universidade federal da bahia instituto de geociências

Transcrição

universidade federal da bahia instituto de geociências
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
MESTRADO EM GEOGRAFIA
MATTEUS FREITAS DE OLIVEIRA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
PRINCESAS DO SERTÃO: O UNIVERSO TRANS ENTRE O ESPELHO
E AS RUAS DE FEIRA DE SANTANA-BA.
Salvador - BA
Julho de 2010
1
MATTEUS FREITAS DE OLIVEIRA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
PRINCESAS DO SERTÃO: O UNIVERSO TRANS ENTRE O ESPELHO
E AS RUAS DE FEIRA DE SANTANA-BA.
Dissertação apresentada ao programa de PósGraduação em Geografia do Instituto de
Geociências, da Universidade Federal da Bahia
como parte dos requisitos para obtenção do título de
Mestre em Geografia.
Área de concentração:
Geográfico.
Análise
Orientador: Prof. Dr. Wendel Henrique
Salvador - BA
Julho de 2010
do
Espaço
___________________________________________________________________
_
O48
Oliveira, Matteus Freitas de.
Pr i nc es as do s e r t ão : o u n i v er s o tr a ns e ntr e o es p e lh o e as
r uas de F e ir a de Sa nt an a / M at te us F r e i tas de O l i ve ir a. Salvador, 2010.
268f. : il.
Orientador: Prof. Dr. Wendel Henrique.
Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-graduação em Geografia.
Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, 2011.
1. Territorialidade Humana – Feira de Santana (BA.). 2.
Transexualidade. 3. Espaço público – usos e costumes. 4. Teoria queer. 5.
Prostituição.
I. Henrique, Wendel. II. Universidade Federal da Bahia.
Instituto de Geociências. III. Título.
CDU: 911.3:392.6-55.34(813.8)
______________________________________________________________
Elaborada pela Biblioteca do Instituto de Geociências da UFBA.
[...] Não cheguei nem perto do fundo da questão. Aliás, não
cheguei perto do fundo de nenhuma questão sobre a qual
tenha escrito [...]
Clifford Geertz
“O espaço formal e quantificado nega as diferenças, tanto as
que provêm da natureza e do tempo (histórico) como as que
procedem dos corpos, idades, sexos, etnias [...]. Uma das
contradições inerentes ao espaço abstrato consiste no fato de
negar o sensual e o sexual, ainda que possua como referência
a genitalidade: a célula familiar, a paternidade, a maternidade,
a identidade situada entre a fecundidade e o gozo”
Henri Lefebvre
Dedico essa dissertação a minha mãe Lucy, meu pai Léo e
todos meus familiares que suportaram as ausências durante
esses dois anos.
AGRADECIMENTOS
Constituindo-se em tentativas exaustivas de esforços, uma dissertação se
realiza numa trama que entrelaça pessoas e situações de formas mais diversas.
Depositamos, a cada linha dessas laudas, imensuráveis doses de sentimentos que
consubstanciaram o sentido profissional para um produto fenomênico. Por mais
técnica, mesmo tratando de simulações de modelos ou ainda tratando de questões
globais, o desenvolvimento de qualquer redação de conclusão de mestrado situa-se
nos interstícios dos sentidos. Nela está presente uma série de expectativas que se
retraem, ora se expandem e se misturam com as outras forças do universo.
As pessoas seriam um dos melhores exemplos, senão o mais importante, das
outras forças que movem o fazer do mestrado, e sem elas, o processo seria inviável.
Das pessoas eclodem as possibilidades, estratégias de criatividade e a interpretação
dos fenômenos. Elas nos ajudam a pensar e reelaborar, constantemente, aquilo que
determinamos como nosso objeto de pesquisa. Esse é o momento de agradecer a
tais forças que fazem o universo se mover e o são.
Agradeço, inicialmente, a Deus, meu mestre, de onde a vida brota. Ele
possibilitou inúmeras conquistas, até então, nunca sonhadas. Nos momentos de
aflição soube compreender as amarguras, medos e frustrações, alimentando-me de
alegria e paz para finalizar essa etapa.
A minha família pelo apoio incondicional aos meus sonhos e pela felicidade
de estarem sempre celebrando a concretização de cada etapa dessa dissertação.
Aos meus amigos que, inúmeras vezes, sinalizaram por e-mails ou ligações
telefônicas algumas reportagens, livros e outros materiais que tratavam da temática
desse estudo. Em especial, à Vadinho pela valiosa ajuda e apoio nunca negado,
obrigado pelo acolhimento na cidade de Salvador para cumprir os créditos do
programa de mestrado.
Em relação ao Programa de Pós-Graduação, gostaria de sinalizar a
importante parceria com meu orientador, Prof. Dr. Wendel Henrique, que durante a
orientação dessa pesquisa nunca impôs limites teórico-metodológicos, pelo
contrário, sempre soube acompanhar com distinção as minhas escolhas com suas
análises importantes.
Aos professores e funcionários do programa de Pós-Graduação em Geografia
da Universidade Federal da Bahia pelo incentivo e críticas que fizeram esse trabalho
amadurecer. Dentre eles, destaco os professores Dra. Catherine Prost, Dra.
Guiomar Inez Germani, Dr. Cristóvão de Cássio da Trindade de Brito e Dr. Angelo S.
Perret Serpa, que trocaram informações valiosas e dicas que facilitaram o
desenrolar da pesquisa. Aproveito para sinalizar gratidão as contribuições
construtivas do Prof. Dr. Leandro Colling no acompanhamento dessa pesquisa
enquanto projeto e produto, revelando-me um olhar queer para o espaço.
Aos colegas do grupo de pesquisa Cidade, Território e Planejamento –
CiTePlan, pelos debates profícuos e socializações: Elissandro Trindade de Santana,
Hiram Souza Fernandes, Shanti Nitya Marengo, Adriana Santana Bittencourt, Lívia
Fraga Celestino e Rodrigo Cortes Almeida.
Aos colegas do mestrado, sobretudo aqueles que compõem o Grupo Lúdico,
sem essa alternativa epistemológica seria impossível chegar até aqui: Juliana,
Cyntia Flores, Daniela, Edcarlos, Karina Fernanda, Elane Bastos, Lívia, Aluztane,
Ana Lúcia, José Eduardo, Joseval, Aline, André Gustavo, Anneza, André Nunes,
Antônia dos Reis, Luana e Luciana.
Aos colegas da Geografia que estiveram presentes nesse caminho: Denilson
(UFBA), Danillo (UFBA), Jailton (UFS), Patrício (UFMG), Sidney Oliveira (UEFS),
Marcio Ornat (UFRJ) e Joseli Silva (UEPG).
À coordenadora do laboratório de Geoprocessamento da UEFS, Profa. Ms.
Jocimara Britto Lobão, pelo apoio técnico, na concessão de softwares, dados e
máquinas para o mapeamento da prostituição Trans. A Erielton Oliveira e a Diego
Carvalho pelo acompanhamento nas atividades de campo.
Ao Colégio Estadual Olavo Alves Pinto e Projeção pela compreensão de
determinadas ausências e o G7 pelo movimento colorido que não deve cessar.
E por fim, a todas as Trans e sujeitos queers que fizeram essa pesquisa
acontecer: Marilyn Monroe, Brigitte Bardot, Sophia Loren, Joan Crawford, Ava
Gardner, Grace Kelly, Elizabeth Taylor, Greta Garbo, Bette Davis, Romy Schneider,
Claudia Cardinale, Ingrid Bergman, Lauren Bacall, Rita Hayworth, Catherine
Deneuve, Katharine Hepburn, Marlene Dietrich e Audrey Hepburn. Espero que um
dia, em nossas pesquisas acadêmicas, possamos tratá-las fora do campo do
anonimato. Obrigado garotas pelo aprendizado durante tardes e noites intensas. A
confiança e o respeito mútuo favoreceram o desenrolar dessa história.
RESUMO
Essa dissertação é fruto de um estudo de caso sobre a prostituição Trans na cidade
de Feira de Santana-BA e o uso do espaço urbano a partir das intervenções
infraestruturais sanitaristas que marcaram as décadas de 70 à 90. A cidade de Feira
de Santana-BA possui uma importância política e econômica que ultrapassa a
escala estadual, se destacando no setor comercial, rodoviário e pelo porte industrial.
Tais fatores favoreceram, ao longo de 40 anos a organização da territorialidade da
prostituição Trans nas principais avenidas do Centro da cidade. Entendemos por
Trans todo e qualquer sujeito que possuem performatividades de gênero para além
do binarismo, não correspondendo a matriz da heterossexualidade. A linearidade
entre sexo, gênero, prática sexual e desejo sexual corresponde à matriz
disseminada e reiterada na sociedade que se propõe manter a ordem dos gêneros a
favor da heterossexualidade baseadas na naturalidade dos corpos e dos
comportamentos. Os corpos que não compartilham dessa lógica são deslocados
para o campo da abjeção, vivendo nas zonas inóspitas e inabitáveis dos gêneros.
Os seres abjetos são cerceados pelas instituições normatizadoras que se encontram
espacializadas na malha urbana para fiscalizar, vigiar e manter as normas que
favorecem a dominação masculina. O grupo em análise dessa pesquisa possuem
histórias de vida que contrariam a matriz da heterossexualidade, correspondendo a
homens biológicos que se relacionam sexualmente com outros e para além disso
investem em transformações corpóreas com o auxilio de maquiagens, roupas
femininas, hormônios e silicone. O uso cotidiano das avenidas centrais favoreceu a
instituição do território da prostituição que possui suas lógicas de funcionamento.
Dentre elas temos a produção do ponto de trottoir, a influência das mais velhas, o
Bajubá, o uso de armas brancas, o pedágio, a multa e a madrinhagem. Apesar de se
constituir numa atividade que faz circular lógicas capitalistas, a prostituição Trans se
efetiva num rico laboratório enriquecedor do gênero. As práticas espaciais das Trans
generificam o espaço além de alcançar e generificar outros corpos imbricando sua
rede de sociabilidade.
Palavras-chave: Território, Trans, Feira de Santana, sexualidade e gênero
ABSTRACT
The present essay is an case research about the Trans prostitution at the city of
Feira de Santana-Ba and the way that the urban space has being used after the
sanitarian interventions on the infrastructure that make history from 70’s to 90’s. The
city of Feira de Santana-Ba has an economic and political importance that
transcends the scale of Bahia state, considering its commercial importance, the
interchange, and the large industrial scale. All of this elements favor, through 40
years the Trans prostitution territoriality organization on the main avenues in
downtown. We define as Trans all and any fellow that have performative gender
beyond the binary, that does not corresponds to the heterosexual matrix. The
linearity between sex, gender, sexual practice and lust corresponds to the
broadcasted and reaffirmed matrix in a society that proposes to keep the gender
regularity favoring the heterosexuality based on the body naturalness and behaviors.
The bodies that does not share this logic are moved to the abjection realm, living at
the inhospitable and uninhabitable gender zones. The abject beings are restricted by
the normalize institutions that are scattered at the urban mesh to control, to keep
watch over and to keep the rules that favor the male domination. The analyzed
people in this research have life histories that are at odds with the heterosexual
matrix, corresponding to biological men that have sexual relations with other men
and beyond that, they pay for bodily transformation wearing makeup, female clothes,
hormones and silicone. The everyday use of the central avenues facilitate the
prostitution territory institution that has its own logic. Talking about that we can cite
the production of the trottoir place, the elderly influence, the Bajubá, the melee
weapons usage, the toll, the fine and the matron of honor. In spite of its construction,
in an activity that makes the capitalist logics spread around, the Trans prostitution
puts into effect a rich lab that enriches the gender. The spacial practices genderfy the
space, reaches and genderfy other bodiers overlapping its sociability net.
Word-keys: Territory. Trans. Feira de Santana. Sexuality. Gender.
LISTAS DE FIGURAS
Figura 01
A Igreja Senhor dos Passos: O poder do Clero
17
Figura 02
O Posto Policial Militar: O poder da Milícia
18
Figura 03
A Prefeitura Municipal de Feira de Santana: O poder do
19
Estado
Figura 04
Opulência das arquiteturas normativas vigilantes
19
Figura 05
Marca de Boiadas nas calçada da Avenida Senhor dos
20
Passos
Figura 06
Posicionamento do Relógio da Praça de Alimentação na
25
orientação oeste-leste em momentos diurnos distintos.
Figura 07
Vista frontal da Praça Bernardino Bahia
26
Figura 08
Barracas dos camelôs usadas para encontros sexuais
28
nas ruas do Meio e Sales Barbosa respectivamente.
Figura 09
Casarão Fróes da Mota- década de 70
140
Figura 10
Casarão Fróes da Mota: Propriedade da Fundação
141
senhor dos Passos, 2010
Figura 11
Rua Sales Barbosa: alterações infra estruturais pós
142
década de 70.
Figura 12
Praça dos Remédios: Do abandono à recuperação
143
Figura 13
Praça Bernardino Bahia: década de 70 e 2010.
145
Figura 14
Mercado Municipal de Artes e Antiga Rua do Meio
146
Figura 15
Sistema de transportes coletivos de Feira de Santana na
150
década de 80.
Figura 16
A feira na Feira de Santana meados da década de 80
151
Figura 17
Avenida Presidente Dutra
156
Figura 18
Ponto do trottoir da avenida Marechal Deodoro com
161
ênfase a banca de revista Brasil
LISTA DE FLUXOGRAMAS
Fluxograma 01
Síntese sobre a aplicação do pedágio e da multa
179
Fluxograma 02
Rede de madrinhagem entre as Trans pesquisadas
183
Fluxograma 03
Hierarquia de influência na rede de sociabilidade 186
Trans
Fluxograma 04
Trama e agentes envolvidos no Doce
189
LISTAS DE MAPAS
Mapa 01
Bairro que as Transformista residem atualmente
104
Mapa 02
Bairro que as Travestis residem atualmente
107
Mapa 03
Bairro que as Transexuais residem atualmente
110
Mapa 04
Deslocamentos externos para Itália
113
Mapa 05
Lojas mais freqüentadas pelas Trans
114
Mapa 06
Motéis mais freqüentados pelas Trans
115
Mapa 07
Farmácias mais freqüentadas pelas Trans
116
Mapa 08
Território da prostituição Trans entre as décadas de 70-80 148
Mapa 09
Território da Prostituição entre as décadas de 80-90
Mapa 10
Território da prostituição Trans entre da década de 90 até 158
154
os dias atuais
Mapa 11
Novo território da prostituição Trans de 2005 até os dias 163
atuais
Mapa 12
Espacialização histórica dos territórios da prostituição em 164
diferentes períodos
Mapa 13
Locais que as Trans mais se identificam em Feira de 174
Santana
LISTA DE QUADROS
Quadro 01
Triagem das informantes Trans da pesquisa
33
Quadro 02
Triagem dos nomes de gays citados pelas Trans durante
34
as entrevistas.
Quadro 03
Universalismos dos gêneros da escola Beauvoriana
47
Quadro 04
Panorama socioeconômico das Transformistas de Feira
78
de Santana
Quadro 05
Panorama socioeconômico das Travestis de Feira de
86
Santana
Quadro 06
Panorama socioeconômico das Transexuais de Feira de
96
Santana
Quadro 07
Consumo preferencial trans- vestuário e farmácias
219
Quadro 08
Lugares de identificação trans em Feira de Santana
222
Quadro 09
Pontos e permanência de prostituição
225
Quadro 10
Deslocamentos intraurbanos Trans
227
Quadro 11
Identidade, idade e tempo de generificação
228
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 01
Nível de escolaridade das Transformistas feirenses
78
Gráfico 02
Nível de escolaridade das Travestis feirenses
87
Gráfico 03
Nível de escolaridade das transexuais feirenses
94
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
LISTAS DE FIGURAS
LISTA DE FLUXOGRAMAS
LISTAS DE MAPAS
LISTA DE QUADROS
LISTA DE GRÁFICOS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................1
I- A CIDADE PRINCESA COMO ESPELHO E RUA ...................................................2
II- CAMPO .................................................................................................................13
III- NOTAS SOBRE O MÉTODO E AS TÉCNICAS DE PESQUISA .........................22
CAPÍTULO I ..............................................................................................................39
1- CORPO E ESPAÇO GENERIFICADOS: A DIALÉTICA DO GÊNERO ............40
1.1- A abordagem de Gênero para análises espaciais........................................40
1.2- Os avanços do debate de gênero e espaço.................................................43
1.3- A teoria da performatividade de gênero numa perspectiva espacial............55
1.4- As heterotopias espaciais dos gêneros divergentes ....................................61
CAPÍTULO II .............................................................................................................67
2- FAZENDO O GÊNERO E O ESPAÇO: A (RE) INVENÇÃO DO FEMININO E A
(RE) INSCRIÇÃO DO ESPAÇO ............................................................................68
2.1- Princesas do disfarce ...................................................................................72
2.3- Princesas do erro da natureza .....................................................................87
2.3- A categoria Trans: universo, território e sujeito ............................................96
2.4 - Deslocamentos intraurbanos Trans ............................................................99
CAPÍTULO III ..........................................................................................................117
3- O TERRITÓRIO TRANS: AMPLIANDO HORIZONTES TEÓRICOS PARA OS
ESTUDOS DE GÊNERO......................................................................................118
3.1- O estudo do conceito de território ..............................................................118
3.2- O(s) poder(es) no(s) território(s) ................................................................126
3.3- O território da prostituição nas pesquisas sociais ......................................134
3.4- Formação e apropriação do território do sexo em Feira de Santana: as
mobilidades dos territórios.................................................................................138
CAPÍTULO IV..........................................................................................................165
4- FAZER A RUA: ENTRE A TERRITORIALIZAÇÃO E LUGARIZAÇÃO..........166
4.1- Estratégias territoriais, dominação e normatização dos gêneros Trans .....167
4.2- A fluidez territorial do cliente ......................................................................196
V - A GUÍSA DE CONCLUSÃO..............................................................................198
REFERÊNCIAS.......................................................................................................206
APÊNDICES ...........................................................................................................218
INTRODUÇÃO
“O que queremos, de fato, é que as idéias voltem a ser perigosas”
Internacional Situacionista
1
I- A CIDADE PRINCESA COMO ESPELHO E RUA
“Salve ó terra formosa e bendita
Paraíso com o nome de Feira
Toda cheia de graça infinita
És do norte a princesa altaneira”
(Hino à Feira, composição de Georgina Erisman)
A Princesa do Sertão é o epíteto mais utilizado nas últimas gestões
municipais1 anunciada com embalos de orquestra ao soar o Hino à Feira de
Georgina Erisman2. A graça infinita de Feira de Santana foi registrada por inúmeros
poetas locais que elucidaram a transformação do cotidiano de uma cidade marcada
pelo modo de vida rural, com o predomínio de tropeiros, carros de boi e vaqueiros
que cruzavam os sertões rumo ao litoral, por uma ruptura provocada pela vida
operária na cidade que se industrializava e se modernizava a partir da década de 50
do século XX.
Ruy Barbosa, com base na história memorialista, numa conferência política
realizada em Feira de Santana para apoiar a candidatura do governador do Estado
Paulo Martins Fortes, em 25 de dezembro de 1919, criou o epíteto de Princesa do
Sertão para a cidade, declarando que
[...] se houvesse de dar um nome a esta série de excursões, que, muito a
pesar meu, vai acabar, e já quase por momentos, chamar-lhe-ia eu ‘a minha
viagem ao coração da Bahia’; pois é o coração da terra flagelada o de que,
com meus companheiros, viemos todos à busca, nesta romagem pelos
sertões e pelo recôncavo, de Vila Nova da Rainha à Feira de Santana, da
antiga corte sertaneja à bela princesa do sertão. (FOLHA DO ESTADO, 18
de setembro de 2007)
A partir desse fato, associado a todo imaginário elaborado sobre um Nordeste
seco e precário, naturalizado enquanto o espaço climático da pobreza nacional, que
Ruy Barbosa intitula Feira de Santana como a princesa dos flagelados sertanejos
1
O Termo Princesa do Sertão fez parte do marketing da gestão municipal de José Ronaldo de
Carvalho (2000 – 2008) e da atual gestão de seu sucessor Tarcisio Pimenta, ressignificada como a
cidade princesa.
2
Hino disponível no site http://www.feiradesantanna.com.br/hino.htm acessado no dia 05/02/2010.
2
rudes na labuta com o gado e do crescente comércio regional que já se projetava na
escala nacional.
Feira de Santana tornava-se princesa por conta da sua importância comercial
atrelada à feira livre e à venda de gado, configurando-se diferente de qualquer outra
cidade do interior da Bahia. De acordo com Simões (2007) o frenético movimento de
pessoas na década de 40 do século XX, similar com a agitação da capital do Estado,
denotava a opulência do comércio que soava como parâmetro de desenvolvimento
da cidade, e como Princesa majestosa, Feira de Santana atraia para si a atenção
das elites políticas e econômicas tanto regionais quanto nacionais, sendo a grande
referência do sertão baiano, dentre algumas cidades litorâneas.
O epíteto de Ruy Barbosa enobrecia Feira de Santana, inserindo-a num
universo cultural marcado por relações sociais tradicionalistas, denso das
ambiguidades de uma cidade do interior, que paulatinamente se distanciava das
funções econômicas ligadas ao rural e das fortes raízes que acompanharam a
formação da Vila de Sant’Anna. Para Simões (2007) as incontáveis estradas
vicinais, movimentadas por imensas boiadas que migravam do Piemont da Chapada
rumo ao litoral, possibilitaram a especialização das atividades comerciais e atraiam,
nas segundas-feiras, um contingente de vendedores de inúmeras localidades
circunvizinhas pelas facilidades de trocas, compras e vendas.
As nuances da cidade de Feira e sua singular contradição na conservação de
uma vida rural que é transpassada por lógicas comerciais podem ser analisados em
trechos literários que remontam uma vida campesina, mas que tendenciosamente se
urbanizava. A feira do rural já tinha alma e pique urbano, vendiam-se bois, bodes,
utensílios para vaqueiros, muitos objetos que classificamos como rurais, mas o ato
de venda, sua velocidade e freneticidade apontavam para um costume urbano que
se efetivou na década de 80 do século XX nas entranhas da feira de Sant’Anna
narrados pelo poeta Godofredo Rebello de Figueredo Filho
FEIRA DE SANTANA
Feira de Sant’Anna do grande comércio de gado
Nos dias poeirentos batidos de sol compridos
Feira de Sant’Anna
Das segundas-feiras de agitações mercenárias
Correrias de vaqueiros encourados
Tabaréus suarentos abrindo chapéus enormes
Barracas esbranquiçadas à luz
3
E as manadas pacientes que vêm para ser vendidas
De bois do Piauí, de Minas, do sertão brabo
até de Goiás.[...]
(FIGUEREDO FILHO, 1977)
O poeta Eurico Alves, filho da terra, que fazia parte da elite intelectual e de
família burguesa, retratou em crônicas, poesias e ensaios, inúmeras situações do
cotidiano da cidade princesa do início à metade do século XX. No trecho da poesia
“Minha terra”, Eurico Alves nega a cidade enquanto moça e atribui-lhe ações de
menino
[...]
Minha terra é menino um vaqueirinho vestido de couro
As calças de couro cobrindo as listradas, o parapeito e o jaleco, e o chapéu
enfeitado de linha vermelha...
O menino já anda com a faca na cinta
[...]
(BOAVENTURA, 1928)
A descrição de Feira de Santana na visão de Eurico Alves, analisada por
Eronize Lima Souza3, produz um imaginário de uma cidade masculinizada pela
virilidade dos vaqueiros, figuras centrais na historiografia do lugar, que, portado de
armas, impõem-se pela sua violência, típica dos coronéis agentes sociais que
mantinham a “paz” e a “ordem”. Desde então, se produz um urbano no espelho do
homem heterossexual (res)significado pelo regionalismo da virilidade e coragem dos
vaqueiros, mas mantém-se na ambiguidade conferida por Ruy Barbosa no reflexo da
delicada, formosa e majestosa intitulação de Princesa.
Henri Lefebvre (2000) já considerava que a produção do espaço é movida por
forças masculinizantes. A própria descrição de Eurico Alves sobre Feira de Santana
reafirma o gênero normativo presente no discurso sobre a cidade. Uma força que
atua para regular o espaço na tentativa de diluir o gênero normativo na produção
espacial, deixando as arquiteturas urbanas impregnadas de formas e funções
discursivas, mantendo a hegemonia heterossexual dominante.
Corroborando com essa afirmativa, Cortés (2008), acredita que as
arquiteturas urbanas refletem a dominação masculina na sociedade pela
3
As referências sobre o artigo da pesquisadora não foram encontradas na plataforma de currículos
lattes CNPq. Tal artigo, intitulado “Minha terra é menino: memórias da princesa do sertão na poética
de Eurico Alves Boaventura”, está disponível na internet cujo endereço eletrônico é <
http://www.valdeci.bio.br/pdf/eronize_lima_souza.pdf >.
4
exacerbação de suas dimensões infra-estruturais em que o “grande” está,
ideologicamente, ligado a virilidade masculina, visto que a suntuosidade, a opulência
e sua verticalização celebram a cultura do falo.
Por isso os discursos celebravam a cidade de Feira de Santana como menino
e não moça. Na visão de Eurico Alves uma cidade moça é frágil, suscetível a
invasões, não se impõe perante o conflito e não detém autoridade de vigilância. O
poema reproduz códigos da dominação masculina, descritos em Bourdieu (1999a), e
sua apropriação do espaço conforme destaca Silva (2009). A rua era o local, por
excelência, de homens e as casas eram espaços restritos e definidos para o
confinamento das respeitadas mulheres. Nem as mulheres de “vida fácil4”
transitavam pelas ruas da Princesa. Segundo Carolina Silva (2009), elas estavam
espalhadas e escamoteadas nos cortiços próximos ao centro ou moravam ao lado
de famílias tradicionais em casas cujos aluguéis eram pagos pelos amantes.
Eis a maior contradição feirense, uma cidade cuja figura ilustrativa é um
vaqueiro perspicaz e viril, e que recebe com docilidade atributos de Princesa
favorecendo a boemia no centro e nas desembocaduras das periferias animadas
pelas casas noturnas. O baixo meretrício, fétido e insalubre, exalava o cheiro da
orgia sertaneja, era lá, nas casas noturnas controladas pela vigilância sanitária e
pelo capelão, que a cidade menino se transformava em homem, iniciado entre as
prostitutas e rameiras de toda região, conforme analisa Carolina Silva (2009). Dentre
elas, figuras escondidas, aprisionadas pelos discursos médicos e que foram
libertadas pelo rompante da modernidade, assumindo a realeza das princesas nos
bailes carnavalescos da década de 70 do século XX como gays, transformistas,
travestis e transexuais.
Essa androgenia feirense permitiu a subversão de seu urbano em uma cidade
travestida da tradicionalidade de seus fluxos, mantida pela vigilância dos agentes
normatizadores dos gêneros, que, ao dormirem e “liberarem” os fluxos da rua
rarefeita, permitiam que os gatos pardos5 pudessem transitar como caçadores na
noite escura da Princesa, por sobre o luar do sertão.
4
Apesar de reproduzir esse rótulo presente no senso comum, compreendemos que a vida da
prostituição é marcada por muitos desafios que põem em jogo a vida. Nesse sentido, a vida
prostituta, negada e reprimida, é uma vida difícil.
5
Apologia ao estudo etnográfico de Larissa Pelúcio (2005), intitulado “Na noite nem todos os gatos
são pardos - notas sobre prostituição travesti”.
5
As mudanças no cotidiano da cidade de Feira também foram descritas pelo
poeta Eurico Alves. Uma cidade marcada pela tranquilidade, pelos idos da década
de 40 do século XX, paulatinamente vai ganhando novo dinamismo com o crescente
comércio e industrialização. Utilizando-se do pseudônimo de Zé Fernandes, Eurico
Alves acreditava que
Mudaram-se os tempos. [...] Dinamismo, vida nova, movimento e
movimento. Nunca se poderá mais dizê-la “Cidade do Silêncio e da
Melancolia”. Foi-se esse tempo... carros, autocaminhões, ônibus
saculejando a paisagem, grita de buzinas vigorosas, alto-falantes
desmentem esta legenda. Que coisa diferente. (FOLHA DO NORTE, nº
2654, 1960).
As forças progressistas, como analisa Oliveira (2005), transformam o urbano
feirense. A melancolia da vida tipicamente rural se esvaziava no fluir de automóveis,
gerando novos sons na cidade, que se alongavam em enormes avenidas e ruas
lotadas de migrantes que se apropriavam aleatoriamente dos terrenos úmidos e
alagadiços do subúrbio. Hugo Navarro Silva, numa crônica dedicada para Aloísio
Resende em 1951, se coloca desapontado com os clubes, casas de jogos, bordéis e
a paulatina substituição da rua orgânica para espaços largos que desapareciam no
horizonte, visando à fluidez de pedestres, ciclistas e automóveis, migrantes que
chegavam de todas as partes.
[...] A tua cidade, bisonha e, certamente, com algo de pitoresco e de
romântico à época em que viveste, derramou-se, esbateu-se por sobre o
planalto com o afã de quem tem um encontro marcado com o progresso. Os
palacetes alinham-se como nunca se alinharam.
Rasgam-se avenidas, tentáculos gigantescos que parecem pretender
abarcar a orbe.
Os subúrbios estão irreconhecíveis, transformados.
As moças bebem whisky e fumam cigarro americano. Há dancings clubs e
clubs dancings.
[…]
A população sofreu uma extraordinária mudança. Há nortistas e nortistas,
com todos os sotaques e todas as peixeiras.[...]
Ontem deu dois macacos no bicho, que anda muito animado por cá.
Asseguro-te, nunca houve tanta barriga a mais e tanta cabeça a menos,
como agora.
Os livros são muito procurados, pelo marroquim das encadernações e pelo
ouro dos dorsos, para servir de ornamento a um belo hall ou a um gabinete
fidalgo.
As misérias, em prosa e verso, perpetram-se, não somente em letra de
forma, mas agora em grande escala, também na linguagem falada que
espalham as torres de aço das estações de rádio.
Este é o alvorecer da segunda metade do século na província com
pernosticismo de capital. (SILVA, 1951, p.4).
6
Com a ampliação das rodovias federais e estaduais o acesso à Feira de
Santana foi facilitado por conta de sua localização estratégica, que posteriormente
foi reconhecida com a conferência do título de maior entroncamento rodoviário do
norte-nordeste. Seu comércio luxuoso, os clubes da elite, ruas e avenidas largas e
as praças ajardinadas seduziam os viajantes, ao mesmo tempo em que reiteravam
os discursos sobre a renovação arquitetônica da cidade atingida pelo efeito
progressista.
A cidade já apresentava sua impessoalidade nos novos contornos do
progresso urbano. O centro de Feira agitava-se todos os dias úteis da semana. O
contingente de feirantes e consumidores superlotava as avenidas centrais da cidade,
onde se concentram estabelecimentos comerciais e poucas casas residenciais. Ao
centro da cidade estava reservada uma vida de intensa atividade econômica, onde
tudo era permitido vender. O barulho e a agitação da vida centralizada nas avenidas
Senhor dos Passos e Getúlio Vargas afastaram as famílias que ainda residiam nos
seus arredores, favorecendo o adensamento nas áreas periféricas da cidade,
alongando a malha urbana feirense.
Durante a noite o centro silenciava, aguardando a abertura dos bordéis das
mulheres de vida airosas que mantinham a lógica do centro em funcionamento
(SILVA, 2004). Não vendiam mais acessórios, vestuários nem alimentação. Quem
quisesse comprar algo desse tipo deveria circular no centro durante o dia, pois à
noite reservavam a venda do corpo e do prazer no Minadouro, no Tamarindo, no
Beco da Energia e nos bares centrais onde a vida boêmia fluía.
Tais espaços são transgressores, opostos à tradicionalidade dos bons
costumes das famílias burguesas de Feira que estrutura o trabalho, uma cidade que
historicamente apresenta a permissividade do proibido vislumbrado nas mulheres de
vida fácil e seu confinamento em espaços privados onde a prostituição estava
enclausurada.
Segundo Carolina Silva (2009), o capelão poderia controlar a abertura e o
fechamento dos prostíbulos de Feira. Quando o capelão parou de fiscalizar os
bordéis da cidade, essa atividade influenciada pelas transformações frenéticas que a
sociedade perpassou rumo ao progresso, baseada na venda do corpo, ganhou as
ruas, transbordando e diversificando a prostituição pelo espaço central e periférico
de Feira de Santana.
7
A prostituição diversificada descentralizou a figura feminina da mulher com a
presença de outros sujeitos com grande potencial de atração de clientes. Gays,
travestis, transformistas, transexuais e michês, além da permanência das garotas de
programa, invadiram as praças, ruas e avenidas do centro feirense, diversificando e
tensionado seus usos na malha urbana.
Os becos com movimentos rarefeitos permitiam encontros fortuitos que se
iniciavam num intenso flerte pelas calçadas do centro, encontros muitas vezes
abortados pelos seguranças das lojas ou até mesmo com a ação coercitiva da
polícia. Porém, entre tantos desafios, muitos deles truculentos e pondo a vida em
risco, os sujeitos da noite foram resistindo e se territorializando de forma fluída,
deslizando no espaço de acordo com o tempo (SOUZA, 1995). Próximo ao
amanhecer entregam as chaves da rua a outros agentes que sustentam as
territorialidades diurnas ligadas ao comércio que, mais uma vez, escamoteia a
logística do prazer que ocorre nas ruas à noite.
Dentre os agentes noturnos destacam-se, nessa dissertação, as travestis,
transformistas e transexuais, que se revezam pelas ruas e becos do centro a partir
do momento que as atividades diurnas se desarticulam e fazem circular por esse
lugar novas lógicas, normas e símbolos. O centro é caracterizado pelo dinamismo
das transações, negócios e negociatas conectadas aos setores comerciais, de
serviços, gestão e sendo um local que detém enorme fluxo de pessoas, informações
e veículos, mas permite, simultaneamente, a emergência de atividades ligadas à
prostituição: prazer, afeto, sexo e conflito, que se delineia com o cair da noite e ao
cerrar das portas dos estabelecimentos comerciais.
A Praça da Bandeira, solitária e apenas monumental6, torna-se grande vitrine,
onde corpos se exibem para serem notados, desejados e momentaneamente
adquiridos. As esquinas são tomadas por corpos marginalizados, estigmatizados
pela luta de classes, pelos cerceamentos das raças e pelas simbologias que suas
performances adquiriram. Novos padrões de gênero, novos conteúdos espaciais são
bordados ao longo das avenidas. E, juntamente com o vai-e-vem reduzido de
veículos e pedestres, desfilam no centro as donas da noite7, exalando prazer e
delimitando seu espaço de atuação, ou seja, generificando o centro e dialeticamente
6
Alusão a monumentalidade das praças que perdem sentido de uso e possuem apenas o sentido da
forma.
7
Refere-se às agentes territoriais da prostituição. Um termo ilustrativo que agrega as travestis,
transformistas, transexuais e as garotas de programa.
8
generificando-se
e
produzindo
outros
corpos
generificados
(OLIVEIRA
e
HENRIQUE, 2009a).
Não há estranhamento nenhum sobre a ocorrência da homossexualidade nas
cidades, pois esta se manifesta desde suas origens. Porém, segundo Hélio Silva
(1993), as tecnologias de desmonte de identidade encontradas pelas trans,
altamente dispensáveis para viver uma possível homossexualidade, é que se
sofisticaram e validaram um fortíssimo processo de transformação, superando a
fantasia carnavalesca do homem que se travestia de mulher na festa profana do
Bando de Feira8 para anunciar os festejos sagrados de Senhora Sant’Ana ou ainda
nos bailes carnavalescos onde
[...] tudo pode, tudo vale, mesmo que não se atualize, tudo pode ser
negado, desdito, afirmado enquanto mera brincadeira. Nada então é
verdadeiro. [...] Tudo é fantasia, mera farsa, disfarces projetados num
espelho coletivamente compartilhado. Nunca pessoas reais. (SILVA, 1996,
p.19).
Projetam-se no espanto quando nos dias comuns, desfilam nas ruas e
avenidas pessoas que se vislumbram no espelho do feminino e que exorcizaram dos
seus corpos o ranço de um masculino que é desconstruído pelas tecnologias de
transformação identitária. Essas pessoas contrariam as lógicas do carnaval e dos
travestidos do Bando, pois se assentam com segurança, contrariando a paródia das
fantasias, que estão simbolicamente codificadas pelas Trans como sinônimos de
existência, de possibilidade e do encontro consigo.
Quando resolvi utilizar o epíteto de Princesa do Sertão para se referir às
travestis, transexuais e transformistas, fiz o mesmo percurso de subversão de
identidade realizado por elas ao refazerem seus gêneros. Uma tentativa de
reconstruir um novo significado em um discurso antigo e ilusoriamente estável. Ao
aglutinar essas “criaturas”9 num título político utilizado para destacar Feira de
Santana entre todos os municípios do Sertão, busquei reforçar a contradição que
valide e visibilize a performatividade que estava escamoteada pelas regras
disciplinares da sociedade masculinizadora, (FOUCAULT, 1987).
8
O Bando Anunciador da Festa de Senhora Santana é uma festa profana que antecede os festejos
realizados pela igreja católica da Matriz.
9
A palavra criatura é sinalizada no texto na tentativa de reproduzir os estranhamentos que os corpos
transformados provocam nos agentes normatizadores, aqueles que determinam quais expressões,
sentimentos e prazeres são possíveis para uma vida social de respeito, corroborando com as
proposições de Butler (2003).
9
Durante a realização da etnografia na praça10 ouvi muitas delas sinalizando a
importância de sua beleza, encanto, algo que transita nos interstícios do pudico e da
vulgaridade, mas que por fim almejava uma estética de realeza. Por isso o fascínio
sobre o belo externalizado nas curvas sinuosas de seus quadris e de movimentos
milimetricamente ensaiados que possibilitam a visão da escultorização de seus
corpos no espelho feminino.
O termo princesa se efetiva positivo, para este estudo, pela possibilidade de
revisitar esse título feirense sobre outra lógica. No decorrer da pesquisa essas
princesas me ensinou os caminhos nos quais são possíveis os desequilíbrios e a
possibilidade de virar o mundo de cabeça para baixo, embaralhando significados e
trazendo à realidade algo novo e provocativo. Ser princesa não é para qualquer
uma. Ser princesa do sertão é ser diferente e opulenta entre todas as manifestações
do feminino, em que a única herança reside em criar sua própria história
contornando-a de um sobrenome iluminado, sexuado e glamuroso.
Entre o espelho e as ruas está o reino compartilhado das princesas do sertão.
Enquanto o espelho, como uma superfície polida, indica as feições das montagens
do gênero, a rua funciona como um verdadeiro laboratório de confirmações. É na
rua, provocando os transeuntes pedestres ou motorizados, que é acionado um teste
que indica aprovação ou reprovação da realeza que se custa a produzir
cotidianamente à frente do espelho.
Não é minha proposta realizar um mapeamento da espacialidade Trans,
evidenciando como as donas da noite se espalham no centro feirense, e tão pouco
realizar uma catalogação das possíveis identidades esbarradas durante a pesquisa.
Porém, foi necessário evidenciar os territórios de concentração e de fluidez,
demonstrando como as arquiteturas permitem e, dialeticamente, inibem o uso da rua
pelas princesas turbinadas de hormônios femininos.
Como nos deparamos com um problema de categoria, sentido por Pelúcio
(2007), Peres (2005) e Benedetti (2005), no que se refere às múltiplas identidades
presentes no que o senso comum homogeneizador chama arbitrariamente de
travesti, preferimos utilizar o termo Trans por agregar um leque de definições
possíveis no que tange às transformações de gênero.
10
A praça refere-se à área da prostituição Trans que se localiza de frente ao Mercado de artes e se
prolonga pela Avenida Marechal Deodoro da Fonseca.
10
O termo Trans, também utilizado por Benedetti (2004), delimita um farto
domínio social em que as diferenças de percepção sobre o corpo e seus atributos,
associado com os procedimentos de transformações profundas ou superficiais,
reversíveis ou irreversíveis, permite a compreensão da pluralidade de corpos que se
distinguem a favor desses critérios. Deve-se ter a clareza que nem todo corpo que
apresenta lembranças do masculino reinventado no feminino é um corpo de um
travesti, visto que, Peres (2005) enfatiza que cada categoria analisada nesse estudo
possui demandas específicas.
O que queremos argumentar é que no território Trans existe um jogo de
imagens muito delicado e muitas vezes negligenciado por um simples olheiro. Um
dos principais e corriqueiros equívocos é acreditar que todas as Trans se prostituem.
Algumas delas estão inseridas no mercado de trabalho, inclusive em setores nunca
imaginados, rompendo, paulatinamente, as barreiras das restrições sociais criadas
pela sociedade heteronormativa.
No jogo performático que as Trans realizam nas esquinas e nos
desdobramentos das avenidas centrais, elas revelam o cruzamento de ficção com a
crua realidade de sujeitos polimorfos que existem em concretude e refazem os
circuitos espaciais a partir de novas posições enquanto sujeitos no mundo. Sujeitos
que lançam fora sua condição institucional de existência, negando sua certidão de
nascimento e reescrevem seu outro nascimento a partir da descoberta do feminino
nos seus corpos, produzidos enquanto ser do e no mundo no espelho da mulher.
Esta dissertação buscou contribuir com o debate teórico-metodológico da
ciência geográfica, visto que as produções no que se referem às temáticas ligando
gênero e Geografia ainda são muito tímidas no Brasil. Nota-se também que o
arcabouço teórico da Geografia apresenta uma carga heteronormativa11 que enfatiza
o masculino como a única performatividade de gênero12 capaz de produzir espaço,
ou ainda, pesquisas nessa área reproduzem uma lógica binarista, reafirmando o
poder do falo e a normatização dos corpos.
Destacar o gênero como conteúdo do espaço é lançar-se em um ambiente
pantanoso, onde as bases teóricas ainda estão se formando. Eis aqui o desafio que
me move: ampliar a tímida discussão de espaço-gênero na Geografia, ao mesmo
passo que retribuir às outras ciências sociais os empréstimos valiosos de seus
11
12
Ver Butler (2003).
Ver Butler (2003).
11
procedimentos teórico-metodológicos, subvertidos pela geografização do debate, tão
queer13 quanto as políticas contemporâneas de gênero.
Outro aspecto que justifica tal investigação é que essa parte da história
feirense nunca foi contada. A partir disso, percebe-se a importância social dessa
pesquisa justamente por propor a ampliação do debate sobre o conceito de território
sob uma perspectiva cultural, tendo o gênero como um dos elementos
influenciadores da sua produção, como também fornecerá visibilidade a esses
grupos socialmente excluídos, promovendo, por meio dessa investigação, a criação
de políticas públicas que ampliem e fortaleçam a cidadania desses grupos.
13
O termo queer está ligado a uma corrente teórica de estudos em gênero iniciada por volta dos anos
oitenta por pesquisadores e ativistas de grupos distintos, ganhando maior expressividade nos
Estados Unidos. Tal corrente se propõe, além de desmistificar a naturalidade do gênero, discutir a
densa heteronormatividade presente nos estudos de gênero, sendo esta uma proposta de subversão
às normas hegemônicas. Tal corrente será melhor aprofundada no capitulo I.
12
II CAMPO
13
“Todo dia o centro de Feira é um novo centro”.
A frase inicial se propõe caracterizar a área de estudo partido de sua
dinamicidade socioespacial. Para tanto, se utilizando dos estudos queers, fizemos
um detalhamento subversivo do campo onde o cotidiano retratado nessa dissertação
foi analisado. Como a tendência queer pressupõe a quebra de normas, realizamos
uma descrição atípica. Propositalmente cruzamos abordagens dispares da
Geografia, mas aqui elas se complementam dando sentido a proposta, afim de que o
produto dessa interação alcançasse o paradoxo existente no território.
Cruzamos os aspectos físicos, humanos, políticos, econômicos e simbólicos
com a mesma intenção observada no jogo de ambiguidade realizado pelas Trans,
buscando evidenciar as contradições espaciais e a pouca coerência lógica e
pragmática que caracteriza a ordem, mesmo que confusa e embaralhada, da
realidade estudada.
A Feira, ora se refere a cidade, ora se refere a uma prática comercial e se
bifurca na feira de coisas e simultaneamente, mas distinto, a feira do corpo e do
prazer. A ambigüidade de estar localizada numa faixa de transição confere a Feira
de Santana outra condição geográfica que lhe indica o hibrido. Essa dialética pode
ser observada na manutenção da vida campesina, do sertanejo, do gado, das
estradas vicinais, ao mesmo tempo em que se observa a consolidação da vida
urbana, frenética, do comerciante e das avenidas pavimentadas suspensas no ar
como os novos viadutos da cidade. Sua condição geofísica de transição conota a
transcondição espacial14 que buscamos compreender nessa pesquisa, onde os
objetos que compõem o espaço não são mutáveis e influxos, contra a radicalidade
extremista da forma. Nem rural nem urbano, nem Sertão nem Zona da Mata, uma
cidade hibrida no seu fluxo e em suas formas.
Situada na zona de planície entre o Recôncavo e os tabuleiros semiáridos do
nordeste baiano, o município de Feira de Santana possui importância históricocultural para o estado da Bahia, Nordeste e Brasil. Essa importância pode ser
justificada por meio de sua formação territorial, quando das passagens de várias
14
Essa terminologia se apresenta como uma proposta que precisa ser mais explorada pelos
pesquisadores do espaço para compreender a heterotopias espaciais trabalhadas por Foucault
(1967);
14
tropas, viajantes e tropeiros oriundos do alto sertão baiano e de outros Estados, a
caminho do porto de Cachoeira, a vila mais importante da Bahia no século XIX. Já
era possível apontar Feira de Santana como um importante entreposto comercial de
gado, que posteriormente se tornou mais complexo, pós a modernização, com a
implantação do centro Industrial Subaé, na década de 70 (FREITAS, 1998).
Uma nova Feira de Santana começou a ser elaborada. Um novo urbano, um
novo mercado comercial se instaurou. Consequentemente, novos modos de vida
foram paulatinamente produzidos e aderidos. Feira de Santana tornou-se
modernizada como um importante nó regional na rede urbana brasileira.
Junto às inovações tecnológicas, abertura de fábricas e postos comerciais,
criação de conjuntos habitacionais e urbanização de espaços rurais, outro conteúdo
foi se materializando no espaço feirense, retroalimentado pela pequena e tímida
burguesia feirense. Esta em busca da luxúria e do prazer, favoreceu a instauração
das antigas territorialidades do século passado da prostituição feirense no centro
comercial, acompanhando-lhe até seu deslocamento para os bairros periféricos, em
especial o Santo Antonio dos Prazeres, com as reformas higienistas da década de
70, discutidas por Matos (2000) e Carolina Silva (2009).
As estreitas ruas da cidade eram constantemente tomadas pela Feira de Sant’
Anna que ainda hoje atrai, cotidianamente, milhares de pessoas das cidades
circunvizinhas que aproveitam as variedades de serviços e comércios para
satisfazerem demandas da modernidade.
Atualmente, Feira de Santana é um município pujante, o segundo mais
importante no estado baiano, com cerca de 591.707 habitantes, de acordo com o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2009), numa superfície
predominantemente plana de 1.363 Km². Apesar da considerável extensão territorial
do município é no centro da cidade feirense que sua fortaleza se reproduz: o
comércio. Apresentando um terceiro setor dinâmico, a Cidade Princesa projeta-se
como um urbano próspero. Lócus da reprodução ampliada do capital, é nítida entre
os comerciantes a sede pelo cliente, respira-se nesse local a concorrência, a
informalidade visualizada nas inúmeras barracas dos camelôs que se alongam pelas
avenidas do centro.
Não diferente das outras cidades brasileiras, o centro feirense é complexo,
possui fragmentos de todas as partes da cidade: desde os moradores de rua que
sinalizam as classes sociais execradas do processo de acúmulo de capital
15
representando os bairros periféricos, até as lojas de luxo, que direcionaram seus
produtos para uma parcela da sociedade bem distinta. A área central feirense é
onde
[...] se concentram as principais atividades comerciais e de serviços, bem
como os terminais de transportes interurbanos e intra-urbanos. Esta área,
conhecida como Área Central, resulta do processo de centralização,
indubitavelmente um produto da economia de mercado levado ao extremo
pelo capitalismo industrial. (CORRÊA, 2001, p. 123).
A fluidez e o movimento no centro se processam de forma instantânea. A rede
comercial é coesa, aquilo que Corrêa (2001) denomina de aglomeração de comércio
com a mesma função, promovendo para o consumidor um ambiente cômodo para
pesquisas de preço e escolha dos produtos. As ruas estão seccionadas em grandes
compartimentos comerciais indicando a funcionalidade de consumo de cada área,
sistematizando o comércio na cidade Princesa. O comércio seccionado apresenta
um relativo processo de coesão, nos moldes propostos por Corrêa (2001).
A sensação atual do centro é de agitação, congestionamento e sufoco.
Tornou-se tão importante para o consumo regional que várias relações foram
sobrepostas em um único e pequeno espaço. O centro está apertado. As lojas
exprimidas, imprensadas, e, todo o dia que se volta àquele lugar da cidade, vê-se
outra organização: lojas sendo reformadas, calçadas ocupadas pelos camelôs,
novas placas de propaganda, carros, pessoas, animais e muito barulho. Essas são
as características diurnas do centro feirense que “dorme” juntamente com o sol.
Inserida num ambiente com fortíssima entrada de energia solar, a cidade,
revestida de concreto, é quente tanto climatologicamente, por estar situada no clima
semiárido, como culturalmente, por meio das monumentalidades existentes:
concreto, asfalto, aço, zinco, ferro, entre outros materiais que absorvem energia
solar retendo-a e aumentando nossa sensação térmica de sufoco. O centro é
quente, de fato. É uma constante “queima” de estoque o ano inteiro por diversas
lojas de vários ramos comerciais: papelaria, vestuário, farmacêutica, alimentícia,
cosméticas, eletrodomésticos, etc., que mantém o comércio aquecido.
Esse é o espaço preliminar do Centro que muitos dos habitantes e viajantes
que circulam pela cidade conhecem. Mas poucas pessoas sabem, de fato, circular
na cidade como os meninos de rua, a galera da boca que sobe com as drogas para
distribuí-las nos principais marcos geográficos do Centro, ou ainda, como as
16
senhoras de programa que lutam contra o desprezo, fome e miséria e continuam
comercializando seus corpos e prazeres nas zonas periféricas do Centro.
Crianças nas sinaleiras, moradores de rua na frente da Igreja Senhor dos
Passos, vendedores de amendoim e milho cozido nos pontos de ônibus, camelôs
que vendem óculos escuros, DVDs e Cds pirateados, mulheres que caminham
rapidamente pelas calçadas segurando junto a seu corpo, como que imprensado, a
sua bolsa, temendo a ação violenta ou sutil dos marginais de Feira de Santana.
Trânsito congestionado onde vidas são postas em evidência na travessia das
margens nas ruas. Vendedores com sistema de som convidando clientes numa
gritaria estimulante.
No coração da Princesa está disposta a magnitude das arquiteturas de
dominação social. Uma paralela a outra, demarcando um tempo social em que Igreja
(ver figura 01), Milícia (ver figura 02) e Estado (ver figura 03) estão equiparados.
Cada um numa esquina, como arquiteturas que vasculham cada metro de calçada
até onde sua altura de construção pode alcançar.
Figura 01
A Igreja Senhor dos Passos: O poder do Clero
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
O prédio eclético da prefeitura, a igreja neogótica do Senhor dos Passos e o
cubículo singelo, entre elas, da Polícia Militar, sinalizam as arquiteturas que vigiam,
17
espiam, controlam, reprimem, mas que fornecem sensação de conforto, segurança,
paz dentre outros paradoxos.
Figura 02
O Posto Policial Militar: O poder da Milícia
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
As pessoas compreendem a função persuasiva dessas arquiteturas. Muitas
delas ao passar pela Igreja fazem seu sinal de reverência assumindo sua submissão
ao Clero. Sentem tranquilidade ao esperar o sinal fechar no cruzamento das
avenidas quando estão ao lado do posto policial, mesmo quando estes estão ao
celular resolvendo problemas diversos ou ainda estão acompanhando uma
programação televisiva, desatentos ao frenético vai e vem de pessoas e veículos no
Centro.
O mesmo ocorre quando se depara com a arquitetura da prefeitura e sua
suntuosidade, sobretudo no salão de recepção. O prédio indica que o poder estatal
está ali, planejando e executando, apesar dos problemas de gestão, uma ordem
para cidade. A Igreja Senhor dos passos e a Prefeitura, além de bem centralizadas
no coração da cidade possuem grandeza arquitetônica, que pode ser visualizada em
qualquer parte das ruas que compõem o centro da cidade como podemos observar
na figura 04.
18
Figura 03
A Prefeitura Municipal de Feira de Santana: O poder do Estado
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
Figura 04
Opulência das arquiteturas normativas vigilantes
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
As calçadas estão carimbadas com o símbolo da opulência sertaneja,
simbolizada com uma imagem de um touro que remete às boiadas dos séculos
anteriores que cruzavam os sertões e eram comercializadas no campo do gado
19
feirense, ver figura 05. A imagem do touro nas calçadas da Avenida Senhor dos
Passos é uma forma de demonstrar o quanto as elites tradicionais, vinculadas à
pecuária, impõem-se em Feira de Santana, ligando o pedestre à igreja, a Avenida à
prefeitura, como sinônimo de elo entre o público e as instituições.
Figura 05
Marca de Boiadas nas calçada da Avenida Senhor dos Passos
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
Esse é o local que dá espaço para a reprodução do cotidiano do território
Trans. Até o comércio rendeu-se às graças da prostituição e da boemia do centro e
resolveu se travestir durante as noites, em que as princesas desfilam seminuas, com
roupas de curtos panos, insinuando-se para quem transita pelas avenidas, ruas e
becos rarefeitos do Centro.
Durante a noite a centralidade esvazia-se em seu significado econômico.
Suas monumentalidades ficam imóveis e perplexas com as transformações que
ocorrem no espaço. Imobilizam-se diante do contrato diário que as Trans realizam
com a polícia, no gracejo que elas fazem nas calçadas da prefeitura e pelo sinal da
cruz que realizam para pedir proteção ao cruzar com a igreja Senhor dos Passos.
Assim, podemos perceber como essas arquiteturas renderam-se ao gracejo das
20
damas de paus15, ora protegendo, vigiando, expulsando, intimidando suas
performances no espaço público.
Enquanto as ruas rarefeitas aglutinam marginais que esperam a vítima
desatenta ou procuram um escurinho para passar ou pegar drogas, em outras ruas
super iluminadas, as princesas dão close, gerando um fluxo intencional de veículos
que dão inúmeras voltas até se renderem ao gracejo de uma bela Trans da praça.
15
Termo utilizado por Neusa de Oliveira (1994).
21
III NOTAS SOBRE O MÉTODO E AS TÉCNICAS DE
PESQUISA
22
Não há melhor maneira de estudar o trottoir do que fazendo trottoir.
(PERLONGHER, 1987, p.34).
Na busca de uma integração sistemática com o grupo estudado, Perlongher
(1987) rendeu-se ao trottoir16 para entender a prostituição de rua em São Paulo,
utilizando etnografias que eclodiram durante noites inteiras de caminhada pelas
longas calçadas paulistanas a fim de desvendar o negócio do michê17. O mesmo
ocorreu com Silva (1993) na Lapa carioca, Benedetti (2005) em Porto Alegre e Ornat
(2008) em Ponta Grossa, na busca de analisar o cotidiano Trans que se reproduzia
ao longo das avenidas e praças estratégicas durante a noite das cidades brasileiras.
Enquanto os trabalhos geográficos possuem sua tradicionalidade de campos
diurnos, com um horário beneficiado pela luz solar que permite a visualização dos
fenômenos com nitidez, realizei esta pesquisa no seu turno oposto. O fenômeno da
prostituição, na maioria dos espaços públicos, repousa durante o dia, erguendo-se
no crepúsculo da noite e estendendo-se até os tímidos raios solares que surgem na
alta madrugada para sinalizar a pausa de sua manifestação.
Assim, enquanto a noite, nos trabalhos de campo tradicionais da Geografia,
está reservada à preparação do próximo ciclo de coletas de dados ou ao descanso
dos trabalhos realizados durante o dia, era nesse período que me preparava para
sair de casa rumo ao trottoir, pois o planejamento tinha sido realizado pela tarde.
Benedetti (2004) descreveu bem a sua incursão pelo “mundo da noite”, visto
que as informantes de sua pesquisa, as travestis, possuem hábitos noturnos e
pouco se expõem ao sol, pois no horário de pico da luminosidade, dormem fatigadas
de uma longa noitada em cima de saltos. Tal como esses pesquisadores, alterei
minha rotina, em que a maior parte das atividades que realizava estavam
concentradas durante o dia. Com a troca do período de visitação ao centro da
16
É uma palavra francesa que significa calçada, porém utilizada no Brasil como sinônimo de pista.
Fazer trottoir significa dizer que alguém está fazendo pista, ou seja, está em vias publicas realizando
programas sexuais.
17
O termo está associado à prostituição masculina, apesar de Perlongher (1987) ter percebido em
sua pesquisa que a expressão “fazer michê” estava associado ao ato da prostituição sem distinção de
grupo social. Utiliza-se o termo michê por possuir uma conotação sui generis de “varões geralmente
jovens que se prostituem sem abdicar dos protótipos gestuais e discursivos da masculinidade em sua
apresentação perante o cliente” (PERLONGHER, 1987, p. 17).
23
cidade, durante a noite foi possível compreender o papel influenciador do tempo no
que se refere à manutenção e à existência de determinadas atividades.
As coisas só existem em um determinado tempo e podem ser interrompidas
por ele mesmo. Na negociata entre tempo e espaço, no jogo complexo da interação,
notei como as coisas aparecem com maior nitidez no espaço em determinado
tempo, e como o esvaziar do tempo elimina os espaços e mina o simbólico que o faz
existir.
Durante o dia, circulando pelo comércio, as ruas do centro parecem ser
outras, apesar das arquiteturas permanecerem as mesmas. Parece-me que o tempo
também foi dominado pelo modo de produção e fracionou as vivências,
normatizando o horário de ser e fazer determinadas coisas. Por isso, na praça de
alimentação, da Avenida Getúlio Vargas, está localizado em sua ponta, um grande
relógio que sinaliza o horário no qual todos os processos devem se desdobrar nas
ruas de Feira de Santana, ver figura 06.
O relógio está com faces voltadas para pontos cardeais estratégicos para o
tempo e não para o espaço: o leste e o oeste. É de leste para oeste que o sol em
seu movimento aparente apresenta a mudança de turnos durante o dia. No passear
do sol, entre leste-oeste, o tempo com ele se desloca, informando para os
comerciários que o sol a leste simboliza o início de uma jornada diária de trabalho
que se finda no seu oposto – oeste – com o cerrar das lojas. A mudança é apenas
temporal, pois o espaço, no que tange a sua forma, continua o mesmo. A avenida,
tanto durante o dia como à noite é a Getúlio Vargas. Porém, estão nas entranhas do
tempo as funções que vivificarão o espaço. Pois a cada conjunto de fração de
tempo, a sociedade desempenha determinadas atividades que materializam formas
e sistematizam funções.
Durante o dia o terceiro setor econômico multifacetado desdobra-se em
relações capitalistas com a troca e venda de bens de consumo. À noite o centro se
acalma permitindo que a troca e venda se restrinjam a poucas atividades, em
comparação ao leque de possibilidades existentes durante o dia.
24
Figura 06
Posicionamento do Relógio da Praça de Alimentação na orientação oeste-leste em
momentos diurnos distintos.
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
Não só as trocas e as vendas são disciplinadas pelo tempo como também as
vivências. Nas cidades, muitos grupos e pessoas, com variados objetivos,
experimentam outros códigos e valores, possuindo lugares distintos envoltos de
emoções e sentimentos. Durante o campo noturno acompanhei uma cidade que se
mantém acordada, reproduzindo sistemas culturais diversificados que complexificam
o urbano. Dentre eles grupos de roqueiros skatistas nas pistas da praça de
alimentação; moradores de rua recém-acordados vasculhando o lixo em busca de
comida; taxistas enfileirados nas esquinas movimentadas do centro; seguranças
sentados em seus bancos observando o fluxo dos transeuntes e Trans sentadas na
Praça da Bandeira. Assim, para Benedetti (2005, p. 44) “pesquisar no mundo da
noite é, antes de mais nada, um processo de familiarização com novos sujeitos
sociais, práticas e valores”.
Para estudar o fenômeno Trans é preciso determinado tempo para se diluir
entre os sujeitos analisados. Minhas primeiras incursões iniciaram-se em 2005 e se
prolongaram até 2010. Durante esse período tive que conquistar a confiança das
25
Trans, dos gays que conviviam nos mesmos espaços, bem como, de alguns de seus
maridos que ficavam na praça cuidando da integridade de suas “esposas”. Enquanto
cumpria com as leituras indicadas na orientação, saia de casa à noite, todos os
finais de semana, para conferir todas as afirmações absorvidas na literatura
encontrada.
O contato inicial no território Trans ocorreu na Praça Bernardino Bahia,
localizada ao longo da Avenida Senhor dos Passos, onde se concentravam dezenas
de homossexuais como podemos observar na figura 07.
Figura 07
Vista frontal da Praça Bernardino Bahia
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
Na primeira impressão, acreditava que a praça era um local público de
fornicação18, pois como não existia movimentação intensa no centro durante a noite,
as barracas dos lambe-lambes19 serviam como proteção e permitiam a ocorrência da
pegação20.
Durante o convívio foi possível notar que existia um circuito muito profundo de
afetividade para além de encontros fortuitos visando o sexo. Era possível encontrar
18
Faço questão de assumir minha inicial aversão ao movimento da Praça, prova do quanto estava
impregnado de ideologias heteronormativas que puniam a mim mesmo. Não significa dizer que estou
livre dessa dominação, mas a pesquisa me fez amadurecer para entender os gêneros e suas
manifestações espaciais.
19
Barracas de zinco utilizadas por fotógrafos de documentos de identificação.
20
O mesmo que a realização de carícias e o sexo propriamente dito.
26
todo tipo de pessoa e cada uma delas com contextos sociais diferentes. Uns
chegavam a pé, pois moravam nas cercanias do Centro, outros desciam no ponto de
ônibus na frente da Praça e outros passeavam de bicicleta, moto ou carro.
As primeiras amizades foram construídas num constante jogo de sedução,
afinal a Praça é um lugar de azaração e eu não havia me apresentado, inicialmente,
como pesquisador, mas possuía pré-requisitos, dentro das normativas da sociedade
heterossexualidade, que me qualificava como um sujeito, dentre tantos que circulam
essas ruas, em potencial para o sexo, o prazer e o encontro.
Os meses foram se passando e as visitações foram se tronando mais
constantes. A Praça, de fato, era gay, de uma vez ou outra passava por lá algumas
travestis que seguiam para a Avenida Presidente Dutra, fazer pista na frente da
Tyresoles21.
Enquanto isso, nos becos da praça sempre tinha uma pegação de dois, três,
quatro ou cinco sujeitos que se dispersavam após a ejaculação. Entre as barracas
dos camelôs da Rua Sales Barbosa, onde a maioria dos gays se concentravam,
vários encontros eram viáveis e o contrário só não ocorria quando o segurança das
barracas vinha de bicicleta expulsar o “viadeiro” promíscuo que sujava de esperma e
camisinha as ferragens das barracas de roupas do mercado informal feirense.
Passei cerca de cinco anos observando a noite da Praça Bernardino Bahia e
inúmeras amizades surgiram e a oportunidade de estar face a face com as Trans da
pista. Durante esse tempo escutei várias histórias compartilhadas pelos sujeitos da
noite. Falavam sobre tudo, sobretudo de sexo. E quando uma Trans aparecia todos
os gays da praça paravam para cultuar a produção que a mona22 realizou para
descer para avenida.
Mas o espaço das Trans não era nas cercanias da Praça Bernardino Bahia,
pois a polícia sempre estava fazendo ronda a pé pelas estreitas ruas do Centro, o
que não intimidava os gays que se beijavam, se masturbavam e transavam, e
quando eram pegos pelos policiais levavam uma correção no estilo militar, com base
em pancadas.
21
A Tyresoles é uma loja de produtos e serviços para automóveis, com funcionamento diurno e
possui um passeio largo e uma posição estratégica para um ponto de prostituição Trans.
22
Termo êmico utilizado pelo grupo para se referir a homossexuais de forma generalizada.
27
Figura 08
Barracas dos camelôs usadas para encontros sexuais nas ruas do Meio e Sales
Barbosa respectivamente.
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
Muitas das barreiras de socialização, como o desconhecimento das práticas,
da
linguagem,
do
desconhecimento
das
pessoas
e
das
diferenças
de
comportamento, evidenciadas nos códigos de negação elucidadas por Silva (1993 e
1996) já tinham sido transpostas. Cinco das gays23 da praça estavam se montando e
rodando a bolsinha na Avenida Marechal Deodoro da Fonseca. Já tinham nomes
femininos, trejeitos, além de dominarem uma técnica incrível de maquiagem que
camuflava o masculino que viria a eclodir depois que o trabalho da prostituição
acabasse. Elas desmontavam peças por peças, tiravam os cabelos longos, seus
cílios postiços, os quadris feitos de espuma, assim como os seios, além de
desaquendar a neca24, voltando à condição aparente de homens.
O papel de estudante, migrante e do anonimato25 favoreceu meu acolhimento
no grupo, pelo valor atribuído para os sujeitos que estudavam e pela proteção que
deveria ser dada àqueles que se descobriam homossexuais longe de sua cidade
natal.
23
As gays é uma categoria frequentemente utilizada pelas informantes dessa pesquisa. As gays foi
utilizada como um termo designativo ao processo de transformação Trans. Aqueles que se sentem
Trans mas mantém aparência de rapaz é considerado como uma gay.
24
Aquendar a neca significa esconder o pênis, assim desaquendar é retirá-lo do disfarce da vagina
improvisada.
25
A maioria dos gays da praça trabalhavam no comércio e por isso conservavam o pacto do
anonimato de suas sexualidades. Outros gays mais novos também prezavam pelo silêncio de sua
opção sexual temendo a reação da família ao descobrir sua sexualidade e que ele estava visitando a
praça. Por isso poucos sentavam-se nos bancos da Avenida Getúlio Vargas, evitando o encontro com
o conhecido.
28
A priori estava travestido de ressentimentos e do medo da não aceitação para
realização da pesquisa. Essa condição foi se desfazendo com a confiança
alcançada nas visitas cotidianas que realizei, nas compras durante o dia no
comércio e em algumas ligações que fazíamos uns para os outros durante esse
convívio.
Diante da situação esboçada, esta pesquisa pode ser definida como
exploratória, descritiva e qualitativa em detrimento do contato provocativo com o
grupo em análise. É comum em pesquisas nas ciências sociais a previsão de um
roteiro metodológico imerso na coleta de dados primários por meio de entrevistas e
questionários. De fato, é no fenômeno e em seu contexto socioespacial que estão
embutidas importantes informações para sustentar a pesquisa. Porém, a execução
do procedimento metodológico, pode consubstanciar a natureza e a valiosidade das
informações coletadas.
Para fugir das falsas interpretações do campo, utilizamos todo conhecimento,
informações e hábitos adquiridos durante o longo período de convívio com o grupo,
apreendidos pela exploração do fenômeno em diversas situações. O olhar atento
aos minuciosos detalhes do cotidiano na rua nos revelou, paulatinamente, as
intenções carregadas de símbolos e normas que sustentavam o território estudado.
Discutindo acerca da observação nas pesquisas, Cardoso (1986), apontava
uma nova tendência eclética de métodos entre os pesquisadores brasileiros em
tempos pragmáticos e ideológicos com a difusão da escola marxista no país. Para
ela, inicialmente não havia uma preocupação para analisar as potencialidades e
fragilidades das matrizes metodológicas, rumo a associações que cautelosamente
poderiam ser definidas e testadas. Cardoso (1986) verificou uma política do método
que, de certa forma, “territorializava” espaços acadêmicos em busca do poder e
hegemonia da epistemologia no Brasil.
Ciente disso, percebi que a escolha de caminhos metodológicos requer um
mínimo de delicadeza para tratar do fenômeno de pesquisa sem torná-lo fictício e
exótico quando a coleta deve ser feita junto à realidade. Cardoso (1986), quando
estudou as possibilidades de escapar das armadilhas do método, propôs uma
postura eclética, um caminho intermediário que possibilitasse compreender a
dialética e as subjetividades do fenômeno sem retirá-las de um contexto
historicisado. Cardoso (1986) também compreendeu que o bom pesquisador é
aquele que possui boa interação com as minorias, tornando visíveis as situações da
29
vida que estão escondidas e que só poderiam vir à tona quando denunciar as
carências e anseios do grupo pesquisado. Os anseios de Cardoso corroboram com
a perspectiva de Silva (1993) quando ele afirma que sua pesquisa com as travestis
da Lapa buscava revelar o cotidiano travesti
de forma que sua dimensão humana, suas contradições, perplexidades, a
nobreza e a miséria de sua condição cheguem até o leitor, não destituídos
de sensualidade, sexualidade, humor e ironia, mas integrados com traços
mais visíveis para evitar a caricatura e o pitoresco (p.15).
Para esclarecimentos iniciais, esta pesquisa não estará pautada no princípio
da neutralidade científica, pois “o conhecimento não pode se libertar de uma certa
dose de ideologia” (CARDOSO, 1986, p. 99), mas estará entrelaçada a uma política
pós-identitária26 que já demonstra força na escala global. Uma estratégia que
fornece visibilidade aos seres que vivem nos espaços inabitados e inóspitos do
gênero, como enfatiza Butler (2003).
Longe dos postulados positivistas, que defendiam a ferro e fogo a
neutralidade científica, essa é uma pesquisa que ousou aproximar-se do real,
visando outras formas de coletar os dados sem perder de vista o estranhamento
como forma de compreender as questões de pesquisa.
Concordando com Cardoso (1986), não realizei uma pesquisa nos moldes da
observação participante27, pois esta pressupõe afastamento, neutralidade do
pesquisador. Durante toda pesquisa realizei a participação observante que
possibilita a eclosão da capacidade de surpresa e retifica a empatia como forma de
descobrir o outro. A participação observante redimensiona o pesquisador de
posição; nela, ele torna-se também objeto de interesse e sociabilidade com o
fenômeno, por meio do contar, descrever, olhar e sentir, conectado ao contexto das
condições sociais em que os discursos são elaborados.
As visitações constantes me fez participar de uma observação investigativa,
possibilitando a descrição do uso das ruas e da inacabada produção do sujeito
Trans. Isso não me neutralizava no campo, pelo contrário estava em constante
evidência, no jogo entre o pesquisador-objeto. Era competência minha estar lá para
26
O movimento intelectual Queer é um exemplo de políticas de identidade da contemporaneidade,
ampliando a perspectiva de identidades múltiplas e instáveis.
27
Cardoso (1986) faz essa consideração em virtude da excelência de métodos tradicionais de se
utilizarem da observação participante. Porém, sabemos que o uso dessa metodologia de campo
extrapolou os muros do método positivista e marxista sendo reorganizado por outras escolas de
análise.
30
investigar, mas simultaneamente eu estava sendo explorado, descrito, e
hipotetizado. Por mais que eu instigasse a cada conversa esclarecimentos sobre
suas vidas
aprendi logo que a relação não poderia ser desigual: as travestis
reivindicavam para si o direito de saber sobre minha vida particular, sobre
as minha práticas, desejos e valores, desafiando minhas idéias
(BENEDETTI, 2005, p.45).
Essa reciprocidade entre os sujeitos envolvidos na pesquisa narrado por
Benedetti de fato existe. Ao terminar uma longa entrevista a Bette, ela retrucou:
“Agora vamos mudar de posição, eu pergunto e você responde”. E todas as
perguntas rezavam sobre minha vida particular no que se refere às perspectivas de
futuro, namoro, família e sexualidade.
Quando estava na praça, junto às Trans e gays que circulam no centro,
participei apenas da situação, tentando ser o mais natural possível e deixava para
registrar todas as informações coletadas fora do campo. Não queria me sentir
exótico fazendo anotações num lugar onde os textos são sonoros, gestuais ou
visuais, mas nunca escritos. Ao chegar em casa, detalhava com minunciosidade
todas as informações faladas e produzidas pelos semblantes, gestos e situações
vividas no centro.
As interações com as Trans não ficaram restritas à noite, a realização das
entrevistas semiestruturadas foram viabilizadas, em sua grande maioria em suas
casas, durante o dia, ou nos bares animados do centro de abastecimento, tendo a
oportunidade se compartilhar alguns momentos com familiares, parceiros e amigos
das Trans28.
Longe da zona de prostituição, na circulação de outros espaços vividos pelas
Trans, aguçamos a visão a fim de estar apurada, para observar e extrair aspectos
reais e subjetivos de cada movimento, dos discursos, dos gestos, de todos os
registros de informações necessárias ao entendimento do fenômeno.
Para
construção
do
questionário
e
dos
roteiros
de
entrevistas
semiestruturadas nos baseamos na metodologia utilizada por Ornat (2008).
Inicialmente aplicamos os questionários no território, tentando coletar o máximo de
interessadas a contribuir nas pesquisas. Nessa etapa foram aplicadas 15 entrevistas
28
Ver em anexo os modelos dos roteiros das entrevistas semiestruturadas e dos questionários.
31
que posteriormente passaram por um processo de triagem, o que culminou na
escolha das 10 entrevistadas na etapa seguinte.
É bom salientar que no território Trans existem em média 25 princesas que se
prostituem. Contudo, a intensa fluidez e sazonalidade que elas possuem
impossibilitaram a abrangência de todo o grupo na etapa de questionário e
entrevistas. Além disso, algumas delas recusaram-se a responder as indagações,
demonstrando a heterogeneidade de opiniões e aceitação das entrevistas.
No questionário aplicado sondamos informações relacionadas à sociabilidade
intra e intergrupo no dia-a-dia, deslocamentos intraurbanos, escolaridade, renda
mensal, moradia, locais preferenciais de consumo. Enquanto nas entrevistas
semiestruturadas tentamos (re)constituir os primeiros aspectos desse território,
analisando seus fatores de formatação e as estratégias criadas para manter a
circulação das Trans nesse espaço, contextualizando as informações no curso
histórico.
Para armazenamento dessas informações, o uso do gravador foi consentido
por todas entrevistadas. Existiram momentos que as Trans solicitavam a pausa na
gravação, e essas eventualidades foram respeitadas. Assim, foi possível perceber
que as informantes utilizaram um filtro que selecionava aquilo que poderia ser dito e
gravado, e logo em seguida outro filtro mais frouxo era usado na conversa que
poderia ser gravada e deveria fazer parte da etnografia do campo.
Todas elas ficaram reticentes frente ao gravador, e logo em seguida
descontraídas na ausência dele. Tais comportamentos ficaram nítidos na exposição
feita por Greta em sua casa olhando para mim e dizendo “Menina, isso não vai para
Alibã29 não né? Pelo amor de Deus”. Ou ainda quando Romy se referia às Trans que
estão assaltando e preferiu não citar os nomes, reproduzindo a ética de seu ofício
se eu pudesse dar um nome eu daria, mais vai me prejudicar, aí eu não
posso falar, porque tem umas que eu ando junto com elas, e eu não quero
prejudicar ninguém, a polícia tá aí pra dar jeito né, pra resolver. (Entrevista
realizada com Romy em 18.01.2010).
As entrevistas foram semiestruturadas por permitirem ser reproduzidas, em
linhas gerais, com todos os informantes, perguntas abertas sobre tópicos relevantes
29
Em Iorubá significa polícia, segurança.
32
à pesquisa, em que, naturalmente, um tópico conduziu a outro, levando-nos a
compreender o universo complexo da pesquisa.
Tratando sobre a ética de pesquisa, trocamos todos os nomes das Trans ou
de pessoas citadas nas entrevistas. Para isso, realizamos uma pesquisa sobre nome
de celebridades que estivessem associadas à ideia de princesas, sobretudo, as
cobiçadas pelas Trans como está elucidado no quadro 01.
Quadro 01
Triagem das informantes Trans da pesquisa
NOME DE
NOME FICTÍCIO PARA FINS DE
CLASSIFICAÇÃO
REGISTRO¹
PESQUISA – Divas do cinema²
DE GÊNERO³
Antonio Marcos
Brigitte Bardot
Transformista
Alberto Júnior
Joan Crawford
Transformista
Pedro Henrique
Ava Gardner
Transformista
Cleriston
Marlene Dietrich
Transformista
Rafael
Marilyn Monroe
Transsexual
Jonatas
Sophia Loren
Transsexual
Pedro Paulo
Greta Garbo
Transsexual
Marcos Paulo
Bette Davis
Transsexual
Alexandro
Grace Kelly
Travesti
Wellington
Elizabeth Taylor
Travesti
Fábio
Romy Schneider
Travesti
André
Claudia Cardinale
Travesti
Thyago
Ingrid Bergman
Travesti
Patrício
Lauren Bacall
Travesti
Danillo
Rita Hayworth
Travesti
Artur
Catherine Deneuve
Travesti
Erivaldo
Katharine Hepburn
Travesti
Moisés
Audrey Hepburn
Travesti
¹ Os nomes de registros também foram ocultados.
² A escolha dos nomes das divas do cinema foi feita de forma aleatória. Em seguida retiramos seus
sobrenomes para que associações imagéticas não ocorressem em relação às pessoas reais que
entrevistamos. É bom enfatizar que Katharine e Audrey são irmãs biológicas.
³ As classificações de gênero obedeceram a critério de autoidentificação realizada pelas informantes.
33
Como as Trans se produzem no espelho da mulher, escolhemos nomes das
divas do cinema para cada uma de nossas informantes, visto que, muitos dos
sobrenomes dessas divas estavam presentes nos novos nomes que elas construíam
na pista. Porém, para evitar associações das Trans com a estética das atrizes,
preferimos retirar o sobrenome para garantir a imagem descritiva da brasilidade
ausente na estética dessas divas glamurosas.
No caso dos gays que foram citados pelas entrevistadas, elencamos nomes
das divas da música, pelas performances afeminadas que esses gays faziam
relembrando hits que coreografavam na praça. Trocamos seus nomes nas narrativas
por compreender a importante rede de sociabilidade existente no território Trans.
Para isso retiramos seus sobrenomes com o mesmo propósito anteriormente
delineado.
Quadro 02
Triagem dos nomes de gays citados pelas Trans durante as entrevistas.
NOME DOS GAYS CITADOS¹ NOME FICTÍCIO PARA FINS DE PESQUISA –
Divas da música²
Marcos Antonio
Donna Summer
Leonardo
Diana Ross
Anderson
Lady Gaga
João Paulo
Billie Holiday
Bruno
Bonnie Tyler
Vitor
Madonna
Felipe
Kylie Minogue
Miguel
Gloria Gaynor
Francisco
Cindy Lauper
Paulo Vinicius
Tina Charles
Luís Cláudio
Alicia Bridges
Marcelo
Aretha Franklin
Luciano
Grace Jones
¹ Os nomes de registros também foram ocultados.
² A escolha dos nomes das divas da música foi feita de forma aleatória. Em seguida retiramos seus
sobrenomes para que associações imagéticas não ocorressem em relação às pessoas reais que
entrevistamos.
34
As entrevistas gravadas foram transcritas, mantendo fidedignamente os
depoimentos no que se refere às situações relatadas e à linguagem empregada.
Acreditamos que não seria necessário adaptar as narrativas para a norma culta visto
que retiraríamos nossas informantes de seu lugar de fala, realizando uma
transposição brusca e inadequada. Por isso, mantivemos seus deslizes vocabulares
que possuem propósitos claros, pouco observados e compreendidos por nós
pesquisadores distantes do debate da linguística. Tais “equívocos” gramaticais estão
coesos num contexto de vivência e por isso os respeitamos.
Percebemos que o trabalho etnográfico exige paciência e cautela, sobretudo
no momento da aproximação e inserção no grupo, deve ser realizado de modo que
essa presença nova no grupo não iniba os comportamentos de seus indivíduos. De
acordo com Clifford (1998, p. 36), a experiência etnográfica “pode ser encarada
como a construção de um mundo comum de significados, a partir de estilos intuitivos
de sentimento, percepção e inferências”.
É obvio que não ficamos isentos das ilusões30 provocadas pelo universo
Trans. O grande desafio é deixar claro nesta redação seres humanos. Tal como
Silva (1993) evitamos a diabolização das Trans e esperamos não ter caído em seu
simétrico oposto, a angelização, buscando atender as advertências que brotavam
nas orientações que visavam compreender o humano existente na aparência exótica
que elas forjam na transformação de seus corpos e traduzir o cotidiano como
categoria eficiente para explicar a transcondição de nossas informantes.
As fotografias utilizadas foram retiradas nos turno diurno por dois motivos
óbvios: primeiro, em respeito as Trans e a ética científica e segundo pela limitação
tecnológica do aparelho fotográfico. As imagens de pessoas podem ser utilizadas
em pesquisa a partir do consentimento escrito. Inúmeras vezes, on line no MSN
recebi links do Orkut de algumas delas, permitindo o uso de suas imagens, porém
preferi descrevê-las a publicar imagens na dissertação que estará disponível em
meio digital em fronteiras espaciais incontroláveis. A máquina fotográfica Sony de
resolução de 12.1 mega pixels ainda apresenta limitações tecnológicas no que se
refere à fotografia noturna. O alcance do flash era insipiente para dar conta da
30
A montagem da aparência e de histórias particulares permite, segundo Silva (1993), que as
travestis recriem a realidade a seu bel prazer. Para tanto é necessário estar bem diluído no grupo
para sondar onde a ficção do gênero termina. A travesti detém com eficácia a arte da mentira, que se
desmontava muitas vezes com a desconfirmação da história por outra travesti que nega sua renda,
inventa viagens glamourosas, troca sua idade, informa outro nome de registro, entre outras
eventualidades extraídas da participação observante.
35
dimensionalidade que o fenômeno possui à noite. Para tanto, as fotos foram tiradas
em dias de domingo visto que o movimento diurno é similar com o movimento
noturno nos outros dias da semana.
Esta dissertação, por conta de seu tema, requereu outra escrita geográfica,
tão calorosa e viva quanto o cotidiano experienciado e distante da escrita técnica
que marca os trabalhos acadêmicos. A redação traz o prazer e a fúria, o tradicional e
o moderno, a ordem e a desobediência, o intencional e inocente não como
elementos que duelariam nessa escrita, mas que se completam numa dialética
complexidade da vida cotidiana.
O texto apresenta-se ambíguo em sua estrutura literária por se tratar de um
fenômeno tal e qual. A “suposta crônica” cruzada com a densa teoria está
propositalmente associada para trazer ao texto os simbolismos da realidade Trans.
Se os gêneros são produzidos, como o espaço, pelas reiterações, utilizamo-nos das
repetições para chegar às conclusões sobre o fenômeno. Todas as prolixidades
textuais aqui encontradas foram propositais, na tentativa de reiterar as narrativas,
dando outra ordem para o discurso aqui empreendido.
Pesquisar esse universo exige a TRANSgressão da visão tradicional e
hegemônica que estabiliza a ciência geográfica. Entrar nesse universo com as
velhas metodologias pouco interativas é estabelecer uma linha de comunicação
entre a reprodução de uma suposta estabilidade de gêneros que é violenta e esfola
o corpo feminino das Trans. Neste texto, nos propomos trazer à tona a realidade das
Trans, sua beleza, seu encanto, sua sedução, suas desconfianças, seus medos,
suas angústias, suas demandas, todas essas questões sem o véu das reticências.
Aqui, o território foi desvelado.
Diversas questões que inquietaram essa pesquisa encontram no corpo e no
território das Trans um ponto de centralidade. Neles identidade, gênero e
sexualidade se imbricam. Assim, no capitulo I discutimos as ausências e os
silêncios nos estudos geográficos sobre as performatividades de gênero e a sua
inclusão no debate geográfico enquanto conteúdo espacial. Para tanto, realizamos
um levantamento bibliográfico tanto dos estudos de gênero quanto dos geográficos,
cruzando essa literatura para tenta explicar a timidez da Geografia de falar de
gênero. Escolhemos três tendências que mostram a evolução desses estudos e a
influencia dos estudos queers, que correspondem a última tendência, a plural. Ainda
nesse capitulo situamos o conceito de abjeção de Judith Butler na esfera espacial
36
demonstrado como esse processo extrapola o corpo e secciona o território. Por fim,
a partir das provocações de Michel Foucault, analisamos como o espaço está denso
de heterotopias, sobretudo os território da prostituição que contrariam as lógicas da
matriz heterossexual e embaralham os sentidos da linearidade dos gêneros.
Para reproduzir o binarismo de gênero os corpos devem apresentar uma
linearidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo sexual. Os corpos que fogem
dessa condição de normalidade são relocados para o campo da abjeção. No
capitulo II mostramos como as Transformistas, Travestis e Transexuais, que
compõem o grupo de informantes dessa pesquisa, se autodefinem e analisam as
outras performatividades. Apresentamos depoimentos que tratam das mudanças dos
corpos e de comportamentos. Essas três identidade não possuem espacialidades
iguais, elas se deslocam na malha urbana feirense de forma e em intensidades
desiguais, o que confirma a hipótese de que existem uma lógica de uso espacial
atrelada ao tipo de gênero. Nesse capitulo apresentamos características corpóreas
das Trans bem como um breve esboço da condição socioeconômica que se
encontram.
No capitulo III definimos o conceito de território para operacionalizar os
estudos espaciais da prostituição. Para tanto, levantamos um rico debate sobre o
conceito e sua masculinização dentro da epistemologia Geográfica e seus
rebatimentos em outras ciências. Para compreender a heteronormatividade presente
no conceito de território foi necessário discutir o ‘poder’ (com base em Foucault e
Bourdieu) e como a aplicação desse conceito apresentava-se reduzido ao poder
estatal nos estudos territoriais. Em seguida, detalhamos, por meio das entrevistas
semi estruturadas, a evolução do território da prostituição Trans na cidade princesa
da década de 70 até 2010. A consistência dessas análises foram possíveis graças a
associação feita as mudanças infraestruturais e sanitaristas promovidas em Feira de
Santana nesse período que beneficiou a expansão do trottoir no Centro da cidade.
As estratégias territoriais das Trans foram potencializadas por uma leitura
geográfica no capitulo IV. Elencamos alguns dos mecanismos usados para
dominar, influenciar e atingir os agentes que entram em conflito no centro da cidade,
dentre eles o cliente, no horário que a prostituição está efetivada. Nesse capitulo,
ficou evidente a intima relação narrada pelas Trans sobre a afetividade espacial,
revelando o seu Lugar nos pontos de prostituição. Não apenas uma rua onde se
deve retirar o dinheiro para sobrevivência, mas um espaço de socialização e
37
entretenimento, onde sujeitos que compartilham de uma mesma identidade as
fortalece pelos laços territoriais.
Na conclusão, além de frisarmos os principais resultados da pesquisa,
reafirmamos nossa esperança de ter conseguido apresentar pessoas dotadas de
sonhos, vontades e desejos, distanciando-nos da visão depreciativa e marginalizada
que as Trans possuem no senso comum.
38
CAPÍTULO I
Fernando-Fernanda
que transexualizas o verbo
deixando de cara à banda
todo o mundo. E tu soberbo
indo fundo nesse rumo
a tua mestria observo
ser pólvora sem ter fumo
ser coisa... quase-quase de outro mundo!
Autor desconhecido
Disponível em http://cidadaodomundo.weblog.com.pt/arquivo/192341.html
39
1- CORPO E ESPAÇO GENERIFICADOS: A DIALÉTICA DO GÊNERO
Acredito que a ansiedade da nossa época tem a ver fundamentalmente com
o espaço, muito mais do que com o tempo. (FOUCAULT, 1967, p.2)
1.1- A abordagem de Gênero para análises espaciais
Pouco se considerou, na Geografia, que a produção e o uso do espaço
poderiam estar associados a um jogo de gêneros e sexualidades. Em virtude da
concentração maciça do arcabouço teórico espacial, em um primeiro momento,
marcado pelas teorias positivistas e posteriormente renovado com a adesão ao
marxismo, a ciência geográfica concentrou-se no estudo das formas e na
investigação da capacidade dos agentes produtores do espaço em possuir os meios
de produção e acumularem o capital.
O apego a dados oficiais fornecidos pelas instituições ou ao trabalho de
campo na catalogação das formas e a análise real dos fenômenos materializados e
que possuíam status de verdade caracterizavam a oficialidade da pesquisa em
Geografia. Além disso, a legitimidade das linhas de pesquisa também estava
associada à capacidade de neutralizar-se frente ao objeto de estudo. O cientista, por
sua vez, teria que se demonstrar frio ante a sua inquietação para passar para
comunidade científica sua responsabilidade de pesquisa.
O olhar deveria ser esquadrinhador, capaz de varrer ante a forma suas
informações reais e, por sua vez, o real era produzido pela sociedade além de
possuir status de verdade. A pesquisa estava assentada numa desajustada
objetividade que retém de forma apressada informações primárias sobre os objetos.
A pesquisa só se concretizava nesse campo de realidade e jamais questões sobre
gênero e sexualidades adentrariam nesse contexto, onde a objetividade estava
40
planejada para nunca encontrar seu próprio abismo, sem correr o risco de se perder
na subjetividade dos desejos e prazeres suscitados por esses estudos.
Os silêncios e ausências dos estudos de gênero na Geografia têm sido
analisados por uma rede de estudiosas norte-americanas, européias e latinas a fim
de justificar essa tendência global de escamoteamento dessa temática na ciência do
espaço. Para a latina Joseli Maria Silva (2009a)
As ausências e os silêncios de determinados grupos sociais são resultantes
de embates desenvolvidos na comunidade científica, que criam hierarquias
e dependências, ratificando o poder de grupos hegemônicos e,
conseqüentemente, de suas próprias teorias científicas (p.25).
Para Joseli Maria Silva (2009a), a Geografia, como uma ciência social,
conserva, desde sua institucionalização enquanto disciplina, um saber centrado no
sujeito universal referenciado pelo ser humano masculino, ocidental, branco, cristão
e heterossexual.
Esse argumento delineia hipóteses iniciais sobre o insipiente privilégio que os
e as cientistas do espaço inferem ao estudo do gênero e das sexualidades. Se a
masculinidade é uma verdade estabilizada pelo discurso central da Geografia, tratar
da feminilidade é direcionar um esforço desnecessário e vago, visto que, o sujeito
universal reiterado pelas teorias da Geografia delimita a verdade de um real forjado
e que se retroalimenta através do negligenciamento de tal temática. O silêncio seria,
entre os geógrafos e geógrafas, um mecanismo eficiente para vigiar aquilo que não
poderia se manifestar enquanto discurso acadêmico. O silêncio, por sua vez,
constituiu-se enquanto um mecanismo de poder.
Segundo Rose (1993), o status que valida o conhecimento científico com o
status de verdade está pautado na racionalidade e objetividade, características
masculinas que neutralizam os discursos das mulheres, que são subjetivas e
emotivas, adjetivos que deveriam estar ausentes no trabalho de campo de uma
pesquisa bem sucedida na Geografia.
A partir da crise da objetividade, no que se refere aos enunciados científicos
compreendidos como sistemas de ideias derivadas de uma cultura que se difunde a
partir da linguagem, os movimentos feministas, classistas e étnicos encontraram
respaldo para engendrarem um promissor debate sobre a desconstrução de teorias
e métodos que invisibilizavam suas questões, dentre elas o gênero. Nesse sentido,
41
Boaventura de Souza Santos (2004) afirma que as linhas de pesquisa com temas
marginais, como a sociologia das ausências, diante da crise da objetividade, e,
portanto da masculinidade, permitiram transformar objetos impossíveis de análises
em possíveis e as ausências de informação enquanto presença de resultados,
desestabilizando o poder normatizador vigilante.
A abertura da ciência à crítica do “conhecimento do conhecimento” tencionou
a suposta estabilidade da ciência geográfica, gerando um movimento contrário
provocado pelas críticas à racionalidade objetiva e pela análise histórica das
verdades institucionalizadas pelo saber. A partir de então, era possível contestar
antigas verdades como categorias de uma ideologia que produziu um conhecimento
tendencioso dentro de um fluxo de pretensa neutralidade.
A crítica assentou-se sobre a neutralidade dos postulados geográficos como
uma estratégia de manter os privilégios de linhas de pesquisa, teorias e métodos
específicos dessa disciplina, ao turno que as novas abordagens e correntes
epistemológicas como a geografia feminista e os estudos fenomenológicos caíam no
descrédito em função da soldadura firme que esses discursos normatizadores
forjaram para (re)produzir a Geografia androcêntrica.
Na Geografia Tradicional o espaço era apresentado como assexuado, embora
sempre fosse organizado pela lógica da masculinidade. O espaço reproduz as
normas dos grupos hegemônicos e nele, dialeticamente, as formas e funções
espaciais são reflexo e condicionante dessa sexualidade compulsória. Pois
cada organização espacial é produto e condição das relações de gênero
instituídas socialmente, contudo, hierarquizada, com primazia dos homens
em relação às mulheres. (SILVA, 2009a, p.35).
Dessa forma, os gêneros estão presentes no espaço e se produzem sobre as
mesmas ideologias da produção espacial, reiterando o jogo da dominância que
manipula os objetos e os corpos, suas utilidades e espacialização. Por isso, existem
espaços para cada gênero e são os corpos generificados que os delimitam e que
nessa trama de poder, indicam o lugar do outro, ou seja, hierarquizam o espaço
criando estratégias que delimitam as áreas, por excelência, dos gêneros que
destoam da normalidade.
O debate sobre a gênese do espaço reserva em si uma produção geográfica
do espaço, predominantemente masculina, o que torna invisível a figura feminina e
42
outras tantas performances de gênero negligenciadas. Esses gêneros excluídos são
resgatados por algumas disciplinas das ciências humanas e sociais, com os
efervescentes debates sobre a temática que eclodem com maior força durante a
década de setenta do século XX.
Para compreender como se realizou a inserção dos estudos de gênero e
sexualidade na ciência geográfica, sistematizamos as produções teóricas e
metodológicas que marcaram as publicações, associando o desenvolvimento do
pensamento espacial aos estudos das ciências sociais e psicológicas, das quais
eclodiram empréstimos valiosos para o desenvolvimento dos estudos pósestruturalistas do debate desconstrucionista de gênero.
Como fruto desse eloquente debate, está posto o grande desafio da
abordagem de gênero, que é explicar os condicionantes, as interações espaciais
que ocorrem no cotidiano, em que a vida banal reflete, por meio dos grupos sociais,
o jogo interativo, complexo e machista que tornou invisível o gênero, direcionado,
tendenciosamente, a leitura geográfica.
1.2- Os avanços do debate de gênero e espaço
De acordo com Matos (2000), os estudos de gênero foram desenvolvidos,
com maior intensidade, pelas feministas inglesas desde a década de setenta do
século XX e influenciaram a produção teórica no Brasil, eclodindo como campo de
pesquisa na década de oitenta do mesmo século. Nesse período, as inquietações do
movimento feminista oitenticista estavam centradas em desbiologizar os gêneros,
que correspondia à matriz da heteronormatividade se referindo a linearidade entre
sexo-gênero-desejo e pratica sexual.
Deste modo, é oportuno estudar os gêneros na Geografia para compreender
suas finalidades teóricas e limitações metodológicas dentro do debate global sobre a
temática nas ciências Psi31 e Sociais, entendendo as categorias que eclodiram a
cada tendência dos estudos feministas e a atual tendência desconstrucionista
conhecida como os estudos queers.
31
Trata-se da Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise.
43
Nesse sentido, é de fundamental importância mapear os principais tratados
da Antropologia, Sociologia, das ciências Psi e História, ao mesmo tempo em que se
deve deixar contagiar por elas com sensibilidade para capturar os problemas
teóricos e as soluções encontradas para fazer o gênero, com vistas a incrementar o
debate com o olhar geográfico.
De acordo com Joseli Maria Silva (2009a), as geógrafas anglo-saxãs
apropriaram-se do debate de gênero motivadas pela exaltação dos movimentos
populares da década de 60 do século XX, que se espalharam por toda a Europa e
América do Norte. Concomitante a esse período, as Ciências Humanas e Sociais se
abriam para discutir gênero como análise focal de estudos científicos, com base num
movimento politizado que negava a neutralidade presente nos postulados
positivistas. Mediado pelo protesto à invisibilidade da mulher e o silêncio gerado por
seu apoderamento pela masculinidade, eclode um movimento científico posicionado
politicamente na luta pela visibilidade, que traz à tona um debate rumo à igualdade
de gênero.
A pesquisadora Joseli Maria Silva (2009a) temporalizou os caminhos
percorridos de forma sintética, apresentando uma análise dos avanços teóricos,
distinguindo dois momentos a partir dos estudos do patriarcado e a renovação dos
estudos culturais com a critica à escola saueriana32. Para revisitar essa
sistematização acrescentamos as análises, as tendências de gênero propostas por
Bento (2006), a fim de compreender correlações entre os avanços desses estudos
nas ciências afins.
Tal como outras disciplinas das Ciências Humanas, a Geografia possuiu uma
diversidade de abordagens que marcaram temporalidades diferentes, o predomínio
de um modo de pensar a realidade com base nas concepções eleitas como
verdadeiras. Em virtude disso, com base em Bento (2006) e em Joseli Maria Silva
(2009), dividimos as mudanças teórico-metodológicas do pensamento feminista na
Geografia em três tendências: o universal, o relacional e o plural, diferenciados por
teses específicas, conceitos e embates na seara do gênero e o crescente campo
dos estudos das sexualidades a partir da teoria das performatividades de gênero.
32
Está se referindo aos grupos de cientistas que desenvolveram e mantiveram os postulados de Carl
Sauer.
44
A tendência universal
Conforme Bento (2006), o momento universal se caracterizou pelos estudos
que buscavam mostrar as diferenças sexuais por meio da dicotomia ou binarismo de
gênero com generalizações universais, em torno das categorias de homem e de
mulher. As pesquisas eram empíricas e buscavam descrever as desigualdades
existentes entre os pólos do gênero que estavam postos como antagônicos. Isso
justifica os tratados de levantamento da situação espacial das mulheres europeias
ligadas ao mapeamento dos padrões espaciais ou, a espacialização dessas
localidades como forma de manifesto de contra-poder para minar a dominação
masculina analisados por Oberhauser (2003 apud Silva, 2009a).
Nesse período as pesquisas eram realizadas somente por mulheres que
também constituíam o movimento de militância, com o objetivo central pautado na
visibilidade feminina. As críticas internas eclodiram durante a década de 80 em
virtude do perfil universal atribuído às mulheres e homens além da excessiva empiria
que caracterizava os estudos da época.
O trabalho de Beauvoir (1967) na obra O segundo sexo, publicada em sua
primeira edição em 1949, revolucionou os estudos que inicialmente já eram
polêmicos. Beauvoir (1967) buscou mostrar em sua obra os mecanismos que dão
consistência
a
produção
das
categorias
binárias
de
homem
e
mulher,
desnaturalizando a identidade feminina. Sua ideia foi provocadora e logo nas
primeiras páginas de seu livro afirma que
ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio
da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.
(BEAUVOIR, 1967, p.9).
Desprender o gênero da biologia dos corpos foi a grande contribuição do
pensamento de Beauvoir. Para ela, era no contato ao mundo por processos
subjetivos essenciais aos corpos, que as crianças eram sexuadas nesses pólos
oposicionais. Porém, o pensamento de Simone de Beauvoir reproduziu outro cárcere
dos gêneros. Apesar de apontar o jogo de interesses que localizava as mulheres nos
espaços de inferioridade por conta de sua condição biológica, os posicionamentos
45
universalistas
reproduziam
um
discurso
generalizador
que
reforçava
a
essencialização de modelos de gênero cristalizados em identidades fixas e estáveis.
Em verdade, basta passear de olhos abertos para comprovar que a
humanidade se reparte em duas categorias de indivíduos, cujas roupas,
rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses, ocupações
são
manifestamente diferentes. (BEAUVOIR, 1967, p.9)
A concepção dualista presente na obra de Beauvoir reflete o pensamento
moderno que modelou os sujeitos universais atribuindo-lhes características que,
supostamente, eram compartilhadas por todos. McDowell (1999) e Rose (1993)
corroboram com a crítica do pensamento científico que organiza o espaço e suas
hierarquias pautadas na dualidade e afirmam que a Geografia, enquanto saber
institucionalizado, contribuiu para a sobreposição desigual da masculinidade sobre a
femilinidade.
O corpo, nessa tendência, era pensando como naturalmente dimórfico que
como uma folha em branco era preenchido pela cultura, e, por sua vez, suas
tecnologias de forma eficiente tratavam de carimbar o gênero produzido nele. Nesse
mesmo período o espaço foi compreendido como uma superfície passiva que
esperava a inscrição humana para que sua existência geográfica eclodisse. A trama
dualista entre homem e meio da Geografia La Blacheana33 demarcava as linhas
geográficas dominantes, no Brasil, que se debruçavam sobre a realidade científica.
Judith Butler (2003), analisando as produções sobre gênero dessa tendência,
desenvolve uma crítica a esse tipo de construtivismo que predominou e fez escola
nos grupos de pesquisa de todo o mundo por muitas décadas. Para Butler (2003) as
pesquisas da tendência universalista geraram um discurso onde o corpo-sexo
estava associado como uma matéria fixa que seria modelada e significada pelo
gênero, reproduzindo a existência de uma essência de identidades.
33
A Geografia La Blacheana foi desenvolvida por Paul Vidal de La Blache e seus discípulos. Essa
geografia também era conhecida pelo nome de “Escola Francesa de Geografia” ou “Geografia
Tradicional”. Para La Blache a ciência geográfica seria responsável por estudar as relações entre o
Homem (Sociedade) e a Natureza, onde o primeiro era considerado como ser ativo e produtivo,
porém que sofria influência do meio ambiente, mas ao mesmo tempo, dependendo do nível cultural,
das condições técnicas e disposição de capital, poderia atuar sobre a natureza modificando-a.
Portanto, na perspectiva vidalina, a natureza passaria a ser vista como “possibilidade” para a ação do
homem, surgindo daí a denominação “Possibilismo”, dada pelo geógrafo e historiador francês Lucien
Febvre. Dentro dessa visão o homem não seria mais determinado pelo meio mais teria também
possibilidades para transformá-lo, de acordo com suas necessidades.
46
De acordo com Bento (2006), três décadas depois Chodorow, Ortner e
Rosaldo (1979), na coletânea Natureza, cultura e mulher, seguem fielmente a
herança do pensamento beauvoriano e sistematizam, por meio de generalizações,
um pensamento generalizador que caracteriza fixamente os homens e mulheres,
independentes da organização social na qual estavam inseridos e das diferentes
relações socioespaciais entre sociedades diferentes. O quadro 03 apresenta uma
análise sistematizada dos adjetivos comportamentais atribuídos por esses
pesquisadores às identidades dicotômicas de gênero.
Quadro 03
Universalismos dos gêneros da escola Beauvoriana
AUTORES
CHODOROW¹
TENDÊNCIA Psicológica
HOMENS
Objetividade,
Atuação,
Individuação,
Cognição analítica.
MULHERES Subjetividade,
Comportamento
comunal,
Cooperação,
Cognição relacional.
ROSALDO²
ORTNER³
Sociológica
Psico- sociológica
Campo
de
vida Racional
pública onde emana Abstrato
a autoridade
Objetivo (cultura)
Campo
de
vida Prática concretude
doméstica onde as Subjetividade
práticas devem estar (natureza)
subservientes
ao
mundo público.
FONTE: BENTO (2006).
¹ Para Chodorow existia uma unidade psíquica humana, o que lhe permitia alocar característica fixas e totalitárias
de homens e mulheres independente da sociedade em análise.
² A concepção sociológica de público e doméstico de Rosaldo remonta esferas da vida social que são
incomunicáveis. Por meio da descrição, a autora aponta a sistematização do binarismo de gênero sem realizar o
teste de suas proposições com a realidade.
³ Ortner analisa a universalidade da subordinação de gênero sem aplicar suas hipóteses a uma sociedade
específica. Associa as proposições de Chodorow com as de Rosaldo e propõe um modelo psico-social com base
numa tipologia comportamental.
Essa sistematização da realidade de forma binarista também foi percebida
pelas geógrafas feministas. Joseli Maria Silva (2009a, p.30), quando discorre sobre
as proposições de McDowell e Rose, aponta que “a paisagem como natureza
passiva é feminina, exemplificada como ‘Mãe Terra’”, no seu oposto se construiu a
ideia de conquista e dominação da natureza realizada pela ação do homem, o
produtor do espaço.
47
A tendência relacional
A década de noventa do século XX foi marcada pela análise das produções
teóricas sobre as mulheres, sinalizando a emergência de novos pressupostos
discursivos que desconstruíssem a mulher universal que caracterizava a tendência
relacional. Conforme Joseli Maria Silva (2009a) os estudos feministas estavam
influenciados pela escola marxista que priorizou as lutas de classes e as
desigualdades de gênero no espaço.
Nessa tendência, a categoria analítica “gênero” foi cruzada com estudos de
classes sociais, nacionalidades, religiosidades, etnias, orientações sexuais em vistas
de desnaturalizar e dessessencializar a categoria mulher. A amplitude dessas
associações permitiu visibilizar sujeitos escondidos na universalização dimórfica dos
corpos que prevaleceu na tendência universalista. Segundo Bento (2006), na
tendência relacional era possível investigar mulheres negras analfabetas, brancas
conservadoras, ciganas, camponesas, entre outras, pelo método comparativo.
A
tendência
relacional
produziu
a
representação
da
mulher-vítima,
precarizada pela sociedade machista e o homem adquiriu o rótulo de inimigo. Para
Bento (2006), esses posicionamentos faziam parte de uma mesma moeda: o
patriarcalismo34. As geógrafas feministas acreditavam que as desigualdades de
gênero presentes na sociedade capitalista baseavam-se na hierarquia de estruturas
materiais que sufocavam e oprimiam os sujeitos do feminino, ainda restritos à
categoria mulher.
Os estudos de Friedrich Engels (1986 apud Joseli Maria Silva 2009b) na obra
A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado alocaram para os estudos
geográficos a íntima relação que existia entre o modo de produção capitalista e a
instituição da família. A instituição da família burguesa, segundo Engels (1986) apud
Joseli Maria Silva (2009b), sinalizou, nas relações sociais, a derrocada do sexo
feminino. Nesse modelo que se tornava orgânico por meio do discurso, cabia à
mulher manter-se casta até a efetivação do matrimônio, que a prenderia num pacto
34
De acordo com Silva (2009, p.228) o patriarcado é assimilado pelas geógrafas feministas como um
sistema de relações baseado na hierarquia humana da desigual distribuição de poderes, tendo como
centralidade a masculinidade sobre a feminilidade.
48
de fidelidade que deveria ser seguido à risca, em que o matrimônio confinava a vida
do casal e trancafiava os discursos sobre o sexo.
Coadunado com o argumento de Engels (1986) apud Joseli Maria Silva
(2009b) sobre a criação e normatização da família, Michael Foucault (1976) explica
que antes do modo de produção capitalista existia certa franquia para se falar sobre
sexo, não existiam reticências excessivas e nem demasiado disfarce. Os gestos
eram diretos, discursos sem pudores e os corpos nus transitavam sem dificuldades e
sem escândalo, como dizia Foucault (1976), os corpos “pavoneavam”.
Até certa medida não havia fronteiras tão rígidas e inacessíveis aos gêneros.
Aliás, não existiam com clareza as restrições produzidas pelas dicotomias dos sexos
que balizam os padrões de gênero e da sexualidade contemporânea. As recessões,
delimitações e restrições foram produzidas e aguçadas durante o século XVII,
quando o sexo foi confinado às quatro paredes e sobre ele era proibido falar
(FOUCAULT, 1976, p.11). Para dominar o sexo no plano real foi necessário
[...] reduzi-lo ao nível da linguagem, controlar sua livre circulação no
discurso, bani-lo das coisas ditas e extinguir as palavras que o tornam
presentes de maneira demasiado sensível. (FOUCAULT, 1976, p.21).
O sexo passou a ser institucionalizado e capturado pela burguesia e seu
modelo de uso normal foi assegurado aos casais heterossexuais que reproduzem
esse legado até os dias atuais. As crianças não conseguiram escapar dessa
fabricação discursiva e foram (des)sexualizadas e romantizadas como figuras
pudicas assegurando-lhes uma associação com a figura angelical que representava,
no ápice de sua contradição, uma divindade humana pura e sem pecado.
Nesse novo padrão de sociedade que era elaborado, as mulheres foram
colocadas e comprimidas ao espaço da casa, e cabia a elas assumirem a direção da
criação dos filhos e dos afazeres domésticos. Simultaneamente, os homens foram
sugados pelo novo modelo de produção, o capitalismo, que já apresentava pujança
com o advento da Revolução Industrial, inferindo aos machos o papel de
provedores, isto é, daqueles que mantinham a sobrevivência do lar.
Apesar de todos os discursos criados pelo movimento feminista para a
visibilidade da mulher, oprimida pelas relações capitalistas, que eram masculinas,
nessa tendência permitiu-se a eclosão de estudos sobre as masculinidades, cujo
49
objetivo também era desconstruir o homem universal cujas características estavam
em torno da virilidade, dominância e violência.
A partir dessa corrente percebeu-se que as masculinidades se constroem
relacionalmente com as feminilidades. Porém, essa construção deveria se afastar da
premissa dicotômica disseminada pelo pensamento beauvoriano, e se posicionar a
favor de um pensamento complexo e relacional. Por meio dessas provocativas foi
possível compreender que
homens
e mulheres
não
compartilhavam
das
universalidades esboçadas pelo beauvorianos.
O cotidiano de homens e mulheres diversificava-se de acordo com as
socializações dos quais estavam submetidos. As pesquisas dessa tendência
estavam preocupadas em descobrir, pelo método analítico, as diferenças entre
homens negros e brancos, mulheres de classe baixa e alta, aplicando a associação
da categoria gênero com as outras categorias caras às ciências humanas.
Os trabalhos de Joan Scott receberam respaldo e confiabilidade por
compreender o gênero como uma produção social, portanto, forjada. O método
analítico proposto por Scott (1994) apontava uma fragilidade dos estudos
universalistas que estavam, predominantemente, carregados de descrições
minuciosas.
Sustentada nas contribuições teóricas sobre a genealogia do poder de
Foucault e o projeto desconstrucionista de Derrida, Joan Scott, para definir gênero,
argumenta que essa categoria
[...] tem duas partes e diversas subpartes. Elas são ligadas entre si, mas
deveriam ser distinguidas na análise. O núcleo essencial da definição
repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições: gênero é um
elemento constitutivo das relações sociais, baseadas nas diferenças
percebidas entre os sexos e mais, o gênero é uma forma primeira de dar
significado às relações de poder (SCOTT, 1994, p. 13).
As proposições de Scott (1994) indicavam que o gênero deveria ser utilizado
como uma categoria analítica, que tornasse viável o entendimento da construção,
reprodução e mudanças das identidades no decorrer do tempo histórico. A análise
histórica era de fundamental importância nessa tendência e para Scott (1994)
Historicizar gênero, enfatizar os significados variáveis e contraditórios
atribuídos à diferença sexual, os processo políticos através dos quais esses
significados são construídos, a instabilidade e maleabilidade das categorias
“mulheres” e “homens”, e os modos pelos quais essas categorias se
50
articulam em termos da outra, embora de maneira não consistente ou da
mesma maneira em cada momento [...] (SCOTT, 1994, p. 25-26).
Entretanto, as teses formuladas por Joan Scott apresentam fragilidades
conforme analisa Bento (2006). Para ela a utilização da diferença como parâmetros
de tais estudos reproduziu a visibilidade da heterossexualidade35, ocultando as
identidades de gênero que não se enquadram nas categorias de mulher ou homem
que compõem a proposta de Joan Scott. Butler (2003) argumenta que a diferença
pode culminar na coisificação do gênero e suplantaria, de fato, a heterossexualidade
como norma compulsória das identidades.
Conforme esse pensamento eclode alguns questionamentos: como as
explicações de Scott contribuiriam para analisar as identidades Trans, já que estas
não estão inclusas nas categorias até então destacadas por essa tendência? Como
compreender a subjetividade de sujeitos que estão além desse binarismo?
Conforme Joseli Maria Silva (2009a), as pesquisas geográficas da tendência
relacional estavam vinculadas à luta de classes e às desigualdades de gênero. As
análises só consideravam as estruturas materiais da sociedade capitalista que
oprimiam e aprisionavam as mulheres. Os trabalhos marxistas, conforme elucida
Joseli Maria Silva (2009a), sofreram relevantes críticas pela concepção dualista
entre masculino e feminino, bem como a bipolaridade na análise da produção e
reprodução social da sociedade capitalista.
Outras críticas foram consideradas, como as realizadas por Bell Hooks e
Gayatri Spivak (2004 apud Joseli Maria Silva 2009b) no que se refere à dominação
dos discursos científicos da geografia feminista por mulheres brancas, da classe
média, dos países desenvolvidos, evidenciando o quanto o campo ontológico está
permeado de poder e subsidia a manutenção dos aparatos que reproduzem as
lógicas colonialistas36. As vozes de pesquisadoras negras dos países periféricos,
bem como as lésbicas, foram consideradas, ampliando as interseccionalidades dos
estudos de gênero.
De acordo com Bento (2006), uma das grandes críticas ao momento
relacional foi a essencialização das análises do gênero, como também a
35
Até então os estudos da sexualidade estavam restritos a compreender os processos ligados à
heterossexualidade, invisibilizando as performances de gays masculinos e femininos, intersexos e a
ampla diversidade performática das sexualidades divergentes.
36
Sobre esse debate torna-se necessário considerar as investidas das análises críticas do
conhecimento produzido proposto, por Boaventura de Sousa Santos na obra “Conhecimento prudente
para uma vida descente: Um discurso sobre as ciências revisitado” (2004).
51
continuidade da generalização dos papéis de homem e mulher, suscitados pelo
conceito de patriarcalismo. Corroborando com essa mesma crítica, Mc Dowell (1999)
acredita que essa tendência pecou pelo alto grau de universalização presente no
debate sobre o patriarcado, não alcançando com eficácia a compreensão dos
contextos históricos e espaciais nos quais eclodiam as normativas de gênero.
Percebemos
que
nas
duas
tendências
anteriormente
analisadas,
o
heteronormatividade exacerbado das teorias feministas invisibilizou identidades
oprimidas, compactuando com o mesmo sistema de exclusão que confinou a
mulher37. As sexualidades divergentes da matriz heterossexual38 não estavam
contempladas nas tendências analisadas, situando nos estudos feministas um
problema de gênero e na Geografia um problema espacial em virtude dos silêncios
das geógrafas que, inicialmente, mostraram-se preocupadas com a repressão e
aprisionamento espacial da mulher, mantendo o discurso de gênero geográfico
heterossexualizado. Para além disso, o discurso geográfico legitimava a apropriação
e usos do espaço a favor da reprodução da matriz heterossexual, capturando o
espaço como estratégia da manipulação dos corpos, onde seria possível determinar
as áreas e a temporalidade, por meio do discurso moralizante, que deveriam ser
habitados pelos sujeitos das sexualidades divergentes.
Essa crítica norteia outro fluxo de debates sobre as sexualidades que coincide
com a articulação de grupos sociais que reivindicaram, na década de oitenta do
século XX, direitos humanos em torno da temática da orientação sexual. Nesse
mesmo período, segundo Bento (2006), pesquisadores das ciências sociais
problematizavam, dentre outras temáticas, o papel determinante das ciências Psis
na elaboração da “verdade” sobre o sexo.
Para tanto, Joseli Maria Silva (2009a) pontua as contribuições de Jaques
Derrida, Michael Foucault, Nietzsche, Teresa de Lauretis e Donna Haraway que, em
meados da década de 90, favoreceram a criação de novas agendas de debates. A
publicação dos três volumes da História da sexualidade de Foucault (1976) trouxe
enormes contribuições para os estudos das sexualidades aliados aos conceitos de
37
Fica a inquietação de que o movimento feminista fazia parte de um amplo projeto de sociedade que
não estava preocupado em minimizar a figura feminina e sim combater incessantemente a
homossexualidade. A criação dos rótulos homem e mulher funcionavam como dispositivos de
identificação que negavam outras categorias performáticas de gêneros.
38
De acordo com Butler (2003), a matriz heterossexual refere-se à base da integibilidade cultural por
meio do qual os corpos, gênero e desejos são naturalizados e essencializados. Essa concepção,
internalizada pelos processos culturais, representa a hegemonia de dominância da
heterossexualidade que determina a linearidade e coerência entre genitálias e desejos sexuais.
52
poder, saber, disciplina, corpos dóceis e instituições normatizadoras presentes na
obra Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1987).
Tais provocativas auxiliaram Judith Butler (2003) a subverter e reavaliar, a
partir do pós-estruturalismo, o debate até então consolidado sobre a temática. A
perspectiva desconstrucionista de Butler (2003) indica outra tendência dos estudos
de gênero, marcada pela pluralidade de enfoques e visibilidades das identidades
sexuais que foram escamoteadas nos ensaios e publicações de gênero que estavam
apenas voltadas para o binarismo homem-mulher.
A tendência plural
No livro Problemas de Gênero, Butler (2003) critica o “conhecimento do
conhecimento” normativo produzido pelas/os pesquisadoras/res densos da lógica
heterossexual. Sua grande contribuição, nessa obra, é apontar a necessidade de
assumir o problema de gênero existente nos estudos feministas. Para Butler (2003),
as tendências universalistas e relacionais reproduziam os mesmos mecanismos dos
dispositivos saber-poder que retroalimentam a matriz heterossexual. Todos os
discursos institucionalizados sobre o gênero da ciência reiteravam o dimorfismo dos
corpos, execrando as sexualidades díspares do modelo homem-mulher.
Os indivíduos que não correspondiam ao modelo binarista não eram
inteligíveis ao debate. As travestis, transexuais, transformistas, gays, lésbicas, drag
queens, drag kings39, entre tantas possíveis identidades destoantes da matriz
heterossexual, demonstravam o quanto os estudos das sexualidades estavam
densos de preconceitos, visto que, nessa situação, o silêncio se configura como uma
estratégia de não visibilizar algumas identidades sexuais.
A multiplicidade de identidades, a desnaturalização, a dessessencialização, a
visibilidade das sexualidades divergentes e a história da produção das sexualidades
39
Drag queens ou Drag kings são artistas perfomáticos que se travestem, fantasiando-se cômica ou
exageradamente com o intuito geralmente profissional artístico. As Drag queens se montam
artisticamente no espelho da mulher, enquanto os Drag Kings no espelho do homem.
53
vislumbram um status teórico, reivindicando para si um campo próprio de análises
chamado de estudos queers.
Conforme Louro (2001), queer pode ser traduzido como estranho, ridículo,
excêntrico, raro e extraordinário, mas é utilizado, ainda, como um termo pejorativo
contra os homossexuais. Para esse estudo, corroborando com Miskolci (2005) e
Louro (2001), queer refere-se à oposição heteronormatividade compulsória da
sociedade, refletindo o trabalho e a perspectiva teórica de um grupo de intelectuais
que, na década de noventa, afirmou-se e contribuiu significativamente para a
desconstrução das concepções binaristas de gênero. O termo queer
Surge como interpelação que discute a questão da força e da oposição, da
estabilidade e da variedade no seio da performatividade. Este termo tem
operado como uma prática lingüística cujo propósito tem sido o da
degradação do sujeito a que se refere, ou melhor, a constituição desse
sujeito mediante esse apelativo degradante. Queer adquire todo seu poder
precariamente através da evocação reiterada que o relaciona com
acusações, patologias e insultos. (BUTLER, 2002, p. 21).
Além de a categoria gênero ser uma construção social regulatória da vida
humana e que simultaneamente naturaliza os papéis femininos e masculinos, Butler
(2002) também percebe o sexo como uma categoria normatizada que é
cotidianamente reiterada e naturalizada. Binnie e Valentine (1999) aderem ao
movimento teórico queer e criticam a geografia feminista pela ambiguidade no que
se refere à adesão dos estudos da sexualidade. Em outras palavras, para eles, a
geografia feminista mantém-se reticente com a crescente demanda de pesquisas
sobre as sexualidades e apontam, como descreve Joseli Maria Silva (2009b, p. 44),
que antes de realizar uma “leitura queer do espaço, é necessário empreender uma
leitura queer da própria Geografia”.
Para compreender melhor a tendência plural propomos a análise da teoria da
performatividade de Judith Butler, associando essa matriz teórica com os estudos
das sexualidades, que têm encontrado campo promissor na nova abordagem
cultural na ciência geográfica.
54
1.3- A teoria da performatividade de gênero numa perspectiva espacial
Os efeitos da teoria desconstrucionista de Judith Butler (1999, 2002, 2003)
que revolucionaram os estudos feministas, trouxeram à tona a noção de gênero
como uma categoria discursiva, que se constrói a partir de uma contínua repetição
de ações, densas de significados socialmente construídos e legitimados,
fortalecendo os binarismos anteriormente discutidos.
Consideram que, apesar da sociedade estar sendo movida pelas forças
generificantes que normatizam as identidades de gênero, suas normas quando
internalizadas pelos sujeitos no processo de repetição nunca mais serão
reproduzidas em fidelidade, sendo transpassadas pela capacidade que o sujeito
possuiu de alterar significativamente as práticas internalizadas, abrindo a
possibilidade de subversão e desconstrução de padrões ilusoriamente estáveis.
Por isso, Butler (1999) afirma que o gênero é performático. A sua elaboração
só é possível quando os parâmetros legitimados pela sociedade normatizadora são
postos em um exercício cotidiano de reiteração; por meio da repetição desses
parâmetros os sujeitos podem afirmá-los ou produzir um efeito inverso,
desconstruindo e ressignificando contraditoriamente as bases generificantes que
atestam a normalidade dos corpos heterossexuais. Eis que se produz, por meio da
negação
das
normas,
as
sexualidades
divergentes
que
antes
estavam
escamoteadas com a intensa visibilidade atribuída às categorias de homem e
mulher.
Segundo Butler (2003) o gênero configura-se como uma sofisticada
tecnologia
social
a
favor
da
heteronormatividade
e
a
eficácia
de
seu
desenvolvimento está atrelada à operacionalização realizada pelas instituições
sociais, como as médicas, linguísticas, domésticas, escolares, que reiteram as
ideologias dos corpos- homens e corpos-mulheres.
Por meio das repetições, com base nas interpretações das normas
internalizadas, os corpos adquirem características de gênero que compactuam com
a matriz heterossexual, conferindo sentido às diferenças binaristas entre os sexos.
Os atos reiterados são constantemente renovados, revisados e se consolidam como
práticas banais ao longo do tempo e chegam a inclusive a um status de
55
naturalidade, por isso mesmo inquestionável. No pensamento de Butler (2002), esse
processo significante de reprodução cotidiana é chamado de performatividades de
gênero.
Mesmo antes de nascerem os corpos estão inscritos num campo discursivo
determinado pela matriz heterossexual. De acordo com Foucault (1987) os corpos
são extremamente dóceis, de fácil manipulação, modelagem e recriação e
correspondem às ideologias imperativas ao mesmo passo que as reproduz. A priori,
todos os corpos são dóceis e submetidos à disciplina heterossexual, pois “é dócil um
corpo que poder ser submetido, que poder ser utilizado, que pode ser transformado
e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1987, p.126).
As performatividades estão imbricadas no interior de poderes sobrepostos e
justapostos e esse mecanismo de dominância lhes impõe limitações, proibições e
obrigações. Associando o pensamento foucaultiano com a teoria performática de
Butler, podemos afirmar que as reiterações performáticas estão inclusas numa
minuciosa operação corpórea, em que a sujeição constante ao biopoder40 impõe aos
sujeitos uma relação de docilidade, permitindo a apropriação do corpo pelas normas
dominantes. Para Foucault (1987) os corpos somente podem ser apropriados pelos
símbolos culturais discursivos por meio da disciplina.
A performatividade de gênero constitui-se numa disciplina porque se
fundamenta numa relação de apropriação de corpos. Segundo Foucault (1987) a
disciplina é diferente da escravidão, justamente porque não se fundamenta na
apropriação de corpos, como também se distancia da noção de domesticidade que
retrata uma relação de dominação constante, global e maciça. Diz Foucault (1977)
que a disciplina é elegante a ponto de dispensar relações custosas e abruptas. Age
de forma sútil e processual esquadinhando o tempo, espaço e os movimentos. O
exercício cotidiano é que garante seu sucesso, ou seja, sua constante repetição e
reafirmação possibilitam sua internalização e naturalização.
A disciplina sempre está a favor dos agentes hegemônicos e é daí que ela
emerge, sendo projetada como uma técnica detalhista, íntima, minuciosa e que
define um investimento político e detalhado do corpo instaurando uma microfísica do
poder para o gênero (FOUCAULT, 1979). A heterossexualidade não eclode de forma
gratuita em cada corpo recém-nascido, a disciplina performática inscreve-se
cotidianamente por meio de operações repetitivas de códigos supostamente
40
Ver Foucault (1976).
56
naturalizados. Mesmo no período do planejamento da vinda de uma criança já existe
uma
gama
de
expectativas
pautadas
num
complexo
e
violento
molde
comportamental, antecipando o efeito que se supunha causa (BENTO, 2006).
Na perspectiva desconstrucionista de gênero o processo disciplinar varia
entre
Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis,
de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que
obedecem as economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem
grandeza, são elas entretanto que levaram à mutação do regime punitivo,
no limiar da época contemporânea (FOUCAULT, 1987, p.128).
A docilização dos corpos pode ser assimilada como cirurgias discursivas que
relocam a posicionalidade dos corpos rumo a um campo simbólico correspondente a
matriz heterossexual. Sendo assim, as cirurgias que modelam os corpos não são
apenas estruturais, mas discursivas. Conforme Bento (2006) o desejo dos familiares
sobre o sexo da criança produz uma invocação performativa envolvendo aquele
corpo
vindouro
de
expectativas
pré-elaboradas.
Constantemente
estamos
submetendo-nos às cirurgias corporais discursivas que encontram na cultura grande
poder de difusão para fabricação de nossos corpos. As tecnologias culturais
remodelam-nos segundo as normas vigentes ou pautadas na superação e reação
destas.
Conforme Preciado (2002), os corpos já nascem operados, não existem
corpos que não tenham sido submetidos às transformações disciplinares. Somos,
então, pós-operados, uma cirurgia de sucesso carregada de investimentos
discursivos e o “sexo é uma das normas pelas quais o “alguém” simplesmente se
torna viável, que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da
inteligibilidade” (BENTO, 2006, p.3).
Os arranjos disciplinares performáticos não são apenas simbólicos, essas
produções discursivas ganharam formas espaciais e se impõem como arquiteturas
generificadoras que operam os corpos e os espaços. Na visão de Foucault (1979)
são as instituições normatizadoras que, como objetos espaciais, impõem a ordem
heterossexual no espaço. A política dos enunciados e sua economia restritiva de
discursos não conseguiram prender os saberes do sexo nas regiões abomináveis
onde ela foi temporalmente escondida, a intenção das instituições normatizadoras
57
era por em prática a disciplina, detalhando aquilo que deveria ser dito e reproduzido
sobre o sexo.
Foucault (1979) afirma que as instituições normatizadoras acompanhavam
com muita sutileza tudo que se produzia e se falava sobre o sexo. Entre elas
estavam a Igreja Católica Romana, o Estado, as escolas, os hospitais, que com
base no direito canônico, na pastoral cristã e na lei civil estabeleciam a linha
divisória entre o lícito e o ilícito.
As instituições normatizadoras estão materializadas no espaço enquanto
objetos espaciais de onde emanam micropoderes e funcionam como “uma máquina
de ensinar, mas vigiar, de hierarquizar (e) de recompensar”, (FOUCAULT, 1987, p.
134) criando espaços complexos
ao mesmo tempo arquiteturas funcionais e hierárquicos. São espaços que
realizam a fixação e permitem a circulação; recortam seguimentos
individuais e estabelecem ligações operatórias, marcam lugares, indicam
valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma economia
do tempo e dos gestos. (FOUCAULT, 1987, p. 135)
É a partir dos objetos e sinais exteriores ao corpo que o gênero adquire vida.
Foucault nos apresenta as arquiteturas como objetos externos ao corpo que fazem
parte de um proposital planejamento espacial que institucionaliza as tecnologias dos
micropoderes. O espaço, em sua totalidade, possui objetos espaciais que observam,
espiam, vigiam, além de conter alguns propósitos terapêuticos que lhe conferem um
caráter expressivo.
Em contato com o espaço performatizado, “o corpo humano entra numa
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (FOUCAULT,
1987, p. 127), e os objetos espaciais generificados definem as estratégias de
dominação sobre o corpo alheio, não simplesmente para reproduzir aquilo que se
quer, mas como se quer, são potencializados pelas tecnologias generificantes que
fabricam corpos submissos e exercitados.
Contraditoriamente, o processo de submissão está aberto ao paradoxo, pois
nesse espaço de constante vigilância existem corpos que, na reiteração gestual e
normativa de gênero se configuram como corpos rejeitados evidenciando a dinâmica
social do gênero, que não é passiva à coerção heterossexual e responde
subversivamente à repressão de si.
58
Geograficamente, surgem no escombro de suas representações seus
espaços de resistência, reprodução e socialização. Assim são os lugares e/ou as
territorialidades
espalhadas
pelo
espaço
geográfico
que
materializam
as
contradições presentes na realidade social, existindo de forma relacional, ao mesmo
passo que apresenta vestígios da permissividade espacial cedida pelos agentes
hegemônicos, isto é, aqueles que detêm os meios de produção e que disseminam a
cultura normatizadora heterossexista e produzem o espaço (LEFEBVRE, 2000).
No jogo do espaço sexualizado, segundo Foucault (1987), o importante não é
destruir e fazer desaparecer as transgressões de gênero e nem socioespaciais, e
esta não é a proposta dos agentes hegemônicos, pelo contrário, sua co-existência
está circunscrita num sistema de repressão e num indicativo de modelo de vida
“não-convencional” do qual um sujeito de boa índole não pode viver. Aqueles que
destoam das reiterações delicadamente explicitadas pela matriz heterossexual são
classificados como corpos abjetos, segundo Butler (2003).
Em uma entrevista a Baukje Prins e Irene C. Meijer (2002) sobre Como os
corpos se tornam matéria Judith Butler concorda que suas proposições sobre a
existência da abjeção são contraditórias. A pesquisadora argumenta que a
concepção de corpos abjetos, na dimensão teórica que foi discutida, culmina numa
aplicação delicada do conceito em realidades materializadas em função do paradoxo
daquilo que construímos como corpos e identidades fluídas no plano cultural.
Para Judith Butler,
O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas "inóspitas" e
"inabitáveis" da vida social que são, não obstante, densamente povoadas
por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o
signo do "inabitável" é necessário para que o domínio do sujeito seja
circunscrito. Essa zona de inabitabilidade constitui o limite definidor do
domínio do sujeito; ela constitui aquele local de temida identificação contra o
qual − e em virtude do qual − o domínio do sujeito circunscreverá sua
própria reivindicação de direito à autonomia e à vida. Neste sentido, pois, o
sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força
que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior
abjeto que está, afinal, "dentro" do sujeito, como seu próprio e fundante
repúdio. (1999, p.155-156).
De acordo com a autora, a abjeção é a existência do impossível em seu
sentido ontológico41. Por isso propõe que os sujeitos que não reproduzem as normas
41
Para realizar essa afirmação Butler (2001) realiza uma incursão teórica profunda cruzando
conhecimentos específicos de diversas escolas filosóficas consideradas normatizadoras da
59
da matriz heterossexual, como as princesas do sertão (travestis, transexuais e
transformistas desta pesquisa), são corpos abjetos que não gozam do status de
sujeito. Segundo Prins e Meijer (2002) Judith Bulter (1999) afirma que a abjeção é
provocada no momento que as ações divergentes à norma são recusadas pelos
códigos da inteligibilidade. Viver deslocado desse simbolismo corresponde a uma
inexistência comum nas “regiões sombrias da ontologia”.
De acordo com Foucault (1995), certos tipos de discursos, para não afirmar
com posicionamento radical que são todos, operam sobre efeitos e movimentos
ontológicos. Os discursos produzem realidades que se afirmam enquanto verdades
e criam materialidades que representam a ontologia concretizada. Aquilo que é dito
e não corrobora com os símbolos da verdade do discurso dominante não possui
materialidade ontológica, apesar dos símbolos estarem materializados na realidade
e não possuirem legitimidade política e nem persuasão frente aos poderes dos
discursos hegemônicos.
Em seu argumento político filosófico, Butler (1999) apresenta o paradoxo da
abjeção centrada na existência real de “coisas” que fogem às normas e que
inexistem para a ontologia dos discursos dominantes. Sendo assim Butler, conforme
Prins e Meijer (2002, p.160) afirma que “alguns tipos de seres têm existência
ontológica mais completas que outros”. Assim ela desnuda o cenário da
desigualdade da existência dos sujeitos de forma complexa. Para Butler a própria
ontologia, com base em Foucault (1997), é um território regulamentado e manipula a
produção, disseminação e exclusão dos saberes para que eles se sobreponham
como tal, sob o efeito do poder.
A noção de abjeto se expande quando Butler declara que
O abjeto para mim não se restringe de modo algum a sexo e a
heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpo cujas vidas não são
consideradas ‘vidas’ e cuja materialidade é entendida como não importante.
(PRINS e MEIJER, 2002, p. 161).
Entendemos que a abjeção é um processo discursivo que extrapola o corpo, a
sexualidade e alcança as outras esferas da realidade. A abjeção tem sua dimensão
“verdade”. Ela considera que é por meio dos discursos e dos saberes que a ciência possui o respaldo
na sociedade. A ciência produz o campo do real, da surrealidade, do humano, das afetividades a
partir de seus pareceres científicos. Por isso a abjeção se constitui numa existência impossível, por
reproduzir uma humanidade não aceita, não compartilhada pelo jogo de verdades instauradas pela
ciência.
60
espacial reproduzindo “zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’” onde os marginalizados
estão concentrados e se multiplicam formando as regiões sombrias em que a
ontologia tem pouca inteligibilidade.
Os territórios que subvertem os discursos hegemônicos são materializações
concretas e simbólicas da abjeção performática. Os territórios inteligíveis
reproduzem as normas do campo ontológico assegurando a eficácia das disciplinas
sociais e sua regulamentação normativa. Enquanto os territórios abjetos se
constituem na contradição oposicional e complementar dos territórios inteligíveis.
Nos territórios abjetos a vida reproduz-se na contra mão das normas, e os sujeitos
que o reproduzem negligenciam parte das normas legalizadas pela sociedade,
contradizendo e solapando as estruturas que asseguram a existência dos territórios
inteligíveis, porém jamais os exterminando.
Nos territórios abjetos concentram-se os sujeitos transgressores da “vida”, em
seu sentido ontológico, que resistem em constante conflito pelo reconhecimento
político de sua existência anulada pelos dispositivos do saber e poder. O processo
de abjeção vincula-se à preocupação de entender o modo pelos quais determinadas
vidas são produzidas diferenciadamente em um sistema arbitrário de negação de
sua condição humana refletida na produção diferencial do espaço.
1.4- As heterotopias espaciais dos gêneros divergentes
Conforme analisada na teoria da performatividade de Judith Butler (2002,
2003), a nova tendência plural dos estudos de gênero amplificou seu campo de
análise debruçando-se nas pluralidades performativas dos gêneros abjetos. Fazendo
parte dessa corrente, nossa pesquisa envolve sujeitos que se declaram
transformistas, travestis, transexuais, michê-gays e drag queens que subvertem a
lógica dos gêneros inteligíveis, minando as representações dominantes da matriz
heterossexual.
Há um longo debate sobre essas performatividades, sobretudo quando se
trata do risco de classificá-las. O rótulo, para a teoria queer, restringe as
possibilidades de ser e estar do sujeito e classificar os seres é impor-lhes uma
61
estabilidade performática que é ilusória e no máximo ideológica. Não obstante, os
espaços são comumente rotulados. A tradição geográfica, para sistematizar o
conhecimento da disciplina, engendrou uma produção discursiva cartesiana sobre o
espaço, elegendo, rotulando, classificando as áreas de acordo com fatores naturais,
sociais ou naturais/sociais.
A rotulação do espaço provocou uma soldadura que visibilizava os agentes
hegemônicos e, consequentemente, escamoteava os grupos sociais divergentes.
Porém, as histórias ideológicas desses rótulos disciplinares foram a obsessão do
século XIX, como afirma Foucault (1967). Na contemporaneidade, talvez seja, acima
de tudo, a época do espaço. Para Foucault (1967) vivemos num período de intensas
simultaneidades que somente são perceptíveis na esfera espacial na qual as coisas
estão justapostas, próximas, longínquas, sobrepostas e dispersas.
Contudo, torna-se imprescindível compreender o íntimo nó entre tempo e
espaço, visto que o espaço em si tem uma história. As nossas ansiedades estão
reservadas à compreensão do espaço como “coisa” capaz de integrar e interagir
com outros fenômenos da realidade, enquanto o tempo se constitui numa das várias
operações distributivas possíveis entre os elementos que compõem e que estão
espalhados pelo espaço (FOUCAULT, 1967, p.2).
Apesar dos avanços técnicos para apropriação e uso, além das redes de
relações entre os saberes galgados pelos profundos debates filosóficos, ainda não
foi possível dessacralizar o espaço das dicotomias insuperáveis, invioláveis e
inultrapassáveis que nossas instituições não tiveram a coragem de superar. Ainda
discutimos o espaço público e o privado, social e familiar, de lazer e trabalho,
mantendo o cartesianismo, por mais que a tentativa teórica desta pesquisa tente
subverter, somos constantemente seduzidos à dicotomia espacial.
Segundo Foucault (1967) Bachelard nos apresenta um espaço, por meio de
descrições fenomenológicas, heterogêneo e denso de conteúdos, contrapondo a
busca da homogeneidade e do padrão espacial. Para Bachelard o nosso espaço é o
mesmo dos sonhos, das materialidades, das paixões, da luminosidade e da
penumbra. Completa Foucault (1967, p.3) que vivemos “numa série de relações que
delineiam sítios decididamente irredutíveis uns aos outros e que não se podem
sobre-impor”, sítios que se encadeiam uns nos outros ao mesmo tempo em que
contradizem todos os outros.
62
Buscando compreender o espaço, Foucault remete-se à discussão filosófica
do conceito de utopia. Para ele, ancorado na ideia de sítio, as utopias são sítios sem
lugar real ou material, possuindo uma relação analógica que pode ser direta ou
invertida com o espaço real da sociedade. Por tamanha abstração, Foucault remetese ao espelho para exemplificar os sítios utópicos. O espelho reflete uma condição
espacial que é um espaço sem lugar algum real e continua:
vejo-me ali onde não estou, num espaço irreal, virtual, que está aberto do
lado de lá da superfície; estou além, ali onde não estou, sou uma sombra
que me dá visibilidade de mim mesmo, que me permite ver-me ali onde sou
ausente. (FOUCAULT, 1967, p. 4).
Os espaços que existem em materialidade e são formados pela sociedade se
constituem em contra-sítios, pois condensam utopias da sociedade que podem ser
encontradas e são contestadas, subvertidas e invertidas.
Estes tipos de lugares estão fora de todos os lugares, apesar de se poder
obviamente apontar sua posição geográfica na realidade. Devido a estes
lugares serem totalmente diferentes de quaisquer outros sítios, que eles
refletem e discutem, chama-los-ei, por contraste às utopias, heterotopias.
(FOUCAULT, 1967, p. 4).
Considerando o espaço enquanto unidade heterogênea e contraditória,
apesar de refletir as utopias dos agentes hegemônicos, existem espaços que burlam
as utopias compartilhadas e naturalizadas enquanto verdades. Esses espaços, ou o
espaço dos outros numa perspectiva antropológica, constituem-se em uma contrautopia, um contra-sítio ideológico, uma heterotopia. Os espaços da prostituição,
onde o corpo se rende a prazeres e processos ridicularizados pelos agentes
hegemônicos, constituem-se numa heterotopia. Eles existem em local real, numa
materialidade espacial, porém se diferencia das utopias dominantes das áreas do
seu entorno, se constituindo em lugar nenhum no plano filosófico de Foucault.
Em Feira de Santana, em vários pontos da malha urbana, encontram-se
espacializadas inúmeras heterotopias da prostituição, que são enclaves quando
comparadas com as outras relações que predominam no espaço do entorno. Em
nossa área de estudo a heterotopia da prostituição se processa e se reproduz numa
área privilegiada aos poderes dos agentes hegemônicos. Lado a lado com a Igreja, a
Prefeitura, o comércio e a Polícia Militar, instituições que reiteram as normas sociais
dominantes, convivem num certo período prostitutas, travestis, transexuais,
63
transformitas, gays masculinos que burlam os princípios da moral e dos “bons
costumes” da heterossexualidade.
Sua presença espacial solapa as utopias da monogamia, do casamento e da
heterossexualidade. Esses elementos, quando associados geram uma contra-utopia
que se espacializa de forma fluída no centro feirense. O adultério, a prevaricação
(dentre tantos adjetivos pejorativos constantemente usados pelas instituições
normatizadoras) e a homossexualidade redesenham o urbano e escrevem outra
espacialidade e contradiz a moral dominante.
As ruas tornam-se espaços de visibilidade para corpos que transitam
seminus, gerando sensações combatidas, sobretudo, pelas Igrejas que articulam
uma série de discursos tentando neutralizar o efeito subversivo da presença espacial
das sexualidades divergentes no centro da cidade. Para Foucault (1967, p. 5) esse
fenômeno é chamado de heterotopias de desvio que são “aquelas nas quais, os
indivíduos, cujos comportamentos são desviantes em relação a norma”.
Ainda discorre Foucault (1967, p. 5): “cada heterotopia tem uma função
determinada e precisa na sua sociedade, e essas mesmas heterotopias podem, de
acordo sincrônico com a cultura em que se inserem, assumir uma outra função
qualquer”. Apesar de se constituir num espaço onde se reproduzem relações
abomináveis42 frente ao pensamento burguês, os prostíbulos e/ou as zonas do baixo
meretrício de Feira de Santana, segundo Matos (2000) e Maria Carolina Silva (2004,
2008 e 2009) muitas famílias tradicionais de Feira iniciavam sexualmente seus
adolescentes masculinos nessas casas de orgia, apresentando ao indivíduo o
mundo da masculinidade compulsória.
Outra característica dessa heterotopia é que ela “consegue sobrepor, num só
espaço
real,
vários
espaços,
vários
sítios
que
por
si
só
seriam
incompatíveis”(FOUCAULT, 1967, p.6). A centralidade feirense, conforme estudaram
Oliveira e Henrique (2009a) apresenta uma multifuncionalidade e concomitante a
isso inúmeras territorialidades (o que significaria o termo espaço utilizado por
Foucault), dentre elas: a da prostituição, dos flanelinhas, dos camelôs, da Igreja
Católica, do tráfico de drogas, dos feirantes, dos fotógrafos do lambe-lambe, etc.
Essas co-existências espaciais tensionam o espaço, pois as contra-utopias se
42
No imaginário reproduzido pelos agentes hegemônicos, uma série de doenças venéreas e gente de
todo tipo, entre eles: assassinos, ladrões, estelionatários, estrupadores, etc. convivem e compartilham
desses espaços.
64
reproduzem com base na contradição, assimilação, identificação e delimitação,
revelando o caráter paradoxal existente nessas relações.
A heterotopia da prostituição de rua feirense apresenta um caráter cíclico,
constituindo-se em uma heterocronia43. Para Foucault (1967, p.7) “na maior parte
dos casos, as heterotopias estão ligadas a pequenos momentos, pequenas parcelas
do tempo”. Essa característica foi elucidada por Oliveira e Henrique (2009b) no
território da prostituição Trans na área de estudo. Segundo os autores,
da mesma forma como o pôr-do-sol demarca um período de transição do
dia para a noite, após o desativar das atividades diurnas percebe-se a
oficialização de outra organização espacial. À noite este espaço reveste-se
de nova lógica, códigos e símbolos formando o território da prostituição
onde as travestis e as prostitutas fazem circular outras intencionalidades,
bifurcando os fluxos noturnos do centro, as pessoas que nelas circulam, as
intencionalidades, caracterizando esse lugar como complexo e com grande
poder de metamorfose espaço-temporal.(OLIVEIRA e HENRIQUE, 2009b,
p.10).
Conforme Foucault (1967) as heterotopias também pressupõe um sistema de
abertura e encerramento tornando-as herméticas como penetráveis. Para ele as
heterotopias são espaços de livre penetração no que se refere ao espaço público,
para outras situações espaciais elas possuem um código que determina aqueles que
as compõem e aqueles que são os de fora. A entrada pode ser compulsória ou por
meio de rituais e purificações em que o individuo recebe, simbolicamente, a
permissão para circular e se fazer agente da heterotopia.
A segregação do espaço pela lógica de gênero pode ser observada nas
seguintes formas: as zonas de baixo meretrício, os bairros de alto padrão de
famílias que prezam a norma heterossexual, as ruas especializadas em
comércios para o entretenimento gay e as diversas territorialidades trans,
lésbicas, neonazistas, homofóbicas e outras peculiaridades do gênero.
(OLIVEIRA e HENRIQUE, 2009c, p.9).
E os autores continuam,
43
O conceito de heterocronia de Foucault (1967) se baseia na ruptura do indivíduo com sua tradição
temporal, sendo aplicado em situações que compreendem o tempo de forma ampla e em
intensidades diferentes. Tal conceito contribui para compreensão do espaço geográfico, considerado
na visão de Foucault enquanto uma heterotopia, por excelência heterocrônica, visto que o tempo não
para de se acumular e empilhar-se sobre si próprio. As formas do passado que coexistem no espaço
seriam registros históricos arquitetônicos de uma sociedade que não existe mais e que passou por
intensas transformações no curso histórico.
65
Do mesmo modo, a cada fabricação travesti no espaço, ressurge um novo
território móvel, cíclico, elástico que desliza por sobre o espaço. A
fabricação da identidade travesti está intimamente ligada à fabricação de
seu território, o que possibilita a fabricação de novos e antigos corpos.
(OLIVEIRA e HENRIQUE, 2009a, p.5).
A contradição sobre o acesso da heterotopia reside na aceitação44. Nem
todos os indivíduos que estão no território fazem parte dele. É característica da
heterotopia criar a ilusão do falso estar. As relações identitárias que se reelaboram
nas heterotopias se encarregam de produzir a exclusão dos que pensam estar onde
nunca entraram. Isso quer dizer que “pensamos que entramos ali onde somos,
simplesmente pelo fato de ali termos entrado, excluídos” (FOUCAULT, 1967, p. 8).
Por fim, o último traço da heterotopia apresentada por Foucault (1967) se
refere à função específica que ela desempenha para seu sítio de entorno. A
heterotopia apresenta uma função que se desdobra em dois pólos extremos, criando
“um espaço ilusório que espelha todos os outros espaços reais, todos os sítios nos
quais a vida é repartida, e expondo-os como mais ilusórios” (p.8). Os territórios da
prostituição apresentam essa simultaneidade oposicional. Mesmo sendo um espaço
onde o contato social entre pessoas de “bem” e prostitutos se torna um ato proibido
pelos sistemas simbólicos que regem nossa conduta social, a frequência dos
homens que compõem a sociedade moralista retroalimenta o território. Esse
paradoxo pode ser verificado no depoimento abaixo
[...] clientes bons de Feria de Santana, de outros lugares, regiões também,
que saem com a gente, do mundo todo também que vai pra lá, que passa
na Presidente, que todos que vai pra outra cidade passa pela Presidente
Dutra [...].(Entrevista realizada com Sophia Loren em 14.01.2010).
Existe uma frequente negação da prostituição de forma generalizada em
documentos históricos de Feira de Santana catalogados e analisados por Matos
(2000) e Silva (2006). Porém a vida boêmia da cidade está diretamente ligada com
os mesmos grupos sociais que reproduzem essa negação e defendem o extermínio
dessa prática pecaminosa na cidade princesa, mas superlotam os bordéis como
também circulam pelas avenidas onde as travestis, transexuais e transformistas
fazem trottoir.
44
Tanto Souza (1995) quanto Haesbaerth (2007) problematizam o acesso no território. Para eles
existe um jogo que direciona os de dentro do território e os de fora. Esse processo de semelhançaidentificação e diferença-negação é que determina o acesso às territorialidades.
66
CAPÍTULO II
HORMÔNIO
Hormônio...
Hormônio é vida,
Luz, esperança...
Hormônio é...
Calma, tranquilidade
E faz e mente ficar psicológica!!!
Ele quebra as feições do rosto,
Melhorando o aspecto...
Ele faz rodar na esquina direto...
Faz conhecer os amigos várias vezes...
O hormônio faz parar na BR...
Melanie Moule
67
2- FAZENDO O GÊNERO E O ESPAÇO: A (RE) INVENÇÃO DO FEMININO E A
(RE) INSCRIÇÃO DO ESPAÇO
Nós também temos, eu não sei as outras, mas eu tenho a mulher como uma
diva, um espelho. (Entrevista realizada com Greta Garbo em 15.01.2010).
A incessante busca do feminino pelas Trans, foco de análise desse estudo,
gera na sociedade civil ou ainda, nos centros acadêmicos de pesquisa, certa
inquietação e debate no que tange às divergentes produções de gênero que são
constantemente elaboradas e reelaboradas. Está disseminada no senso comum,
certa homogeneidade direcionada àqueles que utilizam um vestuário ligado à moda
feminina. Tal concepção, ao mesmo tempo em que é cruel, se torna estratégica.
Cruel por reduzir a pluralidade das identidades que são reelaboradas no fazer do
gênero e sintetizar seus instáveis produtos identitários como rótulos fixos.
Estratégica por que essa ilusória homogeneidade camufla as práticas, códigos e
símbolos que são específicos desse grupo heterogêneo, dificultando o acesso dos
seres inteligíveis, protegendo as especificidades e a integridade humana do grupo.
A busca pelo feminino, empreitada pelos seres abjetos que destoam das
normas dominantes do gênero, pode ser justificada pela importância que demos na
sociedade heterossexualizada, aos papéis de homem e de mulher. É por meio dessa
diferenciação que as relações sociais se desdobram, pois é sobre o corpo que a
cultura faz recair o manto das normas sociais, “cobrindo-o e descobrindo-o de
acordo com leis internas” (OLIVEIRA, 1994, p.25).
Para essa diferenciação, as instituições normatizadoras realizam um trabalho
tecnologicamente sofisticado que generifica, em determinado modo, a realidade. De
forma arrojada, os discursos vão neutralizando a ação persuasiva das sexualidades
divergentes, minimizando seu poder de contestação de gênero perante os
imperativos da normatividade que custa, a duras penas, impor a relevância do
binarismo homem-mulher dentro dos padrões da heterossexualidade para que a vida
se torne legalmente viável.
Deste modo, reproduzir a cotidianidade fora desses padrões construídos no
curso histórico e potencializados na era vitoriana, como elucida Foucault (1979), é
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viver de forma arbitrária e passível de inúmeras sanções e restrições socioespaciais
e afetivas. Isso justifica boa parte das ações que, por repetição, são naturalizadas,
sobretudo de rejeição aos seres que não compartilham de desejos, comportamentos
e estéticas determinados pela matriz heterossexual.
Nesse bojo, encontram-se as transformistas, travestis e transexuais que
fazem seus gêneros complexos e destoantes à luz do feminino, ou seja, no espelho
da mulher, mas não de qualquer mulher. Montam-se, reparam-se, ajustam-se de
acordo com o que há de mais feminino nas divas que são potencializadas como
caricaturas do superfeminino, sensuais e pudicas, ora desinteressadas ora
perspicazes rumo ao contraditório e instigante mundo da mulher, subvertido e
ressignificado pelo universo Trans.
A construção dos gêneros abjetos tem sido alvo de inúmeros estudos de
diversas áreas da ciência. Dentre essas pesquisas destacam-se a Antropologia, a
Sociologia, a História e a Psicologia que têm debatido a produção e o cotidiano das
identidades de gênero destoantes. Muitos desses estudos têm sido influenciados
pela corrente pós-estruturalista da teoria queer com destaque aos trabalhos de
Benedetti (2005), Bento (2006), Pelúcio (2007) e Peres (2005). Anterior a esse
debate com forte tendência relacional, conforme já foi discutido no capítulo anterior,
destacam-se os trabalhos de Silva (1993, 1996) analisando as travestis da Lapa, no
Rio de Janeiro e Oliveira (1994) empreitando um estudo materialista histórico das
travestis nos cortiços do Pelourinho, em Salvador.
Na contramão dos discursos científicos, que tentam ajustar no curso da
história a produção dos gêneros, estão as narrativas pessoais de cada transformista,
travesti e transexual que remontam uma produção biológica do gênero desviante,
como algo dado, adquirido com a vinda da criança à vida. De acordo com Benedetti
(2005), para suas informantes em Porto Alegre-RS, a naturalização do gênero é uma
explicação comum e compartilhada no universo Trans em que a homossexualidade
é uma característica inata que nasce com o indivíduo e é despertada no convívio
social. Essas justificativas encontraram lugar comum nessa pesquisa. Todas as
informantes acompanhadas durante o período de participação observante
confidenciaram, nas entrevistas semiestruturadas ou em conversas informais, a
naturalização de suas performances. O fato de se localizarem num campo discursivo
no qual o feminino é predominante é justificado pelo dotes naturais advindos de uma
gestação tendenciosamente desejada pelas mães, que almejavam vir à luz da vida
69
social uma menina. Esses discursos justificam, entre as Trans desta pesquisa, a
origem dessas sexualidades, apesar de, entre elas, existirem inúmeros conflitos
sobre a origem de performatividades femininas em corpos masculinos.
Este capítulo não pretende esgotar e nem aprofundar questões que as outras
Ciências Sociais estão investindo em pesquisas desde a década de 70 do século
vinte. Porém, as narrativas coletadas no campo evidenciam a complexidade alertada
por diversos autores acerca das diferenças existentes entre “os homens que se
vestem de mulher” e compõem os agentes analisados por essa pesquisa. Tais
depoimentos confirmam como os discursos socialmente elaborados e disseminados
foram internalizados para justificar, a partir da biologização dos corpos, uma falsa
naturalidade do gênero.
Alertando-nos a favor da construção histórica do gênero, Butler (2002) afirma
que o gênero não é uma produção cultural que é depositada ou moldada sobre um
receptáculo natural, que seria o corpo. Para a autora, tanto no sexo quanto no
gênero está presente uma densa gama de investimentos sociais, que de forma
sofisticada, reiteram e manifestam as normas sociais pela repetição cotidiana, e esta
por sua vez, paulatinamente, é internalizada pelo indivíduo como uma aparente
naturalização do gênero e do sexo.
O estudo da heterogeneidade identitária do universo Trans possibilita os
avanços dos estudos de gênero, sobretudo quando se busca entender como as
diferentes performatividades identitárias circulam e utilizam o espaço. É por este viés
que caminhamos, rumo ao entendimento das diferentes e paradoxais definições
entre transformistas, travestis e transexuais e a (re)significação espacial que elas
constroem quando (re)inventam o feminino.
Para tanto, analisamos as narrativas, associadas às vivências observadas na
etnografia, para compreender a diferente espacialização entre as transformistas,
travestis e transexuais em Feira de Santana. Essas observações só se tornaram
possíveis em virtude dos inúmeros contatos de diálogos e os passeios que fizemos
nas ruas da cidade princesa, tanto no período da noite quanto pelo dia.
Não é objetivo desta pesquisa fazer um inventário sobre as inúmeras
denominações que existem no grupo homossexual e que estão diretamente ligadas
a essas questões de pesquisa, inclusive porque entendemos os riscos de rotular as
identidades e minimizar suas possibilidades. Acreditamos que qualquer classificação
torna-se inconveniente a partir do momento no qual concordamos com as
70
instabilidades das identidades defendidas pela abordagem queer. Porém, chegamos
a um momento crucial em que foi necessário se render, por partes, às
denominações que as próprias Trans informaram durante a participação observante.
Percebemos o quanto essas categorias influenciam na vivência e nos
deslocamentos espaciais a depender do grau de transformação na construção de
gêneros das pessoas, pois o espaço condiciona a reprodução do cotidiano, pois está
embutida nas formas e funções espaciais a lógica da heterossexualidade.
Para Foucault (1987, p. 201) “o aparelho arquitetônico converte-se em uma
máquina para criar uma relação de poder independentemente da pessoa que o
exerce”. As arquiteturas que compõe o espaço reproduzem as lógicas do poder da
matriz heterossexual inibindo ou possibilitando o acesso dos seres abjetos em
determinados espaço. Pois
o espaço foi marcado, mais que marcado: foi formado pela predominância
masculina (guerreira, violenta, militar) e valorizado pelas virtudes chamadas
viris, difundidas pelas normas inerentes ao espaço dominado-dominador.
(LEFEBVRE, 2000, p. 470-471).
Dessa forma, o espaço e as sexualidades produzem e são produzidas pelas
forças que regem as dinâmicas da vida em sociedade. Para Knopp (1998) ambos
refletem como a vida cotidiana, delineada por Lefebvre (1968), se reproduz, é
representada, percebida e internalizada, como também a forma como os grupos
sociais, nessa internalização, revidam e fazem frente a essas lógicas.
As proposições realizadas nas próximas páginas sobre as performatividades,
estão baseadas nas narrativas das informantes dessa pesquisa. Observamos que, a
classificação de gênero, corrente entre elas, é muito mais funcional do que
identitária. O transformismo e o transexualismo, sobretudo, narrados pelas
informantes, são performatividades funcionais deslocados de seu sentido identitário,
para cumprir os pré-requisitos da prostituição. Assim, encontraremos nas afirmações
a seguir limites cada vez mais instáveis a cerca da conceituação de cada
sexualidade aqui abordada.
71
2.1- Princesas do disfarce
No centro da Cidade Princesa encontramos, ao longo da participação
observante, quatro transformistas que dividem a mesma esquina na Avenida
Marechal Deodoro com as travestis e transexuais. Dentre elas, duas apresentam
especificidades que tensionam e complexificam nossa pesquisa. Uma, chamada de
Brigitte, cinquenta anos de idade, é fundadora do território do sexo em Feira de
Santana e atualmente não exerce mais o ofício da prostituição. Brigitte é morena,
dos olhos castanhos escuros, com cabelos pintados que tentam esconder os fios
brancos, magra e alta, acredita que sempre teve um corpo favorável para entrar nos
melhores manequins que recebem atenção e elogios na rua e nos eventos gays da
cidade.
Ganhadora de dezenas de prêmios em concursos de beleza e desfiles gays
da cidade, que ocorreram entre as décadas de 70 e 80 encontrando seu declínio e
desarticulação no final dos anos 90 do século vinte, Brigitte é uma diva feirense e
possui um reconhecimento incontestável entre as Trans da cidade, por ser mais
velha e popular. Seus prêmios estão todos disponíveis para quem visitar sua casa,
localizada no bairro dos Eucaliptos. No seu quarto estão presentes alguns objetos
religiosos do candomblé do qual participa fielmente, além disso, estão nos
manequins, inúmeros figurinos coloridos e exóticos dos quais venceu concursos ou
desfilou nas recentes paradas gays da cidade.
A outra transformista que tenciona esta pesquisa é a Marlene, recém inserida
no território e afilhada45 da travesti Katharine. Marlene é pequena, morena de
cabelos encaracolados e menor de idade. Negou insistentemente durante nossos
poucos contatos, afirmando ter 18 anos. Porém, as outras Trans denunciavam, no
meio de risos, sua adolescência e sua iniciação na pista46 como transformista.
Com o corpo magro, Marlene é uma ninfeta que está iniciando sua
sexualidade no ofício da prostituição. De acordo com as outras Trans da praça ela
aparece na rua somente nos finais de semana para conseguir uma renda para se
45
46
Essa relação de madrinhagem será mais bem discutida no capítulo IV.
Fazer pista é o mesmo que fazer trottoir, ou seja realizar a prostituição de rua.
72
alimentar e durante a semana realiza uma série de favores à Katharine 47, sua
madrinha, e Audrey sua parceira de pista.
A existência de uma princesa menor de idade nesta pesquisa foi uma
surpresa inicial que tivemos em campo. Em respeito ao código de ética que protege
as crianças e adolescentes, não realizamos as entrevistas semiestruturadas a
Marlene, mas não resistimos a observá-la, nem na pista montada e parando os
carros e nem vestida de garoto, durante o dia, lavando as roupas das suas amigas
Trans da praça.
As outras duas transformistas iniciaram suas primeiras montagens para
prostituição no ano de 2005, logo quando iniciei a inserção no universo de pesquisa.
Os laços de intimidades estabelecidos com elas foram significativos para a
realização das entrevistas semiestruturadas e os diversos passeios durante o dia no
centro de Feira para observar os variados usos espaciais.
A transformista Joan tem uma pele bronzeada de tom médio-claro, cabelos
lisos de cor castanho médio, magra com mais de 1,85 metros de altura e um par de
olhos cor de mel. Aos 25 anos, Joan passa boa parte do dia na internet, marcando
seus encontros pelo msn48 e durante à noite, nos finais de semana, se monta, com
um figurino que deixa à vista seu par de pernas. Muitas imagens de suas produções
estão disponíveis em sua página do Orkut pelo qual trocamos constantes recados.
Por sua vez, Ava é morena com cabelos crespos de corte pequeno, com 23
anos, e começou suas primeiras produções junto com Joan. Com mais de 1,65
metros, Ava possui um bumbum empinado e torneado, suas coxas ficam sempre a
mostra, realçadas com o uso constate de saias justas e um salto alto para
compensar o tamanho. Seus olhos são castanhos claros, seus lábios são carnudos
e seu corpo, além da recente aplicação de silicone, apresenta músculos definidos.
Seus ombros largos e másculos favorecem, com o uso de camisas folgadas, a
camuflagem dos pequenos e empinados seios que ela colocou durante a
participação observante.
47
Katharine e Audrey não possuem os sobrenomes à toa. Elas são irmãs. Quando as conheci ainda
como gayzinhos, eles circulavam pela praça em busca de prazer pago ou gratuito. Inicialmente
Katharine fez sua transformação mediada pela madrinha Claudia e posteriormente, de forma muito
rápida, Marcelo se transformou em Audrey, negra, alta e muito sensual.
48
Sobre essa rede on line de relacionamentos Pelúcio (2007) realizou uma detalhada pesquisa sobre
Trans que se prostituem e se relacionam via web. As Trans chamam-se de T-gatas ou T-girls,
enquanto os parceiros sexuais virtuais são chamados de T-lovers.
73
A partir dessa rápida descrição das transformistas da praça já podemos
perceber as pluralidades existentes nessa categoria que complexificam esta
pesquisa. A aplicação de silicone, que é uma ação rumo a modificações corpóreas
mais arrojadas e profundas, geralmente utilizadas pelas travestis e transexuais, em
Ava embaralham inúmeras conceituações sobre o transformismo. Por isso,
acreditamos que em alguns casos a categoria transformista é mais funcional que
identitária.
Estudos sobre esse fenômeno já foram realizados na Bahia. Dentre essas
pesquisas destaca-se o pioneirismo de Oliveira (1994) que analisou as identidades
Trans na cidade de Salvador. Para Oliveira (1994) as transformistas preferem
manter a ambivalência entre as categorias homem-mulher, além de não compartilhar
e nem apresentar o desejo da castração do pênis.
Sabem ser um homem que, em determinados momentos podem
representar com perfeição a performance de uma mulher, sem alterarem a
anatomia do seu corpo. Não tomam hormônios, não põem silicone, nem
querem ser castrados. Nada que comprometa a volta à sua condição
masculina. (OLIVEIRA, 1994, p. 42).
Ao contrário do afirmado por Oliveira, todas as transformistas declararam usar
ou ter usado hormônios e apenas Ava investiu em alterações corpóreas mais
significativas com aplicação de silicone de avião, meio copo em cada seio. Ao que
parece não é a condição de reversibilidade que as torna transformistas, mas a
capacidade de se performatizarem homens e mulheres mesmo possuindo corpos
hormonizados. Isso não significa que todas as transformistas fazem usos de
hormônios e silicones. Existe, na literatura, a descrição minuciosa de vários casos
que corroboram com Oliveira. Porém, nesta pesquisa, as informantes que se
declararam transformistas estão inseridas numa amálgama de transformações
corpóreas mais sofisticadas.
Tentando compreender e considerar essas pluralidades, outra concepção
demarca outro campo conceitual para as transformistas, não explicitando, de forma
direta, o não uso de hormônios e silicones.
As transformistas, por sua vez, realizam em seus corpos intervenções leves
– que podem ser rapidamente suprimidas ou revertidas – sobre as formas
masculinas do corpo, assumindo as vestes e a identidade femininas
somente em ocasiões especiais. (BENEDETTI, 2006, p. 18).
74
Não é comum entre as transformistas circular durante o dia montadas, isto é,
com roupas e acessórios femininos. Pelo contrário, durante o dia sua estética está
ligada ao padrão do vestuário masculino e seus gestos se tornam mais discretos e
mais másculos. Não há uma rigidez sobre o uso de hormônios e silicones, não é o
seu uso que demarca o campo que diferencia as transformistas das outras Trans,
mas a propriedade de performatizar o binarismo em um só corpo e em horários
diferentes.
Existem diversas concepções sobre o transformismo, algumas delas
evidenciam a capacidade de representar o homem durante o dia e no mesmo corpo
à noite surge uma mulher desmontável de forma prática. Ser transformista, entre as
informantes dessa pesquisa, é ser
Um gay que coloca peruca, um mega hair temporariamente, de dia é
homem e de noite vira mulher. De dia é João e de noite é Maria. (Entrevista
realizada com Ava em 18.01.2010).
A transformista já é bem diferente, ela vai pra rua totalmente diferente do
dia-a-dia dela, é como se fosse uma gay durante o dia, homem normal e
durante a noite vai ter o momento dela de Maria, se travestir vestir-se de
mulher e fechar, soltar a franga na rua. (Entrevista realizada com Bette em
15.01.2010).
A transformista? Ah, essa é fácil. A transformista pra mim é aquela que se
veste de homem de dia. Ela é homem normal, mais ela é gay, ela continua
49
sendo gay, ela tá vestida de homem, de ocó , e de noite ela se monta,
passa uma bela minâncora na cara, passa uma base, um pó compacto, um
blush, brilho, um batom, se pinta todinha, se veste de mulher e vai pra pista,
isso é uma transformista. De noite é mulher e de dia é homem, ela se
transforma. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010).
Percebemos que entre as travestis, o transformismo ocorre quando existe a
performatividade dupla em um mesmo sujeito, que no senso comum é exemplificado
por João, o homem, que se transverte de Maria durante a noite. Para a montagem
da Maria, todo truque da beleza se faz necessário, forjam-se os quadris com
espumas de estofados, conhecido como pirelli, aplicam-se mãos e sobrancelhas
postiças, além de uma maquiagem cheia de camadas de bases para esconder os
traços do chuchu50 e apresentar a pele de forma mais aveludada.
49
50
Em ioruba significa homem.
Na linguagem do Bajubá refere-se aos pelos do rosto masculino, ou seja, a barba.
75
Porém, é entre as transformistas que a conceituação amplia-se e permite a
visualização das pluralidades, com o surgimento da mulher no corpo de homem em
ocasiões especiais, como elucidou Benedetti (2005).
Olha, a transformista é uma como a mim, de dia é normal, são rapazinhos,
entendeu? Agora quando é os evento, [é] que eu me transformo, que eu
boto um vestido, um salto, me maquio, já me transformei, já passei a ser
uma mulher, [para] ser um transformista. (Entrevista realizada com Brigitte
em 14.01.2010, grifos do autor).
Transformista é um homem que transforma certo? Ele de dia é homem, de
dia ele se veste normalmente de homem e durante a noite em festas,
boates, ou no show, alguma coisa do tipo é que ele se transforma.
(Entrevista realizada com Joan em 15.01.2010).
O uso de hormônios entre as transformistas de Feira não as leva a se
classificarem enquanto travestis. O hormônio aplicado ao corpo seria uma estratégia
de minimizar os traços masculinos existentes no corpo e potencializar curvas e
sinuosidades que são esculpidas com a ingestão de progesterona, aperfeiçoando-os
para a montagem do feminino. As indicações sobre como utilizar o hormônio são
compartilhadas na rede de solidariedade entre as Trans. Muitas delas são oriundas
de discursos médicos-legais, porém, outras fazem parte do senso comum.
Ah, nós tivemos um médico, que por sinal ele era gay. Ele era
conhecidíssimo aqui na cidade (entendeu?) e ele passava os remédios que
a gente deveria usar. Aí a gente ia e tomava os comprimidos em hormônio,
injeção, e aí pronto, ali se transformava. Ah [o hormônio], influencia no
desenvolvimento do corpo, no desenvolvimento dos seios [...] e deixa o
homossexual afeminado [...] Tomei com os 15 anos de idade. (Entrevista
realizada com Brigitte em 14.01.2010).
De acordo com Ava, a aplicação de silicone tornou-se possível por uma
incompatibilidade orgânica com o produto e por uma necessidade de ver,
rapidamente, brotar entre o tórax os seios discretos que possui e que são
camuflados com as camisetas folgadas que faz uso durante o dia quando está de
“João”.
Cheguei a tomar [o hormônio], umas duas vezes, só que enjoava e eu
resolvi colocar logo o silicone que é uma coisa que cresce mais rápido, do
que tomar hormônio. Eu não vi desenvolver rápido [o feminino no corpo], aí
eu resolvi colocar logo silicone [...] Mas tem só sete meses que eu coloquei
silicone [...] Fui em Salvador comprei o silicone, tem um amigo meu que
aplica, paguei a ele, ele veio colocou em mim, estamos aí, o silicone não
rejeitou, está no meu corpo até hoje e é isso. (Entrevista realizada com Ava
em 18.01.2010).
76
Esse duplo uso de identidades de gênero permite às transformistas circularem
mais no espaço do que as travestis e transexuais. Uma vez vestidos de homem,
mesmo com acentuados trejeitos gays, as transformistas circulam nas ruas
comerciais e nas instituições com maior liberdade e menos constrangimento. Esses
sujeitos também apresentam maior possibilidade de serem inseridos no mercado de
trabalho por conservar uma estética normativa51, que é minimizada à noite para
eventos ou para o trottoir.
Sobre a condição socioeconômica das transformistas
A partir da coleta de dados primários, em forma de questionário, podemos
observar que a maioria das transformistas possuem renda inferior ao salário mínimo,
que corresponde a R$ 510,00 e sobrevivem basicamente da prostituição, com
exceção de Brigitte que trabalha em salões de beleza.
De acordo com o gráfico 01, 50% das entrevistadas possuem escolaridade
básica incompleta. Por outro lado, 50% completaram os estudos do ensino médio,
com destaque a Brigitte que possui formação técnica em duas modalidades do
ensino médio: contabilidade e magistério, cursos ofertados até o final da década de
90 do século XX no Colégio Estadual de Feira de Santana. Ava concluiu sua
escolaridade básica na modalidade formação geral em escola publica, apesar de ter
estudado até a 8º série do fundamental II em escola particular. Marlene e Joan
continuam estudando o 1º ano do Ensino médio no turno noturno da mesma escola.
Observando o quadro 04, as transformistas residem próximas do centro da
cidade em áreas pouco valorizadas pelo capital. Essa proximidade favorece o
deslocamento e a fluidez cotidiana ao centro da cidade. Joan e Marlene continuam
vivendo com a família e encontram-se desempregadas no mercado de trabalho. Ava
saiu de casa, posterior ao falecimento de seu pai e reside atualmente com sua
madrinha de pista, Romy, no bairro Rua Nova, com quem divide o aluguel.
51
O corpo de homem com acessórios femininos indica uma estética corporal destoante das normas
da heterossexualidade. Como os gays conservam um padrão estilístico dentro do universo masculino,
estes são capturados para o mercado de trabalho e sofrem com menor intensidade preconceito em
relação às travestis e transexuais que se vestem numa perspectiva feminina.
77
Gráfico 01
Nível de escolaridade das Transformistas feirenses
FONTE: Questionário aplicado em campo.
ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010).
A vida social das transformistas está atrelada a empregos temporários
chamados de “bicos” onde podem extrair durante o dia uma contribuição para arcar
com as despesas da vida cotidiana e com os gastos de acessórios femininos que
enfeitam sua transcondição queer.
Quadro 04
Panorama socioeconômico das transformistas de Feira de Santana
TRANSFORMISTA
BRIGITTE
MARLENE
BAIRRO QUE
RENDA
RESIDE
MENSAL¹
Eucaliptos
R$ 600,00
Jardim
R$ 300,00
Cruzeiro
JOAN
AVA
Sobradinho
Rua nova
R$ 500,00
R$ 500,00
ESCOLARIDADE
FORMA DE
OUTRA
MORADIA
ATIVIDADE²
Ensino médio
Casa
Cabeleireiro
completo
própria
Ensino médio
Casa
incompleto
própria
Ensino médio
Casa
incompleto
própria
Ensino médio
Casa
completo
Alugada
Desempregado
Desempregado
Desempregado
FONTE: Questionário aplicado em campo.
ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010).
¹ No que se refere a renda mensal foi considerada uma média determinada pelas informantes de toda
arrecadação feita no mês. Segundo elas existem períodos que a arrecadação é satisfatória,
ultrapassando as expectaivas.
² Trata-se de outras forma de trabalhos desenvolvidas em horário oposto da prostituição;
78
2.2- Princesas da androgenia
“Todo mundo aqui é viado, falando assim no popular. Os viados gostam de
fuder com homem, mas as gays são as gays, e as travecas são as travecas,
a gente não é igual” (Diário de campo realizado em 15.06.2009 a partir do
relato de Catherine).
O fascínio exercido pelos estudos das travestis pelas Ciências Sociais no
Brasil atraiu, desde o final da década de 80 do século XX, alguns pesquisadores,
que traçaram etnografias detalhistas e precisas sobre o cotidiano (re)elaborativo que
as travestis produzem rumo ao feminino. Dentre esses pesquisadores destacam-se
os trabalhos de Silva (1993, 1996) com as travestis da Lapa, na cidade de Rio de
Janeiro. A partir dessas publicações outros nomes foram surgindo e pondo em pauta
a incessante e interminável construção do gênero travesti.
Segundo Pelúcio (2007), a diferença entre os viados para as travestis, ou
ainda as travecas, como foi citado por Catherine numa conversa informal desprovida
de gravadores e papel, é que estas desejam reiterar cotidianamente outro gênero,
que necessariamente não precisa ser nomeclaturado de terceiro52 e se distanciam
de uma visão das ordens hierárquicas. Para montar o gênero travesti elas
Ingerem hormônios femininos, aplicam silicone líquido a fim de obterem
formas arredondas que as façam “parecer mulher”, como gostam de dizer.
Fazem transformações epidérmicas: extraem pêlos, deixam o cabelo
crescer, valorizam maçãs do rosto com o uso de cosméticos; perfumam-se;
pintam unhas e, claro, vestem-se com roupas femininas. Operam, a partir
dessa inscrição na carne e na “alma”, uma transformação moral, adequando
seu sexo, marcado pelo pênis, a um gênero. E este, à atração sexual que
sentem pelo masculino. (PELÚCIO, 2007, p. 95).
52
Fernandez (2000), pesquisando as travestis de Buenos Aires, analisa essa identidade por meio de
sua organização em movimentos sociais direcionados. Em sua pesquisa etnográfica ela apresenta
três grandes eixos hipotéticos do qual desenvolve uma densa reflexão, a saber: o travestismo como
expressão para um terceiro gênero, reforçamento das identidades de gênero e o gênero em chamas.
Para analisar a hipótese do terceiro gênero a autora se apropria dos estudos de Herdt (1996 apud
Peres, 2005) que busca explicações transculturais sobre o travestismo. Apesar da contribuição
política que fica evidente na concepção de Fernandez (2000) contra o dimorfismo sexual ou a
bipolaridadee e dualismo de gênero (masculino e feminino) a terminologia “terceiro” coloca em
evidência uma ordem hierárquica subordinando a performatividade travesti à masculinidade e
feminilidade heterossexual.
79
Após os estudos de Silva (1993, 1996) outros trabalhos se destacaram em
diferentes abordagens teóricas metodológicas, dentre eles Oliveira (1994), Oliveira
(1997), Ribeiro (1997)53, Benedetti (2005), Bento (2006), Pelúcio (2005a, 2005b,
2006, 2007), Kulick (2008) e Ornat (2008)54. E em cada abordagem aparece
fortemente marcada a concepção de que a travesti é aquele sujeito que está 24
horas do dia produzido à luz do feminino.
Essa ideia está também compartilhada entre as travestis com as quais
tivemos contato na participação observante. Elas se consideram travestis porque
estão sofisticadamente alteradas, com curvas sinuosas, seios fartos, lábios
carnudos, além de glamourosos cabelos que são lançados de um lado para o outro
de forma provocativa. Nem mulheres e nem homens, travestis. Situam-se no espelho
da mulher de beleza esplendorosa e no espelho do homem de atitude. São próximas
às mulheres no que tange à sedução, à estética e à sensibilidade, porém, quando
menos se espera eclode um homem violento, ágil e perspicaz. As travestis são as
princesas da androgenia, uma distorção proposital do binarismo, que provocam e
desarticulam as lógicas normativas dos gêneros inteligíveis, sendo durante as vinte
e quatro horas do dia tudo e nada do gênero. Tudo no que se refere à síntese do
homem e da mulher e dialeticamente o nada dessas representações, sendo,
portanto, outra performatividade além do homem e da mulher, ou seja, a travesti.
Existem mais de 15 travestis que se autoclassificam dessa forma fazendo
trottoir no centro de Feira de Santana e que se revezam entre as ruas e avenidas
que compõem o espaço comercial da Cidade Princesa. A presença dessas travestis
é irregular, algumas casam e se mantêm por um tempo fiéis ao novo relacionamento
e abandonam temporariamente a pista, outras encontram outro trabalho, serviços
gerais, salões de beleza e passam boa parte do tempo dedicando-se a essa nova
função, abdicando da exposição na pista. Outras, por sua vez, migram para capitais
importantes do país ou conseguem, em Salvador, por meio de cafetinagem, uma
passagem para a Europa.
Dentre as que pude encontrar inúmeras vezes, estava Catherine, baixa,
cabelos longos de cor acaju e encaracolados tocando na cintura. Seus seios são
fartos, dispostos em sutiãs rendados para visibilizar os investimentos em silicone.
53
Geógrafo que pesquisou os territórios da prostituição na cidade de Rio de Janeiro destacando as
travestis na Avenida Atlântica com um aporte teórico na linha da complexidade de Souza (1995).
54
Geógrafo que pesquisou o fenômeno travesti em Ponta Grossa-PR apropriando-se da teoria Queer,
associada com a tendência idealista do conceito de território com base e, Haesbaert (2006).
80
Sempre com roupas de decote provocativo, Catherine se encontrava sentada na
praça, esperando seus clientes previamente agendados. Talvez, seu par de olhos
verdes atraia boa parte deles. O olhar de Catherine é profundo e objetivo, lança-o de
forma provocativa mexendo os cílios de forma precisa. Catherine possui 34 anos de
idade e apresenta um bom relacionamento com as outras colegas da praça, para ela
travesti “tem que ter sangue no olho” para poder suportar com força os problemas
que surgem na rua.
Negra com quase 2 metros de altura e magra, Grace é a travesti mais
engraçada da praça. Com cabelos curtos na altura do pescoço de cor castanho
médio encaracolado, Grace apresenta um corpo com traços predominantemente
masculinos. De acordo com ela, já são quase 15 anos de pista. Sendo uma das mais
famosas, recebe inúmeras buzinadas, gritos e churrias55 de transeuntes que passam
em carros, ônibus ou a pé. Possui nítidas dificuldades de articulação para falar, seu
descompasso oral é motivo de risos entre as outras travestis que insistem em imitála. Além disso, Grace apresenta problemas ligados a audição, interpretando boa
parte das conversas de forma hilária.
Nesse cenário encontrei Romy que há 10 anos faz programa junto a Tyresolis
na Avenida Presidente Dutra e que a pouco tempo migrou para a Avenida Marechal
Deodoro. Sua beleza é inegável, possui nítidos traços indígenas vislumbrados numa
cabeleira lisa e brilhante, acentuados por uma franja reta. Seus olhos escuros e
grandes são dotados de muito mistério, seu corpo esculpido de hormônio e silicone
é motivo de desejo para muitos homens que circulam na noite feirense. Além disso,
Romy é cheia de afilhadas e todas na praça a respeita. Romy é uma das donas da
rua56.
Se tratando de travestis que são respeitadas na praça, conhecemos em 2005
Claudia, com características de beleza afro. Sempre de cabelo molhado com
pequenas ondulações e um corpo com traços másculos, Cláudia também fez várias
afilhadas. Além disso, possui mãos grandes e fortes e seus dotes masculinos
intimidam várias travestis e clientes que circulam pela praça.
Diferente de Cláudia, a recém-chegada de São Paulo apresenta-se bastante
feminina. Com menos de um ano de pista Elizabeth é uma das mais novas
55
Na linguagem do bajubá significa vaias.
No capitulo IV explicamos com maior detalhe como uma Transe se torna dona da rua. Essa
situação, para nossa pesquisa, se configura como uma estratégia territorial.
56
81
sensações da Avenida Marechal Deodoro. Além de possuir um corpo magro, nos
padrões das top models internacionais, sua voz macia é encantadora. Elizabeth é
cuidadosa nos detalhes, sua maquiagem trata de esconder os traços do masculino
que não foram suprimidos pelo uso do hormônio. Cabocla, de olhos castanhos
claros e cabelos curtos, Elizabeth é sensual e afilhada de Marlene. Por cima de
saltos altos ela desfila debochadamente na Avenida Marechal Deodoro exibindo o
corpo escultural que possui.
Por fim, temos a provocativa e autoritária Katharine Hepburn, que começou a
se prostituir no ano de 2007. Desde 2005 realizava vício57 nas cercanias da Praça
Bernardino Bahia. Antes de realizar transformações profundas no corpo, infiltrou-se
no meio para aprender com precisão todos os rituais de passagem. Profissionalizouse. Hoje é uma das mais novas “fortes” da rua e na ausência de Lauren, que
emigrou para Itália, dita as normas para as novatas da praça que em sua grande
maioria são suas afilhadas. Seu corpo é bombado58, existe silicone para todos os
lados, lados estes desenhados com cautela. Katharine Hepburn possui uma cintura
invejável, além de uma bunda torneada. Usa lentes de contato em tons de verde só
para incrementar algo que ela especializou. Seu olhar é provocativo e determinado,
capaz de desestabilizar qualquer situação. Suas expressões faciais estão
potencialmente erotizadas observáveis em seus lábios carnudos quando se
movimentam. Katharine Hepburn é uma travesti belíssima.
A definição da travestilidade59 não é algo fácil de delimitar no campo teórico.
O termo possui uma polissemia delicada, ora utilizada como categoria guarda-chuva,
em que são inseridas as sexualidades homossexuais Trans. Ora denso das
particularidades que envolvem a categoria numa trama perfomática única. Para
Oliveira (1994), as travestis são os indivíduos que ampliam os limites da alteração
corporal. Sendo assim,
57
Na linguagem das Trans fazer vício refere-se a fazer sexo gratuitamente com um indivíduo que
apresentou características corporais estabelecidas pelas Trans. Rapazes jovens, viris, másculos e
bonitos geralmente são os mais atendidos de forma gratuita pelas Trans.
58
Um corpo bombado é um corpo submetido às intensas ingestões de silicone. Geralmente, os
silicones usados pelas travestis são de origem irregular. Em nosso caso de pesquisa o silicone de
avião adquirido em Salvador é comprado e injetado por uma Bombadeira, isto é, uma travesti que faz
o procedimento cirúrgico de mudança de corpo.
59
Corroboramos com a mesma perspectiva apresentada por Peres (2005, p.26) ao acreditar que a
terminologia travestismo reduzia as pluralidades encontradas na variação das formas e modos de se
constituir enquanto travesti.
82
Modificam quadris, as nádegas e o rosto através de hormônios e silicone
num processo de transformação contínuo e cotidiano para alcançarem o
mais próximo a forma anatômica da mulher. [...] Querem contudo conservar
a ambivalência, a estranheza que provocam nos outros, principalmente nos
homens:a visão de uma mulher bonita de corpo, com peitos, quadris
femininos, usando blusas insinuantes e batons de cores chocantes e
exibindo um pênis entre as pernas. (OLIVEIRA, 1994, p. 45).
Complementando essa definição, Benedetti (2005b, p. 18) acrescenta que as
travestis não apresentam, explicitamente, o desejo de recorrer à cirurgia de
transgenitalização para retirarem seus pênis e construírem uma vagina. Silva (1993)
destaca que para se tornar travesti é preciso ingerir doses de hormônio, além de
fazer aplicações de silicone para minimizar os traços masculinos do corpo. Esses
aspectos corroboram para a compreensão de que ser travesti é um processo
inacabado.
Concordando com essa perspectiva, as princesas da androgenia de Feira de
Santana acreditam que
A travesti ela fica 24 horas por dia vestida de mulher, sem dizer nas
transformações que é feita, cabelo, peito, corpo, muda tudo, muitas botam
silicone, certo? Tem muitas que exageram, algumas que botam pouco só
pra definir mesmo o corpo, e a maioria, o principal é o peito e o cabelo, elas
vão logo e bota logo o peito. (Entrevista realizada com Joan em
15.01.2010).
Ser travestis? Olha, a partir do momento que você põe uma roupa feminina,
pra sociedade você é travesti. Agora, pra quem trabalha na pista! Eu acho
que pra elas, o que pode ser uma travesti, é aquela que já é bombada, que
já tem um belo corpo, o seu belo cabelo, belo rosto de boneca, de
60
porcelana, aquelas são as verdadeiras travestis e que tenha axé né? Por
que, uma travesti, ela pode ser a mais bela, mais ela tem que ter axé, sem
axé ela não é nada. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010).
Como podemos perceber, a travesti está diretamente conectada ao espelho
da mulher, sem querer ser uma mulher. A estética travesti é um padrão cruel que
determina o poder de atração e respeito em torno do modelado e do figurino que se
usa.
Por isso é comum, entre as princesas do sertão, afirmar que
uma travesti é 24 horas montada de mulher, mas, venhamos e
convenhamos que uma travesti com cara de homem não combina.
(Entrevista realizada com Ava em 18.01.2010).
60
Para Elizabeth ter axé é possuir uma capacidade inata de parar o trânsito, em outras palavras,
significa possuir charme e elegância que atraia inúmeros clientes.
83
Contudo, entre as definições das informantes, encontramos seu próprio
inferno. Para as transexuais dessa pesquisa o termo travesti não contempla a
performatividade de gênero que se realiza de forma ousada num corpo masculino.
Travesti seria uma condição apropriável para qualquer indivíduo que põe por sobre
seu corpo um vestuário que não é habitualmente utilizado.
Travesti, travesti tanto pode ser um homem como pode ser uma mulher, o
homem no caso que se traveste de mulher e a mulher no caso que se
traveste de homem. Então, qualquer pessoa pode ser travesti, independente
dela ser homossexual, dela ser bissexual, dela ser heterossexual, qualquer
pessoa pode ser travesti, se uma pessoa se veste de palhaço ela se
travestindo de palhaço, ela é um travesti, ta me entendendo? Se uma
pessoa se fantasia de cachorro ela está travestida de cachorro, ela é um
travesti assim como um homem se veste de mulher no [bloco] lá vem elas,
ele está travestindo de mulher, ele é o quê? Um travesti! Então, pra mim a
definição de travesti é essa, é uma pessoa que se veste por momentos ou
em privados dentro de um quarto, dentro de um quarto de hotel ou pra o
público em cima de um palco ou não sei, mais se veste determinados
momentos, faz aquela figuração e depois daquela figuração desaparece vai
pra aquela mala, vai pra dentro de gaveta, pra no dia seguinte, daqui a um
mês, daqui a uma semana, daqui a não sei quando aquela dali abre a
gaveta de novo e pega aquela pessoa que ficou dentro daquela gaveta e
bota aquela pessoa pra viver novamente. Então eu tenho o conceito de
travesti assim. (Entrevista realizada com Marilyn em 09.12.2009).
Ou ainda seria um termo denso de interpretação que contraria a lógica da
produção do feminino por conta da acentuada androgenia com forte presença de
atos masculinos:
Eu acho que uma travesti, eu nem sei a resposta pra isso. Sempre tive
dialogando com uma amiga minha sobre travesti, porque travesti é você ter
o corpo de mulher, a beleza de mulher, mas não tem mentalidade de
mulher. Do que adianta você ter o corpo feminino e agir ainda com traços
masculinos, brutalidade tanto na voz quanto nos atos físicos, então eu acho
que é isso entendeu? (Entrevista realizada com Bette em 15.01.2010).
Sobre esse aspecto, Fernandez (2000, p.48) nos indica que o “travestismo
interpreta, modela e experimenta seu corpo como um texto que pode ser lido desde
o gênero (feminino) e desde o sexo (masculino)”. Assim, compreendemos a travesti
como uma performatividade de gênero que apresenta em sua elaboração um jogo
provocativo de símbolos que ora se complementam, visibilizando e potencializa a
feminilidade, ora se contradizem eclodindo a masculinidade que fora ocultada pela
ingestão de hormônios e silicone.
84
Ao contrário das transformistas, as travestis possuem um deslocamento
intraurbano muito restrito. Como se dedicam à vida de prostituição noturna passam
boa parte do dia descansando da aventura vivida na noite anterior. Geralmente
saem para fazer compras no comércio no meio da tarde e aproveitam para circular
no Centro de Abastecimento, onde bebem e se sentem paqueradas pelos feirantes.
Nos finais de semana, adoram curtir a tarde de domingo no bairro Jardim Cruzeiro,
onde se sentem bem acolhidas nos bares e lanchonetes da área. Nesse espaço, de
muito pagode e cerveja, exibem-se através de danças sensuais acompanhadas com
expressões faciais provocativas, insinuando-se para os homens que estão presentes
no local.
As travestis entrevistadas nessa pesquisa preferem sair durante a noite
devido ao menor fluxo de pessoas que circulam no centro da cidade. O dia traz
consigo um desconforto social, pois o espaço encontra-se potencialmente vigiado e
esquadrinhado pelos agentes normatizadores (FOUCAULT, 1979).
Sobre a condição socioeconômica das Travestis
É impossível falar de renda entre as travestis sem associar os lucros à beleza.
A travesti mais bela, geralmente, possui mais clientes e por consequência mais
lucros. Ser bela na pista é um requisito importante para se destacar perante as
outras. Nesse sentido, a variação de arrecadação está diretamente ligada a beleza,
como também a sensualidade que compõem aquilo de Elizabeth chamou de axé.
Conforme pode ser observado no quadro 05, Catherine e Elizabeth moram
distantes do Centro da cidade, em bairros no sentido norte da cidade, fora do anel
de contorno. Tanto o George Américo quanto o Campo Limpo são bairros populares
que concentram um contigente de classe baixa que sobrevivem basicamente com
menos de um salário mínimo.
85
Quadro 05
Panorama socioeconômico das travestis de Feira de Santana
TRAVESTIS
CATHERINE
BAIRRO QUE
RENDA
RESIDE
MENSAL¹
Campo
R$ 500,00
Limpo
GRACE
Jardim
R$ 450,00
Cruzeiro
ESCOLARIDADE
FORMA DE
OUTRA
MORADIA
ATIVIDADE²
Ensino médio
Casa
Desempregada
completo
própria
Ensino
Casa
Fundamental
Alugada
Diarista
Completo
ROMY
Rua Nova
R$ 480,00
Ensino
Casa
Fundamental
Alugada
Desempregada
incompleto
CLAUDIA
Jardim
R$ 800,00
Cruzeiro
ELIZABETH
George
R$ 800,00
Américo
KATHARINE
Jardim
Cruzeiro
R$ 1.300,00
Ensino médio
Casa
incompleto
Alugada
Ensino médio
Casa
completo
própria
Ensino médio
Casa
incompleto
Alugada
Desempregada
Diarista
Cabeleireira
FONTE: Questionário aplicado em campo.
ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010).
¹ No que se refere a renda mensal foi considerada uma média determinada pelas informantes de toda
arrecadação feita no mês. Segundo elas existem períodos que a arrecadação é satisfatória,
ultrapassando as expectativas.
² Trata-se de outras forma de trabalhos desenvolvidas em horário oposto da prostituição;
Por possuírem casa própria, e para fugirem dos alugueis, ambas preferem
residir em tais bairros e se deslocarem de ônibus coletivo e retornar na alta
madrugada com alguns motoboys ou taxis. Esse argumento explica a localização
das outras travestis em bairros mais centralizados, obedecendo a mesma lógica
verificada entre as transformistas. Nenhuma delas está residindo em áreas
privilegiadas da cidade. Pelo contrário, se encontram em cortiços, com um quarto,
sala e cozinha tendo o banheiro coletivo para as outras famílias vizinhas.
Geralmente dividem a mensalidade do aluguel com outra Trans, ou ainda
moram com seus “maridos”. O nível de escolaridade é visivelmente inferior em
comparação com as transformistas. Tal situação é justificada pela repressão e
assédio que ocorre na escola, culminando na evasão escolar. Assim, conforme o
gráfico 02, 17% possuem o ensino fundamental incompleto e com mesmo índice de
86
17% possuem o ensino fundamental completo. 33% possuem escolaridade básica
completa e os outros 33% ainda estão em processo de finalização.
Gráfico 02
Nível de escolaridade das Travestis feirenses
FONTE: Questionário aplicado em campo.
ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010).
2.3- Princesas do erro da natureza
Eu acho que [uma transexual] é a mesma coisa que um travesti. (Entrevista
realizada com Ava em 18.01.2010).
De certo modo a terminologia transexual é muito recente e conflitua, no
campo conceitual, a distinção em relação às travestis como explicita Peres (2005). É
importante aqui destacar que a invenção do transexualismo remonta um processo
evolutivo da performatividade. No imaginário discursivo das entrevistadas, o ápice
da homossexualidade estaria reservado às transexuais, que conseguem, por meio
de inúmeras transformações, minimizar de forma eficiente o masculino ou o
feminino. Assim, gays, transformistas e travestis seriam performances de insucesso
87
para a homossexualidade bordada pelo transexualismo, como se fosse um processo
de generificação que encontrou uma série de empecilhos para potencialização do
feminino/masculino em corpos que nasceram errados, ou seja, no nosso caso de
pesquisa, almas femininas em corpos masculinos.
Para Ava, o limiar que delimita fronteiras conceituais entre o travestismo e o
transexualismo inexiste. Essa concepção não é isolada, está frequentemente
problematizada, como discute Peres (2005), quando se trata em debater e
operacionalizar políticas públicas em detrimento da tradição que a categoria travesti
possui no Brasil.
Benedetti (2005) acredita que a categoria travesti sobrepõe a categoria
transexual, argumentando que existe uma insipiente internalização dessa definição
em seu universo de pesquisa. Tal categoria, na visão do autor, funciona muito mais
por autodefinição do que por atribuição, em virtude da lógica médico-psicológica que
está diluída na conceituação da categoria transexual. Para tanto reconstrói
teoricamente a concepção de transexualismo a partir de fatores sociais e não
patológicos, distanciando-a da perspectiva médico-psicológica.
Porém, outros autores esforçaram-se para distinguir uma categoria da outra
por meio das narrativas coletadas em campo. Essa tarefa pôde elencar algumas
características que estão presentes nos indivíduos transex61 e que inexistem nas
travestis. Oliveira (1994) dedica parte de seu livro para explicar a suposta identidade
transex entre as trans de Salvador-BA. Para Oliveira (1994) as transexuais sentemse mulheres e diferente das transformistas e travestis não se espelham, mas são
mulheres em corpos de homens. Para alcançar essa delimitação delicada da
categoria de transexual, Oliveira mergulha nos escritos da psicanálise, da psiquiatria
e das explicações médicas para justificar o descompasso entre corpo e papel de
gênero.
Quando realizei a entrevista semiestruturada com Marilyn no bairro Kalilândia
ela me sugeriu que sentássemos numa área arejada onde a conversa poderia fluir
sem maiores intervenções. Na aplicação do questionário, inquirindo sobre o nome
masculino, Marilyn disse-me: meu nome sempre foi Marilyn, eu nasci Marilyn, tenho
nome de mulher, eu sou uma mulher. De certo modo a pergunta é delicada e muitas
61
Na participação observante e na realização das entrevistas semiestruturadas ouvimos inúmeras
vezes a palavra “transex”, que se refere a uma redução da palavra “transexuais”, reproduzindo seus
mesmos sentidos conceituais.
88
Trans mentiram sobre seus nomes de certidão, ou seja, seus nomes masculinos.
Porém nenhuma delas foi tão complexa quanto Marilyn que se declarou mulher,
embaralhando os sentidos de nossa pesquisa.
A ação descrita na história explica, em partes, o argumento que levou Oliveira
(1994) a diferenciar essa categoria da travesti. Nesse sentido, a travesti tem todo um
trato estético no espelho da mulher, elas montam-se de mulher, estão travestidas de
mulher, mas não são mulheres, são damas de paus62. Porém, as transexuais não se
produzem nesse mesmo espelho, possuem espelhos próprios, jamais se travestem
de mulher; elas, por sua vez, vestem-se de mulheres e são, em subjetividades,
mulheres.
A principal característica que define as transexuais elencada por Benedetti
(2005) é a rejeição ao pênis, reivindicando a realização da cirurgia de mudança de
sexo como condição sine qua non para sua produção.
O transexualismo é a forma mais radical da androgenia. Significa uma
recusa total do papel sexual a um ponto limite no qual a auto mutilação da
genitália torna-se um desejo recorrente.[...] Apresenta um desinteresse
pelos órgãos genitais que lhes dá impressão definitiva de discordante,
fazendo com que seu sexo anatômico seja desinvestido de erotismo.
(OLIVEIRA, 1994, p.39).
As transexuais valem-se do travestismo para tentar ajustar as distorções de
sua imagem e fazem da ingestão de hormônios e aplicação de silicone como a
estratégia de ajuste de um corpo que nasceu com alma trocada. Para as transexuais
não é permitido amar e se relacionar com um homossexual, pois mulheres amam e
se relacionam apenas com homem. Elas, apesar de toda capacidade profunda de
subversão, acabam reproduzindo a matriz heterossexual, sobretudo no que se refere
aos relacionamentos sexuais e afetivos. Sofrem muito ao se olhar no espelho e ver a
injustiça genética que a vida lhes pregou: elas odeiam seus pênis.
De fato existe uma naturalização e essencialização muito forte presente na
explicação da categoria transexual, que atribui à natureza e à essência a
responsabilidade de sua existência, retirando o contexto sociocultural como
possibilidade de explicar, pela história de vida, a formação dessa identidade.
Em nossa área de estudo, conhecemos quatro transexuais que assim se
autodeclararam. Porém, elas apresentam diferenças comportamentais de gênero
62
Esse termo foi retirado do título do livro de Oliveira (1994).
89
bastante perceptível. Todas se sentem muito femininas, e de fato elas são. Possuem
um trato de delicadeza mais notável para com o corpo e seu comportamento que as
travestis aqui analisadas. Sophia, Greta e Bette
exalam sensualidade na pista
fazendo trottoir, seduzindo ao máximo os clientes em potencial pela beleza rica em
feminilidade, porém as três declararam utilizar-se do pênis, sendo ativas no
atendimento do cliente. Mas Marilyn declara-se totalmente passiva, além de ser
europeia63. Ela possui um capital cultural notório e preza por defender sua
feminilidade, considerando-se uma mulher, ou como ela mesma disse: “a única
transex da pista”.
Sophia é loira e possui uma pele morena clara com cabelos longos. Sua
disciplina é reconhecida pelas outras Trans da pista. Sophia possui cerca de 1,70
metros e um corpo de curvas elaboradas graças à ingestão de hormônios. Nunca
desejou pôr silicone de avião, pois reconhece os riscos que esse recurso apresenta.
Porém, deseja um dia ter dinheiro o suficiente para colocar próteses em uma clínica
confiável. Sua casa é pequena e muito bem organizada. Disse que faz questão de
organizar seu lar, ninho de amor que divide com seu esposo há mais de quatro
anos.
Greta é negra e possui um belo par de pernas. Suas coxas sempre estão às
vistas para seduzir os transeuntes da rua. Seus cabelos trançados realçam sua
beleza afro. Seu olhar inocente, ora provocativo, é um convite público ao prazer. Sua
voz é suave e sensual, por isso faz questão de sempre se expressar em volume
moderado e em ritmo lento. Ela é conterrânea de Bette, oriundas de Amélia
Rodrigues, município situado nas margens da BR-324 entre Feira de Santana e
Salvador. Bette também é negra, mas seu corpo ainda não está turbinado como o de
Greta. Ambas são bonitas, porém o corpo mais escultural é da Greta. Suas curvas
são inegáveis, ela possui cintura e quadril definidos, seus seios são redondos e
empinados, nem tão pequenos e nem tão grandes, o tamanho é favorável perante o
conjunto. Greta é toda quebrada na plástica64.
63
Europeia é uma sub-categoria que potencializa as Trans em suas redes de sociabilidade, como
analisa Pelúcio (2007). Europeias são aquelas que já moraram na Europa, sonho de consumo da
maioria das Trans que se prostituem. Geralmente as europeias são finas, elegantes e esbanjam um
vestuário singular. Em virtude desse alto capital cultural elas são respeitadas entre as Trans que
sonham, um dia, alcançar o status de ser uma Europeia.
64
Esse termo foi utilizado por Pelúcio (2005) para retratar a beleza corporal das travestis em seu
estudo pelas alterações promovidas pela aplicação de silicone.
90
Bette é novata no ramo, mas já se considera transexual e possui uma enorme
facilidade para se comunicar. Ela estudou e trabalhou como professor no período
que ainda se vestia de ocó65. Com 1,80 metros, Bette é bonita e reitera a tradição
que existe na pista: todas as meninas de Amélia são lindas e sensuais.
Mas nenhuma delas supera a delicadeza de Marilyn que viveu sete anos na
Itália, no auge da prostituição de travestis que corresponde ao final da década de 90
do século XX. Além de traços finos e muita elegância, Marilyn é alta, possui cerca de
2 metros de altura. Seus olhos são verde mel e sua pele é branca. Ela se diz mulher
em corpo de homem e se afastou da pista para cuidar da mãe. De acordo com
Marilyn, em entrevista, ela não possui pênis e nunca fez a cirurgia de mudança de
sexo. Sua condição psicológica feminina incumbiu-se de atrofiar aquilo que era
discordante nela. Sua produção hormonal de progesterona é alta e confessa ter sido
submetida, na adolescência, a ingerir doses descontroladas de testosterona e
frequentar clínicas psicológicas para tratamento de reversão da homossexualidade.
Marilyn é uma princesa até no sobrenome, que indica a influência de sua família no
cenário político da cidade. Foi afilhada de um ex-prefeito de Feira de Santana,
facilitando a contratação para cargo em órgãos públicos. Na última eleição municipal
Marilyn candidatou-se, apesar de não conseguir ser eleita, para a câmara de
vereadores, honrando a tradição política de sua família tradicional.
Percebemos que as entrevistadas compartilham das mesmas definições
apresentadas por Oliveira (1994) sobre a transexualidade. Essa identidade sexual
aparenta eclodir entre a infância e a adolescência como algo guardado e que vai
aflorando de forma espontânea próximo aos doze anos. Nesse período o indivíduo
vai percebendo as primeiras diferenças evidentes entre os outros heterossexuais e
enclausura-se em casa, evitando assédios e situações desconfortáveis. A partir daí
a vivência espacial é restringida, pouco se sai, pouco se transita, vivem-se a casa e
os afazeres domésticos.
O campo da transexualidade está circunscrito no feminino, que é
profundamente desejado e alcançável por meio da socialização e reelaboração de
performances de mulheres reais. A observação do comportamento, vestuário, voz,
gestos de mulheres comuns, mas elegantes, é o grande laboratório performático das
transexs. É por meio dessa pesquisa que elas se produzem.
65
Palavra oriunda do ioruba ou do bajubá utilizada como dialeto gay que se refere a homem.
91
Ser transexual pra mim é ser uma pessoa feminina, é voltar-se pro mundo
feminino, é fazer coisa que uma mulher faria, ou até mesmo melhor ainda
que uma mulher, porque nós transexual queremos ser bem melhores que
uma mulher, queremos ultrapassá-la, queremos olhares, e eu acho que é
ser isso uma transexual. Eu particularmente, eu sou uma mulher tanto fora
quanto por dentro. (Entrevista realizada com Bette em 15.01.2010).
[Para ser] transexual a pessoa tem que ser bem se decidir como mulher
mesmo, né se sentir como mulher e se vestir como mulher, [tem que] querer
ser mulher mesmo, não é se vestir de mulher e falar que é mulher e num se
comportar como mulher, tem que ser, a pessoa tem que ser, a transexual
tem que se comportar, em primeiro lugar tem que ser comportado, a onde
for, onde chegar tem que se comportar. (Entrevista realizada com Sophia
em 10.12.2009).
A transex é aquela que você acorda pensado que nem uma mulher, dorme
pensando que nem uma mulher, faz tudo que nem uma mulher, vive que
nem mulher 24 por 48. Então, essa é a verdadeira transex. [...] Ela se
monta, se veste de mulher de dia a noite e ela dorme pensando que nem
mulher, acorda pensando que nem mulher, a cabeça dela é toda feminina e
não misturada feminina com masculina. (Entrevista realizada com Elizabeth
em 19.01.2010).
As confirmações do feminino profundamente alcançadas não estão apenas
em pensarem como mulher, elas devem se especializar para conseguir aquilo que a
natureza lhes tirou criando-se enquanto uma mulher, e para isso ocorrer recorrem a
uma série de intervenções, dentre elas as dores da beleza: a ingestão de hormônios
e a aplicação de silicones, culminando, em alguns casos na retirada da genitália
masculina.
Existe o transexual, é aquele que se hormoniza e se opera. [...] porque o
travesti não é operado e o transexual ele é operado. (Entrevista realizada
com Brigitte em 14.01.2010).
Transexual é aquela coisa, você sabe que existe a transexual operada e a
transexual não operada, a transexual é aquela que transcende tudo isso
que passa por cima do gay, que passa por cima do travesti, que passa por
cima do transgênero, que passa por cima de tudo, porque a transexual tem
dentro de si a consciência que ela não é homem, ela é mulher, ela até pode
ter a consciência que ela não é homem nem é mulher, que ela é alguma
coisa acima disso tudo, vou te falar uma coisa, quando uma pessoa me
pergunta no MSN alguma coisa assim o que é que eu sou, eu digo que eu
sou a evolução da espécie. A evolução da espécie, não existiu uma vez os
dinossauros? Foram extintos para surgir uma nova raça, então vamos dizer
assim, os homens e as mulheres são os dinossauros e eu sou a evolução,
sou aquela coisa assim que eu consigo ser os dois ao mesmo tempo sabe?
Então transexualismo vai mais ou menos isso aí, ele passa acima das
barreiras do homem, ele passa acima das barreiras das mulheres e se torna
uma coisa acima disso tudo e passa acima disso tudo, eu me enquadro
como um transexual por isso, eu nunca me enxerguei como um homem,
nunca me enxerguei como um homem, claro eu não sou louca de dizer que
eu sou mulher, eu nunca me enxerguei como mulher, eu me enxergo
diferente dos homens e diferente das mulheres, então eu me enquadro
92
como um transexual, eu sou transexual. (Entrevista realizada com Marilyn
em 09.12.2009).
A transexual, ela já é mais avantajada, ela é mais feminina que o travesti, a
transexual, ela não consegue ser ativa, ela só é passiva. Transexual ela é
mais mulher, sente mais mulher do que o travesti e muitas tiram o órgão
masculino e bota a vagina, que é o sexo feminino. (Entrevista realizada com
Joan em 15.01.2010).
As transexuais, dentro desse grupo de estudo, possuem um deslocamento
intraurbano mais restrito que as travestis. Elas preferem ficar em casa, cuidando dos
afazeres domésticos do que circulando durante o dia nas ruas comerciais. Quando
necessitam ir à rua planejam-se para não demorar muito. A maioria delas são
casadas e possuem seu coração flechado por um ocó ocâni/odara66, e são a eles
que dedicam, enquanto dure, seu eterno amor. Suas características femininas
referem-se a mulheres dóceis, manipuladas e submissas à virilidade masculina.
Desejam sentir-se protegidas pelo seu príncipe e viver dependentemente às custas
de sua masculinidade. No relacionamento sexual com seus maridos nunca utilizam
seus pênis, quando ainda os têm, e seu único órgão sexual é a cuceta67 que é
perpassada pelo pênis do amado e onde alcançam o ápice de seus orgasmos. A
excitação das transexuais está localizada no ânus, como nos detalhou Brigitte
Bardot.
Sobre a condição socioeconômica das Transexuais
As
transexuais
apresentam
particularidades
no
que
tange
sua
performatividade, assim como Ava apresenta enquanto transformista. Sophia, Greta
e Betty fazem uso do pênis no programa. Segundo elas os clientes desejam
experimentar algo diferente no mundo do sexo, ou como aqui que elas costumam
chamar, eles gostam do melhor dos dois mundos, ou seja, uma mulher de pau. Com
exceção Marilyn preserva sua condição de transexual e suas pessoais restrições ao
66
Os termos seguidos fazem parte do iorubá. Ocâni significa pênis. Odara é um pênis grande,
contrário do matim-matim que é um pênis pequeno.
67
Cuceta é uma palavra oriunda de duas palavras de uso corrente no meio homossexual. Do
cruzamento das palavras cú e boceta, surgiu a cuceta que se refere à vagina gay, onde pode ser
penetrado com as mesmas funções que a vagina feminina.
93
pênis. Ela é a mulher e jamais utilizará o que ainda lhe resta de membro para
penetrar seus clientes.
Conforme pode ser observado no gráfico 03 todas as transexuais, por
autoclassificação, possuem escolaridade básica. Concluíram o Ensino Médio e
apresentam anseios de cursarem o nível superior. Sophia e Marilyn, que
corresponde a 50% delas moram em propriedade particular, enquanto Greta e Betty
que vieram de Amélia Rodrigues moram de aluguel, cada uma com sua madrinha de
pista.
Gráfico 03
Nível de escolaridade das transexuais feirenses
FONTE: Questionário aplicado em campo.
ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010).
De acordo com o quadro 06, todas residem próximo ao Centro da cidade,
porém é Marilyn que está localizada em um dos melhores fragmentos do solo
urbano de Feira de Santana. A Kalilândia é um bairro pequeno e burguês, com
concentração de casa de alto padrão, indicando a presença de uma classe média
alta que ainda reside no centro da cidade. As ruas do bairro são todas pavimentadas
e possuem pouco movimento, além de uma fiscalização com seguranças
particulares.
94
Quadro 06
Panorama socioeconômico das Transexuais de Feira de Santana
TRANSEXUAIS
SOPHIA
BAIRRO QUE
RENDA
RESIDE¹
MENSAL
Queimadinha
GRETA
Jardim
R$ 1.750,00
R$ 1.000,00
Cruzeiro
BETTY
Rua Nova
MARILYN
Kalilândia
R$ 1.000,00
R$ 3.500,00
ESCOLARIDADE
FORMA DE
OUTRA
MORADIA
ATIVIDADE²
Ensino médio
Casa
Desempregada
completo
própria
Ensino médio
Casa
completo
Alugada
Ensino médio
Casa
completo
Alugada
Ensino médio
Casa
Funcionária
completo
própria
pública
Desempregada
Desempregada
FONTE: Questionário aplicado em campo.
ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira (2010).
¹ No que se refere a renda mensal foi considerada uma média determinada pelas informantes de toda
arrecadação feita no mês. Segundo elas existem períodos que a arrecadação é satisfatória,
ultrapassando as expectaivas.
² Trata-se de outras forma de trabalhos desenvolvidas em horário oposto da prostituição;
Sophia, Greta e Betty residem em bairros populares com poucos
investimentos em infra estrutura e segurança. Além disso, as três princesas
encontram-se desempregadas, realizando apenas os afazeres domésticos. A renda
mensal das transexuais é considerável em relação aos outros dois grupos de Trans
já estudado.
A casa de Sophia é simples e localizada num bairro popular. Sua residência
faz parte de um dos cortiços da Queimadinha, seus vizinhos são seus irmãos e sua
casa é oriunda de herança. Na entrada de sua casa situam-se pequenos templos
onde cotidianamente realiza as oferendas aos seus orixás. As espadas de São
Jorge e outras plantas simbólicas do candomblé exercem a função de espantar os
males e energias ruins que circulam pelo bairro e pelas pessoas que nele transitam.
As crenças no candomblé e no espiritismo unem transformistas, travestis e
transexuais. O poder místico dos orixás perpassam suas perspectivas espirituais e,
além disso, se configuram em espaços religioso de muita tolerância de gênero. A
maioria delas sempre referem-se à existência, em suas vidas, da influência de
escravos, uma entidade hierarquicamente situada no plano místico do candomblé,
sobretudo a Maria Padilha e a Pomba Gira e seus derivados. Para elas essas
entidades é que giram na suas cabeças e as matem Transgenerificadas.
95
2.3- A categoria Trans: universo, território e sujeito
Em virtude da ampla diversidade de performatividades existentes nesta
dissertação, analisada nas laudas anteriores, torna-se necessário definir uma
categoria conceitual que dê conta das pluralidades estudadas entre os seres abjetos
que se prostituem em Feira de Santana.
Benedetti (2005) e Pelúcio (2005, 2006 e 2007) preferiram utilizar a categoria
travesti por razões históricas e por questões de ordem política. Para ambos, com
base em Silva (1993 e 1996), o termo travesti encontra-se melhor disseminado e
compreendido pela sociedade que o termo transexual. Em virtude disso,
transformam a categoria em seus estudos como um termo aglutinador de sentidos
que ora se complementam e ora se contradizem.
De certo modo, essa generalização terminológica fez-se necessária nestes
estudos por conta das questões delineadas para pesquisa, que buscava
compreender, de forma bem genérica, as transformações de gênero em cada grupo
estudado, em espaços diferentes. Definir uma categoria não é algo simples e tratase de uma decisão que deve levar em conta a operacionalização do recorte de
pesquisa.
Sobre tais recortes e criticando generalizações apressadas, Peres (2005)
argumenta que o termo travesti foi muitas vezes inserido no grande grupo das
transgênero, uma terminologia inglesa – transgender –, que foi aportuguesada sem
ressalvas necessárias, visando contemplar todas as performances trans. Para este
pesquisador, a categoria referia-se a todos os indivíduos que não se enquadram em
um dos lados dos gêneros inteligíveis com base nas bi-polaridades, masculina ou
feminina, englobando, além das travestis, outros grupos como os/as transexuais,
drag queens, transformistas.
Porém, este mesmo autor observa, no âmbito das reivindicações dos
movimentos
sociais
homossexuais,
que
as
travestis
possuem
demandas
sociopolíticas específicas, devendo ser concebidas fora do grupo das transgênero.
Nesse mesmo sentido, Benedetti (2004) afirma que as travestis já dispõem, na
sociedade, de um papel que lhes é legítimo e que, em si, indica processos maiores
de mudança social, como foi muito bem apontado por Silva (1996).
96
Quando se trata da questão territorial as diferenciações das categorias
tornam-se relevantes. A apropriação e uso territorial diferenciam-se a partir de vários
fatores, dentre eles, ou ainda com eles, temos a relevância da questão identitária. As
identidades de gênero produzem, apropriam-se e utilizam o espaço de acordo com
sua performatividade. Associada às questões suscitadas pelo conceito de gênero
estão intimamente ligadas as questões de classes sociais, raça, escolaridade e
todos os outros fatores sociais aos quais estamos submetidos e que condicionam os
deslocamentos espaciais.
Em virtude disso mantivemos até aqui as especificidades do grupo de estudo
por perceber que as espacialidades produzidas fora do território da prostituição
estão associadas por esse emaranhado de fatores socioespaciais. No entanto, a
necessidade de homogeneizar as categorias é emergente no seu sentido
operacional, permitindo análises objetivas com relação às estratégias territoriais,
mas que apresentam limitações na escala do lugar e na dinâmica dos
deslocamentos espaciais intraurbanos realizados por transformistas, travestis e
transexuais.
Estaremos fazendo, a partir desse ponto, a complexa e contraditória relação
entre o plural e o singular. Esse percurso realizar-se-á em função das mudanças das
escalas e fluxos de análise, tentando dar conta da dinamicidade espacial realizada
pelo grupo estudado.
Benedetti (2005) apresenta uma saída conceitual que não reduz as
especificidades de nenhuma categoria esboçada neste capítulo, e ao mesmo tempo
essa terminologia assegura a complexidade do fenômeno. O universo Trans é um
conceito pouco explorado que foi utilizado pelo autor no início de suas provocações
no livro Toda feita. Para ele, no universo Trans fica evidente a “as múltiplas
diferenças e particularidades vivenciadas pelas pessoas nesse universo social”
(BENEDETTI, 2005, p. 17). E continua, “o universo trans é um domínio social no que
tange à questão das (auto) identificações” (p.17). Ainda segundo ele,
Prefiro utilizar o termo universo trans em função de sua propriedade de
ampliar o leque de definições possíveis no que se refere às possibilidades
de ‘transformações de gênero’. Essa denominação pretende abranger todas
as ‘personificações’ de gênero polivalente, modificado ou transformado, não
somente aquela das travestis. (BENEDETTI, 2005, p. 17).
97
Benedetti (2005) aplica o termo universo Trans para se referir a uma rede de
relações sociais entre as sexualidades divergentes da norma heterossexual.
Entretanto, compreendemos tal conceito de forma mais profunda e percebemos seu
viés espacial. O universo Trans possui uma propriedade geográfica, referindo-se ao
espaço onde as relações de gênero podem e são desenvolvidas ao mesmo tempo
em que são reiteradas. Sem o espaço essa rede se desarticula e desestrutura a
reprodução eficaz das performatividades dos gêneros divergentes.
Assim, estamos referindo-nos a um território Trans, subvertendo a ideia de
universo disseminada pela Física e trazendo para o debate o conceito de espaço,
reelaborado para os estudos do gênero. O território Trans se caracteriza por ser, por
excelência, lócus onde as performatividades são socialmente produzidas e
disseminadas. Esse espaço está transnormatizado, isto é, está além das normas da
matriz heterossexual, além do dimorfismo e da bipolaridade homem/mulher, sendo
um
espaço
onde
se
reproduzem
lógicas
de
gênero
que
subvertem
a
heterossexualidade, mas não as supera, mantendo as desigualdades e os
paradoxos como elementos da dialética de sua existência ou seja da sua
transcondição.
Por isso utilizaremos a categoria Trans, para se referir às transformistas,
Travestis e Transexuais. Segundo Nicola (1994) os prefixos gregos Tra e Trans
referem-se a uma posição de algo de forma relacional no sentido de superar, de
transpassar determinada condição que já existe e se encontra normatizado, por isso
sua tradução está atrelada às noções de “através de; posição além de e mudança” .
Neste estudo Trans se refere a todos os sujeitos que estão além da matriz da
heterossexualidade, isto é, que se encontram diferente das imposições do
dimorfismo e se performatizam nas “zonas inabitáveis e inóspitas do gênero”, como
delineia Butler (2003), tal como as transformistas, travestis e transexuais.
Mesmo entendendo que as normas regulatórias atuam no sentido de acionar
dispositivos eficazes para generificar os corpos a favor da heterossexualidade, os
corpos não se conformam diretamente às regras que os regulam, nunca aderindo
completamente às normas que impõem as suas materializações (BUTLER, 2003,
p.154). A invenção dos corpos dos sujeitos Trans pressupõe, portanto, uma
reinvenção
contínua,
procurando
adequar
corpo,
sexualidade
e
gênero,
reinventando-os, como analisou Bento (2006).
98
A ocorrência das Trans indica que as normas regulatórias não foram eficazes:
o próprio contexto socioespacial de gênero possibilitou a insurgência dos dolorosos
conflitos identitários, e os corpos se embatem com as mesmas normas que os
engendraram, nesse caso, subvertendo-as. (PRECIADO, 2002).
O paradoxo presente no espaço possibilita a reinvenção do gênero, pois nos
caso das Trans aqui estudadas
É nos diferentes territórios de batalha (forma êmica utilizada para denominar
a atividade da prostituição) que muitas travestis tiveram seu primeiro
contato com outras monas (desinência êmica empregada para se referir às
próprias travestis), e que viram concretizados os seus desejos de
transformação. Muitas vezes foram trazidas por outra travesti que já
freqüentava o lugar e conhecia as demais, o que também lhe garantia uma
espécie de “proteção” naquele ambiente. (BENEDETTI, 2004, p. 02).
2.4 - Deslocamentos intraurbanos Trans
Não é comum estabelecer relações de deslocamentos urbanos ligados à
temática do gênero. Há muito se considerou que a relação entre espaço urbano e
classes sociais é que condicionava a espacialização de determinados grupos
sociais. Porém, as relações que são engendradas no espaço são múltiplas e
paradoxais.
Inúmeros fatores sociais nos indicam que o espaço não possui a mesma
acessibilidade compartilhada e realizada pelos grupos sociais, sendo vivenciado de
múltiplas formas, como enfatiza Ornat e Silva (2007). Esses mesmos autores
realizaram uma análise urbana em Ponta Grossa-PR sobre os diferentes
deslocamentos entre homens e mulheres, e desde já, compreendiam que tais
diferenças fazem parte da produção do espaço da cidade, embora seja um tema
pouco explorado.
Os estudos urbanos de Corrêa (2001) abrem um leque de possibilidades para
compreender os deslocamentos pelo viés de gênero, pois ele considera o espaço
urbano como espelho e condicionante social, além de apresentá-lo de forma
fragmentado e articulado, sendo um campo simbólico e de lutas. Com diferentes
99
objetivos para acessar os fragmentos do urbano a sociedade promove uma dinâmica
espacial que não se restringe aos imperativos das classes sociais. São acionados
outros reflexos da vida social que historicamente estão embutidos nos papéis sociais
por nós construídos.
Para Ornat e Silva (2007) são os papéis socialmente pré-definidos que
diferenciam o comportamento dos corpos nos deslocamentos espaciais. A dicotomia
normatizada entre corpos masculinos e femininos incumbiu-se de condicionar as
espacialidades dos corpos a favor do gênero, das raças, das classes, da religião,
dentre os múltiplos fatores da vida em sociedade.
Porém, nem a assimilação das normas do gênero são tão eficientemente
internalizadas quanto o acesso aos espaços, por isso mesmo essa dinâmica gera
inúmeros tencionamentos que complexificam a vida urbana, devido à rede
multidimensional de sociabilidades que a constitui e que nele é reproduzida.
Vale salientar que o modelo utilizado por Ornat e Silva (2007) não dá conta da
realidade. Muitas mulheres exercem funções empregatícias no espaço urbano.
Essas contrariam a lógica binarista e masculina, presente no modelo, bem como,
não considera a reprodução familiar como uma atividade lucrativa dentro do modo
de produção, nos moldes da divisão do trabalho.
Assim, Gillian Rose (1993), por meio do conceito de espaço paradoxal,
destaca que a posição de qualquer sujeito no espaço não é única. Pelo contrário, ela
é multidimensional e plurilocalizada, além de ser simbolicamente diversa. Segundo a
autora, um mesmo sujeito pode mudar sua posição em determinada estrutura de
relações de forças, influenciado pelas características sociais como renda, gênero,
raça, etc.
Nesse sentido, busca-se compreender os deslocamentos intraurbanos não
mais no esquema binário homem-mulher, mas inclusos na transnormatividade.
Compreender como as transformistas, travestis e transexuais apropriam-se do
espaço
urbano,
levando
em
consideração,
sobretudo,
suas
rendas
e
performatividade.
Para compreender os deslocamentos urbanos devemos considerar três
fatores importantes: motivo, destino e intensidade dos deslocamentos. Ornat e Silva
(2007) priorizam um modelo que demonstra como mulheres são atraídas por áreas
urbanas que concentram atividades ligadas a reprodução familiar, enquanto os
homens aos locais de trabalho.
100
Em nosso caso os estímulos são outros, não existem filhos, a maioria das
Trans não possuem casa própria e seus estímulos de consumo estão ligados a
necessidades imediatas. Sua concentração de moradia e deslocamento está
condicionada ao centro da cidade, onde podem encontrar todos os acessórios que
as fazem mais femininas e onde batalham madrugadas intensas para gerar renda
para gastar com a beleza e o ajeum68.
A maioria das Trans entrevistadas possui suas casas alugadas e suas
residências situam-se próximas ao centro da cidade, o que facilita seu deslocamento
para ir e voltar do trottoir. De acordo com os relatos, muitas necessidades
domésticas são supridas no próprio local em que residem, mas o consumo de
acessórios, vestuário e calçados é concretizado no centro comercial de Feira de
Santana. O consumo de hormônios e a compra de preservativos, dentre outros
objetos ligados à saúde são adquiridos nas farmácias da Avenida Getúlio Vargas.
Na esfera espacial do bairro, revela Cláudia, a entrada de trans em farmácia deixa o
povo ligado, pensando que a mona ficou doce69, pegou a tia, eles sempre acham
que somos as doentes.
Ornat (2008), Silva (1993), Benedetti (2006) e Pelúcio (2007) notaram que as
Trans possuem uma rede eficaz de solidariedade e comunicação. Essa
característica fica evidente no plano geográfico quando observamos os espaços de
consumo que são por elas compartilhados. Nas conversas na rua, elas indicam as
melhores lojas de roupas onde podem comprar sem constrangimentos acerca dos
seus corpos turbinados e por conta do nome masculino e o carão feminino que
conflituam entre identidade e feição. Promovem uma rede de propaganda sobre os
melhores bares da cidade onde a receptividade lhes permite ficar a vontade,
potencializando sua performance, como também indicam as melhores farmácias
com preços acessíveis e atendimento diferencial. Elas acessam o espaço de forma
desigual. A maior parte das intensidades dos fluxos de deslocamentos é verificada à
noite, período que saem de casa para fazer pista e no centro elas transitam as
avenidas comerciais, aproveitando os comércios que ainda encontram-se abertos
para consumos relacionados à alimentação, farmácia e entretenimento, como bares,
pizzaria, entre outros.
68
Do ioruba, que significa banquete, mas que é constantemente utilizado pelas Trans como sinônimo
de comida, de alimentação.
69
“Estar com doce” é estar soropositivo, o mesmo se aplica com a terminologia “pegou a tia”, que se
refere a AIDS.
101
Os deslocamentos das transformistas
Como já foi explicitado anteriormente, as transformistas possuem dupla
performatividade. Esse disfarce favorece deslocamentos intraurbanos mais longos e
com maior intensidade. Esses sujeitos vivem a esfera do bairro com mais fluidez,
como também, circulam mais durante o dia quando estão dando pinta de boyzinho
ou de gay, como costumam chamar.
As quatro transformistas entrevistadas apresentam movimentos pendulares
que ultrapassam o anel de contorno da cidade feirense. Durante o dia, além de
exercerem outras funções rentáveis, faz visitas às colegas travestis e transexuais,
diluindo-se numa teia imbricada de sociabilidade.
À noite, sobretudo aos finais de semana, montam sobre seus corpos uma
performatividade que retrai seus deslocamentos. Transformados à luz do feminino,
seu destino é a Avenida Marechal, onde ficam transitando por entre ruas e becos do
centro em busca de clientes em potencial. As transformistas preferem utilizar-se de
redes comerciais de consumo do próprio bairro, apesar de consumirem no centro da
cidade. Frequentam as farmácias do Caroá na Avenida Getúlio Vargas e a Silva na
Praça da Bandeira, confirmando as preferências de atendimento citadas
anteriormente. Nas farmácias abastecem suas bolsas de preservativos e
lubrificantes preparando-se para a rotina do sexo à noite.
Compram roupas femininas em lojas diferentes das masculinas. Escolhem
lojas especializadas em cada ramo para acirrar as diferenças dos modelos
normativos do binarismo de gênero. Para roupas femininas preferem consumir na
Marisa, unidade localizada na Avenida Senhor dos Passos, e para consumir roupas
masculinas entram e saem em lojas de consumo de massa localizadas na rua Sales
Barbosa, sobretudo a JR Confecções.
Deslocam-se no espaço urbano por motivos socioafetivos e por motivos
trabalhistas, contrariando a bipolaridade detalhada por Ornat e Silva (2007) quando
trata das diferenças de deslocamentos de homens e mulheres. Para atender os
motivos afetivos, visitam bares, lojas, casa de amigos gays, aprofundando suas
redes de solidariedade. Por outro lado, exercem outras funções no mercado de
trabalho, onde vivem uma performatividade mais voltada para o masculino. Em
relação às outras trans, os deslocamentos das transformistas são mais intensos.
102
Elas sempre chegam transformadas na praça e por vezes assustam quando, sem
plumas e paetês, aparecem de boy na praça.
103
104
Os deslocamentos das travestis
Hormonizadas e siliconadas, as travestis possuem um corpo turbinado. De
acordo com elas, desfilar no trottoir a noite inteira em cima de saltos é um
desconforto. Para além disso, a própria ingestão de hormônios as deixa cansadas,
por isso, quanto menos deslocamentos diurnos, mais forças terão para conseguir
bater várias portinhas70 à noite na avenida. As travestis trocam o dia pela noite. Na
noite saem como gatos pardos71 para a rua e durante o dia recolhem-se para
descansar e se esconder dos fluxos intensos do centro durante esse turno. Segundo
Bette essa troca de turno faz das travestis parecerem “vampiras”72, pois se
escondem da luz do sol.
Expostas ao sol, as expressões do rosto masculino que se tenta minimizar
ficam mais evidentes. Sob o sol seus corpos masculinos transpiram como homens.
As travestis são seres da noite. Preferem não fazer deslocamentos longos, por isso
mesmo moram de aluguel nas proximidades do centro, onde podem vir caminhando
para pista.
Fazem muitas compras no final da tarde, sempre depois das 16 horas,
quando a temperatura apresenta-se mais amena. Adoram consumir na em lojas
localizadas na Avenida Senhor dos Passos. Além dessas, estão sempre atentas a
liquidação em lojas populares da Rua Sales Barbosa, ou as lojas 1073 que estão na
Avenida Marechal Deodoro.
Preferem não comprar hormônio, remédios em geral e nem camisinhas nas
farmácias do bairro onde moram, elas consomem esses produtos nas mesmas
farmácias que as transformistas, todas inseridas no território da prostituição.
Esporadicamente, no final das tardes saem para visitar as amigas. Algumas ainda
saem pela manhã para fazerem visitas às trans que são presas por conta das
70
Gíria utilizada pelas informantes para se referir ao ato de se prostituir. Bater várias portinhas
significa fazer muito programa.
71
Ver Pelúcio (2005).
72
Essa declaração foi capturada em conversa informal antes de realizar a gravação da entrevista
semiestruturada. Para Bette a escolha de turbinar o corpo de silicone e muito hormônio as faz desistir
de priorizar o uso do espaço durante o dia, onde podem ser olhadas, analisadas e interpeladas.
73
Nas lojas 10 qualquer peça de roupa feminina custa R$ 10,00. Dentre elas temos o Shopping 10,
Top 10, Moda 10, etc.
105
elzas74 na praça. Em relação às transformistas, os seus deslocamentos estão mais
voltados para suprir necessidades femininas, pois nenhuma delas exerce outra
função rentável que não seja o trottoir. Por isso seus deslocamentos são
espacialmente curtos e com baixa intensidade.
74
Significa roubo. Os termos Neuza, Aidê também são sinônimos de furtar algo de alguém. Muitas
travestis gritam assalto aos clientes que atendem na praça, segundo os próprios relatos e as
observações em campo.
106
107
Os deslocamentos das transexuais
Das três performatividades analisadas nesta pesquisa, as transexuais
apresentam proximidade com as mulheres pobres de Ponta Grossa, analisada por
Ornat e Silva (2007). Não pelo critério de classe social, mas pelos motivos do
deslocamento. As transexuais se consideram mulheres, ou como disse Marilyn “algo
além delas e além dos homens”, por isso mantêm íntima relação com
deslocamentos ligados às atividades domésticas. Seus deslocamentos são
extremamente curtos; restritas a uma vida trancafiada, durante o dia, em casa. As
saídas são curtas espaço-temporalmente. Buscam na rua aquilo que não podem
resolver em casa. Mas saem programadas para não se alongar na exposição de sua
figura ao público.
Quando saem, se produzem e ficam belíssimas e arrancam piadas, às vezes
satisfatórias, de inúmeros transeuntes que massageiam sua autoestima. Para além
de lojas de calçados e vestuários, deslocam-se para o ramo de casa e cozinha.
Gostam de locais onde o movimento é menor e fazem isso de forma esporádica.
Também possuem a síndrome do vampirismo enfatizado por Bette, preferem
não viver de dia. A maioria delas encontram-se casadas e realizam dupla jornada, a
transexual que sai à noite para batalhar é a mesma que levanta cedo para cuidar
dos afazeres domésticos e preparar o café matinal para seu parceiro. Elas
administram a casa, fazem sua limpeza e higienização. Decoram cada parede e
canto. Cozinham, lavam e passam. No fim da tarde estão esperando seus maridos
chegarem, para começar a se produzir para trabalhar e voltar no meio da noite para
os braços do amado.
A reposição de remédios, hormônios, preservativos e lubrificantes é feita nas
farmácias próximas as suas residências, além de consumirem nas mesmas
farmácias supracitadas nos deslocamentos das transformistas quando chegam à
noite na pista. Durante a noite, seus deslocamentos intensificam-se. São levadas
para motéis fora do anel de contorno e, além disso, transitam pelas avenidas do
coração da cidade. Como as travestis, a intensidade de seus fluxos é potencializada
à noite, em função de estarem vendendo-se, comercializando o prazer.
Todas as transexuais moram próximas do território da prostituição e fazem
esse percurso noturno a pé. Inúmeras vezes desci para casa na companhia de
108
Sophia que mora no bairro da Queimadinha. Ela não passa das 22 horas na rua
durante a semana, pois precisa chegar cedo para dar assistência ao seu marido que
a espera. Nunca vi Sophia circular nas ruas do bairro, apesar de ser uma pessoa
reconhecida pela população. Sempre que queria encontrá-la ia a sua casa e lá
estava ela fazendo suas atividades domésticas.
A análise dos deslocamentos urbanos evidenciou que as performatividades
estudadas vivem o espaço urbano de forma diferencial, agregando aspectos da
masculinidade e da feminilidade de forma contraditória e complementar.
109
110
Deslocamentos Trans para Itália
Inúmeras Trans brasileiras realizaram emigração para Europa. De acordo
com Oliveira (1994) a Itália era foco principal de Travestis que se prostituiam no
Brasil. Para chegar a Europa, as Trans passam por uma delicada seleção que leva
em consideração requisitos baseados na estética, comportamento e cultura. A
emigração para Europa, sobretudo Itália, é bem desejada pela maioria de nossas
informantes.
Na Itália o programa é valorizado, rentável oferecendo um novo padrão de
vida para as Trans. A Europa se efetiva enquanto espaço do glamour. É na Europa
que as Trans recebem selo de qualidade e quando retornam ao Brasil tal selo é
trocado pelo respeito e pelo reconhecimento.
A entrada na Itália não é tranqüila e apresenta uma série de ações ilícitas que
vão de encontro com a política de imigração do país. Por isso mesmo a saída é
clandestina e o convívio entre os italianos é de constante vigilância.
Entre nossas informantes, a única que morou na Itália foi Marilyn, que passou
cerca de 7 anos na prostituição de luxo entre o final da década de 90 até o inicio dos
anos 2000. Atualmente Lauren e Rita residem na Itália e estão arrumando a ida de
Greta. Tanto Lauren quanto Rita ainda trabalham para pagar os gastos de suas
passagens financiada por uma Travestis européia que reside em Salvador.
A saída das Trans feirenses para fora do país depende exclusivamente do
apoio de Travestis de Salvador. Para isso, elas passam um tempo de experiência
fazendo trottoir no bairro da Pituba, para conquistar o passe para o luxo: a Europa.
Lá, geralmente residem com outras Trans baianas que estão na mesma condição.
Na maioria dos casos, todas as iniciantes chegam para morar na casa da Travesti
que arrumou seu passaporte, onde fica até pagar a divida que possuem com as
passagens e aluguel da casa.
Algumas conseguem economizar e investem em propriedades no Brasil.
Melhoram a vida de suas famílias, retribuindo-lhe mensalmente uma quantia para
ajudar nos gastos. Porém, nem todas que entram na Itália conseguem permanecer.
A política italiana, segundo Pelúcio (2007), tem inibido a entrada de Trans no país
num projeto de combate a exploração sexual. Em virtude disso, algumas, com pouco
111
sucesso é deportada para seu país de origem, e tentam recomeçar mais uma vez
sua vida sob o solo brasileiro.
112
113
114
115
116
CAPÍTULO III
TRÊS TRAVESTIS
Três travestis
Traçam perfis na praça.
Lápis e giz
Boca e nariz, fumaça.
Lótus e liz
Drops de aniz, cachaça
Péssima atriz
Chão, salto e triz, trapaça
Quem é que diz?
Quem é feliz?
Quem passa?
A codorniz
O chamariz
A caça
Três travestis
Três colibris de raça
Deixam o país
E enchem París de graça
Caetano Veloso
117
3- O TERRITÓRIO TRANS: AMPLIANDO HORIZONTES TEÓRICOS PARA OS
ESTUDOS DE GÊNERO
O espaço influencia [...] é muito importante, porque lá elas aprendem muitas
coisas com as outras, [...] como se desenvolver, como se hormonizar, como
se siliconizar, tudo isso influencia, há uma influência grande. (Entrevista
realizada com Brigitte em 14.01.2010).
3.1- O estudo do conceito de território
Existe um determinado entendimento, entre a comunidade científica, sobre a
“febre” contemporânea da utilização, nos estudos geográficos, do conceito de
território. Tanto Souza (1995) quanto Haesbaert (1999, 2006, 2007) e Raffestin
(1993) elucidam os desdobramentos da reflexão e aplicação desse conceito em
diferentes abordagens teórico-metodológicas.
Ambos os autores compreendem que o conceito de território é uma produção
discursiva, estrategicamente forjada para responder as problemáticas existentes na
realidade espacial ligadas às manifestações geográficas de poderes. Na sua
evolução aplicativa, como conhecimento sistematizador, o conceito de território
possui uma longa tradição eficaz para analisar os processos político-administrativos
do Estado, solidificando sua concepção política.
Tradicionalmente, entrelaçado nos conceitos de fronteiras, de delimitação e
demarcação de área para empoderamento de uma pessoa, grupo ou instituição, o
conceito de território constitui-se numa categoria geográfica epistemologicamente
“afronteiriça”. Seu uso e seu debate extrapolaram a área de conhecimento da
Geografia, seduzindo um debate promissor em outros campos do saber,
estendendo-se, sobretudo, nas ciências humanas e interconectando sua análise
numa dinâmica escalar jamais vista. O ecletismo presente no debate do conceito de
território elucida seus paradoxos: entre o político-administrativo e os grupos sociais
118
diversos, um conceito afronteiriço que busca estudar os limites e a sua possibilidade
de estar compatível com outras escalas geográficas de análise, mantendo a
abordagem histórica do espaço.
As contradições das concepções de território não param por aí. A sua
polissemia vocabular “implica inconsistências acerca do significado do conceito de
território” (BRITO, 2006). Na palavra território está uma série de definições díspares
e complementares que potencializam seu caráter paradoxal aplicativo. A perspectiva
tradicional amplamente usada para definir território baseia-se numa extensão
superficial da Terra, em que o sujeito, os grupos sociais ou instituições estabelecem
um conflito em detrimento de seus interesses.
Como nos alerta Brito (2006), essa perspectiva, apesar de disseminada e
internalizada pela população, possui a compreensão que apresenta deficiências
teóricas, implicando num descrédito dessa abordagem nos dias atuais. Porém, as
Ciências Sociais, com destaque a Antropologia, no seu ramo mais recente, a
Antropologia Urbana, nos estudos de grupos sociais diversos ligados ao seu
território (prostitutas, travestis, garotos de programa, minorias étnicas etc.), tem
possibilitado um novo debate para a compreensão desse conceito.
Simultaneamente, ainda perdura na Ciência Política e na Geografia uma
concepção de território como área definida a partir do poder que emana do Estado,
cristalizando o debate na escala do território nacional, como elucida Silva (1995).
Nessa concepção, que chamaremos de hegemônica, o território é um espaço em si
e concreto que é apropriado e ocupado por um grupo social, e seus limites seriam
imutáveis, alterando-se por meio de um sistema brutal de luta pelo espaço.
De modo superficial, dividimos o debate do conceito de território em duas
grandes concepções que polarizam a aplicação desse conceito demarcando seus
usos epistemológicos: a concepção hegemônica ligada à produção territorial pela
força do Estado e a concepção idealista que cruza outras formas de poderes, os
micro poderes, e por sua vez os microterritórios/ territorialidades nas abordagens
contemporâneas das ciências humanas, sobretudo a Geografia.
119
3.1.1 - A concepção hegemônica
O precursor da concepção hegemônica foi o alemão Friedrich Ratzel cujo
potencial discursivo fixa a ideia de território na perspectiva política do Estado. A ideia
ratzeliana está tão enraizada nos discursos do cotidiano que aparenta certa
naturalidade existencial, ocultando seu caráter produtivo e dinâmico de apropriação,
sendo, portanto, um discurso proposital que visibiliza a ação do Estado. Assim, as
pessoas já nascem num dado território que pré-existe e é nessa porção espacial
onde desenvolverá, a luz das normas político-administrativas do Estado, seus
vínculos de afetividade, fortalecendo a territorialidade do Estado-nação.
Para além de uma restrição de abordagem, a concepção hegemônica
ratzeliana apresenta um território densamente masculino nos moldes do Estado
renascentista que maximiza a heterossexualidade, sobrepondo os homens em
status de poder subordinativo e a mulher em condição de subserviência, execrandoa da vida político-administrativa.
Portanto, temos um território institucionalizador a favor do binarismo de
gênero e da situação de privilégio dos homens, indicando rápida relação com a
concepção de território da Etologia75, delimitado pela força do animal macho e sua
capacidade de dominância, por atributos inatos. Essa ideia está transferida para as
relações estatais da sociedade. Os homens seriam os sujeitos aptos a se
empoderarem,
racionalidade,
visto
que
capacidade
possuem
de
determinação,
enfrentar
disputas
objetividade,
e
conflitos.
virilidade,
Assim,
tais
características estariam ausentes nas mulheres.
Analisando o território hegemônico com vista aos fenômenos de gênero,
podemos afirmar que o poder que o mantém é um poder masculino que emana do
Estado. Compreendendo essa afirmativa, podemos explicar a forte ratzelização
existente no debate sobre território. O conceito é um discurso que busca destrinchar
a realidade reproduzindo-a em um plano semiótico, boa parte desses estudos ainda
manifestam o pensamento ratzeliano estadista de território, sendo esta uma
estratégia de dominação masculina e aprisionamento dos gêneros abjetos, como
analisa Butler (2003) quando se debruça para estudar o processo da abjeção.
75
Ver a discussão apresentada por Haesbaert (2006).
120
A concepção de território-Estado negligencia uma série de fatos sociais que
se desvinculam das características forjadas para esse tipo de poder. Mas,
paradoxalmente, a ideia do Estado, como mola motriz do poder no território
encontra-se disseminada no senso comum dos grupos sociais que, nessa lógica, se
apropriam do território estatal e subvertem sua ordem.
Na escala do estudo, a partir dessas concepções, o município de Feira de
Santana se constitui em um território definido pela apropriação e ocupação de uma
parte concreta do espaço, possuindo normativas legalizadas e geridas por um
Estado centralizador. O poder da gestão municipal se propaga pelo território, criando
uma identidade territorial ligada à fronteira “Feira de Santana”, imbuindo em seus
moradores um vínculo espacial que deve ser preservado e defendido.
Contraditoriamente, as ruas de Feira de Santana são usadas das formas mais
diversas possíveis. Ora reproduzindo os decretos, sanções, leis, portarias, a favor do
poder estatal municipal, ora infringindo, subvertendo e refazendo essas normas de
acordo com as intenções de determinado grupo.
Simbolicamente, o território-Estado vai sendo minimizado e outros poderes
eclodem no espaço, contrariando as lógicas ou as reiterando. Surgem territórios de
todos os tipos, tamanhos e temporalidades, que possuem características cíclicas ou
fluidas, ou ainda fixas e/ou permanentes. Assim são os territórios dos ambulantes do
mercado informal que “privatizam” o espaço público, cunhando no local seu registro
de funcionamento pela força e persistência de pleitear uma vaga nas calçadas
movimentadas do centro da cidade. Também o são os territórios dos flanelinhas que
delimitam, a partir das quadras das ruas, sua área de influência, cobrando
determinado valor no espaço-tempo que o veículo ficar estacionado em vias
públicas. E por fim, é o caso do território do sexo, onde praças, esquinas, avenidas
de alta rotatividade são tomadas, temporariamente, para encontros sexuais
financeiramente estabelecidos ou prazerosamente acordados pela lei do vício76.
76
Fazer vício corresponde a fazer sexo gratuito com um possível cliente que provoca especial
atenção nas Trans que, estimuladas pelo estereótipo do rapaz, se permitem subverter a lei do
comércio do corpo e se entregam ao prazer profundo do desejo do outro.
121
3.1.2 - A concepção idealista
Apesar de toda crítica realizada à concepção do território hegemônica,
sobretudo a perspectiva ratzeliana, é necessário compreender o importante passo
que foi dado por Ratzel para o debate que se ampliou na contemporaneidade,
diversificando a abordagem do conceito.
De acordo com Rogério Haesbaert (2006), os cientistas sociais, que pouco
tinham visitado o debate de território, o redescobrem na década de 80 do século XX,
para explicar sua supressão. O desaparecimento do território, sobretudo o políticoadministrativo no molde do Estado Moderno apresentado por Ratzel, demarcaria a
existência de um fenômeno da contemporaneidade que muitos cientistas
denominaram de desterritorialização.
Contestando a ideia de que as inovações tecnológicas produziriam um
ciberespaço que suprimiria o território, Haesbaert (2006) conclui, em um debate
epistemológico longo e cauteloso, que o território está longe de ser extinto pelas
relações sociais tecnológicas.O desaparecimento do território não passa de um mito,
nos moldes como é argumentado pelas Ciências Sociais.
A ideia sobre o mito da desterritorialização é um desdobramento da raiz
significativa da palavra território cuja etimologia deriva do Latim Terium, significando
terra pertencente a alguém. A ideia de território como substrato ou solo fixou nas
suas entranhas conceituais uma ligação equivocada com sua materialidade
fronteiriça.
Para as Ciências Sociais, o desaparecimento do território estaria vinculado à
soberania das redes técnicas globalizantes, à integração dos países e à
desarticulação de suas fronteiras fixas, em virtude da integração dos Estados-nação
em mercados regionais. O território do Estado-nação, em teoria, perderia
funcionalidade com a mudança da escala dos fenômenos. Nessa ideia, as
interconexões escalares se intensificariam até suprimir as microescalas, que
freneticamente seriam engolidas pelos fluxos globalizantes e junto com isso viria o
fim das fronteiras político-administrativas que existencializam os territórios Estadosnação.
Ao contrário da concepção hegemônica, o território para a vertente idealista
se diferencia do solo ou substrato, incluindo a territorialidade como um conjunto de
122
estratégias para manipular ou afetar outros grupos sociais, inferindo um caráter
processual e contínuo aberto a outras formas de poderes diferentes do Estado
(SACK, 1986).
Na concepção de Souza (1995), o território se constitui em um campo de
forças dialéticas que produz e é produzido por relações sociais mediadas pelo
poder. Como o poder não está restrito ao Estado e ele manifesta-se em todas as
esferas do cotidiano, uma das estratégias dos Estados-nação da atualidade é
adentrar no processo globalizante dos fluxos, mantendo, contraditoriamente, suas
fronteiras. Como afirma Haesbaert (2006), a globalização, que tenta homogeneizar
os processos, acirra as diferenças fortalecendo as alteridades no e do território. A
globalização
reanima
as
energias
produtivas
do
território
mantendo-os
paradoxalmente em um constante conflito moderno que ora homogeneíza e,
dialeticamente, diversifica os lugares e coisas.
É a partir dos estudos de Raffestin (1993) e de Sack (1986) que as
concepções de território se alargam, compreendendo-o, ao contrário dos
materialistas, como um conjunto de relações de poder. Porém,
ao que parece, Raffestin não explorou suficientemente o veio oferecido por
uma abordagem relacional, pois não discerniu que o território não é o
substrato, o espaço social em si, mas sim um campo de forças, as relações
de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um
substrato referencial (SOUZA, 1995, p. 97).
Apesar de não enfatizar a perspectiva material do território, Raffestin nos
chama atenção de que o território é relacional, não apenas por ser produzido numa
trama de relações sociais desenroladas no curso histórico, mas por articular esses
processos ao espaço material, conferindo-lhe movimento, fluidez e interconexão.
Outro aspecto positivo das contribuições de Raffestin (1993) trata-se do
reconhecimento atribuído a Michel Foucault (1979), que ao discutir o conceito de
poder, renovou o debate sobre o território. Na obra Microfísica do poder, o filósofo
francês Michel Foucault (1979, p.157) reconhece que o “território é sem dúvida uma
noção geográfica, mas é antes de tudo uma noção jurídico-política: aquilo que é
controlado por um certo tipo de poder”. Apesar da ferrenha crítica realizada à ciência
geográfica, Michel Foucault não anula o caráter geográfico do território, mas
percebe, a partir da Ciência Política, que o território é passível de influência de tipos
de poderes que não necessariamente emanam do Estado, explicando como grupos
123
menores transmitem micropoderes e delimitam espaços. Desta forma, a partir da
concepção de poder de Foucault, Raffestin sistematiza algumas características do
poder, um conceito diluído em todos os estudos de Foucault, apresentando as
seguintes características para o debate espacial:
1. O poder não se adquire: é exercido a partir de inumeráveis pontos;
2. As relações de poder estão em posição de exterioridade no que diz
respeito a outros tipos de relações (econômicas, sociais etc.), mas
imanentes a elas;
3. O poder [também] vem de baixo; não há uma oposição binária e global
entre dominador e dominados. (RAFFESTIN, 1993, p. 53).
Ao considerar o poder como relação, na visão de Foucault, Raffestin (1993)
minimiza sua dimensão “concreta”, deslocando o conceito de território para um
campo semiótico, dotado de simbolismos, onde suas reproduções imagéticas são
mais consideradas do que a realidade material concreta, como critica Haesbaert
(2006).
Sack (1986), por sua vez, detalha seus postulados em um nível mais material,
aplicando exaustivamente o conceito de territorialidade para explicar a formação de
territórios. Para Sack (1986, p.1) a territorialidade humana é melhor entendida “como
uma estratégia espacial para atingir, influenciar ou controlar recursos e pessoas,
pelo controle de uma área e, como estratégia, a territorialidade pode ser ativada e
desativada”. A territorialidade se constitui numa
[...] tentativa, por um indivíduo ou grupo, de atingir/afetar, influenciar ou
controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos pela delimitação e
afirmação do controle sobre uma área geográfica. Essa área será chamada
de território.” (SACK, 1986, p. 6).
Concentrando esforços teóricos para compreender o território como uma
unidade dinâmica passível de transformações e instabilidades, Sack (1986) amplia,
ao contrário da concepção hegemônica, o conceito de território, demonstrando suas
características
temporais,
cíclicas
e
potencializando
sua
flexibilidade.
As
considerações de Sack aproximam-se das ideias de Raffestin quando ambos
consideram que um local, como expressividade geográfica de poder, se forma,
mesmo que temporalmente em um território.
Ambos reconhecem diferentes níveis de territorialidade, implicando em
diferentes graus de acesso, permeabilidade e segurança relacionados a pessoas,
124
coisas ou relações. Assim, somente aqueles que vivem dentro de seus limites são
considerados iguais, os insiders, pois estão condicionados a um certo tipo de
controle e de alteridade com os que se encontram fora, ou seja, os outsiders
(SOUZA, 1995).
É no território que estão inscritos os limites discursivos e simbólicos das
relações de empoderamento. O poder concentra-se para aqueles que compartilham
de uma identidade territorial e se esvazia para aqueles que são os outros do
território, onde medidas de coação, retração e exclusão são aplicadas a fim de
manter a força visível no espaço (HAESBAERT, 1999).
Nessa perspectiva, participar de um território não implica mais estar apenas
incluso num polígono tranquilamente demarcado e estável. Territorializar-se significa
compartilhar de um sistema simbólico reiterado, imerso no pertencimento territorial,
em que os sujeitos, dialeticamente, são e compõe o território, por meio de uma
identidade cultural difundida e assimilada. A partir dessa premissa, devemos
compreender que
o poder do laço territorial revela que o espaço está investido de valores não
apenas materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos. É
assim que o território cultural precede o político e com ainda mais razão
precede o espaço econômico. (BONNEMAISON E CAMBRÈZY, 1997, p.
10).
A abordagem idealista considera os aspectos simbólicos e as representações
espaciais dos grupos sociais, sem perder de vista a materialidade do espaço. Para
os autores dessa corrente alguns grupos sociais, mesmo não possuindo forma
institucional, podem se identificar com o território. A apropriação é simbólica e só é
possível por meio da identificação e da alteridade77, no jogo insiders/outsiders,
favorecendo aqueles que pertencem e compartilham dos mesmos vínculos
territoriais. Bonnemaison e Cambrèzy (1997, p.14), concluem que a força simbólica
nesse processo é tamanha e que o território é concebido como “um construtor de
identidades, talvez o mais eficaz de todos”.
77
No sentido antropológico referente às diferenças culturais. Alteridade (ou outridade) é a concepção
que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende de outros
indivíduos. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais afirmam, a existência do "euindividual" só é permitida mediante um contato com o outro (que em uma visão expandida se torna o
Outro - a própria sociedade diferente do indivíduo).
125
As abordagens contemporâneas, além de considerarem a identidade como
estratégia de poder e formação territorial, possibilitam a compreensão do território de
forma dinâmica. Souza (1995) e Ribeiro (1997) analisam a fluidez dos territórios da
prostituição, demonstrando a complexidade das relações de poder em microespaços
que são tomados, temporalmente, para a venda, a exibição e o desejo do sexo.
Os territórios da prostituição são bastante flutuantes ou móveis. Os limites
tendem a ser instáveis, com áreas de influência deslizando por sobre o
espaço concreto das ruas, becos e praças; a criação de identidade territorial
é apenas relativa, digamos, mas propriamente funcional que afetiva.
(SOUZA,1995,p.88).
Corroborando com essa perspectiva, Ribeiro (1997, p.62) afirma que em
estudo no Rio de Janeiro “no caso da prostituição, uma rua, um conjunto de ruas ou
um lugar pode ser um território, durante um certo período de tempo”. Isso acontece
porque um grupo ao se apoderar do espaço formaliza a criação de um território. No
caso da prostituição, os territórios variam de especificidades de acordo com o grupo
territorializador,
pois
estes
determinam
as
lógicas
de
acesso,
fluidez,
comportamento, horário e cerceamentos.
Assim, todo território pressupõe uma identidade territorial, já que a tendência
observada é que o agrupamento dos indivíduos se dá por objetivos comuns, isto é,
“a pessoa tende a buscar se relacionar afetiva e socialmente com pessoas de
mesmas tendências sociais”. Os sujeitos que objetivam as mesmas coisas vão
selecionando seus grupos de adensamento, pois identidade “implica uma relação de
semelhança ou igualdade” (HAESBAERT, 1999, p.173), um processo que exclui os
diferentes e caracteriza a convivência espacial.
3.2- O(s) poder(es) no(s) território(s)
Como já foi explicado, a compreensão do conceito de território sempre esteve
atrelada ao conceito de poder. Observamos que a concepção hegemônica restringiu
a manifestação do poder para as instituições oficiais político-administrativas,
conferindo ao Estado o poder central de caráter mais persuasivo, pois estava
126
vinculada às concepções de Max Weber e de Maquiavel. Essa ideia começou a ser
desconstruída e revisitada com as publicações de Raffestin (1993) e de Sack (1996),
visto que esses autores consideraram outras vertentes de concepção de poder
numa perspectiva filosófica dos significados, isto é, fenomenológica.
É na abordagem de Raffestin (1993) que se desdobra o efeito-Foucault78 na
Geografia. O filósofo Michel Foucault pluraliza a concepção de poder e seu debate,
aproveitado pelos estudos de Raffestin (1993), provoca uma ampliação da
concepção de território na e para a ciência geográfica. Seu efeito pós-moderno
engendrou a organização de inúmeros espaços de debates sobre a tradição
geográfica em torno do conceito de território.
Outros autores como Bourdieu (1999b) e Arendt (1992 e1994) também
influenciam na conceitualização de território nos estudos geográficos a partir de suas
análises sobre o poder. Porém, verificamos que a perspectiva foucaultiana encontrase mais difundida nas produções sobre o conceito de território em todas as Ciências
Sociais.
Vale à pena salientar que tanto Bourdieu (1999b) quando Foucault (1979)
realizam uma crítica ferrenha ao que compreendem como “geográfico”. Para ambos,
o caráter naturalista, positivista e determinista da Geografia Tradicional, analisada
por Foucault (1979) como determinando o espaço como sinônimo de substrato ou
superfície terrestre e por Bourdieu (1999b) a partir do conceito de região na
perspectiva natural, anulava o caráter dinâmico da reprodução da sociedade,
sobretudo, no que tange a seus simbolismos.
As
críticas
de
Foucault
(1979)
e
Bourdieu
(1999b)
elucidam
o
desconhecimento da evolução da epistemologia geográfica e seus avanços
conceituais para a definição de seu objeto de estudo e suas categorias de análise.
Porém, no tocante do debate em torno do poder, ambos os autores engendram uma
promissora analise sobre o conceito de território concebido pelas alteridades sociais.
Enquanto Foucault (1979) se detém a diluir o poder em todas as escalas de relações
sociais, demonstrando como ele se manifesta enquanto processo (e não como
78
Margareth Rago no artigo O efeito-Foucault na historiografia brasileira esboça as mudanças
teóricas e metodológicas decorrentes da disseminação do pensamento de Foucault na História. Para
ela, Foucault auxilia na delimitação do campo de atuação e definição do objeto de estudo da ciência
histórica, sobretudo com o alerta que ele realizou sobre os documentos históricos. Para Foucault a
História deveria superar a busca da verdade por meio da análise dos documentos e registros
históricos e se atentar em desvendar a trama de poderes que estavam alocadas nesses fragmentos
do tempo.
127
coisa) de diferentes maneiras, pluralizando sua manifestação e entendimento,
Bourdieu (1999a) afirma sua concepção fenomenológica utilizando as noções de
campo do poder e de capital específico.
Para Bourdieu (1999b) o campo do poder corresponde a um “campo de
forças” definido em sua estrutura pela relação estabelecida pelas diversas formas de
manifestação desses poderes e seu capital acumulado que pode ser econômico ou
cultural especialmente. Esse “campo de forças” se configura enquanto espaço onde
ocorre um constante jogo entre agentes e instituições, evidenciando sua capacidade
acumulativa de capital específico, para ocupar posições de dominação, a partir da
disposição de estratégias que conservem, transformem ou subvertam essa relação
de forças.
Conforme Bourdieu (1999b), todo poder simbólico é um poder capaz de se
impor como legítimo, dissimulando a força que há em seu fundamento e só se
exerce se for reconhecido. Este corresponde a um “[...] poder invisível que só pode
se exercer com a cumplicidade daqueles que não querem saber que a ele se
submetem ou mesmo que o exercem”. (BOURDIEU, 1999b, p.31).
Na visão de Foucault (1979), a concepção de poder se apresenta de forma
ampla, privilegiando sua manifestação simbólica e institucional. O poder
não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação,
como também da afirmação que o poder não é principalmente manutenção
e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de
força.(FOUCAULT, 1979, p. 175).
Realizando uma crítica a Marx Weber, Foucault afirma que a ideia de poder,
condensado no e ao Estado, endossava uma visão economicista de sua
potencialidade e o restringia, diminuindo seu campo de aplicação e análise. O poder
estava presente em todas as relações sociais, inclusive nas banais, que se
reproduzem velozmente no cotidiano. Ao enfatizar essa possibilidade, Foucault
pluraliza o conceito de poder, afirmando a existência de suas manifestações para
além das relações economicistas, pois para ele
a teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado sem
dúvida não esgotam o campo de exercício e de funcionamento do poder.
Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde o
exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde vai
o lucro, por que mãos ele passa e onde ele se reinveste, mas o poder...
128
Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detêm. (
FOUCAULT, 1979, p.75).
Ao ampliar a concepção de poder Foucault desarticula a ideia hierárquica
presente na teoria weberiana, segundo Fonseca (1995). Para ele o poder pode vir
de todos os lados instaurando uma perspectiva pan-óptica e se distanciando da
visão binarista e global que projetava o poder de forma estável e dicotomizado entre
dominador e dominado.
Por meio da teoria do interlocutor irredutível, Foucault (1979) explica que
onde há poder, há resistência. Como se trata de uma rede de relações, os pontos de
resistência estão presentes em toda rede de poder e representam, nesse caso, o
papel de adversário, de apoio e de alvo, estabelecendo o conflito entre os sujeitos e
as instituições que o compartilham. Assim, o poder
[...] é essencialmente repressivo. O poder é o que reprime a natureza, os
indivíduos, os instintos, uma classe. Quando o discurso contemporâneo
define repetidamente o poder como sendo repressivo, isto não é uma
novidade. Hegel foi o primeiro a dizê−lo; depois, Freud e Reich também o
disseram. Em todo caso, ser órgão de repressão é no vocabulário atual o
qualificativo quase onírico do poder. (1979, p. 175).
Foucault (1999) desenvolve a ideia de dispositivos de resistências que
acenam às suas indicações de alusão ao outro poder79. O outro poder é também
poder devido a sua capacidade paradoxal. Nesse sentido, Foucault argumenta que
entre a regra e as condutas existem os modos de subjetivação que podem ser
subvertidos a partir do jogo-da-verdade. Para Foucault (1997), as técnicas de si,
desenvolvidas através do cuidado de si, acabam por produzir os jogos-de-verdade,
que seriam as relações e interações de forças/poderes entre estas técnicas-de-si e
as técnicas-de-subjetivação, produtoras de verdades e espaços. O sujeito, não só
apenas absorve os discursos-de-verdades, mas também passa a questioná-los e a
produzir outros e novos discursos-de-verdade.
O sujeito quando, através do saber, passa a negar as imposições produzidas
pelas instituições, ou ainda, qualquer outro tipo de subjetivação externa a si, mesmo
que seja para desestruturar as relações de poder vigente, está se fazendo um
79
Vale salientar que a terminologia “outro poder” não está presente nas produções de Foucault. Mas,
para fornecer ao texto a dinâmica que se processa na realidade, optamos em colocar o termo “outro
poder” na tentativa de inferir a dinâmica paradoxal do poder.
129
sujeito dotado de poder e, portanto, um sujeito que se relaciona potencialmente com
o poder, mantendo-se dentro dessas relações, mesmo que para subvertê-las.
A trama do poder em Foucault permite-nos entender como os espaços
normatizados pelas instituições reguladoras dotadas de discursos de verdade são
subvertidos pelas Trans que ocupam o território central da cidade de Feira de
Santana, resistindo aos imperativos do espaço produzido pelas lógicas sociais
dominantes, e não apenas pelos meios de produção, como também as construções
divergentes de gênero que põem em evidência a não-verdade do binarismo de
performatividade dos corpos (BUTLER, 2003). Para compreender o poder,
[...] seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de que
revezamentos e até que instâncias, freqüentemente ínfimas, de controle, de
vigilância, de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce.
Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se
exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não
se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui.
(FOUCAULT, 1979, p.75)
Contrariando essa perspectiva encontramos as afirmações de Hannan Arendt
que apresenta considerações importantes sobre o poder discutido por Foucault.
Para Arendt (1994) os conceitos de poder e violência têm sido apresentados no
debate científico de modo equivocado, sobretudo na tradição do pensamento
político, incluso na tendência hegemônica. Souza (1995) e Brito (2006) percebendo
o contraste existente no debate sobre o poder, compartilham das mesmas
contestações de Arendt (1994), acreditando que a violência não é uma manifestação
do poder e tampouco é um aspecto do território.
Para a compreensão da teoria de Arendt (1994), sobre os fenômenos de
poder e violência, é necessário entender as categorias de esferas públicas e
privadas que dão sustentação a sua argumentação e que estão assentadas nas
concepções que remontam a história da Grécia clássica. Para a autora a esfera
pública estava relacionada ao cotidiano que justificava o emprego de métodos
violentos de escravização dos sujeitos lhes impedindo de uma vida liberta e
democrática na polis, considerada como espaço dos iguais.
Por seu turno, a esfera privada caracteriza-se pela reprodução da
desigualdade que favorecia o comando de alguns cidadãos em detrimento dos
demais. As mulheres, os filhos e os escravos eram proibidos de desfrutar da
liberdade para que seus senhores pudessem desfrutar da vida pública.
130
Dentro
dessa
conjuntura,
Arendt
(1994),
discute
as
diferenças
e
incompatibilidade entre violência e poder. Para a filósofa, onde ocorre a violência o
poder jamais é exercido. O espaço onde um se manifesta bloqueia a possibilidade
do outro se mostrar. Para esclarecer, ela diferencia as categorias de vigor,
autoridade e força.
O vigor difere-se da violência pela naturalidade em comandar e cativar as
pessoas. Pelo vigor, uma pessoa domina naturalmente outra pessoa porque essa
vocação para dominar e cativar os outros já é algo natural, pertence ao seu caráter,
constituindo-se, no argumento de Arendt, como uma característica inata.
Em seu uso corrente, quando falamos de um “homem poderoso” ou de uma
“personalidade poderosa”, já usamos a palavra ‘poder’ metaforicamente;
aquilo a que nos referimos sem a metáfora é ‘vigor’. (ARENDT, 1994, p.36)
A força, que no cotidiano é uma característica ligada ligeiramente à violência,
na concepção de Arendt (1997) constitui-se em qualquer forma de energia
proveniente de movimentos físicos ou de circunstâncias, sendo “[...] uma qualidade
natural de um indivíduo isolado [...]. Na luta entre dois homens, o que decide é a
força e não o poder” (ARENDT, 1997, p. 212). Dessa forma, a categoria de
autoridade está ligada a características naturalistas como o vigor, pois “Sua insígnia
é o reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede que obedeçam:
nem a coerção nem a persuasão são necessárias” (ARENDT, 1994, p.37).
Características como dominação, controle, coação, repressão, vigilância,
proibição e termos correlatos têm sido utilizados de forma equivocada como
sinônimo de poder, como elucida Brito (2006). Para o autor, o poder descrito na obra
de Foucault, ou a forma como ele vem sendo empregado para conceituar o território,
“certamente [...] não são exemplos de relações de poder, mas de pura dominação”
(BRITO, 2006, p.119).
Contudo, as concepções de força e autoridade definidas por Arendt (1994)
apresentam um caráter inatista, contradizendo a construção e execução do poder
como algo socialmente produzido e exercido. Nenhum sujeito é dotado, em seu
caráter, de força e de autoridade, o exercício dessas categorias é internalizado no
desenrolar da vida cotidiana e significado no contato social.
Ao contrário do que se estipula, Foucault (1979) desloca-se da ideia de poder
de Weber e Maquiavel, que possui caráter simplesmente repressivo, para a ideia do
131
poder positivo, do poder que também articula e produz, que legitima os lugares dos
sujeitos e seus discursos-de-si. Na concepção foucaultiana toda vontade de saber
constitui-se em uma vontade de poder e a partir disso entramos no dispositivo
poder-saber. (MACHADO, 1981, 1988). De fato dominação, controle, coação,
repressão, vigilância, proibição e termos correlatos não são sinônimos de poder,
mas estes são características pluricruzadas da complexidade que constitui o
conceito de poder.
Os jogos-da-verdade, o cuidado de si, possibilitam a construção de
"especialismos" que permitem aos sujeitos "especialistas" falem em qualquer lugar,
em qualquer circunstância porque falam desse lugar do poder legitimado e
produzem a ideia de naturalização das verdades. As resistências, as dominâncias
em Foucault, partem da premissa das experimentações por outros modos de se
buscar o mundo, de descobrir linhas de fuga que escapam das fronteiras normativas
existentes em nossos territórios. Essas resistências também são relações de forças.
Ao contrário das afirmações de Arendt (1994), compõem o poder, pois desejamos
afetar outros sujeitos a partir de nossas vontades de verdade e tais vontades,
paradoxalmente, reproduzem a vida, os sentimentos, as vontades e os desejos e
nos movem rumo à luta pela liberdade, mesmo quando reprimido.
A visão de poder nas obras de Foucault se torna importante para
compreensão da formação e manutenção e da vida dos territórios do sexo. É nessa
condição de poder que as identidades são diariamente produzidas, imbuindo nesse
processo o sentimento de pertencimento territorial que reterritorializa as vontades e
os conflitos entre os de dentro e os de fora. Nesse território positivamente
empoderado, as contradições co-existem em simultaneidade e o paradoxo reflete a
existência perturbadora do poder, que cria, refaz e destrói os espaços e os sujeitos.
No
território
as
materialidades
estão
intimamente
relacionadas
às
subjetividades, aquilo que Bourdieu (1999b) tratou como simbólico. Para além de
estruturas rígidas, fixas e materializadas, o território está composto por discursos
passíveis de uma análise genealógica, segundo o método foucaultiano. Nessa
lógica, consideramos que todas as coisas que compõem o território estão
densamente carregadas de discursos, e é por meio dos discursos que os territórios
são produzidos. Assim, tornar-se impossível considerar um território sem seus
simbolismos.
132
Os discursos estão embutidos de poderes, pois para Foucault (1995) as
palavras e as coisas são reflexos do processo de empoderamento80. Após o nível
discursivo, as materialidades, paulatinamente, vão ganhando formas. É na ação
coletiva e intencional da sociedade que os objetos discursivos do território são
enchertados de matéria e vão se constituindo em formas empoderadas que reiteram
a lógica da dominância, e não do dominante. Isso visibiliza os múltiplos conflitos que
existem entre os e as agentes do e no território.
Não obstante, antes de ações abruptas, como as atividades transformadoras
engendradas
pelos
meios
de
produção
para
apropriação
dos
recursos
“naturalizados”, o espaço é discursivamente arquitetado e o texto circunscrito nessa
produção reflete, em sua escrita, as contradições dos agentes e instituições para
apropriação e seu uso. E como uma tecnologia eficaz, o próprio discurso legitima os
parâmetros de apropriação e de uso, nada escapa de seu poder de normatização,
nem o espaço.
O paradoxo do conceito de território reflete as contradições do espaço, este a
única unidade que agrega inúmeros discursos e unidades discursivas (como os
corpos e objetos) antagônicas que se cooperam e se conflituam, dialeticamente, na
lógica produtiva do espaço. Os discursos, no espaço, possuem outros signos para
além da escrita convencional. As formas espaciais assumem posturas discursivas,
que como código carregado de significado cooperam, propositadamente, para
manutenção ou a subversão das lógicas territoriais.
Esse debate não é algo novo e está intimamente ligado às provocações de
Duncan (1990) na obra The city as text que considera as paisagens como textos.
Duncan (1990) extrapola a visão do espaço como uma unidade materializada e a
considera como um sistema dotado de significados, capaz de depositar e transmitir
informações. Para Duncan a paisagem/texto é um discurso, que viabiliza a
comunicação, as negociatas e os desafios das práticas sociais, destacando as
relações de força que as compõem, que lhes constituem e que também são
contestadas.
80
Vale salientar que o conceito de poder de Foucault não se relaciona, diretamente, com a
concepção de poder de Weber. Nesse sentido, Foucault realiza uma crítica profunda aos conceitos
de poder existentes, argumentando sobre a existência de uma economia sobre o saber do poder. A
economia dos poderes residia na restrição dos efeitos de poder às instituições políticoadministrativas. Foucault, por meio da microfísica e pela discussão de biopoder, percebe, nas
entranhas da vida social, a trama de empoderamento que está diluída no cotidiano dos grupos
sociais.
133
Assim como Duncan (1990), consideramos o território da prostituição Trans
como um produto discursivo que pode ser lido e interpretado a partir da observação,
da circulação, da troca de experiências entre os sujeitos/textos que o produzem e o
compõem. Tais textos ora se encontram, interceptando situações contiguas, ora se
distanciam e se contradizem, ora se justapõem e se sobrepõem uns aos outros,
diversificando as múltiplas dimensões socioespaciais do fenômeno da prostituição
Trans.
3.3- O território da prostituição nas pesquisas sociais
Como já foi mencionado, existem alguns autores que entraram no universo
Trans e realizaram um mapeamento socioantropológico sobre o fenômeno da
prostituição e relacionaram suas questões de pesquisa com o espaço. Aqui,
destacamos as obras de Perlongher (1987), Benedetti (2006) e Pelúcio (2007) que
trataram da prostituição de michês e trans em cidades do centro sul do Brasil.
Nessas obras o espaço é apresentado, de acordo com alguns autores, para
além da concepção de substrato, outros o compreendem como palco de relações
sociais. Perlongher (1987), analisando o negócio do michê em São Paulo, verificou
como as tramas sociais são potencializadas nos espaços especializados, isto é,
pôde compreender a partir das intensas observações realizadas, que as
territorialidades dos michês retroalimentavam sua existência e favoreciam sua
visibilidade. Em sua obra, Perlongher destaca que as áreas centrais correspondem
aos espaços preferenciais para prostituição, visto que o centro da cidade é o lugar
privilegiado do intercâmbio. Para isso cita Castells (1972) apud Perlongher (1987) e
Lefebvre (1978) afirmando que o centro é o ponto de saturação, local da aventura,
do acaso, da extravagância e das fugas. Castells (1972) corrobora com as
associações de Perlongher quando afirma que o centro também possui a
“possibilidade do imprevisto, a opção consumista e a variedade da vida social” (p.
183).
134
Diferente das Trans estudadas por Benedetti (2005) e Pelúcio (2007), os
michês observados por Perlongher possuem um território que antes de tudo é mais
um espaço de circulação do que de fixação. Os michês distribuem-se pelas avenidas
exibindo seus dotes corporais viris sem necessariamente se aglomerarem em
pontos, como fazem as trans analisadas por esta pesquisa. Para Perlongher
À idéia de identidade, que define sujeitos pela representação que eles
próprios fazem da prática sexual que realizam, ou por certo recorte
privilegiado que o observador faz dessa prática, justapomos a idéia de
territorialidade. Daí o “nome” dos agentes num sistema classificatóriorelacional vai exprimir o lugar que ocupam numa rede mais ou menos fluida
de circulação e intercâmbios. Os sujeitos se deslocam intermitentemente
nesses spatiu continuum e são passíveis de permanecer na mesma posição
a respeito dos outros, ou ainda de mudar de posição. Essa nomenclatura
classificatória – que tem alguma coisa de provisória, de mutável – alude a
certa freqüência de circulação: o grau de fixação dos agentes a um “ponto”
(um gênero, uma postura, uma “representação”, mas também a uma
adstrição territorial) será determinante para estabelecer seus lugares no
sistema de trocas. (PERLONGHER, 1987, p. 152- 153)
Além disso, o autor continua a afirmar que essa territorialidade não pode ter
limites geográficos, de gênero, de raça e de classe demasiadamente precisos. Os
territórios dos michês flutuam e se nomadizam, pois o espaço nômade é localizado
mas não delimitado com rigorosidade, acompanhando as tramas sociais que se
reproduzem nas redes de sociabilidade.
Percebemos que a análise espacial engendrada por Perlongher (1987)
considera o espaço como um fator importante para a visibilidade da prostituição
michê paulista, porém o autor atribuiu, com maior intensidade, a força da questão
identitária sem considerar, de forma associada, o papel estratégico do espaço para
manter, ressignificar e reproduzir essas identidades.
Em Porto Alegre-RS Benedetti (2005) realiza um estudo entre travestis e
transexuais que se prostituem no Centro e nas avenidas principais da cidade.
Contagiado pelo debate queer e realizando uma crítica ao preconceito compartilhado
pelos espaços da prostituição, Benedetti amplia a leitura socioafetiva de seu recorte
espacial alcançando uma análise afetiva/espacial sobre o fenômeno da prostituição
de rua. Para esse autor o território é o lócus do aprendizado Trans, nele estão
compartilhadas as tecnologias espaço/gramaticais que sofisticam as transformações
e produções dos gêneros queers. Para ele “o espaço da prostituição é um dos
135
principais lugares sociais de construção e aprendizado do feminino entre as
travestis”, (BENEDETTI, 2006, p.114).
Diferente de Perlongher (1987), Benedetti (2005) não realiza um cruzamento
com teóricos que pensam o território, mas por meio de sua observação de campo
apresenta a espacialidade das travestis de Porto Alegre como componente espacial
positivo para as relações sociais. Visto muitas vezes como lugar de medo, violência,
aglomeração de doenças, etc., os pontos de prostituição para o autor estão
associados a uma rede imbricada de sociabilidades, positivando o uso da rua, como
lugar do encontro e da interação social.
É nos diferentes territórios de batalha que muitas travestis tiveram seu
primeiro contato com outras monas, e que vêem concretizados os seus
desejos de transformação. Normalmente são trazidas por outra travesti que
já freqüenta o lugar e conhece as demais, o que lhes garante uma espécie
de “proteção” na quadra. (BENEDETTI, 2005, p.114).
Para Benedetti, é no território da prostituição que as monas aprendem
métodos e técnicas de transformação do corpo, potencializando as formas mais
valorizadas, disseminando os segredos das montagens, técnicas de maquiagem,
formas de sedução, além da linguagem do bate-bate, também conhecido como
ioruba ou bajubá. E continua
Da mesma forma, é na quadra de batalha que passam a conhecer as
formas corretas de andar no salto alto, de mostrar movimentos leves e
suaves, de olhar de determinada maneira, de mover o cabelo ou andar à
moda travesti. É na convivência nos territórios de prostituição que as
travestis incorporam os valores e formas do feminino, tomam conhecimento
dos truques e técnicas do cotidiano da prostituição, conformam gostos e
preferências (especialmente os sexuais) e muitas vezes ganham ou adotam
um nome feminino. Este é um dos importantes espaços onde as travestis
constroem-se corporal, subjetiva e socialmente. É onde, enfim, aprendem o
habitus travesti. (BENEDETTI, 2004, p.03).
A leitura espacial de Benedetti apresenta o território como o nó central do
habitus travesti. O autor percebe a importância do espaço para a manutenção das
identidades que nele se reproduzem e, para além disso, destrincha a íntima relação
entre sujeitos e espaço, delineando algumas estratégias utilizadas pelas Trans para
se manterem e sobreviverem nos centros urbanos.
Em outra perspectiva, com características mais integradoras, encontram-se
os estudos de Pelúcio realizados em São Miguel Paulista-SP. A autora realiza uma
136
incursão noturna, compreendendo as lógicas funcionais de mercado nesse período
do dia e como o centro possibilita a existência da prostituição à noite. Para tanto,
apoia-se nas pesquisas de Perlongher (1987) e Benedetti (2005). Inicialmente,
Pelúcio (2007, p. 53) nos chama atenção de que “estrategicamente, as travestis se
posicionam numa esquina onde há um semáforo bastante demorado, assim é
possível negociar programas apenas com olhares e gestos, além de ficarem sob a
mira dos trabalhadores que lotam os ônibus”, demarcando a importância de espaços
estratégicos para visibilidade trans. Durante a pesquisa a autora compreendeu que
os equipamentos comerciais que funcionam à noite estão intimamente ligados com a
existência da prostituição da rua.
Não percebi, naquele momento, que este pensamento sinalizava que eu já
começara a mapear os pontos de prostituição travesti, hierarquizando-os a
partir de categorias como “capital corporal”, tipo de clientela, aparelhos
urbanos disponíveis na região, espaços de lazer, motéis, drive-ins, bares.
Todos estes, como espero mostrar, são elementos importantes para se
entender a travestilidade, a rede que ela compõe, seus nós e as categorias
classificatórias êmicas, que se associam também com a territorialidade.
(PELÚCIO, 2007, p. 53)
Ao mesmo tempo em que interliga a situação espacial dos equipamentos
urbanos do entorno do território da prostituição de travestis e michês, Pelúcio
compreende a territorialidade por eles demarcada simbolicamente como uma
produção no nível discursivo, isto é, apresenta-se não como um espaço físico, mas
enquanto espaço do código que se circunscreve em um determinado lugar e lhe dá
sentido muito menos descritivo do que prescritivo.
Aparentemente, a autora espacializa o território da prostituição para o campo
simbólico, apesar de apresentar o poder das relações que co-existem no e para o
espaço, percorrendo o mesmo caminho teórico apresentado por Perlongher (1987),
amarrando suas questões de pesquisa ao conceito de identidade.
Como se vê, os territórios e identidades se confundem pela significação que
os sujeitos imprimem nos corpos: formas, músculos, saltos, olhares, gestos,
práticas eróticas anunciadas e insinuadas nessa marcação. (PELÚCIO,
2007, p. 61)
Porém, o posicionamento de Pelúcio frente à característica física do território
está ligado à tradição do conceito disseminado pelas ciências políticas e pela
Geografia Tradicional. Para ela não é a condição material que promove a
137
permanência e a produção das territorialidades da prostituição e sim as decorrentes
relações de poder que fazem desse espaço um campo de forças, corroborando com
a perspectiva de Souza (1995), caracterizando suas proposições na perspectiva
integradora de análise dos territórios da prostituição pelos cientistas sociais.
Diante desse breve panorama, esboçamos algumas estratégias que
configuram a teia de relações de poder, ou o campo de forças que se mantêm e se
revigora pelas ações territoriais Trans em Feira de Santana-BA.
3.4- Formação e apropriação do território do sexo em Feira de Santana: as
mobilidades dos territórios.
Os territórios são produções sociais que evidencia a dialética existente entre
seus agentes formadores e reorganizadores. Como produção social, os territórios do
sexo, do prazer e da erotização, espalhados em sua grande maioria nas áreas
centrais das cidades, ou ainda, em áreas comercias de grande fluxo populacional,
estão carregados de histórias que explicam a produção, intenção e processo de sua
formação e as inter-relações estabelecidas com as outras esferas do cotidiano
socioespacial.
Localizado no coração da Cidade Princesa, o território da prostituição se
expande e se retrai ao longo da Avenida Getúlio Vargas em cruzamento com as
Avenidas J. J Seabra, Presidente Dutra, Marechal Deodoro e Senhor dos Passos, se
revezando entre ruas estreitas e pouco movimentadas durante a noite no Centro. No
Centro, as ruas, durante a noite, são espetacularizadas e o rarefeito movimento
permite que sujeitos sociais execrados da vida normativa com base nos parâmetros
heterossexuais ganhem o espaço público. Nas movimentadas avenidas centrais
onde diariamente passam centenas de veículos e pedestres deslocando-se durante
a
exaustão
das
atividades
comerciais
diurnas,
marcam
outra
lógica
de
comercialização nas mesmas ruas onde o trottoir é estabelecido.
Durante a noite, e avançando na madrugada, encontramos no Centro da
cidade inúmeros estabelecimentos formais em funcionamento, como farmácias,
138
lanchonetes, hotéis, postos de gasolina, pontos de táxis dividindo espaço com os
trabalhadores informais, como os moto-táxi não credenciados e os vendedores de
lanches da Praça de Alimentação. Junto a esses sujeitos sociais estão as travestis,
transexuais e transformistas, aqui denominadas de princesas do sertão.
O território da prostituição é composto pelas princesas do sertão que estão
cotidianamente dando close81 nas avenidas centrais e movimentadas do coração da
cidade e estas compõem o grupo insiders da pesquisa. Por sua vez os outsiders
pertencem às outras espacialidades do cotidiano que complementam, diversificam e
tensionam o território, como por exemplo, os clientes em potencial, prostitutas
mulheres, polícia, religiosos e moradores do entorno.
A potencialidade de ação dos “outros” do território da prostituição é
minimizada com o desarticular da logística das relações mercadológicas das
atividades comerciais do dia. Ao cair da noite o movimento dos transeuntes
paulatinamente vai diminuindo e com o avançar do tempo, observamos a
permanência
dos
interessados
na
noite boêmia
concentrados
em bares,
lanchonetes, instaurando outra lógica espacial delimitada por outro campo de forças
que flutua e se estabelece com força de persuasão durante a noite. Essa fluidez do
poder caracteriza os territórios da prostituição como
“flutuantes” ou “móveis”. Os limites tendem a ser instáveis, com as áreas de
influência deslizando por sobre o espaço concreto das ruas, becos e praças;
a criação de identidade territorial é apenas relativa, digamos, mais
propriamente funcional que afetiva. (SOUZA, 1995, p. 88).
A construção do território da prostituição Trans
O território da prostituição feirense, ao longo de quarenta anos, flutuou em
vários locais do centro da cidade desarticulando-se pela influência das mudanças do
tráfego dos veículos devido à intensificação dos fluxos e ao aumento expressivo dos
veículos particulares trafegando na cidade, como também pelos corriqueiros
81
Significa fazer poses, demonstrando sensualidade, marcando presença num lugar. Ter
determinada postura para ser notada.
139
conflitos estabelecidos com os moradores “decentes” de famílias tradicionais de
Feira de Santana associados com a ação da Polícia Militar.
Por meio da coleta de informações primárias, resultante da aplicação de
entrevistas semiestruturadas, compreendemos, a partir dos relatos, a articulação
desse campo de forças
[...] começou na década de setenta. Tinha muitas amigas minha, eu também
naquela fase... novinha, conheci muitas que se vestiam de mulher, por sinal,
tinha Antonio Silva, que fazia shows na praça, tinha Gloria, tinha Tina, todas
elas se reuniam ali na praça dos Remédio, na praça Fróes da Mota, depois
da praça Fróes da Mota, subimos pra praça Bernardino Bahia, que lá era
mesmo a liberdade e todas elas tinham o seu ponto, e lá elas saiam com os
clientes, ganhavam o dinheiro e não existia a máfia que existe hoje,
ganhava na decência, porque os caras mesmo pagava, parava os carros,
levava. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010).
A primeira concentração do território da prostituição Trans de Feira de
Santana se estabeleceu por volta da década de 70 do século XX localizando-se nas
praças do centro da cidade. A Praça Coronel Fróes da Mota possuía uma enorme
importância cultural, histórica e política por concentrar arquiteturas históricas da
cidade do século XIX, além de ser um espaço restrito e destinado às famílias nobres
de Feira, conforme pode ser observado na figura 09.
Figura 09
Casarão Fróes da Mota- década de 70
FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da Universidade Estadual de Feira de
82
Santana - UEFS
82
As imagens históricas que estão disponibilizadas nessa dissertação não possuem datação correta.
Tais registros necessitam ser analisados para atestar o tempo histórico adequado. As imagens foram
selecionadas e escolhidas com auxílio de moradores antigos que sinalizaram, por aproximação, a
década da fotografia.
140
Próximo ao início da Avenida Senhor dos Passos, os equipamentos urbanos
da Praça Coronel Fróes da Mota, na década de setenta, já apresentavam intensos
sinais de desgaste arquitetônico. Com a fluidez e a importância regional que Feira
de Santana possuía pelo comércio forte e pujante muitas modificações nas rotas de
circulação e aberturas de novas avenidas contribuíram para o isolamento e
decadência da Praça Fróes da Mota.
De acordo com Oliveira (2004) a Villa Fróes da Mota83 era o equipamento
mais suntuoso da Praça. Trata-se de um enorme casarão com arquitetura eclética84
construída no final do século XIX por Agostinho Fróes da Mota, um importante
aristocrático vendedor de fumo e criador de gado da região. Com o crescimento da
feira de gado, o palacete que se encontrava distante do núcleo urbano, atraiu outros
moradores e comerciários que densificaram as atividades na Praça Fróes da Mota.
Figura 10
Casarão Fróes da Mota: Propriedade da Fundação Senhor dos Passos, ano de 2010
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
83
“A fachada é composta por elementos variados em auto relevo, como dragões, festões e
ramalhetes de flores, as letras EFM (Eduardo Fróes da Motta) que também aparecem nos detalhes
das cortinas e na decoração interna das paredes; as colunas da varanda e as esculturas da entrada
principal são em estilo neoclássico. Há, também, na varanda, painéis que lembram paisagens
europeias; a sala de estar apresenta contornos em estilo rococó; a sala de jantar, um estilo que se
remete à renascença francesa; a capela possui estilo neogótico; a decoração das paredes da sala de
música contém imagens de musicistas famosos como Mozzart, Carlos Gomes, Chopin, Bettoven,
Gound e outros.” (OLIVIERA, 2004, p 3-4).
84
De acordo com Oliveira (2004) trata-se do modelo arquitetônico que se consolidou na Bahia por
volta de 1912 com a chegada de técnicos italianos no governo de J.J. Seabra para mudar a
fisionomia plástica de Salvador. Tal manifestação arquitetônica foi disseminada em cidades do interior
da Bahia, como a própria Feira de Santana, que já possuía destaque econômico e comercial para a
balança econômica do estado.
141
Com as mudanças no desenho urbano de Feira de Santana, visualizadas na
abertura das avenidas Barão do Rio Branco, que conectava o centro da cidade com
o entroncamento rodoviário, a Praça foi perdendo sua importância. O comércio
voltou-se para Avenida Senhor dos Passos que representava o mais novo ponto
comercial à altura do título de princesa para Feira de Santana. A Rua Sales
Barbosa, que se conecta à Praça Fróes da Mota, foi fechada, tornando-se uma
grande calçada em que se concentram lojas de materiais para estofados e de
vestuário, o que desvalorizou a importância histórico-cultural da Praça, e provocou,
no seu entorno, a construção aleatória de inúmeras oficinas e casas de peças
automotivas usadas. As mudanças infra estruturais da rua Sales Barbosa podem ser
observadas na figura 11 que compara uma imagem retirada anterior a década de 70
e outra no ano de 2010.
Figura 11
Rua Sales Barbosa: alterações infra estruturais pós década de 70.
FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da Universidade Estadual de Feira
de Santana - UEFS
Como a Praça estava praticamente abraçada pelo comércio, as relações
sociais
estabelecidas
eram
estritamente
diurnas,
favorecendo
sua
alta
movimentação durante a noite por um grupo, inicialmente gay, que posteriormente
começou a demonstrar o processo de montagem que até então estava restrito a
ambientes fechados, nas ruas públicas da cidade, gerando tensionamentos com as
142
famílias que ainda residiam na praça. A praça estava povoada por algumas poucas
Trans e
[...] agora tinha os gay como eu, como Donna, como a Diana, como Lady, a
Madonna, uma conhecida como Madonna, que era a João Marcos,
entendeu? Tinha Billie, que era Billie Yi. Essas daí todas eram gayzinho.
(Entrevista realizada com Brigitte Bardot em 14.01.2010).
A presença travestida de sujeitos de sexualidades divergentes, reluzentes em
roupas lantejouladas, com maquiagem exagerada e com cortes estilísticos sensuais
provocou intensos e cotidianos conflitos com as famílias tradicionalistas da Praça,
como fica evidente na fala de Brigitte quando cita que “[...] na Praça Fróes da Mota
tiveram muito pessoal de família que se sentiram encomodados”. (Entrevista
realizada no dia 14.01.2010).
Acessada pela Rua Sales Barbosa encontrava-se a zona de amortecimento
do território, a Praça Doutor Remédios Monteiro, popularmente conhecida como a
Praça dos Remédios que encontrava-se com a arquiterura em situação de abandono
como pode ser averiguado na figura 12 que compara uma imagem da década de 70
com a atualidade. Quando a polícia era acionada pelos moradores as Trans e gays
desapareciam da praça por um período ou então se concentravam na estreita praça
nos dias que as orações não eram realizadas à noite.
Figura 12
Praça dos Remédios: Do abandono à recuperação
FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da Universidade Estadual de Feira de
Santana – UEFS/ Oliveira, M. F de, 2010.
143
Situada na Praça dos Remédios, a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios é
o prédio religioso mais antigo da cidade, finalizado em 1707. Sua única torre é
recoberta por porcelanas procedentes de Macau e seu interior indica a suntuosidade
dos templos católicos com traços rococós. A Praça dos Remédios também
apresentava sinais de desvalorização e seu entorno, na década de setenta do
século XX, já era predominantemente comercial. Algumas poucas famílias
encontravam-se residindo de forma intercalada com as lojas na Rua Sales Barbosa,
que por rede de solidariedade se manifestaram para o afastamento da “orgia”
provocada pela presença das Trans e gays circulando nas ruas circunvizinhas.
De acordo com Brigitte, nas mediações da Igreja dos Remédios existiam
alguns bares e casas noturnas que agitavam o centro com a vida boêmia. As
noitadas estendiam-se pela madrugada e em algumas vezes alcançavam as
primeiras horas do dia seguinte. Essas casas noturnas de alta rotatividade
influenciavam na manutenção da circulação de gays e Trans entre as Praças Fróes
da Mota e dos Remédios, mesmo com os constantes conflitos públicos
estabelecidos pela prostituição nas vias públicas da cidade.
Ainda conectando as Praças do Centro da cidade a Rua Sales Barbosa
desembocava na Praça Bernardino Bahia onde os equipamentos urbanos já eram
predominantemente comerciais. Voltada para a Avenida Senhor dos Passos, a
Praça Bernardino Bahia se constituía na maior vitrine de exposição da prostituição
Trans de rua em Feira de Santana. A maior densidade das atividades comerciais da
Cidade Princesa situavam-se na Avenida Senhor dos Passos e nessa avenida os
fluxos de veículos e de transeuntes eram intensos.
Como não havia residências na Praça, a Bernardino Bahia foi sendo
apropriada como o território da prostituição e do sexo85, visto que recebia dois
sentidos de fluxos de veículos, o primeiro oriundo da Avenida Marechal Deodoro
passando pela Rua Sales Barbosa em direção à Praça Fróes da Mota e o outro
sentido correspondia ao fluxo da ampliada e pujante Avenida Senhor dos Passos.
Funcionando como um local de contorno e retorno de veículos, a Praça Bernardino
Bahia oferecia condições infraestruturais favoráveis para a solidificação do território,
ver figura 13. Situava-se numa avenida movimentada e menos propensa a ataques
85
Cabe especificar que nesse momento histórico, muitos gays circulavam por essa praça em busca
de sexo. Essas ações não são classificadas como prostituição. Por isso temos, em simultaneidade,
os territórios do sexo e da prostituição.
144
violentos de marginais e homofóbicos que circulavam durante as noites, que temiam
a coerção policial concentrada no meio da Avenida Getúlio Vargas, simétrica à
esquina da Igreja Senhor dos Passos, imbuindo o sentimento de proteção para
quem circulava nas suas mediações e o sistema de tráfego de contorno e retorno da
Praça favorecia o fluxo circular de veículos e dinamizava a propaganda do corpo e
do desejo.
Figura 13
Praça Bernardino Bahia: década de 70 e 2010.
FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da Universidade Estadual de Feira de
Santana – UEFS/ Oliveira, M. F de, 2010.
Conforme as declarações coletadas a Praça Bernardino Bahia
[...] era comércio, não tinha residência, era comércio! Agora circulavam
muito, tinha por sinal um clube que era Euterpe Feirense, que ficava na Rua
Conselheiro Franco, que dali mesmo os carros subia para praça que tinha
excesso, e o movimento ali era grande, e tinha os pontos, as esquinas.
Cada esquina ficava gay, travesti, transformista, tudo lá [...]. (Entrevista
realizada com Brigitte em 14.01.2010).
[...] Ah, porque lá a liberação era total, lá elas ficavam nua, elas faziam
desfile, lá mesmo elas faziam com os bofe, entendeu? [...]. (Entrevista
realizada com Brigitte em 14.01.2010).
Próximo à Praça Bernardino Bahia em confluência com a Rua Sales Barbosa
situa-se o Mercado de Artes, uma arquitetura eclética construída no ano 1914 pelo
coronel Bernardino da Silva Bahia que abrigou por décadas o comércio de secos e
molhados. Constituiu-se como principal ponto de comercialização da grande feira de
145
gado que acontecia todos os sábados e segundas-feiras ao longo da Avenida
Getúlio Vargas.
Segundo Oliveira (2009) na década de 70 a prefeitura de Feira de Santana
criou um projeto sanitarista visando limpar as ruas e avenidas da cidade que
estavam superlotadas de ambulantes. Nesse projeto estava previsto a construção da
Central de Abastecimento que culminou no fechamento do Mercado Municipal, atual
Mercado de Artes, por volta de 1976. A desarticulação dos ambulantes nas calçadas
das avenidas e ruas centrais e o fechamento do Mercado favoreceram a criação de
um ponto fétido e insalubre onde as Trans e os gays da Bernardino Bahia poderiam
manter encontros sexuais em vias públicas, ver figura 14.
Figura 14
Mercado Municipal de Artes e Antiga Rua do Meio
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
O Mercado de Artes é cercado por ruelas estreitas de pouca movimentação,
ocupadas densamente durante o dia pelos ambulantes que persistiam à nova ordem
sanitarista determinada pela gestão pública. As barracas dos fotógrafos e alguns
engraxates se espalhavam por estas vielas e suas barracas e assentos serviam
como barreiras que escondiam o ato sexual à noite. Os bancos permitiam a
concentração de pessoas nas ruelas escuras e pouco movimentadas entre a Praça
Bernardino Bahia e o Mercado de Artes.
Nesse sentido, o complexo de Praças86 do centro da cidade se constituiu na
década de 70 até meados de 80 como o circuito da prostituição Trans e pontos de
86
A saber, Praça Fróes da Mota, Praça dos Remédios e Praça Bernardino Bahia, todas conectadas
pela Rua Sales Barbosa.
146
encontro gays, compondo o território da prostituição e do sexo, ver mapa 08. A
infraestrutura boêmia do entorno favorecia sua existência e permanência, visto que
esses condicionantes estavam atrelados à ruinização das arquiteturas públicas
presentes nesses espaços. Esses fatores contribuíam, por meio do discurso da
violência e medo da cidade, para pouca circulação durante a noite e a consequente
seleção de transeuntes no centro da cidade nesse horário.
147
148
Das Praças para as Avenidas: A tomada da Getúlio Vargas e Senhor dos Passos.
Com a ampliação das avenidas centrais a partir das reformas urbanas
modernistas que marcaram as transformações espaciais em Feira de Santana como
a implantação do Centro Industrial Subaé87 na década de 70 do século XX, a
prostituição Trans migrou mais uma vez, avançando por sobre a malha urbana da
cidade, expandindo-se para as vias de intensa circulação de veículos.
De acordo com Oliveira (2005, 2009), as Avenidas Getúlio Vargas e Senhor
dos Passos foram ampliadas, favorecendo maior fluidez de pessoas e mercadorias
no centro comercial de Feira de Santana, que estava atraindo, graças às
intervenções estatais de desenvolvimento industrial na Bahia, inúmeras indústrias e
um contingente populacional. Para Freitas (1998) isso gerou profundos impactos na
urbanização da cidade, vislumbrado no inchaço habitacional e nas péssimas
condições infraestruturais dos bairros operários.
Em Feira de Santana, a industrialização foi importante fator de crescimento
nas três últimas décadas (1970- 1990), contribuindo evidentemente para a
evolução urbana, sendo possível concluir que se constitui também como
principal elemento impulsionador da expansão. Não se pode negar a
importância do CIS para o processo de industrialização da cidade e a
capacidade que este dispõe de exercer atração populacional.
(FREITAS,1998, p.163-4).
A transição entre as décadas de 70 e 80 do século XX marcou significativas
mudanças
no
cotidiano
da
cidade,
que
impulsionada
pelas
políticas
desenvolvimentistas nacionais e estaduais freneticizou a vida urbana, rebatendo
diretamente na boemia feirense e na ampliação da clientela para a prostituição
Trans. A sensação de modernidade88 intensificou a abertura de casas noturnas na
Avenida Getúlio Vargas, o que atraiu a prática do trottoir que se alongou por ruas e
87
Freitas (1998) estudou o processo de urbanização de Feira de Santana demonstrando a influência
da implantação do Centro Industrial Subaé-CIS, verificando a pressão arquitetônica provocada pela
atração desplanejada de inúmeros migrantes das cidades circunvizinhas e até mesmo de outras
regiões do Brasil. Freitas (1998, p.166) afirma que “a cidade cresce, porém a qualidade da infraestrutura oferecida não é diretamente proporcional ao crescimento urbano”. Para a autora o principal
objetivo do CIS era estimular a expansão de Feira de Santana como pólo secundário do Estado da
Bahia, para complementar o eixo industrial de Salvador, a capital do Estado.
88
O termo modernidade está vinculado às políticas desenvolvimentistas empreitadas pelo presidente
Juscelino Kubitschek e pelas políticas locacionais empreitadas pela aristocracia feirense, como
discute Monteiro (2006).
149
vielas perpendiculares à Avenida. A figura 15 demonstra a movimentação diária em
Feira de Santana na década de 80 na Avenida Senhor dos Passos.
Figura 15
Sistema de transportes coletivos de Feira de Santana na década de 80.
FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS.
Bares, bingos, lanchonetes e boates intercalavam-se com casas de materiais
de construção ou de vestuários e farmácias que estavam situadas nas bordas da
Avenida, funcionando como muro urbano de proteção às mansões das famílias
tradicionais que se escondiam e se protegiam da popularização do espaço público
problematizados no movimento boêmio noturno que restringia a vida pública das
residências ainda centralizadas, ver figura 16.
[...] Olhe, eu sei que na década de 80, os primeiros travesti a fazer ponto na
cidade depois da década de 70, foi Bonnie, que hoje em dia é falecida, ela
começou fazendo ali na Avenida Getúlio Vargas, que por sinal, ali onde
existe a praça de alimentação, entendeu? Eu tinha um ateliê de costura ali
perto, e por sinal eu batizei aquela praça, como a Praça da Babilônia, que
hoje em dia é Praça do Relógio. Ali elas se vestiam de mulher, iam prá lá,
dali elas desciam a Getúlio Vargas até o Palace [Feira Palace Hotel], aí foi
Bonnie Tyler, foi Antonio, que é a Kylie, da Kylie teve mais duas de Jequié,
que foi a Tina, e teve outras que agora eu não tô conseguino lembrar o
nome. Entendeu? Aí, daí, foi que surgiu essas, ai vem Marilyn, também
nesse período também, vem Marilyn, ai daí dessas daí, teve as outras que
já passaram a ter acesso [...] (Entrevista realizada com Brigitte em
14.01.2010).
150
[...] lembro [...] de uma praça, que hoje é a praça de alimentação, que antes
se chamava Babilônia, se reuniam ali na Babilônia e na [Avenida]
Presidente Dutra, eram os dois locais, que eu lembro. (Entrevista realizada
com Marilyn em 13.01.2010).
Figura 16
A feira na Feira de Santana meados da década de 80
FONTE: Acervo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvão da Universidade Estadual de Feira de
Santana – UEFS.
Paradoxalmente, as mesmas famílias que se trancavam e restringiam seu
contanto com o novo urbano feirense, favoreciam a prática do trottoir ao longo das
avenidas no horário em que a fiscalização moralista repousava e permitia as
transgressões da monogamia e da heterossexualidade, demonstrando os mesmos
mecanismos elucidados por Foucault (1987) pois
[...] no início a sociedade feirense toda frequentava. Todo mundo ia ali, os
homens se encontravam, os políticos, o pessoal da polícia, do fórum,
qualquer lugar daqui dessa cidade, todos frequentavam. Não digo todos de
uma forma apoteótica, todos ao pé da letra, pela frequência, que era muito
grande, mas não estou dizendo que toda a população de Feira de Santana
frequentava, tinha aquela procura bem maior antigamente. Quando eu
comecei, não sei se era a minha presença, não sei se era por mim, por que
saíam comigo, mas que iam lá procurar iam, não sei se saiam com as
outras também, não posso lhe dizer, mas comigo saiam. (Entrevista
realizada com Marilyn Monroe em 13.01.2010).
Para Foucault (1987), a sociedade regulamenta os métodos de punição dos
sujeitos criminosos da sociedade sem requerer, paradoxalmente, sua existência. No
advento da modernização da sociedade com a disseminação e ampliação das
atividades industriais e comerciais, outros métodos foram pensados para manter
certa ordem nas relações sociais. Nesse contexto, nasceram algumas regras lógicas
151
para o funcionamento dos sistemas repressivos e punitivos, tal como a da
idealidade, dos efeitos laterais, da certeza perfeita, da verdade comum, da
especificação ideal, da individualização das penas.
Diante da sofisticada rede de vigilância desenvolvida, Foucault (1987)
especifica que a mesma sociedade permitiu a minimização das arbitrariedades, a
desvantagem social e pessoal do crime, a modificação benéfica do indivíduo pela
pena, divulgação da aplicação da pena e a perfeita relação entre a eficiência da lei e
o custo de sua elaboração.
Isso significa dizer que as Trans se constituíam em sujeitos criminosos por
embaralhar e forjar um gênero mentiroso que deturpa a matriz heterossexual e além
disso, desarticular as redes de poderes existentes nas normas e símbolos
compartilhados pela sociedade feirense no que tange aos valores morais,
disseminados na criação das famílias descentes.
Porém, Foucault (1987) ainda continua afirmando que as instituições
normatizadoras permitem a existência das transgressões e transgressores para que
a disciplina se efetive. Observando o cerceamento do delito, os sujeitos internalizam
de forma sofisticada, e muitas vezes abrupta, as normas legitimadas pela sociedade.
Ao mesmo tempo em que o trottoir deveria sair das ruas, por ser uma prática mal
vista pelas famílias de bem, os filhos e maridos das mulheres respeitadas se diluíam
em prazeres entre as pernas e coxas ou por sobre o falo das Trans, que ocultavam
essas práticas contraditórias acordados pelo pacto do silêncio89, que é pago, ao
mesmo tempo perigoso e dissimulado.
Essa afirmativa justifica a inexistência do território da prostituição Trans
durante o dia. No turno matutino as moças e mulheres de famílias, juntamente com
idosos e crianças circulam livremente pelas ruas, praças e avenidas da cidade. As
disciplinas normatizadoras, nesse período, possuíam mais força e se processavam
mais velozmente. Assim, a rua só deveria ser vivida pelas Trans durante a noite,
para não constranger e não provocar conflitos presenciais com as unidades
familiares que acionam os aparatos de vigilância, solicitando medidas de intervenção
ao Estado e à polícia.
89
Railda Matos (2000), estudando a prostituição feminina em Feira de Santana em sua dissertação
de mestrado nas Ciências Sociais, confirma essa estratégia de negação-permissão quando afirma a
existência de um “jogo de faz de contas” no que se refere à proximidade e às proibições em portarias
municipais sobre o funcionamento de cabarés na cidade.
152
Privadas da vida urbana noturna e visando não ter contato com as Trans
feirenses, muitas famílias tradicionais esquivavam-se de sair e usufruir do espaço
público no centro da cidade. As ruas do bairro da Kalilândia e das ruas transversais
às Avenidas Senhor dos Passos e Getúlio Vargas possuíam movimento favorável, o
que permitia a prática sexual, a pegação90 e os escândalos performáticos91 feitos
pelas princesas do sertão, ver mapa 09.
O convívio próximo à Igreja Senhor dos Passos e a circulação na Babilônia,
atual Praça de Alimentação, tensionavam o território, e mais uma vez
[...] o pessoal botaram até pra correr, a polícia! Porque elas tavam fazendo
por de mais. Aí, elas saíram da Praça [...], e vieram pra Senhor dos Passos.
Quando elas vieram pra Senhor dos Passos, vieram muitas de silicone.
Entendeu? [As] daqui de Feira, que foi pra Espanha, pra Itália, como a
Grace, como... outras que não vem na cabeça agora o nome. Entendeu?
Que eu tô esquecido, aí foi onde elas fizeram a Praça e ali na Senhor dos
Passos[...]. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010).
Na década de 90, os conflitos com os moradores, a igreja e a polícia militar se
perduraram, porém as Trans persistiam em circular pelas esquinas e ruas do centro,
cada uma localizada em seus cotidianos pontos, onde poderiam ser vistas,
desejadas e cooptadas para o programa. Algumas Trans perceberam a importante
localização viária da Avenida Presidente Dutra somada com a infraestrutura
hoteleira para os viajantes que pernoitavam na cidade e expandiram o trottoir para
as mediações da rodoviária, esquivando-se dos habituais embates com a polícia
militar. Alguns dos conflitos com a polícia militar baiana remontam o uso inadequado
do poder de vigilância. Alguns militares que não aceitavam a prostituição de rua
realizavam sucessivas blitzs para intimidar e afastar as Trans do centro.
Logo no começo, que eu comecei, há uns três anos que eu já tava lá na
pista, aí apareceu uns policial perturbando a gente, querendo tirar da
Senhor dos Passos, que a gente ficava lá na Senhor dos Passos, [e ele]
querendo tirar a gente, agredia a gente e tudo. Porque a gente foi resolver,
todo mundo reuniu e foi no fórum. Aí ele ia perder a farda, essas coisas, a
gente falou que não precisava, que ele podia transferir pra outro lugar, aí
transferiu ele pra Salvador, aí parou, eles não perturbaram mais. (Entrevista
realizada com Sophia em 14.01.2010).
90
Gíria usual no meio homossexual que se refere à troca de carícias entre os sujeitos de forma
intensa e erótica, não se constituindo no ato sexual, mas seu pré-anúncio.
91
Termo retirado da entrevista de Brigitte Bardot no dia 14.01.2010 quando ela citava que na praça
“as bichas, ficavam loucas, tiravam as roupas, ficavam nua, era um escândalo para chamar atenção
dos cliente”. Nesse sentido, o escândalo performático se refere a uma estratégia de conquista e
persuasão dos clientes, como também nas brincadeiras realizadas entre elas no trottoir.
153
154
Por outro lado, algumas Trans, para manter seu status e beleza, não
conseguindo angariar por meio do programa lucros favoráveis para a compra de
roupas, maquiagens e calçados, roubavam ou ameaçavam92 quebrar o pacto do
silêncio pondo em risco o desejo transgressor dos clientes, obrigando-os a pagarem
a mais do que fora combinado. Por conta disso
a polícia botaram [elas] pra correr! Porque elas tavam fazendo por de mais
[...] dali da Prefeitura, até cá na Casa de Saúde Santana. E o assédio era
tão grande, que acontecia muitas coisas que enquanto umas ia pra
trabalhar normal, outras ia pra aprontar, aí foi quando a polícia tomou
excesso e começou botando elas pra correr, aí quando, quando, botou elas
pra correr, elas voltaram de volta pra Presidente Dutra, e polícia deixou elas
hoje em dia em paz. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010).
Vias do sucesso, da exposição e da ausência militar: a Avenida Presidente Dutra
Com o deslocamento das Trans para a Avenida Presidente Dutra, em meados
da década de 90 do século XX, a Praça Bernardino Bahia permaneceu como ponto
de encontro afetivo e sexual de gays. Os gays, segundo as informantes dessa
pesquisa, eram menos discriminados que as Trans e circulavam com mais liberdade
pelo centro da cidade.
Outros pontos de encontro para a realização do ato sexual foram
estabelecidos no coração feirense. As barracas dos camelôs situadas na Rua Sales
Barbosa, sem funcionalidade comercial à noite, camuflavam as práticas sexuais que
esporadicamente eram interrompidas pelos seguranças das lojas. A ladeira da
Euterpe Feirense, localizada na Rua Recife, também permitia o mesmo esquema.
Nas mediações do Centro de Abastecimento a abandonada Praça Dois de Julho,
mais conhecida como Praça do Tropeiro, dotada de terrenos baldios, favorecia a
circulação e o ato sexual que era estrategicamente combinado nas ruas
movimentadas e concretizado em área de pouco movimento.
92
As ameaças além de verbais estavam acompanhadas por gestos masculinos como imposição de
voz, alteração dos músculos buscando intimidar o cliente que resistisse pagar a “multa”. Para além
disso, elas usavam armas brancas para consolidar o roubo ou a chantagem, a saber: giletes,
navalhas, pequenas facas, tesouras e estiletes.
155
Para escapar da pressão exercida pela polícia e pelas constantes denúncias
das famílias que visitavam o centro à noite, as Trans migraram para a Avenida
Presidente Dutra, alongando-se por toda Avenida e ruas perpendiculares. A Avenida
possuía uma série de atrativos espaciais que favoreciam a prática do trottoir, como
por exemplo, a sua amplitude e largura, a concentração de hotéis e bares de alta
rotatividade nas suas cercanias, o predomínio de casas comerciais e oficinas
automotivas, a inexistência de postos de fiscalização da Polícia Militar e a ausência
da circulação dos moradores do entorno.
As Trans se concentravam em apenas um dos lados da Avenida no sentido a
Salvador, priorizando os carros que circulavam em direção a BR – 324. Mas era na
frente e dos lados pouco iluminados da Tyresolis, que as monas se aglomeravam
para iniciar o trottoir. A Tyresolis é uma loja de peças para automóveis e suas
paredes encontram-se sujas de graxa, óleo e tinta de carros. De fronte virada para
Avenida, dotada de passeio largo, a Tyresolis consolidou-se como a mais nova
vitrine do trottoir, ver figura 17.
Figura 17
Avenida Presidente Dutra
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
Os passeios largos da Avenida serviam como áreas favoráveis ao desfile das
princesas, vislumbrado na produção detalhada de suas roupas, cabelos e
maquiagem. Espalhadas pelas esquinas ao longo da Presidente Dutra, as monas
davam close sem encontrar os cotidianos conflitos vividos na Avenida Senhor dos
Passos.
156
Com roupas sensuais atraindo os transeuntes, potencializadas pelas
performances milimetricamente definidas em gestos precisos e erotizados, as Trans
conquistam os motoristas de carros e caminhões, motoqueiros, ciclistas e pedestres,
atraindo-os para as ruas transversais da Avenida, onde o acerto do programa
poderia se realizar sem uma abordagem inesperada por parte dos moradores e da
polícia.
Contudo, a Presidente Dutra não se constituía num espaço de tranqüilidade.
Segundo os relatos eram comuns os ataques homofóbicos que colocavam as monas
para correr e se esconder em casarões antigos das ruas transversais à Avenida.
poucas que me contam, como Marilyn mesmo que me conta algumas
coisinhas assim por alto, Alicia também, Cindy que tá na Europa. Essas
mais velhas que trabalhava na Presidente Dutra antigamente, disse que era
muito babado, e outra Marilyn também que já até faleceu também, me
falava também que era muita guerra também, que os homens jogava ovo,
os homem dava tiro, os homens, essas coisas, perturbavam também. Não
era igual a hoje, hoje tá até melhorzinho. (Entrevista realizada com Sophia
em 14.01.2010).
Na atualidade, a concentração das Trans na Avenida Presidente Dutra
diminuiu em função do desaparecimento dos clientes, constantes vítimas de
ameaças e assaltos, ver mapa 10. O exercício do trottoir exige das Trans uma norma
territorial, que é mais funcional que afetiva. Na pista, o trabalho decente e higiênico,
segundo as informantes, amplia a procura e aumenta a oferta dos serviços sociais,
além de agregar elementos simbólicos, ligados a estética, que positivizam a prática
do trottoir. Quando o contrário se estabelece, os clientes diminuem a frequência,
implicando na desarticulação dos fluxos e ampliação dos rótulos de preconceito. De
acordo com as informantes, uma Trans tem que trabalhar na decência e higienizada.
Sophia afirma que
[...] lá na Presidente Dutra mesmo os moradores falam dos travestis que
roubam, os travestis que é assaltantes e roubam os clientes, os drogados,
os travestis drogados, os travestis que não tem capacidade de pegar o seu
dinheiro na moral, não tem capacidade de sair com clientes bons de Feira
de Santana e de outros lugares [...].(Entrevista realizada com Sophia em
14.01.2010).
157
158
A descoberta da Avenida Marechal Deodoro e o retorno à Senhor dos Passos
Na espacialidade contemporânea do território da prostituição das princesas
do sertão, notamos duas grandes áreas de concentração desses grupos. Mesmo
decadentes, algumas Trans, como Sophia e Catherine, mantêm-se fiéis a sua
territorialidade na Avenida Presidente Dutra. Algumas das mais velhas93 migraram e
se adensaram na Avenida Marechal Deodoro, o novo ponto de visibilidade e de
trottoir Trans de Feira de Santana.
Contudo essa nova expansão do território não se efetivou de forma tranquila
entre as Trans, pois antes de ser um território Trans, muitos gays circulavam pelas
mediações para encontros fortuitos e trocas de afetividades. A expansão para
Marechal Deodoro é relativamente nova, produzida desde 2005 por um pequeno
grupo de gays que resolveram se montar e estabelecer um ponto de prostituição
andrógena nas ruínas do ponto gay do Mercado de Artes.
A coleta de dados por meio da participação observante, da qual abusamos de
forma imensurável para escrita desta dissertação, iniciou-se no mesmo período.
Pudemos verificar ao longo de cinco anos a dinâmica da formação de um novo
fragmento do território Trans na Cidade Princesa, com retorno ao coração da cidade.
No início, a Praça da Bandeira, situada entre a Avenida Marechal Deodoro e a
Rua Sales Barbosa, durante a noite, estava densamente povoada de gays, que
cotidianamente sentavam nos bancos da praça socializando-se uns com os outros.
A praça funcionava como ponto de encontro, paquera e como vitrine onde os
rapazes heterossexuais, dentre eles alguns moradores dos bairros Rua Nova,
Queimadinha e Baraúnas, além de feirantes, garis e trabalhadores informais do
centro, circulavam, a pé ou de bicicleta, em busca dos gays da “Praça”.
Geralmente,
após
uma
conversa
rápida,
em
que
combinavam
e
determinavam critérios para o sexo, os transeuntes da Praça deslocavam-se para o
fundo do Mercado de Artes ou para o fundo da Praça Bernardino Bahia para
concretizar o ato sexual. Outras pessoas transavam nas barracas dos camelôs de
93
A ideia de velha entre as Trans possui íntima correlação com a palavra experiência. As Trans mais
velhas são aquelas que conhecem intimamente o território e sua permanência possui um capital
simbólico que é respeitado pelas novatas e pelas antigas. Quanto mais antiga, mais respeitada, mais
ouvida e mais influente nas negociatas do e no território.
159
roupas e calçados na Rua Sales Barbosa, onde alguns gays concentravam-se para
observar os casais se relacionando.
Eram gays de todas as idades, inclusive crianças e adolescentes. Todos
aventurando-se a ganhar a noite, em busca de parceiros sexuais para atos rápidos,
tensos e eróticos, que finalizavam com a ejaculação de um dos parceiros ou de
ambos. Nesse conjunto, encontravam-se cinco gays, recém-chegados na Praça e
que desestabilizavam os gays mais antigos. Marcelo, André, Thyago, Vinicius e
Paulo se encontravam cotidianamente na Praça para “caçar” e para colocar os
papos em dia.
A praça se constituía em um lugar de encontro, onde gays estabeleciam uma
rede espacial de solidariedade, podendo viver suas sexualidades plenamente sem o
cerceamento da família e das instituições normatizadoras. Para além dos rapazes
hetero e homossexuais que transitavam pela noite feirense, também circulavam as
Trans que subiam de suas casas rumo a Avenida Presidente Dutra para o trottoir.
Paulatinamente, Marcelo, coordenando o grupo novo, atraia os motoristas e
pedestres para prostituição michê-gay94. Perlongher (1987) realizou uma pesquisa
em São Paulo sobre a prostituição viril, catalogando as relações sociais
estabelecidas pelos michês com a sociedade de forma generalizada. Como
resultado de sua pesquisa, Perlongher (1987) classificou seu grupo focal em: michêmacho, michê-bicha e michê-gay.
O michê-macho compartilha com o michê-gay o recurso da masculinidade, se
bem que no último caso a virilidade é expressa de forma menos estridente e se
relaciona com homens heteros, enquanto o michê-bicha se relaciona usualmente
com travestis, que em troca lhe oferecem proteção. Em depoimento, um michê
demonstra a relação de dominação exercida pelos travestis na Avenida Paulista
94
Termo citado pelas entrevistadas e cotidianamente ouvido nas etnografias de campo. O michê-gay
é o gay que se prostitui sem necessitar camuflar seus trejeitos homossexuais e se travestir de mulher
para exercer essa atividade. Pelo contrário, na rua, quanto mais boyzinho afeminado mais atraente
para um público homossexual. Vale salientar que a prostituição michê em Feira de Santana ainda
ocorre de forma tímida e está concentrada nas mediações da Rodoviária e no Shopping Boulevard,
onde garotos, oriundos de bairros populares, vendem o prazer masculino para homossexuais.
Segundo Perlongher (1987), a atividade de prostituição viril, por excelência, vive escamoteada, sua
camuflagem e discrição contribuem para seu funcionamento e manutenção. A existência desses
garotos nesses lugares, diluídos no movimento de pessoas se torna quase imperceptível, somente
aqueles que se mostram interessados conseguem capturar a performance do michê, que se insinua
massageando freneticamente o órgão genital.
160
E o travesti é bem pesado, nem michê, nem malandro gostam de mexer
com ele, porque travesti é violento mesmo, assim ele ganha respeito. [...] E
os travestis dão cobertura à sua fragilidade. (PERLONGHER, 1987, p. 117).
Ao longo das avenidas centrais, Marcelo e os “meninos da praça” saiam à
noite dando closes afeminados, persuadindo os transeuntes, aguardando o convite
para realizar o programa ou “fazer”95 como diversão. A partir disso os primeiros
figurinos femininos, ainda alinhavados à mão apareciam timidamente, em sacolas
simples e o riso se estabelecia entre os “meninos da praça”. Saiam de casa vestidos
de garotos, carregando escondida a maquiagem, acessórios, calçados e roupas
femininas e vestiam-se cedo, aos sábados e domingos, atrás do Mercado de Artes,
ver figura 18.
Figura 18
Ponto do trottoir da Avenida Marechal Deodoro com ênfase a banca de revistas
Brasil
FONTE: Oliveira, M. F de, 2010.
Era com os ganhos da rua, isto é, com o dinheiro da prostituição, que eles
investiam na produção de seu feminino, saiam no comércio popular comprando
peças de roupas curtas e sensuais que seriam customizadas para estrearem na
noite. A intensificação da busca do feminino se perdurou e as mudanças profundas
começaram a se estabelecer. Os meninos da praça, perseguidos pelas Trans mais
antigas que batiam ponto na Presidente Dutra, precisavam de um nome de guerra,
95
O termo é utilizado para se referir ao ato sexual. Assim, fazer significa, de forma sintetizada, fazer
sexo.
161
precisavam passar pelo batismo de pista e encontrar seu outro feminino legitimado
em outra identidade.
Assim, Marcelo tornou-se Lauren, André se chamou de Joan, Thyago virou
Ava, Vinicius se transformou em Rita e Paulo se afastou da praça por conflitos
familiares, mantendo-se até os dias de hoje gayzinho. De acordo com Joan, Lauren
[...] começou a vim pra dentro do Mercado de Artes, começava a se
maquiar, ela se arrumava e fazia programa lá dentro, dentro do
Mercado de Artes mesmo, foi quando eu conheci ela, aí eu
perguntava a ela: “Ô mona por que você trabalha aqui dentro?” ela
disse: “é porque aqui é mais confiável e aqui eu tô conseguino
clientes”, que realmente dentro do Mercado de Artes dava mais
clientes do aqui na rua. (Entrevista realizada com Joan em
15.01.2010).
Para Joan, foi Lauren que iniciou a prostituição no novo fragmento territorial
de forma tímida sem querer chamar a atenção das Trans mais velhas. Para isso
atraia e atendia seus clientes atrás do Mercado de Artes, onde os gays realizavam a
pegação. Como ainda estava não se montava, os relacionamentos encontrados por
Lauren se confundiam com a pegação gay, protegendo-lhe do cerceamento das
Trans consolidadas da rua.
Eu creio que na época que cheguei foi Lauren, ela começou a trabalhar
dentro do Mercado de Artes, ela nem trabalhava na pista, ela trabalhava
dentro do Mercado de Artes, ela só passou a trabalhar na pista mesmo
quando ela me conheceu e conheceu Rita, aí ela passou a ter mais
confiança em trabalhar na rua. (Entrevista realizada com Joan em
15.01.2010).
Atualmente, a Avenida Marechal se constitui no ponto de maior aglomeração
das Trans de Feira de Santana. Sentadas na Praça da Bandeira ou do lado da
banca de revistas na esquina da Avenida se encontram as princesas do sertão que
batalham na noite feirense próximo ao tradicional ponto de prostituição feminina, o
Beco da Energia e a Praça da Matriz. A pegação na Rua Sales Barbosa foi
desarticulada com a presença de seguranças das barracas de camelôs, sua
constante vigilância afastou os clientes e simpatizantes do beco, favorecendo a
instalação de um ponto de distribuição e consumo de drogas atrás do Mercado de
Artes. O mapa 12 sintetiza a espacialização do território da prostituição em todos os
períodos aqui abordados.
162
163
164
CAPÍTULO IV
Á noite, quando todos regressam a casa
Saio eu, para a vida que me espera
Levo na mala os sonhos perdidos
E em meu peito a dor dilacera
Sirvo-me da vida que tenho
Tal como se servem de mim
Sacio a fome dos homens
No privado de um qualquer botequim
Sou aquilo em que me tornei
Desajustada da realidade da vida
Valores que tinha, também vendi
Em cada rua ou avenida
Á noite, quando todos regressam a casa
Saio eu, para a minha perdição
Vendo sonhos na banca do meu corpo
Na miséria da minha prostituição.
Autor desconhecido
Disponível em http://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=21288
165
4- FAZER A RUA: ENTRE A TERRITORIALIZAÇÃO E LUGARIZAÇÃO
Ser Trans tem que ter sangue no olho. E pior que elas todas tem. Sangue
no olho e coragem. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010)
No capítulo anterior pudemos discutir como o território da prostituição em
Feira de Santana se estabeleceu ao longo de quarenta anos, evidenciando os
processos históricos que subsidiaram seus deslocamentos para outras partes do
centro da cidade. Agora nos cabe discutir as estratégias realizadas pelas Trans para
se territorializarem no centro e manter a persuasão frente à multiterritorialização que
se reproduz entre as vias principais da cidade.
Para tanto foi necessário mergulhar, minuciosamente, nas entrevistas e com
sensibilidade capturar as estratégias que mantêm a territorialização Trans no centro,
visto que esses fatores contribuem para normatização desses gêneros, pois quem
transita no centro durante a noite sabe que as avenidas “estão cheios de viados
posando nas esquinas de mulher”, conforme nos relatou Joan.
Souza (1995) nos alerta que não existem territórios sem relações de poderes,
é na busca de compreender essas relações que este capítulo se desdobra, numa
tarefa de associar a etnografia com os relatos, gestos, sinais que foram observados
em campo.
No desenrolar do cotidiano vivenciado entre as Trans, em noites intensas e
prolongadas, durante cinco anos, pude compreender que nas ruas centrais de Feira
de Santana
[...] o presente nos assedia, traz a marca dos itinerários às vezes dispersos,
difusos ou mesmo concentrados, definidos pela vida cotidiana. [...] na rua
encontra-se não só a vida mas os fragmentos de vida, é o lugar onde o
homem comum aparece ora como vítima, ora como figura intransigente e
subversiva. No movimento da rua encontra-se o movimento do mundo
moderno. (CARLOS, 1996, p. 85).
O movimento de transeuntes não para no Centro. As pessoas continuam
conectadas ao coração da princesa do sertão. A rua banal que atrai centenas de
pessoas diversas é uma vitrine, onde os corpos podem transitar para serem vistos,
166
desejados e adquiridos. A rua e sua pluralidade reservam as marcas da
socioespacialização de atividades diversas com base nas práticas sociais,
imbricadas nas relações de poder, que é mantida pelo controle e ao mesmo tempo
por uma apropriação simbólica e afetiva das avenidas, ruas e becos pelas Trans. A
rua territorializa-se e esse território que se desloca para avenidas centrais ao
desarticular-se das práticas comerciais, “nada mais é do que a manifestação
geográfica dessa territorialidade, através de seus limites, que se dão de modo
diferenciado”, (RIBEIRO, 1997, p.96).
Os territórios Trans estão diretamente associados à clientela local. Fica nítida
a percepção do valor do espaço estratégico para o desenrolar dessas atividades.
Não é qualquer rua, como também não se trata de qualquer esquina. Trata-se dos
pontos centrais mais bem quistos da cidade. Por lá tudo passa em Feira de Santana
e por lá nada fica despercebido.
4.1- Estratégias territoriais, dominação e normatização dos gêneros Trans
Analisamos, segundo os dados coletados em campo, as principais estratégias
que contribuem para a permanência do território Trans em Feira de Santana,
destacando como tais processos se desdobram e quais agentes estão envolvidos.
Para tanto, elencamos as estratégias respeitando o dialeto gay presente na
oralidade de nossas informantes. Desta forma, as principais estratégias de
dominação e normatização são: fazer a rua; o cotidiano; o vocabulário; o pedágio
e/ou multa; a madrinhagem; as mais velhas, as mais fortes; o doce; armas brancas e
a cafetinagem.
167
Fazer a rua: criando o ponto da prostituição Trans
A primeira estratégia para a produção do território Trans está ligada à criação
do ponto de batalha. Essa ação foi denominada pelas entrevistadas como “fazer a
rua”. O ponto é produzido pelo constante uso de uma área que possibilita sua
existência. Espacialmente, os pontos localizam-se em ruas e avenidas de
considerável movimento tanto noturno quanto diurno e estão relacionados a um
entorno dotado de equipamentos urbanos que contribuem para sua permanência.
As Trans fazem o ponto aparecendo constantemente no mesmo lugar e
gerando uma rede de sociabilidade com outras Trans e com os transeuntes, além
dos donos e funcionários dos equipamentos urbanos do entorno. Promovem um
constante jogo da sedução, insinuando-se para os motoristas de carros e ônibus,
ciclistas e pedestres, visibilizando seus corpos transformados ou montados para a
prostituição.
As Trans que fazem o ponto adquirem respeito e subordinam as outras que
se agregam a elas. Fazer a rua é um ato de coragem, é necessário resistir às
simultaneidades do centro, sobretudo à ação persuasiva da polícia e dos moradores
do entorno que contestam o uso pecaminoso da rua pela prostituição e alegam que
as Trans desfilam seminuas ou nuas expondo seus dotes, além dos constantes
barulhos.
Para fazer a rua é necessário estar e ser belíssima. A beleza das Trans atrai
olhares e desejos de clientes em potencial. Antes de qualquer coisa, para que a
“rua” continue existindo é necessário trabalhar na “moral”, sem que ocorra nenhum
tipo de violência com os clientes. Um ponto tranquilo, sem furtos e muito prazer é um
lugar agradável e atrativo.
De acordo com as entrevistadas, uma Trans para fazer o ponto
Tem que ser educado, bonita, chamar a atenção dos clientes, quem faz a
pista ficar boa, é cada uma por si, se chegar um cliente para você, você não
vai deixar o cliente para outra pessoa, vai ficar para você lógico. (Entrevista
realizada com Ava em 18.01.2010).
A Trans que faz a rua ou faz o ponto torna-se conhecida e recebe o status de
“velha”. Uma Trans velha é uma Trans experiente, não necessariamente ligada à
168
idade, mas às ações enquanto Trans. É aquela que tem mais tempo de pista, ou
ainda, aquela que conseguiu se sobressair das outras dominando um leque de
relações na rua.
Ah, ela se diz mais carimbada, mais velha, mais conhecida, né? De lá do
pedaço, é isso que elas argumentam. Que primeiro foram elas: “ah, porque
foi eu que fiz esse ponto, fui eu que fiz essa rua, se os clientes vem aqui é
porque eu fui uma das pioneiras a vim pra aqui”, aí elas alegam muito isso.
Os pontos que ela fica, né? É se torna conhecida e eles passam a vê, ai vão
a procura. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010).
Quando a rua é feita assina-se simbolicamente uma série de normas e
símbolos que constituem o campo de forças no território da prostituição. Na
gramática desse território existem regras que auxiliam a sua permanência, isso não
significa que as transgressões do contratado não possam se efetivar. Pelo contrário,
situações de transgressão de normas são comuns e são julgadas pelas mais velhas
que poderão, a favor de sua situação, dar um parecer sobre o fato. Dentre as regras
básicas estão
A maneira lá delas pegarem os clientes, delas se portarem, entendeu?
Como... sair com os clientes, arranjar os clientes têm as regras delas lá e
elas aceitam e pronto e vivem bem. (Entrevista realizada com Brigitte em
14.01.2010).
Preservar a integridade do cliente favorece a permanência do território, assim,
o ponto é uma área-vitrine, onde os corpos estão expostos para serem consumidos
temporariamente. Nas avenidas movimentadas poucos carros param, buscando
maior impessoalidade e direção. Os clientes
Dão o toque pra rua de trás, é assim que funciona, eles dão um toque pra
rua de trás, aí a gente vai pra rua de trás e pega eles na rua de trás, porque
a rua de trás é mais escondida, não tem ninguém para olhar e reconhecer o
cliente. (Entrevista realizada com Sophia em 10.12.2009).
A rua feita convida os furtivos clientes que de carro dão, muitas vezes, duas,
quatro, seis voltas para tentar realizar uma abordagem que nem sempre se efetua,
acelerando após algumas poucas palavras trocadas. Outros clientes já são
conhecidos no ponto e eles sempre estão à caça das Trans novas.
A rua também é o local da novidade, novas transformações, novas curvas,
novas roupas e acessórios sempre são recompensadas por vários assédios para o
169
programa. De certa forma, ser nova na pista é ter muitos atributos Trans carregados
de novidade, por isso, na pista as novatas roubam a cena. Elas estão cada vez mais
bonitas e femininas, indicando que a tecnologia de fazer a transexualidade está se
tornando cada vez mais eficaz e detalhista. As novas acabam refazendo a rua,
bifurcando os fluxos dos transeuntes a favor de seu corpo e sua performance
recheados de novidades. Elas estão, sempre, “batendo várias portinhas”, isto é,
entrando cada vez mais em mais carros e realizando mais programas que as velhas
do ponto, tencionando a pista e intensificando as relações de poder no território.
As travestis que foram chegando foram se achando porque era nova na rua,
“a vou bater penca de porta,” realmente, o que é novo o homem gosta,
então no começo por ter travestis novatas, por ter travestis novas na rua,
muitos clientes escolhem elas, do que as velhas. (Entrevista realizada com
Joan em 15.01.2010).
O cotidiano na rua como estratégia de apropriação
A praça já foi praça... Hoje, aqui, é cada uma por si (Diário de campo
realizado em 03.08.2009 a partir do relato de Claudia).
Então, pra mim [a praça] é um lugar de encontro, não só pra trabalho mas
como resenha também, pra poder ver elas. Sinto muito falta quando não
vou à rua. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010).
Tratando-se do fenômeno Trans na cidade, seria um equívoco acreditar que a
rua somente é o espaço da transitoriedade, ou seja, as pessoas não fazem mais do
que transitar por elas. Para nós, existe um mundo que só se revela e pode ser
descortinado na rua, visto que esta se compõe de uma amálgama de energia infinita
e que não se esvazia, mas se reproduz na contingência da vida. De acordo com
Carlos (2007, p. 51) “nas ruas o presente nos assedia, traz a marca dos itinerários
às vezes dispersos, difusos ou mesmo concentrados definidos pela vida cotidiana”.
Para a autora, é na rua que fica evidente a dimensão espacial do vivido, em
um determinado momento histórico, onde se pode revelar gestos, olhares, feições
faciais que diferenciam as condições sociais de cada indivíduo. É na rua onde o
170
cotidiano implode, aflorando as pluralidades e os paradoxos da vida cotidiana, bem
como as estratégias homogeneizadoras, além das normatizações impostas pelas
teias do poder da vida social.
De acordo com Carlos (2007), na rua a vida é marcada pelo movimento dado
pelo seu uso. A rua é o caminho onde a sociedade executa e potencializa seus
hábitos e costumes. Nas cidades médias, como é nosso caso, as ruas vão se
transformando em avenidas, diversificando e complexificando seus usos.
Apesar de sua dimensão simbólica, a rua também é local da reprodução do
modo de produção capitalista. Para as Trans é da rua que eclode seus estímulos de
sustento. Da rua tira-se o dinheiro para manter o circuito funcionando. Investe-se em
alimentação, alugueis, saúde, vestuário e entretenimento. A rua funciona como um
escritório onde cada parcela espacial do Centro é um gabinete específico, em que
as profissionais do sexo atendem seus clientes e dinamizam os fluxos capitalistas. A
rua
É meu ganha pão, não pode parar, não pode, não pode acabar a rua, meu
96
ganha pão meu filho, cada aquézinho é um flash, tem que ter aqué, é meu
ganha pão, meu sustento hoje a rua. (Entrevista realizada com Bette Davis
em 15.01.2010).
Apesar de localizar-se no centro da cidade, na confluência de avenidas largas
e movimentadas, caracterizadas pela transitoriedade, a rua é o lugar do encontro
das Trans. Na rua as Trans se reúnem, cotidianamente, não apenas pelo exercício
da prostituição, mas pelos vínculos simbólicos afetivos que desenvolvem no
cotidiano. Apesar de se constituir um campo de forças que a caracteriza como um
território, a rua é um lugar, espaço onde as afetividades espaciais eclodem no
convívio diário, costurando pluridimensionalidades do vivido.
Segundo Carlos (2007), a rua apresenta alguns sentidos, dentre eles estão:
de passagem, de fim em si mesma, de mercado, de festa, de reivindicação, de
moradia, de domínio de gangues, de normatização da vida, de segregação social, de
formação de guetos culturais e de encontro. A rua, local onde a as Trans se
concentram, constitui-se, com base na visão de Carlos (2007), enquanto um gueto,
pois lá sujeitos que compartilham de mesma identidade realizam uso e costumes
disseminados, fazendo daquela parcela do espaço um uso único e inconfundível.
96
Significa dinheiro.
171
Além da mercantilização do sexo, a rua é o lugar do encontro onde as Trans
socializam-se, mantendo seus laços de afetividade
É, geralmente tem dias que eu vou pra rua, praticamente todos os dias eu
vou pra rua, naquele pensamento de ver amigas, de bater papo, de brincar,
de resenhar, claro na intenção de trabalhar, mais sempre isso, de ver as
amigas que eu não vejo durante o dia, brincar, resenhar, nós temos sim
outro lado, que é esse lado, se possível até ali naquele momento depois do
97
trabalho a gente sair, tomar algumas otins , ir pra praça resenhar, alguma
coisa assim, eu penso desse lado também. (Entrevista realizada com Bette
em 15.01.2010).
Para Lefebvre (1992), a rua representa a cotidianidade na vida em sociedade.
Ele desenvolve esse argumento apresentando a rua como
Lugar de passagem, de interferências, de circulação e de comunicação, ela
se torna, por uma surpreendente transformação, o reflexo das coisas que
ela liga, mas vivo que as coisas. Ela torna-se o microscópio da vida
moderna. Aquilo que se esconde, ela arranca da obscuridade. Ela torna
público. (LEFEBVRE, 1992, p. 309).
Na perspectiva lefebvriana, a rua não se apresenta enquanto espaço da
transitoriedade sem a qual o encontro não é possível. Para ele é na rua que o
espetáculo da vida cotidiana encontra seu palco de realizações, por isso mesmo,
somos atores/espectadores e sujeitos da vida nas ruas. Conforme Lefebvre (1999),
os grupos sociais se manifestam apropriando-se dos lugares, no curso histórico, e
essa apropriação demonstra que o valor de troca é superado pelo valor de uso, pois
o movimento cotidiano e os processos desenvolvidos pelos sujeitos do lugar
revolucionam sua condição espacial. A rua para as Trans é
um ponto aqui em Feira de Santana, é o ponto que eu mais gosto, é um
lugar que eu me sinto bem, aqui que eu ponho o meu papo em dia, aqui que
eu me distraio, é aqui que eu saio dos meus problemas, aqui que eu
esqueço de muita coisa, eu começo a conversar, eu começo a bater papo, e
aí eu vou me distraindo, aqui eu me distraio, aqui é o ponto específico que
eu me distraio nas noites quando eu venho pra rua. (Entrevista realizada
com Joan em 15.01.2010).
Para Carlos (2007), com base em Lefebvre (1992, 1999), se a rua por um
lado é o espaço da manifestação da diferença, por outro é lócus da normatização do
cotidiano. O mapa 13 mostra os lugares que as entrevistas possuem identificação e
97
No bajubá significa bebidas alcoólicas ou mesmo cerveja.
172
se encontram para socialização. Nesse sentido, o território da prostituição co-existe
na condição espacial de lugar, permitindo que diariamente as Trans reiterem sua
transcondição98 com base na sua transnormatização, reproduzindo a ideia de um
gênero que não terminou de ser produzido à luz do feminino.
No lugar as Trans socializam as suas transformações. Sugerem os melhores
estabelecimentos comerciais para aquisição de produtos de comum consumo. Além
disso, seu cotidiano é marcado por uma sofisticada teia de relações sociais que
reproduzem e reiteram a transcondição elucidada por Silva (1993), que se refere às
montagens do feminino em corpos masculinos e usos diferenciados de acordo com
novas performances de gênero reiteradas todos os dias, pois para Lefebrve (1991)
as repetições também são obras, visto que há um mundo prático e sensível que se
reproduz a partir de gestos repetidos, chamado aqui de transnormatização.
Na rua as Trans conversam sobre tudo, inclusive teatralizam as expressões
que elas utilizam durante o programa, dramatizando, até mesmo, as feições dos
clientes. A rua é o espaço do entretenimento e das atividades lúdicas.
conversamos sobre homens, dos programas que elas fazem, o que o
homem pede pra elas fazer, o que o homem fez, como o homem tava
gozano, elas gesticulam muito isso: “Ah, tava gozando assim, fazendo uma
99
cara engraçada que a maricona fez”, e agente rir muito dessas coisas.
(Entrevista realizada com Greta em 15.01.2010).
Ah, se conversava sobre muita coisa, muitas até faziam teatro, faziam
shows, conversavam sobre tudo [...], diversas coisas. Não existiam só um
tipo de conversa, elas iam mesmo pra... se divertirem. (Entrevista realizada
com Brigitte em 14.01.2010).
Para Lefebvre (1992) quando a rua cessa de ser o espaço do espetáculo a
vida cotidiana perde o interesse. A partir do momento que a rua não é capaz de
produzir a sensação de novidade, de entusiasmo, de aventura, do encontro, ela se
esvazia em seu sentido, e a praça vai constituindo-se naquilo que Carlos (2007, p.
57) denominou de deserto lunar.
As Trans têm permanecido juntas e distantes simultaneamente. As leis
severas do mercado, com base na concorrência, têm engendrado um processo
perigoso para o cotidiano Trans. Elas preferem ficar destacadas. Estar destacada,
98
Termo utilizado por Silva (1993).
Nome dado a um grupo de clientes que curte fazer sexo com Trans. As mariconas são homens
maduros, com idade próxima aos 40 anos, em sua grande maioria, ditos heterossexuais, que buscam
prazer nos territórios de prostituição.
99
173
174
para as Trans, significa estar separada, distante das outras, realizando sua atividade
profissional sozinha e pouco se responsabilizando com as violações da lei da rua.
Entre as Trans a rua tem se tornado violenta. Algumas delas estão aprontando100.
Antes sentia muita falta, agora não, se eu pudesse ter um trabalho bom, eu
descansaria da rua, mas foi muito bom, agora que não tá prestando, por
causa das viadas que vai aprontar, mas é bom, é uma diversão, uma
curtição, é o show, abala, e é ótimo. (Entrevista realizada com Romy em
18.01.2010).
Apesar das violações, a rua tem seu sentido profundo. O cotidiano Trans não
é apenas o cotidiano das repetições e nem, somente, está caracterizado pelas
coações e vigilância. Pelo contrário, o cotidiano Trans é subversivo, altamente
criativo. Surge, segundo Lefebvre (1991), na essência do imaginário. O cotidiano na
rua diversifica e potencializa as produções de gênero.
O vocabulário Trans: o Bajubá
Todos os pesquisadores da temática Trans registraram a ocorrência de um
vocabulário específico, existente nas redes de sociabilidade Trans. De certo modo,
esse vocabulário tem sido alvo de inquietações específicas para pesquisadores da
linguística no sentido de compreender as raízes e os neologismos vernaculares
presentes nessa comunicação.
Há que se considerar que o Bajubá, também conhecido como Iorubá ou Batebate é compartilhado em um universo social mais amplo, alcançando também
guetos afros e homossexuais. As palavras, em sua grande maioria, são oriundas de
dialetos africanos e possuem baixa assimilação na sociedade comum. Poucas
pessoas, fora do convívio Trans, compreendem o bajubá. Nesse sentido, a
gramática Trans é uma estratégia territorial que segrega a compreensão da
comunicação entre as Trans e os sujeitos outsiders, inibindo, por sua vez, o acesso
a informações específicas do grupo. Uma vez impossibilitados de compreender as
informações que fluem no convívio Trans, os outsiders não possuem acesso ao
território, visto que essa unidade também é textual, (DUCAN, 1990).
100
Significa roubar, a mesma coisa que dar a Elza, azuelar, puchar.
175
De acordo com Benedetti (2005) o bate-bate é
uma espécie de linguagem cifrada, com um vocabulário restrito porém
dinâmico, que costuma ser utilizada pelas travestis quando em presença de
pessoas estranhas ou possíveis situações de perigo. (BENEDETTI, 2006, p.
46).
Durante a aplicação das entrevistas encontramos sérias dificuldades para
compreender os relatos em virtude do uso constante de palavras do bajubá. Alguns
desses vocábulos já eram de conhecimento em virtude da entrada no território em
2005. Nesse período, uma série de palavras foram sendo internalizadas e
explicadas pelas Trans, o que nos favoreceu ao fácil trânsito para compreender essa
linguagem. Passamos por um intenso processo de aprendizagem, e as explicações
das palavras nos indicavam que já não éramos os outsiders, mas pelo
relacionamento de pesquisa, paulatinamente éramos aceitos.
Conforme Bette, o bajubá é um mecanismo que as Trans utilizam para se
proteger do mundo heteronormativo e, além disso, serve para contarem situações
sem que outras pessoas tenham acesso ao seu conteúdo. Já para Joan, essa
linguagem é uma especificidade cultural do grupo, situando a influência dos rituais
do candomblé na espiritualidade Trans. Para a transformista Joan as palavras
oriundas do iorubá são aprendidas nos terreiros, onde muitas Trans fazem suas
orações e prestam serviços semanais as suas mães ou pais de santo, visto que os
rituais afros como a umbanda e o candomblé são religiões que não consideram a
homossexualidade no campo do pecado.
Pedágio e/ou a multa
Outra estratégia muito corrente no território Trans é a utilização do pedágio,
aplicado entre elas para cobrar o uso do território às novatas ou “fracas” que
infringiram regras compartilhadas no e pelo território. O pedágio é um imposto que é
repartido entre as trans mais fortes, visando aplicar uma correção na mona infratora.
Se elas pagam pedágio? Pagam! Dividem o que ganham. E divide o que
ganham com as mais velhas. É por conta desse domínio, mais esse
176
domínio, isso é uma coisa que elas vêm copiando de Europa, porque muitas
daqui da cidade vai pra Europa, quando vêm, elas falam esses conflitos que
há lá, aí a mesma coisa elas copiam aqui. (Entrevista realizada com Brigitte
em 14.01.2010)
De acordo com Brigitte, o pedágio é uma ação importada, vinda dos países
europeus que atrai centenas de Trans em busca do luxo, do poder, da riqueza, do
glamour e da sedução. O metro quadrado da pista na Europa é muito valorizado
entre as Trans globais. As Trans globais são aquelas que realizaram a emigração e
batalham em outro país industrializado. Elas recebem grande importância no seu
país de origem por terem conseguido ultrapassar os limites do território nacional. E
para que isso ocorra seus corpos precisam estar turbinados de silicone que faziam
de suas curvas, um corpo de sucesso e desejo.
As Trans globais correspondem àquelas que se concentram nessas cidades
de influência internacional, e estas, por sua vez, podem vir a ser as europeias. Se
produzir enquanto europeia, não é para todas as Trans, os investimentos financeiros
são altos e no metro quadrado brasileiro conseguir determinadas quantias é um
trabalho desgastante. Um corpo Trans se europeíza quando retira das ruas
europeias o dinheiro que suplantará no seu corpo próteses, dentro dos padrões da
saúde. A europeização do corpo Trans
É a transformação acurada e cara, feita dentro do sistema oficial de saúde,
que traz a possibilidade de “se passarem por mulher”, acreditam. São
poucas as que conseguem essa transformação tão sofisticada.
Normalmente as que a alcançam são as tops e/ou européias.
As primeiras são travestis que fazem filmes de sexo explícito e ensaios
fotográficos de igual teor. São tidas pelas demais como “belíssimas”.
[...] Mas nem toda européia é top, assim como nem toda top é européia.
Pois para ser européia, como o título indica, tem que se ter vivido uma
temporada atuando como prostituta lá fora. Desde os anos 80 as travestis
descobriram a prostituição na Europa e passaram a atuar por lá. (PELÚCIO,
2007, p. 110-111).
Em nosso caso de estudo encontramos uma europeia, pois conviveu mais de
sete anos na Itália, no auge da emigração Trans para esse país. Marilyn é a única,
das entrevistadas, que possui o respeito dado a uma europeia. Marilyn é super
feminina, pré-requisito básico para conviver na Europa no ramo do trottoir. Não
existem silicones em seu corpo, mas sobre ele situa-se o manto da elegância que
caracteriza uma europeia.
177
Tem sim, com algumas acontece isso. Tem algumas que pagam alguma
coisa. A mim, ninguém nunca me cobrou nada, mas eu também não
pagaria, não paguei na Itália pra ninguém, vou pagar aqui em Feira de
Santana, que é a minha cidade, acho até um despropósito, acho um
absurdo. (Entrevista realizada com Marilyn em 09.12.2009).
Ah, já vi várias histórias assim que outras pagavam pra ficar no ponto,
pagava até pra fica na Presidente Dutra e tudo, é por tanto que a pessoa
nem ta lá mais, a que pagava, os homens pipocou elas de tiro, elas se
picaram tudo pra Marechal, foi uma confusão. Eu sempre to lá, de lá eu não
saio e ninguém nunca me cobra e nem tão loucas de cobrar. (Entrevista
realizada com Sophia em 10.12.2009).
Tanto Marilyn quanto Sophia são velhas na rua, isto é, antigas e fortes, a elas
o pedágio não se aplica por dois motivos: o primeiro é que muitas vezes o conflito
entre as velhas é protelado por conta das redes de sociabilidades que elas possuem
e as duas Trans em questão declaram trabalhar na moral, não desrespeitando as
leis da rua. Sobre essa segunda consideração é necessário salientar que ambas são
muito respeitadas pelas outras. Elas são corretas, como declarou Joan.
A multa constitui-se num mecanismo que é aplicado tanto para as Trans,
quanto para os clientes, sobretudo as mariconas. A multa existe em função da
infração. Somente é aplicada quando uma Trans apronta na praça, rompendo os
laços de solidariedade que mantêm seu universo de relações ou, no caso do cliente,
quando ele rompe o acordo feito para o programa. A multa é uma espécie de sanção
aplicada a Trans e clientes que infringiram as leis da rua e do programa ou ainda,
não cumpriram com o contrato estabelecido no território da prostituição.
O desrespeito às mais velhas culmina em multa entre as Trans. Essa multa é
repartida entre as mais velhas no mesmo esquema do pedágio. Todas querem uma
pontinha, salienta Romy. No caso do cliente a multa é aplicada quando ele não
cumpre com o contratado. O contrato da prostituição é uma negociata que ocorre na
pista, onde é estabelecido, o pacote do prazer. Nessa negociata se estabelece o que
será feito e quanto custará. Caso o cliente não pague a quantia estabelecida ele é
multado pela Trans. Todas elas são viris para se impor e recuperar seu aqué que foi
combinado. A síntese da aplicação do pedágio e da multa encontra-se detalhada no
fluxograma 01. Vale destacar que a multa varia de acordo com o tipo de cliente,
sendo inflacionada. Trata de um jogo de subjetividade que demarca campos de
valores que são relocados para os clientes.
178
O negócio é o homem, se você ver que o homem tem condições, você vai e
multa ele, dá uma multinha básica, fala: “você pegou na minha neca, no
meu pinto, eu quero tanto, você pegou e me chupou, eu quero mais “X”, e
eles pagam né? porque você tá fazendo o seu programa. Porque é a multa,
aí errado foi ele que quis mais coisas que o combinado. (Entrevista
realizada com Elizabeth em 19.01.2010).
Fluxograma 01
Síntese sobre a aplicação do pedágio e da multa
FONTE: Participação observante no Território da prostituição.
ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira, 2010.
A entrada de uma novata na pista também culmina em uma multa. Essa multa
pode ser retirada com a intervenção da madrinha, ou ainda, a madrinha pode lucrar
recebendo essa multa por estar protegendo e dando livre passe à novata na
esquina.
179
A multa foi porque eu entrei na pista e Romy me pediu o presentinho dela e
Claudia falou que não deveria dá pra ela, que eu tinha que dá a Claudia que
é minha madrinha, que foi ela que me botou na pista, então se eu tiver que
dá eu tenho que dá a Claudia e não a ela, mais ela foi e me pediu, ela
aproveitou um certo momento que Claudia não estava na pista e foi e me
multou, e eu não vou pagar a ela porque eu acho que isso é cafetinagem,
se eu tiver que pagar a ela eu vou ter que pagar a duas, então eu prefiro só
pagar a uma que é o certo que me botou na pista. (Entrevista realizada com
Elizabeth em 19.01.2010).
Quando a multa não é quitada a ação é muito mais viril e perigosa. As Trans
não perdem nada para ninguém, nem para elas mesmas. Elas acionam a rede de
solidariedade, contratando marginais para dar um panquê101 nas monas multadas
que não pagaram o imposto.
Já vieram querer multar a gente, querer dinheiro, porque tava trabalhando
na rua se achava no direito de querer cobrar, certo? Quando as pessoas
não pagavam, elas mandavam marginais vir atrás da gente dar carreira,
então quem salvava a gente era a polícia, certo? Agente chegava, dava
queixa, dizia, aí eles chegavam pra a gente e dizia: “quando acontecer isso
novamente, você me avisa porque isso é cafetinagem”. Eles falaram que
trabalho, tudo é trabalho na vida, cada qual faz da sua vida o que quer. Mas
em questão a cobrar, é cafetinagem. (Entrevista realizada com Joan em
15.01.2010).
A madrinhagem
Podemos considerar que o tratamento de inserção de uma nova Trans na
pista está incluso numa relação íntima com a cafetinagem. Tanto Kulick (2008)
quanto Pelúcio (2007) verificaram em seus estudos a instável fronteira que delimita
esses fenômenos. Enquanto algumas Trans convivem em pensão de travecões102
subordinando-se a um sistema rígido de códigos e normas, as princesas do sertão
estão na rua, sem vínculo de dependência com a cafetinagem. Algumas Trans
101
Significa levar uma surra, sofrer violência física.
Termo utilizado para se referir a uma travesti velha (no que tange a idade e tempo de pista), por
isso mesmo, forte e influente.
102
180
moram juntas e geralmente a mais velha na pista leva para sua casa a novata, que
passa pelo ritual de batismo.
Esse caráter espacial da casa da mais velha, pré anuncia a formação de
pensão de travecão, como elucidou Pélucio (2007) e Kulick (2008), que não existe
na realidade feirense. Porém, existem laços íntimos de afetividade entre as Trans.
Elas são abraçadas, ao saírem do convívio familiar, por uma “forte” que lhe passará
o ofício nu e cru da rua.
A madrinha sempre é uma Trans “velha”, que possui respaldo territorial e um
conhecimento espacial acurado do centro. Essa característica geográfica dota a
“velha” como apta a amadrinhar, isto é, abrir os caminhos do troittoir para as
novatas, além de ser aquela que conhece os processos de transformação do corpo.
Muitas travestis orgulham-se de serem “mães” ou “madrinhas”, o que por
vezes tem o mesmo sentido. “Amadrinhar” geralmente se refere a proteger
e ensinar a viver como travesti, cabendo à categoria de mãe a iniciação
propriamente dita. A noção de “mãe” entre as travestis está ligada, portanto,
ao processo de transformação. (PÉLUCIO, 2007, p.244).
No início dessa relação, a madrinhagem está diluída em dosagens
imensuráveis de cafetinagem, em que suga muito do que é gerado como renda na
rua pela Trans novata. Justifica-se pela proteção, pagamento de aluguéis e contas,
ou até de multa. As novatas aceitam com clareza, passando, diplomaticamente,
determinadas quantias para agradar a madrinha.
Além dessa relação mercadológica, as madrinhas exercem um papel
determinante para a criação do gênero. Suas dicas facilitam a montagem do corpo e
a produção do feminino.
À mãe ou madrinha cabe ensinar à sua filha as técnicas corporais e
potencializar atributos físicos, a fim de se tornar mais feminina. Ela ensina
tomar hormônios, sugere que partes do corpo a novata deve bombar
quantos litros colocar. Indica a bombadeira, instrui quanto aos clientes
sobre as regras do pedaço. (PELÚCIO, 2007, p. 44).
a
a
e
e
Numa perspectiva geográfica, a madrinha é aquela que se territorializa no
ponto e emana poder influenciador na rede de sociabilidade Trans. Ela conhece os
espaços e suas lógicas de funcionamento, seu olhar é esquadrinhador e
determinante para a compreensão dos conflitos espaciais. A madrinha é antes de
tudo um individuo forte em quem as novatas se apegam para compreender as
181
lógicas territoriais da prostituição, além de macetes para se relacionar com sucesso
com marginais, policiais e as outras Trans. Para ter uma madrinha é necessário
arranjar uma dona, uma “velha”, uma que já conheça o pedaço que tem os
ponto. Entendeu? Pra botar elas lá. [Depois] as novatas, simplesmente ela
tem que se virar. Entendeu? Agora [a madrinha] vai e fala com as outras,
fulana vai ficar aqui, vai fazer de hoje em diante ponto por aqui. Só declara
isso, ai as outras tem que aceitar. (Entrevista realizada com Brigitte em
14.01.2010).
A madrinha é feita pela procura. Ela não se predispõe a amadrinhar, pelo
contrário, ela amadrinha por solicitação. A novata procura uma forte e realiza o
convite. Durante o período da resposta, a Trans forte observa o comportamento da
novata, seguindo um criterioso padrão de avaliação. As aprovadas são batizadas
simbolicamente pelas madrinhas, estreitando os laços de solidariedade que
perduram, segundo Benedetti (2005), por longos anos, mesmo quando a Trans se
forma e fica independente.
Eu pedi a Claudia pra que pudesse me acolher aqui na rua por alguns
tempo, imagine, e tô até hoje, graças a Deus. Pedir pra Claudia me acolher
aqui na rua pra que eu pudesse pelo ao menos pagar algumas coisas que
eu tava devendo em Amélia Rodrigues e decidir e tô até hoje aqui, então
digamos que eu vim pra rua por motivos financeiros. E hoje eu lhe digo uma
coisa, a rua dá e não dá, mas eu gosto entendeu? E pra sair só se eu achar
alguma coisa que realmente me dê. (Entrevista realizada com Bette em
15.01.2010).
Uma amiga minha que me falou, eu nunca tinha feito pista na vida, ela
comentou sobre Claudia, falou assim: olha Elizabeth porque você não
trabalha na Marechal, ali no correio, aí eu falei: ah, eu não sei onde que é
não, ela me indicou o lugar certinho, aí eu fui, quando eu fui, eu conversei
com Claudia. Ela falou: não, você pode vir pra pista, eu vou ser sua
madrinha de pista, mais quando eu logo cheguei, a Marlene tava na rua, aí
a Katharine disse: “aqui não tem mais lugar pra viado nenhum”, mais eu e
Claudia foi conversou com ele, ele falou que eu poderia ir. Então ela se
tornou a minha madrinha de pista, mais no que as outras falou não ocorreu
nada. (Entrevista realizada com Elizabeth em 19.01.2010).
Ai comecei indo, uma amiga minha, ela ta até na Itália, Gloria, ela tá na
Itália, ela é até minha madrinha de pista. Aí ela foi me falando como era e
como não era, era um pouco perigoso, também não era, era bom também,
ganhava um dinheirinho bom, aí comecei indo, coloquei uma saia, um
bebyluquizinha, cabelinho chanel, eu tinha um cabelo chanel, aí fui indo.
Além disso existe a proteção também, pra ela proteger e tudo. Mas, só que
já era uma pessoa conhecida das outras, eu já era conhecida, moro em
Feira, já nasci em Feira de Santana, aí não tinha problema nenhum não. Só
uma que implicou um pouco comigo assim, mas depois num comecei a sair
182
com muito cliente, muita coisa. Aí ela ficou um pouco zangada, mas depois
acostumou, não ligou mais. Eu escolhi porque eu gostei muito dela mesmo,
aí eu fiquei assim, com muita amizade com ela. (Entrevista realizada com
Sophia em 10.12.2009).
O fluxograma 02 apresenta a síntese da rede de madrinhagem composta
pelas Trans que participaram dessa pesquisa. Vale salientar que algumas das mais
velhas de pista não declararam na entrevista o nome de suas madrinhas. Mesmo
assim, foi possível cartografar a teia de relações de poder dessa estratégia territorial.
Fluxograma 02
Rede de madrinhagem entre as Trans pesquisadas
FONTE: Participação observante no Território da prostituição.
ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira, 2010.
183
As mais velhas, as mais fortes
De acordo com Sack (1986) a territorialidade se efetiva a partir da influência
política que determinados grupos ou pessoa possuem em dominar uma determinada
área efetivando seu território. Na perspectiva de Sack (1986), para que ocorra a
territorialidade, é fundamental que cada indivíduo tenha consciência da sua
participação política no território, como também da necessidade de sua integração
em redes de solidariedade nele. O autor define, por essas observações, a
territorialidade como sendo uma tentativa, do indivíduo ou do grupo, de afetar,
influenciar ou controlar pessoas, ações, decisões, fenômenos e relações políticas.
Para além disso, acrescentamos as relações culturais. A territorialidade é a principal
forma espacial de tomada de poder social e seu uso tem se apresentado de forma
cumulativa no decorrer da história (SACK, 1986).
O controle no território da prostituição é disseminado, de forma antagônica, e
muitas vezes complementar, pelas Trans mais velhas. Seu tempo de batalha as
qualifica no campo de poder e de influência. A mais velha é aquela que possui
experiência e respaldo espacial. Ela conhece e reconhece os pontos de prostituição,
tanto as suas entradas, suas saídas quanto a velocidade da fluidez dos processos
que ali se desdobram.
Geralmente as mais velhas são as que fazem a rua e elas são madrinhas de
várias Trans que batalham no mesmo ponto. Esse vínculo estratégico também gera
sentimentos de positividades. As mais velhas são respeitadas e cultuadas pelas
mais novas. As mais velhas possuem uma rede de solidariedade ampla e uma
experiência Trans que é considerada no território. As mais velhas livram as novas da
prisão policial, responsabilizam-se quando alguma afilhada vai presa, ou ainda as
instruem para conviver determinado período encarceradas. São as mais velhas que
normatizam o território, delas fluem as simbologias, códigos, normas que regem o
funcionamento do território das quais as novatas estão submetidas, porém, nunca
isentas de produzir as subversões.
Quando eu fui para a pista eu fui como gay, primeiro eu fiz amizade com a
que era cabeça da rua, hoje em dia eu moro com ela, vou para a rua
tranquilo coisa e tal. [Minha amiga com quem moro] é uma das fortes da
rua, as cabeças da rua. Em segundo lugar no quesito a mais forte pelo que
184
103
eu vejo é a Claudia que está “viajando” . Fora isso tem uma pessoa que
domina, só que essa pessoa hoje está com um pouco com pena das monas
na rua, ela quando manda para não subir na rua, viado não sobe mesmo,
porque se subir ela bate, se não bater manda. Isso está de acordo com as
leis da rua, das forças delas mesmas, da norma, se ela falarem para não
roubar, não é pra roubar. (Entrevista realizada com Ava em 18.01.2010).
Não existe uma “dona da rua”, as mais velhas fazem esse gerenciamento do
território. Na ausência de uma o poder da outra se expande, gerando, muitas vezes,
uma série de conflitos entre as afilhadas, temporariamente, sem madrinhas. Estas
devem se render ao domínio da mais influente, ou seja, das Trans mais velhas que
ainda permanecem na rua. O que ela disser está dito e seu pedido deve ser
realizado.
As mais velhas, mandam! E ali as mais novas têm que respeitar. Quando a
mais velha fala, você baixa a cabeça e só escuta, não dá nem um A, nem
um B, nem um C, você só fica escutando, não vem ninguém. Realmente
quem é mais velha pode mais. A experiência é importante na pista, porque
se parar um carro e você for e ela disser: “não, deixa que eu vou”. Você tem
que deixar porque ela é a mais velha, não pode cortar o cliente dela. Tipo
um cliente que vai passar na pista e ela já vai sai com ele, você tá indo
mesmo assim, mais ela manda você parar pra ela, você tem que obedecer.
Mesmo que o cara lhe chame, ela diz: “volte que é meu cliente”, você tem
que obedecer, porque ela tá ali há mais tempo. (Entrevista realizada com
Elizabeth em 19.01.2010).
O poder das mais velhas é assegurado pela amadrinhagem e são elas que
permitem a entrada de novatas no trottoir, ver fluxograma 03. Sem essa permissão a
entrada às vezes é possível, porém é mediada por uma série desgastante de
exclusão, reprovação e rejeição que com o tempo são superadas até a permissão
ser concedida. Até isso ocorrer as mais velhas procuram boicotar a mona invasora
enviando-lhes panquês ou ainda fazendo máfias104.
Hoje elas pra poder se travestilizar, ou se transformar e se prostituir, elas
tem que falar com as “poderosas” hoje em dia lá do centro, como Romy,
como Claudia, tem que arranjar madrinhas. Entendeu? Porque se não tiver
madrinhas, elas não fica, elas escurraça, elas botam pra correr. Elas agride,
elas agride as outras, se por sinal até mata ou fura. Eu sei que uma das
103
Nesse período presenciamos uma cena forte de azuelo na rua. Azuelar é roubar. Claudia tinha
acabado de assaltar um cliente, e eles brigavam dentro do carro desgovernado em alta velocidade.
Ela conseguiu fugir e no outro dia foi capturada pela polícia. Claudia foi presa. Para preservar essa
informação Ava preferiu afirmar que ela estava viajando, soletrando cada letra da palavra inferindo
outro contexto para a mesma. Esse posicionamento de Ava nos faz lembrar que existe uma norma
entre as novatas e velhas: a norma Trans, como um mecanismo que acoberta situações
desfavoráveis para elas.
104
A máfia é uma estratégia territorial para minar o poder, influência de outra Trans. A máfia é
programada. Ela serve para dar um aviso de violência para as Trans que incomodam as fortes.
185
poderosas mesmo é Romy, tanto na Presidente Dutra, como na Marechal,
como em outro lugar, Romy é uma das principais, [para se prostituir] tem
que se falar com ela. Elas domina elas!... Tem que aceitar, porque se elas...
se não tiver o aval dela, não fica, porque ela bota pra correr, ela arranja
“meios” e bota pra correr, não aceita. “Meios” de arranjar homens que ela
têm, capangas. Entendeu? E bota pra correr. (Entrevista realizada com
Brigitte em 14.01.2010).
Fluxograma 03
Hierarquia de influência na rede de sociabilidade Trans
FONTE: Participação observante no Território da prostituição.
ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira, 2010.
As mais velhas sentem-se no direito de preservar a rua, pois é desse espaço
que sua vida se reproduz. Da rua é tirado todo o sustento. Elas precisam rebolar, se
insinuar até conseguirem transar para ganhar o dinheiro dos gastos mensais com
roupas, saúde, alimentação, entre outras coisas. Uma rua desorganizada é uma rua
sem limites de ação. Tais limites são atribuídos pelas mais velhas. Elas determinam
quando a rua se estabelece e quando ela passa a funcionar. Elas podem aplicar o
pedágio ou a multa nos clientes e nas Trans que batalham no centro.
186
A gente mais velha tá deixando um mundo maravilhoso pra elas, mas elas
não tá sabendo chegar, e têm que saber e se elas continuaram assim, não
sei se vai chegar meia idade. A gente que é mais velha exige respeito, eu
como sou mais velha, exijo respeito, mas nem todas dá, quando não
apronta na minha frente, apronta por trás, mas se elas aprontam um dia
elas vão pagar, não posso fazer nada... é a lei da rua. Se eu pudesse
consertar a lei, se fosse há três anos atrás, seria maravilhoso, que não tinha
essas coisas. Antigamente tinha minhas amigas, as mais velhas, uma tá
105
morta, a outra tá “viajando” , e outra ta viajando na Espanha. Agora a
pista virou uma zona, ninguém manda, nem sou respeitada, tem quem
manda não. A gente agia como deve agir. Eu não vou sair da rua, porque
uma roubou, eu não vou pra casa, ou ela me dá uma ponta, ou as outras
pra a gente ir embora, pra que a polícia como antes perturbava, não
perturbar mais, então a gente, todas tinha que ir embora, e elas ladrona
dava uma pontinha sim, mas nada obrigado. (Entrevista realizada com
Romy em 18.01.2010).
Fazer-se forte é um ato de coragem, para que isso ocorra é necessário
conflituar com as mais velhas. Para receber esse respaldo é necessário mostrar
determinação, sendo preciso ter “sangue no olho” como nos afirmou Brigitte. As
marcas nos corpos de ferimento, sobretudo de cortes de navalha, demonstram o
quanto as Trans conflituam e reproduzem um esquema perigoso de violência, mas
necessário para potencializar a produção de seus gêneros.
Eu já tava forte já, eu já tava conhecidíssima mesmo, já briguei e tudo, já fui
cortada no braço, cortei elas também, aí elas soube que eu não me deitava,
que eu era retada também, aí pronto elas abafaram o caso e me deixaram
em paz. (Entrevista realizada com Sophia em 10.12.2009).
As mais velhas são as divas da rua, elas possuem a fama de estarem na
prostituição mais centralizada da cidade de Feira de Santana e desejam ser
respeitadas pelas novatas em cada metro quadrado que corresponde a seu território
de batalha. Algumas vezes o conflito culmina em violência entre as Trans que saem
aos tapas e canivetes, exacerbando suas masculinidades em corpos feminilizados.
Na maioria das vezes elas encomendam o doce aprontando a máfia na rua para
mostrar o quanto têm influência na rede de marginalização de bairros periféricos da
cidade, retribuindo a violência realizada por delinquentes com dinheiro, sexo e
drogas.
Não é nem a dona, não é nem ser caso de ser a dona da rua, é que ela é
uma bicha mais velha na rua do que a gente, e ela tem poder, tem fama na
rua de fazer e acontecer entendeu? De fazer acontecer. Então não é nem
questão dela ser a cafetina, de cobrar pra a gente, é porque ela tem poder
105
Como já foi dito sobre a ética Trans, Claudia foi presa.
187
na rua, ela tem. Ela em si, é uma pessoa fraca que não aguenta com nada,
mais pela fama dela pelo que ela já fez, eu acho que as pessoas têm medo,
eu não tenho medo em si dela, eu tenho respeito a ela. (Entrevista realizada
com Greta em 15.01.2010).
Mandando o doce: susto, medo e sangue
A violência também é uma estratégia para manter o território. Ao contrário do
discutido por Arendt (1994), seu entendimento deve estar ligado à concepção de
influenciar e dominar as outras Trans por ações que as intimidem e garantam a
dominância das mais velhas.
O doce é um tema muito discutido na literatura que estuda a socialização
entre travestis. Porém devemos registrar um duplo significado da palavra doce no
meio Trans. Ao falarmos que estamos mandando um doce, estamos tratando do
envio de marginais para escorraçar, bater, espancar ou matar uma Trans por
questões conflitantes. Quando uma Trans diz que passou o doce, está tratando da
AIDS, ou seja, de sexo inseguro com possibilidade de passar ou contrair a
soropositividade.
Sobre a questão do tema AIDS, as Trans acreditam que essa é uma questão
inevitável para quem realiza programa, pois correm o risco de uma camisinha
estourar ou ainda se submeter a um sexo desprotegido para atender a vontade do
cliente desavisado que paga mais caro pelo programa de risco. Estamos tratando
aqui, do doce no sentido da ação violenta de marginais orientandos pelas Trans e
não pelo viés da saúde pública tratado por Pelúcio (2007) em sua tese de doutorado.
Esse viés do doce também foi discutido em sua tese para construir uma visão
do cotidiano Trans para o leitor. Aqui exploramos o doce como uma estratégia
violenta que se reproduz no território de análise. De acordo com Pelúcio (2007, p.
32) “‘Mandar um doce’ para alguém, por exemplo, é armar uma cilada, provocar uma
situação desagradável e/ou violenta como está sistematizado no fluxograma 04.
Prossegue exemplificando que
A cafetina pode até vingar a morte de uma de suas “filhas”, ou “mandar um
doce” para alguém que está perturbando a ordem do “seu pedaço”, mas não
188
106
evitará que a travesti leve um tiro, tome uma facada ou sofra uma ‘curra
(PÉLUCIO, 2007, p. 222-223).
’
Fluxograma 04
Trama e agentes envolvidos no Doce
FONTE: Participação observante no Território da prostituição.
ELABORAÇÃO: Matteus Freitas de Oliveira, 2010.
Mandar um doce é um evento comum na praça após uma acalorada
discussão entre Trans ou brigas. O doce sempre vem para aquelas que infringem as
normas da rua servindo para reiterar o poder que essas Trans possuem no território.
Em entrevista Ava exemplifica que se
você ficar me devendo dinheiro e não me pagar, tipo assim, 5, 10, 15 reais e
se eu conhecer algum moleque ou marginal babado, ou se não conhecer,
eu posso pagar para ele lhe dar um tiro ou lhe dar uma facada, ou até eu
mesmo fazer isso, mas não é o meu caso. Só se a bicha ficar devendo e
não pagar. Vamos supor que de dois em dois meses acontece um doce,
uma balinha na praça. (Entrevista realizada com Ava em 18.01.2010).
A dívida em dinheiro não é o único motivo para o envio de um doce, existem
vários agravantes que favorecem essa tomada de atitude, inclusive o jogo de beleza.
[As Trans] encomendam doce porque o doce são as agressões. O doce
quer dizer é agressão dos machos, das bichas, é os capangas, isso é o
doce que elas chamam, vamos dizer: espancar, bater, atirar, furar, aí elas
106
Significa apanhar e sair corrida do lugar.
189
chamam: ah, fulana não se incomode, não que fulando vai lhe dar o seu
doce, vou mandar fulano trazer um doce pra você, aí elas já sabem o que é
um doce, né? (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010).
Ser bela na pista é acirrar a concorrência no trottoir. Compor-se bonita é
provocar as que estão em estética desfavorável, e para destruir a beleza ou
espantá-la o doce é um estratégia eficaz. Quando as Trans são de outras cidades e
começam a batalhar na rua retirando os clientes das antigas elas se tornam
vulneráveis ao doce. Greta, em entrevista nos relatou uma situação que viveu
quando saiu de Amélia Rodrigues para batalhar nas ruas de Feira de Santana.
Romy não gostou da minha presença. Tratou bem na hora, mas sempre por
trás ficava falando que ia me tirar, eu e Ingrid, que ia fazer máfias, ia manda
homens subir pra tirar a gente da rua e que agente não ia fica em Feira de
Santana e pelo fato de eu e Ingrid como a gente não roubava, a gente saia,
pelo fato da gente sair muito com mariconas finas que tinha dinheiro, então
elas não admitiam, elas não aceitavam, elas não gostava pelo fato delas
roubarem. (Entrevista realizada com Greta em 15.01.2010).
Quem manda o doce sempre espera o retorno de outro. Dessa forma uma
velha procura não mandar doce para outra, visto que ambas possuem muitos
marginais conhecidos, como nos relata Sophia.
Acontece muito de elas mandarem os moleques bater essas coisas. Mais
elas não manda pra mim porque elas sabem que eu moro aqui na
Queimadinha, tenho muito conhecimento com marginais, essas coisas aí
elas amedrontam um pouco. (Entrevista realizada com Sophia em
10.12.2009).
Um acessório do kit de proteção: o uso das armas brancas
Pau, pedra o que tiver pela frente. Existe navalha, existe bisturi. E... até faca
elas leva. (Entrevista realizada com Brigitte em 14.01.2010).
Compreendemos como arma branca todo e qualquer objeto simples que
serve de arma, para a defesa ou ao ataque, com geometria pontiaguda ou lâminas,
tendo a capacidade de perfurar ou cortar. Dentre essas armas, as mais usadas e
190
encontradas nas bolsas das Trans são: prego, parafuso, agulha, tesouras, chave de
fenda, canivete, navalha e vidro.
Também são consideradas armas brancas outros objetos simples usados
para golpear, perfurar ou cortar, tais como: pedaços de madeira, pedaço de aço e
pedras.
No território da prostituição é comum ocorrer situações de violência. Por isso
as Trans justificam o uso de armas brancas para se protegerem de marginais que
transitam no centro e dão voz de assalto e para, além disso, com essas mesmas
armas, intimidar o cliente que se recusa a pagar o programa estipulado.
É comum, porque lá na rua aparece muito marginal, muito assaltante, aí se
ele for roubar a bicha que tiver com dinheiro e celular, ela tem que se
defender. Em outras ocasiões, em relação as travesti que roubam, elas
usam algum tipo como arma. Com certeza tem que usar. Quando o cliente
não paga a gente usa a navalha. Lógico que temos que usar é para a
proteção. [Para intimidar usamos] voz alta, que eles não gostam disso, e se
a bicha for forte da um tapa na cara, para ele ver que a bicha bater, além
disso elas usam garrafa e chave de fenda. Mais tem uns [clientes] que não
deixa barato e vai atrás também. (Entrevista realizada com Ava em
18.01.2010).
As armas brancas constituem-se numa estratégia para manter a norma do
território. Apesar de se constituir numa ação delicada e ilícita seu uso é constante e
uma arma branca faz parte do kit de proteção da maioria das Trans entrevistadas.
Entre batons, pó compactos e rímel, encontram-se objetos cortantes utilizados para
azuelar107 o cliente ou ainda intimidar a ação de marginais no centro.
Em sua casa, realizando a entrevista, Bette foi até seu humilde quarto e
voltou com sua bolsa que leva todos os dias para a pista. Abriu e saiu retirando
dinheiro, camisinha, lubrificantes, brilho, pó compacto, lápis de olho e um estilete,
mostrando-nos e dizendo sorrindo isso aqui é para fazer a ponta do lápis de meu
olho. Já Greta afirma que está andando desprevenida, pois tinha deixado seu
estilete num motel.
Esses dias estou indo para pista com a cara e a coragem. Mas às vezes a
gente sempre leva um estilete, uma tesoura, um gilete, alguma coisa assim
do tipo, mais ultimamente eu to indo sem, pois eu to em falta, aí to indo só
com a cara e a coragem. Ultimamente eu tenho um espelho que ele era de
uma maquiagem. Menina, então descoloquei ele, por eu ter descolocado ele
se torna uma arma, por que é um espelho normal como outro qualquer, o
formato de um quadrado, ele se torna uma arma, mais eu ia com um
107
O mesmo que roubar.
191
estilete, agora esses dias não que ele quebrou, to indo desarmada. Já usei
na vítima para se defender ou mostro pra vítima ficar inibida. Coagir. Só pra
coagir, não ferir, ferir a vítima não. Já teve vez da gente ir pros motéis a
gente tá com estilete nas calças e na hora da relação, na hora de tirar as
calças o estilete cair já pra ele ver a zuada mesmo que eu estava armada,
pra ele não tentar algo, ficar de boa. Ele observar que eu estou preparada
pra qualquer coisa. (Entrevista realizada com Greta em 15.01.2010).
Outras Trans preferem não utilizar essas armas, apelando proteção divina.
Acreditam que tais usos intensificam a criminalidade e para fugir dos riscos
permanecem atentas aos sinais de violência e criam vínculos de amizades com os
marginais que roubam no centro. Reparam para o perfil do cliente, analisam sua
conversa e a partir daí assinam o programa.
Quando eu vou entrar no carro, que abaixa o vidro, aí já vou olhando
tudinho ali do carro, só se tiver debaixo do banco alguma coisa, mais eu
olho, e chamar por Deus, porque a gente vai mais não sabe se volta
mesmo, chamar por Deus e ir pro programa. Não, não uso essas coisas
não, nem navalha, nem gilete, essas coisa eu não uso, aí já é pra viadinho
baixo. Tem algumas que usam essas coisas, estilete essas coisas, mas eu
não. (Entrevista realizada com Sophia Loren em 10.12.2009).
A cafetinagem
Não, lá não existe isso não, lá é cada uma por si, não existe o cafetão! É,
em outras cidades até pode existir, e existem. Mas em Feira não existe,
não. (Entrevista realizada com Brigitte Bardot em 14.01.2010).
De acordo com o Código Penal Brasileiro a cafetinagem é considerada um
crime, tanto para a retirada de lucros por meio de pedágio ou multa ou ainda por
obrigar o indivíduo a permanecer na prostituição contra sua vontade, visando lucro.
Recentemente a Justiça brasileira avaliou as leis que eram aplicadas à prostituição,
ampliando e adequando-se às realidades das diversas formas de prostituição
existentes no Brasil.
Para o Código Penal, CP- DL-002.848-1940, descrito em Brasil (2004),
alterado pela L-012.015-2009, o lenocínio corresponde à prática da cafetinagem
constituindo-se em um crime contra os direitos dos sujeitos que se prostituem de
gozar da renda gerada pela venda do corpo e do prazer, sem se fazer necessário
192
gerar débitos pelo uso de seus corpos em espaços particulares e nem públicos. O
capítulo V dessa lei, escrito em sua primeira versão em 1940, foi alterado pela L011.106-2005 correspondendo ao lenocínio e ao tráfico de pessoas. Sofreu recente
alteração pela L-012.015-2009, foi nomeclaturada como “do lenocínio e do tráfico de
pessoas para fins de prostituição ou outra forma de exploração sexual”.
Essas alterações visam proteger as atividades da prostituição de circuitos
internacionais de tráfico de mulheres, e em nosso caso de análise de Trans, pois os
tráficos compõem um esquema articulado em diversas escalas geográficas de
análise. Para a L-012.015-2009, analisada em Brasil (2004), a cafetinagem é um
crime, previsto nos artigos 228, 229 e 230 por induzir ou atrair alguém à prostituição
ou outra forma de exploração sexual, como também facilitá-la, impedir ou dificultar
que alguém a abandone. Está previsto no artigo 229 que manter, por conta própria
ou de terceiro, um estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja ou não,
intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente, efetiva-se como uma
prática criminosa.
Nessas situações o cafetão ou cafetina tiraram proveito da prostituição alheia,
participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em
parte, por quem a exerça, como está previsto no artigo 230. Em nossa área de
estudo a cafetinagem é uma ação escamoteada e muito próxima da madrinhagem. A
fronteira entre essas duas estratégias territoriais Trans é delicada e só pode ser
analisada por meio de um convívio profundo para distinguir quando a madrinha
torna-se cafetina da novata.
Geralmente, ao amadrinhar uma nova Trans dando-lhe o passe livre para
circulação do Centro, as mais velhas, num jogo intenso de poder, estabelecem uma
série de critérios de convívio entre suas afilhadas que se aproximam da
cafetinagem, o que para o código penal brasileiro se constitui em lenocínio.
Mas em Feira de Santana não existe o agente da cafetinagem nas ruas onde
o trottoir acontece. Todas as princesas que acompanhamos durante a etapa de
campo possuem informações sobre o lenocínio e reivindicam justiça quando a
prática se manifesta, de forma pontual, sobretudo pela ação de dominação das mais
velhas.
Não existe um cafetão ou cafetina declarado (a) no território da prostituição
feirense, mas presenciamos nos depoimentos ou na cobrança de multas, a
manifestação dessa prática. A cafetinagem, em nosso campo, não é uma pessoa,
193
ela estava diluída entre as Trans mais fortes, constituindo-se numa ação, ou como
preferimos chamar, numa estratégia territorial.
Em Feira de Santana não tem cafetina, não existe cafetina em Feira de
Santana, porque cafetina que é cafetina tem sua casa própria e dá moradia
a travesti. Pra ser cafetina, faz um apartamento, tem condições pra fazer um
apartamento e botar várias travestis pra morar, aí aquelas travestis que
mora no apartamento dela, ela bota na rua pra trabalhar. (Entrevista
realizada com Sophia em 10.12.2009).
Para Pelúcio (2007) existe uma diferença significativa entre cafetão e cafetina
no território Trans. Em sua realidade de pesquisa a cafetinagem está posicionada no
espaço como um agente territorial, diferente do nosso em que o fenômeno se
apresenta enquanto estratégia/ação. O cafetão para as informantes de Pelúcio
(2007) não entendem as amarguras do trottoir, ao contrário da cafetina que já
batalhou e sentiu “nos nervos e na carne” as dificuldades da rua. A cafetina
confunde-se com o papel de mãe/madrinha quando a Trans afilhada cumpre com
suas obrigações; o pagamento diário, semanal, quinzenal ou mensal é simbólico
dentro da realidade da Trans. No caso do cafetão, ele estipula um valor que é
aplicado, fiscalizado e multado com juros que custam até a vida.
Essa situação apresenta-se de forma pontual na praça onde as princesas do
sertão batalham contra a velhice de seus corpos hormonizados e contra as
adversidades da prostituição, como, por exemplo, as situações de violência. A
prostituição de rua é mais autônoma no que se refere à cafetinagem, como observou
Oliveira (1994). O trottoir é o laissez-faire do erotismo, visto que o corpo que se
prostitui não está diretamente submetido a um agente de cafetinagem ou ainda a
administradores de hotéis. Porém não estão isentas de sentirem repousarem sobre
seus corpos as penalizações da cafetinagem, seja ela por uma outra Trans mais
forte e influente, por marginais que cobram pelo uso do ponto, por policiais ou ainda
por donos dos hotéis de alta rotatividade.
Administradores de hotéis, marginais e policiais estão inclusos na rede da
prostituição Trans. São estes que fazem a segurança de suas práticas e são os
mesmos que criam a situação de desconforto, expulsão ou extermínio. Esse
convívio está imerso no campo de forças que constitui o território onde os agentes
se conflituam, mas convivem em situações de mutuabilidade.
194
As Trans compreendem que não existem cafetinas na rua. As monas que
dominam a rua são as Trans velhas e fortes, estas se utilizam da cafetinagem para
afetar, dominar e influenciar. Para Greta a cafetinagem está escamoteada na força e
influência de uma Trans, que em determinadas situações deixa eclodir essa prática,
demonstrando sua dominância e suas ações territorializadoras.
Existe assim encubada, não existe uma cafetina manifestada, assim, ela é
uma cafetina que se manifesta e não se manifesta, é de tempo. Então
houve realmente quando eu logo comecei aqui houve, pode falar o nome?
Houve uma que eu e minha amiga Ingrid agente tava se arrumando na casa
dela, então ela queria cobrar semanal agente um valor, aí eu conversei com
outras e outras disseram que era cafetinagem, que isso era errado, ela foi e
conversou comigo e parou de cobrar e outra foi a que se diz a dona da rua,
a cafetina, entendeu? Que às vezes se manifesta, diz que vai cobrar a rua,
ia cobrar as bichas de fora, aí depois se aqueta, depois volta tudo de novo
dizendo que vai cobrar que vai fazer acontecer, no meu caso eu nunca
paguei nada, não sei se é porque eu tava morando na casa de pessoas da
rua forte. (Entrevista realizada com Greta em 15.01.2010).
Corroborando com os posicionamentos de Greta e Bette, afirmamos que a
ausência da cafetinagem em Feira pode ser justificada pela acentuada quantidade
de Trans batalhando no centro e a baixa procura desses serviços sociais. Vale à
pena destacar que a prostituição existe quando os serviços sexuais do corpo de um
determinado indivíduo são postos sobre a égide do mercado. Contudo, essa
atividade é um emaranhado de processos que vai além da relação de troca entre
uma prática sexual e uma quantia de dinheiro, entrelaçando questões das
subjetividades dos sujeitos envolvidos, complexificando o fenômeno.
Como Greta mesmo disse, tem uma que sempre ela se solta de vez
enquanto em termo de cafetinagem, mais eu acho assim, que hoje em dia
não há cafetinagem na rua pelo simples fato da rua não ta dando,
entendeu? Porque antigamente existia sem cafetinagem aqui. Olhe mona,
por que existe em Salvador? Porque Salvador dá claro, mais aqui hoje em
dia não dá, mas eu acho que ela não volta a cobrar pra Greta, nem pra mim,
nem pra outras de fora por isso, porque a rua não ta dando. Há a multa de
chegar e multar, mais cafetinagem eu acho que não, não existe mais na rua
não. (Entrevista realizada com Bette em 15.01.2010).
195
4.2- A fluidez territorial do cliente
Apesar de Benedetti (2005) ter notado a ocorrência de negociações de
programas com casais, os clientes das Trans de Feira são, em grande maioria,
homens, não havendo registros nos depoimentos das Trans de terem feito
programas com e para mulheres108. De acordo com Pelúcio (2007), Perlongher
(1987) e Benedetti (2005) a caracterização dos clientes109 é algo bastante
complicado devido a invisibilidade e efemeridade de sua presença na pista. Existem
vários tipos que buscam serviços diversos no território generificado da prostituição
Trans. Alguns desejam apenas companhia e outros um relacionamento sexual
atípico, no qual a penetração é feita no homem e não na “possível” mulher.
Os deslocamentos dos clientes são intensos e não se sabe exatamente onde
se inicia e se finda. Como disse Pelúcio (2007:68) “os clientes não se fixam, são os
que circulam”. Mas, por meio das observações à distancia e pelas histórias ouvidas
em campo, podemos estabelecer três grandes grupos de clientes: as mariconas, os
homens e os boys.
Para Benedetti (2005), assim como registrado nas falas das Trans, as
mariconas são homens maduros, geralmente casados, que possuem forte prazer em
relacionamentos homoafetivos. Esses clientes, aparentemente, possuem uma vida
108
É ainda casual histórias de triângulos amorosos envolvendo na trama do sexo a participação de
uma mulher. A participação de um homem, um gay e uma mulher chamado usualmente de suruba é
compreendido como o “caramelizado” entre as Trans da praça, visto que a terceira cobertura, elas,
dariam um sabor diferente ao ato sexual no grupo. O caramelizado pode até ocorrer, muito
raramente, mas alguns mais audaciosos se lançam nessa experiência. Contudo, a rejeição do
programa para mulheres era estampado. As Trans não permitem o encontro de seus corpos com
mulheres, entra em choque o feminino Trans e o feminino heteronormativo, um duelo ainda não
aceito entre as participantes dessa pesquisa, porém relatado nos estudos de Pelúcio (2007).
109
O cliente é o agente mais fugaz da prostituição. A prostituição não se concretiza na sua ausência.
O cliente é peça fundamental para compreender o processo. Vários pesquisadores tentaram chegar
aos clientes e estudar esse universo desconhecido. Porém, poucos avanços foram dados. O cliente é
imprevisível. E além disso está escamoteado por várias situação próprias do trottoir. Esconde-se
atrás dos profissionais do sexo que roubam a cena dos estudos, sendo os únicos que se abrem para
explicar o fenômeno da prostituição. Como norma do oficio, pouco se sabe acerca do cliente e
também pouco se pergunta. Talvez, as pesquisas deveriam estar direcionadas para compreender os
esquemas de proteção desse agente para posteriormente chegar a ele e sua diversidade social.
Como em outras pesquisas, não conseguimos entrevistar nenhum cliente. O único contato foi trocas
rápidas de olhares. À distância tentava vasculhar no corpo e nos objetos ao seu redor detalhes sobre
o cotidiano desse agente. A idéia de que a prostituição é realizada por um profissional do sexo está
tão internalizada que os clientes passam despercebidos aos nossos olhares. Mas, temos que
deslocar essa análise para enquadrar o cliente no centro dos debates e apreender sua dialética
participação.
196
financeira equilibrada e sempre aparecem na pista com carros de padrão
considerável. É justamente com esse tipo de cliente que a maioria dos pequenos
furtos acontecem, além de uma série de ameaças e aplicações de multas, e
ameaças de revelar desejo proibido do cliente para pessoas conhecidas.
Percebemos que clientes que foram assaltados ou multados não deixam de
freqüentar o ponto. Seu aparecimento no território, endossa uma série de hipóteses
levantadas pelas Trans, que os entendem como enrustidos, recalcados e nojentos.
O segundo grupo é chamado de homens. São supostos heterossexuais que
aparecem na pista em busca de uma aventura diferente. Não tem nenhum interesse
com o pênis das Trans, pois no relacionamento sexual realizam o papel de ativos.
São mais viris e não apresentam desejos de realizar fantasias atípicas como as
mariconas. Os homens aparecem de diversas formas na pista. Uns à pé, outros de
bicilcleta, outros de moto e em sua grande maioria de carro. Na trama do programa,
esses clientes se impõem no relacionamento, se utilizando da masculinidade
coagindo qualquer tentativa de máfia que uma Trans pode realizar.
Por fim temos o terceiro grupo nomeclaturado por boys. Os boys são homens
mais jovens, mais ou menos com 20 anos. As Trans adoram atender boys.
Acreditam que a transa com eles é mais prazerosa. Em muitas situações a Trans
sente-se tão realizada com o ato sexual que não cobra o programa. É com os boys
que elas fazem o vício, ou seja, fazem sexo sem cobrar.
Quanto ao tipo econômico do cliente
Sua classificação é feita a partir de suas poses materiais (carros, roupas),
maneira de interagir com a travesti (cortês, agressivo) e de suas
preferências sexuais. Assim categorizados, são reconhecidos, possibilitando
que as travestis possam, a partir desses códigos, agir e, se preciso, se
defender. (PELÚCIO, 2007, p. 68).
Por meio dessa análise o cliente é classificado enquadrado num modelo
simbólico compartilhado entre elas. A partir disso o preço do programa é estipulado.
A tabela, como já foi mencionado, não é fixa, varia de acordo com a situação, e o
cliente é uma variável considerável. Desta forma, o tipo de cliente determina o preço
e o tipo de serviço que será realizado.
197
V - A GUÍSA DE CONCLUSÃO
198
Discutimos, ao longo dessas laudas, a presença de transformistas,
travestis e transexuais no espaço urbano enquanto agentes dinâmicos no uso da
cidade. A presença das Trans nas ruas e avenidas, por meio de sua insistente
persistência espacial, mesmo com coações, tem conquistado um espaço ambíguo
na sociedade brasileira. A mídia, como aparato tecnológico de disseminação e
manipuladora de informações, coloca em xeque as sensações de ambiguidade que
situa-se nos interstícios do exótico recoberto pelo manto do preconceito e da
exclusão, ao mesmo tempo em que discute novos olhares no que se refere ao
respeito as particularidades e especificidades que tais identidades demandam.
A organização social de Trans, paralelo e incluso ao movimento gay se
propõe lutar contra as repressões reiteradas pela matriz heterossexual presentes
nas arquiteturas e nas frações espaciais, reivindicado espaço social e espaço
territorial. A articulação desse movimento, denota que tal processo está inacabado.
Os frutos dessas conquistas já estão sendo colhidos, inclusive na cidade de Feira de
Santana. No que tange a militância homossexual, o Grupo Liberdade Igualdade e
Cidadania Homossexual- GLICH tem sonhando por dias menos homofóbicos, e para
isso tem realizado ações que positivam uma cultura homossexual na cidade
princesa atingindo os municípios da microregião de Feira de Santana, uma
polarização urbana queer especializada na homocultura.
Como citou Silva (1993) mesmo considerando as transformações da
sociedade e uma relativa aceitação pública, os antigos preconceitos e as
disposições hostis não se dissiparam completamente. No corpo das Trans estão
tatuados as marcas de uma sociedade que ainda a rejeita e extermina. Cicatrizes de
cortes, hematomas e marcas de balas insinuam o paradoxo da suposta flexibilidade
brasileira às performatividades queers.
Se o corpo das Trans está em constate alteração, rumo a uma sinuosidade
estética, suas performances subversivas tem embaralhado o “corpo” teórico da
Geografia. Nossas teorias espaciais acostumadas com as interpretações que
priorizam a heteronormatividade precisaram ser reavaliadas por um conjunto de
teóricos que contribuam para repensar o espaço e sua política de uma forma mais
plural.
As contribuições de Foucault sobre o conceito de poder foram de fundamental
importância para discutir a dominação masculina presente no conceito de território.
Esse mesmo poder conota a contradição existente na sociedade. A matriz
199
heterossexual, que abjeta um corpo desviante das normas, é produzida pela mesma
sociedade que retroalimenta o circuito da prostituição. Nesse circuito alguns
políticos, empresários, industriais e agentes do grande capital deleitam-se no mais
distinto que existe entre o mundo do homem e da mulher: os gêneros Trans.
O corpo que se vende é o corpo menosprezado e martirizado pelas normas
sociais em prol da moral e da ética. Sobre este pesam-se as leis, convenções,
símbolos, código e normas de cerceamento, vigilância e punição. Mas o corpo que
se vende só existe em relatividade/dependência ao corpo que paga e o que se
percebe que este último é protegido pelas mesmas teias que sufocam, às vezes até
a morte, os corpos que se vendem, como os corpos das transformistas, travestis e
transexuais. E quando este corpo que se vende é um corpo masculino transformado
à luz do feminino o julgamento ainda é pior. Concepções que são basilares na
sociedade ocidental como as religiosas, institucionais, patriarcais entre outras,
automaticamente, sem muita cerimônia, são acionadas para julgar e punir. Qualquer
um que se distancia do binarismo tanto defendido por Harry Benjamin (citado por
Bento, 2006) onde aquele que nasce com pênis determinadamente deve ser homem
e másculo e aquela que nasce com vagina deve vir a ser a mulher, terá que pagar
alto preço por não respeitar os imperativos da “natureza divina” que se revela em
nosso corpo.
Quando tratamos dos gêneros Trans, em nenhum momento, corroboramos
com a idéia do terceiro gênero. Essa hierarquização não dá conta das
multiplicidades performáticas presentes na sociedade, como também gera um
descompasso daquilo que é proposto pelas transformistas, travestis e transexuais.
Mesmo subvertendo os binarismos, esses sujeitos se reinventam a partir do modelo
homem-mulher. O terceiro gênero seria inaplicável para realidade dessa pesquisa,
visto que as Trans declaram não serem mais homens e não terem pretensões se
serem mulheres. O terceiro por ordem hierárquica não está situada entre os dois
primeiros e posiciona-se após o segundo o que não remete a posição dos gêneros
Trans de acordo com sua ambiguidade. Posições numéricas, na tradicional idéia de
ordem de algarismos, dos quais usualmente estamos acostumados a classificar, não
dá conta do paralelo e paradoxo mundo subversivo das Trans.
Ao contrário da idéia de terceiro, esses gêneros se produzem na heterotopia
do espelho como nos alertou Foucault (1967), como algo que se vê projetado, mas
não está ali e sua imagem refletida não corresponde a sua representação fidedigna.
200
As Trans se reinventam em espelhos diferentes, contraditórios e complementares. O
resultado dessa TRANSformação borra qualquer sentido normatizador. Dessa
metamorfose eclode um gênero pluralizado, mas que ainda mantém nas entranhas
de suas representações, ligações profundas com a matriz da heterossexualidade.
A fronteira conceitual dessas performatividades de gênero é sutil e seu
trânsito não é algo tranqüilo. Percebemos que as autoidentificações realizadas por
nossas informantes, em sua grande maioria, são mais funcionais que identitárias. A
transformista e a transexual, sobretudo, aparecem como categorias estratégicas
para a prostituição, servindo como um mecanismo eficaz para o trottoir, mas que
escamoteia outras particularidades de gênero que correspondem a outro tipo de
performatividade que embaralha os sentidos da ciência.
Talvez, como defende Peres (2005) a categoria Transgênero consiga, nesse
sentido, traduzir a ambigüidade da ambigüidade, e compreender corpos que
aparentam um gênero e se comportam de outro modo. Nesse sentido, o uso dessa
categoria, se subvertido a realidade brasileira e melhor aprofundado com debates
teóricos mais concisos, trariam ganhos a nossa indecisão de classificar, em nossas
pesquisas, aquilo que foge a todo custo dos rótulos.
Acreditamos que as Trans compartilham de uma ousadia “levada” de ir
paulatinamente embaralhando tudo, numa metamorfose infinita, desestabilizando as
certezas que necessitamos para inferir um veredicto de ciência. As Trans revelam,
desde já, o quanto precisamos mergulhar nesse universo para conhecer suas
particularidades e traduzir com novas posturas de teóricas essa produção difusa.
No que se refere ao conhecimento geográfico aqui produzido, sinalizamos
alguns avanços para os estudos das sexualidades e dos gêneros. O espaço está
codificado de discursos, que, materializados, normatizam o cotidiano. As
arquiteturas estão empregadas da densa heteronormatividade que reitera,
cotidianamente, as lógicas binaristas. Deve-se por tanto, considerar a história
desses discursos levando em consideração sua materialidade e funcionalidade
espacial, retirando do gênero outro problema não destacado por grande parte dos
estudiosos: o espaço onde ele se reproduz.
Como nos alertou Foucault (1967) o espaço possui a possibilidade de agregar
processos múltiplos e instantâneos e é nele que os discursos generificantes se
efetivam. Todas as tecnologias que generificam os corpos estão presentes no
espaço, inclusive as que contradizem as normas sociais, ainda que de forma
201
paradoxal. Compreender essa geograficidade é devolver ao gênero seu corpo
espacial, tornando mais fácil a compreensão da organização social por e a partir da
organização espacial. Assim, entenderemos como as performatividades resistem às
crises identitárias e se fortalecem na sociedade pós-industrial e se mantém vivas no
espaço.
Não pretendemos trazer à tona profissionais do mercado do sexo, restritas as
pessoas que executam uma função no circuito do capital. Existe uma lógica
alimentada pelo modo de produção e isso é inegável. Contudo, há de se considerar
as subjetividades do trottoir e desconstruir uma série de mitos presente no senso
comum.
Dentre esses mitos, acredita-se que a vida prostituta é uma vida fácil. Nas
linhas dessa dissertação ficou comprovada a árdua tarefa de se transformar e
sobreviver. E para, além disso, existem os relatos que não foram publicados sobre a
rejeição familiar, escolar e da sociedade atrelada aos ataques homofóbicos que
geram a restrição da vida social em função da prostituição. O dinheiro ganho pelo
sexo pago reserva em si uma profunda contradição de um corpo múltiplo que é
acessado de diversas formas no programa. Enquanto para o cliente o corpo
representa o objeto a ser consumido, para as Trans o corpo se agoniza, entre
objeto, vida e coisa. Essa situação se torna mais evidente no território marginal,
onde o corpo encontra, a priori, lugar enquanto mercadoria.
A existência das Trans fazendo pista desconstrói outro mito, que atribui à
função do meretrício a mulheres. Em Feira de Santana, o Centro está povoado de
homens, mulheres, travestis, transformistas e transexuais que vendem o prazer.
Cada grupo se estrutura numa parcela do solo urbano ao longo de avenidas centrais
da cidade princesa. As mulheres aqui pesquisadas são fálicas diferentes das que
sempre protagonizaram a história da prostituição em nossa sociedade. Se as Trans
se fabricam no espelho da mulher, pudemos comprovar que não é qualquer mulher.
As
mulheres
que
alimentam
o
imaginário
das
Trans
são
reflexo
da
heteronormatividade, talvez esse seja um dos motivos de tantos tensionamentos no
centro com as garotas de programa da Matriz, pois no espelho da Trans jamais
estaria uma puta, por que Trans é luxo, cú é luxo, come quem pode, (OLIVEIRA,
p.151, 1994).
A problemática escolhida para ser analisada nessa dissertação envolve
processos amplos e de escalas espaço-temporais diversas o que complexifica o seu
202
entendimento e sua compreensão mais profunda. Isso significa que aqui, nessas
laudas, não se encontram, e nunca foi a nossa pretensão, as respostas totais sobre
o fenômeno trans em Feira de Santana. Mais que análises teóricas arraigadas de
modelos científicos esse texto se apresenta de forma interpretativa, por que a
intenção era trazer as sensações que os corpos que pavoneam no espaço urbano
feirense produzem na dialética dos gêneros divergentes em conflito com a matriz da
heterossexualidade e suas instituições normatizadoras. Essa pesquisa está baseada
na interpretação do cotidiano; e cotidiano não pode ser reproduzido, justamente por
que a amalgama que compõem o cotidiano se interceptam de forma impar e é
irreproduzível novamente com as mesmas características, fluidez e intensidade. Os
momentos e as eventualidades são instantes únicos. Por isso não concebo que
diferentes sujeitos, como os mesmos instrumentos de pesquisa, nos moldes do
positivismo, chegariam às mesmas conclusões aqui esboçadas a cada capitulo
discutido.
Sendo assim e longe dos postulados, acreditamos que o refazer metodológico
dessa dissertação, com as mesmas entrevistadas, com os mesmos passos de
campo não trariam a tona os mesmos resultados, por que o que se apresenta como
conclusão nada mais é que uma interpretação historicamente localizada,
politicamente situacionada e geograficamente percebida. Aliás, não chegamos à
conclusão alguma por que de inicio a idéia não era concluir! Porém, o que está
escrito aqui impulsiona uma série de questionamentos e outros olhares para
desnudar o espaço por meio de outros caminhos teóricos dos quais a geografia e as
ciências seduzidas pelos estudos sobre gênero precisam conhecer.
A discussão esboçada sobre a abjeção como processo a partir de Butler pode
ser expandida para outros fenômenos de pesquisa tal como foi aplicado. Os espaços
da diferença ocupados por seres maginalizados reproduzem a lógica da abjeção de
gênero observada por Butler. Esses espaços e suas arquiteturas reservam muitas
peculiaridades que podem ser compreendido e interpretado. Talvez esse seja o
caminho para responder uma inquietação maior sobre a interconexão entre dois
temas caros a essa dissertação e para geografia de Gênero: a produção do espaço
e produção dos gêneros.
O levantamento teórico aqui iniciado aponta novas demandas para
compreender como os gêneros influenciam na produção espacial e se as
ferramentas teórico metodológicas que possuímos hoje conseguem dar conta e
203
responder essa inquietação. Observando as formas espaciais e a hegemonia dos
agentes que produzem o espaço, podemos afirmar que o que se consegue perceber
é que os gêneros não produzem o espaço de forma diferenciada no que se refere,
sobretudo, à forma.
A predominância da escola marxista para falar de produção espacial não
permite que se avance nesse sentido, mas se observa que se o espaço é uma
totalidade complexa as funções e os usos espaciais se diferenciam pelos gêneros e
são potencializados pelas abjeções. Portanto nascem as heterotopias espaciais
como nos alerta Foucault.
A descoberta da leitura e interpretação dessas heterotopias podem ser
esmiuçadas se acionarmos a categoria de lugar, por que no lugar o cotidiano é
capaz de desvelar os detalhes da produção dos gêneros bem como a eclosão dos
diferentes usos e funções espaciais. Por usa vez a contribuição se ampliaria se os
pesquisadores de gênero soubessem manipular esse conceito que facilitaria o
entendimento da trama dos gêneros, sobretudo os abjetos.
A trama dos lugares levantou, nessa pesquisa a necessidade da classificação
dos gêneros, que foi muito discutido e combatido nos estudos essencialistas, visto
que essa estratégia metodológica foi utilizada como rótulos, fixos e determinantes.
Porém não fizemos dessa maneira e pudemos observar que os deslocamentos e
usos espaciais se diferenciavam de acordo com cada performatividade. Isso reforça
a idéia de que é necessário unir forças para compreender as nuanças de cada
performance e seus vínculos espaciais.
A historicidade e a fluidez do território no centro da cidade ao longo de
quarenta anos evidenciou as crises e os períodos áureos do trottoir e como os
diálogos e resistências fizeram as Trans permanecerem centralizadas junto a
grandes instituições importantes para Feira de Santana: a Igreja, a polícia e a
política. Suprimidas por questões metodológicas110, ao lado do território das Trans
encontram-se outras territorialidades do sexo, dominadas por garotas de programa e
michês que se espalham pelas avenidas centrais. Mais antigo que as Trans das
meretrizes situadas no beco da energia e na praça da Matriz dominam outra parcela
do centro e em vez em quando esses grupos se afrontam buscando a autoridade e
110
O conflito entre Trans e garotas de programa fizeram parte do projeto inicial dessa dissertação,
porém pela amplitude das questões de pesquisa optamos protelar essa análise iniciada na
graduação, com projetos menores, para outro momento.
204
dominância da prostituição de rua em Feira. Esse conflito entre garotas de programa
e Trans, não aprofundado nessa dissertação, revela outras estratégias territoriais
aqui não esboçadas bem como demonstra que além de conflito esses grupos
também se cooperam quando se faz necessário, sobretudo quando a vida de
alguma delas é posta em risco ou põem em risco a existência de seus territórios.
Diferentemente, não observamos tensionamentos territoriais entre as Trans e
as garotas de programas com os michês que dominam a praça de alimentação e a
rodoviária. Seu comportamento espacial requer outros mecanismos de pesquisa, por
que diferente dos outros dois grupos os michês possuem um fluidez espacial muito
mais ampla, e sua capacidade de deslizar e se escamotear entre os homens que
circulam no centro é muito grande, visto que em Feira de Santana ainda não é
visível
um
território
de
concentração
especifico
de
michês,
apesar
de
compeendermos que existe uma estratégia espacial sofisticadamente pensada.
Imersos no território Trans pudemos descobrir, para além do exótico que nos
saltam os olhos, pessoas, dotadas de sentimentos e reprimidas pelas diferenças de
classe. Em suas narrativas, suas vidas jorravam em histórias detalhadas, carregadas
de desafios e exclusão. Dores que são lembradas na solidão de suas casas, ao
acordarem pós uma noitada em cima de saltos. Na rua esquecem temporariamente
as frustrações e mais uma vez reescrevem outra Geografia paralela na pista:
circunscrevem seu lugar, onde as afetividades espaciais retiram-lhes do desterro.
A rua se torna espaço do encontro, da socialização que enriquecem o gênero.
Nos bancos da praça tratam de aprofundar laços territoriais carregados de
afetividade, subvertendo, inclusive o sentido de território. Emerge o lugar Trans no
escombro do território denso de conflitos pela posse observada entre as garotas de
programa, traficantes, marginais e entre as próprias Trans.
E quanto mais a gente mergulhar nesse universo, mais vai se descobrindo a
humanidade dessas pessoas. E escrever sobre tudo isso exigiu de nós uma doação
afetiva, intelectual e física. Porém, o que enquanto pesquisadores doamos em
curiosidade intelectual, trouxemos para essas páginas triplicados em descrições,
descobertas, dados e textos.
205
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217
APÊNDICES
218
Quadro 07
Consumo preferencial trans- vestuário e farmácias
TRANS
Joan
CATEGORIA
Transformista
BAIRRO QUE RESIDE
Sobradinho
LOJAS MAIS
FARMÁCIAS MAIS
FREQUENTADAS
FREQUENTADAS
Versátil
Caroá (Getúlio Vargas)
JR Confecções
Silva (Praça da Bandeira)
Mersan
Marlene
Transformista
Jardim Cruzeiro
Marisa
Caroá (Sobradinho)
Brigitte
Transformista
Eucalipto
Pernambucanas
Pinto (Senhor dos
Tecidos São Paulo
Passos)
Valério
São Luís (J.J Seabra)
Silva (Praça da Bandeira)
Ava
Transformista
Rua Nova
C&A (Senhor dos
Algumas do bairro
Passos)
Caroá (Getúlio Vargas)
Marisa
Silva (Praça da Bandeira)
Estação 10
Elizabeth
Travesti
Campo Limpo
Caju Ameixa
Trabalhador (Getúlio
Riachuello
Vargas)
C&A (Senhor dos
Do povo (Getúlio Vargas)
Passos)
Silva (Praça da Bandeira)
219
Claudia
Travesti
Jardim Cruzeiro
Mersan
Caroá (Getúlio Vargas)
Zig calçados
Silva (Praça da Bandeira)
C&A (Senhor dos
Passos)
Romy
Travesti
Rua Nova
C&A (Senhor dos
Caroá (Getúlio Vargas)
Passos)
Trabalhador (Getúlio
Marisa
Vargas)
Estação 10
Catherine
Travesti
Campo Limpo
C&A (Senhor dos
Ametista (Cidade Nova)
Passos)
Caroá (Getúlio Vargas)
Esplanada
Silva (Praça da Bandeira)
JR confecções
Grace
Travesti
Jardim Cruzeiro
C&A (Senhor dos
Caroá (Getúlio Vargas)
Passos)
Silva (Praça da Bandeira)
Art Zorra
Do povo (Getúlio Vargas)
Lupalina
Katharine
Travesti
Centro
Lorena
Caroá (Getúlio Vargas)
Moda Mix
Silva (Praça da Bandeira)
C&A (Senhor dos
Passos)
Marilyn
Transsexual
Kalilândia
Marisa
Caroá (Tênis)
220
C&A (Senhor dos
G barbosa (rodoviária)
Passos)
Grippon
Bette
Transsexual
Barroquinha
Mersan
Caroá (Getúlio Vargas)
Zig calçados
Silva (Praça da Bandeira)
C&A (Senhor dos
Passos)
Greta
Transsexual
Barroquinha
Shopping 10
Silva (Praça da Bandeira)
Moda 10
Caroá (CERASA)
Top 10
Trabalhador (Getúlio
Vargas)
Sophia
Transsexual
Queimadinha
C&A (Senhor dos
Luz (Queimadinha)
Passos)
Caroá (Getúlio Vargas)
Esplanada
Silva (Praça da Bandeira
Marisa
221
Quadro 08
Lugares de identificação trans em Feira de Santana
TRANS
CATEGORIA
IDADE
CIDADE DE NASCIMENTO
LOCAIS QUE SE IDENTIFICAM EM
FEIRA DE SANTANA
Joan
Transformista
25
Feira de Santana-BA
Avenida Marechal Deodoro
Praça de Alimentação
Avenida Getúlio Vargas
Marlene
Transformista
16
Feira de Santana-BA
Avenida Marechal Deodoro
Praça do Bairro Viveiros
Alto do Cruzeiro
Brigitte
Transformista
50
Feira de Santana-BA
Praça dos Remédios
Praça Bernardino Bahia
Praça da Matriz
Ava
Transformista
24
Feira de Santana-BA
Avenida Marechal Deodoro
Centro de Abastecimento
Rua Nova
Elizabeth
Travesti
20
São Paulo - SP
Shopping Boulevard
Bar Gogó de Ouro
Praça de Alimentação
Claudia
Travesti
22
Feira de Santana-BA
Centro da cidade
Praça do Tomba
222
Alto do Cruzeiro
Romy
Travesti
28
Feira de Santana-BA
Rodoviária
Alto do Cruzeiro
Praça do Campo Limpo
Catherine
Travesti
34
Feira de Santana-BA
Avenida Marechal Deodoro
Praça de Alimentação
Praça do Campo Limpo
Grace
Travesti
35
Feira de Santana-BA
Avenida Marechal Deodoro
Praça de Alimentação
Avenida Presidente Dutra
Katharine
Travesti
22
Feira de Santana-BA
Shopping Boulevard
Praça de Alimentação
Alto do Cruzeiro
Marilyn
Transsexual
42
Feira de Santana-BA
A casa dela
A casa dela
A casa dela
Bette
Transsexual
23
Amélia Rodrigues-BA
Barroquinha (casa)
BNB Clube
Centro de Abastecimento
Greta
Transsexual
19
Amélia Rodrigues-BA
Barroquinha ( casa)
223
Praça de Alimentação
Avenida Marechal Deodoro
Sophia
Transsexual
32
Feira de Santana-BA
A casa dela
Shopping Boulevard
Pizzaria Água na boca.
224
Quadro 09
Pontos e permanência de prostituição
TRANS
Joan
CATEGORIA
Transformista
PPONTO DO
TEMPO DE
TROTTOIR
PERMANÊNCIA
Avenida Marechal
5 anos
Deodoro
Marlene
Transformista
Avenida Marechal
ANTIGO PONTO
PRETENÇÕES DE
MIGRAÇÃO
Avenida Marechal
Não pretende sair
Deodoro
1 ano
Madre de Deus
São Paulo
38 anos
Praça Bernardino
Não pretende sair
Deodoro
Brigitte
Transformista
Praça Bernardino
Bahia
Ava
Transformista
Avenida Marechal
Bahia
4 anos
Deodoro
Elizabeth
Travesti
Avenida Marechal
Travesti
Avenida Marechal
Itália
Deodoro
1 ano
Deodoro
Claudia
Avenida Marechal
Avenida Marechal
Itália
Deodoro
12 anos
Salvador
Itália
10 anos
Goiânia, Santos e
Pretende migrar para
Brasília
cidades brasileiras
Avenida Marechal
Não pretende sair
Deodoro e
Presidente Dutra
Romy
Travesti
Avenida Marechal
Deodoro e
Presidente Dutra
Catherine
Travesti
Avenida Marechal
10 anos
225
Grace
Travesti
Deodoro e
Deodoro e Presidente
Presidente Dutra
Dutra
Avenida Marechal
18 anos
Deodoro
Katharine
Travesti
Avenida Marechal
Transsexual
Avenida Presidente
Não pretende sair
Deodoro
2 anos
Deodoro
Marilyn
Avenida Marechal
Avenida Marechal
Salvador
Deodoro
23 anos
Itália
Não tem ideia
1 ano
Amélio Rodrigues
Pretende migrar para
Dutra
Bette
Transsexual
Avenida Marechal
Deodoro
Greta
Transsexual
Avenida Marechal
cidades brasileiras
1 ano
Deodoro
Sophia
Transsexual
Avenida Presidente
Dutra
Avenida Marechal
Salvador/Itália
Deodoro
8 anos
Avenida Presidente
Não pretende sair
Dutra
226
Quadro 10
Deslocamentos intraurbanos Trans
TRANS
CATEGORIA
CIDADE DE
BAIRRO QUE
TEMPO DE
BAIRRO QUE
NASCIMENTO
RESIDE
RESIDÊNCIA
RESIDIU
Joan
Transformista
Feira de Santana-BA
Sobradinho
5 anos
Morada das Árvores
Marlene
Transformista
Feira de Santana-BA
Jardim Cruzeiro
16 anos
Jardim Cruzeiro
Brigitte
Transformista
Feira de Santana-BA
Eucalipto
25 anos
Eucalipto
Ava
Transformista
Feira de Santana-BA
Rua Nova
1 ano e 3 meses
Feira X
Elizabeth
Travesti
São Paulo - SP
Campo Limpo
3 anos
São Paulo
Claudia
Travesti
Feira de Santana-BA
Jardim Cruzeiro
1 ano e 2 meses
Tomba
Romy
Travesti
Feira de Santana-BA
Rua Nova
8 meses
Kalilândia
Catherine
Travesti
Feira de Santana-BA
Campo Limpo
34 anos
Campo Limpo
Grace
Travesti
Feira de Santana-BA
Jardim Cruzeiro
3 anos
Jardim Cruzeiro
Katharine
Travesti
Feira de Santana-BA
Centro
1 ano e 6 meses
Barroquinha
Marilyn
Transsexual
Feira de Santana-BA
Kalilândia
30 anos
Queimadinha
Bette
Transsexual
Amélio Rodrigues-BA
Rua Nova
3 meses
Barroquinha
Greta
Transsexual
Amélio Rodrigues-BA
Barroquinha
4 meses
Rua Nova
Sophia
Transsexual
Feira de Santana-BA
Queimadinha
10 anos
Queimadinha
227
Quadro 11
Identidade, idade e tempo de generificação
TRANS
CATEGORIA
IDADE
TEMPO DE
GENERIFICAÇÃO
Joan
Transformista
25
7
Marlene
Transformista
16
1
Brigitte
Transformista
50
43
Ava
Transformista
24
4
Elizabeth
Travesti
20
11
Claudia
Travesti
22
11
Romy
Travesti
28
15
Catherine
Travesti
34
8
Grace
Travesti
35
15
Katharine
Travesti
22
2
Marilyn
Transsexual
42
42
Bette
Transsexual
23
3
Greta
Transsexual
19
1
Sophia
Transsexual
32
15
228
MODELO DO QUESTIONÁRIO
APLICÁVEL PARA AS IDENTIDADES TRANS
Nome oficial:
Nome profissional:
Cidade de nascimento:
Quanto tempo mora em Feira de Santana:
Qual seu gênero:
Desde quando:
Mora com: ( )familiares ( )companh.
( )amigos ( )sozinha
Idade:
A
quanto
Quantos residentes:
Onde mora:
Mora em casa: ( ) própria ( ) alugada ( ) cedida
tempo
mora
nesta Onde
residência:
morava Qual
seu
ponto
de
trabalho111:
antes:
Qual ano começou a trabalhar em Onde trabalhava Pretende sair da cidade:
FSA?
antes?
Horário que vai para a
rua
Durante semana: das___:___ Sábado-Domingo-Feriado:
às___:___ hs
das___:___ às___:___ hs
Onde realiza os programas:
Elenque
três
motéis
Qual hotel rotativo costuma atender clientes:
mais Trabalhou
em Atualmente
trabalha
frequentados:
outras atividades: outras atividades:
1-__________________________
SIM
2-__________________________
NÃO ( )
NÃO ( )
3-__________________________
Qual:_________
Qual:_________
Rendimento mensal do trabalho:
De outros
Escolaridade:
( )
SIM
em
( )
Elenque três lojas de roupas Elenque três farmácias Elenque três lugares da
mais frequentadas:
mais frequentadas:
cidade
que
mais
1-_____________________
1-__________________
identifica:
2-_____________________
2-__________________
1-__________________
3-_____________________
3-__________________
2-__________________
se
3-__________________
Quem lhe iniciou na pista:
Houve resistências:
E atualmente
_____________________
SIM
SIM
( )
NÃO ( )
111
( )
NÃO ( )
Trabalho se refere aos serviços ligados à prostituição. Como se trata de um questionário que será
aplicado a grupos distintos, manteve-se essa nomenclatura que se modifica de acordo com os grupos
pesquisados.
229
ROTEIRO DE ENTREVISTA
IDENTIDADE TRAVESTI
01. Resgatando o processo de transformação e adaptação do seu corpo
masculino para o feminino e as tensões pessoais e sociais ocorridas:
·Fale sobre seu processo de transformação. Houve algum momento marcante?
·Como sua família reagiu a sua transformação? Antes e hoje...
·Como você vê seu corpo?Antes e hoje...
·O que você acha que as pessoas pensam sobre o seu corpo?
·Você leva sua vida a partir de qual referência de pessoa?
.Como era o convívio na escola? No seu bairro/Rua?
·Qual corpo você almejava em seu processo de montagem?
.Suas transformações foram apenas no corpo? E na mentalidade?
02. Fale sobre o cotidiano da batalha na rua, desde o seu início até os dias
atuais:
·Como foi sua entrada na pista?
·As travestis possuem alguma vantagem em relação aos outros grupos que se
prostituem?
·Já usou drogas? E as outras travestis?
·O que o cliente procura quando escolhe ter um programa com você?
03.
Se
você
pudesse
diferenciar
o
uso
do
corpo
nas
práticas
pessoais/amorosas das comerciais, como descreveria?
.Fazer sexo com seu “marido”112 é diferente de transar com clientes?
·Você possui maiores orgasmos “fazendo a linha”113 passiva, ativa ou ambos? Por
quê?
112
As travestis também chamam de maridos ou namorados sujeitos que não possuem trejeitos
afeminados, os quais elas consideram homens com quem matêm laços afetivos. O termo “Bofe”
também pode ser aplicado a essa designação.
113
Significa, a grosso modo, realizar alguma coisa. Fazer de conta. Realizar uma ação que não é
comum por um tempo determinado.
230
·De que forma é o relacionamento entre a senhora e seu marido. Como deve ser um
relacionamento de uma travesti e seu marido?
04. O que é ser travesti para você?
. O que diferencia a travesti das outras monas?
.Existe diferença entre travesti e transexual, transgênero, transformista?
.O que caracteriza as travestis?
231
IDENTIDADE TRANSEXUAL
01. Resgatando o processo de transformação e adaptação do seu corpo
masculino para o feminino e as tensões pessoais e sociais ocorridas:
·Fale sobre seu processo de transformação. Houve algum momento marcante?
·Como sua família reagiu a sua transformação? Antes e hoje...
·Como você vê seu corpo? Antes e hoje...
·O que você acha que as pessoas pensam sobre o seu corpo?
·Você leva sua vida a partir de qual referência de pessoa?
.Como era o convívio na escola? No seu Bairro/Rua?
·Qual corpo você almejava em seu processo de montagem?
.Suas transformações foram apenas no corpo? E na mentalidade?
02. Fale sobre o cotidiano da batalha na rua, desde o seu início até os dias
atuais:
·Como foi sua entrada na pista?
·As transexuais possuem alguma vantagem em relação aos outros grupos que se
prostituem?
·Já usou drogas? E as outras travestis?
·O que o cliente procura quando escolhe ter um programa com você?
03.
Se
você
pudesse
diferenciar
o
uso
do
corpo
nas
práticas
pessoais/amorosas das comerciais, como descreveria?
.Fazer sexo com seu “marido”114 é diferente de transar com clientes?
·Você possui maiores orgasmos “fazendo a linha”115 passiva, ativa ou ambos? Por
quê?
·De que forma é o relacionamento entre a senhora e seu marido? Como deve ser um
relacionamento de uma transexual e seu marido?
04. O que é ser transexual para você?
114
As travestis também chamam de maridos ou namorados sujeitos que não possuem trejeitos
afeminados, os quais elas consideram homens com quem matem laços afetivos. O termo “Bofe”
também pode ser aplicado a essa designação.
115
Significa, a grosso modo, realizar alguma coisa. Fazer de conta. Realizar uma ação que não é
comum por um tempo determinado.
232
.O que diferencia as transexuais das outras monas?
.Existe diferença entre transexual e travesti, transgênero, transformista?
.O que caracteriza as transexuais?
233
IDENTIDADE TRANSFORMISTA
01. Resgatando o processo temporário de adaptação do seu corpo masculino
para o feminino e as tensões pessoais e sociais ocorridas:
·Fale sobre seu processo de adaptação. Houve algum momento marcante?
·Sua família sabe? Como reagiu a sua transformação? Antes e hoje...
·Como você vê seu corpo?Antes e hoje...
·O que você acha que as pessoas pensam sobre o seu corpo?
·Você leva sua vida a partir de qual referência de pessoa?
.Como era o convívio na escola? No seu Bairro/Rua?
·Qual corpo você almejava em seu processo de montagem?
.Suas adaptações foram apenas no corpo? E na mentalidade?
02. Fale sobre o cotidiano da batalha na rua, desde o seu início até os dias
atuais:
·Como foi sua entrada na pista?
·As transformistas possuem alguma vantagem em relação aos outros grupos que se
prostituem?
·Já usou drogas? E as outras travestis?
·O que o cliente procura quando escolhe ter um programa com você?
03. Se você pudesse diferenciar o uso do corpo nas práticas pessoais /
amorosas das comerciais, como descreveria?
.Fazer sexo com seu “marido”116 é diferente de transar com clientes?
·Você possui maiores orgasmos “fazendo a linha”117 passiva, ativa ou ambos? Por
quê?
·De que forma é o relacionamento entre a senhora e seu marido. Como deve ser um
relacionamento de uma transformista e seu marido?
04. O que é ser transformista para você?
116
As travestis também chamam de maridos ou namorados sujeitos que não possuem trejeitos
afeminados, os quais elas consideram homens com quem matem laços afetivos. O termo “Bofe”
também pode ser aplicado a essa designação.
117
Significa, a grosso modo, realizar alguma coisa. Fazer de conta. Realizar uma ação que não é
comum por um tempo determinado.
234
.O que diferencia a transformistas das outras monas?
.Existe diferença entre transformista e transexual, transgênero, travesti?
O que caracteriza as travestis?
235
FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO TRAVESTI
01. Tem conhecimento da história da prostituição travesti em Feira de Santana?
(nomes, locais, tempo, contexto).
02. Quais os critérios de escolha do ponto de prostituição? (Diferença entre Mercado
de Artes e a Presidente Dutra).
03. Como foi o processo de instituição deste território? Como foi a relação com
moradores e policiais?
04. Quando você escolheu seu ponto, como rompeu com a resistência e a
concorrência?
·No início e hoje?
·Quem manda no território?
05. Existe alguma divisão entre as travestis? Alguma divisão de poder...
06. Como é feito o controle do território pelas travestis?
·Na relação entre as travestis?
·E entre as travestis e a sociedade em geral?
.Existe algum conflito entre as travestis e as garotas de programa? Por quê?
07. Como as travestis vivenciam entre si o cotidiano do local de batalha?
08. Qual a influência do local de batalha em seu processo de transformação?
09. Qual a importância dele hoje para você?
10. Qual deve ser o comportamento da travesti para ser aceita no local de batalha?
11. Qual mensagem você deseja passar quando se monta e vai para a rua?
12. Qual travesti que arrasa em Feira de Santana?
13. Tem algum sonho? Qual é? Qual sua expectativa para o futuro?
236
PERCEPÇÃO DOS TERRITÓRIOS POR OUTROS AGENTES
(Aplicável a direções escolares, representantes religiosos, moradores locais, polícia
militar)
01– Você tem conhecimento sobre os territórios da prostituição no centro da cidade
de Feira de Santana? Quais informações possui?
02- Qual sua opinião sobre essa atividade na cidade?
03-Quais consequências a prostituição pode produzir?
04- Você acha que a prostituição interfere nas relações urbanas?
237
GLOSSÁRIO DOS DIALETOS QUEERS118
A
abafa o caso - expressão usada quando alguém não está a fim ou não está mais
podendo ouvir determinada conversa ou comentário; usa-se ainda quando alguém,
por algum motivo, não quer que o assunto seja levado adiante
abalar - fazer algo bem feito
adé - (do bajubá) homossexual masculino; bicha
adé fontó - (do bajubá) bicha enrustida
afofi - variante de ofofi
agasalhar - ato de envolver um pênis com o ânus e o reto
ai meu edi - expressão que significa ai mei cu! ou ai que saco! ver a expressão tô
loca do meu edi
ajé - (do bajubá) ruim, péssimo
ajeum - (do bajubá) comida, rango, gororoba, ebó
alibã - (do bajubá) 1 policial; polícia; 2 (RJ) significa também o carro patrulha
Santana; se for o camburão, chama-se tia Cleide
alibete - (do bajubá) roubo; Elza
amadê - (do bajubá) menino jovem
amapô - (do bajubá) variante de amapoa
amapoa de bajé - (do bajubá) mulher menstruada
amapoa de canudo - (do bajubá) (RJ) travesti não operada; que tem pênis, mas jura
que é amapoa
amapoa - (do bajubá) 1 vagina; órgão sexual feminino; 2 termo usado para designar
mulher [variantes: amapô, mapô]
andrógino - pessoa que tem características de homem e de mulher ou traços
marcantes do sexo oposto ao seu; quando o andrógino é muito esquisito, chama-se
também metade sereia, metade tubarão
anel de couro - (CE) ânus; edi; rosca
ânus - cu; edi, rosca; durante a inquisição, a igreja chamava o furico de vaso
traseiro ou parte prepóstera
apatá - (do bajubá) sapato; calçado
118
Todos os termos nessa sessão foram retirados do site, http://worldgnews.blogspot.com.br/2012/03/dicionariobajuba-pajuba.html, acessado dia 10/10/2010 e triado para nossa realidade de pesquisa, adequando aos
regionalismos necessários.
238
aqué (aqüé) - (do bajubá) dinheiro
aquendar (aqüendar) - (do bajubá) 1 chamar para prestar atenção; 2 fazer alguma
função
aquiri (aqüiri) - (do bajubá) (CE) bofe
arrombada - aquela que tem vagina ou ânus alargado por excesso de uso
atender - ato de envolver-se ou comprometer-se sexualmente com alguém;
exemplo: vou atender fulano
atendimento - fazer sexo; se for "o" atendimento significa o sujeito com quem se vai
ter relações sexuais
azuelar - significa roubar;
B
babado - acontecimento qualquer, podendo tanto ser bom como mau;
bajé - (do bajubá) sangue
bajubá - baseada nas línguas africanas empregadas pelo candomblé, é a linguagem
praticada inicialmente pelos travestis e posteriormente estendida a todo universo gay
[variante: pajubá]
barbie - homossexual de corpo inflado, adepto da musculação e das bombas
bater um bolo- (SP/RJ) masturbação entre gays
bater bolacha - ato sexual entre lésbicas
biba - (familiar) gay, homossexual, bicha
bibita - pênis pequeno
bicha - homossexual masculino; gay; homem efeminado
bicha-bofe - homossexual não efeminado, mas nem sempre ativo
bicha-boy - bicha-bofe novinha
bofe - heterossexual ou homossexual ativo
bofe escândalo - homem muito bonito e gostoso
bofoneca - mistura de bofe com boneca; bicha masculina que, quando abre a boca,
kuein! É só pinta, com voz anasalada e de mulher
bola gato - sexo oral
bom dia jaburu - diz-se do golpe aplicado por michês em mulheres mais velhas,
com o objetivo de assaltá-las em sua casa
239
boquete - fazer sexo oral em um homem
bronha - masturbação masculina
buceta - órgão genital feminino; vagina
C
caçação - ato de caçar; aqüendação forte no sentido sexual; pegação
caixa de surpresas - diz-se da mala (acepção 1) que aparenta ser pequena, mas
que ao ser descoberta revela grande volume, densidade, peso e tamanho
caminhoneira - (pejorativo) lésbica com gestual muito masculinizado
carão - pose; esnobação; presunção
caso - 1 no mundo heterossexual, caso costuma ser uma terceira pessoa envolvida
num relacionamento já em andamento; amante; 2 no mundo homossexual, caso é
o(a)
namorado(a)
ou
alguém
com
quem
se
está
ficando
casqueiro - aquele que rouba roupas dos varais alheios
checar - vide passar um cheque
cheque - restos de fezes que borram a cueca ou o órgão sexual do parceiro
chuca - instrumento utilizado para a limpeza do reto; exemplo: use a chuca pra não
passar cheque
chuchu - barba malfeita ou que cresce durante a noite de montação
colocado - 1 situado; 2 bêbado, drogado
crossdresser - aquele que se monta para se divertir
cunete - sexo oral na região do ânus; cunnilingus
D
dar a elza - (do bajubá) roubar
dar close - 1 dar uma olhada; 2 dar pinta
dar o truque - enganar; dar o EQ
dar pinta - fazer trejeitos efeminados, propositadamente ou não; mostrar afetação
dar um ninja - (ES) sumir com algo; roubar; dar a Elza
dar um voador - (ES) dar um tapa; brigar
240
débora kerr - expressão usada quando se vê alguém que provoca tesão; às vezes,
débora
kerr
faz
dupla
com
betty
faria
de leve - ( PA) pequena maldade
desaquendar (desaqüendar) - (do bajubá) deixar de lado; deixar em paz; esquecer
drag king - lésbica que se veste de homem
drag queen - gay que se veste de mulher, mas apenas para festas (não confundir
com travesti)
E
ebó - comida de santo na macumba; macumba em si
edi - (do bajubá) ânus
ekê - (CE) 1 pênis; a mala do bofe: o ekê do ocó; 2 problema: deixa de ekê! (Não
confundir com EQ, equê)
elza - (do bajubá) roubo
elzeiro – ladrão
enquizilado - (CE) indivíduo encanado, chateado, cheio de problema;
enrustido - homossexual que ainda não saiu do armário, não assumiu sua posição
de gay
entendido - 1 homossexual; 2 homossexual dos anos 70 que gosta de romance à la
hétero
EQ (equê) - o mesmo que truque; engano; coisa falsa
erê - (do bajubá) 1 bofinho adolescente; 2 criança, jovem
F
fazer - copular; transar; atender
fazer a chuca - fazer limpeza intestinal, principalmente do reto
fazer sabão- ficar de babado; esfregar-se
fechar - 1 dar muita pinta; 2 abalar
fechar tudo - 1 dar muita muita pinta; 2 abalar muito
fechação - ato de dar muita pinta
241
ferveção - diversão; local onde está rolando diversão
ficar - ter relações amorosas e/ou sexuais sem compromisso
fino - 1 chic; 2 esnobe
fiofó - ânus; cu; bunda; edi; rabo; rabicó
força na peruca - o mesmo que força no picumã
força no picumã - (interjeição) vá em frente! vai nessa! se joga!
frapê - diz-se do pênis quando está meio-mole-meio-duro; meia-bomba
furico - (NE) ânus; edi
G
gala - (CE) ejaculação; porra
garoto de programa - garoto de aluguel, michê, scort man
gay - homossexual masculino; outros termos usados, mas com alguma variação de
sentido são: baitola, biba, bicha, biltra, boiola, cheine, culeiro, entendido, frango,
fruta, homiceta, homigina, laleska, mona, mônica, paneleiro, poc-poc, quaquá,
quatira, tata, vera-boiola, viado, xibungo; durante a inquisição, a igreja católica
chamava qualquer biba de somitigo (com a variante somítigo), sodomita ou
sodomítico
gilete - antigo termo para designar o homem bissexual
go-go boy - dançarino ou streaper de boate gay
gongado - derrubado; caído [variante: congado]
gravar - chupar um pênis ereto
H
hermafrodita - aquele(a) que nasceu com dois aparelhos genitais: vagina e pênis
hetero-gay - (CE) heterossexual masculino que trata heterossexual feminino com
delicadeza, mas copula com mulheres porque gosta
homiceta - (composto de 'homem' + 'buceta') bicha
homigina - (composto de 'homem' + 'vagina') bicha
homofobia - medo irracional da homossexualidade
242
homossexual - aquele(a) que transa com alguém do mesmo sexo; apesar de
politicamente correto, os(as) homossexuais preferem outros termos; veja: gay e
lésbica
homossexy - gay sexy
I
ilê – casa
indaca - rosto; face; cara; feição
Ivone - (RJ) diminutivo de passivone, homossexual passivo
J
jaburu - (pejorativo) pessoa feia
jacira - bicha quaquá bagaceira
jamanta - estado daquele que ficou louco, colocado, lesado, alucinado
jeba - pênis de proporções avantajadas; necão
jogar o picumã - virar a cabeça, mudando os cabelos de lado, tal como as loiras
fazem, só que inteligentemente e com a intenção de menosprezar ou ignorar alguém
jorge - bofe escândalo do tipo "pai de família"
K
kátia - 1 (SP) cachaça; pinga; bebida alcóolica: 2 (CE) cega; termo usado na
expressão fique kátia!
kibe – apalpar o pênis
kuein - (CE) forma abreviada de aqüenda, imperativo do verbo aqüendar; se liga!
exemplo: kuein o picu da mona! [variantes: cuem, qüem]
L
laquaqua - (do bajubá) o contrário de bibita; piroca grande
243
larica – fome
laruê - (do bajubá) fofoca
lash - (do bajubá) jogar o picumã, fazer a egípcia, virar a cara, dar rabissaca, com a
intenção de tombar alguém
lesação - dar bobeira, geralmente por causa de drogas
lesado - 1 bêbado e/ou drogado; 2 bobo; louco; 3 desencanado; aquele que não
leva nada a sério
levar coió - apanhar; ser xingado por alguém
levar um banzai - levar um fora do(a) namorado(a)
M
mafiosa - (RJ) bicha ou lésbica má, que costuma observar tudo e todos com um
certo olhar de desdém, arrogância; geralmente tem uma língua muito afiada, critica e
fala mal de todos
mala - 1 o volume do pênis ou o próprio pênis; 2 ou mala sem alça, pessoa chata;
escrota
maldita - o mesmo que AIDS
mangar - (NE) tirar sarro; gozar de alguém
mapô - variante de amapoa
mati - (do bajubá) variante de matim
matim - (do bajubá) pequenino
meia-bomba - diz-se do pênis que não atingiu ereção total, mas em torno de 50%
ou menos; frapê
meia-nove - sexo oral mútuo e simultâneo entre duas pessoas
metade sereia metade tubarão - bofe ou bicha, amapô ou bolacha, meio lá meio
cá, sem que se saiba o que é; andrógino; meio bofe meio bicha; meio fashion meio
baranga; meio sapa meio racha; meio esquisito meio normal; meio gordo meio
musculoso; meio magro meio esquálido; meio tudo meio nada
meu cu - expressão usada para designar indignação ou desdém; nesta acepção,
equivale a Caguei! ou Um caralho!
michê - garoto de programa
mitorô - (do bajubá) urinar; mijar
244
mona - (do bajubá) mulher, mas é frequentemente usado para denominar
homossexual masculino
mona ocó - (do bajubá) tem diversos significados nos ambientes homossexuais:
mona é mulher e ocó, homem; em alguns grupos é usado para lésbicas
masculinizadas e em outros para gays não-efeminados ou também michês [variante:
monocó]
montação - o processo de vestir-se com roupas de mulher, geralmente com certo
exagero
montado - 1 bem vestido; 2 cross-dressing ou biba vestida de mulher
morder a fronha - fazer a passivona; sentar no croquete
N
neca - (do bajubá) pênis
necão - pênis grande, avantajado; pauzão
neide - (PE) bicha burra
nena - (do bajubá) fezes
nena camargo - (CE) o nome completo da nena; a Dona Merda
nenar - defecar; cagar
neuza - homossexual japonês ou descendente ou a prima mais velha da Elza, serve
também para elucidar roubo ou furto.
nicaô
-
diz-se
do
pênis
de
proporções
avantajadas
de
travesti
O
ocâni - (do bajubá) pênis
ocó - (do bajubá) homem homem
odara - (do bajubá) bonito, elegante, vivaz
ofofi - (do bajubá) fedor
ofofi do ofidã - (do bajubá) mau cheiro na zona erógena masculina; exemplo:
passar uma tarde em itapoã, com o ofofi do ofidã
omivará - (do bajubá) esperma; porra
245
operada - transexual que era do sexo masculino (ou nasceu com um pênis),
feminilizou-se, cortou o pênis e construiu uma envaginação; cortada
oré - (do bajubá) garotão
ornitorrinca - mulher híbrida, antagônica da mamífera; leia-se: aquela que odeia
com razão o modus operandi das mamíferas
orum - (do bajubá) céu; firmamento
oté - (do bajubá) mal-cheiro no corpo; chulé; ofofi
otim - (do bajubá) bebida alcoólica
oxanã - (do bajubá) cigarro
P
pacotão - pênis grande; mala (acepção 1)
padê - (do bajubá) cocaína
pajubá - variante de bajubá
panqueca - bicha passiva
passada - (PA) - arrasada; chocada
passar cheque - deitar fezes no pênis do homossexual ativo; checar; melar de nena
a neca do ocó; exemplo: ontem, no atendimento, a mona passou um cheque no bofe
passar a nena - o mesmo que passar um cheque
passar um fax - defecar; cagar
passivona - homossexual que apenas pratica a passividade no ato sexual
pau – pênis
pegação - aqüendação forte no sentido sexual; caçação
pencas - muito, demais; horrores; exemplos: Gozei pencas no quartinho ou gozei
horrores no escurinho...
pênis - órgão sexual masculino; benga; cacete; caralho (1); croquete; ekê;
estrovena; jeba; kibe; mala (1); manguaça; neca; pau; pica; pinto; piroca; pomba (1);
tromba; durante a inquisição, a igreja usava os termos membro viril e natura, ou
membro desonesto quando usado para o pecado
piá - menino, garoto, guri, moleque
pica – pênis
picu - forma abreviada de picumã
246
picumã - (do bajubá) peruca, cabeleira; cabelo
pimbar - (CE) transar; trepar
pinto – pênis
pintosa - bicha afetada, que dá pinta
pirelli - enchimento que drag queens e transformistas usam nas meias-calças para
dar forma e aparência femininas ao culote
piriquita – vagina
piroca – pênis
pivô - movimento de meia-volta, com muita pinta, como fazem as modelos na ponta
da
passarela
de
um
desfile;
fazer
esse
movimento
é
dar
pivô
pomba gira - endemoniada; a expressão baixar a pomba gira significa também 'sair
para caçar'
punheta - 1 masturbação masculina; 2 coisa enrolada, dificultosa, embaçada; 3
elucubração; cogitação profunda
R
rabo - ânus; bunda; edi; fiofó
racha - 1 vulva; vagina; 2 (pejorativo) mulher
rachada - (pejorativo) mulher
ramé - (do bajubá) mal-vestido
recheada - (AL) diz-se daquela bicha dentro da qual o bofe gozou, sem camisinha
rosca - ânus; edi; anel de couro
S
sabão - esfrega-esfrega entre duas pessoas
savi - (RJ) 1 mal-cheiro no pênis, ofofi do ofidã; 2 aqueles queijos brancos que ficam
ao redor da cabeça do peru quando ele não é lavado; esmegma
semi-drag - 1 bicha andrógina; 2 bicha que se monta mas ainda não atingiu o status
de drag
sentar - ter relação anal
247
sofá da hebe - (DF) lugar onde as bichas se encontram para fofocar
soltar a franga - o mesmo que sair do closet
soltar veneno - falar mal de algo ou de alguém
suruba - união de 3 ou mais pessoas para fazer sexo; orgia
susie - barbie que não toma bomba; musculosa natural
T
taba - (do bajubá) maconha
tabaco(a) – vagina
tá boa - força de expressão muito utilizada pelos gays significando desdém ou
descrédito, equivalente a você acha mesmo? ou nem vem...; às vezes, vem
acompanhado de vocativo: tá boa, santa?
ter carão - ser bonito(a)
teste da farinha - teste para descobrir se alguém é gay: senta-se na farinha e
verifica-se o tamanho da impressão do cu
tia- (bajubá) HIV
tia - (pejorativo) bicha velha
tia cleide - camburão da polícia
tô bege - tô boba
tô boba - tô Kátia
tô inhaz - estou em vias de; estou quase; exemplo: Tô inhaz de me cagar toda
tô kátia - tô mônica
tô loca - estou bem louca
tô loca do meu edi - estou bem loquérrima
tô mônica - tô passada
tô passada - estou chocada
tombado - 1 caído, derrubado, destruído, apodrecido; 2 sem graça; 3 cansado
tombar - 1 avacalhar, debochar, menosprezar ou ridicularizar algo ou alguém;
reduzir os méritos; 2 arrasar, principalmente no modelão ou numa atitude: Tombou!
tranca-rua - pessoa bêbada e sem controle
transexual - aquele(a) que mudou de sexo por meios cirúrgicos (amputação ou
implante de pênis); não confundir com travesti nem com transformista; o transexual
248
que era mulher e passou a ser homem é female-to-male; o contrário é conhecido
simplesmente como operada
transformista - homem que se veste de mulher para fazer apresentações artísticas;
não
confundir
com
travesti
nem
com
transexual
traveca(o) – travesti
travesti - homossexual que se veste e comporta como mulher, quer faça programa
ou não; alguns travestis implantam silicone nos seios e outras partes do corpo, mas
ainda possuem pênis; o travesti que passou por cirurgia para retirar o pênis passa a
ser transexual
trem de prata - pessoa intrometida
trepar - copular; transar
tricha - homossexual masculino mais que bicha; viado ao cubo
tromba - pênis grande
trombudo - aquele que tem pênis grande; pauzudo
truque - 1 enganação; enrolação; 2 coisa falsa
truqueiro - aquele que dá truque
tudo - (interjeição) muito bom! exemplo: bi, tudo!
U
uó - (do bajubá) algo ou alguém ruim, feio, desagradável, desprezível, errado,
equivocado
V
vagina - órgão sexual feminino; amapoa; aranha; buça; buceta; cona; gogóia;
grilinha; lalaia; mapô; pacoteira; perseguida; piriquita; pomba (2); precheca; racha;
tabaco; tcheca; vulva; xana; xavasca; xibiu; xoxota; durante a inquisição a igreja
empregava os termos natura, assim como vaso natural
velcro - 1 o mesmo que carpete; pêlos pubianos da mulher; 2 ato sexual lésbico
veneno - substância produzida por pessoas venenosas; palavras ou atos malignos
dessas pessoas
venenosa - pessoa que fala mal de algo ou alguém, ou que faz intriga
249
viadagem - ação ou modos de efeminado; o mesmo que bichice
viadeiro - coletivo de viado
via ápia - famoso e tradicional local de pegação gay na região central do Rio de
Janeiro, mais freqüentado por garotos de programa oferecendo seus serviços
viado - homossexual masculino; gay
vudu - energia negativa
vuduzar - torcer para que algo não dê certo; envuduzar
X
xana – vagina
xaxé - (do bajubá) cocaína
xepó - (do bajubá) cafona; brega
xereca - vulva; vagina
xibiu - vagina; buceta
xoxação - (SP) o ato de xoxar
xoxar - 1 (SP) falar mal de alguém ou de alguma coisa; debochar; 2 (BA) comer
alguém, transando
xoxota – vagina
xuxu - ver chuchu
Y
ypsilon - ato sexual entre duas pessoas que transam em posição invertida e de
pernas abertas
Z
zoraide - bicha metida a clarividente; esotérica
zumbi - drogado demais; lesado
250