da multiterritorialidade aos novos muros

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da multiterritorialidade aos novos muros
DA MULTITERRITORIALIDADE AOS NOVOS MUROS:
paradoxos da des-territorialização contemporânea
Rogério Haesbaert
Universidade Federal Fluminense
Niterói – Rio de Janeiro
O espaço está na ordem do dia. Muitos, a partir dos anos 1990, falam até mesmo
num “giro” ou “virada” espacial. A mais célebre referência a esta guinada foi Michel
Foucault, sempre citado quando se comenta a mudança da “era do tempo”, ou da história,
referida à passagem do século XIX para o XX, e a gradativa assunção da “era do espaço”,
que ele já identificava no final dos anos 1960 (FOUCAULT, 2001, original escrito em
1967). Entramos nesta “era espacial” tanto no sentido da exploração dos micro-espaços
(dos gens às micro-partículas) quanto dos macro-espaços (da exploração da Lua ao bigbang). Mas o que nos interessa mais de perto, aqui, enquanto geógrafos, é justamente a
ênfase dada hoje à espacialidade numa escala mais especificamente “humana”, aquela de
nossa reprodução e de nossa circulação enquanto seres viventes, móveis, que necessitam de
abrigo, alimento e que, a todo momento, recriam o mundo pela própria ressignificação e
simbolização de seu espaço-tempo.
Espaço-tempo: esta é a expressão que realmente nos interessa. Muito mais do que
uma “virada espacial”, ingressamos, desde Einstein, na era do “espaço-tempo”, da
indissociabilidade entre essas dimensões do social. Não podemos mais nos referir a essas
“categorias” diante de genéricas dicotomias como aquelas que separam presente de
passado, sincrônico de diacrônico, fluidez de fixação, transformação de permanência. O
presente “geográfico” passa a ser visto, sempre, como a condensação de múltiplas durações
de um passado que se contrai e, ao mesmo tempo, como a abertura para um futuro de
múltiplos caminhos e, assim, de múltiplas possibilidades. Por mais que o espaço pareça ser
a esfera da fixação e da estabilidade, na verdade ele é a condição para que o tempo futuro
seja aberto e possa realizar diferentes alternativas, colocadas a partir dessa múltipla
combinação de trajetórias que incorporamos no nosso presente, na coetaneidade de nossa
geografia (MASSEY, 2008).
Multiplicidade é uma palavra da moda, marca, para muitos, de nossos tempos “pósmodernos” ou “pós-estruturalistas”. Mas temos que ter muito cuidado com ela.
Sobrevalorizá-la pode nos levar a ocultar, muitas vezes, a difícil empreitada de encontrar
novos caminhos dentro de um espaço moldado por sujeitos poderosos que ditam a maior
parte das regras através de uma sociedade regida, sobretudo, pela lógica contábil da
economia de mercado, onde quase tudo, hoje, é passível de compra e venda. Mas não
podemos também, por outro lado, ignorar as múltiplas trajetórias que o espaço nos coloca
para alimentarmos a criação, o novo ou, nas palavras de Deleuze e Guattari (1995), os
momentos de efetiva “desterritorialização” em que “linhas de fuga” nos levam à construção
de novos agenciamentos, tanto no campo das práticas quanto das representações espaciais.
“Desterritorialização” também acabou sendo um termo da moda a partir dos anos
1990, embora Deleuze e Guattari já o propusessem desde, pelo menos, os anos 1970 1. Tudo
parecia se desenraizar, perder qualquer base sólida ou, pelo menos, hibridizar-se. As bases
territoriais de controle mais conhecidas, aquelas relativas ao Estado, pareciam cada vez
mais debilitadas. O próprio capitalismo tendia a “flexibilizar-se”, perdendo a rigidez de sua
era fordista, e a famosa expressão de Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”,
popularizada por Marshall Berman (1986), parecia fazer realmente sentido. Mas esse
desmanche e essa descartabilidade sócio-espacial, em sua maior parte, tinham endereço
certo: realimentar a espiral de crescimento e de especulação que, depois, resultaria em
crises regionais ou mundiais que, em maior ou menor grau, acabariam afetando a todos nós.
E não se tratava somente de crises econômicas, elas também abrangiam o campo dos
valores, crises de representação na nossa forma de ler o mundo e seu espaço – vide, por
exemplo, o que se passou após a queda das torres gêmeas de Nova York em 2001 e a
ambiguidade simbólica adquirida pelo 11 de Setembro.
Hoje, a instabilidade e a incerteza, definitivamente, recheiam nossas geografias, do
espaço local, mais cotidiano, ao global. Nem mesmo a dimensão material de nossos
espaços, a começar pelas rápidas transformações geradas pelas mudanças climáticas,
permitem imaginarmos o espaço como a dimensão da permanência e da “longa duração” –
como defendeu um dia o historiador Fernand Braudel2. Ao contrário, porém, de uma
desterritorialização enquanto destruição inexorável de nossos territórios, vistos como
1
. Sobre essa temática, ver nossa abordagem em Haesbaert, 2004, sobretudo o capítulo 3
. Apenas na primeira fase de sua obra, ressalte-se, notadamente na introdução de “O Mediterrâneo e o Mundo
Mediterrânico na época de Felipe II” (Braudel, 1983), quando ele, polemicamente, caracteriza o tempo
histórico de longa duração como “tempo geográfico” (sobreenfatizando, certamente, uma geografia física em
que a natureza ainda seria caracterizada, sobretudo, por seus ritmos lentos).
2
espaços efetivamente dominados e/ou apropriados, o que encontramos é uma mudança
muito mais rápida de territórios, moldando aquilo que propusemos denominar
“multiterritorialidade”: a vivência, concomitante ou sucessiva, de múltiplos territórios na
composição de nossa territorialidade.
Se os territórios são espaços de exercício de poder, de relações de poder feitas
(no/pelo) espaço, este poder, contudo, tem múltiplas faces. Devemos considerar desde
aquelas do poder político “tradicional”, restrito à figura do Estado e/ou das “classes
hegemônicas”, quanto aquelas mais amplas, que enfatizam também sua dimensão simbólica
(ver, por exemplo, o “poder simbólico” tal como definido por Bourdieu, 1989).
Para o nosso tratamento do poder e, em parte, do próprio território, tomaremos
como referência central, aqui, Michel Foucault. Para ele, numa visão mais ampla de poder,
toda relação social é também uma relação de poder, poder não apenas repressivo, mas
também “produtivo”. A questão fundamental que se coloca não é aquela que responde a “o
que é” o poder, mas a “como ele se exerce”. Por isso, também, a relevância das formas
espaciais/territoriais através das quais ele é produzido.
Para Foucault (2008), ao longo do mundo moderno se sobrepuseram três formas
básicas de manifestação do poder: o (macro-)poder soberano, forjado fundamentalmente
pelo Estado, no exercício da soberania, ou seja, no controle sobre seu território de
jurisdição; o poder disciplinar, com toda uma “microfísica” que produz a disciplina a partir
da normatização do tempo e do espaço a nível individual; e o biopoder ou poder sobre a
vida, que se efetua através do homem visto enquanto “população”, em seu “meio” de
circulação e reprodução como ser vivente, biológico.
Foucault, infelizmente, aliou à sua visão ampla de poder uma abordagem muito
restrita de território, pois restringiu o uso do termo à espacialidade do poder estatal,
soberano. Na Geografia, há muito tempo (desde pelo menos Jean Gottman, nos anos 1950),
superou-se a abordagem que associava o território apenas à figura do Estado, como, de
alguma forma, propusera o geógrafo alemão Friedrich Ratzel, no final do século XIX. Hoje,
o território pode ser visto nas mais diversas escalas (Souza, 1995) e através de uma
concepção muito mais ampla de poder (Haesbaert, 2004), que inclui até mesmo a
apropriação simbólica de espaços que, desta forma, para os grupos que se identificam com
eles, leva a uma espécie de empoderamento. Nesse sentido, podemos dizer, pelo menos
desde Antonio Gramsci já se fazia a ligação entre poder político como coersão, em seu
sentido estatal (e/ou representativo de uma classe), e poder simbólico ou do consentimento,
no sentido gramsciano de construção da hegemonia.
Assim, podemos afirmar que as territorialidades dominantes no mundo moderno de
matriz europeia impuseram inicialmente uma padronização territorial, de caráter
pretensamente universal e exclusivista, cuja matriz foi o Estado e seus domínios em área,
construindo “territórios-zona” que não admitiam sobreposição e cuja multiterritorialidade
tinha um caráter meramente funcional, dentro de uma mesma lógica piramidal de controle:
ao território “mínimo” da propriedade privada se sobrepunha o território municipal que, por
sua vez, estaria dentro de territórios “departamentais”, “provinciais” ou “estaduais”, a
seguir incorporados ao território estatal como um todo e, mais recentemente, pelo menos no
caso da União Europeia, a uma entidade supranacional ou de bloco internacional de poder.
Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que, em geral sob o beneplácito do
Estado, sobrepunha-se de modo cada vez mais intrincado uma outra forma de organização
territorial, a dos “territórios-rede” das grandes corporações empresariais, em processo
gradativo de multi ou transnacionalização. Ao contrário do poder estatal, todavia,
especialmente com o fim do domínio colonial, às empresas interessava muito mais o
controle de fluxos e redes do que de áreas ou zonas – estas, ainda assim, representando
parcela indissociável na “amarração” de seus territórios-rede. A lógica territorial das
grandes corporações é sempre, em certo sentido, multi (ou mesmo “trans”) territorial, na
medida em que só estruturam seu poder pela organização de uma imensa articulação de
territórios, desde os territórios-zona em que constroem a infra-estrutura de suas bases
produtivas e/ou de circulação até a conexão em rede ao redor do mundo, realizando assim
imensos circuitos de fluxos sobre os quais efetivamente exercem seu controle.
Trata-se, contudo, também, de uma multiterritorialidade dentro de uma mesma
lógica funcional, globalmente padronizada. A diferença em relação á multiterritorialidade
funcional do Estado é que, enquanto esta se faz pelo encaixe simultâneo de territórios-zona
autocontidos, a das grandes empresas se realiza pela sucessão de territórios-zona
articulados, formando grandes territórios-rede onde o controle mais importante não é o que
se dá sobre áreas/zonas/superfícies, mas sobre dutos e/ou fluxos e pontos ou polos de
conexão que, conjugados, compõem as redes transnacionais.
Hoje, ao lado do “sujeito” grande empresa capitalista, temos também os próprios
grupos culturais, em suas migrações diaspóricas de caráter global, construindo e
vivenciando uma complexa multiterritorialidade ao redor do mundo. Esta, ao contrário da
multiterritorialidade também em rede, mas meramente funcional, das empresas globais,
refere-se a uma maior multiplicidade de dimensões do poder. O migrante em diáspora,
através das múltiplas territorialidades a que pertence, possui trunfos (“trunfos espaciais”,
diria o geógrafo Ma Mung, 1999) para sacar quando necessita, na medida em que, em geral,
pode acionar conexões situadas em diferentes contextos territoriais (locais, nacionais) ao
redor do mundo.
Esse migrante globalizado pode estar ligado a territorialidades locais (um bairro
numa grande metrópole), regionais (a região e a língua ou dialeto no país de origem ou de
destino), nacionais (o Estado-nação em que se situa e o de onde partiu) e globais (o próprio
território-rede da diáspora a que pertence). A multiterritorialidade que ele constrói pelo
acionamento – simultâneo e/ou sucessivo – dessas múltiplas territorialidades é composta
não só pela “funcionalidade” que o leva, por exemplo, a estabelecer toda uma rede de
auxílio financeiro transnacional, mas também pela identificação que ele cria com uma
grande multiplicidade de territórios, permitindo, inclusive, se for um grupo mais aberto, a
construção de territorialidades híbridas com outras etnias e/ou nacionalidades. Bem ao
contrário da multiterritorialidade meramente funcional dos grandes executivos de empresas
multinacionais que, por mais que frequentem diferentes territórios ao redor do mundo,
acabam recriando sempre suas “bolhas” de segurança, no convívio entre iguais, que os
impede de dialogar com territorialidades efetivamente distintas.
Esses migrantes em diáspora podem, ao mesmo tempo, ser o núcleo de
territorialidades múltiplas, abertas, em constante reconstrução pelo trânsito por diversos
territórios “alheios”, e ser objeto, também, de formas de reclusão ou confinamento, como
ocorre quando da formação de guetos – seja “guetos voluntários”, quando se encontram
apenas entre seus semelhantes (reproduzindo traços de alguns grupos hegemônicos), seja
“guetos efetivos”, quando, enquanto grupos subalternos, são forçados a se fechar em
espaços mais precarizados no interior das cidades.
É justamente frente a essa precarização social ou, em outras palavras, à
desterritorialização em sentido mais estrito, isto é, à perda relativa de controle de seus
territórios, que esses grupos subalternizados são objeto de medidas, ora de reclusão – como
no poder disciplinar que propõe retirar por um tempo os “anormais” do convívio social com
o pressuposto de “resgatá-los” mais tarde (numa “reclusão de sequestro”, como aludia
Foucault, 2001), ora de contenção – como denominamos os atuais processos biopolíticos de
controle da circulação, especialmente em relação aos fluxos migratórios globais.
Foto 1. “Muro-barragem” de
contenção de expansão da
favela Santa Marta, no Rio de
Janeiro, conhecido
retoricamente como “ecolimite”
Foto do Autor, 2010
Entendemos que a atual proliferação de novos muros ao longo das fronteiras
internacionais (v. mapa 1) reflete, sobretudo, as bio-políticas de contenção da circulação –
especialmente a circulação dos chamados circuitos ilegais, seja de pessoas (migrantes),
contrabando de mercadorias, tráfico de drogas, etc. Foucault, nesse sentido, também nos
ajuda a compreender esse fenômeno, especialmente ao propor que a principal marca
espacial das sociedades biopolíticas – ou de controle, como prefere Deleuze (ou ainda,
como preferimos, de “in-segurança”) – é o “meio”, enquanto espaço em que se dá a
circulação, seja de fluxos naturais (como as águas e os ventos), seja de fluxos sociais (como
a mobilidade de pessoas). Como já afirmamos, a biopolítica tem como preocupação
primeira o governo da “população” em sua circulação e/ou reprodução biológica, ligandose assim à instituição de saberes como o da estatística – “ciência do Estado” – capaz de
proporcionar os dados indispensáveis à gestão econômica e ao controle do comportamento
geral do homem visto enquanto espécie, isto é, enquanto “população”.
Num mundo como o nosso, por um lado marcado pela fluidez do espaço, as
questões ligadas à circulação se tornam ainda mais relevantes e, com elas, a situação de um
dos componentes mais emblemáticos dos territórios: suas fronteiras – ou, numa leitura mais
simples, seus limites. E é aí que surge um dos grandes paradoxos da geografia
contemporânea: ao lado da fluidez globalizada das redes e da “desterritorialização” (e/ou da
multiterritorialidade) aparecem também os fechamentos, as tentativas de controle dos
fluxos, da circulação, sobretudo da circulação de pessoas, da força de trabalho, dos
migrantes.
Esse controle da circulação pode se dar sob uma espécie de confinamento de redes,
pela produção de circuitos isolados, sob a forma de barragem ou, como preferimos, de
contenção territorial, com a construção de “diques” e, finalmente, pode ocorrer por meio de
dutos, num efeito de canalização desses fluxos. Nesse sentido, uma das estratégias
aparentemente mais anacrônicas, hoje em dia, é a construção de novos muros – desde o
nível da propriedade privada, dos condomínios fechados (gated communities, na realidade
norte-americana) e dos bairros (como em bairros ciganos ou de imigrantes na Europa) até
os muros transfronteiriços, como o famoso muro da fronteira entre Israel e Palestina ou
aquele entre o México e os Estados Unidos. No caso brasileiro temos os muros-“barragens”
construídos para estancar a expansão de favelas, no Rio de Janeiro e São Paulo (fotos 1 e
2), e os muros-“dutos” ao longo de vias de grande circulação, para evitar contato (mesmo
visual) com populações mais pobres (caso da Linha Vermelha, no Rio de Janeiro, foto 3).
É claro que, a nível mais amplo, como limite de uma jurisdição política, os muros
não surgem, como poderíamos imaginar, a partir da emergência do Estado moderno e da
propriedade privada. Da muralha da China aos muros das cidades medievais, do muro de
Adriano, no Império Romano, ao muro de Berlim, durante a Guerra Fria, muitos foram os
contextos em que fronteiras políticas adquiriram essa forma de materialização. Suas
funções, é claro, mudaram muito ao longo do tempo. O muro de Adriano (foto 4), por
exemplo, servia não só para delimitar os domínios do Império Romano e assegurar-lhe um
maior controle em termos de defesa militar mas também para controlar fluxos de pessoas e
comércio em relação aos povos que habitavam mais ao norte.
Foto 2. Parte
remanescente
de uma favela
“intra-muros”
junto à Daslu,
uma das lojas
mais elitizadas
de São Paulo (ao
fundo), e a
“E-Tower”, um
centro de
negócios (à
esquerda)
Foto do autor, 2009
Alguns muros e cercas contemporâneos ainda são um resquício do período da
Guerra Fria, como aquele entre as Coreias e o de Guantánamo, enclave norte-americano
dentro do território cubano. Eles, contudo, alteraram sua função, e hoje se colocam
claramente dentro de um contexto marcado pelo biopoder. O muro entre a Coreia do Norte
e a do Sul, resquício de uma era de confronto entre dois grandes blocos geopolíticos, tem
hoje a função de controlar o fluxo de refugiados – e não somente de refugiados políticos,
como durante a Guerra Fria, mas também econômicos, dado o empobrecimento crescente
dos norte-coreanos. Guantánamo, por sua vez, pode ser interpretado como o protótipo dos
“campos”, dentro da abordagem teórica do cientista político italiano Giorgio Agamben.
Para Agamben (2002), os campos seriam territórios que manifestam a situação biopolítica
do “homo sacer”, condição humana da “vida nua”, situada num limbo jurídico em que o
homem se torna “matável e não-sacrificável”, ou seja, quem o mata não é passível de ser
julgado, nem pelas leis humanas, nem pelas divinas.
Foto 3. “Muro-duto” entre a Linha
Vermelha e o complexo de favelas da
Maré, no Rio de Janeiro
Foto do Autor, 2010
O campo, na conceituação do autor, seria o território por excelência do Estado de
exceção, Estado em que a exceção, por ser desejada, torna-se regra. Ele encontra-se numa
situação ambivalente, ao mesmo tempo dentro e fora da lei “normal”. O refugiado poderia
ser visto como o indivíduo que melhor representa essa ambivalência jurídica. Para
Agamben, no entanto, o próprio Estado como um todo pode adquirir a conotação de
“campo”, na medida em que decrete medidas de exceção em todo o território nacional.
Num “capitalismo de catástrofe”, como indica Naomi Klein (2008), vivemos uma era de
administração de tragédias, ou seja, de sucessões de regimes de urgência ou de exceção.
Grande parte dessas situações jurídicas ambivalentes e marcadas por medidas autoritárias é
decretada em nome da “segurança da população” – esta, por isso mesmo, aceitando abrir
mão de muitos direitos em nome de sua propalada segurança. Para Agamben, um Estado
que legisla praticamente em nome da segurança é um organismo frágil. Ele pode defender,
por exemplo, uma legislação de exceção para combater o terrorismo e, assim, em nome
desse combate, tornar-se, ele próprio, “terrorista”.
Foto 4. Muro de
Adriano, “limes”
norte do Império
Romano (atual
Inglaterra)
construído por
volta de II d.C.
Foto do Autor, 2010
A difusão de fronteiras muradas surge em grande parte, também, em nome do
mesmo discurso global da “segurança”, através de um Estado que claramente busca
reconfigurar seu papel num mundo que já há algumas décadas busca decretar o seu
debilitamento. Autores como Brown (2009) defendem a tese de que os muros
transfronteiriços são uma das formas mais visíveis de demonstração de força de um Estado
cujo poder está em cheque e que, por isso mesmo, necessita ostentar de modo o mais
explícito possível uma potência que estaria perdendo – especialmente no que se refere à
capacidade de controlar fluxos através de suas fronteiras.
O muro contemporâneo, então, podemos afirmar, tem uma dupla e inglória função:
primeiro, representar a força de um poder – o estatal – que em parte está em crise; e,
segundo, como decorrência da anterior, controlar os fluxos em fronteiras de um mundo
cada vez mais global, onde muros físicos, materiais, há muito deixaram de ter eficácia em
relação ao controle da circulação mais relevante a nível internacional. Qual seria o papel,
então, desses novos muros?
Além de seu papel simbólico, tentando evidenciar uma potência (estatal) em
declínio, o máximo que o muro consegue fazer é “conter” alguns fluxos, de um modo
espaço-temporalmente bastante limitado, em especial o fluxo material de pessoas, já que
fluxos imateriais, como o do próprio capital, há muito desconhecem a concretude das
fronteiras e suas linhas demarcatórias. Defendemos a ideia, assim, de que os novos muros
fronteiriços, numa sociedade biopolítica ou de in-segurança como a nossa, têm uma função
meramente de postergar o agravamento de uma situação, de “evitar o pior”, especialmente
naquelas áreas do mundo marcadas por níveis crescentes de desterritorialização – no
sentido do aumento das desigualdades, da precarização e, muitas vezes, da própria
instabilidade social. Pela distribuição desses muros, revelada pela cartografia do mapa 1,
podemos perceber que a grande maioria se desdobra em áreas particularmente vulneráveis,
com graves problemas e/ou desigualdades sociais, tanto entre países tipicamente periféricos
(Botswana-Zimbábue, Irã-Afeganistão, Índia-Bangladesh), quanto entre paises ou regiões
periféricas e semi-periféricas ou centrais (Estados Unidos-México, Espanha-Marrocos,
Coreia do Sul-Coreia do Norte).
O muro, em muitos desses casos, participa como uma espécie de técnica de evitação
e, como tal, exerce um efeito que propomos chamar de efeito-barragem, dentro de
processos mais amplos de contenção territorial. Como numa represa, busca-se conter o
fluxo (da água) mas nunca em um sentido temporalmente definitivo ou espacialmente
completo, como nos processos clássicos de confinamento ou reclusão e seu “cercamento”
por todos os lados. Faz-se a contenção de um lado ou até um certo nível mas, com o tempo,
o fluxo pode aumentar, a pressão sobre a barragem pode ser maior e é-se obrigado a “abrir
as comportas” – um vertedouro sempre está previsto e, muitas vezes, é ele que garante a
manutenção de um determinado fluxo, ainda que sob constante controle.
É mais ou menos o que se passa com as fronteiras muradas enquanto
constrangedoras do fluxo de migrantes – ou mesmo de outros processos, como o
contrabando ou o narcotráfico. Sabe-se que o muro pode simplesmente estar redirecionando
o fluxo, pois nunca irá ocorrer um controle total, em todas as fronteiras de um pais. Assim,
à barreira eletrificada entre os enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, no Marrocos, com um
maior controle das migrações rumo à Espanha ou, mais amplamente, à União Europeia,
segue-se um aumento da mobilidade humana da África à Europa via ilhas Canárias, por
exemplo.
A esses processos de contenção territorial por parte de grupos hegemônicos seguese o seu contraponto, aquilo que, inspirados em outros autores (como Vera Telles),
propomos denominar de dinâmicas de contornamento, a “arte de contornar”, de encontrar
saídas, de inventar contornos, diversas formas de evitar o controle imposto “pelo alto”,
geralmente desencadeadas como formas de resistência por parte de grupos subalternos.
Contornamento, termo que tem forte conotação espacial, está intimamente ligado à ideia de
muro de contenção, que não realiza um cercamento total, deixando sempre a possibilidade
de um desvio.
Contornar significa também, ao mesmo tempo, num sentido mais amplo, menos
literal, “viver no limite”, nas próprias fronteiras, como se, na impossibilidade de superá-las,
fosse inventada uma condição de liminaridade, de ambivalência, como se pudéssemos
“estar dos dois lados” da fronteira ao mesmo tempo – ou, em outras palavras, “encima da
linha” limítrofe. Como no campo de Agamben, porém aqui num processo com
características potenciais de contra-hegemonia, essa situação ambígua não define
claramente o dentro e o fora, o legal e o ilegal, permanecendo numa espécie de limbo. Ao
contrário do campo, entretanto, estabelecido dentro da política dominante, trata-se de
políticas alternativas, ainda que algumas possam ser tão ou até mais autoritárias do que as
primeiras – como no caso dos narcotraficantes e de algumas milícias nas favelas brasileiras.
Em muitas favelas cariocas (foto 1) os muros desempenham também, a exemplo dos
muros fronteiriços, o papel de contenção: nesse caso buscando delimitar rigidamente as
áreas faveladas a fim de que não se expandam em direção a áreas de preservação ambiental
(daí a retórica denominação “ecolimites” para esses muros). Uma das formas de
“contornamento” desses processos de contenção territorial pode ser estabelecida, por
exemplo, pelo crescimento não mais horizontal, mas vertical, com a densificação da
ocupação humana no interior da mesma área da favela. Ou então, o que parece ser mais
comum, pela “fuga” para outras favelas, mais distantes, ainda não rigidamente controladas
– estratégia que é também praticada por facções do narcotráfico em relação às medidas de
contenção adotadas pelo aparelho policial do Estado, com o domínio permanente de favelas
sob antigo controle desses grupos. Medidas, no seu conjunto, de caráter paliativo, pois
acabam simplesmente deslocando o problema em termos de sua expansão e intensidade
espaço-temporal na teia da cidade.
O que se passa é que, na impossibilidade de contarem com uma multiplicidade de
territórios pelos quais optar, os mais precariamente territorializados, longe de comporem
uma
multiterritorialidade
constantemente
aberta
para
novas
conexões,
novas
territorialidades, vivem na frágil e mutável condição de “aglomerados”, uma situação
confusa e muitas vezes “ilógica”, de organização territorial. Sujeitos o tempo todo a
medidas de contenção, destinadas prioritariamente ao controle de seus “meios”/espaços de
circulação, como diria Foucault, vivem buscando “contornar” riscos, seja o da extrema
precarização e da fome, seja o da morte violenta – esta, uma marca maior para aqueles que
optam pelo “contorno” via circuitos ilegais da economia, em especial o narcotráfico, e
também via migração ilegal, como tem ocorrido com migrantes latino-americanos rumo aos
Estados Unidos, assassinados por policiais, por grandes proprietários ou, simplesmente, por
gangues do tráfico que, em verdadeiros “Estados de exceção paralelos”, dominam extensas
áreas do território mexicano.
O paradoxo entre um mundo cada vez mais fluido e multiterritorial e um mundo
onde nunca se construíram tantos muros, e em tão diversas escalas, revela-se então nem tão
paradoxal assim. Geometrias do poder (como diria Doreen Massey) profundamente
desiguais marcam a mobilidade diferencial entre os diversos sujeitos contemporâneos,
sejam eles ricos ou pobres, homens ou mulheres, negros ou brancos, jovens ou velhos,
participantes desta ou daquela identidade nacional ou étnica. Ao mesmo tempo em que,
para alguns, o espaço é composto de arenas e dutos seguros, integrando múltiplos territórios
em redes de alcance planetário, para outros o espaço é uma sucessão de constrangimentos –
entre os quais os novos muros – a serem constantemente, se não derrubados, pelo menos
contornados, em estratégias que nem sempre representam o caminho rumo a um espaço
mais humano.
Quando a sociedade de in-segurança e o Estado biopolítico em que vivemos acaba
tomando a massa crescente de despossuídos não como seu produto, mas como sua causa,
mais uma vez criminalizando de forma ultra-simplificada a pobreza, o combate à
insegurança (em seu sentido mais amplo), na impossibilidade de erradicar a miséria, pode
se resumir a duas medidas interligadas: a banalização da morte daqueles que,
profundamente depreciados socialmente, perdem seus direitos mais elementares, e/ou sua
contenção em espécies de “campos” onde prolifera a “vida nua”, essa condição ambivalente
do limbo jurídico em que se está, ao mesmo tempo, dentro e fora da jurisdição política do
Estado.
Mas, como afirmamos inicialmente, o espaço, por mais constringente e “uniterritorial” que pareça, é também a esfera do múltiplo, oferecendo sempre alguma abertura
para a realização de novas conexões e novas articulações sócio-espaciais. O próprio Estado
contemporâneo não é marcado apenas pelas medidas de exceção, a serviço da “segurança”
de grupos cada vez mais (para)militarizados. Algumas iniciativas recentes, sobretudo no
espaço latino-americano, permitem divisar novos horizontes, ainda tímidos, provavelmente,
mas estimuladores da resistência e da luta por uma outra multiterritorialidade –
multiterritorialidade que não seja uma simples composição multifuncional a serviço dos
interesses hegemônicos, mas que represente, efetivamente, o convívio plural de múltiplas
identidades e a destruição dos muros que, concreta ou simbolicamente, demarcam a
extrema desigualdade do nosso tempo.
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Castro, I. et al. (org.) Geografia: Conceitos e Temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Mapa 1. Os principais muros e cercas fronteiriças no mundo contemporâneo
(Rogério Haesbaert, 2010)
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