un’identità tra il potere
temporale e quello spirituale, ma che fa del rispetto della morale verso Dio una caratteristica imprenscindibile del governo temporale.
Certo, l’idea che il legislatore debba rispettare i principi della morale
è un’idea che percorre tutta la storia politica, ma alla quale si
contrappone nel Rinascimento la lettura machiavelliana della politica,
tutta finalizzata alla comprensione dei modi della conquista del potere.
Tuttavia, affermare che il legislatore deve difendere i valori morali, in
quella linea detta tacitismo che si contrappone nel XVI secolo al
24. A. SOTO OFM. «The Structure of Society according to Duns Scotus», Franc.
Studies, 11 (1951) pp. 194-212, e 12 (1952), pp. 71-90.
42
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
machiavellismo, è una tesi molto più debole di quella scotista, che fa
riferimento ai ben più determinati doveri verso il Dio della religione
rivelata di Santa Romana Chiesa.
L’altra soluzione, che dobbiamo ad Ockham, sviluppa una sfera
giuridica che limita il potere del sovrano dall’esterno: al sovrano viene
lasciato uno spazio in cui il suo potere è assoluto ma, al di fuori di
questo spazio il suo potere è inesistente. Nel caso di Ockham, tuttavia,
questo schema nasce soprattutto dall’orrore di trovarsi di fronte ad
un Papa ritenuto eretico25 , tanto che alcuni interpreti hanno potuto
rintracciare nella speculazione politica di Ockham un carattere
costituzionale26 (attitudine costituzionalista che Olivi già può aver
anticipato, perché l’infallibilità può essere interpretata in tal senso
ossia come un vincolo sostanziale alla produzione normativa del Capo
della Cristianità27 ).
Il posto di Olivi nella tradizione del pensiero giuridico e politico
francescano è quello di un precursore di Ockham, piuttosto che non
di Scoto: benché siano tutti e tre volontaristi, Olivi è lontano dal
realismo normativista di Scoto che si associa a posizioni quasi-
25. A.S. MCGRADE. The political thought of William of Ockham. Cambridge, 1974.
26. E.F. JACOB. Essays in the Conciliar Epoch. Manchester, 19632 (19431), pp. 85105, ch. 5 “Ockham as a Political Thinker”; et P. BOENHER OFM. «Ockham’s
Political Ideas», Review of Politics, 3 (1943) pp. 462-487, anche nella raccolta E.M.
BUYTAERT/P. BOENHER. Collected articles on Ockham, New York, 1958. Per il
costituzionalismo nel Medioevo, cf. B. TIERNEY. Medieval Canon Law and Western
Constitutionalism (1965), poi nella raccolta Church Law and Constitutional Thought
in the Middle Ages, London, 1979, saggio XV.
27. Si veda l’edizione critica di Marco Bartoli del De dispensatione votis, in Pietro di
Giovanni Olivi, Quaestiones de Romano Pontefice, Grottaferrata, 2002 (il volume fa
parte del progetto di pubblicazione di tutte le opere di Olivi).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
43
LUCA PARISOLI
teocratiche, mentre è assai più vicino al costituzionalismo di
Ockham28 .
Può apparire strano che da questa assolutizzazione del potere civile
siano nati principi a carattere costituzionale, come può apparire strano
che siano stati autori che hanno messo in gioco la loro vita per una
pretesa verità religiosa a prefigurare la tesi della separazione tra
ordinamento giuridico e sistema morale, creando le premesse
dell’autonomia della produzione normativa umana rispetto alle verità
morali. In realtà, tutto prende le mosse da una vera e propria metafisica
della libertà, che si traduce nel dominio della teoria politica, per poi
concretizzarsi nell’azione politica stessa. Se si tiene presente che il
Regno del Cielo è infinitamente più importante dei regni umani,
allora si può comprendere la logica di questa costruzione.
II. Tripartizione della nozione di libertà
Il punto di partenza per comprendere il ruolo giocato da Olivi
per l’evoluzione del costituzionalismo sino a Ockham29 è a mio avviso
una tripartizione della nozione di libertà utilizzata, sebbene non
esplicitata, degli autori francescani, e che qui avanzo come ipotesi
storiografica al fine di comprendere pienamente la loro teoria politica
28. Rinvio ai miei: L. PARISOLI. «Guglielmo di Ockham e la fonte dei diritti naturali:
una teoria politica tra libertà evangelica e diritti fondamentali ed universali», Collectanea
Franciscana, 68 (1998) pp. 5-62; e «Percorsi della libertà nella Scolastica francescana:
dal primato della volontà alla “naturalizzazione” attraverso la teoria politica dei diritti»,
Materiali per una storia della cultura giuridica, 28 (1998) pp. 3-48.
29. Cf. G. de LAGARDE. Naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen Âge, Paris,
1946, vol. VI (Ockham: la morale et le droit), pp. 71-73 e passim; poi la nuova
edizione Naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen Âge. Louvain/Paris, vol. IV
– 1962 (Guillaume d’Ockham: défense de l’Empire) et vol. V – 1963 (Guillaume
d’Ockham. Critique des structures ecclésiales).
44
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
e giuridica. Siamo infatti di fronte ad una ontologia e ad una antropologia della libertà che la suddivide in tre categorie: 1) la libertà
metafisica; 2) il libero arbitrio; 3) la libertà morale. L-a(-e) libertà
politic-a(-he), invece, rappresenta una quarta categoria, in quanto
“approdo” rispetto alla tripartizione. Si tratta infatti di una nozione
eminentemente priva di significazioni metafisiche ed antropologiche
e, in quanto tale, derivata rispetto alle prime tre, sebbene sia poi il
nocciolo del pensiero costituzionale di Ockham.
Ho utilizzato largamente l’idea di questa tripartizione nei miei
lavori su Scoto30 , e essa si ritrova in forma diversa già nelle analisi di
Wolter che fa riferimento, con l’epressione native liberty31 , a quella
che io chiamo “libertà metafisica”. Già in Sant’Agostino la stessa parola
libertas esprime sia l’adesione al bene sia la possibilità di scelta del
libero arbitrio. In questo senso, la libertà morale di cui parlo è la
conformità al bene (in quanto rifiuto costante della schiavitù del
peccato32 ), mentre il libero arbitrio è la facoltà di scegliere tra il bene
ed il male. E’ per questo che il libero arbitrio confirmato (ovvero in
patria) determina la libertà morale, mentre il libero arbitrio non
confirmato (ossia in via) è la possibilità della lode e del rimprovero33 .
La natura dei beati e dei viatores, d’altronde, è così differente che il
30. In particolare, L. PARISOLI. La philosophie normative de Jean Duns Scot. Roma,
2001.
31. A.B. WOLTER, Native Freedom of the Will as a Key to the Ethics of Scotus, in Deus
et Homo ad mentem I. Duns Scoti. Roma, 1972, poi in Idem, The Philosophical
Theology of John Duns Scotus. Ithaca, 1990.
32. Guglielmo di OCKHAM. Ordinatio, I, d. 1, q. 6 (Opera theologica, I):
“opponitur servituti creaturae rationalis et hoc vel servituti culpae, vel servituti
poenae. Et hoc modo beati sunt liberiores quam viatores, quia magis liberi a servitute
culpae et poenae”.
33. J. Duns SCOTO. Reportata parisiensia, II, d. 7, q. 1-3, n. 25 (ed. Vivès XXII);
Lectura, II, d. 7, q. unica (ed. Vaticana XIX).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
45
LUCA PARISOLI
loro libero arbitrio non si predica nello stesso modo. Tuttavia, sia i
beati che i viatores sono liberi nel senso più generale del termine (nel
senso che entrambi partecipano alla libertà metafisica), in quanto
entrambi sono “persone”. E’ infatti la nozione più generale di libertà
– nella sua collocazione metafisica ed ontologica – che costituisce
l’essenza stessa della persona umana: «nihil sub Deo est nobis ita
dilectum et carum sicut libertas et dominium voluntatis nostrae»34 .
Senza tale libertà noi ci priviamo della nostra natura personale e ci
riduciamo ad essere bestie con un intelletto35 : questa libertà è la nostra
dignità. Essa è quel baluardo invalicabile che, rispetto agli altri uomini
con i quali viviamo in società, disegna la libertà politica. In questo
senso noi possiamo anche perdere la libertà morale per debolezza o
per vanagloria o il libero arbitrio per cause esterne oppure per
alterazioni interne; ma la libertà metafisica ci accompagna sempre,
sia in via (come spiegherà magistralmente Olivi nella sua quaestio 57
In Secundum Sententiarum), sia in patria (tanto che i beati rimangono
liberi di rifiutare la visione di Dio, poiché questa visione non può che
essere un atto d’amore gratuito36 ).
Ma una delle conseguenze più importanti di questa superiorità
concettuale della libertà metafisica (libertas) la si ha soprattutto a livello
di diritti politici. Infatti, se fondiamo i diritti di una società sul modello
della libertà morale, la nostra concezione della politica è legata
34. A. EMMEN OFM, «La dottrina dell’Olivi sul valore religioso dei voti», Studi
francescani, 62 (1966) pp. 88-108, edizione della quaestio an sit melius aliquid
facere ex voto quam sine voto, la quinta delle questioni sulla perfezione evangelica.
35. F. SIMONCIOLI. Il problema della libertà umana, pp. 106-107: “Olivi ripone la
dignità dell’uomo nella libertà, costitutivo essenziale della personalità” (nota 4, p.
107).
36. J. Duns SCOTO. Opus oxoniense, IV, d. 49, q. 6 (ed. Vivès XXI); Guglielmo di
OCKHAM. In IV Sententiarum, q. 16 (Opera theologica VII): “voluntas pro statu
isto potest nolle finem ultimum sive ostendatur in generali sive in speciali”.
46
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
strettamente alla verità di un sistema morale, anzi la validità dei diritti
di quella società è condizionata dalla loro conformità alla morale. Al
contrario, se fondiamo i diritti di una società sul modello della libertà
metafisica (che è la dignità della persona), la validità dei diritti di una
società di non credenti e di infedeli non può essere messa in questione. Essi possono essere rifiutati e respinti, ma non possono essere
dichiarati inesistenti. Questa rete di diritti universali opera tra società
differenti, ma pure all’interno di una medesima società. Si tratta allora
di quelle libertates et iura che non possono essere violate da nessun
legislatore umano, per quanto grande sia il fondamento della sua
autorità: la dignità umana resta inviolabile (Scoto afferma che la
persona è l’«ultima solitudo»)37 , e contro di essa si ferma qualsiasi
legislatore terreno. Possiamo perdre la nostra libertà morale, e divenire
schiavi degli altri: possiamo perdere il libero arbitrio, e divenire incapaci
di rispondere dei nostri atti; ma non perderemo mai la libertà
metafisica, perché qualunque sia la nostra condizione morale e
materiale noi siamo la nostra libertà metafisica. Questa non dipende
dalla bontà dei nostri valori, di quei valori che abbiamo scelto:
l’infedele non ha libertà morale, ma la sua libertà metafisica è
semplicemente quella della sua persona. Senza questa idea,
l’evangelizzazione sarebbe solo un’operazione politica, non già
personale. Un sistema giuridico può ammettere leggi pessime da un
punto di vista morale cristiano, tuttavia quelle leggi sono fondate su
una legittimità che può essere solo quella della libertà essenziale di
ogni singolo individuo: il legislatore ha operato male, ma i diritti dei
singoli sono sempre gli stessi, e i singoli sono vincolati da quelle leggi.
La dignità della persona va al di là delle scelte morali contingenti:
senza un riconoscimento, ogni sistema giuridico è illegittimo, anche
37. Citata classicamente da Lagarde, ripresa da J. Duns SCOTO, Opus oxoniense, III,
d. 1, q. 1, n. 17 (ed. Vivès, vol. VIII).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
47
LUCA PARISOLI
se una volta riconosciuto si possono fare scelte legislative ulteriori
comunque difformi dalla morale oggettiva.
Olivi prefigura rispetto a Scoto e Ockham38 la nozione di potere
ordinato: «eo ipso quo Deus vult et pro tempore quo hoc vult, habet
in se ordinem predicte voluntatis Dei»39 , suggerendo che il legislatore
è costituzionalmente vincolato dalle sue proprie leggi. Propone la
differenza tra azione de iure e azione de facto, anticipando Scoto, per
giustificare la forma del potere umano sulla base di quello divino40 .
Infine, usa la differenza tra il diritto che precede la Caduta e quello
che segue la Caduta: l’ordine immutabile delle leggi, «quod Deus
non potest nec debet oppositum eius velle», è detto «ordo naturalis»,
e si oppone al «dominativo imperio», l’altra sfera normativa che vede
le sue norme cambiare «seu absolute seu conditionaliter pro libitu»41 ,
ossia convenzionalmente.
Il fondamento di queste nuove libertà politiche non è quindi la
facoltà del libero arbitrio, bensì l’idea di libertas, ossia la libertà
metafisica capace di fondare innanzitutto la nozione di persona42 . Il
libero arbitrio, infatti, può fondare solo la nozione molto meno
generale di agente morale. Mentre la nozione di agente morale, infatti,
si presenta, almeno in prima battuta, come uno strumento tecnico
38. Cf. O. BOULNOIS (a cura di). La puissance et son ombre. De Pierre Lombard à
Luther. Paris, 1994.
39. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, q. 57,
II, p. 323.
40. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones de perfectione evangelica 13, An Papa
possit renuntiare papatui, ed. Oliger come De renuntiatione papae Coelestini V. Quaestio
et epistola, in Archivum Franciscanum Historicum 11 (1918) p. 363.
41. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 324.
42. Si vedano le osservazioni di G. de Lagarde. La naissance de l’esprit laïque II,
“Secteur social de la Scolastique”, Paris, 1958, pp. 227-229, pp. 234-238.
48
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
della riflessione etica teorica (ossia come un concetto che permette di
spiegare i fatti morali), la nozione di persona si presenta come
immediatamente capace di mostrare la complessità valoriale
dell’esperienza morale. Per questo la nozione di persona può esprimere,
a differenza di quella di agente morale, il valore principe della dignità
umana che si fonda sull’associazione tra libertà e unicità di ciascuno.
Ma se la nozione di libertà metafisica fonda quella di persona e la
nozione di libero arbitrio fonda quella di agente morale, allora sia la
libertas, sia il libero arbitrio sono caratteristiche necessarie della persona
umana. Tuttavia, il libero arbitrio è principalmente teso ad evitare il
cupo necessitarismo di un universo meccanico alla Averroé in cui si
prefigura un Dio orologiaio (visione questa che tradirebbe la stessa
tradizione giudaico-cristiana). La libertas, invece, è per lo più tesa a
fondare il Creato ontologicamente e metafisicamente. Quindi, il libero arbitrio appartiene all’insieme di verità di fede del “catechismo”
della Chiesa cattolica e, in questo senso, è comune tanto alla scuola
teologica naturalistica quanto a quella volontaristica. La libertas, invece,
si spinge al di sopra della verità di fede ed è piuttosto coessenziale alla
nozione stessa di persona umana.
In questo senso, dire che la speculazione francescana valorizza il
concetto di libertà metafisica significa dire che essa valorizza il concetto
di persona. E’ lo stesso statuto ontologico della persona ad essere
inconcepibile senza fare riferimento alla sua innata libertà. Di fronte
a Dio, la persona è concepibile solo perché è libera. E, in questo senso, è la persona ad essere la libertà. Per contro, se è vero che la persona
sarebbe inconcepibile senza libertas, senza libero arbitrio, invece,
sarebbe inconcepibile tutt’al più la nozione di agente morale (in questo
caso, infatti, si potrebbe solo parlare di “paziente” morale, come direbbe
Hobbes). Ma nel momento in cui si parla di agente morale, ci si
muove necessariamente all’interno della disputa plurisecolare tra
deterministi ed indeterministi morali, tra libertarians e necessitarians,
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
49
LUCA PARISOLI
tra cristiani cattolici e cristiani riformati (e qualunque sia la soluzione
scelta, tutto ha l’aria di una disputa di scuola). Fatta salva la verità
fondamentale che l’uomo può scegliere tra il bene ed il male, infatti,
ciò che conta veramente è solo la fondazione dell’ordine morale in cui
si muove l’uomo. E nella scuola francescana è proprio la libertà ad
assolvere questo compito. L’idea di libero arbitrio rimanda alla
possibilità della scelta ed alla consapevolezza di distinguere la natura
dei poli delle scelte divergenti: la libertà richiede solo la libera adesione
al proprio oggetto e culmina nella scelta d’amore del beato che contempla Dio, senza alcuna necessità e con la libertà di rifiutare tale
visione43 . In questo senso, tre sono le cifre della scuola francescana: la
libertà che pervade la creatura ed il Creatore, l’assolutezza dell’amore
che è tanto gratuito da non sopportare finalità di sorta, il primato
della volontà che in fondo è il dato “meno” importante, in quanto ha
la funzione dell’esplicazione metafisica, ma non quella di indirizzarci
alla beatitudine. Mentre il libero arbitrio è una costruzione
razionalistica, la libertà primigenia, che è la persona stessa, è il dato
ontologico che ci caratterizza in quanto persone. La libertà si sente,
insomma, non si coglie tramite la ragione.
III. La libertà, personale e pubblica, per Olivi
La liberta umana è secondo Olivi “manifestissima veritatis lumina
et experimenta” e la sua negazione “exterminat omnia naturae rationalis
bona”44 . Tra le prove in favore della libertà della volontà, la quinta è
l’”affectus subiectionis et reverentiae et affectus dominationis et
43. Orlando TODISCO. Lo stupore della ragione. Padova, 2003; Il dono dell’essere.
Padova, 2006.
44. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, edite
a cura di Bernard Jansen, Quaracchi 1922-26, I-III, q. 57, II, p. 316.
50
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
libertatis”45 , che stabilisce un reale principio politico. La sola ratio del
potere, la sola legittimità del potere, è la libertà46 : se non c’è libertà,
l’uomo non può legittimamente divenire un sovrano e disciplinare
gli altri, né può impartire ordini ad altri uomini, né può esercitare il
suo dominium rispetto ad altre persone. Evidentemente può farlo de
facto, attraverso l’esercizio della forza, ma questo non comporta nessuna
giustificazione de iure. Olivi affermava che un uomo senza libero
arbitrio era privo di ogni lode e di ogni biasimo come una pietra e un
animale47 , il suo rapporto con Dio si sarebbe ridotto a quello delle
bestie con Lui48 (nessuna differenza tra l’uomo e gli animali), dato
che solo la deliberazione volontaria distacca l’uomo dalla necessità
delle passioni naturali sensuali49 .
Ma queste semplici osservazioni di Olivi sono sufficienti a collocare
il volontarismo politico francescano mille miglia lontano dal volontarismo
hobbesiano. E’ infatti completamente estranea a questo discorso la terribile
immagine della corsa contenuta negli Elements of Natural and Political
Law (1640), che sancisce la supremazia del più forte come un diritto
45. Ibidem, p. 321.
46. La fonte ultima e diretta di ogni potere è Dio, che può privare della sua
legittimità, in ogni momento, qualunque sovrano (cf. Pietro di Giovanni OLIVI,
De renuntiatione papae Coelestini V, p. 359).
47. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 336: “nullum erit
demeritum plus quam in una bestia vel lapide”.
48. OLIVI, loc. cit., p. 338: “non plus potuerit Deus a nobis offendi aut inhonorari
quam a bestiis”.
49. OLIVI, loc. cit., pp. 326-327: Olivi considera la situazione in cui un uomo deve
scegliere tra beni equivalenti (situazione che diverrà famosa come dilemma dell’asino
di Buridano) e dice che non c’è altra causa di scelta che la libertà stessa, e nulla deve
essere aggiunto per spiegare la scelta, qualunque essa sia. Al contrario, per gli animali
vale che “bestia super aequalitate eligibilitas illorum non deliberat nec eam plena
affirmatione diiudicat, sicut homa facit”. Non la ragione, bensì la volontà domina
le passioni osensuali.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
51
LUCA PARISOLI
naturale: il fondamento naturale del diritto sta invece nella libertà (nonempirica) e nel dominium dell’uomo che esercita verso se stesso. La sola
legittimazione dell’autorità politica si fonda sul fatto che i cives reputano
di essere sottoposti alle leggi, ossia che le accettano. Siano essi cittadini
oppure schiavi, la loro condotta deve esprimere la consapevolezza d’un
potere “dominativum et imperativum” che li sovrasta. Insomma, un
individuo può esercitare potere sugli altri se e solo se questi esprimono
una “ratio voluntarie subiciendi”. Bisogna rimarcare che l’approccio
esperenziale di Olivi al problema del libero arbitrio può essere ingannevole:
certo, egli fa spesso appello alla nostra esperienza per avvalorare la sua tesi
della libertà come essenza della dignità umana, ma non si deve dedurne
che egli si appoggi alla nostra esperienza come uno scienzato empirico
effettua esperimenti sulla materia inerte al fine di trarne previsioni sugli
eventi futuri. Al contrario, egli cerca di mostrare che la sua costruzione
metafisica non ha alcuna difficoltà a giustificare il complesso degli eventi
umani politici e sociali. La potestas imperativa e quella dominativa, che
sono in fondo la stessa identica cosa, non si ricavano solo dall’osservazione
dell’agire umano, bensì sono stabilite attraverso l’”intentione et efficacia
obligandi”50 che costituisce la forza vincolante della norma. Una norma
è per Olivi vincolante solo se è accettata dagli individui cui è diretta
attraverso l’espressione della volontà di una persona dotata della legittima
competenza a legiferare su quell’insieme di individui. Ci troviamo di
fronte ad una proposizione di filosofia del diritto, e non dinanzi ad
un’analisi della psicologia umana: la legge è definita “mandatum vel
statutum cum intentione obligandi datum et publice promulgatum ab
eo qui auctoritatem habuit super istis”51 . Altrove, Olivi ci dice che la ratio
legis è l’intenzione del legislatore, e che la forza cogente delle leggi non è
la stessa per ogni tipo di atto normativo, come la Tradizione ci insegna
50. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 336.
51. Loc. cit.
52
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
relativamente al Decalogo52 , e come le innumerevoli riflessioni sulla Regola
avevano sospinto i vari commentatori a classificare e repertoriare.
Tutti gli uomini desiderano “naturalissime libertatem” e
“vehementissime horret totalem suae libertatis ablationem”53 : la libertà
è quindi l’essenza stessa della natura umana, sino al desiderio di
beatitudine che può compiersi grazie al nostro dominium. Questo
sacro orrore della privazione completa della libertà è il dato preliminare
delle libertà politiche. Infatti, queste stesse libertà sono proprio i diritti
soggettivi pubblici degli individui contrapposti, se essi lo desiderano,
al potere legiferante che si è reso colpevole della negazione dei diritti
fondamentali. Ma, soprattutto, sono queste le libertà che saranno poi
tematizzate e sviluppate da Ockham soprattutto nel suo Breviloquium
e nelle Octo quaestiones. L’uomo non può rinunciare completamente
alla sua libertà, poiché la sua dignità scomparirebbe con la scomparsa
della sua libertà. Tanto più che esiste un sentimento della forza
vincolante della legge: l’idea di “habere aliquid iuris” sarebbe vuota se
non possedessimo la libertà, che è “quid nobilissimum”, perché gli
iura, questi “voluntaria signa voluntatis interne”54 , richiedono la facultas dominandi e, senza libertà, non si può avere facultas dominandi.
Inoltre, in forza della tesi della questione Quid ponat ius, i diritti non
sono una qualità della natura, essi sono una manifestazione della
volontà che “nichil reale addant”.
Quindi, è possibile affermare che la libertà e il dominium sono il
fondamento della nozione di diritto e dell’autorità politica: noi siamo
52. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones de perfectione evangelica 17, De voto regulam aliquam profitentis, ed. Delorme, in Antonianum 16 (1941) p. 153.
53. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 322.
54. Pietro di Giovanni OLIVI, Quid ponat ius vel dominium, ed. Delorme, in
Antonianum 20 (1945) p. 318.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
53
LUCA PARISOLI
liberi in quanto possediamo il dominium sulle cose e su noi stessi.
Pertanto, possiamo tradurre il dominium in relazioni di potere reale
solo perché siamo liberi. Un individuo esercita il suo potere
fattualmente perché dispone di una facultas dominandi, ma questo
esercizio è legittimo solo se gli individui che patiscono i suoi comandi
hanno accettato (e quindi legittimato) la sua azione. L’autorità politica
e i diritti sono allora giustificati ontologicamente dalla libertà, ma
questa autorità può essere esercitata solo in seguito ad un consenso
iniziale dato che la creatura in naturalibus non dispone affatto di una
simile capacità di interferire nella sfera degli altri individui55 . Sebbene
si respiri qui una certa aria di teoria del contratto sociale, a me pare
che fare riferimento al contrattualismo politico sia radicalmente
fuorviante: ci sono antiche dispute sul contrattualismo di Scoto56 , e
non è il caso di ripeterle a proposito di Olivi. Mi basta osservare che
il contratto politico di Olivi, concesso che vi sia un vero contratto, è
55. Ibidem, p. 319.
56. Le si vedano felicemente rievocate in tempi recenti da Francesco BOTTIN
(Giovanni Duns Scoto sull’origine della proprietà, in Rivista di storia della filosofia,
52 (1997) pp. 47-59) che con prudenza soppesa le parole e indica un modello
scotista “consensuale”. Mi pare sia utile evitare di rintracciare improbabili tesi
politiche contrattualistiche in autori che invece non si pongono affatto questo
problema: se impegnati in simili esercizi anacronistici, non è difficile immaginare
come si possano vedere persino in Olivi esercizi di teoria del contratto politico
(rende conto di una posizione simile, in cui si esaspera l’elemento relazionale nella
quaestio Quid ponat ius vel dominium, G.L. POTESTÀ, Maestri e dottrine nel XIII
secolo, in Francesco d’Assisi e il primo secolo di storia francescana, Torino, 1997, p.
330). Mi pare una strada azzardata ancora a più forte ragione, poi, se basta l’adozione
di una più semplice (anche se banale) spiegazione in termini nominalistici per
rendere conto del testo senza il ricorso ad equivoci mélanges di teorie giuridiche,
sacramentali e politiche: la supremazia della volontà nella realizzazione di un
fenomeno giuridico (ordine che non può identificato a quello sacramentale della
confessione o della eucarestia, anche se il rispettivo discorso teorico può subire
reciproche influenze) non implica che esso si realizzi solo tramite un accordo
necessario (contrattualismo politico in senso proprio). Il volontarismo politico è
compatibile con la teoria del potere assoluto di un singolo individuo, senza accordo
54
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
un contratto con una cornice e senza tela, privo di contenuto, poiché
non parla mai, almeno per quanto ne so, delle deliberazioni relative
alle regole che le parti hanno stabilito per la società. Per quanto Olivi
faccia allusione a un contratto bilaterale, il potere politico che ne
discende è privo di ogni vincolo: io rinuncio ad una porzione della
mia libertà, e te la dò affinché tu possa esercitare il potere (la libera
facultas imperativa), considerato che tu accetti questo ruolo
nomopoietico57 . Si tratta di una trasmissione di potere che non
ammette condizioni: il contratto oliviano non può far sorgere una
repubblica o una monarchia, ma solo il diritto di un individuo a
decidere sugli altri, con la stessa libertà che un individuo naturalmente esercita su se stesso. L’esito del contratto è sempre una forma
di potere assoluto, i cui vincoli non sono mai determinati dalla volontà
delle parti. Per Olivi, la rinuncia alla propria libertà non è un atto che
richieda una relazione gerarchica, ma solo il possesso della libertà
stessa, dato che ognuno può abdicare ai suoi diritti, anche in vista del
bene comune: infatti, il solo caso che annulla questa libertà è quello
del superiore che impone l’esercizio di un diritto a un sottoposto in
vista del bene comune58 .
altrui: per Olivi si veda il Quodlibet, I, q. 18 (sul potere del Papa); per Scoto si veda
E. LONGPRÉ, Le B. Jean Duns Scot pour le Saint Siège et contre le gallicanisme, in La
France franciscaine 11 (1928) pp. 137-162, a pp. 156-157, affiancato però alle
osservazioni relative di B. TIERNEY. Origins of Papal Infallibility, Leiden, 1988 (2a.
edizione), pp. 144-146. Neanche rispetto ad Ockham, che pure non è certo un
esaltatore del potere assoluto del Papa, mi pare si possa parlare senza anacronismi
di una teoria contrattualistica.
57. Pietro di Giovanni OLIVI, Quid ponat ius vel dominium, p. 319.
58. Pietro di Giovanni OLIVI, De renuntiatione papae Coelestini V, p. 358. A me
pare che questa nozione di “bene comune” non è la stessa di San Tommaso, ma
l’importanza della dignità della persona è la stessa (cf. J.M. Trigeaud. L’ordination
du bien commun au respect de la personne dans la philosophie politique thomiste, in
Actes du IXème Congrès Thomiste International, Roma, 1991, IV, poi in J.M. Trigeaud,
Éléments d’une philosophie politique, Bordeaux, 1993).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
55
LUCA PARISOLI
Il consenso è soltanto necessario, non già sufficiente, ma mi pare
già molto per legittimare l’autorità politica. Questo consenso è definito
come un atto unilaterale della volontà che viene necessariamente “a
nobis, ita quod voluntas tanquam ex se operetur” e questa modalità
dell’operazione della volontà avviene quando “nullius alterius agentis
impulsu, sed solum ex proprio motu agens in actum se accomodat”59 .
Si tratta di una tesi connotata nel senso del volontarismo politico, ma
non di un contrattualismo politico in senso moderno che ci evoca
una riflessione filosofica alla maniera di Rousseau. L’esito della
riflessione oliviana, mediante un processo di diritto positivo (ex
pactione), è il potere assoluto del monarca che “potest precipere vel
dissolvere leges et precepta diversissima et innumera et precepta
spectantia ad bella et alia spectantia ad intrinsecum et pacificum statum
civium” e “omnia etiam hec facit solo imperio, non per modum
naturalis agentis”60 . Si noti per completare la riflessione, che con Olivi,
che condivide questa posizione con Scoto e in genere con i pensatori
cattolici medievali, abbiamo un rifiuto netto dello gnosticismo politico,
ossia quella concezione della politica che si era affacciata in Europa
con i Merovingi – re che lasciavano governare i marescialli di palazzo,
pur essendo loro i sovrani formali –, che venne combattuta da Pipino
con l’aiuto della Sede apostolica con l’esito della nascita della dinastia
carolingia la notte di Natale dell’anno 800, e che incominciò a imporsi
lentamente dal XVII secolo in poi con l’affermazione della Modernità.
Giorgio Agambem ha descritto molto bene questo percorso storico61 ,
in cui il pensiero politico cattolico, prima con l’azione di Carlo Magno, poi con i teorici della Scolastica, ha rifiutato l’idea del re fannullone
59. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 329.
60. Pietro di Giovanni OLIVI, Quid ponat ius vel dominium, p. 322.
61. Giorgio AGAMBEN. Il Regno e la Gloria. Per una genealogia teologica dell’economia
e del governo, Vicenza, 2007.
56
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
che, inoperoso, regna senza governare, dato che il governo è assicurato
solo e soltanto da una corte amministrativa. La teoria politica di Olivi,
con la sua esaltazione non solo della legittimità del sovrano, ma
soprattutto della sua azione concreta che non deriva dalle situazioni
di fatto ma dal suo imperium, è nettamente in contrasto con lo
gnosticismo politico, e lo inserisce nella tradizione dei filosofi politici
che lo hanno combattuto. Il sovrano non è frutto di un contratto, il
sovrano governa e basta.
Una volta attribuito questo potere assoluto, gli individui non
hanno un controllo diretto su questo potere: vi hanno rinunciato,
non possono più esercitarlo. Però, se gli individui non possono interferire nell’esercizio corrente del potere politico, dei limiti all’azione
dell’autorità legiferante esistono, e sono fondamentali. Il potere
assoluto può essere drasticamente limitato grazie a quelle libertà
politiche che si fondano sulla stessa libertà che legittima il potere
assoluto tramite l’atto di consenso. Le accuse che a volte si muovono
contro il volontarismo politico, foriero di assolutismo ed arbitrarietà
sono in un certo senso vere: un volontarismo che ignora la sfera divina è legittimazione della volontà umana come nomopoiesi
incontrollabile. Questa è la teoria politica di Hobbes. Tuttavia, pensare
che Hobbes sia la conseguenza del volontarismo della teologia
Scolastica è ingiusto ed erroneo. Il potere assoluto del sovrano
hobbesiano gli è conferito da un patto contratto in uno stato di natura
in cui gli uomini hanno il diritto di appropriarsi delle cose. Al contrario, il potere assoluto del sovrano del volontarismo medievale gli è
conferito dal consenso di uomini in uno stato di natura decaduta, in
cui Dio permette che come rimedio agli egoismi umani si instaurino
regimi normativi che sono eccezioni al vero stato di natura. Ma allora
la differenza è abissale. Per Hobbes, lo stato di natura è uno solo, e
non c’è altro da dire; per la Scolastica francescana, ne esistono almeno
due, e le norme del primo sono sempre valide, anche se congelate. Il
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
57
LUCA PARISOLI
risultato è un sovrano assoluto nella sfera della natura corrotta, ma
vincolato nella sfera della natura incorrotta, un’idea semplicemente
inconcepibile per Hobbes. Per lui, la libertà naturale del condannato
a morte di sfuggire all’esecuzione è parte dell’eterna lotta di sopraffazione
fra gli individui. Ma la libertà politica francescana non è una modalità
dell’esercizio del potere, essa è un limite invalicabile: non è difficile
comprendere questo concetto se ci rifacciamo al fatto che nella scuola
francescana, a partire dalla Summa fratris Alexandri62 , si è introdotta la
tesi che il Peccato Originale abbia determinato una rottura
nell’ordinamento. Questa rottura ha la conseguenza di produrre due sfere
normative ontologicamente distinte, con insiemi di diritti validi, ma non
omogenei: il dominium naturale sulle cose del Paradiso era l’unico diritto
ricollegabile all’idea di uso. Al contrario, dopo la Caduta, è stato
necessario rimediare alle cattive inclinazioni degli uomini, ed altri
diritti si sono ricollegati all’uso, tra cui per eccellenza la proprietà che
si costituisce intorno al diritto positivo umano.
Così, il diritto naturale non è la forma ispiratrice del diritto
mondano. La tesi principe del sistema tommasiano è respinta da subito
perché non esiste una scala delle norme (non dissimile dalla scala
dell’essere) che porta dalla legge eterna alla legge umana, ma solo
gradoni separati l’uno dall’altro. Il diritto umano non è influenzato
dal diritto naturale, poiché è un rimedio alla natura peccatrice che le
norme del diritto naturale ignoravano, tanto che la loro applicazione
diretta è “congelata”. Ma ciò non toglie che queste ultime sono sempre valide, anzi sono l’aspirazione soprannaturale di ogni uomo, lo
status normativo della natura senza macchia. La sfera normativa del
diritto umano positivo gode di una libertà assoluta, ma non può negare
il fine soprannaturale dell’uomo. La sua ragion d’essere cessa allora,
62. Alessandro di HALES (e collaboratori, tra cui Giovanni della ROCHELLE). Summa
fratris Alexandri, l. III, pars 2, inq. 2, q. 4, mem. 3, cc. 2-3 (Ad Claras Aquas 1948,
IV, 362-364).
58
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
perché non sarebbe più rimedio, bensì causa di dannazione. In tale
caso di violazione flagrante, le norme del diritto naturale ritornano
immediatamente applicabili, contro ogni potere nomopoietico umano.
Dopo Olivi, la scuola francescana spingerà sempre più in fondo
la radicalità dell’interpretazione del canone Dilectissimis63 sino a
proporre la più dicotomica differenziazione tra il diritto naturale e
quello positivo. Ma già in Olivi possiamo trovare l’idea che i frati
minori rinunciano al diritto positivo, secondo la prescrizione di San
Francesco, e si rifanno al solo diritto naturale per usare delle cose
senza avere un diritto a farlo (poiché ogni diritto simile è di diritto
positivo). La libertà di un frate minore è per Olivi quella di preferire
la perfezione evangelica già in questa vita terrena; grazie a questa scelta,
il diritto positivo perde ogni funzione, perché non è più un rimedio.
L’usus pauper delle cose era per lui la realizzazione di quella grazia
paradisiaca che rimandava ad una sfera normativa non più umana.
Olivi si era già posto la questione del potere pontificio e aveva già
cercato di limitare la pienezza del suo potere. L’apologia della libertà
che si concretizza nella sfera politica ha precisamente questa funzione.
Se la libertà politica è la risposta del cittadino contro il governo
oppressore, è vero che Olivi non ci fornisce una teoria politica della
società civile: fonda la possibilità metafisica di una simile teoria, ma è
convinto che la società più importante sia quella spirituale. Come
ogni frate minore, è molto sensibile all’analisi della vita concreta degli
uomini, e i suoi lavori economici ne sono la migliore illustrazione64 .
Ma bisogna attendere almeno Scoto, se non Ockham, per vedere ben
delineata una teoria politica della società. Inoltre, Olivi non ci fornisce
63. Corpus iuris canonici, C. XII, q. 1, c. 2.
64. Cf. l’introduzione di G. TODESCHINI. Un trattato di economia politica francescana.
Roma, 1980; Idem, Il prezzo della salvezza, Firenze, 1994.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
59
LUCA PARISOLI
neppure una vera e propria teoria generale del diritto: anticipa il
volontarismo normativo del De perfectione statuum (opera la cui
attribuzione eventuale a Scoto è controversa), di Scoto e di Ockham,
ma non è realmente interessato ad una teoria generale di un sistema
che ai suoi occhi ha una importanza sussidiaria nello stesso contesto
della gerarchia normativa. Tuttavia, se l’attenzione si sposta sul potere
spirituale, il problema della limitazione del potere assoluto del Papa
diventa ben più vivido per lui, forse anche sotto la pressione dei pericoli
incombenti dell’Anticristo. La risposta di Olivi è prima facie
sorprendente: per limitare quel potere pontificale che rappresenta
“summa potestas diffiniendi questiones et dubia fidei et omnes maiores ecclesie causas”65 e può “novam legem condere de quocunque ...
et in omni tali et etiam in omni sententiali et autentica expositione
dubiorum cristiane legis et fidei est sibi credendum et obediendum,
nisi aperte esset contraria fidei Christi et legi”66 , escogita il meccanismo
dell’infallibilità del Papa, come abbiamo già visto, sviluppando lo
spazio semantico di questa clausola “nisi aperte”.
IV. L’infallibilità del sovrano come garanzia costituzionale
In un articolo di molti anni fa aveva già cercato di mostrare la
posizione di Olivi sull’infallibilità pontificale67 . Vi difendevo la tesi
65. Pietro di Giovanni OLIVI. De renuntiatione papae Coelestini V, p. 347.
66. Ibidem, p. 351. Cf. Pietro di Giovanni OLIVI. Quaestio de indulgentia, ed.
Péano, in Archivum Franciscanum Historicum, 74 (1981), pp. 72-73.
67. L. PARISOLI. «La formazione del concetto di infallibilità pontificia, da Pietro di
Giovanni Olivi a Guglielmo di Ockham», Collectanea Franciscana, 67 (1997) pp.
431-458. Devo alle osservazioni di Fr. Johannes Schlageter la consapevolezza di
chiarire semanticamente la mia posizione, corroborate dai dubbi di Marco Bartoli.
Dopo le precisazioni semantiche che qui riporto, dopo tanti anni resto convinto
della bontà della mia tesi, che devono essere però inserite in un quadro di storia del
pensiero politico di lunga durata, pena disperdersi in sottigliezze archeologiche.
60
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
per cui Olivi sostiene l’infallibilità poiché il Papa è la inerrabili della
Chiesa68 : preciso ancora una volta qui che cosa intendo per infallibilità,
a scanso di equivoci.
In un primo significato, equivalente al dogma attuale che venne
anticipato da Guido Terreni quale consigliere di Giovanni XXII, vi è
un individuo che è certamente Papa (in base a regole procedurali): le
sue decisioni prese in qualità di decisore infallibile (assistito dallo
Spirito Santo) sono necessariamente infallibili. In questo schema,
l’infallibilità assicura il potere di determinare la Verità ad una persona
che ha ricevuto per altre vie la qualifica di Papa. Il Papa è così il
giudice ultimo in materia di fede, e il suo giudizio insindacabile e
supremo (si prenda il caso della Humanae Vitae, apparentemente
promulgata da Paolo VI in opposizione al giudizio di molti teologi
contemporanei)69 .
In un secondo senso, ci troviamo di fronte ad un individuo che è
prima facie il Papa, ma non ci bastano le regole procedurali per asserire
certamente che è il Papa, poiché l’Anticristo potrebbe celarsi nei suoi
panni: per essere Papa, deve mostrare di non essere l’Anticristo, quindi
di non sbagliarsi. Se per caso le sue decisioni sconfessano la Rivelazione
e la Tradizione cattolica, allora non è più un vero Papa: infatti, le
decisioni del vero Papa sono infallibili, e non contraddicono mai la
verità. Ma questo Papa, in realtà non è che un individuo che con
68. L’uso lessicale di Olivi (cf. Quaestiones de perfectione evangelica 12, An Romano
Pontifici in fide et moribus sit ab omnibus catholici tamquam regulae inerrabili
obediendum, ed. M. MACCARRONE. in Rivista di storia della Chiesa 3 (1949) p. 325)
permette il calco dal latino ‘inerrabile’ rispetto alla parola ‘infallibile’: non riesco a
capire quale sia la differenza tra la parola ‘inerrabile’ (che non esiste nei dizionari
della lingua italiana) e la parola ‘infallibile’, da non confondere con diverse e
alternative teorie dell’infallibilità (i.e., inerrabilità).
69. E. LIO. Humanae vitae e infallibilità. Il concilio Paolo VI e Giovanni Paolo II,
Vaticano, 1986.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
61
LUCA PARISOLI
l’errore ha cessato di esserlo. In questo schema, l’infallibiltà limita il
potere del Papa, dato che le sue decisioni sono confrontate da un
potere Terzo alla Tradizione della Chiesa: se il Papa in carica, a giudizio
dei teologi, sbaglia, allora si priva della sua qualità di Papa70 .
Olivi ha creduto a questo senso di infallibilità, che si basa sulla
divisone dei poteri, non già sulla confusione dei poteri teorizzata da
Scoto e da tutti i partigiani del potere assoluto del Papa. L’infallibilità
del Papa è la prima libertà politica che Olivi affida ai membri della
Chiesa per proteggere le verità della tradizione: contro una deviazione
del Papa, l’infallibilità agisce come un richiamo alla Tradizione, barriera
costituzionale che il Papa non può violare. Prima che questo Papa
ipotetico si presentasse sul serio, Olivi in sua quaestio71 teorizzò che
un Papa non può cadere nell’eresia e permanere nel suo stato
pontificale. Il Papa che pronunciava un’eresia era ipso facto decaduto
dalla sua funzione: diventato l’ultimo dei cattolici, il giudizio nei suoi
70. Il rinvio a Quaestiones de perfectione evangelica 13, ed. L. OLIGER, De renuntiatione
papae Coelestini V, p. 353, mostra che i cardinali hanno un potere eccezionale di
procedere contro il Papa, ma non divengono per questo suoi giudici.
71. Pubblicata da M. MACCARRONE. Una questione inedita dell’Olivi sull’infallibilità
del papa, in Rivista di storia della Chiesa in Italia, 3 (1949) p. 309, poi ripubblicato
nella raccolta di scritti dello stesso autore Romana ecclesia cathedra Petri, Roma,
1991. Per una prospettiva diversa da quella che adotto si veda R. MANSELLI, Il caso
del papa eretico nelle correnti spirituali del XIV secolo, in L’infallibilità. L’aspetto filosofico
e teologico, a cura di E. CASTELLI, in cui Manselli giudica la posizione di Olivi come
“una delle più precise e limpide difese dell’infallibilità del papa” (p. 115); in genere,
per un approccio storico in senso tradizionale, si veda la rassegna bibliografica di
M. BARTOLI, Pietro di Giovanni Olivi nella recente storiografia sul tema dell’infallibilità
pontificia, in Bullettino dell’Istituto storico italiano per il medioevo e archivio
muratoriano, 99 (1994) p. 149 (con il limite, a mio parere, di diluire l’originalità
delle tesi di Olivi sull’infallibilità papale per una incomprensione della canonistica
dell’epoca – cf. p. 151, in cui il fatto che il papa eretico cessi di essere papa è
presentato come una banalità per i canonisti, mentre la questione, che pure esiste,
è terribilmente complessa).
62
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
confronti non era più un problema di giurisdizione e competenza, un
problema da canonisti. Il Papa non poteva così mai sbagliarsi in tema
di fede e di morale; se lo avesse fatto, non sarebbe più stato un Papa,
quindi la sua pronuncia del tutto indifferente. Quindi, il Papa era
vincolato dalle pronunce dei suoi predecessori, purché questi fossero
veri papi e la materia fosse quella della morale e della fede. Per la
prima volta, la Verità era opposta all’autorità: il riconoscimento
infallibile della verità limitava la pienezza del potere papale. Già, poiché
la Verità era ricevuta dalla Rivelazione e dalla Tradizione, ed era infine
garantita da una sfera del diritto divino che rappresentava un limite
al potere papale, che doveva ripetere questa sfera, ma non poteva in
nessun modo derogarvi.
Il dogma attuale dell’infallibilità, invece, esalta il potere del Papa,
e la vicenda dell’Humanae Vitae ci può mostrare l’importanza del
dogma attuale nella vita della Chiesa, come ultimo bastione della
continuità della Tradizione, esattamente come Maria fu l’unica a
conservare la fede ai piedi della Croce nel momento più buio (per
occhi umani) della Passione. Altra cosa dalla riflessione francescana
di Olivi: la nozione di infallibilità papale si sviluppò all’interno delle
discussioni sulla povertà francescana come reazione al vincolo
argomentativo rappresentato dall’autorità papale. Si badi, non intendo
dire che si tratti di una reazione dettata solo dalle contingenze, da un
calcolo egoistico o altro, è vero invece il contrario: come ha
brillantemente sostenuto Capitani72 , almeno la posizione di Olivi (ma
lo stesso si potrebbe dire di Ockham73 ) sull’infallibilità si inserisce
72. O. CAPITANI. Il francescanesimo ed il papato da Bonaventura a Pietro di Giovanni
Olivi: una riconsiderazione, in Ricerche storiche, 13 (1983) p. 595.
73. Occorre sempre dire che non tutti concordano sul fatto che Ockham abbia sostenuto
una teoria dell’infallibilità: così, p. es., J. KILCULLEN. Ockham and Infallibility, in
Journal of Religious History, 16 (1991) p. 387. Lo stato della questione mi pare
chiaramente riassunto sulle pagine di Franciscan Studies – 24 (1986) – nell’opposizione
tra John J. RYAN (Evasion and Ambiguity: Ockham and Tierney’s Ockham, p. 285) e B.
TIERNEY (Ockham’s Infallibility and Ryan’s Infallibility, p. 295).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
63
LUCA PARISOLI
con salda coerenza all’interno della sua filosofia globale, in cui spiccano
una nozione nominalistica del concetto di diritto, una ecclesiologia
profondamente escatologica, il ruolo centrale ed irrinunciabile della libertà
umana74 . L’infallibilità è un contro-argomento da opporre all’affermazione
della plenitudo potestatis, un picchetto posto non tanto contro la possibilità
del Papa in carica di derogare ad una decisione del suo predecessore,
quanto al fine di costringerlo a riconoscere lui stesso che esiste una specifica
categoria di decisioni che non sono mai derogabili. Infatti, l’idea nuova
dell’infallibilità è che certe pronunce papali, che riguardano la materia
della Rivelazione, devono essere l’opinione della Chiesa universale, non
perché il Papa abbia deciso così e così, ma perché il Papa deve necessariamente adeguarsi alla Rivelazione, altrimenti non sarebbe il Papa. Insomma,
non una opportunistica furbizia per esaltare un Papa amico, bensì una
vera e propria classificazione delle decisioni papali: alcune costitutive,
altre, quelle che concernono la Rivelazione e la Tradizione, meramente dichiarative.
Vediamo l’affermazione dell’infallibilità pontificia75 , o della
inerranza del Papa come preferiscono dire altri per evitare ogni anacronismo con il dogma proclamato nel 1870 dal Concilio Vaticano
I76 . Quello che è certo è che, sebbene l’apologetica cattolica abbia
74. La letteratura è concorde su queste considerazioni: mi limito a rinviare ad un
lavoro recente in cui la centralità della libertà in Olivi, in opposizione ad ogni
razionalismo filosofico, è resa brillantemente, F.X. PUTALLAZ. Insolente liberté.
Fribourg, 1995, pp. 127-162.
75. Il testo di riferimento è B. TIERNEY. Origins of Papal Infallibility. 1150-1350.
Leiden, 1988 (19721).
76. Questa proclamazione ha sollevato uno spirito di fronda verso la gerarchia
cattolica che non ha nulla a che fare con la teologia. Ne è una dimostrazione un
volume di A.B. HASLER, disponibile in tr. it. Come il Papa divenne infallibile, Torino,
1982: sebbene l’autore noti, sulla scorta di Tierney, che l’argomento dell’infallibilità
del Papa fosse stato avanzato da Olivi contro la Sede apostolica, non si interroga
minimamente su quali fossero gli argomenti di Olivi (per una critica pacata si veda
la recensione di D. MENOZZI in Rivista storica italiana, 92 (1985) p. 381).
64
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
cercato di reperire testimonianze della tesi dell’infallibilità nei maggiori
Dottori della Chiesa77 , l’idea che un Papa potesse errare era diffusa
tra i canonisti del XIII secolo78 . Tutt’altra cosa era l’idea che la Chiesa
fosse indefettibile, ossia che non potesse perseverare nell’errore, idea
di cui la Rivelazione fornisce un’esplicita garanzia (Luca, 22, 32; si
veda pure C. XXIV, q. 1). Mi interessa qui richiamare alcuni luoghi
del Corpus iuris canonici, che formano i riferimenti positivi della questione: la dist. XIX, c. 9, su Papa Anastasio che cade nell’errore ed è
“nutu divino percussus”; la dist. XL, c. 6, “dampnatur Apostolicus,
qui suae et fraternae salutis est negligens” con la regola di non
giudicabilità del Pontefice e l’eccezione della clausola “nisi a fide”79 ;
la dist. XXI, c. 6 e 8, “maiores a minoribus iudicari non possunt”; la
dist. XV, c. 2, sull’autorità dei primi quattro concili, “sicut sancti
evangelii quatuor libros, sic quatuor concilia suscipere et venerari me
fateor” (da integrare con dist. XVI, c. 8, e con C. XXV, q. 1., post c.
16); la C. XXV, q. 1, c. 6, sull’impossibilità per il Papa di derogare
alle definizioni solenni di Cristo, degli Apostoli e dei Padri; la dist.
77. Uno dei casi più eclatanti per sincronismo è quello del peraltro benemerito
frate Fedele da FANNA (poi curatore dell’Opera Omnia di San Bonaventura), Seraphici
Doctoris D. Bonaventurae doctrina de Romani pontificis primatu et infallibilitate,
Torino, 1870, oppure Renato BIANCHI, De constitutione monarchica ecclesiae et de
infallibilitate Romani pontificis iuxta S. Thomas, Roma, 1870. Si veda pure U.
BETTI, L’assenza dell’autorità di San Tommaso nel decreto vaticano sull’infallibilità
pontificia, in Divinitas, 6 (1962) p. 407.
78. Si veda B. TIERNEY. Origins. cap. 1. Anche la letteratura di parte cattolica
riconosce questa situazione: così il Dictionnaire de Théologie Catholique (Paris, 190950) al termine della lunga voce “Infaillibité du Pape” (VII), oppure la voce “Papauté:
Infaillibilité pontificale” del Dictionnaire Apologétique de la Foi Catholique III, Paris, 1916.
79. Per alcune osservazioni sull’origine di questo canone, ma pure in genere sul
papa eretico, segnalo J.M. MOYNIHAN. Papal Immunity and Liability in the Writings
of the Medieval Canonists. Roma, 1961, pp. 27 e segg.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
65
LUCA PARISOLI
XIX, c. 6, che riproduce un passo di Sant’Agostino, “inter canonicas
scripturas decretales epistolae connumerantur”; la dist. XXI, c. 3, sul
primato di Roma che “non aliqua sinodus, sed Christus instituit”.
Senza entrare nel grande mare delle glosse al Decretum di
Graziano80 , alcuni dati emergono chiaramente: il Papa può sbagliare
nell’esercizio delle sue prerogative; non può essere giudicato da
qualcuno a lui inferiore, a meno che non devi dalla retta fede (e la
morale è materia equivalente); il suo ruolo è determinato dalla
Rivelazione, non dagli uomini; la Tradizione della Santa Chiesa
cattolica ha lo stesso valore della Rivelazione; il Papa è parte integrante della Tradizione81 . L’insieme di questi dati pone un problema: chi
giudicherà il Papa che devia dalla fede, e per quali capi di accusa
questo processo è legittimo? Le risposte dei canonisti sono varie, ma
certamente un punto è incontestabile: si tratta di un problema di
procedura contro un Papa che ha sbagliato. Si noti che a questo punto
si possono applicare al Papa stesso i canoni che riguardano gli eretici:
p. es., C. XXIV, q. 3, c. 31, che individua il crimine di eresia solo in
chi persevera nell’errore dopo essere stato corretto (e al Papa si
riconoscerà il privilegio di avere diritto a più richiami successivi al
rispetto della retta fede); C. XXIV, q. 1, ante c. 1, 2-3, in cui l’eretico
80. Non posso che rimandare a B. TIERNEY. Foundations of the Conciliar Theory.
Cambridge, 1955, oppure alla raccolta di suoi testi Church Law and Constitutional
Thought in the Middle Ages. London, 1979.
81. Non va dimenticato che lo stesso Ockham, pur sviluppando una nuova
ecclesiologia, riconosce ancora al papa (non certo quegli “eretici” contro cui riverserà
la sua libellistica) un potere determinante nella costruzione della Tradizione, come
ricorda Léon BAUDRY in epigrafe alla sua opera (Guillaume d’Occam: sa vie, ses
oeuvres, ses idées sociales et politiques, Paris, 1949): “patet igitur quod cum controversis
est inter theologos de aliquo articulo an sit consonus vel dissonus fidei christianae,
ad Summum Pontificem est recurrendum” (Tractatus de corpore Christi, c. 37, in
Opera Theologica X, New York, 1986, linee 69-71).
66
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
può incorrere nella scomunica latae sententiae; C. VI, q. 1, post c. 21,
in cui i prelati possono essere accusati di eresia solo se il loro crimine
è notorio, ossia se la fattispecie è già stata giudicata come credenza
eretica; C. II, q. 7, post c. 22 e post c. 26, in cui l’eretico è l’ultimo dei
Cattolici, quindi può essere giudicato anche da chi precedentemente
gli era inferiore.
Mi sembra che questa situazione possa rendere conto delle tesi di
Olivi sulla inerranza del Papa. Da un lato, abbiamo una storia
tormentata intorno all’interpretazione del voto di povertà contenuto
nella Regola francescana, in cui l’intervento di Niccolò III è
innanzitutto diretto a placare le divisioni interne ad un Ordine con
neppure settant’anni di vita; dall’altro, abbiamo una dottrina
canonistica che affronta il problema del Papa eretico e ne discute
estesamente le implicazioni. Insomma, quando Olivi affronta il problema dell’autorità del Papa in fatto di Verità, egli si chiede se il
Pontefice debba essere obbedito “tamquam regule inerrabili” da ogni
cattolico: in altri termini, si chiede se le interpretazioni pontificali
delle regole di un Ordine religioso siano sempre valide e inderogabili,
oppure no. In quest’ottica, non è poi decisivo stabilire se la sua quaestio
sia precedente alla Exiit qui seminat oppure posteriore82 : l’analisi di
Olivi è comunque diretta a stabilire i rapporti tra l’autorità della Sede
apostolica e le Verità rivelate (la fede e la morale). La sua escatologia
che, gioachimita o meno, fissa degli stadi nell’evoluzione della
cristianità ed utilizza largamente la figura dell’Anticristo (Lectura Super
Apocalipsim)83 , non gli ostacolava certo di raffigurarsi l’ipotesi di un
Papa eretico: gli stessi canonisti, che gioachimiti certo non erano,
non avevano nessuna difficoltà a raffigurarselo.
82. B. TIERNEY. Origins, pp. 122-125.
83. R. MANSELLI. La “Lectura super Apocalipsim” di Pietro di Giovanni Olivi. Ricerche
sull’escatologismo medievale. Roma, 1955.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
67
LUCA PARISOLI
Olivi, a differenza di San Bonaventura84 , trasforma il problema
iniziale dell’obbedienza al Pontefice nel problema della reale identità
del Pontefice: in questo passaggio sta la frattura che porta dalla credenza
nella indefettibilità della Santa Chiesa all’infallibilità del Papa85 .
L’indefettibilità della Santa Chiesa è una tesi che si accorda
perfettamente con le tesi degli stadi dell’evoluzione della cristianità,
in cui fasi di smarrimento della vera dottrina convergono verso il
trionfo finale della cristianità (la letteratura Spirituale sul modello
della Historia septem tribulationum di Angelo Clareno dimostra la
fortuna di questo schema all’interno del movimento francescano)86 :
la garanzia ultima che assicura il trionfo finale è il corpus della
Rivelazione e della Tradizione. Nel XIII secolo era correntemente
ammesso che il Papa non potesse mai derogare alla dottrina di Cristo
e degli Apostoli: tuttavia, era pure correntemente ammesso che un
Papa potesse sbagliarsi. E se si fosse sbagliato a proposito della dottrina
di Cristo e degli Apostoli?
84. San BONAVENTURA. Quaestiones disputatae de perfectione evangelica, IV, 3 “De
obedentia summo Pontifice debita”, in Opera omnia V, ed. Quaracchi, p. 189. Si
veda pure In IV, dist. XX, p. II, q. 3, in Opera omnia IV, p. 535, a proposito della
“potestas clavium”.
85. Si vedano però le osservazioni, che limitano la portata delle tesi di Olivi alla
“regula inerrabilis”, di Johannes Schlageter, Zur Genese der Unfehlbarkeitsdoktrin.
Stellungnahamen zur Päpstlichen Lehrautorität von Bonaventura bis Ockham, in
Bonaventura. Studien zu seiner Wirkungsgeschichte, Werl, 1976, pp. 121-222.
86. Si veda il forse troppo simpatetico testo di L. von AUW, Angelo Clareno et les
Spirituels italiens. Roma, 1979; inoltre, con riferimento ad un momento
importantissimo nella storia degli Ordini mendicanti, A. FRANCHI, Il Concilio di
Lione II (1274) e la contestazione dei francescani delle Marche, in Picenum Seraphicum,
11 (1974) p. 53. Si noti che il Commento alla regola di Angelo Clareno, rimasto
inedito e sconosciuto negli anni in cui divampava la lotta tra le varie anime
dell’Ordine prima delle decisioni di Giovanni XXII, è quello in cui sono praticamente assenti considerazioni di tipo giuridico e politico, e sono invece presenti
degli influssi della Cristianità orientale ortodossa: il testo è edito da L. OLIGER
come Expositio Regulae fratrum minorum, Quaracchi, 1921.
68
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
Olivi riteneva che la Regola e il Vangelo coincidessero
sostanzialmente, quindi una relazione ben più forte di quella di mera
conformità: la visione di San Francesco come alter Christus era per lui
più che un’iperbole, era una nuova Rivelazione87 . L’idea che una
Chiesa legittimata da processi formali di formazione dell’autorità
potesse anche solo avere la possibilità di modificare, pur sbagliandosi,
la Rivelazione appariva ai suoi occhi come intollerabile ed assurdo.
La Chiesa universale non poteva che essere l’organo di trasmissione
delle Verità eterne, come del resto suggerisce lo stesso Corpus iuris
canonici quando equipara il Vangelo e i pronunciamenti dei Concili
ecumenici. Ad Olivi non interessa discutere il rapporto tra il Papa ed
il collegio dei cardinali: riceve dalla tradizione francescana il massimo
rispetto per il primato di Roma, e non lo discute88 . Del resto, il suo
nominalismo che lo porta ad indicare come meramente verbali le
nozioni di ius e di dominium89 , lo rende poco sensibile ad un
approfondimento di una scienza giuridica, relegata in secondo piano
rispetto allo spessore della realtà teologica: in questo senso l’usus pauper
87. In questo senso soprattutto la Declaratio super Regulam fratrum minorum, in
Firmamentum trium ordinum, Venezia, 1513, p. III, f. 106 recto, a, e segg. (specie
f. 107 recto, b), a cui si deve però affiancare la già citata Quaestio de voto regulam
aliquam profitentis, pubblicata da F. Delorme in Antonianum, 16 (1941) p. 143.
Inoltre David FLOOD ha curato l’edizione della Expositio super Regulam Fratum
Minorum (Peter Olivi’s Rule Commentary, Wiesbaden, 1972). Sul tema dei rapporti
normativi tra Regola e Vangelo rinvio a F. ELIZONDO. De evangelii et regulae
franciscanae obligatione usque ad bullam “Exivi de Paradiso” Clementis V (6 mai
1312), in Laurentianum, 2 (1961) p. 226.
88. Si veda per esempio il passaggio in cui la concessione dell’indulgenza della
Porziuncola non è concepita come una deroga a delle regole, bensì una piena
espressione dell’autorità pontificia (P. PÉANO, La «Quaestio fr. Petri Iohannis Olivi»
sur l’indulgence de la Portioncule, in Archivum Franciscanum Historicum, 74 (1981)
p. 33 – si tratta del punto ottavo delle risposte alle obiezioni, a pp. 72-73).
89. F. DELORME. Question de P.J. Olivi “Quid ponat ius vel dominium” ou encore “De
signis voluntariis”, in Antonianum, 20 (1945) p. 309.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
69
LUCA PARISOLI
è per lui la vera cifra della povertà francescana rispetto all’espressione
meramente nominale del simplex usus facti, ma questo implica una
svalutazione della realtà giuridica che è incompatibile con altre
metafisiche cristiane, come il contemporaneo tomismo (ma non solo).
Il tema del peccato originale come elemento essenziale nella nascita
non solo della proprietà privata, ma pure della rottura radicale tra
diritto divino e diritto mondano, è stato ampiamente tematizzato da
Tarello90 rispetto al Tractatus de Christi et Apostolorum paupertate di
Bonagrazia da Bergamo91 , il futuro procuratore generale dell’Ordine
che sarà la testa di ponte nella lotta contro Giovanni XXII. Ma sebbene
il tema della proprietà privata come frutto “per iniquitatem” (C. XII,
q. 1, c. 2) sia una costante nei pensatori dell’Ordine minoritico, non
voglio qui generalizzare delle considerazioni relative ad Olivi alla scuola
francescana in genere: la Summa fratris Alexandri92 dedica nel lib. III
ampi spazi a problemi non solo di teoria giuridica93 , bensì pure di
procedura. Tuttavia, Olivi sceglie un’altra via: per lui il problema del
Papa eretico si risolve brillantemente, ossia dissolvendo il concetto
stesso, con uno stile che precorre i virtuosismi di Scoto e di Ockham.
La nozione di “papa eretico” è così inconsistente: dopo avere distinto
tra il Papa come individuo privato e come individuo con una specifica
90. G. TARELLO. Profili giuridici della povertà nel francescanesimo prima di Occam.
Milano, 1964.
91. Per uno studio recente di questo personaggio, E. L. WITTNEBEN. Bonagratia
von Bergamo. Franziskanerjurist und Wortführer seines Ordens im Streit mit Papst
Johannes XXII. Leiden, 2003.
92. Alessandro di HALES. Summa fratris Alexandri. Quaracchi, 1924-48 (il lib. III
corrisponde al vol. IV dell’edizione).
93. Cf. O. LOTTIN. Psychologie et morale aux XII et XIII siècles II/1. Gembloux,
1948.
70
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
funzione94 , Olivi dichiara che un Papa non (può) sbaglia(re) mai, e se
apparentemente sbaglia, in realtà non è più Papa. Il Papa infallibile
diventa la guida della Chiesa indefettibile, in cui la Rivelazione si
prolunga nella storia attraverso la serie di pronunciamenti papali
infallibili in materia di fede e di morale.
Quindi, la qualifica di infallibilità che Olivi attribuisce al Pontefice
ha il risultato pratico di vincolare il Pontefice in carica alle pronunce
in materia di fede e di morale dei suoi predecessori, che a loro volta
nelle loro pronunce non avevano mai creato nessuna nuova Verità,
ma avevano ripetuto e dichiarato il corpus della Rivelazione e della
Tradizione. Rispetto alla bolla Exiit qui seminat, questa teoria sortisce
l’effetto di consacrare la Regola francescana tra le Verità della
Tradizione, a condizione di credere che la Regola e il Vangelo
coincidano almeno per quanto riguarda l’eguaglianza {altissima
paupertas = povertà di Cristo e degli Apostoli} – in caso contrario,
senza questo nesso con il Vangelo, la decisione di Niccolò III sarebbe
svincolata dalla materia della fede e della morale, quindi derogabile.
Ma questa è “solo” una contingenza, per quanto rappresenti un vero
e proprio vincolo alle ragioni delle parti: in realtà, Olivi ha costruito
una genuina teoria dello stare decisis, del precedente vincolante, nei
pronunciamenti fondamentali della Chiesa cattolica. E’ sorprendente
constatare la coerenza di questa costruzione: essa si appoggia sui dati
principali del Corpus iuris canonici, che abbiamo già visto sopra, la
certezza della Verità dei pronunciamenti dei Concili ecumenici, la
Rivelazione come limite alla plenitudo potestatis del Pontefice, che
può anche cambiare nella pienezza del suo potere l’insegnamento degli
94. Si veda in particolare L. Oliger. Petri Iohannes Olivi de renuntiatione papae
Coelestini V quaestio et epistola, in Archivum Franciscanum Historicum, 11 (1918) p.
309. Questa distinzione, essenziale nello schema oliviano, era del tutto inusuale
nella discussione canonistica.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
71
LUCA PARISOLI
Apostoli95 , ma non può che ripetere le Verità di fede e morale.
Insomma, la indefettibilità della Chiesa unita all’insegnamento
bonaventuriano del primato del Pontefice romano sortiscono in Olivi
la tesi dell’infallibilità papale: chi, se non il capo della Chiesa, deve
essere infallibile? Deve, si noti: semplicemente perché se non lo fosse,
allora sarebbe eretico, il che è già intollerabile per qualunque cristiano,
e lo è a fortiori per la guida della Chiesa cattolica.
E se si riscontra che fallisce, alla luce della Rivelazione e della
Tradizione, allora non è più vero Papa. Condizione necessaria, seppure
non sufficiente, per essere Papa, è ripetere tutta la dottrina in materia
di fede e morale della Santa Chiesa. Non è neppure necessario supporre
che il Papa sia assistito in modo particolare dallo Spirito Santo: la
Rivelazione stessa assicura l’indefettibilità della Chiesa, e il Papa non
ne è che lo strumento della proclamazione solenne. Se come semplice
viator sbaglia, questo non ha nessuna conseguenza: ciò che proclama
in materia di fede e di morale non è vero perché lui lo proclama,
piuttosto lui lo proclama perché lo assicurano la Rivelazione e la
Tradizione. Infine, potere e Verità collassano nella figura papale, che
diviene l’ultima istanza nelle divergenze teologiche, ma che è infine
posto fuori dal tempo nello stesso (limitato) senso in cui la Rivelazione
esprime verità fuori dal tempo.
Olivi appartiene così ad una corrente minoritaria della cultura
cattolica, almeno a partire dal trionfo della rivoluzione gregoriana
che impose non solo nella Chiesa, ma nella stessa cultura occidentale
latina il concetto di gerarchia politica. Tuttavia, le coordinate culturali
di Olivi rappresentano una parte importante del patrimonio della
cultura cattolica, e sono per molti versi assai vicine alla cultura cristiana
95. S. KUTTNER. Pope Lucius III and the Bigamous Archbishop of Palermo, in Medieval Studies presented to Aubrey Gwynn S.J., a cura di J.A. WATT, J.B. MORRAL, F.X.
MARTIN, Dublin, 1961.
72
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ
orientale, pur restando schiettamente latine: non solo la cifra del suo
pensiero mistico, ma le stesse coordinate della sua struttura di pensiero
possono permetterci di comprendere, in un’epoca in cui il Concilio
Vaticano II ha posto nell’agenda geopolitica della Chiesa
l’ecumenismo, la precisa posta in gioco nell’affermazione dell’unità
della Chiesa, che lo stesso Olivi, in assenza di dubbi sulla non-identità
tra Papa e Anticristo, concepiva come strettamente ordinata dal principio di obbedienza, quindi in ultima analisi gerarchica. Quali sono
infatti i limiti dell’obbedienza, che è comunque considerata da Olivi
la madre di tutte le virtù, in continuità con la tradizione del
volontarismo di sant’Anselmo magistralmente espresso nel De casu
diaboli96 ? Nel De oboedentia evangelica97 Olivi, dopo avere esaltato
l’obbedienza sia in sé stessa – per esempio come principio del potere
monocratico, sia nelle sue conseguenze benefiche – per esempio,
l’unificazione di tante volontà in una sola ponendo fine a liti e dissensi,
ne indica i limiti: il peccato manifesto, il manifesto pericolo di peccato
mortale, l’imperfezione e l’impurità evidenti tali da intaccare la
perfezione evangelica (e questa terza e ultima condizione si indirizza
a chi ha fatto voto di perfezione evangelica)98 . Non c’è peccato veniale
nell’obbedire agli ordini di un superiore autorizzato a ciò: “falsum est
igitur quidam simplices aliquando dixerunt, quod scilicet omne
peccatum veniale erat a subditis, quando eis imperabatur, propter
bonum oboedientiae agendum”, ed è falso perché obbedire è un bene,
96. Ricordo che in quest’opera il peccato di Lucifero non è un’azione essenzialmente
malvagia, ma è il fatto che Lucifero ha voluto in un momento dato quello che Dio
non voleva che Lucifero volesse in quel momento dato. Questo è puro volontarismo
normativo (De casu diaboli, cap. 4).
97. La Quaestiones de perfectione evangelica 11, come già visto, è edita in D. FLOOD,
G. GÁL (a cura di), Peter of John Olivi on the Bible, pp. 373-406.
98. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. pp. 380-388.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
73
LUCA PARISOLI
e se tale tesi fosse vera obbedire sarebbe un male, da cui la
contraddizione99 . Tuttavia, è più grave disprezzare la legge divina che
non quella di un prelato superiore, e sostenere il contrario è idolatria
delle norma umana rispetto a quella divina, insomma quasi un’eresia.
L’obbedienza è un bene supremo, ma l’uomo non è un legislatore
supremo, e solo a Dio si deve obbedienza cieca: e Olivi lega la sua
analisi alle parole stesse di san Francesco, volendo proporle non come
interpretazione personale, bensì come spirito autentico dell’identità
francescana 100 . Tanto grande è la virtù dell’obbedienza, tanto
intangibili sono i suoi limiti come appello diretto al Cielo: “tres limites praedictos nullus limes alius potest dari quin aliquid diminuat de
perfectione huius consilii seu voti”101 .
Olivi resta insomma pienamente cattolico senza esprimere tuttavia
una cultura della pienezza dei poteri della Sede apostolica come
manifestazione della successione di Cristo: il dialogo ecumenico
potrebbe trarre grande vantaggio dall’analisi di queste differenze tra
pensatori medievali (Olivi e Scoto, per esempio) che pure si
riconoscono senza esitazioni nell’identità della Chiesa Romana
Cattolica, più semplicemente la Sede apostolica.
99. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. p. 382.
100. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. p. 385.
101. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. p. 387.
74
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO
DE JOÃO OLIVI (C.1248-1298):
FUNDAMENTOS PARA A ELABORAÇÃO
DO PENSAMENTO FRANCISCANO
Profa. Dra. Ana Paula Tavares Magalhães
(DH – FFLCH – USP)
De acordo com a tradição historiográfica da Ordem Franciscana , o ministro-geral Elias de Cortona (1221-1239), ao introduzir
uma série de inovações no interior daquela instituição, passou a ser
acusado de contrariar os ideais de seu fundador, desviando-a de seu
primitivo projeto. Em conseqüência disso, por volta de 1236, um
grupo de frades liderados por Cesário de Spira manifestou-se rebelde, opondo-se àquilo a que chamavam de extravagâncias no interior
da Ordem. Os rebeldes foram denominados Cesarenos. Acusando-os
perante o papa Gregório IX de desertores da disciplina da Ordem e
de provocadores de discussões internas, Elias conseguiu deste uma
autorização apostólica para castigá-los. Apesar da morte de Cesário,
no cárcere, no ano de 1239, seus discípulos dispersaram-se pelas pro1
1. Destacamos, a título de referência historiográfica, os seguintes autores e obras:
FALBEL, N. Os espirituais franciscanos. São Paulo: EDUSP/FAPESP/Perspectiva,
1995 (col. Estudos, 146); LEFF, Gordon. Heresy in the Later Middle Ages: The
Relation of Heterodoxy to Dissent c.1250 – c.1450. Machester/Nova York:
Manchester University Press/Barnes & Nobles, 1967 (2 vols.); MANSELLI, Raoul.
“L’Anticristo mistico: Pietro di Giovanni Olivi, Ubertino da Casale e i papi del
loro tempo”, in: Collectanea Franciscana, vol. 47, fasc. 1-2; Idem. “L’idéal du Spirituel
selon Pierre Jean-Olivi”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les
Spirituels – ca. 1280-1324. Privat Editeur, 1975; Idem. “Pietro di Giovanni Olivi
ed Ubertino da Casale”, in: Studi Medievali, n° 6, 1965, pp. 95-122; Idem. Spirituali
e beghini in Provenza. Roma: Istituto Palazzo Borromini, 1959.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
75
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
víncias, alguns desterrados, outros aprisionados. Outros ainda refugiaram-se e passaram a viver em lugares ermos, associados a uma tradição mais que secular no cristianismo, ansiando em sua solidão pela
reforma da Ordem. Juntamente com eles, viriam a difundir-se também seus ideais de pobreza absoluta e sua indignação contra aquilo
que consideravam atentados ao rigor disciplinar imposto por São Francisco de Assis.
Falbel nos assinala que os primeiros representantes desse movimento – que haveria de precipitar-se no interior da Ordem originando o grupo rebelde dos Espirituais Franciscanos – encontram-se entre aqueles que formaram com o próprio São Francisco um círculo
íntimo2 . Esse autor faz menção nominal a eles como: Bernardo de
Quintavalle, o primeiro discípulo; Giles, que após a morte de Francisco passou a dedicar-se à contemplação mística; Leão, cognominado
pecorella di Dio, confidente do mestre fundador e seu herdeiro no
fervor e nos ideais; Ângelo e Rufino, que compuseram, juntamente
com Leão, a Legenda Trium Sociorum3 . Desprovidos de qualquer
ambição secular ou eclesiástica, esses primeiros companheiros de São
Francisco de Assis tenderam a criticar as modificações que se começavam a delinear no seio da Ordem, e que tendiam a privilegiar os
“relaxados” – os quais desejavam privilégios e segurança – e os litterati
– defensores da posse de livros e de contatos íntimos com a inteligentsia
da época. A chamada fuga mundi, atitude de refugiar-se em montanhas, cavernas e lugares ermos de uma forma geral – favorecendo
uma postura eminentemente contemplativa, mas, ao mesmo tempo,
marcando uma identificação com as ordens monásticas tardo-antigas
2. A esse respeito, destacamos a expressão de intimidade, utilizada nas narrativas a
respeito dos primeiros tempos da Ordem, para designar as relações de seus primitivos membros com o santo fundador: “Nos qui cum eo fuimus” (Nós que estivemos
com ele). Cf. FALBEL, Nachman. Os Espirituais...., p. 106.
3. Cf. IDEM, Ibidem.
76
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
e com o eremitismo romano-cristão – marcou o comportamento desses fratres de Francisco4 . Esse modo de vida, entretanto, passados alguns anos, não mais se encontrava em conformidade, quer com a
normatização e a sistematização pretendidas pela Sé Romana – de
acordo com uma disciplina organizada em moldes administrativos e
desempenhando funções diversas em vista dos interesses e necessidades da Igreja Católica –, quer com o crescimento da Ordem – a partir
da afluência de novos membros, o que a impossibilitava de permanecer como uma fraternitas de tipo eremítico. Nesse contexto, assumiu
lugar de destaque a questão da pobreza, sobre a qual se alicerçava a
Ordem Franciscana e sobre cuja observância teve lugar a querela entre a Comunidade (partidários da observância ampla, e no mais das
vezes com respaldo do clero secular e da Cúria Romana) e o grupo
Espiritual (defensor da observância estrita e tido por faccioso pelo
radicalismo de suas posturas).
Contudo, o grupo que assim se foi delimitando como opositor
das mudanças e como defensor da observância estrita àquilo que supunham e afirmavam ser os ditames de Francisco, e que se iria designar pelo nome de Espirituais Franciscanos (mais tarde, identificado
como herético), teria como berço enquanto grupo faccioso e perse-
4. A respeito do tema da fuga mundi, do desligamento dos ofícios administrativos
e das questões de poder envolvendo os clérigos numa vida semi-laica, Falbel já
assinalava um escrito franciscano, expoente do seu ideal de santidade humilde e
reclusa. O opúsculo intitula-se Aos que querem habitar nos eremitérios. Aqui encontramos citadas as palavras do próprio Frei Leão, confessor e companheiro de Francisco: “Depois disse São Francisco: ‘Como eles se alimentarão e de que maneira
viverão meus filhos, que necessitarem viver nos bosques?’ A isto respondeu Cristo:
‘Eu cuidarei de alimentá-los do mesmo modo que se fez com os filhos de Israel:
dando-lhes o maná do deserto; porque tais religiosos serão bons e volverão ao
primitivo estado quando foi fundada e começou a Ordem.’ Mas o eremita não
deixará de ser suspeito, tanto pelo seu modo de vida, isto é, fora da disciplina
religiosa, como pelas suas possíveis convicções.” IDEM, Ibidem, nota 8, p. 106.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
77
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
guido a marca de Ancona, na Itália central. É possível identificar tal
ocorrência a partir do ano de 1274, quando, às vésperas do Concílio
de Lyon – ocasião em que havia rumores de que o papa Gregório X
pretendia transformar as ordens mendicantes de modo a seguirem o
estilo de vida das ordens tradicionais, obrigando-as a que fossem possuidoras de bens e de propriedades –, surgiu naquela região uma oposição organizada. Essa área da Península Itálica, com sua paisagem de
vales e montanhas, acabou por revelar-se uma profícua favorecedora
do desenvolvimento do movimento, pois houvera favorecido, desde
a era pré-cristã, a afluência de toda sorte de eremitas e de místicos5 .
De acordo com o espiritualismo franciscano, o elemento fundador de toda a doutrina cristã era o Evangelho (entendido este nas suas
quatro variantes canônicas), com o qual os expoentes da facção em
questão passaram a identificar a própria Regra de São Francisco de
Assis. O frade espiritual entendia o cristianismo à luz dos Evangelhos
e da atmosfera de religiosidade que deles emanava, sem a demanda
da aferição de outras razões para além da própria fé. Paralelamente a
esse traço de concepção da fé cristã comum aos membros do grupo,
desenvolvia-se – sobretudo entre as comunidades situadas no perímetro compreendido entre a França meridional e a Itália central –
um fenômeno marcado pela sobreposição de idéias estranhas ao franciscanismo das origens e às idéias e práticas encetadas pela facção rebelde. Trata-se do chamado “Franciscanismo Joaquimita” que, segundo
Gordon Leff, foi apenas uma das várias formas que tomaram as doutrinas do abade calabrês Joaquim de Fiore nas mãos de seus discípulos6 . Assim, um mentor proeminente de alguns dos chamados Espi-
5. A esse respeito, v. PACAUT, M. Les ordres monastiques et religieux au Moyen Âge.
Paris: Nathan, 1993.
6. Cf. LEFF, Gordon. Op. cit., p. 176.
78
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
rituais Franciscanos nesse terreno foi, sem dúvida, o abade calabrês
Joaquim de Fiore (1135-1202), com sua concepção trinitária da história da Igreja. Ocorreu aqui, portanto, uma simbiose entre elementos franciscanos e não franciscanos. Os resultados foram, dentre outros, a preconização de mudanças próximas, prenúncio do fim dos
tempos; a difusão de idéias que tendiam a identificar Jesus Cristo e
São Francisco de Assis; o anúncio de uma futura renovação eclesiástica operada por poucos (no caso o próprio grupo dos Espirituais Franciscanos, auto-intitulados viri spirituales, seguidores de São Francisco, porta-vozes da verdade de Cristo7 ). Muito embora a aparência
apontasse na direção do questionamento à Igreja Romana e de sua
hierarquia, o movimento refletia antes – e acima de tudo – o desejo
de reforma, tomando, por vezes, o aspecto de uma reelaboração do
cristianismo primitivo. Não deveria perecer, portanto, a instituição
eclesiástica, mas antes regenerar-se para dar lugar a uma nova Igreja,
isenta do fausto, da glória e do poder. Buscava-se não uma destruição
da Igreja, mas sim uma alternativa para a vida de seus pastores. A base
desse projeto era, portanto, não a desobediência, mas sim a obediência rigorosa ao ensinamento evangélico, fundamento de toda doutrina. Para tanto, faziam apelo ao modelo de vida dos apóstolos de Jesus
Cristo – a chamada vita apostolica, marcada pela pobreza, pela humildade e pela mendicância, características de que se preencheu o
cristianismo em sua fase mais primitiva, e que agora eles forcejavam
por resgatar –, aos quais os próprios Espirituais Franciscanos acabavam por comparar-se. A inserção do movimento espiritual fazia-se,
portanto, como luta no interior da Igreja e sob fidelidade à fé ortodo-
7. Conforme referências recorrentes presentes na Arbor vitae crucifixae Iesu, de
Ubertino de Casale, e na Historia septem tribulationum ordinis minorum, de Ângelo
Clareno.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
79
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
xa, e jamais sob pena de exclusão de tal fé – caso da criação de nova
religião – ou de cisão em relação a tal Igreja – caso da evolução para
uma seita. Nos dizeres de Manselli, “a sua preocupação fundamental
(...) não era uma expectativa escatológica aflita ou uma vontade de
tomar partido de si, distinguindo-se através de alguma coisa do corpo da
Igreja, mas apenas o desejo de uma vida espiritual mais fervorosa e mais
sincera no âmbito da Igreja e sem qualquer veleidade de cisma”8 .
A partir de fins do século XIII, com a intensificação das querelas
em torno dos ideais de pobreza professados pelos membros da Ordem, três personalidades muito importantes para a evolução das questões relativas ao tema viriam reforçar, muito embora de formas diversas, o partido dos Espirituais. São elas: Pedro de João Olivi (12481298); Ângelo Clareno (1247-1337); e Ubertino de Casale (1259c.1328). A par disso, alguns de seus confrades lograram influência
ímpar, como Arnaldo de Vilanova. Alavancando as discussões acerca
da pobreza por meio de escritos e de atitudes, esses homens reuniram
em torno de si, sobretudo na Itália do norte e central e na França
meridional, não somente religiosos – entre pertencentes e não pertencentes à Ordem – mas também laicos, sendo que estes últimos
foram chamados de Bizochi na Itália, e de Béguins na França.
Com relação a esses últimos, a considerar suas formas de organização e suas relações com o movimento franciscano, pode-se dizer
que Pedro de João Olivi desempenharia um papel fundamental para
a elaboração do movimento e para a consolidação de suas práticas. A
série de processos inquisitoriais contra os Beguinos – que teriam lugar nos primeiros decênios século XIV, com ênfase para o período
compreendido entre 1321 e 1325 – foi sistematizada por Limborch;
8 Cf. MANSELLI, Raoul. Op. cit., p. 75.
80
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
dispomos de uma edição de fins do século XIX9 . Os processos foram
conduzidos, em sua maior parte, pelo dominicano Bernardo Gui10 .
Além disso, o mesmo Olivi com seus escritos rigoristas e suas
principais obras exegéticas – com destaque para o Comentário sobre
o Apocalipse – figuraram como eixos para aquilo que se consolidou,
na nomenclatura curial, como Espiritualismo Franciscano, acepção
derivada da terminologia – viri spirituales –, recorrente nas obras e
opúsculos produzidos pelos mesmos no contexto da contenda que os
opôs, ao longo das três primeiras décadas do século XIV, aos Conventuais, por um lado, e à Cúria Romana-Avinhonense, por outro.
Pedro de João Olivi teria nascido entre 1248 e 1249, em Sérignan,
no distrito de Hérault, no Languedoc. É provável que tenha ingressado na Ordem Franciscana entre 1260 e 1261, no convento de Béziers,
com a idade de doze anos. Mais tarde, enviado a Paris, teria recebido
seu bacharelado em Teologia. Os últimos anos de sua vida, ele teria
9. LIMBORCH (ed.). Liber Sententiarum Inquisitionis Tholosanae, ab anno Christi
MCCCVII ad annum MCCCXXIII.
10. Uma aguda admiração pelo mestre pode ser depreendida do depoimento de
Petrus Moresii, que teria declarado a Bernardo Gui10: “Item quod non fuit aliquos
doctor, excepto sancto Paulo et predicto fratre Petro Iohannis, cuius aliqua dicta
non fuerint per ecclesiam refutata, set scriptura et doctrina sancti Pauli et predicti
fratris Petri Iohannis est tenenda totaliter per ecclesiam, nec est una littera
dimittenda.” Col Doat, vol. XXVIII, fl. 229v.-230r., apud MANSELLI, Raoul.
Spirituali..., nota 1, p. 182. No depoimento de Petrus Gaufridi, encontramos juízos
contundentes a esse respeito: “& ipsum [Olivi] apellant sanctum patrem & magnum
doctorem, & ipse ita credebat quod non fuisset major doctor eo ab apostolis citra,
& audivit dicti seu legi inter beguinos ipsum fuisse & esse spiritualiter illum angelum
de quo scribitur in apocalipsi quos facies ejus erat sicut sol, & habebat librum
apertum in manu sua, quia singulariter inter omnes alios doctores fuerat ei aperta
verita Christi & intelligencia libri apocalipsis, de quo libro in postilla ejusdem
fratris P. Iohannis plura legerat scripta & posita in vulgari” (LIMBORCH, Ph. Op.
cit.– “Depoimento de Petrus Gaufridi”, fl. 163v. p. 325).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
81
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
vivido no convento de Narbona, mantendo boas relações com o clero
e com os notáveis. Veio a falecer aos 14 de março de 1298, tendo
legado uma profissão de fé na qual afirmava as doutrinas que sustentara em vida. Sua presença, por vezes tida por heterodoxa – o que se
revela, sob um outro ponto de vista, um equívoco –, acabou muitas
vezes por causar reservas, chegando mesmo a ser censurado e removido de sua cátedra. Em 1287, após ter sido reabilitado, tornou-se lector
em Florença, estada ao longo da qual cimentou relações entre italianos e franceses do sul: era o início de um frutífero relacionamento
com a ala italiana dos reformadores da Ordem, dentre os quais logrou destaque Ubertino de Casale e, possivelmente – mas não provavelmente –, Ângelo Clareno. De volta à sua terra natal, em 1289,
tornou-se lector nas casas franciscanas em Montpellier e Narbona. Ao
morrer, seu culto espalhou-se, dando origem a peregrinações. Passou
a ser considerado um santo não-canonizado.
Ele seria identificado aos doutores da Igreja, em especial a São
Paulo, ao qual a Revelação da Santa Escritura também houvera sido
prodigada11 . A devoção em torno da figura de Olivi remetia a referências milagrosas, como se pode depreender dos depoimentos mais
correntes12 .
11. “cuius aliqua dicta non fuerint per ecclesia refutata, set scriptura & doctrina
sancti Pauli & praedicti P. Iohannis est tenenda totaliter per ecclesia, nec est una
littera dimittenda” (LIMBORCH, Ph. (ed.). Op. cit., “Processo de Petrus Moresii”,
fl. 154b, p. 306).
12. “Item scripturam fratris Petri Ioannis credidit esse bonam et catholicam et
dictum fratrem Petrum Ioannis [m. Ioannem] esse sanctum et quandam filiam
suam, quae patiebatur infirmitatem in gutture, scilicet scroellas ad sepulcrum suum
duxit et curata fuit et credidit quod per orationem dicti fratris Petri curata fuerit,
quem fratrem Petrum adhuc credit esse in Paradiso, licet dicat se audivisse quod in
scriptura sua continentur errores, sed audivit insuper quod in fine supponit eam
correctioni sancte Ecclesie...” (Col. Doat, XXVII, fl. 18r – Depoimento de Sibilla
Cazelle di Gignac, nov. 1325, apud MANSELLI. Spirituali..., nota 2, p. 37).
82
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
Dentre seus escritos, destacam-se, além dos dois tratados De
Paupere usu e De Perfectione evangelica – escritos de base rigorista,
defensores da prática estrita do usus pauper no interior da Regra, editados por David Burr13 e uma das razões para que sua memória fosse
levada além por uma série de movimentos identificados à Ordem,
fossem de base laica ou não –, comentários sobre o Gênese, os Salmos,
os Provérbios, o Cântico dos Cânticos, os Evangelhos e o Apocalipse, um
tratado sobre a autoridade do papa – o De renuntiatione papae14 – e
do concílio e uma exposição sobre a Regra de São Francisco – trata-se
da Declaratio in regulam, na qual ele elabora uma teoria da vida cristã
em pleno acordo com os evangelhos. Ele compreende a Regra de
Francisco como o documento formalmente adequado a um projeto
de vida plenamente evangélico15 .
Ao tratar, ainda, da Regra Franciscana, Olivi considera a questão
do poder papal de dispensar de um voto e, em particular, de votos
evangélicos. O frade faz referência ao fato de o papa poder comutar a
matéria de um voto em uma ação melhor. Entretanto, tal possibilidade encontra-se excluída no caso dos votos evangélicos. Dessa forma,
o papa não pode dispensá-los. Essa postura de Olivi coaduna-se perfeitamente com sua concepção do desenvolvimento da história. A
vida evangélica pertence ao último tempo da viagem do homem em
direção à ordem eterna. A Regra de São Francisco manifesta o engaja-
13. BURR, David (ed.). De usu paupere – The Quaestio and the Tractatus. Firenze/
Perth, 1992, pp. 92-93.
14. Escrito que alimentaria, em princípios do século XIV, no ambiente franciscano, a célebre controvérsia a respeito da renúncia de Celestino V e da ascensão de
Bonifácio VIII ao trono pontifício.
15. Apud FLOOD, David. “Pierre Jean-Olivi et la Règle Franciscaine”, in: Cahiers
de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324, Privat Editeur,
p. 143.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
83
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
mento dos homens à vida segundo o Evangelho. Por essa razão, é
impossível dispensá-los16 .
Ao fim de sua resposta à questão sobre o poder papal de dispensar
dos votos, Olivi explica que Francisco compreendera bem isto, e, por
essa razão, decretou que ninguém poderia retirar-se da Ordem uma
vez introduzido nela. O frade prossegue nesse aspecto por intermédio de uma interpretação do Testamento de São Francisco de Assis.
Ele explica que Francisco deixara sua última mensagem a seus irmãos
a fim de impedir que alguém se dirigisse a Roma no desejo de fazer
relevar os rigores da Regra. Assim, seu Testamento não impusera nenhuma nova lei aos frades. Antes, explica ele, Francisco não possuía
autoridade para fazê-lo17 .
Ainda em seu comentário sobre a Regra, Olivi discorre a respeito
de três pontos, que definem, a saber, a teoria, a localização social e o
sentido histórico desse documento. Quanto ao primeiro aspecto, afirma a identidade entre a Regra Franciscana e o Evangelho. O modo
de vida seguido por Francisco e por seus irmãos é a vida vivida por
Cristo e imposta por ele a seus apóstolos18 .
Quanto ao segundo aspecto, em contrapartida, ao mesmo tempo
em que confere à prática da Regra uma validade evangélica, Olivi assegura que este corpus de homens que vivem de acordo com o Evangelho o faz
dentro da Igreja, submisso ao papa. Quanto mais um grupo procura
realizar o Evangelho em sua vida, mais ele é obrigado a enraizar-se profundamente na Igreja, unificada sob a autoridade do papa19 .
Quanto ao terceiro aspecto, o frade considera a vida proposta
pela Regra como a continuação da história de São Francisco de Assis.
16. Apud IDEM, Ibidem, p. 147.
17. Apud IDEM, Ibidem.
18. Apud FLOOD, David. “Art. cit.”, p. 140.
19. Apud IDEM, Ibidem, p. 141.
84
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
Assim, a Regra fazia mais do que prescrever o gênero de vida conduzido por São Francisco de Assis. Ela, com efeito, unia os frades menores àquele homem como forma de continuação do projeto misterioso
que o Santo Espírito havia iniciado com ele. Ele precisa, nesse caso,
que qualquer outra instituição consagrada ao mesmo programa evangélico não desempenharia o mesmo papel histórico decretado pelo
status e pela ordo da sucessão franciscana. Olivi não considera, pois, a
Ordem, que existe pela Regra e vive segundo a Regra, como distinta
da história vivida por Francisco20 .
É de se supor a grande repercussão atingida por sua obra, dado
que seu comentário sobre o Apocalipse – a Lectura super Apocalypsim
–, seu escrito de maior destaque, foi lido tanto em latim quanto em
vulgar. Afirmava-se-lhe um poder de captação de verdades reveladas
e, portanto, a autenticidade de sua doutrina, enquanto inspirada pela
luz divina e, naturalmente, católica21 .
Seus pontos de vista foram sintetizados por Ângelo Clareno em seu
Historia Septem Tribulationum Ordinis Minorum. Pregava-se a frugalidade, condensada em preceitos de retorno ao Cristianismo primitivo e de
20. Apud IDEM, Ibidem, p. 142.
21. “Item, dicunt et asseverant quod tota doctrina et scriptura fratris Petri Iohannis
Olivi de ordine fratrum Minorum est vera et catholica et eamdem credunt et
dicunt fuisse ei a Domino revelatam et dicunt dictum fratrem Petrum Iohannis
hoc ipsum, dum vivebat, suis familiaribus revelasse. Item, eumdem fratrem Petrum
Iohannis communiter vocant sanctum patrem non canonizatum.”
GUI, Bernard. Manuel de l’Inquisiteur. Ed. e trad. por G. Mollat, colab. De G.
Drioux, sob o título Manuel de l’Inquisiteur. Paris: Les Belles Lettres, 1964, p. 138.
Assim, o depoimento de Raymundus Stephani de Cruce: “Item dixit & asseruit se
credere & tenere de doctrina fratris Petri Johannis Olivi, tam in postilla super
apocalipsim quam in tractatu de paupertate, de quibus audivit aliquociens sibi
legi, quam in aliis libris suis, quod sit bone & catolica. Item quod sit dominus papa
per se ipsum auctoritate propria absque concilio prelatorum universaliter
congregatorum condempnaret dictam doctrinam in parte vel in toto ipse non
reputaret eam condempnatam etiam si hoc faceret de concilio cardinalem.”
LIMBORCH, Ph. (ed.). Op. cit. – “Processo de Raymundus Stephani de Cruce”,
fl. 162b., pp. 322-3.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
85
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
apologia a São Francisco de Assis, o que acabou por se tornar um topos
dos movimentos espiritual e beguino: “não concedia a seus irmãos mais
que o consumo de alimentos necessários para a vida de cada dia e o uso
de objetos, breviários ou vestimentas sagradas que servem para o ofício
divino. Proibia-os de receber donativos pelas sepulturas outorgadas em
igrejas de frades menores ou qualquer outra doação”22 .
A condenação dos escritos de Olivi estaria relacionada com as disputas intraclericais verificadas nessa época de fermentos no meio eclesiástico. Trata-se das contendas inerentes à gênese e à atuação da Inquisição.
Elas demonstram a tendência, por parte dos seculares, à tentativa de restringir o campo de atuação dos regulares, em especial no interior das
Universidades. O conhecimento monástico – em especial no interior da
Universidade – projetava sombras sobre o clero episcopal e das paróquias
e sobre a hierarquia. Assim, na Universidade de Paris, uma disputa, derivada do ressentimento do clero secular – pela virtual perda de prestígio
para o clero regular graças ao ingresso de seus magistri naquela instituição
– grassava e arrastava consigo os escritos que sobressaíam por conter afirmações que pudessem suscitar o debate23 .
22. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 83.
23. Com efeito, em meados do século XIII, a Universidade de Paris encontrava-se
envolvida em agitada luta contra as Ordens Mendicantes – Franciscanos e Dominicanos. O início da contenda situa-se na figura de Guilherme de Saint Amour,
cônego de Beauvais e, desde 1247, professor de filosofia e teologia na Universidade
de Paris. Este voltou-se contra as Ordens Mendicantes num momento em que elas
conheciam um período de significativa ascensão no interior da Universidade, uma
vez que passaram, pouco a pouco, a apoderar-se das cátedras universitárias, que
antes constituíam patrimônio exclusivo do clero secular. Por escrito, no púlpito e
na cátedra, começou Guilherme de Saint Amour a atacar os Mendicantes, começando pelos Dominicanos, e passando, em seguida, aos Franciscanos. Manifestouse contra seus direitos e privilégios de predicar e de confessar, bem como de enterrar em suas igrejas; o ideal da pobreza em comum, assim como sua existência
propriamente dita como instituições religiosas, ridicularizando-os. Em sua contenda, Guilherme logrou angariar a seu favor grande parte do clero secular, destacando-se aqueles membros que, em função da presença das Ordens Mendicantes,
86
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
De acordo com alguns autores24 , Pedro de João Olivi, franciscano da Provença, teria recebido estímulos dos escritos apocalípticos do
criam ameaçados os seus privilégios econômicos diante das atividades conventuais.
Em seu empenho em detratar as Ordens Mendicantes, Guilherme acabou por
publicar o livro De Antichristo (1254) e o tratado De periculis novissimorum temporum
(1256). Com isso, a hostilidade, que se havia iniciado no terreno jurídico, passou
ao terreno dogmático, uma vez que o catedrático, em seus dois escritos, conflitava
com a doutrina evangélica referente à pobreza. Os Franciscanos e Dominicanos
não deixaram, contudo, de reagir. Assim, São Tomás, Santo Alberto Magno e o
Franciscano Tomás de York assumiram a defesa de suas ordens. São Tomás redigiu
a obra Contra impugnantes Dei cultum; Santo Alberto Magno, sua Philosophia
pauperum, e Tomás de York, o livro intitulado Manus quae contra Omnipotentem
tenditur. Boaventura, por seu turno, também não deixaria de tomar a si a defesa da
pobreza evangélica, identificada com a perfeição. Ele encontrava-se, por essa época, na Universidade de Paris, na função de mestre. Interveio, portanto, no debate,
compondo as chamadas Quaestiones disputatae de perfectione evangelica. Nelas, trata-se das virtudes evangélicas, a saber, humildade, pobreza, castidade e obediência,
as quais formariam o núcleo do estado religioso. Uma ocasião semelhante motivou
outra magnífica obra de São Boaventura, a Apologia pauperum contra calumniatorem.
A luta, num primeiro momento, havia-se dissipado. Com efeito, o papa Alexandre
IV condenou, em Agnani, após o exame de uma comissão de cardeais, em 5 de
outubro de 1256, o Tractatus brevis de periculis novissimorum temporum, publicado
por Guilherme naquele mesmo ano23. Pela sua sentença, foi privado, juntamente
com seus colegas, de suas dignidades e benefícios eclesiásticos e da cátedra, saindo
desterrado de Paris e da França por ordem do rei Luís IX. Em seu desterro, entretanto, não se assinalou um fim à campanha contra o estado religioso. Nova luta,
com efeito, iniciou-se, da qual veio a ser pivô Geraldo de Abbéville, cônego de
Amiens, amigo de Guilherme e, como ele, mestre na Universidade de Paris. Este
novo adversário do Mendicantes escreveu o livro Contra adversarium perfectionis
christianae, obra na qual combatia furiosamente o franciscano Tomás de York. A
luta desenvolvia-se nos terrenos doutrinal e prático a um tempo: “O inimigo dos
Mendicantes intentava primeiramente abater o cume da perfeição evangélica, em
seguida derrubar seus muros, depois destruir seus fundamentos e, por último,
difamada já caluniosamente a profissão dos Pobres de Cristo, torná-la abominável
aos olhos do mundo.” (Apud SÃO BOAVENTURA. Quaestiones disputatae de
perfectione evangelica, in: Obras de San Buenaventura. Eds. Fr. Bernardo Aperribay,
O.F.M.; Fr. Miguel Oromi, O.F.M.; Fr. Miguel Oltra, O.F.M. Madrid: BAC,
1949, p. 7). O momento era, portanto, de desvio ascético, e São Boaventura redigiu, então, sua Apologia pauperum contra calumniatorem. Trata-se de uma obra que
sempre fora considerada, pelos eruditos, como autêntica de Boaventura. Ele teria
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
87
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
abade calabrês Joaquim de Fiore (1136-1202). Assim, de acordo com
toda uma literatura que tende a perdurar até os dias de hoje e a coexistir, com alguns escritos revisionistas recentes25 , um componente
importante das correntes místico-espirituais franciscanas pode ser
encontrado na obra do abade calabrês Joaquim de Fiore (1136-1202).
Nascido em Celico, na Calábria, Joaquim de Fiore é considerado uma
fonte inesgotável de inspiração para movimentos de tal porte, tendo
em vista sua proposta e seu método, consignados em sua chamada
escrito esse opúsculo sendo já ministro geral e, provavelmente, antes de 1269. A
ocasião era, portanto, aquela da defesa das ordens Mendicantes contra as acusações
lançadas pelos mestres de Paris. Concretamente, na verdade, contra Geraldo de
Abbéville e seus seguidores. Consiste em obra realizada com extrema diligência,
abundante doutrina e grande sensibilidade, na qual abundam os textos da Sagrada
Escritura e dos santos padres da igreja. O santo desfaz os sofismas e falsos princípios de seu adversário, expõe de forma sólida a doutrina evangélica e declara o sentido exato da regra dos Frades Menores. Mostra-se, nessa ocasião, mais duro do que
havia estado com relação a Guilherme de Saint Amour, a quem Alexandre IV
condenara no ano de 1256. Em sua crítica a Geraldo de Abbéville, fixa o conceito
da perfeição, celebra a sublimidade da vida religiosa e exalta a pobreza de Cristo,
modelo da pobreza dos Mendicantes. Trata-se da obra culminante escrita por
Boaventura acerca da perfeição evangélica. Boaventura afirma que Geraldo, “ao
colocar a abundância dos bens temporais no cume da perfeição evangélica, e caluniando como imperfeita e supersticiosa a voluntária carência dos mesmos, confessa-se discípulo daquele [Guilherme de Saint Amour] que compôs um opúsculo
contra as Ordens dos evangelizadores e pobres Mendicantes, condenada pela Sé
Apostólica.” (SÃO BOAVENTURA. Apologia pauperum contra calumniatorem, in:
Obras de San Buenaventura. Eds. Fr. Bernardo Aperribay, O.F.M.; Fr. Miguel Oromi,
O.F.M.; Fr. Miguel Oltra, O.F.M. Madrid: BAC, 1949, p. 542.) Tais homens,
arrogantes no entender de São Boaventura, alimentavam-se com a vaidade deste
mundo, crendo conquistar grande glória ao chamar de simulação dolosa a verdadeira santidade dos santos e ao reprovar sua prudência de espírito como insensatez
(Ibidem, p. 636).
24. Destacam-se LEFF, G. Op. cit. e FALBEL, N. Os Espirituais....
25. A esse respeito, v. POTESTÀ, G.L. Storia ed escatologia in Ubertino da Casale.
Milano: Università Cattolica del Sacro Cuore, 1980 (Vita e Pensiero); “Un secolo
di studi sull’ ‘Arbor vitae’: Chiesa ed escatologia in Ubertino da Casale”, in:
Collectanea Franciscana, vol. 47, 1977, pp. 217-267.
88
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
doutrina trinitária. Trata-se da trindade manifesta na história da humanidade, determinando uma série de etapas no curso de sua existência. Nos dizeres de Falbel, “Mais do que isso, a Trindade serve de
esquema para reconhecer uma escala de valores éticos no comportamento da humanidade, no roteiro de sua salvação”26 .
Sua Lectura super Apocalypsim teria, dessa forma, reproduzido e
desenvolvido uma série de preocupações e matrizes teóricas postuladas por Joaquim em suas obras. No entanto, conforme dito acima, o
próprio alcance de tal influxo sobre a obra de Olivi é controverso.
É comum encontrar, no pensamento de Pedro de João Olivi, uma
tentativa de identificação entre os stigmata de Cristo e a degradação
moral da Igreja, bem como as atribulações que dela resultavam. Assim, a primeira atribulação – a opressão clerical – representava as chagas nos pés de Cristo. A rapinagem e a fraudulência clericais, as chagas de suas mãos. Por fim, a luxúria clerical identificava-se às feridas
abertas em seu lado e em seu coração27 .
Olivi procedeu à identificação de cada era da história eclesiástica
a uma figura do bestiário. A preeminência pertencia à quinta Era, ou
seja, a então atual. A figura representativa, nesse caso, era o dragão de
sete cabeças, que evocava a extrema virulência em função das evidências observadas com respeito ao comportamento dos membros do
clero. O mundo seria então governado pelo instinto, e não pela razão.
No entender dos Beguinos, emergiria a besta com sete cabeças, às
quais se acrescentariam dez chifres, e a figura seria reportada à exis26. FALBEL, Nachman. “São Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore
(1136-1202)”, in: Revista USP, São Paulo, Jun-Jul-Ago, 1996, p. 273.
27. “In prima autem tribulatione clericales conculcant plebeios quasi pedes per
fastum arrogantie et per contemptum contumelie seu parvificentie per rapine
molestiam et per calumnie fraudulentiam sunt eorum manus aliorum. Per lateralem
autem sive visceralem aperturam luxurie cruciant eorum corda et viscera” (Apud
LEFF, Gordon. Op. cit., p. 128).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
89
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
tência da Igreja atual enquanto grande prostituta da Babilônia, corrompida pelos vícios mundanos28 .
A besta ascenderia à superfície da Terra por meio da multidão de
pessoas bestiais caídas em erro ou infidelidade. Os principais demônios, conduzindo os fiéis à tentação, eram as sete cabeças do dragão.
As duas últimas eram o Anticristo místico – ou o primeiro –, que
apareceria no final da quinta idade, e o Anticristo aberto, cuja vinda
pressagiaria o fim do mundo. Todas as perseguições seriam do
Anticristo. Tudo aquilo que concerneria ao Anticristo real incluiria o
Anticristo místico, como seu precursor. A besta ascendendo do mar
representaria a Cristandade carnal e secular, e suas muitas cabeças os
príncipes e prelados carnais; um deles fora morto pela vinda de São
Francisco, pelo forte impacto da pobreza e perfeição evangélicas. Mas
isso só levara a lassidão a reviver mais fortemente.
É sintomático, portanto, no entanto, que Olivi escrevesse no interior de uma ortodoxia e, malgrado seu rigorismo, em obediência e
fidelidade a ela. Para ele, os inimigos de Cristo eram os discípulos de
Aristóteles e de Alexandre Magno, bem como os sarracenos, judeus e
heréticos. Aquilo, portanto, que pudesse solapar as bases do Cristianismo, seja pela via intelectual, política ou doutrinária, era combatido. Nas menções que faz à Regra Franciscana no conjunto de seus
escritos, ele buscou sensibilizar a consciência franciscana quanto a seu
papel histórico e às implicações de tal destino.
Assim, pode-se afirmar que Olivi lançou argumentos combativos
especialmente em três frentes, no sentido de caracterizar as atribulações
28. “legitime constat judicio recognouit quod ipse audivit legi in postilla fratris
Petri Johannis Olivi super apocalipsim de muliere vestita auro habente poculum
aureum in manu sua sedente super bestiam habente capita VII. & cornua X. &
habebat super se scriptum misterium, Babilon meretrix magna fornicacionum”
(LIMBORCH, Ph. Op. Cit., “Processo de Raymundus de Buxo”, fl. 151, p. 298).
90
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
pelas quais passava a Igreja às vésperas do fim dos tempos. Em primeiro lugar, pode-se dizer que o declínio da Igreja seria oriundo das
enormes cupidez e ambição de seus prelados e abades. Em segundo
lugar, invocava os heréticos em grande número de situações, tal qual
já o fizera Joaquim de Fiore; as heresias que consistiam no eixo das
preocupações eclesiásticas da época eram em especial o Valdeísmo e o
Catarismo. Por fim, censurava os teólogos e escolásticos, em especial
de Paris, que abraçaram o aristotelismo e o averroísmo29 .
Deve-se assinalar que o exame das idades conforme Olivi não
permitia ainda a identificação da Igreja Carnal à Igreja existente. Sua
base teórica estava, na verdade, presente em São Paulo, na II Epístola
aos Tessalonicenses, na qual se faz revelar o homem do pecado como
aquele que repudiou o evangelho da pobreza. A Igreja, então, passara
a tornar-se obstáculo à sua massa de seguidores. É comparada ao rio
Eufrates, que impede a continuidade da jornada; assim, também a
Igreja estaria obliterando o caminho daqueles que desejavam seguir o
voto de pobreza evangélica30 . Ressalte-se ainda que não temos aqui
uma identificação direta entre um dado pseudo-papa e o Anticristo;
no entanto, a ligação podia estar implícita, já que seria este a condenar o franciscanismo.
29. “Ad cujus evidentiam nota quod communia malia omnibus temporibus ecclesie
et humano genere communia... erant tria gravissima circa finem quinte temporis
ventura quorum a prima fuit effrenata laxatio clericorum, monachorum et laicorum
seu vulgarium plebium fraudibus; secunda sumens a predicta occasionem
hereticorum Manicheorum et Valdensium eis in multis consimilium et multa et
pestifera inundatio. Tertium aliorum ypocritalium religiosorum cum primis
multiplicatio et spiritus Christi, et vite ejus ab omnibus impugnatio, quamvis diversis
modis et prandibus, ut fiat perplexior temptatio fere inducens in errorem electos”
(Apud IDEM, Ibidem, p. 132).
30. “Potestas enim papae et multitudo plebium sibi obediens et favor ejus est quasi
magnus fluvius Euphrates impediens transitum et insultum emulorum evangelici
status in ipsum” (Apud IDEM, Ibidem, p. 134).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
91
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
Não se trata de um movimento de contestação à hierarquia eclesiástica. Com efeito, Olivi, no conjunto de seu pensamento, jamais
procurou negar a validade da hierarquia eclesiástica. Neste ponto, a
experiência cultural e humana de Olivi revela uma densidade e um
valor intensos e fecundos. Assim, Olivi, muito embora aceitando plenamente a realidade da hierarquia eclesiástica, não desconhece, por
sua vez, até que ponto esta realidade encontra-se representada por
indivíduos muito distanciados do ideal de santidade e de perfeição
oferecido por Cristo.
Com efeito, em seu tratado sobre a obediência, Olivi menciona a
Regra Franciscana como condição, também, de obediência. Ele destaca a importância da obediência como parte substancial da perfectio
evangelica. Ele assegura que a obediência vivida pela Regra persegue a
realização da verdade evangélica.
A posição de Olivi a respeito da Regra de sua Ordem obriga-nos,
portanto, a situá-lo claramente no interior das estruturas institucionais de seu tempo, a descartar, portanto, não somente a suspeita de
heresia, mas também todo desprezo formal em relação à autoridade.
Com efeito, encontram-se em Pedro de João Olivi enunciados
aparentemente opostos. Por um lado, de acordo com alguns autores,
ele seria até mesmo o mentor da tese da infalibilidade do magistério
pontifical. De outro, em contrapartida, ele teria visto na Igreja Romana a Babilônia do Apocalipse, perseguidora dos santos, e, no papa,
o Anticristo. Esse aparente paradoxo é, contudo, resolvido após um
exame das linhas gerais do pensamento do frade. Raoul Manselli demonstra que a Igreja carnal é, para ele, uma realidade concreta, mas
que não pode ser identificada com uma realidade determinada do
tempo e do espaço. Tal qual a Cidade do mal de Santo Agostinho,
Roma poderia ser a Babilônia, um papa poderia ser o instrumento do
Anticristo do qual São Francisco teria tido a revelação. Mas este seria,
então, um pseudo-papa. Olivi certamente previu o advento de tem92
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
pos mais difíceis e até mesmo de um papa que contradiria a regra
evangélica. No entanto, embora tendo denunciado a existência de
um reino crescente da Besta no quinto estado da Igreja, ele não designou ninguém como sendo já o Anticristo ou esse falso papa. Ao contrário, ele acabou por justificar a legitimidade de Bonifácio VIII após
a renúncia de Celestino V, o qual, entretanto, perfazia, a seus olhos,
uma simpática figura de homem espiritual e de asceta31 .
Olivi participa da corrente de idéias de inspiração dionisiana que
apoiava, nos teólogos franciscanos do século XIII, a concepção de
uma eclesiologia romana e papalista, conforme consta da Declaratio
in Regulam32 .
O frade atribui uma imensa autoridade e muito grandes poderes
ao papa. Não deixa, entretanto, de fazer uma reserva: o poder pontifical
não se deve voltar contra a lei do Cristo. Ao fazer tal afirmação, ele
tem em vista um caso preciso: a forma de vida evangélica revelada por
São Francisco, caracterizada pala ausência de propriedade e pelo usus
pauper. O papa que recusasse esse ponto de fé e de lei seria um pseudopapa. Não seria, portanto, um papa, devendo, supostamente, ser o
31. Apud CONGAR, Yves. “Les positions de Pierre Jean-Olivi d’après les publicatios
récentes”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10..., pp. 155-156.
32. “Quia constat quod colligantia totius corporis ad suum universalissimum caput
est eius universale stabilimentum. Ex hac enim accipit suam unitatem et totalitatem.
Rursus si summus pontifex est sic caput totius ecclesiae quod ei non subesse est
extra ecclesiam esse ac per consequens et extra fidei catholicae unitatem, quid
mirum si regula evangelica, in supererogativo zelo fidei Christi plantata, debuit sic
in principali sede Christi suum statum infigere ut nullus stipes vel surculus sive
ramus rectius aut profundius vel firmius staret in illa? Et hinc est quod Francisco
institutori seu renovatori huius regulae datus fuit singularis et superfervidus zelus
ad obedientiam et reverentiam vicarii Christi et ecclesiae romanae..”(...) “Sicut
igitur papa est omnium christianorum ordinarius et immediatus propter quod tota
ecclesia est plene et intime una, sic generalis est omnium minorum ordinarius et
immediatus. Et ideo totus hic ordo est sic unus sicut unus singularis conventus”
(Apud IDEM, Ibidem, pp. 156-157).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
93
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
Anticristo. Nesse caso, poder-se-ia e até mesmo dever-se-ia desobedecêlo. É aqui que se situam os textos suposta e aparentemente antipapais
de Olivi, em particular sua Lectura super Apocalypsim, na qual Olivi
menciona um tal instrumento da Besta como se já estivesse iminente.
Olivi certamente contestou a qualidade da vida daqueles que se
encontravam engajados nos votos da vida evangélica e daqueles que
davam continuidade à vida apostólica. Ele acreditava na eficácia da
ação humana. De acordo com Olivi, se os homens no interior da
Ordem e na liderança da Igreja permanecessem fiéis às idéias que
professavam, dariam início a uma nova idade histórica. Ele enfatizava
antes o homem que a instituição. Era necessário que os homens fossem fiéis, e não que as instituições fossem aperfeiçoadas. Em conseqüência desse pensamento, as idéias de Olivi tomaram forma nos
conflitos no interior da Ordem e da Igreja.
Por essa razão, alguns estudiosos vêm afirmando que não seria necessário e nem tampouco adequado atribuir a Olivi a qualificação de Espiritual. No entender de alguns, tal palavra encontra um sentido preciso na
história do século XIV, mas não teria aplicação precisa aos personagens
do século XIII33 . De qualquer forma, resta que as idéias em voga nos
chamados meios espirituais do século XIV têm seu germe nas formas de
pensamento dos frades rigoristas do século anterior.
Apesar das influências posteriores, pode-se afirmar que Olivi apresentou uma visão extremamente equilibrada acerca da Regra da Ordem,
e, em conseqüência, acerca das instituições. David Flood afirma que, por
essa razão, encontraram-se, em sua obra, poucos elementos que se prestassem à crítica por ocasião do Concílio de Viena (1312), a despeito,
naturalmente, de uma busca intensa por falhas doutrinais34 .
33. Cf., por exemplo, FLOOD, David. “Art. cit.”, p. 150.
34. Cf. IDEM, Ibidem, p. 151.
94
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
Em sua Lectura super Apocalypsim, ao tratar da abertura do sexto
sigilo35 , Olivi afirma que tal evento encontrava-se prestes a acontecer. Ele lembra que o sexto e o sétimo estados da Igreja conheceriam
uma manifestação particularmente clara da vida do Cristo. Tal far-seia presente por intermédio da Regra dos frades menores, que consiste
na própria vida evangélica do Cristo. Olivi passa em revista quatro
opiniões acerca do momento da abertura do sexto sigilo: uma colocaa ao início da Ordem; uma outra no momento da revelação feita a
Joaquim de Fiore sobre o sexto e o sétimo estados; uma terceira quando da destruição da Babilônia, ou seja, a Igreja carnal; uma quarta
opinião afirma que o sigilo seria aberto quando homens surgiriam no
espírito de Cristo e de Francisco no momento em que a vida evangélica seria atacada. Olivi propõe a fusão de tais diversas opiniões. Assim, tal como os quatro evangelhos começam em momentos diferentes, o mesmo aconteceria à abertura do sexto sigilo36 .
Ao compreender a Regra como programa evangélico, Olivi faz
com que ela consista em elemento importante no momento da abertura do sexto sigilo. Ela encontra-se, dessa forma, intimamente ligada
aos dramas profundos da história. Devido ao fato de interpretar a
história como a luta do Cristo para transformar o mundo, para trazer
a justiça e a paz, Olivi encontra-se convencido de que aqueles que
vivem segundo a verdade do Cristo, proposta pela Regra, encontramse no centro das grandes batalhas históricas.
Francisco de Assis havia aportado uma revelação nova no que
concerne à forma da vida evangélica como consistindo na pobreza,
na ausência de propriedade e no usus pauper. Da mesma forma, ao
cabo do quinto estado do Antigo Testamento, Cristo e os Apóstolos
haviam substituído o judaísmo pelo Evangelho. Ele apoiava-se, tam35. Cf. Ap. 4,12ss.
36. Apud FLOOD, David. “Art. cit.”, p. 144.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
95
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
bém na bula Exiit qui seminat, publicada por Nicolau III em agosto
de 1279, que consagrava a interpretação rigorosa da pobreza e que
apresentava São Francisco como um momento novo e solene na história da salvação37 .
Para Pedro de João Olivi, assim como para Boaventura de Bagnoregio,
a canonização de São Francisco e a aprovação da Regra pelo papa possuíam uma importância decisiva. Ele apoiava-se na bula Exiit para estabelecer que nenhum outro papa poderia tornar sobre aquela determinação a
fim de modificá-la, conferindo dessa forma razão aos Conventuais e contradizendo o ensinamento do documento papal, conforme consta de suas
questões De perfectione evangélica38 .
Esta posição teológica de Olivi vem confirmar suas concepções
eclesiológicas a respeito da infalibilidade pontifical. Assim, a luta pela
pobreza absoluta apoiava-se numa bula papal da qual Olivi afirmava
o caráter intangível. É por isso que, aos olhos de Olivi, um papa que
pregasse outra coisa que não a verdade revelada a Francisco e em
Francisco, e canonizada pela bula Exiit, seria um pseudo-papa. Assim, se Olivi recusava ao papa o poder de dispensar de um voto evangélico contido na Regra Franciscana, não era devido à autoridade de
São Francisco sobre sua Regra inspirada, mas sobretudo porque a
Igreja era obrigada a reconhecer a Ordem Franciscana como modelo
de perfeição cristã.
Uma leitura mística de Olivi, nos moldes da oposição entre a
Igreja carnal e a Igreja espiritual – bem como do ideal da espera de
37. “Haec est apud Deum et Patrem munda et immaculata religio, quae, descendens
a Patre luminum, per eius Filium exemplariter et verbaliter Apostolis tradita, et
deinde per Spiritum Sanctum beato Francisco et eo sequentibus inspirata, totius in
se quasi continet testimonium Trinitatis.”
Apud CONGAR, Yves. “Art. cit.”, p. 159.
38. “An Romano Pontifici in fide et moribus sit ab omnibus catholicis tamquam
regule inerrabili obediendum?” (Apud IDEM, Ibidem, p. 159).
96
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
uma Igreja futura, redimida de suas mazelas pela ação dos chamados
viri spirituales – acabava por conduzir a determinadas conclusões,
condizentes e identificadas com o pensamento espiritual. Assim, a
pobreza franciscana tornava-se, por sua vez, o ideal e a característica
da futura Igreja. Dessa forma, pobreza e final dos tempos identificavam-se e aproximavam-se. Os frades eram pobres porque já pertenciam à nova idade. Esta, por sua vez, significaria o triunfo da pobreza, uma
vez que seria a idade da plenitude de Cristo39 . Não se encontra em Olivi
um pleno desenvolvimento da relação entre pobreza e final dos tempos.
Contudo, não deixa de ser significativo que o frade iniciasse seu Tractatus
de usu paupere afirmando que nos últimos tempos a antiga serpente voltava-se contra a pobreza evangélica40 , e o concluísse mediante a afirmação de que a negação do usus pauper representa a preparação do caminho
para a seita do Anticristo, pois nada prepara melhor o caminho para
sua seita do que a blasfêmia à altíssima pobreza41 .
Desenvolveu-se na Provença e na Itália do norte e central toda
uma tradição de culto a Olivi, ligada especialmente à presença histórica da luta dos Espirituais Franciscanos. Com efeito, o postulado de
princípios relacionados à observância estrita da Regra, as discussões
em torno do ideal da pobreza absoluta, acabaram por criar na região
uma ambiência receptiva à crítica de clérigos e de fiéis não só à Or-
39. Cf. DE Boni, Luís Alberto. “O debate sobre a pobreza como problema político
nos séculos XIII e XIV”, in: Patristica et Medievalia, XIX, 1998, pp. 23-50, p. 35.
40. “Quoniam contra paupertatem evangelicam per seraphicum Christi confessorem
Franciscum in novissimis temporibus plenius et clarius renovatam et revelatam
antiqui hostis serpentina astucia quibusdam tortuosis anfractibus varios suscitavit
et suscitare non cessat.”
BURR, David (ed.). De usu..., p. 89.
41. “Septimum est preparatio vie ad infernalem sectam antichristi. Sicut enim
alibi plenius est probatum et adhuc suo loco clarius ostendetur, nihil ita viam
preparat sue secte sicut blasphemia altissime paupertatis” (IDEM, Ibidem, p. 148).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
97
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
dem Franciscana – e aos rumos que esta passara a tomar na medida
em que declinava da observância recomendada por seu fundador –
como também à própria instituição eclesiástica – em cuja estrutura,
acreditava-se, extremamente burocratizada e com injunções de caráter político, já não mais havia lugar para o usus pauper em sua acepção
mais primitiva. É assim que assistimos ao desenvolvimento da crítica,
que cedo foi incorporada à Igreja como heresia e, dentro desta categoria, condenada como “erro”, “equívoco”. Os estímulos fizeram-se
sentir mais fortemente ali, onde a discussão já fora colocada na ordem do dia. Observou-se então a emergência do grupo beguino, formado em sua maioria por laicos, segmentos ligados à Ordem Terceira
de São Francisco de Assis, que assenhorearam-se dos elementos mais
substanciais do debate e imprimiram nova dinâmica à crítica dos Espirituais. Os Beguinos surgiram, portanto, em estreita articulação com
uma crítica pré-existente, constituída por opiniões rigoristas a combater a lassidão que imperava no seio da Igreja e da Ordem. Detectamos a presença das idéias de Olivi já entre aqueles Espirituais que
pretendiam fundamentar sua inflexão com relação à pobreza em alguns ensinamentos do frade, os quais primavam pela presença de uma
disciplina extremamente normativa (muito embora não chegasse a
figurar como pretensão de solapar as bases hierárquicas existentes).
Entretanto, configura-se controversa a classificação de Olivi entre os chamados Espirituais Franciscanos. Com efeito, Raoul Manselli,
em artigo que trata dos ideais do frade – sobretudo aqueles expressos
em uma carta endereçada por ele aos filhos de Carlos d’Anjou – defende a tese da limitação do espiritualismo franciscano ao início do
século XIV, ao mesmo tempo em que questiona a figura de Pedro de
João Olivi como integrante do grupo dos Espirituais Franciscanos.
Assim, o estudioso italiano pergunta-se se e em que medida Olivi
poderia ser não propriamente o chefe dos chamados Espirituais –
como se acreditou durante muito tempo –, mas, sobretudo se confi-
98
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
guraria ele um membro de tal movimento. Em favor dessa tese, coloca-se em evidência o fato de Pedro de João Olivi ter permanecido, ao
longo de toda sua vida, estreitamente ligado, tanto por sua doutrina
filosófica e teológica quanto no que concerne à sua disciplina religiosa, a São Boaventura, ao qual jamais deixara de lembrar e render respeitosa homenagem em cada uma de suas obras42 .
Assim, no conjunto do movimento franciscano, aflorou uma tendência que pode ser chamada de Espiritual. Tal tendência não significava uma teoria aceita por um homem ou por um grupo, mas que
persistia como um fermento no interior da Ordem. Tal fermento pode
ser considerado como fermento de vida, mas também configura um
fermento de divergências, que se manifestaram, inclusive, no interior
daquilo que se pretende chamar de grupo dos Espirituais. Dessa forma, o próprio movimento espiritual – assim classificado como forma
de reunir todas essas divergências em um único grupo – apresenta-se
como uma pluralidade, e não como uma unidade no interior do franciscanismo. Quanto a Olivi, é possível dizer que, pela extensão de sua
cultura, pela profundidade de seu pensamento e pelo nível de sua
inteligência foi, não o líder dos Espirituais – não se pode, inclusive,
afirmar consensualmente tal qualificativo para ele –, mas antes aquele
que melhor soube captar o valor e o sentido religioso, histórico e
humano do espiritualismo; tais valores e sentidos precederiam a própria contenda, tal como ela viria a configurar-se ao longo das três
primeiras décadas do século XIV.
Muitos dos preceitos de Pedro de João Olivi fundamentaram-se,
portanto, nas idéias enunciadas por São Boaventura, em sua Apologia
pauperum contra calumniatorem. Eles demonstram acentuadas afini-
42. MANSELLI, Raul. “L’idéal du Spirituel selon Pierre Jean-Olivi”, in: Cahiers de
Fanjeaux, 10..., p. 99.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
99
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
dades de perspectiva. Para ambos, a pobreza não se diferencia ou destaca; ela configura, antes, apenas um entre vários outros problemas.
Na realidade, a ênfase é ora colocada sobre a pobreza, ora sobre a
obediência. As repercussões imediatas e posteriores de seus trabalhos,
bem como o peso enfático conferido a determinadas idéias, contudo,
fizeram com que trilhassem caminhos opostos em suas carreiras e na
posteridade. São Boaventura atingiu seu topo em Paris, possuindo
uma cátedra franciscana na Universidade, e depois, tendo ocupado o
generalato daquela Ordem por dezesseis anos; Olivi tornou-se objeto
de suspeição e condenação como escolástico e frade. São Boaventura
passou para a posteridade como o segundo fundador da Ordem e
seus escritos foram exaltados; Olivi, por sua vez, seria tido como o
santo não-canonizado dos Beguinos do sul da França, identificado
como responsável pela emergência de uma nova heresia, e suas palavras acabaram por ser condenadas. As asserções de Olivi em relação à
pobreza já haviam, com efeito, sido esboçadas por São Boaventura e
Pecham43 . Olivi seria responsável por tornar formal aquilo que os
43. Em seu Tractatus de usu paupere, Olivi, procede, com efeito, a uma enumeração de autores que deveriam sustentar suas teses a respeito da pobreza evangélica e
sobretudo do usus pauper. Os dois primeiros dessa série são Pecham e São Boaventura.
Dentre as afirmações do primeiro encontram-se a interdição à propriedade, quer
em particular, quer em comum, e a restrição ao uso dos bens mundanos, de forma
que não ultrapasse os limites da pobreza. Assim, “‘nec in speciali nec in communi
debent proprietatem habere sed illarum rerum quas licet habere ordo usum habeat’,
exponit illud quod ibi premissum est, scilicet, ‘quas licet habere’, subdens, ‘idest,
que modum paupertatis non excedunt’. Ex quo patet quod ibi vult illum usum
esse ordini illicitum quod modum paupertatis excedit.” Quanto ao segundo, Olivi
cita uma passagem de sua Apologia pauperum contra calumniatorem, na qual se
estabelece também a condenação da propriedade, bem como o uso apenas como
condição para a satisfação das mais estritas necessidades: “‘Cum autem circa
temporalium bonorum possessionem duo considerare contingat, dominum videlicet
et usum, sitque usus necessario annexus vite presenti, evangelice paupertatis est,
possessiones terrenas quantum ad dominium et proprietatem relinquere, usum
vero non omnino reiicere, sed artare, iuxta quod dicit apostolus, Habentes alimenta et quibus tegamus hiis contenti sumus’” (BURR, David (ed.). De usu paupere –
The Quaestio and the Tractatus. Firenze/Perth, 1992, pp. 92-93).
100
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
dois apenas haviam sugerido. Ele tentaria estabelecer o usus pauper
enquanto conceito em si, e inseparável do voto de pobreza. Trata-se
de uma perspectiva que buscava coadunar ideal e prática, e para tanto, fazia-se necessária uma delimitação precisa desse ideal. De exortação geral, tornou-se uma série de requerimentos específicos. Daí o
advir das oposições. A diferença de ênfase entre São Boaventura e
Olivi em relação à questão da pobreza consiste em que São Boaventura
considerou a pobreza como um aspecto virtual e externo, não comparável em grandeza com as virtudes teologais. Olivi, por sua vez,
considerou a pobreza como fator inerente à perfeição interior, munido de valor equivalente e paralelo ao das virtudes teologais. Resgataria a vita apostolica, numa forma de apelo à vida do Cristo como
confirmação final da santidade44 .
Muito embora se possa estabelecer um radicalismo efetivo a partir dos elementos místicos presentes na Lectura de Olivi (referência à
concepção de ecclesia carnalis versus ecclesia spiritualis), não se pode
afirmar que se tratava de um extremista quando se observa o conjunto de seu pensamento. Com efeito, o frade sabia que o usus pauper
admitia muitas variantes. Sua peculiaridade consistia em defender a
atinência indeterminada do usus pauper sobre a Regra, não estando
sujeito a ações pontuais, como queriam seus opositores: “O problema
de o uso pobre não delimitar juridicamente quando se pode comer
um capão acompanhado com vinho branco, ou quando se pode andar a cavalo, só existe para quem reduz a pobreza a um fato meramente jurídico – mas para Olivi a questão situava-se em outro registro: na disponibilidade interna da pessoa, manifestada por aquela forma de prática que não se pergunta pelo minimalismo legal”45 .
44. Cf. LEFF, Gordon. Op. Cit., pp. 101-15.
45. DE BONI, Luís Alberto. “Art. Cit.”, p. 34.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
101
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
Assim, de acordo com Raoul Manselli, a defesa do chamado usus
pauper, com o seu rigorismo em relação à pobreza, não configurava
um elemento diferenciador do pensamento daquele frade. Deve-se
procurar essa diferenciação, antes, em qualquer coisa de mais profundo, nos valores mais essenciais, ou seja, numa mentalidade e numa
maneira de viver que a maioria dos frades, aqueles que se chamariam
de Comunidade, deveria reprovar como diferentes das suas e até mesmo como potencialmente hostis e estranhas46 . Assim, a observância
da Regra não consistia simplesmente na obediência a uma mera norma jurídica, mas sim o ponto de partida de um laço de amor com o
Cristo crucificado, bem como o sacrifício de si mesmo no amor da
pobreza e dos confrades.
A concepção específica do usus pauper como inerente à Regra – e
não enquanto mera característica supererogatória presente em alguns
indivíduos dotados de vontade sublime – representa a própria bandeira de luta espiritual, seu diferencial por excelência no interior do
grupo. Característica mais marcante da obra de Olivi – para além de
sua mística apocalíptica, e sendo que esta mesma decorre dela –, a
defesa do usus pauper seria retomada por Ubertino de Casale em sua
obra maior, a Arbor vitae crucifixae Iesu (1305), o qual, para melhor
fundamentá-la, deveria recorrer até mesmo às fontes mais ortodoxas
da tradição franciscana, haja vista o uso que faz da Apologia pauperum
do ministro-geral São Boaventura.
Após a morte de Olivi, assistiu-se à afirmação e à perpetuação de
seus ideais de vida por parte de seus seguidores de Narbona e das
zonas circunvizinhas. No seio da Ordem Franciscana, continuavam
os esforços daqueles que se haviam oposto em vida a Olivi e que
agora desejavam condenar, para além de sua obra e memória, tam-
46. MANSELLI, Raoul. “L’idéal...”, p. 101.
102
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
bém seus seguidores e discípulos. De um lado, tinham seqüência as
polêmicas teológicas – de resto, situadas no interior das controvérsias
normais para a época; de outro, ajuntavam-se-lhes os problemas relativos à interpretação da Santa Escritura – e, nesse sentido, uma predisposição nomeadamente hostil fazia emanarem animosidades antes
contra o indivíduo que contra as teses que sustentava. As nesgas mais
violentas incidiam sobre a questão da pobreza, no interior da qual
Olivi sempre afirmava sua posição de preciso, claro e inequívoco
rigorismo, em seus comentários acerca da Regra Franciscana ou acerca das questões da vida espiritual.
A tradição manuscrita da obra maior de Pedro de João Olivi,
qual seja, a chamada Lectura super Apocalypsim, atesta a difusão desse
texto nos ambientes Espirituais e da Comunidade, bem como entre
os primeiros Observantes, a partir da segunda metade do século XIV.
No momento em que Ubertino de Casale escreve a Arbor vitae (1305),
é necessário notar que a Lectura ou Postilla de Olivi representava uma
obra suspeita. Dessa forma, no primeiro prólogo de sua obra, Ubertino
faz menção a Olivi, definindo-o como: “doutor especulativo e precípuo
de defensor da vida de Cristo. Iluminado por Deus”47 . Ubertino,
com efeito, reconhece, na Arbor vitae, sua medida de dependência
em relação a Pedro de João Olivi, ao afirmar seus contatos com o
mestre na província da Toscana, ao mesmo tempo em que seu ensinamento teria sido o ponto de partida para sua renovação espiritual48 .
47. UBERTINO DE CASALE. Arbor vitae crucifixae Jesu, a cura di C. T. Davis,
Torino, 1961,
Pról. I, fl.4b.
48. “ad provinciam Tuscie veniens sub titulo studii”, tendo encontrado “in multis
viris virtutis spiritum Iesu fortiter ebulire”. A seguir “cum predictis magistris frater
[Petrus] Iohannis Olivi (...) me modico tempore, (...) ex tunc in novum hominem
mente transiverim” (Ibidem).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
103
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
Em contrapartida, e provavelmente em função do peso da suspeita
que pesava sobre a obra daquele frade, busca, armando-se de prudência, distinguir sua posição daquela de Olivi, atenuando sua admiração em relação ao mestre, ao afirmar que tão perfeito doutor não
possuíra, contudo, a razão em tudo aquilo que dissera49 .
Ubertino exprimir-se-ia ainda com semelhante cautela em colóquio com Clemente V, no ano de 1310, no curso do debate preparatório para o Concílio de Viena, a chamada magna disceptatio (13091312), opondo Espirituais e Comunidade. Naquela ocasião, manifestou-se ainda com análoga prudência, ao precisar que não lera toda
a obra de Olivi, o que o impossibilitava de tornar suas todas as teses
do mestre. Assim, após haver feito sua defesa à pessoa e à doutrina do
frade francês contra aqueles que pretendiam condenar sua Lectura e,
para além dela, sua memória, declarou que “não o seguia em todas as
suas opiniões, embora acreditasse que naquilo (teses que foram objeto de sua defesa) não acreditava que o mesmo tivesse errado”50 .
Ubertino de Casale conhecera Pedro de João Olivi em Florença,
onde este ensinara durante o biênio de 1287-1289, no convento de
49. “Non tamen hunc perfectum doctorem quem rationabiliter tantum commendo
in aliquibus dictis suis sequor, quia aliquando bonus dormitat Homerus, nec omnia
omnibus data sunt” (Ibidem).
50. “Non tamen in omnibus eius opinionem sequor, licet ipsum propter hoc non
credam errare.”
Sanctitas vestra, p. 88, apud POTESTÀ, Gian Luca. Op. cit., p.59. Na defesa que
Ubertino procedeu em relação a Olivi, encontra-se a afirmação do convívio entre
os dois em convento, sendo que o mestre seria, dentre aqueles frades mais observantes
da Ordem, aquele de maior santidade de vida, de profunda ciência e de grande zelo
pela fé e pelos costumes. Em seguida, indica ao papa os motivos da desconfiança da
Comunidade em relação à pessoa e às doutrinas de Olivi, afirmando que seus
escritos exprimiam a transgressão na observância da pobreza. Aqueles, portanto,
que se esforçavam por condenar as obras de Olivi temiam a opinião pública, de vez
que aparentemente não possuíam ânimo para corrigir-se. (Cf. EHRLE, F. Zur
Vorgeschichte des Concils von Vienne. 4. Vorarbeiten zur Constitution Exivi de paradiso
in ALKG III (1887), p. 88, apud MANSELLI, Raoul. Spirituali..., pp. 102-103).
104
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
Santa Cruz. Tornaram-se amigos, e sua relação próxima evidencia-se
também pelo fato de que, muitos anos após a morte de Olivi, que se
dera no ano de 1298, Ubertino passasse a defender sua memória e
suas doutrinas por ocasião do debate precedente ao Concílio de Viena, a referida magna disceptatio. A defesa mais intensa deu-se no opúsculo de Ubertino intitulado Sanctitate apostolice, de junho de 1311,
também conhecido como Apologia Olivi. As primeiras condenações
de obras de Olivi ter-se-iam verificado por volta de 127851 . No que
tange à Lectura super Apocalypsim, composta entre 1296 e 1297, a
mesma, após a morte de seu autor, deveria tornar-se motivo de polêmica e de ataques, os quais acabaram por culminar em condenação
definitiva no ano de 1326, sob o papa João XXII.
A pessoa e a doutrina de Olivi tenderam a permanecer e foram
perpetuadas mormente na medida em que se desencadeavam os processos de busca inquisitorial que visavam a reprimir a religiosidade
beguina e a perseguir seus praticantes como heréticos. O compêndio
traduzido para o vulgar acerca do Apocalipse apareceu, com efeito,
em 1318, ano-chave para o movimento. João XXII contrariava os
chamados Espirituais Franciscanos – elementos radicais no interior
da ordem que pretendiam restaurar aquilo que consideravam a intentio
de São Francisco de Assis, apregoando o extremo rigor no cumprimento da regra –, bem como parte dos moderados, ao condenar, por
meio de três constituições52 , a doutrina segundo a qual as Escrituras
51. Trata-se das questões De Domina, queimadas por ordem do ministro-geral
Jerônimo de Ascoli (1274-1279).
52. Trata-se das seguintes bulas: Ad conditorem canonum (8 de dezembro de 1322),
em que afirmava que Nicolau III, ao estabelecer a Igreja Romana como proprietária dos bens usados pelos franciscanos, embora movido por ideais piedosos, incorrera numa impossibilidade racional e jurídica, tendo em vista o uso daquelas coisas
que se consomem pelo próprio uso, tais como roupas e alimentos; Cum inter
nonnullos (12 de novembro de 1323), em que declarava consistir em heresia a
afirmação de que Cristo e os Apóstolos nada haviam possuído; Quia quorundam
mentes (10 de novembro de 1324), em que afirmava que suas duas bulas anteriores
eram condizentes com a Exiit qui seminat, de Nicolau III, ao mesmo tempo em
que sua autoridade bastava para definir a questão.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
105
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
provavam que Cristo e os apóstolos nada haviam possuído, quer em
caráter comum, quer em particular. Repudiou, ainda, o acordo segundo o qual os papas eram os proprietários nominais dos bens da
Ordem Franciscana53 , dispondo esta somente do seu usufruto. E no
ano de 1318, na cidade de Marselha, determinara a queima de quatro Espirituais Franciscanos, com base na referida afirmação – os
mesmos foram condenados pelo inquisidor Miguel Lemoine –, ocorrência que consistiria num dos suportes essenciais do fenômeno
beguino: a partir de então, as referências alegóricas apocalípticas passariam a assumir colorações cada vez mais realísticas, o que tornava a
fonte em questão – a Postilla super Apocalypsim de Pedro de João
Olivi – um documento cujo significado intrínseco podia ser associado a uma profecia. Data da mesma data uma série de interrogatórios
conduzidos em Lodève, o que denota a força que o movimento já
vinha adquirindo antes mesmo que se lhe abrissem margens para uma
rica martirologia. A obra em vulgar é anônima; mas fornece a medida
exata do estado de ânimos ocasionado pela onda de perseguições e
pelas ocasionais condenações. Particularmente característico desse novo
estado de ânimo é o acuro com que vêm enunciados e precisados
momentos, personagens e conceitos, os quais, sob a pena de Olivi,
haviam sido deixados, com deliberado propósito, desprovidos de determinações ulteriores.
Referências
1. Fontes
ANGELO CLARENO. Expositio super Regulam Fratrum Minorum. Ed.
Giovanni Boccali, O.F.M.; intr. Felice Accroca; trad. Marino Bigaroni,
O.F.M. Santa Maria degli Angeli: Edizioni Porziuncola, 1994
(Pubblicazioni della Biblioteca Francescana Chiesa Nuova, 7).
53. Conforme a bula Exiit qui seminat, de Nicolau III, emanada em 1279.
106
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI
BURR, David (ed.). De usu paupere – The Quaestiones and the Tractatus.
Firenze/Perth, 1992.
Col. Doat, in: MANSELLI, Raoul. Spirituali e beghini in Provenza.
Roma: Istituto Palazzo Borromini, 1959.
GUI, BERNARD. Practica Inquisitionis haereticae pravitatis. Ed. e trad.
G. Mollat; colab. G. Drioux, sob o título de Manuel de l’Inquisiteur.
Paris: Belles Lettres, vol. 2, 1964.
LIMBORCH (ed.). Liber Sententiarum Inquisitionis Tholosanae, ab anno
Christi MCCCVII ad annum MCCCXXIII.
PIERRE JEAN-OLIEU. Epitre aux fils de Charles de Naples, en l’an
1295. Trad. M.-H. Vicaire in Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains
d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324. Privat Editeur, 1975
SÃO BOAVENTURA. Apologia pauperum contra calumniatorem, in:
Obras de San Buenaventura. Eds. Fr. Bernardo Aperribay, O.F.M.; Fr.
Miguel Oromi, O.F.M.; Fr. Miguel Oltra, O.F.M. Madrid: Biblioteca
de Autores Cristianos, 1949.
Miguel Oltra, O.F.M. Quaestiones disputatae de perfectione evangelica,
in: Obras de San Buenaventura. Eds. Fr. Bernardo Aperribay, O.F.M.;
Fr. Miguel Oromi, O.F.M.; Fr. Miguel Oltra, O.F.M. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1949.
UBERTINO DE CASALE. Arbor vitae crucifixae Jesu, a cura di C. T.
Davis, Torino, 1961.
2. Bibliografia secundária
CONGAR, Yves. “Les positions de Pierre Jean-Olivi d’après les
publicatios récentes”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10, Franciscains d’Oc –
Les Spirituels – ca. 1280-1324, Privat Editeur.
DE Boni, Luís Alberto. “O debate sobre a pobreza como problema
político nos séculos XIII e XIV”, in: Patristica et Medievalia, XIX, 1998,
pp. 23-50.
EHRLE, F. Zur Vorgeschichte des Concils von Vienne. 4. Vorarbeiten zur
Constitution Exivi de paradiso, in: ALKG III (1887), p. 88, apud
MANSELLI, Raoul – Spirituali.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
107
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1977,
p. 83.
FALBEL, N. Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: EDUSP: FAPESP:
Perspectiva, 1995 (col. Estudos, 146).
FALBEL, Nachman. “São Bento e a ordo monachorum de Joaquim de
Fiore (1136-1202)”, in: Revista USP, São Paulo, Jun-Jul-Ago, 1996, p.
273.
FLOOD, David. “Pierre Jean-Olivi et la Règle Franciscaine”, in: Cahiers
de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324,
Privat Editeur.
LEFF, G. Heresy in the Later Middle Ages: The Relation of Heterodoxy
to Dissent c.1250 – c.1450. Machester: Manchester University Press;
Nova York: Barnes & Nobles, 1967 (2 vols.).
MANSELLI, R. “L’Anticristo mistico: Pietro di Giovanni Olivi,
Ubertino da Casale e i papi del loro tempo”, in: Collectanea Franciscana, vol. 47, fasc. 1-2.
MANSELLI, R. “L’idéal du Spirituel selon Pierre Jean-Olivi”, in: Cahiers
de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324.
Privat Editeur, 1975.
MANSELLI, R. “Pietro di Giovanni Olivi ed Ubertino da Casale”, in:
Studi Medievali, n° 6, 1965, pp. 95-122;
MANSELLI, R. Spirituali e beghini in Provenza. Roma: Istituto Palazzo
Borromini, 1959.
PACAUT, M. – Les ordres monastiques et religieux au Moyen Âge. Paris:
Nathan, 1993.
POTESTÀ, G.L. Storia ed escatologia in Ubertino da Casale. Milano:
Università Cattolica del Sacro Cuore, 1980 (Vita e Pensiero).
POTESTÀ, G.L. “Un secolo di studi sull’ ‘Arbor vitae’: Chiesa ed
escatologia in Ubertino da Casale”, in: Collectanea Franciscana, vol. 47,
1977, pp. 217-26.
108
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007
“CRISTO NOSSO SAL” –
A PARTICIPATIO EM TOMÁS DE
AQUINO
Jean Lauand
(Prof. Titular FEUSP, e-mail: [email protected])
Metáforas para Cristo
A tradição cristã vale-se de diversas formas, metafóricas ou não,
para designar Cristo, algumas extraídas das próprias falas de Jesus e
das Escrituras. Fórmulas mais ou menos consagradas pelo uso, cada
uma acentuando este ou aquele aspecto de seu ser ou de sua missão
redentora.
Com alguma surpresa, deparei com a expressão “Cristo é o
sal”, recolhida na Catena Aurea in Marcum (cp 9, lc 6) de Tomás
de Aquino. Muito mais familiares, para ficarmos só no Evangelho
de João, são “o pão” (6,35); “a luz” (8,12); “a porta” (10,9); “a
ressurreição” (11,25); “a vide” (14,6); “o caminho”, “a verdade”,
“a vida” (14,6) etc.
Algumas dessas formas remetem a um conceito-chave para a compreensão da relação entre Cristo e os cristãos: o de participatio; participação, evidente, por exemplo, na metáfora “Cristo Vide”.
A participação é importante porque é o conceito diferencial do
cristianismo: ser cristão, mais do que aderir a uma doutrina, é participar da filiação divina de Cristo: um conceito impensável, digamos,
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
109
JEAN LAUAND
para o islamismo ou para o judaísmo. Para os cristãos, nós temos a
filiação no Filho; a luz na Luz; a verdade na Verdade etc. Se o fato
essencial do cristianismo é a ligação com Cristo, é natural que o Evangelho apresente comparações que permitam falar da dinâmica de estar ligados/desligados nEle.
É nessa clave que se inserirá também a distinção que o cristianismo – como todas as religiões – faz entre bons e maus, justos e injustos, inclusive no seio da própria Igreja. Nas Jornadas Mundiais da
Juventude de 2005, o Papa declarou:
“Pode-se criticar muito a Igreja. Sabemos, e o Senhor mesmo nos
disse: é uma rede com peixes bons e maus, um campo com trigo e
joio” (Bento XVI – Vigília das Jornadas Mundiais da Juventude;
Marienfeld, 20-08-05).
Para além das comparações de bem / mal: bom pastor / mau
pastor (Jo 10,11ss); joio e trigo (Mt 13,25ss); peixes bons e peixes
maus (Mt 13,46ss) etc., as metáforas da participação permitem acentuar o elemento de desvirtuamento, de corrupção das pessoas ou instituições (“Vós sois o sal...”) da Igreja: “Se a luz que há em ti são
trevas...” (Mt 6,23); “se o sal se desvirtua...” (Mt 5,13; Mc 9,50; Lc
14,34). Pois, como no caso da seita dos fariseus, muitas vezes, os mais
“religiosos”, os mais praticantes é que são o sal desvirtuado. E é interessante notar que o próprio Tomás (que vai falar de sais que não são
sal), lembra o provérbio que diz que para se conhecer uma pessoa (ou
instituição) verdadeiramente é necessário antes comer um saco de sal
com ela:
“Non contingit quod aliqui seinvicem cognoscant antequam simul
comedunt mensuram salis” (Sent. Libri Ethic. lb 8, lc 3, 21).
110
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
“CRISTO NOSSO SAL”
Os cristãos, hoje, certamente continuam a considerar a passagem
do Evangelho em que Cristo fala do sal, mas é muito raro dizer que
Cristo é o Sal1 .
Embora o Evangelho não diga expressamente que Cristo é o Sal,
alguns autores antigos recolheram essa idéia, também na clave da
participatio.
Mas, antes, vejamos, brevemente, esse conceito em Tomás.
A participatio no pensamento de Tomás
Ao contemplar a grande e grandiosa obra de Tomás de Aquino,
James Weisheipl faz sugestiva observação: “Tomás, como todo mundo, teve uma evolução intelectual e espiritual. O fato assombroso,
porém, é que, desde muito jovem, Tomás apreendeu certos princípios filosóficos fundamentais que nunca abandonou” (WEISHEIPL, 1994,
p. 16).
1. E quando se diz que Cristo é sal, é no plano figurado, como na sugestiva observação do poeta Bruno Tolentino. Numa entrevista, referindo-se à conversão, ele
diz: “Mas voltando à sua pergunta inicial sobre a conversão, é como a parábola do
sal. Cristo é o sal. O sal realça o gosto da comida, não muda o gosto da comida,
torna o peixe mais peixe, a carne mais carne. Assim como o encontro com Cristo
não muda o que você é, mas agora você se torna você na dosagem perfeita: aquilo
para que você era destinado ser. Eu estou neste processo em que sou cada vez mais
eu mesmo. Eu parei de ser uma caricatura de mim mesmo. Como dizia Píndaro:
‘Torna-te o que tu és’. Você se torna o que você é. Há um nível supra-real da
pessoa. É isso o que só Deus sabe. Nesta perspectiva o ato poético é um ante-gosto,
um antepasto desta plenitude”. http://www.catolicanet.com.br/sitepassos/
paginarv.asp?cod=71&tipo=0 “Passos”, n. 40, junho 2003.
Uma exceção, bem no sentido clássico da participatio, é a homilia do Cardeal Francisco Javier Errázuriz (n. III), nas Jornadas Mundiais da Juventude (Toronto, 2002):
“Porque Cristo es la verdadera sal, comprendemos que el llamado de Jesús a ser sal
de la tierra expresa nuestra vocación más plena y verdadera, la de ser como él, es
decir, otros “cristos” en medio del mundo... Etc.”
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
111
JEAN LAUAND
Um desses princípios é o da participação2 , que é a base tanto de
sua concepção do ser como – no plano já estritamente teológico – da
graça.
Para podermos analisar a metáfora do sal na clave da participatio,
recolho algumas considerações de base, nos parágrafos seguintes, tomadas de um estudo que publiquei alhures (LAUAND, 1999, indrod.)
sobre a doutrina tomasiana da participação.
Freqüentemente as grandes teses de Tomás se elucidam a partir
do uso comum da linguagem. Comecemos reparando no fato de que
na linguagem comum, “participar” significa – deriva de – “tomar parte” (partem capere). Ora, há diversos sentidos e modos desse “tomar
parte” (OCÁRIZ, 1972, p 42s). Um primeiro é o de “participar” de
modo quantitativo, caso em que o todo “participado” é materialmente subdividido e deixa de existir: se quatro pessoas participam de uma
pizza, ela se desfaz no momento em que cada um toma a sua parte.
Num segundo sentido, “participar” indica “ter em comum” algo
imaterial, uma realidade que não se desfaz nem se altera quando participada; é assim que se “participa” a mudança de endereço “a amigos
e clientes”, ou ainda que se “dá parte à polícia”.
O terceiro sentido, mais profundo e decisivo, é o que vem expresso pela palavra grega metékhein, que indica um “ter com”, um “coter”, ou simplesmente um “ter” em oposição a “ser”; um “ter” pela
dependência (participação) com outro que “é”. Como veremos em
mais detalhe, Ao tratar da criação, Tomás utiliza esse conceito: a criatura tem o ser, por participar do ser de Deus, que é ser. E a graça nada
mais é do que ter – por participação na filiação divina que é em Cristo – a vida divina que é na Santíssima Trindade.
2. Doutrina essencialíssima e que não é aristotélica: daí a problematicidade de
reduzir Tomás a um aristotélico...
112
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
“CRISTO NOSSO SAL”
Há – como indica Weisheipl (1994, p. 240-1) – três argumentos
subjacentes à doutrina da participação: 1) Sempre que há algo comum a duas ou mais coisas, deve haver uma causa comum. 2) Sempre que algum atributo é compartilhado por muitas coisas segundo
diferentes graus de participação, ele pertence propriamente àquela
que o tem de modo mais perfeito. 3) Tudo que é compartilhado “procedente de outro” reduz-se causalmente àquele que é “per se”.
Nesse sentido, adiantemos desde já as principais metáforas de que
Tomás se vale para exemplificar: ele compara o ato de ser – conferido em
participação às criaturas – à luz e ao fogo: um ferro em brasa tem calor
porque participa do fogo, que “é calor”3 ; um objeto iluminado “tem luz”
por participar da luz que é na fonte luminosa. Tendo em conta essa doutrina, já entendemos melhor a sentença de Guimarães Rosa:
“O sol não é os raios dele, é o fogo da bola” (1979, p. 71).
No plano natural, todas as criaturas, quer materiais, quer racionais, participam do ser e, portanto, da natureza divina; toda a criação, e o homem especialmente, por sua perfeição própria, reflete no
seu ser a bondade, a verdade, a beleza de Deus. No plano sobrenatural, porém, ocorre uma participação da natureza divina como divindade, uma participação de Deus enquanto Deus, um tornar-nos Deus;
passamos a ser divinae naturae consortes, como diz São Pedro (2Pe
1,4), participantes da própria vida íntima de Deus. E isto, diz Tomás,
é a graça.
A participação sobrenatural atinge por inteiro o ser humano, de
tal forma que se pode falar de uma “nova geração” ou “re-criação” (S.
Teol. I-II,110,4); torna o cristão “filho de Deus” de uma maneira
totalmente nova: o cristão participa da Filiação do Verbo – Cristo é
Filho de Deus, e o cristão, que participa de Cristo, tem a filiação
3. Evidentemente, não no sentido da Física atual, mas o exemplo é compreensível.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
113
JEAN LAUAND
divina. Esta filiação divina distingue-se absolutamente daquela pela
qual todos os homens são filhos de Deus, porque participam, ao existirem, do ser de Deus.
Tomás insiste nesse participar de Deus: “A graça é uma certa semelhança com Deus de que o homem participa” (S. Teol. III,2,10 ad
1); “O primeiro efeito da graça é conferir um ser de alguma forma
divino” (In sent. III,2,d.26,155); “Pela graça santificante, toda a Trindade passa a habitar na alma” (S. Teol. I,43,5).
Participação envolve, pois, graus e procedência. Tomás parte do
fenômeno evidente de que há realidades que admitem graus (como
diz a antiga canção de Chico Buarque: “tem mais samba no encontro
que na espera...; tem mais samba o perdão que na despedida”). E
pode acontecer que a partir de um (in)certo ponto, a palavra já não
suporte o esticamento semântico: se chamamos vinho a um excelente
Bordeaux, hesitamos em aplicar este nome ao equívoco “Chateau de
Carapicuíba” ou “Baron de Quitaúna”.
As coisas se complicam – e é o caso contemplado por Tomás –
quando uma das realidades designadas pela palavra é fonte e raiz da
outra: em sua concepção de participação, a rigor, não poderíamos
predicar “quente” do sol, se a cada momento aplicamos a palavra
“quente” para coisas esquentadas pelo sol, dizendo que a casa ou o dia
estão quentes (se o dia ou a casa têm calor é porque o sol é quente).
Assim, deixa de ser incompreensível para o leitor contemporâneo que,
no artigo 6 da Questão disputada sobre o verbo, Tomás afirme que não
se possa dizer que o sol é quente (sol non potest dici calidus)! Ele mesmo o explica, anos depois, na Summa Contra Gentiles (I, 29, 2), que,
a rigor, não poderíamos dizer que o sol é quente, mas também há
razões para acabarmos dizendo quente (calidus) tanto para o sol como
para as coisas que recebem seu calor:
“Como os efeitos não têm a plenitude de suas causas, não lhes
compete (quando se trata da ‘verdade da coisa’) o mesmo nome e
114
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
“CRISTO NOSSO SAL”
definição delas. No entanto (quando se trata da ‘verdade da
predicação’), é necessário encontrar entre uns e outros alguma semelhança, pois é da própria natureza da ação, que o agente produza algo
semelhante a si (Aristóteles), já que todo agente age segundo o ato que
é. Daí que a forma (deficiente) do efeito encontra-se a outro título e
segundo outro modo (plenamente) na causa. Daí que não seja unívoca a aplicação do mesmo nome para designar a mesma ratio na causa
e no efeito. Assim, o sol causa o calor nos corpos inferiores agindo
segundo o calor que ele é em ato: então é necessário que se afirme
alguma semelhança entre o calor gerado pelo sol nas coisas e a virtude
ativa do próprio sol, pela qual o calor é causado nelas: daí que se
acabe dizendo que o sol é quente, se bem que não segundo o mesmo
título pelo qual se afirma que as coisas são quentes. Desse modo, dizse que o sol – de algum modo – é semelhante a todas as coisas sobre
as quais exerce eficazmente seu influxo; mas, por outro lado, é-lhes
dessemelhante porque o modo como as coisas possuem o calor é diferente do modo como ele se encontra no sol. Assim também, Deus,
que distribui todas suas perfeições entre as coisas é-lhes semelhante e,
ao mesmo tempo, dessemelhante”.
Todas essas considerações parecem extremamente naturais quando nos damos conta de que ocorrem em instâncias familiares e quotidianas de nossa própria língua: um grupo de amigos vai fazer um
piquenique em lugar ermo e compra alguns pacotes de gelo (desses
que se vendem em postos de gasolina nas estradas) para a cerveja e
refrigerantes. As bebidas foram dispostas em diversos graus de contato com o gelo: algumas garrafas são circundadas por muito gelo; outras, por menos. De tal modo que cada um pode escolher: desde a
cerveja “estupidamente gelada” até o refrigerante só “um pouquinho
gelado”... Ora, é evidente que o grau de “gelado” é uma qualidade
tida, que depende do contato, da participação da fonte: o gelo, que,
ele mesmo, não pode ser qualificado de “gelado”...
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
115
JEAN LAUAND
Estes fatos de participação são-nos, no fundo, evidentes, pois com
toda a naturalidade dizemos que “gelado”, gramaticalmente, é um
particípio...
Participar é receber de outrem algo; mas o que é recebido é recebido não totalmente. Assim, participar implica um receber parcial de
algo (aliquid) de outro (ab alio). Um axioma de que Tomás se vale
diz: “Tudo que é recebido é recebido segundo a capacidade do
recepiente” (per modum recipientis recipitur). E assim “Omne quod est
participatum in aliquo, est in eo per modum participantis: quia nihil
potest recipere ultra mensuram suam” (I Sent. d. 8, q.1 a.2 sc2), algo
que é participado é recebido segundo a capacidade do participante,
pois não se pode receber algo que ultrapasse a sua medida (mensura).
A participatio como sal
Além das comparações com o fogo e a luz, há a comparação com
o sal, que apresenta aspectos peculiares, a partir de seu significado na
Bíblia.
Quando tomado simbolicamente, o sal – como todos os símbolos – poderá ser interpretado de muitas maneiras: mais ou menos
diretamente ligadas à própria realidade em si do sal.
É a partir da base bíblica e do conhecimento “científico” que se
darão as interpretações do sal. Tenha-se em conta que a leitura antiga
e medieval da Bíblia é complexa: Tomás explica que há, na Sagrada
Escritura quatro sentidos distintos: histórico, alegórico, místico e
anagógico. No significado histórico (ou literal) as palavras têm sua
significação, digamos, normal (estritamente literal ou metafórica: “o
homem ri” ou “o campo ri”); no místico (ou espiritual), as palavras
têm um outro significado, superior. O sentido místico, por sua vez,
subdivide-se em três: o alegórico, pelo qual a velha lei é figura da
116
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
“CRISTO NOSSO SAL”
nova; o anagógico, pelo qual a nova lei é figura da glória futura; e o
moral, pelo qual tomamos exemplo para nossa conduta. O “faça-se a
luz” de Gn 1,3 – o exemplo é de Tomás –, na leitura literal, é entendido como a luz mesmo, a luz física, criada por Deus. Já se a luz do
“fiat lux” for entendida como Cristo para a Igreja, então a leitura é no
sentido alegórico; a leitura será anagógica se entendermos “fiat lux”
como sendo nosso ingresso na Glória por Cristo; e, finalmente, se
essa luz é iluminação para nosso intelecto e calor para nossa vontade,
então estamos na leitura moral4 .
4. Mysterium autem exponit, cum dicit quae sunt per allegoriam dicta. Et primo
ponit modum mysterii; secundo exemplificat, ibi haec enim duo sunt testamenta, et
cetera. Dicit ergo: haec quae sunt scripta de duobus filiis, etc., sunt per allegoriam
dicta, id est per alium intellectum. Allegoria enim est tropus seu modus loquendi,
quo aliquid dicitur et aliud intelligitur. Unde allegoria dicitur ab allos, quod est
alienum, et goge, ductio, quasi in alienum intellectum ducens. Sed attendendum
est, quod allegoria sumitur aliquando pro quolibet mystico intellectu, aliquando
pro uno tantum ex quatuor qui sunt historicus, allegoricus, mysticus et anagogicus,
qui sunt quatuor sensus sacrae Scripturae, et tamen differunt quantum ad
significationem. Est enim duplex significatio. Una est per voces; alia est per res
quas voces significant. Et hoc specialiter est in sacra Scriptura et non in aliis; cum
enim eius auctor sit Deus, in cuius potestate est, quod non solum voces ad
designandum accommodet (quod etiam homo facere potest), sed etiam res ipsas.
Et ideo in aliis scientiis ab hominibus traditis, quae non possunt accommodari ad
significandum nisi tantum verba, voces solum significant. Sed hoc est proprium in
ista scientia, ut voces et ipsae res significatae per eas aliquid significent, et ideo
haec scientia potest habere plures sensus. Nam illa significatio qua voces significant
aliquid, pertinet ad sensum litteralem seu historicum; illa vero significatio qua res
significatae per voces iterum res alias significant, pertinet ad sensum mysticum.
Per litteralem autem sensum potest aliquid significari dupliciter, scilicet secundum
proprietatem locutionis, sicut cum dico homo ridet; vel secundum similitudinem
seu metaphoram, sicut cum dico pratum ridet. Et utroque modo utimur in sacra
Scriptura, sicut cum dicimus, quantum ad primum, quod Iesus ascendit, et cum
dicimus quod sedet a dextris Dei, quantum ad secundum. Et ideo sub sensu litterali
includitur parabolicus seu metaphoricus. Mysticus autem sensus seu spiritualis
dividitur in tres. Primo namque, sicut dicit apostolus, lex vetus est figura novae
legis. Et ideo secundum quod ea quae sunt veteris legis, significant ea quae sunt
novae, est sensus allegoricus. Item, secundum Dionysium in libro de caelesti
hierarchia, nova lex est figura futurae gloriae. Et ideo secundum quod ea quae sunt
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
117
JEAN LAUAND
Se descartarmos os nomes geográficos, a Bíblia refere-se apenas
25 vezes ao sal: 21 vezes no Antigo Testamento; 3 no Evangelho e 1
em Colossenses.
Há, na Bíblia, uma dimensão religiosa para o sal. Javé ordena a
Moisés que prepare um incenso santo, temperado com sal (Ex 30,35);
todos os sacrifícios oferecidos a Javé devem estar temperados com sal,
nunca pode faltar o sal da aliança com Deus (Lv 2,13); aliança de sal
é aliança para sempre (Nm 18,19). Essa associação do sal ao sacrifício
terá sua importância, como veremos, nas considerações de Tomás.
Já em outro contexto, o sal causa esterilidade na terra (Dt 29,22), e
espalha-se sal no solo quando se quer destruir para sempre uma cidade
devastada (Jz 9,45). Por outro lado, quando Eliseu quer eliminar “a morte e a esterilidade” das águas, joga sal na nascente (2Re 2,21). E quando
uma criança nasce deve ser esfregada com sal (Ez 16,4).
O sal é uma realidade valiosa: o Eclesiástico (39,26) enumera o
sal entre os bens de primeira necessidade. Não só como o tempero
por excelência, mas como conservador de alimentos (o nosso tempo,
que tem tantas facilidades – como a comum geladeira – mal pode
avaliar essa qualidade). O sal é um bem precioso, a ponto de o dinheiro do salário receber este nome precisamente pela estreita relação
entre dinheiro e sal.
in nova lege et in Christo, significant ea quae sunt in patria, est sensus anagogicus.
Item, in nova lege ea quae in capite sunt gesta, sunt exempla eorum quae nos
facere debemus, quia quaecumque scripta sunt, ad nostram doctrinam scripta sunt; et
ideo secundum quod ea quae in nova lege facta sunt in Christo et in his quae
Christum significant, sunt signa eorum quae nos facere debemus: est sensus moralis.
Et omnium horum patet exemplum. Per hoc enim quod dico fiat lux, ad litteram,
de luce corporali, pertinet ad sensum litteralem. Si intelligatur fiat lux id est nascatur
Christus in Ecclesia, pertinet ad sensum allegoricum. Si vero dicatur fiat lux id est
ut per Christum introducamur ad gloriam, pertinet ad sensum anagogicum. Si
autem dicatur fiat lux id est per Christum illuminemur in intellectu et inflammemur
in affectu, pertinet ad sensum moralem (Super Gal., cap. 4 l. 7) .
118
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
“CRISTO NOSSO SAL”
No Evangelho a palavra sal aparece em uma única fala de Cristo.
Em Mateus, Cristo acaba de proclamar as bem-aventuranças e, ato
contínuo, diz:
“Vós sois o sal da terra. Mas, se o sal se desvirtua, como ele vai se
salgar? Já não serve para mais nada a não ser para ser jogado fora e ser
pisado pelos homens” (Mt 5,13).
Em Marcos (9,50), uma sugestiva variante:
“Bom é o sal, mas se o sal se torna insípido, com que o salgareis?
Tende sal em vós e tende paz uns com os outros”.
Em Lucas (14,34), a mesma passagem tem a forma:
“Bom é o sal, mas se o sal se desvirtua, com que o salgareis? Não
é útil para a terra nem como esterco e é jogado fora. Quem tiver
ouvidos para ouvir, que ouça”.
É interessante notar essa relação com o transcendental bonum: ao
afirmar que o sal é bom, Cristo está afirmando que o sal é sal: sal
bom, sal de verdade, é sal “salgado”. O sal que se torna insosso – diz
o Aquinate – aquele que está em si mesmo privado daquela qualidade própria pela qual ele se diz bom. Mas lemos em Tomás (Catena
Aurea in Marcum cp 9 lc 6) que há sais que têm sal e sais que não têm
sal (o que permite continuar com o paralelo ser/graça), embora no
caso do sal que não tem sal, a rigor, poderíamos perguntar se cabe
ainda falar em sal? Ou se não poderíamos aqui invocar um paralelismo com o exemplo do gelo, no qual não cabe falar em “gelo gelado”?
Curiosamente, dentre os mais de 20.000 provérbios recolhidos no
Dictionnaire des Proverbes et Dictons da Robert, encontra-se um da
tribo Abé (Costa do Marfim), que diz precisamente isto:
“O próprio sal não se diz salgado” (Paris, 1989, p. 659).
Seja como for, o texto da Catena Aurea in Marcum vai trabalhar
com o sal como se o sal recebesse sua salinidade de um Sal, que o é
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
119
JEAN LAUAND
por excelência. O Sal é Cristo e, pela graça, nós podemos ser sal, por
participação em Cristo Sal. Aproxima-se, portanto, da análise que já
um Agostinho faz da luz.
Cristo Luz em Agostinho
A partir de Cristo Luz, Agostinho estabelece uma importante distinção: a luz que é Cristo; a luz dos cristãos por participação.
Alguém acende uma tocha e, no caso dessa tocha – no que diz
respeito à chama que está nela a luzir –, o fogo tem a luz em si
mesmo. Já teus olhos, que sem a luz da tocha eram inúteis pois
não podiam ver, agora eles têm luz, mas não em si mesmos. E
mais, se da tocha se afastam, caem nas trevas; se a ela se voltam,
são iluminados. Mas, certamente, este fogo está a luzir enquanto
existe; se quiseres suprimir a luz, extinguirás no mesmo ato o fogo,
pois não se pode dar o fogo sem luz. Ora, Cristo, luz inextinguível
e coeterno ao Pai, sempre brilha, sempre está a luzir, sempre queima. Pois se Ele não estivesse sempre queimando, acaso diria o salmo [18 (19),7)]: “Nem há quem possa se esconder de seu calor”?
Tu, porém, eras frio em teu pecado; converte-te para que te aqueças: se te afastas, te tornas frio. Em teu pecado eras trevas; converte-te para que te ilumines; se te afastas, serás escuridão. Portanto,
como em ti mesmo eras trevas, ao ser iluminado não és luz, embora estejas na luz. Pois diz o Apóstolo (Ef 5,8): “Fostes, em outro
tempo, trevas, mas, agora, luz no Senhor”. Ao dizer “agora luz”,
ajunta: “no Senhor”. Em ti, pois, trevas; no Senhor, luz. Por que
luz? Porque a participação da Sua luz é luz. Mas se te afastas da luz
pela qual tens luz, voltas para as trevas. Mas não se dá o mesmo
com Cristo, não com o Verbo de Deus. Como não? “Assim como
o Pai tem a vida em Si mesmo, assim também deu ao Filho ter a
vida em Si mesmo”: para que Ele viva não em participação, mas de
modo imutável, e para que Ele seja em tudo a vida. “Assim, deu ao
Filho ter vida”. Assim como Ele tem, assim Ele deu. Qual é a
diferença? Porque o que Aquele deu, Este recebeu. Acaso Ele não
existia quando recebeu? Podemos conceber um Cristo, em algum
tempo, sem luz, sendo Ele a Sabedoria do Pai, da qual se disse: “É
120
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
“CRISTO NOSSO SAL”
o fulgor da luz eterna” (Sb 7,8)? Assim, dizer “deu ao Filho” é
como se dissesse: “gerou o Filho e gerando-o deu-lhe que fosse e
que fosse vida e assim deu-lhe ser vida em si mesmo” Que é ser
vida em si mesmo? Não precisar de vida de outro, mas ser Ele
mesmo a plenitude da vida, da qual outros, crendo, têm vida enquanto vivem. Deu, pois, a Ele ter vida em si mesmo. Deu-lhe
enquanto o quê? Deu-lhe, enquanto seu Verbo, àquele que “no
princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus” (In
Evangelium Ioannis Tractatus Centum Viginti Quatuor, XXII, 10) .
Nesta clave é claríssima a sentença de Cristo: “Vós sois a luz do
mundo”: pela graça, participamos da Luz que Ele é. Nós, que sem
Ele seríamos trevas, estamos na luz em Cristo.
Mas e o sal? Acaso Cristo seria o Sal e os cristãos teriam sal, por
participação no Sal Cristo? Parece que sim, pois Cristo dirige-se aos apóstolos: “Vós sois o sal...”, dizendo que são sal por serem seus apóstolos.
O sal na tradição patrística
Como se sabe, os Padres da Igreja têm facilidade para elásticas
interpretações da Bíblia: não nos deteremos nelas. Indiquemos, brevemente, a título de exemplo, algumas interpretações do sal, de que
fala o Evangelho, que apontam para a participatio.
Para Cipriano, Cristo já não diz que o homem é lodo da Terra,
como Adão, mas sal, isto é, deve ser semelhante ao Pai do Céu (De
dominica oratione CCL 43, cp 17). Paulino de Nola, sentindo-se insosso, pede a S. Nicetas que o tempere com um pouco de seu sal
(CCL 203, Carmen 27); para Cromácio de Aquiléia, o sal é a Sabedoria de Deus, recebida pelo corpo humano (CCL 218, Tractatus in
Mathaeum, 18); o tempero da graça do espírito (ibidem); por Jerônimo
nos vem a fórmula “sal celeste” (e não só terreno) (Commentarii in
Ezechielem, 4). Para Cesário de Arles, o sal é a sabedoria (Col 4, 6),
mas a Sabedoria é Cristo (CCL 1008, Sermo 126, cap. 2); como em
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
121
JEAN LAUAND
Beda o sal designa a sabedoria do Verbo (CCL 1355 In Marci Ev.
Expositio, l 3, cp 9).
O texto mais claro, porém, é mesmo o da Catena, que Tomás
remete a Crisóstomo.
Diga-se de passagem, que não é por acaso que o Aquinate se refere a Crisóstomo naquele conhecido episódio de sua vida. Um dia,
mestre Tomás, acompanhado de alguns alunos, foi visitar as relíquias
de São Dionísio e, ao voltar, comovidos ante a beleza e a imponência
de Paris – os muros, as torres de Notre-Dame –, um dos estudantes
perguntou: “Mestre, que bela é Paris! Não gostaria de ser o senhor
desta cidade?” Tomás respondeu: “Mas, que faria eu com ela?” Querendo dar uma resposta religiosamente correta, o estudante respondeu: “O senhor poderia vendê-la ao rei da França e com o dinheiro
construir todas as casas dos frades dominicanos”. E Tomás responde:
“Eu prefiriria as homilias de Crisóstomo sobre Mateus”.
O texto da Catena é sobre a fala de Cristo de que todos – Mc
9,49 – hão de ser salgados com fogo. Tenha-se em conta que Tomás –
em In II Sent. d14 q1 a5 ra 5 – aceita a interpretação de que o sal da
água do mar se forma pela mistura de vapor da terra com a combustão causada pelos raios solares etc. E Cristo ajunta imediatamente:
“Bom é o sal, mas se o sal se torna insípido, com que o salgareis?
Tende sal em vós e tende paz uns com os outros”.
Somos salgados pelo fogo divino, do qual Cristo disse: “Eu vim
trazer fogo à terra”. E em seguida fala do sal bom, isto é, o fogo do
amor. Se o sal for insosso, isto é, privado de si mesmo, sem a própria
qualidade pela qual se diz bom, como temperareis? Há sais que têm
sal, isto é, têm a plenitude da graça e há sais sem sal... (Catena Aurea
in Marcum cp 9 lc 6).
E pouco adiante, a partir do (inesperado) versículo de Colossenses,
identifica, com clareza total, o sal, os sais, com a participação em
Cristo Sal: cada um tem de sal tanto quanto é capaz de receber graças
122
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
“CRISTO NOSSO SAL”
de Deus. Daí que o Apóstolo junte a graça ao sal, dizendo: “Que
vossa conversa seja na graça, temperada com sal” (Col 4,6). O sal é
também o Senhor Jesus Cristo, que foi suficiente para conservar toda
a terra e fez de muitos na terra sais.
Unusquisque nostrum habeat tantum salis quantum capax est dei
gratiarum; unde et apostolus coniungit gratiam sali, dicens: “sermo vester sit in gratia sale conditus”. Sal etiam est dominus Iesus
Christus, qui fuit sufficiens totam terram conservare, et multos in
terra fecit sales.
O sal como discretio
Se a consideração de Cristo Sal é para nós, hoje, surpreendente,
não menos inesperada é a interpretação que Tomás privilegia para
essa salinidade: ele a remete ao âmbito da tomada de decisão, do
discernimento, do conselho, da prudência, da sabedoria.
Certamente a moderna supressão prática da virtude cardeal da
prudência, como virtude pessoal da maturidade cristã (supressão que
dá lugar a um cristianismo de regras e proibições, de “manual de
escoteiro moral”), guarda relação com nossa estranheza ao vermos,
em outras passagens, que Tomás insiste em que esse sal (a que se
refere São Paulo) é o discernimento da sabedoria:
Sal autem discretionem sapientiae significat (Super Ep. ad Rom.
c. 12 l. 1).
Per salem intelligitur discretio: quia per ipsum omnis cibus conditus
est sapidus; ita omnis actio indiscreta est insipida et inordinata
(Super ad Coloss. c. 4 l. 1).
In sale significatur discretio sapientiae (I-II, 102, 3 ad 14).
Entre outras possíveis interpretações5 , Tomás privilegia a do discernimento da sabedoria: que o cristão guie suas ações pela união
5. As associações desfilam nas Catenae: a sabedoria divina, pregada pelos apóstolos,
como o sal, seca os humores das obras carnais etc. e conserva para a eternidade. O sal,
que provém do fogo da caridade; do vento do Espírito e da água do Batismo etc.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
123
JEAN LAUAND
com Cristo – Sabedoria e Sal – e, assim, seja capaz de sacrifícios (até
mesmo, se for o caso, o sacrifício supremo do martírio) e da realização de toda obra de justiça (Super Ep. ad Rom. c 12, l 1).
A prudência – prudentia nihil sit aliud quam quaedam rectitudo
discretionis (I-II, 61, 4, c) – iluminada pela união com Cristo é hoje
virtude tão esquecida como a própria imagem de Cristo Sal.
Referências
GUIMARÃES ROSA, J. Noites do sertão. Rio de Janeiro: José Olympio,
6a. ed., 1979.
LAUAND, J. Tomás de Aquino: Verdade e Conhecimento. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
OCÁRIZ, F. Hijos de Dios en Cristo. Pamplona: Eunsa, 1972.
WEISHEIPL, J.A. Tomás de Aquino – Vida, obras y doctrina. Pamplona:
Eunsa, 1994.
124
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007
I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ
DELLA FILOSOFIA – L’APPORTO DEL
MEDIOEVO ALLA PERIODIZZAZIONE
STORICO-FILOSOFICA
Gregorio Piaia
(Professore ordinario di Storia della filosofia, Università di Padova –
Italia – [email protected])
«Quid est enim tempus? Quis hoc facile breviterque explicaverit?»:
così si chiede s. Agostino nelle Confessiones (11, 14, 17) di fronte a un
“qualcosa” che ci sembra di conoscere bene ma che in realtà, se ci
chiedono cosa sia, ci è assai difficile spiegare («Si nemo ex me quaerat,
scio; si quaerenti explicare velim, nescio»). Il filosofo, dunque, come
soggetto attivo che, pur vivendo nel tempo ed essendo anzi sottoposto
alla sua legge implacabile (anche i filosofi invecchiano, e così avviene
per i loro libri) tenta tuttavia di formulare una definizione di ciò che
è “il tempo”: una definizione che, in quanto universale, vuol essere
valida “in ogni tempo”, come se fosse fuori o al di là del tempo, nel
regno etereo della verità senza tempo…
Verità e tempo, verità e storia, verità che si fa nella storia, nel
senso che, a seconda dell’orizzonte filosofico entro cui ci si muove,
essa si manifesta oppure si crea oppure si coglie nella storia. Questo
percorso temporale della verità costituisce la storia (intesa come res
gestae) della filosofia. La ricostruzione di tale percorso è la storiografia
filosofica, ovvero la storia della filosofia intesa come historia rerum
gestarum. In quest’azione ricostruttiva assume un ruolo di primo piano la divisione in età o periodi o fasi, entro cui i diversi filosofi e le
loro teorie trovano un’adeguata collocazione. Non si tratta solo di
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
125
GREGORIO PIAIA
grandi contenitori cronologici, giacché l’àmbito temporale può
caricarsi di aspetti che riguardano il senso e la direzione (o le direzioni)
che i pensieri dei filosofi assumono in ogni fase del loro procedere nel
tempo. È questo un tratto specifico della storiografia filosofica moderna, che si contraddistingue per il suo carattere generale, ossia per il
suo intento di abbracciare (e spiegare) l’intero cammino dell’umano
pensiero; basti pensare, ad es., alla celebre opera di Johann Jacob
Brucker, Historia critica philosophiae a mundi incunabulis ad nostram
usque aetatem deducta (Lipsia 1742-1744), la cui ampia Dissertatio
praeliminaris si chiude con una sezione dedicata espressamente all’Ordo
et divisio historiae philosophicae. Riprendendo in forma sistematica
una distinzione che era ormai comune da circa un secolo, il Brucker
distingue tre grandi «epoche» della filosofia: la prima comprende la
cosiddetta «filosofia antidiluviana» (da cui però egli prende le distanze)
e quella «postdiluviana», divisa a sua volta in «barbarica» e «greca»; la
seconda va dagli inizi dell’impero di Roma sino alla fine del medioevo,
ossia alla Scolastica, che viene anch’essa ripartita in tre periodi; la
terza va dalla «restaurazione delle lettere» (il Rinascimento) fino all’età
contemporanea («ad nostram usque aetatem»).1
È noto che questa attenzione per la periodizzazione del corso
storico della filosofia non trova riscontro nel mondo antico, benché
l’interesse per le filosofie del passato sia assai remoto. Tale interesse
trovò una prima, organica ed esemplare espressione in Aristotele, in
particolare nel libro I della Metafisica, in cui le posizioni dei
predecessori in ordine alla definizione delle cause ultime e dei principi
primi vengono passate in rassegna e classificate – nonché criticamente valutate – alla luce della dottrina aristotelica delle quattro cause:
una “classificazione”, per l’appunto, di ordine logico-teorico e dialettico
1. Cfr. M. Longo, Historia philosophiae philosophica. Teorie e metodi della storia
della filosofia tra Seicento e Settecento, Milano, IPL, 1986, pp. 195-203.
126
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ DELLA FILOSOFIA
(nel senso aristotelico, naturalmente)2 ; una “dossografia” più che
una “periodizzazione”, anche se l’accenno alla tesi, secondo cui «gli
antichissimi che, assai prima della generazione attuale, per primi hanno
trattato degli dèi» avrebbero avuto una concezione del mondo analoga
a quella di Talete, rivela una chiara coscienza del distacco fra l’età
della Grecia arcaica e l’età in cui viveva lo Stagirita e che per noi è
l’età “classica”.3 D’altronde, se guardiamo all’altro grande modello
della storiografia filosofica antica, le Vite dei filosofi di Diogene Laerzio,
si nota come dopo l’iniziale distinzione etnico-geografica tra «barbari»
e «greci» l’autore proceda secondo lo schema della divisione in due
grandi scuole, la Jonica e l’Italica, a loro volta suddivise in sètte,
all’interno delle quali è applicato il criterio della diadochè, ovvero
della «successione» cronologica degli scolarchi o capiscuola, con un
continuo “va e vieni” che abbraccia circa quattro secoli.
Rispetto a queste ripartizioni l’affermarsi di una forte dimensione
storica e di una conseguente periodizzazione richiedeva alcune premesse: per un verso il riconoscimento della piena legittimità filosofica
(affermata a suo tempo da Sozione di Alessandria, negata invece da
Diogene Laerzio) alla sapienza dei cosiddetti «barbari», che si
presentava più antica di quella greca, con la conseguente retrocessione
degli inizi storici del filosofare; per un altro verso il prolungamento a
pieno titolo del “far filosofia” ai secoli successivi all’età greca ed
ellenistico-romana, «usque ad nostram aetatem», superando così la
concezione della filosofia come prodotto esclusivamente greco, e ciò
sino al punto da progettare un altro modo di “far filosofia”, alternativo ai modelli greci, come avvenne nel corso del Seicento. Tali pre-
2. Cfr. E. Berti, Sul carattere “dialettico” della storiografia filosofica di Aristotele, in
Storiografia e dossografia nella filosofia antica, a cura di G. Cambiano, Torino, Tirrenia,
1986, pp. 101-125.
3. Aristot. Metaph., A, 3, 983b 28-30.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
127
GREGORIO PIAIA
messe, secondo l’opinione più corrente, si verificarono solo all’inizio
dell’età moderna, ove il termine “moderna”, non a caso, assume un
significato pregnante, in quanto rivendica una netta distinzione – nei
contenuti dottrinali e nei metodi d’indagine – riguardo all’età
medievale (l’aborrita Scolastica) e alla stessa antichità greco-romana.
Di qui l’idea, pure diffusa, che la periodizzazione sia un elemento
caratterizzante della moderna historia philosophica, a partire dal sec.
XVII, quando anche in questo campo l’imitazione dei modelli antichi
(dossografico, biografico, diadochistico) cedette il campo a
impostazioni più nuove o quanto meno più estese e comprensive.
L’intento della mia relazione è invece di mostrare come già in età
medievale le due premesse sopra ricordate abbiano trovato piena
attuazione, dando così luogo a periodizzazioni che denotano un senso rilevante della storicità dell’umano filosofare e che fungono da
“ponte” tra la storiografia filosofica antica e quella moderna.
Mi limiterò in questa sede a tre esempi particolarmente
significativi, che si riferiscono al sec. XIII, il “secolo d’oro” della
Scolastica. Il primo esempio riguarda il più grande enciclopedista
medievale, il domenicano Vincenzo di Beauvais (morto intorno al
1264), precettore alla corte di Luigi IX di Francia e autore del
monumentale Speculum maius, diviso in Speculum historiale, doctrinale
e naturale.4 Ai fini della nostra indagine lo Speculum historiale è, per
così dire, borderline: si tratta infatti di una grande storia universale
distribuita in più libri, ove ad ogni libro corrisponde un periodo di
ampiezza assai variabile. All’interno di questa trattazione sono però
4. Cfr. A.L. Gabriel, Vinzenz von Beauvais, ein mittelalterlicher Erzieher, Frankfurt
a.M., Josef Knecht, 1967. Lo Speculum historiale è stato consultato nell’incunabolo
strasburghese (Argentinae, Johannes, Mentelin, 1473, to. I). Per un
approfondimento dell’opera storiografica di Vincenzo e degli altri autori qui
esaminati rinvio al mio volume A “Historia dos Filósofos” no Universo Cultural do
Medievo, a cura di L.A. De Boni e M.R. Nunes Costa, in corso di stampa presso
l’EDIPUCRS (Porto Alegre).
128
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ DELLA FILOSOFIA
individuabili singoli capitoli o blocchi interi di capitoli che riguardano
la storia dei filosofi, costruita attraverso un collage di notizie biografiche
e di flores dottrinali; espunte dal contesto della cronaca universale e
raggruppate all’interno dei rispettivi periodi, queste sezioni danno
luogo alla seguente periodizzazione storico-filosofica:
I. Da Mosè al profeta Daniele (libro III): vi rientrano i sette sapienti,
a partire da Talete.
II. Da Ciro il Grande ad Alessandro Magno: questo periodo
corrisponde al libro IV, ove ben 33 capitoli su un totale di 103 sono
dedicati ai «gesta et dicta philosophorum» (Pitagora, Archita,
Democrito, Eraclito, Empedocle, Ippocrate, Anassagora, Parmenide,
Protagora, Gorgia, Socrate, Alcibiade, Senofonte, Diogene il Cinico,
Platone, Speusippo, Aristotele).
III. Il periodo di Alessandro Magno (libro V: 15 su 71 capitoli riguardano
i filosofi); è un periodo molto breve (28 anni), in cui però sono inseriti –
accanto a Senocrate, Epicuro, Callistene, Lisimaco – anche Mercurio
Trismegisto e i tardi platonici Apuleio e Plotino (in quanto ricollegabili a
Platone) nonché i «Bragmani», ossia i sapienti indiani, sulla base delle
«mutuae epistolae» di Alessandro e del re Didimo.
IV. Dalla morte di Alessandro a Giulio Cesare (libro VI: 22 capitoli
su un totale di 117); troviamo qui Teofrasto, Polemone, Arcesilao,
Cratete, Stilpone, Zenone di Cizio, Crisippo, Diodoro, Carneade,
Archimede, Diogene di Babilonia, Ecatone di Rodi, Panezio, i due
Scipioni, Catone di Utica…
V. Da Cesare alla morte di Augusto (libro VII: 37 capitoli su 129,
dedicati in gran parte a Cicerone e alle sue opere; ma sono presenti
anche Varrone, Sesto Pitagorico e Valerio Massimo).
VI. Il regno di Tiberio e Caligola (libro VIII: un capitolo è riservato
a Filone di Alessandria).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
129
GREGORIO PIAIA
VII. Il regno di Claudio (libro IX: vi è fatto grande spazio alle
opere di Seneca, che è di gran lunga il filosofo più trattato nello
Speculum historiale).
VIII. Da Nerone a Vitellio (libro X: comprende un ulteriore
capitolo su Seneca).
IX. Da Vespasiano a Settimio Severo (libro XI): accanto a Plutarco,
Secondo, Panteno, Tauro di Berìto, Galeno, sono presenti anche due
autori cristiani, Giustino e Clemente Alessandrino, entrambi definiti
con l’epiteto «philosophus», che in seguito non viene più usato; se ne
deduce che per Vincenzo di Beauvais l’età dei “filosofi” (che inizia
con Talete e i sette sapienti) si chiude con questi due autori, alla cui
giovanile educazione filosofica in ambiente pagano seguì la conversione
al cristianesimo (dopo di che si ha la “successione” dei Padri e dottori
della Chiesa).
Non v’è dubbio che questa periodizzazione della storia dei filosofi
risulti piuttosto artificiosa, in quanto frutto della estrapolazione da
una cronaca universale. Essa costituisce comunque un efficace termine di raffronto con il secondo testo su cui intendo qui richiamare
l’attenzione, ossia il breve trattato introduttivo alla Summa philosophiae
dello pseudo Grossatesta.5 Qui il contesto letterario è mutato: non si
tratta più di una storia universale, bensì di una esposizione sistematica
della philosophia, dalla metafisica fino alla mineralogia (una summa,
per l’appunto), che viene però preceduta e introdotta da un sintetico
excursus storico-filosofico, come sarebbe poi avvenuto in molti manuali
di filosofia dei secoli XVII-XVIII. Un excursus, a dire il vero, assai
scheletrico, dato che si riduce a poco più di semplici elenchi di nomi,
5. Summa philosophiae Roberto Grosseteste ascripta, in L. Baur, Die philosophischen
Werke des Robert Grosseteste, Bischofs von Lincoln. Münster, Aschendorff, 1912
(BGPhM. 9), pp. 275-280.
130
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ DELLA FILOSOFIA
inquadrati però – è questo l’aspetto interessante – entro uno schema
di periodizzazione che è certamente mutuato dalla storia universale,
ma che comincia anche ad avere dei tratti autonomi, che preludono
alle periodizzazioni adottate in età moderna. L’anonimo autore della
Summa philosophiae distingue infatti nettamente quattro periodi, entro
i quali sono distribuiti tutti i philosophi e che corrispondono ad
altrettanti brevi capitoli:
I. Dai tempi di Noè fino a Ciro il Grande. Questo periodo comprende
i «primi philosophantes», ossia i Caldei, che trassero origine dai tre figli di
Noè ed ebbero come massimo esponente Abramo, esperto nell’astrologia
e nell’aritmetica oltre che conoscitore del vero Dio. Dopo Abramo
fiorirono, in successione temporale, l’astrologo Atlante, il primo e il
secondo Mercurio Trismegisto, il biblico Giobbe, Iside inventrice della
scrittura, Cecrope fondatore di Atene, il fenicio Cadmo, il greco Omero,
il re Salomone e infine Talete e l’astrologo Ipparco.
II. Da Ciro ad Alessandro Magno. È questa l’età dei «Graeci
philosophantes», divisi nei «duo famosissima genera», ossia la scuola
Jonica e l’Italica (è evidente l’analogia con la periodizzazione in uso
nelle cronache universali e legata allo schema della translatio imperii).
III. I filosofi romani, sia di lingua greca sia di lingua latina, fino ai
filosofi arabi («De philosophis Romanis sive Graeco stilo, sive Latino
philosophiam suam digesserint – et hoc usque ad tempora Arabum
philosophantium»).6 Sono qui menzionati Varrone, Cicerone, Seneca,
Plinio il Vecchio, Aulo Gellio, Apuleio, Plotino, Tolomeo, Galeno,
Dioscoride, Macrobio, Alessandro di Afrodisia, Temistio, Marziano
Capella. Boezio, Solino, il grammatico Prisciano e Mario Vittorino,
insieme con i maggiori poeti latini.
6. Ibi, p. 279.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
131
GREGORIO PIAIA
IV. La delimitazione di questo periodo è la più innovativa, perché
esso va dal tempo dell’imperatore Eraclio († 641), ossia dall’inizio
della grande espansione dell’Islam, fino al tempo dell’autore della
Summa philosophiae («De philosophis magis famosis Arabicis vel
Hispanis et aliis eis vel contemporaneis vel succedentibus etiam
Latinis»).7 In questo capitoletto i philosophi sono ripartiti in base alla
loro religione: dapprima i musulmani (al-Kindi, al-Farabi, Avicenna,
Avempace [ibn Bajja], Averroè…, ma anche matematici e medici),
poi i cristiani e infine gli ebrei (i due «Rabbi Moyses», ossia il grande
Mosè Maimonide e un altro Mosè, pure spagnolo, che nel 1106 si era
convertito ed aveva assunto il nome di Pietro Alfonso; ma a costoro
andrebbe aggiunto Avicebron, ovvero Salomon ibn Gebirol, che figura qui nella lista dei filosofi arabi).
L’elenco più interessante è senz’altro quello dei «philosophi»
cristiani: è un elenco a prima vista sorprendente, perché non vi
troviamo i pensatori solitamente trattati nelle nostre storie della filosofia medievale, bensì una serie di traduttori dall’arabo in latino oppure
di autori di opere scientifiche: Costa ben Luca (l’arabo Qusta ibn
Luqa, vissuto nel IX sec., che si era convertito al cristianesimo, autore
del De differentia animae et spiritus, volto dall’arabo in latino nel sec.
XII); Costantino Africano († 1087), che aveva promosso all’abbazia
di Montecassino la traduzione di opere scientifiche arabe; Domenico
Gundissalvi, il celebre traduttore della scuola di Toledo; Platone da
Tivoli, pure lui traduttore, attivo a Barcellona nella prima metà del
sec. XII; e poi il medico bizantino Teofilo Protospatario (vissuto nel
sec. VII e autore del De pulsibus e del De urinis, ben conosciuti
nell’Occidente latino) e Macer Floridus, pseudonimo dell’autore del
poema De viribus seu de virtutibus herbarum. Quanto ai più noti
pensatori del medioevo latino, da Alcuino ad Anselmo d’Aosta, Ugo
7. Ibi, pp. 279-280.
132
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ DELLA FILOSOFIA
e Riccardo di San Vittore, Gilberto Porretano, Pietro Lombardo,
Guglielmo d’Auxerre, essi sono menzionati fra i «theologi» nel
successivo capitolo XI (spicca nell’elenco l’assenza di Giovanni Scoto
Eriugena).8
Agli occhi dello pseudo Grossatesta parrebbe dunque che la qualifica di philosophus – riferita ai secoli più recenti – fosse da attribuire
soltanto ai traduttori dall’arabo e agli autori di opere medicoscientifiche. Sennonché questa immagine decisamente riduttiva del
philosophus risulta corretta ed ampliata dalle considerazioni poste a
conclusione del IV periodo, con le quali l’anonimo autore della Summa
philosophiae si spinge fino all’età a lui contemporanea, evidentemente
sotto l’influsso della giovane e vivace cultura universitaria, segnata
ormai dal “ritorno” di Aristotele nell’Occidente latino. Egli dichiara
infatti che vi sono anche altri filosofi di buon livello, dei quali ha
studiato le dottrine, ma non conosce i loro nomi oppure ritiene
opportuno non menzionarli, probabilmente per gli esiti eterodossi
del loro pensiero (l’allusione è forse ad autori come Amalrico di Bène
o Davide di Dinant). Alcuni nomi escono comunque dalla sua penna;
si tratta di Giovanni il Peripatetico, di Alfredo di Sareshel e soprattutto
di due «moderniores», ossia contemporanei: il francescano Alessandro
di Hales († 1245) e il domenicano Alberto Magno († 1280). Nel
contempo egli fa però presente che tali philosophi non si possono porre sullo stesso piano delle auctoritates riconosciute.9
Qual è il significato complessivo di questo schema periodizzante?
Anzitutto per lo pseudo Grossatesta l’esercizio della «filosofia» non è
8. Ibi, pp. 284-285.
9. Ibi, p. 280: «Sunt et alii quam plures eximiae philosophiae viri, quorum etsi
philosophiam inspexerimus, nomina tamen vel ignoramus vel non sine causa
reticemus, quamquam et Iohannem peripateticum et Alfredum modernioresque
Alexandrum minorem atque Albertum Coloniensem praedicatorem philosophos
eximios censendos reputemus, nec tamen pro auctoritatibus habendos».
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
133
GREGORIO PIAIA
esclusivo del mondo greco-romano con le sue propaggini cristiane
(Giustino e Clemente di Alessandria), ma risale ai tempi più remoti,
successivi al diluvio universale, e comprende quindi i «barbari». Questa
prospettiva, che possiamo definire platonico-cristiana e che avrebbe
goduto di larga fortuna nel Rinascimento e nel Seicento, si riallaccia
alla tradizione “alessandrina” di Sozione, Filone l’Ebreo, Clemente,
Agostino, in contrasto con l’ellenocentrismo di Diogene Laerzio e
dello stesso Aristotele. Inoltre, ed è questo l’aspetto più nuovo, la
philosophia è vista prolungarsi sino all’età contemporanea,
abbracciando insieme musulmani, ebrei e cristiani: per quanto meno
autorevoli rispetto agli autori del passato (il pensiero va al celebre
detto di Bernardo di Chartres, «Nani gigantum humeris insidentes»),
Alessandro di Hales e Alberto Magno sono tuttavia definiti «philosophi
eximii», e va riconosciuto che la scelta di questi due personaggi,
rappresentativi dei due ordini mendicanti che si disputavano il primato
nell’Università di Parigi, non appare affatto fuori luogo. In definitiva,
la sintetica periodizzazione della Summa philosophiae risulta assai più
moderna e innovativa di molte ed ampie trattazioni storico-filosofiche
che sarebbero apparse nel Cinquecento e nel primo Seicento, limitate
però – in ossequio allo schema laerziano – al periodo greco o al
massimo greco-romano.
E veniamo al terzo testo qui proposto, il Compendiloquium (o
Florilegium) de vita et dictis illustrium philosophorum del francescano
Giovanni di Galles (Johannes Guallensis).10 Si tratta in questo caso di una
vera e propria storia dei filosofi, intesa come un genere indipendente sia
dalle cronache universali sia dalle trattazioni filosofico-teoriche. L’opera,
divisa in dieci partes, comprende fra l’altro un’ampia serie di biografie dei
10. Cfr. W.A. Pantin, John of Wales and Medieval Humanism, in Medieval Studies
Presented to Aubrey Gwynn, ed. by J. Watt et al., Dublin, Lochlainn, 1961, pp.
297-319.
134
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ DELLA FILOSOFIA
filosofi greci, divisi nelle due tradizionali «scuole», la Jonica e l’Italica, ma
dà spazio anche ad alcuni pensatori latini (Cicerone, Seneca, Boezio).
Dal punto di vista della periodizzazione la pars più interessante è la decima
(«De locis, in quibus floruerunt studia philosophorum»), dove il Guallense
abbandona gli schemi ereditati dal mondo antico e sviluppa con tono
convinto la categoria della translatio studii, la cui prima elaborazione risale
all’età carolingia.11
Modellata sull’analoga e ben più antica categoria storica della
translatio imperii, la translatio studii si fondava sull’idea che il sapere
si fosse trasferito da un popolo all’altro secondo una direzione che va
da Oriente ad Occidente, seguendo il cammino naturale del sole.
Attingendo in più riprese al De naturis rerum di Alessandro Neckam,
il Guallense inizia il suo percorso geografico-culturale da Abramo,
che avrebbe introdotto le arti del quadrivio in Egitto, dove poi le
appresero Pitagora, Platone ed altri filosofi greci. Grande rilievo è
quindi dato ad Atene, città in cui la filosofia e le arti liberali ebbero il
massimo sviluppo. Da lì esse si trasferirono a Roma e in altri luoghi
d’Italia. Con la prima «fondazione» dello Studio parigino ad opera di
Carlo Magno avvenne il passaggio della cultura da Roma a Parigi.
Ma non è finita: da buon britannico, il Guallense si rifà alla profezia
del mitico mago Merlino sul trasferimento degli studi al di là della
Manica, ad Oxford e più in là ancora, in Irlanda.12 Qui il cammino
della sapienza sembra giunto a compimento, dato che il Guallense
non poteva certo prevedere il sorgere, sull’altra sponda dell’Atlantico,
11. Cfr. U. Krämer, Translatio imperii et studii: zum Geschichts– und Kulturverständnis
in der französischen Literatur des Mittelalters und der frühen Neuzeit, Bonn,
Romanistischer Verlag, 1996.
12. Florilegium de vita et dictis illustrium philosophorum et Breviloquium de sapientia
sanctorum, authore Ioanne Guallensi Ordinis Minorum. Recensuit, et nunc primum
edidit Fr. Lucas Wadding ejusdem Instituti, Romae, apud Nicolaum Angelum
Tinassium, 1655, 10, 1-9, pp. 409-424.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
135
GREGORIO PIAIA
delle Università di Harvard, Yale, Princeton e, ancora più ad ovest,
sulle rive di un altro oceano, di Los Angeles e di Berkeley… Né il
cammino della scienza appare oggi concluso, se si tiene presente lo
sviluppo assunto dalla ricerca scientifica in Estremo Oriente, nel
Giappone e nella stessa Cina: il che, se crediamo alla teoria dei corsi e
ricorsi storici, potrebbe in futuro dar luogo ad un ulteriore “passaggio”
da est ad ovest; un passaggio ai nostri occhi non privo di timori, dato
che per il Guallense lo sviluppo degli studi filosofici procedeva – per
lo meno nella felice età antica – di pari passo con le grandi vittorie
militari di un Alessandro o di un Cesare.
In Giovanni di Galles la rottura e il superamento dello schema
ellenocentrico avvengono dunque su un duplice piano, geografico e
insieme storico: la “filosofia”, intesa nella sua accezione più ampia,
esce dai confini del mondo greco e, più in generale, del Mediterraneo,
e trova i suoi centri di sviluppo anche nell’Europa nordica ed atlantica,
sicché il tradizionale rapporto dialettico Gerusalemme-Atene e AteneRoma si arricchisce con la più recente “coppia” Parigi-Oxford. Il “far
filosofia” è ormai riconosciuto come attività pienamente inserita nel
mondo contemporaneo: il Guallense aveva studiato ad Oxford ed
aveva lì conseguito i gradi di magister artium e di baccelliere in teologia; questa sua esperienza di studio lo porta a valorizzare e ad esaltare
il ruolo di quella cultura oxoniense che avrebbe in seguito contribuito
notevolmente – basi pensare ai calculatores – agli sviluppi moderni
del pensiero filosofico-scientifico. D’altra parte il tema apparentemente
ingenuo della translatio studii, lungi dal tramontare insieme con l’età
medievale, sarebbe a lungo sopravvissuto, assumendo vesti più
raffinate: anni luce sembrano distanziare il grande Hegel dal modesto compilatore Giovanni di Galles, ma quando Hegel vede nella filosofia tedesca la vera erede della filosofia greca e pone il proprio pensiero
al culmine di un percorso bimillenario, in fondo egli non fa che
razionalizzare un’intuizione che aveva animato numerosi (anche se
oggi oscuri) autori medievali.
136
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA
TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE: POLIFONIA INTERPRETATIVA –
DO NOVO TESTAMENTO A PEDRO
DE JOÃO OLIVI
Marcos Aurélio Fernandes
(Instituto franciscano de teologia de Goiás – IFITEG,
[email protected])
O que se propõe neste artigo é fazer uma investigação a respeito
do modo como o cristianismo antigo e medieval perfaz a sua hermenêutica da temporalidade e da historicidade. Percorrendo diversas
fases da tradição cristã, que vai do Novo Testamento até o movimento franciscano dos séculos XIII e XIV, procuramos evidenciar diversas tonalidades e vozes interpretativas da experiência cristã do tempo
e da história. O que emerge é, por assim dizer, uma polifonia interpretativa, onde cada voz ressoa no seu caráter todo próprio e no seu
direito inalienável. Polifonia que é, por assim dizer, diferentes entoações do mesmo: o mistério de Cristo, que se revelou na história como
sendo a plenitude dos tempos. Através de incursões teológicas, vamos
ressaltando, no entanto, as diferentes concepções ontológicas da
temporalidade e da historicidade humana, elaboradas no horizonte
dos diversos cristianismos antigos e medievais.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
137
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
1. A hermenêutica da temporalidade-historicidade na
experiência proto-cristã da vida
Nós partimos do factum cristão e de sua facticidade 1 . A
cristianidade2 do cristianismo é determinada por este factum, que, na
verdade, é um evento3 . O advir e sobrevir deste evento acontece no
1. A palavra latina “factum” é o particípio passado de facio – eu faço (o infinitivo é
facere), e significa “feito”. Todo o fato é um feito, ou seja, todo o fato é a forma
terminal de uma gênese temporal/histórica. A palavra “facticidade” (na hermenêutica existencial de “Ser e Tempo”: Faktizität) diz a dinâmica de ser que inaugura,
institui, funda, constitui e perfaz a gênese temporal/histórica de todo o “factum”
que pertence à existência humana, ou melhor, antes de tudo, a gênese do “factum”
que somos nós mesmos, a cada vez, em nosso ter que ser o que somos. A facticidade
é o princípio de toda a hermenêutica da existência humana. Ou seja, toda hermenêutica precisa partir da experiência fáctica da vida. “A vida só se deixa esclarecer
(“erklären”), se for vivida de ponta a ponta (durchgelebt), do mesmo modo como
Cristo só começou a esclarecer e a mostrar as Escrituras, como elas ensinavam a
partir dele (von ihm) – quando ele havia ressuscitado” (KIERKEGAARD, Tagebuch
(Diário), 15 de abril de 1838 – apud HEIDEGGER, GA Band 63, Ontologie
(Hermeneutik der Faktizität), Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1995, p. 16s.
2. “Cristianidade” (Christlichkeit) é uma palavra de essência: diz o vigor essencial,
originário e mais próprio do cristianismo (Christentum): o sentido de ser da vida
cristã, enquanto existência renascida, vivida e consumada na fé, existência referida
a Cristo, à participação na gratuidade e graciosidade do mistério de sua cruz, ao
discipulado todo próprio do Crucificado, que é seguimento, ou seja, existência
crística e cristiforme. A cunhagem desta palavra deve-se, ao que parece, a
Kierkegaard, e fora usada pelo teólogo, amigo de Nietzsche, Franz Overbeck; por
fim, foi retomada por Heidegger em Phänomenologie und Theologie, Frankfurt a.M.:
Vittorio Klostermann, 1970, p. 8. Evitamos a palavra “cristandade” por esta, no
uso corrente, designar o modo de ser do cristianismo enquanto fenômeno cultural,
social e político, especialmente, o regime de união entre Igreja e Estado.
3. “Evento” vem do latim eventus, que, por sua vez, remete ao verbo evenio (evenire):
vir de, sair de; pro-vir de; chegar-se, ir ter; acabar; acontecer. “Evento” traduz,
aqui, o alemão Ereignis e se deixa compreender a partir do verbo ereignen: deixar e
fazer provir, advir, sobrevir. Ereignen diz, pois, pro-vocar alguma coisa a vir a ser ela
mesma, no seu mais próprio (eigen), deixá-la e fazê-la advir a si mesma, chegar ao
seu mais próprio; permitir e determinar o seu sobre-vir e o seu acontecer.
138
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
modo da revelação de um mistério4 : o mistério do reino de Deus
(basileia tou Theou – cf. Mc 4,11), que se revela como o mistério de
Cristo, à medida que irrompe em sua vida – através de suas obras e
palavras – e em sua morte de cruz – mediante a sua paixão e ressurreição. Isso se dá de tal maneira que se evidencia uma identidade entre
quem proclama a mensagem e a mensagem proclamada mesma. Cristo
não somente aparece como alguém que traz uma mensagem, mas
que é a mensagem mesma. Com outras palavras, Cristo não somente
é o hermeneus5 , ou seja, aquele que anuncia a mensagem, proclama o
anúncio e revela o mistério (do reino de Deus), mas ele é o próprio
mysterion (do reino de Deus) tornado presente e manifesto, como
mysterion, porém. Isso quer dizer que a revelação é re-velação, ou
seja, é o aparecimento do velado como velado, o desvelamento do
velamento como velamento.
O aparecimento do mistério de Cristo, sua parousia6 e epiphaneia7 ,
inaugura o fim dos tempos ou os tempos do fim. Raia o Dia. Acontece
o Hoje. Vem a Hora. Plenitude dos tempos.
4. “Mistério” não é uma falha, falta ou deficiência do conhecimento. Mas é, antes,
dinâmica e modo da auto-apresentação da própria realidade do real. Na raiz de seu
advir, tudo é mistério. “Mistério” vem do grego Mysterion, que, por sua vez, remete
ao verbo Myo, “fechar (a boca ou os olhos)”. Fala, pois, do invisível de todo o
visível, do indizível de todo o dizível, do que se retrai em todo o aparecimento, do
que se retira em todo o advento. No sentido bíblico, a palavra se reveste de caráter
histórico-escatológico. Mysterion é evento escatológico: re-velação de uma decisão
divina, seu propósito e seu cumprimento definitivo.
5. Hermeneus é aquele que exerce o hermeneuein, ou seja, aquele que exerce o
encargo de trazer a mensagem do destino, de dar notícia dela. O Cristo, como
hermeneus, é o enviado, que traz os anúncios do Pai e revela suas decisões. É o
anunciador do inesperado e do imperscrutável. (Neste sentido, há um parentesco
ou analogia entre a figura de Cristo no cristianismo e a figura de Hermes na
grecidade).
6. O nome parousia significa presença, aparecimento, vinda (latim: adventus) e
remete ao verbo pareimi, estar presente, ter vindo. No mundo grego e helenístico,
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
139
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
Isso constitui o lance de abertura de toda uma hermenêutica da
temporalidade e da historicidade no(s) protocristianismo(s) e no(s)
cristianismo(s) de todos os tempos. Isso determina o modo como o
cristão, em todo e qualquer tempo, vive a temporalidade. Dizemos:
“vive a temporalidade” e não “vive na temporalidade”, porque, para o
cristão, a temporalidade não é nenhuma abstração, algo assim como
uma moldura indiferente e neutra, em que se desenrolam os acontecimentos do mundo, antes, a temporalidade é a dinâmica do tempo
mesmo, enquanto tempo vivido, e vivido na iminência do fim. Esta
iminência, no entanto, não se deixa constatar ou comprovar a partir
de um cálculo, realizado no âmbito e no horizonte de uma concepção matemática e neutra do tempo, antes, ela é de cunho existencial.
parousia nomeava também a vinda ou visita de um rei ou imperador. Paulo emprega o verbo pareimi e o nome parousia no sentido usual e no sentido escatológico
(1Ts 4,15: eis ten parousia tou kyriou – ...“até a vinda do Senhor; 1Cr 15,23: en te
parousia autou – ... “na sua vinda”; 2Ts 2,8: kai katargesei te epiphaneia tes parousias
autou – ... “e aniquilará com o esplendor de sua vinda”). A parousia de Cristo ora se
refere ao seu já ter vindo, ora ao seu estar vindo, ora ao seu por-vir. Trata-se,
sempre, de um ad-vento, de um e-vento, de um sobre-vento. A parousia oscila,
portanto, entre aparecimento (já acontecido) e reaparecimento (ainda porvindouro)
do Cristo.
7. Epiphaneia significa aparecimento, revelação. O nome remete ao verbo
“epiphaino”: mostrar, aparecer, fazer brilhar. Epiphaneia designava o aparecimento
de um deus na história, por meio de eventos ou acontecimentos extraordinários. A
Septuaginta escolhe aquele nome e aquele verbo para se referir às intervenções
gloriosas e terríveis de Ihwh/Adonai. Daí, no horizonte da apocalíptica judaica,
epiphaneia passa a designar o aparecimento de Deus como evento escatológico. No
quadro do culto grego, a epifania de um deus é celebrada no ritual como a festa do
seu nascimento, da sua ascensão ao trono, de um milagre específico operado por
ele, daí, a liturgia cristã compõe a festa da epifania com a memória do nascimento
de Cristo, de seu batismo e da sua primeira manifestação no sinal das bodas de
Caná. No Novo Testamento, entretanto, epiphaneia é um nome escatológico, isto
é, remete para o aparecimento definitivo de Cristo, ou seja, não mais o seu aparecimento humilde e frágil “na carne”, mas o seu aparecimento glorioso no Dia
último (Cf. 2Ts 2,8).
140
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
O cristão vive o tempo, diante da iminência da impossibilidade do
próprio tempo (chronos), que, por sua vez, é a possibilidade de todas
as possibilidades, a dimensão de todas as dimensões de possibilidades, pois tudo o que vem a ser, tudo o que advém, precisa do tempo
(chronos) para tal8 . O Fim é a possibilidade da impossibilidade do
tempo. Enquanto possibilidade da impossibilidade, é a iminência do
incontornável, insuperável e irremissível, que, por sua vez, agrava o
tempo presente, tornando-o tempo de crise, isto é, de risco e de chance, de perdição e salvação, de julgamento e de graça. O fim iminente,
porém, não é só fim do tempo, mas também fim dos tempos – isto é,
dos séculos, das eras do mundo9 . O advento do Cristo inaugura o fim
8. Chronos é o tempo tomado como o tempo com o qual se conta. Remete, por
isso, ao lapso de tempo (de quando a quando, de então a então). Implica, pois,
duração e sucessão. O homem mensura, isto é, mede e conta o tempo por precisar
contar com o tempo. E precisa contar com o tempo porque o seu tempo é sempre
um tempo contado e medido: um tempo finito e definido. O homem tende a
captar o tempo como infinito e interminável, e se sente autorizado a isso quando
considera o tempo “do mundo”, da “natureza”, dos céus e dos astros. No entanto,
este tempo interminável só aparece quando o homem abstrai do tempo de sua
vida, que é sempre, um tempo finito e definido. O cristianismo reverte esta relação. O tempo da vida do homem, em sua transiência e finitude, se projeta também
sobre o tempo da vida do mundo. Os poderes cósmicos já não aparecem mais
como definitivos e inabaláveis, mas como transientes e abaláveis. Por isso, a linguagem apocalíptica esta falando sempre de catástrofes cósmicas, que antecedem e
acompanham a irrupção do Dia último.
9. Aion é a palavra grega para dizer uma “era do mundo”. Em Homero, aion corresponde a psyche (vida). A vida humana (bíos), tal como ela é vivida e experimentada
desde ela mesma, em sua facticidade, é tempo. A vida, por sua vez, cada vida em
sua singularidade, está sempre se estruturando em mundo, que é também sempre
um mundo compartilhado com outras vidas. Neste sentido, numa visão que parte
de dentro da própria vida, o mundo está começando e acabando, sempre de novo,
a cada novo nascimento e a cada nova morte. Hesíodo empregou a palavra aion
como duração de uma vida. “La vida es tiempo – como ya nos hizo ver Dilthey y hoy
nos reitera Heidegger, y no tiempo cósmico imaginario y porque imaginario infinito,
sino tiempo limitado, tiempo que se acaba, que es el verdadero tiempo, el tiempo
irreparable. Por eso el hombre tiene edad. La edad es estar el hombre siempre en um
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
141
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
das eras – das eras da espera. Começa o tempo do cumprimento, da
realização, da consumação, soa a plenitude do tempo (to pleroma tou
chronou – Cf Gl 4,4-5). Com o inaugurar do fim dos tempos, começam, então, os tempos (as eras) do fim. Da morte de Cristo na cruz até
sua definitiva parousia, as eras do mundo serão sempre, de alguma
maneira, eras do fim do mundo, as épocas da história serão, por conseguinte, épocas do fim.
A proclamação do Evangelho se dá em meio a esta experiência da
temporalidade. A plenitude do tempo (chronos) é o soar do tempo
oportuno, o dia “D”, a hora “H”, o kairos10 : “cumpriu-se o tempo
(peplerotai ho kairos), e o Reinado de Deus aproximou-se” (Mc 1,15).
É tempo de retorno e transformação da mente (metanoia). É hora da
fé (pistis). Com Jesus e a partir de Jesus, o protocristianismo pode
proclamar: “Eis agora o momento inteiramente favorável (idou nyn
cierto trozo de su escaso tiempo...” ORTEGA Y GASSET. En torno a Galileo – esquema de las crisis. Madrid: Revista de occidente, 1956, p. 38s. Já Ésquilo fala de aion
no sentido de geração. A história acontece “de geração em geração”, num movimento
cheio de rupturas e continuidades, mais precisamente, num movimento de passagem, que constitui uma tradição (paradosis). De novo, podemos remeter, aqui, a
uma palavra de Ortega y Gasset: “El hecho más elemental de la vida humana es que
unos hombres mueren y otros nacen – que las vidas se suceden. Toda vida humana, por
su essencia misma, está encajada entre otras vidas anteriores y otras posteriores – viene
de una vida y va a outra subsecuente. Pues bien, en eso hecho, el más elemental, fundo
la necesidad ineludibile de los câmbios em la estrutura del mundo” (Idem, p. 38). A
mudança das gerações e de suas estruturas de mundo, suas rupturas e continuidades, constituem as eras, os séculos (mundos), as épocas.
10. O nome kairos aparece pela primeira vez em Hesíodo, denotando “medida
certa”, “o que é conveniente, apropriado e decisivo”. Kairos é tempo-espaço favorável, propício, apropriado, que está, a cada vez, em jogo. É a situação de uma decisão, que implica, ao mesmo tempo, oportunidade e perigo. A experiência da história, para Israel, estava marcada pela irrupção da ação salvífica de Ihwh/Adonai em
tais situações. O protocristianismo proclama que, com Jesus, raiou um kairos novo:
“por isso, se alguém está em Cristo, é uma nova criatura (kaine ktisis). O mundo
antigo passou (ta archaia parelthen), eis que aí está uma realidade nova (idou gegonen
kaina)” (2Cor 5,17).
142
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
kairos euprosdektos). Eis agora o dia da salvação (idou nyn hemera
soterias)” (2Cor 6,2).
O tempo inaugurado por Cristo não é apenas qualitativamente
diverso dos outros tempos. Ele é o tempo radicalmente novo: o tempo do surgimento de uma nova criação, de um novo céu e uma nova
terra, de uma nova existência. Trata-se, portanto, de um radicalmente novo nascimento do mundo, no seu sentido ôntico-ontológico,
como o Kyrios proclama no livro do Apocalipse (21,5): “Eis que eu
faço novas todas as coisas (idou kaina poio panta)”. Este novo aion,
esta nova criação, esta nova realidade já começou no Cristo Crucificado e Ressuscitado. Pela fé (pistis), o cristão renasce para dentro dela
e nela se incorpora. Ele é alguém que “está em Cristo” (2Cor 5,17).
Sua existência é uma existência renascida em Cristo, na fé. Em Cristo
ele vive. Como Paulo, ele pode dizer: “Vivo (zo), mas não sou mais
eu (ouketi ego), é Cristo que vive em mim (ze de en emoi Christos)”
(Gl 2,20). É na fé (en pistei) que o cristão vive a nova realidade, que
lhe foi doada gratuitamente, como num novo nascimento. Fé é existir a partir de Cristo. É ter nele o fundamento da própria existência, o
centro e o sentido da própria vida. Cristo se torna, para o cristão, vida
de sua vida. Esta vida, que lhe é comunicada na graça da fé, e que é o
próprio Cristo em sua autodoação, é algo de último (eschaton), quer
dizer, de definitivo. Entretanto, este definitivo ainda não se manifestou inteiramente. O cristão vive na espera do inesperado de tal revelação plena. Com efeito, o cristão vive ainda a vida presente na carne,
isto é, na caducidade e transiência da velha criação, do velho aion. O
cristão é, pois, um cidadão de dois reinos: o reino deste mundo e o
reino do mundo vindouro, que, em Cristo, já está presente. Ele vive
na ambivalência: entre o último e o penúltimo. Nem é preciso dizer
que o último não é aquilo que vem depois do penúltimo. O último é
o que já aconteceu de maneira definitiva e que, assim, já determinou
tudo o mais como o penúltimo. O último é o cerne do penúltimo: é
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
143
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
o porvir que já se fez presente e se tornou o passado definitivo do
penúltimo. O último não destrói o penúltimo. Subsumindo-o, dálhe um novo sentido: o sentido do penúltimo é “preparar as vias” para
o último, como João Batista preparou as vias para o Cristo (cf. Is
40,3; Mc 1,1-8). Todo o penúltimo é conservado e, ao mesmo tempo, superado. Conservado, como chance e oportunidade de “preparar as vias” para a vinda do Kyrios, de ser ocasião da metanoia e da
pistis. Superado, à medida que o penúltimo perde o seu caráter de
absolutidade, tornando-se totalmente relativo. A absolutidade, ou seja,
o caráter de ser ab-soluto, vale dizer, solto em si mesmo, na plena
liberdade e positividade de ser, isto se atribui somente ao último, ao
definitivo. Daí, a proclamação e exortação de Paulo aos coríntios:
Eis o que digo, irmãos: o tempo se abreviou (ho kairos synestalmenos
estin). Doravante, aqueles que têm mulher sejam como se não a
tivessem, os que choram como se não chorassem, os que se alegram como se não se alegrassem, os que compram como se não
possuíssem, os que tiram proveito deste mundo, como se não aproveitassem realmente. Pois a figura deste mundo passa (paragei gar
to schema tou kosmou toutou) (1Cor 7,29-31).
Uma vez que o tempo se encurta e se abrevia e que se evidencia a
transiência do “esquema”, isto é, da configuração e estruturação “deste mundo” (da realidade penúltima), o cristão não pode se conformar
ao “mundo presente”, mas deve se transformar em sua mente (Cf.
Rom 12,2). De fato, o cristão não pode se conformar com este mundo e com sua sabedoria (sophia), porque, para ela, a palavra da cruz
(logos tou staurou) é loucura (Cf. 1Cor 1,26-31): “aquilo que não é (ta
me onta), Deus o escolheu para conduzir a nada o que é (ta onta)”
(1Cor 1,28). Com o evento da cruz, pois, subverte-se a ordem deste
mundo e evertem-se radicalmente os seus valores: o não-ser aniquila
o ser. Tudo isto, porém, para se deixar criar um novo ser, que é ser em
Cristo Jesus, o Crucificado. Este ser em Cristo, no entanto, aparece
pública e abertamente revestido de fraqueza e idiotice. Por isso, o
Apóstolo do Crucificado não se apresenta “com o prestígio da palavra
144
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
e da sabedoria” para anunciar o “mistério de Deus” (cf. 1Cor 2,1).
Antes, ele se apresenta em fraqueza (en astheneia), em temor e tremor
(en phobo kai en tromo), a fim de que se torne manifesto que a fé não
se fundamenta na sabedoria dos homens (sophia anthropon). De fato,
pois a fé é um renascer e, enquanto tal, é gratuidade de Deus e não
conquista do homem. Por tudo, isso, a única sabedoria do cristão é o
Cristo Crucificado: “Pois resolvi nada saber (eidenai) entre vós a não
ser Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado” (1Cor 2,2): “escândalo
para os judeus, loucura para os pagãos, mas para os que são chamados
(tois kletois), tanto judeus como gregos, ele é o Cristo, poder de Deus
(Theou dynamin) e sabedoria de Deus (Theou sophian). (1Cor 1,23s).
Por ser em Cristo, loucura e fraqueza de Deus, o cristão não se orgulha de suas conquistas éticas, nem de suas pretensas experiências místicas (visões e revelações) e do conhecimento (gnosis) que esta experiência traria consigo, antes, ele se orgulha de suas fraquezas: “quando sou fraco, então é que sou forte (hotan gar astheno, tote dynatos
eimi)” (2Cor 12,10). A única glória que lhe interessa é a da cruz.
Pois, tudo quanto se dá no mundo é, em si mesmo, insignificante: o
que unicamente importa é a “nova criação” (kaine ktisis).
O cristão vive a temporalidade, por conseguinte, na fraqueza do
Crucificado, uma fraqueza que, no entanto, é “ternura” (1Ts 2,7).
Sua existência “na carne” é revestida de indigência, necessidade, pobreza: é cheia de “penas e fadigas” (1Ts 2,9), “angústias e provações”
(1Ts 3,7). Aqui aparece uma palavra primordial para se entender este
modo de viver a temporalidade, típico do protocristianismo: “thlipsis”
– opressão, aflição, tribulação, provação, perseguição, por causa do
seguimento de Cristo. Trata-se da participação do cristão nos sofrimentos de Cristo, que são também as dores de parto da nova criação.
Tudo isso exige do cristão uma virtude sobremodo importante: a
hypomone: paciência, constância, perseverança. “É na vossa paciência
que ganhareis as vossas vidas” (en te hypomone hymon ktesesthe tas
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
145
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
psychas hymon) (Lc 21,19). Assim, o cristão carrega o tesouro do conhecimento do rosto de Cristo “em vaso de argila” (2Cor 4,7a) e
pode dizer:
Premidos de todos os lados, nós não somos esmagados; em
impasses, mas conseguimos passar; perseguidos, mas não alcançados; prostrados por terra, mas não liquidados; sem cessar trazemos
em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus
também seja manifestada em nosso corpo (2Cor 4,9s).
A agonia de Jesus, da qual participam os cristãos, seu corpo místico, é também a agonia da velha criação, que espera pela revelação da
glória da nova criação, que já está sendo gestada desde a morte e
ressurreição do Crucificado. “Entregue ao poder do nada... ela guarda a esperança’ (cf. Rm 8,20), a esperança de participar da liberdade
e da glória dos filhos de Deus. Seus gemidos e dores, são os gemidos
e as dores de parto do novo céu e da nova terra.
Por ter que esperar, isto é, guardar a esperança (elpis), que não é
nenhuma expectativa calculada disso ou daquilo, mas é a abertura na
plena disponibilidade para o advento do inesperado da parousia definitiva, o cristão necessita se manter sempre de novo na vigilância. Na
atitude de vigilância, com efeito, o cristão vive uma “fé ativa”, um
“amor sacrificado”, uma “esperança perseverante” (cf. 1Ts 1,3), “acolhendo a palavra em meio a muitas tribulações, com a alegria do Espírito Santo” (1Ts 1,6). Ele “abandona os ídolos” e se volta para “o
Deus vivo e verdadeiro” colocando-se ao seu serviço, a fim de “esperar dos céus o seu Filho a quem ele ressuscitou dos mortos, Jesus que
nos livra da ira que está vindo” (1Ts 1,9s). Os que servem os ídolos
são aqueles “que não têm esperança” (1Ts 4,13). Os que servem o
Deus vivo, são os que têm um porvir e, por isso, permanecem na
esperança (elpis). A esperança, porém, consiste na vigilância, pois “o
Dia do Senhor vem como um ladrão, de noite” (cf. 1Ts 5,2-4). O
perigo que ameaça o cristão é de se contentar com o tempo presente
e com o seu mundo. A paz e a segurança do tempo presente lhe são,
146
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
portanto, mais perigosas que as tribulações e apertos, sofridos no seguimento de Cristo. A paz e a segurança podem mergulhar o cristão
na noite do esquecimento de Cristo. Quem adormece nesta noite,
acaba sendo surpreendido pela parousia. E ela se lhe acontece, repentinamente, como “Dia de ira”, isto é, kairos do julgamento e da condenação definitivos. Caso, porém, o cristão se mantiver em vigilância, na fé, esperança e na caridade, então ele se torna “filho do dia”
(Cf. 1Ts 5,5). E a paurosia lhe advém como o inesperado já sempre
esperado, acontecendo-lhe, porém, como kairos de perdão e salvação
definitivos (Cf. 1Ts 5,9s). A dinâmica da temporalidade, por conseguinte, se mostra ambivalente: para quem se mantém desperto na
paciência e esperança, ela culmina no kairos da salvação definitiva,
para quem se mantém adormecido na “paz e segurança” do mundo,
ela culmina no kairos da condenação definitiva.
Algo da tensão desta ambivalência escatológica, em que a
temporalidade aparece no(s) e para o(s) protocristianismo(s), se faz
ver no livro do Apocalipse de João. O nome apokalypsis – revelação –
remete ao verbo apokalypto: revelar, descobrir, desvendar. Trata-se,
em verdade, da revelação de Jesus Cristo, que Deus concede aos seus
servos, para mostrar (deicsai) aquelas coisas que devem acontecer no
tempo que foi abreviado (ha dei genesthai em tachei) (cf. Ap 1,1). É
que o fim já se realizou, mas de maneira ainda encoberta, na morte e
ressurreição de Cristo (que se manifestou apenas a alguns: os discípulos que deveriam se tornar suas testemunhas qualificadas). Este mesmo fim necessita se manifestar abertamente a todos os homens. Ele
vai se manifestando paulatinamente, até se revelar definitiva e totalmente: consuma-se, assim, o mistério de Deus, antes anunciado aos
profetas (cf. Ap 10,7). Nessa perspectiva, há uma coincidência parcial
entre o tempo presente e a era novíssima, definitiva. Tudo caminha
para a coincidência total dessas duas dimensões do tempo, que aparecem justapostas na experiência protocristã da historicidade. Como se
pode ver, o tempo aparece, na perspectiva do Apocalipse, a partir da
urgência da parousia, e da iminência dos sinais, que a precedem ou a
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
147
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
acompanham. O momento presente é vivido como tempo do fim.
Cada instante se investe da gravidade e se reveste da seriedade de uma
decisão que passa a valer para a eternidade. O hoje torna-se tempo de
krisis: tempo de uma de-cisão, que determina, já agora, a cisão (separação, julgamento) definitiva entre os dois reinos espirituais, simbolizados nas duas cidades: Babilônia (confusão) e Jerusalém (visão de
paz). O Apocalipse é a afirmação da esperança da vitória de Jerusalém
sobre Babilônia; é a afirmação da convicção de que o “reino do mundo” é provisório e destinado à ruína, enquanto o reino de Cristo é
definitivo e eterno (cf. Ap 11,15). Neste sentido, o Apocalipse de
João não é somente um livro apocalíptico, mas é também e talvez,
antes de tudo, um livro profético.
Profeta é aquele a quem o Espírito sobre-vem. Ele é alguém tomado, raptado, arrebatado pelo Espírito. Posto por este mesmo Espírito na roda viva da história, ele se contorce. Hesita, mas não pode
fugir ao seu destino: anunciar julgamento e salvação. Seu anúncio
não provém de si mesmo, mas do Espírito que o domina. Ele fala,
não ele, mas o Espírito fala nele e por meio dele. E fala com pathos,
isto é, fala inflamada e apaixonadamente. Suas palavras são agudas e
contundentes. Convocam rupturas com a velha era e anunciam
irrupções de uma nova era. Subvertem, evertem, transvertem. Elas
dão voz ao clamor do porvir11 .
O profeta é a “sentinela da iminência” (Ricoeur)12 . Ele anuncia
julgamento e salvação. A anunciação é o coração vivo da profecia.
Esta não é, propriamente, uma previsão do futuro. É, antes, uma fala
antecipada do que será. Tal fala, por sua vez, embora se refira a um
futuro apodítico, diz o que ela tem a dizer, contudo, de maneira her-
11. Cf. ROMBACH, Heinrich. Leben des Geistes – Ein Buch der Bilder zur
Fundamentalgeschichte der Menschheit. Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1977, p. 25s.
12. LACOCQUE, André; RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente. Bauru: Edusc,
2001, p. 187-205.
148
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
mética, ficando a meio caminho entre o indicativo e o imperativo.
Como oráculos, os enunciados desta fala, não afirmam nem negam
qualquer coisa, apenas acenam e assinalam o retraimento do mistério
(semainein) porvindouro (Cf. Heráclito de Éfeso – Frag. 93)13 . Daí,
a forma obscura destes enunciados, os quais, na apocalíptica, se revestem de imagens e figuras parabólicas e enigmáticas. Para a profecia,
porém, aquele futuro anunciado não será bem um factum do homem, mas muito mais de Deus. Daí a apoditicidade do anúncio e a
convicção de quem anuncia. O profeta conta a história do futuro. E a
sua narração do futuro não é tranqüila, é, antes, angustiosa e
desestabilizadora. Ela se põe diante da terrificante alternativa que se
lhe instala: entre ruína completa e salvação plena, entre a catástrofe e
a recapitulação consumadora de todas as coisas. Sua narração é, por
isso, traumática. A “loucura” visionária, extática e entusiástica, do
profeta, porém, traz consigo a lucidez de uma vigilância: a história do
futuro, que ele conta, o faz situar-se de modo todo próprio no aqui e
agora, em que ele e seus ouvintes se encontram. O discurso profético,
com efeito, assim como o apocalíptico, seu herdeiro, visam o hoje, o
agora, querendo suscitar um despertar para a gravidade e a seriedade do
hoje, do aqui e agora. Há, porém, uma diferença entre o discurso simplesmente profético e o profético-apocalíptico, como o do Apocalipse de
João: aquele narra um futuro intra-histórico, este, um futuro trans-histórico, escatológico, definitivo. Na apocalíptica, o profeta se torna não só a
sentinela de uma iminência intra-histórica, intramundana, mas também
de uma iminência trans-histórica, escatológica: o futuro definitivo,
irrevogável de Deus, “aquele que é, que era e que virá”, “o alpha e o
omega” de todo o tempo e de toda a história.
13. ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 82s.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
149
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
2. A hermenêutica da temporalidade-historicidade na experiência cristã-medieval da vida
A hermenêutica cristã da temporalidade e da historicidade, ao
longo dos séculos, se viu marcada pela perspectiva escatológica do(s)
proto-cristianismo(s), em especial pelo livro do Apocalipse de João. A
começar de Agostinho.
Agostinho viveu um tempo de de-cadência: para todos, pagãos e
cristãos, patenteava-se o fim de uma era, a saber, a era do império
romano. Mas, na agonia do império romano, se pressentia a agonia
do mundo como tal.
Assim, da parte dos cristãos, entoam-se, desde o fim da Antigüidade, vozes que vão ressoar por toda a alta idade média, pelo medievo
românico e pelo medievo gótico afora, cantando o envelhecimento e
mesmo o fim do mundo14 : São Cipriano15 , São Jerônimo16 , Santo
Oriêncio de Aquitânia17 , São Gregório Magno18 , Marculfo19 , Pascásio
14. As referências seguintes, com as citações em latim, são dadas apud: DE LUBAC,
Henri. Opera Omnia (Secção V, Vol. 19) – Esegesi Medievale – Volume Terzo. Milano:
Jaca Book, 1996, p. 711-713.
15. “Mundus ecce nutat et labitur, et ruinam sui non jam senectute rerum sed fine
testatur – Eis que todo o mundo vacila e cai e atesta a sua ruína não já com a
velhice das coisas, mas com o fim” (Cipriano (c. 210-258).
16. “Cadit mundus – o mundo cai” (Jerônimo, c. 347-419/420).
17. “Lassa senescentem despectant omnia finem / Et jam postremo volvitur hora die
/ Respice quam raptim totum mors presserit orbem – todas as coisas desfalecidas,
olham com despeito para o fim que está se extinguindo, e já agora a hora se volta para
o dia último. Olha quanto rapidamente a morte oprime todo o mundo” (Oriêncio de
Aquitânia: bispo poeta do século V). Palavras que poderiam servir de mote ao filme
“O sétimo selo”, do recém-falecido Ingmar Bergmann, filme este que trata, justamente, do “outono da idade média” (expressão do historiador Huizinga).
18. “In interitum rerum omnium, pensare debemus, nihil fuisse quod amavimus –
diante da destruição de todas as coisas, devemos considerar que era um nada aquilo
que amávamos” (Gregório Magno, c. 540-604).
150
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
Radberto20 , Santo Euquério21 . A palavra de São Gregório Magno,
por exemplo, declara: “ecce enim quia divini judicii dies imminet – de
fato, eis porque é iminente o dia do divino juízo”22 . E Santo Ambrósio
Autperto (?-784), comenta:
Mas o Filho de Deus diz que verá velozmente, porque todo o
tempo da vida presente, por mais que seja prolongado por longos
períodos de intervalos, todavia, porque não está parado, mas passa
(quia non stat, sed transit), com o seu próprio transcorrer demonstra que há de terminar velozmente. Por causa deste curso
velocíssimo, João define a sua quantidade com a duração de uma
só hora, quando ele diz: “Filho, chegou a última hora”23 .
Agostinho (354-430) pressente e ressente a queda do Império Romano na invasão de Roma por Alarico, rei dos visigodos, em 410. Os
pagãos acusam o Deus dos cristãos, pela ruína do império. Desde que o
Crucificado fora se tornando preponderante no panteão romano, ou
melhor, desde que ele fora se tornando exclusivo, o império só foi decaindo. A cruz foi implodindo a cidade. E seus muros foram se tornando
vulneráveis. Esta situação constituiu a ocasião para Agostinho – africano
de origem, romano de cultura e cristão de fé – pensar as relações entre fé
cristã e temporalidade-historicidade e expor o sentido destas relações numa
hermenêutica cristã da história em sua obra De Civitate Dei – Da cidade
19. “Mundus senescit!... Mundus terminus appropinquat – o mundo envelhece!...
O fim do mundo se aproxima” (Marculfo, Séc. VII).
20. “In proximo est ut veniat hoc pejus ultimum malum... sem nondum statim –
está muito iminente o último mal, pior do que este... mas não (se dará) logo”
(Pascásio Radberto, fim do século VIII a 860/865).
21. “Omnis fucatus splendor intercidit. Vix jam hoc habet mundus, ut fallat...
Dirigenda est omnis animi intentio in spem futuri – cai todo artificioso esplendor.
Já agora o mundo a duras penas o tem para enganar... todo o esforço da alma deve
estar direcionado à esperança do futuro”.
22. Apud: DE LUBAC, Henri. Idem, p. 713.
23. Apud: DE LUBAC, Henri. Idem, ibidem.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
151
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
de Deus (413-426). A exposição de Agostinho pode ser dividida em uma
“pars destruens”, em que faz uma crítica da crítica pagã e uma apologia da
fé cristã, e em uma “pars construens”, em que recapitula a inteira história –
que, na perspectiva da fé, é sempre história de salvação – à luz da revelação bíblica. Nesta segunda parte, ele expõe a origem, o desenvolvimento
e o fim das duas cidades, cujas vicissitudes e peripécias constituem toda a
história do ser humano. Em outras obras também aparece essa idéia das
duas cidades:
Dois amores fizeram duas cidades: o amor de Deus faz Jerusalém,
o amor do século Babilônia.
Estes dois amores, dos quais um é santo, o outro imundo; um é
social, o outro privado; um se preocupa com a vantagem de todos,
o outro mesmo as coisas comuns reduz ao próprio poder, por arrogância de poder; um é súdito, o outro rival de Deus; um tranqüilo, o outro turbulento; um pacífico, o outro sedicioso; um prefere a verdade aos louvores dos errantes, o outro vai à caça de
louvores, em todos os sentidos; um move à amizade, o outro gera
inveja; um deseja ao próximo aquilo que deseja para si mesmo, o
outro quer sujeitar o próximo a si mesmo; um governa o próximo
para vantagem do próximo, o outro para a própria vantagem. Estes dois amores tiveram seu precedente nos anjos, um nos anjos
bons, o outro naqueles maus, e distinguiram duas cidades no gênero humano sob a admirável e inefável providência de Deus, que
governa e ordena tudo aquilo que foi criado: uma é a cidade dos
justos, a outra a dos perversos. Estas duas cidades correm unidas
no tempo, mesclando as próprias vicissitudes, até que sejam separadas no juízo final, e uma, unida aos anjos bons, obtenha a vida
eterna, a outra, unida aos anjos maus, seja mandada com o seu rei
para o fogo eterno. Destas duas cidades falaremos, se Deus quiser,
em outra ocasião.
Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena: o amor a Deus, levado
ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si
mesma e a segunda em Deus... Naquela, seus príncipes e nações
avassaladas vêem-se sob o jugo da concupiscência de domínio;
nesta, servem em mútua caridade, os governantes, aconselhando,
e os súditos, obedecendo...
152
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
As duas cidades, portanto, são dois tipos de constituição do mundo da convivência humana, duas formas de organização da vida social, cada uma fundada por uma espécie de amor e seu ethos. Estas
duas cidades têm origem eviterna24 : na cisão entre anjos bons e anjos
maus. No curso temporal da história, porém, estas duas cidades estão
misturadas e ambas participam das mesmas vicissitudes: compartilham os mesmos bens e os mesmos males temporais. A separação
destas duas cidades, na verdade, só acontece no juízo final. Uma será
destinada ao bem definitivo, que é a vida eterna, a outra à ruína definitiva, que é a morte eterna. As duas cidades, portanto, são arquétipos das possibilidades de constituição do convívio humano, arquétipos do ser-uns-com-os-outros no mundo comum e compartilhado
da convivência, arquétipos extremos da vida social. O homem é o
que é, a partir do modo de ser do seu amor. E é de acordo com este
modo de ser do seu amor que ele pertence a uma outra sociedade: ou
à cidade de Deus, cidade celeste, ou à cidade dos homens, cidade
terrena. De acordo com o seu modo de viver é que o homem migra
ou não de uma cidade para a outra, enquanto houver tempo. Contudo, quando não há mais tempo, no último dia e na última hora, é que
24. Eviterno não é o mesmo que eterno. O medieval distinguia entre “aeternitas”,
que pertence a Deus, e que não inclui nem sucessão nem duração, e “aevum”, que
seria como que a temporalidade própria dos puros espíritos e que inclui uma duração indefinida e uma sucessão, mas uma sucessão de caráter todo próprio. Tal
sucessão se mostra no fato de que o espírito puro é um ente criado, que passa da
potência (poder-ser) ao ato (ser-efetivamente), do nada à existência. O espírito
puro é, neste sentido, marcado pela contingência e pelo devir, contudo, não está
submetido nem à inovação nem à decrepitude. Vive num modo de ser estável,
permanente. Enquanto espíritos, os anjos são seres de liberdade. No entanto, a
decisão pelo bem ou pelo mal, entre eles, comporta algo de definitivo: é uma
decisão tomada de uma vez para sempre. Somente um ser temporal pode retomar
suas decisões, reafirmá-las e até mesmo negá-las, tomando posicionamentos contrários aos que já foram tomados anteriormente. Somente enquanto há tempo, há
possibilidade de arrependimento e de conversão, por exemplo. Tempo e liberdade,
neste sentido, estão intimamente conexos.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
153
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
se revelam os segredos dos corações e que se separam definitivamente
os justos dos injustos. As duas cidades, por conseguinte, não coincidem com a Igreja e o mundo. A Cidade de Deus tem habitantes
mesmo entre os que estão fora dos limites da Igreja visível, como a
cidade terrena também tem habitantes mesmo entre aqueles que estão contados como cristãos. A Igreja militante é ainda uma realidade
mista, híbrida: traz em si justos e injustos, habitantes da Cidade de
Deus e da cidade terrena. Somente a Igreja triunfante, na eternidade,
é que será uma realidade pura e sem mancha de pecado, em que
habitarão somente os justos25 .
A história é um processo teleológico. A consumação deste processo consiste na revelação e constituição definitiva do Reino de Deus: o
triunfo da Jerusalém Celeste. No Apocalipse de João, depois da queda de Babilônia – cidade da prostituição, isto é, da idolatria (Cf. Ap
18), desce do céu a cidade de Deus, a Jerusalém Celeste. Desce do
céu, de junto de Deus, “preparada como uma esposa que se enfeitou
para seu esposo” (Ap 21,2), inaugurando o novo céu e a nova terra.
São as núpcias do cordeiro. Núpcias, pois o aparecimento da Jerusalém Celeste é evento de união no amor:
Na Cidade de Deus acontece a unificação viva de Deus com a
humanidade e com toda a criação. A cidade de Deus, porém, não
se deu desde o início, mas deve ser esculpida e edificada a partir do
material bruto da natureza rebelde. Isto acontece no curso da história da humanidade, que se engaja sete vezes para o bem, mas que
fracassa seis vezes. Somente a última gênese (a sétima época, o
sétimo dia da criação) deixa que tudo se torne bom e que tudo
desabroche na absoluta unidade da sinfonia. No fim da história do
mundo Deus se unirá com a humanidade de modo imediato assim como a Cabeça de um homem com seu corpo. Segundo uma
palavra da Bíblia, Cristo haverá de pôr, para a perfeição da huma-
25. Cf. AGOSTINHO. A cidade de Deus (contra os pagãos) – parte I. Petrópolis:
Vozes, 1990, Livro I, cap. XXXV, p. 64.
154
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
nidade amadurecida, a sua cabeça (“… até que todos nós cheguemos
à unidade da fé e ao estado do homem perfeito… no qual nós, consumando a verdade no amor, cresçamos em tudo na direção daquele que
é a Cabeça, Cristo” – Ef. 4, 10-16). O fim é, portanto, um estado,
no qual a até então subsistente super-ordem e infra-ordem cedam
lugar a uma unidade e igualdade vivas26 .
Jerusalém e Babilônia são arquétipos da ordem e da paz, de um
lado, e da confusão, desordem e tempestuosidade, de outro lado. A
temporalidade histórica é caracterizada pela tempestuosidade dos
combates entre os humanos que se agitam na diversidade e mesmo
no conflito de seus interesses. A paz permanece sendo, sempre ainda,
uma aspiração e uma meta jamais encontrada definitiva e totalmente.
O fim da temporalidade histórica, no entanto, é a tranqüilidade, a
serenidade e a paz perpétua, que se condensam na Jerusalém celeste.
Aliás, a paz da cidade terrena e a paz da cidade celeste são diversas:
Assim, a cidade terrena, que não vive da fé, apetece também a paz
terrena; porém, firma a concórdia entre os cidadãos que mandam
e os que obedecem, para haver, quanto aos interesses da vida mortal, certo concerto das vontades humanas. Mas a cidade celeste, ou
melhor, a parte que peregrina neste vale e vive da fé usa dessa paz
por necessidade, até passar a mortalidade, que precisa de tal paz...
Em sua viagem a cidade celeste usa também da paz terrena e das
coisas necessariamente relacionadas com a condição atual dos homens. Protege e deseja o acordo de vontades entre os homens,
quanto possível, deixando a salvo a piedade e a religião, e ministra
a paz terrena à paz celeste, verdadeira paz, única digna de ser e de
dizer-se paz da criatura racional, a saber, a ordenatíssima e
concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em
Deus. Em chegando a esta meta, a vida já não será mortal, mas
plenamente vital. E o corpo já não será animal, que, enquanto se
corrompe, oprime a alma, mas espiritual, sem necessidade alguma, plenamente submetido à alma. Possui essa paz aqui pela fé, de
que vive justamente, quando refere à consecução da verdadeira
26. ROMBACH, H. op. cit., p. 155.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
155
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
paz todas as boas obras que faz para com Deus e com o próximo,
porque a vida da cidade é vida social27 .
A paz perpétua é a meta da história. Mas, o que é a paz? A paz é a
tranqüilidade da ordem:
Assim, a paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da
alma irracional, a ordenada calma de suas apetências. A paz da
alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a
ação, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a saúde do
animal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua ordenada concórdia. A paz da casa é a ordenada concórdia entre os que
mandam e os que obedecem nela; a paz da cidade, a ordenada
concórdia entre governantes e governados. A paz da cidade celeste
é a ordenatíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao
mesmo tempo, em Deus. A paz de todas as coisas, a tranqüilidade
da ordem. A ordem é a disposição que às coisas diferentes e às
iguais determina o lugar que lhes corresponde28 .
O triunfo de Jerusalém sobre Babilônia é, portanto, a vitória da
paz – que é a tranqüilidade da ordem, que, por sua vez, é a disposição
justa de todas as coisas na sua diversidade e igualdade –, sobre o caos,
a confusão, a desordem, a injustiça. O triunfo não se dá, no entanto,
sem o combate decisivo. A idade média vislumbrou a gravidade de tal
combate escatológico na figura do Anticristo.
O cristão deve poder reconhecer o Anticristo como tal. Esta é
uma convocação a estar alerta, vigilante, desperto, em meio às vicissitudes da história. Estas vicissitudes não são aleatórias, mas seguem a
oikonomia tou mysteriou: obedecem às disposições e aos desígnios,
com os quais Deus governa a história (cf. Ef 3,9). Trata-se, em última
instância, do desígnio benevolente, predeterminado por Deus, de le-
27. AGOSTINHO, A cidade de Deus (contra os pagãos) – parte II. Petrópolis:
Vozes, 1990– Livro XIX, cap. XVII, p. 408s.
28. AGOSTINHO, Idem, Livro XIX, cap. XIII, p. 402s.
156
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
var os tempos à plenitude (cf. Ef 1,10a – eis oikonomian tou pleromatos
ton kairon). A plenitude dos tempos, porém, consiste nisso: “recapitular todas as coisas no Cristo” (Ef 1,10b – anakephalaiosasthai ta
panta en to Christo). Cristo é o mistério escondido às eras e às gerações (to mysterion to apokekrymenon apo ton aionon kai apo ton geneon
cf. Cl 1,26). Ele é o mistério de Deus (mysterion tou Theou), pois nele
estão escondidos todos os tesouros da sabedoria (sophia) e do conhecimento (gnosis) (cf. Cl 2,2). Assim o Cristo é a revelação escatológica
do mistério da piedade (to tes eusebeias mysterion):
Ele foi manifestado na carne (ephanerote en sarki), justificado pelo
Espírito (edikaiote en pneumati), contemplado pelos anjos (ofte
aggelois), proclamado pelos pagãos (ekerychte en ethnesin), acreditado no mundo (episteuthe en kosmo), exaltado na glória
(anelemphthe en docse) (1Tm 3,16).
Em contraposição ao mistério da piedade está o mistério da iniqüidade (mysterion tes anomias), que “já está em ação”, embora ainda
retido (cf. 2Ts 2,7s). Tal mistério se adensa numa pessoa e passa a
receber o título de “o homem da iniqüidade” (ho anthropos tes anomias),
“o filho da perdição” (ho hyios tes apoleias) (cf. 2Ts 2,3), “o ímpio” (ho
anomos) (cf. 2Ts 2,8) . Ele se arroga a ser deus e se põe contra Deus e
contra o seu Cristo (anti-cristo): “ele se ergue e se insurge contra tudo
o que se chama deus ou se adora, a ponto de se assentar em pessoa no
templo de Deus e proclamar-se Deus” (2Ts 2,4). A ele também é
atribuída uma parousia, que acontece “segundo a atuação de Satanás”
(2Ts 2,9), o adversário, o inimigo, o “deus deste mundo” (ho theos tou
aionos) (cf. 2Cor 4,4)29 . Ele virá de maneira enganosa e sedutora.
Criará a ilusão de ser Deus e de ser Cristo. Seduzirá, no entanto,
somente aqueles que se perdem (tois apollymenois), ou seja, aqueles
que não acolhem o amor à verdade (ten agapen tes aletheias). Ele cum-
29. No Apocalipse de João esta mesma imagem aparece numa outra figura: a do
dragão e seu comparsa, a besta (cf. Ap 13,1s).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
157
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
pre, assim, uma função discriminadora na história: ele está a serviço
da história da salvação, à medida que ele favorece a decisão do julgamento, evidenciando os que amam a verdade e os que se deixam
enganar pela aparência da verdade30 . Uma vez cumprido o seu encargo, no entanto, sua parousia está destinada a ser destruída pela parousia
do Cristo, com sua epiphaneia, ou seja, com seu esplendor (2Ts 2,8)31 .
30. Para a teologia cristã, o mal está sempre a serviço do reino de Deus, mesmo se
lhe opondo. Afirmar isso, porém, não elimina o seu mistério, antes, o agrava. Deus
mesmo permite o mal, dentro do quadro da oikonomia da salvação. O mal que,
ontologicamente, é uma privação do bem, deve, no entanto, poder atuar como
força nulificante na criação e na história. Tal força nulificante atinge em cheio o
Cristo e o faz aparecer como o Crucificado. É verdade que, enquanto o Ressuscitado, ele se declara vitorioso sobre este poder nulificante. Desde a vitória da Cruz, o
Inimigo se tornou servidor. No entanto, mesmo no discurso ou na narração
escatológica, persiste a presença do mal como o opus alienum de Deus, como a sua
“mão esquerda” (Barth), da qual Ele é também Senhor. Permanece enigmática a
cólera de Deus, a ira divina, que atua, como expressão de sua justiça, na condenação eterna “dos que se perdem”, mesmo que recordemos, como insistia Agostinho,
que o justo juízo de Deus não pode nunca não ser misericordioso, mesmo quando
condena “os que se perdem” à morte eterna. Cf. BARTH, Karl. Dio e il Niente.
Brescia: Morcelliana, 2000, passim. Cf também: RICOEUR, Paul. Il male – uma
sfida alla filosofia e alla teologia. Brescia: Morcelliana, 1993, p. 41-46.
31. Da perspectiva filosófica, toda esta “grande narração” escatológica, que soa aos
ouvidos hodiernos como uma “mitologia” do futuro, apresenta uma decisiva relevância: toca na questão da presença e atuação do mal na história. Tal narração
escatológica parece pré-dizer o que o poeta Hölderlin, nas vicissitudes de nossa
época vespertina, cantou: “Onde mora o perigo / é lá que também cresce / o que
salva” (Apud HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2001,
p. 31). Salvar não é apenas retirar, a tempo, da destruição. Salvar é fazer e deixar
chegar algo à sua essência, permitindo-o aparecer em seu próprio brilho e esplendor. O que ameaça e o que salva andam juntos. Somente uma atenção vigorosa e
desperta pode colher, no que ameaça, a generosidade do que salva. O mal não é
posto pelo homem. O homem já sempre encontrou-se com o mistério do mal na
sua experiência fáctica da vida. E encontra-o como uma certa fúria de desrealização, atuando contrariamente a tudo quanto se empenha por realizar-se. Esta fúria
põe o mal, enquanto vigor nulificante, que vai atuando em toda a história, de
ponta a ponta, do começo ao fim. Este vigor nulificante não é nenhum algo, não é
nada de positivamente real, mas atua em toda a realidade, como princípio de des-
158
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
A obscuridade desta figura, o Anticristo, permanece um desafio
ao cristão, no sentido, de que ele deve permanecer alerta e atento,
para não se deixar seduzir pelo divino e pelo crístico apenas aparente.
A primeira epístola de João, em outras palavras, faz o mesmo apelo:
É chegada a última hora (eschate hora estin), ouvistes anunciar que
vem um anticristo; pois, agora, muitos anticristos estão aí (1Jo
2,18)... Eis o anticristo: o que nega o Pai e o Filho” (1Jo 2,22b)...
“Todo o espírito que confessa Jesus Cristo vindo na carne é de
Deus; e todo espírito que divide Jesus não é de Deus; é o espírito
do anticristo, do qual ouvistes dizer que virá, e agora já está no
mundo (1Jo 4,2b-3)... Porque muitos sedutores espalharam-se no
mundo: eles não professam a fé na vinda de Jesus Cristo na carne.
Eis o sedutor, o anticristo (2Jo 7).
Aqui, o anticristo se identifica com as heresias gnósticas, presentes no interior da própria Igreja, que negavam o mistério da encarnação,
separando o celeste e o terrestre, o divino e o humano.
realização (cf. Heidegger, Martin. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 91-95). Entificar o mal e hipostatizá-lo é sempre uma tentativa e
uma tentação da religião. Ela ressalta o poder anônimo do mal como algo de pessoal, sim, como até mesmo sendo um ser, uma pessoa, só que anônima, despersonalizada e despersonalizante. O homem experimenta o mal como algo que lhe advém
e sobre-vém. Não, simplesmente, como algo que nasce de si mesmo, embora reconheça que também em si mesmo o mal pode se instalar. Por isso, a religião não
atribui o mal somente ao homem, mas o põe numa dimensão anterior e mesmo
superior: na dimensão do espírito. É que só o espiritual pode ser mal. Onde não há
espírito, isto é, liberdade e pessoalidade, não há também, propriamente, o mal. No
entanto, “hipostatizar sem mais o ‘mal’ ou mesmo considerar como já demonstrado o
diabo seria uma simplificação barata. Mas seria igualmente um achatamento desprezar a peculiar autonomia e realidade revelada pelo anônimo na experiência do crime,
como se fosse uma impressão meramente subjetiva ou uma auto-ilusão. É verdade que
na dimensão da pura experiência “o mal” não é “objetivo”, mas nem por isso é menos
real. Para esta realidade não temos nenhum conceito, sim, nem mesmo um nome.
Caso nós, de modo hesitante, o chamemos de real inefável, então o compreendemos
como o reflexo negativo da dimensão de Deus, na medida em que esta é a dimensão
da salvação (Heilsdimension) que remete para a experiência da des-graça (Unheil)”
(ROMBACH, Heinrich. A fé em Deus e o pensar científico. In: Scintilla – Revista
de Filosofia e Mística Medieval, n. 2, 2004, p. 156.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
159
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
Agostinho, na Cidade de Deus32 , após passar em revista diversas
interpretações acerca da figura do Anticristo, confessa, com franqueza, não compreender o que quer dizer tudo isso. Ressalta que todas as
interpretações permanecem apenas “conjecturas humanas”. Uma coisa, no entanto, diz ele, “é indubitável e certa: São Paulo diz que Cristo não virá julgar os vivos e os mortos, se antes o anticristo, seu inimigo, não vier seduzir os mortos na alma, apesar de essa sedução pertencer ao oculto juízo de Deus”.
Assim, a figura do Anticristo permanece um princípio heurístico,
que será retomado diversas vezes, em circunstâncias diferentes, cada vez
que será exercida uma hermenêutica da história no cristianismo. A partir
do ano mil, na era românica, sobretudo entre os séculos XI e XIII, a
figura do anticristo acompanhará continuamente, como um sinal de advertência, a vida dos cristãos33 . Ela aparecerá na poesia de Bernardo de
Cluny34 , na pregação de São Bernardo de Claraval35 , na música sacra e
nos escritos místicos de Santa Hildegarda de Bingen36 etc.
32. AGOSTINHO, Idem– Livro XX, cap. XIX, p. 454-457.
33. As citações seguintes são dadas, novamente, apud: DE LUBAC, Henri. Opera
Omnia (Secção V, Vol. 19) – Esegesi Medievale – Volume Terzo. Milano: Jaca Book,
1996, p. 710-713.
34. BERNARDO DE CLUNY (Século XI): “hora novíssima, tempora pessima
sunt, vigilemus... / Quid modo detinet? En ferus imminet Antichristus... / Hoc
prope praedicat esse vel indicat Antichristum – É a última hora, péssimos são os
tempos, vigiemos... / O que agora a retém? Eis, é iminente o cruel Anticristo... /
Isto prega ou indica que o Anticristo está próximo”.
35. BERNARDO DE CLARAVAL (1090-1153): “Angelus Satanae jam mysteria
iniquitatis operatur – O mensageiro de Satanás já opera os mistérios da iniqüidade”
(Parabola 2)... “Superest jam ut reveletur homo peccati, filius perditionis – Agora só
falta que seja revelado o homem do pecado, o filho da perdição” (no comentário ao
salmo Qui habitat)... “En tempora ista plane faeda... Intestina et insanabilis est plaga
Ecclesiae... Superest ut jam de medio fiat daemonium meridianum... Ipse enim est
Antichristus – Eis estes tempos propriamente vergonhosos... Interna e insanável é a
chaga da Igreja... Só falta agora que surja o demônio do meio-dia... Ele é, de fato,
o Anticristo).
160
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
A partir de sua própria autocompreensão, a Europa cristã se torna, assim, o lugar do ocaso, do ocidente, como atesta Hugo de São
Vítor (c. 1096-1141) :
Parece que assim tenha sido disposto pela providência divina, que
as coisas que aconteciam no princípio do mundo, e depois no fim,
com o passar do tempo, o conjunto destas coisas descesse até no
Ocidente, a fim de que a partir deste fato reconheçamos que se
aproxima o fim do tempo, porque o curso das coisas já toca o fim
do mundo... O primeiro homo estava no Oriente... Assim, depois
do dilúvio, o princípio dos reinos e a capital do mundo esteve na
Assíria e entre os Caldeus e os Medos, nas partes do Oriente. Depois passou aos Gregos. Enfim, perto do fim do tempo, para o
Ocidente, aos Romanos, os quais habitam quase à extremidade do
mundo. Depois, o conjunto declina37 .
Tal experiência vespertina, ocidental, da temporalidade-historicidade, ecoa nas vozes medievais através dos comentários ao Apocalipse de João38 . É Agostinho quem, mais uma vez, abre a possibilidade
36. HILDEGARDA DE BINGEN (1098-1179): “Filius perditionis in brevissimo
tempore veniet, cum jam dies abscedit, sole in occasum latente, vid. cum novissimum
tempus jam cadit et mundus tenorem suum deserit – o filho da perdição virá em
brevíssimo tempo, quando o dia já desaparece e o sol se esconde no ocaso, ou seja,
quando acaba o último tempo e o mundo abandona o seu modo constante de ser”
(Scivias, livro 3, visão 11).
37. De arca Noe morali, l. 4, c. 9.
38. O livro do Apocalipse de João encontra-se no cânon bíblico muratoriano (Século II) e foi legitimado pelo papa Inocêncio I (que morre cerca de 417), pelos
concílios africanos de Cartago, pelos decretos damasianos/gelasianos, pela tradição
patrística latina (sobretudo Agostinho e Jerônimo) e pelo IV concílio de Toledo,
presidido por Isidoro de Sevilha (século VI). Já os padres gregos, em grande parte,
haviam rejeitado o texto como sagrado e tinham também duvidado de sua atribuição ao Apóstolo João. O mais tenaz contestador da canonicidade e autenticidade
foi Eusébio de Cesaréia (263-339). Inocêncio I aceitou somente este Apocalipse (o
de João), rejeitando, no entanto, como apócrifos, os Apocalipses de Paulo, de Esdras
e de Tomé.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
161
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
de uma hermenêutica, que ressalta o sensus spiritualis do texto39 . No
De Doctrina Christiana ele expõe os princípios de uma tal hermenêutica, os quais, ao menos em parte, recorrem às sete regras que o
donatista Ticônio elaborara para a interpretação das Escrituras40 . Afirma-se, cada vez mais, uma exegese alegórica do Apocalipse de João.
As imagens e os números apocalípticos são figuras que se há de inter-
39. A canonicidade do Apocalipse de João só se tornou viável, à medida que se
impôs uma interpretação espiritual do texto. De fato, uma interpretação literal,
que sugere, por exemplo, o milenarismo (cf. Ap, 20), já foi rejeitada pela Igreja,
desde a condenação dos montanistas, no século III. A interpretação espiritual da
Escritura começa já no judaísmo com o judeu helenista Filo, aparece nas interpretações escriturísticas de Paulo, se afirma nos Padres alexandrinos, e se corrobora em
Irineu e Orígenes.
40. Agostinho se apropria com cautela das regras de Ticônio: é preciso recusar
aquelas passagens em que ele fala como herético donatista; há que se rejeitar também a pretensão de que estas regras possam explicar todos os mistérios das Escrituras; carece de não pretender delas mais do que elas possam dar. Dito isso, há que se
reconhecer, no entanto, que elas são muito úteis. São como que sete chaves que
podem abrir o sentido dos textos escriturísticos. Passamos em revista, brevemente,
estas regras: 1) Do Senhor e do seu corpo – a Escritura fala sempre do Senhor, quer
como Cabeça (Cristo), quer como seu Corpo místico (a Igreja); 2) “Do duplo
Corpo do Senhor”, que Agostinho prefere chamar de “Do Corpo do Senhor verdadeiro e misto, ou verdadeiro e simulado” – a Escritura fala da Igreja militante
como de um corpo misto: de justos e injustos, enquanto que a separação dos mesmos só se dará no juízo final; 3) “Das promessas e da Lei”, que Agostinho prefere
chamar de “Do espírito e da letra” ou “Da graça e do preceito” – é a questão da
justificação pela graça ou pelas obras, que Agostinho considerava uma grande questão
e que não teria sido resolvida nem pelos donatistas, nem pelos pelagianos; 4) “Da
espécie e do gênero” – A Escritura costuma falar do gênero contraído na espécie,
ou, se quisermos, falar do todo, referindo-se à parte: assim, quando se fala de
Salomão, se intenciona falar de Cristo e da Igreja etc.; 5) “Dos tempos” – a Escritura recorre à sinedoque e a números simbólicos, que precisam ser lidos como tais;
6) “A recapitulação” – às vezes, a narração segue como se os eventos se desenrolassem sucessiva e linearmente, enquanto, a uma observação mais atenta, ela segue
retomando ou recapitulando narrações anteriores, como que numa espiral; 7) “Do
diabo e do seu corpo” – A Escritura ora fala do diabo, enquanto cabeça (Lúcifer),
ora do diabo enquanto corpo, isto é, os anjos maus e os homens ímpios.
162
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
pretar tipologicamente, como referências a situações típicas da experiência cristã da vida.
Na linha de Vittorino de Petau (morto mártir em 304), que foi o
primeiro comentador do Apocalipse de João, e de São Jerônimo, a
exegese medieval também ressaltou a contínua “recapitulação” presente naquele livro. Segundo esta exegese, as sucessivas revelações do
Apocalipse – expressas nos septenários (sete cartas, sete selos, sete trombetas, sete sinais, sete taças, sete visões do céu...) – deviam se entender como sucessivas recapitulações, em diversas formas, da mesma
revelação do mistério do Cristo.
Na perspectiva aberta pela leitura do Apocalipse, toda a história
do gênero humano se torna, fundamentalmente, história da salvação,
que se contrai na história da Igreja. E o tempo da Igreja, que começa
com o Pentecostes, não é outra coisa que uma longa espera, em que a
Igreja, qual esposa abandonada, e o Espírito, clamam: “vem, Senhor
Jesus!” (cf. Ap 22,17.20). A essa luz, a história da salvação se torna,
primordialmente, uma história de amor entre Cristo e a Igreja. Daí
ficou fácil para os medievais acostar a leitura espiritual do Apocalipse
à leitura espiritual do Cântico dos Cânticos. A leitura monástica e
litúrgica do Apocalipse de João se dará nesta tonalidade fundamental, sobretudo no século XII41 . Assim, Hildegarda de Bingen (10981179), na sua obra prima, Scivias, une o tema do Apocalipse ao do
Cântico dos Cânticos: a história se torna, então, não mais somente a
sucessão dos tempos que caminha para um fim glorioso, mas muito
mais os percalços, as peripécias e as vicissitudes do encontro, do
desencontro e do reencontro apaixonados entre o Deus da aliança,
que é o Deus de amor, e o Homem da aliança, a humanidade, sua
41. Comentadores como Ruperto de Deutz (morto em 1131) e Ricardo de São
Vítor (morto em 1173) são exemplos de tal exegese monástica do Apocalipse de
João.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
163
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
namorada, noiva e esposa. O mysterium tremendum da história esconde, no seu bojo, o mysterium fascinans de um Deus que busca a
humanidade como a sua amada e que aspira unir-se a ela, em amor,
ternura e fidelidade. O mistério da história só se deixa vislumbrar,
portanto, no segredo do Amor, que sela a aliança eterna com o humano e com toda a criação, no evento da encarnação. Este amor é a
realidade última, que lança um raio de luz tênue e jovial sobre e através das escuras nuvens dos tempos da história humana.
Em meio a um longo outono e inverno da história, no século XII,
o medieval pressente o sabor da primavera. A aterrorizante imagem
do Juiz que está às portas e que vem para fazer a separação dos justos
e injustos deixa entrever, no seu íntimo, a revigoradora imagem do
Esposo que diz:
Levanta-te, minha companheira, / bela minha, vem embora. / Pois
eis que o inverno passa, / a chuva cessa e se vai. / Já se vêem flores
na terra; / vem o tempo da canção; / já se ouve em nossa terra / o
canto da pomba-rola (Ct 2,11s).
Atingido por este chamado, o medievo dos séculos XII e XIII é
tomado de uma ebriedade, que o faz sonhar com novos tempos de
paz. As cidades renascem e, com o seu renascimento, fluem novas
relações econômicas e políticas, o feudalismo cede lugar à atmosfera
das comunas e das cidades-repúblicas; os cristãos, até então ameaçados pelas pressões dos sarracenos, retomam a esperança da conquista
da Jerusalém terrena, por meio das cruzadas. As escolas monásticas e
episcopais se transformam em universidades, que vêem florescer as
artes liberais, a filosofia aristotélica e a teologia escolástica. A arte românica, sóbria, grave e terrena, se transforma na arte gótica, ébria de
luz, aguda e elevada aos céus. Um novo pentecostes parece soprar na
Igreja. É nesta atmosfera que se dá a reforma monástica do século
XII, em que sobressaem os cistercienses, e é neste clima que emergem
os evangelismos do século XIII, os quais provocam uma renovação
do laicato e o surgimento das ordens mendicantes. Neste mesmo
ímpeto, movimentos pauperistas se insurgem e postulam reformas
eclesiais e sociais, que anteciparão as revoluções modernas. Aliás, um
164
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
ar de modernidade já se faz presente por toda parte, em meio ao
velho mundo da tradição.
No século XII, tudo isso converge para uma figura peculiar e
decisiva na hermenêutica cristã da temporalidade-historicidade: Joaquim de Fiore (c. 1132-1202). No profetismo e na mística apocalíptica
deste monge calabrês há algo de tosco, de áspero, de solitário, de
quase selvagem. Ele mesmo qualificava o seu falar de “rusticus et
impolitus”42 . No entanto, tinha se tornado um visionário: ele que
peregrinara à Jerusalém terrestre, acreditava ver, ao menos em parte,
a Jerusalém do alto, que está iminente. Mais do que o medo, ele
queria suscitar a esperança. Mais do que a uma reforma moral da
Igreja, ele aspirava a uma regeneração no Espírito, a um novo
Pentescostes, uma verdadeira e própria renovação carismática de toda
a Igreja, em que todo o peso e opacidade maciça da instituição desse
lugar à leveza e transparência do carisma43 . A sua mensagem profética, no entanto, ele queria anunciar corroborado por uma exegese científica! Assim, Joaquim abandona o terreno tradicional dos quatro
sentidos da Escritura (literal, alegórico, moral e anagógico) e descobre o paisagem de um novo terreno: o da concordia44 . O método da
42. No prólogo do Comentário ao Apocalipse.
43. Em vida, Joaquim de Fiore contou com o apoio dos papas. Tendo abandonado
a Ordem Cisterciense, ele fundou uma congregação, que contou com a aprovação
pontifícia: Celestino III a aprovou. Clemente III aprovou os seus escritos e recomendou que continuasse a trabalhar em sua obra exegética. Somente Inocêncio III
o tornou questionável perante a cúria romana. Joaquim, no entanto, reafirmou sua
fidelidade e submissão ao pontífice e à Igreja romana. É no tempo de Inocêncio
III, cujo pontificado começa em 1198, que começam as contestações curiais a
algumas opiniões de sua teologia trinitária. Tais opiniões foram condenadas no
Concílio Lateranense IV, quando Joaquim já estava morto (morreu em 1202).
44. Joaquim escreveu, nos anos de 1182 e 1183, o Liber concordiae Novi et Veteris
Testamenti (Livro da concordância entre o Novo e o Velho Testamento), bem como,
calcado no mesmo método, a Expositio in Apocalipsim – Comentário ao Apocalipse.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
165
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
concordia pretende-se calcar sobre o sentido literal do texto da Escritura. Quer ser uma interpretação “científica”, isto é, exata, sistemática, quase que se poderia dizer “matemática”, feita “more geometrico”
dos textos bíblicos45 . Tal método exegético, no entanto, parte de uma
posição e concepção prévia: assim como o Novo Testamento está latente no Antigo e o Antigo está patente no Novo, tal como acontece
na hermenêutica de Paulo e de Agostinho, assim também os eventos
da história da Igreja estão latentes nos eventos da história de Cristo. A
história da Cabeça deve se repetir no seu Corpo. Assim, o livro do
Apocalipse se torna a exposição em linguagem cifrada da história da
Igreja. Joaquim procura, assim, desentranhar o nexo de uma concordância entre os três tempos: o tempo do Antigo Testamento, o tempo
do Novo Testamento e o tempo da Igreja.
Um novo princípio se torna fecundo nesta hermenêutica da história: Joaquim vê nos três tempos mencionados, um reflexo, uma
imagem e uma semelhança da dinâmica da Trindade. A visão cristocêntrica da história, presente em toda a tradição, se desloca para a
visão trinitária. A história humana não é mais que a teofania da Trindade. E a culminância desta revelação trinitária se dá na era do Espírito. É na era do Espírito que todo o movimento da história se consuma. Só no tempo do Espírito é que Deus pode ser tudo em todas as
coisas46 . Esta era do Espírito, Joaquim pensa entrever já como imi-
45. DE LUBAC (op. cit. p. 585-751) procura mostrar que a exegese de Joaquim é
um abandono do “sensus spiritualis” e o surgimento da pretensão de uma exegese
literal, exata, “científica”. Para Joaquim, a exegese tinha se tornado uma questão de
conjecturas. O que tal método induziu de fantástico e visionário não vinha, pois,
do recurso ao “sensus spiritualis’, vale dizer, ao simbolismo alegórico e à interpretação moral e mística. A fantasia das interpretações de Joaquim vinham, paradoxalmente, do racionalismo de seu método, que se pretendia científico.
46. Cornélio Fabro ressalta, neste sentido, o vínculo entre esta concepção da história de Joaquim de Fiore e a concepção da história no idealismo transcendental de
166
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
nente ao tempo da Igreja. Neste sentido, a Igreja deverá passar por
uma transformação que a levará à perfeita espiritualização: deverá
surgir uma Igreja de todo evangélica, pobre, carismática. Joaquim,
no entanto, não deixa claro, até que ponto haverá lugar, nesta Igreja
do Espírito, para a instituição em geral e o papado em particular. É
fato, porém, que ele prevê esta era do Espírito como realidade intrahistórica, a se concretizar ainda no tempo que antecede a parousía.
Assim, a profecia de Joaquim roça o milenarismo, que, outrora, con-
Schelling e Hegel. Hegel, como transparece dos seus escritos da juventude, haure o
método dialético das leituras teológicas e místico-teosóficas, sobretudo a leitura de
Jakob Böhme, cujas raízes medievais são notórias. Já naqueles escritos da juventude, Hegel mostra um preferência pelos escritos de João: enquanto Pedro representava o Antigo Testamento (o reino do Pai) e Paulo, em antítese, o Novo Testamento
(o reino do Filho), João Evangelista representava a síntese: o reino do Espírito. A
concepção cristã segundo a qual a história não é outra coisa do que o desenvolvimento do reino de Deus, transforma-se na concepção idealista segundo a qual a
história não é que o desenvolvimento do reino do Espírito. A história é, na verdade, fenomenologia do Espírito: o processo pelo qual, deixando e fazendo aparecer
diferentes configurações provisórias e parciais de si mesmo, o Espírito vai, de grau
em grau, chegando ao conhecimento (conceito) de si mesmo. Assim, o Reino do
Pai é a Idéia ainda indeterminada, o Reino do Filho é a Idéia estranhada na finitude
da criação; o Reino do Espírito é a Idéia que retorna a si mesma. Hegel não cita
expressamente Joaquim de Fiore. Schelling, no entanto, sim. Na Philosophie der
Offenbarung (Filosofia da Revelação), Schelling toma o tríptico Pedro-Paulo-João
como imagem da Trindade na história. O Pai corresponde ao reino do passado; o
Filho ao reino do presente; o Espírito ao reino do futuro. Assim como o Antigo
Testamento foi dominado pelas figuras de Moisés-Elias-João Batista, assim também o Novo Testamento é dominado pelas figuras de Pedro-Paulo-João Evangelista.
Moisés e Pedro são figuras da Lei e da estabilidade da tradição, Elias e Paulo,
figuras da liberdade e do dinamismo do presente, João Batista e João Evangelista
são figuras da consumação. Schelling remete a Angelus Silesius: “Der Vater war
zuvor, der Sohn ist noch zur Zeit. Der Geist wird endlich seyn am Tag der
Herrlichkeit – O Pai era antes de tudo, o Filho é ainda voltado para o tempo. O
Espírito será, finalmente, no Dia da Glória” (Cf. FABRO, Cornélio. La Storiografia
nel Pensiero Cristiano, in: PADOVANI, Umberto Antonio; MOSCHETTI, Andrea
Mario (org.). Grande Antologia Filosofica, Vol. V: Il Pensiero Cristiano. Milano:
Marzorati, 1954, p. 359-360).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
167
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
tara com insignes representantes, como Irineu, Justino e Lactâncio.
Dentro desta atmosfera emerge, no século XIII, a figura de Francisco de Assis. Para os franciscanos das primeiras gerações, o emergir
desta figura histórica caracterizou-se como um verdadeiro evento, de
repercussões universais. Francisco fora identificado, por muitos, com
a figura de João Batista47 (João era o seu nome de Batismo) e com a
figura de Elias, o profeta ardente. Assim, no Prólogo da sua Legenda
Maior, São Boaventura saúda o aparecimento de Francisco com tons
escatológicos48 :
Nestes últimos dias, a graça de Deus nosso Salvador apareceu em
seu servo, Francisco, para todos os verdadeiros humildes e amigos
da santa Pobreza... Qual estrela d’alva a brilhar entre as nuvens,
guiou para a luz, com o clarão de sua vida e doutrina, os que
jaziam nas trevas e à sombra da morte. Como o arco-íris refulge
por entre as nuvens da glória, apresentando em si o sinal da aliança do Senhor, anunciou aos homens a paz e a salvação. Sendo
igualmente ele anjo de verdadeira paz, foi destinado por Deus,
segundo também à imagem e semelhança do Precursor, a preparar
no deserto o caminho da mais alta Pobreza e a pregar a penitência,
tanto pelo exemplo como pela palavra...49
Boaventura vê Francisco dotado pelo Céu de um “ministério
angélico”. Repleto do espírito da profecia, ele foi, como Elias, um
homem arrebatado pelo “carro de fogo” seráfico. Francisco apareceu
na história, vindo “no espírito e no poder de Elias”. Nele, pode-se
entrever, assim, aquele “anjo que sobe do nascente, carregando o selo
do Deus vivo”, aquele anjo que João vê, no Apocalipse, abrir o “sexto
47. Cf. CELANO, T. de. Segunda Vida (de São Francisco), Primeiro Livro, capítulo I – cf. FASSINI, Dorvalino F. (org.). Fontes Franciscanas. Santo André-SP: Ed.
“O Mensageiro de Santo Antônio”, 2004, p. 289-290.
48. Dante Alighieri coloca, lado a lado, no Paraíso da Divina Comédia, Joaquim de
Fiore e São Boaventura.
49. FASSINI, Dorvalino F. (org.). Fontes Franciscanas. p. 439-440.
168
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
selo” (Cf. Ap 6,12; 7,2). Boaventura faz uma síntese entre a hermenêutica de Agostinho e a de Joaquim de Fiore, nas suas conferências
parisienses a respeito dos seis dias da criação (Collationes in
Hexaemeron). Uma teoria dos tempos ou eras do mundo e da Igreja
aparece sobretudo nas Conferências XV e XVI. O tempo da Igreja
também segue seis idades. A sexta idade é a época do anjo que abre o
sexto selo. Este mesmo anjo que ele identificara, na Legenda Maior,
com Francisco de Assis.
Uma outra interpretação da história peculiar do espírito franciscano aparece no opúsculo intitulado Sacrum Commercium Sancti
Francisci cum Domina Paupertate (Sagrado Comércio de São Francisco com a Senhora Pobreza). Ali, a Pobreza se mostra como uma revelação que o homem perdera no paraíso, e que ele esquecera ao longo
de toda a história do Antigo Testamento. Tal revelação só se mostrou
novamente em Cristo Jesus. Os Apóstolos e os Mártires ainda conservaram viva a memória desta revelação. Mas, depois de algum tempo,
fez-se uma paz, uma paz que era mais grave do que a guerra. Trata-se
daquela paz em que os cristãos mesmos esquecem-se da Pobreza. Francisco aparece, então, na história, como aquele que re-desperta os cristãos para a singularidade deste mistério, que se mostra cheio de ternura na Encarnação e na Cruz de Jesus Cristo.
Pedro de João Olivi, por sua vez, na esteira da hermenêutica de
Joaquim de Fiori, da tradição agostiniano-boaventuriana, e da espiritualidade dos frades zelantes das primeiras gerações franciscanas, comenta o Apocalipse de modo a interpretar os sinais dos tempos em
que ele vivia. Assim, no seu Comentário ao Apocalipse, o Anjo do
sexto selo é, também para ele, como era para Boaventura, Francisco
de Assis:
Vi depois um outro anjo...: Este anjo é Francisco, renovador e máximo seguidor (depois de Cristo e sua Mãe) da vida e da regra evangélica que no sexto e no sétimo estado deve ser propagada e
engrandecida. Que subia do oriente: isto é, daquela vida que Cristo
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
169
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
nos trouxe, ele, sol do mundo, no seu nascimento, isto é, no seu
primeiro advento... Sobe do oriente, isto é, ao início do dia solar
da sexta e da sétima abertura e do terceiro estado geral do mundo... Ouvi de um homem espiritual, fidedigno, muito próximo a
frei Leão, confessor e companheiro do bem-aventurado Francisco,
algo de consoante a esta escritura que, no entanto, não afirmo,
nem sei, nem creio que deva ser afirmado; a saber, que ele, seja
através de palavras de frei Leão, seja através de uma revelação que
lhe foi feita, tinha sabido que Francisco, naquela pressão da tentação babilônica, na qual o seu estado e a sua Regra, como Cristo,
serão crucificados, ressuscitará glorioso, de tal modo que, como
na vida e nos estigmas da cruz ele foi singularmente assemelhado a
Cristo, assim o seja também na ressurreição... E tinha o selo do
Deus vivo: seja nos estigmas impressos a ele por Cristo, seja em
toda a vida interior e exterior, no estado da profissão, na concórdia
do tempo e do ofício singularmente assemelhado a Cristo...50
Francisco é o mensageiro de Cristo, que foi assinalado pelas marcas
da Cruz, trazendo no seu corpo o selo do Deus vivo. Ele é alter Christus,
isto é, discípulo que, no seguimento e na imitação de Cristo, assemelhou-se ao máximo ao Mestre Crucificado. Sua semelhança também aparece no fato de ter tido doze seguidores ao princípio. Ao analisar o número dos eleitos, que foram assinalados entre as tribos de Israel (cento e
quarenta e quatro mil), Olivi segue comentando:
Assim, o número é indicado com um número que deriva da multiplicação de doze mil por doze. Primeiro: para sugerir que a eleição daqueles que devem ser assinalados é proporcionada aos doze
apóstolos e às suas igrejas, aos doze patriarcas e às suas tribos. Segundo Joaquim, como a Sinagoga foi propagada pelos doze patriarcas e a Igreja dos gentios pelos doze apóstolos, assim a Igreja
final dos remanescentes judeus e pagãos deve ser propagada por
doze homens evangélicos. Também Francisco teve doze filhos e
companheiros, com os quais e nos quais fundou e iniciou a ordem
evangélica. Assim também São Bento, ao início, instituiu doze
abades dos doze mosteiros da sua ordem. Segundo: como os doze
50. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 123s.
170
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
pais daqueles que foram assinalados são como os doze ramos do
único tronco de Cristo, assim, proporcionalmente, cada um destes doze ramos tem doze raminhos, que deles partem; isso significa que, como o número dos pais é de maneira côngrua proporcional ao seu tronco, assim também o número dos assinalados é proporcional a cada um destes. Terceiro: para indicar a redondeza da
perfeição apostólica presente no colégio dos assinalados. A dúzia,
de fato, é o número apostólico e, segundo a aritmética, é número
redondo... A multiplicação da dúzia por uma dúzia indica a redondeza mais copiosa e a quadratura mais sólida. Ademais, o número que deriva tem em si a perfeição do quaternário e do
milenário. No quaternário está indicada a perfeita quadratura das
virtudes cardeais na unidade da fé... No milenário está indicada a
singular conjunção e a final consumação dos três preditos. O
milenário é, de fato, para nós, o extremo limite numérico para
além do qual não contamos nada se não com uma sua repetição51 .
Também ao comentar o capítulo X do Apocalipse, Pedro de João
Olivi identifica no anjo que tem na mão um pequeno livro aberto a
Francisco de Assis:
Alguns dizem que este anjo deve ser Cristo, porque só a ele compete
abrir o livro... Não negamos que seja ele o principal revelador do
livro, em particular enquanto é Deus e ilumina interiormente as
mentes; mas, todavia, dispôs sob si alguns espíritos e homens
angélicos, para iluminar, como seus ministros, os seres inferiores;
por isso, os sete homens que soam a trombeta devem ser interpretados como os homens angélicos e os doutores e também como os
espíritos angélicos que os regem, ainda que seja Cristo principalmente quem ensina com o som da sua trombeta; do mesmo modo
devemos entender a propósito do anjo com a face solar... É preciso
saber que o nosso santíssimo pai Francisco é, depois de Cristo e
sob Cristo, o primeiro, principal fundador, iniciador, modelo exemplar do sexto estado e da sua regra evangélica; assim, justamente
ele, depois de Cristo, é designado por primeiro com este anjo... O
seu rosto era como o sol porque na singular contemplação de Cristo
51. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 117s.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
171
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
e da sua vida evangélica não foi como a lua que desfalece, ou como
uma pequena estrela ou como a luz noturna, mas como o sol,
inflamado, iluminado pela luz do dia, e, portanto, iluminante e
inflamante... Teve nas mãos, isto é, em plena obra, possesso, poder, o livro do Evangelho de Cristo aberto, como mostra a regra
que observou e escreveu e o estado evangélico que instituiu...52
Olivi interpretou a Regra da Ordem dos Frades Menores à luz da
hermenêutica escatológica possibilitada por Agostinho e Boaventura,
por um lado, e por Joaquim de Fiore, por outro. Assim, no seu Comentário à Regra, ele escreve:
Os doze capítulos (da Regra) estão de acordo também com as seis
idades deste mundo e aos seis tempos da Igreja. Como no primeiro tempo a luz evangélica começou a ser difundida para sê-lo, depois, até o fim, assim também no primeiro capítulo da Regra. Como
no segundo tempo os mártires rejeitam a vida da carne pela vida
eterna, assim, no segundo capítulo a vida secular é rejeitada por
aquela regular. Como no terceiro tempo, sob Constantino, floresceu o culto eclesiástico, assim também no terceiro capítulo. Como
no quarto tempo os anacoretas abandonam todos, assim no quarto capítulo é totalmente abandonado o dinheiro, maldito pelo
apóstolo Pedro por causa de Simão Mago. Como no quinto tempo surgem monges dedicados ao trabalho manual, assim no quinto capítulo. No sexto tempo com Francisco entra a mendicância
de Cristo53 .
O livro da Regra franciscana assim, nos seis primeiros capítulos
recapitula e resume em si mesmo toda a história da Igreja. A vida
evangélica, descoberta por Francisco, subsume todos os aspectos principais das eras da história da Igreja e acrescenta algo de novo: a mendicância. Nos seis capítulos restantes, Olivi vê as disposições a respeito do governo da Igreja:
Nos últimos seis capítulos podes observar misticamente o governo
da Igreja de Deus. Como no início a Igreja foi purificada dos seus
52. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 135s.
53. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 86.
172
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE...
pecados pela paixão de Cristo e pela sua sacramental aplicação a
nós, acrescentada, porém, a satisfação penitencial dos mártires até
o tempo do papa Silvestre; e desde então na Igreja de Cristo foram
celebrados solenemente concílios gerais e depois provinciais, com
progressivo esclarecimento do sumo primado do pontífice romano e da sua sé apostólica; e depois começou a brilhar sempre mais
a casta clausura dos enclausurados; e, por fim, à plena abertura do
sexto selo, esperamos a conversão das nações infiéis e também dos
judeus, com o repetir-se de solenes martírios; e então as doze tribos de Israel serão assinaladas com o tau do anjo do sexto selo e
uma turba inumerável de nações será conduzida junto ao trono do
Cordeiro, que é, pois, a sua eclesiástica e apostólica sé: assim, ordenadamente, se sucederão os últimos capítulos da Regra, como
podes facilmente entender54 .
Pedro de João Olivi, no entanto, no seu Comentário ao Apocalipse, prevê tribulações e aflições para aqueles que seguem a regra
evangélica de Francisco:
... É preciso saber que no momento da solene contestação e condenação da vida evangélica e da Regra, que será feita no tempo do
Anticristo místico e será mais amplamente consumada no tempo
do Anticristo próprio, descerão espiritualmente Cristo, o seu servo Francisco, o angélico grupo dos seus discípulos, contra todos
os erros e as malícias do mundo, contra todo o exército dos demônios e dos homens malvados, constante, forte, impávido como o
leão, seja para atacar seja para defender-se...55
Acontecerá, então, o tempo da inteligência plena das Escrituras:
Ele será envolvido como por uma nuvem pela ciência das Escrituras... Ele terá a inteligência do livro das Escrituras não só para si,
mas também com o pleno poder de transmiti-la aos outros e de
ensiná-la. De fato, nos primeiros cinco estados da Igreja não foi
concedido aos santos, por mais iluminados que fossem, de abrir
aqueles segredos deste livro que só no sexto e no sétimo estado
hão de ser revelados mais abertamente, como nem mesmo nas
54. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 87.
55. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 137.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
173
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
cinco primeiras idades do Antigo Testamento foi concedido aos
profetas de abrir claramente os segredos de Cristo e do Novo Testamento revelados e por revelar na sexta idade do mundo56 .
Assim, as idades do mundo se tornam idades da revelação do
mistério de Cristo e dos segredos do Reino de Deus. O franciscanismo dos séculos XIII e XIV leu o evento Francisco aos olhos desta
perspectiva escatológica-apocalíptica. Nesta leitura e hermenêutica da
história, Olivi e os espirituais (Ubertino de Casale, Ângelo Clareno)
sonharam com a renovação da Igreja e com a evangelização de todo o
mundo, com o reino do Espírito e a era da paz, com o retorno ao
Evangelho eterno, com a vitória sobre as tribulações e as aflições da
história, mais precisamente, da história eclesiástica e da Ordem franciscana, e, enfim, com o triunfo sobre o Anticristo. Eles desejaram
“ter o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar” e, assim, na
paciência e na perseverança, ganhar as suas vidas para o reino eterno
de Deus.
56. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 137s.
174
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007
COMENTÁRIOS
175
176
ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO
Fr. Hermógenes Harada
([email protected])
A seguir, tentemos tecer algumas considerações acerca do livre
arbítrio. Para isso usemos os textos de João Pedro Olivi, acima traduzidos. Os textos de Olivi só servem como pretexto, para amontoar
arrazoados fantasiosos que no fundo têm uma pequena expectativa,
de algum modo, por mais provisória e imperfeita que a tentativa seja,
de “cercar” a questão da compreensão medieval da liberdade.
O termo acerca de do título, diz junto de, na proximidade, na
cercania de. Quem quer se aproximar assim, acerca de, não está dentro, nem por dentro, nem vem a partir de dentro, mas está ou vem de
fora. De fora, se trazem muitas coisas que se não afinam com a coisa
ela mesma acerca da qual a gente gostaria de se aproximar. O livre
arbítrio, aqui no texto de Olivi, é tratado teologicamente. Tem, portanto, como o tom fundamental, a Fé cristã. No “positivismo” da
facticidade, cujo vigor é o sopro vital da Fé, aproximar-se já pode ser
uma abordagem errônea e errante. Talvez na coisa da Fé, ou se está
dentro, de uma vez, de todo, para sempre, ou toda e qualquer aproximação, sempre guarda a distância fatal que nenhuma aproximação
assíntota infinitesimal consegue percorrer. Aqui o termo infinitesimal
camufla um abismo.
O que significa então a tentativa e tentação de aproximação de
um texto que nasceu e cresceu e se consumou da e na Fé e que usualmente recebe a etiqueta de cristão, dentro e a partir de arrazoados,
aqui pretensamente provenientes da Filosofia? Talvez o único sentido
que os seguintes arrazoados filosóficos podem ter é o de os arrazoados
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007
177
FR. HERMÓGENES HARADA
se espatifarem de encontro ao paredão irredutível da coisa ela mesma
da Fé, e se esvairem na possível impossibilidade de um não saber,
cujo conteúdo, se é que há ali um conteúdo, é apenas carência necessitada, quem sabe, de outro hálito.
Consideração I
Em resumo simplificado, o que diz Olivi no seu texto mencionado seria mais ou menos o seguinte: O livre arbítrio pertence à parte
superior da nossa alma, e é do homem hábito essencial. Como hábito
essencial não é acidental e por isso não é separável da alma; alma e o
livre arbítrio não são duas coisas, mas é um ente só, é co-participação, copertença essencial, e como tal domina como faculdade livre sobre toda a
alma. Assim, o livre arbítrio, dito numa “palavra” é vontade racional.
Enquanto racional implica substancialmente inteligência, memória e
vontade: é a liberdade do ânimo racional, a plena soltura do animal
racional.
Para nós, hodiernos, essa explicação de Olivi está enquadrada
numa cerca fixada mais ou menos na seguinte padronização: O homem é um dos entes criados por um ente supremo, chamado Deus, o
Criador; o homem é um ente criado, todo típico entre outros entes
criados, de diferentes tipos. O ente homem se caracteriza, na sua
tipicidade, como animal racional. Além do homem, há o animal (o
bruto) que se caracteriza como ente, cuja entidade é do tipo vivente
sensível. Outro tipo de criatura é o vegetal, cuja entidade é do tipo
substância viva. E por fim, no degrau o mais baixo dessa escala descendente da entidade do ente temos a coisa física, o corpo, cuja entidade é matéria. Na escala ascendente, se admitirmos “acima” do homem entes criados, cuja entidade é do tipo invisível, digamos, espiritual, temos os espíritos ou anjos e o próprio Criador, Deus, o Espírito
por excelência, o mais perfeito de todos os entes, o Ente Supremo.
178
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007
ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO
Temos assim a tabela dos entes na classificação: corpo material; vegetal; animal; homem; anjo ou espírito; Deus.
O homem é um dos entes criados, todo típico entre todos os
outros entes criados, de diferentes tipos. Por quê? Porque na acima
mencionada tabela de escalação dos entes, ele está no meio, participando, para cima da entidade dos entes invisíveis espirituais (anjos,
Deus) e para baixo dos entes visíveis materiais (animal, vegetal, corpo-material). Assim, na sua parte superior a entidade do homem é
espírito; na sua parte inferior a entidade do homem é matéria. O homem na sua entidade é um ente que participa do espírito e do corpo,
é “com-posto” de corpo e alma e espírito. Ou, dito de outro modo, o
homem, i.é, a alma na sua parte superior é espírito, na sua parte inferior é corpo, mas é unidade acorde.
Diante desse esquema, ficamos hodiernos des-confiados. Que haja
homem, animal, vegetal, corpo-físico-material pode ser admitido. Mas
donde vêm os dados Criador, criação, criaturas, anjos, espíritos, Ente
Supremo, Deus? E a “com-posição” do homem corpo-alma-espírito?
Todos esses dados não empíricos, não visíveis, meta-físicos, são realmente dados, ocorrências? Ou não se trata aqui de uma crença, de
conjunto de “dados” subjetivos da mundividência cristã, e quiçá,
medieval? E de imediato, como que em funcionando, nos
“conscientizamos” que ao lermos os textos medievais, identificandoos como produtos de uma crença ou mundividência do passado, operamos, na hodierna pré-compreensão da compreensão do que seja ser
e compreender dentro do esquema da Teoria do Conhecimento.
Teoria do conhecimento pode ser entendida como matéria disciplinar do ensino escolar da Filosofia. Como tal é uma matéria ordenada didaticamente ao lado de outras matérias como ontologia,
metafísica I, Metafísica II, História da Filosofia etc. Mas pode também ser compreendida como “metafísica geral”, ou melhor, “ontologia”
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007
179
FR. HERMÓGENES HARADA
da “metafísica moderna da subjetividade. Aqui o homem se nomeia
Sujeito contraposto ao mundo, que então se chama Objeto. Mas o decisivo na compreensão da Teoria do Conhecimento como “ontologia da
metafísica moderna da subjetividade” é não confundir o termo sujeito
com substância homem e o termo objeto com substância coisa, mantendo na compreensão do que seja a subjetividade (sujeito, objeto)
um resto da “substancialidade-coisa”. E isso, na acepção do termo
substância próprio da ontologia medieval já num nível de compreensão bastante defasada e decadente, que não faz jus à limpidez e ao
rigor da especulação medieval p. ex. dos textos teológicos e místicos
dos medievais. Se, porém, limparmos da compreensão do Sujeito,
Objeto, Subjetividade e Objetividade o resquício dessa pré-compreensão coisal da ontologia da substância, nos livramos da perspectiva
ôntico-empírica na impostação da questão e percebemos que aqui,
nos termos Sujeito, subjetivo, Objeto, objetivo, não se trata de termos
ônticos ou empíricos, mas sim de termos ontológicos, ou melhor, transcendentais. Não se trata do problema do realismo e/ou idealismo, mas
sim da ontologia da subjetividade ou da objetividade e se refere não aos
entes intra-mundanos do tipo substância-coisa homem nem aos entes intramundanos do tipo substância-coisa, sem o característico da
“humanidade” (vivente sensível, corpo vivente, corpo físico-material),
mas à colocação do novo “fundamento” da totalidade do ente no seu
todo, atingindo o que a antiga metafísica denominou de regiões
tripartidas do ente, Deus, Homem e Universo, e o sentido universal do
ser que está na raiz de todas essas regiões.
Se assim nos “postamos” na situação própria da mudança epocal
do lugar ontológico da impostação da questão, possamos talvez desconfiar que a nossa colocação moderna nos faz ver a possibilidade de
considerar a assim chamada “ontologia” da substância (a metafísica
medieval) como uma das modalidades concretas de impostação transcendental, i.é, “entendendo” todos os entes na sua totalidade, no ponto
de enraizamento e de salto do sentido da entidade de seus entes.
180
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007
ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO
Consideração II
Examinemos na perspectiva transcendental como que destacando alguns pontos das afirmações e dos argumentos de Olivi acerca do
livre arbítrio.
1. O livre arbítrio se chama faculdade livre e também hábito essencial. É também chamado de potência e também de ato.
Todos esses termos, faculdade, hábito, potência, ato devem ser
entendidos essencialmente, i.é, como ser do homem, como sua natureza, i.é, como seu estado nascivo, como caracterizando o próprio do
homem. Dito com outras palavras, aqui devemos nos livrar da representação do homem como se ele fosse um algo, uma coisa em si,
como este ou aquele “sujeito” “individual” que tem um algo chamado faculdade, hábito, potência ou ato. É, pois, necessário suspender o
efeito objetivante da “substancialização” do ser do homem como coisa, como algo, e o deixar ser na sua dinâmica. Por isso faculdade não é
aqui uma propriedade, uma qualidade, um acessório do homem, mas
essência. O hábito1 nesse sentido essencial não é uma qualidade adquirida ou inata acrescentada ao homem, mas sim o próprio homem.
Próprio, entendido não como “substância-coisa”, mas como a dinâmica do ser, como presença, vigência, como potência, ato, como a
força, o poder do perfazer-se de si mesmo em sendo e se firmando em si.
Essa dinâmica é o sentido mais próprio do termo substância que não
conota primeiramente um algo, um quê fixo em si, uma coisa, mas
antes o movimento e a dinâmica bem assentada a partir de si e em si,
como uma vigência, vigor pleno da estância de si.
1. Por isso, para indicar essa compreensão des-substancializada dos termos como
hábito, faculdade, potência, ato, poder-se-ia traduzir hábito (habere) como atinência
(de tenere).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007
181
FR. HERMÓGENES HARADA
2. O livre arbítrio, no que toca ao que diz respeito a ele ser faculdade
livre e ter domínio sobre toda a alma, é essencialmente vontade racional.
Encurtando essa “definição” podemos definir a essência do homem como animal2 racional. Em si aqui não significa insistência na
estática e fixação no algo-quê, mas sim a densidade da plenitude da
dinâmica, da potência da auto-identidade (a se).
Livre significa que ela é movida a partir de e por si,3 e somente ela
não pode ser compelida, e somente ela tem domínio sobre outras forças, e
daí quando quero entendo, quando quero, ando, embora não tão perfeitamente como o seria no estado da inocência; e somente na vontade racional há o poder para os opostos seguindo a si, a saber, para o não querer
e para o querer no e para o mesmo instante; nas outras potencias, porém,
a não ser somente através dela, i.é, as outras potencias podem ser movidas
para os opostos somente por ela.
Mas como se atem, como se tem a vontade a si mesma em referência ao racional, à razão?
3. Diz Olivi: Mas, a ordem natural da vontade para com o intelecto é
assim que pressupõe sempre em todo o seu ato o ato do intelecto, e isso de tal
modo que ela não pode querer a não ser o conhecido; por isso, o livre arbítrio,
em sendo ele essencialmente vontade, inclui nas suas operações a ordenação
para o intelecto, para o intelecto enquanto torna o ente presente, mas também de quando em vez até mesmo enquanto confere e discerne e julga, cujos
2. Animal aqui não significa bruto, bicho, o vivente sensível, mas ânimo, vigência de
ser, coragem de ser ou melhor vontade, “ganas” de ser.
3. Poder-se-ia talvez recordar que os medievais caracterizavam o modo de ser de
Deus como ens a se. E o modo de ser das criaturas como ens ab alio. Aqui na
vontade racional surge um modo de ser (movido a partir de si e por si), designado de
liberdade do livre arbítrio que é “a imagem e semelhança de Deus” (Nenhuma criatura
pode fazê-la declinar. Nem Deus a pode coagir enquanto ela permanece vontade. Disso
tudo se torna manifesto que ela transcende todo o criado.)
182
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007
ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO
atos, também os particulares, a vontade domina, já que esses atos são feitos
livremente e porque depois da coleta e do juízo, a liberdade de consentir ou
não consentir permanece na vontade. E assim, a liberdade do arbítrio é,
quanto à sua raiz e consistência, de todo, a própria vontade. A sua operação
atual, porém, como foi dito, tem ordenação para o intelecto e de quando em
vez o inclui a modo concomitante e isto enquanto o ato é livre com deliberação, animadversão e juízo da razão.
a) Razão aqui pouco tem a ver com razão do racionalismo, nada
a ver com razão na acepção padronizada usual das assim chamadas
três faculdades da alma: vontade, razão e sentimento. Mas tem muito
a ver com a definição grega do homem como tò zwon lógon échon: o
vivente, ou melhor, o ânimo atinente ao logos.
Na concepção medieval da essência do homem como animal
rationale, temos os termos ratio, intellectus, spiritus, mens.4 Esses termos indicam o mesmo em diferentes nuances, indicam a intensidade
de ser. Como no caso dos termos acima mencionados faculdade, hábito, potência, ato dizem a essência, o ser do homem, o seu estado nascivo
essencial.
O homem no seu ser é razão, intelecto, espírito, mente. Não é
que o homem tem razão, intelecto, espírito, mente. Ele é razão, intelecto, espírito, mente. A densidade de ser que constitui o homem, o
nível em que o ente-homem está na escalação da densidade de ser se
chama razão, intelecto, espírito, mente que dizem o mesmo em diferentes nuances.
Assim, como já foi dito, razão, racional, intelecto, intelectual,
mente, mental indicam grau de intensidade e excelência do ser enquanto homem, enquanto o homem, imagem e semelhança de Deus,
4. Cf. Mestre ECKHART, Sermões alemães. vol. I, 2006, Glossário 11, 12, pp.
339-343.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007
183
FR. HERMÓGENES HARADA
participa da sua “aseidade”, participação essa que aparece na vontade
livre, no livre arbítrio, vontade essa, racional.
b) Mas por que então Olivi diz: a ordem natural da vontade para
com o intelecto é assim que pressupõe sempre em todo o seu ato o ato do
intelecto, e isso de tal modo que ela não pode querer a não ser o conhecido? Não há aqui uma diferença? Sim uma dependência da vontade do
intelecto?
Usualmente distinguimos no homem corpo, alma e espírito. No
corpo distinguimos a parte físico-material e parte anímico-sensitiva.
Muitos chamam essa parte anímico-sensitiva, de alma. No espírito
distinguimos intelecto, vontade e memória (ou em modo variante
intelecto, vontade e sentimento etc.). Distinguimos diversos modos
de distinguir: real (res), formal (forma) e mental (mens = ens rationis).
Distinção real é entre coisa e coisa. Formal é entre forma e forma
(entre conceito e conceito, imagem e imagem, entre idéia e idéia,
representação e representação, sempre de alguma forma com fundamento na coisa). E mental é puramente distinção fabricada pela mente, sem fundamento na coisa. Em vez de falar da composição do homem em corpo, alma e espírito, Olivi fala da parte superior da nossa
alma, constituída de inteligência, memória e vontade. É a parte que no
nosso dizer usual denominamos espírito. A outra parte é a parte inferior da nossa alma e se refere ao que no nosso dizer usual denominamos de corpo (parte físico-material e anímico-sensitiva). Olivi não
fala propriamente de composição de três coisas, nem de encaixe de
uma coisa dentro da outra, mas do todo ou da totalidade com suas
partes. E em vez de todo ou de totalidade diz alma. Assim a totalidade homem é denominada aqui de alma (anima e animus), cujo modo
de ser é vitalidade cordial, o ânimo. Em vez de parte superior e parte
inferior diz também razão superior e razão inferior. E diz então: Devese dizer que a razão inferior e a razão superior não se distinguem realmente e formalmente, já que num homem não há senão uma razão. São
184
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007
ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO
apenas diversas atinências5 ou ofícios6 da mesma razão. A nossa mente,
pois, se chama razão superior, na medida em que, se volta às coisas eternas e superiores, chama-se, porém, inferior enquanto se volta às coisas
inferiores e temporais. Ou por termo razão superior se designa a parte
suprema de toda a nossa mente que possui o domínio pleno e perfeito
sobre outras forças; por termo razão inferior se designa o ínfimo da razão,
pelo qual olho de vez em quando sem pleno consenso as coisas inferiores e
o que é tocado a partir da sensualidade imediata.
Aqui, entre as partes ou razões superior e inferior da alma (leia-se:
do todo do ser próprio do homem), não há distinção nem real, nem
formal. Não se trata, pois, de composição de coisa e coisa, nem de
referência de conceito e conceito, de imagem e imagem, de representação e representação, mas sim de que distinção? Mental? De ens
rationis (do ente da razão), distinção subjetiva sem nenhum apoio e
fundamento na realidade objetiva? Aqui, de imediato, percebemos
que nos desviamos do “assunto”, escorregamos para dentro da pressuposição do que seja real, formal e mental de um sistema de explicação que não é afim à maneira de ver e ser do pensamento medieval.
Pois a afirmação de Olivi que aqui não há nem distinção real nem
formal nos leva, não ao vazio de não diferenciação, de puro achatamento abstrato-lógico mas pelo contrário justamente à estruturação
de uma precisa e rica diferenciação numa bem ordenada paisagem de
uma totalidade sui generis. Nessa paisagem, em diferentes estruturações
sempre de novo e sempre de modo novo se dá a percussão e repercussão do mesmo a modo de uma toada syn-fônica solta, livre e gratuita.
c) Como é, pois, a dinâmica dessa estruturação? A percussão do toque principal é a liberdade da vontade. Aqui reina o apriori da absoluta
5. Habitudines. Cf. Nota 3.
6. Officium, officina, opifex se referem ao opus facere, a saber, um modo de trabalhar
todo próprio que é fazer uma obra. É o modo de ser da existência artesanal e
artífice.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007
185
FR. HERMÓGENES HARADA
soltura da gratuidade, da liberdade, de tal modo que tudo aqui é a partir
de si, por e para si: participação na jovialidade e cordialidade da aseidade
de Deus (somente ela é movida a partir de e por si, e somente ela não pode ser
compelida, e somente ela tem domínio sobre outras forças). Esse “ser movida
a partir de e por si” da vontade não necessita de nada a não ser de si
mesmo, não necessita de nenhuma outra causa fora de si, não é outra
coisa do que fonte, princípio de si. Assim, a vontade é simultaneamente
toda ela absoluta ação e absoluta recepção da doação de si. Nessa liberdade de doação ela segue continuamente, sempre de novo a si mesma. Mas
então o que significa essa ordenação da vontade ao intelecto enquanto
este torna o ente presente, enquanto lhe apresenta o objeto, pois segundo
Olivi a vontade não pode querer a não ser o conhecido? Significa a recepção da vontade da sua própria ação doadora, o concomitante se acolher
na ab-soluta ação de se dar; significa a realização da possibilidade de ser,
cada vez nova e de novo como grata, i. é, gratuita e humilde acolhida de
si. O que se denomina intelecto não é outra coisa do que o momento
acolhedor da liberdade da vontade da doação livre de si: é o ente, o em
sendo da possibilidade de ser que denominamos de bem. Nesse sentido a
vontade não pode querer a não ser co-nascendo a si, conhecendo a si, se
co-nascendo. O ser do homem segundo o pensamento medieval é essa
recepção ab-soluta da gratuidade, i.é, da liberdade da vontade que é designada pelos termos ratio, intellectus, spiritus e mens, no alemão se diz
Vernunft (de vernhemen), portanto o concomitante da vontade, a vontade racional. Esse momento receptivo, o intelecto enquanto apresenta o
ente, é o que os medievais denominavam de simples apreensão. E é na
simples apreensão que se recebe a espécie. Espécie se “compõe” de gênero
e diferença específica e determina a definição de um ente. O que é definido pela definição de um ente se chama essência.7 Aqui gênero (genus) se
7 Aqui espécie e gênero não se referem à classificação dos entes usual nas ciências e
no nosso saber cotidiano, mas ao que constitui a estruturação essencial do ente,
explicitada no que denominamos de árvore porfiriana.
186
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007
ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO
refere à geração, ao nascimento, ao gênesis; espécie (species), à beleza, ao
encanto do brilho do rosto, ao esplendor. Gênero é a luz como gênesis,
como o primeiro ato, espécie é iluminação como esplendor, como segundo ato8 . O racional da vontade racional, i.é, o ânimo próprio do ser do
homem dito em suas variações do mesmo com os termos razão, intelecto,
espírito e mente, é a aberta, a clareira de acolhida. É a recepção grata precisa
e fiel do encanto, da beleza da face que se desvela como ente na doação de si
a partir e no médium do abismo insondável e abissal da possibilidade de ser,
como a gênese da luz que ilumina. Assim o que é na sua essência intelecto
(Vernunft), a saber, homem e anjos, é pura recepção da espécie. Mas
assim como iluminação é concomitante à luz, o intelecto é concomitante
à vontade na dinâmica da vontade racional.
De tudo isso que até agora dissemos, podemos talvez concluir
que o próprio do intelecto é recepção (vernehmen, Vernunft), ou melhor, o intelecto como o ser do homem, como sua essência age como
recepção, que talvez possa ser circunscrita como: deixar ser o ser do
ente, o ser no ente e o ente no ser. Assim o próprio do intelecto (razão,
intelecto, espírito, mente), a simples apreensão, o “perceber ou intuir
simples e imediato” não é outra coisa do que deixar ser o ser do ente, o
ser no ente e o ente no ser. Como tal o intelecto é afim ao mesmo
modo de ser da vontade, e por isso é vontade racional.
8. Quanto ao segundo item <a saber, a eficácia da quiddidade> o que ela pode, sabendo-se que toda forma é ato puro e primeiro, que é faculdade para agir, como p. ex.,
dizemos que a luz é o primeiro ato, a iluminação, segundo?
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007
187
188
FAZER A VONTADE DE DEUS E
O BEATO FREI EGÍDIO DE ASSIS
Fr. Hermógenes Harada
([email protected])
Frei Egídio de Assis é um irmão menor muito agraciado. Por isso
tudo que ele é, faz e diz é engraçado. A sua graça está no tom em que faz
soar o real do que seja espiritual numa toada toda própria a recordar o
cheiro e o sabor da terra dos homens. E tem gente dizendo que o realismo aristotélico na Filosofia é engraçado como a graça dos Ditos de frei
Egídio1 ...Especulemos à mão de alguns ditos de Frei Egídio como soa
engraçado o slogan do cristianismo que atormenta a muitos fieis, seguidores de Cristo, a saber, os cristãos: Fazer em tudo a vontade de Deus.
Fazer:
Uma vez, numa praça de Perúgia, ensinou um pregador a dizer:
“Blá, blá, blá, muito falo, pouco faço!”(...)
1.Dicta beati Aegidii Assisiensis, sec. Códices mss. emendata et denuo edita a PP.
Collegii S. Bonaventrurae, editio secunda, Ad Claras Aquas, Quaracchi-Firenze, ex
typographia Collegii S.Bonaventurae, 1939. Os pensamentos de frei Egídio de
Assis foram nos transmitidos através de anotações dos seus discípulos sob o título
Os Ditos do Beato Egídio de Assis. Os ditos utilizados nesse “comentário” foram
tirados da edição latina de Quaracchi-Firenze e traduzidos de modo literariamente
pouco “adequado”, apenas para o nosso uso.
Os Ditos em tradução portuguesa melhor se encontram em: São Francisco de Assis,
Escritos e bioografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testamentos do
primeiro século franciscano. nona edição, Petrópolis: Editora Vozes e FFB, 2000;
em: Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Editora Vozes e FFB, 2004; e em:
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007
189
FR. HERMÓGENES HARADA
Egídio, ao ouvir de um patrão, dono de uma vinha, junto da qual
morava, o grito contra os operários da vinha: “Façam <o trabalho>!”
saiu clamando da cela no fervor do espírito:”Irmãos, ouçam a palavra, a
palavra que deve ser: façam, façam, não falem!” 2
Fazer aqui significa operar, i.é, fazer obra. O fruto do trabalho
desse modo típico de fazer é obra (opus, -eris); quem assim trabalha é
operário (opifex, -icis); o lugar e o modo de assim trabalhar se chamam oficina (officina, -ae); e o encargo, o dever: ofício (officium, -i).
O horizonte, a partir e dentro do qual se zela (studere, studium) o
fazer, o trabalho, os afazeres, as preocupações, as responsabilidades,
êxito e fracasso, alegria e dor, realizações e frustrações, em suma o
empenho e desempenho da vida, devotada à perfazer-se no sentido do
ser no seguimento de Cristo em suas inúmeras manifestações é o modo
de ser do fazer e se perfazer da existência caracterizada como a existência
artesanal. A existência artesanal do homem medieval estava por sua vez
inserida no ser e modo de ser do Ente Supremo por excelência, a cujo
oficio se nomeava com o termo Criador, a cuja ação com o termo criar do
nada, e cuja obra com o termo Criação. A essência desse Ente Supremo
por excelência que era tout court a plenitude do ser se chamava Deus, Pai,
Criador, Senhor do Céu e Terra. Senhoria desse Senhor (dominus, -i)
nada tinha a ver com dominação e domínio do “patrão”, do “caudilho”,
2. Cf. pp. 91-92; podemos cair na tentação de entender nesse Dito o não falar
como proibição de falar ou negação do falar. Se assim entendermos o Dito, entendemos o fazer como uma possibilidade de ser ao lado de outra possibilidade de ser
chamada falar. O engraçado do Dito é de nos mostrar que o fazer nessa acepção
medieval deve ser entendido de modo “transcendental”, de tal modo que atinge
tanto o falar como não falar. Tanto o falar como o não falar devem ser feitos. Nesse
sentido o emudecer é diferente totalmente do silenciar. Assim, diz frei Egídio: Eu
não considero o saber silenciar bem menor virtude do que saber falar bem; e vejo que o
homem deveria ter o pescoço da cegonha, para que a palavra atravesse muitos nós, antes
de sair da boca (Cf. 59).
190
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007
FAZER A VONTADE DE DEUS...
mas tudo a ver com vigência e presença de quem cuida da casa (domus,
-us = domicílio, habitação, casa, lar): o ser do pai (e da mãe) de família.
Criação, criatura, criar não era produzir, produto de uma causação, mas
sim gerar a obra elaborada com ternura e vigor, com cuidado e desvelo de
progenitor (a), portanto cria, fruto, filho (a): Criação era, pois, Filiação,
ser criatura, ser filho (a). Fazer nesse sentido era participar do modo de
ser e trabalhar do Deus, e colaborar na grande obra da Criação (leiase Filiação).
Desse horizonte, provinham varias dicas de como se deve fazer o
trabalho artesanal da existência cristã, i.é, ser filho (a) de Deus no ser
e no agir, em mim e nos outros, ser operário (a) de um novo céu e
uma nova terra, a partir de e no médium da vontade de Deus.
Embora haja inúmeras dicas de como fazer esse fazer a obra a modo
da existência artesanal criativa em quase todos os capítulos dos Ditos
de frei Egídio, o capítulo VII, intitulado De santa solicitude e vigilância do coração nos mostra e tematiza em variegadas dicas a estruturação desse modo de ser do fazer, chamado operar.
Um dos momentos mais interessantes desse fazer é o fato de esse
fazer ser um perfazer a obra, e ao mesmo tempo isso de perfazer a
obra equivale a se perfazer de quem faz. Com outras palavras, aqui
todo o fazer não se perde e se esvai no objeto ou no objetivo, mas
redunda, retorna a quem faz enriquecendo-o, vitalizando-o, realizando-o no seu ser. Esse modo de agir reduplicativo que retorna ao autor,
fazendo-o crescer, aumentar-se, se consumar se chama hábito (do verbo
habere, ter) que talvez se possa traduzir como atinência. Essa atinência,
esse se ter, se perfazer, esse tornar-se responsável, ou melhor, ter que
ser, se chamava virtude (virtus de vir, -i = varão, o modo de ser do
varonil, da coragem de ser, em se assumir, de se ter). Por isso, Os
Ditos é tratado de virtudes.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007
191
FR. HERMÓGENES HARADA
Esse modo de ser do ter-que-ser, da responsabilidade de ser aparece no seguinte dito: Se todo o mundo fosse cheio de homens até às nuvens e somente um devesse ser salvo, cada qual, no enquanto, deveria
seguir a sua graça, para que possa ser aquele um.3
Esse modo de ser e agir chamado fazer se denominava em grego
scholé que foi reproduzido em latim por schola, donde vem a palavra
portuguesa escola. Scholé se dizia em latim otium, -i que aqui originariamente não significava o ócio no sentido de dolce far niente mas um
modo de trabalho de quem era cidadão livre, não escravo, contrário
de negotium, -i, o negócio, o nec– ou non-otium, o não-ócio que era
trabalho escravo, mais tarde trabalho assalariado, trabalho não gratuito. Esse modo de ser do trabalho livre, assumido por ele mesmo,
sem pagamento, mas cordial e criativamente feito livremente com grande
zelo e aplicação é a dinâmica da criatividade do que mais tarde se chamou de profissão livre dos profissionais livres. Com outras palavras fazer
no sentido do pensamento de Frei Egídio é ação de um labutar cheio
de diligência e solicitude feita, per-feita no inciar, crescer e consumar-se
de um perfazer-se do homem na sua obra. Frei Egídio chama tal fazer
de bem fazer, de bem gerir. Assim, disse frei Egídio: Não é realizado
(beatus)4 o homem, embora tenha vontade boa, se ele não se empenha em
segui-la com obras boas (em exercitando-se a modo de obras bem feitas). Pois, Deus dá a sua graça ao homem, para que ele a siga. (...). Uma
vez alguém que parecia vagabundo disse a frei Egídio:”Frei Egídio faz
me consolação”. Respondeu frei Egídio: “Empenha-te em bem fazer (gerir) e terás a consolação”5 (...) Então disse-lhe um certo frade: “Talvez
3. Cf. p. 117.
4. Beatus, bem-aventurado se traduz como feliz. Trata-se de alguém que se aventurou na vida, atravessou as vicissitudes da viagem, e chegou, mesmo que seja estropiado, à sua meta final, e recebeu o selo de qualidade, foi sancionado (santo) como
realizado.
5. Cf. p. 27.
192
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007
FAZER A VONTADE DE DEUS...
morramos antes de conhecer o nosso bem e experimentar algum bem”.
Respondeu frei Egídio: “Os curtidores de couro conhecem o couro; os sapateiros o calçado; os ferreiros o ferro e é assim com outros artesões; como
pode, porém, um homem saber de uma profissão, na qual jamais se empenhou? Crês tu que os grandes senhores dão grandes dons aos homens
tolos e insanos? Não dão” 6.
Vontade:
A essência da vontade no pensamento medieval se chama livre
arbítrio ou liberdade da vontade. Vontade se refere ao homem enquanto
espírito; é o que se chama parte superior da alma. Essa colocação está
expressa na expressão: vontade racional. Alma em latim é anima e está
na palavra animal que não significa bicho, bruto irracional, mas ânimo, sopro, i.é, respiração, espírito. Aqui vontade não é uma veleidade, um desejo, um ímpeto irracional, cobiça, “ganas” no sentido de
ganância, eflúvio, vivência, explosão de sentimento, nem acribia cega
de um intenso “zelo” a modo de fanatismo fundamentalista, não é a
violência opaca de uma idéia fixa, a tenacidade voluntarista do
“bitolamento”. Pois, vontade é pura liberdade, soltura total do ser livre
e clarividente, onde tudo nela é a partir de si, por e para si, plena coincidência de identidade do ser consigo mesma, é a aberta pré-sente. A linguagem medieval designava a liberdade, assim ab-soluta na sua dinâmica, com a expressão a se (a partir de si, por e para si) e a contrapunha às criaturas com a expressão ab alio, que significava do outro,
dependente e vindo do outro. Propriamente o a se só se atribuía a Deus,
mas a vontade humana enquanto imagem e semelhança do Deus
Criador, portanto enquanto livre participava dessa “aseidade”. Por
6. Cf. p. 28.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007
193
FR. HERMÓGENES HARADA
isso quando lemos nos Ditos em latim a dica: Non est homo beatus, si
bonam habeat voluntatem, nisi bonis operibus studeat eam sequi (Não
é realizado (beatus) o homem, embora tenha vontade boa, se ele não
se empenha em segui-la com obras boas), se nos descuidamos, entendemos o dito erroneamente, como se ele estivesse dizendo: boa vontade não basta, é necessário ação, a vontade deve seguir a ação ou deve dela
seguir uma ação.
Frei Egídio, no entanto, não diz que a boa vontade não basta.
Pelo contrário, a boa vontade como imagem e semelhança de Deus é
tudo, de modo que o homem deve segui-la. Segui-la de que modo?
Pelas obras boas, i.é, a modo do bem fazer, no exercício de boas obras.
Bom, boa aqui significa perfeito (a), o que se perfez, se consumou e
chegou ao ponto de plenitude. Trata-se, pois, de fazer a vontade, fazer da vontade obra perfeita, trabalhar a liberdade do ser, elaborar
bem de modo acabado a vontade, a ponto de ela ser do mesmo modo
da vontade de Deus. Isto é: em tudo fazer a vontade de Deus.
Por conseguinte: fazer a vontade de Deus não quer dizer em primeiro lugar propriamente executar a ordem que expressa a determinação da
vontade de Deus. Antes significa: ter ou ser o mesmo modo de ser da liberdade de Deus. E pertence a essa liberdade: compreender, querer e fazer. E
esses momentos de uma única realidade da plenitude de ser na sua suprema excelência se chama amar. Por isso em tudo fazer a vontade de Deus
não é outra coisa do que exercitar-se intensa, contínua e a cada momento
no chamado, no apelo do Deus-humanado, cujo mandato diz: “Amaivos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,15).
A boa vontade de fazer a boa vontade
A vontade do Filho é per-feita, plena, i.é, boa, se faz, trabalha como
o Pai trabalha, continuamente, sem cessar, sem descansar, cordial, livre e
sempre de novo no frescor nascivo do início criativo. Para Egídio, esse
194
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007
FAZER A VONTADE DE DEUS...
cintilar, esse eclodir da vontade boa é ser-como-Deus. Por isso para ele,
tudo está no vigor, na vigência da aseidade de Deus. Para ele os superlativos dos atributos de Deus “meta-físicos” como oni-potência, oni-ciência,
oni-presença, imortalidade, eternidade não possuem em absoluto nenhuma conotação do superlativo da excelência de poder e força de um superman, mas são todos eles ternura e vigor da singeleza, da transparência e
limpidez, da cordialidade e perfeita alegria de uma “Rosa sem o por quê”
(Ângelus Silesius), na ab-soluta solutura, na liberdade finita do simples
in-stante do hic et nunc, concreto, cotidiano: a boa-vontade, a vontade
boa de um operário, na labuta do fazer sempre de novo a sua vida, livre
do espírito de vingança, de ressentimento, proveniente da carência de
um infinito ruim.
Terminemos essas especulações fantasiosas de um texto medieval
da espiritualidade franciscana simplesmente citando mais um Dito
engraçado do Beato Egídio de Assis:
A gloriosa Virgem Maria, Mãe de Deus, nasceu de pecadores e pecadoras, nem esteve numa ordem religiosa e, no entanto, ela é o que é.7
7. Cf. p. 63.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007
195
196
TRADUÇÕES
197
198
ACERCA DA LIBERDADE DA
VONTADE1
Pedro de João Olivi
A – Texto em latim
I
Quaeritur utrum liberum arbitrium sit uma potentia vel plures, etc.
Omissis argumentis etc.....(...)
B – Tradução
I
Coloca-se a pergunta: o livre arbítrio é uma ou muitas potências etc.?
(Cód. 637, Fol. 156c-d, Bibl. Univ., Padova)2
Conforme o que dizem os santos, na parte superior da nossa alma
não há, a não ser somente, inteligência, memória e vontade. Assim,
1. Os textos aqui apresentados foram tirados da monografia de P. Felicianho
Simoncioli, ofm, Il problema della libertà umana in Pietro di Giovanni Olivi e Pietro
de Trabibus, Società editrice VITA E PENSIERO, 1956, onde no apêndice traz
dois códigos do texto de Olivi: (Cód. 637, fol. 156c-d, Bibl. Univ., Padova)
Commentarius Ordinarius in II librum Sententiarum. Distinctio XXIV, articulus II,
Quaeritur utrum liberum arbitrium sit uma potentia vel plures; articulus III, quaestio
I et II, Utrum ratio inferior et superior sint realiter diversae et idem quaeritur de
voluntate naturali et deliberativa; e (Cód. 106, fol. 16r, Bibl. Vat., Fondo Borgh.)
Quaestiones in II Sententiarum. Quaeritur utrum potentia voluntatis sit per suam
essentiam activa na indigeat habitu aliquo accidentali, quo mediante exceat in actum.
2. Cf. Nota 1.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007
199
PEDRO DE JOÃO OLIVI
omitindo argumentos, respondo dizendo ser oportuno que o livre
arbítrio, delas seja ou uma, ou duas ou todas elas. O livre arbítrio,
pois, não pode ser um hábito3 acidental. Todo o hábito acidental
pode ser removido da alma, não, porém, o livre arbítrio segundo a
sua essência. Se o for, então o homem enquanto homem não seria
livre por sua essência nem racional etc., como é dito mais abaixo.
Portanto, deve-se dizer que o livre arbítrio, no que toca ao que diz
respeito a ele ser faculdade livre e ter domínio sobre toda a alma, é
essencialmente vontade racional. É o que se pode ver: pois, somente
ela, a vontade racional é movida a partir de e por si, e somente ela não
pode ser compelida, e somente ela tem domínio sobre outras forças, e
daí quando quero entendo, quando quero, ando, embora não tão
perfeitamente como o seria no estado da inocência; e somente na
vontade racional há o poder para os opostos seguindo a si, a saber,
para o não querer e para o querer no e para o mesmo instante; nas
outras potencias, porém, a não ser somente através dela, i.é, as outras
potencias podem ser movidas para os opostos somente por ela.
Mas, a ordem natural da vontade para com o intelecto é assim
que pressupõe sempre em todo o seu ato o ato do intelecto, e isso de
tal modo que ela não pode querer a não ser o conhecido; por isso, o
livre arbítrio, em sendo ele essencialmente vontade, inclui nas suas
operações a ordenação para o intelecto, para o intelecto enquanto
torna o ente presente, mas também de quando em vez até mesmo
enquanto confere e discerne e julga, cujos atos, também os particulares, a vontade domina, já que esses atos são feitos livremente e porque
depois da coleta e do juízo, a liberdade de consentir ou não consentir
permanece na vontade. E assim, a liberdade do arbítrio é, quanto à
3. Habitus se refere ao habere. Talvez pudéssemos traduzi-lo como habilidade, faculdade ou atinência (tenere), entendido não como qualidade ou propriedade do
homem, mas sim como dinâmica, essência, vigência.
200
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007
ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE
sua raiz e consistência, de todo, a própria vontade. A sua operação
atual, porém, como foi dito, tem ordenação para o intelecto e de
quando em vez o inclui a modo concomitante e isto enquanto o ato é
livre com deliberação, animadversão e juízo da razão.
Respondo ao segundo artigo.
Omitindo outros argumentos, deve-se dizer que, no ato livre,
enquanto é com deliberação e discurso e juízo, estes vêm da parte do
intelecto. E por tanto o ato livre exige algo do intelecto. Contudo,
porém, a liberdade é essencialmente vontade, e consentir livremente
é o seu ato, imediato e total, ao que nada faz o intelecto a não ser por
acidente, a saber, apresentar o objeto; e não é necessário que para o
ato livre concorra sempre a deliberação e o juízo e o discurso, embora
isso ocorra de vez em quando. Poder-se-ia dizer que o ato livre é
propriamente aquilo que é somente da vontade; o que, porém, é no
intelecto, não. A liberdade da vontade, no entanto, às vezes quer inquirir e deliberar e então faz preceder a investigação do intelecto antes que consinta livremente.
II
Coloca-se a pergunta: a razão inferior e superior são diversas
realmente?E pergunta-se a mesma coisa a respeito da vontade natural e
deliberativa.
<A primeira pergunta>. Deve-se dizer que a razão inferior e a
razão superior não se distinguem realmente e formalmente, já que
num homem não há senão uma razão. São apenas diversas atinências4
ou ofícios da mesma razão. A nossa mente, pois, se chama razão superior, na medida em que, se volta às coisas eternas e superiores, chama4. Habitudines. Cf. Nota 3.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007
201
PEDRO DE JOÃO OLIVI
se, porém, inferior enquanto se volta às coisas inferiores e temporais.
Ou então pelo termo razão superior se designa a parte suprema de
toda a nossa mente que possui o domínio pleno e perfeito sobre outras forças; pelo termo razão inferior se designa o ínfimo da razão,
pelo qual olho de vez em quando sem pleno consenso as coisas inferiores e o que é tocado a partir da sensualidade imediata. E isso foi
tirado de Agostinho XII, De Trinitate5 .
A segunda pergunta. A vontade natural e deliberativa, porém, é a
mesma simplesmente segundo a essência. Chama-se, ora desta, ora daquela maneira, a respeito de diversos objetos. Diz-se, pois, natural, a respeito de objetos que por si e imediatamente têm referência ao bem e dos
quais a bondade se manifesta de per si, ou para os quais, através do contrário, a vontade é conduzida naturalmente, como bem-aventurança ou
similares. A deliberativa, porém, diz respeito aos objetos, cuja bondade
ou utilidade não se manifesta logo com firmeza, a não ser depois de
inquisição e deliberação; e então a vontade é levada assim como quer
para dentro dos próprios objetos depois da deliberação.
III
Coloca-se a pergunta: a potência da vontade é pela sua essência ativa?
Ou necessita de algum hábito acidental, mediante o qual parte para
o ato?
(Cód. 106, fol. 16r, Bibl. Vat., Fondo Borgh.)6
E parece que dele carece necessariamente, pois, o que se atém a muitos a modo indiferenciado, ao se aplicar a um deles, parece precisar neces5. Cf. Cap. 3, . 3 c. 12. nn. 17-18; c; 14, n. 22; c. 15, 25 (PL 42, 999, 1007-1008,
1009-1010, 1012).
6. Cf. Nota 1.
202
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007
ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE
sariamente de um algo determinante. Mas a vontade não é diferenciada a
querer isso ou aquilo, ou a querer ou a não querer: por conseguinte, ela
necessita etc.; e isso parece não ser outra coisa do que a espécie recebida.
A maior se torna manifesta em Anselmo, que no livro Da queda <do
diabo>7 prova que o anjo não pode por si ter a primeira vontade. – Solucionava-se <o nó da questão>, dizendo-se que a potência da vontade não
necessita de outro determinante, porque ela mesma por sua própria força
se determina. – E aquela colocação de Anselmo, que Anselmo ele mesmo
dela dê conta de si a si mesmo!
Ou numa outra colocação: a vontade quer somente se for disposta. Disposição é qualidade. Deve-se dizer que a menor é falsa, pois,
aqui a disposição não difere da essência. – Ademais, a vontade quer,
em querendo. Logo, através de outro ato ou hábito. Mas não é através de outro ato, pois, se assim o for, vai-se ao infinito. Solução: aqui,
portanto, deve-se dizer que o em querendo ao querer não é querer
através de outro ato, mas sim ser vontade ela mesma. De outro modo,
se daria aqui um processo ao infinito.
A vontade nada ama a não ser que lhe preceda complacência habitual. – Solução: se se entende por complacência a complacência habitual, a afirmação é falsa. Se, porém, se entende a complacência atual, a complacência é sempre concomitante ao ato do querer.
A afeição da comodidade é a raiz do ato da vontade. O ser afetado é algo acidental. Solução: logo é falsa a afirmação.
A vontade poderia querer que todo o objeto fosse p. ex. Deus. –
A resposta se manifesta na solução principal.
Nas crianças está toda a essência da vontade; portanto, parece
que nelas o defeito é apenas pela carência de disposição. Solução:
7. Cf. Cap. 12, n. 67-68 (PL 158, 341-344).
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007
203
PEDRO DE JOÃO OLIVI
veja-se o que foi dito acima da disposição. O livro IX da Metafísica8
diz: a potência que se comporta a modo da não diferenciação deve ser
necessariamente determinada aos opostos pelo desejo ou pela escolha. – Dissolvia-se o nó da questão, dizendo-se que a vontade aqui é
enganada.
Dissolvia-se, respondendo que se devem considerar quatro itens
para se ter evidência em tal questão, a saber, a quiddidade da vontade,
a sua eficácia, o seu modo de agir e no quarto item o que se manifesta
como o oposto.
Quanto ao primeiro item deve-se saber que a vontade é essencial
à criatura racional. O que é manifesto. Pois, de outro modo, o livre
arbítrio seria separável da criatura; nem a alma, enquanto ela mesma,
não seria criada à imagem de Deus; e o livre arbítrio tem na criatura
a primazia. O que é manifesto. Pois, nela ele é a raiz da liberdade e
domina e impera sobre outras forças e é a aparição mais excelente do
que alguma outra forma criada, porque a outra forma age pela necessidade o seu ato, a vontade, porém, age com autonomia: domina pois
o seu ato a modo disjuntivo. Nenhuma criatura pode fazê-la declinar.
Nem Deus a pode coagir enquanto ela permanece vontade. Disso
tudo se torna manifesto que ela transcende todo o criado.
Quanto ao segundo item <a saber, a eficácia da quiddidade> o
que ela pode, sabendo-se que toda forma é ato puro e primeiro, que
é faculdade para agir, como p. ex., dizemos que a luz é o primeiro ato,
a iluminação, segundo? Por isso mesmo pelo que é o ato primeiro,
tem de si eficácia para o ato e pode partir para alguma operação sua.
Tem também domínio sobre seus atos, o que se evidencia, porque de
outro modo não seria livre; a qual liberdade, no entanto, não lhe é
dada pela disposição; e isso se manifesta pelo fato de, se assim não
8. Aristóteles, Methaph., lib. VIII (IX), c. 5 (Bekker II, 1047b 35ss.; Didot, II,
567, 17-30).
204
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007
ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE
fora, não seria livre, e isso por sua vez se manifesta pelo fato de a
disposição só se dispor para um <dos contrários>.
Quanto ao terceiro item deve-se dizer: é necessário saber que o
modo em que a vontade pode agir é querer livremente, o que não
convém a nenhuma outra potência. Aliás, para os atos que simplesmente transcendem a ordem de sua natureza, a vontade necessita de
hábito que a eleve, atos esses que são atos da graça e da virtude, porque a ordem da graça transcende a ordem da natureza.
Embora, aqui, a vontade necessite também do hábito que a eleve
para exercer alguns atos, é ela movida por si, por ela mesma, podendo
os efeitos pelo hábito. Quanto aos atos naturais, porém, a vontade é
suficientemente potente por si como querer ler, querer andar, passear, amar pessoa ou odiá-la.
Se bem que a vontade, porém, possa esses atos, porque, no entanto, está anexa a partes inferiores pelo modo da coligação, entra nela
impedimento da parte sensitiva.
Mas, que ela seja ativa pela sua essência, é evidente, porque pelo
próprio fato de ser forma, é ativa, como também pelo fato de ser
matéria, convém à matéria ser passiva.
Também se atribuiria a ação mais à disposição do que à vontade.
Posto que também a ignição deve-se mais ao fogo do que ao ferro
em ignição.
Não é menos atual do que a luz.
A força de agir livremente não seria essencial ao homem e poderia
ser separada do homem.
Adão não poderia querer o mal, a não ser que não tivesse antes
um mal habitual. Essa afirmação é herética.
Note-se que a vontade age, atua só terminativamente o objeto.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007
205
PEDRO DE JOÃO OLIVI
Daí, quando se argumenta que a quadrangulação no raio parece
ser causada pelo quadrado, deve-se dizer que a quadrangulação é do
raio efetivamente e somente é do quadrado terminativamente.
– Quando se argumenta que a quantidade difere da luz: a solução: não é verdadeira a afirmação.
206
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007
O SENHOR DEUS PRODUZIU TODO
TIPO DE ÁRVORES DE BELA
APARÊNCIA E BOAS PARA SE COMER*
Mestre Eckhart
Note-se primeiramente... e boas para se comer.
Saiba-se porém que a explicação dessa autoridade e da que precede imediatamente a esta é tomada, sem modificações, da primeira
edição,
No meio do paraíso havia também a árvore da vida e a árvore da
ciência do bem e do mal.
Note-se que na região racional ou intelectual há duas potências, a
saber, o intelecto e a vontade, mas o intelecto é mais excelente. Sobre
isso, veja na interpretação da quarta autoridade, perto do fim; por ora
fica demonstrado por cinco razões.
1. Porque recebe, por sua própria natureza, a idéia (ratione) das
coisas, o que é ou a quididade nua; mas a vontade recebe a coisa já
fora na matéria, obscurecida pelo e misturada com o alheio, sem ser
plena nem perfeita.
2. Porque, de acordo com seu próprio nome, o intelecto recebe a
coisa ela mesma, interiormente, nos princípios essenciais e causais.
3. Porque a vontade formal recebe seu objeto, pelo qual é aquilo
que é, do intelecto.
* Extraído de Prologi in opus tripartitum et expositio libri genesis. Stuttgart: W.
Kohlhammer Verlag, 1964.
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007
207
MESTRE ECKHART
4. Porque a vontade é apetite ou inclinação que se segue do “bem
conhecido”, “que aparece” ao intelecto e segue a ele, como a inclinação para baixo é o apetite natural que segue à forma do que é grave, e
assim dos outros apetites naturais.
O argumento para tudo isso é o que disse o filósofo, que a vontade pertence à razão. Pois o apetite racional não é racional se não a
partir da razão e pela razão. Mas a razão pertence ao conhecimento, o
qual compreende a ratio e a causa das coisas.
Do que se disse acima, fica evidente primeiramente por que se
diz que a árvore da vida e a árvore da ciência do bem e do mal foi
produzida no meio do paraíso; ou seja, [na] região intelectual há duas
coisas, intelecto e vontade.
Fica evidente, em segundo lugar, porque coloca-se antes árvore
da vida, que representa o intelecto, o qual é [a raiz] da vida da alma
racional, conforme a palavra: “o que foi feito, estava nele”, a saber, no
verbo, que no intelecto paterno “era vida” (Jo 1,3). Mas acrescenta
depois: árvore do bem e do mal, que na verdade pertence à vontade e
à coisa extra, conforme se disse acima no capítulo 1: “Deus viu tudo
que fizera e era muito bom”.
5. Disso fica clara também a quinta razão por que o intelecto
precede em excelência a vontade. Todo ser vivo é mais excelente que
todo não vivo. O intelecto porém, segundo sua essência, é vivo, mas
a vontade não. Portanto etc. (o intelecto é mais excelente que a vontade). A premissa maior é evidente, e vem testemunhada por Agostinho. A menor demonstra-se assim: o vivo – que se distingue do não
vivo – é aquilo que tem movimento a partir de si mesmo, em si mesmo e de dentro, e não a partir de outro e de fora. De acordo com
[seu] nome, o intelecto lê a coisa por dentro, em si mesmo. Inteligir,
pois, é isso, ler por dentro (intus legere). E de novo lê a coisa ela mesma por dentro, em seus princípios. Mas da vontade não vale nem
208
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007
ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE
uma coisa nem outra. Pois sua inclinação e tendência volta-se para
fora de si para a própria coisa fora da alma, e novamente para fora de
seus princípios internos, os quais fundamenta seu ser a partir de dentro, consistindo num (modo de ser) externo e estranho.
Daqui fica claro também que a bem-aventurança, visto ser a vida
eterna, consiste propriamente no intelecto ou no conhecimento de
Deus em sua essência, conforme à palavra: “Esta é a vida eterna, que
te conheçam somente a ti, Deus verdadeiro”.
[...]
Por último, note-se que nas palavras não comei da árvore da ciência do bem e do mal, devem-se notar ainda dois outros pontos
explicitados parabolicamente.
O primeiro diz respeito às coisas naturais. Sabe-se que geralmente as coisas inferiores são tornadas mais perfeitas e mais nobres pela
adesão, inerência e coesão com as superiores; e ao contrário as coisas
são prejudicadas, degeneram e sofrem deficiências de sua coesão e
adesão às inferiores, segundo a palavra: “Todo dom ótimo e todo
dom perfeito vem de cima” (Tg 1,17); “pois no alto está o Senhor”,
como se disse no Salmo (92,4). Agostinho disse que todo metal que
adere a um metal inferior degenera em cor e vigor. Por isso que a
prata, quando batida em um vaso menor é de pouco valor por causa
de seu contato freqüente com as marteladas do ferro. Mas, em relação ao verdadeiro, o bem é inferior, está abaixo dele, como aparecerá
logo abaixo. E é isso que aqui se diz e se ordena: não comei da árvore
da ciência do bem e do mal.
O segundo diz respeito ao aspecto espiritual. Somos ensinados a
querer e buscar saber “as coisas que estão no alto e não as que estão na
terra” (Cl 3,2). “Ninguém que mete mão ao arado e olha para trás é
apto para o reino de Deus” (Lc 9,62). Porquanto, a esposa de Lot,
tendo olhado para trás, “foi transformada numa estátua de sal”, como
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007
209
MESTRE ECKHART
se escreve abaixo no capítulo 19. Pois, no geral, a perfeição de uma
coisa consiste em estender sua expectativa para o que está à frente,
inclinar-se e tender para o alto e esquecer as “coisas que ficaram para
trás” (Fl 3,13). Mas, entre os transcendentais, conversíveis com o ente,
o bem é o que fica para trás, está abaixo e é o último. É o que vem
ordenado aqui: não comei da árvore do bem e do mal, isto é, não deves
misturar-te com o que é inferior e com aquilo “que ficou para trás”;
pois o bem é algo que ficou para trás, como se disse.
Ademais, em segundo, o bem fica para trás porque é objeto da
vontade; mas a vontade está mais abaixo com relação ao intelecto,
como se demonstrou acima, e também em terceiro lugar, porque não
ama nem sequer amar o que não é conhecido. E depois, em quarto
lugar, o “bem só move a vontade”, porque já foi “compreendido” de
antemão.
E de novo, em quinto lugar, o bem e a vontade dizem respeito ao
todo, pois o bem, a totalidade e o fim são idênticos. Mas o intelecto
não se encontra nem repousa fora na totalidade, mas, por sua natureza e segundo seu nome, o intelecto permanece dentro no princípio
das próprias coisas. Os princípios sempre são anteriores, mas os principiados são posteriores. Por isso que no Livro do Êxodo se disse a
Moisés: “Eu te mosto todo bem” e a seguir: “Não poderás ver minha
face”, e abaixo: “Tu me verás pelas costas, mas minha face não poderás ver” (Ex 33,19s.23). Veja que o que se chama por primeiro de
“todo bem”, diz depois ser “as costas” de Deus. O bem, portanto, é
posterior, está atrás e abaixo.
E, ademais, o objeto do intelecto é o ente, mas o objeto da vontade é o bem. A partir daqui, em sexto, assim: o bem e o fim são idênticos, mas de acordo com seu nome o fim é o último, mais afastado, e
assim fica para trás e é o posterior.
210
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007
ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE
Depois em sétimo lugar, assim: nos entes, o bem não só é o fim e
o último, como já se disse na premissa sexta, mas pertence ao que
determina as coisas por último, como os acidentes, e não por primeiro, como as formas substanciais. Por exemplo: o homem bom ou o
homem probo não é todo o que tem a forma de homem, mas o que
tem a sabedoria, a virtude e outros acidentes, acrescentados posteriormente ao ser do homem. Portanto, como já se disse, o bem fica de
fora, externamente à substância e ao ser.
Depois, em oitavo, como diz a Metafísica VI, a vontade e o amor
dizem respeito ao exterior, às coisas em si mesmas, ao contrário do
verdadeiro e do intelecto. A vontade portanto está fora, atrás e abaixo
com relação ao intelecto.
Mas não resta qualquer duvida de que o mal é posterior e inferior, visto ter decaído e ser uma privação do próprio bem.
Pode-se também dizer que aqui não se proíbe ao homem de comer da árvore da ciência do bem, por si, mas da árvore da ciência do
bem e do mal, isto é, do bem que aparece conjugado com o mal,
refiro-me ao bem particular e imperfeito. Pois o mal é privação do
bem. “Mas a privação e o hábito referem-se ao mesmo” (objeto). É
por isso que ao bem em absoluto, ou seja, a Deus, nada é contrário.
Nessas palavras proíbe portanto ao homem de comer, refazer-se, deleitar-se e descansar no bem criado abaixo de Deus.
E novamente o bem e o mal são propriamente objeto do apetite
sensorial; pois no intelecto não existe, propriamente falando, o mal
nem o contrário. “Nele, as razões dos contrários não são contraditórias”, mas ao contrário a razão de ser do mal é boa e a própria razão de
ser do bem é a mesma que a do mal. Por isso que, como disse Boécio,
a ciência dos males é boa, ou melhor, é una. Nas palavras precedentes, vem proibido em forma parabólica ao homem de se deixar afeiçoar pelo deleite das coisas sensíveis, mas antes alimentar o apetite pelas
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007
211
MESTRE ECKHART
coisas boas intelectuais, nem viver segundo os sentidos e irracionalmente, mas segundo a razão e o intelecto. E isso é o que disse Dionísio
que o bem para o homem é viver segundo a razão, e o mal viver
aquém ou além da razão. Ele quer dizer, portanto, que em si mesmo
o homem não deve aquiescer em nada de sensual e em geral em nada
de criado, a não ser quando ordenados a Deus. Por causa disso que,
acima, no primeiro capítulo, em todas as obras dos seis dias descrevem-se “a tarde” e a “manhã” mas não a noite; pois a noite é a quietude da alma nas próprias coisas, por causa dela mesma. No capítulo 55
do De vera religione, Agostinho diz: “Não busquemos o supremo no
ínfimo, nem façamos adesão ao próprio ínfimo”, “a fim de que, se
buscarmos o que é primeiro nos últimos, não sejamos enumerados
como os primeiros entre os últimos”.
212
Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007
Normas para publicação
• Os artigos devem ser formulados obedecendo às normas técnicas de publicação da ABNT, e encaminhados à nossa editoria em
modelo eletrônico e com cópia impressa.
• A editoria da Revista se reserva o direito de, após criteriosa
análise consultiva, publicá-los ou não. Os artigos não publicados
não serão devolvidos.
• Os autores articulistas receberão três exemplares da revista em
que tiver sido publicado seu artigo, abdicando, com isso, em favor da revista, dos direitos autorais dos artigos.
• Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não precisam coincidir com o pensamento da Faculdade.
• O idioma de publicação é o português, não estando excluída a
publicação ocasional de textos ou artigos em outras línguas. Os
artigos deverão conter no mínimo 15 e no máximo 25 laudas (1
lauda = 2.100 toques) e vir acompanhados de um resumo de no
mínimo 8 e no máximo doze linhas.
• Em folha de rosto deverão constar o título do trabalho, o(s)
nome(s) do(s) autor(es) e breve currículo, relatando experiência
profissional e/ou acadêmica, a instituição em que trabalha atualmente, endereço, número do telefone e do fax e e-mail.
A editoria agradece qualquer contribuição, no sentido de melhoria da revista, sejam comentários, sugestões, críticas...
213
Pedimos aos colaboradores da Revista encaminhar seus artigos e
contribuições para endereço logo abaixo:
Scintilla – Revista de filosofia e mística medieval
Bom Jesus Lourdes
R. Fioravante Dalla Stella, 90
80050-150 – Cristo Rei Curitiba – PR
Ou: [email protected] ou [email protected]
A revista aceita permuta – We ask for exchange, on demànde
l’èchange.
Assinatura anual (2 por ano – semestral): R$ 25,00; Número
avulso R$ 15,00
Pedidos: enviar cheque em nome de ASSOCIAÇÃO FRANCISCANA DE ENSINO SR. BOM JESUS, para:
Scintilla – Revista de Filosofia e Mística Medieval
Bom Jesus Lourdes
R. Fioravante Dalla Stella, 90
80050-150 – Cristo Rei Curitiba – PR
Ou depósito bancário
HSBC
Ag 0099
CC 22431-14
Cod. Id. 300669-4
Contrato 130176 [Mandar comprovante: Fax 55 41 2105-4330]
Contato: [email protected] ou [email protected]
Fone: (41) 2105-4374
214
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Nome: ______________________________________________
Endereço: ___________________________________________
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
Telefone: ____________________________________________
E-mail: _____________________________________________
Outras informações ____________________________________
VALORES E FORMAS DE PAGAMENTO
Assinatura anual (2 por ano – semestral): R$ 25,00; Número
avulso R$ 15,00
Pedidos: enviar cheque em nome de ASSOCIAÇÃO
FRANCISCANA DE ENSINO SR. BOM JESUS, para:
Scintilla – Revista de Filosofia e Mística Medieval
Bom Jesus Lourdes
R. Fioravante Dalla Stella, 90
80050-150 – Cristo Rei Curitiba – PR
Ou depósito bancário
HSBC
Ag 0099
CC 22431-14
Cod. Id. 300669-4
Contrato 130176 [Mandar comprovante: Fax 55 41 2105-4330]
Contato: [email protected] ou [email protected]
Fone: (41) 2105-4374
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Scintilla – Revista de Filosofia e Mística Medieval
PÁGINA DE PEDIDOS E ASSINATURAS
215
216

Documentos relacionados