Mahagonny: o fim de um ciclo Geraldo Martins T. Jr.1

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Mahagonny: o fim de um ciclo Geraldo Martins T. Jr.1
Mahagonny: o fim de um ciclo
Geraldo Martins T. Jr. 1
Resumo: Este artigo analisa a dramaturgia de Bertolt Brecht entre 1927 e 1932, com foco nos trabalhos
colaborativos entre Brecht e músicos colaboradores Kurt Weill e Hanns Eisler. Procura-se compreender
a ópera “Ascenção e queda da cidade de Mahagonny” e o texto de Brecht “Notas para Mahagonny”
como documentos significativos de um período fértil em experimentações. Analisa-se, em especial, o
conflituoso processo criativo de Brecht e Weill, a crítica de Brecht à ópera e o amadurecimento da dramaturgia épica com relação à separação e articulação dos elementos musicais, poéticos e de encenação.
Palavras-chaves: Brecht, música, ópera, teatro épico.
A ópera Mahagonny vem fazer, conscientemente, justiça ao absurdo, nesse ramo da
arte que é a ópera. O absurdo, em ópera, consiste em haver uma utilização de elementos racionais e uma aspiração de expressividade e de realismo que são, simultaneamente, anulados pela música. Um homem moribundo é real. Mas, se esse homem
se puser a cantar, atinge-se a esfera do absurdo. (Brecht, 2005: 29)
Brecht escreveu esta observação ao se referir à ópera Mahagonny (1930) como uma resposta à ópera
como gênero, em seu famoso texto Notas sobre Mahagonny (1930). O absurdo ao qual ele se refere se
liga à típica apresentação “operística” onde tudo é cantado, onde a música cantada sobrepõe-se à representação de forma a anulá-la ou, pelo menos, a torná-la secundária. Para Brecht, o uso da música
com “efeitos bastante reais”, que a ópera consegue, “muitas vezes dá nascimento a um terceiro mundo,
a qualquer coisa de muito complexo, de muito real também mas isto se encontra cortado do seu ponto
de partida: a realidade utilizada” (Idem, 1967: 57). Dentro do espírito do teatro político e de vanguarda
dos anos 20 na Alemanha, Brecht falava da “utilização da realidade” não como temática ou no sentido
do naturalismo psicológico, mas como um elemento de uma dramaturgia articulada ao mundo social e
aos espectadores.
O fato de o “conteúdo”, de um ponto de vista técnico, se ter tornado — pela renúncia à ilusão em favor de uma virtualidade polêmica — uma parte integrante autônoma, em função da qual o texto, a música e a imagem assumem determinados
“comportamentos”, e o fato de o espectador, em vez de gozar da possibilidade de
experimentar uma vivência, ter, a bem dizer, de se sintonizar, e, em vez de se imiscuir na ação, ter de descobrir soluções, deram início a uma transformação que excede, de longe, uma mera questão formal. Principia-se, sobretudo, a conceber a
função própria do teatro, a função social. (Idem, 2005: 34)
O que Brecht critica é o achatamento na percepção do espectador diante da ópera, é a sua impossibilidade em realizar uma dramaturgia que provoque reações ao invés de oferecê-las prontamente.
Nas notas, Brecht assevera a incapacidade da ópera em renovar-se e, nessa crítica, inclui aí a sua própria
ópera Mahagonny.
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Doutorando do Instituto de Artes - Universidade de Brasília. [email protected]
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Mas Brecht também apresenta algumas defesas de Mahagonny, por ter tentado um “duplo caminho”: “Alguma coisa de absurda, de irreal e fútil introduzida judiciosamente, tinha um duplo efeito:
colocar-se em evidência e anular-se” (Idem, 1967: 58). Embora Mahagonny tenha se construído mais
perto dos modelos operísticos que a Ópera dos três vinténs (1928), ou seja, com o texto quase que inteiramente cantado, Brecht ainda faz algumas concessões ao valor de Mahagonny como ópera: ela ainda é uma provocação, na sua paródia da própria ópera em conteúdo e forma, ao adotar o “prazer fútil”
como tema e, ao mesmo tempo, utilizar-se de uma apresentação “operística”. Porém, no frigir dos ovos,
o texto de Brecht é ácido com relação a Mahagonny, que
não é talvez muito apetitosa, e pode ser mesmo, que por sua má consciência, tenha a ambição de não sê-lo; no entanto não deixa de ser uma iguaria. Mahagonny
não é nada mais do que uma ópera (Ibidem: 59).
Apesar do texto ser claro em seu ataque, e Brecht não poupar Mahagonny, ele é rico ao propor
“inovações” para a ópera como gênero, que aparecem em meio a contradições que Brecht mesmo levanta. Ao ironizar um trabalho de sua própria autoria, enquanto “culinário”, comercial, voltado para o
“prazer como mercadoria”, ele não deixa de lembrar que há um outro lado: os aspectos didáticos e sociais do espetáculo, de crítica da realidade e ao espetáculo. “Se tínhamos aceito que o nosso objetivo
fosse matéria de prazer, quisemos pelo menos que o prazer fosse a matéria do nosso objetivo” (Ibidem:
58). Por um lado, Mahagonny tinha “uma função de transformação social” por “colocar o culinário em
discussão” e atacar “a sociedade que tem necessidade de tais óperas”; por outro lado, o texto sustenta
mais fortemente a tese (posteriormente declarada explicitamente no ensaio O uso da música no teatro
épico, de 1935) da “impossibilidade da renovação da ópera nos países capitalistas. As inovações introduzidas levaram a ópera a destruição” (Ibidem: 85).
Neste momento, devo deixar claro que a ópera “A ascenção e queda da cidade de Mahagonny”
foi composta com a colaboração musical de Kurt Weill. Talvez alguém se pergunte ou sinta falta de informações mais detalhadas com relação aos músicos colaboradores dos trabalhos de Brecht. Isto se
originou nos conflitos e divergências que ocorriam na época entre Brecht e Kurt Weill. Um fato bem
pouco divulgado é que Brecht lançou uma segunda versão do texto da ópera, em 1930, e as famosas
Notas para Mahagonny estavam anexadas, mas sem nenhuma retificação no aspecto musical. Como
afirma Calico:
O texto que Brecht publicou em 1930 em Versuch não é idêntico ao libreto para o qual
Weill compôs a partitura, e as “notas” que o acompanhavam, escritas com Peter Suhrkamp, estão anexadas a este texto no lugar da versão composta [por Weill] (Calico,
2008: 35)
Um dos maiores problemas na análise dos processos criativos dos espetáculos de Brecht no final
da década de 20 foram as reedições feitas por Brecht nas quais “a versão literária eram incompatíveis
com a música de Weill” (Kowalke, 2006: 252).
Isto nos faz compreender que as Notas para Mahagonny não eram apenas dirigidas ao espetáculo e
à ópera, mas a Kurt Weill, ao processo criativo e colaborativo do espetáculo em suas contradições e limi-
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tes. Sendo Mahagonny a terceira ópera composta por Brecht em parceria com Kurt Weill, ela era também
mais uma tentativa da parceria de realizar mudanças no gênero. Porém, o que significavam mais exatamente estas mudanças diferia em objetivo para eles. As reedições de Brecht com Peter Suhrkamp eram
também uma estratégia de controle sobre a autoria e formas de encenação. Em 1930, os rumos da colaboração entre Brecht e Weill já apresentavam marcas evidentes de conflitos e discordâncias. Enquanto Mahagonny era ensaiada, ensaiava-se também A mãe, com a música de Hanns Eisler, no mesmo teatro em
Berlim (Theater am Kurflürstendamm). As duas montagens eram financiadas pelo mesmo empresário,
Ernst Josef Aufricht, que
embora não tivesse simpatia pelas intenções políticas de A mãe, considerava seu
investimento em aceitá-la um preço pequeno a pagar pela ausência de Brecht nos
ensaios de Mahagonny, com suas constantes discussões com Kurt Weill que ameaçavam arruinar a produção (Bradley, 2006: 29).
Em dezembro do mesmo ano, após a reclamações de Brecht durante os ensaios de que “tudo estava diluído (washed out) pela música” e de que Weill era uma “imitação de Richard Strauss”, os advogados ameaçaram parar os ensaios. Para salvar a produção, “Aufricht convenceu Brecht a se afastar”
(Kowalke, 2006: 251). Brecht então se volta para a montagem de A mãe (1932) e a parceria com Hanns
Eisler, no conturbado final da república de Weimar (1917-1933). Ele deixa prá trás a ópera, e Kurt Weilli.
Mas a via negativa aberta, exposta nas Notas para Mahagonny, pediam novas realizações. De fato, os princípios ali descritos passariam a ser fundamentais para seu teatro épico, em oposição ao teatro
dramático. As notas de Mahagonny “descrevem teoricamente uma estética e uma agenda política para
o teatro épico que a ópera, por ela mesma, falhou em encaminhar” (Ibidem: 253).
Para Bornheim, foi “exatamente esse ‘fracasso’, ou essa desistência, que lançou a questão da ópera como uma espécie de elemento a priori de toda a dramaturgia brechiana” (Bornheim, 1998). Fundado no espírito crítico, pedagógico e observador, Brecht buscava provocar o estranhamento perante o
habitual transformando este habitual, provocando novas formas de observação pelas diversas estratégias de separação dos elementos de um espetáculo, “distribuindo o espírito crítico, de diversos modos,
por todas as dimensões de um espetáculo” (Ibidem). Munido desta perspectiva, ele se opõe à concepção wagneriana da “obra de arte total”, à ópera, e, consequentemente, ao uso da música de forma ilustrativa, incidental, “culinária”. As contraditórias questões em torno do prazer versus instrução, recepção
crítica versus recepção indulgente, entre outras, foram sendo testadas e elaboradas em meio às óperas
(e especialmente as peças de aprendizagem), entre 1927 e 1932.
Cronologia de óperas e peças de aprendizagem de Brecht
e músicos colaboradores entre 1927 e 1932
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Brecht, aproveitando o momento de transição, lança também as notas sobre A ópera dos três
vinténs (1931), escritas no mesmo ano da ruptura com Weill, também se posicionando com relação a
Weill. Para Kowalke, elas possuem uma intenção corretiva, pois “várias partes são simplesmente tentativas camufladas de reverter as relações entre texto e música atribuídas no original” (Kowalke, 2006:
253). Os métodos épicos de separação eram então utilizados por Brecht como
um meio bastante simples para se por um fim à gigantesca luta por uma supremacia a que se entregam o texto, a música e a representação (e diante da qual nós nos
perguntamos sempre qual elemento serve de pretexto para o outro - a música pretexto para o espetáculo ou o espetáculo pretexto para a música, etc.) (Brecht,
1967: 60)
Vemos que a “gigantesca luta” se referia ao trabalho colaborativo com os músicos. O amadurecimento do trabalho de Brecht encontra, na transição de Weill para Eisler, seu ponto mais importante,
ao contrário da visão de que a sua maturidade pós guerra teria trazido equilíbrio e possibilitado a ele
escrever sua teoria. Para Kowalke, Brecht encontrou em Eisler o parceiro musical ideal. Depois de ter
composto a música para vários poemas de Brecht, Eisler inicia um trabalho mais aprofundado em 1930,
com A decisão, em Berlim. Kowalke destaca dois trabalhos em especial: A mãe (Berlim, 1932) e Cabeças
redondas e cabeças pontudas (Copenhagen, 1936). Ambos
funcionam como paradigmas para a delicada relação dialética entre texto e música
[...]. Com exceção de Schweyk na segunda guerra mundial, nenhum dos outros trabalhos de Eisler para as peças de Brecht (Terror e miséria do terceiro Reich, 1945;
Vida de Galileu, 1947; Os dias da Comuna, 1950) alcançaram este padrão de excelência. (Kowalke, 2006: 246)
Os trabalhos posteriores, no exílio, as peças de Brecht, restringiam o papel da música. Brecht “raramente colaborou com compositores para criar entidades músico-dramáticas como ele fazia nas décadas anteriores” (Kowalke, 2006: 246-247). No texto Notas para A mãe, de 1933, Brecht procura comentar cena a cena o uso das novas técnicas épicas. Para nenhuma outra montagem ele se deteve em comentar e relacionar a teoria com a prática de forma tão detalhada.
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A relação entre texto e música não é um tema que aparece com a clareza de um “método” nos
escritos de Brecht, e tem sido objeto de análise tanto por pesquisadores da dramaturgia como da musicologia. Não é uma análise direta e literal, para “adotar” os escritos de Brecht em escolas, como observações definitivas. Os textos são tratados como extratos de processos criativos onde as reflexões carregavam também as contradições encontradas.
Sua crítica à ópera, como vemos em Notas para Mahagonny, foi feita do lado de dentro dela. Experimentando talvez o mesmo amargor do típico personagem operístico que morre e continua cantando após a morte, Brecht abandona a ópera e continua a utilizar a música em seus espetáculos, de forma
renovada e em consonância com a dramaturgia que se afirmava em meio à maturidade marxista. Mas
agora a bagagem de técnicas épicas e musicais já estava sendo criada com base em uma experiência
vivida. Nas notas para a Ópera dos três vinténs, por exemplo, há comentários específicos, como “Da
maneira de cantar as canções”, que separa em três planos a “dicção natural, a declamação e o canto”,
sem que um seja “um degrau superior” do outro (Brecht, 1967: 73). Também com relação ao conceito
de gestus, Kowalke observa que
inicialmente, parece ter servido [a Brecht] primeiramente como um meio de reservar espaço em meio à canção para sua própria voz poética, e para ditar leituras de
seus textos tanto para os compositores quanto para os performers. (Kowalke,
2006: 250)
Ou seja, como uma forma de manter o “controle sobre a leitura de seus poemas”, ao “ajustar o
ritmo, acento, a altura, o timbre, as pausas, o fraseado, a dinâmica, o tempos e a entonação de sua poesia em uma encenação musical”, evitando o efeito de demasiado envolvimento sobre a platéia que a
música oferece (Ibidem: 250).
O que Brecht buscava não era um tratamento polarizado na relação palavra e musicalidade, mas
um equilíbrio estético em uma composição interartística envolvendo dramaturgia, poesia e música. A
ópera possui um paradoxo quando cria uma “realidade” em cena: tudo pode ser cantado, mesmo a
morte de um personagem. “Os personagens no palco comunicam-se cantando”. O problema é que “o
efeito disso é frequentemente fazer das palavras, que supostamente comunicam, algo ininteligível”
(Dorschel, 2001: 285). Não podemos afirmar que todas as óperas foram e são assim. É, com certeza,
uma tendência que configurou a grosso modo o gênero. Henry Purcell (1659-1695), ficou conhecido
com o uso da fala em sua ópera. Em uma de suas óperas, Dido e Eneias (1689?), “homens cantavam
uma música de vez em quando, ou dançavam uma dança, ocasionalmente; mas eles definitivamente
não faziam isto todo o tempo” (Ibidem: 289-290). Porém, Purcell foi uma exceção. “Cantar na ópera não
é a exceção para caracterizar personagens excêntricos, mas a regra” (Ibidem: 285). Brecht, ao invés de
solapar a forma de apresentação da música no espetáculo, buscou fazer da apresentação do espetáculo
uma articulação também musical.
Referências bibliográficas
Bornheim, Gerd. 1998. Bertolt Brecht entre o teatro e a ópera. O Estado de São Paulo, Sábado, 14 de
novembro de 1998.
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Brecht, Bertolt. 1967. Teatro Dialético. Translated by L. C. Maciel. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira.
Brecht, Bertolt. 2005. Estudos sobre teatro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira.
Bradley, Laura. 2006. Brecht and political theatre - The mother on stage: Oxford University Press.
Calico, Joy. 2008. Brecht at the opera. Londres: University of California Press.
Kowalke, Kim H. 2006. Brecht and music: theory and practice. In The Cambridge Companion to Brecht,
edited by P. T. a. G. Sacks. New York: Cambridge University Press.
Dorschel, Andreas. 2001. The paradox of opera. The Cambridge Quartely 30 (4):283-306.
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Se, para Brecht, Mahagonny era a terceira ópera, para Weill era a quinta terminada. Kurt Weill compôs as óperas:
Der Protagonist (1924), Royal Palace (1925-6), Der Zar lässt sich photographieren (1928) e Mahagonny Songspiel
(1927), esta última com Brecht e estreada em Baden-Baden.
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