do boxe ao ballet: os percursos de billy elliot - UPPLAY

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do boxe ao ballet: os percursos de billy elliot - UPPLAY
DO BOXE AO BALLET: OS PERCURSOS DE BILLY ELLIOT
Nilda Stecanela 1
Bianca Chiaradia 2
Introdução
O desafio de escrever um texto sobre o filme Billy Elliot nos levou a pensar no
gênero textual mais adequado para a tarefa, de modo a não reproduzir uma mera
descrição e, tampouco, reduzir a reflexão a uma crítica do filme.
Pensamos que o ensaio como um gênero textual, com características de
provisoriedade, poderia atender aos recortes que procuramos aqui apresentar, dada
nossa despretensão em esgotar todas as possíveis facetas interpretativas que o
filme suscita, envolvendo questões de: gênero, identidade, diferença, pertencimento,
preconceito, classe social, processos educativos, socialização primária e secundária,
configurações familiares, relações com o mundo do trabalho, organização
comunitária, entre outras.
Conforme Paviani (2010, p. 25), “o ensaio como gênero textual nasce com
Montaigne sob o signo da humildade, sem pretensão de ser um gênero superior”.
Acolhendo a possibilidade de livre expressão, não abdicando do rigor científico,
escolhemos o ensaio para apresentação e discussão das ideias que seguem,
considerando também seu caráter de transitoriedade e de inacabamento.
Identidade, diferença, pertencimento e escolhas são as categorias analíticas
reservadas para interpretar as cenas do filme, as quais recortamos e trazemos ao
texto através da descrição e/ou das narrativas dos seus protagonistas. Nesse
sentido, procuramos estabelecer um “diálogo em três dimensões” (STECANELA,
2010), através do qual fazemos uma conversa com nossos interlocutores empíricos
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Doutora e mestre em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Diretora do Centro de
Filosofia e Educação da Universidade de Caxias do Sul. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação
da UCS e da Rede Municipal de Educação de Caxias do Sul. Coordenadora do Observatório de Educação da
UCS.
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Acadêmica de Psicologia na Universidade de Caxias do Sul.
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(roteiro e atores do filme), nossos conhecimentos tácitos (os retratos que nossas
lentes interpretativas registram) e nossos interlocutores teóricos (os autores que
sustentam nossas argumentações, direta ou indiretamente). Entre esses últimos
estão, inicialmente situados, Stuart Hall, Alberto Melucci, Antony Giddens e Claude
Dubar.
Recortes de uma história
Sem a intenção de fazer uma resenha do filme, consideramos importante
descrever, sumariamente, o contexto da sua produção, como forma de situar o
caminho ensaístico que nos propusemos, ora transitando pela via principal, ora
enveredando por desvios e/ou rotas paralelas correndo, inclusive, o risco de nos
perder.
Com o título original Dancer, o filme Billy Elliot foi lançado no ano 2000,
marcando a estréia de Stephen Daldry como diretor de cinema, embora até então já
computasse a produção de mais de 100 peças de teatro. O cenário do enredo é
protagonizado numa pequena cidade do norte da Inglaterra, nos anos 80, período
marcado pela presença de Margaret Tatcher como primeira ministra, tendo como
pano de fundo a greve dos mineradores de carvão.
O filme recebeu 3 prêmios BAFTA como melhor filme britânico, melhor ator
(Jamie Bell) e melhor atriz coadjuvante (Julie Walters); 3 indicações ao Oscar:
melhor diretor, melhor atriz coadjuvante (Julie Walters) e melhor roteiro original; 2
indicações ao Globo de Ouro: melhor filme (drama) e melhor atriz coadjuvante (Julie
Walters); e uma indicação ao César, na categoria de melhor filme estrangeiro.
O drama traz a história de um menino de 11 anos e suas “biografias de
escolha” (STECANELA, 2010), com os dilemas entre ser um bailarino ou um lutador
de boxe. Nos seus trânsitos entre a escola, a academia de boxe e as tarefas
domésticas, após a morte da mãe, Billy Eliot é também responsável por cuidar da
avó. O pai e o irmão mais velho trabalhavam numa mina de carvão e estavam entre
os líderes da greve dos mineiros. Devido ao movimento, as dificuldades financeiras
da família se agravavam. O contexto familiar mostra-se marcado por fortes
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componentes disciplinares e por relações pouco afetivas, especialmente no
comportamento rude do irmão mais velho para com Billy.
Com destacada maestria, roteirista e diretor trazem para o contexto do filme o
cotidiano de uma pequena cidade: dilemas, culturas, preconceitos, práticas,
políticas. Embora o cotidiano acolha a ideia de repetição, de rotina, o filme é envolto
de surpresas, levando o expectador o tempo todo a imaginar, a descobrir e a
construir a realidade que observa na tela. Entre os interstícios desse cotidiano, as
trajetórias de Billy, depositário dos sonhos do pai em vê-lo como lutador de boxe,
sinal de afirmação identitária e da construção das masculinidades num espaço social
sublinhado pela tradição. As luvas repassadas de uma geração a outra carregavam
o peso da cultura e as marcas da dominação masculina, simbolizando quase a única
possibilidade de perpetuação do desejo de um pai, transmitido por herança
simbólica ao seu filho.
Rompendo padrões
Aquilo que aparentemente estava preestabelecido, predeterminado, numa
sequência de fatos, atitudes e posturas, garantindo a reprodução da tradição da
família, foi drasticamente rompido por Billy, não sem um alto custo e uma difícil
negociação identitária. O menino começava a lutar boxe com as antigas luvas de
seu pai, se esforçava, mas as cenas evidenciam que não tinha jeito para a luta.
O efeito negociação entre os “polos estruturadores das identidades”
(MELUCCI, 2004) aparece numa das cenas do filme, a caminho da aula de boxe,
quando Billy encontrou seu melhor amigo na porta da academia. Indagado por Billy
se não iria lutar, o amigo respondeu que considerava a luta uma enorme bobagem:
“É ridículo ficar batendo nas pessoas, enfim, não sei por que se interessa”. Billy
respondeu que se considerava bom no esporte escolhido por seu pai para ele
seguir, mas o amigo rebateu dizendo que ele não estava com nada, chamando a
atenção para as luvas de boxe velhas que ele carregava. O simbólico impregnado
nas luvas, talvez, representasse o pertencimento a um contexto sociocultural
desejado pelo pai de Billy, indicando uma heteronomia nos seus percursos de vida.
Ele olhou para as luvas e respondeu: “Elas eram do meu pai”. Até então, Billy ainda
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não percebia suas escolhas pelo Ballet e reproduzia o comportamento esperado,
atendendo as expectativas alheias sobre seus processos de socialização.
O bailarino travestido de lutador de boxe vivia um processo caracterizado por
Melucci (2004), como sendo o “paradoxo da escolha”. Segundo o sociólogo italiano,
escolher parece ser nosso destino e algo que não podemos evitar. Por sua vez,
Giddens (2002) acrescenta que a escolha é um componente fundamental na
estruturação do eu. Embora suas possibilidades de escolha fossem restritas, através
da experimentação, Billy negociava com os polos estruturadores de seu eu:
inicialmente, atendendo ao desejo do pai em tornar-se um lutador de boxe, mas,
posteriormente, transgredindo e rompendo com o preestabelecido, cedendo ao
apelo de sua corporeidade que o chamava ao mundo das artes.
A sensibilidade de Billy para as artes iniciava em casa, nas tentativas que
fazia em tocar o piano da mãe, porém, sem o incentivo do pai e do irmão. No mesmo
ginásio das aulas de boxe, as meninas da cidade tinham aulas de ballet com a
professora, Mrs. Wilkinson. O ritmo da música clássica penetrava os poros de Billy e,
ao ouvi-la, se movimentava no round como se estivesse dançando. O professor de
boxe comunicava sua indignação com os comportamentos do menino: “De novo
não, isso é uma luta e não uma aula de ballet. Parece até uma menininha! Meu
Deus, Billy Elliot! Você é uma vergonha para essas luvas, para o seu pai e para as
tradições do boxe!”. O pai, presente na platéia, assistia a derrota do filho numa das
lutas, lamentando a frustração de seus sonhos e, inconformado, levava as mãos à
cabeça.
Ao acaso ou por escolha, o futuro lutador de boxe teve seus caminhos
interceptados por uma menina, colega de escola por quem demonstrava interesse e
amizade. Debbie o convidou para dançar ballet: “Muitos meninos fazem ballet
,sabia? (...) Não necessariamente bichas. (...) Por que não vai assistir amanhã?”. As
resistências iniciais de Billy sobre os bailarinos reproduziam o senso comum,
associando a dança à homossexualidade. Ele tentava resistir por questões
socioculturais, mas acabou entrando no grupo de danças, as escondidas do pai. Já
nos primeiros passos encantou Mrs. Wilkinson que observava seu potencial em vir a
ser um grande bailarino.
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Billy vivia uma “crise identitária” (DUBAR, 2006), provocada por sua
identificação com a dança em contraposição à pressão em ser o destinatário das
continuidades para honrar as tradições da família, fazendo um bom uso das velhas
luvas do pai. O menino trava uma luta interna na definição de quem é, quem quer
ser e quem os outros esperam que ele seja. Segundo Hall (2003), isso decorre das
identidades modernas, descentradas, deslocadas e fragmentadas, não unificadas
em trono de um eu coerente. Identidade e diferença se contrapõem e se associam,
determinando um processo dinâmico e relacional. O eu é múltiplo nos diz Melucci
(2004), porém, para Billy, esses processos apresentavam-se demasiadamente
complexos.
A arte falou mais alto e Billy ousou transgredir, abandonando as aulas de
boxe, passando a frequentar as aulas de ballet, sem o consentimento da família.
Entretanto, o segredo de Billy não se manteve por muito tempo, pois seu treinador
comunicou ao seu pai que há tempos ele não comparecia às aulas. Sem entender o
que estava acontecendo, o pai de Billy considerou estranho o fato dele não largar as
luvas, álibi usado para disfarçar a mudança de direção: das luvas para as sapatilhas.
Como forma de ajudar o pai desolado, o professor sugeriu: “Olha, mande ele até
minha casa que eu boto um pouco de juízo na cabeça dele”, revelando um
condicionamento com os estereótipos fortemente articulados às questões de gênero.
Uma das cenas fortes do filme se passou com a chegada do pai na academia,
checando o filho dançando com outras bailarinas. Ele gritou de forma estridente:
“VOCÊ! SAIA AGORA!”. A professora reagiu solicitando uma explicação, pois sua
aula estava sendo invadida. Billy ficou assustado com a descoberta de sua
transgressão e interrompeu a reação da professora: “Senhorita, NÃO!”. Um diálogo
tenso teve sequência no retorno a casa. De um lado, Billy defendendo sua escolha:
“Não é só para bichas pai, alguns bailarinos são fortes como atletas”. De outro, o pai
demonstrando sua resistência e argumentos contra o que considerava abominável:
ter um filho bailarino. “É, para a sua avó, para meninas e não meninos. Meninos
jogam futebol, lutam boxe, ou luta livre e não essa droga de ballet. (...) Olha, de
agora em diante você pode esquecer essa porcaria de ballet e a porcaria do boxe
também. A partir de agora você vai ficar cuidando da sua avó”.
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Embora as adversidades, Billy persistia em sua escolha e exercitava, aos
poucos, sua autonomia. Os ensaios continuavam às escondidas, assim como os
incentivos da professora em levá-lo para além das fronteiras da pequena cidade,
estimulando a inscrição nos testes do Royal Ballet. Uma primeira tentativa da
professora em levá-lo à Londres foi frustrada, devido a prisão do irmão em
consequência do movimento grevista. Todos ao redor de Billy, com exceção da
professora, não aceitavam sua escolha e a consideravam um desvio de conduta,
uma vergonha para a família. O próprio Billy sentia-se confuso, perguntando ao seu
melhor amigo: “Ser bailarino é melhor do que ser mineiro?”. Mesmo assim, mantinha
a disciplina nos ensaios e treinava junto à professora nos lugares mais inusitados.
Ela se dispunha a dar aulas gratuitamente, pois via no menino um promissor
bailarino.
O pai de Billy hesitou até o último instante, até o momento que viu o filho
dançando na academia, numa noite de natal. A partir desta cena emocionante, ele
passou a acreditar no talento do menino. Após uma séria conversa com a professora
de Billy, seu pai voltou a trabalhar nas minas, com muito sofrimento por decepcionar
o filho mais velho, um dos lideres da greve: “Pai, você não pode fazer isso! Não
agora!”. Sob o rótulo de traidor, deslocou-se para o trabalho, tentando se esconder,
mas sem conseguir fugir do enfrentamento: “Filho, olhe a nossa situação, o que nós
temos a oferecer para o menino? É pelo pequeno Billy, ele pode ser um gênio fique
você sabendo. Estamos acabados, que escolha nós temos? Temos que dar uma
chance a esse menino”. Ele estava determinado a arrecadar dinheiro para as
passagens e os testes do Royal Ballet. Comovida com o chamado para os testes, a
comunidade inteira passou a apostar em Billy e ajudar com pequenas doações. Até
mesmo o professor de boxe teve participação ativa na campanha em prol de Billy,
fazendo uma rifa beneficente e também um concerto para comprar as passagens do
garoto. De sua parte, o pai de Billy vendeu as joias de sua mulher.
Com os recursos materiais, o garoto foi para Londres pela primeira vez,
acompanhado de seu pai, obtendo aprovação no temido teste. Com o apoio da
família que antes não o enxergava, ele passou a viver sozinho na capital britânica e
tornou-se um grande bailarino, apresentando-se num dos mais famosos espetáculos
do Royal Ballet: O Lago do Cisne.
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Desfazendo imagens, reconstruindo identidades
Billy e sua escolha pelo ballet desafiaram o pai a rever conceitos,
possibilitando a ele sair da armadura e demonstrar sua ternura, rompendo com as
imagens que a muito custo também era pressionado a manter, assumindo
comportamentos rudes, fortes, grosseiros e destemidos. A reflexividade envolvida
nos processos identitários possibilitou uma abertura na forma como o pai de Billy
olhava para sua própria vida e para a trajetória dos filhos. Ele curvou-se ao talento
do menino e permitiu-se partilhar de momentos de sensibilidade, rompendo com os
preconceitos e a cristalização de práticas. Billy, com sua escolha parece ter
contribuído com a libertação de todos os que, ao primeiro momento, o etiquetaram e
o desestimularam do seu intento.
Dubar e Melucci nos dizem que uma das formas de fazer frente à crise das
identidades presentes na contemporaneidade é fazê-lo através da nomeação da
palavra, ou seja, através das narrativas reflexivas. Billy procedia com uma economia
das palavras e pouco se expressava oralmente. Muito mais através da observação e
da manifestação de seu desejo, suas escolhas foram comunicadas através dos
movimentos do seu corpo, da força imposta em cada passo, na harmonia e
musicalidade impressa em sua dança. Do boxe ao ballet, um caminho trilhado, não
sem luta, sem negociação, sem aproximação e distanciamento. O jovem Billy
ensinou a seu pai e irmão, ao seu professor de boxe, à comunidade da pequena
cidade onde morava que é possível romper padrões e perseguir o sonho que nasce
dentro de cada um de nós.
Para fechar este breve ensaio, as palavras de Geertz (1997, p. 14): “Para
utilizar desvios, ou enveredar por ruas paralelas, nada é mais conveniente do que o
ensaio (...)”. Pelo menos por enquanto é isso que tínhamos para dizer. Deixamos à
interpretação do leitor as tantas outras possibilidades de interação com este filme.
Na mesma obra referida acima, Geertz, citando Valéry, diz: “Não se terminam
trabalhos, eles são abandonados”.
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Referências
DUBAR, Claude. A crise das identidades: a interpretação de uma mutação. Porto:
Afrontamento, 2006.
GEERTZ, Cliford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa.
Petrópolis : Editora Vozes, 1997.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
MELUCCI, Alberto. O jogo do eu. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2004.
PAVIANI, Jayme. O ensaio como gênero textual. In: AZEVEDO, Tânia Maris;
PAVIANI, Neires Maria Soldatelli. Universo em gêneros discursivos. Caxias do Sul
: EDUCS, 2010.
STECANELA, Nilda. Jovens e cotidiano: trânsitos pelas culturas juvenis e pela
escola da vida. Caxias do Sul : EDUCS, 2010.