Fracionamento de Despesa

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Fracionamento de Despesa
FRACIONAMENTO DE COMPRAS COMO FORMA DE BURLAR A
OBRIGATORIEDADE DE LICITAÇÃO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS À
LUZ DA LEI 8.429/92
JOSÉ FRANCISCO SEABRA MENDES JÚNIOR
1. Introdução.
A carta constitucional de 1988 introduziu no Direito
Público Brasileiro a figura da improbidade administrativa. Até então, a
ordem jurídico-constitucional apenas previa o perdimento de bens por
danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento ilícito no
exercício de função pública.
Em
possibilidade
da
seu art. 15, inc. V, a CF de 1988 previu a
suspensão
de
direitos
políticos,
no
caso
de
improbidade administrativa.
A norma do art, 37, § 4º, da CF, por sua vez,
dispôs a respeito das sanções cabíveis aos atos de improbidade
administrativa, a saber, suspensão dos direitos políticos, perda da
função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário.
Oportuno observar que a verificação de atos de
improbidade administrativa pressupõe a compreensão dos princípios
informadores da administração pública, que constam expressamente
do catálogo do art. 37, ‘caput’, da Constituição Federal.
No âmbito da normatização infraconstitucional,
a Lei 8.429/92 constituiu um marco no controle dos atos da
administração
pública, trazendo consigo um catálogo tipológico dos
atos que configuram improbidade administrativa e das respectivas
sanções, distinguindo, em seus arts. 9o, 10 e 11, três categorias de
condutas a serem reprimidas: atos de improbidade administrativa que
importem enriquecimento ilícito; atos de improbidade administrativa
que causem prejuízo ao erário; e atos de improbidade administrativa
que atentem contra os princípios regentes da administração estatal.
De outra banda, na esteira do movimento social que
exigia maior transparência na administração pública, adveio a Lei nº
8.666/93, a qual passou a regrar todas as licitações e contratos
administrativos nas esferas federal, estadual e municipal.
Um dos princípios basilares trazidos pela Lei 8.666/93
foi o da obrigatoriedade da licitação para a contratação de obras,
serviços, compras e alienações pela administração pública, ratificando
a exigência já estabelecida anteriormente no art. 37, XXI, da
Constituição Federal, e consagrando a objetividade dos julgamentos na
apreciação das propostas, de modo a dotar de total transparência os
contratos administrativos.
O presente estudo visa abordar as conseqüências, à
luz da Lei 8.429/92, da dispensa indevida do processo de licitação nas
compras da administração pública, especificamente nos casos de
dispensa pelo pequeno valor do contrato, onde tenha sido utilizado
expediente
despesas,
fraudulento
de
forma
a
consubstanciado
tentar
legitimar
no
a
fracionamento
contratação
de
direta
indiscriminada, adequando-a aos valores previstos na Lei 8.666/93, em
relação aos quais é dispensada a realização de licitação.
2.A obrigatoriedade de licitação e as exceções
legais.
A obrigatoriedade da realização da licitação, nos
termos do art. 3o da Lei 8.666/93,
visa assegurar a igualdade de
oportunidades entre os interessados em contratar com o Poder
Público, e, concomitantemente, possibilitar a escolha objetiva da
proposta mais vantajosa para a Administração.
Para que seja analisada a eventual ocorrência de
improbidade
administrativa
obrigatória, deve
pela
não-realização
da
licitação
ser examinada, primeiramente, em cada caso,
eventual incidência das hipóteses de dispensa ou inexigibilidade de
licitação, trazidas nos arts. 24 e 25 Lei 8.666/93.
O presente trabalho restringe-se à análise dos casos
em que o administrador utiliza-se do expediente fraudulento de
fracionar indevidamente determinadas despesas relativas a compras, a
fim de permitir que, com o parcelamento, os valores individuais de
cada contrato não ultrapassem os limites da dispensa de licitação face
ao pequeno valor contratado. Assim, para os fins restritos a que se
propõe este estudo, cumpre sejam examinados apenas os incisos I e II
do art. 24 da Lei de Licitações,
que se referem especificamente à
possibilidade da dispensa de licitação face à contratação de pequeno
valor.
O art. 24, inc. I, da Lei 8.666/93, com redação dada
pela Lei
9.648/98, dispõe que a licitação é dispensável “para obras e
serviços de engenharia de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea ‘a’ do inciso
I do artigo anterior, desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço ou
ainda para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser
realizadas conjunta e concomitantemente” (o grifo é nosso).
Já o art. 24, inc. II, da Lei 8.666/93, também com
redação dada pela Lei
9.648/98, reza que a licitação é dispensável
“para outros serviços e compras de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea ‘a’
do inciso II do artigo anterior, e para alienações, nos casos previstos nesta Lei, desde que não
se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que
possa ser realizada de uma só vez”
A
(o grifo é nosso).
dispensa
da
licitação
para
contratações
de
pequena monta nada mais é do que conseqüência do princípio da
economicidade, justificando-se para impedir a onerosidade decorrente
do tempo despendido e dos recursos materiais e pessoais utilizados na
realização de um certame licitatório, quando desproporcionais tais
custos em relação ao valor do contrato a ser firmado. A respeito,
oportuno transcrever a lição de MARÇAL JUSTEN FILHO, quando
ressalta que as hipóteses previstas nos incisos I e II do art . 24 da Lei
8.666/93 dizem respeito à “manifestação de desequilíbrio na relação
custo/benefício”, nos casos em que o “custo econômico da licitação é
superior ao benefício dela extraível”.
Para que haja a dispensa da licitação face ao
pequeno valor do contrato, entretanto, imperativa é a observância
rigorosa dos requisitos legais. No caso do inciso I do art. 24 da Lei
8.666/93, ou seja, para obras e serviços de engenharia, exige o
legislador, para a dispensa da refrega licitatória, que não se trate de
parcelas de uma mesma obra ou serviço, ou de obras e serviços da
mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta
e concomitantemente. Já na hipótese do inciso II do art. 24, que trata
de serviços diversos, compras e alienação, reza a Lei de Licitações que
o certame só pode ser dispensado para cada parcela se o serviço, a
compra ou a alienação não puder ser realizada de uma só vez. Nesses
casos, no dizer de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, deve ser
devidamente apresentada pela autoridade justificativa adequada que
contenha “as razões pelas quais não foi possível efetuar a compra ou alienação ou contratar
a prestação de serviços de uma só vez”.
Com efeito, o administrador público, ao efetuar a
realização
das
adequadamente
despesas
os
atinentes
procedimentos
a
compras,
deve
licitatórios,
planejar
segundo
a
disponibilidade de sua dotação orçamentária. Como ensina JORGE
ULISSES JACOBY FERNANDES, “as compras promovidas pela Administração Pública
devem ser precedidas de planejamento e ocorrer em oportunidades/períodos preestabelecidos.
A compra deve ser feita de uma só vez, pela modalidade compatível com a estimativa da
totalidade do valor a ser adquirido, mas sempre permitida a cotação por item”.
No mesmo sentido, o ensinamento de MARINO
PAZZAGLINI FILHO, MÁRCIO FERNANDO ELIAS ROSA e WALDO FAZZIO
JÚNIOR:
“Não basta, pois, o pequeno valor do objeto a ser contratado. É
imprescindível que este não seja parcela de outro que deva ser regularmente licitado, ainda que
de forma sucessiva ou simultânea.
Em conclusão, não é lícito destacar pequenas obras e serviços de ínfimo
valor, de um conjunto de obras e serviços necessários ao bem comum, salvo se presentes
inafastáveis razões de natureza técnica, inclusive para maior competitividade (art. 8o, §1º)”.
Ao comentar ditos dispositivos legais, LUIS CARLOS
ALCOFORADO preleciona que “o escopo da regra foi o de coibir o fracionamento
irregular ou imotivado da licitação, tática, muitas vezes, traçada pelo mau administrador, para
contratar, de maneira ímproba e ilegal, com um apaniguado de sua preferência”.
Insta gizar que toda e qualquer dispensa de licitação
deve estar prévia e formalmente justificada, já que, segundo a lição de
WALDO FAZZIO JUNIOR, “a regra é a licitação. A dispensa é excepcional. A
impossibilidade licitatória é ditada pelo interesse público e por isso deve ser devidamente
justificada. É requisito da seriedade e da validade dos atos administrativos que haja a
explicitação dos motivos da dispensa da licitação, para que se possam confrontar os declinados
pela Administração Pública com os efetivamente existentes na realidade empírica”.
Todavia,
lamentavelmente,
constitui
prática
corriqueira na administração pública a dispensa indevida e injustificada
de licitação, ocorrida a partir do irregular parcelamento de despesas,
de modo a adequar fraudulentamente cada contratação direta
individual ao limite de R$8.000,00 estabelecido pela Lei 8.666/93.
3.A improbidade administrativa nos casos de
fracionamento
da
despesa,
como
burla
do
e
Lei
certame licitatório.
3.1.
Fracionamento
de
compras
a
8.429/92.
A não-realização de licitação, quando obrigatório o
certame público, configura improbidade administrativa, que pode
encontrar tipificação tanto no catálogo da norma do art. 10 da Lei
8.429/92 como no da norma do art. 11 da Lei 8.429/92.
Na primeira hipótese, a não-realização de licitação é
acompanhada
de
prejuízo
ao
erário,
configurando
improbidade
administrativa justificada pela norma do art. 10, VIII, da Lei 8.429/92;
na
segunda
hipótese,
a
não-realização
de
licitação
configura
improbidade administrativa por ofensa aos princípios que informam a
administração pública e também por violação aos deveres de
honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade, conforme se pode
inferir da norma do art. 11, ‘caput’, da Lei 8.429/92.
Com efeito, bastante comum é o procedimento
administrativo de fragmentar as compras, no intuito de manter o valor
de cada aquisição individual dentro do limite imposto pela Lei
8.666/93, para viabilizar a dispensa de licitação. Assim, ao invés de
efetuar uma compra programada de determinado material, mediante
procedimento licitatório, o administrador opta por fragmentar a
aquisição em pequenas compras, para que o valor individual de cada
uma delas esteja abaixo do limite de R$8.000,00, oportunizando,
destarte, a dispensa de licitação.
Em regra, o fracionamento irregular das despesas
relativas a compras pode ser detectado a partir da constatação da
sucessiva contratação de aquisição de mercadorias, em determinado
período, ao invés da realização de licitação única para oportunizar a
compra destas mesmas mercadorias durante o mesmo período, de um
fornecedor selecionado a partir do certame público exigido em lei.
Consoante a lição de EMERSON GARCIA e ROGÉRIO
PACHECO ALVES, a identificação do procedimento fraudulento, no
fracionamento indevido de despesas, deve ser feita com a análise
individualizada das situações fáticas que serviram de elemento
deflagrador de cada um dos contratos, bem como com o exame da
natureza dos objetos das sucessivas contratações e a proximidade
temporal entre as transações, para que determinadas operações, que
individualmente seriam lícitas, sejam visualizadas em conjunto, de
modo a restar demonstrado o seu fim juridicamente ilícito.
Para
que
se
analise
eventual
ocorrência
de
irregularidade no fracionamento de despesas, primeiramente cumpre
seja
examinado
se
houve
alguma
circunstância
excepcional
a
caracterizar a emergencialidade em cada uma das contratações.
Depois, indispensável é a verificação da identidade de objeto em cada
uma das compras, como, por exemplo, sucessivas aquisições de
medicamentos.
Além
disso,
recomendável
a
demonstração
da
proximidade temporal entre os contratos, de modo a evidenciar a
intenção do administrador de não realizar licitação, evitando a
estocagem de produtos, e de utilizar a contratação direta como única
forma de aquisição de determinado bem material, durante certo
período.
Cumpre, também, estabelecer uma diferenciação
entre o fracionamento de contratações previsto no art. 23, §5º, da Lei
8.666/93, com o fracionamento realizado apenas para burlar a
obrigatoriedade de licitação nas compras da administração pública. O
fracionamento contemplado pelo art. 23, §5º, da Lei de Licitações,
refere-se aos casos em que parcelas de natureza específica de uma
obra ou serviço podem ser executadas por pessoas ou empresas de
especialidade diversa daquela do executor da obra ou serviço
globalmente considerado. Tal hipótese, no dizer de JESSÉ TORRES
PEREIRA JÚNIOR , constitui exceção à vedação do “uso do convite ou tomadas
de preços para licitar a execução de parcelas de obra ou serviço, nas hipóteses que menciona”,
sendo que “a especialização derroga a vedação porque resultaria preservada a regra geral
de evitar o parcelamento da execução que favoreça determinado licitante, em detrimento dos
demais”.
Como visto, o fracionamento excepcional admitido no
art. 23, §5º da Lei de Licitações, aplicável apenas aos casos de obras e
serviços, não se confunde com o fracionamento indevido ora objeto de
estudo. Novamente socorremo-nos da lição de MARÇAL JUSTEN FILHO,
que, ao tratar do somatório de parcelas, elucida com clareza o
fundamento da vedação do fracionamento das despesas que podem
ser realizadas conjunta e concomitantemente, salientando que, em
verdade, o fracionamento é válido, contanto que as contratações
fracionadas não sejam consideradas de forma isolada, para fins de
determinar o cabimento da realização de licitação ou mesmo para
escolha da modalidade do certame licitatório conforme o valor.
Vejamos, pois, seu lapidar escólio:
“Ou seja, é perfeitamente válido (eventualmente, obrigatório) promover
fracionamento de contratações. Não se admite, porém, que o fracionamento conduza à dispensa
de licitação. É inadmissível que se promova dispensa de licitação fundando-se no valor de
contratação que não é isolada. Existindo pluralidade de contratos homogêneos, de objeto
similar, considera-se seu valor global – tanto para fins de aplicação do art. 24, incs. I e II, como
relativamente à determinação da modalidade cabível de licitação.
Não se admite o parcelamento de contratações que possam ser
realizadas conjunta e concomitantemente. Seria permitido o parcelamento para contratações
sucessivas? Não há resposta absoluta. Depende das circunstâncias, tal como exposto a
propósito do art. 23, §5º, especialmente quanto ao princípio da moralidade. Significa que, sendo
previsíveis diversas aquisições de objetos idênticos, deve considerar-se o valor global. A regra
subordina a Administração ao dever de prever todas as contratações que realizará no curso do
exercício. Não se vedam contratações isoladas ou fracionadas – proíbe-se que cada contratação
seja considerada isoladamente, para fim de determinação do cabimento de licitação ou da
modalidade cabível. Se a contratação superveniente derivar de evento não previsível, porém,
nenhum vício existirá em tratar-se os dois contratos como autônomos e dissociados”.
Estabelecido,
fracionamento de
pois,
que
o
expediente
de
compras pode vir a configurar procedimento
fraudulento para dispensar a licitação de realização obrigatória,
cumpre examinar especificamente a caracterização do dano ao erário
e da violação dos princípios da administração pública, nesse tipo de
conduta administrativa.
3.2 Improbidade administrativa por dano ao
erário.
O agente público não possui livre arbítrio para
contratar, ao contrário do administrador privado. Está ele jungido às
restrições impostas pela lei, entre as quais a obrigatoriedade da
licitação, como forma a assegurar a observância dos princípios da
impessoalidade, da legalidade, da eficiência, da publicidade e da
moralidade nos contratos administrativos. Além disso, mesmo nos
casos de dispensa de licitação, o princípio da economicidade também
impõe ao administrador que, ao contratar, busque as condições mais
vantajosas para o erário, evitando, assim, que este possa sofrer
qualquer tipo de prejuízo na relação contratual.
Efetuando sucessivas contratações diretas, com o
nítido intuito de frustrar a realização do certame
licitatório, o
administrador causa manifesto dano ao erário, na medida em que não
é viabilizada a livre concorrência de mercado, que, pelas leis da
economia, tende a reduzir os preços. Com isso, o Poder Público
contrata diretamente junto a determinado fornecedor, pagando preços
superiores aos que poderia obter em uma licitação, por não se permitir
conhecer quais seriam as condições de preço e pagamento propostas
pelos demais fornecedores do mercado. Aliado a isso, não é raro que
reste constatada a sobrevalorização dos produtos adquiridos em
contratos realizados sem prévia licitação, de modo a viabilizar o
enriquecimento
ilícito
de
terceiros,
em
geral
apaniguados
do
administrador.
Por certo que em cada caso deverá ser analisada a
efetiva ocorrência do dano ao erário.
Isto porque, no dizer de
FRANCISCO OCTAVIO DE ALMEIDA PRADO, para fins de tipificação das
condutas previstas no art. 10 da LIA, é imprescindível a efetiva
ocorrência de dano ao patrimônio público, não se aplicando, a este
artigo, a previsão do art. 21, inc. I, do mesmo estatuto, já que a
existência do resultado danoso é elemento integrante do próprio tipo
que prevê a infração.
O exame da ocorrência de lesão ao erário é
viabilizado a partir da análise minuciosa dos preços praticados nos
contratos realizados sem prévia realização de licitação, em cotejo com
os preços de mercado da época do contrato.
Uma vez constatada a sobrevalorização dos produtos
adquiridos através da contratação direta, propiciada pelo expediente
fraudulento da dispensa indevida de licitação, estará caracterizado o
dano ao erário, podendo ser aplicado, na espécie, o art. 10, inc. VIII, da
LIA, desde que reste demonstrada a existência da conduta dolosa ou,
no mínimo, com culpa grave por parte do administrador público.
3.3 A improbidade administrativa por ofensa
aos princípios da administração pública.
O art. 11, ‘caput’, da Lei 8.429/92 nada mais é do
que uma decorrência lógica do art. 37, ‘caput’, da CF e também do
art. 4o da LIA, que instituiu, na legislação ordinária, o dever jurídico do
administrador de obedecer aos princípios regentes da administração
pública, na execução de seu mister. Isto porque incumbe ao gestor
público, no exercício da atividade estatal, observar rigorosamente a
juridicidade de sua conduta administrativa, de modo a não macular os
ditames constitucionais indissociáveis dos padrões de probidade
administrativa de todos os atos do Poder Público.
A correção desta assertiva pode ser demonstrada a
partir da norma do art. 37 da Constituição Federal, segundo a qual a
administração pública deve obedecer aos “princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
A respeito da conduta administrativa de fracionar
compras ao longo do exercício, com o intuito de não realizar o
procedimento licitatório exigido em lei, é clara
a orientação
jurisprudencial:
“O Prefeito Municipal, como ordenador de despesas, não pode deixar
de ser responsabilizado criminalmente, nos termos do art. 89, da Lei nº 8.666/93, quando burla a
exigência de licitação, através de expedientes fraudulentos, como o fracionamento de
despesa ou, ainda, quando frauda o próprio certame, com propostas contendo data anterior à
do convite, condutas estas, ademais, diversas da descrita no art. 1º, XI, do Decreto-Lei nº
201/67, pelo que não há falar em bis in idem. Recurso não conhecido” (o
grifo é nosso).
Se o ordenamento jurídico exige que a compra
de determinados bens, pela administração pública, seja precedida de
licitação, a indevida e deliberada dispensa do certame público
configura
prática de ato ilegal, com violação do princípio da
legalidade, com clara repercussão tanto na esfera criminal, com a
aplicação do art. 89 da Lei 8.666/93, como com a aplicação da LIA, em
sede de responsabilidade civil.
A
respeito
do
princípio
da
legalidade,
convém
consignar o magistério de HELY LOPES MEIRELLES, quando salienta
que ”o
administrador público está, em toda a sua atividade
funcional, sujeito aos
mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar,
sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal,
conforme o caso”.
O
agente
que
privilegia
indevidamente
determinado fornecedor, a partir da contratação direta de determinado
serviço, obra ou aquisição de produto, viola, também, o princípio da
impessoalidade. Sobre o princípio da impessoalidade, a teor do art. 4º
da Lei nº 8.429/92, ensina Marino Pazzaglini Filho et al, que este é
“decorrência direta do princípio democrático”, tendo o “administrador o dever de, como mero
gestor da res publica, não fazer seu ou de alguns aquilo que é de todos”.
Além disto, o princípio da moralidade, assim como o
dever
de
honestidade,
também
restam
maculados
com
a
inobservância da realização obrigatória de licitação, senão vejamos.
Ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA, citando Hauriou, que
a moralidade administrativa consiste “no conjunto de regras de conduta tiradas da
disciplina da Administração”.
Portanto, ao utilizar o poder no qual foi investido
por mandato popular, para dispensar indevidamente o imprescindível
certame
licitatório,
e beneficiar
indevidamente
os fornecedores
agraciados com as contratações diretas, o agente infringe o princípio
da moralidade e o dever de honestidade, ínsitos a todo administrador
público. E se a expectativa normativa é de que o administrador público
paute sua conduta em conformidade com o disposto no ordenamento
jurídico, o comportamento administrativo que desborda desse padrão
de observância rigorosa dos parâmetros legais viola, também, a
moralidade administrativa.
A respeito do dever de honestidade, é lapidar o
escólio de FRANCISCO OCTAVIO DE ALMEIDA PRADO, quando preconiza
que este “é conseqüência direta do princípio da probidade administrativa, que vem a ser um
aspecto da
moralidade administrativa(...), sendo “a probidade administrativa o dever de o
‘funcionário público servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício das suas
funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de
outrem a quem queira favorecer”.
4. Improbidade
administrativa
e
elemento
subjetivo.
Conforme lição de BENEDICTO PEREIRA PORTO
NETO e PEDRO PAULO DE REZENDE PORTO FILHO,
para que
determinada conduta possa ser tachada de ímproba, a contrariedade
ao ordenamento jurídico deve ter ocorrido em condição especial, vale
dizer, deve ofender a moralidade administrativa. Isto porque “a
imoralidade administrativa não pode ser tida apenas como violação de
uma norma jurídica”, já que não se pode reduzir a noção de ato
ímprobo à de ato ilegal. Para que reste configurada a conduta ímproba,
é indispensável
que a violação da norma esteja qualificada pelo
elemento subjetivo do agente administrativo, isto é, a vontade
direcionada ao atingimento de resultado ilícito e imoral.
Como é sabido, a Lei 8.429/92, ao instituir as sanções
para as práticas
ímprobas, também trouxe consigo a exigência da
análise do móvel da conduta do agente, com vistas à caracterização
ou não do ato de improbidade administrativa. Aliás, como de regra no
direito moderno, a Lei de Improbidade Administrativa trata de
responsabilidade subjetiva, sendo imperativo, destarte, o exame da
eventual existência de dolo, nos casos dos arts. 9o e 11, e, no mínimo,
de culpa grave, nos casos do art. 10 da LIA.
Isto
porque,
em
se
tratando
de
improbidade
administrativa, onde a responsabilidade civil é subjetiva, não é
suficiente a só comprovação da relação de causalidade entre a
conduta do agente e o resultado, sendo imprescindível a constatação
do vínculo subjetivo entre a ação e o resultado prejudicial.
A responsabilidade pessoal do administrador que
deliberadamente fraciona despesas atinentes à aquisição de um
determinado produto e ignora o somatório das parcelas, para viabilizar
a indevida dispensa de licitação, resulta evidenciada a partir do exame
das condições fáticas em que descumprida a obrigatoriedade do
certame.
Com efeito, é bastante comum o fracionamento das
despesas com aquisição de medicamentos, pelos Municípios, onde
resta clara a intenção do administrador em não realizar certame
licitatório, de modo a beneficiar indevidamente seus apaniguados. O
expediente utilizado é bastante simples. As compras de medicamentos
são fracionadas, sendo realizadas, em alguns casos, todos os dias ,
conforme a demanda dos postos de saúde e hospitais. Assim, o valor
individual de cada compra não supera o limite de R$8.000,00
estabelecido pela Lei 8.666/93. Todavia, somados os valores de cada
compra individual de medicamentos durante determinado período,
resta
claramente
descumprido
o
preceito
constitucional
da
obrigatoriedade da licitação. Observe-se que em se tratando de
medicamentos, principalmente aqueles integrantes da listagem dos
remédios de atenção básica, é imperativo que o Município realize
periódica programação de compras, de modo a suprir constantemente
seus estoques, a fim de que não faltem medicamentos à população
necessitada e para que não tenha de adquirir produtos diretamente
nas farmácias, ao preço de balcão. Ademais, ao não realizar licitações
para compra de remédios, resta indubitável que o agente público tem
a clareza de que a sua decisão administrativa representa indisfarçável
favorecimento a determinados fornecedores em detrimento de outros,
configurando, assim, além de possível dano ao erário, grave infração
aos princípios da legalidade, da publicidade, da eficiência, da
impessoalidade e da moralidade administrativa, resultando também
violados os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade.
Eis aí a prova do dolo que se deve buscar no
inquérito civil e posteriormente na ação de responsabilidade por ato de
improbidade administrativa, qual seja, a vontade livre e consciente do
agente público de violar os princípios da administração pública ou
então,
mais
além,
de
beneficiar
indevidamente
determinados
fornecedores, agraciando-os com sucessivas contratações diretas,
valendo-se da inobservância do somatório
geral dos valores das
compras relativas ao mesmo objeto, e considerando cada compra
isoladamente, para dispensar indevidamente o imprescindível certame
licitatório. Tal expediente fraudulento, que fraciona valores de
compras, para que, individualmente, não ultrapassem o limite para o
qual está autorizado legalmente a dispensar o certame licitatório,
evidencia o dolo do gestor público, de modo a viabilizar a imputação
de ato de improbidade administrativa.
5. Conclusão.
A
Lei
Federal
8.666/93,
com
hialina
clareza,
preocupou-se em vedar o parcelamento indevido do objeto a ser
adquirido pela Administração, no caso da contratação sem precedência
de licitação. Isto tendo em conta a indivisibilidade do objeto, que deve
ser mantido íntegro, de modo a evitar fragmentação de despesas que
dão margem a dispensas indevidas de licitação. Desta feita, o
parâmetro para definir a correção de eventual dispensa de licitação
deve ser o objeto da contratação em sua integralidade, consoante a
quantidade suficiente para suprimento das necessidades já existentes
e previsíveis da Administração Pública, durante determinado período.
Resta claro que não está vedado ao administrador
adquirir determinado produto de forma parcelada, desde que esta
fragmentação nas compras relativas a objetos idênticos esteja prevista
em um planejamento de despesas para o exercício, de modo que o
total de cada compra não seja considerado isoladamente para fins de
definir a necessidade da realização de licitação. Desta feita, impõe-se,
no caso de fracionamento de compras, que haja o somatório de todas
as parcelas previstas para o exercício, a fim de que se viabilize a
programação prévia da realização de licitação, bem como de sua
modalidade.
Conclui-se, portanto, que ao administrador público
está vedado fracionar compras de
produtos de idêntica natureza e
considerar o valor isolado de cada aquisição, para viabilizar a contínua
e reiterada dispensa de licitação pelo pequeno valor, ignorando o
somatório das parcelas das demais compras dos produtos da mesma
natureza.
Cumpre
ao
Ministério
Público,
na
condição
de
defensor da ordem jurídica e do patrimônio público, tendo também a
atribuição de zelar pela responsabilização dos agentes tidos como
ímprobos, examinar com rigor e bom-senso os casos de fracionamento
de compras pela administração pública, de modo a impedir a
disseminação das fraudes no fracionamento de despesas. Uma vez
constatado o indevido fracionamento das compras, com o propósito de
burlar deliberadamente a obrigatoriedade da realização de licitação, o
caso é de ajuizamento de ação de responsabilidade por ato de
improbidade
administrativa
contra
os
ordenadores
da
despesa
(Prefeito Municipal, Secretário Municipal da Saúde), tanto por eventual
lesão causada ao erário, como pela violação dos princípios regentes da
administração pública.