universidade federal da bahia instituto de geociências
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA MESTRADO EM GEOGRAFIA MATTEUS FREITAS DE OLIVEIRA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO PRINCESAS DO SERTÃO: O UNIVERSO TRANS ENTRE O ESPELHO E AS RUAS DE FEIRA DE SANTANA-BA. Salvador - BA Julho de 2010 1 MATTEUS FREITAS DE OLIVEIRA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO PRINCESAS DO SERTÃO: O UNIVERSO TRANS ENTRE O ESPELHO E AS RUAS DE FEIRA DE SANTANA-BA. Dissertação apresentada ao programa de PósGraduação em Geografia do Instituto de Geociências, da Universidade Federal da Bahia como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Geografia. Área de concentração: Geográfico. Análise Orientador: Prof. Dr. Wendel Henrique Salvador - BA Julho de 2010 do Espaço ___________________________________________________________________ _ O48 Oliveira, Matteus Freitas de. Pr i nc es as do s e r t ão : o u n i v er s o tr a ns e ntr e o es p e lh o e as r uas de F e ir a de Sa nt an a / M at te us F r e i tas de O l i ve ir a. Salvador, 2010. 268f. : il. Orientador: Prof. Dr. Wendel Henrique. Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-graduação em Geografia. Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, 2011. 1. Territorialidade Humana – Feira de Santana (BA.). 2. Transexualidade. 3. Espaço público – usos e costumes. 4. Teoria queer. 5. Prostituição. I. Henrique, Wendel. II. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Geociências. III. Título. CDU: 911.3:392.6-55.34(813.8) ______________________________________________________________ Elaborada pela Biblioteca do Instituto de Geociências da UFBA. [...] Não cheguei nem perto do fundo da questão. Aliás, não cheguei perto do fundo de nenhuma questão sobre a qual tenha escrito [...] Clifford Geertz “O espaço formal e quantificado nega as diferenças, tanto as que provêm da natureza e do tempo (histórico) como as que procedem dos corpos, idades, sexos, etnias [...]. Uma das contradições inerentes ao espaço abstrato consiste no fato de negar o sensual e o sexual, ainda que possua como referência a genitalidade: a célula familiar, a paternidade, a maternidade, a identidade situada entre a fecundidade e o gozo” Henri Lefebvre Dedico essa dissertação a minha mãe Lucy, meu pai Léo e todos meus familiares que suportaram as ausências durante esses dois anos. AGRADECIMENTOS Constituindo-se em tentativas exaustivas de esforços, uma dissertação se realiza numa trama que entrelaça pessoas e situações de formas mais diversas. Depositamos, a cada linha dessas laudas, imensuráveis doses de sentimentos que consubstanciaram o sentido profissional para um produto fenomênico. Por mais técnica, mesmo tratando de simulações de modelos ou ainda tratando de questões globais, o desenvolvimento de qualquer redação de conclusão de mestrado situa-se nos interstícios dos sentidos. Nela está presente uma série de expectativas que se retraem, ora se expandem e se misturam com as outras forças do universo. As pessoas seriam um dos melhores exemplos, senão o mais importante, das outras forças que movem o fazer do mestrado, e sem elas, o processo seria inviável. Das pessoas eclodem as possibilidades, estratégias de criatividade e a interpretação dos fenômenos. Elas nos ajudam a pensar e reelaborar, constantemente, aquilo que determinamos como nosso objeto de pesquisa. Esse é o momento de agradecer a tais forças que fazem o universo se mover e o são. Agradeço, inicialmente, a Deus, meu mestre, de onde a vida brota. Ele possibilitou inúmeras conquistas, até então, nunca sonhadas. Nos momentos de aflição soube compreender as amarguras, medos e frustrações, alimentando-me de alegria e paz para finalizar essa etapa. A minha família pelo apoio incondicional aos meus sonhos e pela felicidade de estarem sempre celebrando a concretização de cada etapa dessa dissertação. Aos meus amigos que, inúmeras vezes, sinalizaram por e-mails ou ligações telefônicas algumas reportagens, livros e outros materiais que tratavam da temática desse estudo. Em especial, à Vadinho pela valiosa ajuda e apoio nunca negado, obrigado pelo acolhimento na cidade de Salvador para cumprir os créditos do programa de mestrado. Em relação ao Programa de Pós-Graduação, gostaria de sinalizar a importante parceria com meu orientador, Prof. Dr. Wendel Henrique, que durante a orientação dessa pesquisa nunca impôs limites teórico-metodológicos, pelo contrário, sempre soube acompanhar com distinção as minhas escolhas com suas análises importantes. Aos professores e funcionários do programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Bahia pelo incentivo e críticas que fizeram esse trabalho amadurecer. Dentre eles, destaco os professores Dra. Catherine Prost, Dra. Guiomar Inez Germani, Dr. Cristóvão de Cássio da Trindade de Brito e Dr. Angelo S. Perret Serpa, que trocaram informações valiosas e dicas que facilitaram o desenrolar da pesquisa. Aproveito para sinalizar gratidão as contribuições construtivas do Prof. Dr. Leandro Colling no acompanhamento dessa pesquisa enquanto projeto e produto, revelando-me um olhar queer para o espaço. Aos colegas do grupo de pesquisa Cidade, Território e Planejamento – CiTePlan, pelos debates profícuos e socializações: Elissandro Trindade de Santana, Hiram Souza Fernandes, Shanti Nitya Marengo, Adriana Santana Bittencourt, Lívia Fraga Celestino e Rodrigo Cortes Almeida. Aos colegas do mestrado, sobretudo aqueles que compõem o Grupo Lúdico, sem essa alternativa epistemológica seria impossível chegar até aqui: Juliana, Cyntia Flores, Daniela, Edcarlos, Karina Fernanda, Elane Bastos, Lívia, Aluztane, Ana Lúcia, José Eduardo, Joseval, Aline, André Gustavo, Anneza, André Nunes, Antônia dos Reis, Luana e Luciana. Aos colegas da Geografia que estiveram presentes nesse caminho: Denilson (UFBA), Danillo (UFBA), Jailton (UFS), Patrício (UFMG), Sidney Oliveira (UEFS), Marcio Ornat (UFRJ) e Joseli Silva (UEPG). À coordenadora do laboratório de Geoprocessamento da UEFS, Profa. Ms. Jocimara Britto Lobão, pelo apoio técnico, na concessão de softwares, dados e máquinas para o mapeamento da prostituição Trans. A Erielton Oliveira e a Diego Carvalho pelo acompanhamento nas atividades de campo. Ao Colégio Estadual Olavo Alves Pinto e Projeção pela compreensão de determinadas ausências e o G7 pelo movimento colorido que não deve cessar. E por fim, a todas as Trans e sujeitos queers que fizeram essa pesquisa acontecer: Marilyn Monroe, Brigitte Bardot, Sophia Loren, Joan Crawford, Ava Gardner, Grace Kelly, Elizabeth Taylor, Greta Garbo, Bette Davis, Romy Schneider, Claudia Cardinale, Ingrid Bergman, Lauren Bacall, Rita Hayworth, Catherine Deneuve, Katharine Hepburn, Marlene Dietrich e Audrey Hepburn. Espero que um dia, em nossas pesquisas acadêmicas, possamos tratá-las fora do campo do anonimato. Obrigado garotas pelo aprendizado durante tardes e noites intensas. A confiança e o respeito mútuo favoreceram o desenrolar dessa história. RESUMO Essa dissertação é fruto de um estudo de caso sobre a prostituição Trans na cidade de Feira de Santana-BA e o uso do espaço urbano a partir das intervenções infraestruturais sanitaristas que marcaram as décadas de 70 à 90. A cidade de Feira de Santana-BA possui uma importância política e econômica que ultrapassa a escala estadual, se destacando no setor comercial, rodoviário e pelo porte industrial. Tais fatores favoreceram, ao longo de 40 anos a organização da territorialidade da prostituição Trans nas principais avenidas do Centro da cidade. Entendemos por Trans todo e qualquer sujeito que possuem performatividades de gênero para além do binarismo, não correspondendo a matriz da heterossexualidade. A linearidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo sexual corresponde à matriz disseminada e reiterada na sociedade que se propõe manter a ordem dos gêneros a favor da heterossexualidade baseadas na naturalidade dos corpos e dos comportamentos. Os corpos que não compartilham dessa lógica são deslocados para o campo da abjeção, vivendo nas zonas inóspitas e inabitáveis dos gêneros. Os seres abjetos são cerceados pelas instituições normatizadoras que se encontram espacializadas na malha urbana para fiscalizar, vigiar e manter as normas que favorecem a dominação masculina. O grupo em análise dessa pesquisa possuem histórias de vida que contrariam a matriz da heterossexualidade, correspondendo a homens biológicos que se relacionam sexualmente com outros e para além disso investem em transformações corpóreas com o auxilio de maquiagens, roupas femininas, hormônios e silicone. O uso cotidiano das avenidas centrais favoreceu a instituição do território da prostituição que possui suas lógicas de funcionamento. Dentre elas temos a produção do ponto de trottoir, a influência das mais velhas, o Bajubá, o uso de armas brancas, o pedágio, a multa e a madrinhagem. Apesar de se constituir numa atividade que faz circular lógicas capitalistas, a prostituição Trans se efetiva num rico laboratório enriquecedor do gênero. As práticas espaciais das Trans generificam o espaço além de alcançar e generificar outros corpos imbricando sua rede de sociabilidade. Palavras-chave: Território, Trans, Feira de Santana, sexualidade e gênero ABSTRACT The present essay is an case research about the Trans prostitution at the city of Feira de Santana-Ba and the way that the urban space has being used after the sanitarian interventions on the infrastructure that make history from 70’s to 90’s. The city of Feira de Santana-Ba has an economic and political importance that transcends the scale of Bahia state, considering its commercial importance, the interchange, and the large industrial scale. All of this elements favor, through 40 years the Trans prostitution territoriality organization on the main avenues in downtown. We define as Trans all and any fellow that have performative gender beyond the binary, that does not corresponds to the heterosexual matrix. The linearity between sex, gender, sexual practice and lust corresponds to the broadcasted and reaffirmed matrix in a society that proposes to keep the gender regularity favoring the heterosexuality based on the body naturalness and behaviors. The bodies that does not share this logic are moved to the abjection realm, living at the inhospitable and uninhabitable gender zones. The abject beings are restricted by the normalize institutions that are scattered at the urban mesh to control, to keep watch over and to keep the rules that favor the male domination. The analyzed people in this research have life histories that are at odds with the heterosexual matrix, corresponding to biological men that have sexual relations with other men and beyond that, they pay for bodily transformation wearing makeup, female clothes, hormones and silicone. The everyday use of the central avenues facilitate the prostitution territory institution that has its own logic. Talking about that we can cite the production of the trottoir place, the elderly influence, the Bajubá, the melee weapons usage, the toll, the fine and the matron of honor. In spite of its construction, in an activity that makes the capitalist logics spread around, the Trans prostitution puts into effect a rich lab that enriches the gender. The spacial practices genderfy the space, reaches and genderfy other bodiers overlapping its sociability net. Word-keys: Territory. Trans. Feira de Santana. Sexuality. Gender. LISTAS DE FIGURAS Figura 01 A Igreja Senhor dos Passos: O poder do Clero 17 Figura 02 O Posto Policial Militar: O poder da Milícia 18 Figura 03 A Prefeitura Municipal de Feira de Santana: O poder do 19 Estado Figura 04 Opulência das arquiteturas normativas vigilantes 19 Figura 05 Marca de Boiadas nas calçada da Avenida Senhor dos 20 Passos Figura 06 Posicionamento do Relógio da Praça de Alimentação na 25 orientação oeste-leste em momentos diurnos distintos. Figura 07 Vista frontal da Praça Bernardino Bahia 26 Figura 08 Barracas dos camelôs usadas para encontros sexuais 28 nas ruas do Meio e Sales Barbosa respectivamente. Figura 09 Casarão Fróes da Mota- década de 70 140 Figura 10 Casarão Fróes da Mota: Propriedade da Fundação 141 senhor dos Passos, 2010 Figura 11 Rua Sales Barbosa: alterações infra estruturais pós 142 década de 70. Figura 12 Praça dos Remédios: Do abandono à recuperação 143 Figura 13 Praça Bernardino Bahia: década de 70 e 2010. 145 Figura 14 Mercado Municipal de Artes e Antiga Rua do Meio 146 Figura 15 Sistema de transportes coletivos de Feira de Santana na 150 década de 80. Figura 16 A feira na Feira de Santana meados da década de 80 151 Figura 17 Avenida Presidente Dutra 156 Figura 18 Ponto do trottoir da avenida Marechal Deodoro com 161 ênfase a banca de revista Brasil LISTA DE FLUXOGRAMAS Fluxograma 01 Síntese sobre a aplicação do pedágio e da multa 179 Fluxograma 02 Rede de madrinhagem entre as Trans pesquisadas 183 Fluxograma 03 Hierarquia de influência na rede de sociabilidade 186 Trans Fluxograma 04 Trama e agentes envolvidos no Doce 189 LISTAS DE MAPAS Mapa 01 Bairro que as Transformista residem atualmente 104 Mapa 02 Bairro que as Travestis residem atualmente 107 Mapa 03 Bairro que as Transexuais residem atualmente 110 Mapa 04 Deslocamentos externos para Itália 113 Mapa 05 Lojas mais freqüentadas pelas Trans 114 Mapa 06 Motéis mais freqüentados pelas Trans 115 Mapa 07 Farmácias mais freqüentadas pelas Trans 116 Mapa 08 Território da prostituição Trans entre as décadas de 70-80 148 Mapa 09 Território da Prostituição entre as décadas de 80-90 Mapa 10 Território da prostituição Trans entre da década de 90 até 158 154 os dias atuais Mapa 11 Novo território da prostituição Trans de 2005 até os dias 163 atuais Mapa 12 Espacialização histórica dos territórios da prostituição em 164 diferentes períodos Mapa 13 Locais que as Trans mais se identificam em Feira de 174 Santana LISTA DE QUADROS Quadro 01 Triagem das informantes Trans da pesquisa 33 Quadro 02 Triagem dos nomes de gays citados pelas Trans durante 34 as entrevistas. Quadro 03 Universalismos dos gêneros da escola Beauvoriana 47 Quadro 04 Panorama socioeconômico das Transformistas de Feira 78 de Santana Quadro 05 Panorama socioeconômico das Travestis de Feira de 86 Santana Quadro 06 Panorama socioeconômico das Transexuais de Feira de 96 Santana Quadro 07 Consumo preferencial trans- vestuário e farmácias 219 Quadro 08 Lugares de identificação trans em Feira de Santana 222 Quadro 09 Pontos e permanência de prostituição 225 Quadro 10 Deslocamentos intraurbanos Trans 227 Quadro 11 Identidade, idade e tempo de generificação 228 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 01 Nível de escolaridade das Transformistas feirenses 78 Gráfico 02 Nível de escolaridade das Travestis feirenses 87 Gráfico 03 Nível de escolaridade das transexuais feirenses 94 SUMÁRIO AGRADECIMENTOS RESUMO ABSTRACT LISTAS DE FIGURAS LISTA DE FLUXOGRAMAS LISTAS DE MAPAS LISTA DE QUADROS LISTA DE GRÁFICOS SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................1 I- A CIDADE PRINCESA COMO ESPELHO E RUA ...................................................2 II- CAMPO .................................................................................................................13 III- NOTAS SOBRE O MÉTODO E AS TÉCNICAS DE PESQUISA .........................22 CAPÍTULO I ..............................................................................................................39 1- CORPO E ESPAÇO GENERIFICADOS: A DIALÉTICA DO GÊNERO ............40 1.1- A abordagem de Gênero para análises espaciais........................................40 1.2- Os avanços do debate de gênero e espaço.................................................43 1.3- A teoria da performatividade de gênero numa perspectiva espacial............55 1.4- As heterotopias espaciais dos gêneros divergentes ....................................61 CAPÍTULO II .............................................................................................................67 2- FAZENDO O GÊNERO E O ESPAÇO: A (RE) INVENÇÃO DO FEMININO E A (RE) INSCRIÇÃO DO ESPAÇO ............................................................................68 2.1- Princesas do disfarce ...................................................................................72 2.3- Princesas do erro da natureza .....................................................................87 2.3- A categoria Trans: universo, território e sujeito ............................................96 2.4 - Deslocamentos intraurbanos Trans ............................................................99 CAPÍTULO III ..........................................................................................................117 3- O TERRITÓRIO TRANS: AMPLIANDO HORIZONTES TEÓRICOS PARA OS ESTUDOS DE GÊNERO......................................................................................118 3.1- O estudo do conceito de território ..............................................................118 3.2- O(s) poder(es) no(s) território(s) ................................................................126 3.3- O território da prostituição nas pesquisas sociais ......................................134 3.4- Formação e apropriação do território do sexo em Feira de Santana: as mobilidades dos territórios.................................................................................138 CAPÍTULO IV..........................................................................................................165 4- FAZER A RUA: ENTRE A TERRITORIALIZAÇÃO E LUGARIZAÇÃO..........166 4.1- Estratégias territoriais, dominação e normatização dos gêneros Trans .....167 4.2- A fluidez territorial do cliente ......................................................................196 V - A GUÍSA DE CONCLUSÃO..............................................................................198 REFERÊNCIAS.......................................................................................................206 APÊNDICES ...........................................................................................................218 INTRODUÇÃO “O que queremos, de fato, é que as idéias voltem a ser perigosas” Internacional Situacionista 1 I- A CIDADE PRINCESA COMO ESPELHO E RUA “Salve ó terra formosa e bendita Paraíso com o nome de Feira Toda cheia de graça infinita És do norte a princesa altaneira” (Hino à Feira, composição de Georgina Erisman) A Princesa do Sertão é o epíteto mais utilizado nas últimas gestões municipais1 anunciada com embalos de orquestra ao soar o Hino à Feira de Georgina Erisman2. A graça infinita de Feira de Santana foi registrada por inúmeros poetas locais que elucidaram a transformação do cotidiano de uma cidade marcada pelo modo de vida rural, com o predomínio de tropeiros, carros de boi e vaqueiros que cruzavam os sertões rumo ao litoral, por uma ruptura provocada pela vida operária na cidade que se industrializava e se modernizava a partir da década de 50 do século XX. Ruy Barbosa, com base na história memorialista, numa conferência política realizada em Feira de Santana para apoiar a candidatura do governador do Estado Paulo Martins Fortes, em 25 de dezembro de 1919, criou o epíteto de Princesa do Sertão para a cidade, declarando que [...] se houvesse de dar um nome a esta série de excursões, que, muito a pesar meu, vai acabar, e já quase por momentos, chamar-lhe-ia eu ‘a minha viagem ao coração da Bahia’; pois é o coração da terra flagelada o de que, com meus companheiros, viemos todos à busca, nesta romagem pelos sertões e pelo recôncavo, de Vila Nova da Rainha à Feira de Santana, da antiga corte sertaneja à bela princesa do sertão. (FOLHA DO ESTADO, 18 de setembro de 2007) A partir desse fato, associado a todo imaginário elaborado sobre um Nordeste seco e precário, naturalizado enquanto o espaço climático da pobreza nacional, que Ruy Barbosa intitula Feira de Santana como a princesa dos flagelados sertanejos 1 O Termo Princesa do Sertão fez parte do marketing da gestão municipal de José Ronaldo de Carvalho (2000 – 2008) e da atual gestão de seu sucessor Tarcisio Pimenta, ressignificada como a cidade princesa. 2 Hino disponível no site http://www.feiradesantanna.com.br/hino.htm acessado no dia 05/02/2010. 2 rudes na labuta com o gado e do crescente comércio regional que já se projetava na escala nacional. Feira de Santana tornava-se princesa por conta da sua importância comercial atrelada à feira livre e à venda de gado, configurando-se diferente de qualquer outra cidade do interior da Bahia. De acordo com Simões (2007) o frenético movimento de pessoas na década de 40 do século XX, similar com a agitação da capital do Estado, denotava a opulência do comércio que soava como parâmetro de desenvolvimento da cidade, e como Princesa majestosa, Feira de Santana atraia para si a atenção das elites políticas e econômicas tanto regionais quanto nacionais, sendo a grande referência do sertão baiano, dentre algumas cidades litorâneas. O epíteto de Ruy Barbosa enobrecia Feira de Santana, inserindo-a num universo cultural marcado por relações sociais tradicionalistas, denso das ambiguidades de uma cidade do interior, que paulatinamente se distanciava das funções econômicas ligadas ao rural e das fortes raízes que acompanharam a formação da Vila de Sant’Anna. Para Simões (2007) as incontáveis estradas vicinais, movimentadas por imensas boiadas que migravam do Piemont da Chapada rumo ao litoral, possibilitaram a especialização das atividades comerciais e atraiam, nas segundas-feiras, um contingente de vendedores de inúmeras localidades circunvizinhas pelas facilidades de trocas, compras e vendas. As nuances da cidade de Feira e sua singular contradição na conservação de uma vida rural que é transpassada por lógicas comerciais podem ser analisados em trechos literários que remontam uma vida campesina, mas que tendenciosamente se urbanizava. A feira do rural já tinha alma e pique urbano, vendiam-se bois, bodes, utensílios para vaqueiros, muitos objetos que classificamos como rurais, mas o ato de venda, sua velocidade e freneticidade apontavam para um costume urbano que se efetivou na década de 80 do século XX nas entranhas da feira de Sant’Anna narrados pelo poeta Godofredo Rebello de Figueredo Filho FEIRA DE SANTANA Feira de Sant’Anna do grande comércio de gado Nos dias poeirentos batidos de sol compridos Feira de Sant’Anna Das segundas-feiras de agitações mercenárias Correrias de vaqueiros encourados Tabaréus suarentos abrindo chapéus enormes Barracas esbranquiçadas à luz 3 E as manadas pacientes que vêm para ser vendidas De bois do Piauí, de Minas, do sertão brabo até de Goiás.[...] (FIGUEREDO FILHO, 1977) O poeta Eurico Alves, filho da terra, que fazia parte da elite intelectual e de família burguesa, retratou em crônicas, poesias e ensaios, inúmeras situações do cotidiano da cidade princesa do início à metade do século XX. No trecho da poesia “Minha terra”, Eurico Alves nega a cidade enquanto moça e atribui-lhe ações de menino [...] Minha terra é menino um vaqueirinho vestido de couro As calças de couro cobrindo as listradas, o parapeito e o jaleco, e o chapéu enfeitado de linha vermelha... O menino já anda com a faca na cinta [...] (BOAVENTURA, 1928) A descrição de Feira de Santana na visão de Eurico Alves, analisada por Eronize Lima Souza3, produz um imaginário de uma cidade masculinizada pela virilidade dos vaqueiros, figuras centrais na historiografia do lugar, que, portado de armas, impõem-se pela sua violência, típica dos coronéis agentes sociais que mantinham a “paz” e a “ordem”. Desde então, se produz um urbano no espelho do homem heterossexual (res)significado pelo regionalismo da virilidade e coragem dos vaqueiros, mas mantém-se na ambiguidade conferida por Ruy Barbosa no reflexo da delicada, formosa e majestosa intitulação de Princesa. Henri Lefebvre (2000) já considerava que a produção do espaço é movida por forças masculinizantes. A própria descrição de Eurico Alves sobre Feira de Santana reafirma o gênero normativo presente no discurso sobre a cidade. Uma força que atua para regular o espaço na tentativa de diluir o gênero normativo na produção espacial, deixando as arquiteturas urbanas impregnadas de formas e funções discursivas, mantendo a hegemonia heterossexual dominante. Corroborando com essa afirmativa, Cortés (2008), acredita que as arquiteturas urbanas refletem a dominação masculina na sociedade pela 3 As referências sobre o artigo da pesquisadora não foram encontradas na plataforma de currículos lattes CNPq. Tal artigo, intitulado “Minha terra é menino: memórias da princesa do sertão na poética de Eurico Alves Boaventura”, está disponível na internet cujo endereço eletrônico é < http://www.valdeci.bio.br/pdf/eronize_lima_souza.pdf >. 4 exacerbação de suas dimensões infra-estruturais em que o “grande” está, ideologicamente, ligado a virilidade masculina, visto que a suntuosidade, a opulência e sua verticalização celebram a cultura do falo. Por isso os discursos celebravam a cidade de Feira de Santana como menino e não moça. Na visão de Eurico Alves uma cidade moça é frágil, suscetível a invasões, não se impõe perante o conflito e não detém autoridade de vigilância. O poema reproduz códigos da dominação masculina, descritos em Bourdieu (1999a), e sua apropriação do espaço conforme destaca Silva (2009). A rua era o local, por excelência, de homens e as casas eram espaços restritos e definidos para o confinamento das respeitadas mulheres. Nem as mulheres de “vida fácil4” transitavam pelas ruas da Princesa. Segundo Carolina Silva (2009), elas estavam espalhadas e escamoteadas nos cortiços próximos ao centro ou moravam ao lado de famílias tradicionais em casas cujos aluguéis eram pagos pelos amantes. Eis a maior contradição feirense, uma cidade cuja figura ilustrativa é um vaqueiro perspicaz e viril, e que recebe com docilidade atributos de Princesa favorecendo a boemia no centro e nas desembocaduras das periferias animadas pelas casas noturnas. O baixo meretrício, fétido e insalubre, exalava o cheiro da orgia sertaneja, era lá, nas casas noturnas controladas pela vigilância sanitária e pelo capelão, que a cidade menino se transformava em homem, iniciado entre as prostitutas e rameiras de toda região, conforme analisa Carolina Silva (2009). Dentre elas, figuras escondidas, aprisionadas pelos discursos médicos e que foram libertadas pelo rompante da modernidade, assumindo a realeza das princesas nos bailes carnavalescos da década de 70 do século XX como gays, transformistas, travestis e transexuais. Essa androgenia feirense permitiu a subversão de seu urbano em uma cidade travestida da tradicionalidade de seus fluxos, mantida pela vigilância dos agentes normatizadores dos gêneros, que, ao dormirem e “liberarem” os fluxos da rua rarefeita, permitiam que os gatos pardos5 pudessem transitar como caçadores na noite escura da Princesa, por sobre o luar do sertão. 4 Apesar de reproduzir esse rótulo presente no senso comum, compreendemos que a vida da prostituição é marcada por muitos desafios que põem em jogo a vida. Nesse sentido, a vida prostituta, negada e reprimida, é uma vida difícil. 5 Apologia ao estudo etnográfico de Larissa Pelúcio (2005), intitulado “Na noite nem todos os gatos são pardos - notas sobre prostituição travesti”. 5 As mudanças no cotidiano da cidade de Feira também foram descritas pelo poeta Eurico Alves. Uma cidade marcada pela tranquilidade, pelos idos da década de 40 do século XX, paulatinamente vai ganhando novo dinamismo com o crescente comércio e industrialização. Utilizando-se do pseudônimo de Zé Fernandes, Eurico Alves acreditava que Mudaram-se os tempos. [...] Dinamismo, vida nova, movimento e movimento. Nunca se poderá mais dizê-la “Cidade do Silêncio e da Melancolia”. Foi-se esse tempo... carros, autocaminhões, ônibus saculejando a paisagem, grita de buzinas vigorosas, alto-falantes desmentem esta legenda. Que coisa diferente. (FOLHA DO NORTE, nº 2654, 1960). As forças progressistas, como analisa Oliveira (2005), transformam o urbano feirense. A melancolia da vida tipicamente rural se esvaziava no fluir de automóveis, gerando novos sons na cidade, que se alongavam em enormes avenidas e ruas lotadas de migrantes que se apropriavam aleatoriamente dos terrenos úmidos e alagadiços do subúrbio. Hugo Navarro Silva, numa crônica dedicada para Aloísio Resende em 1951, se coloca desapontado com os clubes, casas de jogos, bordéis e a paulatina substituição da rua orgânica para espaços largos que desapareciam no horizonte, visando à fluidez de pedestres, ciclistas e automóveis, migrantes que chegavam de todas as partes. [...] A tua cidade, bisonha e, certamente, com algo de pitoresco e de romântico à época em que viveste, derramou-se, esbateu-se por sobre o planalto com o afã de quem tem um encontro marcado com o progresso. Os palacetes alinham-se como nunca se alinharam. Rasgam-se avenidas, tentáculos gigantescos que parecem pretender abarcar a orbe. Os subúrbios estão irreconhecíveis, transformados. As moças bebem whisky e fumam cigarro americano. Há dancings clubs e clubs dancings. […] A população sofreu uma extraordinária mudança. Há nortistas e nortistas, com todos os sotaques e todas as peixeiras.[...] Ontem deu dois macacos no bicho, que anda muito animado por cá. Asseguro-te, nunca houve tanta barriga a mais e tanta cabeça a menos, como agora. Os livros são muito procurados, pelo marroquim das encadernações e pelo ouro dos dorsos, para servir de ornamento a um belo hall ou a um gabinete fidalgo. As misérias, em prosa e verso, perpetram-se, não somente em letra de forma, mas agora em grande escala, também na linguagem falada que espalham as torres de aço das estações de rádio. Este é o alvorecer da segunda metade do século na província com pernosticismo de capital. (SILVA, 1951, p.4). 6 Com a ampliação das rodovias federais e estaduais o acesso à Feira de Santana foi facilitado por conta de sua localização estratégica, que posteriormente foi reconhecida com a conferência do título de maior entroncamento rodoviário do norte-nordeste. Seu comércio luxuoso, os clubes da elite, ruas e avenidas largas e as praças ajardinadas seduziam os viajantes, ao mesmo tempo em que reiteravam os discursos sobre a renovação arquitetônica da cidade atingida pelo efeito progressista. A cidade já apresentava sua impessoalidade nos novos contornos do progresso urbano. O centro de Feira agitava-se todos os dias úteis da semana. O contingente de feirantes e consumidores superlotava as avenidas centrais da cidade, onde se concentram estabelecimentos comerciais e poucas casas residenciais. Ao centro da cidade estava reservada uma vida de intensa atividade econômica, onde tudo era permitido vender. O barulho e a agitação da vida centralizada nas avenidas Senhor dos Passos e Getúlio Vargas afastaram as famílias que ainda residiam nos seus arredores, favorecendo o adensamento nas áreas periféricas da cidade, alongando a malha urbana feirense. Durante a noite o centro silenciava, aguardando a abertura dos bordéis das mulheres de vida airosas que mantinham a lógica do centro em funcionamento (SILVA, 2004). Não vendiam mais acessórios, vestuários nem alimentação. Quem quisesse comprar algo desse tipo deveria circular no centro durante o dia, pois à noite reservavam a venda do corpo e do prazer no Minadouro, no Tamarindo, no Beco da Energia e nos bares centrais onde a vida boêmia fluía. Tais espaços são transgressores, opostos à tradicionalidade dos bons costumes das famílias burguesas de Feira que estrutura o trabalho, uma cidade que historicamente apresenta a permissividade do proibido vislumbrado nas mulheres de vida fácil e seu confinamento em espaços privados onde a prostituição estava enclausurada. Segundo Carolina Silva (2009), o capelão poderia controlar a abertura e o fechamento dos prostíbulos de Feira. Quando o capelão parou de fiscalizar os bordéis da cidade, essa atividade influenciada pelas transformações frenéticas que a sociedade perpassou rumo ao progresso, baseada na venda do corpo, ganhou as ruas, transbordando e diversificando a prostituição pelo espaço central e periférico de Feira de Santana. 7 A prostituição diversificada descentralizou a figura feminina da mulher com a presença de outros sujeitos com grande potencial de atração de clientes. Gays, travestis, transformistas, transexuais e michês, além da permanência das garotas de programa, invadiram as praças, ruas e avenidas do centro feirense, diversificando e tensionado seus usos na malha urbana. Os becos com movimentos rarefeitos permitiam encontros fortuitos que se iniciavam num intenso flerte pelas calçadas do centro, encontros muitas vezes abortados pelos seguranças das lojas ou até mesmo com a ação coercitiva da polícia. Porém, entre tantos desafios, muitos deles truculentos e pondo a vida em risco, os sujeitos da noite foram resistindo e se territorializando de forma fluída, deslizando no espaço de acordo com o tempo (SOUZA, 1995). Próximo ao amanhecer entregam as chaves da rua a outros agentes que sustentam as territorialidades diurnas ligadas ao comércio que, mais uma vez, escamoteia a logística do prazer que ocorre nas ruas à noite. Dentre os agentes noturnos destacam-se, nessa dissertação, as travestis, transformistas e transexuais, que se revezam pelas ruas e becos do centro a partir do momento que as atividades diurnas se desarticulam e fazem circular por esse lugar novas lógicas, normas e símbolos. O centro é caracterizado pelo dinamismo das transações, negócios e negociatas conectadas aos setores comerciais, de serviços, gestão e sendo um local que detém enorme fluxo de pessoas, informações e veículos, mas permite, simultaneamente, a emergência de atividades ligadas à prostituição: prazer, afeto, sexo e conflito, que se delineia com o cair da noite e ao cerrar das portas dos estabelecimentos comerciais. A Praça da Bandeira, solitária e apenas monumental6, torna-se grande vitrine, onde corpos se exibem para serem notados, desejados e momentaneamente adquiridos. As esquinas são tomadas por corpos marginalizados, estigmatizados pela luta de classes, pelos cerceamentos das raças e pelas simbologias que suas performances adquiriram. Novos padrões de gênero, novos conteúdos espaciais são bordados ao longo das avenidas. E, juntamente com o vai-e-vem reduzido de veículos e pedestres, desfilam no centro as donas da noite7, exalando prazer e delimitando seu espaço de atuação, ou seja, generificando o centro e dialeticamente 6 Alusão a monumentalidade das praças que perdem sentido de uso e possuem apenas o sentido da forma. 7 Refere-se às agentes territoriais da prostituição. Um termo ilustrativo que agrega as travestis, transformistas, transexuais e as garotas de programa. 8 generificando-se e produzindo outros corpos generificados (OLIVEIRA e HENRIQUE, 2009a). Não há estranhamento nenhum sobre a ocorrência da homossexualidade nas cidades, pois esta se manifesta desde suas origens. Porém, segundo Hélio Silva (1993), as tecnologias de desmonte de identidade encontradas pelas trans, altamente dispensáveis para viver uma possível homossexualidade, é que se sofisticaram e validaram um fortíssimo processo de transformação, superando a fantasia carnavalesca do homem que se travestia de mulher na festa profana do Bando de Feira8 para anunciar os festejos sagrados de Senhora Sant’Ana ou ainda nos bailes carnavalescos onde [...] tudo pode, tudo vale, mesmo que não se atualize, tudo pode ser negado, desdito, afirmado enquanto mera brincadeira. Nada então é verdadeiro. [...] Tudo é fantasia, mera farsa, disfarces projetados num espelho coletivamente compartilhado. Nunca pessoas reais. (SILVA, 1996, p.19). Projetam-se no espanto quando nos dias comuns, desfilam nas ruas e avenidas pessoas que se vislumbram no espelho do feminino e que exorcizaram dos seus corpos o ranço de um masculino que é desconstruído pelas tecnologias de transformação identitária. Essas pessoas contrariam as lógicas do carnaval e dos travestidos do Bando, pois se assentam com segurança, contrariando a paródia das fantasias, que estão simbolicamente codificadas pelas Trans como sinônimos de existência, de possibilidade e do encontro consigo. Quando resolvi utilizar o epíteto de Princesa do Sertão para se referir às travestis, transexuais e transformistas, fiz o mesmo percurso de subversão de identidade realizado por elas ao refazerem seus gêneros. Uma tentativa de reconstruir um novo significado em um discurso antigo e ilusoriamente estável. Ao aglutinar essas “criaturas”9 num título político utilizado para destacar Feira de Santana entre todos os municípios do Sertão, busquei reforçar a contradição que valide e visibilize a performatividade que estava escamoteada pelas regras disciplinares da sociedade masculinizadora, (FOUCAULT, 1987). 8 O Bando Anunciador da Festa de Senhora Santana é uma festa profana que antecede os festejos realizados pela igreja católica da Matriz. 9 A palavra criatura é sinalizada no texto na tentativa de reproduzir os estranhamentos que os corpos transformados provocam nos agentes normatizadores, aqueles que determinam quais expressões, sentimentos e prazeres são possíveis para uma vida social de respeito, corroborando com as proposições de Butler (2003). 9 Durante a realização da etnografia na praça10 ouvi muitas delas sinalizando a importância de sua beleza, encanto, algo que transita nos interstícios do pudico e da vulgaridade, mas que por fim almejava uma estética de realeza. Por isso o fascínio sobre o belo externalizado nas curvas sinuosas de seus quadris e de movimentos milimetricamente ensaiados que possibilitam a visão da escultorização de seus corpos no espelho feminino. O termo princesa se efetiva positivo, para este estudo, pela possibilidade de revisitar esse título feirense sobre outra lógica. No decorrer da pesquisa essas princesas me ensinou os caminhos nos quais são possíveis os desequilíbrios e a possibilidade de virar o mundo de cabeça para baixo, embaralhando significados e trazendo à realidade algo novo e provocativo. Ser princesa não é para qualquer uma. Ser princesa do sertão é ser diferente e opulenta entre todas as manifestações do feminino, em que a única herança reside em criar sua própria história contornando-a de um sobrenome iluminado, sexuado e glamuroso. Entre o espelho e as ruas está o reino compartilhado das princesas do sertão. Enquanto o espelho, como uma superfície polida, indica as feições das montagens do gênero, a rua funciona como um verdadeiro laboratório de confirmações. É na rua, provocando os transeuntes pedestres ou motorizados, que é acionado um teste que indica aprovação ou reprovação da realeza que se custa a produzir cotidianamente à frente do espelho. Não é minha proposta realizar um mapeamento da espacialidade Trans, evidenciando como as donas da noite se espalham no centro feirense, e tão pouco realizar uma catalogação das possíveis identidades esbarradas durante a pesquisa. Porém, foi necessário evidenciar os territórios de concentração e de fluidez, demonstrando como as arquiteturas permitem e, dialeticamente, inibem o uso da rua pelas princesas turbinadas de hormônios femininos. Como nos deparamos com um problema de categoria, sentido por Pelúcio (2007), Peres (2005) e Benedetti (2005), no que se refere às múltiplas identidades presentes no que o senso comum homogeneizador chama arbitrariamente de travesti, preferimos utilizar o termo Trans por agregar um leque de definições possíveis no que tange às transformações de gênero. 10 A praça refere-se à área da prostituição Trans que se localiza de frente ao Mercado de artes e se prolonga pela Avenida Marechal Deodoro da Fonseca. 10 O termo Trans, também utilizado por Benedetti (2004), delimita um farto domínio social em que as diferenças de percepção sobre o corpo e seus atributos, associado com os procedimentos de transformações profundas ou superficiais, reversíveis ou irreversíveis, permite a compreensão da pluralidade de corpos que se distinguem a favor desses critérios. Deve-se ter a clareza que nem todo corpo que apresenta lembranças do masculino reinventado no feminino é um corpo de um travesti, visto que, Peres (2005) enfatiza que cada categoria analisada nesse estudo possui demandas específicas. O que queremos argumentar é que no território Trans existe um jogo de imagens muito delicado e muitas vezes negligenciado por um simples olheiro. Um dos principais e corriqueiros equívocos é acreditar que todas as Trans se prostituem. Algumas delas estão inseridas no mercado de trabalho, inclusive em setores nunca imaginados, rompendo, paulatinamente, as barreiras das restrições sociais criadas pela sociedade heteronormativa. No jogo performático que as Trans realizam nas esquinas e nos desdobramentos das avenidas centrais, elas revelam o cruzamento de ficção com a crua realidade de sujeitos polimorfos que existem em concretude e refazem os circuitos espaciais a partir de novas posições enquanto sujeitos no mundo. Sujeitos que lançam fora sua condição institucional de existência, negando sua certidão de nascimento e reescrevem seu outro nascimento a partir da descoberta do feminino nos seus corpos, produzidos enquanto ser do e no mundo no espelho da mulher. Esta dissertação buscou contribuir com o debate teórico-metodológico da ciência geográfica, visto que as produções no que se referem às temáticas ligando gênero e Geografia ainda são muito tímidas no Brasil. Nota-se também que o arcabouço teórico da Geografia apresenta uma carga heteronormativa11 que enfatiza o masculino como a única performatividade de gênero12 capaz de produzir espaço, ou ainda, pesquisas nessa área reproduzem uma lógica binarista, reafirmando o poder do falo e a normatização dos corpos. Destacar o gênero como conteúdo do espaço é lançar-se em um ambiente pantanoso, onde as bases teóricas ainda estão se formando. Eis aqui o desafio que me move: ampliar a tímida discussão de espaço-gênero na Geografia, ao mesmo passo que retribuir às outras ciências sociais os empréstimos valiosos de seus 11 12 Ver Butler (2003). Ver Butler (2003). 11 procedimentos teórico-metodológicos, subvertidos pela geografização do debate, tão queer13 quanto as políticas contemporâneas de gênero. Outro aspecto que justifica tal investigação é que essa parte da história feirense nunca foi contada. A partir disso, percebe-se a importância social dessa pesquisa justamente por propor a ampliação do debate sobre o conceito de território sob uma perspectiva cultural, tendo o gênero como um dos elementos influenciadores da sua produção, como também fornecerá visibilidade a esses grupos socialmente excluídos, promovendo, por meio dessa investigação, a criação de políticas públicas que ampliem e fortaleçam a cidadania desses grupos. 13 O termo queer está ligado a uma corrente teórica de estudos em gênero iniciada por volta dos anos oitenta por pesquisadores e ativistas de grupos distintos, ganhando maior expressividade nos Estados Unidos. Tal corrente se propõe, além de desmistificar a naturalidade do gênero, discutir a densa heteronormatividade presente nos estudos de gênero, sendo esta uma proposta de subversão às normas hegemônicas. Tal corrente será melhor aprofundada no capitulo I. 12 II CAMPO 13 “Todo dia o centro de Feira é um novo centro”. A frase inicial se propõe caracterizar a área de estudo partido de sua dinamicidade socioespacial. Para tanto, se utilizando dos estudos queers, fizemos um detalhamento subversivo do campo onde o cotidiano retratado nessa dissertação foi analisado. Como a tendência queer pressupõe a quebra de normas, realizamos uma descrição atípica. Propositalmente cruzamos abordagens dispares da Geografia, mas aqui elas se complementam dando sentido a proposta, afim de que o produto dessa interação alcançasse o paradoxo existente no território. Cruzamos os aspectos físicos, humanos, políticos, econômicos e simbólicos com a mesma intenção observada no jogo de ambiguidade realizado pelas Trans, buscando evidenciar as contradições espaciais e a pouca coerência lógica e pragmática que caracteriza a ordem, mesmo que confusa e embaralhada, da realidade estudada. A Feira, ora se refere a cidade, ora se refere a uma prática comercial e se bifurca na feira de coisas e simultaneamente, mas distinto, a feira do corpo e do prazer. A ambigüidade de estar localizada numa faixa de transição confere a Feira de Santana outra condição geográfica que lhe indica o hibrido. Essa dialética pode ser observada na manutenção da vida campesina, do sertanejo, do gado, das estradas vicinais, ao mesmo tempo em que se observa a consolidação da vida urbana, frenética, do comerciante e das avenidas pavimentadas suspensas no ar como os novos viadutos da cidade. Sua condição geofísica de transição conota a transcondição espacial14 que buscamos compreender nessa pesquisa, onde os objetos que compõem o espaço não são mutáveis e influxos, contra a radicalidade extremista da forma. Nem rural nem urbano, nem Sertão nem Zona da Mata, uma cidade hibrida no seu fluxo e em suas formas. Situada na zona de planície entre o Recôncavo e os tabuleiros semiáridos do nordeste baiano, o município de Feira de Santana possui importância históricocultural para o estado da Bahia, Nordeste e Brasil. Essa importância pode ser justificada por meio de sua formação territorial, quando das passagens de várias 14 Essa terminologia se apresenta como uma proposta que precisa ser mais explorada pelos pesquisadores do espaço para compreender a heterotopias espaciais trabalhadas por Foucault (1967); 14 tropas, viajantes e tropeiros oriundos do alto sertão baiano e de outros Estados, a caminho do porto de Cachoeira, a vila mais importante da Bahia no século XIX. Já era possível apontar Feira de Santana como um importante entreposto comercial de gado, que posteriormente se tornou mais complexo, pós a modernização, com a implantação do centro Industrial Subaé, na década de 70 (FREITAS, 1998). Uma nova Feira de Santana começou a ser elaborada. Um novo urbano, um novo mercado comercial se instaurou. Consequentemente, novos modos de vida foram paulatinamente produzidos e aderidos. Feira de Santana tornou-se modernizada como um importante nó regional na rede urbana brasileira. Junto às inovações tecnológicas, abertura de fábricas e postos comerciais, criação de conjuntos habitacionais e urbanização de espaços rurais, outro conteúdo foi se materializando no espaço feirense, retroalimentado pela pequena e tímida burguesia feirense. Esta em busca da luxúria e do prazer, favoreceu a instauração das antigas territorialidades do século passado da prostituição feirense no centro comercial, acompanhando-lhe até seu deslocamento para os bairros periféricos, em especial o Santo Antonio dos Prazeres, com as reformas higienistas da década de 70, discutidas por Matos (2000) e Carolina Silva (2009). As estreitas ruas da cidade eram constantemente tomadas pela Feira de Sant’ Anna que ainda hoje atrai, cotidianamente, milhares de pessoas das cidades circunvizinhas que aproveitam as variedades de serviços e comércios para satisfazerem demandas da modernidade. Atualmente, Feira de Santana é um município pujante, o segundo mais importante no estado baiano, com cerca de 591.707 habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2009), numa superfície predominantemente plana de 1.363 Km². Apesar da considerável extensão territorial do município é no centro da cidade feirense que sua fortaleza se reproduz: o comércio. Apresentando um terceiro setor dinâmico, a Cidade Princesa projeta-se como um urbano próspero. Lócus da reprodução ampliada do capital, é nítida entre os comerciantes a sede pelo cliente, respira-se nesse local a concorrência, a informalidade visualizada nas inúmeras barracas dos camelôs que se alongam pelas avenidas do centro. Não diferente das outras cidades brasileiras, o centro feirense é complexo, possui fragmentos de todas as partes da cidade: desde os moradores de rua que sinalizam as classes sociais execradas do processo de acúmulo de capital 15 representando os bairros periféricos, até as lojas de luxo, que direcionaram seus produtos para uma parcela da sociedade bem distinta. A área central feirense é onde [...] se concentram as principais atividades comerciais e de serviços, bem como os terminais de transportes interurbanos e intra-urbanos. Esta área, conhecida como Área Central, resulta do processo de centralização, indubitavelmente um produto da economia de mercado levado ao extremo pelo capitalismo industrial. (CORRÊA, 2001, p. 123). A fluidez e o movimento no centro se processam de forma instantânea. A rede comercial é coesa, aquilo que Corrêa (2001) denomina de aglomeração de comércio com a mesma função, promovendo para o consumidor um ambiente cômodo para pesquisas de preço e escolha dos produtos. As ruas estão seccionadas em grandes compartimentos comerciais indicando a funcionalidade de consumo de cada área, sistematizando o comércio na cidade Princesa. O comércio seccionado apresenta um relativo processo de coesão, nos moldes propostos por Corrêa (2001). A sensação atual do centro é de agitação, congestionamento e sufoco. Tornou-se tão importante para o consumo regional que várias relações foram sobrepostas em um único e pequeno espaço. O centro está apertado. As lojas exprimidas, imprensadas, e, todo o dia que se volta àquele lugar da cidade, vê-se outra organização: lojas sendo reformadas, calçadas ocupadas pelos camelôs, novas placas de propaganda, carros, pessoas, animais e muito barulho. Essas são as características diurnas do centro feirense que “dorme” juntamente com o sol. Inserida num ambiente com fortíssima entrada de energia solar, a cidade, revestida de concreto, é quente tanto climatologicamente, por estar situada no clima semiárido, como culturalmente, por meio das monumentalidades existentes: concreto, asfalto, aço, zinco, ferro, entre outros materiais que absorvem energia solar retendo-a e aumentando nossa sensação térmica de sufoco. O centro é quente, de fato. É uma constante “queima” de estoque o ano inteiro por diversas lojas de vários ramos comerciais: papelaria, vestuário, farmacêutica, alimentícia, cosméticas, eletrodomésticos, etc., que mantém o comércio aquecido. Esse é o espaço preliminar do Centro que muitos dos habitantes e viajantes que circulam pela cidade conhecem. Mas poucas pessoas sabem, de fato, circular na cidade como os meninos de rua, a galera da boca que sobe com as drogas para distribuí-las nos principais marcos geográficos do Centro, ou ainda, como as 16 senhoras de programa que lutam contra o desprezo, fome e miséria e continuam comercializando seus corpos e prazeres nas zonas periféricas do Centro. Crianças nas sinaleiras, moradores de rua na frente da Igreja Senhor dos Passos, vendedores de amendoim e milho cozido nos pontos de ônibus, camelôs que vendem óculos escuros, DVDs e Cds pirateados, mulheres que caminham rapidamente pelas calçadas segurando junto a seu corpo, como que imprensado, a sua bolsa, temendo a ação violenta ou sutil dos marginais de Feira de Santana. Trânsito congestionado onde vidas são postas em evidência na travessia das margens nas ruas. Vendedores com sistema de som convidando clientes numa gritaria estimulante. No coração da Princesa está disposta a magnitude das arquiteturas de dominação social. Uma paralela a outra, demarcando um tempo social em que Igreja (ver figura 01), Milícia (ver figura 02) e Estado (ver figura 03) estão equiparados. Cada um numa esquina, como arquiteturas que vasculham cada metro de calçada até onde sua altura de construção pode alcançar. Figura 01 A Igreja Senhor dos Passos: O poder do Clero FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. O prédio eclético da prefeitura, a igreja neogótica do Senhor dos Passos e o cubículo singelo, entre elas, da Polícia Militar, sinalizam as arquiteturas que vigiam, 17 espiam, controlam, reprimem, mas que fornecem sensação de conforto, segurança, paz dentre outros paradoxos. Figura 02 O Posto Policial Militar: O poder da Milícia FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. As pessoas compreendem a função persuasiva dessas arquiteturas. Muitas delas ao passar pela Igreja fazem seu sinal de reverência assumindo sua submissão ao Clero. Sentem tranquilidade ao esperar o sinal fechar no cruzamento das avenidas quando estão ao lado do posto policial, mesmo quando estes estão ao celular resolvendo problemas diversos ou ainda estão acompanhando uma programação televisiva, desatentos ao frenético vai e vem de pessoas e veículos no Centro. O mesmo ocorre quando se depara com a arquitetura da prefeitura e sua suntuosidade, sobretudo no salão de recepção. O prédio indica que o poder estatal está ali, planejando e executando, apesar dos problemas de gestão, uma ordem para cidade. A Igreja Senhor dos passos e a Prefeitura, além de bem centralizadas no coração da cidade possuem grandeza arquitetônica, que pode ser visualizada em qualquer parte das ruas que compõem o centro da cidade como podemos observar na figura 04. 18 Figura 03 A Prefeitura Municipal de Feira de Santana: O poder do Estado FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. Figura 04 Opulência das arquiteturas normativas vigilantes FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. As calçadas estão carimbadas com o símbolo da opulência sertaneja, simbolizada com uma imagem de um touro que remete às boiadas dos séculos anteriores que cruzavam os sertões e eram comercializadas no campo do gado 19 feirense, ver figura 05. A imagem do touro nas calçadas da Avenida Senhor dos Passos é uma forma de demonstrar o quanto as elites tradicionais, vinculadas à pecuária, impõem-se em Feira de Santana, ligando o pedestre à igreja, a Avenida à prefeitura, como sinônimo de elo entre o público e as instituições. Figura 05 Marca de Boiadas nas calçada da Avenida Senhor dos Passos FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. Esse é o local que dá espaço para a reprodução do cotidiano do território Trans. Até o comércio rendeu-se às graças da prostituição e da boemia do centro e resolveu se travestir durante as noites, em que as princesas desfilam seminuas, com roupas de curtos panos, insinuando-se para quem transita pelas avenidas, ruas e becos rarefeitos do Centro. Durante a noite a centralidade esvazia-se em seu significado econômico. Suas monumentalidades ficam imóveis e perplexas com as transformações que ocorrem no espaço. Imobilizam-se diante do contrato diário que as Trans realizam com a polícia, no gracejo que elas fazem nas calçadas da prefeitura e pelo sinal da cruz que realizam para pedir proteção ao cruzar com a igreja Senhor dos Passos. Assim, podemos perceber como essas arquiteturas renderam-se ao gracejo das 20 damas de paus15, ora protegendo, vigiando, expulsando, intimidando suas performances no espaço público. Enquanto as ruas rarefeitas aglutinam marginais que esperam a vítima desatenta ou procuram um escurinho para passar ou pegar drogas, em outras ruas super iluminadas, as princesas dão close, gerando um fluxo intencional de veículos que dão inúmeras voltas até se renderem ao gracejo de uma bela Trans da praça. 15 Termo utilizado por Neusa de Oliveira (1994). 21 III NOTAS SOBRE O MÉTODO E AS TÉCNICAS DE PESQUISA 22 Não há melhor maneira de estudar o trottoir do que fazendo trottoir. (PERLONGHER, 1987, p.34). Na busca de uma integração sistemática com o grupo estudado, Perlongher (1987) rendeu-se ao trottoir16 para entender a prostituição de rua em São Paulo, utilizando etnografias que eclodiram durante noites inteiras de caminhada pelas longas calçadas paulistanas a fim de desvendar o negócio do michê17. O mesmo ocorreu com Silva (1993) na Lapa carioca, Benedetti (2005) em Porto Alegre e Ornat (2008) em Ponta Grossa, na busca de analisar o cotidiano Trans que se reproduzia ao longo das avenidas e praças estratégicas durante a noite das cidades brasileiras. Enquanto os trabalhos geográficos possuem sua tradicionalidade de campos diurnos, com um horário beneficiado pela luz solar que permite a visualização dos fenômenos com nitidez, realizei esta pesquisa no seu turno oposto. O fenômeno da prostituição, na maioria dos espaços públicos, repousa durante o dia, erguendo-se no crepúsculo da noite e estendendo-se até os tímidos raios solares que surgem na alta madrugada para sinalizar a pausa de sua manifestação. Assim, enquanto a noite, nos trabalhos de campo tradicionais da Geografia, está reservada à preparação do próximo ciclo de coletas de dados ou ao descanso dos trabalhos realizados durante o dia, era nesse período que me preparava para sair de casa rumo ao trottoir, pois o planejamento tinha sido realizado pela tarde. Benedetti (2004) descreveu bem a sua incursão pelo “mundo da noite”, visto que as informantes de sua pesquisa, as travestis, possuem hábitos noturnos e pouco se expõem ao sol, pois no horário de pico da luminosidade, dormem fatigadas de uma longa noitada em cima de saltos. Tal como esses pesquisadores, alterei minha rotina, em que a maior parte das atividades que realizava estavam concentradas durante o dia. Com a troca do período de visitação ao centro da 16 É uma palavra francesa que significa calçada, porém utilizada no Brasil como sinônimo de pista. Fazer trottoir significa dizer que alguém está fazendo pista, ou seja, está em vias publicas realizando programas sexuais. 17 O termo está associado à prostituição masculina, apesar de Perlongher (1987) ter percebido em sua pesquisa que a expressão “fazer michê” estava associado ao ato da prostituição sem distinção de grupo social. Utiliza-se o termo michê por possuir uma conotação sui generis de “varões geralmente jovens que se prostituem sem abdicar dos protótipos gestuais e discursivos da masculinidade em sua apresentação perante o cliente” (PERLONGHER, 1987, p. 17). 23 cidade, durante a noite foi possível compreender o papel influenciador do tempo no que se refere à manutenção e à existência de determinadas atividades. As coisas só existem em um determinado tempo e podem ser interrompidas por ele mesmo. Na negociata entre tempo e espaço, no jogo complexo da interação, notei como as coisas aparecem com maior nitidez no espaço em determinado tempo, e como o esvaziar do tempo elimina os espaços e mina o simbólico que o faz existir. Durante o dia, circulando pelo comércio, as ruas do centro parecem ser outras, apesar das arquiteturas permanecerem as mesmas. Parece-me que o tempo também foi dominado pelo modo de produção e fracionou as vivências, normatizando o horário de ser e fazer determinadas coisas. Por isso, na praça de alimentação, da Avenida Getúlio Vargas, está localizado em sua ponta, um grande relógio que sinaliza o horário no qual todos os processos devem se desdobrar nas ruas de Feira de Santana, ver figura 06. O relógio está com faces voltadas para pontos cardeais estratégicos para o tempo e não para o espaço: o leste e o oeste. É de leste para oeste que o sol em seu movimento aparente apresenta a mudança de turnos durante o dia. No passear do sol, entre leste-oeste, o tempo com ele se desloca, informando para os comerciários que o sol a leste simboliza o início de uma jornada diária de trabalho que se finda no seu oposto – oeste – com o cerrar das lojas. A mudança é apenas temporal, pois o espaço, no que tange a sua forma, continua o mesmo. A avenida, tanto durante o dia como à noite é a Getúlio Vargas. Porém, estão nas entranhas do tempo as funções que vivificarão o espaço. Pois a cada conjunto de fração de tempo, a sociedade desempenha determinadas atividades que materializam formas e sistematizam funções. Durante o dia o terceiro setor econômico multifacetado desdobra-se em relações capitalistas com a troca e venda de bens de consumo. À noite o centro se acalma permitindo que a troca e venda se restrinjam a poucas atividades, em comparação ao leque de possibilidades existentes durante o dia. 24 Figura 06 Posicionamento do Relógio da Praça de Alimentação na orientação oeste-leste em momentos diurnos distintos. FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. Não só as trocas e as vendas são disciplinadas pelo tempo como também as vivências. Nas cidades, muitos grupos e pessoas, com variados objetivos, experimentam outros códigos e valores, possuindo lugares distintos envoltos de emoções e sentimentos. Durante o campo noturno acompanhei uma cidade que se mantém acordada, reproduzindo sistemas culturais diversificados que complexificam o urbano. Dentre eles grupos de roqueiros skatistas nas pistas da praça de alimentação; moradores de rua recém-acordados vasculhando o lixo em busca de comida; taxistas enfileirados nas esquinas movimentadas do centro; seguranças sentados em seus bancos observando o fluxo dos transeuntes e Trans sentadas na Praça da Bandeira. Assim, para Benedetti (2005, p. 44) “pesquisar no mundo da noite é, antes de mais nada, um processo de familiarização com novos sujeitos sociais, práticas e valores”. Para estudar o fenômeno Trans é preciso determinado tempo para se diluir entre os sujeitos analisados. Minhas primeiras incursões iniciaram-se em 2005 e se prolongaram até 2010. Durante esse período tive que conquistar a confiança das 25 Trans, dos gays que conviviam nos mesmos espaços, bem como, de alguns de seus maridos que ficavam na praça cuidando da integridade de suas “esposas”. Enquanto cumpria com as leituras indicadas na orientação, saia de casa à noite, todos os finais de semana, para conferir todas as afirmações absorvidas na literatura encontrada. O contato inicial no território Trans ocorreu na Praça Bernardino Bahia, localizada ao longo da Avenida Senhor dos Passos, onde se concentravam dezenas de homossexuais como podemos observar na figura 07. Figura 07 Vista frontal da Praça Bernardino Bahia FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. Na primeira impressão, acreditava que a praça era um local público de fornicação18, pois como não existia movimentação intensa no centro durante a noite, as barracas dos lambe-lambes19 serviam como proteção e permitiam a ocorrência da pegação20. Durante o convívio foi possível notar que existia um circuito muito profundo de afetividade para além de encontros fortuitos visando o sexo. Era possível encontrar 18 Faço questão de assumir minha inicial aversão ao movimento da Praça, prova do quanto estava impregnado de ideologias heteronormativas que puniam a mim mesmo. Não significa dizer que estou livre dessa dominação, mas a pesquisa me fez amadurecer para entender os gêneros e suas manifestações espaciais. 19 Barracas de zinco utilizadas por fotógrafos de documentos de identificação. 20 O mesmo que a realização de carícias e o sexo propriamente dito. 26 todo tipo de pessoa e cada uma delas com contextos sociais diferentes. Uns chegavam a pé, pois moravam nas cercanias do Centro, outros desciam no ponto de ônibus na frente da Praça e outros passeavam de bicicleta, moto ou carro. As primeiras amizades foram construídas num constante jogo de sedução, afinal a Praça é um lugar de azaração e eu não havia me apresentado, inicialmente, como pesquisador, mas possuía pré-requisitos, dentro das normativas da sociedade heterossexualidade, que me qualificava como um sujeito, dentre tantos que circulam essas ruas, em potencial para o sexo, o prazer e o encontro. Os meses foram se passando e as visitações foram se tronando mais constantes. A Praça, de fato, era gay, de uma vez ou outra passava por lá algumas travestis que seguiam para a Avenida Presidente Dutra, fazer pista na frente da Tyresoles21. Enquanto isso, nos becos da praça sempre tinha uma pegação de dois, três, quatro ou cinco sujeitos que se dispersavam após a ejaculação. Entre as barracas dos camelôs da Rua Sales Barbosa, onde a maioria dos gays se concentravam, vários encontros eram viáveis e o contrário só não ocorria quando o segurança das barracas vinha de bicicleta expulsar o “viadeiro” promíscuo que sujava de esperma e camisinha as ferragens das barracas de roupas do mercado informal feirense. Passei cerca de cinco anos observando a noite da Praça Bernardino Bahia e inúmeras amizades surgiram e a oportunidade de estar face a face com as Trans da pista. Durante esse tempo escutei várias histórias compartilhadas pelos sujeitos da noite. Falavam sobre tudo, sobretudo de sexo. E quando uma Trans aparecia todos os gays da praça paravam para cultuar a produção que a mona22 realizou para descer para avenida. Mas o espaço das Trans não era nas cercanias da Praça Bernardino Bahia, pois a polícia sempre estava fazendo ronda a pé pelas estreitas ruas do Centro, o que não intimidava os gays que se beijavam, se masturbavam e transavam, e quando eram pegos pelos policiais levavam uma correção no estilo militar, com base em pancadas. 21 A Tyresoles é uma loja de produtos e serviços para automóveis, com funcionamento diurno e possui um passeio largo e uma posição estratégica para um ponto de prostituição Trans. 22 Termo êmico utilizado pelo grupo para se referir a homossexuais de forma generalizada. 27 Figura 08 Barracas dos camelôs usadas para encontros sexuais nas ruas do Meio e Sales Barbosa respectivamente. FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. Muitas das barreiras de socialização, como o desconhecimento das práticas, da linguagem, do desconhecimento das pessoas e das diferenças de comportamento, evidenciadas nos códigos de negação elucidadas por Silva (1993 e 1996) já tinham sido transpostas. Cinco das gays23 da praça estavam se montando e rodando a bolsinha na Avenida Marechal Deodoro da Fonseca. Já tinham nomes femininos, trejeitos, além de dominarem uma técnica incrível de maquiagem que camuflava o masculino que viria a eclodir depois que o trabalho da prostituição acabasse. Elas desmontavam peças por peças, tiravam os cabelos longos, seus cílios postiços, os quadris feitos de espuma, assim como os seios, além de desaquendar a neca24, voltando à condição aparente de homens. O papel de estudante, migrante e do anonimato25 favoreceu meu acolhimento no grupo, pelo valor atribuído para os sujeitos que estudavam e pela proteção que deveria ser dada àqueles que se descobriam homossexuais longe de sua cidade natal. 23 As gays é uma categoria frequentemente utilizada pelas informantes dessa pesquisa. As gays foi utilizada como um termo designativo ao processo de transformação Trans. Aqueles que se sentem Trans mas mantém aparência de rapaz é considerado como uma gay. 24 Aquendar a neca significa esconder o pênis, assim desaquendar é retirá-lo do disfarce da vagina improvisada. 25 A maioria dos gays da praça trabalhavam no comércio e por isso conservavam o pacto do anonimato de suas sexualidades. Outros gays mais novos também prezavam pelo silêncio de sua opção sexual temendo a reação da família ao descobrir sua sexualidade e que ele estava visitando a praça. Por isso poucos sentavam-se nos bancos da Avenida Getúlio Vargas, evitando o encontro com o conhecido. 28 A priori estava travestido de ressentimentos e do medo da não aceitação para realização da pesquisa. Essa condição foi se desfazendo com a confiança alcançada nas visitas cotidianas que realizei, nas compras durante o dia no comércio e em algumas ligações que fazíamos uns para os outros durante esse convívio. Diante da situação esboçada, esta pesquisa pode ser definida como exploratória, descritiva e qualitativa em detrimento do contato provocativo com o grupo em análise. É comum em pesquisas nas ciências sociais a previsão de um roteiro metodológico imerso na coleta de dados primários por meio de entrevistas e questionários. De fato, é no fenômeno e em seu contexto socioespacial que estão embutidas importantes informações para sustentar a pesquisa. Porém, a execução do procedimento metodológico, pode consubstanciar a natureza e a valiosidade das informações coletadas. Para fugir das falsas interpretações do campo, utilizamos todo conhecimento, informações e hábitos adquiridos durante o longo período de convívio com o grupo, apreendidos pela exploração do fenômeno em diversas situações. O olhar atento aos minuciosos detalhes do cotidiano na rua nos revelou, paulatinamente, as intenções carregadas de símbolos e normas que sustentavam o território estudado. Discutindo acerca da observação nas pesquisas, Cardoso (1986), apontava uma nova tendência eclética de métodos entre os pesquisadores brasileiros em tempos pragmáticos e ideológicos com a difusão da escola marxista no país. Para ela, inicialmente não havia uma preocupação para analisar as potencialidades e fragilidades das matrizes metodológicas, rumo a associações que cautelosamente poderiam ser definidas e testadas. Cardoso (1986) verificou uma política do método que, de certa forma, “territorializava” espaços acadêmicos em busca do poder e hegemonia da epistemologia no Brasil. Ciente disso, percebi que a escolha de caminhos metodológicos requer um mínimo de delicadeza para tratar do fenômeno de pesquisa sem torná-lo fictício e exótico quando a coleta deve ser feita junto à realidade. Cardoso (1986), quando estudou as possibilidades de escapar das armadilhas do método, propôs uma postura eclética, um caminho intermediário que possibilitasse compreender a dialética e as subjetividades do fenômeno sem retirá-las de um contexto historicisado. Cardoso (1986) também compreendeu que o bom pesquisador é aquele que possui boa interação com as minorias, tornando visíveis as situações da 29 vida que estão escondidas e que só poderiam vir à tona quando denunciar as carências e anseios do grupo pesquisado. Os anseios de Cardoso corroboram com a perspectiva de Silva (1993) quando ele afirma que sua pesquisa com as travestis da Lapa buscava revelar o cotidiano travesti de forma que sua dimensão humana, suas contradições, perplexidades, a nobreza e a miséria de sua condição cheguem até o leitor, não destituídos de sensualidade, sexualidade, humor e ironia, mas integrados com traços mais visíveis para evitar a caricatura e o pitoresco (p.15). Para esclarecimentos iniciais, esta pesquisa não estará pautada no princípio da neutralidade científica, pois “o conhecimento não pode se libertar de uma certa dose de ideologia” (CARDOSO, 1986, p. 99), mas estará entrelaçada a uma política pós-identitária26 que já demonstra força na escala global. Uma estratégia que fornece visibilidade aos seres que vivem nos espaços inabitados e inóspitos do gênero, como enfatiza Butler (2003). Longe dos postulados positivistas, que defendiam a ferro e fogo a neutralidade científica, essa é uma pesquisa que ousou aproximar-se do real, visando outras formas de coletar os dados sem perder de vista o estranhamento como forma de compreender as questões de pesquisa. Concordando com Cardoso (1986), não realizei uma pesquisa nos moldes da observação participante27, pois esta pressupõe afastamento, neutralidade do pesquisador. Durante toda pesquisa realizei a participação observante que possibilita a eclosão da capacidade de surpresa e retifica a empatia como forma de descobrir o outro. A participação observante redimensiona o pesquisador de posição; nela, ele torna-se também objeto de interesse e sociabilidade com o fenômeno, por meio do contar, descrever, olhar e sentir, conectado ao contexto das condições sociais em que os discursos são elaborados. As visitações constantes me fez participar de uma observação investigativa, possibilitando a descrição do uso das ruas e da inacabada produção do sujeito Trans. Isso não me neutralizava no campo, pelo contrário estava em constante evidência, no jogo entre o pesquisador-objeto. Era competência minha estar lá para 26 O movimento intelectual Queer é um exemplo de políticas de identidade da contemporaneidade, ampliando a perspectiva de identidades múltiplas e instáveis. 27 Cardoso (1986) faz essa consideração em virtude da excelência de métodos tradicionais de se utilizarem da observação participante. Porém, sabemos que o uso dessa metodologia de campo extrapolou os muros do método positivista e marxista sendo reorganizado por outras escolas de análise. 30 investigar, mas simultaneamente eu estava sendo explorado, descrito, e hipotetizado. Por mais que eu instigasse a cada conversa esclarecimentos sobre suas vidas aprendi logo que a relação não poderia ser desigual: as travestis reivindicavam para si o direito de saber sobre minha vida particular, sobre as minha práticas, desejos e valores, desafiando minhas idéias (BENEDETTI, 2005, p.45). Essa reciprocidade entre os sujeitos envolvidos na pesquisa narrado por Benedetti de fato existe. Ao terminar uma longa entrevista a Bette, ela retrucou: “Agora vamos mudar de posição, eu pergunto e você responde”. E todas as perguntas rezavam sobre minha vida particular no que se refere às perspectivas de futuro, namoro, família e sexualidade. Quando estava na praça, junto às Trans e gays que circulam no centro, participei apenas da situação, tentando ser o mais natural possível e deixava para registrar todas as informações coletadas fora do campo. Não queria me sentir exótico fazendo anotações num lugar onde os textos são sonoros, gestuais ou visuais, mas nunca escritos. Ao chegar em casa, detalhava com minunciosidade todas as informações faladas e produzidas pelos semblantes, gestos e situações vividas no centro. As interações com as Trans não ficaram restritas à noite, a realização das entrevistas semiestruturadas foram viabilizadas, em sua grande maioria em suas casas, durante o dia, ou nos bares animados do centro de abastecimento, tendo a oportunidade se compartilhar alguns momentos com familiares, parceiros e amigos das Trans28. Longe da zona de prostituição, na circulação de outros espaços vividos pelas Trans, aguçamos a visão a fim de estar apurada, para observar e extrair aspectos reais e subjetivos de cada movimento, dos discursos, dos gestos, de todos os registros de informações necessárias ao entendimento do fenômeno. Para construção do questionário e dos roteiros de entrevistas semiestruturadas nos baseamos na metodologia utilizada por Ornat (2008). Inicialmente aplicamos os questionários no território, tentando coletar o máximo de interessadas a contribuir nas pesquisas. Nessa etapa foram aplicadas 15 entrevistas 28 Ver em anexo os modelos dos roteiros das entrevistas semiestruturadas e dos questionários. 31 que posteriormente passaram por um processo de triagem, o que culminou na escolha das 10 entrevistadas na etapa seguinte. É bom salientar que no território Trans existem em média 25 princesas que se prostituem. Contudo, a intensa fluidez e sazonalidade que elas possuem impossibilitaram a abrangência de todo o grupo na etapa de questionário e entrevistas. Além disso, algumas delas recusaram-se a responder as indagações, demonstrando a heterogeneidade de opiniões e aceitação das entrevistas. No questionário aplicado sondamos informações relacionadas à sociabilidade intra e intergrupo no dia-a-dia, deslocamentos intraurbanos, escolaridade, renda mensal, moradia, locais preferenciais de consumo. Enquanto nas entrevistas semiestruturadas tentamos (re)constituir os primeiros aspectos desse território, analisando seus fatores de formatação e as estratégias criadas para manter a circulação das Trans nesse espaço, contextualizando as informações no curso histórico. Para armazenamento dessas informações, o uso do gravador foi consentido por todas entrevistadas. Existiram momentos que as Trans solicitavam a pausa na gravação, e essas eventualidades foram respeitadas. Assim, foi possível perceber que as informantes utilizaram um filtro que selecionava aquilo que poderia ser dito e gravado, e logo em seguida outro filtro mais frouxo era usado na conversa que poderia ser gravada e deveria fazer parte da etnografia do campo. Todas elas ficaram reticentes frente ao gravador, e logo em seguida descontraídas na ausência dele. Tais comportamentos ficaram nítidos na exposição feita por Greta em sua casa olhando para mim e dizendo “Menina, isso não vai para Alibã29 não né? Pelo amor de Deus”. Ou ainda quando Romy se referia às Trans que estão assaltando e preferiu não citar os nomes, reproduzindo a ética de seu ofício se eu pudesse dar um nome eu daria, mais vai me prejudicar, aí eu não posso falar, porque tem umas que eu ando junto com elas, e eu não quero prejudicar ninguém, a polícia tá aí pra dar jeito né, pra resolver. (Entrevista realizada com Romy em 18.01.2010). As entrevistas foram semiestruturadas por permitirem ser reproduzidas, em linhas gerais, com todos os informantes, perguntas abertas sobre tópicos relevantes 29 Em Iorubá significa polícia, segurança. 32 à pesquisa, em que, naturalmente, um tópico conduziu a outro, levando-nos a compreender o universo complexo da pesquisa. Tratando sobre a ética de pesquisa, trocamos todos os nomes das Trans ou de pessoas citadas nas entrevistas. Para isso, realizamos uma pesquisa sobre nome de celebridades que estivessem associadas à ideia de princesas, sobretudo, as cobiçadas pelas Trans como está elucidado no quadro 01. Quadro 01 Triagem das informantes Trans da pesquisa NOME DE NOME FICTÍCIO PARA FINS DE CLASSIFICAÇÃO REGISTRO¹ PESQUISA – Divas do cinema² DE GÊNERO³ Antonio Marcos Brigitte Bardot Transformista Alberto Júnior Joan Crawford Transformista Pedro Henrique Ava Gardner Transformista Cleriston Marlene Dietrich Transformista Rafael Marilyn Monroe Transsexual Jonatas Sophia Loren Transsexual Pedro Paulo Greta Garbo Transsexual Marcos Paulo Bette Davis Transsexual Alexandro Grace Kelly Travesti Wellington Elizabeth Taylor Travesti Fábio Romy Schneider Travesti André Claudia Cardinale Travesti Thyago Ingrid Bergman Travesti Patrício Lauren Bacall Travesti Danillo Rita Hayworth Travesti Artur Catherine Deneuve Travesti Erivaldo Katharine Hepburn Travesti Moisés Audrey Hepburn Travesti ¹ Os nomes de registros também foram ocultados. ² A escolha dos nomes das divas do cinema foi feita de forma aleatória. Em seguida retiramos seus sobrenomes para que associações imagéticas não ocorressem em relação às pessoas reais que entrevistamos. É bom enfatizar que Katharine e Audrey são irmãs biológicas. ³ As classificações de gênero obedeceram a critério de autoidentificação realizada pelas informantes. 33 Como as Trans se produzem no espelho da mulher, escolhemos nomes das divas do cinema para cada uma de nossas informantes, visto que, muitos dos sobrenomes dessas divas estavam presentes nos novos nomes que elas construíam na pista. Porém, para evitar associações das Trans com a estética das atrizes, preferimos retirar o sobrenome para garantir a imagem descritiva da brasilidade ausente na estética dessas divas glamurosas. No caso dos gays que foram citados pelas entrevistadas, elencamos nomes das divas da música, pelas performances afeminadas que esses gays faziam relembrando hits que coreografavam na praça. Trocamos seus nomes nas narrativas por compreender a importante rede de sociabilidade existente no território Trans. Para isso retiramos seus sobrenomes com o mesmo propósito anteriormente delineado. Quadro 02 Triagem dos nomes de gays citados pelas Trans durante as entrevistas. NOME DOS GAYS CITADOS¹ NOME FICTÍCIO PARA FINS DE PESQUISA – Divas da música² Marcos Antonio Donna Summer Leonardo Diana Ross Anderson Lady Gaga João Paulo Billie Holiday Bruno Bonnie Tyler Vitor Madonna Felipe Kylie Minogue Miguel Gloria Gaynor Francisco Cindy Lauper Paulo Vinicius Tina Charles Luís Cláudio Alicia Bridges Marcelo Aretha Franklin Luciano Grace Jones ¹ Os nomes de registros também foram ocultados. ² A escolha dos nomes das divas da música foi feita de forma aleatória. Em seguida retiramos seus sobrenomes para que associações imagéticas não ocorressem em relação às pessoas reais que entrevistamos. 34 As entrevistas gravadas foram transcritas, mantendo fidedignamente os depoimentos no que se refere às situações relatadas e à linguagem empregada. Acreditamos que não seria necessário adaptar as narrativas para a norma culta visto que retiraríamos nossas informantes de seu lugar de fala, realizando uma transposição brusca e inadequada. Por isso, mantivemos seus deslizes vocabulares que possuem propósitos claros, pouco observados e compreendidos por nós pesquisadores distantes do debate da linguística. Tais “equívocos” gramaticais estão coesos num contexto de vivência e por isso os respeitamos. Percebemos que o trabalho etnográfico exige paciência e cautela, sobretudo no momento da aproximação e inserção no grupo, deve ser realizado de modo que essa presença nova no grupo não iniba os comportamentos de seus indivíduos. De acordo com Clifford (1998, p. 36), a experiência etnográfica “pode ser encarada como a construção de um mundo comum de significados, a partir de estilos intuitivos de sentimento, percepção e inferências”. É obvio que não ficamos isentos das ilusões30 provocadas pelo universo Trans. O grande desafio é deixar claro nesta redação seres humanos. Tal como Silva (1993) evitamos a diabolização das Trans e esperamos não ter caído em seu simétrico oposto, a angelização, buscando atender as advertências que brotavam nas orientações que visavam compreender o humano existente na aparência exótica que elas forjam na transformação de seus corpos e traduzir o cotidiano como categoria eficiente para explicar a transcondição de nossas informantes. As fotografias utilizadas foram retiradas nos turno diurno por dois motivos óbvios: primeiro, em respeito as Trans e a ética científica e segundo pela limitação tecnológica do aparelho fotográfico. As imagens de pessoas podem ser utilizadas em pesquisa a partir do consentimento escrito. Inúmeras vezes, on line no MSN recebi links do Orkut de algumas delas, permitindo o uso de suas imagens, porém preferi descrevê-las a publicar imagens na dissertação que estará disponível em meio digital em fronteiras espaciais incontroláveis. A máquina fotográfica Sony de resolução de 12.1 mega pixels ainda apresenta limitações tecnológicas no que se refere à fotografia noturna. O alcance do flash era insipiente para dar conta da 30 A montagem da aparência e de histórias particulares permite, segundo Silva (1993), que as travestis recriem a realidade a seu bel prazer. Para tanto é necessário estar bem diluído no grupo para sondar onde a ficção do gênero termina. A travesti detém com eficácia a arte da mentira, que se desmontava muitas vezes com a desconfirmação da história por outra travesti que nega sua renda, inventa viagens glamourosas, troca sua idade, informa outro nome de registro, entre outras eventualidades extraídas da participação observante. 35 dimensionalidade que o fenômeno possui à noite. Para tanto, as fotos foram tiradas em dias de domingo visto que o movimento diurno é similar com o movimento noturno nos outros dias da semana. Esta dissertação, por conta de seu tema, requereu outra escrita geográfica, tão calorosa e viva quanto o cotidiano experienciado e distante da escrita técnica que marca os trabalhos acadêmicos. A redação traz o prazer e a fúria, o tradicional e o moderno, a ordem e a desobediência, o intencional e inocente não como elementos que duelariam nessa escrita, mas que se completam numa dialética complexidade da vida cotidiana. O texto apresenta-se ambíguo em sua estrutura literária por se tratar de um fenômeno tal e qual. A “suposta crônica” cruzada com a densa teoria está propositalmente associada para trazer ao texto os simbolismos da realidade Trans. Se os gêneros são produzidos, como o espaço, pelas reiterações, utilizamo-nos das repetições para chegar às conclusões sobre o fenômeno. Todas as prolixidades textuais aqui encontradas foram propositais, na tentativa de reiterar as narrativas, dando outra ordem para o discurso aqui empreendido. Pesquisar esse universo exige a TRANSgressão da visão tradicional e hegemônica que estabiliza a ciência geográfica. Entrar nesse universo com as velhas metodologias pouco interativas é estabelecer uma linha de comunicação entre a reprodução de uma suposta estabilidade de gêneros que é violenta e esfola o corpo feminino das Trans. Neste texto, nos propomos trazer à tona a realidade das Trans, sua beleza, seu encanto, sua sedução, suas desconfianças, seus medos, suas angústias, suas demandas, todas essas questões sem o véu das reticências. Aqui, o território foi desvelado. Diversas questões que inquietaram essa pesquisa encontram no corpo e no território das Trans um ponto de centralidade. Neles identidade, gênero e sexualidade se imbricam. Assim, no capitulo I discutimos as ausências e os silêncios nos estudos geográficos sobre as performatividades de gênero e a sua inclusão no debate geográfico enquanto conteúdo espacial. Para tanto, realizamos um levantamento bibliográfico tanto dos estudos de gênero quanto dos geográficos, cruzando essa literatura para tenta explicar a timidez da Geografia de falar de gênero. Escolhemos três tendências que mostram a evolução desses estudos e a influencia dos estudos queers, que correspondem a última tendência, a plural. Ainda nesse capitulo situamos o conceito de abjeção de Judith Butler na esfera espacial 36 demonstrado como esse processo extrapola o corpo e secciona o território. Por fim, a partir das provocações de Michel Foucault, analisamos como o espaço está denso de heterotopias, sobretudo os território da prostituição que contrariam as lógicas da matriz heterossexual e embaralham os sentidos da linearidade dos gêneros. Para reproduzir o binarismo de gênero os corpos devem apresentar uma linearidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo sexual. Os corpos que fogem dessa condição de normalidade são relocados para o campo da abjeção. No capitulo II mostramos como as Transformistas, Travestis e Transexuais, que compõem o grupo de informantes dessa pesquisa, se autodefinem e analisam as outras performatividades. Apresentamos depoimentos que tratam das mudanças dos corpos e de comportamentos. Essas três identidade não possuem espacialidades iguais, elas se deslocam na malha urbana feirense de forma e em intensidades desiguais, o que confirma a hipótese de que existem uma lógica de uso espacial atrelada ao tipo de gênero. Nesse capitulo apresentamos características corpóreas das Trans bem como um breve esboço da condição socioeconômica que se encontram. No capitulo III definimos o conceito de território para operacionalizar os estudos espaciais da prostituição. Para tanto, levantamos um rico debate sobre o conceito e sua masculinização dentro da epistemologia Geográfica e seus rebatimentos em outras ciências. Para compreender a heteronormatividade presente no conceito de território foi necessário discutir o ‘poder’ (com base em Foucault e Bourdieu) e como a aplicação desse conceito apresentava-se reduzido ao poder estatal nos estudos territoriais. Em seguida, detalhamos, por meio das entrevistas semi estruturadas, a evolução do território da prostituição Trans na cidade princesa da década de 70 até 2010. A consistência dessas análises foram possíveis graças a associação feita as mudanças infraestruturais e sanitaristas promovidas em Feira de Santana nesse período que beneficiou a expansão do trottoir no Centro da cidade. As estratégias territoriais das Trans foram potencializadas por uma leitura geográfica no capitulo IV. Elencamos alguns dos mecanismos usados para dominar, influenciar e atingir os agentes que entram em conflito no centro da cidade, dentre eles o cliente, no horário que a prostituição está efetivada. Nesse capitulo, ficou evidente a intima relação narrada pelas Trans sobre a afetividade espacial, revelando o seu Lugar nos pontos de prostituição. Não apenas uma rua onde se deve retirar o dinheiro para sobrevivência, mas um espaço de socialização e 37 entretenimento, onde sujeitos que compartilham de uma mesma identidade as fortalece pelos laços territoriais. Na conclusão, além de frisarmos os principais resultados da pesquisa, reafirmamos nossa esperança de ter conseguido apresentar pessoas dotadas de sonhos, vontades e desejos, distanciando-nos da visão depreciativa e marginalizada que as Trans possuem no senso comum. 38 CAPÍTULO I Fernando-Fernanda que transexualizas o verbo deixando de cara à banda todo o mundo. E tu soberbo indo fundo nesse rumo a tua mestria observo ser pólvora sem ter fumo ser coisa... quase-quase de outro mundo! Autor desconhecido Disponível em http://cidadaodomundo.weblog.com.pt/arquivo/192341.html 39 1- CORPO E ESPAÇO GENERIFICADOS: A DIALÉTICA DO GÊNERO Acredito que a ansiedade da nossa época tem a ver fundamentalmente com o espaço, muito mais do que com o tempo. (FOUCAULT, 1967, p.2) 1.1- A abordagem de Gênero para análises espaciais Pouco se considerou, na Geografia, que a produção e o uso do espaço poderiam estar associados a um jogo de gêneros e sexualidades. Em virtude da concentração maciça do arcabouço teórico espacial, em um primeiro momento, marcado pelas teorias positivistas e posteriormente renovado com a adesão ao marxismo, a ciência geográfica concentrou-se no estudo das formas e na investigação da capacidade dos agentes produtores do espaço em possuir os meios de produção e acumularem o capital. O apego a dados oficiais fornecidos pelas instituições ou ao trabalho de campo na catalogação das formas e a análise real dos fenômenos materializados e que possuíam status de verdade caracterizavam a oficialidade da pesquisa em Geografia. Além disso, a legitimidade das linhas de pesquisa também estava associada à capacidade de neutralizar-se frente ao objeto de estudo. O cientista, por sua vez, teria que se demonstrar frio ante a sua inquietação para passar para comunidade científica sua responsabilidade de pesquisa. O olhar deveria ser esquadrinhador, capaz de varrer ante a forma suas informações reais e, por sua vez, o real era produzido pela sociedade além de possuir status de verdade. A pesquisa estava assentada numa desajustada objetividade que retém de forma apressada informações primárias sobre os objetos. A pesquisa só se concretizava nesse campo de realidade e jamais questões sobre gênero e sexualidades adentrariam nesse contexto, onde a objetividade estava 40 planejada para nunca encontrar seu próprio abismo, sem correr o risco de se perder na subjetividade dos desejos e prazeres suscitados por esses estudos. Os silêncios e ausências dos estudos de gênero na Geografia têm sido analisados por uma rede de estudiosas norte-americanas, européias e latinas a fim de justificar essa tendência global de escamoteamento dessa temática na ciência do espaço. Para a latina Joseli Maria Silva (2009a) As ausências e os silêncios de determinados grupos sociais são resultantes de embates desenvolvidos na comunidade científica, que criam hierarquias e dependências, ratificando o poder de grupos hegemônicos e, conseqüentemente, de suas próprias teorias científicas (p.25). Para Joseli Maria Silva (2009a), a Geografia, como uma ciência social, conserva, desde sua institucionalização enquanto disciplina, um saber centrado no sujeito universal referenciado pelo ser humano masculino, ocidental, branco, cristão e heterossexual. Esse argumento delineia hipóteses iniciais sobre o insipiente privilégio que os e as cientistas do espaço inferem ao estudo do gênero e das sexualidades. Se a masculinidade é uma verdade estabilizada pelo discurso central da Geografia, tratar da feminilidade é direcionar um esforço desnecessário e vago, visto que, o sujeito universal reiterado pelas teorias da Geografia delimita a verdade de um real forjado e que se retroalimenta através do negligenciamento de tal temática. O silêncio seria, entre os geógrafos e geógrafas, um mecanismo eficiente para vigiar aquilo que não poderia se manifestar enquanto discurso acadêmico. O silêncio, por sua vez, constituiu-se enquanto um mecanismo de poder. Segundo Rose (1993), o status que valida o conhecimento científico com o status de verdade está pautado na racionalidade e objetividade, características masculinas que neutralizam os discursos das mulheres, que são subjetivas e emotivas, adjetivos que deveriam estar ausentes no trabalho de campo de uma pesquisa bem sucedida na Geografia. A partir da crise da objetividade, no que se refere aos enunciados científicos compreendidos como sistemas de ideias derivadas de uma cultura que se difunde a partir da linguagem, os movimentos feministas, classistas e étnicos encontraram respaldo para engendrarem um promissor debate sobre a desconstrução de teorias e métodos que invisibilizavam suas questões, dentre elas o gênero. Nesse sentido, 41 Boaventura de Souza Santos (2004) afirma que as linhas de pesquisa com temas marginais, como a sociologia das ausências, diante da crise da objetividade, e, portanto da masculinidade, permitiram transformar objetos impossíveis de análises em possíveis e as ausências de informação enquanto presença de resultados, desestabilizando o poder normatizador vigilante. A abertura da ciência à crítica do “conhecimento do conhecimento” tencionou a suposta estabilidade da ciência geográfica, gerando um movimento contrário provocado pelas críticas à racionalidade objetiva e pela análise histórica das verdades institucionalizadas pelo saber. A partir de então, era possível contestar antigas verdades como categorias de uma ideologia que produziu um conhecimento tendencioso dentro de um fluxo de pretensa neutralidade. A crítica assentou-se sobre a neutralidade dos postulados geográficos como uma estratégia de manter os privilégios de linhas de pesquisa, teorias e métodos específicos dessa disciplina, ao turno que as novas abordagens e correntes epistemológicas como a geografia feminista e os estudos fenomenológicos caíam no descrédito em função da soldadura firme que esses discursos normatizadores forjaram para (re)produzir a Geografia androcêntrica. Na Geografia Tradicional o espaço era apresentado como assexuado, embora sempre fosse organizado pela lógica da masculinidade. O espaço reproduz as normas dos grupos hegemônicos e nele, dialeticamente, as formas e funções espaciais são reflexo e condicionante dessa sexualidade compulsória. Pois cada organização espacial é produto e condição das relações de gênero instituídas socialmente, contudo, hierarquizada, com primazia dos homens em relação às mulheres. (SILVA, 2009a, p.35). Dessa forma, os gêneros estão presentes no espaço e se produzem sobre as mesmas ideologias da produção espacial, reiterando o jogo da dominância que manipula os objetos e os corpos, suas utilidades e espacialização. Por isso, existem espaços para cada gênero e são os corpos generificados que os delimitam e que nessa trama de poder, indicam o lugar do outro, ou seja, hierarquizam o espaço criando estratégias que delimitam as áreas, por excelência, dos gêneros que destoam da normalidade. O debate sobre a gênese do espaço reserva em si uma produção geográfica do espaço, predominantemente masculina, o que torna invisível a figura feminina e 42 outras tantas performances de gênero negligenciadas. Esses gêneros excluídos são resgatados por algumas disciplinas das ciências humanas e sociais, com os efervescentes debates sobre a temática que eclodem com maior força durante a década de setenta do século XX. Para compreender como se realizou a inserção dos estudos de gênero e sexualidade na ciência geográfica, sistematizamos as produções teóricas e metodológicas que marcaram as publicações, associando o desenvolvimento do pensamento espacial aos estudos das ciências sociais e psicológicas, das quais eclodiram empréstimos valiosos para o desenvolvimento dos estudos pósestruturalistas do debate desconstrucionista de gênero. Como fruto desse eloquente debate, está posto o grande desafio da abordagem de gênero, que é explicar os condicionantes, as interações espaciais que ocorrem no cotidiano, em que a vida banal reflete, por meio dos grupos sociais, o jogo interativo, complexo e machista que tornou invisível o gênero, direcionado, tendenciosamente, a leitura geográfica. 1.2- Os avanços do debate de gênero e espaço De acordo com Matos (2000), os estudos de gênero foram desenvolvidos, com maior intensidade, pelas feministas inglesas desde a década de setenta do século XX e influenciaram a produção teórica no Brasil, eclodindo como campo de pesquisa na década de oitenta do mesmo século. Nesse período, as inquietações do movimento feminista oitenticista estavam centradas em desbiologizar os gêneros, que correspondia à matriz da heteronormatividade se referindo a linearidade entre sexo-gênero-desejo e pratica sexual. Deste modo, é oportuno estudar os gêneros na Geografia para compreender suas finalidades teóricas e limitações metodológicas dentro do debate global sobre a temática nas ciências Psi31 e Sociais, entendendo as categorias que eclodiram a cada tendência dos estudos feministas e a atual tendência desconstrucionista conhecida como os estudos queers. 31 Trata-se da Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. 43 Nesse sentido, é de fundamental importância mapear os principais tratados da Antropologia, Sociologia, das ciências Psi e História, ao mesmo tempo em que se deve deixar contagiar por elas com sensibilidade para capturar os problemas teóricos e as soluções encontradas para fazer o gênero, com vistas a incrementar o debate com o olhar geográfico. De acordo com Joseli Maria Silva (2009a), as geógrafas anglo-saxãs apropriaram-se do debate de gênero motivadas pela exaltação dos movimentos populares da década de 60 do século XX, que se espalharam por toda a Europa e América do Norte. Concomitante a esse período, as Ciências Humanas e Sociais se abriam para discutir gênero como análise focal de estudos científicos, com base num movimento politizado que negava a neutralidade presente nos postulados positivistas. Mediado pelo protesto à invisibilidade da mulher e o silêncio gerado por seu apoderamento pela masculinidade, eclode um movimento científico posicionado politicamente na luta pela visibilidade, que traz à tona um debate rumo à igualdade de gênero. A pesquisadora Joseli Maria Silva (2009a) temporalizou os caminhos percorridos de forma sintética, apresentando uma análise dos avanços teóricos, distinguindo dois momentos a partir dos estudos do patriarcado e a renovação dos estudos culturais com a critica à escola saueriana32. Para revisitar essa sistematização acrescentamos as análises, as tendências de gênero propostas por Bento (2006), a fim de compreender correlações entre os avanços desses estudos nas ciências afins. Tal como outras disciplinas das Ciências Humanas, a Geografia possuiu uma diversidade de abordagens que marcaram temporalidades diferentes, o predomínio de um modo de pensar a realidade com base nas concepções eleitas como verdadeiras. Em virtude disso, com base em Bento (2006) e em Joseli Maria Silva (2009), dividimos as mudanças teórico-metodológicas do pensamento feminista na Geografia em três tendências: o universal, o relacional e o plural, diferenciados por teses específicas, conceitos e embates na seara do gênero e o crescente campo dos estudos das sexualidades a partir da teoria das performatividades de gênero. 32 Está se referindo aos grupos de cientistas que desenvolveram e mantiveram os postulados de Carl Sauer. 44 A tendência universal Conforme Bento (2006), o momento universal se caracterizou pelos estudos que buscavam mostrar as diferenças sexuais por meio da dicotomia ou binarismo de gênero com generalizações universais, em torno das categorias de homem e de mulher. As pesquisas eram empíricas e buscavam descrever as desigualdades existentes entre os pólos do gênero que estavam postos como antagônicos. Isso justifica os tratados de levantamento da situação espacial das mulheres europeias ligadas ao mapeamento dos padrões espaciais ou, a espacialização dessas localidades como forma de manifesto de contra-poder para minar a dominação masculina analisados por Oberhauser (2003 apud Silva, 2009a). Nesse período as pesquisas eram realizadas somente por mulheres que também constituíam o movimento de militância, com o objetivo central pautado na visibilidade feminina. As críticas internas eclodiram durante a década de 80 em virtude do perfil universal atribuído às mulheres e homens além da excessiva empiria que caracterizava os estudos da época. O trabalho de Beauvoir (1967) na obra O segundo sexo, publicada em sua primeira edição em 1949, revolucionou os estudos que inicialmente já eram polêmicos. Beauvoir (1967) buscou mostrar em sua obra os mecanismos que dão consistência a produção das categorias binárias de homem e mulher, desnaturalizando a identidade feminina. Sua ideia foi provocadora e logo nas primeiras páginas de seu livro afirma que ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. (BEAUVOIR, 1967, p.9). Desprender o gênero da biologia dos corpos foi a grande contribuição do pensamento de Beauvoir. Para ela, era no contato ao mundo por processos subjetivos essenciais aos corpos, que as crianças eram sexuadas nesses pólos oposicionais. Porém, o pensamento de Simone de Beauvoir reproduziu outro cárcere dos gêneros. Apesar de apontar o jogo de interesses que localizava as mulheres nos espaços de inferioridade por conta de sua condição biológica, os posicionamentos 45 universalistas reproduziam um discurso generalizador que reforçava a essencialização de modelos de gênero cristalizados em identidades fixas e estáveis. Em verdade, basta passear de olhos abertos para comprovar que a humanidade se reparte em duas categorias de indivíduos, cujas roupas, rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses, ocupações são manifestamente diferentes. (BEAUVOIR, 1967, p.9) A concepção dualista presente na obra de Beauvoir reflete o pensamento moderno que modelou os sujeitos universais atribuindo-lhes características que, supostamente, eram compartilhadas por todos. McDowell (1999) e Rose (1993) corroboram com a crítica do pensamento científico que organiza o espaço e suas hierarquias pautadas na dualidade e afirmam que a Geografia, enquanto saber institucionalizado, contribuiu para a sobreposição desigual da masculinidade sobre a femilinidade. O corpo, nessa tendência, era pensando como naturalmente dimórfico que como uma folha em branco era preenchido pela cultura, e, por sua vez, suas tecnologias de forma eficiente tratavam de carimbar o gênero produzido nele. Nesse mesmo período o espaço foi compreendido como uma superfície passiva que esperava a inscrição humana para que sua existência geográfica eclodisse. A trama dualista entre homem e meio da Geografia La Blacheana33 demarcava as linhas geográficas dominantes, no Brasil, que se debruçavam sobre a realidade científica. Judith Butler (2003), analisando as produções sobre gênero dessa tendência, desenvolve uma crítica a esse tipo de construtivismo que predominou e fez escola nos grupos de pesquisa de todo o mundo por muitas décadas. Para Butler (2003) as pesquisas da tendência universalista geraram um discurso onde o corpo-sexo estava associado como uma matéria fixa que seria modelada e significada pelo gênero, reproduzindo a existência de uma essência de identidades. 33 A Geografia La Blacheana foi desenvolvida por Paul Vidal de La Blache e seus discípulos. Essa geografia também era conhecida pelo nome de “Escola Francesa de Geografia” ou “Geografia Tradicional”. Para La Blache a ciência geográfica seria responsável por estudar as relações entre o Homem (Sociedade) e a Natureza, onde o primeiro era considerado como ser ativo e produtivo, porém que sofria influência do meio ambiente, mas ao mesmo tempo, dependendo do nível cultural, das condições técnicas e disposição de capital, poderia atuar sobre a natureza modificando-a. Portanto, na perspectiva vidalina, a natureza passaria a ser vista como “possibilidade” para a ação do homem, surgindo daí a denominação “Possibilismo”, dada pelo geógrafo e historiador francês Lucien Febvre. Dentro dessa visão o homem não seria mais determinado pelo meio mais teria também possibilidades para transformá-lo, de acordo com suas necessidades. 46 De acordo com Bento (2006), três décadas depois Chodorow, Ortner e Rosaldo (1979), na coletânea Natureza, cultura e mulher, seguem fielmente a herança do pensamento beauvoriano e sistematizam, por meio de generalizações, um pensamento generalizador que caracteriza fixamente os homens e mulheres, independentes da organização social na qual estavam inseridos e das diferentes relações socioespaciais entre sociedades diferentes. O quadro 03 apresenta uma análise sistematizada dos adjetivos comportamentais atribuídos por esses pesquisadores às identidades dicotômicas de gênero. Quadro 03 Universalismos dos gêneros da escola Beauvoriana AUTORES CHODOROW¹ TENDÊNCIA Psicológica HOMENS Objetividade, Atuação, Individuação, Cognição analítica. MULHERES Subjetividade, Comportamento comunal, Cooperação, Cognição relacional. ROSALDO² ORTNER³ Sociológica Psico- sociológica Campo de vida Racional pública onde emana Abstrato a autoridade Objetivo (cultura) Campo de vida Prática concretude doméstica onde as Subjetividade práticas devem estar (natureza) subservientes ao mundo público. FONTE: BENTO (2006). ¹ Para Chodorow existia uma unidade psíquica humana, o que lhe permitia alocar característica fixas e totalitárias de homens e mulheres independente da sociedade em análise. ² A concepção sociológica de público e doméstico de Rosaldo remonta esferas da vida social que são incomunicáveis. Por meio da descrição, a autora aponta a sistematização do binarismo de gênero sem realizar o teste de suas proposições com a realidade. ³ Ortner analisa a universalidade da subordinação de gênero sem aplicar suas hipóteses a uma sociedade específica. Associa as proposições de Chodorow com as de Rosaldo e propõe um modelo psico-social com base numa tipologia comportamental. Essa sistematização da realidade de forma binarista também foi percebida pelas geógrafas feministas. Joseli Maria Silva (2009a, p.30), quando discorre sobre as proposições de McDowell e Rose, aponta que “a paisagem como natureza passiva é feminina, exemplificada como ‘Mãe Terra’”, no seu oposto se construiu a ideia de conquista e dominação da natureza realizada pela ação do homem, o produtor do espaço. 47 A tendência relacional A década de noventa do século XX foi marcada pela análise das produções teóricas sobre as mulheres, sinalizando a emergência de novos pressupostos discursivos que desconstruíssem a mulher universal que caracterizava a tendência relacional. Conforme Joseli Maria Silva (2009a) os estudos feministas estavam influenciados pela escola marxista que priorizou as lutas de classes e as desigualdades de gênero no espaço. Nessa tendência, a categoria analítica “gênero” foi cruzada com estudos de classes sociais, nacionalidades, religiosidades, etnias, orientações sexuais em vistas de desnaturalizar e dessessencializar a categoria mulher. A amplitude dessas associações permitiu visibilizar sujeitos escondidos na universalização dimórfica dos corpos que prevaleceu na tendência universalista. Segundo Bento (2006), na tendência relacional era possível investigar mulheres negras analfabetas, brancas conservadoras, ciganas, camponesas, entre outras, pelo método comparativo. A tendência relacional produziu a representação da mulher-vítima, precarizada pela sociedade machista e o homem adquiriu o rótulo de inimigo. Para Bento (2006), esses posicionamentos faziam parte de uma mesma moeda: o patriarcalismo34. As geógrafas feministas acreditavam que as desigualdades de gênero presentes na sociedade capitalista baseavam-se na hierarquia de estruturas materiais que sufocavam e oprimiam os sujeitos do feminino, ainda restritos à categoria mulher. Os estudos de Friedrich Engels (1986 apud Joseli Maria Silva 2009b) na obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado alocaram para os estudos geográficos a íntima relação que existia entre o modo de produção capitalista e a instituição da família. A instituição da família burguesa, segundo Engels (1986) apud Joseli Maria Silva (2009b), sinalizou, nas relações sociais, a derrocada do sexo feminino. Nesse modelo que se tornava orgânico por meio do discurso, cabia à mulher manter-se casta até a efetivação do matrimônio, que a prenderia num pacto 34 De acordo com Silva (2009, p.228) o patriarcado é assimilado pelas geógrafas feministas como um sistema de relações baseado na hierarquia humana da desigual distribuição de poderes, tendo como centralidade a masculinidade sobre a feminilidade. 48 de fidelidade que deveria ser seguido à risca, em que o matrimônio confinava a vida do casal e trancafiava os discursos sobre o sexo. Coadunado com o argumento de Engels (1986) apud Joseli Maria Silva (2009b) sobre a criação e normatização da família, Michael Foucault (1976) explica que antes do modo de produção capitalista existia certa franquia para se falar sobre sexo, não existiam reticências excessivas e nem demasiado disfarce. Os gestos eram diretos, discursos sem pudores e os corpos nus transitavam sem dificuldades e sem escândalo, como dizia Foucault (1976), os corpos “pavoneavam”. Até certa medida não havia fronteiras tão rígidas e inacessíveis aos gêneros. Aliás, não existiam com clareza as restrições produzidas pelas dicotomias dos sexos que balizam os padrões de gênero e da sexualidade contemporânea. As recessões, delimitações e restrições foram produzidas e aguçadas durante o século XVII, quando o sexo foi confinado às quatro paredes e sobre ele era proibido falar (FOUCAULT, 1976, p.11). Para dominar o sexo no plano real foi necessário [...] reduzi-lo ao nível da linguagem, controlar sua livre circulação no discurso, bani-lo das coisas ditas e extinguir as palavras que o tornam presentes de maneira demasiado sensível. (FOUCAULT, 1976, p.21). O sexo passou a ser institucionalizado e capturado pela burguesia e seu modelo de uso normal foi assegurado aos casais heterossexuais que reproduzem esse legado até os dias atuais. As crianças não conseguiram escapar dessa fabricação discursiva e foram (des)sexualizadas e romantizadas como figuras pudicas assegurando-lhes uma associação com a figura angelical que representava, no ápice de sua contradição, uma divindade humana pura e sem pecado. Nesse novo padrão de sociedade que era elaborado, as mulheres foram colocadas e comprimidas ao espaço da casa, e cabia a elas assumirem a direção da criação dos filhos e dos afazeres domésticos. Simultaneamente, os homens foram sugados pelo novo modelo de produção, o capitalismo, que já apresentava pujança com o advento da Revolução Industrial, inferindo aos machos o papel de provedores, isto é, daqueles que mantinham a sobrevivência do lar. Apesar de todos os discursos criados pelo movimento feminista para a visibilidade da mulher, oprimida pelas relações capitalistas, que eram masculinas, nessa tendência permitiu-se a eclosão de estudos sobre as masculinidades, cujo 49 objetivo também era desconstruir o homem universal cujas características estavam em torno da virilidade, dominância e violência. A partir dessa corrente percebeu-se que as masculinidades se constroem relacionalmente com as feminilidades. Porém, essa construção deveria se afastar da premissa dicotômica disseminada pelo pensamento beauvoriano, e se posicionar a favor de um pensamento complexo e relacional. Por meio dessas provocativas foi possível compreender que homens e mulheres não compartilhavam das universalidades esboçadas pelo beauvorianos. O cotidiano de homens e mulheres diversificava-se de acordo com as socializações dos quais estavam submetidos. As pesquisas dessa tendência estavam preocupadas em descobrir, pelo método analítico, as diferenças entre homens negros e brancos, mulheres de classe baixa e alta, aplicando a associação da categoria gênero com as outras categorias caras às ciências humanas. Os trabalhos de Joan Scott receberam respaldo e confiabilidade por compreender o gênero como uma produção social, portanto, forjada. O método analítico proposto por Scott (1994) apontava uma fragilidade dos estudos universalistas que estavam, predominantemente, carregados de descrições minuciosas. Sustentada nas contribuições teóricas sobre a genealogia do poder de Foucault e o projeto desconstrucionista de Derrida, Joan Scott, para definir gênero, argumenta que essa categoria [...] tem duas partes e diversas subpartes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser distinguidas na análise. O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições: gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e mais, o gênero é uma forma primeira de dar significado às relações de poder (SCOTT, 1994, p. 13). As proposições de Scott (1994) indicavam que o gênero deveria ser utilizado como uma categoria analítica, que tornasse viável o entendimento da construção, reprodução e mudanças das identidades no decorrer do tempo histórico. A análise histórica era de fundamental importância nessa tendência e para Scott (1994) Historicizar gênero, enfatizar os significados variáveis e contraditórios atribuídos à diferença sexual, os processo políticos através dos quais esses significados são construídos, a instabilidade e maleabilidade das categorias “mulheres” e “homens”, e os modos pelos quais essas categorias se 50 articulam em termos da outra, embora de maneira não consistente ou da mesma maneira em cada momento [...] (SCOTT, 1994, p. 25-26). Entretanto, as teses formuladas por Joan Scott apresentam fragilidades conforme analisa Bento (2006). Para ela a utilização da diferença como parâmetros de tais estudos reproduziu a visibilidade da heterossexualidade35, ocultando as identidades de gênero que não se enquadram nas categorias de mulher ou homem que compõem a proposta de Joan Scott. Butler (2003) argumenta que a diferença pode culminar na coisificação do gênero e suplantaria, de fato, a heterossexualidade como norma compulsória das identidades. Conforme esse pensamento eclode alguns questionamentos: como as explicações de Scott contribuiriam para analisar as identidades Trans, já que estas não estão inclusas nas categorias até então destacadas por essa tendência? Como compreender a subjetividade de sujeitos que estão além desse binarismo? Conforme Joseli Maria Silva (2009a), as pesquisas geográficas da tendência relacional estavam vinculadas à luta de classes e às desigualdades de gênero. As análises só consideravam as estruturas materiais da sociedade capitalista que oprimiam e aprisionavam as mulheres. Os trabalhos marxistas, conforme elucida Joseli Maria Silva (2009a), sofreram relevantes críticas pela concepção dualista entre masculino e feminino, bem como a bipolaridade na análise da produção e reprodução social da sociedade capitalista. Outras críticas foram consideradas, como as realizadas por Bell Hooks e Gayatri Spivak (2004 apud Joseli Maria Silva 2009b) no que se refere à dominação dos discursos científicos da geografia feminista por mulheres brancas, da classe média, dos países desenvolvidos, evidenciando o quanto o campo ontológico está permeado de poder e subsidia a manutenção dos aparatos que reproduzem as lógicas colonialistas36. As vozes de pesquisadoras negras dos países periféricos, bem como as lésbicas, foram consideradas, ampliando as interseccionalidades dos estudos de gênero. De acordo com Bento (2006), uma das grandes críticas ao momento relacional foi a essencialização das análises do gênero, como também a 35 Até então os estudos da sexualidade estavam restritos a compreender os processos ligados à heterossexualidade, invisibilizando as performances de gays masculinos e femininos, intersexos e a ampla diversidade performática das sexualidades divergentes. 36 Sobre esse debate torna-se necessário considerar as investidas das análises críticas do conhecimento produzido proposto, por Boaventura de Sousa Santos na obra “Conhecimento prudente para uma vida descente: Um discurso sobre as ciências revisitado” (2004). 51 continuidade da generalização dos papéis de homem e mulher, suscitados pelo conceito de patriarcalismo. Corroborando com essa mesma crítica, Mc Dowell (1999) acredita que essa tendência pecou pelo alto grau de universalização presente no debate sobre o patriarcado, não alcançando com eficácia a compreensão dos contextos históricos e espaciais nos quais eclodiam as normativas de gênero. Percebemos que nas duas tendências anteriormente analisadas, o heteronormatividade exacerbado das teorias feministas invisibilizou identidades oprimidas, compactuando com o mesmo sistema de exclusão que confinou a mulher37. As sexualidades divergentes da matriz heterossexual38 não estavam contempladas nas tendências analisadas, situando nos estudos feministas um problema de gênero e na Geografia um problema espacial em virtude dos silêncios das geógrafas que, inicialmente, mostraram-se preocupadas com a repressão e aprisionamento espacial da mulher, mantendo o discurso de gênero geográfico heterossexualizado. Para além disso, o discurso geográfico legitimava a apropriação e usos do espaço a favor da reprodução da matriz heterossexual, capturando o espaço como estratégia da manipulação dos corpos, onde seria possível determinar as áreas e a temporalidade, por meio do discurso moralizante, que deveriam ser habitados pelos sujeitos das sexualidades divergentes. Essa crítica norteia outro fluxo de debates sobre as sexualidades que coincide com a articulação de grupos sociais que reivindicaram, na década de oitenta do século XX, direitos humanos em torno da temática da orientação sexual. Nesse mesmo período, segundo Bento (2006), pesquisadores das ciências sociais problematizavam, dentre outras temáticas, o papel determinante das ciências Psis na elaboração da “verdade” sobre o sexo. Para tanto, Joseli Maria Silva (2009a) pontua as contribuições de Jaques Derrida, Michael Foucault, Nietzsche, Teresa de Lauretis e Donna Haraway que, em meados da década de 90, favoreceram a criação de novas agendas de debates. A publicação dos três volumes da História da sexualidade de Foucault (1976) trouxe enormes contribuições para os estudos das sexualidades aliados aos conceitos de 37 Fica a inquietação de que o movimento feminista fazia parte de um amplo projeto de sociedade que não estava preocupado em minimizar a figura feminina e sim combater incessantemente a homossexualidade. A criação dos rótulos homem e mulher funcionavam como dispositivos de identificação que negavam outras categorias performáticas de gêneros. 38 De acordo com Butler (2003), a matriz heterossexual refere-se à base da integibilidade cultural por meio do qual os corpos, gênero e desejos são naturalizados e essencializados. Essa concepção, internalizada pelos processos culturais, representa a hegemonia de dominância da heterossexualidade que determina a linearidade e coerência entre genitálias e desejos sexuais. 52 poder, saber, disciplina, corpos dóceis e instituições normatizadoras presentes na obra Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1987). Tais provocativas auxiliaram Judith Butler (2003) a subverter e reavaliar, a partir do pós-estruturalismo, o debate até então consolidado sobre a temática. A perspectiva desconstrucionista de Butler (2003) indica outra tendência dos estudos de gênero, marcada pela pluralidade de enfoques e visibilidades das identidades sexuais que foram escamoteadas nos ensaios e publicações de gênero que estavam apenas voltadas para o binarismo homem-mulher. A tendência plural No livro Problemas de Gênero, Butler (2003) critica o “conhecimento do conhecimento” normativo produzido pelas/os pesquisadoras/res densos da lógica heterossexual. Sua grande contribuição, nessa obra, é apontar a necessidade de assumir o problema de gênero existente nos estudos feministas. Para Butler (2003), as tendências universalistas e relacionais reproduziam os mesmos mecanismos dos dispositivos saber-poder que retroalimentam a matriz heterossexual. Todos os discursos institucionalizados sobre o gênero da ciência reiteravam o dimorfismo dos corpos, execrando as sexualidades díspares do modelo homem-mulher. Os indivíduos que não correspondiam ao modelo binarista não eram inteligíveis ao debate. As travestis, transexuais, transformistas, gays, lésbicas, drag queens, drag kings39, entre tantas possíveis identidades destoantes da matriz heterossexual, demonstravam o quanto os estudos das sexualidades estavam densos de preconceitos, visto que, nessa situação, o silêncio se configura como uma estratégia de não visibilizar algumas identidades sexuais. A multiplicidade de identidades, a desnaturalização, a dessessencialização, a visibilidade das sexualidades divergentes e a história da produção das sexualidades 39 Drag queens ou Drag kings são artistas perfomáticos que se travestem, fantasiando-se cômica ou exageradamente com o intuito geralmente profissional artístico. As Drag queens se montam artisticamente no espelho da mulher, enquanto os Drag Kings no espelho do homem. 53 vislumbram um status teórico, reivindicando para si um campo próprio de análises chamado de estudos queers. Conforme Louro (2001), queer pode ser traduzido como estranho, ridículo, excêntrico, raro e extraordinário, mas é utilizado, ainda, como um termo pejorativo contra os homossexuais. Para esse estudo, corroborando com Miskolci (2005) e Louro (2001), queer refere-se à oposição heteronormatividade compulsória da sociedade, refletindo o trabalho e a perspectiva teórica de um grupo de intelectuais que, na década de noventa, afirmou-se e contribuiu significativamente para a desconstrução das concepções binaristas de gênero. O termo queer Surge como interpelação que discute a questão da força e da oposição, da estabilidade e da variedade no seio da performatividade. Este termo tem operado como uma prática lingüística cujo propósito tem sido o da degradação do sujeito a que se refere, ou melhor, a constituição desse sujeito mediante esse apelativo degradante. Queer adquire todo seu poder precariamente através da evocação reiterada que o relaciona com acusações, patologias e insultos. (BUTLER, 2002, p. 21). Além de a categoria gênero ser uma construção social regulatória da vida humana e que simultaneamente naturaliza os papéis femininos e masculinos, Butler (2002) também percebe o sexo como uma categoria normatizada que é cotidianamente reiterada e naturalizada. Binnie e Valentine (1999) aderem ao movimento teórico queer e criticam a geografia feminista pela ambiguidade no que se refere à adesão dos estudos da sexualidade. Em outras palavras, para eles, a geografia feminista mantém-se reticente com a crescente demanda de pesquisas sobre as sexualidades e apontam, como descreve Joseli Maria Silva (2009b, p. 44), que antes de realizar uma “leitura queer do espaço, é necessário empreender uma leitura queer da própria Geografia”. Para compreender melhor a tendência plural propomos a análise da teoria da performatividade de Judith Butler, associando essa matriz teórica com os estudos das sexualidades, que têm encontrado campo promissor na nova abordagem cultural na ciência geográfica. 54 1.3- A teoria da performatividade de gênero numa perspectiva espacial Os efeitos da teoria desconstrucionista de Judith Butler (1999, 2002, 2003) que revolucionaram os estudos feministas, trouxeram à tona a noção de gênero como uma categoria discursiva, que se constrói a partir de uma contínua repetição de ações, densas de significados socialmente construídos e legitimados, fortalecendo os binarismos anteriormente discutidos. Consideram que, apesar da sociedade estar sendo movida pelas forças generificantes que normatizam as identidades de gênero, suas normas quando internalizadas pelos sujeitos no processo de repetição nunca mais serão reproduzidas em fidelidade, sendo transpassadas pela capacidade que o sujeito possuiu de alterar significativamente as práticas internalizadas, abrindo a possibilidade de subversão e desconstrução de padrões ilusoriamente estáveis. Por isso, Butler (1999) afirma que o gênero é performático. A sua elaboração só é possível quando os parâmetros legitimados pela sociedade normatizadora são postos em um exercício cotidiano de reiteração; por meio da repetição desses parâmetros os sujeitos podem afirmá-los ou produzir um efeito inverso, desconstruindo e ressignificando contraditoriamente as bases generificantes que atestam a normalidade dos corpos heterossexuais. Eis que se produz, por meio da negação das normas, as sexualidades divergentes que antes estavam escamoteadas com a intensa visibilidade atribuída às categorias de homem e mulher. Segundo Butler (2003) o gênero configura-se como uma sofisticada tecnologia social a favor da heteronormatividade e a eficácia de seu desenvolvimento está atrelada à operacionalização realizada pelas instituições sociais, como as médicas, linguísticas, domésticas, escolares, que reiteram as ideologias dos corpos- homens e corpos-mulheres. Por meio das repetições, com base nas interpretações das normas internalizadas, os corpos adquirem características de gênero que compactuam com a matriz heterossexual, conferindo sentido às diferenças binaristas entre os sexos. Os atos reiterados são constantemente renovados, revisados e se consolidam como práticas banais ao longo do tempo e chegam a inclusive a um status de 55 naturalidade, por isso mesmo inquestionável. No pensamento de Butler (2002), esse processo significante de reprodução cotidiana é chamado de performatividades de gênero. Mesmo antes de nascerem os corpos estão inscritos num campo discursivo determinado pela matriz heterossexual. De acordo com Foucault (1987) os corpos são extremamente dóceis, de fácil manipulação, modelagem e recriação e correspondem às ideologias imperativas ao mesmo passo que as reproduz. A priori, todos os corpos são dóceis e submetidos à disciplina heterossexual, pois “é dócil um corpo que poder ser submetido, que poder ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1987, p.126). As performatividades estão imbricadas no interior de poderes sobrepostos e justapostos e esse mecanismo de dominância lhes impõe limitações, proibições e obrigações. Associando o pensamento foucaultiano com a teoria performática de Butler, podemos afirmar que as reiterações performáticas estão inclusas numa minuciosa operação corpórea, em que a sujeição constante ao biopoder40 impõe aos sujeitos uma relação de docilidade, permitindo a apropriação do corpo pelas normas dominantes. Para Foucault (1987) os corpos somente podem ser apropriados pelos símbolos culturais discursivos por meio da disciplina. A performatividade de gênero constitui-se numa disciplina porque se fundamenta numa relação de apropriação de corpos. Segundo Foucault (1987) a disciplina é diferente da escravidão, justamente porque não se fundamenta na apropriação de corpos, como também se distancia da noção de domesticidade que retrata uma relação de dominação constante, global e maciça. Diz Foucault (1977) que a disciplina é elegante a ponto de dispensar relações custosas e abruptas. Age de forma sútil e processual esquadinhando o tempo, espaço e os movimentos. O exercício cotidiano é que garante seu sucesso, ou seja, sua constante repetição e reafirmação possibilitam sua internalização e naturalização. A disciplina sempre está a favor dos agentes hegemônicos e é daí que ela emerge, sendo projetada como uma técnica detalhista, íntima, minuciosa e que define um investimento político e detalhado do corpo instaurando uma microfísica do poder para o gênero (FOUCAULT, 1979). A heterossexualidade não eclode de forma gratuita em cada corpo recém-nascido, a disciplina performática inscreve-se cotidianamente por meio de operações repetitivas de códigos supostamente 40 Ver Foucault (1976). 56 naturalizados. Mesmo no período do planejamento da vinda de uma criança já existe uma gama de expectativas pautadas num complexo e violento molde comportamental, antecipando o efeito que se supunha causa (BENTO, 2006). Na perspectiva desconstrucionista de gênero o processo disciplinar varia entre Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem as economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são elas entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época contemporânea (FOUCAULT, 1987, p.128). A docilização dos corpos pode ser assimilada como cirurgias discursivas que relocam a posicionalidade dos corpos rumo a um campo simbólico correspondente a matriz heterossexual. Sendo assim, as cirurgias que modelam os corpos não são apenas estruturais, mas discursivas. Conforme Bento (2006) o desejo dos familiares sobre o sexo da criança produz uma invocação performativa envolvendo aquele corpo vindouro de expectativas pré-elaboradas. Constantemente estamos submetendo-nos às cirurgias corporais discursivas que encontram na cultura grande poder de difusão para fabricação de nossos corpos. As tecnologias culturais remodelam-nos segundo as normas vigentes ou pautadas na superação e reação destas. Conforme Preciado (2002), os corpos já nascem operados, não existem corpos que não tenham sido submetidos às transformações disciplinares. Somos, então, pós-operados, uma cirurgia de sucesso carregada de investimentos discursivos e o “sexo é uma das normas pelas quais o “alguém” simplesmente se torna viável, que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade” (BENTO, 2006, p.3). Os arranjos disciplinares performáticos não são apenas simbólicos, essas produções discursivas ganharam formas espaciais e se impõem como arquiteturas generificadoras que operam os corpos e os espaços. Na visão de Foucault (1979) são as instituições normatizadoras que, como objetos espaciais, impõem a ordem heterossexual no espaço. A política dos enunciados e sua economia restritiva de discursos não conseguiram prender os saberes do sexo nas regiões abomináveis onde ela foi temporalmente escondida, a intenção das instituições normatizadoras 57 era por em prática a disciplina, detalhando aquilo que deveria ser dito e reproduzido sobre o sexo. Foucault (1979) afirma que as instituições normatizadoras acompanhavam com muita sutileza tudo que se produzia e se falava sobre o sexo. Entre elas estavam a Igreja Católica Romana, o Estado, as escolas, os hospitais, que com base no direito canônico, na pastoral cristã e na lei civil estabeleciam a linha divisória entre o lícito e o ilícito. As instituições normatizadoras estão materializadas no espaço enquanto objetos espaciais de onde emanam micropoderes e funcionam como “uma máquina de ensinar, mas vigiar, de hierarquizar (e) de recompensar”, (FOUCAULT, 1987, p. 134) criando espaços complexos ao mesmo tempo arquiteturas funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam seguimentos individuais e estabelecem ligações operatórias, marcam lugares, indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma economia do tempo e dos gestos. (FOUCAULT, 1987, p. 135) É a partir dos objetos e sinais exteriores ao corpo que o gênero adquire vida. Foucault nos apresenta as arquiteturas como objetos externos ao corpo que fazem parte de um proposital planejamento espacial que institucionaliza as tecnologias dos micropoderes. O espaço, em sua totalidade, possui objetos espaciais que observam, espiam, vigiam, além de conter alguns propósitos terapêuticos que lhe conferem um caráter expressivo. Em contato com o espaço performatizado, “o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (FOUCAULT, 1987, p. 127), e os objetos espaciais generificados definem as estratégias de dominação sobre o corpo alheio, não simplesmente para reproduzir aquilo que se quer, mas como se quer, são potencializados pelas tecnologias generificantes que fabricam corpos submissos e exercitados. Contraditoriamente, o processo de submissão está aberto ao paradoxo, pois nesse espaço de constante vigilância existem corpos que, na reiteração gestual e normativa de gênero se configuram como corpos rejeitados evidenciando a dinâmica social do gênero, que não é passiva à coerção heterossexual e responde subversivamente à repressão de si. 58 Geograficamente, surgem no escombro de suas representações seus espaços de resistência, reprodução e socialização. Assim são os lugares e/ou as territorialidades espalhadas pelo espaço geográfico que materializam as contradições presentes na realidade social, existindo de forma relacional, ao mesmo passo que apresenta vestígios da permissividade espacial cedida pelos agentes hegemônicos, isto é, aqueles que detêm os meios de produção e que disseminam a cultura normatizadora heterossexista e produzem o espaço (LEFEBVRE, 2000). No jogo do espaço sexualizado, segundo Foucault (1987), o importante não é destruir e fazer desaparecer as transgressões de gênero e nem socioespaciais, e esta não é a proposta dos agentes hegemônicos, pelo contrário, sua co-existência está circunscrita num sistema de repressão e num indicativo de modelo de vida “não-convencional” do qual um sujeito de boa índole não pode viver. Aqueles que destoam das reiterações delicadamente explicitadas pela matriz heterossexual são classificados como corpos abjetos, segundo Butler (2003). Em uma entrevista a Baukje Prins e Irene C. Meijer (2002) sobre Como os corpos se tornam matéria Judith Butler concorda que suas proposições sobre a existência da abjeção são contraditórias. A pesquisadora argumenta que a concepção de corpos abjetos, na dimensão teórica que foi discutida, culmina numa aplicação delicada do conceito em realidades materializadas em função do paradoxo daquilo que construímos como corpos e identidades fluídas no plano cultural. Para Judith Butler, O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas "inóspitas" e "inabitáveis" da vida social que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do "inabitável" é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. Essa zona de inabitabilidade constitui o limite definidor do domínio do sujeito; ela constitui aquele local de temida identificação contra o qual − e em virtude do qual − o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reivindicação de direito à autonomia e à vida. Neste sentido, pois, o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, "dentro" do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio. (1999, p.155-156). De acordo com a autora, a abjeção é a existência do impossível em seu sentido ontológico41. Por isso propõe que os sujeitos que não reproduzem as normas 41 Para realizar essa afirmação Butler (2001) realiza uma incursão teórica profunda cruzando conhecimentos específicos de diversas escolas filosóficas consideradas normatizadoras da 59 da matriz heterossexual, como as princesas do sertão (travestis, transexuais e transformistas desta pesquisa), são corpos abjetos que não gozam do status de sujeito. Segundo Prins e Meijer (2002) Judith Bulter (1999) afirma que a abjeção é provocada no momento que as ações divergentes à norma são recusadas pelos códigos da inteligibilidade. Viver deslocado desse simbolismo corresponde a uma inexistência comum nas “regiões sombrias da ontologia”. De acordo com Foucault (1995), certos tipos de discursos, para não afirmar com posicionamento radical que são todos, operam sobre efeitos e movimentos ontológicos. Os discursos produzem realidades que se afirmam enquanto verdades e criam materialidades que representam a ontologia concretizada. Aquilo que é dito e não corrobora com os símbolos da verdade do discurso dominante não possui materialidade ontológica, apesar dos símbolos estarem materializados na realidade e não possuirem legitimidade política e nem persuasão frente aos poderes dos discursos hegemônicos. Em seu argumento político filosófico, Butler (1999) apresenta o paradoxo da abjeção centrada na existência real de “coisas” que fogem às normas e que inexistem para a ontologia dos discursos dominantes. Sendo assim Butler, conforme Prins e Meijer (2002, p.160) afirma que “alguns tipos de seres têm existência ontológica mais completas que outros”. Assim ela desnuda o cenário da desigualdade da existência dos sujeitos de forma complexa. Para Butler a própria ontologia, com base em Foucault (1997), é um território regulamentado e manipula a produção, disseminação e exclusão dos saberes para que eles se sobreponham como tal, sob o efeito do poder. A noção de abjeto se expande quando Butler declara que O abjeto para mim não se restringe de modo algum a sexo e a heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpo cujas vidas não são consideradas ‘vidas’ e cuja materialidade é entendida como não importante. (PRINS e MEIJER, 2002, p. 161). Entendemos que a abjeção é um processo discursivo que extrapola o corpo, a sexualidade e alcança as outras esferas da realidade. A abjeção tem sua dimensão “verdade”. Ela considera que é por meio dos discursos e dos saberes que a ciência possui o respaldo na sociedade. A ciência produz o campo do real, da surrealidade, do humano, das afetividades a partir de seus pareceres científicos. Por isso a abjeção se constitui numa existência impossível, por reproduzir uma humanidade não aceita, não compartilhada pelo jogo de verdades instauradas pela ciência. 60 espacial reproduzindo “zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’” onde os marginalizados estão concentrados e se multiplicam formando as regiões sombrias em que a ontologia tem pouca inteligibilidade. Os territórios que subvertem os discursos hegemônicos são materializações concretas e simbólicas da abjeção performática. Os territórios inteligíveis reproduzem as normas do campo ontológico assegurando a eficácia das disciplinas sociais e sua regulamentação normativa. Enquanto os territórios abjetos se constituem na contradição oposicional e complementar dos territórios inteligíveis. Nos territórios abjetos a vida reproduz-se na contra mão das normas, e os sujeitos que o reproduzem negligenciam parte das normas legalizadas pela sociedade, contradizendo e solapando as estruturas que asseguram a existência dos territórios inteligíveis, porém jamais os exterminando. Nos territórios abjetos concentram-se os sujeitos transgressores da “vida”, em seu sentido ontológico, que resistem em constante conflito pelo reconhecimento político de sua existência anulada pelos dispositivos do saber e poder. O processo de abjeção vincula-se à preocupação de entender o modo pelos quais determinadas vidas são produzidas diferenciadamente em um sistema arbitrário de negação de sua condição humana refletida na produção diferencial do espaço. 1.4- As heterotopias espaciais dos gêneros divergentes Conforme analisada na teoria da performatividade de Judith Butler (2002, 2003), a nova tendência plural dos estudos de gênero amplificou seu campo de análise debruçando-se nas pluralidades performativas dos gêneros abjetos. Fazendo parte dessa corrente, nossa pesquisa envolve sujeitos que se declaram transformistas, travestis, transexuais, michê-gays e drag queens que subvertem a lógica dos gêneros inteligíveis, minando as representações dominantes da matriz heterossexual. Há um longo debate sobre essas performatividades, sobretudo quando se trata do risco de classificá-las. O rótulo, para a teoria queer, restringe as possibilidades de ser e estar do sujeito e classificar os seres é impor-lhes uma 61 estabilidade performática que é ilusória e no máximo ideológica. Não obstante, os espaços são comumente rotulados. A tradição geográfica, para sistematizar o conhecimento da disciplina, engendrou uma produção discursiva cartesiana sobre o espaço, elegendo, rotulando, classificando as áreas de acordo com fatores naturais, sociais ou naturais/sociais. A rotulação do espaço provocou uma soldadura que visibilizava os agentes hegemônicos e, consequentemente, escamoteava os grupos sociais divergentes. Porém, as histórias ideológicas desses rótulos disciplinares foram a obsessão do século XIX, como afirma Foucault (1967). Na contemporaneidade, talvez seja, acima de tudo, a época do espaço. Para Foucault (1967) vivemos num período de intensas simultaneidades que somente são perceptíveis na esfera espacial na qual as coisas estão justapostas, próximas, longínquas, sobrepostas e dispersas. Contudo, torna-se imprescindível compreender o íntimo nó entre tempo e espaço, visto que o espaço em si tem uma história. As nossas ansiedades estão reservadas à compreensão do espaço como “coisa” capaz de integrar e interagir com outros fenômenos da realidade, enquanto o tempo se constitui numa das várias operações distributivas possíveis entre os elementos que compõem e que estão espalhados pelo espaço (FOUCAULT, 1967, p.2). Apesar dos avanços técnicos para apropriação e uso, além das redes de relações entre os saberes galgados pelos profundos debates filosóficos, ainda não foi possível dessacralizar o espaço das dicotomias insuperáveis, invioláveis e inultrapassáveis que nossas instituições não tiveram a coragem de superar. Ainda discutimos o espaço público e o privado, social e familiar, de lazer e trabalho, mantendo o cartesianismo, por mais que a tentativa teórica desta pesquisa tente subverter, somos constantemente seduzidos à dicotomia espacial. Segundo Foucault (1967) Bachelard nos apresenta um espaço, por meio de descrições fenomenológicas, heterogêneo e denso de conteúdos, contrapondo a busca da homogeneidade e do padrão espacial. Para Bachelard o nosso espaço é o mesmo dos sonhos, das materialidades, das paixões, da luminosidade e da penumbra. Completa Foucault (1967, p.3) que vivemos “numa série de relações que delineiam sítios decididamente irredutíveis uns aos outros e que não se podem sobre-impor”, sítios que se encadeiam uns nos outros ao mesmo tempo em que contradizem todos os outros. 62 Buscando compreender o espaço, Foucault remete-se à discussão filosófica do conceito de utopia. Para ele, ancorado na ideia de sítio, as utopias são sítios sem lugar real ou material, possuindo uma relação analógica que pode ser direta ou invertida com o espaço real da sociedade. Por tamanha abstração, Foucault remetese ao espelho para exemplificar os sítios utópicos. O espelho reflete uma condição espacial que é um espaço sem lugar algum real e continua: vejo-me ali onde não estou, num espaço irreal, virtual, que está aberto do lado de lá da superfície; estou além, ali onde não estou, sou uma sombra que me dá visibilidade de mim mesmo, que me permite ver-me ali onde sou ausente. (FOUCAULT, 1967, p. 4). Os espaços que existem em materialidade e são formados pela sociedade se constituem em contra-sítios, pois condensam utopias da sociedade que podem ser encontradas e são contestadas, subvertidas e invertidas. Estes tipos de lugares estão fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar sua posição geográfica na realidade. Devido a estes lugares serem totalmente diferentes de quaisquer outros sítios, que eles refletem e discutem, chama-los-ei, por contraste às utopias, heterotopias. (FOUCAULT, 1967, p. 4). Considerando o espaço enquanto unidade heterogênea e contraditória, apesar de refletir as utopias dos agentes hegemônicos, existem espaços que burlam as utopias compartilhadas e naturalizadas enquanto verdades. Esses espaços, ou o espaço dos outros numa perspectiva antropológica, constituem-se em uma contrautopia, um contra-sítio ideológico, uma heterotopia. Os espaços da prostituição, onde o corpo se rende a prazeres e processos ridicularizados pelos agentes hegemônicos, constituem-se numa heterotopia. Eles existem em local real, numa materialidade espacial, porém se diferencia das utopias dominantes das áreas do seu entorno, se constituindo em lugar nenhum no plano filosófico de Foucault. Em Feira de Santana, em vários pontos da malha urbana, encontram-se espacializadas inúmeras heterotopias da prostituição, que são enclaves quando comparadas com as outras relações que predominam no espaço do entorno. Em nossa área de estudo a heterotopia da prostituição se processa e se reproduz numa área privilegiada aos poderes dos agentes hegemônicos. Lado a lado com a Igreja, a Prefeitura, o comércio e a Polícia Militar, instituições que reiteram as normas sociais dominantes, convivem num certo período prostitutas, travestis, transexuais, 63 transformitas, gays masculinos que burlam os princípios da moral e dos “bons costumes” da heterossexualidade. Sua presença espacial solapa as utopias da monogamia, do casamento e da heterossexualidade. Esses elementos, quando associados geram uma contra-utopia que se espacializa de forma fluída no centro feirense. O adultério, a prevaricação (dentre tantos adjetivos pejorativos constantemente usados pelas instituições normatizadoras) e a homossexualidade redesenham o urbano e escrevem outra espacialidade e contradiz a moral dominante. As ruas tornam-se espaços de visibilidade para corpos que transitam seminus, gerando sensações combatidas, sobretudo, pelas Igrejas que articulam uma série de discursos tentando neutralizar o efeito subversivo da presença espacial das sexualidades divergentes no centro da cidade. Para Foucault (1967, p. 5) esse fenômeno é chamado de heterotopias de desvio que são “aquelas nas quais, os indivíduos, cujos comportamentos são desviantes em relação a norma”. Ainda discorre Foucault (1967, p. 5): “cada heterotopia tem uma função determinada e precisa na sua sociedade, e essas mesmas heterotopias podem, de acordo sincrônico com a cultura em que se inserem, assumir uma outra função qualquer”. Apesar de se constituir num espaço onde se reproduzem relações abomináveis42 frente ao pensamento burguês, os prostíbulos e/ou as zonas do baixo meretrício de Feira de Santana, segundo Matos (2000) e Maria Carolina Silva (2004, 2008 e 2009) muitas famílias tradicionais de Feira iniciavam sexualmente seus adolescentes masculinos nessas casas de orgia, apresentando ao indivíduo o mundo da masculinidade compulsória. Outra característica dessa heterotopia é que ela “consegue sobrepor, num só espaço real, vários espaços, vários sítios que por si só seriam incompatíveis”(FOUCAULT, 1967, p.6). A centralidade feirense, conforme estudaram Oliveira e Henrique (2009a) apresenta uma multifuncionalidade e concomitante a isso inúmeras territorialidades (o que significaria o termo espaço utilizado por Foucault), dentre elas: a da prostituição, dos flanelinhas, dos camelôs, da Igreja Católica, do tráfico de drogas, dos feirantes, dos fotógrafos do lambe-lambe, etc. Essas co-existências espaciais tensionam o espaço, pois as contra-utopias se 42 No imaginário reproduzido pelos agentes hegemônicos, uma série de doenças venéreas e gente de todo tipo, entre eles: assassinos, ladrões, estelionatários, estrupadores, etc. convivem e compartilham desses espaços. 64 reproduzem com base na contradição, assimilação, identificação e delimitação, revelando o caráter paradoxal existente nessas relações. A heterotopia da prostituição de rua feirense apresenta um caráter cíclico, constituindo-se em uma heterocronia43. Para Foucault (1967, p.7) “na maior parte dos casos, as heterotopias estão ligadas a pequenos momentos, pequenas parcelas do tempo”. Essa característica foi elucidada por Oliveira e Henrique (2009b) no território da prostituição Trans na área de estudo. Segundo os autores, da mesma forma como o pôr-do-sol demarca um período de transição do dia para a noite, após o desativar das atividades diurnas percebe-se a oficialização de outra organização espacial. À noite este espaço reveste-se de nova lógica, códigos e símbolos formando o território da prostituição onde as travestis e as prostitutas fazem circular outras intencionalidades, bifurcando os fluxos noturnos do centro, as pessoas que nelas circulam, as intencionalidades, caracterizando esse lugar como complexo e com grande poder de metamorfose espaço-temporal.(OLIVEIRA e HENRIQUE, 2009b, p.10). Conforme Foucault (1967) as heterotopias também pressupõe um sistema de abertura e encerramento tornando-as herméticas como penetráveis. Para ele as heterotopias são espaços de livre penetração no que se refere ao espaço público, para outras situações espaciais elas possuem um código que determina aqueles que as compõem e aqueles que são os de fora. A entrada pode ser compulsória ou por meio de rituais e purificações em que o individuo recebe, simbolicamente, a permissão para circular e se fazer agente da heterotopia. A segregação do espaço pela lógica de gênero pode ser observada nas seguintes formas: as zonas de baixo meretrício, os bairros de alto padrão de famílias que prezam a norma heterossexual, as ruas especializadas em comércios para o entretenimento gay e as diversas territorialidades trans, lésbicas, neonazistas, homofóbicas e outras peculiaridades do gênero. (OLIVEIRA e HENRIQUE, 2009c, p.9). E os autores continuam, 43 O conceito de heterocronia de Foucault (1967) se baseia na ruptura do indivíduo com sua tradição temporal, sendo aplicado em situações que compreendem o tempo de forma ampla e em intensidades diferentes. Tal conceito contribui para compreensão do espaço geográfico, considerado na visão de Foucault enquanto uma heterotopia, por excelência heterocrônica, visto que o tempo não para de se acumular e empilhar-se sobre si próprio. As formas do passado que coexistem no espaço seriam registros históricos arquitetônicos de uma sociedade que não existe mais e que passou por intensas transformações no curso histórico. 65 Do mesmo modo, a cada fabricação travesti no espaço, ressurge um novo território móvel, cíclico, elástico que desliza por sobre o espaço. A fabricação da identidade travesti está intimamente ligada à fabricação de seu território, o que possibilita a fabricação de novos e antigos corpos. (OLIVEIRA e HENRIQUE, 2009a, p.5). A contradição sobre o acesso da heterotopia reside na aceitação44. Nem todos os indivíduos que estão no território fazem parte dele. É característica da heterotopia criar a ilusão do falso estar. As relações identitárias que se reelaboram nas heterotopias se encarregam de produzir a exclusão dos que pensam estar onde nunca entraram. Isso quer dizer que “pensamos que entramos ali onde somos, simplesmente pelo fato de ali termos entrado, excluídos” (FOUCAULT, 1967, p. 8). Por fim, o último traço da heterotopia apresentada por Foucault (1967) se refere à função específica que ela desempenha para seu sítio de entorno. A heterotopia apresenta uma função que se desdobra em dois pólos extremos, criando “um espaço ilusório que espelha todos os outros espaços reais, todos os sítios nos quais a vida é repartida, e expondo-os como mais ilusórios” (p.8). Os territórios da prostituição apresentam essa simultaneidade oposicional. Mesmo sendo um espaço onde o contato social entre pessoas de “bem” e prostitutos se torna um ato proibido pelos sistemas simbólicos que regem nossa conduta social, a frequência dos homens que compõem a sociedade moralista retroalimenta o território. Esse paradoxo pode ser verificado no depoimento abaixo [...] clientes bons de Feria de Santana, de outros lugares, regiões também, que saem com a gente, do mundo todo também que vai pra lá, que passa na Presidente, que todos que vai pra outra cidade passa pela Presidente Dutra [...].(Entrevista realizada com Sophia Loren em 14.01.2010). Existe uma frequente negação da prostituição de forma generalizada em documentos históricos de Feira de Santana catalogados e analisados por Matos (2000) e Silva (2006). Porém a vida boêmia da cidade está diretamente ligada com os mesmos grupos sociais que reproduzem essa negação e defendem o extermínio dessa prática pecaminosa na cidade princesa, mas superlotam os bordéis como também circulam pelas avenidas onde as travestis, transexuais e transformistas fazem trottoir. 44 Tanto Souza (1995) quanto Haesbaerth (2007) problematizam o acesso no território. Para eles existe um jogo que direciona os de dentro do território e os de fora. Esse processo de semelhançaidentificação e diferença-negação é que determina o acesso às territorialidades. 66 CAPÍTULO II HORMÔNIO Hormônio... Hormônio é vida, Luz, esperança... Hormônio é... Calma, tranquilidade E faz e mente ficar psicológica!!! Ele quebra as feições do rosto, Melhorando o aspecto... Ele faz rodar na esquina direto... Faz conhecer os amigos várias vezes... O hormônio faz parar na BR... Melanie Moule 67 2- FAZENDO O GÊNERO E O ESPAÇO: A (RE) INVENÇÃO DO FEMININO E A (RE) INSCRIÇÃO DO ESPAÇO Nós também temos, eu não sei as outras, mas eu tenho a mulher como uma diva, um espelho. (Entrevista realizada com Greta Garbo em 15.01.2010). A incessante busca do feminino pelas Trans, foco de análise desse estudo, gera na sociedade civil ou ainda, nos centros acadêmicos de pesquisa, certa inquietação e debate no que tange às divergentes produções de gênero que são constantemente elaboradas e reelaboradas. Está disseminada no senso comum, certa homogeneidade direcionada àqueles que utilizam um vestuário ligado à moda feminina. Tal concepção, ao mesmo tempo em que é cruel, se torna estratégica. Cruel por reduzir a pluralidade das identidades que são reelaboradas no fazer do gênero e sintetizar seus instáveis produtos identitários como rótulos fixos. Estratégica por que essa ilusória homogeneidade camufla as práticas, códigos e símbolos que são específicos desse grupo heterogêneo, dificultando o acesso dos seres inteligíveis, protegendo as especificidades e a integridade humana do grupo. A busca pelo feminino, empreitada pelos seres abjetos que destoam das normas dominantes do gênero, pode ser justificada pela importância que demos na sociedade heterossexualizada, aos papéis de homem e de mulher. É por meio dessa diferenciação que as relações sociais se desdobram, pois é sobre o corpo que a cultura faz recair o manto das normas sociais, “cobrindo-o e descobrindo-o de acordo com leis internas” (OLIVEIRA, 1994, p.25). Para essa diferenciação, as instituições normatizadoras realizam um trabalho tecnologicamente sofisticado que generifica, em determinado modo, a realidade. De forma arrojada, os discursos vão neutralizando a ação persuasiva das sexualidades divergentes, minimizando seu poder de contestação de gênero perante os imperativos da normatividade que custa, a duras penas, impor a relevância do binarismo homem-mulher dentro dos padrões da heterossexualidade para que a vida se torne legalmente viável. Deste modo, reproduzir a cotidianidade fora desses padrões construídos no curso histórico e potencializados na era vitoriana, como elucida Foucault (1979), é 68 viver de forma arbitrária e passível de inúmeras sanções e restrições socioespaciais e afetivas. Isso justifica boa parte das ações que, por repetição, são naturalizadas, sobretudo de rejeição aos seres que não compartilham de desejos, comportamentos e estéticas determinados pela matriz heterossexual. Nesse bojo, encontram-se as transformistas, travestis e transexuais que fazem seus gêneros complexos e destoantes à luz do feminino, ou seja, no espelho da mulher, mas não de qualquer mulher. Montam-se, reparam-se, ajustam-se de acordo com o que há de mais feminino nas divas que são potencializadas como caricaturas do superfeminino, sensuais e pudicas, ora desinteressadas ora perspicazes rumo ao contraditório e instigante mundo da mulher, subvertido e ressignificado pelo universo Trans. A construção dos gêneros abjetos tem sido alvo de inúmeros estudos de diversas áreas da ciência. Dentre essas pesquisas destacam-se a Antropologia, a Sociologia, a História e a Psicologia que têm debatido a produção e o cotidiano das identidades de gênero destoantes. Muitos desses estudos têm sido influenciados pela corrente pós-estruturalista da teoria queer com destaque aos trabalhos de Benedetti (2005), Bento (2006), Pelúcio (2007) e Peres (2005). Anterior a esse debate com forte tendência relacional, conforme já foi discutido no capítulo anterior, destacam-se os trabalhos de Silva (1993, 1996) analisando as travestis da Lapa, no Rio de Janeiro e Oliveira (1994) empreitando um estudo materialista histórico das travestis nos cortiços do Pelourinho, em Salvador. Na contramão dos discursos científicos, que tentam ajustar no curso da história a produção dos gêneros, estão as narrativas pessoais de cada transformista, travesti e transexual que remontam uma produção biológica do gênero desviante, como algo dado, adquirido com a vinda da criança à vida. De acordo com Benedetti (2005), para suas informantes em Porto Alegre-RS, a naturalização do gênero é uma explicação comum e compartilhada no universo Trans em que a homossexualidade é uma característica inata que nasce com o indivíduo e é despertada no convívio social. Essas justificativas encontraram lugar comum nessa pesquisa. Todas as informantes acompanhadas durante o período de participação observante confidenciaram, nas entrevistas semiestruturadas ou em conversas informais, a naturalização de suas performances. O fato de se localizarem num campo discursivo no qual o feminino é predominante é justificado pelo dotes naturais advindos de uma gestação tendenciosamente desejada pelas mães, que almejavam vir à luz da vida 69 social uma menina. Esses discursos justificam, entre as Trans desta pesquisa, a origem dessas sexualidades, apesar de, entre elas, existirem inúmeros conflitos sobre a origem de performatividades femininas em corpos masculinos. Este capítulo não pretende esgotar e nem aprofundar questões que as outras Ciências Sociais estão investindo em pesquisas desde a década de 70 do século vinte. Porém, as narrativas coletadas no campo evidenciam a complexidade alertada por diversos autores acerca das diferenças existentes entre “os homens que se vestem de mulher” e compõem os agentes analisados por essa pesquisa. Tais depoimentos confirmam como os discursos socialmente elaborados e disseminados foram internalizados para justificar, a partir da biologização dos corpos, uma falsa naturalidade do gênero. Alertando-nos a favor da construção histórica do gênero, Butler (2002) afirma que o gênero não é uma produção cultural que é depositada ou moldada sobre um receptáculo natural, que seria o corpo. Para a autora, tanto no sexo quanto no gênero está presente uma densa gama de investimentos sociais, que de forma sofisticada, reiteram e manifestam as normas sociais pela repetição cotidiana, e esta por sua vez, paulatinamente, é internalizada pelo indivíduo como uma aparente naturalização do gênero e do sexo. O estudo da heterogeneidade identitária do universo Trans possibilita os avanços dos estudos de gênero, sobretudo quando se busca entender como as diferentes performatividades identitárias circulam e utilizam o espaço. É por este viés que caminhamos, rumo ao entendimento das diferentes e paradoxais definições entre transformistas, travestis e transexuais e a (re)significação espacial que elas constroem quando (re)inventam o feminino. Para tanto, analisamos as narrativas, associadas às vivências observadas na etnografia, para compreender a diferente espacialização entre as transformistas, travestis e transexuais em Feira de Santana. Essas observações só se tornaram possíveis em virtude dos inúmeros contatos de diálogos e os passeios que fizemos nas ruas da cidade princesa, tanto no período da noite quanto pelo dia. Não é objetivo desta pesquisa fazer um inventário sobre as inúmeras denominações que existem no grupo homossexual e que estão diretamente ligadas a essas questões de pesquisa, inclusive porque entendemos os riscos de rotular as identidades e minimizar suas possibilidades. Acreditamos que qualquer classificação torna-se inconveniente a partir do momento no qual concordamos com as 70 instabilidades das identidades defendidas pela abordagem queer. Porém, chegamos a um momento crucial em que foi necessário se render, por partes, às denominações que as próprias Trans informaram durante a participação observante. Percebemos o quanto essas categorias influenciam na vivência e nos deslocamentos espaciais a depender do grau de transformação na construção de gêneros das pessoas, pois o espaço condiciona a reprodução do cotidiano, pois está embutida nas formas e funções espaciais a lógica da heterossexualidade. Para Foucault (1987, p. 201) “o aparelho arquitetônico converte-se em uma máquina para criar uma relação de poder independentemente da pessoa que o exerce”. As arquiteturas que compõe o espaço reproduzem as lógicas do poder da matriz heterossexual inibindo ou possibilitando o acesso dos seres abjetos em determinados espaço. Pois o espaço foi marcado, mais que marcado: foi formado pela predominância masculina (guerreira, violenta, militar) e valorizado pelas virtudes chamadas viris, difundidas pelas normas inerentes ao espaço dominado-dominador. (LEFEBVRE, 2000, p. 470-471). Dessa forma, o espaço e as sexualidades produzem e são produzidas pelas forças que regem as dinâmicas da vida em sociedade. Para Knopp (1998) ambos refletem como a vida cotidiana, delineada por Lefebvre (1968), se reproduz, é representada, percebida e internalizada, como também a forma como os grupos sociais, nessa internalização, revidam e fazem frente a essas lógicas. As proposições realizadas nas próximas páginas sobre as performatividades, estão baseadas nas narrativas das informantes dessa pesquisa. Observamos que, a classificação de gênero, corrente entre elas, é muito mais funcional do que identitária. O transformismo e o transexualismo, sobretudo, narrados pelas informantes, são performatividades funcionais deslocados de seu sentido identitário, para cumprir os pré-requisitos da prostituição. Assim, encontraremos nas afirmações a seguir limites cada vez mais instáveis a cerca da conceituação de cada sexualidade aqui abordada. 71 2.1- Princesas do disfarce No centro da Cidade Princesa encontramos, ao longo da participação observante, quatro transformistas que dividem a mesma esquina na Avenida Marechal Deodoro com as travestis e transexuais. Dentre elas, duas apresentam especificidades que tensionam e complexificam nossa pesquisa. Uma, chamada de Brigitte, cinquenta anos de idade, é fundadora do território do sexo em Feira de Santana e atualmente não exerce mais o ofício da prostituição. Brigitte é morena, dos olhos castanhos escuros, com cabelos pintados que tentam esconder os fios brancos, magra e alta, acredita que sempre teve um corpo favorável para entrar nos melhores manequins que recebem atenção e elogios na rua e nos eventos gays da cidade. Ganhadora de dezenas de prêmios em concursos de beleza e desfiles gays da cidade, que ocorreram entre as décadas de 70 e 80 encontrando seu declínio e desarticulação no final dos anos 90 do século vinte, Brigitte é uma diva feirense e possui um reconhecimento incontestável entre as Trans da cidade, por ser mais velha e popular. Seus prêmios estão todos disponíveis para quem visitar sua casa, localizada no bairro dos Eucaliptos. No seu quarto estão presentes alguns objetos religiosos do candomblé do qual participa fielmente, além disso, estão nos manequins, inúmeros figurinos coloridos e exóticos dos quais venceu concursos ou desfilou nas recentes paradas gays da cidade. A outra transformista que tenciona esta pesquisa é a Marlene, recém inserida no território e afilhada45 da travesti Katharine. Marlene é pequena, morena de cabelos encaracolados e menor de idade. Negou insistentemente durante nossos poucos contatos, afirmando ter 18 anos. Porém, as outras Trans denunciavam, no meio de risos, sua adolescência e sua iniciação na pista46 como transformista. Com o corpo magro, Marlene é uma ninfeta que está iniciando sua sexualidade no ofício da prostituição. De acordo com as outras Trans da praça ela aparece na rua somente nos finais de semana para conseguir uma renda para se 45 46 Essa relação de madrinhagem será mais bem discutida no capítulo IV. Fazer pista é o mesmo que fazer trottoir, ou seja realizar a prostituição de rua. 72 alimentar e durante a semana realiza uma série de favores à Katharine 47, sua madrinha, e Audrey sua parceira de pista. A existência de uma princesa menor de idade nesta pesquisa foi uma surpresa inicial que tivemos em campo. Em respeito ao código de ética que protege as crianças e adolescentes, não realizamos as entrevistas semiestruturadas a Marlene, mas não resistimos a observá-la, nem na pista montada e parando os carros e nem vestida de garoto, durante o dia, lavando as roupas das suas amigas Trans da praça. As outras duas transformistas iniciaram suas primeiras montagens para prostituição no ano de 2005, logo quando iniciei a inserção no universo de pesquisa. Os laços de intimidades estabelecidos com elas foram significativos para a realização das entrevistas semiestruturadas e os diversos passeios durante o dia no centro de Feira para observar os variados usos espaciais. A transformista Joan tem uma pele bronzeada de tom médio-claro, cabelos lisos de cor castanho médio, magra com mais de 1,85 metros de altura e um par de olhos cor de mel. Aos 25 anos, Joan passa boa parte do dia na internet, marcando seus encontros pelo msn48 e durante à noite, nos finais de semana, se monta, com um figurino que deixa à vista seu par de pernas. Muitas imagens de suas produções estão disponíveis em sua página do Orkut pelo qual trocamos constantes recados. Por sua vez, Ava é morena com cabelos crespos de corte pequeno, com 23 anos, e começou suas primeiras produções junto com Joan. Com mais de 1,65 metros, Ava possui um bumbum empinado e torneado, suas coxas ficam sempre a mostra, realçadas com o uso constate de saias justas e um salto alto para compensar o tamanho. Seus olhos são castanhos claros, seus lábios são carnudos e seu corpo, além da recente aplicação de silicone, apresenta músculos definidos. Seus ombros largos e másculos favorecem, com o uso de camisas folgadas, a camuflagem dos pequenos e empinados seios que ela colocou durante a participação observante. 47 Katharine e Audrey não possuem os sobrenomes à toa. Elas são irmãs. Quando as conheci ainda como gayzinhos, eles circulavam pela praça em busca de prazer pago ou gratuito. Inicialmente Katharine fez sua transformação mediada pela madrinha Claudia e posteriormente, de forma muito rápida, Marcelo se transformou em Audrey, negra, alta e muito sensual. 48 Sobre essa rede on line de relacionamentos Pelúcio (2007) realizou uma detalhada pesquisa sobre Trans que se prostituem e se relacionam via web. As Trans chamam-se de T-gatas ou T-girls, enquanto os parceiros sexuais virtuais são chamados de T-lovers. 73 A partir dessa rápida descrição das transformistas da praça já podemos perceber as pluralidades existentes nessa categoria que complexificam esta pesquisa. A aplicação de silicone, que é uma ação rumo a modificações corpóreas mais arrojadas e profundas, geralmente utilizadas pelas travestis e transexuais, em Ava embaralham inúmeras conceituações sobre o transformismo. Por isso, acreditamos que em alguns casos a categoria transformista é mais funcional que identitária. Estudos sobre esse fenômeno já foram realizados na Bahia. Dentre essas pesquisas destaca-se o pioneirismo de Oliveira (1994) que analisou as identidades Trans na cidade de Salvador. Para Oliveira (1994) as transformistas preferem manter a ambivalência entre as categorias homem-mulher, além de não compartilhar e nem apresentar o desejo da castração do pênis. Sabem ser um homem que, em determinados momentos podem representar com perfeição a performance de uma mulher, sem alterarem a anatomia do seu corpo. Não tomam hormônios, não põem silicone, nem querem ser castrados. Nada que comprometa a volta à sua condição masculina. (OLIVEIRA, 1994, p. 42). Ao contrário do afirmado por Oliveira, todas as transformistas declararam usar ou ter usado hormônios e apenas Ava investiu em alterações corpóreas mais significativas com aplicação de silicone de avião, meio copo em cada seio. Ao que parece não é a condição de reversibilidade que as torna transformistas, mas a capacidade de se performatizarem homens e mulheres mesmo possuindo corpos hormonizados. Isso não significa que todas as transformistas fazem usos de hormônios e silicones. Existe, na literatura, a descrição minuciosa de vários casos que corroboram com Oliveira. Porém, nesta pesquisa, as informantes que se declararam transformistas estão inseridas numa amálgama de transformações corpóreas mais sofisticadas. Tentando compreender e considerar essas pluralidades, outra concepção demarca outro campo conceitual para as transformistas, não explicitando, de forma direta, o não uso de hormônios e silicones. As transformistas, por sua vez, realizam em seus corpos intervenções leves – que podem ser rapidamente suprimidas ou revertidas – sobre as formas masculinas do corpo, assumindo as vestes e a identidade femininas somente em ocasiões especiais. (BENEDETTI, 2006, p. 18). 74 Não é comum entre as transformistas circular durante o dia montadas, isto é, com roupas e acessórios femininos. Pelo contrário, durante o dia sua estética está ligada ao padrão do vestuário masculino e seus gestos se tornam mais discretos e mais másculos. Não há uma rigidez sobre o uso de hormônios e silicones, não é o seu uso que demarca o campo que diferencia as transformistas das outras Trans, mas a propriedade de performatizar o binarismo em um só corpo e em horários diferentes. Existem diversas concepções sobre o transformismo, algumas delas evidenciam a capacidade de representar o homem durante o dia e no mesmo corpo à noite surge uma mulher desmontável de forma prática. Ser transformista, entre as informantes dessa pesquisa, é ser Um gay que coloca peruca, um mega hair temporariamente, de dia é homem e de noite vira mulher. De dia é João e de noite é Maria. (Entrevista realizada com Ava em 18.01.2010). A transformista já é bem diferente, ela vai pra rua totalmente diferente do dia-a-dia dela, é como se fosse uma gay durante o dia, homem normal e durante a noite vai ter o momento dela de Maria, se travestir vestir-se de mulher e fechar, soltar a franga na rua. (Entrevista realizada com Bette em 15.01.2010). A transformista? Ah, essa é fácil. A transformista pra mim é aquela que se veste de homem de dia. Ela é homem normal, mais ela é gay, ela continua 49 sendo gay, ela tá vestida de homem, de ocó , e de noite ela se monta, passa uma bela minâncora na cara, passa uma base, um pó compacto, um blush, brilho, um batom, se pinta todinha, se veste de mulher e vai pra pista, isso é uma transformista. De noite é mulher e de dia é homem, ela se transforma. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010). Percebemos que entre as travestis, o transformismo ocorre quando existe a performatividade dupla em um mesmo sujeito, que no senso comum é exemplificado por João, o homem, que se transverte de Maria durante a noite. Para a montagem da Maria, todo truque da beleza se faz necessário, forjam-se os quadris com espumas de estofados, conhecido como pirelli, aplicam-se mãos e sobrancelhas postiças, além de uma maquiagem cheia de camadas de bases para esconder os traços do chuchu50 e apresentar a pele de forma mais aveludada. 49 50 Em ioruba significa homem. Na linguagem do Bajubá refere-se aos pelos do rosto masculino, ou seja, a barba. 75 Porém, é entre as transformistas que a conceituação amplia-se e permite a visualização das pluralidades, com o surgimento da mulher no corpo de homem em ocasiões especiais, como elucidou Benedetti (2005). Olha, a transformista é uma como a mim, de dia é normal, são rapazinhos, entendeu? Agora quando é os evento, [é] que eu me transformo, que eu boto um vestido, um salto, me maquio, já me transformei, já passei a ser uma mulher, [para] ser um transformista. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010, grifos do autor). Transformista é um homem que transforma certo? Ele de dia é homem, de dia ele se veste normalmente de homem e durante a noite em festas, boates, ou no show, alguma coisa do tipo é que ele se transforma. (Entrevista realizada com Joan em 15.01.2010). O uso de hormônios entre as transformistas de Feira não as leva a se classificarem enquanto travestis. O hormônio aplicado ao corpo seria uma estratégia de minimizar os traços masculinos existentes no corpo e potencializar curvas e sinuosidades que são esculpidas com a ingestão de progesterona, aperfeiçoando-os para a montagem do feminino. As indicações sobre como utilizar o hormônio são compartilhadas na rede de solidariedade entre as Trans. Muitas delas são oriundas de discursos médicos-legais, porém, outras fazem parte do senso comum. Ah, nós tivemos um médico, que por sinal ele era gay. Ele era conhecidíssimo aqui na cidade (entendeu?) e ele passava os remédios que a gente deveria usar. Aí a gente ia e tomava os comprimidos em hormônio, injeção, e aí pronto, ali se transformava. Ah [o hormônio], influencia no desenvolvimento do corpo, no desenvolvimento dos seios [...] e deixa o homossexual afeminado [...] Tomei com os 15 anos de idade. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). De acordo com Ava, a aplicação de silicone tornou-se possível por uma incompatibilidade orgânica com o produto e por uma necessidade de ver, rapidamente, brotar entre o tórax os seios discretos que possui e que são camuflados com as camisetas folgadas que faz uso durante o dia quando está de “João”. Cheguei a tomar [o hormônio], umas duas vezes, só que enjoava e eu resolvi colocar logo o silicone que é uma coisa que cresce mais rápido, do que tomar hormônio. Eu não vi desenvolver rápido [o feminino no corpo], aí eu resolvi colocar logo silicone [...] Mas tem só sete meses que eu coloquei silicone [...] Fui em Salvador comprei o silicone, tem um amigo meu que aplica, paguei a ele, ele veio colocou em mim, estamos aí, o silicone não rejeitou, está no meu corpo até hoje e é isso. (Entrevista realizada com Ava em 18.01.2010). 76 Esse duplo uso de identidades de gênero permite às transformistas circularem mais no espaço do que as travestis e transexuais. Uma vez vestidos de homem, mesmo com acentuados trejeitos gays, as transformistas circulam nas ruas comerciais e nas instituições com maior liberdade e menos constrangimento. Esses sujeitos também apresentam maior possibilidade de serem inseridos no mercado de trabalho por conservar uma estética normativa51, que é minimizada à noite para eventos ou para o trottoir. Sobre a condição socioeconômica das transformistas A partir da coleta de dados primários, em forma de questionário, podemos observar que a maioria das transformistas possuem renda inferior ao salário mínimo, que corresponde a R$ 510,00 e sobrevivem basicamente da prostituição, com exceção de Brigitte que trabalha em salões de beleza. De acordo com o gráfico 01, 50% das entrevistadas possuem escolaridade básica incompleta. Por outro lado, 50% completaram os estudos do ensino médio, com destaque a Brigitte que possui formação técnica em duas modalidades do ensino médio: contabilidade e magistério, cursos ofertados até o final da década de 90 do século XX no Colégio Estadual de Feira de Santana. Ava concluiu sua escolaridade básica na modalidade formação geral em escola publica, apesar de ter estudado até a 8º série do fundamental II em escola particular. Marlene e Joan continuam estudando o 1º ano do Ensino médio no turno noturno da mesma escola. Observando o quadro 04, as transformistas residem próximas do centro da cidade em áreas pouco valorizadas pelo capital. Essa proximidade favorece o deslocamento e a fluidez cotidiana ao centro da cidade. Joan e Marlene continuam vivendo com a família e encontram-se desempregadas no mercado de trabalho. Ava saiu de casa, posterior ao falecimento de seu pai e reside atualmente com sua madrinha de pista, Romy, no bairro Rua Nova, com quem divide o aluguel. 51 O corpo de homem com acessórios femininos indica uma estética corporal destoante das normas da heterossexualidade. Como os gays conservam um padrão estilístico dentro do universo masculino, estes são capturados para o mercado de trabalho e sofrem com menor intensidade preconceito em relação às travestis e transexuais que se vestem numa perspectiva feminina. 77 Gráfico 01 Nível de escolaridade das Transformistas feirenses FONTE: Questionário aplicado em campo. ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010). A vida social das transformistas está atrelada a empregos temporários chamados de “bicos” onde podem extrair durante o dia uma contribuição para arcar com as despesas da vida cotidiana e com os gastos de acessórios femininos que enfeitam sua transcondição queer. Quadro 04 Panorama socioeconômico das transformistas de Feira de Santana TRANSFORMISTA BRIGITTE MARLENE BAIRRO QUE RENDA RESIDE MENSAL¹ Eucaliptos R$ 600,00 Jardim R$ 300,00 Cruzeiro JOAN AVA Sobradinho Rua nova R$ 500,00 R$ 500,00 ESCOLARIDADE FORMA DE OUTRA MORADIA ATIVIDADE² Ensino médio Casa Cabeleireiro completo própria Ensino médio Casa incompleto própria Ensino médio Casa incompleto própria Ensino médio Casa completo Alugada Desempregado Desempregado Desempregado FONTE: Questionário aplicado em campo. ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010). ¹ No que se refere a renda mensal foi considerada uma média determinada pelas informantes de toda arrecadação feita no mês. Segundo elas existem períodos que a arrecadação é satisfatória, ultrapassando as expectaivas. ² Trata-se de outras forma de trabalhos desenvolvidas em horário oposto da prostituição; 78 2.2- Princesas da androgenia “Todo mundo aqui é viado, falando assim no popular. Os viados gostam de fuder com homem, mas as gays são as gays, e as travecas são as travecas, a gente não é igual” (Diário de campo realizado em 15.06.2009 a partir do relato de Catherine). O fascínio exercido pelos estudos das travestis pelas Ciências Sociais no Brasil atraiu, desde o final da década de 80 do século XX, alguns pesquisadores, que traçaram etnografias detalhistas e precisas sobre o cotidiano (re)elaborativo que as travestis produzem rumo ao feminino. Dentre esses pesquisadores destacam-se os trabalhos de Silva (1993, 1996) com as travestis da Lapa, na cidade de Rio de Janeiro. A partir dessas publicações outros nomes foram surgindo e pondo em pauta a incessante e interminável construção do gênero travesti. Segundo Pelúcio (2007), a diferença entre os viados para as travestis, ou ainda as travecas, como foi citado por Catherine numa conversa informal desprovida de gravadores e papel, é que estas desejam reiterar cotidianamente outro gênero, que necessariamente não precisa ser nomeclaturado de terceiro52 e se distanciam de uma visão das ordens hierárquicas. Para montar o gênero travesti elas Ingerem hormônios femininos, aplicam silicone líquido a fim de obterem formas arredondas que as façam “parecer mulher”, como gostam de dizer. Fazem transformações epidérmicas: extraem pêlos, deixam o cabelo crescer, valorizam maçãs do rosto com o uso de cosméticos; perfumam-se; pintam unhas e, claro, vestem-se com roupas femininas. Operam, a partir dessa inscrição na carne e na “alma”, uma transformação moral, adequando seu sexo, marcado pelo pênis, a um gênero. E este, à atração sexual que sentem pelo masculino. (PELÚCIO, 2007, p. 95). 52 Fernandez (2000), pesquisando as travestis de Buenos Aires, analisa essa identidade por meio de sua organização em movimentos sociais direcionados. Em sua pesquisa etnográfica ela apresenta três grandes eixos hipotéticos do qual desenvolve uma densa reflexão, a saber: o travestismo como expressão para um terceiro gênero, reforçamento das identidades de gênero e o gênero em chamas. Para analisar a hipótese do terceiro gênero a autora se apropria dos estudos de Herdt (1996 apud Peres, 2005) que busca explicações transculturais sobre o travestismo. Apesar da contribuição política que fica evidente na concepção de Fernandez (2000) contra o dimorfismo sexual ou a bipolaridadee e dualismo de gênero (masculino e feminino) a terminologia “terceiro” coloca em evidência uma ordem hierárquica subordinando a performatividade travesti à masculinidade e feminilidade heterossexual. 79 Após os estudos de Silva (1993, 1996) outros trabalhos se destacaram em diferentes abordagens teóricas metodológicas, dentre eles Oliveira (1994), Oliveira (1997), Ribeiro (1997)53, Benedetti (2005), Bento (2006), Pelúcio (2005a, 2005b, 2006, 2007), Kulick (2008) e Ornat (2008)54. E em cada abordagem aparece fortemente marcada a concepção de que a travesti é aquele sujeito que está 24 horas do dia produzido à luz do feminino. Essa ideia está também compartilhada entre as travestis com as quais tivemos contato na participação observante. Elas se consideram travestis porque estão sofisticadamente alteradas, com curvas sinuosas, seios fartos, lábios carnudos, além de glamourosos cabelos que são lançados de um lado para o outro de forma provocativa. Nem mulheres e nem homens, travestis. Situam-se no espelho da mulher de beleza esplendorosa e no espelho do homem de atitude. São próximas às mulheres no que tange à sedução, à estética e à sensibilidade, porém, quando menos se espera eclode um homem violento, ágil e perspicaz. As travestis são as princesas da androgenia, uma distorção proposital do binarismo, que provocam e desarticulam as lógicas normativas dos gêneros inteligíveis, sendo durante as vinte e quatro horas do dia tudo e nada do gênero. Tudo no que se refere à síntese do homem e da mulher e dialeticamente o nada dessas representações, sendo, portanto, outra performatividade além do homem e da mulher, ou seja, a travesti. Existem mais de 15 travestis que se autoclassificam dessa forma fazendo trottoir no centro de Feira de Santana e que se revezam entre as ruas e avenidas que compõem o espaço comercial da Cidade Princesa. A presença dessas travestis é irregular, algumas casam e se mantêm por um tempo fiéis ao novo relacionamento e abandonam temporariamente a pista, outras encontram outro trabalho, serviços gerais, salões de beleza e passam boa parte do tempo dedicando-se a essa nova função, abdicando da exposição na pista. Outras, por sua vez, migram para capitais importantes do país ou conseguem, em Salvador, por meio de cafetinagem, uma passagem para a Europa. Dentre as que pude encontrar inúmeras vezes, estava Catherine, baixa, cabelos longos de cor acaju e encaracolados tocando na cintura. Seus seios são fartos, dispostos em sutiãs rendados para visibilizar os investimentos em silicone. 53 Geógrafo que pesquisou os territórios da prostituição na cidade de Rio de Janeiro destacando as travestis na Avenida Atlântica com um aporte teórico na linha da complexidade de Souza (1995). 54 Geógrafo que pesquisou o fenômeno travesti em Ponta Grossa-PR apropriando-se da teoria Queer, associada com a tendência idealista do conceito de território com base e, Haesbaert (2006). 80 Sempre com roupas de decote provocativo, Catherine se encontrava sentada na praça, esperando seus clientes previamente agendados. Talvez, seu par de olhos verdes atraia boa parte deles. O olhar de Catherine é profundo e objetivo, lança-o de forma provocativa mexendo os cílios de forma precisa. Catherine possui 34 anos de idade e apresenta um bom relacionamento com as outras colegas da praça, para ela travesti “tem que ter sangue no olho” para poder suportar com força os problemas que surgem na rua. Negra com quase 2 metros de altura e magra, Grace é a travesti mais engraçada da praça. Com cabelos curtos na altura do pescoço de cor castanho médio encaracolado, Grace apresenta um corpo com traços predominantemente masculinos. De acordo com ela, já são quase 15 anos de pista. Sendo uma das mais famosas, recebe inúmeras buzinadas, gritos e churrias55 de transeuntes que passam em carros, ônibus ou a pé. Possui nítidas dificuldades de articulação para falar, seu descompasso oral é motivo de risos entre as outras travestis que insistem em imitála. Além disso, Grace apresenta problemas ligados a audição, interpretando boa parte das conversas de forma hilária. Nesse cenário encontrei Romy que há 10 anos faz programa junto a Tyresolis na Avenida Presidente Dutra e que a pouco tempo migrou para a Avenida Marechal Deodoro. Sua beleza é inegável, possui nítidos traços indígenas vislumbrados numa cabeleira lisa e brilhante, acentuados por uma franja reta. Seus olhos escuros e grandes são dotados de muito mistério, seu corpo esculpido de hormônio e silicone é motivo de desejo para muitos homens que circulam na noite feirense. Além disso, Romy é cheia de afilhadas e todas na praça a respeita. Romy é uma das donas da rua56. Se tratando de travestis que são respeitadas na praça, conhecemos em 2005 Claudia, com características de beleza afro. Sempre de cabelo molhado com pequenas ondulações e um corpo com traços másculos, Cláudia também fez várias afilhadas. Além disso, possui mãos grandes e fortes e seus dotes masculinos intimidam várias travestis e clientes que circulam pela praça. Diferente de Cláudia, a recém-chegada de São Paulo apresenta-se bastante feminina. Com menos de um ano de pista Elizabeth é uma das mais novas 55 Na linguagem do bajubá significa vaias. No capitulo IV explicamos com maior detalhe como uma Transe se torna dona da rua. Essa situação, para nossa pesquisa, se configura como uma estratégia territorial. 56 81 sensações da Avenida Marechal Deodoro. Além de possuir um corpo magro, nos padrões das top models internacionais, sua voz macia é encantadora. Elizabeth é cuidadosa nos detalhes, sua maquiagem trata de esconder os traços do masculino que não foram suprimidos pelo uso do hormônio. Cabocla, de olhos castanhos claros e cabelos curtos, Elizabeth é sensual e afilhada de Marlene. Por cima de saltos altos ela desfila debochadamente na Avenida Marechal Deodoro exibindo o corpo escultural que possui. Por fim, temos a provocativa e autoritária Katharine Hepburn, que começou a se prostituir no ano de 2007. Desde 2005 realizava vício57 nas cercanias da Praça Bernardino Bahia. Antes de realizar transformações profundas no corpo, infiltrou-se no meio para aprender com precisão todos os rituais de passagem. Profissionalizouse. Hoje é uma das mais novas “fortes” da rua e na ausência de Lauren, que emigrou para Itália, dita as normas para as novatas da praça que em sua grande maioria são suas afilhadas. Seu corpo é bombado58, existe silicone para todos os lados, lados estes desenhados com cautela. Katharine Hepburn possui uma cintura invejável, além de uma bunda torneada. Usa lentes de contato em tons de verde só para incrementar algo que ela especializou. Seu olhar é provocativo e determinado, capaz de desestabilizar qualquer situação. Suas expressões faciais estão potencialmente erotizadas observáveis em seus lábios carnudos quando se movimentam. Katharine Hepburn é uma travesti belíssima. A definição da travestilidade59 não é algo fácil de delimitar no campo teórico. O termo possui uma polissemia delicada, ora utilizada como categoria guarda-chuva, em que são inseridas as sexualidades homossexuais Trans. Ora denso das particularidades que envolvem a categoria numa trama perfomática única. Para Oliveira (1994), as travestis são os indivíduos que ampliam os limites da alteração corporal. Sendo assim, 57 Na linguagem das Trans fazer vício refere-se a fazer sexo gratuitamente com um indivíduo que apresentou características corporais estabelecidas pelas Trans. Rapazes jovens, viris, másculos e bonitos geralmente são os mais atendidos de forma gratuita pelas Trans. 58 Um corpo bombado é um corpo submetido às intensas ingestões de silicone. Geralmente, os silicones usados pelas travestis são de origem irregular. Em nosso caso de pesquisa o silicone de avião adquirido em Salvador é comprado e injetado por uma Bombadeira, isto é, uma travesti que faz o procedimento cirúrgico de mudança de corpo. 59 Corroboramos com a mesma perspectiva apresentada por Peres (2005, p.26) ao acreditar que a terminologia travestismo reduzia as pluralidades encontradas na variação das formas e modos de se constituir enquanto travesti. 82 Modificam quadris, as nádegas e o rosto através de hormônios e silicone num processo de transformação contínuo e cotidiano para alcançarem o mais próximo a forma anatômica da mulher. [...] Querem contudo conservar a ambivalência, a estranheza que provocam nos outros, principalmente nos homens:a visão de uma mulher bonita de corpo, com peitos, quadris femininos, usando blusas insinuantes e batons de cores chocantes e exibindo um pênis entre as pernas. (OLIVEIRA, 1994, p. 45). Complementando essa definição, Benedetti (2005b, p. 18) acrescenta que as travestis não apresentam, explicitamente, o desejo de recorrer à cirurgia de transgenitalização para retirarem seus pênis e construírem uma vagina. Silva (1993) destaca que para se tornar travesti é preciso ingerir doses de hormônio, além de fazer aplicações de silicone para minimizar os traços masculinos do corpo. Esses aspectos corroboram para a compreensão de que ser travesti é um processo inacabado. Concordando com essa perspectiva, as princesas da androgenia de Feira de Santana acreditam que A travesti ela fica 24 horas por dia vestida de mulher, sem dizer nas transformações que é feita, cabelo, peito, corpo, muda tudo, muitas botam silicone, certo? Tem muitas que exageram, algumas que botam pouco só pra definir mesmo o corpo, e a maioria, o principal é o peito e o cabelo, elas vão logo e bota logo o peito. (Entrevista realizada com Joan em 15.01.2010). Ser travestis? Olha, a partir do momento que você põe uma roupa feminina, pra sociedade você é travesti. Agora, pra quem trabalha na pista! Eu acho que pra elas, o que pode ser uma travesti, é aquela que já é bombada, que já tem um belo corpo, o seu belo cabelo, belo rosto de boneca, de 60 porcelana, aquelas são as verdadeiras travestis e que tenha axé né? Por que, uma travesti, ela pode ser a mais bela, mais ela tem que ter axé, sem axé ela não é nada. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010). Como podemos perceber, a travesti está diretamente conectada ao espelho da mulher, sem querer ser uma mulher. A estética travesti é um padrão cruel que determina o poder de atração e respeito em torno do modelado e do figurino que se usa. Por isso é comum, entre as princesas do sertão, afirmar que uma travesti é 24 horas montada de mulher, mas, venhamos e convenhamos que uma travesti com cara de homem não combina. (Entrevista realizada com Ava em 18.01.2010). 60 Para Elizabeth ter axé é possuir uma capacidade inata de parar o trânsito, em outras palavras, significa possuir charme e elegância que atraia inúmeros clientes. 83 Contudo, entre as definições das informantes, encontramos seu próprio inferno. Para as transexuais dessa pesquisa o termo travesti não contempla a performatividade de gênero que se realiza de forma ousada num corpo masculino. Travesti seria uma condição apropriável para qualquer indivíduo que põe por sobre seu corpo um vestuário que não é habitualmente utilizado. Travesti, travesti tanto pode ser um homem como pode ser uma mulher, o homem no caso que se traveste de mulher e a mulher no caso que se traveste de homem. Então, qualquer pessoa pode ser travesti, independente dela ser homossexual, dela ser bissexual, dela ser heterossexual, qualquer pessoa pode ser travesti, se uma pessoa se veste de palhaço ela se travestindo de palhaço, ela é um travesti, ta me entendendo? Se uma pessoa se fantasia de cachorro ela está travestida de cachorro, ela é um travesti assim como um homem se veste de mulher no [bloco] lá vem elas, ele está travestindo de mulher, ele é o quê? Um travesti! Então, pra mim a definição de travesti é essa, é uma pessoa que se veste por momentos ou em privados dentro de um quarto, dentro de um quarto de hotel ou pra o público em cima de um palco ou não sei, mais se veste determinados momentos, faz aquela figuração e depois daquela figuração desaparece vai pra aquela mala, vai pra dentro de gaveta, pra no dia seguinte, daqui a um mês, daqui a uma semana, daqui a não sei quando aquela dali abre a gaveta de novo e pega aquela pessoa que ficou dentro daquela gaveta e bota aquela pessoa pra viver novamente. Então eu tenho o conceito de travesti assim. (Entrevista realizada com Marilyn em 09.12.2009). Ou ainda seria um termo denso de interpretação que contraria a lógica da produção do feminino por conta da acentuada androgenia com forte presença de atos masculinos: Eu acho que uma travesti, eu nem sei a resposta pra isso. Sempre tive dialogando com uma amiga minha sobre travesti, porque travesti é você ter o corpo de mulher, a beleza de mulher, mas não tem mentalidade de mulher. Do que adianta você ter o corpo feminino e agir ainda com traços masculinos, brutalidade tanto na voz quanto nos atos físicos, então eu acho que é isso entendeu? (Entrevista realizada com Bette em 15.01.2010). Sobre esse aspecto, Fernandez (2000, p.48) nos indica que o “travestismo interpreta, modela e experimenta seu corpo como um texto que pode ser lido desde o gênero (feminino) e desde o sexo (masculino)”. Assim, compreendemos a travesti como uma performatividade de gênero que apresenta em sua elaboração um jogo provocativo de símbolos que ora se complementam, visibilizando e potencializa a feminilidade, ora se contradizem eclodindo a masculinidade que fora ocultada pela ingestão de hormônios e silicone. 84 Ao contrário das transformistas, as travestis possuem um deslocamento intraurbano muito restrito. Como se dedicam à vida de prostituição noturna passam boa parte do dia descansando da aventura vivida na noite anterior. Geralmente saem para fazer compras no comércio no meio da tarde e aproveitam para circular no Centro de Abastecimento, onde bebem e se sentem paqueradas pelos feirantes. Nos finais de semana, adoram curtir a tarde de domingo no bairro Jardim Cruzeiro, onde se sentem bem acolhidas nos bares e lanchonetes da área. Nesse espaço, de muito pagode e cerveja, exibem-se através de danças sensuais acompanhadas com expressões faciais provocativas, insinuando-se para os homens que estão presentes no local. As travestis entrevistadas nessa pesquisa preferem sair durante a noite devido ao menor fluxo de pessoas que circulam no centro da cidade. O dia traz consigo um desconforto social, pois o espaço encontra-se potencialmente vigiado e esquadrinhado pelos agentes normatizadores (FOUCAULT, 1979). Sobre a condição socioeconômica das Travestis É impossível falar de renda entre as travestis sem associar os lucros à beleza. A travesti mais bela, geralmente, possui mais clientes e por consequência mais lucros. Ser bela na pista é um requisito importante para se destacar perante as outras. Nesse sentido, a variação de arrecadação está diretamente ligada a beleza, como também a sensualidade que compõem aquilo de Elizabeth chamou de axé. Conforme pode ser observado no quadro 05, Catherine e Elizabeth moram distantes do Centro da cidade, em bairros no sentido norte da cidade, fora do anel de contorno. Tanto o George Américo quanto o Campo Limpo são bairros populares que concentram um contigente de classe baixa que sobrevivem basicamente com menos de um salário mínimo. 85 Quadro 05 Panorama socioeconômico das travestis de Feira de Santana TRAVESTIS CATHERINE BAIRRO QUE RENDA RESIDE MENSAL¹ Campo R$ 500,00 Limpo GRACE Jardim R$ 450,00 Cruzeiro ESCOLARIDADE FORMA DE OUTRA MORADIA ATIVIDADE² Ensino médio Casa Desempregada completo própria Ensino Casa Fundamental Alugada Diarista Completo ROMY Rua Nova R$ 480,00 Ensino Casa Fundamental Alugada Desempregada incompleto CLAUDIA Jardim R$ 800,00 Cruzeiro ELIZABETH George R$ 800,00 Américo KATHARINE Jardim Cruzeiro R$ 1.300,00 Ensino médio Casa incompleto Alugada Ensino médio Casa completo própria Ensino médio Casa incompleto Alugada Desempregada Diarista Cabeleireira FONTE: Questionário aplicado em campo. ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010). ¹ No que se refere a renda mensal foi considerada uma média determinada pelas informantes de toda arrecadação feita no mês. Segundo elas existem períodos que a arrecadação é satisfatória, ultrapassando as expectativas. ² Trata-se de outras forma de trabalhos desenvolvidas em horário oposto da prostituição; Por possuírem casa própria, e para fugirem dos alugueis, ambas preferem residir em tais bairros e se deslocarem de ônibus coletivo e retornar na alta madrugada com alguns motoboys ou taxis. Esse argumento explica a localização das outras travestis em bairros mais centralizados, obedecendo a mesma lógica verificada entre as transformistas. Nenhuma delas está residindo em áreas privilegiadas da cidade. Pelo contrário, se encontram em cortiços, com um quarto, sala e cozinha tendo o banheiro coletivo para as outras famílias vizinhas. Geralmente dividem a mensalidade do aluguel com outra Trans, ou ainda moram com seus “maridos”. O nível de escolaridade é visivelmente inferior em comparação com as transformistas. Tal situação é justificada pela repressão e assédio que ocorre na escola, culminando na evasão escolar. Assim, conforme o gráfico 02, 17% possuem o ensino fundamental incompleto e com mesmo índice de 86 17% possuem o ensino fundamental completo. 33% possuem escolaridade básica completa e os outros 33% ainda estão em processo de finalização. Gráfico 02 Nível de escolaridade das Travestis feirenses FONTE: Questionário aplicado em campo. ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010). 2.3- Princesas do erro da natureza Eu acho que [uma transexual] é a mesma coisa que um travesti. (Entrevista realizada com Ava em 18.01.2010). De certo modo a terminologia transexual é muito recente e conflitua, no campo conceitual, a distinção em relação às travestis como explicita Peres (2005). É importante aqui destacar que a invenção do transexualismo remonta um processo evolutivo da performatividade. No imaginário discursivo das entrevistadas, o ápice da homossexualidade estaria reservado às transexuais, que conseguem, por meio de inúmeras transformações, minimizar de forma eficiente o masculino ou o feminino. Assim, gays, transformistas e travestis seriam performances de insucesso 87 para a homossexualidade bordada pelo transexualismo, como se fosse um processo de generificação que encontrou uma série de empecilhos para potencialização do feminino/masculino em corpos que nasceram errados, ou seja, no nosso caso de pesquisa, almas femininas em corpos masculinos. Para Ava, o limiar que delimita fronteiras conceituais entre o travestismo e o transexualismo inexiste. Essa concepção não é isolada, está frequentemente problematizada, como discute Peres (2005), quando se trata em debater e operacionalizar políticas públicas em detrimento da tradição que a categoria travesti possui no Brasil. Benedetti (2005) acredita que a categoria travesti sobrepõe a categoria transexual, argumentando que existe uma insipiente internalização dessa definição em seu universo de pesquisa. Tal categoria, na visão do autor, funciona muito mais por autodefinição do que por atribuição, em virtude da lógica médico-psicológica que está diluída na conceituação da categoria transexual. Para tanto reconstrói teoricamente a concepção de transexualismo a partir de fatores sociais e não patológicos, distanciando-a da perspectiva médico-psicológica. Porém, outros autores esforçaram-se para distinguir uma categoria da outra por meio das narrativas coletadas em campo. Essa tarefa pôde elencar algumas características que estão presentes nos indivíduos transex61 e que inexistem nas travestis. Oliveira (1994) dedica parte de seu livro para explicar a suposta identidade transex entre as trans de Salvador-BA. Para Oliveira (1994) as transexuais sentemse mulheres e diferente das transformistas e travestis não se espelham, mas são mulheres em corpos de homens. Para alcançar essa delimitação delicada da categoria de transexual, Oliveira mergulha nos escritos da psicanálise, da psiquiatria e das explicações médicas para justificar o descompasso entre corpo e papel de gênero. Quando realizei a entrevista semiestruturada com Marilyn no bairro Kalilândia ela me sugeriu que sentássemos numa área arejada onde a conversa poderia fluir sem maiores intervenções. Na aplicação do questionário, inquirindo sobre o nome masculino, Marilyn disse-me: meu nome sempre foi Marilyn, eu nasci Marilyn, tenho nome de mulher, eu sou uma mulher. De certo modo a pergunta é delicada e muitas 61 Na participação observante e na realização das entrevistas semiestruturadas ouvimos inúmeras vezes a palavra “transex”, que se refere a uma redução da palavra “transexuais”, reproduzindo seus mesmos sentidos conceituais. 88 Trans mentiram sobre seus nomes de certidão, ou seja, seus nomes masculinos. Porém nenhuma delas foi tão complexa quanto Marilyn que se declarou mulher, embaralhando os sentidos de nossa pesquisa. A ação descrita na história explica, em partes, o argumento que levou Oliveira (1994) a diferenciar essa categoria da travesti. Nesse sentido, a travesti tem todo um trato estético no espelho da mulher, elas montam-se de mulher, estão travestidas de mulher, mas não são mulheres, são damas de paus62. Porém, as transexuais não se produzem nesse mesmo espelho, possuem espelhos próprios, jamais se travestem de mulher; elas, por sua vez, vestem-se de mulheres e são, em subjetividades, mulheres. A principal característica que define as transexuais elencada por Benedetti (2005) é a rejeição ao pênis, reivindicando a realização da cirurgia de mudança de sexo como condição sine qua non para sua produção. O transexualismo é a forma mais radical da androgenia. Significa uma recusa total do papel sexual a um ponto limite no qual a auto mutilação da genitália torna-se um desejo recorrente.[...] Apresenta um desinteresse pelos órgãos genitais que lhes dá impressão definitiva de discordante, fazendo com que seu sexo anatômico seja desinvestido de erotismo. (OLIVEIRA, 1994, p.39). As transexuais valem-se do travestismo para tentar ajustar as distorções de sua imagem e fazem da ingestão de hormônios e aplicação de silicone como a estratégia de ajuste de um corpo que nasceu com alma trocada. Para as transexuais não é permitido amar e se relacionar com um homossexual, pois mulheres amam e se relacionam apenas com homem. Elas, apesar de toda capacidade profunda de subversão, acabam reproduzindo a matriz heterossexual, sobretudo no que se refere aos relacionamentos sexuais e afetivos. Sofrem muito ao se olhar no espelho e ver a injustiça genética que a vida lhes pregou: elas odeiam seus pênis. De fato existe uma naturalização e essencialização muito forte presente na explicação da categoria transexual, que atribui à natureza e à essência a responsabilidade de sua existência, retirando o contexto sociocultural como possibilidade de explicar, pela história de vida, a formação dessa identidade. Em nossa área de estudo, conhecemos quatro transexuais que assim se autodeclararam. Porém, elas apresentam diferenças comportamentais de gênero 62 Esse termo foi retirado do título do livro de Oliveira (1994). 89 bastante perceptível. Todas se sentem muito femininas, e de fato elas são. Possuem um trato de delicadeza mais notável para com o corpo e seu comportamento que as travestis aqui analisadas. Sophia, Greta e Bette exalam sensualidade na pista fazendo trottoir, seduzindo ao máximo os clientes em potencial pela beleza rica em feminilidade, porém as três declararam utilizar-se do pênis, sendo ativas no atendimento do cliente. Mas Marilyn declara-se totalmente passiva, além de ser europeia63. Ela possui um capital cultural notório e preza por defender sua feminilidade, considerando-se uma mulher, ou como ela mesma disse: “a única transex da pista”. Sophia é loira e possui uma pele morena clara com cabelos longos. Sua disciplina é reconhecida pelas outras Trans da pista. Sophia possui cerca de 1,70 metros e um corpo de curvas elaboradas graças à ingestão de hormônios. Nunca desejou pôr silicone de avião, pois reconhece os riscos que esse recurso apresenta. Porém, deseja um dia ter dinheiro o suficiente para colocar próteses em uma clínica confiável. Sua casa é pequena e muito bem organizada. Disse que faz questão de organizar seu lar, ninho de amor que divide com seu esposo há mais de quatro anos. Greta é negra e possui um belo par de pernas. Suas coxas sempre estão às vistas para seduzir os transeuntes da rua. Seus cabelos trançados realçam sua beleza afro. Seu olhar inocente, ora provocativo, é um convite público ao prazer. Sua voz é suave e sensual, por isso faz questão de sempre se expressar em volume moderado e em ritmo lento. Ela é conterrânea de Bette, oriundas de Amélia Rodrigues, município situado nas margens da BR-324 entre Feira de Santana e Salvador. Bette também é negra, mas seu corpo ainda não está turbinado como o de Greta. Ambas são bonitas, porém o corpo mais escultural é da Greta. Suas curvas são inegáveis, ela possui cintura e quadril definidos, seus seios são redondos e empinados, nem tão pequenos e nem tão grandes, o tamanho é favorável perante o conjunto. Greta é toda quebrada na plástica64. 63 Europeia é uma sub-categoria que potencializa as Trans em suas redes de sociabilidade, como analisa Pelúcio (2007). Europeias são aquelas que já moraram na Europa, sonho de consumo da maioria das Trans que se prostituem. Geralmente as europeias são finas, elegantes e esbanjam um vestuário singular. Em virtude desse alto capital cultural elas são respeitadas entre as Trans que sonham, um dia, alcançar o status de ser uma Europeia. 64 Esse termo foi utilizado por Pelúcio (2005) para retratar a beleza corporal das travestis em seu estudo pelas alterações promovidas pela aplicação de silicone. 90 Bette é novata no ramo, mas já se considera transexual e possui uma enorme facilidade para se comunicar. Ela estudou e trabalhou como professor no período que ainda se vestia de ocó65. Com 1,80 metros, Bette é bonita e reitera a tradição que existe na pista: todas as meninas de Amélia são lindas e sensuais. Mas nenhuma delas supera a delicadeza de Marilyn que viveu sete anos na Itália, no auge da prostituição de travestis que corresponde ao final da década de 90 do século XX. Além de traços finos e muita elegância, Marilyn é alta, possui cerca de 2 metros de altura. Seus olhos são verde mel e sua pele é branca. Ela se diz mulher em corpo de homem e se afastou da pista para cuidar da mãe. De acordo com Marilyn, em entrevista, ela não possui pênis e nunca fez a cirurgia de mudança de sexo. Sua condição psicológica feminina incumbiu-se de atrofiar aquilo que era discordante nela. Sua produção hormonal de progesterona é alta e confessa ter sido submetida, na adolescência, a ingerir doses descontroladas de testosterona e frequentar clínicas psicológicas para tratamento de reversão da homossexualidade. Marilyn é uma princesa até no sobrenome, que indica a influência de sua família no cenário político da cidade. Foi afilhada de um ex-prefeito de Feira de Santana, facilitando a contratação para cargo em órgãos públicos. Na última eleição municipal Marilyn candidatou-se, apesar de não conseguir ser eleita, para a câmara de vereadores, honrando a tradição política de sua família tradicional. Percebemos que as entrevistadas compartilham das mesmas definições apresentadas por Oliveira (1994) sobre a transexualidade. Essa identidade sexual aparenta eclodir entre a infância e a adolescência como algo guardado e que vai aflorando de forma espontânea próximo aos doze anos. Nesse período o indivíduo vai percebendo as primeiras diferenças evidentes entre os outros heterossexuais e enclausura-se em casa, evitando assédios e situações desconfortáveis. A partir daí a vivência espacial é restringida, pouco se sai, pouco se transita, vivem-se a casa e os afazeres domésticos. O campo da transexualidade está circunscrito no feminino, que é profundamente desejado e alcançável por meio da socialização e reelaboração de performances de mulheres reais. A observação do comportamento, vestuário, voz, gestos de mulheres comuns, mas elegantes, é o grande laboratório performático das transexs. É por meio dessa pesquisa que elas se produzem. 65 Palavra oriunda do ioruba ou do bajubá utilizada como dialeto gay que se refere a homem. 91 Ser transexual pra mim é ser uma pessoa feminina, é voltar-se pro mundo feminino, é fazer coisa que uma mulher faria, ou até mesmo melhor ainda que uma mulher, porque nós transexual queremos ser bem melhores que uma mulher, queremos ultrapassá-la, queremos olhares, e eu acho que é ser isso uma transexual. Eu particularmente, eu sou uma mulher tanto fora quanto por dentro. (Entrevista realizada com Bette em 15.01.2010). [Para ser] transexual a pessoa tem que ser bem se decidir como mulher mesmo, né se sentir como mulher e se vestir como mulher, [tem que] querer ser mulher mesmo, não é se vestir de mulher e falar que é mulher e num se comportar como mulher, tem que ser, a pessoa tem que ser, a transexual tem que se comportar, em primeiro lugar tem que ser comportado, a onde for, onde chegar tem que se comportar. (Entrevista realizada com Sophia em 10.12.2009). A transex é aquela que você acorda pensado que nem uma mulher, dorme pensando que nem uma mulher, faz tudo que nem uma mulher, vive que nem mulher 24 por 48. Então, essa é a verdadeira transex. [...] Ela se monta, se veste de mulher de dia a noite e ela dorme pensando que nem mulher, acorda pensando que nem mulher, a cabeça dela é toda feminina e não misturada feminina com masculina. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010). As confirmações do feminino profundamente alcançadas não estão apenas em pensarem como mulher, elas devem se especializar para conseguir aquilo que a natureza lhes tirou criando-se enquanto uma mulher, e para isso ocorrer recorrem a uma série de intervenções, dentre elas as dores da beleza: a ingestão de hormônios e a aplicação de silicones, culminando, em alguns casos na retirada da genitália masculina. Existe o transexual, é aquele que se hormoniza e se opera. [...] porque o travesti não é operado e o transexual ele é operado. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). Transexual é aquela coisa, você sabe que existe a transexual operada e a transexual não operada, a transexual é aquela que transcende tudo isso que passa por cima do gay, que passa por cima do travesti, que passa por cima do transgênero, que passa por cima de tudo, porque a transexual tem dentro de si a consciência que ela não é homem, ela é mulher, ela até pode ter a consciência que ela não é homem nem é mulher, que ela é alguma coisa acima disso tudo, vou te falar uma coisa, quando uma pessoa me pergunta no MSN alguma coisa assim o que é que eu sou, eu digo que eu sou a evolução da espécie. A evolução da espécie, não existiu uma vez os dinossauros? Foram extintos para surgir uma nova raça, então vamos dizer assim, os homens e as mulheres são os dinossauros e eu sou a evolução, sou aquela coisa assim que eu consigo ser os dois ao mesmo tempo sabe? Então transexualismo vai mais ou menos isso aí, ele passa acima das barreiras do homem, ele passa acima das barreiras das mulheres e se torna uma coisa acima disso tudo e passa acima disso tudo, eu me enquadro como um transexual por isso, eu nunca me enxerguei como um homem, nunca me enxerguei como um homem, claro eu não sou louca de dizer que eu sou mulher, eu nunca me enxerguei como mulher, eu me enxergo diferente dos homens e diferente das mulheres, então eu me enquadro 92 como um transexual, eu sou transexual. (Entrevista realizada com Marilyn em 09.12.2009). A transexual, ela já é mais avantajada, ela é mais feminina que o travesti, a transexual, ela não consegue ser ativa, ela só é passiva. Transexual ela é mais mulher, sente mais mulher do que o travesti e muitas tiram o órgão masculino e bota a vagina, que é o sexo feminino. (Entrevista realizada com Joan em 15.01.2010). As transexuais, dentro desse grupo de estudo, possuem um deslocamento intraurbano mais restrito que as travestis. Elas preferem ficar em casa, cuidando dos afazeres domésticos do que circulando durante o dia nas ruas comerciais. Quando necessitam ir à rua planejam-se para não demorar muito. A maioria delas são casadas e possuem seu coração flechado por um ocó ocâni/odara66, e são a eles que dedicam, enquanto dure, seu eterno amor. Suas características femininas referem-se a mulheres dóceis, manipuladas e submissas à virilidade masculina. Desejam sentir-se protegidas pelo seu príncipe e viver dependentemente às custas de sua masculinidade. No relacionamento sexual com seus maridos nunca utilizam seus pênis, quando ainda os têm, e seu único órgão sexual é a cuceta67 que é perpassada pelo pênis do amado e onde alcançam o ápice de seus orgasmos. A excitação das transexuais está localizada no ânus, como nos detalhou Brigitte Bardot. Sobre a condição socioeconômica das Transexuais As transexuais apresentam particularidades no que tange sua performatividade, assim como Ava apresenta enquanto transformista. Sophia, Greta e Betty fazem uso do pênis no programa. Segundo elas os clientes desejam experimentar algo diferente no mundo do sexo, ou como aqui que elas costumam chamar, eles gostam do melhor dos dois mundos, ou seja, uma mulher de pau. Com exceção Marilyn preserva sua condição de transexual e suas pessoais restrições ao 66 Os termos seguidos fazem parte do iorubá. Ocâni significa pênis. Odara é um pênis grande, contrário do matim-matim que é um pênis pequeno. 67 Cuceta é uma palavra oriunda de duas palavras de uso corrente no meio homossexual. Do cruzamento das palavras cú e boceta, surgiu a cuceta que se refere à vagina gay, onde pode ser penetrado com as mesmas funções que a vagina feminina. 93 pênis. Ela é a mulher e jamais utilizará o que ainda lhe resta de membro para penetrar seus clientes. Conforme pode ser observado no gráfico 03 todas as transexuais, por autoclassificação, possuem escolaridade básica. Concluíram o Ensino Médio e apresentam anseios de cursarem o nível superior. Sophia e Marilyn, que corresponde a 50% delas moram em propriedade particular, enquanto Greta e Betty que vieram de Amélia Rodrigues moram de aluguel, cada uma com sua madrinha de pista. Gráfico 03 Nível de escolaridade das transexuais feirenses FONTE: Questionário aplicado em campo. ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010). De acordo com o quadro 06, todas residem próximo ao Centro da cidade, porém é Marilyn que está localizada em um dos melhores fragmentos do solo urbano de Feira de Santana. A Kalilândia é um bairro pequeno e burguês, com concentração de casa de alto padrão, indicando a presença de uma classe média alta que ainda reside no centro da cidade. As ruas do bairro são todas pavimentadas e possuem pouco movimento, além de uma fiscalização com seguranças particulares. 94 Quadro 06 Panorama socioeconômico das Transexuais de Feira de Santana TRANSEXUAIS SOPHIA BAIRRO QUE RENDA RESIDE¹ MENSAL Queimadinha GRETA Jardim R$ 1.750,00 R$ 1.000,00 Cruzeiro BETTY Rua Nova MARILYN Kalilândia R$ 1.000,00 R$ 3.500,00 ESCOLARIDADE FORMA DE OUTRA MORADIA ATIVIDADE² Ensino médio Casa Desempregada completo própria Ensino médio Casa completo Alugada Ensino médio Casa completo Alugada Ensino médio Casa Funcionária completo própria pública Desempregada Desempregada FONTE: Questionário aplicado em campo. ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010). ¹ No que se refere a renda mensal foi considerada uma média determinada pelas informantes de toda arrecadação feita no mês. Segundo elas existem períodos que a arrecadação é satisfatória, ultrapassando as expectaivas. ² Trata-se de outras forma de trabalhos desenvolvidas em horário oposto da prostituição; Sophia, Greta e Betty residem em bairros populares com poucos investimentos em infra estrutura e segurança. Além disso, as três princesas encontram-se desempregadas, realizando apenas os afazeres domésticos. A renda mensal das transexuais é considerável em relação aos outros dois grupos de Trans já estudado. A casa de Sophia é simples e localizada num bairro popular. Sua residência faz parte de um dos cortiços da Queimadinha, seus vizinhos são seus irmãos e sua casa é oriunda de herança. Na entrada de sua casa situam-se pequenos templos onde cotidianamente realiza as oferendas aos seus orixás. As espadas de São Jorge e outras plantas simbólicas do candomblé exercem a função de espantar os males e energias ruins que circulam pelo bairro e pelas pessoas que nele transitam. As crenças no candomblé e no espiritismo unem transformistas, travestis e transexuais. O poder místico dos orixás perpassam suas perspectivas espirituais e, além disso, se configuram em espaços religioso de muita tolerância de gênero. A maioria delas sempre referem-se à existência, em suas vidas, da influência de escravos, uma entidade hierarquicamente situada no plano místico do candomblé, sobretudo a Maria Padilha e a Pomba Gira e seus derivados. Para elas essas entidades é que giram na suas cabeças e as matem Transgenerificadas. 95 2.3- A categoria Trans: universo, território e sujeito Em virtude da ampla diversidade de performatividades existentes nesta dissertação, analisada nas laudas anteriores, torna-se necessário definir uma categoria conceitual que dê conta das pluralidades estudadas entre os seres abjetos que se prostituem em Feira de Santana. Benedetti (2005) e Pelúcio (2005, 2006 e 2007) preferiram utilizar a categoria travesti por razões históricas e por questões de ordem política. Para ambos, com base em Silva (1993 e 1996), o termo travesti encontra-se melhor disseminado e compreendido pela sociedade que o termo transexual. Em virtude disso, transformam a categoria em seus estudos como um termo aglutinador de sentidos que ora se complementam e ora se contradizem. De certo modo, essa generalização terminológica fez-se necessária nestes estudos por conta das questões delineadas para pesquisa, que buscava compreender, de forma bem genérica, as transformações de gênero em cada grupo estudado, em espaços diferentes. Definir uma categoria não é algo simples e tratase de uma decisão que deve levar em conta a operacionalização do recorte de pesquisa. Sobre tais recortes e criticando generalizações apressadas, Peres (2005) argumenta que o termo travesti foi muitas vezes inserido no grande grupo das transgênero, uma terminologia inglesa – transgender –, que foi aportuguesada sem ressalvas necessárias, visando contemplar todas as performances trans. Para este pesquisador, a categoria referia-se a todos os indivíduos que não se enquadram em um dos lados dos gêneros inteligíveis com base nas bi-polaridades, masculina ou feminina, englobando, além das travestis, outros grupos como os/as transexuais, drag queens, transformistas. Porém, este mesmo autor observa, no âmbito das reivindicações dos movimentos sociais homossexuais, que as travestis possuem demandas sociopolíticas específicas, devendo ser concebidas fora do grupo das transgênero. Nesse mesmo sentido, Benedetti (2004) afirma que as travestis já dispõem, na sociedade, de um papel que lhes é legítimo e que, em si, indica processos maiores de mudança social, como foi muito bem apontado por Silva (1996). 96 Quando se trata da questão territorial as diferenciações das categorias tornam-se relevantes. A apropriação e uso territorial diferenciam-se a partir de vários fatores, dentre eles, ou ainda com eles, temos a relevância da questão identitária. As identidades de gênero produzem, apropriam-se e utilizam o espaço de acordo com sua performatividade. Associada às questões suscitadas pelo conceito de gênero estão intimamente ligadas as questões de classes sociais, raça, escolaridade e todos os outros fatores sociais aos quais estamos submetidos e que condicionam os deslocamentos espaciais. Em virtude disso mantivemos até aqui as especificidades do grupo de estudo por perceber que as espacialidades produzidas fora do território da prostituição estão associadas por esse emaranhado de fatores socioespaciais. No entanto, a necessidade de homogeneizar as categorias é emergente no seu sentido operacional, permitindo análises objetivas com relação às estratégias territoriais, mas que apresentam limitações na escala do lugar e na dinâmica dos deslocamentos espaciais intraurbanos realizados por transformistas, travestis e transexuais. Estaremos fazendo, a partir desse ponto, a complexa e contraditória relação entre o plural e o singular. Esse percurso realizar-se-á em função das mudanças das escalas e fluxos de análise, tentando dar conta da dinamicidade espacial realizada pelo grupo estudado. Benedetti (2005) apresenta uma saída conceitual que não reduz as especificidades de nenhuma categoria esboçada neste capítulo, e ao mesmo tempo essa terminologia assegura a complexidade do fenômeno. O universo Trans é um conceito pouco explorado que foi utilizado pelo autor no início de suas provocações no livro Toda feita. Para ele, no universo Trans fica evidente a “as múltiplas diferenças e particularidades vivenciadas pelas pessoas nesse universo social” (BENEDETTI, 2005, p. 17). E continua, “o universo trans é um domínio social no que tange à questão das (auto) identificações” (p.17). Ainda segundo ele, Prefiro utilizar o termo universo trans em função de sua propriedade de ampliar o leque de definições possíveis no que se refere às possibilidades de ‘transformações de gênero’. Essa denominação pretende abranger todas as ‘personificações’ de gênero polivalente, modificado ou transformado, não somente aquela das travestis. (BENEDETTI, 2005, p. 17). 97 Benedetti (2005) aplica o termo universo Trans para se referir a uma rede de relações sociais entre as sexualidades divergentes da norma heterossexual. Entretanto, compreendemos tal conceito de forma mais profunda e percebemos seu viés espacial. O universo Trans possui uma propriedade geográfica, referindo-se ao espaço onde as relações de gênero podem e são desenvolvidas ao mesmo tempo em que são reiteradas. Sem o espaço essa rede se desarticula e desestrutura a reprodução eficaz das performatividades dos gêneros divergentes. Assim, estamos referindo-nos a um território Trans, subvertendo a ideia de universo disseminada pela Física e trazendo para o debate o conceito de espaço, reelaborado para os estudos do gênero. O território Trans se caracteriza por ser, por excelência, lócus onde as performatividades são socialmente produzidas e disseminadas. Esse espaço está transnormatizado, isto é, está além das normas da matriz heterossexual, além do dimorfismo e da bipolaridade homem/mulher, sendo um espaço onde se reproduzem lógicas de gênero que subvertem a heterossexualidade, mas não as supera, mantendo as desigualdades e os paradoxos como elementos da dialética de sua existência ou seja da sua transcondição. Por isso utilizaremos a categoria Trans, para se referir às transformistas, Travestis e Transexuais. Segundo Nicola (1994) os prefixos gregos Tra e Trans referem-se a uma posição de algo de forma relacional no sentido de superar, de transpassar determinada condição que já existe e se encontra normatizado, por isso sua tradução está atrelada às noções de “através de; posição além de e mudança” . Neste estudo Trans se refere a todos os sujeitos que estão além da matriz da heterossexualidade, isto é, que se encontram diferente das imposições do dimorfismo e se performatizam nas “zonas inabitáveis e inóspitas do gênero”, como delineia Butler (2003), tal como as transformistas, travestis e transexuais. Mesmo entendendo que as normas regulatórias atuam no sentido de acionar dispositivos eficazes para generificar os corpos a favor da heterossexualidade, os corpos não se conformam diretamente às regras que os regulam, nunca aderindo completamente às normas que impõem as suas materializações (BUTLER, 2003, p.154). A invenção dos corpos dos sujeitos Trans pressupõe, portanto, uma reinvenção contínua, procurando adequar corpo, sexualidade e gênero, reinventando-os, como analisou Bento (2006). 98 A ocorrência das Trans indica que as normas regulatórias não foram eficazes: o próprio contexto socioespacial de gênero possibilitou a insurgência dos dolorosos conflitos identitários, e os corpos se embatem com as mesmas normas que os engendraram, nesse caso, subvertendo-as. (PRECIADO, 2002). O paradoxo presente no espaço possibilita a reinvenção do gênero, pois nos caso das Trans aqui estudadas É nos diferentes territórios de batalha (forma êmica utilizada para denominar a atividade da prostituição) que muitas travestis tiveram seu primeiro contato com outras monas (desinência êmica empregada para se referir às próprias travestis), e que viram concretizados os seus desejos de transformação. Muitas vezes foram trazidas por outra travesti que já freqüentava o lugar e conhecia as demais, o que também lhe garantia uma espécie de “proteção” naquele ambiente. (BENEDETTI, 2004, p. 02). 2.4 - Deslocamentos intraurbanos Trans Não é comum estabelecer relações de deslocamentos urbanos ligados à temática do gênero. Há muito se considerou que a relação entre espaço urbano e classes sociais é que condicionava a espacialização de determinados grupos sociais. Porém, as relações que são engendradas no espaço são múltiplas e paradoxais. Inúmeros fatores sociais nos indicam que o espaço não possui a mesma acessibilidade compartilhada e realizada pelos grupos sociais, sendo vivenciado de múltiplas formas, como enfatiza Ornat e Silva (2007). Esses mesmos autores realizaram uma análise urbana em Ponta Grossa-PR sobre os diferentes deslocamentos entre homens e mulheres, e desde já, compreendiam que tais diferenças fazem parte da produção do espaço da cidade, embora seja um tema pouco explorado. Os estudos urbanos de Corrêa (2001) abrem um leque de possibilidades para compreender os deslocamentos pelo viés de gênero, pois ele considera o espaço urbano como espelho e condicionante social, além de apresentá-lo de forma fragmentado e articulado, sendo um campo simbólico e de lutas. Com diferentes 99 objetivos para acessar os fragmentos do urbano a sociedade promove uma dinâmica espacial que não se restringe aos imperativos das classes sociais. São acionados outros reflexos da vida social que historicamente estão embutidos nos papéis sociais por nós construídos. Para Ornat e Silva (2007) são os papéis socialmente pré-definidos que diferenciam o comportamento dos corpos nos deslocamentos espaciais. A dicotomia normatizada entre corpos masculinos e femininos incumbiu-se de condicionar as espacialidades dos corpos a favor do gênero, das raças, das classes, da religião, dentre os múltiplos fatores da vida em sociedade. Porém, nem a assimilação das normas do gênero são tão eficientemente internalizadas quanto o acesso aos espaços, por isso mesmo essa dinâmica gera inúmeros tencionamentos que complexificam a vida urbana, devido à rede multidimensional de sociabilidades que a constitui e que nele é reproduzida. Vale salientar que o modelo utilizado por Ornat e Silva (2007) não dá conta da realidade. Muitas mulheres exercem funções empregatícias no espaço urbano. Essas contrariam a lógica binarista e masculina, presente no modelo, bem como, não considera a reprodução familiar como uma atividade lucrativa dentro do modo de produção, nos moldes da divisão do trabalho. Assim, Gillian Rose (1993), por meio do conceito de espaço paradoxal, destaca que a posição de qualquer sujeito no espaço não é única. Pelo contrário, ela é multidimensional e plurilocalizada, além de ser simbolicamente diversa. Segundo a autora, um mesmo sujeito pode mudar sua posição em determinada estrutura de relações de forças, influenciado pelas características sociais como renda, gênero, raça, etc. Nesse sentido, busca-se compreender os deslocamentos intraurbanos não mais no esquema binário homem-mulher, mas inclusos na transnormatividade. Compreender como as transformistas, travestis e transexuais apropriam-se do espaço urbano, levando em consideração, sobretudo, suas rendas e performatividade. Para compreender os deslocamentos urbanos devemos considerar três fatores importantes: motivo, destino e intensidade dos deslocamentos. Ornat e Silva (2007) priorizam um modelo que demonstra como mulheres são atraídas por áreas urbanas que concentram atividades ligadas a reprodução familiar, enquanto os homens aos locais de trabalho. 100 Em nosso caso os estímulos são outros, não existem filhos, a maioria das Trans não possuem casa própria e seus estímulos de consumo estão ligados a necessidades imediatas. Sua concentração de moradia e deslocamento está condicionada ao centro da cidade, onde podem encontrar todos os acessórios que as fazem mais femininas e onde batalham madrugadas intensas para gerar renda para gastar com a beleza e o ajeum68. A maioria das Trans entrevistadas possui suas casas alugadas e suas residências situam-se próximas ao centro da cidade, o que facilita seu deslocamento para ir e voltar do trottoir. De acordo com os relatos, muitas necessidades domésticas são supridas no próprio local em que residem, mas o consumo de acessórios, vestuário e calçados é concretizado no centro comercial de Feira de Santana. O consumo de hormônios e a compra de preservativos, dentre outros objetos ligados à saúde são adquiridos nas farmácias da Avenida Getúlio Vargas. Na esfera espacial do bairro, revela Cláudia, a entrada de trans em farmácia deixa o povo ligado, pensando que a mona ficou doce69, pegou a tia, eles sempre acham que somos as doentes. Ornat (2008), Silva (1993), Benedetti (2006) e Pelúcio (2007) notaram que as Trans possuem uma rede eficaz de solidariedade e comunicação. Essa característica fica evidente no plano geográfico quando observamos os espaços de consumo que são por elas compartilhados. Nas conversas na rua, elas indicam as melhores lojas de roupas onde podem comprar sem constrangimentos acerca dos seus corpos turbinados e por conta do nome masculino e o carão feminino que conflituam entre identidade e feição. Promovem uma rede de propaganda sobre os melhores bares da cidade onde a receptividade lhes permite ficar a vontade, potencializando sua performance, como também indicam as melhores farmácias com preços acessíveis e atendimento diferencial. Elas acessam o espaço de forma desigual. A maior parte das intensidades dos fluxos de deslocamentos é verificada à noite, período que saem de casa para fazer pista e no centro elas transitam as avenidas comerciais, aproveitando os comércios que ainda encontram-se abertos para consumos relacionados à alimentação, farmácia e entretenimento, como bares, pizzaria, entre outros. 68 Do ioruba, que significa banquete, mas que é constantemente utilizado pelas Trans como sinônimo de comida, de alimentação. 69 “Estar com doce” é estar soropositivo, o mesmo se aplica com a terminologia “pegou a tia”, que se refere a AIDS. 101 Os deslocamentos das transformistas Como já foi explicitado anteriormente, as transformistas possuem dupla performatividade. Esse disfarce favorece deslocamentos intraurbanos mais longos e com maior intensidade. Esses sujeitos vivem a esfera do bairro com mais fluidez, como também, circulam mais durante o dia quando estão dando pinta de boyzinho ou de gay, como costumam chamar. As quatro transformistas entrevistadas apresentam movimentos pendulares que ultrapassam o anel de contorno da cidade feirense. Durante o dia, além de exercerem outras funções rentáveis, faz visitas às colegas travestis e transexuais, diluindo-se numa teia imbricada de sociabilidade. À noite, sobretudo aos finais de semana, montam sobre seus corpos uma performatividade que retrai seus deslocamentos. Transformados à luz do feminino, seu destino é a Avenida Marechal, onde ficam transitando por entre ruas e becos do centro em busca de clientes em potencial. As transformistas preferem utilizar-se de redes comerciais de consumo do próprio bairro, apesar de consumirem no centro da cidade. Frequentam as farmácias do Caroá na Avenida Getúlio Vargas e a Silva na Praça da Bandeira, confirmando as preferências de atendimento citadas anteriormente. Nas farmácias abastecem suas bolsas de preservativos e lubrificantes preparando-se para a rotina do sexo à noite. Compram roupas femininas em lojas diferentes das masculinas. Escolhem lojas especializadas em cada ramo para acirrar as diferenças dos modelos normativos do binarismo de gênero. Para roupas femininas preferem consumir na Marisa, unidade localizada na Avenida Senhor dos Passos, e para consumir roupas masculinas entram e saem em lojas de consumo de massa localizadas na rua Sales Barbosa, sobretudo a JR Confecções. Deslocam-se no espaço urbano por motivos socioafetivos e por motivos trabalhistas, contrariando a bipolaridade detalhada por Ornat e Silva (2007) quando trata das diferenças de deslocamentos de homens e mulheres. Para atender os motivos afetivos, visitam bares, lojas, casa de amigos gays, aprofundando suas redes de solidariedade. Por outro lado, exercem outras funções no mercado de trabalho, onde vivem uma performatividade mais voltada para o masculino. Em relação às outras trans, os deslocamentos das transformistas são mais intensos. 102 Elas sempre chegam transformadas na praça e por vezes assustam quando, sem plumas e paetês, aparecem de boy na praça. 103 104 Os deslocamentos das travestis Hormonizadas e siliconadas, as travestis possuem um corpo turbinado. De acordo com elas, desfilar no trottoir a noite inteira em cima de saltos é um desconforto. Para além disso, a própria ingestão de hormônios as deixa cansadas, por isso, quanto menos deslocamentos diurnos, mais forças terão para conseguir bater várias portinhas70 à noite na avenida. As travestis trocam o dia pela noite. Na noite saem como gatos pardos71 para a rua e durante o dia recolhem-se para descansar e se esconder dos fluxos intensos do centro durante esse turno. Segundo Bette essa troca de turno faz das travestis parecerem “vampiras”72, pois se escondem da luz do sol. Expostas ao sol, as expressões do rosto masculino que se tenta minimizar ficam mais evidentes. Sob o sol seus corpos masculinos transpiram como homens. As travestis são seres da noite. Preferem não fazer deslocamentos longos, por isso mesmo moram de aluguel nas proximidades do centro, onde podem vir caminhando para pista. Fazem muitas compras no final da tarde, sempre depois das 16 horas, quando a temperatura apresenta-se mais amena. Adoram consumir na em lojas localizadas na Avenida Senhor dos Passos. Além dessas, estão sempre atentas a liquidação em lojas populares da Rua Sales Barbosa, ou as lojas 1073 que estão na Avenida Marechal Deodoro. Preferem não comprar hormônio, remédios em geral e nem camisinhas nas farmácias do bairro onde moram, elas consomem esses produtos nas mesmas farmácias que as transformistas, todas inseridas no território da prostituição. Esporadicamente, no final das tardes saem para visitar as amigas. Algumas ainda saem pela manhã para fazerem visitas às trans que são presas por conta das 70 Gíria utilizada pelas informantes para se referir ao ato de se prostituir. Bater várias portinhas significa fazer muito programa. 71 Ver Pelúcio (2005). 72 Essa declaração foi capturada em conversa informal antes de realizar a gravação da entrevista semiestruturada. Para Bette a escolha de turbinar o corpo de silicone e muito hormônio as faz desistir de priorizar o uso do espaço durante o dia, onde podem ser olhadas, analisadas e interpeladas. 73 Nas lojas 10 qualquer peça de roupa feminina custa R$ 10,00. Dentre elas temos o Shopping 10, Top 10, Moda 10, etc. 105 elzas74 na praça. Em relação às transformistas, os seus deslocamentos estão mais voltados para suprir necessidades femininas, pois nenhuma delas exerce outra função rentável que não seja o trottoir. Por isso seus deslocamentos são espacialmente curtos e com baixa intensidade. 74 Significa roubo. Os termos Neuza, Aidê também são sinônimos de furtar algo de alguém. Muitas travestis gritam assalto aos clientes que atendem na praça, segundo os próprios relatos e as observações em campo. 106 107 Os deslocamentos das transexuais Das três performatividades analisadas nesta pesquisa, as transexuais apresentam proximidade com as mulheres pobres de Ponta Grossa, analisada por Ornat e Silva (2007). Não pelo critério de classe social, mas pelos motivos do deslocamento. As transexuais se consideram mulheres, ou como disse Marilyn “algo além delas e além dos homens”, por isso mantêm íntima relação com deslocamentos ligados às atividades domésticas. Seus deslocamentos são extremamente curtos; restritas a uma vida trancafiada, durante o dia, em casa. As saídas são curtas espaço-temporalmente. Buscam na rua aquilo que não podem resolver em casa. Mas saem programadas para não se alongar na exposição de sua figura ao público. Quando saem, se produzem e ficam belíssimas e arrancam piadas, às vezes satisfatórias, de inúmeros transeuntes que massageiam sua autoestima. Para além de lojas de calçados e vestuários, deslocam-se para o ramo de casa e cozinha. Gostam de locais onde o movimento é menor e fazem isso de forma esporádica. Também possuem a síndrome do vampirismo enfatizado por Bette, preferem não viver de dia. A maioria delas encontram-se casadas e realizam dupla jornada, a transexual que sai à noite para batalhar é a mesma que levanta cedo para cuidar dos afazeres domésticos e preparar o café matinal para seu parceiro. Elas administram a casa, fazem sua limpeza e higienização. Decoram cada parede e canto. Cozinham, lavam e passam. No fim da tarde estão esperando seus maridos chegarem, para começar a se produzir para trabalhar e voltar no meio da noite para os braços do amado. A reposição de remédios, hormônios, preservativos e lubrificantes é feita nas farmácias próximas as suas residências, além de consumirem nas mesmas farmácias supracitadas nos deslocamentos das transformistas quando chegam à noite na pista. Durante a noite, seus deslocamentos intensificam-se. São levadas para motéis fora do anel de contorno e, além disso, transitam pelas avenidas do coração da cidade. Como as travestis, a intensidade de seus fluxos é potencializada à noite, em função de estarem vendendo-se, comercializando o prazer. Todas as transexuais moram próximas do território da prostituição e fazem esse percurso noturno a pé. Inúmeras vezes desci para casa na companhia de 108 Sophia que mora no bairro da Queimadinha. Ela não passa das 22 horas na rua durante a semana, pois precisa chegar cedo para dar assistência ao seu marido que a espera. Nunca vi Sophia circular nas ruas do bairro, apesar de ser uma pessoa reconhecida pela população. Sempre que queria encontrá-la ia a sua casa e lá estava ela fazendo suas atividades domésticas. A análise dos deslocamentos urbanos evidenciou que as performatividades estudadas vivem o espaço urbano de forma diferencial, agregando aspectos da masculinidade e da feminilidade de forma contraditória e complementar. 109 110 Deslocamentos Trans para Itália Inúmeras Trans brasileiras realizaram emigração para Europa. De acordo com Oliveira (1994) a Itália era foco principal de Travestis que se prostituiam no Brasil. Para chegar a Europa, as Trans passam por uma delicada seleção que leva em consideração requisitos baseados na estética, comportamento e cultura. A emigração para Europa, sobretudo Itália, é bem desejada pela maioria de nossas informantes. Na Itália o programa é valorizado, rentável oferecendo um novo padrão de vida para as Trans. A Europa se efetiva enquanto espaço do glamour. É na Europa que as Trans recebem selo de qualidade e quando retornam ao Brasil tal selo é trocado pelo respeito e pelo reconhecimento. A entrada na Itália não é tranqüila e apresenta uma série de ações ilícitas que vão de encontro com a política de imigração do país. Por isso mesmo a saída é clandestina e o convívio entre os italianos é de constante vigilância. Entre nossas informantes, a única que morou na Itália foi Marilyn, que passou cerca de 7 anos na prostituição de luxo entre o final da década de 90 até o inicio dos anos 2000. Atualmente Lauren e Rita residem na Itália e estão arrumando a ida de Greta. Tanto Lauren quanto Rita ainda trabalham para pagar os gastos de suas passagens financiada por uma Travestis européia que reside em Salvador. A saída das Trans feirenses para fora do país depende exclusivamente do apoio de Travestis de Salvador. Para isso, elas passam um tempo de experiência fazendo trottoir no bairro da Pituba, para conquistar o passe para o luxo: a Europa. Lá, geralmente residem com outras Trans baianas que estão na mesma condição. Na maioria dos casos, todas as iniciantes chegam para morar na casa da Travesti que arrumou seu passaporte, onde fica até pagar a divida que possuem com as passagens e aluguel da casa. Algumas conseguem economizar e investem em propriedades no Brasil. Melhoram a vida de suas famílias, retribuindo-lhe mensalmente uma quantia para ajudar nos gastos. Porém, nem todas que entram na Itália conseguem permanecer. A política italiana, segundo Pelúcio (2007), tem inibido a entrada de Trans no país num projeto de combate a exploração sexual. Em virtude disso, algumas, com pouco 111 sucesso é deportada para seu país de origem, e tentam recomeçar mais uma vez sua vida sob o solo brasileiro. 112 113 114 115 116 CAPÍTULO III TRÊS TRAVESTIS Três travestis Traçam perfis na praça. Lápis e giz Boca e nariz, fumaça. Lótus e liz Drops de aniz, cachaça Péssima atriz Chão, salto e triz, trapaça Quem é que diz? Quem é feliz? Quem passa? A codorniz O chamariz A caça Três travestis Três colibris de raça Deixam o país E enchem París de graça Caetano Veloso 117 3- O TERRITÓRIO TRANS: AMPLIANDO HORIZONTES TEÓRICOS PARA OS ESTUDOS DE GÊNERO O espaço influencia [...] é muito importante, porque lá elas aprendem muitas coisas com as outras, [...] como se desenvolver, como se hormonizar, como se siliconizar, tudo isso influencia, há uma influência grande. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). 3.1- O estudo do conceito de território Existe um determinado entendimento, entre a comunidade científica, sobre a “febre” contemporânea da utilização, nos estudos geográficos, do conceito de território. Tanto Souza (1995) quanto Haesbaert (1999, 2006, 2007) e Raffestin (1993) elucidam os desdobramentos da reflexão e aplicação desse conceito em diferentes abordagens teórico-metodológicas. Ambos os autores compreendem que o conceito de território é uma produção discursiva, estrategicamente forjada para responder as problemáticas existentes na realidade espacial ligadas às manifestações geográficas de poderes. Na sua evolução aplicativa, como conhecimento sistematizador, o conceito de território possui uma longa tradição eficaz para analisar os processos político-administrativos do Estado, solidificando sua concepção política. Tradicionalmente, entrelaçado nos conceitos de fronteiras, de delimitação e demarcação de área para empoderamento de uma pessoa, grupo ou instituição, o conceito de território constitui-se numa categoria geográfica epistemologicamente “afronteiriça”. Seu uso e seu debate extrapolaram a área de conhecimento da Geografia, seduzindo um debate promissor em outros campos do saber, estendendo-se, sobretudo, nas ciências humanas e interconectando sua análise numa dinâmica escalar jamais vista. O ecletismo presente no debate do conceito de território elucida seus paradoxos: entre o político-administrativo e os grupos sociais 118 diversos, um conceito afronteiriço que busca estudar os limites e a sua possibilidade de estar compatível com outras escalas geográficas de análise, mantendo a abordagem histórica do espaço. As contradições das concepções de território não param por aí. A sua polissemia vocabular “implica inconsistências acerca do significado do conceito de território” (BRITO, 2006). Na palavra território está uma série de definições díspares e complementares que potencializam seu caráter paradoxal aplicativo. A perspectiva tradicional amplamente usada para definir território baseia-se numa extensão superficial da Terra, em que o sujeito, os grupos sociais ou instituições estabelecem um conflito em detrimento de seus interesses. Como nos alerta Brito (2006), essa perspectiva, apesar de disseminada e internalizada pela população, possui a compreensão que apresenta deficiências teóricas, implicando num descrédito dessa abordagem nos dias atuais. Porém, as Ciências Sociais, com destaque a Antropologia, no seu ramo mais recente, a Antropologia Urbana, nos estudos de grupos sociais diversos ligados ao seu território (prostitutas, travestis, garotos de programa, minorias étnicas etc.), tem possibilitado um novo debate para a compreensão desse conceito. Simultaneamente, ainda perdura na Ciência Política e na Geografia uma concepção de território como área definida a partir do poder que emana do Estado, cristalizando o debate na escala do território nacional, como elucida Silva (1995). Nessa concepção, que chamaremos de hegemônica, o território é um espaço em si e concreto que é apropriado e ocupado por um grupo social, e seus limites seriam imutáveis, alterando-se por meio de um sistema brutal de luta pelo espaço. De modo superficial, dividimos o debate do conceito de território em duas grandes concepções que polarizam a aplicação desse conceito demarcando seus usos epistemológicos: a concepção hegemônica ligada à produção territorial pela força do Estado e a concepção idealista que cruza outras formas de poderes, os micro poderes, e por sua vez os microterritórios/ territorialidades nas abordagens contemporâneas das ciências humanas, sobretudo a Geografia. 119 3.1.1 - A concepção hegemônica O precursor da concepção hegemônica foi o alemão Friedrich Ratzel cujo potencial discursivo fixa a ideia de território na perspectiva política do Estado. A ideia ratzeliana está tão enraizada nos discursos do cotidiano que aparenta certa naturalidade existencial, ocultando seu caráter produtivo e dinâmico de apropriação, sendo, portanto, um discurso proposital que visibiliza a ação do Estado. Assim, as pessoas já nascem num dado território que pré-existe e é nessa porção espacial onde desenvolverá, a luz das normas político-administrativas do Estado, seus vínculos de afetividade, fortalecendo a territorialidade do Estado-nação. Para além de uma restrição de abordagem, a concepção hegemônica ratzeliana apresenta um território densamente masculino nos moldes do Estado renascentista que maximiza a heterossexualidade, sobrepondo os homens em status de poder subordinativo e a mulher em condição de subserviência, execrandoa da vida político-administrativa. Portanto, temos um território institucionalizador a favor do binarismo de gênero e da situação de privilégio dos homens, indicando rápida relação com a concepção de território da Etologia75, delimitado pela força do animal macho e sua capacidade de dominância, por atributos inatos. Essa ideia está transferida para as relações estatais da sociedade. Os homens seriam os sujeitos aptos a se empoderarem, racionalidade, visto que capacidade possuem de determinação, enfrentar disputas objetividade, e conflitos. virilidade, Assim, tais características estariam ausentes nas mulheres. Analisando o território hegemônico com vista aos fenômenos de gênero, podemos afirmar que o poder que o mantém é um poder masculino que emana do Estado. Compreendendo essa afirmativa, podemos explicar a forte ratzelização existente no debate sobre território. O conceito é um discurso que busca destrinchar a realidade reproduzindo-a em um plano semiótico, boa parte desses estudos ainda manifestam o pensamento ratzeliano estadista de território, sendo esta uma estratégia de dominação masculina e aprisionamento dos gêneros abjetos, como analisa Butler (2003) quando se debruça para estudar o processo da abjeção. 75 Ver a discussão apresentada por Haesbaert (2006). 120 A concepção de território-Estado negligencia uma série de fatos sociais que se desvinculam das características forjadas para esse tipo de poder. Mas, paradoxalmente, a ideia do Estado, como mola motriz do poder no território encontra-se disseminada no senso comum dos grupos sociais que, nessa lógica, se apropriam do território estatal e subvertem sua ordem. Na escala do estudo, a partir dessas concepções, o município de Feira de Santana se constitui em um território definido pela apropriação e ocupação de uma parte concreta do espaço, possuindo normativas legalizadas e geridas por um Estado centralizador. O poder da gestão municipal se propaga pelo território, criando uma identidade territorial ligada à fronteira “Feira de Santana”, imbuindo em seus moradores um vínculo espacial que deve ser preservado e defendido. Contraditoriamente, as ruas de Feira de Santana são usadas das formas mais diversas possíveis. Ora reproduzindo os decretos, sanções, leis, portarias, a favor do poder estatal municipal, ora infringindo, subvertendo e refazendo essas normas de acordo com as intenções de determinado grupo. Simbolicamente, o território-Estado vai sendo minimizado e outros poderes eclodem no espaço, contrariando as lógicas ou as reiterando. Surgem territórios de todos os tipos, tamanhos e temporalidades, que possuem características cíclicas ou fluidas, ou ainda fixas e/ou permanentes. Assim são os territórios dos ambulantes do mercado informal que “privatizam” o espaço público, cunhando no local seu registro de funcionamento pela força e persistência de pleitear uma vaga nas calçadas movimentadas do centro da cidade. Também o são os territórios dos flanelinhas que delimitam, a partir das quadras das ruas, sua área de influência, cobrando determinado valor no espaço-tempo que o veículo ficar estacionado em vias públicas. E por fim, é o caso do território do sexo, onde praças, esquinas, avenidas de alta rotatividade são tomadas, temporariamente, para encontros sexuais financeiramente estabelecidos ou prazerosamente acordados pela lei do vício76. 76 Fazer vício corresponde a fazer sexo gratuito com um possível cliente que provoca especial atenção nas Trans que, estimuladas pelo estereótipo do rapaz, se permitem subverter a lei do comércio do corpo e se entregam ao prazer profundo do desejo do outro. 121 3.1.2 - A concepção idealista Apesar de toda crítica realizada à concepção do território hegemônica, sobretudo a perspectiva ratzeliana, é necessário compreender o importante passo que foi dado por Ratzel para o debate que se ampliou na contemporaneidade, diversificando a abordagem do conceito. De acordo com Rogério Haesbaert (2006), os cientistas sociais, que pouco tinham visitado o debate de território, o redescobrem na década de 80 do século XX, para explicar sua supressão. O desaparecimento do território, sobretudo o políticoadministrativo no molde do Estado Moderno apresentado por Ratzel, demarcaria a existência de um fenômeno da contemporaneidade que muitos cientistas denominaram de desterritorialização. Contestando a ideia de que as inovações tecnológicas produziriam um ciberespaço que suprimiria o território, Haesbaert (2006) conclui, em um debate epistemológico longo e cauteloso, que o território está longe de ser extinto pelas relações sociais tecnológicas.O desaparecimento do território não passa de um mito, nos moldes como é argumentado pelas Ciências Sociais. A ideia sobre o mito da desterritorialização é um desdobramento da raiz significativa da palavra território cuja etimologia deriva do Latim Terium, significando terra pertencente a alguém. A ideia de território como substrato ou solo fixou nas suas entranhas conceituais uma ligação equivocada com sua materialidade fronteiriça. Para as Ciências Sociais, o desaparecimento do território estaria vinculado à soberania das redes técnicas globalizantes, à integração dos países e à desarticulação de suas fronteiras fixas, em virtude da integração dos Estados-nação em mercados regionais. O território do Estado-nação, em teoria, perderia funcionalidade com a mudança da escala dos fenômenos. Nessa ideia, as interconexões escalares se intensificariam até suprimir as microescalas, que freneticamente seriam engolidas pelos fluxos globalizantes e junto com isso viria o fim das fronteiras político-administrativas que existencializam os territórios Estadosnação. Ao contrário da concepção hegemônica, o território para a vertente idealista se diferencia do solo ou substrato, incluindo a territorialidade como um conjunto de 122 estratégias para manipular ou afetar outros grupos sociais, inferindo um caráter processual e contínuo aberto a outras formas de poderes diferentes do Estado (SACK, 1986). Na concepção de Souza (1995), o território se constitui em um campo de forças dialéticas que produz e é produzido por relações sociais mediadas pelo poder. Como o poder não está restrito ao Estado e ele manifesta-se em todas as esferas do cotidiano, uma das estratégias dos Estados-nação da atualidade é adentrar no processo globalizante dos fluxos, mantendo, contraditoriamente, suas fronteiras. Como afirma Haesbaert (2006), a globalização, que tenta homogeneizar os processos, acirra as diferenças fortalecendo as alteridades no e do território. A globalização reanima as energias produtivas do território mantendo-os paradoxalmente em um constante conflito moderno que ora homogeneíza e, dialeticamente, diversifica os lugares e coisas. É a partir dos estudos de Raffestin (1993) e de Sack (1986) que as concepções de território se alargam, compreendendo-o, ao contrário dos materialistas, como um conjunto de relações de poder. Porém, ao que parece, Raffestin não explorou suficientemente o veio oferecido por uma abordagem relacional, pois não discerniu que o território não é o substrato, o espaço social em si, mas sim um campo de forças, as relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial (SOUZA, 1995, p. 97). Apesar de não enfatizar a perspectiva material do território, Raffestin nos chama atenção de que o território é relacional, não apenas por ser produzido numa trama de relações sociais desenroladas no curso histórico, mas por articular esses processos ao espaço material, conferindo-lhe movimento, fluidez e interconexão. Outro aspecto positivo das contribuições de Raffestin (1993) trata-se do reconhecimento atribuído a Michel Foucault (1979), que ao discutir o conceito de poder, renovou o debate sobre o território. Na obra Microfísica do poder, o filósofo francês Michel Foucault (1979, p.157) reconhece que o “território é sem dúvida uma noção geográfica, mas é antes de tudo uma noção jurídico-política: aquilo que é controlado por um certo tipo de poder”. Apesar da ferrenha crítica realizada à ciência geográfica, Michel Foucault não anula o caráter geográfico do território, mas percebe, a partir da Ciência Política, que o território é passível de influência de tipos de poderes que não necessariamente emanam do Estado, explicando como grupos 123 menores transmitem micropoderes e delimitam espaços. Desta forma, a partir da concepção de poder de Foucault, Raffestin sistematiza algumas características do poder, um conceito diluído em todos os estudos de Foucault, apresentando as seguintes características para o debate espacial: 1. O poder não se adquire: é exercido a partir de inumeráveis pontos; 2. As relações de poder estão em posição de exterioridade no que diz respeito a outros tipos de relações (econômicas, sociais etc.), mas imanentes a elas; 3. O poder [também] vem de baixo; não há uma oposição binária e global entre dominador e dominados. (RAFFESTIN, 1993, p. 53). Ao considerar o poder como relação, na visão de Foucault, Raffestin (1993) minimiza sua dimensão “concreta”, deslocando o conceito de território para um campo semiótico, dotado de simbolismos, onde suas reproduções imagéticas são mais consideradas do que a realidade material concreta, como critica Haesbaert (2006). Sack (1986), por sua vez, detalha seus postulados em um nível mais material, aplicando exaustivamente o conceito de territorialidade para explicar a formação de territórios. Para Sack (1986, p.1) a territorialidade humana é melhor entendida “como uma estratégia espacial para atingir, influenciar ou controlar recursos e pessoas, pelo controle de uma área e, como estratégia, a territorialidade pode ser ativada e desativada”. A territorialidade se constitui numa [...] tentativa, por um indivíduo ou grupo, de atingir/afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos pela delimitação e afirmação do controle sobre uma área geográfica. Essa área será chamada de território.” (SACK, 1986, p. 6). Concentrando esforços teóricos para compreender o território como uma unidade dinâmica passível de transformações e instabilidades, Sack (1986) amplia, ao contrário da concepção hegemônica, o conceito de território, demonstrando suas características temporais, cíclicas e potencializando sua flexibilidade. As considerações de Sack aproximam-se das ideias de Raffestin quando ambos consideram que um local, como expressividade geográfica de poder, se forma, mesmo que temporalmente em um território. Ambos reconhecem diferentes níveis de territorialidade, implicando em diferentes graus de acesso, permeabilidade e segurança relacionados a pessoas, 124 coisas ou relações. Assim, somente aqueles que vivem dentro de seus limites são considerados iguais, os insiders, pois estão condicionados a um certo tipo de controle e de alteridade com os que se encontram fora, ou seja, os outsiders (SOUZA, 1995). É no território que estão inscritos os limites discursivos e simbólicos das relações de empoderamento. O poder concentra-se para aqueles que compartilham de uma identidade territorial e se esvazia para aqueles que são os outros do território, onde medidas de coação, retração e exclusão são aplicadas a fim de manter a força visível no espaço (HAESBAERT, 1999). Nessa perspectiva, participar de um território não implica mais estar apenas incluso num polígono tranquilamente demarcado e estável. Territorializar-se significa compartilhar de um sistema simbólico reiterado, imerso no pertencimento territorial, em que os sujeitos, dialeticamente, são e compõe o território, por meio de uma identidade cultural difundida e assimilada. A partir dessa premissa, devemos compreender que o poder do laço territorial revela que o espaço está investido de valores não apenas materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos. É assim que o território cultural precede o político e com ainda mais razão precede o espaço econômico. (BONNEMAISON E CAMBRÈZY, 1997, p. 10). A abordagem idealista considera os aspectos simbólicos e as representações espaciais dos grupos sociais, sem perder de vista a materialidade do espaço. Para os autores dessa corrente alguns grupos sociais, mesmo não possuindo forma institucional, podem se identificar com o território. A apropriação é simbólica e só é possível por meio da identificação e da alteridade77, no jogo insiders/outsiders, favorecendo aqueles que pertencem e compartilham dos mesmos vínculos territoriais. Bonnemaison e Cambrèzy (1997, p.14), concluem que a força simbólica nesse processo é tamanha e que o território é concebido como “um construtor de identidades, talvez o mais eficaz de todos”. 77 No sentido antropológico referente às diferenças culturais. Alteridade (ou outridade) é a concepção que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende de outros indivíduos. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais afirmam, a existência do "euindividual" só é permitida mediante um contato com o outro (que em uma visão expandida se torna o Outro - a própria sociedade diferente do indivíduo). 125 As abordagens contemporâneas, além de considerarem a identidade como estratégia de poder e formação territorial, possibilitam a compreensão do território de forma dinâmica. Souza (1995) e Ribeiro (1997) analisam a fluidez dos territórios da prostituição, demonstrando a complexidade das relações de poder em microespaços que são tomados, temporalmente, para a venda, a exibição e o desejo do sexo. Os territórios da prostituição são bastante flutuantes ou móveis. Os limites tendem a ser instáveis, com áreas de influência deslizando por sobre o espaço concreto das ruas, becos e praças; a criação de identidade territorial é apenas relativa, digamos, mas propriamente funcional que afetiva. (SOUZA,1995,p.88). Corroborando com essa perspectiva, Ribeiro (1997, p.62) afirma que em estudo no Rio de Janeiro “no caso da prostituição, uma rua, um conjunto de ruas ou um lugar pode ser um território, durante um certo período de tempo”. Isso acontece porque um grupo ao se apoderar do espaço formaliza a criação de um território. No caso da prostituição, os territórios variam de especificidades de acordo com o grupo territorializador, pois estes determinam as lógicas de acesso, fluidez, comportamento, horário e cerceamentos. Assim, todo território pressupõe uma identidade territorial, já que a tendência observada é que o agrupamento dos indivíduos se dá por objetivos comuns, isto é, “a pessoa tende a buscar se relacionar afetiva e socialmente com pessoas de mesmas tendências sociais”. Os sujeitos que objetivam as mesmas coisas vão selecionando seus grupos de adensamento, pois identidade “implica uma relação de semelhança ou igualdade” (HAESBAERT, 1999, p.173), um processo que exclui os diferentes e caracteriza a convivência espacial. 3.2- O(s) poder(es) no(s) território(s) Como já foi explicado, a compreensão do conceito de território sempre esteve atrelada ao conceito de poder. Observamos que a concepção hegemônica restringiu a manifestação do poder para as instituições oficiais político-administrativas, conferindo ao Estado o poder central de caráter mais persuasivo, pois estava 126 vinculada às concepções de Max Weber e de Maquiavel. Essa ideia começou a ser desconstruída e revisitada com as publicações de Raffestin (1993) e de Sack (1996), visto que esses autores consideraram outras vertentes de concepção de poder numa perspectiva filosófica dos significados, isto é, fenomenológica. É na abordagem de Raffestin (1993) que se desdobra o efeito-Foucault78 na Geografia. O filósofo Michel Foucault pluraliza a concepção de poder e seu debate, aproveitado pelos estudos de Raffestin (1993), provoca uma ampliação da concepção de território na e para a ciência geográfica. Seu efeito pós-moderno engendrou a organização de inúmeros espaços de debates sobre a tradição geográfica em torno do conceito de território. Outros autores como Bourdieu (1999b) e Arendt (1992 e1994) também influenciam na conceitualização de território nos estudos geográficos a partir de suas análises sobre o poder. Porém, verificamos que a perspectiva foucaultiana encontrase mais difundida nas produções sobre o conceito de território em todas as Ciências Sociais. Vale à pena salientar que tanto Bourdieu (1999b) quando Foucault (1979) realizam uma crítica ferrenha ao que compreendem como “geográfico”. Para ambos, o caráter naturalista, positivista e determinista da Geografia Tradicional, analisada por Foucault (1979) como determinando o espaço como sinônimo de substrato ou superfície terrestre e por Bourdieu (1999b) a partir do conceito de região na perspectiva natural, anulava o caráter dinâmico da reprodução da sociedade, sobretudo, no que tange a seus simbolismos. As críticas de Foucault (1979) e Bourdieu (1999b) elucidam o desconhecimento da evolução da epistemologia geográfica e seus avanços conceituais para a definição de seu objeto de estudo e suas categorias de análise. Porém, no tocante do debate em torno do poder, ambos os autores engendram uma promissora analise sobre o conceito de território concebido pelas alteridades sociais. Enquanto Foucault (1979) se detém a diluir o poder em todas as escalas de relações sociais, demonstrando como ele se manifesta enquanto processo (e não como 78 Margareth Rago no artigo O efeito-Foucault na historiografia brasileira esboça as mudanças teóricas e metodológicas decorrentes da disseminação do pensamento de Foucault na História. Para ela, Foucault auxilia na delimitação do campo de atuação e definição do objeto de estudo da ciência histórica, sobretudo com o alerta que ele realizou sobre os documentos históricos. Para Foucault a História deveria superar a busca da verdade por meio da análise dos documentos e registros históricos e se atentar em desvendar a trama de poderes que estavam alocadas nesses fragmentos do tempo. 127 coisa) de diferentes maneiras, pluralizando sua manifestação e entendimento, Bourdieu (1999a) afirma sua concepção fenomenológica utilizando as noções de campo do poder e de capital específico. Para Bourdieu (1999b) o campo do poder corresponde a um “campo de forças” definido em sua estrutura pela relação estabelecida pelas diversas formas de manifestação desses poderes e seu capital acumulado que pode ser econômico ou cultural especialmente. Esse “campo de forças” se configura enquanto espaço onde ocorre um constante jogo entre agentes e instituições, evidenciando sua capacidade acumulativa de capital específico, para ocupar posições de dominação, a partir da disposição de estratégias que conservem, transformem ou subvertam essa relação de forças. Conforme Bourdieu (1999b), todo poder simbólico é um poder capaz de se impor como legítimo, dissimulando a força que há em seu fundamento e só se exerce se for reconhecido. Este corresponde a um “[...] poder invisível que só pode se exercer com a cumplicidade daqueles que não querem saber que a ele se submetem ou mesmo que o exercem”. (BOURDIEU, 1999b, p.31). Na visão de Foucault (1979), a concepção de poder se apresenta de forma ampla, privilegiando sua manifestação simbólica e institucional. O poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força.(FOUCAULT, 1979, p. 175). Realizando uma crítica a Marx Weber, Foucault afirma que a ideia de poder, condensado no e ao Estado, endossava uma visão economicista de sua potencialidade e o restringia, diminuindo seu campo de aplicação e análise. O poder estava presente em todas as relações sociais, inclusive nas banais, que se reproduzem velozmente no cotidiano. Ao enfatizar essa possibilidade, Foucault pluraliza o conceito de poder, afirmando a existência de suas manifestações para além das relações economicistas, pois para ele a teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado sem dúvida não esgotam o campo de exercício e de funcionamento do poder. Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde o exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde vai o lucro, por que mãos ele passa e onde ele se reinveste, mas o poder... 128 Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detêm. ( FOUCAULT, 1979, p.75). Ao ampliar a concepção de poder Foucault desarticula a ideia hierárquica presente na teoria weberiana, segundo Fonseca (1995). Para ele o poder pode vir de todos os lados instaurando uma perspectiva pan-óptica e se distanciando da visão binarista e global que projetava o poder de forma estável e dicotomizado entre dominador e dominado. Por meio da teoria do interlocutor irredutível, Foucault (1979) explica que onde há poder, há resistência. Como se trata de uma rede de relações, os pontos de resistência estão presentes em toda rede de poder e representam, nesse caso, o papel de adversário, de apoio e de alvo, estabelecendo o conflito entre os sujeitos e as instituições que o compartilham. Assim, o poder [...] é essencialmente repressivo. O poder é o que reprime a natureza, os indivíduos, os instintos, uma classe. Quando o discurso contemporâneo define repetidamente o poder como sendo repressivo, isto não é uma novidade. Hegel foi o primeiro a dizê−lo; depois, Freud e Reich também o disseram. Em todo caso, ser órgão de repressão é no vocabulário atual o qualificativo quase onírico do poder. (1979, p. 175). Foucault (1999) desenvolve a ideia de dispositivos de resistências que acenam às suas indicações de alusão ao outro poder79. O outro poder é também poder devido a sua capacidade paradoxal. Nesse sentido, Foucault argumenta que entre a regra e as condutas existem os modos de subjetivação que podem ser subvertidos a partir do jogo-da-verdade. Para Foucault (1997), as técnicas de si, desenvolvidas através do cuidado de si, acabam por produzir os jogos-de-verdade, que seriam as relações e interações de forças/poderes entre estas técnicas-de-si e as técnicas-de-subjetivação, produtoras de verdades e espaços. O sujeito, não só apenas absorve os discursos-de-verdades, mas também passa a questioná-los e a produzir outros e novos discursos-de-verdade. O sujeito quando, através do saber, passa a negar as imposições produzidas pelas instituições, ou ainda, qualquer outro tipo de subjetivação externa a si, mesmo que seja para desestruturar as relações de poder vigente, está se fazendo um 79 Vale salientar que a terminologia “outro poder” não está presente nas produções de Foucault. Mas, para fornecer ao texto a dinâmica que se processa na realidade, optamos em colocar o termo “outro poder” na tentativa de inferir a dinâmica paradoxal do poder. 129 sujeito dotado de poder e, portanto, um sujeito que se relaciona potencialmente com o poder, mantendo-se dentro dessas relações, mesmo que para subvertê-las. A trama do poder em Foucault permite-nos entender como os espaços normatizados pelas instituições reguladoras dotadas de discursos de verdade são subvertidos pelas Trans que ocupam o território central da cidade de Feira de Santana, resistindo aos imperativos do espaço produzido pelas lógicas sociais dominantes, e não apenas pelos meios de produção, como também as construções divergentes de gênero que põem em evidência a não-verdade do binarismo de performatividade dos corpos (BUTLER, 2003). Para compreender o poder, [...] seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de que revezamentos e até que instâncias, freqüentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui. (FOUCAULT, 1979, p.75) Contrariando essa perspectiva encontramos as afirmações de Hannan Arendt que apresenta considerações importantes sobre o poder discutido por Foucault. Para Arendt (1994) os conceitos de poder e violência têm sido apresentados no debate científico de modo equivocado, sobretudo na tradição do pensamento político, incluso na tendência hegemônica. Souza (1995) e Brito (2006) percebendo o contraste existente no debate sobre o poder, compartilham das mesmas contestações de Arendt (1994), acreditando que a violência não é uma manifestação do poder e tampouco é um aspecto do território. Para a compreensão da teoria de Arendt (1994), sobre os fenômenos de poder e violência, é necessário entender as categorias de esferas públicas e privadas que dão sustentação a sua argumentação e que estão assentadas nas concepções que remontam a história da Grécia clássica. Para a autora a esfera pública estava relacionada ao cotidiano que justificava o emprego de métodos violentos de escravização dos sujeitos lhes impedindo de uma vida liberta e democrática na polis, considerada como espaço dos iguais. Por seu turno, a esfera privada caracteriza-se pela reprodução da desigualdade que favorecia o comando de alguns cidadãos em detrimento dos demais. As mulheres, os filhos e os escravos eram proibidos de desfrutar da liberdade para que seus senhores pudessem desfrutar da vida pública. 130 Dentro dessa conjuntura, Arendt (1994), discute as diferenças e incompatibilidade entre violência e poder. Para a filósofa, onde ocorre a violência o poder jamais é exercido. O espaço onde um se manifesta bloqueia a possibilidade do outro se mostrar. Para esclarecer, ela diferencia as categorias de vigor, autoridade e força. O vigor difere-se da violência pela naturalidade em comandar e cativar as pessoas. Pelo vigor, uma pessoa domina naturalmente outra pessoa porque essa vocação para dominar e cativar os outros já é algo natural, pertence ao seu caráter, constituindo-se, no argumento de Arendt, como uma característica inata. Em seu uso corrente, quando falamos de um “homem poderoso” ou de uma “personalidade poderosa”, já usamos a palavra ‘poder’ metaforicamente; aquilo a que nos referimos sem a metáfora é ‘vigor’. (ARENDT, 1994, p.36) A força, que no cotidiano é uma característica ligada ligeiramente à violência, na concepção de Arendt (1997) constitui-se em qualquer forma de energia proveniente de movimentos físicos ou de circunstâncias, sendo “[...] uma qualidade natural de um indivíduo isolado [...]. Na luta entre dois homens, o que decide é a força e não o poder” (ARENDT, 1997, p. 212). Dessa forma, a categoria de autoridade está ligada a características naturalistas como o vigor, pois “Sua insígnia é o reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede que obedeçam: nem a coerção nem a persuasão são necessárias” (ARENDT, 1994, p.37). Características como dominação, controle, coação, repressão, vigilância, proibição e termos correlatos têm sido utilizados de forma equivocada como sinônimo de poder, como elucida Brito (2006). Para o autor, o poder descrito na obra de Foucault, ou a forma como ele vem sendo empregado para conceituar o território, “certamente [...] não são exemplos de relações de poder, mas de pura dominação” (BRITO, 2006, p.119). Contudo, as concepções de força e autoridade definidas por Arendt (1994) apresentam um caráter inatista, contradizendo a construção e execução do poder como algo socialmente produzido e exercido. Nenhum sujeito é dotado, em seu caráter, de força e de autoridade, o exercício dessas categorias é internalizado no desenrolar da vida cotidiana e significado no contato social. Ao contrário do que se estipula, Foucault (1979) desloca-se da ideia de poder de Weber e Maquiavel, que possui caráter simplesmente repressivo, para a ideia do 131 poder positivo, do poder que também articula e produz, que legitima os lugares dos sujeitos e seus discursos-de-si. Na concepção foucaultiana toda vontade de saber constitui-se em uma vontade de poder e a partir disso entramos no dispositivo poder-saber. (MACHADO, 1981, 1988). De fato dominação, controle, coação, repressão, vigilância, proibição e termos correlatos não são sinônimos de poder, mas estes são características pluricruzadas da complexidade que constitui o conceito de poder. Os jogos-da-verdade, o cuidado de si, possibilitam a construção de "especialismos" que permitem aos sujeitos "especialistas" falem em qualquer lugar, em qualquer circunstância porque falam desse lugar do poder legitimado e produzem a ideia de naturalização das verdades. As resistências, as dominâncias em Foucault, partem da premissa das experimentações por outros modos de se buscar o mundo, de descobrir linhas de fuga que escapam das fronteiras normativas existentes em nossos territórios. Essas resistências também são relações de forças. Ao contrário das afirmações de Arendt (1994), compõem o poder, pois desejamos afetar outros sujeitos a partir de nossas vontades de verdade e tais vontades, paradoxalmente, reproduzem a vida, os sentimentos, as vontades e os desejos e nos movem rumo à luta pela liberdade, mesmo quando reprimido. A visão de poder nas obras de Foucault se torna importante para compreensão da formação e manutenção e da vida dos territórios do sexo. É nessa condição de poder que as identidades são diariamente produzidas, imbuindo nesse processo o sentimento de pertencimento territorial que reterritorializa as vontades e os conflitos entre os de dentro e os de fora. Nesse território positivamente empoderado, as contradições co-existem em simultaneidade e o paradoxo reflete a existência perturbadora do poder, que cria, refaz e destrói os espaços e os sujeitos. No território as materialidades estão intimamente relacionadas às subjetividades, aquilo que Bourdieu (1999b) tratou como simbólico. Para além de estruturas rígidas, fixas e materializadas, o território está composto por discursos passíveis de uma análise genealógica, segundo o método foucaultiano. Nessa lógica, consideramos que todas as coisas que compõem o território estão densamente carregadas de discursos, e é por meio dos discursos que os territórios são produzidos. Assim, tornar-se impossível considerar um território sem seus simbolismos. 132 Os discursos estão embutidos de poderes, pois para Foucault (1995) as palavras e as coisas são reflexos do processo de empoderamento80. Após o nível discursivo, as materialidades, paulatinamente, vão ganhando formas. É na ação coletiva e intencional da sociedade que os objetos discursivos do território são enchertados de matéria e vão se constituindo em formas empoderadas que reiteram a lógica da dominância, e não do dominante. Isso visibiliza os múltiplos conflitos que existem entre os e as agentes do e no território. Não obstante, antes de ações abruptas, como as atividades transformadoras engendradas pelos meios de produção para apropriação dos recursos “naturalizados”, o espaço é discursivamente arquitetado e o texto circunscrito nessa produção reflete, em sua escrita, as contradições dos agentes e instituições para apropriação e seu uso. E como uma tecnologia eficaz, o próprio discurso legitima os parâmetros de apropriação e de uso, nada escapa de seu poder de normatização, nem o espaço. O paradoxo do conceito de território reflete as contradições do espaço, este a única unidade que agrega inúmeros discursos e unidades discursivas (como os corpos e objetos) antagônicas que se cooperam e se conflituam, dialeticamente, na lógica produtiva do espaço. Os discursos, no espaço, possuem outros signos para além da escrita convencional. As formas espaciais assumem posturas discursivas, que como código carregado de significado cooperam, propositadamente, para manutenção ou a subversão das lógicas territoriais. Esse debate não é algo novo e está intimamente ligado às provocações de Duncan (1990) na obra The city as text que considera as paisagens como textos. Duncan (1990) extrapola a visão do espaço como uma unidade materializada e a considera como um sistema dotado de significados, capaz de depositar e transmitir informações. Para Duncan a paisagem/texto é um discurso, que viabiliza a comunicação, as negociatas e os desafios das práticas sociais, destacando as relações de força que as compõem, que lhes constituem e que também são contestadas. 80 Vale salientar que o conceito de poder de Foucault não se relaciona, diretamente, com a concepção de poder de Weber. Nesse sentido, Foucault realiza uma crítica profunda aos conceitos de poder existentes, argumentando sobre a existência de uma economia sobre o saber do poder. A economia dos poderes residia na restrição dos efeitos de poder às instituições políticoadministrativas. Foucault, por meio da microfísica e pela discussão de biopoder, percebe, nas entranhas da vida social, a trama de empoderamento que está diluída no cotidiano dos grupos sociais. 133 Assim como Duncan (1990), consideramos o território da prostituição Trans como um produto discursivo que pode ser lido e interpretado a partir da observação, da circulação, da troca de experiências entre os sujeitos/textos que o produzem e o compõem. Tais textos ora se encontram, interceptando situações contiguas, ora se distanciam e se contradizem, ora se justapõem e se sobrepõem uns aos outros, diversificando as múltiplas dimensões socioespaciais do fenômeno da prostituição Trans. 3.3- O território da prostituição nas pesquisas sociais Como já foi mencionado, existem alguns autores que entraram no universo Trans e realizaram um mapeamento socioantropológico sobre o fenômeno da prostituição e relacionaram suas questões de pesquisa com o espaço. Aqui, destacamos as obras de Perlongher (1987), Benedetti (2006) e Pelúcio (2007) que trataram da prostituição de michês e trans em cidades do centro sul do Brasil. Nessas obras o espaço é apresentado, de acordo com alguns autores, para além da concepção de substrato, outros o compreendem como palco de relações sociais. Perlongher (1987), analisando o negócio do michê em São Paulo, verificou como as tramas sociais são potencializadas nos espaços especializados, isto é, pôde compreender a partir das intensas observações realizadas, que as territorialidades dos michês retroalimentavam sua existência e favoreciam sua visibilidade. Em sua obra, Perlongher destaca que as áreas centrais correspondem aos espaços preferenciais para prostituição, visto que o centro da cidade é o lugar privilegiado do intercâmbio. Para isso cita Castells (1972) apud Perlongher (1987) e Lefebvre (1978) afirmando que o centro é o ponto de saturação, local da aventura, do acaso, da extravagância e das fugas. Castells (1972) corrobora com as associações de Perlongher quando afirma que o centro também possui a “possibilidade do imprevisto, a opção consumista e a variedade da vida social” (p. 183). 134 Diferente das Trans estudadas por Benedetti (2005) e Pelúcio (2007), os michês observados por Perlongher possuem um território que antes de tudo é mais um espaço de circulação do que de fixação. Os michês distribuem-se pelas avenidas exibindo seus dotes corporais viris sem necessariamente se aglomerarem em pontos, como fazem as trans analisadas por esta pesquisa. Para Perlongher À idéia de identidade, que define sujeitos pela representação que eles próprios fazem da prática sexual que realizam, ou por certo recorte privilegiado que o observador faz dessa prática, justapomos a idéia de territorialidade. Daí o “nome” dos agentes num sistema classificatóriorelacional vai exprimir o lugar que ocupam numa rede mais ou menos fluida de circulação e intercâmbios. Os sujeitos se deslocam intermitentemente nesses spatiu continuum e são passíveis de permanecer na mesma posição a respeito dos outros, ou ainda de mudar de posição. Essa nomenclatura classificatória – que tem alguma coisa de provisória, de mutável – alude a certa freqüência de circulação: o grau de fixação dos agentes a um “ponto” (um gênero, uma postura, uma “representação”, mas também a uma adstrição territorial) será determinante para estabelecer seus lugares no sistema de trocas. (PERLONGHER, 1987, p. 152- 153) Além disso, o autor continua a afirmar que essa territorialidade não pode ter limites geográficos, de gênero, de raça e de classe demasiadamente precisos. Os territórios dos michês flutuam e se nomadizam, pois o espaço nômade é localizado mas não delimitado com rigorosidade, acompanhando as tramas sociais que se reproduzem nas redes de sociabilidade. Percebemos que a análise espacial engendrada por Perlongher (1987) considera o espaço como um fator importante para a visibilidade da prostituição michê paulista, porém o autor atribuiu, com maior intensidade, a força da questão identitária sem considerar, de forma associada, o papel estratégico do espaço para manter, ressignificar e reproduzir essas identidades. Em Porto Alegre-RS Benedetti (2005) realiza um estudo entre travestis e transexuais que se prostituem no Centro e nas avenidas principais da cidade. Contagiado pelo debate queer e realizando uma crítica ao preconceito compartilhado pelos espaços da prostituição, Benedetti amplia a leitura socioafetiva de seu recorte espacial alcançando uma análise afetiva/espacial sobre o fenômeno da prostituição de rua. Para esse autor o território é o lócus do aprendizado Trans, nele estão compartilhadas as tecnologias espaço/gramaticais que sofisticam as transformações e produções dos gêneros queers. Para ele “o espaço da prostituição é um dos 135 principais lugares sociais de construção e aprendizado do feminino entre as travestis”, (BENEDETTI, 2006, p.114). Diferente de Perlongher (1987), Benedetti (2005) não realiza um cruzamento com teóricos que pensam o território, mas por meio de sua observação de campo apresenta a espacialidade das travestis de Porto Alegre como componente espacial positivo para as relações sociais. Visto muitas vezes como lugar de medo, violência, aglomeração de doenças, etc., os pontos de prostituição para o autor estão associados a uma rede imbricada de sociabilidades, positivando o uso da rua, como lugar do encontro e da interação social. É nos diferentes territórios de batalha que muitas travestis tiveram seu primeiro contato com outras monas, e que vêem concretizados os seus desejos de transformação. Normalmente são trazidas por outra travesti que já freqüenta o lugar e conhece as demais, o que lhes garante uma espécie de “proteção” na quadra. (BENEDETTI, 2005, p.114). Para Benedetti, é no território da prostituição que as monas aprendem métodos e técnicas de transformação do corpo, potencializando as formas mais valorizadas, disseminando os segredos das montagens, técnicas de maquiagem, formas de sedução, além da linguagem do bate-bate, também conhecido como ioruba ou bajubá. E continua Da mesma forma, é na quadra de batalha que passam a conhecer as formas corretas de andar no salto alto, de mostrar movimentos leves e suaves, de olhar de determinada maneira, de mover o cabelo ou andar à moda travesti. É na convivência nos territórios de prostituição que as travestis incorporam os valores e formas do feminino, tomam conhecimento dos truques e técnicas do cotidiano da prostituição, conformam gostos e preferências (especialmente os sexuais) e muitas vezes ganham ou adotam um nome feminino. Este é um dos importantes espaços onde as travestis constroem-se corporal, subjetiva e socialmente. É onde, enfim, aprendem o habitus travesti. (BENEDETTI, 2004, p.03). A leitura espacial de Benedetti apresenta o território como o nó central do habitus travesti. O autor percebe a importância do espaço para a manutenção das identidades que nele se reproduzem e, para além disso, destrincha a íntima relação entre sujeitos e espaço, delineando algumas estratégias utilizadas pelas Trans para se manterem e sobreviverem nos centros urbanos. Em outra perspectiva, com características mais integradoras, encontram-se os estudos de Pelúcio realizados em São Miguel Paulista-SP. A autora realiza uma 136 incursão noturna, compreendendo as lógicas funcionais de mercado nesse período do dia e como o centro possibilita a existência da prostituição à noite. Para tanto, apoia-se nas pesquisas de Perlongher (1987) e Benedetti (2005). Inicialmente, Pelúcio (2007, p. 53) nos chama atenção de que “estrategicamente, as travestis se posicionam numa esquina onde há um semáforo bastante demorado, assim é possível negociar programas apenas com olhares e gestos, além de ficarem sob a mira dos trabalhadores que lotam os ônibus”, demarcando a importância de espaços estratégicos para visibilidade trans. Durante a pesquisa a autora compreendeu que os equipamentos comerciais que funcionam à noite estão intimamente ligados com a existência da prostituição da rua. Não percebi, naquele momento, que este pensamento sinalizava que eu já começara a mapear os pontos de prostituição travesti, hierarquizando-os a partir de categorias como “capital corporal”, tipo de clientela, aparelhos urbanos disponíveis na região, espaços de lazer, motéis, drive-ins, bares. Todos estes, como espero mostrar, são elementos importantes para se entender a travestilidade, a rede que ela compõe, seus nós e as categorias classificatórias êmicas, que se associam também com a territorialidade. (PELÚCIO, 2007, p. 53) Ao mesmo tempo em que interliga a situação espacial dos equipamentos urbanos do entorno do território da prostituição de travestis e michês, Pelúcio compreende a territorialidade por eles demarcada simbolicamente como uma produção no nível discursivo, isto é, apresenta-se não como um espaço físico, mas enquanto espaço do código que se circunscreve em um determinado lugar e lhe dá sentido muito menos descritivo do que prescritivo. Aparentemente, a autora espacializa o território da prostituição para o campo simbólico, apesar de apresentar o poder das relações que co-existem no e para o espaço, percorrendo o mesmo caminho teórico apresentado por Perlongher (1987), amarrando suas questões de pesquisa ao conceito de identidade. Como se vê, os territórios e identidades se confundem pela significação que os sujeitos imprimem nos corpos: formas, músculos, saltos, olhares, gestos, práticas eróticas anunciadas e insinuadas nessa marcação. (PELÚCIO, 2007, p. 61) Porém, o posicionamento de Pelúcio frente à característica física do território está ligado à tradição do conceito disseminado pelas ciências políticas e pela Geografia Tradicional. Para ela não é a condição material que promove a 137 permanência e a produção das territorialidades da prostituição e sim as decorrentes relações de poder que fazem desse espaço um campo de forças, corroborando com a perspectiva de Souza (1995), caracterizando suas proposições na perspectiva integradora de análise dos territórios da prostituição pelos cientistas sociais. Diante desse breve panorama, esboçamos algumas estratégias que configuram a teia de relações de poder, ou o campo de forças que se mantêm e se revigora pelas ações territoriais Trans em Feira de Santana-BA. 3.4- Formação e apropriação do território do sexo em Feira de Santana: as mobilidades dos territórios. Os territórios são produções sociais que evidencia a dialética existente entre seus agentes formadores e reorganizadores. Como produção social, os territórios do sexo, do prazer e da erotização, espalhados em sua grande maioria nas áreas centrais das cidades, ou ainda, em áreas comercias de grande fluxo populacional, estão carregados de histórias que explicam a produção, intenção e processo de sua formação e as inter-relações estabelecidas com as outras esferas do cotidiano socioespacial. Localizado no coração da Cidade Princesa, o território da prostituição se expande e se retrai ao longo da Avenida Getúlio Vargas em cruzamento com as Avenidas J. J Seabra, Presidente Dutra, Marechal Deodoro e Senhor dos Passos, se revezando entre ruas estreitas e pouco movimentadas durante a noite no Centro. No Centro, as ruas, durante a noite, são espetacularizadas e o rarefeito movimento permite que sujeitos sociais execrados da vida normativa com base nos parâmetros heterossexuais ganhem o espaço público. Nas movimentadas avenidas centrais onde diariamente passam centenas de veículos e pedestres deslocando-se durante a exaustão das atividades comerciais diurnas, marcam outra lógica de comercialização nas mesmas ruas onde o trottoir é estabelecido. Durante a noite, e avançando na madrugada, encontramos no Centro da cidade inúmeros estabelecimentos formais em funcionamento, como farmácias, 138 lanchonetes, hotéis, postos de gasolina, pontos de táxis dividindo espaço com os trabalhadores informais, como os moto-táxi não credenciados e os vendedores de lanches da Praça de Alimentação. Junto a esses sujeitos sociais estão as travestis, transexuais e transformistas, aqui denominadas de princesas do sertão. O território da prostituição é composto pelas princesas do sertão que estão cotidianamente dando close81 nas avenidas centrais e movimentadas do coração da cidade e estas compõem o grupo insiders da pesquisa. Por sua vez os outsiders pertencem às outras espacialidades do cotidiano que complementam, diversificam e tensionam o território, como por exemplo, os clientes em potencial, prostitutas mulheres, polícia, religiosos e moradores do entorno. A potencialidade de ação dos “outros” do território da prostituição é minimizada com o desarticular da logística das relações mercadológicas das atividades comerciais do dia. Ao cair da noite o movimento dos transeuntes paulatinamente vai diminuindo e com o avançar do tempo, observamos a permanência dos interessados na noite boêmia concentrados em bares, lanchonetes, instaurando outra lógica espacial delimitada por outro campo de forças que flutua e se estabelece com força de persuasão durante a noite. Essa fluidez do poder caracteriza os territórios da prostituição como “flutuantes” ou “móveis”. Os limites tendem a ser instáveis, com as áreas de influência deslizando por sobre o espaço concreto das ruas, becos e praças; a criação de identidade territorial é apenas relativa, digamos, mais propriamente funcional que afetiva. (SOUZA, 1995, p. 88). A construção do território da prostituição Trans O território da prostituição feirense, ao longo de quarenta anos, flutuou em vários locais do centro da cidade desarticulando-se pela influência das mudanças do tráfego dos veículos devido à intensificação dos fluxos e ao aumento expressivo dos veículos particulares trafegando na cidade, como também pelos corriqueiros 81 Significa fazer poses, demonstrando sensualidade, marcando presença num lugar. Ter determinada postura para ser notada. 139 conflitos estabelecidos com os moradores “decentes” de famílias tradicionais de Feira de Santana associados com a ação da Polícia Militar. Por meio da coleta de informações primárias, resultante da aplicação de entrevistas semiestruturadas, compreendemos, a partir dos relatos, a articulação desse campo de forças [...] começou na década de setenta. Tinha muitas amigas minha, eu também naquela fase... novinha, conheci muitas que se vestiam de mulher, por sinal, tinha Antonio Silva, que fazia shows na praça, tinha Gloria, tinha Tina, todas elas se reuniam ali na praça dos Remédio, na praça Fróes da Mota, depois da praça Fróes da Mota, subimos pra praça Bernardino Bahia, que lá era mesmo a liberdade e todas elas tinham o seu ponto, e lá elas saiam com os clientes, ganhavam o dinheiro e não existia a máfia que existe hoje, ganhava na decência, porque os caras mesmo pagava, parava os carros, levava. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). A primeira concentração do território da prostituição Trans de Feira de Santana se estabeleceu por volta da década de 70 do século XX localizando-se nas praças do centro da cidade. A Praça Coronel Fróes da Mota possuía uma enorme importância cultural, histórica e política por concentrar arquiteturas históricas da cidade do século XIX, além de ser um espaço restrito e destinado às famílias nobres de Feira, conforme pode ser observado na figura 09. Figura 09 Casarão Fróes da Mota- década de 70 FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da Universidade Estadual de Feira de 82 Santana - UEFS 82 As imagens históricas que estão disponibilizadas nessa dissertação não possuem datação correta. Tais registros necessitam ser analisados para atestar o tempo histórico adequado. As imagens foram selecionadas e escolhidas com auxílio de moradores antigos que sinalizaram, por aproximação, a década da fotografia. 140 Próximo ao início da Avenida Senhor dos Passos, os equipamentos urbanos da Praça Coronel Fróes da Mota, na década de setenta, já apresentavam intensos sinais de desgaste arquitetônico. Com a fluidez e a importância regional que Feira de Santana possuía pelo comércio forte e pujante muitas modificações nas rotas de circulação e aberturas de novas avenidas contribuíram para o isolamento e decadência da Praça Fróes da Mota. De acordo com Oliveira (2004) a Villa Fróes da Mota83 era o equipamento mais suntuoso da Praça. Trata-se de um enorme casarão com arquitetura eclética84 construída no final do século XIX por Agostinho Fróes da Mota, um importante aristocrático vendedor de fumo e criador de gado da região. Com o crescimento da feira de gado, o palacete que se encontrava distante do núcleo urbano, atraiu outros moradores e comerciários que densificaram as atividades na Praça Fróes da Mota. Figura 10 Casarão Fróes da Mota: Propriedade da Fundação Senhor dos Passos, ano de 2010 FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. 83 “A fachada é composta por elementos variados em auto relevo, como dragões, festões e ramalhetes de flores, as letras EFM (Eduardo Fróes da Motta) que também aparecem nos detalhes das cortinas e na decoração interna das paredes; as colunas da varanda e as esculturas da entrada principal são em estilo neoclássico. Há, também, na varanda, painéis que lembram paisagens europeias; a sala de estar apresenta contornos em estilo rococó; a sala de jantar, um estilo que se remete à renascença francesa; a capela possui estilo neogótico; a decoração das paredes da sala de música contém imagens de musicistas famosos como Mozzart, Carlos Gomes, Chopin, Bettoven, Gound e outros.” (OLIVIERA, 2004, p 3-4). 84 De acordo com Oliveira (2004) trata-se do modelo arquitetônico que se consolidou na Bahia por volta de 1912 com a chegada de técnicos italianos no governo de J.J. Seabra para mudar a fisionomia plástica de Salvador. Tal manifestação arquitetônica foi disseminada em cidades do interior da Bahia, como a própria Feira de Santana, que já possuía destaque econômico e comercial para a balança econômica do estado. 141 Com as mudanças no desenho urbano de Feira de Santana, visualizadas na abertura das avenidas Barão do Rio Branco, que conectava o centro da cidade com o entroncamento rodoviário, a Praça foi perdendo sua importância. O comércio voltou-se para Avenida Senhor dos Passos que representava o mais novo ponto comercial à altura do título de princesa para Feira de Santana. A Rua Sales Barbosa, que se conecta à Praça Fróes da Mota, foi fechada, tornando-se uma grande calçada em que se concentram lojas de materiais para estofados e de vestuário, o que desvalorizou a importância histórico-cultural da Praça, e provocou, no seu entorno, a construção aleatória de inúmeras oficinas e casas de peças automotivas usadas. As mudanças infra estruturais da rua Sales Barbosa podem ser observadas na figura 11 que compara uma imagem retirada anterior a década de 70 e outra no ano de 2010. Figura 11 Rua Sales Barbosa: alterações infra estruturais pós década de 70. FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS Como a Praça estava praticamente abraçada pelo comércio, as relações sociais estabelecidas eram estritamente diurnas, favorecendo sua alta movimentação durante a noite por um grupo, inicialmente gay, que posteriormente começou a demonstrar o processo de montagem que até então estava restrito a ambientes fechados, nas ruas públicas da cidade, gerando tensionamentos com as 142 famílias que ainda residiam na praça. A praça estava povoada por algumas poucas Trans e [...] agora tinha os gay como eu, como Donna, como a Diana, como Lady, a Madonna, uma conhecida como Madonna, que era a João Marcos, entendeu? Tinha Billie, que era Billie Yi. Essas daí todas eram gayzinho. (Entrevista realizada com Brigitte Bardot em 14.01.2010). A presença travestida de sujeitos de sexualidades divergentes, reluzentes em roupas lantejouladas, com maquiagem exagerada e com cortes estilísticos sensuais provocou intensos e cotidianos conflitos com as famílias tradicionalistas da Praça, como fica evidente na fala de Brigitte quando cita que “[...] na Praça Fróes da Mota tiveram muito pessoal de família que se sentiram encomodados”. (Entrevista realizada no dia 14.01.2010). Acessada pela Rua Sales Barbosa encontrava-se a zona de amortecimento do território, a Praça Doutor Remédios Monteiro, popularmente conhecida como a Praça dos Remédios que encontrava-se com a arquiterura em situação de abandono como pode ser averiguado na figura 12 que compara uma imagem da década de 70 com a atualidade. Quando a polícia era acionada pelos moradores as Trans e gays desapareciam da praça por um período ou então se concentravam na estreita praça nos dias que as orações não eram realizadas à noite. Figura 12 Praça dos Remédios: Do abandono à recuperação FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS/ Oliveira, M. F de, 2010. 143 Situada na Praça dos Remédios, a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios é o prédio religioso mais antigo da cidade, finalizado em 1707. Sua única torre é recoberta por porcelanas procedentes de Macau e seu interior indica a suntuosidade dos templos católicos com traços rococós. A Praça dos Remédios também apresentava sinais de desvalorização e seu entorno, na década de setenta do século XX, já era predominantemente comercial. Algumas poucas famílias encontravam-se residindo de forma intercalada com as lojas na Rua Sales Barbosa, que por rede de solidariedade se manifestaram para o afastamento da “orgia” provocada pela presença das Trans e gays circulando nas ruas circunvizinhas. De acordo com Brigitte, nas mediações da Igreja dos Remédios existiam alguns bares e casas noturnas que agitavam o centro com a vida boêmia. As noitadas estendiam-se pela madrugada e em algumas vezes alcançavam as primeiras horas do dia seguinte. Essas casas noturnas de alta rotatividade influenciavam na manutenção da circulação de gays e Trans entre as Praças Fróes da Mota e dos Remédios, mesmo com os constantes conflitos públicos estabelecidos pela prostituição nas vias públicas da cidade. Ainda conectando as Praças do Centro da cidade a Rua Sales Barbosa desembocava na Praça Bernardino Bahia onde os equipamentos urbanos já eram predominantemente comerciais. Voltada para a Avenida Senhor dos Passos, a Praça Bernardino Bahia se constituía na maior vitrine de exposição da prostituição Trans de rua em Feira de Santana. A maior densidade das atividades comerciais da Cidade Princesa situavam-se na Avenida Senhor dos Passos e nessa avenida os fluxos de veículos e de transeuntes eram intensos. Como não havia residências na Praça, a Bernardino Bahia foi sendo apropriada como o território da prostituição e do sexo85, visto que recebia dois sentidos de fluxos de veículos, o primeiro oriundo da Avenida Marechal Deodoro passando pela Rua Sales Barbosa em direção à Praça Fróes da Mota e o outro sentido correspondia ao fluxo da ampliada e pujante Avenida Senhor dos Passos. Funcionando como um local de contorno e retorno de veículos, a Praça Bernardino Bahia oferecia condições infraestruturais favoráveis para a solidificação do território, ver figura 13. Situava-se numa avenida movimentada e menos propensa a ataques 85 Cabe especificar que nesse momento histórico, muitos gays circulavam por essa praça em busca de sexo. Essas ações não são classificadas como prostituição. Por isso temos, em simultaneidade, os territórios do sexo e da prostituição. 144 violentos de marginais e homofóbicos que circulavam durante as noites, que temiam a coerção policial concentrada no meio da Avenida Getúlio Vargas, simétrica à esquina da Igreja Senhor dos Passos, imbuindo o sentimento de proteção para quem circulava nas suas mediações e o sistema de tráfego de contorno e retorno da Praça favorecia o fluxo circular de veículos e dinamizava a propaganda do corpo e do desejo. Figura 13 Praça Bernardino Bahia: década de 70 e 2010. FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS/ Oliveira, M. F de, 2010. Conforme as declarações coletadas a Praça Bernardino Bahia [...] era comércio, não tinha residência, era comércio! Agora circulavam muito, tinha por sinal um clube que era Euterpe Feirense, que ficava na Rua Conselheiro Franco, que dali mesmo os carros subia para praça que tinha excesso, e o movimento ali era grande, e tinha os pontos, as esquinas. Cada esquina ficava gay, travesti, transformista, tudo lá [...]. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). [...] Ah, porque lá a liberação era total, lá elas ficavam nua, elas faziam desfile, lá mesmo elas faziam com os bofe, entendeu? [...]. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). Próximo à Praça Bernardino Bahia em confluência com a Rua Sales Barbosa situa-se o Mercado de Artes, uma arquitetura eclética construída no ano 1914 pelo coronel Bernardino da Silva Bahia que abrigou por décadas o comércio de secos e molhados. Constituiu-se como principal ponto de comercialização da grande feira de 145 gado que acontecia todos os sábados e segundas-feiras ao longo da Avenida Getúlio Vargas. Segundo Oliveira (2009) na década de 70 a prefeitura de Feira de Santana criou um projeto sanitarista visando limpar as ruas e avenidas da cidade que estavam superlotadas de ambulantes. Nesse projeto estava previsto a construção da Central de Abastecimento que culminou no fechamento do Mercado Municipal, atual Mercado de Artes, por volta de 1976. A desarticulação dos ambulantes nas calçadas das avenidas e ruas centrais e o fechamento do Mercado favoreceram a criação de um ponto fétido e insalubre onde as Trans e os gays da Bernardino Bahia poderiam manter encontros sexuais em vias públicas, ver figura 14. Figura 14 Mercado Municipal de Artes e Antiga Rua do Meio FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. O Mercado de Artes é cercado por ruelas estreitas de pouca movimentação, ocupadas densamente durante o dia pelos ambulantes que persistiam à nova ordem sanitarista determinada pela gestão pública. As barracas dos fotógrafos e alguns engraxates se espalhavam por estas vielas e suas barracas e assentos serviam como barreiras que escondiam o ato sexual à noite. Os bancos permitiam a concentração de pessoas nas ruelas escuras e pouco movimentadas entre a Praça Bernardino Bahia e o Mercado de Artes. Nesse sentido, o complexo de Praças86 do centro da cidade se constituiu na década de 70 até meados de 80 como o circuito da prostituição Trans e pontos de 86 A saber, Praça Fróes da Mota, Praça dos Remédios e Praça Bernardino Bahia, todas conectadas pela Rua Sales Barbosa. 146 encontro gays, compondo o território da prostituição e do sexo, ver mapa 08. A infraestrutura boêmia do entorno favorecia sua existência e permanência, visto que esses condicionantes estavam atrelados à ruinização das arquiteturas públicas presentes nesses espaços. Esses fatores contribuíam, por meio do discurso da violência e medo da cidade, para pouca circulação durante a noite e a consequente seleção de transeuntes no centro da cidade nesse horário. 147 148 Das Praças para as Avenidas: A tomada da Getúlio Vargas e Senhor dos Passos. Com a ampliação das avenidas centrais a partir das reformas urbanas modernistas que marcaram as transformações espaciais em Feira de Santana como a implantação do Centro Industrial Subaé87 na década de 70 do século XX, a prostituição Trans migrou mais uma vez, avançando por sobre a malha urbana da cidade, expandindo-se para as vias de intensa circulação de veículos. De acordo com Oliveira (2005, 2009), as Avenidas Getúlio Vargas e Senhor dos Passos foram ampliadas, favorecendo maior fluidez de pessoas e mercadorias no centro comercial de Feira de Santana, que estava atraindo, graças às intervenções estatais de desenvolvimento industrial na Bahia, inúmeras indústrias e um contingente populacional. Para Freitas (1998) isso gerou profundos impactos na urbanização da cidade, vislumbrado no inchaço habitacional e nas péssimas condições infraestruturais dos bairros operários. Em Feira de Santana, a industrialização foi importante fator de crescimento nas três últimas décadas (1970- 1990), contribuindo evidentemente para a evolução urbana, sendo possível concluir que se constitui também como principal elemento impulsionador da expansão. Não se pode negar a importância do CIS para o processo de industrialização da cidade e a capacidade que este dispõe de exercer atração populacional. (FREITAS,1998, p.163-4). A transição entre as décadas de 70 e 80 do século XX marcou significativas mudanças no cotidiano da cidade, que impulsionada pelas políticas desenvolvimentistas nacionais e estaduais freneticizou a vida urbana, rebatendo diretamente na boemia feirense e na ampliação da clientela para a prostituição Trans. A sensação de modernidade88 intensificou a abertura de casas noturnas na Avenida Getúlio Vargas, o que atraiu a prática do trottoir que se alongou por ruas e 87 Freitas (1998) estudou o processo de urbanização de Feira de Santana demonstrando a influência da implantação do Centro Industrial Subaé-CIS, verificando a pressão arquitetônica provocada pela atração desplanejada de inúmeros migrantes das cidades circunvizinhas e até mesmo de outras regiões do Brasil. Freitas (1998, p.166) afirma que “a cidade cresce, porém a qualidade da infraestrutura oferecida não é diretamente proporcional ao crescimento urbano”. Para a autora o principal objetivo do CIS era estimular a expansão de Feira de Santana como pólo secundário do Estado da Bahia, para complementar o eixo industrial de Salvador, a capital do Estado. 88 O termo modernidade está vinculado às políticas desenvolvimentistas empreitadas pelo presidente Juscelino Kubitschek e pelas políticas locacionais empreitadas pela aristocracia feirense, como discute Monteiro (2006). 149 vielas perpendiculares à Avenida. A figura 15 demonstra a movimentação diária em Feira de Santana na década de 80 na Avenida Senhor dos Passos. Figura 15 Sistema de transportes coletivos de Feira de Santana na década de 80. FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Bares, bingos, lanchonetes e boates intercalavam-se com casas de materiais de construção ou de vestuários e farmácias que estavam situadas nas bordas da Avenida, funcionando como muro urbano de proteção às mansões das famílias tradicionais que se escondiam e se protegiam da popularização do espaço público problematizados no movimento boêmio noturno que restringia a vida pública das residências ainda centralizadas, ver figura 16. [...] Olhe, eu sei que na década de 80, os primeiros travesti a fazer ponto na cidade depois da década de 70, foi Bonnie, que hoje em dia é falecida, ela começou fazendo ali na Avenida Getúlio Vargas, que por sinal, ali onde existe a praça de alimentação, entendeu? Eu tinha um ateliê de costura ali perto, e por sinal eu batizei aquela praça, como a Praça da Babilônia, que hoje em dia é Praça do Relógio. Ali elas se vestiam de mulher, iam prá lá, dali elas desciam a Getúlio Vargas até o Palace [Feira Palace Hotel], aí foi Bonnie Tyler, foi Antonio, que é a Kylie, da Kylie teve mais duas de Jequié, que foi a Tina, e teve outras que agora eu não tô conseguino lembrar o nome. Entendeu? Aí, daí, foi que surgiu essas, ai vem Marilyn, também nesse período também, vem Marilyn, ai daí dessas daí, teve as outras que já passaram a ter acesso [...] (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). 150 [...] lembro [...] de uma praça, que hoje é a praça de alimentação, que antes se chamava Babilônia, se reuniam ali na Babilônia e na [Avenida] Presidente Dutra, eram os dois locais, que eu lembro. (Entrevista realizada com Marilyn em 13.01.2010). Figura 16 A feira na Feira de Santana meados da década de 80 FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Paradoxalmente, as mesmas famílias que se trancavam e restringiam seu contanto com o novo urbano feirense, favoreciam a prática do trottoir ao longo das avenidas no horário em que a fiscalização moralista repousava e permitia as transgressões da monogamia e da heterossexualidade, demonstrando os mesmos mecanismos elucidados por Foucault (1987) pois [...] no início a sociedade feirense toda frequentava. Todo mundo ia ali, os homens se encontravam, os políticos, o pessoal da polícia, do fórum, qualquer lugar daqui dessa cidade, todos frequentavam. Não digo todos de uma forma apoteótica, todos ao pé da letra, pela frequência, que era muito grande, mas não estou dizendo que toda a população de Feira de Santana frequentava, tinha aquela procura bem maior antigamente. Quando eu comecei, não sei se era a minha presença, não sei se era por mim, por que saíam comigo, mas que iam lá procurar iam, não sei se saiam com as outras também, não posso lhe dizer, mas comigo saiam. (Entrevista realizada com Marilyn Monroe em 13.01.2010). Para Foucault (1987), a sociedade regulamenta os métodos de punição dos sujeitos criminosos da sociedade sem requerer, paradoxalmente, sua existência. No advento da modernização da sociedade com a disseminação e ampliação das atividades industriais e comerciais, outros métodos foram pensados para manter certa ordem nas relações sociais. Nesse contexto, nasceram algumas regras lógicas 151 para o funcionamento dos sistemas repressivos e punitivos, tal como a da idealidade, dos efeitos laterais, da certeza perfeita, da verdade comum, da especificação ideal, da individualização das penas. Diante da sofisticada rede de vigilância desenvolvida, Foucault (1987) especifica que a mesma sociedade permitiu a minimização das arbitrariedades, a desvantagem social e pessoal do crime, a modificação benéfica do indivíduo pela pena, divulgação da aplicação da pena e a perfeita relação entre a eficiência da lei e o custo de sua elaboração. Isso significa dizer que as Trans se constituíam em sujeitos criminosos por embaralhar e forjar um gênero mentiroso que deturpa a matriz heterossexual e além disso, desarticular as redes de poderes existentes nas normas e símbolos compartilhados pela sociedade feirense no que tange aos valores morais, disseminados na criação das famílias descentes. Porém, Foucault (1987) ainda continua afirmando que as instituições normatizadoras permitem a existência das transgressões e transgressores para que a disciplina se efetive. Observando o cerceamento do delito, os sujeitos internalizam de forma sofisticada, e muitas vezes abrupta, as normas legitimadas pela sociedade. Ao mesmo tempo em que o trottoir deveria sair das ruas, por ser uma prática mal vista pelas famílias de bem, os filhos e maridos das mulheres respeitadas se diluíam em prazeres entre as pernas e coxas ou por sobre o falo das Trans, que ocultavam essas práticas contraditórias acordados pelo pacto do silêncio89, que é pago, ao mesmo tempo perigoso e dissimulado. Essa afirmativa justifica a inexistência do território da prostituição Trans durante o dia. No turno matutino as moças e mulheres de famílias, juntamente com idosos e crianças circulam livremente pelas ruas, praças e avenidas da cidade. As disciplinas normatizadoras, nesse período, possuíam mais força e se processavam mais velozmente. Assim, a rua só deveria ser vivida pelas Trans durante a noite, para não constranger e não provocar conflitos presenciais com as unidades familiares que acionam os aparatos de vigilância, solicitando medidas de intervenção ao Estado e à polícia. 89 Railda Matos (2000), estudando a prostituição feminina em Feira de Santana em sua dissertação de mestrado nas Ciências Sociais, confirma essa estratégia de negação-permissão quando afirma a existência de um “jogo de faz de contas” no que se refere à proximidade e às proibições em portarias municipais sobre o funcionamento de cabarés na cidade. 152 Privadas da vida urbana noturna e visando não ter contato com as Trans feirenses, muitas famílias tradicionais esquivavam-se de sair e usufruir do espaço público no centro da cidade. As ruas do bairro da Kalilândia e das ruas transversais às Avenidas Senhor dos Passos e Getúlio Vargas possuíam movimento favorável, o que permitia a prática sexual, a pegação90 e os escândalos performáticos91 feitos pelas princesas do sertão, ver mapa 09. O convívio próximo à Igreja Senhor dos Passos e a circulação na Babilônia, atual Praça de Alimentação, tensionavam o território, e mais uma vez [...] o pessoal botaram até pra correr, a polícia! Porque elas tavam fazendo por de mais. Aí, elas saíram da Praça [...], e vieram pra Senhor dos Passos. Quando elas vieram pra Senhor dos Passos, vieram muitas de silicone. Entendeu? [As] daqui de Feira, que foi pra Espanha, pra Itália, como a Grace, como... outras que não vem na cabeça agora o nome. Entendeu? Que eu tô esquecido, aí foi onde elas fizeram a Praça e ali na Senhor dos Passos[...]. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). Na década de 90, os conflitos com os moradores, a igreja e a polícia militar se perduraram, porém as Trans persistiam em circular pelas esquinas e ruas do centro, cada uma localizada em seus cotidianos pontos, onde poderiam ser vistas, desejadas e cooptadas para o programa. Algumas Trans perceberam a importante localização viária da Avenida Presidente Dutra somada com a infraestrutura hoteleira para os viajantes que pernoitavam na cidade e expandiram o trottoir para as mediações da rodoviária, esquivando-se dos habituais embates com a polícia militar. Alguns dos conflitos com a polícia militar baiana remontam o uso inadequado do poder de vigilância. Alguns militares que não aceitavam a prostituição de rua realizavam sucessivas blitzs para intimidar e afastar as Trans do centro. Logo no começo, que eu comecei, há uns três anos que eu já tava lá na pista, aí apareceu uns policial perturbando a gente, querendo tirar da Senhor dos Passos, que a gente ficava lá na Senhor dos Passos, [e ele] querendo tirar a gente, agredia a gente e tudo. Porque a gente foi resolver, todo mundo reuniu e foi no fórum. Aí ele ia perder a farda, essas coisas, a gente falou que não precisava, que ele podia transferir pra outro lugar, aí transferiu ele pra Salvador, aí parou, eles não perturbaram mais. (Entrevista realizada com Sophia em 14.01.2010). 90 Gíria usual no meio homossexual que se refere à troca de carícias entre os sujeitos de forma intensa e erótica, não se constituindo no ato sexual, mas seu pré-anúncio. 91 Termo retirado da entrevista de Brigitte Bardot no dia 14.01.2010 quando ela citava que na praça “as bichas, ficavam loucas, tiravam as roupas, ficavam nua, era um escândalo para chamar atenção dos cliente”. Nesse sentido, o escândalo performático se refere a uma estratégia de conquista e persuasão dos clientes, como também nas brincadeiras realizadas entre elas no trottoir. 153 154 Por outro lado, algumas Trans, para manter seu status e beleza, não conseguindo angariar por meio do programa lucros favoráveis para a compra de roupas, maquiagens e calçados, roubavam ou ameaçavam92 quebrar o pacto do silêncio pondo em risco o desejo transgressor dos clientes, obrigando-os a pagarem a mais do que fora combinado. Por conta disso a polícia botaram [elas] pra correr! Porque elas tavam fazendo por de mais [...] dali da Prefeitura, até cá na Casa de Saúde Santana. E o assédio era tão grande, que acontecia muitas coisas que enquanto umas ia pra trabalhar normal, outras ia pra aprontar, aí foi quando a polícia tomou excesso e começou botando elas pra correr, aí quando, quando, botou elas pra correr, elas voltaram de volta pra Presidente Dutra, e polícia deixou elas hoje em dia em paz. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). Vias do sucesso, da exposição e da ausência militar: a Avenida Presidente Dutra Com o deslocamento das Trans para a Avenida Presidente Dutra, em meados da década de 90 do século XX, a Praça Bernardino Bahia permaneceu como ponto de encontro afetivo e sexual de gays. Os gays, segundo as informantes dessa pesquisa, eram menos discriminados que as Trans e circulavam com mais liberdade pelo centro da cidade. Outros pontos de encontro para a realização do ato sexual foram estabelecidos no coração feirense. As barracas dos camelôs situadas na Rua Sales Barbosa, sem funcionalidade comercial à noite, camuflavam as práticas sexuais que esporadicamente eram interrompidas pelos seguranças das lojas. A ladeira da Euterpe Feirense, localizada na Rua Recife, também permitia o mesmo esquema. Nas mediações do Centro de Abastecimento a abandonada Praça Dois de Julho, mais conhecida como Praça do Tropeiro, dotada de terrenos baldios, favorecia a circulação e o ato sexual que era estrategicamente combinado nas ruas movimentadas e concretizado em área de pouco movimento. 92 As ameaças além de verbais estavam acompanhadas por gestos masculinos como imposição de voz, alteração dos músculos buscando intimidar o cliente que resistisse pagar a “multa”. Para além disso, elas usavam armas brancas para consolidar o roubo ou a chantagem, a saber: giletes, navalhas, pequenas facas, tesouras e estiletes. 155 Para escapar da pressão exercida pela polícia e pelas constantes denúncias das famílias que visitavam o centro à noite, as Trans migraram para a Avenida Presidente Dutra, alongando-se por toda Avenida e ruas perpendiculares. A Avenida possuía uma série de atrativos espaciais que favoreciam a prática do trottoir, como por exemplo, a sua amplitude e largura, a concentração de hotéis e bares de alta rotatividade nas suas cercanias, o predomínio de casas comerciais e oficinas automotivas, a inexistência de postos de fiscalização da Polícia Militar e a ausência da circulação dos moradores do entorno. As Trans se concentravam em apenas um dos lados da Avenida no sentido a Salvador, priorizando os carros que circulavam em direção a BR – 324. Mas era na frente e dos lados pouco iluminados da Tyresolis, que as monas se aglomeravam para iniciar o trottoir. A Tyresolis é uma loja de peças para automóveis e suas paredes encontram-se sujas de graxa, óleo e tinta de carros. De fronte virada para Avenida, dotada de passeio largo, a Tyresolis consolidou-se como a mais nova vitrine do trottoir, ver figura 17. Figura 17 Avenida Presidente Dutra FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. Os passeios largos da Avenida serviam como áreas favoráveis ao desfile das princesas, vislumbrado na produção detalhada de suas roupas, cabelos e maquiagem. Espalhadas pelas esquinas ao longo da Presidente Dutra, as monas davam close sem encontrar os cotidianos conflitos vividos na Avenida Senhor dos Passos. 156 Com roupas sensuais atraindo os transeuntes, potencializadas pelas performances milimetricamente definidas em gestos precisos e erotizados, as Trans conquistam os motoristas de carros e caminhões, motoqueiros, ciclistas e pedestres, atraindo-os para as ruas transversais da Avenida, onde o acerto do programa poderia se realizar sem uma abordagem inesperada por parte dos moradores e da polícia. Contudo, a Presidente Dutra não se constituía num espaço de tranqüilidade. Segundo os relatos eram comuns os ataques homofóbicos que colocavam as monas para correr e se esconder em casarões antigos das ruas transversais à Avenida. poucas que me contam, como Marilyn mesmo que me conta algumas coisinhas assim por alto, Alicia também, Cindy que tá na Europa. Essas mais velhas que trabalhava na Presidente Dutra antigamente, disse que era muito babado, e outra Marilyn também que já até faleceu também, me falava também que era muita guerra também, que os homens jogava ovo, os homem dava tiro, os homens, essas coisas, perturbavam também. Não era igual a hoje, hoje tá até melhorzinho. (Entrevista realizada com Sophia em 14.01.2010). Na atualidade, a concentração das Trans na Avenida Presidente Dutra diminuiu em função do desaparecimento dos clientes, constantes vítimas de ameaças e assaltos, ver mapa 10. O exercício do trottoir exige das Trans uma norma territorial, que é mais funcional que afetiva. Na pista, o trabalho decente e higiênico, segundo as informantes, amplia a procura e aumenta a oferta dos serviços sociais, além de agregar elementos simbólicos, ligados a estética, que positivizam a prática do trottoir. Quando o contrário se estabelece, os clientes diminuem a frequência, implicando na desarticulação dos fluxos e ampliação dos rótulos de preconceito. De acordo com as informantes, uma Trans tem que trabalhar na decência e higienizada. Sophia afirma que [...] lá na Presidente Dutra mesmo os moradores falam dos travestis que roubam, os travestis que é assaltantes e roubam os clientes, os drogados, os travestis drogados, os travestis que não tem capacidade de pegar o seu dinheiro na moral, não tem capacidade de sair com clientes bons de Feira de Santana e de outros lugares [...].(Entrevista realizada com Sophia em 14.01.2010). 157 158 A descoberta da Avenida Marechal Deodoro e o retorno à Senhor dos Passos Na espacialidade contemporânea do território da prostituição das princesas do sertão, notamos duas grandes áreas de concentração desses grupos. Mesmo decadentes, algumas Trans, como Sophia e Catherine, mantêm-se fiéis a sua territorialidade na Avenida Presidente Dutra. Algumas das mais velhas93 migraram e se adensaram na Avenida Marechal Deodoro, o novo ponto de visibilidade e de trottoir Trans de Feira de Santana. Contudo essa nova expansão do território não se efetivou de forma tranquila entre as Trans, pois antes de ser um território Trans, muitos gays circulavam pelas mediações para encontros fortuitos e trocas de afetividades. A expansão para Marechal Deodoro é relativamente nova, produzida desde 2005 por um pequeno grupo de gays que resolveram se montar e estabelecer um ponto de prostituição andrógena nas ruínas do ponto gay do Mercado de Artes. A coleta de dados por meio da participação observante, da qual abusamos de forma imensurável para escrita desta dissertação, iniciou-se no mesmo período. Pudemos verificar ao longo de cinco anos a dinâmica da formação de um novo fragmento do território Trans na Cidade Princesa, com retorno ao coração da cidade. No início, a Praça da Bandeira, situada entre a Avenida Marechal Deodoro e a Rua Sales Barbosa, durante a noite, estava densamente povoada de gays, que cotidianamente sentavam nos bancos da praça socializando-se uns com os outros. A praça funcionava como ponto de encontro, paquera e como vitrine onde os rapazes heterossexuais, dentre eles alguns moradores dos bairros Rua Nova, Queimadinha e Baraúnas, além de feirantes, garis e trabalhadores informais do centro, circulavam, a pé ou de bicicleta, em busca dos gays da “Praça”. Geralmente, após uma conversa rápida, em que combinavam e determinavam critérios para o sexo, os transeuntes da Praça deslocavam-se para o fundo do Mercado de Artes ou para o fundo da Praça Bernardino Bahia para concretizar o ato sexual. Outras pessoas transavam nas barracas dos camelôs de 93 A ideia de velha entre as Trans possui íntima correlação com a palavra experiência. As Trans mais velhas são aquelas que conhecem intimamente o território e sua permanência possui um capital simbólico que é respeitado pelas novatas e pelas antigas. Quanto mais antiga, mais respeitada, mais ouvida e mais influente nas negociatas do e no território. 159 roupas e calçados na Rua Sales Barbosa, onde alguns gays concentravam-se para observar os casais se relacionando. Eram gays de todas as idades, inclusive crianças e adolescentes. Todos aventurando-se a ganhar a noite, em busca de parceiros sexuais para atos rápidos, tensos e eróticos, que finalizavam com a ejaculação de um dos parceiros ou de ambos. Nesse conjunto, encontravam-se cinco gays, recém-chegados na Praça e que desestabilizavam os gays mais antigos. Marcelo, André, Thyago, Vinicius e Paulo se encontravam cotidianamente na Praça para “caçar” e para colocar os papos em dia. A praça se constituía em um lugar de encontro, onde gays estabeleciam uma rede espacial de solidariedade, podendo viver suas sexualidades plenamente sem o cerceamento da família e das instituições normatizadoras. Para além dos rapazes hetero e homossexuais que transitavam pela noite feirense, também circulavam as Trans que subiam de suas casas rumo a Avenida Presidente Dutra para o trottoir. Paulatinamente, Marcelo, coordenando o grupo novo, atraia os motoristas e pedestres para prostituição michê-gay94. Perlongher (1987) realizou uma pesquisa em São Paulo sobre a prostituição viril, catalogando as relações sociais estabelecidas pelos michês com a sociedade de forma generalizada. Como resultado de sua pesquisa, Perlongher (1987) classificou seu grupo focal em: michêmacho, michê-bicha e michê-gay. O michê-macho compartilha com o michê-gay o recurso da masculinidade, se bem que no último caso a virilidade é expressa de forma menos estridente e se relaciona com homens heteros, enquanto o michê-bicha se relaciona usualmente com travestis, que em troca lhe oferecem proteção. Em depoimento, um michê demonstra a relação de dominação exercida pelos travestis na Avenida Paulista 94 Termo citado pelas entrevistadas e cotidianamente ouvido nas etnografias de campo. O michê-gay é o gay que se prostitui sem necessitar camuflar seus trejeitos homossexuais e se travestir de mulher para exercer essa atividade. Pelo contrário, na rua, quanto mais boyzinho afeminado mais atraente para um público homossexual. Vale salientar que a prostituição michê em Feira de Santana ainda ocorre de forma tímida e está concentrada nas mediações da Rodoviária e no Shopping Boulevard, onde garotos, oriundos de bairros populares, vendem o prazer masculino para homossexuais. Segundo Perlongher (1987), a atividade de prostituição viril, por excelência, vive escamoteada, sua camuflagem e discrição contribuem para seu funcionamento e manutenção. A existência desses garotos nesses lugares, diluídos no movimento de pessoas se torna quase imperceptível, somente aqueles que se mostram interessados conseguem capturar a performance do michê, que se insinua massageando freneticamente o órgão genital. 160 E o travesti é bem pesado, nem michê, nem malandro gostam de mexer com ele, porque travesti é violento mesmo, assim ele ganha respeito. [...] E os travestis dão cobertura à sua fragilidade. (PERLONGHER, 1987, p. 117). Ao longo das avenidas centrais, Marcelo e os “meninos da praça” saiam à noite dando closes afeminados, persuadindo os transeuntes, aguardando o convite para realizar o programa ou “fazer”95 como diversão. A partir disso os primeiros figurinos femininos, ainda alinhavados à mão apareciam timidamente, em sacolas simples e o riso se estabelecia entre os “meninos da praça”. Saiam de casa vestidos de garotos, carregando escondida a maquiagem, acessórios, calçados e roupas femininas e vestiam-se cedo, aos sábados e domingos, atrás do Mercado de Artes, ver figura 18. Figura 18 Ponto do trottoir da Avenida Marechal Deodoro com ênfase a banca de revistas Brasil FONTE: Oliveira, M. F de, 2010. Era com os ganhos da rua, isto é, com o dinheiro da prostituição, que eles investiam na produção de seu feminino, saiam no comércio popular comprando peças de roupas curtas e sensuais que seriam customizadas para estrearem na noite. A intensificação da busca do feminino se perdurou e as mudanças profundas começaram a se estabelecer. Os meninos da praça, perseguidos pelas Trans mais antigas que batiam ponto na Presidente Dutra, precisavam de um nome de guerra, 95 O termo é utilizado para se referir ao ato sexual. Assim, fazer significa, de forma sintetizada, fazer sexo. 161 precisavam passar pelo batismo de pista e encontrar seu outro feminino legitimado em outra identidade. Assim, Marcelo tornou-se Lauren, André se chamou de Joan, Thyago virou Ava, Vinicius se transformou em Rita e Paulo se afastou da praça por conflitos familiares, mantendo-se até os dias de hoje gayzinho. De acordo com Joan, Lauren [...] começou a vim pra dentro do Mercado de Artes, começava a se maquiar, ela se arrumava e fazia programa lá dentro, dentro do Mercado de Artes mesmo, foi quando eu conheci ela, aí eu perguntava a ela: “Ô mona por que você trabalha aqui dentro?” ela disse: “é porque aqui é mais confiável e aqui eu tô conseguino clientes”, que realmente dentro do Mercado de Artes dava mais clientes do aqui na rua. (Entrevista realizada com Joan em 15.01.2010). Para Joan, foi Lauren que iniciou a prostituição no novo fragmento territorial de forma tímida sem querer chamar a atenção das Trans mais velhas. Para isso atraia e atendia seus clientes atrás do Mercado de Artes, onde os gays realizavam a pegação. Como ainda estava não se montava, os relacionamentos encontrados por Lauren se confundiam com a pegação gay, protegendo-lhe do cerceamento das Trans consolidadas da rua. Eu creio que na época que cheguei foi Lauren, ela começou a trabalhar dentro do Mercado de Artes, ela nem trabalhava na pista, ela trabalhava dentro do Mercado de Artes, ela só passou a trabalhar na pista mesmo quando ela me conheceu e conheceu Rita, aí ela passou a ter mais confiança em trabalhar na rua. (Entrevista realizada com Joan em 15.01.2010). Atualmente, a Avenida Marechal se constitui no ponto de maior aglomeração das Trans de Feira de Santana. Sentadas na Praça da Bandeira ou do lado da banca de revistas na esquina da Avenida se encontram as princesas do sertão que batalham na noite feirense próximo ao tradicional ponto de prostituição feminina, o Beco da Energia e a Praça da Matriz. A pegação na Rua Sales Barbosa foi desarticulada com a presença de seguranças das barracas de camelôs, sua constante vigilância afastou os clientes e simpatizantes do beco, favorecendo a instalação de um ponto de distribuição e consumo de drogas atrás do Mercado de Artes. O mapa 12 sintetiza a espacialização do território da prostituição em todos os períodos aqui abordados. 162 163 164 CAPÍTULO IV Á noite, quando todos regressam a casa Saio eu, para a vida que me espera Levo na mala os sonhos perdidos E em meu peito a dor dilacera Sirvo-me da vida que tenho Tal como se servem de mim Sacio a fome dos homens No privado de um qualquer botequim Sou aquilo em que me tornei Desajustada da realidade da vida Valores que tinha, também vendi Em cada rua ou avenida Á noite, quando todos regressam a casa Saio eu, para a minha perdição Vendo sonhos na banca do meu corpo Na miséria da minha prostituição. Autor desconhecido Disponível em http://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=21288 165 4- FAZER A RUA: ENTRE A TERRITORIALIZAÇÃO E LUGARIZAÇÃO Ser Trans tem que ter sangue no olho. E pior que elas todas tem. Sangue no olho e coragem. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010) No capítulo anterior pudemos discutir como o território da prostituição em Feira de Santana se estabeleceu ao longo de quarenta anos, evidenciando os processos históricos que subsidiaram seus deslocamentos para outras partes do centro da cidade. Agora nos cabe discutir as estratégias realizadas pelas Trans para se territorializarem no centro e manter a persuasão frente à multiterritorialização que se reproduz entre as vias principais da cidade. Para tanto foi necessário mergulhar, minuciosamente, nas entrevistas e com sensibilidade capturar as estratégias que mantêm a territorialização Trans no centro, visto que esses fatores contribuem para normatização desses gêneros, pois quem transita no centro durante a noite sabe que as avenidas “estão cheios de viados posando nas esquinas de mulher”, conforme nos relatou Joan. Souza (1995) nos alerta que não existem territórios sem relações de poderes, é na busca de compreender essas relações que este capítulo se desdobra, numa tarefa de associar a etnografia com os relatos, gestos, sinais que foram observados em campo. No desenrolar do cotidiano vivenciado entre as Trans, em noites intensas e prolongadas, durante cinco anos, pude compreender que nas ruas centrais de Feira de Santana [...] o presente nos assedia, traz a marca dos itinerários às vezes dispersos, difusos ou mesmo concentrados, definidos pela vida cotidiana. [...] na rua encontra-se não só a vida mas os fragmentos de vida, é o lugar onde o homem comum aparece ora como vítima, ora como figura intransigente e subversiva. No movimento da rua encontra-se o movimento do mundo moderno. (CARLOS, 1996, p. 85). O movimento de transeuntes não para no Centro. As pessoas continuam conectadas ao coração da princesa do sertão. A rua banal que atrai centenas de pessoas diversas é uma vitrine, onde os corpos podem transitar para serem vistos, 166 desejados e adquiridos. A rua e sua pluralidade reservam as marcas da socioespacialização de atividades diversas com base nas práticas sociais, imbricadas nas relações de poder, que é mantida pelo controle e ao mesmo tempo por uma apropriação simbólica e afetiva das avenidas, ruas e becos pelas Trans. A rua territorializa-se e esse território que se desloca para avenidas centrais ao desarticular-se das práticas comerciais, “nada mais é do que a manifestação geográfica dessa territorialidade, através de seus limites, que se dão de modo diferenciado”, (RIBEIRO, 1997, p.96). Os territórios Trans estão diretamente associados à clientela local. Fica nítida a percepção do valor do espaço estratégico para o desenrolar dessas atividades. Não é qualquer rua, como também não se trata de qualquer esquina. Trata-se dos pontos centrais mais bem quistos da cidade. Por lá tudo passa em Feira de Santana e por lá nada fica despercebido. 4.1- Estratégias territoriais, dominação e normatização dos gêneros Trans Analisamos, segundo os dados coletados em campo, as principais estratégias que contribuem para a permanência do território Trans em Feira de Santana, destacando como tais processos se desdobram e quais agentes estão envolvidos. Para tanto, elencamos as estratégias respeitando o dialeto gay presente na oralidade de nossas informantes. Desta forma, as principais estratégias de dominação e normatização são: fazer a rua; o cotidiano; o vocabulário; o pedágio e/ou multa; a madrinhagem; as mais velhas, as mais fortes; o doce; armas brancas e a cafetinagem. 167 Fazer a rua: criando o ponto da prostituição Trans A primeira estratégia para a produção do território Trans está ligada à criação do ponto de batalha. Essa ação foi denominada pelas entrevistadas como “fazer a rua”. O ponto é produzido pelo constante uso de uma área que possibilita sua existência. Espacialmente, os pontos localizam-se em ruas e avenidas de considerável movimento tanto noturno quanto diurno e estão relacionados a um entorno dotado de equipamentos urbanos que contribuem para sua permanência. As Trans fazem o ponto aparecendo constantemente no mesmo lugar e gerando uma rede de sociabilidade com outras Trans e com os transeuntes, além dos donos e funcionários dos equipamentos urbanos do entorno. Promovem um constante jogo da sedução, insinuando-se para os motoristas de carros e ônibus, ciclistas e pedestres, visibilizando seus corpos transformados ou montados para a prostituição. As Trans que fazem o ponto adquirem respeito e subordinam as outras que se agregam a elas. Fazer a rua é um ato de coragem, é necessário resistir às simultaneidades do centro, sobretudo à ação persuasiva da polícia e dos moradores do entorno que contestam o uso pecaminoso da rua pela prostituição e alegam que as Trans desfilam seminuas ou nuas expondo seus dotes, além dos constantes barulhos. Para fazer a rua é necessário estar e ser belíssima. A beleza das Trans atrai olhares e desejos de clientes em potencial. Antes de qualquer coisa, para que a “rua” continue existindo é necessário trabalhar na “moral”, sem que ocorra nenhum tipo de violência com os clientes. Um ponto tranquilo, sem furtos e muito prazer é um lugar agradável e atrativo. De acordo com as entrevistadas, uma Trans para fazer o ponto Tem que ser educado, bonita, chamar a atenção dos clientes, quem faz a pista ficar boa, é cada uma por si, se chegar um cliente para você, você não vai deixar o cliente para outra pessoa, vai ficar para você lógico. (Entrevista realizada com Ava em 18.01.2010). A Trans que faz a rua ou faz o ponto torna-se conhecida e recebe o status de “velha”. Uma Trans velha é uma Trans experiente, não necessariamente ligada à 168 idade, mas às ações enquanto Trans. É aquela que tem mais tempo de pista, ou ainda, aquela que conseguiu se sobressair das outras dominando um leque de relações na rua. Ah, ela se diz mais carimbada, mais velha, mais conhecida, né? De lá do pedaço, é isso que elas argumentam. Que primeiro foram elas: “ah, porque foi eu que fiz esse ponto, fui eu que fiz essa rua, se os clientes vem aqui é porque eu fui uma das pioneiras a vim pra aqui”, aí elas alegam muito isso. Os pontos que ela fica, né? É se torna conhecida e eles passam a vê, ai vão a procura. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). Quando a rua é feita assina-se simbolicamente uma série de normas e símbolos que constituem o campo de forças no território da prostituição. Na gramática desse território existem regras que auxiliam a sua permanência, isso não significa que as transgressões do contratado não possam se efetivar. Pelo contrário, situações de transgressão de normas são comuns e são julgadas pelas mais velhas que poderão, a favor de sua situação, dar um parecer sobre o fato. Dentre as regras básicas estão A maneira lá delas pegarem os clientes, delas se portarem, entendeu? Como... sair com os clientes, arranjar os clientes têm as regras delas lá e elas aceitam e pronto e vivem bem. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). Preservar a integridade do cliente favorece a permanência do território, assim, o ponto é uma área-vitrine, onde os corpos estão expostos para serem consumidos temporariamente. Nas avenidas movimentadas poucos carros param, buscando maior impessoalidade e direção. Os clientes Dão o toque pra rua de trás, é assim que funciona, eles dão um toque pra rua de trás, aí a gente vai pra rua de trás e pega eles na rua de trás, porque a rua de trás é mais escondida, não tem ninguém para olhar e reconhecer o cliente. (Entrevista realizada com Sophia em 10.12.2009). A rua feita convida os furtivos clientes que de carro dão, muitas vezes, duas, quatro, seis voltas para tentar realizar uma abordagem que nem sempre se efetua, acelerando após algumas poucas palavras trocadas. Outros clientes já são conhecidos no ponto e eles sempre estão à caça das Trans novas. A rua também é o local da novidade, novas transformações, novas curvas, novas roupas e acessórios sempre são recompensadas por vários assédios para o 169 programa. De certa forma, ser nova na pista é ter muitos atributos Trans carregados de novidade, por isso, na pista as novatas roubam a cena. Elas estão cada vez mais bonitas e femininas, indicando que a tecnologia de fazer a transexualidade está se tornando cada vez mais eficaz e detalhista. As novas acabam refazendo a rua, bifurcando os fluxos dos transeuntes a favor de seu corpo e sua performance recheados de novidades. Elas estão, sempre, “batendo várias portinhas”, isto é, entrando cada vez mais em mais carros e realizando mais programas que as velhas do ponto, tencionando a pista e intensificando as relações de poder no território. As travestis que foram chegando foram se achando porque era nova na rua, “a vou bater penca de porta,” realmente, o que é novo o homem gosta, então no começo por ter travestis novatas, por ter travestis novas na rua, muitos clientes escolhem elas, do que as velhas. (Entrevista realizada com Joan em 15.01.2010). O cotidiano na rua como estratégia de apropriação A praça já foi praça... Hoje, aqui, é cada uma por si (Diário de campo realizado em 03.08.2009 a partir do relato de Claudia). Então, pra mim [a praça] é um lugar de encontro, não só pra trabalho mas como resenha também, pra poder ver elas. Sinto muito falta quando não vou à rua. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010). Tratando-se do fenômeno Trans na cidade, seria um equívoco acreditar que a rua somente é o espaço da transitoriedade, ou seja, as pessoas não fazem mais do que transitar por elas. Para nós, existe um mundo que só se revela e pode ser descortinado na rua, visto que esta se compõe de uma amálgama de energia infinita e que não se esvazia, mas se reproduz na contingência da vida. De acordo com Carlos (2007, p. 51) “nas ruas o presente nos assedia, traz a marca dos itinerários às vezes dispersos, difusos ou mesmo concentrados definidos pela vida cotidiana”. Para a autora, é na rua que fica evidente a dimensão espacial do vivido, em um determinado momento histórico, onde se pode revelar gestos, olhares, feições faciais que diferenciam as condições sociais de cada indivíduo. É na rua onde o 170 cotidiano implode, aflorando as pluralidades e os paradoxos da vida cotidiana, bem como as estratégias homogeneizadoras, além das normatizações impostas pelas teias do poder da vida social. De acordo com Carlos (2007), na rua a vida é marcada pelo movimento dado pelo seu uso. A rua é o caminho onde a sociedade executa e potencializa seus hábitos e costumes. Nas cidades médias, como é nosso caso, as ruas vão se transformando em avenidas, diversificando e complexificando seus usos. Apesar de sua dimensão simbólica, a rua também é local da reprodução do modo de produção capitalista. Para as Trans é da rua que eclode seus estímulos de sustento. Da rua tira-se o dinheiro para manter o circuito funcionando. Investe-se em alimentação, alugueis, saúde, vestuário e entretenimento. A rua funciona como um escritório onde cada parcela espacial do Centro é um gabinete específico, em que as profissionais do sexo atendem seus clientes e dinamizam os fluxos capitalistas. A rua É meu ganha pão, não pode parar, não pode, não pode acabar a rua, meu 96 ganha pão meu filho, cada aquézinho é um flash, tem que ter aqué, é meu ganha pão, meu sustento hoje a rua. (Entrevista realizada com Bette Davis em 15.01.2010). Apesar de localizar-se no centro da cidade, na confluência de avenidas largas e movimentadas, caracterizadas pela transitoriedade, a rua é o lugar do encontro das Trans. Na rua as Trans se reúnem, cotidianamente, não apenas pelo exercício da prostituição, mas pelos vínculos simbólicos afetivos que desenvolvem no cotidiano. Apesar de se constituir um campo de forças que a caracteriza como um território, a rua é um lugar, espaço onde as afetividades espaciais eclodem no convívio diário, costurando pluridimensionalidades do vivido. Segundo Carlos (2007), a rua apresenta alguns sentidos, dentre eles estão: de passagem, de fim em si mesma, de mercado, de festa, de reivindicação, de moradia, de domínio de gangues, de normatização da vida, de segregação social, de formação de guetos culturais e de encontro. A rua, local onde a as Trans se concentram, constitui-se, com base na visão de Carlos (2007), enquanto um gueto, pois lá sujeitos que compartilham de mesma identidade realizam uso e costumes disseminados, fazendo daquela parcela do espaço um uso único e inconfundível. 96 Significa dinheiro. 171 Além da mercantilização do sexo, a rua é o lugar do encontro onde as Trans socializam-se, mantendo seus laços de afetividade É, geralmente tem dias que eu vou pra rua, praticamente todos os dias eu vou pra rua, naquele pensamento de ver amigas, de bater papo, de brincar, de resenhar, claro na intenção de trabalhar, mais sempre isso, de ver as amigas que eu não vejo durante o dia, brincar, resenhar, nós temos sim outro lado, que é esse lado, se possível até ali naquele momento depois do 97 trabalho a gente sair, tomar algumas otins , ir pra praça resenhar, alguma coisa assim, eu penso desse lado também. (Entrevista realizada com Bette em 15.01.2010). Para Lefebvre (1992), a rua representa a cotidianidade na vida em sociedade. Ele desenvolve esse argumento apresentando a rua como Lugar de passagem, de interferências, de circulação e de comunicação, ela se torna, por uma surpreendente transformação, o reflexo das coisas que ela liga, mas vivo que as coisas. Ela torna-se o microscópio da vida moderna. Aquilo que se esconde, ela arranca da obscuridade. Ela torna público. (LEFEBVRE, 1992, p. 309). Na perspectiva lefebvriana, a rua não se apresenta enquanto espaço da transitoriedade sem a qual o encontro não é possível. Para ele é na rua que o espetáculo da vida cotidiana encontra seu palco de realizações, por isso mesmo, somos atores/espectadores e sujeitos da vida nas ruas. Conforme Lefebvre (1999), os grupos sociais se manifestam apropriando-se dos lugares, no curso histórico, e essa apropriação demonstra que o valor de troca é superado pelo valor de uso, pois o movimento cotidiano e os processos desenvolvidos pelos sujeitos do lugar revolucionam sua condição espacial. A rua para as Trans é um ponto aqui em Feira de Santana, é o ponto que eu mais gosto, é um lugar que eu me sinto bem, aqui que eu ponho o meu papo em dia, aqui que eu me distraio, é aqui que eu saio dos meus problemas, aqui que eu esqueço de muita coisa, eu começo a conversar, eu começo a bater papo, e aí eu vou me distraindo, aqui eu me distraio, aqui é o ponto específico que eu me distraio nas noites quando eu venho pra rua. (Entrevista realizada com Joan em 15.01.2010). Para Carlos (2007), com base em Lefebvre (1992, 1999), se a rua por um lado é o espaço da manifestação da diferença, por outro é lócus da normatização do cotidiano. O mapa 13 mostra os lugares que as entrevistas possuem identificação e 97 No bajubá significa bebidas alcoólicas ou mesmo cerveja. 172 se encontram para socialização. Nesse sentido, o território da prostituição co-existe na condição espacial de lugar, permitindo que diariamente as Trans reiterem sua transcondição98 com base na sua transnormatização, reproduzindo a ideia de um gênero que não terminou de ser produzido à luz do feminino. No lugar as Trans socializam as suas transformações. Sugerem os melhores estabelecimentos comerciais para aquisição de produtos de comum consumo. Além disso, seu cotidiano é marcado por uma sofisticada teia de relações sociais que reproduzem e reiteram a transcondição elucidada por Silva (1993), que se refere às montagens do feminino em corpos masculinos e usos diferenciados de acordo com novas performances de gênero reiteradas todos os dias, pois para Lefebrve (1991) as repetições também são obras, visto que há um mundo prático e sensível que se reproduz a partir de gestos repetidos, chamado aqui de transnormatização. Na rua as Trans conversam sobre tudo, inclusive teatralizam as expressões que elas utilizam durante o programa, dramatizando, até mesmo, as feições dos clientes. A rua é o espaço do entretenimento e das atividades lúdicas. conversamos sobre homens, dos programas que elas fazem, o que o homem pede pra elas fazer, o que o homem fez, como o homem tava gozano, elas gesticulam muito isso: “Ah, tava gozando assim, fazendo uma 99 cara engraçada que a maricona fez”, e agente rir muito dessas coisas. (Entrevista realizada com Greta em 15.01.2010). Ah, se conversava sobre muita coisa, muitas até faziam teatro, faziam shows, conversavam sobre tudo [...], diversas coisas. Não existiam só um tipo de conversa, elas iam mesmo pra... se divertirem. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). Para Lefebvre (1992) quando a rua cessa de ser o espaço do espetáculo a vida cotidiana perde o interesse. A partir do momento que a rua não é capaz de produzir a sensação de novidade, de entusiasmo, de aventura, do encontro, ela se esvazia em seu sentido, e a praça vai constituindo-se naquilo que Carlos (2007, p. 57) denominou de deserto lunar. As Trans têm permanecido juntas e distantes simultaneamente. As leis severas do mercado, com base na concorrência, têm engendrado um processo perigoso para o cotidiano Trans. Elas preferem ficar destacadas. Estar destacada, 98 Termo utilizado por Silva (1993). Nome dado a um grupo de clientes que curte fazer sexo com Trans. As mariconas são homens maduros, com idade próxima aos 40 anos, em sua grande maioria, ditos heterossexuais, que buscam prazer nos territórios de prostituição. 99 173 174 para as Trans, significa estar separada, distante das outras, realizando sua atividade profissional sozinha e pouco se responsabilizando com as violações da lei da rua. Entre as Trans a rua tem se tornado violenta. Algumas delas estão aprontando100. Antes sentia muita falta, agora não, se eu pudesse ter um trabalho bom, eu descansaria da rua, mas foi muito bom, agora que não tá prestando, por causa das viadas que vai aprontar, mas é bom, é uma diversão, uma curtição, é o show, abala, e é ótimo. (Entrevista realizada com Romy em 18.01.2010). Apesar das violações, a rua tem seu sentido profundo. O cotidiano Trans não é apenas o cotidiano das repetições e nem, somente, está caracterizado pelas coações e vigilância. Pelo contrário, o cotidiano Trans é subversivo, altamente criativo. Surge, segundo Lefebvre (1991), na essência do imaginário. O cotidiano na rua diversifica e potencializa as produções de gênero. O vocabulário Trans: o Bajubá Todos os pesquisadores da temática Trans registraram a ocorrência de um vocabulário específico, existente nas redes de sociabilidade Trans. De certo modo, esse vocabulário tem sido alvo de inquietações específicas para pesquisadores da linguística no sentido de compreender as raízes e os neologismos vernaculares presentes nessa comunicação. Há que se considerar que o Bajubá, também conhecido como Iorubá ou Batebate é compartilhado em um universo social mais amplo, alcançando também guetos afros e homossexuais. As palavras, em sua grande maioria, são oriundas de dialetos africanos e possuem baixa assimilação na sociedade comum. Poucas pessoas, fora do convívio Trans, compreendem o bajubá. Nesse sentido, a gramática Trans é uma estratégia territorial que segrega a compreensão da comunicação entre as Trans e os sujeitos outsiders, inibindo, por sua vez, o acesso a informações específicas do grupo. Uma vez impossibilitados de compreender as informações que fluem no convívio Trans, os outsiders não possuem acesso ao território, visto que essa unidade também é textual, (DUCAN, 1990). 100 Significa roubar, a mesma coisa que dar a Elza, azuelar, puchar. 175 De acordo com Benedetti (2005) o bate-bate é uma espécie de linguagem cifrada, com um vocabulário restrito porém dinâmico, que costuma ser utilizada pelas travestis quando em presença de pessoas estranhas ou possíveis situações de perigo. (BENEDETTI, 2006, p. 46). Durante a aplicação das entrevistas encontramos sérias dificuldades para compreender os relatos em virtude do uso constante de palavras do bajubá. Alguns desses vocábulos já eram de conhecimento em virtude da entrada no território em 2005. Nesse período, uma série de palavras foram sendo internalizadas e explicadas pelas Trans, o que nos favoreceu ao fácil trânsito para compreender essa linguagem. Passamos por um intenso processo de aprendizagem, e as explicações das palavras nos indicavam que já não éramos os outsiders, mas pelo relacionamento de pesquisa, paulatinamente éramos aceitos. Conforme Bette, o bajubá é um mecanismo que as Trans utilizam para se proteger do mundo heteronormativo e, além disso, serve para contarem situações sem que outras pessoas tenham acesso ao seu conteúdo. Já para Joan, essa linguagem é uma especificidade cultural do grupo, situando a influência dos rituais do candomblé na espiritualidade Trans. Para a transformista Joan as palavras oriundas do iorubá são aprendidas nos terreiros, onde muitas Trans fazem suas orações e prestam serviços semanais as suas mães ou pais de santo, visto que os rituais afros como a umbanda e o candomblé são religiões que não consideram a homossexualidade no campo do pecado. Pedágio e/ou a multa Outra estratégia muito corrente no território Trans é a utilização do pedágio, aplicado entre elas para cobrar o uso do território às novatas ou “fracas” que infringiram regras compartilhadas no e pelo território. O pedágio é um imposto que é repartido entre as trans mais fortes, visando aplicar uma correção na mona infratora. Se elas pagam pedágio? Pagam! Dividem o que ganham. E divide o que ganham com as mais velhas. É por conta desse domínio, mais esse 176 domínio, isso é uma coisa que elas vêm copiando de Europa, porque muitas daqui da cidade vai pra Europa, quando vêm, elas falam esses conflitos que há lá, aí a mesma coisa elas copiam aqui. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010) De acordo com Brigitte, o pedágio é uma ação importada, vinda dos países europeus que atrai centenas de Trans em busca do luxo, do poder, da riqueza, do glamour e da sedução. O metro quadrado da pista na Europa é muito valorizado entre as Trans globais. As Trans globais são aquelas que realizaram a emigração e batalham em outro país industrializado. Elas recebem grande importância no seu país de origem por terem conseguido ultrapassar os limites do território nacional. E para que isso ocorra seus corpos precisam estar turbinados de silicone que faziam de suas curvas, um corpo de sucesso e desejo. As Trans globais correspondem àquelas que se concentram nessas cidades de influência internacional, e estas, por sua vez, podem vir a ser as europeias. Se produzir enquanto europeia, não é para todas as Trans, os investimentos financeiros são altos e no metro quadrado brasileiro conseguir determinadas quantias é um trabalho desgastante. Um corpo Trans se europeíza quando retira das ruas europeias o dinheiro que suplantará no seu corpo próteses, dentro dos padrões da saúde. A europeização do corpo Trans É a transformação acurada e cara, feita dentro do sistema oficial de saúde, que traz a possibilidade de “se passarem por mulher”, acreditam. São poucas as que conseguem essa transformação tão sofisticada. Normalmente as que a alcançam são as tops e/ou européias. As primeiras são travestis que fazem filmes de sexo explícito e ensaios fotográficos de igual teor. São tidas pelas demais como “belíssimas”. [...] Mas nem toda européia é top, assim como nem toda top é européia. Pois para ser européia, como o título indica, tem que se ter vivido uma temporada atuando como prostituta lá fora. Desde os anos 80 as travestis descobriram a prostituição na Europa e passaram a atuar por lá. (PELÚCIO, 2007, p. 110-111). Em nosso caso de estudo encontramos uma europeia, pois conviveu mais de sete anos na Itália, no auge da emigração Trans para esse país. Marilyn é a única, das entrevistadas, que possui o respeito dado a uma europeia. Marilyn é super feminina, pré-requisito básico para conviver na Europa no ramo do trottoir. Não existem silicones em seu corpo, mas sobre ele situa-se o manto da elegância que caracteriza uma europeia. 177 Tem sim, com algumas acontece isso. Tem algumas que pagam alguma coisa. A mim, ninguém nunca me cobrou nada, mas eu também não pagaria, não paguei na Itália pra ninguém, vou pagar aqui em Feira de Santana, que é a minha cidade, acho até um despropósito, acho um absurdo. (Entrevista realizada com Marilyn em 09.12.2009). Ah, já vi várias histórias assim que outras pagavam pra ficar no ponto, pagava até pra fica na Presidente Dutra e tudo, é por tanto que a pessoa nem ta lá mais, a que pagava, os homens pipocou elas de tiro, elas se picaram tudo pra Marechal, foi uma confusão. Eu sempre to lá, de lá eu não saio e ninguém nunca me cobra e nem tão loucas de cobrar. (Entrevista realizada com Sophia em 10.12.2009). Tanto Marilyn quanto Sophia são velhas na rua, isto é, antigas e fortes, a elas o pedágio não se aplica por dois motivos: o primeiro é que muitas vezes o conflito entre as velhas é protelado por conta das redes de sociabilidades que elas possuem e as duas Trans em questão declaram trabalhar na moral, não desrespeitando as leis da rua. Sobre essa segunda consideração é necessário salientar que ambas são muito respeitadas pelas outras. Elas são corretas, como declarou Joan. A multa constitui-se num mecanismo que é aplicado tanto para as Trans, quanto para os clientes, sobretudo as mariconas. A multa existe em função da infração. Somente é aplicada quando uma Trans apronta na praça, rompendo os laços de solidariedade que mantêm seu universo de relações ou, no caso do cliente, quando ele rompe o acordo feito para o programa. A multa é uma espécie de sanção aplicada a Trans e clientes que infringiram as leis da rua e do programa ou ainda, não cumpriram com o contrato estabelecido no território da prostituição. O desrespeito às mais velhas culmina em multa entre as Trans. Essa multa é repartida entre as mais velhas no mesmo esquema do pedágio. Todas querem uma pontinha, salienta Romy. No caso do cliente a multa é aplicada quando ele não cumpre com o contratado. O contrato da prostituição é uma negociata que ocorre na pista, onde é estabelecido, o pacote do prazer. Nessa negociata se estabelece o que será feito e quanto custará. Caso o cliente não pague a quantia estabelecida ele é multado pela Trans. Todas elas são viris para se impor e recuperar seu aqué que foi combinado. A síntese da aplicação do pedágio e da multa encontra-se detalhada no fluxograma 01. Vale destacar que a multa varia de acordo com o tipo de cliente, sendo inflacionada. Trata de um jogo de subjetividade que demarca campos de valores que são relocados para os clientes. 178 O negócio é o homem, se você ver que o homem tem condições, você vai e multa ele, dá uma multinha básica, fala: “você pegou na minha neca, no meu pinto, eu quero tanto, você pegou e me chupou, eu quero mais “X”, e eles pagam né? porque você tá fazendo o seu programa. Porque é a multa, aí errado foi ele que quis mais coisas que o combinado. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010). Fluxograma 01 Síntese sobre a aplicação do pedágio e da multa FONTE: Participação observante no Território da prostituição. ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira, 2010. A entrada de uma novata na pista também culmina em uma multa. Essa multa pode ser retirada com a intervenção da madrinha, ou ainda, a madrinha pode lucrar recebendo essa multa por estar protegendo e dando livre passe à novata na esquina. 179 A multa foi porque eu entrei na pista e Romy me pediu o presentinho dela e Claudia falou que não deveria dá pra ela, que eu tinha que dá a Claudia que é minha madrinha, que foi ela que me botou na pista, então se eu tiver que dá eu tenho que dá a Claudia e não a ela, mais ela foi e me pediu, ela aproveitou um certo momento que Claudia não estava na pista e foi e me multou, e eu não vou pagar a ela porque eu acho que isso é cafetinagem, se eu tiver que pagar a ela eu vou ter que pagar a duas, então eu prefiro só pagar a uma que é o certo que me botou na pista. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010). Quando a multa não é quitada a ação é muito mais viril e perigosa. As Trans não perdem nada para ninguém, nem para elas mesmas. Elas acionam a rede de solidariedade, contratando marginais para dar um panquê101 nas monas multadas que não pagaram o imposto. Já vieram querer multar a gente, querer dinheiro, porque tava trabalhando na rua se achava no direito de querer cobrar, certo? Quando as pessoas não pagavam, elas mandavam marginais vir atrás da gente dar carreira, então quem salvava a gente era a polícia, certo? Agente chegava, dava queixa, dizia, aí eles chegavam pra a gente e dizia: “quando acontecer isso novamente, você me avisa porque isso é cafetinagem”. Eles falaram que trabalho, tudo é trabalho na vida, cada qual faz da sua vida o que quer. Mas em questão a cobrar, é cafetinagem. (Entrevista realizada com Joan em 15.01.2010). A madrinhagem Podemos considerar que o tratamento de inserção de uma nova Trans na pista está incluso numa relação íntima com a cafetinagem. Tanto Kulick (2008) quanto Pelúcio (2007) verificaram em seus estudos a instável fronteira que delimita esses fenômenos. Enquanto algumas Trans convivem em pensão de travecões102 subordinando-se a um sistema rígido de códigos e normas, as princesas do sertão estão na rua, sem vínculo de dependência com a cafetinagem. Algumas Trans 101 Significa levar uma surra, sofrer violência física. Termo utilizado para se referir a uma travesti velha (no que tange a idade e tempo de pista), por isso mesmo, forte e influente. 102 180 moram juntas e geralmente a mais velha na pista leva para sua casa a novata, que passa pelo ritual de batismo. Esse caráter espacial da casa da mais velha, pré anuncia a formação de pensão de travecão, como elucidou Pélucio (2007) e Kulick (2008), que não existe na realidade feirense. Porém, existem laços íntimos de afetividade entre as Trans. Elas são abraçadas, ao saírem do convívio familiar, por uma “forte” que lhe passará o ofício nu e cru da rua. A madrinha sempre é uma Trans “velha”, que possui respaldo territorial e um conhecimento espacial acurado do centro. Essa característica geográfica dota a “velha” como apta a amadrinhar, isto é, abrir os caminhos do troittoir para as novatas, além de ser aquela que conhece os processos de transformação do corpo. Muitas travestis orgulham-se de serem “mães” ou “madrinhas”, o que por vezes tem o mesmo sentido. “Amadrinhar” geralmente se refere a proteger e ensinar a viver como travesti, cabendo à categoria de mãe a iniciação propriamente dita. A noção de “mãe” entre as travestis está ligada, portanto, ao processo de transformação. (PÉLUCIO, 2007, p.244). No início dessa relação, a madrinhagem está diluída em dosagens imensuráveis de cafetinagem, em que suga muito do que é gerado como renda na rua pela Trans novata. Justifica-se pela proteção, pagamento de aluguéis e contas, ou até de multa. As novatas aceitam com clareza, passando, diplomaticamente, determinadas quantias para agradar a madrinha. Além dessa relação mercadológica, as madrinhas exercem um papel determinante para a criação do gênero. Suas dicas facilitam a montagem do corpo e a produção do feminino. À mãe ou madrinha cabe ensinar à sua filha as técnicas corporais e potencializar atributos físicos, a fim de se tornar mais feminina. Ela ensina tomar hormônios, sugere que partes do corpo a novata deve bombar quantos litros colocar. Indica a bombadeira, instrui quanto aos clientes sobre as regras do pedaço. (PELÚCIO, 2007, p. 44). a a e e Numa perspectiva geográfica, a madrinha é aquela que se territorializa no ponto e emana poder influenciador na rede de sociabilidade Trans. Ela conhece os espaços e suas lógicas de funcionamento, seu olhar é esquadrinhador e determinante para a compreensão dos conflitos espaciais. A madrinha é antes de tudo um individuo forte em quem as novatas se apegam para compreender as 181 lógicas territoriais da prostituição, além de macetes para se relacionar com sucesso com marginais, policiais e as outras Trans. Para ter uma madrinha é necessário arranjar uma dona, uma “velha”, uma que já conheça o pedaço que tem os ponto. Entendeu? Pra botar elas lá. [Depois] as novatas, simplesmente ela tem que se virar. Entendeu? Agora [a madrinha] vai e fala com as outras, fulana vai ficar aqui, vai fazer de hoje em diante ponto por aqui. Só declara isso, ai as outras tem que aceitar. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). A madrinha é feita pela procura. Ela não se predispõe a amadrinhar, pelo contrário, ela amadrinha por solicitação. A novata procura uma forte e realiza o convite. Durante o período da resposta, a Trans forte observa o comportamento da novata, seguindo um criterioso padrão de avaliação. As aprovadas são batizadas simbolicamente pelas madrinhas, estreitando os laços de solidariedade que perduram, segundo Benedetti (2005), por longos anos, mesmo quando a Trans se forma e fica independente. Eu pedi a Claudia pra que pudesse me acolher aqui na rua por alguns tempo, imagine, e tô até hoje, graças a Deus. Pedir pra Claudia me acolher aqui na rua pra que eu pudesse pelo ao menos pagar algumas coisas que eu tava devendo em Amélia Rodrigues e decidir e tô até hoje aqui, então digamos que eu vim pra rua por motivos financeiros. E hoje eu lhe digo uma coisa, a rua dá e não dá, mas eu gosto entendeu? E pra sair só se eu achar alguma coisa que realmente me dê. (Entrevista realizada com Bette em 15.01.2010). Uma amiga minha que me falou, eu nunca tinha feito pista na vida, ela comentou sobre Claudia, falou assim: olha Elizabeth porque você não trabalha na Marechal, ali no correio, aí eu falei: ah, eu não sei onde que é não, ela me indicou o lugar certinho, aí eu fui, quando eu fui, eu conversei com Claudia. Ela falou: não, você pode vir pra pista, eu vou ser sua madrinha de pista, mais quando eu logo cheguei, a Marlene tava na rua, aí a Katharine disse: “aqui não tem mais lugar pra viado nenhum”, mais eu e Claudia foi conversou com ele, ele falou que eu poderia ir. Então ela se tornou a minha madrinha de pista, mais no que as outras falou não ocorreu nada. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010). Ai comecei indo, uma amiga minha, ela ta até na Itália, Gloria, ela tá na Itália, ela é até minha madrinha de pista. Aí ela foi me falando como era e como não era, era um pouco perigoso, também não era, era bom também, ganhava um dinheirinho bom, aí comecei indo, coloquei uma saia, um bebyluquizinha, cabelinho chanel, eu tinha um cabelo chanel, aí fui indo. Além disso existe a proteção também, pra ela proteger e tudo. Mas, só que já era uma pessoa conhecida das outras, eu já era conhecida, moro em Feira, já nasci em Feira de Santana, aí não tinha problema nenhum não. Só uma que implicou um pouco comigo assim, mas depois num comecei a sair 182 com muito cliente, muita coisa. Aí ela ficou um pouco zangada, mas depois acostumou, não ligou mais. Eu escolhi porque eu gostei muito dela mesmo, aí eu fiquei assim, com muita amizade com ela. (Entrevista realizada com Sophia em 10.12.2009). O fluxograma 02 apresenta a síntese da rede de madrinhagem composta pelas Trans que participaram dessa pesquisa. Vale salientar que algumas das mais velhas de pista não declararam na entrevista o nome de suas madrinhas. Mesmo assim, foi possível cartografar a teia de relações de poder dessa estratégia territorial. Fluxograma 02 Rede de madrinhagem entre as Trans pesquisadas FONTE: Participação observante no Território da prostituição. ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira, 2010. 183 As mais velhas, as mais fortes De acordo com Sack (1986) a territorialidade se efetiva a partir da influência política que determinados grupos ou pessoa possuem em dominar uma determinada área efetivando seu território. Na perspectiva de Sack (1986), para que ocorra a territorialidade, é fundamental que cada indivíduo tenha consciência da sua participação política no território, como também da necessidade de sua integração em redes de solidariedade nele. O autor define, por essas observações, a territorialidade como sendo uma tentativa, do indivíduo ou do grupo, de afetar, influenciar ou controlar pessoas, ações, decisões, fenômenos e relações políticas. Para além disso, acrescentamos as relações culturais. A territorialidade é a principal forma espacial de tomada de poder social e seu uso tem se apresentado de forma cumulativa no decorrer da história (SACK, 1986). O controle no território da prostituição é disseminado, de forma antagônica, e muitas vezes complementar, pelas Trans mais velhas. Seu tempo de batalha as qualifica no campo de poder e de influência. A mais velha é aquela que possui experiência e respaldo espacial. Ela conhece e reconhece os pontos de prostituição, tanto as suas entradas, suas saídas quanto a velocidade da fluidez dos processos que ali se desdobram. Geralmente as mais velhas são as que fazem a rua e elas são madrinhas de várias Trans que batalham no mesmo ponto. Esse vínculo estratégico também gera sentimentos de positividades. As mais velhas são respeitadas e cultuadas pelas mais novas. As mais velhas possuem uma rede de solidariedade ampla e uma experiência Trans que é considerada no território. As mais velhas livram as novas da prisão policial, responsabilizam-se quando alguma afilhada vai presa, ou ainda as instruem para conviver determinado período encarceradas. São as mais velhas que normatizam o território, delas fluem as simbologias, códigos, normas que regem o funcionamento do território das quais as novatas estão submetidas, porém, nunca isentas de produzir as subversões. Quando eu fui para a pista eu fui como gay, primeiro eu fiz amizade com a que era cabeça da rua, hoje em dia eu moro com ela, vou para a rua tranquilo coisa e tal. [Minha amiga com quem moro] é uma das fortes da rua, as cabeças da rua. Em segundo lugar no quesito a mais forte pelo que 184 103 eu vejo é a Claudia que está “viajando” . Fora isso tem uma pessoa que domina, só que essa pessoa hoje está com um pouco com pena das monas na rua, ela quando manda para não subir na rua, viado não sobe mesmo, porque se subir ela bate, se não bater manda. Isso está de acordo com as leis da rua, das forças delas mesmas, da norma, se ela falarem para não roubar, não é pra roubar. (Entrevista realizada com Ava em 18.01.2010). Não existe uma “dona da rua”, as mais velhas fazem esse gerenciamento do território. Na ausência de uma o poder da outra se expande, gerando, muitas vezes, uma série de conflitos entre as afilhadas, temporariamente, sem madrinhas. Estas devem se render ao domínio da mais influente, ou seja, das Trans mais velhas que ainda permanecem na rua. O que ela disser está dito e seu pedido deve ser realizado. As mais velhas, mandam! E ali as mais novas têm que respeitar. Quando a mais velha fala, você baixa a cabeça e só escuta, não dá nem um A, nem um B, nem um C, você só fica escutando, não vem ninguém. Realmente quem é mais velha pode mais. A experiência é importante na pista, porque se parar um carro e você for e ela disser: “não, deixa que eu vou”. Você tem que deixar porque ela é a mais velha, não pode cortar o cliente dela. Tipo um cliente que vai passar na pista e ela já vai sai com ele, você tá indo mesmo assim, mais ela manda você parar pra ela, você tem que obedecer. Mesmo que o cara lhe chame, ela diz: “volte que é meu cliente”, você tem que obedecer, porque ela tá ali há mais tempo. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010). O poder das mais velhas é assegurado pela amadrinhagem e são elas que permitem a entrada de novatas no trottoir, ver fluxograma 03. Sem essa permissão a entrada às vezes é possível, porém é mediada por uma série desgastante de exclusão, reprovação e rejeição que com o tempo são superadas até a permissão ser concedida. Até isso ocorrer as mais velhas procuram boicotar a mona invasora enviando-lhes panquês ou ainda fazendo máfias104. Hoje elas pra poder se travestilizar, ou se transformar e se prostituir, elas tem que falar com as “poderosas” hoje em dia lá do centro, como Romy, como Claudia, tem que arranjar madrinhas. Entendeu? Porque se não tiver madrinhas, elas não fica, elas escurraça, elas botam pra correr. Elas agride, elas agride as outras, se por sinal até mata ou fura. Eu sei que uma das 103 Nesse período presenciamos uma cena forte de azuelo na rua. Azuelar é roubar. Claudia tinha acabado de assaltar um cliente, e eles brigavam dentro do carro desgovernado em alta velocidade. Ela conseguiu fugir e no outro dia foi capturada pela polícia. Claudia foi presa. Para preservar essa informação Ava preferiu afirmar que ela estava viajando, soletrando cada letra da palavra inferindo outro contexto para a mesma. Esse posicionamento de Ava nos faz lembrar que existe uma norma entre as novatas e velhas: a norma Trans, como um mecanismo que acoberta situações desfavoráveis para elas. 104 A máfia é uma estratégia territorial para minar o poder, influência de outra Trans. A máfia é programada. Ela serve para dar um aviso de violência para as Trans que incomodam as fortes. 185 poderosas mesmo é Romy, tanto na Presidente Dutra, como na Marechal, como em outro lugar, Romy é uma das principais, [para se prostituir] tem que se falar com ela. Elas domina elas!... Tem que aceitar, porque se elas... se não tiver o aval dela, não fica, porque ela bota pra correr, ela arranja “meios” e bota pra correr, não aceita. “Meios” de arranjar homens que ela têm, capangas. Entendeu? E bota pra correr. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). Fluxograma 03 Hierarquia de influência na rede de sociabilidade Trans FONTE: Participação observante no Território da prostituição. ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira, 2010. As mais velhas sentem-se no direito de preservar a rua, pois é desse espaço que sua vida se reproduz. Da rua é tirado todo o sustento. Elas precisam rebolar, se insinuar até conseguirem transar para ganhar o dinheiro dos gastos mensais com roupas, saúde, alimentação, entre outras coisas. Uma rua desorganizada é uma rua sem limites de ação. Tais limites são atribuídos pelas mais velhas. Elas determinam quando a rua se estabelece e quando ela passa a funcionar. Elas podem aplicar o pedágio ou a multa nos clientes e nas Trans que batalham no centro. 186 A gente mais velha tá deixando um mundo maravilhoso pra elas, mas elas não tá sabendo chegar, e têm que saber e se elas continuaram assim, não sei se vai chegar meia idade. A gente que é mais velha exige respeito, eu como sou mais velha, exijo respeito, mas nem todas dá, quando não apronta na minha frente, apronta por trás, mas se elas aprontam um dia elas vão pagar, não posso fazer nada... é a lei da rua. Se eu pudesse consertar a lei, se fosse há três anos atrás, seria maravilhoso, que não tinha essas coisas. Antigamente tinha minhas amigas, as mais velhas, uma tá 105 morta, a outra tá “viajando” , e outra ta viajando na Espanha. Agora a pista virou uma zona, ninguém manda, nem sou respeitada, tem quem manda não. A gente agia como deve agir. Eu não vou sair da rua, porque uma roubou, eu não vou pra casa, ou ela me dá uma ponta, ou as outras pra a gente ir embora, pra que a polícia como antes perturbava, não perturbar mais, então a gente, todas tinha que ir embora, e elas ladrona dava uma pontinha sim, mas nada obrigado. (Entrevista realizada com Romy em 18.01.2010). Fazer-se forte é um ato de coragem, para que isso ocorra é necessário conflituar com as mais velhas. Para receber esse respaldo é necessário mostrar determinação, sendo preciso ter “sangue no olho” como nos afirmou Brigitte. As marcas nos corpos de ferimento, sobretudo de cortes de navalha, demonstram o quanto as Trans conflituam e reproduzem um esquema perigoso de violência, mas necessário para potencializar a produção de seus gêneros. Eu já tava forte já, eu já tava conhecidíssima mesmo, já briguei e tudo, já fui cortada no braço, cortei elas também, aí elas soube que eu não me deitava, que eu era retada também, aí pronto elas abafaram o caso e me deixaram em paz. (Entrevista realizada com Sophia em 10.12.2009). As mais velhas são as divas da rua, elas possuem a fama de estarem na prostituição mais centralizada da cidade de Feira de Santana e desejam ser respeitadas pelas novatas em cada metro quadrado que corresponde a seu território de batalha. Algumas vezes o conflito culmina em violência entre as Trans que saem aos tapas e canivetes, exacerbando suas masculinidades em corpos feminilizados. Na maioria das vezes elas encomendam o doce aprontando a máfia na rua para mostrar o quanto têm influência na rede de marginalização de bairros periféricos da cidade, retribuindo a violência realizada por delinquentes com dinheiro, sexo e drogas. Não é nem a dona, não é nem ser caso de ser a dona da rua, é que ela é uma bicha mais velha na rua do que a gente, e ela tem poder, tem fama na rua de fazer e acontecer entendeu? De fazer acontecer. Então não é nem questão dela ser a cafetina, de cobrar pra a gente, é porque ela tem poder 105 Como já foi dito sobre a ética Trans, Claudia foi presa. 187 na rua, ela tem. Ela em si, é uma pessoa fraca que não aguenta com nada, mais pela fama dela pelo que ela já fez, eu acho que as pessoas têm medo, eu não tenho medo em si dela, eu tenho respeito a ela. (Entrevista realizada com Greta em 15.01.2010). Mandando o doce: susto, medo e sangue A violência também é uma estratégia para manter o território. Ao contrário do discutido por Arendt (1994), seu entendimento deve estar ligado à concepção de influenciar e dominar as outras Trans por ações que as intimidem e garantam a dominância das mais velhas. O doce é um tema muito discutido na literatura que estuda a socialização entre travestis. Porém devemos registrar um duplo significado da palavra doce no meio Trans. Ao falarmos que estamos mandando um doce, estamos tratando do envio de marginais para escorraçar, bater, espancar ou matar uma Trans por questões conflitantes. Quando uma Trans diz que passou o doce, está tratando da AIDS, ou seja, de sexo inseguro com possibilidade de passar ou contrair a soropositividade. Sobre a questão do tema AIDS, as Trans acreditam que essa é uma questão inevitável para quem realiza programa, pois correm o risco de uma camisinha estourar ou ainda se submeter a um sexo desprotegido para atender a vontade do cliente desavisado que paga mais caro pelo programa de risco. Estamos tratando aqui, do doce no sentido da ação violenta de marginais orientandos pelas Trans e não pelo viés da saúde pública tratado por Pelúcio (2007) em sua tese de doutorado. Esse viés do doce também foi discutido em sua tese para construir uma visão do cotidiano Trans para o leitor. Aqui exploramos o doce como uma estratégia violenta que se reproduz no território de análise. De acordo com Pelúcio (2007, p. 32) “‘Mandar um doce’ para alguém, por exemplo, é armar uma cilada, provocar uma situação desagradável e/ou violenta como está sistematizado no fluxograma 04. Prossegue exemplificando que A cafetina pode até vingar a morte de uma de suas “filhas”, ou “mandar um doce” para alguém que está perturbando a ordem do “seu pedaço”, mas não 188 106 evitará que a travesti leve um tiro, tome uma facada ou sofra uma ‘curra (PÉLUCIO, 2007, p. 222-223). ’ Fluxograma 04 Trama e agentes envolvidos no Doce FONTE: Participação observante no Território da prostituição. ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira, 2010. Mandar um doce é um evento comum na praça após uma acalorada discussão entre Trans ou brigas. O doce sempre vem para aquelas que infringem as normas da rua servindo para reiterar o poder que essas Trans possuem no território. Em entrevista Ava exemplifica que se você ficar me devendo dinheiro e não me pagar, tipo assim, 5, 10, 15 reais e se eu conhecer algum moleque ou marginal babado, ou se não conhecer, eu posso pagar para ele lhe dar um tiro ou lhe dar uma facada, ou até eu mesmo fazer isso, mas não é o meu caso. Só se a bicha ficar devendo e não pagar. Vamos supor que de dois em dois meses acontece um doce, uma balinha na praça. (Entrevista realizada com Ava em 18.01.2010). A dívida em dinheiro não é o único motivo para o envio de um doce, existem vários agravantes que favorecem essa tomada de atitude, inclusive o jogo de beleza. [As Trans] encomendam doce porque o doce são as agressões. O doce quer dizer é agressão dos machos, das bichas, é os capangas, isso é o doce que elas chamam, vamos dizer: espancar, bater, atirar, furar, aí elas 106 Significa apanhar e sair corrida do lugar. 189 chamam: ah, fulana não se incomode, não que fulando vai lhe dar o seu doce, vou mandar fulano trazer um doce pra você, aí elas já sabem o que é um doce, né? (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). Ser bela na pista é acirrar a concorrência no trottoir. Compor-se bonita é provocar as que estão em estética desfavorável, e para destruir a beleza ou espantá-la o doce é um estratégia eficaz. Quando as Trans são de outras cidades e começam a batalhar na rua retirando os clientes das antigas elas se tornam vulneráveis ao doce. Greta, em entrevista nos relatou uma situação que viveu quando saiu de Amélia Rodrigues para batalhar nas ruas de Feira de Santana. Romy não gostou da minha presença. Tratou bem na hora, mas sempre por trás ficava falando que ia me tirar, eu e Ingrid, que ia fazer máfias, ia manda homens subir pra tirar a gente da rua e que agente não ia fica em Feira de Santana e pelo fato de eu e Ingrid como a gente não roubava, a gente saia, pelo fato da gente sair muito com mariconas finas que tinha dinheiro, então elas não admitiam, elas não aceitavam, elas não gostava pelo fato delas roubarem. (Entrevista realizada com Greta em 15.01.2010). Quem manda o doce sempre espera o retorno de outro. Dessa forma uma velha procura não mandar doce para outra, visto que ambas possuem muitos marginais conhecidos, como nos relata Sophia. Acontece muito de elas mandarem os moleques bater essas coisas. Mais elas não manda pra mim porque elas sabem que eu moro aqui na Queimadinha, tenho muito conhecimento com marginais, essas coisas aí elas amedrontam um pouco. (Entrevista realizada com Sophia em 10.12.2009). Um acessório do kit de proteção: o uso das armas brancas Pau, pedra o que tiver pela frente. Existe navalha, existe bisturi. E... até faca elas leva. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010). Compreendemos como arma branca todo e qualquer objeto simples que serve de arma, para a defesa ou ao ataque, com geometria pontiaguda ou lâminas, tendo a capacidade de perfurar ou cortar. Dentre essas armas, as mais usadas e 190 encontradas nas bolsas das Trans são: prego, parafuso, agulha, tesouras, chave de fenda, canivete, navalha e vidro. Também são consideradas armas brancas outros objetos simples usados para golpear, perfurar ou cortar, tais como: pedaços de madeira, pedaço de aço e pedras. No território da prostituição é comum ocorrer situações de violência. Por isso as Trans justificam o uso de armas brancas para se protegerem de marginais que transitam no centro e dão voz de assalto e para, além disso, com essas mesmas armas, intimidar o cliente que se recusa a pagar o programa estipulado. É comum, porque lá na rua aparece muito marginal, muito assaltante, aí se ele for roubar a bicha que tiver com dinheiro e celular, ela tem que se defender. Em outras ocasiões, em relação as travesti que roubam, elas usam algum tipo como arma. Com certeza tem que usar. Quando o cliente não paga a gente usa a navalha. Lógico que temos que usar é para a proteção. [Para intimidar usamos] voz alta, que eles não gostam disso, e se a bicha for forte da um tapa na cara, para ele ver que a bicha bater, além disso elas usam garrafa e chave de fenda. Mais tem uns [clientes] que não deixa barato e vai atrás também. (Entrevista realizada com Ava em 18.01.2010). As armas brancas constituem-se numa estratégia para manter a norma do território. Apesar de se constituir numa ação delicada e ilícita seu uso é constante e uma arma branca faz parte do kit de proteção da maioria das Trans entrevistadas. Entre batons, pó compactos e rímel, encontram-se objetos cortantes utilizados para azuelar107 o cliente ou ainda intimidar a ação de marginais no centro. Em sua casa, realizando a entrevista, Bette foi até seu humilde quarto e voltou com sua bolsa que leva todos os dias para a pista. Abriu e saiu retirando dinheiro, camisinha, lubrificantes, brilho, pó compacto, lápis de olho e um estilete, mostrando-nos e dizendo sorrindo isso aqui é para fazer a ponta do lápis de meu olho. Já Greta afirma que está andando desprevenida, pois tinha deixado seu estilete num motel. Esses dias estou indo para pista com a cara e a coragem. Mas às vezes a gente sempre leva um estilete, uma tesoura, um gilete, alguma coisa assim do tipo, mais ultimamente eu to indo sem, pois eu to em falta, aí to indo só com a cara e a coragem. Ultimamente eu tenho um espelho que ele era de uma maquiagem. Menina, então descoloquei ele, por eu ter descolocado ele se torna uma arma, por que é um espelho normal como outro qualquer, o formato de um quadrado, ele se torna uma arma, mais eu ia com um 107 O mesmo que roubar. 191 estilete, agora esses dias não que ele quebrou, to indo desarmada. Já usei na vítima para se defender ou mostro pra vítima ficar inibida. Coagir. Só pra coagir, não ferir, ferir a vítima não. Já teve vez da gente ir pros motéis a gente tá com estilete nas calças e na hora da relação, na hora de tirar as calças o estilete cair já pra ele ver a zuada mesmo que eu estava armada, pra ele não tentar algo, ficar de boa. Ele observar que eu estou preparada pra qualquer coisa. (Entrevista realizada com Greta em 15.01.2010). Outras Trans preferem não utilizar essas armas, apelando proteção divina. Acreditam que tais usos intensificam a criminalidade e para fugir dos riscos permanecem atentas aos sinais de violência e criam vínculos de amizades com os marginais que roubam no centro. Reparam para o perfil do cliente, analisam sua conversa e a partir daí assinam o programa. Quando eu vou entrar no carro, que abaixa o vidro, aí já vou olhando tudinho ali do carro, só se tiver debaixo do banco alguma coisa, mais eu olho, e chamar por Deus, porque a gente vai mais não sabe se volta mesmo, chamar por Deus e ir pro programa. Não, não uso essas coisas não, nem navalha, nem gilete, essas coisa eu não uso, aí já é pra viadinho baixo. Tem algumas que usam essas coisas, estilete essas coisas, mas eu não. (Entrevista realizada com Sophia Loren em 10.12.2009). A cafetinagem Não, lá não existe isso não, lá é cada uma por si, não existe o cafetão! É, em outras cidades até pode existir, e existem. Mas em Feira não existe, não. (Entrevista realizada com Brigitte Bardot em 14.01.2010). De acordo com o Código Penal Brasileiro a cafetinagem é considerada um crime, tanto para a retirada de lucros por meio de pedágio ou multa ou ainda por obrigar o indivíduo a permanecer na prostituição contra sua vontade, visando lucro. Recentemente a Justiça brasileira avaliou as leis que eram aplicadas à prostituição, ampliando e adequando-se às realidades das diversas formas de prostituição existentes no Brasil. Para o Código Penal, CP- DL-002.848-1940, descrito em Brasil (2004), alterado pela L-012.015-2009, o lenocínio corresponde à prática da cafetinagem constituindo-se em um crime contra os direitos dos sujeitos que se prostituem de gozar da renda gerada pela venda do corpo e do prazer, sem se fazer necessário 192 gerar débitos pelo uso de seus corpos em espaços particulares e nem públicos. O capítulo V dessa lei, escrito em sua primeira versão em 1940, foi alterado pela L011.106-2005 correspondendo ao lenocínio e ao tráfico de pessoas. Sofreu recente alteração pela L-012.015-2009, foi nomeclaturada como “do lenocínio e do tráfico de pessoas para fins de prostituição ou outra forma de exploração sexual”. Essas alterações visam proteger as atividades da prostituição de circuitos internacionais de tráfico de mulheres, e em nosso caso de análise de Trans, pois os tráficos compõem um esquema articulado em diversas escalas geográficas de análise. Para a L-012.015-2009, analisada em Brasil (2004), a cafetinagem é um crime, previsto nos artigos 228, 229 e 230 por induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, como também facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone. Está previsto no artigo 229 que manter, por conta própria ou de terceiro, um estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente, efetiva-se como uma prática criminosa. Nessas situações o cafetão ou cafetina tiraram proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça, como está previsto no artigo 230. Em nossa área de estudo a cafetinagem é uma ação escamoteada e muito próxima da madrinhagem. A fronteira entre essas duas estratégias territoriais Trans é delicada e só pode ser analisada por meio de um convívio profundo para distinguir quando a madrinha torna-se cafetina da novata. Geralmente, ao amadrinhar uma nova Trans dando-lhe o passe livre para circulação do Centro, as mais velhas, num jogo intenso de poder, estabelecem uma série de critérios de convívio entre suas afilhadas que se aproximam da cafetinagem, o que para o código penal brasileiro se constitui em lenocínio. Mas em Feira de Santana não existe o agente da cafetinagem nas ruas onde o trottoir acontece. Todas as princesas que acompanhamos durante a etapa de campo possuem informações sobre o lenocínio e reivindicam justiça quando a prática se manifesta, de forma pontual, sobretudo pela ação de dominação das mais velhas. Não existe um cafetão ou cafetina declarado (a) no território da prostituição feirense, mas presenciamos nos depoimentos ou na cobrança de multas, a manifestação dessa prática. A cafetinagem, em nosso campo, não é uma pessoa, 193 ela estava diluída entre as Trans mais fortes, constituindo-se numa ação, ou como preferimos chamar, numa estratégia territorial. Em Feira de Santana não tem cafetina, não existe cafetina em Feira de Santana, porque cafetina que é cafetina tem sua casa própria e dá moradia a travesti. Pra ser cafetina, faz um apartamento, tem condições pra fazer um apartamento e botar várias travestis pra morar, aí aquelas travestis que mora no apartamento dela, ela bota na rua pra trabalhar. (Entrevista realizada com Sophia em 10.12.2009). Para Pelúcio (2007) existe uma diferença significativa entre cafetão e cafetina no território Trans. Em sua realidade de pesquisa a cafetinagem está posicionada no espaço como um agente territorial, diferente do nosso em que o fenômeno se apresenta enquanto estratégia/ação. O cafetão para as informantes de Pelúcio (2007) não entendem as amarguras do trottoir, ao contrário da cafetina que já batalhou e sentiu “nos nervos e na carne” as dificuldades da rua. A cafetina confunde-se com o papel de mãe/madrinha quando a Trans afilhada cumpre com suas obrigações; o pagamento diário, semanal, quinzenal ou mensal é simbólico dentro da realidade da Trans. No caso do cafetão, ele estipula um valor que é aplicado, fiscalizado e multado com juros que custam até a vida. Essa situação apresenta-se de forma pontual na praça onde as princesas do sertão batalham contra a velhice de seus corpos hormonizados e contra as adversidades da prostituição, como, por exemplo, as situações de violência. A prostituição de rua é mais autônoma no que se refere à cafetinagem, como observou Oliveira (1994). O trottoir é o laissez-faire do erotismo, visto que o corpo que se prostitui não está diretamente submetido a um agente de cafetinagem ou ainda a administradores de hotéis. Porém não estão isentas de sentirem repousarem sobre seus corpos as penalizações da cafetinagem, seja ela por uma outra Trans mais forte e influente, por marginais que cobram pelo uso do ponto, por policiais ou ainda por donos dos hotéis de alta rotatividade. Administradores de hotéis, marginais e policiais estão inclusos na rede da prostituição Trans. São estes que fazem a segurança de suas práticas e são os mesmos que criam a situação de desconforto, expulsão ou extermínio. Esse convívio está imerso no campo de forças que constitui o território onde os agentes se conflituam, mas convivem em situações de mutuabilidade. 194 As Trans compreendem que não existem cafetinas na rua. As monas que dominam a rua são as Trans velhas e fortes, estas se utilizam da cafetinagem para afetar, dominar e influenciar. Para Greta a cafetinagem está escamoteada na força e influência de uma Trans, que em determinadas situações deixa eclodir essa prática, demonstrando sua dominância e suas ações territorializadoras. Existe assim encubada, não existe uma cafetina manifestada, assim, ela é uma cafetina que se manifesta e não se manifesta, é de tempo. Então houve realmente quando eu logo comecei aqui houve, pode falar o nome? Houve uma que eu e minha amiga Ingrid agente tava se arrumando na casa dela, então ela queria cobrar semanal agente um valor, aí eu conversei com outras e outras disseram que era cafetinagem, que isso era errado, ela foi e conversou comigo e parou de cobrar e outra foi a que se diz a dona da rua, a cafetina, entendeu? Que às vezes se manifesta, diz que vai cobrar a rua, ia cobrar as bichas de fora, aí depois se aqueta, depois volta tudo de novo dizendo que vai cobrar que vai fazer acontecer, no meu caso eu nunca paguei nada, não sei se é porque eu tava morando na casa de pessoas da rua forte. (Entrevista realizada com Greta em 15.01.2010). Corroborando com os posicionamentos de Greta e Bette, afirmamos que a ausência da cafetinagem em Feira pode ser justificada pela acentuada quantidade de Trans batalhando no centro e a baixa procura desses serviços sociais. Vale à pena destacar que a prostituição existe quando os serviços sexuais do corpo de um determinado indivíduo são postos sobre a égide do mercado. Contudo, essa atividade é um emaranhado de processos que vai além da relação de troca entre uma prática sexual e uma quantia de dinheiro, entrelaçando questões das subjetividades dos sujeitos envolvidos, complexificando o fenômeno. Como Greta mesmo disse, tem uma que sempre ela se solta de vez enquanto em termo de cafetinagem, mais eu acho assim, que hoje em dia não há cafetinagem na rua pelo simples fato da rua não ta dando, entendeu? Porque antigamente existia sem cafetinagem aqui. Olhe mona, por que existe em Salvador? Porque Salvador dá claro, mais aqui hoje em dia não dá, mas eu acho que ela não volta a cobrar pra Greta, nem pra mim, nem pra outras de fora por isso, porque a rua não ta dando. Há a multa de chegar e multar, mais cafetinagem eu acho que não, não existe mais na rua não. (Entrevista realizada com Bette em 15.01.2010). 195 4.2- A fluidez territorial do cliente Apesar de Benedetti (2005) ter notado a ocorrência de negociações de programas com casais, os clientes das Trans de Feira são, em grande maioria, homens, não havendo registros nos depoimentos das Trans de terem feito programas com e para mulheres108. De acordo com Pelúcio (2007), Perlongher (1987) e Benedetti (2005) a caracterização dos clientes109 é algo bastante complicado devido a invisibilidade e efemeridade de sua presença na pista. Existem vários tipos que buscam serviços diversos no território generificado da prostituição Trans. Alguns desejam apenas companhia e outros um relacionamento sexual atípico, no qual a penetração é feita no homem e não na “possível” mulher. Os deslocamentos dos clientes são intensos e não se sabe exatamente onde se inicia e se finda. Como disse Pelúcio (2007:68) “os clientes não se fixam, são os que circulam”. Mas, por meio das observações à distancia e pelas histórias ouvidas em campo, podemos estabelecer três grandes grupos de clientes: as mariconas, os homens e os boys. Para Benedetti (2005), assim como registrado nas falas das Trans, as mariconas são homens maduros, geralmente casados, que possuem forte prazer em relacionamentos homoafetivos. Esses clientes, aparentemente, possuem uma vida 108 É ainda casual histórias de triângulos amorosos envolvendo na trama do sexo a participação de uma mulher. A participação de um homem, um gay e uma mulher chamado usualmente de suruba é compreendido como o “caramelizado” entre as Trans da praça, visto que a terceira cobertura, elas, dariam um sabor diferente ao ato sexual no grupo. O caramelizado pode até ocorrer, muito raramente, mas alguns mais audaciosos se lançam nessa experiência. Contudo, a rejeição do programa para mulheres era estampado. As Trans não permitem o encontro de seus corpos com mulheres, entra em choque o feminino Trans e o feminino heteronormativo, um duelo ainda não aceito entre as participantes dessa pesquisa, porém relatado nos estudos de Pelúcio (2007). 109 O cliente é o agente mais fugaz da prostituição. A prostituição não se concretiza na sua ausência. O cliente é peça fundamental para compreender o processo. Vários pesquisadores tentaram chegar aos clientes e estudar esse universo desconhecido. Porém, poucos avanços foram dados. O cliente é imprevisível. E além disso está escamoteado por várias situação próprias do trottoir. Esconde-se atrás dos profissionais do sexo que roubam a cena dos estudos, sendo os únicos que se abrem para explicar o fenômeno da prostituição. Como norma do oficio, pouco se sabe acerca do cliente e também pouco se pergunta. Talvez, as pesquisas deveriam estar direcionadas para compreender os esquemas de proteção desse agente para posteriormente chegar a ele e sua diversidade social. Como em outras pesquisas, não conseguimos entrevistar nenhum cliente. O único contato foi trocas rápidas de olhares. À distância tentava vasculhar no corpo e nos objetos ao seu redor detalhes sobre o cotidiano desse agente. A idéia de que a prostituição é realizada por um profissional do sexo está tão internalizada que os clientes passam despercebidos aos nossos olhares. Mas, temos que deslocar essa análise para enquadrar o cliente no centro dos debates e apreender sua dialética participação. 196 financeira equilibrada e sempre aparecem na pista com carros de padrão considerável. É justamente com esse tipo de cliente que a maioria dos pequenos furtos acontecem, além de uma série de ameaças e aplicações de multas, e ameaças de revelar desejo proibido do cliente para pessoas conhecidas. Percebemos que clientes que foram assaltados ou multados não deixam de freqüentar o ponto. Seu aparecimento no território, endossa uma série de hipóteses levantadas pelas Trans, que os entendem como enrustidos, recalcados e nojentos. O segundo grupo é chamado de homens. São supostos heterossexuais que aparecem na pista em busca de uma aventura diferente. Não tem nenhum interesse com o pênis das Trans, pois no relacionamento sexual realizam o papel de ativos. São mais viris e não apresentam desejos de realizar fantasias atípicas como as mariconas. Os homens aparecem de diversas formas na pista. Uns à pé, outros de bicilcleta, outros de moto e em sua grande maioria de carro. Na trama do programa, esses clientes se impõem no relacionamento, se utilizando da masculinidade coagindo qualquer tentativa de máfia que uma Trans pode realizar. Por fim temos o terceiro grupo nomeclaturado por boys. Os boys são homens mais jovens, mais ou menos com 20 anos. As Trans adoram atender boys. Acreditam que a transa com eles é mais prazerosa. Em muitas situações a Trans sente-se tão realizada com o ato sexual que não cobra o programa. É com os boys que elas fazem o vício, ou seja, fazem sexo sem cobrar. Quanto ao tipo econômico do cliente Sua classificação é feita a partir de suas poses materiais (carros, roupas), maneira de interagir com a travesti (cortês, agressivo) e de suas preferências sexuais. Assim categorizados, são reconhecidos, possibilitando que as travestis possam, a partir desses códigos, agir e, se preciso, se defender. (PELÚCIO, 2007, p. 68). Por meio dessa análise o cliente é classificado enquadrado num modelo simbólico compartilhado entre elas. A partir disso o preço do programa é estipulado. A tabela, como já foi mencionado, não é fixa, varia de acordo com a situação, e o cliente é uma variável considerável. Desta forma, o tipo de cliente determina o preço e o tipo de serviço que será realizado. 197 V - A GUÍSA DE CONCLUSÃO 198 Discutimos, ao longo dessas laudas, a presença de transformistas, travestis e transexuais no espaço urbano enquanto agentes dinâmicos no uso da cidade. A presença das Trans nas ruas e avenidas, por meio de sua insistente persistência espacial, mesmo com coações, tem conquistado um espaço ambíguo na sociedade brasileira. A mídia, como aparato tecnológico de disseminação e manipuladora de informações, coloca em xeque as sensações de ambiguidade que situa-se nos interstícios do exótico recoberto pelo manto do preconceito e da exclusão, ao mesmo tempo em que discute novos olhares no que se refere ao respeito as particularidades e especificidades que tais identidades demandam. A organização social de Trans, paralelo e incluso ao movimento gay se propõe lutar contra as repressões reiteradas pela matriz heterossexual presentes nas arquiteturas e nas frações espaciais, reivindicado espaço social e espaço territorial. A articulação desse movimento, denota que tal processo está inacabado. Os frutos dessas conquistas já estão sendo colhidos, inclusive na cidade de Feira de Santana. No que tange a militância homossexual, o Grupo Liberdade Igualdade e Cidadania Homossexual- GLICH tem sonhando por dias menos homofóbicos, e para isso tem realizado ações que positivam uma cultura homossexual na cidade princesa atingindo os municípios da microregião de Feira de Santana, uma polarização urbana queer especializada na homocultura. Como citou Silva (1993) mesmo considerando as transformações da sociedade e uma relativa aceitação pública, os antigos preconceitos e as disposições hostis não se dissiparam completamente. No corpo das Trans estão tatuados as marcas de uma sociedade que ainda a rejeita e extermina. Cicatrizes de cortes, hematomas e marcas de balas insinuam o paradoxo da suposta flexibilidade brasileira às performatividades queers. Se o corpo das Trans está em constate alteração, rumo a uma sinuosidade estética, suas performances subversivas tem embaralhado o “corpo” teórico da Geografia. Nossas teorias espaciais acostumadas com as interpretações que priorizam a heteronormatividade precisaram ser reavaliadas por um conjunto de teóricos que contribuam para repensar o espaço e sua política de uma forma mais plural. As contribuições de Foucault sobre o conceito de poder foram de fundamental importância para discutir a dominação masculina presente no conceito de território. Esse mesmo poder conota a contradição existente na sociedade. A matriz 199 heterossexual, que abjeta um corpo desviante das normas, é produzida pela mesma sociedade que retroalimenta o circuito da prostituição. Nesse circuito alguns políticos, empresários, industriais e agentes do grande capital deleitam-se no mais distinto que existe entre o mundo do homem e da mulher: os gêneros Trans. O corpo que se vende é o corpo menosprezado e martirizado pelas normas sociais em prol da moral e da ética. Sobre este pesam-se as leis, convenções, símbolos, código e normas de cerceamento, vigilância e punição. Mas o corpo que se vende só existe em relatividade/dependência ao corpo que paga e o que se percebe que este último é protegido pelas mesmas teias que sufocam, às vezes até a morte, os corpos que se vendem, como os corpos das transformistas, travestis e transexuais. E quando este corpo que se vende é um corpo masculino transformado à luz do feminino o julgamento ainda é pior. Concepções que são basilares na sociedade ocidental como as religiosas, institucionais, patriarcais entre outras, automaticamente, sem muita cerimônia, são acionadas para julgar e punir. Qualquer um que se distancia do binarismo tanto defendido por Harry Benjamin (citado por Bento, 2006) onde aquele que nasce com pênis determinadamente deve ser homem e másculo e aquela que nasce com vagina deve vir a ser a mulher, terá que pagar alto preço por não respeitar os imperativos da “natureza divina” que se revela em nosso corpo. Quando tratamos dos gêneros Trans, em nenhum momento, corroboramos com a idéia do terceiro gênero. Essa hierarquização não dá conta das multiplicidades performáticas presentes na sociedade, como também gera um descompasso daquilo que é proposto pelas transformistas, travestis e transexuais. Mesmo subvertendo os binarismos, esses sujeitos se reinventam a partir do modelo homem-mulher. O terceiro gênero seria inaplicável para realidade dessa pesquisa, visto que as Trans declaram não serem mais homens e não terem pretensões se serem mulheres. O terceiro por ordem hierárquica não está situada entre os dois primeiros e posiciona-se após o segundo o que não remete a posição dos gêneros Trans de acordo com sua ambiguidade. Posições numéricas, na tradicional idéia de ordem de algarismos, dos quais usualmente estamos acostumados a classificar, não dá conta do paralelo e paradoxo mundo subversivo das Trans. Ao contrário da idéia de terceiro, esses gêneros se produzem na heterotopia do espelho como nos alertou Foucault (1967), como algo que se vê projetado, mas não está ali e sua imagem refletida não corresponde a sua representação fidedigna. 200 As Trans se reinventam em espelhos diferentes, contraditórios e complementares. O resultado dessa TRANSformação borra qualquer sentido normatizador. Dessa metamorfose eclode um gênero pluralizado, mas que ainda mantém nas entranhas de suas representações, ligações profundas com a matriz da heterossexualidade. A fronteira conceitual dessas performatividades de gênero é sutil e seu trânsito não é algo tranqüilo. Percebemos que as autoidentificações realizadas por nossas informantes, em sua grande maioria, são mais funcionais que identitárias. A transformista e a transexual, sobretudo, aparecem como categorias estratégicas para a prostituição, servindo como um mecanismo eficaz para o trottoir, mas que escamoteia outras particularidades de gênero que correspondem a outro tipo de performatividade que embaralha os sentidos da ciência. Talvez, como defende Peres (2005) a categoria Transgênero consiga, nesse sentido, traduzir a ambigüidade da ambigüidade, e compreender corpos que aparentam um gênero e se comportam de outro modo. Nesse sentido, o uso dessa categoria, se subvertido a realidade brasileira e melhor aprofundado com debates teóricos mais concisos, trariam ganhos a nossa indecisão de classificar, em nossas pesquisas, aquilo que foge a todo custo dos rótulos. Acreditamos que as Trans compartilham de uma ousadia “levada” de ir paulatinamente embaralhando tudo, numa metamorfose infinita, desestabilizando as certezas que necessitamos para inferir um veredicto de ciência. As Trans revelam, desde já, o quanto precisamos mergulhar nesse universo para conhecer suas particularidades e traduzir com novas posturas de teóricas essa produção difusa. No que se refere ao conhecimento geográfico aqui produzido, sinalizamos alguns avanços para os estudos das sexualidades e dos gêneros. O espaço está codificado de discursos, que, materializados, normatizam o cotidiano. As arquiteturas estão empregadas da densa heteronormatividade que reitera, cotidianamente, as lógicas binaristas. Deve-se por tanto, considerar a história desses discursos levando em consideração sua materialidade e funcionalidade espacial, retirando do gênero outro problema não destacado por grande parte dos estudiosos: o espaço onde ele se reproduz. Como nos alertou Foucault (1967) o espaço possui a possibilidade de agregar processos múltiplos e instantâneos e é nele que os discursos generificantes se efetivam. Todas as tecnologias que generificam os corpos estão presentes no espaço, inclusive as que contradizem as normas sociais, ainda que de forma 201 paradoxal. Compreender essa geograficidade é devolver ao gênero seu corpo espacial, tornando mais fácil a compreensão da organização social por e a partir da organização espacial. Assim, entenderemos como as performatividades resistem às crises identitárias e se fortalecem na sociedade pós-industrial e se mantém vivas no espaço. Não pretendemos trazer à tona profissionais do mercado do sexo, restritas as pessoas que executam uma função no circuito do capital. Existe uma lógica alimentada pelo modo de produção e isso é inegável. Contudo, há de se considerar as subjetividades do trottoir e desconstruir uma série de mitos presente no senso comum. Dentre esses mitos, acredita-se que a vida prostituta é uma vida fácil. Nas linhas dessa dissertação ficou comprovada a árdua tarefa de se transformar e sobreviver. E para, além disso, existem os relatos que não foram publicados sobre a rejeição familiar, escolar e da sociedade atrelada aos ataques homofóbicos que geram a restrição da vida social em função da prostituição. O dinheiro ganho pelo sexo pago reserva em si uma profunda contradição de um corpo múltiplo que é acessado de diversas formas no programa. Enquanto para o cliente o corpo representa o objeto a ser consumido, para as Trans o corpo se agoniza, entre objeto, vida e coisa. Essa situação se torna mais evidente no território marginal, onde o corpo encontra, a priori, lugar enquanto mercadoria. A existência das Trans fazendo pista desconstrói outro mito, que atribui à função do meretrício a mulheres. Em Feira de Santana, o Centro está povoado de homens, mulheres, travestis, transformistas e transexuais que vendem o prazer. Cada grupo se estrutura numa parcela do solo urbano ao longo de avenidas centrais da cidade princesa. As mulheres aqui pesquisadas são fálicas diferentes das que sempre protagonizaram a história da prostituição em nossa sociedade. Se as Trans se fabricam no espelho da mulher, pudemos comprovar que não é qualquer mulher. As mulheres que alimentam o imaginário das Trans são reflexo da heteronormatividade, talvez esse seja um dos motivos de tantos tensionamentos no centro com as garotas de programa da Matriz, pois no espelho da Trans jamais estaria uma puta, por que Trans é luxo, cú é luxo, come quem pode, (OLIVEIRA, p.151, 1994). A problemática escolhida para ser analisada nessa dissertação envolve processos amplos e de escalas espaço-temporais diversas o que complexifica o seu 202 entendimento e sua compreensão mais profunda. Isso significa que aqui, nessas laudas, não se encontram, e nunca foi a nossa pretensão, as respostas totais sobre o fenômeno trans em Feira de Santana. Mais que análises teóricas arraigadas de modelos científicos esse texto se apresenta de forma interpretativa, por que a intenção era trazer as sensações que os corpos que pavoneam no espaço urbano feirense produzem na dialética dos gêneros divergentes em conflito com a matriz da heterossexualidade e suas instituições normatizadoras. Essa pesquisa está baseada na interpretação do cotidiano; e cotidiano não pode ser reproduzido, justamente por que a amalgama que compõem o cotidiano se interceptam de forma impar e é irreproduzível novamente com as mesmas características, fluidez e intensidade. Os momentos e as eventualidades são instantes únicos. Por isso não concebo que diferentes sujeitos, como os mesmos instrumentos de pesquisa, nos moldes do positivismo, chegariam às mesmas conclusões aqui esboçadas a cada capitulo discutido. Sendo assim e longe dos postulados, acreditamos que o refazer metodológico dessa dissertação, com as mesmas entrevistadas, com os mesmos passos de campo não trariam a tona os mesmos resultados, por que o que se apresenta como conclusão nada mais é que uma interpretação historicamente localizada, politicamente situacionada e geograficamente percebida. Aliás, não chegamos à conclusão alguma por que de inicio a idéia não era concluir! Porém, o que está escrito aqui impulsiona uma série de questionamentos e outros olhares para desnudar o espaço por meio de outros caminhos teóricos dos quais a geografia e as ciências seduzidas pelos estudos sobre gênero precisam conhecer. A discussão esboçada sobre a abjeção como processo a partir de Butler pode ser expandida para outros fenômenos de pesquisa tal como foi aplicado. Os espaços da diferença ocupados por seres maginalizados reproduzem a lógica da abjeção de gênero observada por Butler. Esses espaços e suas arquiteturas reservam muitas peculiaridades que podem ser compreendido e interpretado. Talvez esse seja o caminho para responder uma inquietação maior sobre a interconexão entre dois temas caros a essa dissertação e para geografia de Gênero: a produção do espaço e produção dos gêneros. O levantamento teórico aqui iniciado aponta novas demandas para compreender como os gêneros influenciam na produção espacial e se as ferramentas teórico metodológicas que possuímos hoje conseguem dar conta e 203 responder essa inquietação. Observando as formas espaciais e a hegemonia dos agentes que produzem o espaço, podemos afirmar que o que se consegue perceber é que os gêneros não produzem o espaço de forma diferenciada no que se refere, sobretudo, à forma. A predominância da escola marxista para falar de produção espacial não permite que se avance nesse sentido, mas se observa que se o espaço é uma totalidade complexa as funções e os usos espaciais se diferenciam pelos gêneros e são potencializados pelas abjeções. Portanto nascem as heterotopias espaciais como nos alerta Foucault. A descoberta da leitura e interpretação dessas heterotopias podem ser esmiuçadas se acionarmos a categoria de lugar, por que no lugar o cotidiano é capaz de desvelar os detalhes da produção dos gêneros bem como a eclosão dos diferentes usos e funções espaciais. Por usa vez a contribuição se ampliaria se os pesquisadores de gênero soubessem manipular esse conceito que facilitaria o entendimento da trama dos gêneros, sobretudo os abjetos. A trama dos lugares levantou, nessa pesquisa a necessidade da classificação dos gêneros, que foi muito discutido e combatido nos estudos essencialistas, visto que essa estratégia metodológica foi utilizada como rótulos, fixos e determinantes. Porém não fizemos dessa maneira e pudemos observar que os deslocamentos e usos espaciais se diferenciavam de acordo com cada performatividade. Isso reforça a idéia de que é necessário unir forças para compreender as nuanças de cada performance e seus vínculos espaciais. A historicidade e a fluidez do território no centro da cidade ao longo de quarenta anos evidenciou as crises e os períodos áureos do trottoir e como os diálogos e resistências fizeram as Trans permanecerem centralizadas junto a grandes instituições importantes para Feira de Santana: a Igreja, a polícia e a política. Suprimidas por questões metodológicas110, ao lado do território das Trans encontram-se outras territorialidades do sexo, dominadas por garotas de programa e michês que se espalham pelas avenidas centrais. Mais antigo que as Trans das meretrizes situadas no beco da energia e na praça da Matriz dominam outra parcela do centro e em vez em quando esses grupos se afrontam buscando a autoridade e 110 O conflito entre Trans e garotas de programa fizeram parte do projeto inicial dessa dissertação, porém pela amplitude das questões de pesquisa optamos protelar essa análise iniciada na graduação, com projetos menores, para outro momento. 204 dominância da prostituição de rua em Feira. Esse conflito entre garotas de programa e Trans, não aprofundado nessa dissertação, revela outras estratégias territoriais aqui não esboçadas bem como demonstra que além de conflito esses grupos também se cooperam quando se faz necessário, sobretudo quando a vida de alguma delas é posta em risco ou põem em risco a existência de seus territórios. Diferentemente, não observamos tensionamentos territoriais entre as Trans e as garotas de programas com os michês que dominam a praça de alimentação e a rodoviária. Seu comportamento espacial requer outros mecanismos de pesquisa, por que diferente dos outros dois grupos os michês possuem um fluidez espacial muito mais ampla, e sua capacidade de deslizar e se escamotear entre os homens que circulam no centro é muito grande, visto que em Feira de Santana ainda não é visível um território de concentração especifico de michês, apesar de compeendermos que existe uma estratégia espacial sofisticadamente pensada. Imersos no território Trans pudemos descobrir, para além do exótico que nos saltam os olhos, pessoas, dotadas de sentimentos e reprimidas pelas diferenças de classe. Em suas narrativas, suas vidas jorravam em histórias detalhadas, carregadas de desafios e exclusão. Dores que são lembradas na solidão de suas casas, ao acordarem pós uma noitada em cima de saltos. Na rua esquecem temporariamente as frustrações e mais uma vez reescrevem outra Geografia paralela na pista: circunscrevem seu lugar, onde as afetividades espaciais retiram-lhes do desterro. A rua se torna espaço do encontro, da socialização que enriquecem o gênero. Nos bancos da praça tratam de aprofundar laços territoriais carregados de afetividade, subvertendo, inclusive o sentido de território. Emerge o lugar Trans no escombro do território denso de conflitos pela posse observada entre as garotas de programa, traficantes, marginais e entre as próprias Trans. E quanto mais a gente mergulhar nesse universo, mais vai se descobrindo a humanidade dessas pessoas. E escrever sobre tudo isso exigiu de nós uma doação afetiva, intelectual e física. Porém, o que enquanto pesquisadores doamos em curiosidade intelectual, trouxemos para essas páginas triplicados em descrições, descobertas, dados e textos. 205 REFERÊNCIAS 206 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbos. São Paulo: Perspectiva, 1992. ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Rapouso. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo, volume II: a experiência vivida. 2 ed. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1967. BENEDETTI, Marcos Renato. A batalha e o corpo: breves reflexões sobre travestis e prostituição. Boletín Ciudadania Sexual, Peru, v. 11, p. 5-8, 2004. BENEDETTI, Marcos Renato. 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SP Shopping Boulevard Bar Gogó de Ouro Praça de Alimentação Claudia Travesti 22 Feira de Santana-BA Centro da cidade Praça do Tomba 222 Alto do Cruzeiro Romy Travesti 28 Feira de Santana-BA Rodoviária Alto do Cruzeiro Praça do Campo Limpo Catherine Travesti 34 Feira de Santana-BA Avenida Marechal Deodoro Praça de Alimentação Praça do Campo Limpo Grace Travesti 35 Feira de Santana-BA Avenida Marechal Deodoro Praça de Alimentação Avenida Presidente Dutra Katharine Travesti 22 Feira de Santana-BA Shopping Boulevard Praça de Alimentação Alto do Cruzeiro Marilyn Transsexual 42 Feira de Santana-BA A casa dela A casa dela A casa dela Bette Transsexual 23 Amélia Rodrigues-BA Barroquinha (casa) BNB Clube Centro de Abastecimento Greta Transsexual 19 Amélia Rodrigues-BA Barroquinha ( casa) 223 Praça de Alimentação Avenida Marechal Deodoro Sophia Transsexual 32 Feira de Santana-BA A casa dela Shopping Boulevard Pizzaria Água na boca. 224 Quadro 09 Pontos e permanência de prostituição TRANS Joan CATEGORIA Transformista PPONTO DO TEMPO DE TROTTOIR PERMANÊNCIA Avenida Marechal 5 anos Deodoro Marlene Transformista Avenida Marechal ANTIGO PONTO PRETENÇÕES DE MIGRAÇÃO Avenida Marechal Não pretende sair Deodoro 1 ano Madre de Deus São Paulo 38 anos Praça Bernardino Não pretende sair Deodoro Brigitte Transformista Praça Bernardino Bahia Ava Transformista Avenida Marechal Bahia 4 anos Deodoro Elizabeth Travesti Avenida Marechal Travesti Avenida Marechal Itália Deodoro 1 ano Deodoro Claudia Avenida Marechal Avenida Marechal Itália Deodoro 12 anos Salvador Itália 10 anos Goiânia, Santos e Pretende migrar para Brasília cidades brasileiras Avenida Marechal Não pretende sair Deodoro e Presidente Dutra Romy Travesti Avenida Marechal Deodoro e Presidente Dutra Catherine Travesti Avenida Marechal 10 anos 225 Grace Travesti Deodoro e Deodoro e Presidente Presidente Dutra Dutra Avenida Marechal 18 anos Deodoro Katharine Travesti Avenida Marechal Transsexual Avenida Presidente Não pretende sair Deodoro 2 anos Deodoro Marilyn Avenida Marechal Avenida Marechal Salvador Deodoro 23 anos Itália Não tem ideia 1 ano Amélio Rodrigues Pretende migrar para Dutra Bette Transsexual Avenida Marechal Deodoro Greta Transsexual Avenida Marechal cidades brasileiras 1 ano Deodoro Sophia Transsexual Avenida Presidente Dutra Avenida Marechal Salvador/Itália Deodoro 8 anos Avenida Presidente Não pretende sair Dutra 226 Quadro 10 Deslocamentos intraurbanos Trans TRANS CATEGORIA CIDADE DE BAIRRO QUE TEMPO DE BAIRRO QUE NASCIMENTO RESIDE RESIDÊNCIA RESIDIU Joan Transformista Feira de Santana-BA Sobradinho 5 anos Morada das Árvores Marlene Transformista Feira de Santana-BA Jardim Cruzeiro 16 anos Jardim Cruzeiro Brigitte Transformista Feira de Santana-BA Eucalipto 25 anos Eucalipto Ava Transformista Feira de Santana-BA Rua Nova 1 ano e 3 meses Feira X Elizabeth Travesti São Paulo - SP Campo Limpo 3 anos São Paulo Claudia Travesti Feira de Santana-BA Jardim Cruzeiro 1 ano e 2 meses Tomba Romy Travesti Feira de Santana-BA Rua Nova 8 meses Kalilândia Catherine Travesti Feira de Santana-BA Campo Limpo 34 anos Campo Limpo Grace Travesti Feira de Santana-BA Jardim Cruzeiro 3 anos Jardim Cruzeiro Katharine Travesti Feira de Santana-BA Centro 1 ano e 6 meses Barroquinha Marilyn Transsexual Feira de Santana-BA Kalilândia 30 anos Queimadinha Bette Transsexual Amélio Rodrigues-BA Rua Nova 3 meses Barroquinha Greta Transsexual Amélio Rodrigues-BA Barroquinha 4 meses Rua Nova Sophia Transsexual Feira de Santana-BA Queimadinha 10 anos Queimadinha 227 Quadro 11 Identidade, idade e tempo de generificação TRANS CATEGORIA IDADE TEMPO DE GENERIFICAÇÃO Joan Transformista 25 7 Marlene Transformista 16 1 Brigitte Transformista 50 43 Ava Transformista 24 4 Elizabeth Travesti 20 11 Claudia Travesti 22 11 Romy Travesti 28 15 Catherine Travesti 34 8 Grace Travesti 35 15 Katharine Travesti 22 2 Marilyn Transsexual 42 42 Bette Transsexual 23 3 Greta Transsexual 19 1 Sophia Transsexual 32 15 228 MODELO DO QUESTIONÁRIO APLICÁVEL PARA AS IDENTIDADES TRANS Nome oficial: Nome profissional: Cidade de nascimento: Quanto tempo mora em Feira de Santana: Qual seu gênero: Desde quando: Mora com: ( )familiares ( )companh. ( )amigos ( )sozinha Idade: A quanto Quantos residentes: Onde mora: Mora em casa: ( ) própria ( ) alugada ( ) cedida tempo mora nesta Onde residência: morava Qual seu ponto de trabalho111: antes: Qual ano começou a trabalhar em Onde trabalhava Pretende sair da cidade: FSA? antes? Horário que vai para a rua Durante semana: das___:___ Sábado-Domingo-Feriado: às___:___ hs das___:___ às___:___ hs Onde realiza os programas: Elenque três motéis Qual hotel rotativo costuma atender clientes: mais Trabalhou em Atualmente trabalha frequentados: outras atividades: outras atividades: 1-__________________________ SIM 2-__________________________ NÃO ( ) NÃO ( ) 3-__________________________ Qual:_________ Qual:_________ Rendimento mensal do trabalho: De outros Escolaridade: ( ) SIM em ( ) Elenque três lojas de roupas Elenque três farmácias Elenque três lugares da mais frequentadas: mais frequentadas: cidade que mais 1-_____________________ 1-__________________ identifica: 2-_____________________ 2-__________________ 1-__________________ 3-_____________________ 3-__________________ 2-__________________ se 3-__________________ Quem lhe iniciou na pista: Houve resistências: E atualmente _____________________ SIM SIM ( ) NÃO ( ) 111 ( ) NÃO ( ) Trabalho se refere aos serviços ligados à prostituição. Como se trata de um questionário que será aplicado a grupos distintos, manteve-se essa nomenclatura que se modifica de acordo com os grupos pesquisados. 229 ROTEIRO DE ENTREVISTA IDENTIDADE TRAVESTI 01. Resgatando o processo de transformação e adaptação do seu corpo masculino para o feminino e as tensões pessoais e sociais ocorridas: ·Fale sobre seu processo de transformação. Houve algum momento marcante? ·Como sua família reagiu a sua transformação? Antes e hoje... ·Como você vê seu corpo?Antes e hoje... ·O que você acha que as pessoas pensam sobre o seu corpo? ·Você leva sua vida a partir de qual referência de pessoa? .Como era o convívio na escola? No seu bairro/Rua? ·Qual corpo você almejava em seu processo de montagem? .Suas transformações foram apenas no corpo? E na mentalidade? 02. Fale sobre o cotidiano da batalha na rua, desde o seu início até os dias atuais: ·Como foi sua entrada na pista? ·As travestis possuem alguma vantagem em relação aos outros grupos que se prostituem? ·Já usou drogas? E as outras travestis? ·O que o cliente procura quando escolhe ter um programa com você? 03. Se você pudesse diferenciar o uso do corpo nas práticas pessoais/amorosas das comerciais, como descreveria? .Fazer sexo com seu “marido”112 é diferente de transar com clientes? ·Você possui maiores orgasmos “fazendo a linha”113 passiva, ativa ou ambos? Por quê? 112 As travestis também chamam de maridos ou namorados sujeitos que não possuem trejeitos afeminados, os quais elas consideram homens com quem matêm laços afetivos. O termo “Bofe” também pode ser aplicado a essa designação. 113 Significa, a grosso modo, realizar alguma coisa. Fazer de conta. Realizar uma ação que não é comum por um tempo determinado. 230 ·De que forma é o relacionamento entre a senhora e seu marido. Como deve ser um relacionamento de uma travesti e seu marido? 04. O que é ser travesti para você? . O que diferencia a travesti das outras monas? .Existe diferença entre travesti e transexual, transgênero, transformista? .O que caracteriza as travestis? 231 IDENTIDADE TRANSEXUAL 01. Resgatando o processo de transformação e adaptação do seu corpo masculino para o feminino e as tensões pessoais e sociais ocorridas: ·Fale sobre seu processo de transformação. Houve algum momento marcante? ·Como sua família reagiu a sua transformação? Antes e hoje... ·Como você vê seu corpo? Antes e hoje... ·O que você acha que as pessoas pensam sobre o seu corpo? ·Você leva sua vida a partir de qual referência de pessoa? .Como era o convívio na escola? No seu Bairro/Rua? ·Qual corpo você almejava em seu processo de montagem? .Suas transformações foram apenas no corpo? E na mentalidade? 02. Fale sobre o cotidiano da batalha na rua, desde o seu início até os dias atuais: ·Como foi sua entrada na pista? ·As transexuais possuem alguma vantagem em relação aos outros grupos que se prostituem? ·Já usou drogas? E as outras travestis? ·O que o cliente procura quando escolhe ter um programa com você? 03. Se você pudesse diferenciar o uso do corpo nas práticas pessoais/amorosas das comerciais, como descreveria? .Fazer sexo com seu “marido”114 é diferente de transar com clientes? ·Você possui maiores orgasmos “fazendo a linha”115 passiva, ativa ou ambos? Por quê? ·De que forma é o relacionamento entre a senhora e seu marido? Como deve ser um relacionamento de uma transexual e seu marido? 04. O que é ser transexual para você? 114 As travestis também chamam de maridos ou namorados sujeitos que não possuem trejeitos afeminados, os quais elas consideram homens com quem matem laços afetivos. O termo “Bofe” também pode ser aplicado a essa designação. 115 Significa, a grosso modo, realizar alguma coisa. Fazer de conta. Realizar uma ação que não é comum por um tempo determinado. 232 .O que diferencia as transexuais das outras monas? .Existe diferença entre transexual e travesti, transgênero, transformista? .O que caracteriza as transexuais? 233 IDENTIDADE TRANSFORMISTA 01. Resgatando o processo temporário de adaptação do seu corpo masculino para o feminino e as tensões pessoais e sociais ocorridas: ·Fale sobre seu processo de adaptação. Houve algum momento marcante? ·Sua família sabe? Como reagiu a sua transformação? Antes e hoje... ·Como você vê seu corpo?Antes e hoje... ·O que você acha que as pessoas pensam sobre o seu corpo? ·Você leva sua vida a partir de qual referência de pessoa? .Como era o convívio na escola? No seu Bairro/Rua? ·Qual corpo você almejava em seu processo de montagem? .Suas adaptações foram apenas no corpo? E na mentalidade? 02. Fale sobre o cotidiano da batalha na rua, desde o seu início até os dias atuais: ·Como foi sua entrada na pista? ·As transformistas possuem alguma vantagem em relação aos outros grupos que se prostituem? ·Já usou drogas? E as outras travestis? ·O que o cliente procura quando escolhe ter um programa com você? 03. Se você pudesse diferenciar o uso do corpo nas práticas pessoais / amorosas das comerciais, como descreveria? .Fazer sexo com seu “marido”116 é diferente de transar com clientes? ·Você possui maiores orgasmos “fazendo a linha”117 passiva, ativa ou ambos? Por quê? ·De que forma é o relacionamento entre a senhora e seu marido. Como deve ser um relacionamento de uma transformista e seu marido? 04. O que é ser transformista para você? 116 As travestis também chamam de maridos ou namorados sujeitos que não possuem trejeitos afeminados, os quais elas consideram homens com quem matem laços afetivos. O termo “Bofe” também pode ser aplicado a essa designação. 117 Significa, a grosso modo, realizar alguma coisa. Fazer de conta. Realizar uma ação que não é comum por um tempo determinado. 234 .O que diferencia a transformistas das outras monas? .Existe diferença entre transformista e transexual, transgênero, travesti? O que caracteriza as travestis? 235 FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO TRAVESTI 01. Tem conhecimento da história da prostituição travesti em Feira de Santana? (nomes, locais, tempo, contexto). 02. Quais os critérios de escolha do ponto de prostituição? (Diferença entre Mercado de Artes e a Presidente Dutra). 03. Como foi o processo de instituição deste território? Como foi a relação com moradores e policiais? 04. Quando você escolheu seu ponto, como rompeu com a resistência e a concorrência? ·No início e hoje? ·Quem manda no território? 05. Existe alguma divisão entre as travestis? Alguma divisão de poder... 06. Como é feito o controle do território pelas travestis? ·Na relação entre as travestis? ·E entre as travestis e a sociedade em geral? .Existe algum conflito entre as travestis e as garotas de programa? Por quê? 07. Como as travestis vivenciam entre si o cotidiano do local de batalha? 08. Qual a influência do local de batalha em seu processo de transformação? 09. Qual a importância dele hoje para você? 10. Qual deve ser o comportamento da travesti para ser aceita no local de batalha? 11. Qual mensagem você deseja passar quando se monta e vai para a rua? 12. Qual travesti que arrasa em Feira de Santana? 13. Tem algum sonho? Qual é? Qual sua expectativa para o futuro? 236 PERCEPÇÃO DOS TERRITÓRIOS POR OUTROS AGENTES (Aplicável a direções escolares, representantes religiosos, moradores locais, polícia militar) 01– Você tem conhecimento sobre os territórios da prostituição no centro da cidade de Feira de Santana? Quais informações possui? 02- Qual sua opinião sobre essa atividade na cidade? 03-Quais consequências a prostituição pode produzir? 04- Você acha que a prostituição interfere nas relações urbanas? 237 GLOSSÁRIO DOS DIALETOS QUEERS118 A abafa o caso - expressão usada quando alguém não está a fim ou não está mais podendo ouvir determinada conversa ou comentário; usa-se ainda quando alguém, por algum motivo, não quer que o assunto seja levado adiante abalar - fazer algo bem feito adé - (do bajubá) homossexual masculino; bicha adé fontó - (do bajubá) bicha enrustida afofi - variante de ofofi agasalhar - ato de envolver um pênis com o ânus e o reto ai meu edi - expressão que significa ai mei cu! ou ai que saco! ver a expressão tô loca do meu edi ajé - (do bajubá) ruim, péssimo ajeum - (do bajubá) comida, rango, gororoba, ebó alibã - (do bajubá) 1 policial; polícia; 2 (RJ) significa também o carro patrulha Santana; se for o camburão, chama-se tia Cleide alibete - (do bajubá) roubo; Elza amadê - (do bajubá) menino jovem amapô - (do bajubá) variante de amapoa amapoa de bajé - (do bajubá) mulher menstruada amapoa de canudo - (do bajubá) (RJ) travesti não operada; que tem pênis, mas jura que é amapoa amapoa - (do bajubá) 1 vagina; órgão sexual feminino; 2 termo usado para designar mulher [variantes: amapô, mapô] andrógino - pessoa que tem características de homem e de mulher ou traços marcantes do sexo oposto ao seu; quando o andrógino é muito esquisito, chama-se também metade sereia, metade tubarão anel de couro - (CE) ânus; edi; rosca ânus - cu; edi, rosca; durante a inquisição, a igreja chamava o furico de vaso traseiro ou parte prepóstera apatá - (do bajubá) sapato; calçado 118 Todos os termos nessa sessão foram retirados do site, http://worldgnews.blogspot.com.br/2012/03/dicionariobajuba-pajuba.html, acessado dia 10/10/2010 e triado para nossa realidade de pesquisa, adequando aos regionalismos necessários. 238 aqué (aqüé) - (do bajubá) dinheiro aquendar (aqüendar) - (do bajubá) 1 chamar para prestar atenção; 2 fazer alguma função aquiri (aqüiri) - (do bajubá) (CE) bofe arrombada - aquela que tem vagina ou ânus alargado por excesso de uso atender - ato de envolver-se ou comprometer-se sexualmente com alguém; exemplo: vou atender fulano atendimento - fazer sexo; se for "o" atendimento significa o sujeito com quem se vai ter relações sexuais azuelar - significa roubar; B babado - acontecimento qualquer, podendo tanto ser bom como mau; bajé - (do bajubá) sangue bajubá - baseada nas línguas africanas empregadas pelo candomblé, é a linguagem praticada inicialmente pelos travestis e posteriormente estendida a todo universo gay [variante: pajubá] barbie - homossexual de corpo inflado, adepto da musculação e das bombas bater um bolo- (SP/RJ) masturbação entre gays bater bolacha - ato sexual entre lésbicas biba - (familiar) gay, homossexual, bicha bibita - pênis pequeno bicha - homossexual masculino; gay; homem efeminado bicha-bofe - homossexual não efeminado, mas nem sempre ativo bicha-boy - bicha-bofe novinha bofe - heterossexual ou homossexual ativo bofe escândalo - homem muito bonito e gostoso bofoneca - mistura de bofe com boneca; bicha masculina que, quando abre a boca, kuein! É só pinta, com voz anasalada e de mulher bola gato - sexo oral bom dia jaburu - diz-se do golpe aplicado por michês em mulheres mais velhas, com o objetivo de assaltá-las em sua casa 239 boquete - fazer sexo oral em um homem bronha - masturbação masculina buceta - órgão genital feminino; vagina C caçação - ato de caçar; aqüendação forte no sentido sexual; pegação caixa de surpresas - diz-se da mala (acepção 1) que aparenta ser pequena, mas que ao ser descoberta revela grande volume, densidade, peso e tamanho caminhoneira - (pejorativo) lésbica com gestual muito masculinizado carão - pose; esnobação; presunção caso - 1 no mundo heterossexual, caso costuma ser uma terceira pessoa envolvida num relacionamento já em andamento; amante; 2 no mundo homossexual, caso é o(a) namorado(a) ou alguém com quem se está ficando casqueiro - aquele que rouba roupas dos varais alheios checar - vide passar um cheque cheque - restos de fezes que borram a cueca ou o órgão sexual do parceiro chuca - instrumento utilizado para a limpeza do reto; exemplo: use a chuca pra não passar cheque chuchu - barba malfeita ou que cresce durante a noite de montação colocado - 1 situado; 2 bêbado, drogado crossdresser - aquele que se monta para se divertir cunete - sexo oral na região do ânus; cunnilingus D dar a elza - (do bajubá) roubar dar close - 1 dar uma olhada; 2 dar pinta dar o truque - enganar; dar o EQ dar pinta - fazer trejeitos efeminados, propositadamente ou não; mostrar afetação dar um ninja - (ES) sumir com algo; roubar; dar a Elza dar um voador - (ES) dar um tapa; brigar 240 débora kerr - expressão usada quando se vê alguém que provoca tesão; às vezes, débora kerr faz dupla com betty faria de leve - ( PA) pequena maldade desaquendar (desaqüendar) - (do bajubá) deixar de lado; deixar em paz; esquecer drag king - lésbica que se veste de homem drag queen - gay que se veste de mulher, mas apenas para festas (não confundir com travesti) E ebó - comida de santo na macumba; macumba em si edi - (do bajubá) ânus ekê - (CE) 1 pênis; a mala do bofe: o ekê do ocó; 2 problema: deixa de ekê! (Não confundir com EQ, equê) elza - (do bajubá) roubo elzeiro – ladrão enquizilado - (CE) indivíduo encanado, chateado, cheio de problema; enrustido - homossexual que ainda não saiu do armário, não assumiu sua posição de gay entendido - 1 homossexual; 2 homossexual dos anos 70 que gosta de romance à la hétero EQ (equê) - o mesmo que truque; engano; coisa falsa erê - (do bajubá) 1 bofinho adolescente; 2 criança, jovem F fazer - copular; transar; atender fazer a chuca - fazer limpeza intestinal, principalmente do reto fazer sabão- ficar de babado; esfregar-se fechar - 1 dar muita pinta; 2 abalar fechar tudo - 1 dar muita muita pinta; 2 abalar muito fechação - ato de dar muita pinta 241 ferveção - diversão; local onde está rolando diversão ficar - ter relações amorosas e/ou sexuais sem compromisso fino - 1 chic; 2 esnobe fiofó - ânus; cu; bunda; edi; rabo; rabicó força na peruca - o mesmo que força no picumã força no picumã - (interjeição) vá em frente! vai nessa! se joga! frapê - diz-se do pênis quando está meio-mole-meio-duro; meia-bomba furico - (NE) ânus; edi G gala - (CE) ejaculação; porra garoto de programa - garoto de aluguel, michê, scort man gay - homossexual masculino; outros termos usados, mas com alguma variação de sentido são: baitola, biba, bicha, biltra, boiola, cheine, culeiro, entendido, frango, fruta, homiceta, homigina, laleska, mona, mônica, paneleiro, poc-poc, quaquá, quatira, tata, vera-boiola, viado, xibungo; durante a inquisição, a igreja católica chamava qualquer biba de somitigo (com a variante somítigo), sodomita ou sodomítico gilete - antigo termo para designar o homem bissexual go-go boy - dançarino ou streaper de boate gay gongado - derrubado; caído [variante: congado] gravar - chupar um pênis ereto H hermafrodita - aquele(a) que nasceu com dois aparelhos genitais: vagina e pênis hetero-gay - (CE) heterossexual masculino que trata heterossexual feminino com delicadeza, mas copula com mulheres porque gosta homiceta - (composto de 'homem' + 'buceta') bicha homigina - (composto de 'homem' + 'vagina') bicha homofobia - medo irracional da homossexualidade 242 homossexual - aquele(a) que transa com alguém do mesmo sexo; apesar de politicamente correto, os(as) homossexuais preferem outros termos; veja: gay e lésbica homossexy - gay sexy I ilê – casa indaca - rosto; face; cara; feição Ivone - (RJ) diminutivo de passivone, homossexual passivo J jaburu - (pejorativo) pessoa feia jacira - bicha quaquá bagaceira jamanta - estado daquele que ficou louco, colocado, lesado, alucinado jeba - pênis de proporções avantajadas; necão jogar o picumã - virar a cabeça, mudando os cabelos de lado, tal como as loiras fazem, só que inteligentemente e com a intenção de menosprezar ou ignorar alguém jorge - bofe escândalo do tipo "pai de família" K kátia - 1 (SP) cachaça; pinga; bebida alcóolica: 2 (CE) cega; termo usado na expressão fique kátia! kibe – apalpar o pênis kuein - (CE) forma abreviada de aqüenda, imperativo do verbo aqüendar; se liga! exemplo: kuein o picu da mona! [variantes: cuem, qüem] L laquaqua - (do bajubá) o contrário de bibita; piroca grande 243 larica – fome laruê - (do bajubá) fofoca lash - (do bajubá) jogar o picumã, fazer a egípcia, virar a cara, dar rabissaca, com a intenção de tombar alguém lesação - dar bobeira, geralmente por causa de drogas lesado - 1 bêbado e/ou drogado; 2 bobo; louco; 3 desencanado; aquele que não leva nada a sério levar coió - apanhar; ser xingado por alguém levar um banzai - levar um fora do(a) namorado(a) M mafiosa - (RJ) bicha ou lésbica má, que costuma observar tudo e todos com um certo olhar de desdém, arrogância; geralmente tem uma língua muito afiada, critica e fala mal de todos mala - 1 o volume do pênis ou o próprio pênis; 2 ou mala sem alça, pessoa chata; escrota maldita - o mesmo que AIDS mangar - (NE) tirar sarro; gozar de alguém mapô - variante de amapoa mati - (do bajubá) variante de matim matim - (do bajubá) pequenino meia-bomba - diz-se do pênis que não atingiu ereção total, mas em torno de 50% ou menos; frapê meia-nove - sexo oral mútuo e simultâneo entre duas pessoas metade sereia metade tubarão - bofe ou bicha, amapô ou bolacha, meio lá meio cá, sem que se saiba o que é; andrógino; meio bofe meio bicha; meio fashion meio baranga; meio sapa meio racha; meio esquisito meio normal; meio gordo meio musculoso; meio magro meio esquálido; meio tudo meio nada meu cu - expressão usada para designar indignação ou desdém; nesta acepção, equivale a Caguei! ou Um caralho! michê - garoto de programa mitorô - (do bajubá) urinar; mijar 244 mona - (do bajubá) mulher, mas é frequentemente usado para denominar homossexual masculino mona ocó - (do bajubá) tem diversos significados nos ambientes homossexuais: mona é mulher e ocó, homem; em alguns grupos é usado para lésbicas masculinizadas e em outros para gays não-efeminados ou também michês [variante: monocó] montação - o processo de vestir-se com roupas de mulher, geralmente com certo exagero montado - 1 bem vestido; 2 cross-dressing ou biba vestida de mulher morder a fronha - fazer a passivona; sentar no croquete N neca - (do bajubá) pênis necão - pênis grande, avantajado; pauzão neide - (PE) bicha burra nena - (do bajubá) fezes nena camargo - (CE) o nome completo da nena; a Dona Merda nenar - defecar; cagar neuza - homossexual japonês ou descendente ou a prima mais velha da Elza, serve também para elucidar roubo ou furto. nicaô - diz-se do pênis de proporções avantajadas de travesti O ocâni - (do bajubá) pênis ocó - (do bajubá) homem homem odara - (do bajubá) bonito, elegante, vivaz ofofi - (do bajubá) fedor ofofi do ofidã - (do bajubá) mau cheiro na zona erógena masculina; exemplo: passar uma tarde em itapoã, com o ofofi do ofidã omivará - (do bajubá) esperma; porra 245 operada - transexual que era do sexo masculino (ou nasceu com um pênis), feminilizou-se, cortou o pênis e construiu uma envaginação; cortada oré - (do bajubá) garotão ornitorrinca - mulher híbrida, antagônica da mamífera; leia-se: aquela que odeia com razão o modus operandi das mamíferas orum - (do bajubá) céu; firmamento oté - (do bajubá) mal-cheiro no corpo; chulé; ofofi otim - (do bajubá) bebida alcoólica oxanã - (do bajubá) cigarro P pacotão - pênis grande; mala (acepção 1) padê - (do bajubá) cocaína pajubá - variante de bajubá panqueca - bicha passiva passada - (PA) - arrasada; chocada passar cheque - deitar fezes no pênis do homossexual ativo; checar; melar de nena a neca do ocó; exemplo: ontem, no atendimento, a mona passou um cheque no bofe passar a nena - o mesmo que passar um cheque passar um fax - defecar; cagar passivona - homossexual que apenas pratica a passividade no ato sexual pau – pênis pegação - aqüendação forte no sentido sexual; caçação pencas - muito, demais; horrores; exemplos: Gozei pencas no quartinho ou gozei horrores no escurinho... pênis - órgão sexual masculino; benga; cacete; caralho (1); croquete; ekê; estrovena; jeba; kibe; mala (1); manguaça; neca; pau; pica; pinto; piroca; pomba (1); tromba; durante a inquisição, a igreja usava os termos membro viril e natura, ou membro desonesto quando usado para o pecado piá - menino, garoto, guri, moleque pica – pênis picu - forma abreviada de picumã 246 picumã - (do bajubá) peruca, cabeleira; cabelo pimbar - (CE) transar; trepar pinto – pênis pintosa - bicha afetada, que dá pinta pirelli - enchimento que drag queens e transformistas usam nas meias-calças para dar forma e aparência femininas ao culote piriquita – vagina piroca – pênis pivô - movimento de meia-volta, com muita pinta, como fazem as modelos na ponta da passarela de um desfile; fazer esse movimento é dar pivô pomba gira - endemoniada; a expressão baixar a pomba gira significa também 'sair para caçar' punheta - 1 masturbação masculina; 2 coisa enrolada, dificultosa, embaçada; 3 elucubração; cogitação profunda R rabo - ânus; bunda; edi; fiofó racha - 1 vulva; vagina; 2 (pejorativo) mulher rachada - (pejorativo) mulher ramé - (do bajubá) mal-vestido recheada - (AL) diz-se daquela bicha dentro da qual o bofe gozou, sem camisinha rosca - ânus; edi; anel de couro S sabão - esfrega-esfrega entre duas pessoas savi - (RJ) 1 mal-cheiro no pênis, ofofi do ofidã; 2 aqueles queijos brancos que ficam ao redor da cabeça do peru quando ele não é lavado; esmegma semi-drag - 1 bicha andrógina; 2 bicha que se monta mas ainda não atingiu o status de drag sentar - ter relação anal 247 sofá da hebe - (DF) lugar onde as bichas se encontram para fofocar soltar a franga - o mesmo que sair do closet soltar veneno - falar mal de algo ou de alguém suruba - união de 3 ou mais pessoas para fazer sexo; orgia susie - barbie que não toma bomba; musculosa natural T taba - (do bajubá) maconha tabaco(a) – vagina tá boa - força de expressão muito utilizada pelos gays significando desdém ou descrédito, equivalente a você acha mesmo? ou nem vem...; às vezes, vem acompanhado de vocativo: tá boa, santa? ter carão - ser bonito(a) teste da farinha - teste para descobrir se alguém é gay: senta-se na farinha e verifica-se o tamanho da impressão do cu tia- (bajubá) HIV tia - (pejorativo) bicha velha tia cleide - camburão da polícia tô bege - tô boba tô boba - tô Kátia tô inhaz - estou em vias de; estou quase; exemplo: Tô inhaz de me cagar toda tô kátia - tô mônica tô loca - estou bem louca tô loca do meu edi - estou bem loquérrima tô mônica - tô passada tô passada - estou chocada tombado - 1 caído, derrubado, destruído, apodrecido; 2 sem graça; 3 cansado tombar - 1 avacalhar, debochar, menosprezar ou ridicularizar algo ou alguém; reduzir os méritos; 2 arrasar, principalmente no modelão ou numa atitude: Tombou! tranca-rua - pessoa bêbada e sem controle transexual - aquele(a) que mudou de sexo por meios cirúrgicos (amputação ou implante de pênis); não confundir com travesti nem com transformista; o transexual 248 que era mulher e passou a ser homem é female-to-male; o contrário é conhecido simplesmente como operada transformista - homem que se veste de mulher para fazer apresentações artísticas; não confundir com travesti nem com transexual traveca(o) – travesti travesti - homossexual que se veste e comporta como mulher, quer faça programa ou não; alguns travestis implantam silicone nos seios e outras partes do corpo, mas ainda possuem pênis; o travesti que passou por cirurgia para retirar o pênis passa a ser transexual trem de prata - pessoa intrometida trepar - copular; transar tricha - homossexual masculino mais que bicha; viado ao cubo tromba - pênis grande trombudo - aquele que tem pênis grande; pauzudo truque - 1 enganação; enrolação; 2 coisa falsa truqueiro - aquele que dá truque tudo - (interjeição) muito bom! exemplo: bi, tudo! U uó - (do bajubá) algo ou alguém ruim, feio, desagradável, desprezível, errado, equivocado V vagina - órgão sexual feminino; amapoa; aranha; buça; buceta; cona; gogóia; grilinha; lalaia; mapô; pacoteira; perseguida; piriquita; pomba (2); precheca; racha; tabaco; tcheca; vulva; xana; xavasca; xibiu; xoxota; durante a inquisição a igreja empregava os termos natura, assim como vaso natural velcro - 1 o mesmo que carpete; pêlos pubianos da mulher; 2 ato sexual lésbico veneno - substância produzida por pessoas venenosas; palavras ou atos malignos dessas pessoas venenosa - pessoa que fala mal de algo ou alguém, ou que faz intriga 249 viadagem - ação ou modos de efeminado; o mesmo que bichice viadeiro - coletivo de viado via ápia - famoso e tradicional local de pegação gay na região central do Rio de Janeiro, mais freqüentado por garotos de programa oferecendo seus serviços viado - homossexual masculino; gay vudu - energia negativa vuduzar - torcer para que algo não dê certo; envuduzar X xana – vagina xaxé - (do bajubá) cocaína xepó - (do bajubá) cafona; brega xereca - vulva; vagina xibiu - vagina; buceta xoxação - (SP) o ato de xoxar xoxar - 1 (SP) falar mal de alguém ou de alguma coisa; debochar; 2 (BA) comer alguém, transando xoxota – vagina xuxu - ver chuchu Y ypsilon - ato sexual entre duas pessoas que transam em posição invertida e de pernas abertas Z zoraide - bicha metida a clarividente; esotérica zumbi - drogado demais; lesado 250