Apresentação - Livraria Cultura

Transcrição

Apresentação - Livraria Cultura
Escravidão, reação e arqueologia:
Minas Gerais no século xviii181
Apresentação
Carlos Magno Guimarães
Anna Luiza Rezende Ladeia
A vida social entre o céu e o mar:
os navios negreiros enquanto artefatos da escravidão
199
Gilson Rambelli
Arqueologia das bolsas de mandinga:
artefatos africanos de proteção no Brasil colonial
221
Vanicléia Silva Santos
Mihangas e bastões: culturas materiais através do Atlântico
245
Larissa Oliveira e Gabarra
Contos e contas do rosário: sobre mito, rito
e objetos do reinado em Minas Gerais
267
Juliana Garcia Corrêa
A casa, a santa e o rei: memórias afro-ouro-pretanas
283
Manuel Ferreira Lima Filho
Em busca do tempo da escravidão:
patrimônio histórico e memória coletiva
na comunidade quilombola Chacrinha dos Pretos
305
Deborah Lima
Évelin Nascimento
Maurício Filho
A Africana do Museu Nacional: história e museologia
337
Mariza de Carvalho Soares
Rachel Corrêa Lima
Sobre os autores
361
Considerando as possibilidades da cultura material como objeto para o
estudo de dinâmicas sociais e simbólicas, este livro propõe um debate entre
diferentes áreas do conhecimento, tendo, portanto, uma proposta fundamentalmente interdisciplinar. Os trabalhos apresentados aqui procuram levar a
uma reflexão sobre as possibilidades interpretativas da cultura material na
experiência da escravidão e do seu legado, a partir de fontes de diferentes
naturezas. Os olhares da arqueologia, da história e da antropologia (incluindo
a análise de coleções etnográficas e o diálogo com a museologia) pretendem
contribuir, assim, com os estudos sobre a experiência de africanos e afrodescendentes na diáspora.
No geral, esta proposta procura incentivar um movimento em duas direções: a dos estudos sobre a cultura material relacionada à experiência de africanos e seus descendentes durante o período escravista e o seu legado; e um
diálogo real entre disciplinas afins, com estratégias metodológicas criativas
que procuram romper barreiras disciplinares. Este diálogo traz à tona uma
pluralidade de olhares sobre a dinâmica da cultura material – entendida aqui
de maneira abrangente – e um debate sobre suas potencialidades.
Assim, contamos com artigos que cruzam dados de naturezas diferentes ou expressam o exercício de pesquisadores com formações específicas,
que se aventuram no que seria teoricamente um campo de atuação vizinho.
Contamos, por exemplo, com arqueólogos analisando a cultura material a
partir de documentos escritos, historiadores analisando coleções etnográficas, antropólogos fazendo leituras de ruínas e assim por diante, resultando na
elaboração de estratégias metodológicas férteis e diferenciadas.
Por outro lado, o intuito foi o de valorizar as potencialidades de se olhar
para a cultura material de africanos e seus descendentes, como forma de fazer
uma aproximação às suas experiências em diferentes contextos. O estudo dos
artefatos, particularmente através da perspectiva arqueológica, permite uma
aproximação a contextos cotidianos, por meio de vestígios diretos das práticas de sujeitos que tiveram por muito tempo sua história e experiência pensada apenas através do olhar de quem os sujeitava.
7
Historiadores, por outro lado, têm contribuído com o estudo dos objetos
associados a africanos e afrodescendentes a partir de inúmeras fontes, tais
como inventários, processos-crimes, documentos comerciais, iconografia,
etc., lançando mão dos devidos filtros para ler, nas entrelinhas dos registros
de senhores, autoridades, comerciantes e outros sujeitos representantes de
uma esfera de poder sobre os escravos, aspectos de sua vida no cativeiro e
suas conquistas e negociações neste contexto.
Por fim, a antropologia – ou mesmo a museologia associada às coleções
etnográficas – tem dialogado diretamente com o legado desta experiência e a
observa a partir da dinâmica silenciosa da materialidade. Se cada um destes
campos parece bem definido academicamente, este livro convida pesquisadores
a pensar no trânsito, na flexibilidade das fronteiras disciplinares, com o intuito
de melhor ouvir vozes historicamente silenciadas. Um silêncio quebrado também pelo estudo da sutileza da dinâmica material, que, ela mesma calada, nos
permite romper com o mito da invisibilidade de africanos e afro-brasileiros nos
diferentes universos empíricos disponíveis aos pesquisadores.
Cabe, por fim, uma explicação sobre a padronização do uso de palavras
estrangeiras no livro. Termos mantidos em outras línguas, como plantation
em inglês, cachés em francês e kalunga, esta última presente no léxico de
várias línguas centro-africanas, dentre elas o kikongo e o kimbundu, foram
destacadas em itálico. Em casos como estes se observa a relevância de manter a expressão na língua original pela dificuldade de traduções fiéis aos seus
conceitos e significados originais.
Para além das complexidades impostas à tradução de certos conceitos,
elaborados por sistemas históricos e linguísticos de expressão da realidade,
existe ainda – para os casos africanos de forma particular – outro aspecto a
pontuar. Trata-se do caso de grafias que variam quando certas palavras são
aportuguesadas, ou mesmo pelos usos históricos das mesmas. Este é o caso
do uso dos termos Kongo e Congo.
Na língua original – o kikongo –, a referência a Kongo remete à histórica
formação política do reino do Kongo; sendo Congo uma alusão mais tardia,
resultado do processo de colonização. Por outro lado, no período do tráfico
de escravos, etnônimos foram criados pela dinâmica atlântica para a identificação dos cativos, surgindo os chamados “nomes de nação”. Os documentos
históricos de diferentes naturezas que fazem menção a escravos oriundos da
grande região onde teria se constituído o referido reino do Kongo, por exemplo, os referenciam como “Congos” ou “da nação Congo”. Portanto, nos casos
8
de referências a estas “invenções atlânticas” ao longo do livro foi mantida a
grafia conforme os documentos.
No caso do kikongo, língua falada pelos bakongo (sendo ba uma designação de plural), talvez a língua africana mais referida no livro, outras características são ainda dignas de nota. Foram mantidas também formas plurais
da língua, onde o plural de kongo é bakongo e o plural de nkisi é minkisi.
A escolha de manter formas gráficas de certas palavras nas línguas
estrangeiras se deu por três razões. A primeira, já mencionada, para os casos
em que as palavras originais não encontram o mesmo sentido em adaptações de traduções. Neste caso foram mantidas em itálico, como esclarecido
de início. A segunda refere-se à não padronização e aportuguesamento de
grafias como Kongo/Congo, pois esta variação reporta a diferentes sentidos
históricos destes termos, cujo aportuguesamento homogeneizaria. Para não
sobrecarregar o texto com sinalizações em itálico, optou-se neste segundo
caso por manter o formato padrão.
Por fim, acredita-se que aproximar o leitor a referenciais africanos, através de simples formas gráficas e, principalmente, de conceitos particulares
expressos na sua forma original é uma maneira, ainda que sutil, de levar à
reflexão sobre situações complexas e suas possibilidades de tradução não apenas linguísticas, mas também culturais.
Cabe agradecer à Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), junto ao
Ministério da Cultura e à Petrobras, que através do Edital SAB 2011 viabilizou
este livro, ao apoio da Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg), e à
Fundação de Amparo à Pesquisa (Fundep) pelo gerenciamento dos recursos. Cabe agradecer a Jorge Viveiros de Castro e toda sua equipe da editora
7Letras pela parceria na realização desta obra. Devem-se agradecimentos à
disponibilidade dos autores em contribuir com este volume, oferecendo suas
reflexões para debate – e, ainda, a Hebe Mattos pelas palavras de apresentação
do livro.
Camilla Agostini
Rio de Janeiro, dezembro de 2012
9
Por uma arqueologia da criatividade:
estratégias e significações da cultura material
utilizada pelos escravos no Brasil
Marcos André Torres de Souza
introdução
Em junho de 2012 a equipe do Projeto Valongo, desenvolvido pelo Museu
Nacional / UFRJ sob a coordenação de Tania Andrade Lima, recebeu a visita
de Wole Soyinka, dramaturgo nigeriano e ganhador do Prêmio Nobel da
Literatura. Soyinka visitou as escavações conduzidas no Cais do Valongo, um
dos mais importantes pontos de desembarque de africanos nas Américas,
e foi levado ao laboratório da pesquisa, onde conheceu parte do material
recuperado nas escavações. Ao ser colocado em contato com um conjunto
de artefatos feitos em piaçava, muito comuns na amostra, disse que objetos
similares são utilizados ainda hoje no oeste da África como amuleto. Quando
lembrado que as peças provenientes das escavações eram produzidas em uma
fibra que existe apenas em algumas regiões brasileiras – e, portanto, eram confeccionados em uma matéria-prima diversa –, foi direto: “eles improvisavam”.
O argumento de Soyinka – um profundo conhecedor das tradições culturais do oeste da África – traduz uma característica comum a muitos povos
dessa e de outras regiões da África subsaariana: o uso criativo e flexível dos
recursos materiais. Neste capítulo, pretendo examinar algumas das estratégias
e significações atribuídas à cultura material utilizada pelos escravos que viveram no Brasil, reconhecendo nessas práticas indicativos de que esses indivíduos lançaram mão do uso criativo dos recursos, conforme sugeriu Soyinka
acerca dos artefatos em piaçava encontrados no Cais do Valongo. Argumento
ainda que esse tipo de prática teve implicações importantes nas formas pelas
quais os grupos escravos se organizaram social e culturalmente.
11
estratégias materiais
A condição do cativeiro impôs sérios desafios à vida material dos indivíduos
escravizados no Brasil. O controle exercido por senhores teve impactos diretos na existência desses indivíduos e nas soluções por eles encontradas para
os mais diversos problemas cotidianos. Por essa razão, não tem sido incomum autores assinalarem que os escravos viviam em um universo material
limitado, apontando a pobreza (Araújo, 1993: 77-78), falta de mobiliário
(Algranti, 1997: 110) e falta de conforto nas suas residências (Karasch,
2000: 183-184). Todavia, a arqueologia tem indicado que as condições materiais dos escravos, a despeito dos desafios impostos, eram ricas em estratégias e possibilidades. Colocando-se além de conceitos construídos a partir da
ótica europeia, estudos arqueológicos recentes têm demonstrado que esses
indivíduos se engajaram ativamente no desenvolvimento de estratégias que
lhes permitiram transpor, ao menos em parte, as limitações que lhes eram
impostas, criando um universo rico e diversificado de expressões materiais
(ver debates recentes sobre essa questão em Ferreira, 2009; Singleton e
Souza, 2009; Symanski e Souza, 2007; Thiesen et al., 2011).
Evidências arqueológicas provenientes de contextos diretamente relacionados a escravos têm indicado, por exemplo, que esses indivíduos se
envolveram em um diversificado e criativo número de estratégias visando
a aquisição de itens materiais, a começar por aquela considerada por muitos como a mais provável, e que corria sem que o escravo tivesse ingerência
sobre as decisões: a aquisição de itens das mãos dos proprietários sem ônus
direto, o que vem sendo assinalado, sobretudo, para senhores com atitudes
paternalistas (Adams e Bowling, 1989: 94; Bankoff e Winter, 2005: 312;
Schroedl e Ahlman, 2002: 42).
Esse foi possivelmente o caso dos escravos que pertenciam ao Engenho de
São Joaquim (atual Fazenda Babilônia), construído em 1800 nas proximidades
da cidade de Meia-Ponte (atual Pirenópolis, Goiás) e destinado à produção de
cana-de-açúcar e algodão. Pesquisas arqueológicas realizadas nesse sítio indicaram que Joaquim Alves, seu proprietário, estabeleceu, por meio da manipulação do espaço edificado, mecanismos que visavam maximizar a supervisão
e controle da escravaria, incluindo o estabelecimento de pontos de vigilância
e redução das áreas de circulação (Souza, 2007). Alves também criou mecanismos de controle por meio de ações paternalistas. De acordo com viajantes que por lá passaram na primeira metade do século xix, ele se encarregava
de vestir seus escravos, definir seu espaço de moradia e designar roças para
12
cultivo em benefício próprio (D’Alincourt, 1953: 91; Pohl, 1978: 289; SaintHilaire, 1975: 289), o que certamente limitava as oportunidades de decisão
desses indivíduos. Diante disso, é possível considerar que ao menos parte dos
itens utilizados pelos escravos fosse repassada pelo seu proprietário. Uma evidência arqueológica possivelmente associada a esse tipo de prática vem dos
cachimbos recuperados em escavações conduzidas na área das senzalas dessa
propriedade. Em duas áreas escavadas foi recuperado um número mínimo de
oito cachimbos que representam três padrões extremamente comuns em sítios
históricos de Goiás do século xix. Esses cachimbos foram produzidos, em sua
totalidade, por meio de moldes. Em sítios rurais do Brasil central, os cachimbos
provenientes de contextos arqueológicos costumam se dividir entre as peças
moldadas – cuja produção era feita, possivelmente, em maior escala e visando
sua comercialização – e as peças modeladas, cuja confecção era mais laboriosa
e de caráter personalizado. A possibilidade de correlação entre cachimbos moldados e sua comercialização foi assinalada por Agostini (2011: 108-109), que,
ao discutir a produção cerâmica em São Sebastião (litoral de São Paulo) – uma
importante região produtora de itens cerâmicos no século xix –, identificou a
venda de peças modeladas pelas paneleiras locais, bem como um registro de
exportação no qual consta a venda de uma barrica de cachimbos por 10 réis.
Na comunidade escrava do Engenho de São Joaquim, que contava com mais de
100 escravos na primeira metade do século xix, a presença exclusiva de apenas
três padrões de cachimbos moldados sinaliza para a possibilidade de distribuição desses itens pelo proprietário, que podia adquiri-los em largas quantidades
no mercado local e distribuí-los entre seus escravos, o que explicaria a presença
recorrente desses itens no contexto das senzalas do Engenho de São Joaquim.
Uma evidência mais sólida da aquisição de itens a partir da doação de
senhores vem de um dos três engenhos pesquisados por Symanski (2006:
203-209) na Chapada dos Guimarães (Mato Grosso). No Engenho do Rio da
Casca (Sítio Taperão), cujo material arqueológico provém, na sua maioria,
da primeira metade do século xix, o autor empregou uma fórmula de datação de louças conhecida como “Fórmula South” (South, 1972), de modo a
estabelecer uma data média para amostras provenientes de diferentes áreas
da propriedade, incluindo os locais de habitação do proprietário, trabalhadores livres e escravos. Esse autor notou que os mesmos tipos encontrados
na sede estavam presentes nas senzalas. Todavia, a data média das louças da
área das senzalas era mais antiga que a das encontradas nas casas dos trabalhadores livres e, em maior grau, que as encontradas na área da sede. A
13
maior antiguidade das louças provenientes das senzalas foi considerada por
esse autor como um indicativo de que os senhores estavam repassando a
seus escravos as louças velhas, fora de moda ou que perderam seu conjunto.
Levando em conta os tipos de louças encontrados nas diferentes áreas da propriedade, notou também que havia uma predominância de louças mais baratas na área das senzalas, o que para o autor indica que as louças repassadas
pelo proprietário eram as que possuíam qualidade inferior.
Esse tipo de prática tinha uma importante implicação, na medida em que
– conforme assinalou Symanski (2006: 207-209) – a redistribuição de louças
por senhores reforçava sua hegemonia no espaço da propriedade, funcionando, assim, como uma estratégia de dominação. Segundo esse autor, esse
reforço era possível não só por meio do controle direto sobre a distribuição
de itens, mas também por meio do controle sobre a temporalidade desses
objetos – que, quando usados em segunda mão, eram deslocados do tempo
presente, relacionando-se a uma época anterior. Criava-se assim um mecanismo adicional de diferenciação.
No Engenho de São Joaquim, estratégias de controle criadas a partir da
distribuição de itens entre escravos foram também utilizadas. Conforme indicou Saint-Hilaire (1975: 100), que visitou a propriedade na década de 1820,
havia no seu espaço uma pequena venda destinada aos escravos e que comercializava itens que “lembravam a África”. Como moeda, era empregado o algodão por eles cultivado nos dias livres. As vantagens dessa prática, assinalada
por Alves e registrada por Saint-Hilaire (1975: 100), deixam claras uma estratégia subliminar de controle. Para Alves, essa prática fazia com que o roubo
fosse coibido e lucros obtidos, fazendo com que os escravos desenvolvessem
apego ao lugar e ao senhor e, ao mesmo tempo, aumentassem a produção de
algodão, que à época atingia altos preços no Rio de Janeiro. Assim, por meio
do controle dos recursos materiais, as estratégias de dominação nesse engenho podiam, ao menos tentativamente, ser expandidas.
Uma segunda estratégia envolvia a aquisição de itens pelos escravos diretamente no mercado. Para o meio rural, historiadores de diferentes partes das
Américas têm se ocupado em longos debates sobre a criação de uma relativa autonomia econômica entre escravos por meio da venda de pequenos
excedentes rurais (Barickman, 1994; Cardoso, 1987; Genovese e FoxGenovese, 1979; Gorender, 1978). No meio urbano, tais possibilidades se
apresentavam, conforme também sugere a historiografia, por meio do trabalho de ganho (Figueiredo, 1993; Graham, 1988; Wissenbach, 1988).
14
Provém do Engenho de São Joaquim um dado pouco esperado para
contextos relacionados ao interior de senzalas, e que acrescenta informações
relevantes para a compreensão do uso desse tipo de estratégia. No interior
das suas senzalas foram recuperadas várias peças de armamentos, incluindo
quatro balas de chumbo, cinco partes de armas e quatro pederneiras. O uso
de armas de fogo, uma questão polêmica no período colonial, chegou a ser
proibido entre os escravos em algumas regiões brasileiras devido ao temor de
sedição (Karasch, 2000: 476). No Engenho de São Joaquim, é possível que as
regras quanto ao uso de armas tenham sido afrouxadas. Ao invés de se constituírem em instrumentos de defesa pessoal – o que, naturalmente, desencadearia a repressão ao seu uso –, foram possivelmente empregadas para a complementação da dieta alimentar ou para a comercialização informal de carne
e couros de animais silvestres, que se constituíam em um gênero de exportação importante em Goiás na primeira metade do século xix (Mattos, 1979:
71-72). Com isso, abriam-se brechas para a criação de uma economia informal. Essas possibilidades eram, obviamente, maximizadas quando o escravo
podia contar com um dia semanal livre, permitindo-lhes assim se dedicar a
essas atividades, tal como ocorria no Engenho de São Joaquim, conforme nos
dá conta Saint-Hilaire (1975: 100).
Um item também relacionado a uma maior autonomia dos escravos
desse engenho se relaciona a objetos empregados no transporte animal. Nas
senzalas do Engenho de São Joaquim foram encontradas oito fivelas de arreio
e 24 cravos de ferradura. Uma explicação possível para a aparição desses itens
no interior de senzalas fundamenta-se no relato do diplomata francês Barão
de Forth-Rouen durante seu pernoite, em 1847, em um engenho baiano.
Segundo ele, os escravos desse engenho, além de possuírem roças próprias,
tinham seus próprios cavalos, que podiam, inclusive, ser alugados para o
proprietário (Barickman, 1994: 661). A presença desses itens no interior
das senzalas do Engenho de São Joaquim sugere que os escravos desse engenho podiam contar com animais de cela próprios, sobretudo se for levado
em conta que a propriedade tinha sua própria estrebaria e contava, portanto,
com um espaço próprio para guarda de itens ligados ao transporte animal.
Considerando que a posse de animais de transporte permite maior mobilidade, capacidade de circulação e transporte de gêneros, é possível aventar
que as chances dos escravos de adquirir maior autonomia e capacidade de se
integrar ao mercado informalmente eram sensivelmente ampliadas.
15
Ainda que diferentes categorias materiais sugiram uma maior autonomia dos escravos de determinadas propriedades, bem como sua consequente
participação no mercado, são as louças que oferecem os indícios mais consistentes desse tipo de prática. Isso porque se esses itens não fossem repassados
para o escravo em segunda mão, dificilmente seriam adquiridos por senhores
para repasse, uma vez que os recipientes cerâmicos, que tinham um custo
consideravelmente mais baixo, se apresentavam como uma alternativa muito
mais viável ao proprietário.
No Engenho de São Joaquim, as evidências de que as louças estavam
sendo adquiridas diretamente pelos escravos é inequívoca. As louças encontradas em duas pequenas seções das senzalas desse engenho, e datadas do
período 1800-1860, apareceram em número muito reduzido, vindo a representar cerca de 0,85% da amostra total dessa área. Esses índices contrastam com
os dos depósitos arqueológicos da sede, onde esse percentual oscilou entre 5
e 18%. Como é de se supor, os escravos e senhores contavam com possibilidades desiguais para a aquisição de itens em louça. No que diz respeito ao custo
desses objetos, contudo, os dados vão contra o que seria razoável considerar.
Isso porque a variação de preços das louças encontradas nessas duas áreas não
apontou de forma clara a presença de peças de maior custo na sede. A partir do
uso da “Escala de Miller” (Miller, 1980) – um ranking de preços que arranja
as louças hierarquicamente de acordo com seu preço, das mais baratas (não
decoradas) até as mais caras (decoradas pela técnica do transfer-printing) – foi
possível notar que, na amostra proveniente das senzalas, havia um percentual
ligeiramente maior das louças mais baratas disponíveis no mercado: as não
decoradas. O que, todavia, pesou na diferença entre a amostra da sede e das
senzalas foi o predomínio de louças minimamente decoradas ou pintadas à
mão nas senzalas, geralmente presentes nas tigelas e malgas, e cujas cores apresentaram-se em diferentes combinações, e peças em transfer-printing na sede,
geralmente impressas no fundo dos pratos em azul com cenas de inspiração
oriental ou romântica. O predomínio de louças pintadas à mão nas senzalas
sugere, claramente, que os escravos contavam com alguma autonomia para
escolher os tipos de louças. Levando em conta ainda que as peças usadas na
sede por um único grupo doméstico não tinha a capacidade de suprir, em
segunda mão, as necessidades de um plantel composto por mais de uma centena de escravos, é licito considerar que a entrada desses itens se deu, pelo
menos em parte, em função da sua aquisição pelos escravos diretamente no
mercado, ainda que por meio da compra de peças avulsas.
16
Dados de outras regiões reforçam a possibilidade de aquisição de louças
pelos escravos. Embora Symanski (2006: 201-213) tenha encontrado evidências de que no Engenho do Rio da Casca as louças adquiridas pelos escravos
provinham da sede, no antigo Engenho Água Fria (sítio Buritizinho) notou
que esses itens estavam sendo adquiridos diretamente pelos escravos. Esse
autor verificou que 47,3% dos padrões decorativos encontrados nas senzalas
não se repetiam na sede – o que, segundo ele, sugere a aquisição desses itens
no mercado pelos próprios escravos. Tão relevante quanto esse dado é o fato
de que as peças com padrões decorativos encontrados com exclusividade nas
senzalas desse sítio são, assim como no caso do Engenho de São Joaquim,
compostas predominantemente por tigelas e malgas, que apresentavam geralmente decoração pintada à mão.
A preferência dos escravos pelo uso de louças minimamente decoradas
ou pintadas à mão em cores variadas (marrom, amarelo, laranja e verde) e
formando padrões geométricos foi primeiro observada por Wilkie (2000)
em plantations da Jamaica. Segundo essa autora, a análise desses itens apenas pelo prisma socioeconômico não se sustenta, pois esses padrões se identificam com a estética de grupos oriundos da África. Essa identificação foi
percebida por Symanski na área das senzalas do Engenho Água Fria, onde o
autor identificou uma semelhança entre a decoração das louças ali presentes e
padrões decorativos feitos em diversos suportes materiais de regiões africanas
envolvidas no tráfico atlântico. Nessa discussão, deve ser notado também que
a preferência por malgas e tigelas encontra correspondência com o que se
verifica em diferentes regiões africanas, onde o consumo de alimentos é feito
majoritariamente em recipientes desse tipo (DeCorse, 1999: 150; Souza,
2010: 209; Symanski e Souza, 2007: 232-234). É possível considerar, portanto, que ao assumir, com alguma autonomia, o controle sobre a aquisição
de itens necessários às suas atividades cotidianas, as comunidades escravas
lançaram mão de referenciais culturais próprios.
A aquisição de itens diretamente no mercado tinha consequências
importantes também para a relação de forças estabelecidas entre proprietários e escravos. Conforme assinalei antes, o repasse de itens pelo proprietário
podia servir como uma ferramenta de controle e exercício de poder. Todavia,
ao adquirir itens no mercado, era possível aos escravos desafiar, ainda que por
meio de estratégias de negociação social, a ordem que lhes era imposta.
Uma terceira estratégia material envolvia a produção própria de utensílios e ferramentas. Na arqueologia brasileira, as categorias materiais mais
17
analisadas por pesquisadores dedicados ao estudo da escravidão são os
cachimbos e objetos utilitários cerâmicos (Agostini, 1998a, 1998b, 2008,
2009, 2010, 2011: 78-170; Allen, 1998; Dias Jr., 1988; Jacobus, 1996; Souza,
2000: 70-94, 2002; Souza e Symanski, 2009). Esse interesse justifica-se na
medida em que esses itens eram amplamente utilizados pelos escravos, tanto
no âmbito público quanto no âmbito privado.
Evidências arqueológicas ainda esparsas sugerem que esses itens podiam
ser produzidos em pequena escala, possivelmente para consumo interno.
Esse foi, possivelmente, o caso da Tapera do Pingador, um dos sítios pesquisados por Symanski na Chapada dos Guimarães e que se constituiu em um
pequeno quilombo. Nesse sítio foi encontrado um buraco de lixo, situado de
forma adjacente ao alicerce de uma habitação, que continha em seu interior
alguns recipientes cerâmicos fragmentados e com cicatrizes de “explosão” –
um processo de fratura produzido na etapa de queima do recipiente durante
o processo de manufatura. Diante desse conjunto de evidências, é possível
considerar que nesse assentamento havia a produção cerâmica, cujo refugo
foi descartado, ainda que de forma parcial, no buraco de lixo adjacente à residência. Evidências desse tipo de prática em unidades produtivas coloniais
foram também registradas. Por meio de análises físicas e químicas realizadas
no material cerâmico proveniente de uma grande unidade rural da primeira
metade do século xviii situada no Planalto Paulista, Zanettini e Wichers
(2009: 324-325) encontraram peças com características físicas e químicas bastante homogêneas, o que segundo esses autores pode se constituir em uma
evidência de que havia, nessa propriedade, produção cerâmica destinada ao
consumo local.
Cumpre assinalar, contudo, que essa pode não ter sido a regra. A análise
realizada por Zanettini e Wichers (2009: 317-323) para outros sítios do Planalto
Paulista revelou algo que os arqueólogos há muito já desconfiavam: a comercialização de recipientes cerâmicos em escala local ou regional (Jacobus,
1996). As evidências encontradas por esses autores para esse tipo de produção
incluem a identificação de uma olaria situada próximo a Itu e que era destinada à confecção de equipamentos de cozinha, e um conjunto de recipientes
cerâmicos provenientes de uma unidade rural do século xvii, cuja assinatura física e química apresentava uma grande heterogeneidade, o que serve
como um indicativo bastante confiável de que a cerâmica utilitária produzida
nesse local tinha diferentes procedências. Evidências da produção cerâmica
em escala regional vêm também de contextos mais tardios. Na cidade de São
18
Sebastião (São Paulo), Agostini (2010) identificou um importante centro produtor cerâmico dos séculos xviii e xix, dominado por mulheres brancas e
livres e que contava com mão de obra formada, predominante, por escravas
adultas e crianças. No caso de São Sebastião, Agostini encontrou evidências
de que as peças ali produzidas durante o século xix contribuíram para o abastecimento de recipientes cerâmicos da cidade do Rio de Janeiro, indicando
que esse tipo de comercialização podia, pelo menos no século xix, ter uma
escala de distribuição bastante ampla.
Outro item de vasto uso entre escravos era a cestaria. Infelizmente, a
preservação de fibras vegetais no registro arqueológico depende de condições tafonômicas raras. Em função disso, apenas ocasionalmente é possível
sua identificação – e quando isso ocorre, contamos apenas com fragmentos
esparsos e mal preservados, o que inviabiliza análises mais aprofundadas
dessa categoria material. Todavia, os registros documentais dos séculos xviii
e xix, sobretudo iconográficos, são abundantes em referências acerca da produção e comercialização desses itens por escravos.
Outras categorias menos conhecidas são possíveis de ser compreendidas
por meio da arqueologia. Esse é o caso dos artefatos líticos. No material proveniente das senzalas do Engenho de São Joaquim, foram encontrados quatro isqueiros (peças líticas portáveis que eram empregadas para a produção
de faíscas e utilizadas para acionar fogueiras ou cachimbos), sete polidores e
duas lascas líticas (Souza, 2008). No seu conjunto, esses itens podem ter sido
empregados em uma variedade de atividades, incluindo o processamento e
preparo de alimentos, rituais religiosos ou a preparação de fibras para a confecção de cestarias.
Uma implicação importante da produção de artefatos pelos escravos diz
respeito à identificação desses itens com seus consumidores. Ao contrário
dos itens industrializados europeus, esses artefatos eram produzidos por e
para os escravos. Desse modo, sua forma, decoração e função estavam relacionadas a seus usuários de forma mais direta, podendo refletir preferências
culturais e sociais específicas. Conforme análises têm indicado, esse foi o
caso dos cachimbos (Agostini, 1998b, 2009; Souza, 2000: 80-85; Souza e
Agostini, 2012) e recipientes utilitários cerâmicos (Agostini, 1998; Souza,
2002, 2010, 2011; Souza e Agostini, 2012; Souza e Symanski, 2009) utilizados em diferentes partes do Brasil, que expressavam a visão de mundo
e referenciais culturais dos indivíduos que os utilizaram, muitas vezes em
clara oposição à cultura material utilizada pela população livre e branca. A
19
despeito desse grande potencial, a compreensão das injunções entre a produção e o consumo desses itens não é uma tarefa simples. Em sua análise
sobre as paneleiras de São Sebastião, Agostini (2010) apontou as complexidades que envolviam a produção em escala regional desses itens, que passavam
pela interação entre africanos de diferentes procedências e seus descendentes,
dentro de uma lógica comercial regida pela população livre.
Uma quarta estratégia diz respeito à reciclagem de objetos, que, até o
momento, foi identificada arqueologicamente para pelo menos dois tipos
de suporte material: vidros e metais. Nos vidros, as evidências de reciclagem
incluem marcas de lascamento que foram produzidas de modo a gerar gumes
funcionais. Embora a identificação desse tipo de evidência possa ser falseada
em virtude de uma série de fatores (Conte e Romero, 2008; Souza, 2010:
200), as evidências têm se mostrado muito consistentes em relação a esse tipo
de artefato. Objetos produzidos em vidro reciclado têm sido encontrados tanto
em contextos relacionados a comunidades indígenas (Symanski e Osório,
1996: 49, WÜst, 1990: 344, 365) quanto em contextos relacionados a comunidades escravas urbanas e rurais das regiões sul, sudeste e centro-oeste (Souza,
2010: 200-203, 2011, Symanski e Osório, 1996). Por exemplo, nas senzalas
do Engenho de São Joaquim foi encontrado um total de 49 fragmentos de
vidro lascado, produzidos por meio de uma diversidade de técnicas. Esses
itens foram manufaturados a partir de fragmentos do bojo, gargalo e base de
garrafas de vinho, e empregados, em sua maioria, para a criação de raspadores (N=47). Em menor número, foram encontradas duas peças com ponta
que podem ter sido utilizadas para perfurar ou cortar objetos (Souza, 2008).
Exemplos etnográficos de comunidades afrodescendentes de outras regiões
das Américas sugerem que esses itens podiam ser empregados para amolar
cabos de enxada ou machado, para cortar o cabelo e a barba, ou descarnar animais (Wilkie, 1996: 44-45; Eric Poplin, comunicação por e-mail, 30/05/2007).
Em Goiás foram verificadas também evidências de reciclagem de metais
para produzir adornos. Em Ouro Fino, um arraial de mineração setecentista,
foram encontradas duas peças com a forma circular e uma com a forma retangular. Todos os exemplares tinham uma perfuração central e dimensões muito
reduzidas, possuindo cerca de 1 cm de diâmetro. Pode-se afirmar que pelo
menos um desses objetos foi utilizado como brinco, uma vez que possui ainda
preservada a parte metálica destinada a prender a peça à orelha (Souza, 2000:
59-60). Nas senzalas do Engenho de São Joaquim, datadas de um período mais
tardio, foi também encontrado esse tipo de adorno, ainda que seu tamanho
20
tenha se mostrado consideravelmente maior. No total, foram encontradas seis
peças que se agrupam em três tipos diferentes: uma com a forma octogonal,
furo central e 3,4 cm de diâmetro, uma com a forma circular, furo central
pequeno e 2,6 cm de diâmetro, e quatro com a forma circular, furo central
grande e média de 2,4 cm de diâmetro (Souza, 2011). No material arqueológico da Casa de Fundição do Ouro de Goiás – um sítio histórico situado na
Cidade de Goiás e que durante a Guerra do Paraguai serviu como depósito
de material bélico – foi encontrado um número expressivo de partes metálicas de armas, entre as quais negativos de retiradas circulares para a confecção
dos adornos acima descritos. Na seleção do suporte, foram escolhidas partes
planas, sendo as mais populares as bainhas de espada e as chapas metálicas
(Souza, 2008: 16-18).
A despeito de evidências frequentes ligadas à prática de reciclar metais
para a produção de adornos, é possível considerar que um repertório muito
maior de possibilidades tenha existido e que está além do nosso conhecimento atual. No Engenho de São Joaquim, por exemplo, foi encontrado na
área das suas senzalas um garfo, quebrado próximo ao cabo, que tinha três
dos seus dentes dobrados e apenas um mantido na posição, de modo a funcionar como um perfurador (figura 1).
figura 1 – Perfurador produzido pela dobragem intencional de três dentes
de um garfo quebrado. Artefato recuperado na área das senzalas
do Engenho de São Joaquim (atual Fazenda Babilônia), Goiás.
(Foto: Marcos André Torres de Souza.)
21
A reciclagem de itens industrializados nos remete, em primeira análise, às restrições materiais impostas às comunidades escravas. Analisando
uma amostra de vidros reciclados da cidade de Porto Alegre no século xix,
Symanski e Osório (1996: 50-51) chamaram a atenção para as fortes desigualdades socioeconômicas que existiam entre senhores e escravos. Segundo
esses autores, isso fez com que os escravos tivessem maior dificuldade para
adquirir itens manufaturados, daí a decisão de substituí-los pelos vidros reciclados. Além desse cenário, é possível considerar que a decisão de reciclar
garrafas de vidro tenha sido feita apenas em função da sua funcionalidade.
Os gumes de cacos de vidro são funcionais até mesmo sem a produção de
retoques. Nesse sentido, é possível que a adoção de uma tecnologia desse tipo
de artefato tenha representado uma solução natural para as necessidades diárias dos escravos, ainda que para isso se fizesse necessária a existência de um
repertório de técnicas específicas e inerentes ao grupo.
Uma quinta e última estratégia podia envolver o pequeno furto, antes
considerado por arqueólogos como o meio mais provável de entrada de itens
nas habitações escravas (Singleton, 1996: 153). Evidências desse tipo de prática ainda não foram, todavia, identificados no Brasil. Uma situação dessa
ordem foi identificada apenas em uma plantation do sul dos Estados Unidos,
onde, a partir da análise de restos alimentares relacionados a contextos escravos, Young (1997: 17) notou a presença de filhotes de porco, cujo consumo de
forma regular seria irracional, justificando-se seu consumo apenas se levada
em conta a possibilidade do furto.
O conjunto de estratégias brevemente inventariadas acima indica que, ao
contrário do que se poderia supor, os grupos escravos podiam contar com um
universo material bastante diversificado. Vale notar que, muitas vezes, essas
estratégias podiam ser combinadas, criando um rico universo de possibilidades. Um exemplo dessa diversificação vem dos instrumentos escavados nas
senzalas do Engenho de São Joaquim e que foram empregados em três funções
básicas da existência cotidiana: raspar, perfurar e cortar (tabela 1). Nos três
grupos, podiam os indivíduos lançar mão de diferentes recursos materiais.
Podiam usar tanto o vidro lascado quanto o lítico polido, ambos presentes
nas duas áreas pesquisadas. Podiam ainda, contar, para as três funções, com
instrumentos em metal, fossem facas ou canivetes, adquiridos no mercado ou
em segunda mão (Souza, 2011: 91-92).
22
Raspar
Vidro reciclado
Lítico
Perfurar
Vidro reciclado
Garfo reciclado
Cortar
Vidro reciclado
Instrumentos multifuncionais
Canivete
Faca de ponta
Total
N. de Peças
54
47
7
1
1
1
1
1
6
3
3
62
Tabela 1 – Itens recuperados nas senzalas do Engenho de São Joaquim
e que foram empregados nas tarefas de raspar, perfurar e cortar.
cultura material e significação
Além da identificação do uso de diferentes estratégias materiais, a arqueologia
tem também identificado diferentes processos de significação atribuídos pelos
escravos à cultura material e que se colocam além das suas qualidades puramente funcionais. Um processo de significação possível de ser identificado
por meio da análise dos recipientes cerâmicos é o de criação de antíteses, que
ocorrem quando a produção e utilização da cultura material foi feita de modo
a se opor a alguma outra expressão material. Durante seus momentos iniciais,
a arqueologia histórica assumiu aprioristicamente que os recipientes cerâmicos utilizados no universo colonial brasileiro eram produto da fusão cultural
entre indígenas, negros e brancos – uma percepção que, ao invés de refletir
um balanço equilibrado das evidências, se baseava em uma noção essencializada da cultura brasileira (Souza, 2008). Ao contrário do que essa concepção
parecia sugerir, as evidências arqueológicas mais recentes têm indicado que,
na verdade, os recipientes utilitários cerâmicos estavam profundamente envolvidos com as lutas sociais ocorridas entre livres e escravos, funcionando como
um recurso para a criação e manutenção de diferenças culturais e sociais.
Um exemplo da criação de antíteses vem do material cerâmico proveniente do arraial de Ouro Fino e datado do século xviii. Na análise desse
material, notei que esses utensílios serviram como ferramenta para o delineamento de diferentes esferas de ação, e que envolviam homens livres e
23
mulheres escravas. A separação dessas esferas foi feita por meio de artefatos
usados em dois conjuntos de atividades ligadas ao sistema de alimentos e que
apresentavam um contraste visual bastante nítido: de um lado, estavam aqueles envolvidos com o preparo de alimentos e representados por panelas; de
outro, estavam aqueles envolvidos com o serviço e o consumo de alimentos,
representados por malgas, xícaras e tigelas. Os utensílios ligados ao preparo
de alimentos apresentavam uma superfície escura e eram predominantemente decorados por incisão, compondo motivos quase sempre retilíneos,
tais como zigue-zagues e losangos. Por outro lado, os utensílios ligados ao
serviço e consumo de alimentos apresentavam uma superfície de cor branca
e eram quase sempre decorados com pintura vermelha, compondo motivos
quase sempre curvilíneos, tais como florais e padrões de semicírculos concêntricos. Baseado nesses contrastes, argumentei que os artefatos usados em
Ouro Fino associavam-se a uma série de oposições binárias (claro/escuro,
retilíneo/curvilíneo etc.), capazes de delinear e reforçar diferentes esferas de
ação existentes no interior dos domicílios. Levei em conta o fato de que os recipientes analisados relacionavam-se a diferentes setores funcionais de uma residência e que incluíam as áreas de preparação e de consumo de alimentos – ou,
em outros termos, as áreas de serviço e as áreas de sociabilidade da residência,
a primeira relacionada ao trabalho escravo e a segunda à área de convívio cerimonial da população livre, refletindo portanto oposições do tipo livre/escravo.
Um aspecto complementar nas oposições criadas a partir das decorações dos
recipientes cerâmicos está no fato de que os motivos decorativos produzidos
nesses recipientes apresentavam diferentes influências culturais. Nas peças de
serviço e consumo de alimentos, é evidente a intenção de emular as faianças
de produção europeia e as porcelanas de produção oriental. Nesses recipientes,
predominavam as decorações florais e com padrões de semicírculos concêntricos, ambos muito frequentes também nas faianças comuns e nas porcelanas
do período. Nas panelas usadas no preparo de alimentos havia, por outro lado,
uma tendência em utilizar certos motivos recorrentes na cerâmica de produção africana, incluindo losangos, zigue-zagues e outros padrões geométricos.
As oposições do tipo livre/escravo se relacionavam, portanto, à expressão
de diferenças culturais (Souza, 2010). É interessante notar que o comportamento material observado em Ouro Fino não se limitou a esse sítio, tendo
sido encontrado também em outros contextos goianos (Carvalho, 2000;
Tedesco e Carvalho, 2004; Wüst, 2006) e nos engenhos de Mato Grosso
(Souza e Symanski, 2009: 542-543).
24
Outro processo de significação – e talvez o mais conhecido – foi o de
atribuir um novo sentido ao artefato por um processo usualmente denominado ressignificação ou ressemantização. Essa prática envolvia um processo
de estranhamento, de explicar o desconhecido pelo conhecido. Os africanos chegados ao Brasil foram colocados diante de novas práticas culturais e
formas materiais e, nesse cenário, estabeleceram um olhar mediado entre o
que conheciam e o que ignoravam. Nesse processo, terminaram por atribuir
novos significados a alguns dos objetos que lhes eram apresentados. Cumpre
notar que a identificação arqueológica de tais processos é de difícil apreensão, na medida em que eles não exigiam a transformação física do objeto.
Em função disso, na maioria das vezes, o arqueólogo fica na dependência do
contexto no qual o artefato foi encontrado, o que pode oferecer informações
acerca das suas novas significações. Esse exercício tem permitido a identificação de poucos – porém valiosos – exemplos desse tipo de prática. Por
exemplo, na área das senzalas do Engenho Água Fria foi encontrado, abaixo
do nível do piso, um par de garrafas inteiras colocadas lado a lado, uma de
vidro preto e a outra de grés branco (Symanski, 2007: 25). Conforme indicam relatos etnográficos de comunidades afrodescendentes de outras partes
das Américas, esses itens eram conhecidos como Obeah Bottles, ou garrafas
de conjuro, que eram geralmente enterradas em batentes de portas ou nos
cantos das casas visando causar malefício aos seus ocupantes (Souza, 1986;
Wilkie, 1997: 88-89, 2000: 10-11). Sobretudo em situações envolvendo práticas religiosas, toda sorte de objetos podia passar pelo processo de ressignificação, geralmente com o intuito de adquirir atributos de significado mágico ou
religioso, tal como sugere a literatura arqueológica relacionada a outras partes das Américas (Brown, 2004; Klingelhofer, 1987; Leone et al., 2003;
Russel, 1997; Wilkie, 1999; Young, 1997, entre outros).
O processo de ressignificação de um artefato podia implicar na criação
do que pode ser definido como metonímia, que envolvia a atribuição de significados semelhantes a objetos que possuíam uma relação lógica entre si.
Esse tipo de atribuição foi identificada por MacGaffey (1988), que descreveu
o nkisi (minkisi no plural), a medicina sagrada dos bakongo, como contendo
“metáforas visuais”.
A criação de metonímias pode, por um lado, estabelecer relações verbais
e visuais – por exemplo, a terra dos cemitérios pode metonimicamente evocar
os mortos. Por outro lado, pode estabelecer relações entre suportes materiais
aparentemente díspares – desse modo, objetos em primeira análise distintos
25
podem ser relacionados a partir de semelhanças em seu aspecto, ritmo, angularidade, transparência, textura etc. Não por acaso, situações dessa ordem
podem ser encontradas tanto na América do Norte (Smith, 1994: 41) quanto
no Brasil (Lima, 2002: 18), onde aportaram africanos provenientes da África
central. Essa percepção pode ajudar significativamente na interpretação de
itens usualmente encontrados em contexto arqueológico, sobretudo na interpretação de amuletos produzidos em diferentes tipos de suporte material.
Outro processo envolvia a criação de sínteses. Uma situação dessa ordem
foi identificada nos sítios da Chapada dos Guimarães datados do século xix,
onde os recipientes cerâmicos com decoração incisa podiam acumular diferentes padrões. Dessa forma, motivos que apareciam muitas vezes isolados – tais
como zigue-zagues, linhas curtas paralelas, digitados, digitungulados etc. –
podiam ser reunidos em um único recipiente, o que se constituía em um mecanismo bastante eficiente para sobrepor diferenças, uma vez que novos mecanismos de diferenciação se sobrepunham ao anterior sem invalidá-lo (Souza
e Symanski, 2009: 541). Tal prática vai ao encontro do que observaram Mintz
e Price (1992: 45) acerca dos indivíduos oriundos das partes oeste e central do
continente africano, que tendem a ser “aditivos” na aceitação de outras práticas.
Um último processo de significação envolvia o reforço – quando um dado
item era utilizado a fim de dar mais força a uma dada construção. Um exemplo
desse tipo de situação provém da Coleção do Museu da Polícia Civil do Rio
de Janeiro, que conta com um acervo bastante expressivo de objetos ligados a
cultos afro-brasileiros e que foram apreendidos pela força policial da cidade no
início do século xx. Nessa coleção existem alguns galhos de árvores bastante
retorcidos que têm figas esculpidas na sua extremidade (figura 2).
De acordo com as práticas religiosas dos centro-africanos, grupo predominante na cidade do Rio de Janeiro a partir do século xix (Karasch, 2000:
50-57), o uso de madeiras ou fibras com aspecto retorcido são comumente
empregados em minkisi ou amuletos (MacGaffey, 1988: 195-196). Na peça
em questão, soma-se ao retorcido a figa, cujo uso no Brasil se consagrou como
potente amuleto, reforçando, assim, os poderes mágicos da peça. Conforme já
havia notado Bastide (1971: 161) em sua análise sobre as religiões afro-brasileiras, a adoção das superstições e crenças europeias foi, muitas vezes, utilizada
pelo africano de modo a fortalecer seu universo ritual e forças espirituais. Esse
foi o caso da figa em questão, um amuleto de origem europeia que passou por
um processo de ressignificação e utilização no repertório de práticas religiosas
afro-brasileiras, muitas vezes para reforçar construções já existentes. Exemplos
26
adicionais desse tipo de significação incluem os balangandãs e patuás, que contêm kits de proteção espiritual. Do contexto arqueológico vem o exemplo do
que se convencionou denominar na literatura de cachés – conjuntos de itens de
uso ritual que podem incluir uma diversidade de itens, incluindo moedas, cravos, ossos animais, alfinetes, tesouras, botões etc. Em sua pesquisa na sede do
Engenho Rio da Casca, Symanski (2007: 24) identificou um desses conjuntos,
representados pela presença de um recipiente cerâmico que continha, no seu
interior, uma moeda. Conforme acertadamente notou Smith (1994), tais combinações compunham um conjunto articulado de intenções e significações.
figura 2 – Peça de uso religioso afro-brasileiro.
Coleção de Cultos Afro-Brasileiros, Museu da Polícia Civil.
(Foto: Wilson da Costa Vieira Junior.)
27
o uso diversificado e criativo dos recursos
Evidências arqueológicas têm indicado que os escravos criaram referências
materiais amplamente compartilhadas por aqueles que se encontravam na
situação de cativeiro. A despeito da grande diversidade cultural e étnica
existente entre esses indivíduos, é possível reconhecer algumas preferências
comuns no que se refere aos artefatos por eles utilizados. Não obstante, eles
lançaram mão da criatividade e flexibilidade na produção e uso dos recursos
materiais. Um exemplo desse tipo de prática provém da cerâmica utilitária
dos engenhos da Chapada dos Guimarães, que possuía uma padronização
evidente na sua tecnologia de produção, forma e decoração. Conforme indicou a análise desses artefatos, os grupos escravos que viveram nessa região
compartilhavam o mesmo tipo de preferências no que se refere aos recipientes cerâmicos que apresentavam, no seu conjunto, uma certa uniformidade
estilística. Foi observado, todavia, que eles tiveram liberdade criativa na produção desses utensílios, expressa, sobretudo, nos momentos em que a região
contou com um número mais elevado de “nações” escravas. Para a produção
da decoração dos recipientes nesses momentos, foi empregada uma variedade
de técnicas, incluindo a incisão, exposição deliberada de roletes cerâmicos,
impressões de tecidos e outros objetos, carimbagem, digitado, digitungulado
e ponteado. Essas técnicas foram empregadas de modo a formar motivos que
iam desde os populares zigue-zagues e losangos até uma variedade de padrões
inteiramente novos no quadro regional (Souza e Symanski, 2009: 536-538).
O uso criativo e flexível dos recursos materiais pode também ser notado
em certas práticas incidentais ligadas à manufatura e uso dos itens cotidianos e que incluem, por exemplo, as peças produzidas em metal e vidro reciclados citadas ao longo deste texto. No seu conjunto, essas práticas podem
ser classificadas como “tecnologias expediente”, que inclui as tecnologias de
momento, aquelas que não são planejadas, implicam em pouco esforço e destinam-se a suprir as necessidades cotidianas mais imediatas (Binford, 1979).
Para operacionalizar esse tipo de tecnologia, faz-se indispensável a disponibilidade imediata de matéria-prima (Binford, 1983: 265). No Engenho de
São Joaquim, um importante depositório de recursos para o emprego de tais
tecnologias se situava em uma área à primeira vista inusitada: o interior das
habitações escravas. Na minha pesquisa identifiquei, em um dos setores escavados das senzalas, vestígios de uma fogueira e, à sua volta, uma ampla área de
deposição arqueológica que contava com uma concentração de artefatos que
28
alcançou, em alguns pontos, a média de 300 fragmentos por metro quadrado,
depositados em uma camada que não ultrapassava a espessura de oito centímetros. Nessa área de deposição, foi encontrada, em meio a restos alimentares e objetos utilitários descartados, uma série de artefatos reciclados, bem
como a matéria-prima empregada na sua produção, sugerindo que os cativos,
em reuniões à volta do fogo, podiam lançar mão de tecnologias expedientes
(Souza, 2011, no prelo). Na minha análise, correlacionei tal comportamento
com uma prática comum em diferentes regiões da África oeste e central, utilizando como exemplo os Dogon. Conforme indica a etnografia realizada
por Douny (2007), membros desse grupo mantêm os objetos quebrados em
proximidade imediata, de modo a servirem como um recurso imediato para
reciclagem. Segundo esse autor, os Dogon têm uma noção fluida de lixo, na
medida em que, dependendo da sua utilidade, um objeto pode entrar repetidas vezes em um novo ciclo de uso.
Entre comunidades escravas, o uso criativo dos recursos materiais pode
ser entendido não só por meio das tecnologias expediente mas também, em
um âmbito mais abrangente, por meio das estratégias e significações discutidos ao longo deste texto que, por sua diversidade e natureza, apontam para
uma grande habilidade dos cativos em se relacionar com o mundo material de uma forma flexível e bastante original. Convém considerar que esse
tipo de prática tem pelo menos duas implicações importantes. A primeira
diz respeito à sua estruturação. À primeira vista, algumas das soluções por
eles encontradas parecem se apresentar como pouco estruturadas, na medida
em que não exigiam planejamento prévio para a produção e distribuição dos
recursos, o que é o caso, por exemplo, dos itens reciclados. A despeito do que
parece, esse argumento não se sustenta. Por exemplo, para o lascamento de
vidro no interior das senzalas do Engenho de São Joaquim fazia-se necessária
a aceitação tácita de um conjunto de referências compartilhadas pelos grupos corresidentes, e que podia incluir o acúmulo de dejetos no interior das
senzalas (fragmentos de vidro) e a criação de um padrão de uso de espaço
(p. ex. a utilização da área ao redor do fogo para a produção de ferramentas).
Era necessário também o conhecimento prévio da tecnologia empregada (o
lascamento de fragmentos de garrafas quebradas), bem como a existência de
mecanismos de perpetuação do conhecimento necessário para seu uso. Tais
práticas não são possíveis sem um estruturado conjunto de referências, sancionado pelos membros do grupo.
29
A segunda implicação deriva da noção de que, por se basear em ações
individuais, o uso criativo e flexível dos recursos não reflete de forma acurada as práticas materiais de um dado grupo. Durante muito tempo acreditou-se que ações individuais não organizadas, bem como o uso criativo dos
recursos, produziam “dissonância” na cultura material, não servindo, portanto, como referência para a caracterização de práticas culturais e sociais
pretéritas (Hodder, 2000: 27). Em virtude dessa concepção, autores como
Binford (1983b: 144) consideravam que os itens produzidos de forma expediente tinham pouco da identidade de quem os produziu e da “consciência
estilística” do grupo, considerando, assim, que os melhores marcadores de
identidade étnica serão encontrados em itens produzidos de forma planejada
e destinados a ter uma vida útil mais longa. Percepções contrárias a essa premissa – e por mim aqui também assumida – vêm de arqueólogos que, baseados em autores como Giddens (1989) e Bourdieu (1977), identificam as ações
individuais como intrinsecamente relacionadas à estrutura social na medida
em que, por um lado, se fundamentam em um conjunto de regras e recursos
herdados do grupo e, por outro, atuam de forma recursiva na sua reprodução.
Dessa forma, ações individuais, a despeito do seu envolvimento com a produção material de longo prazo, expressam de forma acurada o conjunto de
referências pertencentes a um dado grupo. Giddens (1979: 150) assinalou que
“os seres humanos não podem ser tratados nem como objetos passivos, nem
como sujeitos inteiramente livres”. Essa percepção nos permite reconhecer,
por um lado, a relevância das regras e normas socialmente estabelecidas e,
por outro, a importância da criatividade e da inovação, que não só têm uma
função produtora-reprodutora das estruturas sociais, mas também acrescentam um caráter dinâmico e mutável para essas mesmas estruturas. Por
essa perspectiva, o emprego flexível e criativo dos recursos por comunidades
escravas pode ser entendido em sua plenitude. Vistos por essa perspectiva, é
possível reconhecer sua centralidade na criação de respostas e nexos para as
necessidades de existência desses grupos, seja do ponto de vista individual,
seja do ponto de vista coletivo.
Considerando o caráter singular das expressões materiais criadas e utilizadas pelos grupos escravos arqueologicamente estudados até o momento,
parece certo que, por meio da agência individual, eles desenvolveram importantes mecanismos de diferenciação social em relação aos senhores. Enquanto
a sociedade livre se encarregou de criar potentes mecanismos de distinção
social e de estabelecimento de hierarquias por meio da cultura material
30
(Lima, 2008; Souza, 2007; Symanski, 2006: 206-209), os escravos deram
o troco. Conforme sugerem amostras de louças provenientes de diferentes
sítios do centro-oeste brasileiro e mencionados ao longo deste texto, os escravos utilizaram critérios distintos para a escolha das decorações das louças. Na
aquisição desses itens, lançaram mão, muitas vezes, de um modus operandi
que, em seu conjunto, destoava daquele usado nas residências da população
livre. Na produção e uso da cerâmica utilitária e de cachimbos, aqui também
citados, estabeleceram, por meio de antíteses, mecanismos de diferenciação.
O emprego criativo de práticas culturais específicas pelos escravos e antagônicas aos proprietários tem sido entendido, na arqueologia, como expressões simbólicas da relação dominante-dominado. Voss (2008: 36), por exemplo, argumentou que o conceito de etnogênese, amplamente mobilizado na
arqueologia da diáspora africana, tem sido usado com o fim de revelar a criatividade dos povos marginalizados e oprimidos e sua habilidade em resistir
à dominação. Uma maneira interessante de recolocar essa questão – levando
em conta sobretudo o que as pesquisas arqueológicas em contextos brasileiros
têm sugerido – seria considerar que o uso criativo dos recursos pelos escravos
não se constituiu apenas em uma resposta, apresentando-se, na verdade, como
um traço intrínseco do acervo de conhecimento e práticas desses indivíduos
e que podem ter sido utilizados, entre outros fins, como uma ferramenta para
expressar diferenças e reagir contra o sistema que lhes era imposto.
Considerar que os grupos escravos empregaram soluções criativas e inovadoras na produção e uso dos recursos materiais implica em uma ruptura
com o que se convencionou denominar na arqueologia da diáspora africana
de “etnicidade estática”, que define o diagnóstico de etnicidade e práticas culturais a ela associadas com base na noção de autenticidade, que vê “a memória como definidora, a experiência como corruptora” (Upton, 1996: 1). Na
literatura, é vastíssima a lista de estudos que definem a capacidade dos grupos
escravos em se diferenciar apenas por meio do estabelecimento de semelhanças entre o Brasil e a África. Nesse tipo de abordagem, a autenticidade das
práticas culturais dos grupos escravos é apenas conferida quando semelhanças materiais entre essas duas regiões são encontradas. Levando em conta a
cultura material até o momento recuperada em contextos associados a escravos no Brasil, me parece claro que esses indivíduos lançaram mão de um conjunto de referências em parte amparado por uma base cultural proveniente
da África. Não obstante, é recorrente em contextos arqueológicos a presença
do “novo”, a ponto de tornar as diferenças muito mais salientes do que as
31

Documentos relacionados