BRASIL FUTEBOL CLUBE_COMPLETO - Português
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BRASIL FUTEBOL CLUBE_COMPLETO - Português
1 BRASIL FUTEBOL CLUBE – Roteiro de Daniel J. ZIMERMAN Episódio I: SER OU NÃO SER PARTE I PRÓLOGO 5 MINUTOS INT. BANCO DE RESERVAS/COMISSÃO TÉCNICA/ARENA BRASIL – NOITE. Uma imagem geral do banco de reservas termina focalizando o italiano GIANPAOLO MANCINI, treinador do Brasil FC, tendo ao lado o diretor técnico, JOSÉ ROBERTO QUINTERO. Ouvimos a barulheira infernal feita pelas duas torcidas e os gritos que caracterizam jogadas perigosas. Mancini levanta-se, tenso, enquanto Quintero permanece calmo, ainda sentado. Um som forte do apito do juiz invade a trilha e a gritaria que sugere a marcação de um pênalti é clara. O Maracanã é a Arena Brasil. Uma imagem mostra o juiz bem próximo marcando um pênalti. Mancini parece explodir. Os gritos dele misturam-se aos gritos de outros integrantes do banco, sempre com a exceção do imperturbável QUINTERO. MANCINI Filho da puta! Ladrão! Filho da puta! JOGADOR UM Juiz ladrão! Quanto você está levando, seu safado?! JOGADOR DOIS Meu Deus! Puta que o pariu! Estamos ferrados! De repente, as imagens passam a desfilar em CAM lenta. Mancini começa a passar mal: está tendo um infarto fulminante. Em poucos segundos acompanhamos o susto das outras pessoas na área destinada à comissão técnica e aos jogadores reservas: Mancini é amparado por Quintero. O som de uma ambulância começa a se destacar. VEMOS Mancini desmaiado nos braços de Quintero; aproxima-se o médico do BRASIL FC (DR FABIO) e presta os primeiros socorros. O médico identifica o infarto e percebe que Mancini está morrendo. Dá muitas pancadas no peito dele, desesperado. As imagens do socorro são intercaladas com imagens da torcida adversária e da bola estufando as redes, em detalhe, entrando o grito de GOL e a comemoração da torcida adversária na trilha sonora. EXT. AV. ATLÂNTIDA/RIO DE JANEIRO – NOITE. 2 Uma ambulância segue em alta velocidade pela avenida. INT. AMBULÂNCIA/RIO DE JANEIRO – NOITE. Ao lado de Mancini (no oxigênio), o médico está apreensivo. MÉDICO Desfibrilador! Rápido! Rápido! Um enfermeiro dá choques com um eletrodo no peito de Mancini. EXT. HOSPITAL CARDIOLÓGICO/RIO DE JANEIRO – NOITE. A ambulância para abruptamente e dois enfermeiros abrem a porta, ajudando o enfermeiro e o médico que estavam dentro do veículo a puxar a maca com Mancini. O grupo entra no hospital em alta velocidade. INT. CORREDOR ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE. No corredor mal iluminado, Quintero está sozinho, encostado na parede. Parece desolado, abatido. FEDERICA ANCELOTTI OCTÁVIO, uma mulher bela, mas sem glamour, sempre com roupas básicas, cabelo preso. Ela aproxima-se dele sem nada falar. Coloca a mão no ombro de José Roberto, que permanece cabisbaixo. Sem poder conter-se mais, Quintero começa a chorar. FEDERICA (com leve sotaque italiano) Chore caro mio. É só o que podemos fazer. Quintero chora convulsivamente. QUINTERO Alguém avisou a mulher dele? FEDERICA Carlão está com ela no hospital. Está tudo sob controle. QUINTERO (sem ironia, angustiado) Sob controle de quem? De quem, meu Deus?! Os soluços de Quintero fundem-se ao ruído das hélices de um helicóptero, que vai crescendo e abafando o choro de Quintero. EXT. BAÍA DE GUANABARA/RIO DE JANEIRO – DIA. 3 Um helicóptero faz um voo rasante na baía, indo na direção de um iate luxuoso, que está ancorado. A aeronave pousa devagar no HELIPONTO do barco; FEDERICA surge na porta que é aberta e começa a sair, enfrentando a forte ventania provocada pelas hélices. Um tripulante uniformizado se aproxima dela e a ajuda a descer. INT. CORREDOR DO IATE/BAÍA DE GUANABARA – DIA. FEDERICA caminha por um corredor. Um tripulante está diante da porta que dá acesso à cabine de ANDRÉ OCTÁVIO. Ela o cumprimenta com um gesto mecânico e faz menção de entrar. TRIPULANTE O Doutor André está acordando, senhora. Ele pede para a senhora aguardá-lo na biblioteca. FEDERICA Não há necessidade. Somos casados há 20 anos. TRIPULANTE (impedindo-a de entrar) Eu insisto senhora. FEDERICA finge que vai dar meia volta e surpreende o tripulante, abrindo a porta rapidamente. INT. SUÍTE DE ANDRÉ/IATE – NOITE. FEDERICA entra e vê duas mulheres nuas tentando acomodar-se num armário próximo à piscina. André está na água, nu. Fica surpreso com a entrada da esposa. ANDRÉ Você não deveria ter feito isso. FEDERICA Que papel ridículo você está fazendo. Definitivamente você não tem mais qualquer compostura. Mande essas garotas irem embora. (senta-se numa espreguiçadeira) ANDRÉ Não seja grosseira. As meninas são minhas amigas. Elas vão ficar onde estão. 4 André sai da piscina e enrola-se numa toalha, sentando-se à mesa e servindose de um copo de suco de laranja. Serve uma dose de uísque, sem pressa. FEDERICA O médico inglês confirmou o diagnóstico? ANDRÉ Não quero falar disso. FEDERICA Sou sua mulher. Tenho o direito de participar. Os americanos nos convocaram para uma reunião em Nova York. ANDRÉ Vá você. Estou fora. Isso é definitivo. FEDERICA Muito cômodo tirar o corpo fora. Logo agora que perdemos Mancini. O que pretende fazer? ANDRÉ Aproveitar a vida bem longe do futebol. Vou cuidar só do banco, morando em Londres. Esse é nosso último encontro. FEDERICA Quintero quer ir embora. A partida final da Liga Sul Americana vai acontecer em duas semanas e eu estou sem técnico. Não sei se vou conseguir lidar com os conselheiros do fundo. ANDRÉ Vai sim. Você é inteligente. É competente. E vai ter poder. Assinei a papelada passando minhas ações no time para seu nome. FEDERICA Você não deveria ter feito isso. Quero estar ao seu lado, querido. Tenho esse direito. ANDRÉ Tenho o direito de viver sozinho esse momento. Respeite isso se realmente me ama. FEDERICA Você é muito frio. Pelo amor de Deus, me deixe ficar junto de você. ANDRÉ Você vai receber os papéis do divórcio. 5 FEDERICA Não faça isso com a gente. Deixe-me cuidar de você. ANDRÉ (tira o roupão e pula na piscina) Tempo esgotado. FEDERICA (limpando as lágrimas) O que eu faço com seu tio? ANDRÉ Você vai ter que se compor com Carlão. Ele foi imposto pelos conselheiros do fundo. Minha participação acionária é grande, suas ações agora, mas não é suficiente para controlar tudo. FEDERICA (levanta-se e caminha na direção da saída) Você não vai me ajudar em nada? ANDRÉ Vou falar com Quintero. Mas esse vai ser nosso último encontro, amore mio. Em nenhuma hipótese você me verá mais uma vez. FEDERICA (abaixa-se e toca o rosto dele, que ainda está na piscina) Que Deus acompanhe você, querido. Avise se mudar de ideia. Largo tudo e vou ficar com você. ANDRÉ Eu sei. Vou sozinho a partir daqui. (pausa) Meninas! As duas louras nuas saem do armário e pulam na piscina. FEDERICA levanta-se e sai da suíte, dando uma última olhada para o marido, que finge ignorá-la, divertindo-se na piscina. TEASER E CRÉDITOS DA MINISSÉRIE: EXT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE. Uma multidão chega à Arena BRASIL (MARACANÃ), moderno estádio do clube, para mais um jogo do Brasil Futebol Clube, clube-empresa do Rio de Janeiro que foi vice-campeão brasileiro em seu primeiro ano de existência. Pessoas de todas as idades, homens, mulheres, crianças: todos unidos pela paixão pelo futebol. Um retrato da torcida, que chega para mais um grande jogo. Muita cor, realçada pela força da luz dos holofotes que iluminam a arena. LEGENDA ARENA BRASIL, RIO DE JANEIRO. INT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE. 6 Na trilha, o zum-zum-zum dentro da enorme edificação: sentimos a energia da paixão dos torcedores já na trilha sonora, com gritos, conversas misturadas, barulho isolado de charangas. Nas arquibancadas, VEMOS desfilar representantes das torcidas dos principais clubes do país. Os primeiros a aparecer são Samuel Rosa, com a camiseta azul do Cruzeiro e Nando Reis, com a camisa branca com listras horizontais do São Paulo. Coincidindo com planos aproximados dos dois, na trilha sonora entra a música-tema, “UMA PARTIDA DE FUTEBOL”, com a banda de rock brasileiro SKANK. Celebridades com as camisas dos demais times (Chico Buarque com a do Fluminense; Washington Olivetto com a do Corinthians, a atriz Adriana Esteves com a do Flamengo, e assim por diante: Botafogo, Vasco, Fluminense, Corinthians, Palmeiras, Santos, Guarani, Brasil FC, Atlético MG, Internacional, Grêmio, Bahia, Coritiba, Goiás, Atlético Paranaense, Portuguesa, Sport, Vitória, Náutico). Bandeiras, camisetas, bonés: é variado o estoque de símbolos e adereços de todos os times. Na imagem, integrantes das charangas dos times, das torcidas organizadas. Rostos anônimos, perdidos na multidão movimentada pela paixão ao seu time. CLOSE-UP’s de pessoas que chamam atenção: mulheres lindas, uniformizadas, trabalhadores, gente humilde, classe média, gente rica, crianças pequenas no colo e no pescoço de seus pais: é a festa da chegada da torcida, que democratiza o sonho de ver seu time campeão. CORTA para as cabines da imprensa: em cena os jornalistas e radialistas que vão transmitir a emoção do jogo. Um olhar sobre a sala de imprensa, com jornalistas digitando com rapidez em seus lap top’s: tudo organizado, com espaço para cada órgão de imprensa. VAMOS para o campo de futebol. AUMENTA A PARTICIPAÇÃO DAS CHARANGAS, cresce o zum-zum-zum nas arquibancadas. Acompanhamos a movimentação prévia que antecede, em poucos segundos, a entrada dos times em campo. Os repórteres de campo movimentam-se enlouquecidos pela adrenalina: não podem perder as imagens iniciais; os fotógrafos, segurando máquinas fotográficas com lentes enormes, nas mãos ou em suportes, apontam suas câmeras para a entrada do túnel de um dos times. VEMOS a entrada do trio de árbitros em campo CAM no túnel de acesso ao campo, como nos jogos da UEFA Champions League: cresce a emoção em todo o estádio. Com imagens do campo e de cima, VEMOS os quatro árbitros o reserva também entrarem em campo o árbitro principal, com a bola nas mãos e OBSERVAMOS a recepção da torcida: vaias. Imagens nas arquibancadas mostram a expectativa dos torcedores dos diversos times: não sabemos ainda qual time vai entrar em campo. CORTA PARA o túnel: vemos os jogadores do Brasil FC, segurando os garotos mascotes pelas mãos, prontos para a entrada triunfal. CORTES sucessivos mostram a mesma imagem, mas dos outros times, preparando-se, também, para entrarem em campo. Os jogadores do Brasil FC começam a entrar em campo. O goleiro LUCAS puxa a fila e os jogadores começam a sair do túnel. De repente, a explosão: começa uma gritaria ensurdecedora quando o time do Brasil FC entra em campo. Imagens de conjunto alternam-se com planos aproximados e CLOSE-UP’s, mostrando em detalhes a emoção que toma conta do estádio inteiro. Torcedores do Brasil FC gritam e soltam foguetes, agitando as bandeiras e camisetas. A fumaça toma o campo. Imagens no campo mostram os jogadores dos diversos times mencionados, em cortes sucessivos, assediados pelos repórteres, pelas câmeras de TV. Reconhecemos o uniforme titular do Brasil Futebol Clube: camisas, calções e camisetas inteiramente laranja, com frisos e números pretos. Os nomes dos jogadores e a logomarca do único patrocinador, o Crystal Fund são pretos também. O segundo uniforme é inteiramente preto, com os mesmos frisos e números laranja. Números e logo do fundo são laranjas. Marcas dos outros patrocinadores nas mangas das camisas e nas costas, abaixo dos números. Os jogadores correm para o campo, preparando-se para a foto oficial. CAM segue com ele, alternando imagens dos craques com flagrantes da torcida agitada. O centro das atenções é o principal jogador do Brasil FC, LEONARDO REYNA, 25 anos, número CATORZE às costas. É um sujeito simpático, boa pinta, com um corte de cabelo estilizado, fashion. De bom gosto, ao contrário do que é comum entre os jogadores brasileiros. 7 É longilíneo, muito branco, alguém que parece não gostar de sol. Não usa chuteira colorida, mas pretas. É um sujeito com uma autoconfiança que beira a arrogância, agradável, sempre com um sorriso que revela uma atitude de desafio diante do mundo. Um grupo de repórteres cerca REYNA, todos ávidos por gravar uma fala do jogador, artilheiro do Brasil. Quando ele começa a falar alguma coisa, antes mesmo de conseguir pronunciar a primeira palavra, uma barulheira ainda maior sacode o estádio: é o adversário entrando em campo. Sucedem-se imagens da entrada em campo, devidamente saudadas pelas torcidas respectivas, das equipes mostradas antes, mencionadas antes. Em cortes rápidos, VEMOS que o adversário do Brasil FC é, a um só tempo, cada um dos times reais mencionados. A entrevista acaba sem começar, pois Leo aproveita e escapa dos jornalistas. CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO, impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas respectivas torcidas nas arquibancadas. INTERVALO. PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS. INT. REDAÇÃO/JORNAL FOLHA DO RIO – NOITE. Movimento intenso na redação. ISABELA FALCÃO, 25 anos, linda, sempre vestida com elegância, produzida. Ela caminha pela redação em direção à sala de Ariel Peçanha, diretor do jornal. Os jornalistas reparam nela, mas são discretos. Jonas e Tonico, da editoria de esportes, falam sobre ela. TONICO Que mulherão. E podre de rica ainda por cima. JONAS Ela anda como uma deusa. Que coisa. TONICO Dizem que foi bailarina. JONAS Deve ter o pé todo machucado. Uma pena. TONICO Será que é ela mesma que faz a coluna do Sobre? JONAS Só pode ser. Mas, porra. Sou o editor de esportes. Ela tinha que vir conversar comigo. TONICO Filha de dono só conversa com diretor. Pode apostar que veio trazer outro furo. JONAS Ela garantiu que José Roberto Quintero vai ficar. 8 TONICO Vai pisar na bola pela primeira vez. Carlão jamais vai aceitar e nem ele quer ficar. Se o jornal der, vai ser barriga. JONAS Sobrenatural de Almeida porra nenhuma. Sobrenatural mesmo é a bunda dela. Isabela entra na sala do Diretor de Redação. Antes olha na direção de Jonas e Tonico. PLANO APROXIMADO de Isabela: com um sorriso maroto, ela pisca para os dois. EXT. ARENA MARACANÃ/RIO DE JANEIRO – DIA. Num Mini Cooper branco, com faixas preta e laranja (nos tons do uniforme do BRASIL FC), FEDERICA chega ao complexo administrativo e de treinamentos do time, num espaço nobre da Marina da Glória, no Rio de Janeiro. FEDERICA cumprimenta o porteiro e os seguranças com um sorriso acolhedor e um gesto com a cabeça. INT. RECEPÇÃO/SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FC – DIA. FEDERICA chega e a secretária FÁTIMA leva a ela uma xícara de café (das grandes, amarela e verde). FEDERICA Tchau, cara mia. Quintero já chegou? FÁTIMA Já. Coitado. Até parece que morreu alguém da família. FEDERICA Não passe nenhuma ligação. Alguma coisa urgente? FÁTIMA O doutor Carlos Magno mandou avisar você que não vem hoje nem amanhã e nem depois. FEDERICA Desde quando Carlão dá satisfação do que faz? FÁTIMA Ele está com o rei na barriga. Olhou-me como se eu fosse propriedade dele. Sujeito asqueroso. FEDERICA Fez a reserva no WALDORF? 9 FÁTIMA Fiz. O comandante está esperando seu aviso. Sua mala já está lá. Já falei com Mary: o apartamento já está preparado para sua chegada. FEDERICA Ótimo. (entra finalmente em sua sala) INT. SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FC – DIA. FEDERICA entra e vai direto para sua mesa, saboreando o café. Senta-se e QUINTERO olhando um quadro de KANDINSKI, artista preferido de FEDERICA. FEDERICA Gosta de KANDINSKI, José Roberto? Adoro. Quer pra você? QUINTERO FEDERICA QUINTERO Não posso aceitar. Esse quadro é muito valioso e sei que você o adora. FEDERICA Um presente só tem valor quando é valioso tanto para quem dá como para quem ganha. Aceite como um gesto de gratidão. QUINTERO Eu sei. Suborno não é sua praia. André faria isso. Você não. FEDERICA Nunca precisei de alguém como estou precisando de você agora, José Roberto. Mancini escolheu a pior hora possível para morrer. QUINTERO Muito oportuno você mencionar isso. Não quero ter um infarto e morrer na beira de um campo de futebol. FEDERICA Ele teria um infarto mesmo se fosse um monge tibetano. Colocou três pontes de safena antes dos trinta anos. QUINTERO Você sabe que não vou mudar de ideia. 10 FEDERICA As coisas mudaram muito, José Roberto. André afastou-se do time. Passou-me as ações e vai morar em Londres. Não volta ao Brasil. Ano sabático? Vida sabática. QUINTERO FEDERICA QUINTERO Por quê? FEDERICA Ele tem as razões dele. Carlão já sabe? QUINTERO FEDERICA Não sei. As coisas vão ter que mudar por aqui. Há muito a fazer. QUINTERO Bom saber. Desejo a você toda a sorte do mundo. Vou cumprir meu contrato e voltar para a Europa. FEDERICA Preciso de você, José Roberto. Não vou ser efetivada na presidência se nós perdermos a final com os argentinos. QUINTERO Não vamos perder. Coloque Bonilha no comando do time. Ele era unha e carne com Mancini. FEDERICA Não confio nele. Tem que ser você. QUINTERO Aceito dirigir o time na final e é só. Prometi a TOMOKO que não volto a ser técnico. FEDERICA Cubro qualquer oferta dos espanhóis. Você recebe duas vezes. Como diretor técnico e como treinador. QUINTERO Não é uma questão de dinheiro. Você sabe que não. 11 FEDERICA O que está em jogo não é só um time. É um projeto de ética e profissionalismo no futebol. Uma revolução completa. Estamos fazendo história, José Roberto. Deixe-me falar com TOMOKO. QUINTERO Não adianta. O problema não é ela. Eu não quero voltar a ser treinador. Isso é definitivo. Não insista: é perda de tempo e de energia. FEDERICA Tenho que insistir. É questão de sobrevivência. Um ano de contrato. Só um, juro. Você precisa me ajudar. QUINTERO Não estou em condições. Não depende de minha vontade. FEDERICA Você me deve uma explicação. QUINTERO Essa conversa vai ficar aqui, nessa sala? Promete? FEDERICA Claro. Com certeza. QUINTERO Eu tenho um problema de ordem médica. Problema sério. Coração também? FEDERICA QUINTERO Não. Outra coisa. Não quero falar disso. É muito íntimo. FEDERICA entende então. Levanta-se e caminha pela sala, nervosa. FEDERICA Eu respeito. Seja lá o que for. Mas continuo precisando de você. Minha situação vai ser insustentável. Carlão vai me derrubar. QUINTERO Sou bipolar, FEDERICA. Como assim? FEDERICA QUINTERO 12 Tenho transtorno bipolar. Não tenho condições para lidar com a pressão desse cargo. FEDERICA Você já técnico antes. QUINTERO Era mais novo. O quadro era menos complicado. FEDERICA Medicamento resolve isso. Você pode ter uma vida normal. QUINTERO Vida de técnico não é normal. FEDERICA Fui convocada a Nova York tão logo Mancini morreu. E eles já sabem que André se afastou. Carlão desapareceu. Deve estar tramando para assumir o time. É isso que você quer? QUINTERO Claro que não. Não suporto a ideia daquele corrupto na presidência. O que deu na cabeça de André para colocar esse sujeito na vice-presidência? FEDERICA Não faz diferença agora. Posso contar com você? QUINTERO Só até a final. Não vou sacrificar minha saúde. INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT BRASIL FC – ENTARDECER. Num dos campos de futebol do imenso CT do Brasil FC, só há dois jogadores em campo: LEONARDO REYNA e o goleiro titular LUCAS. REYNA está treinando cobranças de falta: há um anteparo próprio que simula os adversários e LUCAS está fazendo um grande esforço para alcançar as bolas chutadas com absoluta precisão por REYNA. Pelé, um garoto negro, de aproximados 15 anos, filho do roupeiro VIOLÃO, ajuda os dois no treinamento, movendo o anteparo com a orientação de REYNA. REYNA Mais para a direita agora, Pelé. Não muito. Uns vinte centímetros. PELÉ 13 (movimenta o anteparo) Está bom assim? REYNA Ótimo. Assim mesmo. Pode sair. Vê-se que uma fileira de bolas está colocada na horizontal, em paralelo ao anteparo. REYNA começa a chutar as bolas, num intervalo que é suficiente apenas para que o goleiro possa levantar-se e se posicionar para a próxima cobrança. É grande o esforço de LUCAS. Das nove cobranças, sete entraram no gol. Pelé, entusiasmado, comemora os gols como se estivessem num jogo oficial. REYNA para então, ensopado de suor. Vai até LUCAS e o ajuda a levantar-se: ambos estão exaustos. INT. VESTIÁRIO/CT DO BRASIL FC – NOITE. Cada um em uma banheira, REYNA e LUCAS descansam após o treino rigoroso. REYNA está fumando um charuto enorme. Traga com visível prazer. Pelé está de roupa trocada, de saída. PELÉ Vou estudar um pouco. Semana que vem começam as provas. LUCAS (ao garoto) Ano que vem vamos apresentar você ao Bonilha. Agora é melhor você jogar as peladas de rua. Não tem escola melhor, garoto. REYNA Vai nessa, Ed. Amanhã tem mais. PELÉ (a Lucas) Porque ele chama todo mundo de Ed? LUCAS Não deu para perceber ainda? Esse sujeito é doido varrido. Trate de ir estudar. Pelé ri e sai. LUCAS E aí? O que você resolveu? REYNA 14 Não aceito essa pressão, Ed. Ninguém vai dizer como eu devo viver minha vida. Muito menos um verme como Carlão. LUCAS Não é só o Carlão. O grupo não aceita seus privilégios. Já disse isso a você. REYNA Que se dane o grupo. Privilégios porra nenhuma. Eu dou um duro danado. LUCAS Fora do campo. Quase não vem aos treinos, joga só quando quer e mesmo assim um tempo só. REYNA Sujeitos como Carlão eu costumo deixar na privada duas vezes ao dia. Não aceito cobrança dele. LUCAS A italiana não vai dar conta do recado. Carlão está com a faca e o queijo na mão. REYNA Não obriguei ninguém a assinar contrato comigo. Eles é que me procuraram em casa. (pausa) Você está do meu lado ou está dando razão àquele corrupto? LUCAS Você me ofende com essa pergunta. Vá tomar no rabo. REYNA Se me pressionarem, eu saio do time. Não preciso do futebol, Ed. Não jogo bola para ganhar dinheiro. LUCAS Você fala isso como se fosse melhor do que a gente. REYNA (sério) Você está pegando pesado, Ed. LUCAS Você não passa de um garoto mimado. A boa vida vai acabar. Carlão vai rescindir seu contrato. REYNA traga forte e joga a fumaça no rosto de LUCAS, que começa a tossir. INT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE. 15 REYNA correndo em CAM lenta, com o braço esquerdo levantado, na posição preferida para comemorar seus gols. Só ele no foco, com a multidão de torcedores ao fundo, sem nitidez. Na trilha sonora, locução de rádio. A torcida vibrando, em êxtase. LOCUTOR Gooooooooooooooo! Gooooooool! REYNA espetacular! TORCIDA (em uníssono) REYNA! REYNA! REYNA! PLANO APROXIMADO mostra o rosto de REYNA, extasiado: é indescritível a emoção de marcar um gol importante. VEMOS que futebol é a vida dele. EXT. AEROPORTO KENNEDY/NOVA YORK – NOITE. Um avião particular está taxiando e para numa área VIP. FEDERICA desce e dirige-se imediatamente a uma limusine preta. Um motorista uniformizado abre a porta e ela entra. Dentro, o advogado LUDOVICO MARTINEZ a aguarda. MARTINEZ Bem-vinda a Nova York. Fez boa viagem? FEDERICA Ótima. Vamos direto para a reunião? MARTINEZ Eles estão à nossa espera. O Doutor Carlos Magno foi convidado. Você sabia? FEDERICA Não. Imaginei que ele iria aprontar algo assim quando soubesse do afastamento de André. MARTINEZ (ao motorista) Vamos embora, Alberto. (a FEDERICA) O doutor Carlos Magno acredita piamente que você vai afastar-se do time. Você disse alguma coisa a ele? FEDERICA Freud chamava isso de projeção. É o que ele quer. Ele está errado? MARTINEZ FEDERICA O que você acha? 16 MARTINEZ Por que você não cai fora dessa confusão? FEDERICA O time agora é minha vida. É questão de sobrevivência. Eu não vou desistir. MARTINEZ OK. Vamos lá, então. INT. VESTIÁRIO/CT BRASIL FC – NOITE. REYNA e LUCAS ainda estão no vestiário. LUCAS está vestido, penteando-se de olho num espelho fixado na porta do armário metálico. REYNA não aparece ainda. LUCAS acaba de pentear-se e fecha o armário. Só então REYNA aparece: está vestido inteiramente de branco. Pega a mala pequena de médico. LUCAS Por que Carlão odeia tanto você? REYNA A lista de razões é grande, Ed. Quer ouvir tudo ou só o mais importante? LUCAS Três está de bom tamanho. REYNA Comi a filha dele. A casada? Tem outra? LUCAS REYNA LUCAS Você é maluco. Totalmente insano, cara. O cara é coronel do Exército. Vingativo, mau feito o rabudo. REYNA Estou defecando e andando para a patente dele, Ed. Sargento, coronel ou general é tudo a mesma merda. 17 O que mais? LUCAS REYNA Além do fato de que adoro fumar e beber? E de brigar com os juízes? E de sair na balada? LUCAS Acabou ou tem mais? REYNA Comi a namorada dele também. LUCAS Meu Deus! A dinamarquesa? REYNA Péssima de cama. Ela me contou que o pinto do Carlão tem menos de seis centímetros. Em posição de sentido. Jura? LUCAS (rindo) REYNA Eu não vi. Não deu para enxergar. Os dois caem na risada. INT. CORREDOR DE HOSPITAL PÚBLICO – NOITE. Uma fila interminável de doentes aguarda de pé uma consulta médica. É um pronto socorro. Há gente ferida, seriamente machucada, temporariamente atendida até chegar ao médico. REYNA, paciente, toma a pressão de um senhor de idade, que parece desidratado. INTERVALO. PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS. EXT. SEDE DO CRYSTAL FUND/NOVA YORK – NOITE. A limusine para diante da entrada de um belo edifício comercial em Manhattan. O porteiro do prédio abre a porta e FEDERICA sai do carro, acompanhada por Martinez. INT. SALA DE REUNIÕES DO CONSELHO/CRYSTAL FUND – DIA. 18 A sala de reuniões do fundo americano está cheia. Jornalistas observam tudo sem interferir, na área disponibilizada para a imprensa (sinalizada por um galhardete específico: PRESS). O idioma usado na reunião é o inglês. Num parlatório, conduzindo o encontro, está o presidente do fundo, BUDDY MARLOWE. MARLOWE O afastamento de André Octávio é definitivo. As ações dele vão ser subscritas no nome de FEDERICA Octávio, de acordo com documentação apresentada aos conselheiros. Está tudo em ordem. CARLÃO Eu quero comprar as ações de meu sobrinho. MARLOWE A hora é essa. Já acertou tudo com a senhora Octávio? CARLÃO Se os senhores me derem dez minutos acertamos tudo agora. Vou pagar um bom preço. MARLOWE Vamos fazer uma pausa de 10 minutos. Senhora Octávio? FEDERICA Não pretendo vender as ações, senhor presidente. Não é necessário fazer nenhuma pausa. CARLÃO Não há nada pessoal, FEDERICA. Seu negócio não é futebol. Compro suas ações por 30 milhões de dólares. É um ótimo preço. FEDERICA Não quero vender. E apresento a este conselho moção para tirar o senhor Carlos Magno da vice-presidência do time. MARLOWE (faz sinal para Carlão ficar quieto) Moção indeferida. A senhora deveria estar mais preocupada em melhorar os resultados entregues a esse conselho. IVANOV O senhor Carlos Magno promete resultados bem melhores. Proponho que ele assuma o comando do time e não a senhora Octávio. 19 MARLOWE Há um rito a cumprir, senhor Ivanov. A senhora Octávio assume a presidência na vacância do cargo. Em um mês vence o mandato atual e haverá eleição para eleger o novo presidente. EXT. AEROPORTO DO GALEÃO/RIO DE JANEIRO – DIA. Carregando uma mala móvel (de rodinhas), CARLÃO sai da área de desembarque, recepcionado pelo secretário Madureira, que entrega a ele um jornal do dia. CLOSE-UP DA COLUNA ASSINADA DE SOBRENATURAL DE ALMEIDA. Não há foto do colunista. Título: Carlão perde mais uma em Nova York. MADUREIRA Saiu hoje, chefe. Aquele filho da puta de novo. Faz sentido o que ele escreveu? CARLÃO (lendo, enquanto caminha) Onde esse filho da mãe arruma essas informações? MADUREIRA Só pode ser a italiana. CARLÃO Ela não. Não tem peito para fazer isso tipo de coisa. E os árabes? Já chegaram? MADUREIRA Estão no CT da Barra da Tijuca. INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT DA BARRA DA TIJUCA – DIA. O campo está ocupado por um jogo de exibição: garotos de 17 anos jogam entre si, em dois times de camisas diferentes. O treinador das categorias de base, BONILHA, é o juiz. Na arquibancada, vários sujeitos com vestimentas tipicamente árabes, de branco, observam com atenção. CARLÃO (em OFF) Os garotos estão com a papelada em ordem? Acertou tudo com os pais? Assinaram tudo direitinho? 20 MADUREIRA (em OFF) Tudo redondo, chefe. Vai dar pra levantar uns dois milhões de euros. É o melhor lote que a gente já vendeu. Bonilha garantiu que tem pelo menos dois craques. VOLTAMOS AO AEROPORTO. CARLÃO Mande o dinheiro do Mancini para a viúva. Não gosto de dar cano em defunto. Bonilha já assumiu? MADUREIRA (para) Notícia ruim, chefe. É bom se preparar. CARLÃO (suspira, coça o nariz: um tique nervoso) Qual é a burrice da vez, imbecil? IMAGENS de Quintero dirigindo um treino no CT do Brasil FC. CARLÃO Vocês estão tratando a japa do jeito que eu mandei? VEMOS imagens de TOMOKO QUINTERO no quarto dela, cheirando duas filas de cocaína. Ao lado do rosto da mulher, num porta-retratos, uma foto dela e Quintero juntos, felizes. MADUREIRA (em OFF) Claro, chefe. Ela pressionou o marido de tudo quanto é jeito, mas a italiana conseguiu convencê-lo a ficar. VOLTAMOS AO AEROPORTO. Os dois estão tomando café. CARLÃO Merda. Fale ao Bonilha para levar os bons para o GALÁTICO ainda hoje. No BRASIL só ficam os pernas de pau, hein? Corto seus bagos fora se ficar algum garoto bom de bola para Quintero. Limpem os registros deles, entendeu? MADUREIRA Já fiz isso, chefe. A papelada está toda guardada na sala de diretoria do GALÁTICO. Cuidei pessoalmente disso. Só ficou perna de pau para o galego. Além do mais ele só está pensando na final. VAMOS NOVAMENTE AO CT DAS CATEGORIAS DE BASE DO BRASIL FC. 21 As imagens mostram uma grande operação de logística: os atletas da base estão saindo de seus alojamentos, conduzidos por homens uniformizados. A garotada não parece importar-se com a mudança: está divertindo-se. Cinco ônibus grandes os aguardam do lado de fora e rapidamente são lotados pelo grupo de atletas de variadas idades, de 14 a 19 anos. CARLÃO (em OFF) Em quê mais você queria que ele pensasse, energúmeno? MADUREIRA (em OFF) Eu só quis dizer que ele nem perguntou pela base, chefe. Não vai dar pela falta dos garotos, é isso. DE VOLTA AO AEROPORTO. Um carro está esperando os dois. O motorista uniformizado sai e abre a porta para Carlão. CARLÃO (entrando) Esse filho da mãe ainda vai dar trabalho. Avise ao Bonilha pra ter paciência e esperar. Em um mês eu assumo a presidência e ele sobe. ENTRAMOS NO CARRO com eles. MADUREIRA Vou falar sim, chefe. CARLÃO Acerte uma reunião minha com o Gomide. Amanhã, lá em casa. Não quero correr riscos. Não admito a hipótese de vitória nossa. Tudo que eu não preciso é desse título logo agora. A gente tem que perder dos argentinos. MADUREIRA Fique tranquilo. Nós vamos perder. (pausa) Ele está esperando você na Liga, chefe. Agora. MOTORISTA Para a Liga, doutor Carlão? CARLÃO E rápido. (a Madureira) Outra coisa. Os olheiros devem ser orientados para levar os garotos bons de bola para o GALÁTICO 22 a partir de agora. De vez em quando manda um melhorzinho para Quintero. (De dedo em riste) De vez em quando. Entendido, chefe. MADUREIRA INT. SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FUTEBOL CLUBE – DIA. FEDERICA está sentada diante da tela do laptop. Fátima está na frente dela, numa cadeira de visitante, com um tablet, para anotações. FEDERICA Onde está Bonilha? FÁTIMA Não foi trabalhar hoje. A mulher dele ligou dizendo que ele está com diarreia. FEDERICA Quero falar com ele amanhã bem cedo. Na primeira hora da manhã. Quero uma estimativa de faturamento com a venda de jogadores das categorias de base. FÁTIMA Falo com ele em casa hoje mesmo. Mais tarde. FEDERICA O pessoal da TV já deu retorno? FÁTIMA Já. O percentual deles nos naming rights vai ser de 5%. A parte do leão é nossa. NELSON já está mantendo contato com o patrocinador. FEDERICA Qual é a estimativa de faturamento? FÁTIMA Dez milhões de dólares ano. Só isso? FEDERICA FÁTIMA Foi o que ele disse. FEDERICA Está muito pouco. Diga a ele que eu quero o dobro. 23 Ele vai chiar. FÁTIMA FEDERICA Provavelmente ele e Carlão estão ficando com um bom pedaço. Que tirem a diferença da parte deles. Marque uma reunião com a cervejaria. E não chame Nelson. INT. CORREDOR/CT BRASIL FC – DIA. José Roberto Quintero caminha pelo corredor que dá acesso à sala de entrevistas coletivas. Ao lado dele, BRUNO DE FARIA, assessor de imprensa do time. BRUNO Seja sempre direto e procure não fugir de nenhuma pergunta. Se achar que não deve responder, diga que não irá responder. E passe para a próxima. QUINTERO Nesse caso, prefiro olhar para você. Você intervém e passa para o próximo. Combinado? BRUNO OK. Bruno abre uma porta. INT. SALA DE IMPRENSA/BRASIL FC – DIA. Os dois entram direto atrás de uma mesa. Ao fundo, de frente para os jornalistas, um painel com as marcas dos patrocinadores (destaque para o fundo americano). Dois microfones sob a mesa, além de copos e garrafas de água mineral. Bom dia, amigos. BRUNO QUINTERO Bom dia. TODOS (uníssono) Bom dia. Depois que os dois assentam-se, o PONTO-DE-VISTA é sempre na perspectiva de Quintero ou de Bruno. 24 VEMOS os repórteres fazendo as perguntas, olhando para CAM. Vê-se que a sala está cheia de jornalistas, refletores de TV jogando luz nos dois entrevistados etc. REPÓRTER UM A coluna de Sobrenatural de Almeida noticiou que você resistiu a assumir o cargo de treinador. QUINTERO (em OFF) Fico apenas até a final. Vou ajudar a contratar o novo técnico e volto para a Europa. REPÓRTER TRÊS O jogo vai ser daqui a duas semanas. Você acredita que esse tempo é suficiente para seu entrosamento com o grupo? QUINTERO Eu acompanhei de perto o trabalho de Mancini. Os jogadores me conhecem bem. Não vai haver problema. REPÓRTER TRÊS O que muda com você no comando temporário do time? QUINTERO Só o nome do treinador. Vou manter o desenho tático de Mancini. REPÓRTER DOIS Na final da Liga Sul Americana e na próxima temporada? QUINTERO Já disse que só fico duas semanas como treinador. Não existe tempo hábil para fazer mudanças táticas profundas. Não gosto de jogar em contra-ataques, coisas que os italianos fazem muito bem. Mas é assim que vamos jogar contra o Arsenal Juniors. Foi assim que chegamos à final. EXT. SEDE/LIGA NACIONAL DE CLUBES/RIO DE JANEIRO – DIA. O carro de Carlão para diante de um edifício imponente, na Barra da Tijuca. Ao sair, Carlão observa que há um pequeno tumulto na entrada do prédio: o jogador italiano DI PIETRO está cercado por muitos fãs. Ele é o mais popular jogador do Brasil FC, zagueiro talentoso, carismático, capitão do time. Paciente, ele assina a todos os pedidos de autógrafo. Carlão entra rapidamente e é seguido por Di Pietro, que consegue escapar dos fãs com agilidade. 25 INT. PORTARIA/EDIFÍCIO DA LIGA NACIONAL – DIA. Carlão e Di Pietro diante do elevador, que ainda não chegou. CARLÃO O que o traz aqui, Di Pietro? Veio falar comigo? DI PIETRO (com sotaque italiano) Precisamos ter uma conversa, Carlão. Você está com tempo? É urgente. O elevador chega e os dois entram. INT. ELEVADOR – DIA. No elevador apenas os dois. Carlão aperta o botão que indica o vigésimo andar. CARLÃO Desembucha. Estou com compromisso marcado. Di Pietro aperta o botão que trava o elevador. DI PIETRO Mancini era meu amigo. E eu com isso? CARLÃO DI PIETRO Eu sei do acordo que vocês dois tinham. CARLÃO Não sei do que você está falando. DI PIETRO Ele levava comissão pela venda dos garotos das divisões de base e fazia vista grossa para seus negócios pessoais. CARLÃO Vá direto ao assunto. O que você está querendo? DI PIETRO Tenho muita liderança entre os jogadores. Posso desestabilizar o novo treinador. Sei que você queria colocar Bonilha lá e não conseguiu. Ajudo você a derrubar Quintero. 26 CARLÃO E o que você quer em troca? DI PIETRO Vou largar o futebol depois da final. Eu assumo o lugar de Bonilha. E as comissões, naturalmente. Continuamos a tocar sua mina de ouro. Bonilha sobe para o time principal. Todo mundo fica feliz. Carlão destrava o elevador e estende a mão para Di Pietro. CARLÃO Negócio fechado. INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT BRASIL FC – DIA. É bem cedo. Os jogadores estão reunidos no meio do campo, formando uma meia-lua, em torno do preparador físico, Jaime Santos. Quintero e FEDERICA (ela vestida com o abrigo do time, usando tênis) aproximam-se e dão a volta, ficando ao lado de Santos. QUINTERO Bom dia, pessoal. A doutora FEDERICA gostaria de conversar com vocês. (a FEDERICA) Fique à vontade, doutora. JOGADORES (uníssono) Bom dia. FEDERICA Bom dia, rapazes. Não vou tomar muito o tempo de vocês. Mas quero dar algumas notícias importantes. DI PIETRO (debochado) E aí? Levou um pé na bunda do maridão? O grupo cai na risada. FEDERICA (séria,) Não confunda informalidade com intimidade, Mantenha-se em seu lugar ou vá embora. Di Pietro. Desafiador, Di Pietro levanta-se e vai embora. QUINTERO Volte e desculpe-se com a senhora presidente. Você não tem permissão dela para ir embora. 27 Di Pietro faz um gesto de enfado com a mão e segue andando. QUINTERO Você está multado em 50% de seu salário por indisciplina. Se sair dessa reunião sem autorização vai ser emprestado de graça para um time de segunda divisão. DI PIETRO E o que vocês vão dizer para a torcida e para a imprensa? QUINTERO Que você é um idiota absolutamente prescindível. Não vai ser novidade para ninguém, acredite. DI PIETRO volta e assenta-se, enfurecido. QUINTERO Doutora FEDERICA. (gesto com as mãos sinaliza: continue) FEDERICA O presidente Octávio afastou-se em definitivo e eu estou no lugar dele. Vou cuidar pessoalmente do futebol profissional. Conto com vocês para sermos campeões da América do Sul. LUCAS Falo por mim mesmo, presidente. O grupo está determinado e unido. Vamos ganhar esse título e dedicá-lo a Mancini, que nos trouxe até aqui. Perdemos o campeonato nacional na reta final, mas aprendemos as lições. Posso falar? DI PIETRO QUINTERO Pode. Mas se ainda sobrou algum juízo em sua cabeça oca convém ficar de boca fechada. Di Pietro fica quieto, visivelmente contrariado. REYNA chega correndo, com as chuteiras na mão. REYNA Desculpe o atraso, Presidente, José Roberto, Jaime. FEDERICA Não há problema, REYNA. Sente-se e fique à vontade. REYNA senta-se. 28 FEDERICA Cada um de vocês vai ganhar 300 mil dólares de premiação se o título for nosso. Titulares e reservas. Assovios e comemoração dos jogadores. FEDERICA Essa premiação vai ser feita em caráter pessoal como presente de despedida de meu marido. Nossas metas são o campeonato nacional e o título de campeão mundial interclubes, em dezembro. Façam a parte de vocês, que nós faremos a nossa. FEDERICA sai, aplaudida pelo grupo. Di Pietro é o único que não bate palmas. INTERVALO. PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS. INT. SALA DE CARLÃO/LIGA NACIONAL – DIA. Carlão entra na sala ampla e bem decorada e Gomide, sentado numa poltrona, lá continua. Gomide, 65 anos, árbitro famoso aposentado, afeminado, diretor da Comissão de Arbitragem da Liga, está tomando uísque com gelo. CARLÃO Gomide, meu amigo. Devo um pedido de desculpas. Fiquei preso no trânsito. GOMIDE O que é isso, meu presidente? Não esperei quase nada. Fez boa viagem? CARLÃO Boa sim. E a família? GOMIDE Dona Celeste está reclamando que o amigo sumiu. CARLÃO Passo lá amanhã pra tomar aquela sopinha. Vamos direto ao ponto, Gomide. Meu dia vai ser cheio. Falou com o chileno? GOMIDE Foi mais fácil do que eu pensava. Ele foi bem receptivo. CARLÃO Ótimo. Mas houve uma mudança de planos. Agora vamos perder e não ganhar. GOMIDE 29 Perder? Não entendi. CARLÃO Não precisa entender. Dobre o valor do presente. Quero ter certeza de que os argentinos vão ganhar aquela final. GOMIDE Minha comissão também dobra? CARLÃO Deixe de ser guloso. O sujeito é de confiança? GOMIDE Absoluta. Ponho a mão no fogo por ele. CARLÃO Se o Brasil ganhar a final contra aquele time de Buenos Aires você vai queimar inteiro no fogo do inferno, Madame. Garanto isso. INT. SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FC – DIA. A música é LIFE IS LIFE, da banda pop austríaca OPUS (1984) e entra janela à dentro na sala de FEDERICA. Atraída, ela vai até a janela e olha na direção do campo principal, onde estão os jogadores. Sorrindo, fica observando a brincadeira comandada por Quintero: começou o aquecimento, de forma bem descontraída. INT. CAMPO DE TREINO/CT BRASIL FC – DIA. As arquibancadas do campo principal do CT do Brasil FC estão lotadas de torcedores. Nos alto-falantes, em volume alto, a música da banda OPUS dá o tom do aquecimento dos jogadores. Como no famoso vídeo de aquecimento de Maradona no NÁPOLI (http://www.youtube.com/watch?v=4vashrNoXTE), VEMOS os jogadores aquecendo-se antes de começar o treino. REYNA, em substituição a Maradona, é quem faz acrobacias e malabarismo com a bola, dança se aquecendo, brincando, divertindo-se como uma criança. A torcida aplaude com entusiasmo e dança também. Uma cena deliciosa, que dura um minuto inteiro. PLANO DE CONJUNTO mostra FEDERICA na janela, na perspectiva de quem está no campo. 30 EXT. CENTRO DE TREINAMENTO BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA/RIO – DIA. FEDERICA está saindo de carro (no Mini Cooper). Com um sinal de cabeça cumprimenta o porteiro e ganha a avenida bem arborizada com rapidez. INT. CAFÉ EM IPANEMA – DIA. FEDERICA entra e vai direto para a mesa em que Isabela está tomando um suco de laranja. Isabela levanta-se e trocam um beijo carinhoso. FEDERICA Tudo bem com você? ISABELA De acordo com o previsto. Carlão ligou para meu pai fazendo ameaças. O sujeito é um gangster. FEDERICA Um gangster vaidoso. Se alguém divulga uma derrota dele, qualquer derrota, ganha um inimigo para a vida toda. ISABELA Meu pai tem a maior coleção de inimigos do Rio de Janeiro. Um a mais não vai fazer muita diferença. FEDERICA O que você queria me dizer? ISABELA Bonilha está plantando notícias desabonadoras sobre José Roberto. FEDERICA (faz sinal a um garçom, apontando o suco de Isabela) Que coisa. Nunca imaginei que ele desceria tão baixo. ISABELA Já cansei de falar que ele não presta. Estou preparando uma série sobre a exportação de pé de obra. Ele, Carlão e Mancini são sócios num time de fachada, GALÁTICO. FEDERICA Mancini também? Tem certeza? ISABELA Vou provar. Mas não quero levantar a lebre antes de ter um quadro completo. Aquele sujeito da TV também tem ligação com essa máfia. 31 Ele ou a TV? FEDERICA ISABELA As pessoas físicas dos dois lados. FEDERICA Às vezes chego a pensar que você acredita nessas teorias de conspiração, Bel. ISABELA Sou jornalista. Todo bom repórter acredita. Você não vai mais ter notícias de Bonilha. Ele sumiu. FEDERICA Ficou melindrado por que não o escolhi como técnico? ISABELA Se minhas fontes estão certas ele é cumplice de Carlão no comércio de pé de obra. Você acompanha as divisões de base? FEDERICA Não. Essa área era de Carlão. (pausa) Você acredita que Di Pietro comprou uma briga comigo, sem mais nem menos? ISABELA Acredito. Minha fonte na Liga disse que ele esteve ontem lá, com Carlão. Isso não sugere nada a você? FEDERICA Coincidência. Deve ter ido resolver algum assunto burocrático. Vai largar o futebol depois da decisão com os argentinos. ISABELA Se você continuar com essa ingenuidade Carlão detona você na eleição lá em Nova York. FEDERICA Di Pietro quer começar carreira de treinador nas divisões de base da seleção brasileira. Já me pediu ajuda. ISABELA Pois eu acho que aí tem coisa. Fique esperta com Di Pietro. Ele não tem escrúpulos. Carlão vai tirar proveito do interesse dele. Pode apostar. FEDERICA Menos, Bel. O que ele pode fazer? 32 ISABELA Pode prejudicar vocês na decisão da Liga Sul Americana. FEDERICA E dar um tiro no próprio pé? Ele vai é procurar sair em alto estilo. INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT BRASIL FC – DIA. Os vinte e cinco jogadores foram divididos em cinco grupos, um grupo na área central e os demais nos cantos do gramado. É um treinamento físico: cada grupo faz um tipo de exercícios, com a orientação do preparador físico e dos assistentes dele. Pelé está do lado de fora, de pé, no local destinado à comissão técnica. Ele está com um celular na mão, na função rádio. Seguem imagens do treino, até o final da fala de Sobrenatural (em OFF). LOCUTOR DE RÁDIO (em OFF) Se você quer saber a verdade sobre tudo o que acontece no mundo bola tem um encontro marcado com SOBRENATURAL DE ALMEIDA. Música de filme de suspense, terror, como se o personagem fosse um ser de outro mundo. SOBRENATURAL DE ALMEIDA (voz gutural, grave, visivelmente trabalhada em estúdio de som) Está chegando a hora da verdade para o novo treinador do Brasil FC, José Roberto Quintero. Num episódio dramático, o time perdeu o técnico Mancini a duas semanas de enfrentar o Arsenal Juniors de Buenos Aires, sete vezes campeão sul-americano. José Roberto é gente boa, inteligente, talentoso, de personalidade forte. O sucesso de Quintero será o sucesso da renovação e profissionalização no futebol brasileiro. Pelé desliga o rádio e continua observando o treino. NO PONTO DE VISTA DELE, VEMOS que Quintero faz sinal e REYNA deixa o grupo que integrava, correndo na direção dele. Os dois saem do gramado e sentam-se nas arquibancadas, para conversar com privacidade. PLANO APROXIMADO de Di Pietro, prestando atenção na saída de REYNA. INT. ARQUIBANCADA DO CAMPO PRINCIPAL/CT BRASIL FC – DIA. 33 Quintero e REYNA sentam-se. O atleta ainda respirando com dificuldade. QUINTERO E Samuel? Não vai mais aparecer para assistir aos treinos? REYNA Nesses dias não. Ele começou uma tournée com a banda. QUINTERO A gente precisa conversar. Conversa séria. REYNA Um filho da puta esse Di Pietro. Sujeito mais vulgar. QUINTERO A guerra entre FEDERICA e Carlão foi declarada. O clima vai fechar. Di Pietro já escolheu o lado dele. Você acha que ele puxa muita gente? REYNA Ele tem liderança, Ed. QUINTERO Fique na sua. Não quero aumentar o tamanho da encrenca. Deixe Di Pietro comigo. Mas não é disso que eu preciso falar contigo. REYNA Você assinou por um ano? QUINTERO Não. Eu só fico até a final. REYNA Você vai embora mesmo se a gente ganhar? QUINTERO Volto para a Europa de qualquer jeito. Mas não é disso que eu queria falar. Carlão? REYNA QUINTERO É. Se a gente perder a final ele vai assumir. FEDERICA não se sustenta se o Brasil for vice mais uma vez. REYNA Um time que tem menos de um ano? Conta outra. 34 QUINTERO A coisa é séria. Não é hora de brincar. Eu só fiquei porque FEDERICA me convenceu de que tudo pode ir para o vinagre. Vamos entregar tudo para aquele safado? REYNA Não se depender de mim, Ed. QUINTERO Vai depender, Leo. Eu estou avaliando a necessidade de afastar Di Pietro do grupo. Não quero esse sujeito armando pelas minhas costas. REYNA Não seja precipitado, Ed. Se você não vai ficar, não faz sentido detonar o sujeito. QUINTERO Não resolvi nada ainda. Eu só sei que tenho que enquadrar esse camarada se quiser ser campeão. O grupo tem que estar na minha mão e ele vai questionar minha liderança. REYNA É complicado, Ed. Já está questionando. E bem ou mal ele tem prestígio com o grupo. QUINTERO É aí que você entra. REYNA (agora sério) Não estou gostando do rumo dessa conversa, Ed. QUINTERO Preciso que você tire uma licença no hospital e fique 100% focado na final. Preciso de um comportamento impecável seu. Nada de bebidas, de cigarros nem de baladas. Duas semanas, Leo. É só isso que eu peço. REYNA Só isso, Ed? Não quer uma cirurgia para restaurar minha virgindade? QUINTERO O que está em jogo não é só minha liderança. É um projeto sério. Algo maior do que eu e você. Seja generoso, abra seus olhos e enxergue mais além. 35 REYNA (sério) O nome do que você está fazendo é muito feito, Ed. QUINTERO Não estou fazendo nenhum tipo de ameaça. Faço um apelo ao sujeito decente que sei que você é. Fale com FEDERICA se não acredita em mim. Você tem essa liberdade. REYNA (suspirando) Não é tão simples. Estou concluindo a residência. Não existe licença nem férias em residência médica. QUINTERO Estive ontem com o diretor do hospital e expliquei o que está acontecendo. Ele libera você até a final. Depois você volta e termina a residência. REYNA (ri) Você é mesmo um filho da puta, Ed. Vou pensar com carinho e até a noite eu dou um retorno a você. Quintero oferece a palma da mão levantada e REYNA bate na mão dele, num gesto de camaradagem e união. O treinador faz sinal ao assistente LUCIANO SABINO, que usa um apito e interrompe o treino físico. Pelé entra no gramado, dirigindo um carrinho (dos usados no golfe), que carrega os coletes amarelos do time titular. Os jogadores titulares aproximam-se dele, pegam os coletes e vestem-se. O técnico Quintero assume o papel de juiz e dá início a um coletivo. REYNA começa o treino na reserva. Imagens de jogadas num coletivo. Na trilha sonora entra a música-tema do antigo canal 100, NA CADÊNCIA DO SAMBA (QUE BONITO É), de Waldir Calmon (http://www.youtube.com/watch?v=5uCPo6p97Pw). As imagens do coletivo seguem até Quintero, ao som da música de Waldir Calmon, seguem até a expulsão de Di Pietro por Quintero, que interrompe o treino uma ou duas vezes, orientando os jogadores. Di Pietro entra duramente num jogador do time reserva e é repreendido com gestos por Quintero. QUINTERO Vá com calma, Di Pietro. Não quero ninguém machucado. 36 REYNA faz uma jogada de efeito, dando um drible em Di Pietro. Os torcedores aplaudem. O treino segue e, numa jogada mostrada em CAM lenta, DI PIETRO dá uma entrada criminosa em REYNA, que parece ter uma contusão séria. PLANO APROXIMADO mostra como o rosto de REYNA transforma-se numa máscara de dor: jogado para cima, ele cai em cima do próprio braço. O médico (DR. FÁBIO) entra em campo e REYNA é levado para atendimento fora do campo. Di Pietro é chamado para uma conversa com QUINTERO: VEMOS que Quintero “expulsa” o zagueiro titular de campo. Di Pietro não parece dar importância. Sai sem olhar para REYNA e para Quintero. Quintero faz sinal ao preparador físico, que se aproxima dele. Quintero fala algo no ouvido de Jaime e o preparador físico segue Di Pietro. Depois, aproxima-se de REYNA, que está sentindo muitas dores no braço lesionado. QUINTERO (ao médico) É grave, doutor? DR. FÁBIO Acho que o braço está quebrado. Vou tirar um raio X para confirmar. REYNA (a Quintero) Depois eu acerto as contas com aquele filho da puta! QUINTERO Esqueça aquele sujeito. Ele não entra mais aqui. INT. VESTIÁRIO DO CT BRASIL FC – DIA. Di Pietro está tomando uma ducha. Quintero chega. QUINTERO Pegue suas coisas e saia do CT. Você vai cumprir os últimos dias de em casa. Está proibido de entrar em qualquer dependência do clube. DI PIETRO Vamos ver quem vai ficar em casa. QUINTERO Pessoas como você fazem mal ao futebol. Saia logo. Se estiver aqui quando o grupo chegar, eu mando rescindir seu contrato por justa causa. Aí você não recebe um centavo da indenização nem a gratificação que nós estamos dispostos a dar. 37 INT. ARQUIBANCADA/CT BRASIL FC – DIA. O técnico usa o apito e sinaliza que o treino acabou. Os jogadores começam a sair de campo. Os torcedores levantam-se e começam a sair das arquibancadas. INT. ENFERMARIA DO CT BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA – DIA. Leo REYNA está sentado, com o braço estendido numa mesa. O braço dele está fixado numa tala e enfaixado. REYNA Não vai ser preciso engessar? DR FÁBIO Não houve fratura. Essa tala vai ser suficiente. Fique com o braço em repouso até amanhã cedo. Durma direito hoje. Amanhã consigo uma proteção e você pode fazer treinamento físico. Jaime vai fazer um trabalho específico contigo. REYNA OK, doutor. Posso ir para o vestiário? O clima lá deve estar quente. DR FÁBIO Nada de banho hoje. Pode. INT. VESTIÁRIO DO BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA – DIA. Os jogadores estão todos no vestiário: uns tomam ducha, outros estão na piscina térmica e outros na banheira. Clima descontraído, apesar do incidente com Di Pietro. Quintero está de sunga, sentado numa cadeira de descanso, ao lado de LUCAS. REYNA entra e é cumprimentado. PAULO CESAR E aí, doutor? Tudo em cima? REYNA Beleza, Ed. Não quebrou nada. LUCIO (dá um abraço em REYNA) Vaso ruim não quebra fácil. INTERVALO. PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS 38 VOLTAMOS AO VESTIÁRIO. CONTINUA A CENA ANTERIOR. REYNA Pessoal! Atenção! Tenho um comunicado oficial a fazer. PAULO CESAR Comunicado oficial. A coisa promete. LUCIO Será que ele fez exame de fezes e descobriu que está com vermes? Risadas gerais. REYNA Vou ficar sem fumar e sem beber até o jogo com Los Hermanos. E vou tirar licença no hospital. Fico hospedado aqui no CT. Mas vejam bem: parar de transar, não! Vou me virar com O Violão. Risadas gerais. O massagista Violão é negro, tem quase 130 kg. Aparece de repente. Alguém chamou? VIOLÃO PAULO CESAR Tu já compraste lingerie, Violão? Mais risos. VIOLÃO O que é isso, rapaz? Está me estranhando? Lingerie eu só uso quando vou passar o fim de semana com a sua mãe. Outra rodada de risadas. Violão sai. QUINTERO A notícia é ótima, Leo. Para quando é o casamento? Quero ser o padrinho. Mais risadas. LÚCIO Ninguém vai convidar Di Pietro? Aliás, onde ele está? Ninguém ri. QUINTERO 39 Ele foi para casa, Lúcio. Vai ficar lá até acabar o contrato dele. Não joga mais no Brasil. LÚCIO Como assim? Ele é o nosso capitão. QUINTERO Não é mais. O capitão agora é LUCAS. DURVAL (a Quintero) Você está querendo entregar o ouro para os argentinos? Não estou entendendo você, José Roberto. QUINTERO Di Pietro foi suspenso. É bem fácil entender. DURVAL Você está levando as coisas para o lado pessoal, José Roberto. LUCIO Está mesmo. Não podemos ficar sem nosso xerife contra o Arsenal Juniors. Ele é metade da defesa, todo mundo sabe. Pense no que é melhor para o time. Reconsidere. QUINTERO Di Pietro não me deixou alternativa. É assunto encerrado. Vamos colocar uma pedra nesse assunto e seguir sem ele. DURVAL Não concordo com isso. Você está sendo mesquinho e vingativo. Um péssimo jeito de começar como técnico. LUCIO Eu também não aceito isso. Di Pietro tem que jogar. O clima está tenso. REYNA (a Lucio) Não é hora de complicar as coisas, Ed. (a Durval) Deixa disso, Ed. Vamos nos unir senão vamos perder outra final. O grupo tem que estar fechado com o treinador. O xerife é Quintero, não Di Pietro. O grupo está quieto. Olham-se uns para os outros. QUINTERO 40 Todos me conhecem. Sou um sujeito ponderado, justo. É ótimo que essa conversa aconteça agora. Quero que todos fiquem à vontade para opinar. Absolutamente à vontade. LUCAS Não foi a primeira vez que Di Pietro entrou para machucar um de nós. Não se esqueçam de que Maurinho ficou afastado oito meses por conta da violência dele. MARCELO LUCAS está certo. Mas acho que Leo não precisava ter dado aquele drible em cima do italiano. REYNA Nós estamos em casa, Ed. É treino. LUCIO (a Marcelo) Mandou bem, cara. Treino de casa cheia. Leo desmoralizou Di Pietro. Foi sacanagem dele. REYNA (a Lucio) Não foi essa a intenção, Ed. Se for preciso me desculpo com ele. Na hora estava querendo matar esse italiano, mas a raiva já passou. QUINTERO (a Marcelo) Você acha injusta a punição a Di Pietro? MARCELO Eu acho que quem tem que decidir esse tipo de coisa é o treinador e a direção. Não quero entrar no mérito. QUINTERO Mais alguém pensa como Durval e Lucio? Ninguém fala. Lucio e Durval procuram apoio, mas ninguém se manifesta. QUINTERO Durval e Lucio. Fiquem à vontade para procurar outro clube. Minha decisão não tem volta. DURVAL Ficou maluco? Quer desmontar o time? QUINTERO Prefiro saber com quem eu posso contar. É bom que todos saibam que Carlão não é bem bem-vindo a esse vestiário. Nem à sala de FEDERICA Octávio. 41 LUCIO Eu estou fora. Vamos embora, Durval. QUINTERO Se alguém mais não está satisfeito, que fique à vontade para ir com eles. Não vou criar dificuldade para ninguém sair. Prometo a vocês. Ninguém fala nada. Durval e Lucio pegam suas sacolas e vão para uma área mais isolada do vestiário. REYNA O que acontece aqui, agora vai ficar aqui. As comadres fofoqueiras meninas de recado de Carlão estão fora. QUINTERO (a Durval e a Lucio) Se alguma coisa do que aconteceu aqui vazar para a imprensa, vou deixar vocês na geladeira um bom tempo. Está entendido? Sejam corretos e consigo a transferência de vocês para bons times na Europa. LUCIO (se reaproxima) Não vamos deixar vocês na mão. Vamos, Durval? DURVAL Claro que não. Merda! (começa a rir e aceita o abraço de REYNA) Fofoqueira é sua mãe (diz sem agressividade)! Todos se abraçam: termina a crise. INT. SALA DE QUINTERO/CT BRASIL FC – NOITE. Quintero está diante da TV, acompanhado pelos integrantes da equipe técnica. Parecem cansados, depois de muitas horas assistindo a jogos do adversário na final que está próxima. QUINTERO O que vocês acham? LUCIANO O time deles é forte demais. Não vai ser fácil. Eles jogam fora de casa melhor ainda. ALBERTO Os caras tem um preparo físico de primeira qualidade. Sabem tocar a bola. Atacam em bloco. 42 QUINTERO Qual é o ponto fraco deles? LUCIANO Não vi nenhum ponto fraco. ALBERTO Os caras jogam no ataque o tempo todo, marcam por pressão. Defendem em bloco. É um esquema que cria muitas dificuldades para nós. QUINTERO Isso não significa que eles não tenham ponto fraco. Vamos ver todos os jogos de novo. ALBERTO De novo? Não acredito. Você não tem família, José Roberto? Tenho que dormir em casa. LUCIANO Eu estou morto de cansado. Vamos ver essas fitas amanhã. QUINTERO Vão vocês. Eu não consigo dormir enquanto não descobrir como neutralizar esse time. ALBERTO Eles jogam juntos há cinco anos. Vieram juntos das divisões de base. Não se esqueça disso. Os caras são amigos, unidos até debaixo d’água. QUINTERO Todo time tem ponto fraco. O deles também tem. E eu vou achar. Bom sono. (pausa) Luciano. Dá uma passada lá em casa e avise TOMOKO que eu vou dormir aqui. LUCIANO Já estou vendo. Vai sobrar pra mim. QUINTERO Relaxe. Ela é japonesa. Jamais vai discutir com você. Quintero pega uma pilha de sete fitas e prepara-se para rever os jogos do Arsenal Juniors. Abre uma embalagem portátil com diversos comprimidos coloridos e toma três deles, de cores diferentes. 43 Fusões seguidas: a imagem do relógio com os ponteiros avançando pela noite (até 10h do dia seguinte) mostram a evolução do tempo. EXT. RESTAURANTE/LEBLON/RIO DE JANEIRO – NOITE. Quintero, Lucas, Durval e REYNA estão beliscando aperitivos enquanto não chega o jantar. REYNA usa uma proteção no braço lesionado. QUINTERO Vamos dar o maior susto da vida daqueles caras. Vão ter uma surpresa completa. REYNA Que tipo de surpresa, Ed? DURVAL Sabe que eu andei pensando nisso também? QUINTERO Eles estão contando que a gente jogue como sempre joga, contra qualquer time, em casa ou fora. LUCAS Na defesa, atraindo o time deles para o nosso campo e armando contra-ataques rápidos. REYNA Nosso time só joga assim, Ed. Qual é o problema? Ganhamos de todo mundo jogando assim. DURVAL De quase todo mundo. O Flamengo foi campeão em cima da gente, não se esqueça. LUCAS Aquilo foi um acidente. Em 10 jogos nós ganharíamos nove. QUINTERO Perdemos exatamente o que não podíamos perder. Não adianta ganhar 10 e perder o único que realmente vale a pena. DURVAL Futebol é imprevisível. Naquele dia nada deu certo pra gente. Já entramos derrotados em campo. Vou carregar essa culpa o resto da vida. QUINTERO 44 Não vai. Você não teve culpa. Acontece. Esqueça essa estória de culpa. DURVAL Eu falhei no segundo gol deles. REYNA Falhar faz parte do jogo, Ed. Faz parte da vida. (a Quintero) Direto ao ponto. QUINTERO Vamos fazer o que CAESER fez com Pompeu em Cartagena. DURVAL E o que foi que ele fez? REYNA Ataque maciço, de surpresa. Ed. Mandou os arqueiros mirarem os olhos dos homens de Pompeu. A surpresa é uma arma letal. LUCAS Alguém pode me explicar quem é esse tal CAESER? QUINTERO E derrotou todos seus inimigos. LUCAS Inimigos? Guerra é foda. DURVAL REYNA (a Lucas) O general romano. O que faturou Cleópatra. Elisabeth Taylor. LUCAS O que esse cara tem a ver com futebol? DURVAL (a Quintero) A esperteza quando é grande demais come o dono. Acho arriscado demais. QUINTERO CAESER foi o maior estrategista da história. Ele era imprevisível. Ganhava todas surpreendendo os adversários. Pode dar certo. LUCAS (pensativo) 45 QUINTERO Vai dar certo. Passei 20 horas vendo jogos do Arsenal Juniors. Eles não sabem se defender. Jogam no ataque porque ninguém vai pra cima deles. Nós vamos atacar! DURVAL QUINTERO Eles não sabem se defender. Jogam sempre no ataque. Botam o rolo compressor para funcionar e marcam por pressão no campo do adversário. É difícil ganhar deles no contra-ataque. LUCAS Temos um esquema tático sólido. Estamos sem perder há um tempão. Vamos fazer o que a gente sabe fazer bem feito. Inventar moda agora é loucura. REYNA O melhor ataque contra a melhor defesa. É o que eles esperam. DURVAL (oferece a palma da mão para Leo) Vamos abandonar nosso esquema tradicional e jogar no ataque. REYNA (levanta-se e bate a mão na palma da mão de Durval) Genial! LUCAS Meu Deus. Vocês não podem estar falando sério. É uma pegadinha? QUINTERO (bate a mão também na palma de Durval) Leo vai começar jogando. Não vai entrar no segundo tempo. Vamos com tudo pra cima deles no primeiro tempo. Vamos matar os caras no primeiro tempo e no segundo tempo vamos montar o mais terrível ferrolho italiano que o futebol já viu! LUCAS Estão todos malucos? Nós não sabemos jogar no ataque! QUINTERO Hoje não. Mas temos tempo para aprender. LUCAS (preocupadíssimo) Vocês são loucos. Completamente loucos. 46 EXT. ARENA BRASIL FC/RIO DE JANEIRO – TARDE. Imagens de torcedores chegam ao campo para o grande jogo. Uma visão de conjunto da majestosa arena de futebol. Imagens de um helicóptero mostram que as arquibancadas estão quase inteiramente tomadas. PLANO APROXIMADO do placar luminoso: BRASIL FC 0 x 0 Arsenal Juniors. INT/EXT. ÔNIBUS/ACESSO ARENA BRASIL/CORREDORES VESTIÁRIOS – DIA. Uma sequência mostra, sempre na perspectiva dos jogadores, imagens dentro do ônibus do Brasil FC que conduz os atletas à arena onde vai ser realizado o jogo com o Arsenal Juniors, de Buenos Aires. O veículo para e os jogadores começam a sair, saudados como heróis pelos torcedores que se comprimem para ver seus ídolos de perto. Os jogadores usam abrigos/uniforme do time; muitos estão com fones de ouvidos. Carregam suas próprias sacolas com a marca do time. O técnico Quintero está entre eles, bem como o assistente Luciano e o preparador físico Jaime. ACOMPANHAMOS os jogadores quando eles entram nas dependências que levam aos vestiários. Caminham pelo corredor e são saudados por Carlão, que ignora a expressão fechada (para ele) dos atletas e da comissão técnica: faz questão de aparecer para as câmeras de TV que acompanham a chegada do Brasil FC ao vestiário. Faz menção de entrar após a entrada do último atleta, mas um segurança barra a entrada dele. Vendo que está sendo filmado, finge que mudou de ideia e sai acenando às câmeras de TV: é um cara de pau nato. Imagens dentro do vestiário mostram os atletas trocando-se, calçando suas chuteiras, colocando as proteções na canela. QUINTERO (em OFF) Atletas são seres humanos que vivem em condições especiais. A paixão dos torcedores é irracional. Jogadores são como os gladiadores de Roma antiga: tornam-se escravos da fama, reféns da cobrança para uma entrega absoluta dentro de campo. O esporte transformou-se num negócio que envolve muito dinheiro. VAMOS À SALA DE UMA CPI DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. Quintero está de terno e gravata, falando a um microfone, do púlpito em que falam os depoentes convocados pela comissão. 47 QUINTERO Quanto mais contratos publicitários eles tem, menos foco no futebol os jogadores vão ter; é difícil ajustar as duas agendas. Não podemos esquecer que a maioria dos jogadores é gente jovem, em formação. São garotos que nem sempre tiveram uma boa base familiar e isso faz muita falta quando a fama chega. NO VESTIÁRIO. À medida que a fala do treinador menciona a pressão, entram na trilha sonora as batidas fortes dos corações dos atletas e VEMOS a expressão tensa de todos eles. Detalhes mostram como fica o vestiário quando os jogadores estão vestindo-se para o jogo. QUINTERO (em OFF) Antes de um jogo importante, é enorme a pressão psicológica que os atletas sofrem. Muitas vezes, é uma pressão desumana e é muito difícil controlar isso. Há atletas que não suportam o estresse e sofrem uma espécie de apagão: não conseguem render bem, paralisados pelo excesso de adrenalina. Há casos em que a pressão provoca mal estar físico, que muitas vezes impede o atleta de disputar a partida. Procuro capitalizar a adrenalina, conversando com os jogadores: é como se fosse um doping psicológico. Mas há atletas que se tornam extremamente violentos com a pressão que sofrem da imprensa especializada e da torcida. Há muito em jogo: a vitória pode consagrar e a derrota pode abalar a carreira de um atleta. É uma profissão muito difícil. INTERVALO PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS INT/EXT. VESTIÁRIO/ARQUIBANCADAS/BANCO DE RESERVAS/COMISSÃO TÉCNICA – DIA. Uma sequência que apresenta o jogo final da Liga Sul Americana. As imagens se alternam em cinco ambientes diferentes: 1-) Violão e Pelé (filho dele) no vestiário; 2-) jogadores e comissão técnica na área privativa específica que cabe a eles; 3-) torcedores nas arquibancadas; 4-) campo de futebol: SEMPRE em CAM LENTA; foco parcial em quem participa diretamente da jogada descrita; e 48 5-) cabine da rádio que transmite o jogo . Tensão e desabafo aparecem nos três primeiros, completando-se com a comemoração a cada gol feito e a frustração a cada gol sofrido. Na trilha sonora, a transmissão em rádio da partida, na locução vibrante, emocionante que os radialistas fazem do jogo. LOCUTOR DE RÁDIO (em OFF) Começa a partida na arena Brasil. REYNA começa jogando, o craque está com fome de bola. O juizão vai autorizar, autoriza e começa a final da Liga sul americana. Um jogo só, o Brasil FC precisa vencer, pois o melhor saldo de gols é do Arsenal Juniors. Empate dá Arsenal Juniors na cabeça. O Brasil tem que ganhar se quiser ser campeão. Bola na intermediária com REYNA, lançamento longo para Benitez, avança o meia paraguaio, o garoto é bom de bola, toca para Dodô, que faz o pivô e encosta a pelota para o doutor REYNA. E é falta! IMAGEM DE um argentino (uniforme igual ao do ATLETICO DE MADRID) fazendo falta em REYNA, em PLANO DE CONJUNTO, CAM LENTA: apenas os dois jogadores em foco, com a torcida ao fundo, em imagem que não é nítida. VOLTAMOS a mostrar, sucessivamente, imagens dos quatro ambientes. LOCUTOR DE RÁDIO (em OFF) Falta perigosa contra o gol de Carlos Ramirez! Vamos ver quem vai bater. Parece que é Durval, mas não. Não é. É ele mesmo. Leonardo REYNA. E ele vai bater. IMAGEM DE REYNA chutando em CAM LENTA: bola entra devagar no gol, estufando as redes. LOCUTOR DE RÁDIO (em OFF) Bateu REYNA e é gol! Gooooollllllllllllllll! REYNA espetacular! É gol! Gol! Gol! Brasil FC 1, Arsenal Juniors da Argentina, 0. VIBRAÇÃO NOS AMBIENTES 1, 2 e 3: Pelé chora de alegria. Quintero vibra pouco, ao contrário dos outros integrantes da comissão técnica e dos reservas, que fazem uma grande festa. Na torcida, parece que todos enlouqueceram: paixão levada ao paroxismo. LOCUTOR DE RÁDIO (em OFF) 49 Esse jogo é espetacular, minha gente. Emoção puuuuura na arena do Brasil FC. O ataque é argentino. Max Lopez carrega a bola com carinho, passa por Durval, dribla Lúcio, está em condição de marcar, segura que o gringo é bom de bola, bate firma na bola e seguuuuuuura LUCAS. Uma defesa extraordinária do arqueiro carioca. Cobrado o tiro de meta, a recuperação é de Fred, que segue rápido pela esquerda, tem Josias com ele, mas prefere Aílton. Corta o zagueirão argentino e recupera a bola o Arsenal. Galhardo lança em profundidade o artilheiro Mendonza, que avança sozinho. E é falta! IMAGEM DA FALTA DE LUCAS, em CAM LENTA: foco nos dois jogadores, com a torcida ao fundo, desfocada. CORTA para o juiz mostrando o cartão amarelo. LOCUTOR DE RÁDIO (em OFF) Falta de LUCAS em Mendoza. O quê? Esse juiz é maluco! Cartão amarelo para LUCAS. Gritos de revolta nos três ambientes. GRITOS EM UNÍSSONO Ladrão! Ladrão! Juiz ladrão! LOCUTOR DE RÁDIO (em OFF) Reiniciado o jogão de bola na Arena Brasil, segue o time brasileiro, Rafael conduz a pelota com carinho, lança REYNA em profundidade, ele está sozinho. IMAGEM DE REYNA EM CAM LENTA, entrando com a bola na grande área adversária: só ele tem imagem nítida, no foco. Fora de foco, os demais jogadores. LOCUTOR DE RÁDIO (em OFF) REYNA pode marcar, ele vai marcar, chuta REYNA direto para o gol e é gol. Gooooooollll. Gol.Gol.Gol. REYNA camisa 14 sacode a Arena Brasil! Goooooooooooooooooooooooolllllllllll. Vibração nos três ambientes. Quintero sempre comedido, elegante. LOCUTOR DE RÁDIO (em OFF) E é falta! (EM CAM LENTA: PLANO APROXIMADO) Falta criminosa do meio campista argentino. Durval está desacordado. Esse argentino é um criminoso. Não é possível, seu juiz. Nem cartão 50 amarelo para Gutierrez? Aí tem coisa, amigo da Rádio Clube do Rio de Janeiro. Aí tem coisa. Revolta nos três ambientes. GRITOS EM UNÍSSONO Ladrão! Ladrão! Juiz ladrão! Fora Gutierrez! Fora Gutierrez! LOCUTOR DE RÁDIO (em OFF) É. Não dá mesmo para Durval continuar (CAM LENTA: sai Durval, na maca; entra Marcos Paulo). Vai entrar ao garoto Marcos Paulo. 30 minutos do primeiro tempo. O Brasil joga no ataque, os argentinos estão começando a apelar. Esse juiz está dando mole para os gringos, está mesmo! Entra Marcos Paulo, conduz a bola, passa Rafael, Rafael de novo a REYNA, vai com vontade o nosso doutor da bola, toca a Fred, que devolve a REYNA e é falta. Dessa vez o juizão não pode deixar de marcar. Uma falta obscena de Gutierrez em REYNA. Mas ele já de pé. Prepara-se para bater. Mas o que é isso? Lucio está caído na grande área. O que está acontecendo, meu Deus! Lucio parece desacordado. Alguém pode explicar o que está acontecendo. Paulinho: é com você. O que houve com Lucio, meu repórter preferido? PAULINHO (repórter, em OFF) O que houve foi uma agressão do número 10 argentino. Sem bola ele deu uma cotovelada na cabeça de Lucio. O juiz tem que expulsar. Um absurdo isso que acontecendo nesse jogo. Mas o juiz não deu nada! Absolutamente nada, Raul! Nem cartão amarelo. REYNA vai bater a falta depois que Lucio for retirado de campo. A torcida revoltada, apreensiva. VEMOS Lúcio caído, aparentemente desacordado. Os enfermeiros o colocam na maca, ele dá sinais de que está grogue. Sangue sai em grande quantidade da cabeça dele. Dr. FÁBIO estanca o sangue e faz sinal para QUINTERO: não dá mais para Lucio continuar. LOCUTOR (em OFF) Inacreditável. O juiz não deu nada e Lucio está fora do jogo. O Brasil vai ter que fazer uma segunda substituição. Entra BELLETI no lugar de Lucio. Num jogo que pode ter prorrogação. Esse juiz é perigoso, amigos da Rádio Clube do Rio. Mas continua o jogo eletrizante. Prepara-se REYNA, toma distância. Vai nessa, doutor. 51 Vamos dar uma lição nesse árbitro pilantra. Doutora FEDERICA: é preciso recorrer à Liga Mundial. O que está acontecendo hoje vai entrar para a História do Futebol como uma das páginas mais negras que já foram escritas. Mas o jogo continua, emoção pura, vai bater, correu para bola, chutou e é gol. Gol. Gol. Gol. Goooooooollllll. Golaaaaaaaaaaaçooooooooo de Leonardo REYNA. Três para o Brasil FC, zero para o Arsenal. PAULINHO (repórter, em OFF) Lucio vai ser levado para o hospital. O doutor FÁBIO disse que a pancada foi fortíssima. Um criminoso esse argentino. Alguém tem que tomar uma providência. LOCUTOR (em OFF) O Arsenal já recomeçou o jogo. Bola com Benitez, passa Max Lopez, esse é bom de bola, o Arsenal não se entrega, minha gente. Cruzamento na grande área, sai LUCAS, a bola sobra para Max Lopez, ele vai marcar, não marca não. REYNA aparece não se sabe de onde e tira a bola. Tiro de meta para o Brasil FC. Algum problema com LUCAS, Paulinho? Estamos no final do primeiro tempo, só falta uma contusão do goleiro do Brasil. Bola com você, Paulinho. PAULINHO (repórter, em OFF) Parece que a coisa é séria. LUCAS trombou de frente com Max Lopez e o argentino também se machucou. Max Lopez está fora, LUCAS está tonto, parece que vai se recuperar. Já se levantou, Raul, LUCAS continua no jogo. LOCUTOR (em OFF) Que alívio, torcida brasileira! LUCAS está de pé. Vai continuar. Não vai. Ele está sendo examinado pelo médico do Brasil. O doutor FÁBIO faz sinal para Quintero. LUCAS vai sair. E o Brasil não tem mais substituições. E agora, José Roberto Quintero? Imagens de Max Lopez saindo carregado na maca e de LUCAS andando com dificuldade, com ajuda do Dr. FÁBIO. LOCUTOR (em OFF) Uma situação inimaginável. REYNA vai para o gol. Ele está colocando a camisa de LUCAS. O doutor REYNA vai ser o goleiro do Brasil. A situação é dramática, pois o time não pode mais fazer substituições. E acaba o primeiro tempo. 52 INT. CAMPO/ARENA BRASIL – NOITE. A noite está chegando. Imagens da torcida apreensiva, que sugira problemas para o Brasil FC. VEMOS os refletores acendendo-se e o placar eletrônico passa a ocupara a tela inteira. Os diferentes placares se sucedem em fusões lentas, que sugerem o transcorrer do tempo: Brasil FC 3 x 1 Arsenal Juniors. Brasil FC 3 x 2 Arsenal Juniors. Brasil FC 3 x 3 Arsenal Juniors. Brasil FC 3 x 4 Arsenal Juniors. Brasil FC 4 x 4 Arsenal Juniors. Imagens dos torcedores cabisbaixos, indo embora. INT. VESTIÁRIO BRASIL FC/ARENA BRASIL – NOITE. FEDERICA e Quintero entram no vestiário vazio. Só REYNA está lá, ainda na banheira, fumando um charuto enorme. Parece desanimado. Os dois aproximam-se devagar. FEDERICA Quintero me disse que você ainda estava aqui. Fiz questão de vir agradecer pessoalmente sua dedicação e seu empenho. Além dos gols, claro. QUINTERO Estamos chateados, mas conscientes de que fizemos a nossa parte. Era impossível ganhar esse jogo hoje. O mundo inteiro viu o que aprontaram conosco. Uma vergonha. FEDERICA Vamos entrar com um pedido de impugnação na Liga Mundial. O resultado foi manipulado, todo mundo viu. REYNA Perdemos. Nada vai mudar isso. QUINTERO Vamos embora, Leo. Precisamos descansar. Amanhã você tem plantão. Meu combinado com o diretor do hospital foi só até hoje. REYNA Termino a residência e fico só aqui. Mas só com uma condição. Que condição? FEDERICA 53 QUINTERO Eu não vou estar aqui quando você terminar a residência. Acerte direto com FEDERICA. REYNA (a FEDERICA) Só renovo contrato se José Roberto ficar, Ed. Se ele for embora, eu fico com a medicina. INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS/BRASÍLIA – DIA. Todos os episódios da minissérie (com exceção do sexto) serão encerrados com uma cena num ambiente que será identificado por uma legenda como uma CPI da Câmara dos Deputados. LEGENDA Comissão Parlamentar de Inquérito Câmara dos Deputados/Brasília 2014 O depoimento será sempre feito por Juca KFOURI, no púlpito destinado aos depoentes da CPI, ao microfone, diante de uma plateia de jornalistas, com toda a parafernália técnica para transmissão ao vivo. Cada depoimento vai durar um minuto e meio; vai abordar termas cruciais da agenda do futebol brasileiro, escolhidos de comum acordo entre o roteirista e o jornalista JUCA KFOURI. Episódio II: A PATRIA DE CHUTEIRAS PARTE I PRÓLOGO 5 MINUTOS EXT. CT BRASIL FUTEBOL CLUBE/BARRA DA TIJUCA/RIO – DIA. REYNA está entrando com seu RANGE ROVER, devidamente liberado pelo porteiro Feijão, negro, idoso, cabelos brancos. REYNA Tudo bem com você, Ed? FEIJÃO Se melhorar estraga, Leo. E com você? REYNA Existe espaço para melhorar. FEIJÃO Já assinou o contrato novo? 54 REYNA Vou resolver agora. Fique bem, Ed. FEIJÃO (ao telefone) Fátima? É o Feijão. Avise à doutora que Leo acabou de chegar. Ele entra. Feijão fica olhando para ele, com carinho. INT. RECEPÇÃO/SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FC – DIA. Fátima coloca o telefone no gancho e entra na sala de FEDERICA. INT. SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FC – DIA. FEDERICA está servindo-se de café, depois de servir a Quintero. QUINTERO Você bebe café como água. Desse jeito nunca vai conseguir parar de fumar. FEDERICA (senta-se) Esse é o menor de meus problemas. Amanhã posso estar fora dessa cadeira. QUINTERO Achei que isso já estivesse resolvido. E o recurso à Liga Mundial? FEDERICA Magno tem muito mais influência lá do que eu imaginava. Perdemos feio. QUINTERO Que absurdo. O mundo inteiro viu que fomos garfados. FEDERICA Isso não faz a menor diferença na Liga. O secretário executivo alemão já tinha adiantado que seria difícil ganhar. QUINTERO Até que ponto isso vai atrapalhar sua estratégia para conseguir permanecer na presidência? FEDERICA Os americanos não sabem como a Liga Mundial é corrupta. Vai ficar parecendo que é choro de perdedor. Não estou propriamente otimista. QUINTERO 55 Os caras não acompanham futebol na imprensa? FEDERICA Nos Estados Unidos ninguém dá importância para soccer masculino. A imprensa pouco fala nas falcatruas da Liga. QUINTERO Quando é que você fica sabendo se fica? FEDERICA Magno não conseguiu adiar para o próximo mês, como queria. A reunião do conselho vai ser amanhã à noite. Vou daqui a pouco para Nova York. QUINTERO Vou torcer por você. De coração. FEDERICA Você não vai mesmo mudar de ideia? QUINTERO Ainda que eu quisesse não seria possível. Minha saúde está em primeiro lugar. Não quero definhar como Telê Santana nem morrer em campo como o pobre Mancini. FEDERICA Falei com dois médicos e eles afirmaram que a medicação certa pode resolver o problema. QUINTERO Claro que pode. Mas levando uma vida normal, sem tanta pressão. FEDERICA Eu não pressionaria você. Ninguém pressionaria você aqui no clube. QUINTERO E a torcida? E a imprensa? Sem falar que Carlão tem tudo para ser presidente. Não. Não dá para ficar como treinador. FEDERICA E se eu vencê-lo na assembleia de acionistas? QUINTERO Você não vai vencer. FEDERICA 56 E se vencer? QUINTERO Aí voltamos a conversar. Mas não conte com isso. Quero descansar. FEDERICA Que seja o que Deus quiser. (pausa) REYNA já chegou. Você fala com ele? Resolva isso para mim. Ele só ouve você. QUINTERO Vou falar com ele. Mas não se iluda: ele só fala com o travesseiro dele. FEDERICA Convença o travesseiro então. QUINTERO Vamos ver. Acho difícil, já que não vou ficar. (levanta-se; estende a mão para ela) Boa sorte. FEDERICA Quando é que você volta para Londres? Em duas semanas. QUINTERO FEDERICA Você está se precipitando. QUINTERO Não quero mais amolação. Ela está irredutível. FEDERICA Posso fazer um comentário pessoal? QUINTERO Outro dia. Tenho que voltar para casa rápido. Fernando vai ter prova amanhã. Prometi estudar com ele. FEDERICA Sua mulher tem um temperamento difícil. QUINTERO Outro dia. FEDERICA A ideia de voltar para a Europa é dela? 57 QUINTERO É. Se dependesse de mim eu ficaria aqui. Mas como diretor técnico. A pressão é toda sobre o técnico. FEDERICA Fique então só como diretor. QUINTERO Isso a gente resolve depois da assembleia de acionistas. Fátima entra na sala. FÁTIMA O assistente de seu marido ligou agora há pouco. FEDERICA André foi internado? FÁTIMA Nada a ver com André. É sobre Magno. Ele vai assumir o lugar de Ricardo Sérgio na Liga Nacional. FEDERICA faz sinal a Quintero, que já ia saindo. FEDERICA Um minuto, José Roberto. (a Fátima) Ricardo Sérgio renunciou ou foi afastado? Quintero volta ao sofá e assenta-se. QUINTERO Não faz diferença. Faz? FEDERICA Claro que faz. Um afastamento seria uma ótima notícia para o futebol brasileiro. FÁTIMA (sorrindo) André pediu a ele para antecipar a saída. Para Magno assumir antes da reunião do conselho. Tem certeza? FEDERICA FÁTIMA O conselho já confirmou você na presidência. Marlowe ligou para André. Hoje é seu primeiro dia de mandato. 58 TEASER E CRÉDITOS DA MINISSÉRIE CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO, impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas respectivas torcidas nas arquibancadas. INTERVALO. PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS. INT. CORREDOR/DIRETORIA /BRASIL FC – DIA. Quintero está no corredor, próximo da segunda sala à direita. FEDERICA surge. FEDERICA Estou confirmada na presidência. Conto com você? Não dá. QUINTERO FEDERICA Como diretor você disse que dava. QUINTERO Disse que ia pensar. Mas não vai dar mesmo. Minha vida vira um inferno se eu ficar no Brasil. FEDERICA Você vai jogar por terra um projeto maravilhoso só por conta da neurótica de sua mulher? QUINTERO Você está avançando o sinal. Menos, FEDERICA. Menos. FEDERICA Ela não tem direito de interferir assim na sua vida. REYNA (abre a porta da sala de Quintero e põe a cabeça de fora) Não tem mesmo, José Roberto. QUINTERO (fechando a cara) Minha vida pessoal não diz respeito a vocês. E muito menos numa conversa de corredor. EXT. SEDE/LIGA NACIONAL DE CLUBES/RIO DE JANEIRO – DIA. Intenso movimento de jornalistas em frente ao prédio da Liga. 59 Veículos de externas para transmissão ao vivo; repórteres engravatados gravando na rua, movimento intenso de gente saindo e entrando. INT. SALA DA PRESIDÊNCIA DA LIGA NACIONAL – DIA. Carlão está sentado na cadeira do presidente, ao telefone. Uma secretária remove fotografias do presidente que saiu. Com ele, o assessor de imprensa da Liga, Rodrigo Fabiano. Uma equipe de TV está na sala, preparando-se para gravar. O repórter é Armando Sales, da Rede América; ele está lendo as anotações que fez à mão, num pequeno bloco de papel. RODRIGO Não acho adequado, Carlão. Vai pegar muito mal. Nenhuma rede pode ter uma exclusiva numa situação como essa. Nem a América. CARLÃO (ao telefone) Volta logo, Madureira. Aqui nesse lugar só tem gente incompetente. (a Rodrigo) Alguém aqui pediu sua opinião? RODRIGO Estou fazendo meu trabalho. Você decide o que quiser, mas tenho obrigação de alertar você. CARLÃO Eu falo com quem quero, na hora em que quero. Vou dar exclusiva para a rede América sim. RODRIGO Uma exclusiva com o Armando vai criar problema com as outras redes. Na coletiva vão pegar no seu pé. CARLÃO É para isso que tenho um assessor de imprensa. Você inventa uma desculpa e limpa minha barra. E não me encha mais o saco. Armando, meu filho. Estou pronto. Vamos começar? ARMANDO Claro, presidente. (ao cameraman ) Tudo pronto, Laurinho? LAURO Beleza. Rodrigo afasta-se e Armando aproxima-se da mesa de Carlão. 60 ARMANDO O senhor pretende manter o técnico da seleção? CARLÃO Não pretendo mudar nada. SCALIONI já provou que é competente. Confio nele para ganharmos a Copa do Mundo. ARMANDO O senhor vai interferir na convocação que para o amistoso contra a seleção russa em São Paulo? CARLÃO Silvinho discutiu comigo os nomes que vão ser convocados e eu aprovei todos. Faço questão de discutir cada convocação com o técnico e Silvinho entendeu isso muito bem. A última palavra é do presidente. INT. SALA DE QUINTERO/CT BRASIL FC – DIA. Quintero entra e vê REYNA sentado numa poltrona confortável, assistindo a TV. Ao vê-lo entrar, ele usa o controle remoto e desliga a TV. REYNA (sentando-se na cadeira de visitantes, diante da mesa de Quintero) Você dá muita colher de chá para a japonesa, Ed. QUINTERO Alguma vez já me meti em sua vida pessoal? REYNA Já. Muitas vezes. Se fosse ouvir você teria entrado num convento. QUINTERO (sentando-se na cadeira giratória) Só falei do que afetava sua vida profissional. REYNA É justamente esse o ponto. Sua mulher é intolerante e está interferindo na sua vida profissional. E na minha, o que é mais grave. QUINTERO Você não é casado. No dia em que se casar podemos discutir isso, OK? 61 REYNA Se você fizer o que sua mulher quer vai deixar de viver, Ed. Já conversei muitas vezes com TOMOKO. Sei do que estou falando, Ed. QUINTERO (irritado) Que estória é essa, Leo? REYNA Não é o que você está pensando, ED. Esqueceu-se de que namorei a irmã dela? QUINTERO Você namorou MITIKO? REYNA Meu recorde. Três meses. Sem intervalo para respirar. QUINTERO Por que eu nunca soube disso? REYNA E eu sei? Mas não mude de assunto. QUINTERO Depois de alguns anos de casamento você se cansa de brigar. TOMOKO quer voltar para a Inglaterra de qualquer jeito. Está obcecada com isso. Botou na cabeça que eu vou ser sequestrado e ninguém tira essa ideia idiota de lá. REYNA Faz algum sentido, devo admitir. O Rio está ficando insuportável. Mas se você ceder, amanhã ela vai exigir coisa ainda pior, Ed. QUINTERO Ela não queria vir para o Brasil. Agora é minha vez de ceder. REYNA Tem uma coisa no mundo que me enche mortalmente o saco: discutir vida de casado. OK, você venceu. Faça o que sua boneca japonesa quer. Estou defecando e andando. QUINTERO Trate de limpar a sujeira então, boca suja. Vamos então tratar do que realmente interessa. FEDERICA foi confirmada na presidência. REYNA 62 Imaginei. Estava vendo na TV a posse de Carlão na Liga. Que atraso. Sair de Ricardo Sérgio e cair em José Carlos Magno. Ninguém merece. QUINTERO Veja a coisa do lado positivo. Com ele mandando, dificilmente você vai ser convocado pelo sargentão. REYNA E quem disse que eu não quero ser convocado? QUINTERO Você quer? REYNA Claro. Para dizer NÃO na cara gorda do sargentão, eu teria que ser convocado, não acha Ed? QUINTERO Você está sendo infantil. O mundo é bem maior do que o Brasil. REYNA Sei muito bem onde está meu nariz, Ed. Sei que há técnicos como você. Mas eu não quero sair do Brasil. Adoro essa cidade. QUINTERO Agora o medo de sequestro desapareceu, hein? REYNA Sou um sujeito tão sortudo que se for sequestrado vai ser por uma mulher linda, cheia de amor para dar. A campainha do telefone celular de Quintero toca. Ele atende rápido, antes que REYNA responda. QUINTERO Quintero. O quê? Tem certeza? Pode deixar. Eu falo com ele. O que foi, Ed? Adivinhe quem era? REYNA QUINTERO (rindo) REYNA Minha cunhada japa? 63 Silvio SCALIONI. Silvinho? QUINTERO REYNA QUINTERO O próprio. REYNA O que ele queria? QUINTERO Perguntou-me se você toparia ser convocado para a seleção da Liga. O sujeito de bobo só tem a cara. Não vai convocar você para pagar mico. E você disse o quê? REYNA QUINTERO O que você ouviu. Que iria falar contigo. EXT. ASILO PARA VELHICE/SANTA TERESA/RIO – DIA. Carlão está saindo pela porta principal, acompanhado de uma freira negra, já idosa. O prédio é simples; na varanda, alguns velhinhos tomam sol. IRMÃ ALICE Não sei como agradecer o senhor, Doutor José Carlos. Sem sua ajuda já teríamos fechado as portas há muitos anos. CARLÃO Não precisa agradecer, Irmã. Não faço mais do que minha obrigação. Posso fazer uma pergunta? IRMÃ ALICE A que o senhor quiser. CARLÃO Por que a senhora não muda para um prédio mais amplo, mais novo e mais confortável? IRMÃ ALICE (preocupada) O senhor não está satisfeito com nosso trabalho? CARLÃO 64 O que é isso, irmã. Não se trata disso. Ninguém faria melhor por meus velhinhos do que a senhora. IRMÃ ALICE O dinheiro que o senhor nos dá é dividido com mais seis asilos. Prefiro pagar bem às enfermeiras e aos médicos do que investir em um prédio. Essa casa é boa, todos nós nos apegamos a ela. CARLÃO Há quantos anos a senhora está aqui, Irmã? IRMÃ ALICE Desde que eu deixei o convento. Sessenta e cinco anos, doutor José Carlos. CARLÃO Um dia a senhora vai me receber aqui. IRMÃ ALICE O que é isso, doutor José Carlos. O senhor é um homem rico. CARLÃO Dinheiro vai e vem, Irmã. Vou abrir uma conta no banco para o asilo e aplicar um dinheiro para o futuro. A senhora tem alguém de confiança para cuidar disso? IRMÃ ALICE (ri) Alguém mais jovem, o senhor quer dizer. CARLÃO De forma alguma, Irmã. A senhora ainda é uma mocinha. IRMÃ ALICE Vou fazer 94 anos. Gente da minha cor não aparenta a idade. Mas pode ficar tranquilo. Minha neta veio trabalhar comigo. Ela é assistente social e é ela que vai ficar em meu lugar quando a idade chegar. CARLÃO A senhora pensa em tudo, hein? IRMÃ ALICE Faço o possível, doutor José Carlos. (pausa) O que eu digo para aquele jornalista? CARLÃO Não diga meu nome em hipótese alguma, Irmã. Por favor. Não quero que minha modesta ajuda seja divulgada na imprensa. 65 Tenho muitos inimigos. Vão dizer que eu estou comprando um lugar no céu. IRMÃ ALICE Eu compreendo. O senhor está certo. Mas muita gente poderia ajudar outros asilos se soubesse que o senhor é nosso amigo muito caro. CARLÃO Prefiro que meu nome não apareça, Irmã Alice. Preciso ir embora. Na semana que vem meu assistente Madureira volta de férias e vem falar com sua neta. Carlão vai até os velhinhos que estão na varanda e abraça e beija cada um deles. Os idosos estão debilitados, mas olham com gratidão e carinho para Carlão; ele entra no carro que o aguarda em frente ao asilo (o motorista abre a porta para ele). O carro sai. Carlão olha com carinho para Irmã Alice, que se despede com um gesto com a mão direita. INT. SALA/QUINTERO/CT BRASIL FC – DIA. REYNA está sentado no sofá que fica diante da mesa de Quintero, que está servindo-se de um uísque. QUINTERO Sirvo um para você? REYNA Como é que você sabe que eu não vou treinar hoje? QUINTERO Você é movido pela lei do menor esforço. Tendo uma boa desculpa não treina. REYNA Quero um sim. Preciso estar turbinado quando o sargentão ligar. QUINTERO Estou com a impressão de que subitamente seu bom humor evaporou. REYNA Nada disso, Ed. Estou pensando. QUINTERO O dia promete. Mudou de ideia? Vai topar a seleção da Liga? 66 REYNA Terminei minha residência. Já posso clinicar. Não me respondeu. QUINTERO REYNA Você é que não prestou atenção. Respondi bem respondido. QUINTERO. Parabéns. Você conseguiu. Sei muito bem o quanto você lutou para isso. Fico orgulhoso de sua conquista. REYNA Não fique. Não foi difícil como você imagina. QUINTERO Sua autoconfiança é irritante. É claro que foi difícil conciliar um curso exigente como o de Medicina com o futebol e com suas gandaias. REYNA Não tenho culpa de ser bom em tudo o que faço. Os fatos me dão razão. QUINTERO Estou curioso para saber como é que um sujeito tão inteligente como você resolver essa encrenca. O convite para a seleção da Liga é só o começo. Ed. (enfatiza “Ed”: está brincando com Leo) REYNA Não existe encrenca nenhuma. É evidente que não vou aceitar a convocação. Não tenho a menor intenção de fazer parte da Família SCALIONI. QUINTERO Você está sem contrato. REYNA Estou. QUINTERO Silvinho sabe que você não tem preparo físico para jogar mais do que um tempo. REYNA O Brasil inteiro sabe. Mas resolveu convocar-me assim mesmo. Ele tocou nesse assunto com você? 67 QUINTERO Nem de longe. Só perguntou se você toparia a convocação. REYNA O sargentão sabe que eu não pretendo deixar de fumar. Nem vou abrir mão da balada. Nem por isso deixei de fazer muitos gols no time que ele treinou. QUINTERO Claro que sabe. Mas nem tocou nesse assunto comigo. REYNA O que significa que vai falar disso comigo. QUINTERO Ele vai enquadrar você. REYNA Ou eu vou enquadrá-lo. QUINTERO Como diz você, o Brasil inteiro sabe como é a família SCALIONI. REYNA O que me leva a concluir que ele sabe que eu também sei. QUINTERO Ele sabe mais uma coisa sobre você. Sabe? REYNA QUINTERO Sabe que sua maior ambição é ser considerado o maior jogador do mundo. REYNA E como é que ele soube disso? Eu contei. INTERVALO. QUINTERO PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS. EXT. HOTEL CINCO ESTRELAS DE SÃO PAULO – NOITE. São 19h. O movimento é intenso diante de um sofisticado hotel localizado na zona nobre de São Paulo. 68 Carros de externas, populares isolados pela segurança da Liga Nacional e pela PM, refletores acessos. Mas só um repórter está a postos para gravar: Armando Sales, da Rede América. Um último jogador está chegando: é REYNA, em seu Range Rover. Ele desce do carro e dá um abraço carinhoso no manobrista. É ovacionado pelos fãs e, principalmente pelas fãs. FÃS (em uníssono) Lindo! Lindo! Lindo! Lindo! ARMANDO Leonardo! Ei, aqui, Leonardo! REYNA! Sou eu, Armando. Da América! REYNA para perto de Armando. REYNA Tudo bem com você, Ed? ARMANDO Show de bola. Vamos gravar? REYNA Onde estão seus colegas? (olha em volta, não vê ninguém) Porque eles não estão aqui? ARMANDO (a Lauro) Vamos lá, Laurinho. Agora! (a REYNA) Satisfeito com a convocação, Leo? Lauro aponta a CAM para REYNA, que não fala absolutamente nada. Fica olhando para a objetiva e só. ARMANDO Corta! O que foi Leo? Qual é o problema? REYNA O problema é você, Ed. É muita falta de ética você estar aqui sozinho. Aposto que os outros foram impedidos de estar aqui. ARMANDO Pega leve, Leo. O doutor José Carlos Magno autorizou exclusiva para a Rede América. 69 REYNA (afastando-se) Então vá gravar com ele, Ed. Amontoados entre os fãs do selecionado, os outros repórteres aplaudem REYNA. Armando fica sem graça, visivelmente contrariado. REPÓRTER UM Dá-lhe, REYNA! Parabéns, garoto! REPÓRTER DOIS Parabéns, Leo! É assim que se faz. ARMANDO (arrogante, quando Leo já estava distanciando-se) Você vai ter problemas, garoto. Isso não vai ficar assim. Apesar do barulho, REYNA ouve a ameaça de Armando. Volta-se e se aproxima dele. REYNA Claro que não vai. Para delírio dos fãs e dos demais repórteres, Leo aproxima seu rosto do rosto de Armando e dá um beliscão no nariz dele, sem muita força. CORTA PARA CLOSE-UP de uma notícia de primeira página no Jornal Folha do Rio, com a mãe de REYNA apertando o nariz de Armando. IMAGEM CONGELADA DA FOTO: A MÃO DE REYNA APERTANDO O NARIZ DE ARMANDO. DE VOLTA Flashes piscam enlouquecidamente. Armando, surpreso, não resiste e começa a rir. ARMANDO (rindo, bem humorado) Esse sujeito é maluco. Só pode ser. REYNA entra pela porta principal de acesso ao hotel. INT. CORREDOR QUE DÁ ACESSO AO RESTAURANTE/HOTEL – NOITE. 70 Carlão está lendo a relação de convocados, feita por Silvinho (62 anos, alto e magro), que está ao lado dele. SILVINHO Tudo certo? O que achastes da minha escolha? CARLÃO (com dificuldade para ler, procura e não acha seus óculos) Do que você está falando, Silvinho? SILVINHO Tu não prestares atenção no que te disse depois da tua coletiva? CARLÃO Estava tumultuado, não prestei. E daí? SILVINHO Marcelo Paraná não pode se apresentar. Teve uma entorse. Chamei um atacante seu. CARLÃO Atacante meu? Eu não tenho nenhum atacante. SILVINHO Do seu time, Carlão. Leonardo REYNA. CARLÃO O quê? Você convocou aquele moleque sem falar comigo? SILVINHO Tive que convocar um substituto para Marcelo. Não deu tempo de falar contigo. CARLÃO Pois pode desconvocar. Aquele filho da mãe não joga na seleção enquanto eu estiver por aqui. SILVINHO Agora é tarde. Ele já deve estar chegando. CARLÃO Problema seu. Ou desconvoca ou você cai fora com ele. SILVINHO (pega um celular e tecla um número) Um minuto. Por favor. Só um minuto. CARLÃO Não tem conversa. Não adianta chamar Ricardo Sérgio. 71 SILVINHO Coronel Santana? Sou eu. Silvinho. Por favor, me deixe falar com o presidente. CARLÃO (pálido) Que presidente? SILVINHO (faz sinal com a mão direita) Presidente? Tu estás bem? É Silvinho. Tu tinhas razão. Carlão disse que vai demitir-me. Sim. Está. Tu falas com ele? Silvinho entrega o telefone móvel a Carlão. CARLÃO (a voz falhando) Sim?! É ele mesmo. Presidente? Bom dia, excelência. OUVIMOS gritos ao telefone. Carlão fica mudo. CORTA PARA uma imagem externa do Palácio do Planalto. CLOSE-UP da boca de um homem que usa bigode ao telefone. PRESIDENTE Estamos entendidos? DE VOLTA AO CORREDOR DO HOTEL. CARLÃO Claro, senhor presidente. Claro que estamos. Pode ficar tranquilo. Com um olhar gélido, Carlão devolve o celular a Silvinho, que sorri para ele, triunfante. PRESIDENTE Ninguém é melhor amigo do que eu. Nem pior inimigo. Você nunca mais vai dirigir um clube no Brasil. E não vai estar aqui na Copa do Mundo. Mas sou um sujeito generoso. Dispense o doutorzinho e você fica. INT. SAGUÃO DO HOTEL/SÃO PAULO – NOITE. REYNA entra e é recebido por MADRUGA, assistente de SCALIONI. MADRUGA (sem estender a mão) 72 Seja bem-vindo, Leonardo REYNA. O senhor está atrasado dois minutos. REYNA Segundo o seu relógio, Ed. Mas o senhor Breitling (mostra o relógio: CLOSE-UP) aqui diz que estou sendo absolutamente pontual. MADRUGA O que o faz pensar que o meu é que está atrasado? REYNA (sem afetação) Leon Breitling começou a fabricar os relógios mais pontuais do mundo em 1884, na cidade suíça de Saint-Imier. Com todo respeito pelo fabricante do seu relógio, fico com as obras-primas do senhor Breitling. MADRUGA (rindo; estendendo a mão direita) Muito prazer. Hamilton Madruga. Sou assistente do prof. Silvinho. REYNA Eu sei. O prazer é meu, Ed. Devo ir direto ao restaurante? MADRUGA Sim, claro. Pode me chamar de Madruga mesmo. (pausa) Estava esperando justamente você. Vamos lá. REYNA e Madruga seguem na direção do restaurante principal do hotel, que foi reservado para a seleção. Um funcionário do hotel (baixinho, esquelético) aproxima-se e timidamente pede autógrafo. REYNA olha para Madruga e ele aprova, com um gesto de cabeça. REYNA Qual é seu nome, Ed? FUNCIONÁRIO Felipe. Felipão para os amigos. Está certo, Ed. REYNA O rapaz lê o que REYNA escreve e fica exultante. FELIPÃO Muito obrigado, Leo! 73 MADRUGA O que foi que você escreveu? REYNA (sorrindo; piscando) O nome de um remédio muito bom para abrir o apetite. INT. RESTAURANTE DO HOTEL/SÃO PAULO – NOITE. O restaurante é amplo, com as mesas em formato de U. Nas posições principais, Carlão e Silvinho. Leo assenta-se no único lugar vago, ao lado de seu colega de clube, Lucas. Madruga senta-se ao lado de Silvinho, depois de falar algo no ouvido dele e mostrar o relógio. Silvinho balança a cabeça, olha na direção de REYNA e faz um cumprimento quase imperceptível. Carlão levanta-se e pega o microfone sem fio que estava sobre a mesa. CARLÃO (sorrindo, simpático) Sejam todos bem-vindos. Inclusive eu mesmo. Risos na mesa. CARLÃO Começamos hoje a guerra que só vai terminar em julho do ano que vem, quando o Brasil será mais uma vez o campeão do mundo. Jamais perdi uma briga na vida e não pretendo perder a mais importante de todas elas. Nem todos vocês que estão aqui hoje vão estar na Copa do Mundo. Carlão faz uma pausa, para dar mais efeito dramático a sua fala. CARLÃO É bom entender isso. Ninguém tem vaga garantida. Nem o técnico. Eu estarei lá, porque meu mandato vai até o final do ano que vem. Quem for acomodado ou não entender que hoje estamos começando uma guerra contra o resto do mundo vai sair logo. Prometo que vai. Quem der sangue, quem colocar a pátria nas chuteiras vai ter lugar no meu time (olha para Silvinho). Alguém quer perguntar alguma coisa? Silêncio absoluto. REYNA levanta-se. Eu quero. REYNA 74 CARLÃO Pergunte. (de cara fechada) A tensão está no ar. REYNA (sério) A que horas será servido o jantar? Risadas gerais. CARLÃO Boa pergunta. (olha para ALCIDES, diretor administrativo da Liga) Alcides? Alcides abre as portas e os garçons entram com as bandejas. O clima se descontrai. INT. QUARTO DO HOTEL/SÃO PAULO – NOITE. REYNA está deitado, lendo um livro grosso: um romance de capa dura, em inglês. Ele tem um companheiro de quarto: o centroavante Alberto, titular absoluto da seleção há cinco anos, jogador do adversário local do Brasil, o Atlético do Rio. Alberto está usando o celular, teclando uma mensagem. ALBERTO É verdade que você só tem preparo físico para jogar um tempo? REYNA (para de ler) Normalmente jogo só meia hora, Ed. (Acende um charuto) Até hoje foi suficiente. Não incomodo mesmo você? ALBERTO Nem um pouco. Até gosto do cheiro. É cubano? REYNA Puro de origem. Sou muito amigo de um sobrinho de Fidel. Ele me manda duas caixas a cada trimestre, Ed. ALBERTO O que o professor Silvinho falou sobre isso? REYNA Isso o quê? O charuto ou jogar só meia hora? 75 ALBERTO As duas coisas. Sem falar nas baladas. Você sai toda semana numa coluna social enchendo a cara. REYNA A vida não tem graça quando se está sóbrio. ALBERTO Concordo plenamente. Mas precaução e caldo de galinha nunca são demais. É sua primeira vez, garoto. REYNA É a minha natureza, Ed. ALBERTO Disso o professor Silvinho não vai gostar. REYNA Também não gosto de algumas coisas que ele faz. ALBERTO Inacreditável. Aliás, sua convocação é um milagre da natureza. Você contraria tudo o que o professor espera de um atleta. REYNA Deve gostar de meu futebol. Carlão não me suporta e ele me convocou assim mesmo. (pausa) Isso aqui está parado demais, Ed. O que acha de trazermos umas meninas para brincar de médico? ALBERTO E você acha que o professor deixa? Tem segurança para tudo quanto é lado. Alcides usa até câmera para vigiar a gente. REYNA (falando baixo) Tem um sujeito que trabalha aqui que ficou de arrumar duas meninas para nós. Vou dar quinhentos dólares a ele. ALBERTO Está falando sério? REYNA Sério, Ed. Marquei 11 horas. (olha para o relógio) Material de primeira qualidade, Ed. ALBERTO Uma birita vai fazer falta. Sem falar no azulzinho. 76 REYNA O champanhe eu garanto. O azulzinho eu vou ficar devendo, Ed. Batidas na porta. REYNA (a Alberto) Será que vieram mais cedo? (na direção da porta) Quem é? MADRUGA Madruga. (em OFF) Alberto levanta-se rápido e abre a porta. ALBERTO Grande Madruga! O que você manda, meu peixe? MADRUGA O chefe quer falar com o doutor REYNA. Ele já dormiu? INT. CORREDOR DO HOTEL – NOITE. No corredor, dois seguranças guardam os dois extremos e um está postado diante do elevador. O funcionário esquelético a quem REYNA deu autógrafo sai do elevador de serviço e fica surpreso ao ver REYNA. FELIPÃO (fala alto, para certificar-se de que os seguranças estão ouvindo) Boa noite, senhor REYNA. Está satisfeito com o quarto? REYNA Foi bom encontrar você, Ed. Faça o favor de mandar alguém trocar a roupa de cama. Tenho alergia a algodão. FELIPÃO Perfeitamente, senhor. Vou providenciar. REYNA (entra no elevador social com Madruga) Volto logo, Ed. INT. SUITE DO TÉCNICO SILVINHO/HOTEL – DIA. REYNA e Madruga entram na espaçosa suíte em que está o corpulento treinador. Silvinho está de calção e camiseta. SILVINHO 77 Entre, Leo. Não tivemos oportunidade de conversar. REYNA Achei que ia receber uma ligação sua antes desse encontro aqui, Ed. SILVINHO Madruga disse que tu chamas todas as pessoas de Ed. Pitoresco isso, hein, guri? REYNA É um costume antigo. Incomoda você? SILVINHO Nem um pouco. (a Madruga) Se quiseres ir embora, fiques à vontade, Madruga. MADRUGA (saindo) Boa noite. REYNA Boa. SILVINHO (a Madruga) Boa noite, irmão. (a REYNA) Por que tu achas que te convoquei? REYNA Só existe uma possibilidade. SILVINHO E qual seria ela? REYNA Por alguma razão você queria afrontar seu novo chefe. SILVINHO (dá uma gargalhada sonora) Tu és mesmo inteligente, guri. REYNA Você sabe a briga que comprou. Carlão é um verme perigoso. SILVINHO Devo concluir que tu gostas de brincar com o perigo? REYNA Parece que temos isso em comum, treinador. 78 SILVINHO Foi um risco calculado. Meu padrinho é forte. Era preciso mostrar ao perigo, que não vou aceitar pressão dele nem de empresários. REYNA Mesmo que isso signifique um problema a mais? Eu não sou como os outros. Nem sei se vou continuar no futebol. Ainda não resolvi se vou deixar a Medicina. SILVINHO A quem queres enganar, guri? É claro que já resolveste. REYNA É. Parece que resolvi mesmo. Como é que nós ficamos? SILVINHO Já consegui o que queria com tua convocação. Eu não preciso mais de ti. Tu precisas de mim para alcançar o que mais desejas. REYNA Manter-me na seleção pode ser uma forma interessante de demonstrar independência. O Brasil inteiro sabe que Carlão me odeia. SILVINHO Há outras formas, guri. Sem tanto risco. O recado já foi dado. REYNA Eu sou o melhor batedor de faltas que o Brasil já viu. Cobro escanteio com perfeição. Coloco a bola onde quero, sem dificuldade. SILVINHO Eu sei. Não duvido dos ganhos. Mas você vai jogar meus jogadores contra mim. INTERVALO. PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS. INT. SUÍTE DE SILVINHO/HOTEL – NOITE. Continuação da cena anterior. REYNA Por que eu faria isso? SILVINHO 79 Não digo que farias isso propositalmente. Mas sendo quem tu és, tua presença seria uma contestação à minha autoridade e isso eu não posso admitir. REYNA Sou tão bom cabeceador quanto Alberto. Se entrar no lugar dele, você continua com uma jogada aérea eficiente. SILVINHO Por mais que você seja útil. (pausa) Tu és indisciplinado e só jogas meia hora por partida. REYNA O que não me impediu de ser o artilheiro do campeonato da Liga Nacional. Média de 2,5 gols por jogo. SILVINHO Tu és inteligente demais. Vais criar problemas com meus jogadores. Sem falar nos prejuízos à minha reputação. REYNA Assumo o compromisso de ficar na minha. Não quero comprar briga com ninguém. SILVINHO E as baladas? E os charutos? As expulsões? Em hipótese alguma aceito esse tipo de coisa. Nem que tu fosses Pelé eu aceitaria, guri. REYNA Prometo a você um gol por jogo se me deixar bater as faltas e os escanteios. Se não cumprir a promessa, faço o que você quiser. Mas vou cumprir. SILVINHO É uma questão de princípios. Você vai ter que se enquadrar nos meus critérios. Não admito nenhuma exceção. REYNA Assim não há mais o que discutir. Você não é o sujeito inteligente que pensei que fosse. Boa noite, treinador. Levanta-se para ir embora. Silvinho deixa ele se aproximar da porta e fala. SILVINHO Não estragues uma carreira promissora por infantilidade, guri. REYNA 80 Promissora? Tenho 24 anos e nunca treinei de verdade enquanto ainda estava na Medicina. Recebi propostas de três grandes clubes da Europa. SILVINHO Quero que tu te comportes enquanto estiveres aqui na seleção da Liga. Fora daqui não é problema meu. O que tu achas? REYNA Você me pede para deixar de ser eu mesmo. Isso é inegociável. SILVINHO Tu és mesmo cabeça dura, guri. Tu não passas de um garoto mimado que nunca aprendeu o que é respeitar limites. INT. CORREDOR DO HOTEL – NOITE. REYNA caminha na direção do quarto dele. Do elevador de serviço sai uma empregada uniformizada do hotel, idosa, empurrando com dificuldade um carrinho de mão mais comprido do que os usuais. REYNA É a senhora que vai trocar a roupa de cama? EMPREGADA Eu mesma. Vou ajudá-la, vovó. REYNA EMPREGADA Não é preciso, senhor. Eu consigo. REYNA (olha para o segurança) Você aí, fortão. Seja um bom gorila e dê uma força para a vovó aqui. O segurança empurra o carro. SEGURANÇA Que carrinho pesado, vovó. O que a senhora leva aí? EMPREGADA Roupa de cama para todos os quartos, meu filho. 81 Chegam ao quarto de REYNA. REYNA Deixe comigo, fortão. O segurança volta ao lugar dele. REYNA entra no quarto empurrando o carrinho, seguido pela empregada. INT. QUARTO DE REYNA E ALBERTO/HOTEL – NOITE. Já no quarto, REYNA fecha a porta e abre as portas do carrinho. De dentro saem três mulheres lindas, de biquínis. Uma delas pega um balde de champanhe. Caraca! ALBERTO (grita) EMPREGADA Fale baixo, menino! Se vocês fizerem barulho o Felipão vai me enforcar. EXT. AVENIDA PAULISTA/SÃO PAULO – DIA. O dia está amanhecendo. A imagem do sol incide sobre os majestosos edifícios da avenida: é um belo espetáculo. EXT. HOTEL CINCO ESTRELAS/SÃO PAULO – DIA. Um carro sedan Mercedes preto, último modelo, para em frente à entrada principal. O motorista (uniformizado) sai e abre a porta traseira. Um sujeito bem-vestido, cerca de 40 anos, sai do carro e caminha na direção da recepção. É Juan Manuel de Noriega, famoso empresário de futebol. NORIEGA (leve sotaque espanhol) Bom dia. Sou aguardado pelo doutor José Carlos Magno. CONCIERGE Bom dia, senhor. A quem devo anunciar? Noriega. NORIEGA CONCIERGE 82 Perfeitamente. (pega o telefone interno) Bom dia. É da recepção. O senhor Noriega está na recepção. Pois não. (a Noriega) O senhor pode subir. O doutor Magno está na suíte presidencial. Último andar. Obrigado. NORIEGA Noriega vai para o elevador. O diretor administrativo, Alcides, está a poucos metros, conversando com sua assistente, Bruna. ALCIDES O ônibus já está aí? BRUNA Chegou na hora marcada, sem um minuto de atraso. Tudo pronto para o traslado. Os batedores da Polícia Militar estão a postos. ALCIDES Vá para o centro de treinamento e cuide para que esteja tudo certo. O doutor Lamego já está lá? BRUNA Já. Já chequei com todo mundo, Dr. Alcides. Tudo perfeito, sem furo. E a imprensa? ALCIDES BRUNA Rodrigo está com eles. O assistente dele já foi para o CT. ALCIDES Não quero que ninguém fale com os jogadores nem com a comissão técnica. Só imagens do pessoal entrando no ônibus. BRUNA Pode ficar tranquilo. Nenhum jornalista entra no CT até Rodrigo autorizar. Posso ir? ALCIDES Pode. Eu vou mais tarde. Obrigado, Bruna. Bom trabalho. INT. SUÍTE PRESIDENCIAL DE CARLÃO – DIA. 83 Noriega entra na suíte e é recebido por uma loura linda, alta e magra, vestida com uma saia curta, de camisetinha. É BIRGIT, alemã de 34 anos, namorada de Carlão. BIRGIT (beijando-o) Bom dia, Juan. Tudo bem com você? NORIEGA Um pouco cansado, mas tudo bem. Carlão já acordou? BIRGIT Entrou para o banho agora mesmo. NORIEGA Quanto tempo nós temos? Dez minutos. Ótimo. BIRGIT NORIEGA Noriega aperta o corpo de BIRGIT contra o dele; beijam-se com paixão. Ouvem um ruído e afastam-se rápido. Carlão entra ainda molhado, de roupão, com os cabelos molhados. CARLÃO Vamos tomar o café de uma vez. Tenho pouco tempo. Saia, menina. BIRGIT sai sem falar nada. Carlão mostra uma mesa no canto da sala, preparada para o café da manhã. Sentam-se. CARLÃO Ele ainda não assinou contrato com o Brasil. Chequei isso ontem à noite. Nem vai assinar. Ele só fica se Quintero ficar. NORIEGA Como é que você pode ter tanta certeza de que ele não vai ficar? Eu sou empresário dele e não tenho nenhuma confirmação. CORTA PARA 84 NA SALA (VAZIA) DE QUINTERO, MADUREIRA, secretário de Carlão, coloca um envelope na pasta do treinador, verificando com cuidado se ninguém está vendo o que ele faz. DISSOLVE PARA TOMOKO, mulher de Quintero, sempre olhando para os lados, abre a pasta de Quintero e vê várias fotos, em tamanho grande, de FEDERICA. FEDERICA está de maiô, em poses naturais. Um belo corpo, que TOMOKO observa com evidente irritação. CARLÃO Madureira mexeu os pauzinhos. A essa altura a japa tem certeza de que o marido está enrabichado pela italiana. E é ela quem manda. Se você diz. NORIEGA CARLÃO O filho da mãe do doutorzinho está com a faca e o queijo na mão. Você falou com os europeus? NORIEGA Falei com os espanhóis. Eles acreditaram um mim. Não foi difícil convencê-los. Mas eles já falaram com REYNA. CARLÃO Ótimo. É melhor assim. Deixe o doutorzinho achar que vai poder escolher. O tombo vai ser maior. E os ingleses? NORIEGA Ninguém quer saber de REYNA na PREMIER LEAGUE. Falaram com os espanhóis e caíram fora. CARLÃO Tem certeza? NORIEGA Absoluta. Os ingleses não podem nem ouvir de cocaína. Falei que a japonesa também cheira. Ficaram horrorizados. Perderam uma fortuna com aquele sérvio viciado. Mas tem uma coisa que me preocupa. CARLÃO O quê? 85 NORIEGA Será que nós não estamos dando um tiro no pé? Podemos ganhar três milhões de euros sem fazer esforço. E você se livra de um incômodo. REYNA confia em mim. Abrir mão desse dinheiro é burrice. CARLÃO Vamos ganhar duzentas vezes mais agora que eu assumi a Liga. Um homem na minha posição não pode ser humilhado. Ninguém vai me respeitar se eu não desmoralizar esse filho da mãe. NORIEGA (irônico) Foi para desmoralizar que ele foi convocado? CARLÃO Vai ser só dessa vez. O filho da mãe do Silvinho me pegou desprevenido. Mas já estou cuidando dele. Não preciso mais do que de dois meses para mandar esse gaúcho babaca de volta para Pelotas. EXT. HOTEL CINCO ESTRELAS/SÃO PAULO – DIA. Os jogadores estão isolados dos fãs por policiais e seguranças da Liga. Um a um, eles vão saindo do hotel e entrando no ônibus que vai levá-los ao CT da Liga. Flashes de máquinas fotográficas e refletores das TVs iluminam a entrada, ao som dos gritos dos fãs. A maioria usa fone de ouvido, conectados a celulares; REYNA não: carrega um livro bem grosso. Silvinho, o auxiliar Madruga e o preparador físico ALMADA, estão entre os jogadores. Usam o uniforme esportivo da seleção da liga, no tom verde e amarelo. Os três últimos a entrar trazem tamborim, bateria e chocalhos: é a turma do pagode. Esses três últimos são ovacionados: Alberto (negro) está entre eles. INT. ÔNIBUS DA SELEÇÃO – DIA. Uma verdadeira algazarra instalou-se no ônibus: o pagode corre solto, atraindo a maioria dos jogadores. REYNA está bem na frente, dormindo a sono solto, sem se incomodar com o barulho. Madruga, sentado ao lado de Silvinho, tenta cochilar, sem conseguir. MADRUGA Como é que esse sujeito consegue dormir numa bagunça dessas? SILVINHO 86 Será que ele está dormindo mesmo? MADRUGA Roncando desse jeito? Só pode estar. VEMOS REYNA profundamente adormecido ao lado de Lucas, companheiro do Brasil FC. LUCAS Ele está dormindo sim, Madruga. Leo tem uma facilidade inacreditável para dormir. Ele sempre tira um cochilo no vestiário, antes de entrar em campo. SILVINHO É bom descansar mesmo. Podes apostar. EXT. RUAS DE SÃO PAULO – DIA. O ônibus da seleção passa pelas principais vias da cidade, despertando a atenção dos populares. Quatro batedores da PM seguem à frente; atrás do ônibus, duas vans cheias de segurança e carros da imprensa. Os jogadores acenam das janelas, tratando os fãs com carinho. INT. ESTÚDIO DE RÁDIO/RÁDIO CARIOCA – DIA. Um técnico de sonoplastia faz o sinal para o início da transmissão, entrando no ar a vinheta do programa de Sobrenatural de Almeida. Antes de vermos o rosto do apresentador do programa, CLOSE-UP do rádio do motorista que conduz o ônibus da seleção da liga brasileira de futebol e, em seguida, PLANO APROXIMADO do motorista. PONTO DE VISTA DO MOTORISTA revela que estamos a bordo do ônibus da seleção: vemos os batedores da PM e os acenos dos fãs. Na trilha sonora, a vinheta do programa de SOBRENATURAL, com um coro feminino, relâmpagos e sons de uma noite mal assombrada. CORO Sobrenatural de Almeida! Sem mistérios no mundo da bola! DE VOLTA AO ESTÚDIO. VEMOS o apresentador de costas: não dá para perceber como é Sobrenatural de Almeida. A imagem do apresentador vai ser intercalada com cortes para vários CLOSES de diversos rádios diferentes, em ambientes diferentes, para sugerir que o programa tem elevada audiência. 87 A imagem mostrará que o apresentador usa um aparelho misturador de vozes, para dar o tom ligeiramente fantasmagórico que o espectador vai ouvir. SOBRENATURAL DE ALMEIDA Na apresentação dos convocados para a seleção da Liga ontem à noite em São Paulo, uma surpresa que nem mesmo Sobrenatural de Almeida pode prever: lá estava o impávido doutor Leonardo REYNA. Por que a surpresa, perguntará um dos cinco ouvintes deste programa? Por que até as pedras do Arpoador sabem que o novo presidente da Liga é inimigo pessoal do craque do Brasil Futebol Clube, que, por sinal, está sem contrato em seu clube. Ou Carlão levou o maior susto da vida dele e os dias do treinador Silvinho estão contados, ou Carlão Malvadeza transformou-se em Carlinhos Paz e Amor. VINHETA COM O CORO. CORO Você decide! Você decide! Você decide! SOBRENATURAL DE ALMEIDA Por que razão terá Silvinho SCALIONI convocado um notório desafeto do Doutor Carlos Magno, logo no primeiro dia de um mandato que provavelmente irá durar mais de dez anos? VINHETA COM O CORO. CORO Você decide! Você decide! Você decide! SOBRENATURAL DE ALMEIDA Ou Silvinho resolveu medir forças com Carlão ou sabe que vai sair e resolveu sair atirando. VINHETA COM O CORO. CORO Você decide! Você decide! Você decide! VEMOS então que Sobrenatural de Almeida é uma mulher: a jornalista Isabela Falcão. EXT. CENTRO DE TREINAMENTO DA SELEÇÃO DA LIGA/SP – DIA. José Roberto Quintero chega ao CT, num taxi. Os jornalistas correm para ele. Ele força o passo e não aceita ser pressionado pelos repórteres. Só responde a duas perguntas. 88 REPÓRTER UM José Roberto! Você vai substituir Silvinho SCALIONI? REPÓRTER DOIS Quinteroooo! Você veio contratar Silvinho SCALIONI para o Brasil Futebol Clube? QUINTERO Devagar pessoal, devagar com especulações. Eu vim a convite de Silvinho, para trocar ideias com ele. Outros técnicos virão, é assim que ele trabalha. Eu estou sem contrato e não fico mais no Brasil. Depois Silvinho fala com vocês. Com licença, com licença. INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT SELEÇÃO DA LIGA – DIA. No alto das arquibancadas, Silvinho e Quintero conversam tranquilamente. Quatro jogadores batem bola, descontraídos. Muitas bolas estão espalhadas pelo campo. Integrantes da comissão técnica preparam aparelhos que serão usados no treinamento físico que vai começar logo depois que os jogadores saírem dos exames médicos. Imagens de REYNA e de outros jogadores fazendo exames de resistência física, cardiológicos, laboratoriais, de imagem; todos enfim. Quintero e Silvinho conversam, em OFF. QUINTERO Ele já fez os exames médicos? SILVINHO Deve estar fazendo agora. Só aqueles fizeram. A gauchada veio cedinho para cá (ri). Liberei, achei bacana da parte deles. QUINTERO O velho deve estar querendo matar você. SILVINHO Pois vai ter que guardar o punhal. Enquanto o presidente estiver em Brasília ninguém me tira daqui. QUINTERO Melhor. Sei que você não tem apego a esse cargo. Não será hora de mudar? O futebol europeu hoje é muito superior ao nosso. Há um longo caminho até o nível de excelência da Espanha e da Alemanha. 89 SILVINHO Tu sempre foste correto comigo, Zé. Perdeste duas oportunidades de pegar meu lugar e jamais agiste com deslealdade. Sei que tu falas com boa intenção. Mas discordo. O futebol brasileiro sempre foi e continua sendo o melhor do mundo. As imagens dos exames médicos dissolvem-se em imagens dos treinamentos físicos. Um treinamento puxado, que exige muito dos jogadores. ACOMPANHAMENTOS REYNA em particular, constatando que ele, mais do os outros está sendo muito exigido. Depois de muitos planos do treinamento coletivo, as imagens DISSOLVEM para apenas REYNA em campo, fazendo mais exercícios físicos. Ele está ensopado de suor, inteiramente exausto, mas não deixa de fazer os exercícios. SILVINHO Teu garoto tem fibra. QUINTERO Desse jeito ele vai estar morto antes do primeiro treino com bola. SILVINHO Bobagem. O guri tem o coro duro. Mas quero que tu me digas uma coisa. QUINTERO Se você prometer que vai pegar leve com Leo, eu prometo. Já começo a me sentir culpado. O cara está quase morto, Silvinho. Silvinho usa um apito e o preparador físico ALMADA dá folga a Leo. Depois de ver os sinais de Silvinho, Almada prepara o treinamento de cobranças de falta, colocando um anteparo que é usado para substituir a barreira. No gol, está Lucas. Leo molha o rosto com água, respira com dificuldade. Logo começam as cobranças: Leo tem aproveitamento extraordinário. Coloca a bola onde quer, como se não houvesse barreira. Cortes rápidos mostram diversas cobranças. Depois ele vai treinar cobranças de escanteio. Faz vários gols olímpicos, para raiva de Lucas. 90 Finalizando o treinamento, Leo faz cobranças de pênalti. Não erra uma única cobrança. IMAGENS DE SILVINHO E QUINTERO. SILVINHO O médico garantiu que ele aguenta. Tu podes ficar tranquilo, Zé. Mas diga-me. Qual é o ponto fraco de teu guri? QUINTERO No sentido que você quer saber, não sei se ele tem. Se ele tem um, desconheço qual é. SILVINHO Toda pessoa tem um ponto fraco. Preciso saber para dobrar a espinha desse garoto arrogante. QUINTERO Leo é um sujeito muito acima da média. Tudo que ele faz, faz com extrema facilidade. Fui ver as notas dele na Faculdade de Medicina. Nunca tirou menos do que 9,5. Nunca estudou. Só assistia às aulas. Quer ser o melhor do mundo e vai ser. Mas do jeito dele. SILVINHO É esse o ponto. O jeito dele não serve para mim e ele se recusa a adaptar-se. Ele é que tem que dançar a minha música e não eu a dele. Uma pena. Não vou mais convocá-lo. INTERVALO. PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS INT. QUARTO DE HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE. Alberto está deitado na cama, lendo uma revista de nus femininos, com fone de ouvido. REYNA está no quarto, diante da tela de um laptop, que está no colo dele. Conversa com NORIEGA, via Internet: PLANO APROXIMADO de Leo e CLOSEUP da tela do laptop. REYNA Como assim, JUAN? Não entendi. NORIEGA Os caras esfriaram, foi isso. De uma hora para outra ninguém me atende ao telefone. REYNA 91 Isso não faz sentido, Ed. Foram eles que me procuraram. Você chegou a tratar de cifras? NORIEGA Em nenhum momento falei de dinheiro. Sempre deixo a grana para o final. Primeiro a duração do contrato, os direitos de imagem. Eu expliquei a você. REYNA Mas todos os três desistiram ao mesmo tempo? Tem que ter alguma coisa errada nessa estória, Ed. NORIEGA Não foi exatamente ao mesmo tempo. Provavelmente eles conversaram entre si. Os jornais espanhóis deram a negociação com destaque. REYNA Talvez seja uma estratégia para evitar um leilão. Faz sentido, Ed? NORIEGA Pode ser. Vamos ver como a coisa vai ficar. É preciso ter paciência. E aí? Como é que vão as coisas com o sargentão? REYNA De mal a pior. O sacana está querendo me obrigar a pedir o boné. Mas não vai conseguir. Ele vai ter que sujar as mãos de sangue. NORIEGA Grande garoto. É assim que se fala. Será que ele vai deixar você jogar pelo menos um pouco contra os russos? REYNA Tenho certeza, Ed. O cão sarnento está me usando para espicaçar Carlão. NORIEGA Que use à vontade. Você tem que dar show de bola no jogo com os russos, garoto. O mundo inteiro vai ver que você chegou para ficar. REYNA Um saco esse negócio de seleção. NORIEGA (sem ironia) 92 Você tem que ter paciência com o sargentão. Seja um bom patriota, Leo. O Brasil precisa de você. REYNA Deixe de conversa mole, Ed. Isso aqui é só jogo de bola. Sem patriotada pra cima de mim, OK? REYNA fecha o laptop. INT. RESTAURANTE DE SHOPPING/RIO DE JANEIRO – DIA. FEDERICA e Isabela estão almoçando. FEDERICA Quintero está se comportando de forma estranha. ISABELA Será que ele parou de tomar os remédios? FEDERICA Não é isso. Ele passou lá em casa ontem à noite e começou a falar da vida particular dele. ISABELA Exatamente o quê? FEDERICA Reclamou da mulher o tempo todo. Insinuou que pode divorciarse a qualquer momento. ISABELA Esse cara está de olho em você. Essa conversa é típica de quem quer ter um caso. FEDERICA Claro que não! Isabela! Ele não insinuou nada. Sempre foi muito respeitoso. ISABELA Aí você aproveitou e negociou a permanência dele, claro. FEDERICA Eu fiquei tão sem graça que não aproveitei a oportunidade. Fui uma idiota perfeita. ISABELA 93 Perfeita não. Perfeita seria se você tivesse cortado a onda dele. (em dúvida) Você cortou? Não me diga que você deu um chega pra lá no bonitão. Deu? FEDERICA Não. Isso não. Mas não estimulei nada. Nem poderia estimular. Não tenho interesse pessoal nele. ISABELA Por que não? Você ainda está ligada ao André? FEDERICA Você não entendeu ainda, Isabela? ISABELA Seu lance com André é gratidão, querida. Nunca foi amor. Vocês não iam para cama há mais de cinco anos. FEDERICA 10 anos. ISABELA Eram irmãos, não marido e mulher. FEDERICA Nós só fomos para a cama quando eu tentei engravidar. André não gosta de sexo. ISABELA Ele é gay? Meu Deus, que desperdício. FEDERICA Você é quem disse isso. André simplesmente não gosta de sexo. O que movimenta a alma dele é dinheiro. Pensa em negócios o tempo todo. ISABELA Sempre foi assim? Durante todo o casamento de vocês? FEDERICA faz sinal positivo com a cabeça. ISABELA E você nunca sentiu falta? Não teve nenhum amante? FEDERICA (dá um suspiro) Nenhuma. Nenhuma (ressalta o “a”). Entendeu? 94 FEDERICA coloca a mão direita sobre a mão esquerda de Isabela. FEDERICA Quer que eu desenhe? INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT DA LIGA – DIA. Silvinho, de boné, apito na mão, dirige um coletivo de reservas contra titulares. REYNA usa o colete dos reservas. Nas arquibancadas, Madruga conversa com o médico da seleção, Dr. LAMEGO e o preparador físico, ALMADA. Madruga está com os exames médicos de REYNA nas mãos, lendo com atenção. MADRUGA Quanto tempo o senhor acha que aguenta em um jogo? LAMEGO Do ponto de vista clínico ele está liberado. Os testes de resistência foram razoáveis. Para quem bebe, fuma e dorme apenas 3 horas por noite, Leonardo REYNA é um fenômeno. ALMADA No máximo um tempo. Acho que ele aguenta 45 minutos sem problema. MADRUGA Ele só dorme três horas? Tem certeza? LAMEGO Ele me disse. Não há razão para crer que está mentindo, até porque ele é médico como eu. MADRUGA O que ele fica fazendo quando não dorme? LAMEGO Lá fora eu não sei, mas aqui ele lê. Lê o tempo todo. Ele me pediu emprestado alguns livros de fisiologia e já devolveu dois. ALMADA Mas uma pessoa não precisa de oito horas de sono? LAMEGO Aos 24 anos, oito horas de sono é a média. Mas fiz outros exames com ele e não identifiquei qualquer tipo de exaustão física. MADRUGA 95 E mental? LAMEGO Conversei com ele sobre os livros. Não acreditei que ele tinha lido. Ele sugou tudo do livro feito uma ameba. Citou até algumas páginas quando percebeu que estava duvidando dele. Quase morri de vergonha. VAMOS AO COLETIVO. Na trilha sonora entra a música-tema do antigo canal 100, NA CADÊNCIA DO SAMBA (QUE BONITO É), de Waldir Calmon (http://www.youtube.com/watch?v=5uCPo6p97Pw). Falta contra o time titular, sem colete. Alberto se posiciona para bater. Silvinho grita e manda Leo fazer a cobrança. Gol do time reserva. O time titular dá a saída. Leo rouba a bola na intermediária e cruza com perfeição para Lima, atacante que joga pela esquerda. Segundo gol dos reservas. Silvinho para o treino e orienta o posicionamento dos zagueiros do time titular. Nova saída. O time titular ataca pela direita, um jogador reserva rouba a bola e passa a REYNA, que recebe a bola e parte em velocidade na direção do gol. O zagueiro central titular dá um carrinho (jogada ilegal), mas Silvinho manda continuar, apesar dos protestos de REYNA. Nova roubada de bola dos reservas; um reserva chuta de longe, quase surpreendendo o goleiro Lucas, que espalma para fora, pela linha de fundo. REYNA apresenta-se para bater o escanteio. Silvinho intervém e manda outro jogador bater. Manda REYNA ir para a área. O batedor joga a bola na área, REYNA sobe e faz seu terceiro gol, agora de cabeça. Na trilha a música continua, em volume mais baixo, ao fundo. MADRUGA, LAMEGO e ALMADA olham-se, absolutamente surpresos. MADRUGA Esse menino é um fenômeno. Silvinho vai ter que ser mais flexível. Ele é um bom garoto. Não dá para deixar um jogador com essa classe fora da Copa. ALMADA Silvinho está frito. Ainda bem que a imprensa não está assistindo ao treino. 96 CORTA PARA De um prédio muito alto, situado diante do campo de treino, VEMOS o repórter Armando Sales, ao lado do cinegrafista. PONTO DE VISTA do cinegrafista mostra REYNA prestes a bater um escanteio. Ele e bate e faz um gol olímpico. VOLTAMOS AO CAMPO. Os jogadores reservas vibram com o quarto gol de Leo, que vibra ainda mais. Os jogadores pulam sobre ele: uma bela comemoração. O goleiro Lucas não consegue evitar um sorriso. Silvinho está visivelmente contrariado com a atuação de REYNA. INT. SALA DE SILVINHO/CT SELEÇÃO DA LIGA – DIA. Silvinho está sentado no sofá. Diante dele, Madruga. SILVINHO Tu viste que merda foi o treino? MADRUGA De que merda você está falando, Silvio? O que eu vi hoje foi o coletivo mais extraordinário que já presenciei em 35 anos de futebol. SILVINHO Meu time estava uma merda. Só melhorou no segundo tempo. MADRUGA Esse é um ponto de vista. Outro ponto de vista é que o time de cima só melhorou com a entrada de REYNA. Outro ponto de vista seria que o time de baixo piorou com a saída do garoto. SILVINHO E tu achas isso ótimo? Não percebes um momento sequer que eu estou numa encrenca dos diabos? E o pior é que não posso culpar ninguém! MADRUGA Qualquer técnico do mundo adoraria estar nessa encrenca, Silvio. O problema é que você não gosta do garoto. SILVINHO Não é questão de gostar. É uma questão de princípios, tu bem sabes. 97 Almada entra na sala e interrompe. MADRUGA Armando Sales gravou o treino de um prédio ao lado. Todos os gols já saíram na TV e já estão na Internet. SILVINHO O quê? Mas não é possível uma coisa dessas. MADRUGA Vou avisar ao Alcides para colocar vigilância naquele prédio no treino da tarde e de amanhã cedo. SILVINHO Não. Almada, tu fazes isso? ALMADA Claro, Silvio. Falo com ele agora mesmo. Almada sai. SILVINHO Agora mesmo é que a merda entornou de vez. MADRUGA Seja mais flexível, Silvio. Toda regra admite exceção. O garoto joga muita bola, não pode ficar de fora. Ainda mais agora que o mundo inteiro vai ver o carnaval que Leo aprontou nesse coletivo. SILVINHO E com que autoridade eu vou exigir um comportamento de atleta dos outros jogadores? Tu podes explicar-me? MADRUGA Enquanto ele fizer gols abra uma exceção para ele. Se parar de fazer gols, acaba a exceção. SILVINHO Enquanto isso ele toma todas as biritas, passa as madrugadas na gandaia, fuma feito pai de santo e o palhaço aqui, exigindo bom comportamento dos outros. É assim que tu queres? MADRUGA Eu entendo que pode ser desconfortável, mas o objetivo maior é ganhar a Copa do Mundo. Com jeito a gente administra o menino. 98 SILVINHO Tu pensas que já não tentei? MADRUGA Ele é muito inteligente, tem QI alto. Não deve ser difícil ajeitar as coisas. SILVINHO Tu pensas que eu sou burro? MADRUGA Não. Mas penso que você pode ser inflexível quando quer. E mais teimoso do que uma mula. SILVINHO Não posso manter o garoto no grupo. Esperava que tu entendesses que não tenho alternativa. Ele vai não joga contra a Rússia e não volta a ser convocado. A menos que se enquadre. Ponto final. MADRUGA Eu sou contra. Essa atitude é um tiro no pé. O mundo inteiro viu o treino do garoto. SILVINHO Teu papel é concordar comigo. É para isso que tu estás aqui. MADRUGA Você não precisa de um assistente. Não precisa de ninguém. Você acha que está sempre certo, Silvio. Eu cansei. Cansei de verdade! Madruga levanta-se e sai da sala, irritado. SILVINHO Tu me desapontas e ainda ficas bravo. Volte aqui, Madruga. Volte imediatamente ou mando-te para o olho da rua! MADRUGA (volta) Não manda porque eu já me demiti. Não vou ser cúmplice com o que você vai fazer. (sai) Silvinho levanta-se e vai atrás dele. INT. CORREDOR/CT SELEÇÃO DA LIGA – DIA. Silvinho coloca o corpo para fora de sua sala e vê Madruga afastando-se corredor afora. PONTO DE VISTA de Silvinho. 99 SILVINHO Está bem, tu venceste. Vou falar com o garoto mais uma vez. MADRUGA Vai falar na boa? Dar a ele uma oportunidade real de ficar? SILVINHO Vou fazer melhor. Tu mesmo conversas com ele. E expliques que a única coisa que quero é que ele siga as regras que todos no grupo vão seguir. INT. SUÍTE DE CARLÃO/HOTEL CINCO ESTRELAS – DIA. Carlão está na cama, deitado ao lado de BIRGIT. Fizeram amor. Toca o telefone, ele atende. CARLÃO É ele. O que foi? Como? Tem certeza? Não. Não precisa. O treinador resolve isso, é problema dele. (desliga o telefone) Ela procura aninhar-se no corpo dele, mas é repelida. CARLÃO Sem grude, minha filha. Vou tomar uma ducha. Ligue a TV na Rede América. Não demoro. Usando o controle remoto, BIRGIT liga a TV. Na tela da enorme TV de cristal líquido surge o rosto de REYNA. Carlão já estava entrando no banheiro, mas volta-se para ver a entrevista de REYNA. Na TV, ACOMPANHAMOS a entrevista, no PONTO DE VISTA de Carlão. REYNA A decisão de sair de uma vez foi minha. O treinador falou que no grupo dele todos têm que dançar no ritmo da música que ele toca. Eu detesto música folclórica gaúcha. Resolvi cair fora antes de ser cortado. ARMANDO Mesmo fazendo sete gols no coletivo e com lugar garantido no jogo contra a Rússia você pediu para sair? REYNA Devagar com andor porque o santo é de barro, Ed. Eu não iria jogar contra os russos. O treinador deixou claro que não haveria a menor possibilidade de entrar. 100 ARMANDO Não faltou diálogo entre você e a Comissão Técnica? REYNA Minha convocação foi bacana, o treinador achou que iria me enquadrar, mas calculou mal. Conversamos numa boa, temos opiniões diferentes e é só isso. ARMANDO Não lhe ocorreu que sua imagem diante dos torcedores pode ficar prejudicada por deixar a seleção que vai representar o Brasil na Copa do Mundo? REYNA Não. Acho que o torcedor é muito mais inteligente do que supõem os jornalistas. Quem consegue sobreviver num país como o Brasil não é burro. Sabe que nosso futebol está entregue a um bando de corruptos que só representa seus próprios interesses. Essa turma vai para a cadeia e não demora. Cana neles, JOAQUIM! Possesso, Carlão atira um travesseiro na TV. CARLÃO Cachorro filho da mãe! Camelo sem alma! INTERVALO PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS INT. SUÍTE DE CARLÃO/HOTEL CINCO ESTRELAS – DIA. Carlão está tomando café da manhã, acompanhado de Silvinho. Tu compreendeste? SILVINHO CARLÃO Compreendi que o garoto deu um baile em você e quem ficou bem na foto fui eu. Todos vão pensar que fui eu que mandei você cortar o doutorzinho de merda. SILVINHO Não estou preocupado com isso. Fiz isso para restaurar o bom clima contigo. Amigos de novo? (estende a mão direita para ele) CARLÃO Não é tão simples assim, gaúcho de merda. Você vai ter que fazer mais se quiser ser perdoado pelo comportamento 101 inaceitável que você teve. Aliás, já acertei tudo com seu amigo do Palácio do Planalto. SILVINHO O que tu queres que eu faça? CARLÃO (passa a ele uma folha de papel dobrada) Você está vendo esses nomes? SILVINHO (lê com calma) É para convocá-los? Só tem um que se adapta ao meu esquema de jogo. CARLÃO O esquema é feito a partir dos jogadores que você tem à disposição, meu filho. E não o contrário. Você vai chamar esses meninos para a Copa. É gente minha, ligada a empresários amigos. SILVINHO Não vou aceitar esse tipo de coisa. Tu sabes que não. CARLÃO Vai sim, meu querido. E não adianta ir chorar com papai porque ele não mais proteger você. SILVINHO (suspira) Está certo. Farei o que pedes. CARLÃO Eu não peço. Eu mando. E não vai ficar só nisso. INT. QUARTO DE REYNA/APARTAMENTO DE REYNA – DIA. REYNA está dormindo. O irmão dele, o roqueiro SAMUEL ROSA (da banda SKANK) entra e abre as cortinas. SAMUEL Acorda mano. Já passou da hora de ir para o treino. REYNA Samuca?! O que você está fazendo aqui? SAMUEL Acabei de falar com Quintero. 102 REYNA (levanta rápido e vai para o banheiro) Da próxima vez que você me acordar assim esqueço que você é meu irmão mais velho e enfio uma de suas guitarras em seu rabo. SAMUEL Menino malcriado. Não quer saber o que Quintero falou? REYNA (escovando os dentes) Perguntou sobre Madruga? SAMUEL Não. Disse que mudou de ideia e que conta com você. REYNA (ainda com a escova na boca) Diretor técnico ou treinador? SAMUEL Diretor. Chamou o tal Madruga para técnico. Ele é fã do SKANK, sabia? REYNA Madruga ou Quintero? SAMUEL Os dois. Claro. EXT. CASA DE QUINTERO/BARRA DA TIJUCA – DIA. Uma bela casa, com muito verde e um portão eletrônico grande. Ao lado, uma guarita com segurança. INT. CASA DE QUINTERO – DIA. Quintero está tomando café da manhã, protegido do sol na varanda. Lê um jornal, que é o mesmo que publicou a foto de REYNA torcendo o nariz de Armando. Perto dele, na piscina, seus meninos (Fernando de 10 anos e Luca, de 8) brincam na piscina com TOMOKO, mãe deles. A mulher de Quintero sai da piscina, pega uma toalha e vai sentar-se ao lado dele. Ele para de ler o jornal. TOMOKO Você não vai entrar querido? A água está uma delícia. 103 QUINTERO Não meu bem. Vou dar um pulo ao Brasil. Tenho que resolver minha situação. TOMOKO (irritada) Resolver o quê? A situação já está mais do que resolvida. QUINTERO O assistente técnico de Silvio SCALIONI me ligou há pouco. Ele desligou-se ontem à noite da seleção. TOMOKO E você com isso? QUINTERO Vou sugerir a contratação dele como treinador. TOMOKO Se ele é assistente não é um nome adequado para o Brasil. É evidente. Vai queimar seu filme. QUINTERO Evidente para você, que entende mais de futebol do que eu. TOMOKO Detesto quando você usa ironia comigo. QUINTERO (sem mudar o tom de voz) Então não dê palpites quando eles não forem solicitados. TOMOKO Estou estranhando esse tom de voz. O que deu em você? QUINTERO Nada demais. Resolvi aceitar a proposta de FEDERICA e ficar no Brasil. Volto a ser diretor técnico. TOMOKO Não vai não. Isso já está resolvido e pacificado. Vamos morar em Londres. Estou cansada de viver nessa cidade selvagem. QUINTERO Você pode voltar se quiser. Mas as crianças ficam comigo. Elas adoram o Rio. TOMOKO dá um violento bofetão em Quintero. 104 Os garotos param de brincar e olham assustados para os pais. TOMOKO Isso não é jeito de falar comigo! Meu pai não vai gostar nem um pouco do que você está fazendo. QUINTERO (frio) Problema dele. Não abuse de minha paciência... estamos no limite da irresponsabilidade. TOMOKO (acende um cigarro, nervosa) É aquela mulher! Sei que é ela! Eu vi as fotos dela em sua pasta, seu filho da mãe! QUINTERO Deixe de ser histérica e comporte-se como uma pessoa civilizada. FEDERICA não tem nada a ver com minha decisão. É direito meu, é a minha vida. TOMOKO Você vai estragar sua saúde por causa dessa mulher. Quando é que você vai perder essa mania de resolver os problemas dos outros? Você tem que cuidar é de sua saúde e de sua família. QUINTERO Não vou discutir mais, TOMOKO. Já resolvi e está resolvido. TOMOKO No meu quarto você não dorme mais! INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS – DIA. Depoimento número DOIS de Juca KFOURI. Episódio III: PAIXÃO DE TORCEDOR PARTE I PRÓLOGO 5 MINUTOS INT. SALA/DIRETOR DA FOLHA DO RIO – DIA. Isabela, elegante e graciosa, está na cadeira de visitantes do diretor Ariel Peçanha, 65 anos. Ao fundo, VEMOS a redação: as persianas da sala do executivo estão arriadas. ISABELA Vou fazer uma série de reportagens sobre as torcidas organizadas. 105 ARIEL É um bom tema. De onde vem tanto interesse? ISABELA Da paixão pela Roma antiga. Adoro Júlio Cesar e Cleópatra. ARIEL Já troquei suas fraldas, Bolinha. Não se esqueça disso. ISABELA Se me chamar de Bolinha de novo aceito o convite de meu pai e assumo seu lugar. ARIEL (fingindo que as mãos tremem) Veja minhas rugas de preocupação. Olhe as minhas mãos. ISABELA Foi mal. Mas você mereceu. Não tem um santo dia sem que seu jornal publique uma notícia sobre violência entre as torcidas organizadas. ARIEL Por isso mesmo. Já é assunto manjado. ISABELA As organizadas são um câncer que precisa ser extirpado. Nada me convence de que os clubes não estão por trás desses marginais. ARIEL OK. Vamos supor que você esteja certa. E daí? ISABELA Você está pedindo mais uma patada. ARIEL O jornal não pode se indispor com os clubes. Nenhum jornal pode fazer isso. ISABELA Estou me lixando para os clubes. O futebol brasileiro está apodrecendo e eu pretendo por o dedo na ferida. Alguém tem que fazer isso. ARIEL Enquanto eu estiver na direção, a Folha do Rio não vai comprar briga com os clubes. Brigar com os clubes é a mesma coisa que 106 brigar com os torcedores. É tiro no pé, mocinha. Não vai acontecer. Veremos. ISABELA ARIEL Vou falar com seu pai. ISABELA Fique à vontade para ligar. Ariel pega seu telefone. ARIEL Jonas? Ariel. Dê um pulo até aqui. ISABEL Meu pai mudou de nome? ARIEL Chamei o editor de esportes. Não é ético tratar de uma pauta na editoria dele ignorando o cara. ISABELA Não acho legal. Amanhã ou depois vou ficar no lugar dele. É constrangedor. ARIEL Não há como fazer omelete sem quebrar os ovos. Mas fique tranquila. Jonas é um ótimo profissional. Não vai ficar no sereno. ISABELA Arrume outra editoria para ele. ARIEL Ele não vai aceitar. Adora a área de esportes. A bola é minha, OK? Senão você vai levar umas palmadas na frente de todo mundo. Você não ousaria. ISABELA ARIEL Já fiz isso duas vezes. Já se esqueceu? Jonas entra, depois de bater na porta rapidamente. 107 JONAS E aí? Qual é a encrenca? ARIEL Quem disse que tem encrenca? JONAS (olha para Isabela) Modo de falar. Enfim chegou a hora de conhecer o ilustre Sobrenatural de Almeida. ISABELA Não tão ilustre. Garanti que Quintero ficaria até o fim do ano e errei. JONAS Um pequeno deslize entre muitos acertos. E essa parada ainda não está decidida. Ainda acho que você vai acertar essa também. Muito prazer. Jonas Mello. ISABELA Você é muito gentil, Jonas. Isabela Falcão. ARIEL Estamos conversando sobre a violência no futebol. JONAS No campo ou fora dela? ISABELA Fora. Ariel olha para Isabela, censurando, visivelmente, a fala dela. Isabela abaixa os olhos, arrependida. ARIEL A que você atribui a violência nos estádios, Jonas? JONAS São muitas as causas. ARIEL Temos tempo. Vamos a elas. JONAS O desconforto nos estádios. Nossos estádios só agora estão transformando-se em arenas mais confortáveis. O torcedor está acostumado a pagar caro pelos ingressos sem direito a conforto. 108 Tem estádio em que os torcedores ficam como sardinha numa lata. Fator número 2. ARIEL JONAS Horários inadequados. Um absurdo um jogo de futebol ocorrer às 22h. Numa cidade como o Rio ou São Paulo o torcedor que não tem carro só chega em casa lá pelas duas da madrugada. ARIEL Gente demais comprimida dentro dos coletivos, de torcidas diferentes. Uns felizes outros chateados com a derrota. Um fio desencapado. ARIEL Três. JONAS A crônica esportiva também tem culpa no cartório. Nós tratamos os jogos de forma passional, mais como torcedores do que como jornalistas. É mesmo? ISABELA JONAS Claro. Se não for assim ficamos atrás da concorrência. Não dá para ser mais realista do que o rei. Empatia com o leitor deixa o pessoal do comercial muito feliz. ARIEL E as torcidas organizadas? Jonas mostra quatro dedos da mão direita. TEASER E CRÉDITOS DA MINISSÉRIE: CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO, impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas respectivas torcidas nas arquibancadas. INTERVALO. PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS. EXT. EDIFÍCIO RESIDENCIAL NO LEBLON/RIO DE JANEIRO – DIA. Um prédio de classe média alta. É onde mora Leo REYNA. 109 Ele sai devagar, dirigindo seu carro, um jipe RANGE ROVER. É quase meio dia. Algumas pessoas estão do outro lado da rua: SANDRO, CHIQUINHO e MELISSA. Sandro, 39 anos, careca, todo tatuado, musculoso, de bermudas, boné e óculos escuros se aproxima da mesa, acompanhado pelo motoboy Chiquinho, 30 anos, baixinho, miúdo, os dois fanáticos pelo Atlético, filiados à Cara de Cão. Melissa tem 25 anos, é down, loura de farmácia, de batom, unhas feitas, sensual. Eles estão de olho em REYNA, seguindo o carro dele, que logo se afasta dos três. Um furgão aproxima-se do grupo e para perto deles. O motorista sai e entrega a chave a Sandro. MOTORISTA Pode ficar com ele até cinco da tarde. Tome cuidado, hein? Seu pai me mata se souber disso. SANDRO Relaxe, meu irmão. Dou até uma lavada nele. Entra aí. Deixo você lá no centro. MOTORISTA Não precisa. Vou fazer um serviço aqui perto. O motorista vai embora. Os três já estão no furgão. SANDRO Vamos mesmo fazer esse negócio? Tem certeza, Chico? CHIQUINHO Não vai dar para trás, vai? SANDRO De jeito nenhum. Vamos pegar o homem. MELISSA Não é para machucar o meu amor. O furgão dá a partida. EXT. RESTAURANTE NO LEBLON/RIO DE JANEIRO – DIA. REYNA está almoçando numa mesa isolada. Lucas está com ele. 110 LUCAS Você não se arrepende de ter largado a medicina? REYNA Largar não é o verbo certo. Não vou deixar de ser médico. Continuo estudando, quero ficar atualizado. LUCAS Você acha que dá pra fazer mil coisas ao mesmo tempo. REYNA Quem falou em mil foi você, Ed. Meu foco vai ser a bola. Quero ser o melhor do mundo. Sou ambicioso. LUCAS Melhor do mundo enchendo a cara, direto na balada, transando com tudo quanto é Maria Chuteira? REYNA Não vejo o que uma coisa tem a ver com a outra. Não pretendo deixar de viver para jogar futebol. LUCAS Tem hora que eu penso que essa estória de QI de 150 é conversa pra boi dormir. Acabou a boa vida, meu irmão. Agora você vai ser cobrado como qualquer um de nós. A torcida não vai deixar você em paz, malandro. Sandro se aproxima da mesa, acompanhado pelo motoboy Chiquinho, 30 anos. LUCAS (a eles) Pois não? Querem autógrafo? CHIQUINHO Autógrafo porcaria nenhuma. Quero mais é que vocês tenham indigestão. SANDRO (a REYNA) Se o Atlético perder de novo e for rebaixado, eu te pego. LUCAS (faz sinal a um garçom, apontando os dois) É melhor vocês caírem fora. A segurança já vem cuidar de vocês. REYNA (levanta-se) Não vai ser preciso segurança nenhuma. O gordo é boiola e o nanico não assusta nem um poodle. 111 Sandro parece meio bobo: tem visível limitação mental, embora não seja um anormal típico. SANDRO (partindo para cima de REYNA) Tu vai ver quem é boiola! Lucas levanta-se e fica entre os dois. Três seguranças chegam e seguram Sandro e CHIQUINHO. CHIQUINHO Vamos com calma aí! A gente é da paz! SEGURANÇA UM Vamos lá para fora! Os dois, rápido! SEGURANÇA DOIS Devagar, campeão. Vamos sair. Devagar. Bem mansinho. REYNA Da paz porra nenhuma. Vocês vieram arrumar confusão. CHIQUINHO Fica quieto, Sandro. Calma aí. Vamos embora, Sandro. INT. REDAÇÃO/JORNAL FOLHA DO RIO – DIA. São 10h da manhã. A redação já está cheia. A passagem de Isabela Falcão pela redação, caminhando devagar até a sala do diretor de redação ARIEL PEÇANHA é observada com atenção por quase todos os jornalistas (só as mulheres fingem evitar olhar para ela). INT. SALA/DIRETOR DE REDAÇÃO/FOLHA DO RIO – DIA. ROQUE SILVANO, 67 anos, presidente da torcida organizada CARA DE CÃO – a mais ruidosa e importante torcida do Rio, ligada ao principal rival local do BRASIL FC (o Atlético do Rio), mais antigo clube do país –, está diante do diretor. Vestido com uma camisa com a logomarca da torcida organizada Cara de Cão estampada com destaque, Roque olha com desdém para Isabela, que não o cumprimenta. ARIEL Temos uma visita ilustre, Isabela. Roque Silvano, da Cara de Cão. Isabela Falcão, repórter especial. ROQUE 112 (levanta-se e estende a mão) Não se se sou ilustre, mas estou às suas ordens. Ela não aceita a mão estendida e senta-se na outra cadeira de visitante. ISABEL Provavelmente a família daquele garoto que ficou paralítico concorda com o senhor. ROQUE Aquela tragédia lamentável não foi culpa da Cara de Cão. Quem mandou o rapaz desafiar a minha turma? ISABEL Desde quando oferecer um refrigerante à sua filha é um desafio? ARIEL (conciliador) Vamos esquecer essa estória. (a Isabela, firme) Roque veio aqui em paz, Isabela. E vai ser tratado com educação e gentileza. ROQUE (irritado) Minha filha foi desrespeitada. ISABELA Você não me chamou aqui para dar boas-vindas a esse sujeito. ROQUE (a Ariel) Essa mulher não gosta de nós. Não é a pessoa adequada para fazer a reportagem. ARIEL Você pediu Sobrenatural de Almeida. É Isabela quem faz a coluna dele. ROQUE Não é um velho? ISABELA Não dá para perceber a diferença? ARIEL Ela é quem faz a coluna, Roque. Se você mudar de ideia destaco outro repórter. ROQUE Não. Ela mesma serve. Tem que ser ela. ISABEL 113 Serve para quê? ARIEL Vamos começar aquela pauta com uma reportagem especial sobre a Cara de Cão. Para o caderno de domingo. Roque convidou o jornal para conhecer a sede administrativa da Cara de Cão. ROQUE Você vai ver que somos gente de bem. Trabalhadores de carteira assinada e não marginais como você costuma dizer na coluna. ISABELA Vou ter liberdade para conversar com todas as pessoas que quiser? ROQUE Se prometer que vai ser neutra e deixar de lado os preconceitos, vai. ARIEL Pode ficar tranquilo. Isabela é uma jornalista isenta e sabe separar a reportagem do que escreve como colunista. ROQUE (desafiador) É bom mesmo que saiba. Vamos lá? ISABELA (levanta-se) ROQUE Agora não dá. Tenho um emprego. Consegui uma folga para amanhã no início da tarde. Espero você a partir de duas horas. Uma. ISABELA ROQUE Eu só chego às duas. ISABELA Três então. Pra dar tempo de você ver como estão as coisas. Isabela caminha até a porta de saída. De costas, despede-se de Roque e sai. ISABEL Até amanhã. 114 ROQUE Metida essa menina. Difícil acreditar que ela é o Sobrenatural de Almeida. ARIEL Você não faz ideia do que essa menina é capaz de fazer. Vamos à redação. Vou apresentar você ao pessoal que trabalha na editoria de esportes. ROQUE Ela não é a chefe dos esportes? ARIEL Não. É repórter especial. Reporta-se direto a mim. Os dois levantam-se e saem. EXT. RESTAURANTE NO LEBLON/RIO DE JANEIRO – DIA. REYNA e Lucas saem do restaurante. LUCAS Vamos pegar um cinema mais tarde? REYNA Não vai dar. Uma Maria Chuteira suculenta vai passar lá em casa. Lucas entra no carro dele, que está bem perto da entrada do restaurante. LUCAS OK. A gente se vê. Carona? REYNA Meu carro ficou ali na frente. Obrigado, Ed. REYNA caminha na direção que indicou a Lucas. Quando se aproxima de um furgão, ouve um assovio e volta-se para trás. MELISSA (em OFF) Leo? Meu amor: você já almoçou? REYNA fica curioso e aproxima-se da porta traseira do furgão, que está um pouco aberta. A porta abre-se devagar. Em PLANO APROXIMADO, VEMOS uma mão aproximar-se por trás e colocar um lenço umedecido no nariz de REYNA, que fica sem ação e desmaia. 115 Sandro surge logo após, segurando Leo e o empurra para dentro do furgão. INT. FURGÃO – DIA. Chiquinho, que está lá dentro junto com Melissa, ajuda a segurar o corpo inerte de REYNA, com ajuda de Melissa. Com carinho, ela ajeita REYNA no piso do carro. Sandro fecha e tranca a porta. EXT. FURGÃO/LEBLON/RIO – DIA. Sandro entra rápido no furgão e sai em alta felicidade. EXT. SUBÚRBIO DO RIO/RIO DE JANEIRO – DIA. O furgão aproxima-se lentamente do portão de entrada do enorme galpão em que está instalada a sede da Cara de Cão. O portão está fechado e há um vigia uniformizado de guarda, devidamente armado. O furgão para e espera a aproximação do guarda de vigilância. GUARDA Bom dia, garoto. Tudo beleza? SANDRO Tudo em ordem. O chefe já chegou? GUARDA Já. O homem está irritado contigo. Cadê a menina? SANDRO Calma, irmão. Ela está aqui. Leão ou veado? GUARDA Parei com o jogo do bicho. Crie juízo e pare também. Sandro dá a partida e entra no galpão. A área interna é enorme. Em rápida panorâmica, VEMOS que é o galpão é dividido em vários ambientes, separados por divisórias que vão até o teto: academia de ginástica, quadras de futebol de salão, salão de sinuca/bilhar/pebolim, academia de jiu-jitsu, octógono de MAM, piscina, lanchonete. Tudo aberto, sem portas. Há gente em todos os ambientes: é um ambiente dinâmico, agitado. A área de circulação é igualmente ampla; há muitos carros estacionados. 116 Sandro leva o furgão até uma casa pré-fabricada, recém-pintada, identificada com o nome ADMINISTRAÇÃO. Sandro estaciona e sai rápido. Abre a porta de trás e VEMOS REYNA ainda desmaiado. Sandro faz sinal a um terceiro homem. SANDRO Vem cá, LAUDELINO. Ajuda a levar essa encomenda para a sala do chefe. Laudelino, negro, fortíssimo de mais de 2m de altura, aproxima-se e vê de quem se trata, antes que comecem a levar REYNA para fora do furgão. LAUDELINO Esse não é aquele REYNA, do Brasil? SANDRO É ele mesmo, negão. Trouxemos de presente para o chefe. CHIQUINHO Eu entro primeiro. Esperem aqui uns dois minutos. Deixe-me falar com o chefe primeiro. LAUDELINO Vamos deixar ele lá na piscina. SANDRO E aí, Chiquinho? MELISSA Eu vou com ele para lá. CHIQUINHO Lá não é fechado. A gente pode usar o quartinho do corredor polonês. Tem alguma coisa lá, Laudelino? LAUDELINO Tem não. Mas não tem cama. CHIQUINHO Lá está bom demais. É por pouco tempo. Laudelino leva REYNA ainda desmaiado para o ambiente que fica perto: há uma porta fechada no final de uma linha pontilhada LAUDELINO O que vocês deram pra esse sujeito? 117 Nada não. SANDRO (com receio) LAUDELINO E quem fez o camarada dormir desse jeito? Parece que morreu. MELISSA O Leo morreu? Meu Deus! Melissa começa a chorar. SANDRO Morreu não, querida. Ele está só dormindo. (a Laudelino) Está vendo o que tu fez? LAUDELINO Olha lá o que você está aprontando, irmão. Não vai colocar a gente numa fria. MELISSA (a Laudelino, que está abrindo a porta) Vamos colocar ele numa cama. Cama é que é lugar de dormir. LAUDELINO O Chiquinho disse que era para ficar aqui mesmo. Os três entram (Laudelino usa uma chave para abrir o portão de acesso à piscina) no quartinho entulhado. MELISSA Não quero que o meu Leo fique aqui. É muito sujo. Sujo demais aqui. SANDRO Ele vai ter que ficar aqui mesmo até Chiquinho conversar com seu pai. Melissa não quer soltar o corpo desacordado de REYNA (segurou na mão dele o tempo todo do trajeto do furgão até o quartinho). MELISSA Eu fico com ele aqui. Eu também. SANDRO LAUDELINO 118 Vocês me deixem fora dessa estória. Não quero saber de confusão. SANDRO Deixe de ser medroso. Melissinha está feliz. Está tudo bem. MELISSA Está tudo bem sim. Veja como ele é lindo. Meu Leo. Ele é meu, Laudelino. Só meu. Laudelino sai. INT. RECEPÇÃO/SALA/ROQUE/SEDE DA CARA DE CÃO – DIA. Chiquinho é atendido pela secretária, Marlene. MARLENE Quem é vivo sempre aparece, senhor Chiquinho. Cadê seu amigo destrambelhado? CHIQUINHO Não gosto que você fale assim de Sandro. Ele é gente boa. MARLENE Gente boa por quê? Não trabalha, fica enfiado o dia inteiro naquela academia e quando resolve sair vai andar de skate, como se tivesse 16 anos. CHIQUINHO Ele que ser campeão de jiu-jitsu, precisa treinar. (pausa) Preciso dar uma palavrinha com o chefe. Pode ser? Vai demorar? MARLENE CHIQUINHO Cinco minutos, dez. Melissinha está aí fora. Com Sandro. MARLENE Tá bom. Vai lá e não demore. O chefe está esperando uma jornalista da Folha. A moça vai chegar a qualquer momento. CHIQUINHO O doutor Francisco já chegou? MARLENE Não. Por quê? 119 CHIQUINHO Por nada não. Falei por falar. INT. SALA DE ROQUE/CARA DE CÃO – RIO. Roque está sentado à mesa, lendo com atenção o jornal do dia. A sala é decorada com mau gosto, cheia de fotos do Atlético: feitas durante jogos, além das fotos oficiais de times diferentes do Atlético em várias temporadas. Medalhas e certificados também ilustram a parede. ROQUE (com óculos de leitura) Que cara é essa, minhoca? Cadê seu amigo retardado? CHIQUINHO Ele está ali fora. ROQUE Estou com vontade de estrangular aquele nojento. Onde é que ele se meteu com minha filha? CHIQUINHO Pode ficar tranquilo, chefe. Ela já está aqui. ROQUE (volta a ler) Fale para o retardado que não é para sair com minha filha sem minha autorização. CHIQUINHO O senhor não devia chamar Sandro de retardado. Ele não é igual a sua filha. ROQUE (levanta-se, irritado) E quem disse que a minha filha é retardada? CHIQUINHO (amedrontado) O senhor devia era agradecer a gente. ROQUE (irônico) É mesmo? CHIQUINHO A gente trouxe um presente para o senhor. Cadê? ROQUE 120 CHIQUINHO Não é presente de pegar. Nem de carregar. Vamos comigo na piscina. O senhor vai ver. ROQUE Que suspense besta é esse? Fale logo do que se trata. CHIQUINHO (sorrindo) A gente trouxe o REYNA. O senhor fala com o sujeito e ele convence o Brasil a perder o segundo jogo pra gente. INTERVALO. PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS. INT. RECEPÇÃO/SALA/ROQUE – DIA. Roque sai da sala dele, com cara de poucos amigos. MARLENE Está quase na hora da jornalista chegar. ROQUE Merda! Segura a dona na portaria. Não a deixe entrar de jeito nenhum. MARLENE O que foi? O Chiquinho vai ficar em sua sala? ROQUE Vai. Eu ainda vou falar com ele. CORTA PARA: Chiquinho caído no chão, meio tonto. MARLENE O que eu você quer que fale para a moça? ROQUE Qualquer coisa. Diz que ainda não cheguei. Não a deixe entrar mesmo se ela insistir. MARLENE Não convém deixar a moça esperando muito tempo, Roque. Roque sai, em passos rápidos. INT. QUARTINHO DA CARA DE CÃO/CORREDOR POLONÊS – DIA. 121 Roque chega ao ambiente em que fica o quartinho: uma quadra de futsal. Está havendo uma brincadeira de bobinho. VEMOS que é gente mais simples, de classes sociais D e E. Apenas metade da quadra é usada. Roque ignora o grupo, que o cumprimenta. JOGADOR UM Olha o chefe aí, pessoal! Você quer jogar, Roque? JOGADOR DOIS Tudo bem, Roque? Já está se acostumando com a segundona? JOGADOR TRÊS Os ingressos já chegaram? Guarda três pra mim, Roque. Roque vai direto ao quartinho e destranca a porta. Entra rápido. MELISSA Paizinhooooo! Meu paizinhooooooooooo! SANDRO Olhe quem está aqui, Roque! Roque dá um murro no rosto de Sandro. Ele cai e fica meio tonto. Roque abraça e beija Melissa. REYNA continua desmaiado. ROQUE Vocês são dois irresponsáveis! Isso que fizeram é crime! É sequestro, seu imbecil! MELISSA Sandro não tem culpa. Fui eu que pedi a ele. SANDRO Foi o Chiquinho que deu a ideia, Roque. ROQUE Dois mentecaptos. O que vocês deram para ele dormir assim? SANDRO A gente comprou um negócio na farmácia. Roque pega seu celular e tecla um número. ROQUE Laudelino! Vem rápido no quartinho do corredor polonês. Agora! MELISSA 122 Eu vou casar com ele, paizinho. Posso casar com ele, paizinho? ROQUE Isso não é assim, minha filha. Ele tem que querer casar com você. Depois do que vocês fizeram com ele, esse sujeito não vai gostar muito dessa ideia. SANDRO Ninguém machucou o moço, Roque. Melissinha não deixou. Eu bem queria bater nele. Ele me chamou de boiola! Laudelino chega. Entra rápido. Finge que não sabe de nada. ROQUE Leve esse sujeito para minha sala. (a Sandro) Tire a camiseta. Não é bom ninguém saber que ele está aqui. (a Laudelino) Cubra o rosto dele. (a Sandro, de novo) Bico calado, entendeu? Depois falo com você. REYNA dá um gemido. MELISSA Ele está acordando! ROQUE Rápido com isso, Laudelino. INT. GALPÃO/CARA DE CÃO/SUBÚRBIO – RIO. Roque segue na frente, seguido por Laudelino com REYNA ainda desacordado nas costas; Melissa sempre segurando uma das mãos de REYNA. Os jogadores vêm a saída dos três. FICAMOS COM OS JOGADORES, que estão fazendo agora “dois toques” de aquecimento. VEMOS Roque, Laudelino, REYNA e Melissa ao fundo, na direção da sala da presidência. JOGADOR UM Quem é aquele cara? JOGADOR DOIS Não sei. Não tenho a mínima ideia. JOGADOR UM 123 Do jeito que Melissinha está grudada nele deve ser um novo pretendente. JOGADOR TRÊS Tomara que esse seja nosso. Roque não merece o desgosto de ver a filha apaixonada por um jogador do Brasil. JOGADOR DOIS Eles estão com tudo. E o pior é que o rabo é nosso. JOGADOR UM Será que vamos mesmo para a segunda divisão? JOGADOR DOIS Você tem alguma dúvida? Nosso time está uma merda e o Brasil está comendo a bola. Se a gente perder de pouco está bom demais. INT. RECEPÇÃO/SALA/ROQUE – RIO. Chegam à recepção. ROQUE O Chiquinho está lá dentro? MARLENE Não. Saiu daqui emburrado. ROQUE (a Laudelino) Leve ele para minha sala. Depois fique aqui fora, esperando. Coloque um esparadrapo na boca dele e amarre o filho da mãe bem amarrado. LAUDELINO Aonde? ROQUE Coloque-o numa cadeira. Amarrado. Bem amarrado. Com fita isolante. Eu não demoro. Você fica com ele, Melissa. MELISSA Posso colocar ele no sofá, paizinho? ROQUE Nada de sofá. Na cadeira de rodinha. Os três entram na sala de Roque, seguidos por Marlene. 124 E a jornalista? ROQUE MARLENE Ainda não chegou. Pode ficar tranquilo. Ela não vai entrar. Já falei na portaria. ROQUE Mande comprar clorofórmio para mim. Clorofórmio? MARLENE ROQUE E me arrume um lenço de pano também. MARLENE (a Laudelino, entregando uma nota de R$100,00) Vai à farmácia comprar. Vê se não demora Laudelino sai. EXT. PORTARIA SEDE DA CARA DE CÃO/SUBÚRBIO – DIA. O jipe Suzuki de Isabela conseguiu uma vaga próxima da portaria e ela sai do carro. Repara cuidadosamente na fachada externa da sede da Cara de Cão, enquanto aproxima-se da guarita. Boa tarde. ISABELA GUARDA Boa tarde. ISABELA Quero falar com Roque Silvano. Ele está me esperando. GUARDA Deve haver algum engano, senhora. Roque não está na sede. ISABELA Não há engano algum. Ele marcou comigo às duas. Por favor: telefone para o celular dele. GUARDA Ele não dá o celular para ninguém, senhora. ISABELA 125 Vou entrar e esperar lá, se não se importar. Sou jornalista. Vim fazer uma reportagem sobre a Cara de Cão. GUARDA Não recebi autorização para deixar ninguém entrar, senhora. Sinto muito, mas não vai dar para entrar. ISABELA O senhor podia me deixar entrar. Aqui fora está quente demais. GUARDA Se Roque combinou com a senhora deve estar chegando. ISABELA Tem alguma lanchonete aqui perto? GUARDA Tem si. Lá dentro tem uma. ISABELA (animando-se) O senhor me deixa ir lá? GUARDA Não pode. Só com ordem de Marlene. ISABELA Você pode me colocar em contato com Marlene? GUARDA Vou ver. Um minuto só. Isabela se afasta e olha em volta, procurando algo. VAMOS COM ELA. Pouco movimento na rua em que fica o galpão. VEMOS o guarda falando ao telefone. Ela volta e se aproxima novamente. ISABELA E então? GUARDA Tem que aguardar mesmo, senhora. Depois a senhora entra. Isabela suspira e afasta-se da guarita e entra no carro dela, que está perto. INT. CARRO DE ISABELA – DIA. Isabela entra em seu carro e liga o ar condicionado. PONTO DE VISTA DE ISABELA: de olho no portão de entrada da sede da Cara de Cão. 126 INT. SALA/ROQUE SILVANO – DIA. Roque, REYNA amarrado, começando a acordar, e Melissa estão na sala. Marlene não está presente. ROQUE Dê um copo d’água para ele, minha filha. Ele está com sede? MELISSA CLOSE-UP em REYNA, acordando. ROQUE Deve estar. Melissa caminha até um filtro carregado com um barril de água, serve um copo e, sempre carinhosa, dá na boca de REYNA. REYNA (preso por fitas isolantes à cadeira giratória) Obrigado. (pausa) O que está acontecendo aqui? O que é isso? Quem são vocês? MELISSA (ajeita os cabelos) Quer mais água, querido? REYNA (fecha a boca) Por que vocês me amarraram assim? O que está acontecendo? MELISSA (a Roque) Ele não quer beber, paizinho. ROQUE Depois você dá mais, Melissa. Vá lá para fora, filha. Preciso conversar com ele. (a Roque) Não deu para perceber ainda, mocinho? Melissa beija REYNA e sai. REYNA Isso é um tipo de sequestro? ROQUE Ainda não. Estou avaliando a situação. 127 REYNA Foi você quem mandou os dois sujeitos do restaurante. ROQUE Eu não mandei ninguém. Aqueles dois imbecis agiram por conta própria. REYNA O que você vai fazer comigo, Ed? Por que estou amarrado? ROQUE Ainda não sei o que vou fazer. Vamos conversar e eu resolvo. Meu nome não é Ed. É Roque Silvano. REYNA Sequestro é crime inafiançável, Ed. Você está numa enrascada. ROQUE Você está amarrado, preso aqui, e eu estou numa enrascada? Curioso seu ponto de vista. Pare de me chamar de Ed. REYNA Vamos combinar uma coisa. Eu relevo o que aconteceu, você me solta, dá um puxão de orelhas naqueles dois e a coisa termina aqui. Combinado, Ed? ROQUE Se você me chamar de Ed mais uma vez vai levar cacete. REYNA Vamos parar por aqui. Numa boa, sem problemas com a polícia. Eu prometo. ROQUE Não é tão simples assim. Minha filha vai ter muita dificuldade para aceitar essa sugestão sua. REYNA Aquela moça que estava aqui é sua filha? ROQUE Minha princesa. A única coisa boa que Deus me deu na vida. REYNA Qual é a encrenca com ela? ROQUE 128 Ela ama você mais do que tudo na vida. E eu a amo mais do que tudo na vida. A encrenca é essa. É por essa razão que você ainda está vivo. REYNA Você não acredita em mim, Ed? Nem um pouco. ROQUE Ele dá uma pancada na cabeça de REYNA. ROQUE Meu nome é Roque. Roque Silvano. Você vai me matar? REYNA ROQUE Você precisa entender meu ponto de vista. Aqueles dois que trouxeram você são gente do meu grupo. Que grupo? A Cara de Cão. REYNA ROQUE REYNA Nunca ouvi falar. ROQUE Jogador de futebol é mesmo alienado. Você não lê jornal? REYNA Quatro por dia. Mas nunca li nada sobre Cara de Cão. Roque dá outra pancada em REYNA (sempre com a mão aberta). ROQUE Meu grupo é a maior torcida organizada do Brasil. Tenho 40 mil filiados. Eu sou presidente. Quem manda aqui sou. REYNA Torcida organizada? Do Atlético? ROQUE Do Brasil é que não é. 129 REYNA Agora eu me lembrei. Vocês não passam de um bando de baderneiros. Não são torcedores, são selvagens. Quase mataram aquele garoto. Um absurdo o que fizeram com ele. ROQUE É isso que você pensa da Cara de Cão? REYNA É isso que todo mundo pensa. Vocês deveriam estar presos. ROQUE O Atlético não pensa assim. Você sabia que quem bancou a Cara de Cão nos primeiros tempos foi o Atlético? Somos uma torcida de verdade, que empurra o time pra frente. O clube reconhece isso e nos apoia. REYNA Então o clube é cúmplice das barbaridades que vocês fazem. Marlene abre a porta e entra. MARLENE Está aqui o clorofórmio. E o lenço. Achei que você pode precisar de mais fita isolante. ROQUE Pode colocar em cima da mesa. Obrigado, Marlene. E a jornalista? MARLENE Esperando lá fora. Não é melhor trazer a moça para cá? REYNA Você está ferrado, Ed. Logo a imprensa vai saber e você vai passar o resto da vida na cadeia. MARLENE Um amigo meu tem uma padaria. Lá tem uma fornalha enorme. Quanto tempo será que leva para derreter o corpo de uma pessoa? Se o corpo desaparecer não há crime. REYNA Socorro! Socorro! Estou preso aqui! Alguém me ajude, por favor! Roque pega a fita isolante, corta um pedaço e tapa a boca de REYNA. Depois dá mais uma pancada nele. 130 ROQUE (a Marlene) É. Tem razão. Essa jornalista não é qualquer uma. Em dois minutos você pode mandar a moça entrar. Ou melhor, vá até a portaria e acompanhe a moça até aqui. Marlene sai. Roque empurra a cadeira (que tem rodinhas) até o banheiro privativo da sala dele. INT. BANHEIRO/SALA DE ROQUE SILVANO – DIA. Roque entra, empurrando a cadeira de REYNA. ROQUE Você vai ficar bem quietinho aqui. Se eu ouvir qualquer coisa, se a moça desconfiar de qualquer coisa, a padaria de meu amigo vai receber dois corpos e não apenas um. Juízo, mocinho. Juízo. INTERVALO. PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS. EXT. PORTARIA/SEDE DA CARA DE CÃO/SUBÚRBIO DO RIO – DIA. Marlene sai e vê o carro de Isabela. Faz sinal para ela, chamando-a. Isabela desce do carro e caminha na direção dela. MARLENE Bom dia. Sou Marlene. Trabalho aqui. Vamos entrar? ISABELA Bom dia. Não vi ninguém chegando. Roque já está aí? MARLENE Há outro acesso, direto na sala dele. Roque está esperando a senhora. Vamos? ISABELA Isso aqui parece coisa de militar. INT. GALPÃO/SEDE/CARA DE CÃO – DIA. Isabela e Marlene caminhando pela área interna. Isabela observa cada um dos ambientes e anota em um bloquinho, do tipo que é usado por repórteres de campo. Para um pouco para fazer as anotações. ISABELA Isso aqui é grande, hein? Lá de fora não dá pra perceber como isso é grande. Todos são filiados? 131 MARLENE É melhor a senhora conversar com Roque. ISABELA Os filiados praticam artes marciais? Aquilo é um octógono de MMA, não é? MARLENE Eu não sei de nada. A senhora tem que falar é com Roque. Isabela (olhando tudo num ângulo de 180º) Impressionante a infraestrutura de vocês. CAM NO PONTO DE VISTA DE ISABELA. PAN. INT. SALA/ROQUE/SEDE/CARA DE CÃO – DIA. Isabela entra na sala de Roque e Marlene puxa a porta. Roque está sentado, lendo jornal. Levanta-se e cumprimenta Isabela. ROQUE Boa tarde, Isabela. Desculpe o atraso. Fiquei preso no trânsito. O túnel ficou interditado por causa de um acidente. ISABELA Não tem problema. Essa é a sua sala? ROQUE Minha não. Da presidência. ISABELA Há quanto tempo você é o presidente? ROQUE Sempre fui. Desde a criação da Cara de Cão, há 30 anos. Então a sala é sua. ISABELA ROQUE Eu diria que ela pertence aos associados e é usada por mim. ISABELA Sei. Essa estrutura toda existe há quanto tempo? Eu vi pintura recente. ROQUE 132 A Cara de Cão está crescendo com muita rapidez. Essa sede tem cinco anos. Você gostou? ISABELA Fiquei muito impressionada. Vi um tatame para lutas marciais e um octógono para MMA. O que significa isso na sede social de uma torcida organizada? ROQUE Nós somos uma associação recreativa, Isabela. O número de associados foi crescendo, crescendo e estamos hoje com a estrutura que você viu. Muitos associados gostam de jiu-jitsu e de lutas MMA. Meu papel é providenciar o que querem os associados. ISABELA Quantos são os associados da Cara de Cão? ROQUE Temos 40 mil filiados em todo o Brasil. 40 mil que pagam mensalidade em dia. O número chega a 100 mil se considerarmos todos os cadastrados. ISABELA Impressionante. É gente demais. ROQUE O Atlético é o clube mais antigo do Brasil. Tem 50 milhões de torcedores. Foi campeão brasileiro mais de 10 vezes. ISABELA E vai para a segunda divisão pela segunda vez. ROQUE Isso ainda não está resolvido. Falta um jogo. ISABELA Contra o Brasil? Você realmente acha que o Atlético tem chance de golear o Brasil por quatro a zero? Com ‘esse’ time? OUVIMOS o barulho da queda da cadeira de REYNA, provocada por ele mesmo. CORTA para REYNA no chão, fazendo um esforço enorme para gemer em voz alta e chamar atenção de Isabela. CLOSE-UP de Isabela, olhando para a porta do banheiro. ISABELA 133 O que foi isso? ROQUE Nada. Não ouvi nada. ISABELA Vocês já estão na segunda divisão. Espero que aceitem isso pacificamente. ROQUE Ainda não fomos desclassificados e não vamos ser. Mas se acontecer. Veja bem, não acredito nessa hipótese, mas, se acontecer, vamos encarar com absoluta naturalidade. ISABELA Da mesma forma que fizeram no primeiro rebaixamento? ROQUE (fechando a cara) Não se depender de nós. Aqueles problemas no aeroporto foram causados por um bando de radicais que se infiltraram na Cara de Cão para desmoralizar nossa entidade. A Cara de Cão não teve nada a ver com aquilo. ISABELA Não foi o que achou a polícia. ROQUE O delegado voltou atrás e inocentou a Cara de Cão. ISABELA O importante é que aquilo jamais se repita. Aquele jogador holandês que foi agredido saiu do Brasil no mesmo dia. Pegou mal para o futebol brasileiro lá fora. ROQUE A Cara de Cão não acredita na violência. ISABELA Você não acha está estimulando a violência com aquele aparato que eu vi lá fora? ROQUE Uma coisa nada tem a ver com a outra. Somos uma associação recreativa. Há natação, futebol, voleibol, além de sinuca. Nós temos uma biblioteca e uma videoteca. OUVIMOS MAIS RUÍDOS: batidas na porta do banheiro. 134 CORTA PARA REYNA: ele está chutando a porta do banheiro. ISABELA Tem alguém batendo na porta do banheiro. ROQUE Minha filha está lá. Ela é meio desastrada. (ríspido) Vamos dar uma volta pela sede. ISABELA Quero conversar depois com alguns associados. ROQUE Vamos lá. Você conversa, sem problema. ISABELA Quero falar com eles sem sua presença. Para que eles fiquem mais à vontade. ROQUE Escute uma coisa, Isabel. Eles são todos adultos e falam com quem quiserem falar. Mas enquanto você estiver aqui na nossa sede, eu vou estar ao seu lado. ISABEL Sem problema. Vou pegar os telefones deles e depois converso com cada um, fora daqui. ROQUE Você é quem sabe. Roque caminha para a porta quando Marlene entra. MARLENE Estou com um problema sério, Roque. Melissa está chorando muito. Ela está muito nervosa. Não dá para continuar essa conversa depois? ROQUE (a Isabela) Você vai me desculpar, mas vou ter que dar atenção a minha filha. Ela é especial. É down. Conto com sua compreensão. Eu a eduquei sozinho. A mãe morreu quando ela nasceu. Você me desculpe, mas ela é minha prioridade. ISABELA Fique à vontade. Eu vou conversar com os associados. ROQUE 135 Você não entendeu. Vamos continuar noutro dia. ISABELA Isso não é correto. Eu não tenho nada a ver com os problemas de sua filha. Tenho prazo para entregar a matéria, o senhor sabia? ROQUE Vou telefonar para Ariel e explicar a situação a ele. Por favor, vá embora, Isabel. Prometo que vamos continuar em breve. ISABELA Hoje ainda? Mais tarde? ROQUE Hoje não. Qualquer outro dia, prometo. ISABELA (decepcionada) Se não tem outro jeito, outro jeito não tem. Paciência. EXT. PORTARIA/SEDE/CARA DE CÃO – DIA. Os dois saem pelo portão principal. Roque acompanha Isabel até o carro dela. ROQUE (com um cartão de visitas na mão) Eu entro em contato com você. ISABELA Você já tem o número. Eu espero que não demore muito. Se você não ligar em dois dias vou falar com a organizada do Brasil FC. ROQUE Sei. Vai falar com um grupinho de menos de 200 torcedores. OK. Se você prefere. Vou dar a entrevista para o Diário Carioca. Você já cansou a minha beleza, moça. Roque rasga o cartão de visitas, vira as costas para Isabela e vai embora. ISABELA Ei! Vamos com calma aí. Não fique nervoso. Eu teria de falar com a organizada do Brasil de qualquer jeito. PLANO APROXIMADO do portão sendo fechado rispidamente. INT. SALA/ROQUE SILVANO – DIA. 136 Roque entra de novo na sala, seguido por Marlene. ROQUE Jornalistazinha petulante. Foi uma ótica sacada a sua, Marlene. MARLENE Não foi nenhuma sacada, Roque. Não inventei nada. Melissinha está mesmo tendo uma crise de choro. Sandro, aquele imbecil do jiu-jitsu, falou para ela que nós vamos matar o moço. ROQUE Filho da mãe! Eu ainda acabo com a raça desse idiota. Vá lá buscar Melissinha. Traga ela aqui. Mas antes dê água com açúcar pra ela e diga que Sandro é mentiroso. Que eu disse a você que ninguém vai matar o jogador. MARLENE Vou fazer um chá de camomila para ela. Marlene sai e Roque vai direto ao banheiro. Abre com dificuldade a porta e vê REYNA ainda amarrado, caído. EXT. CARRO DE ISABELA/SEDE CARA DE CÃO – DIA. Isabela está no carro. Sol forte. PONTO DE VISTA de Isabela: VEMOS com ela uma faxineira uniformizada (de boné, inclusive, com cabelos presos) sai pelo portão e acende um cigarro. Fica parada, saboreando o cigarro. EXT. SEDE/CARA DE CÃO/SUBÚRBIO DO RIO – DIA. Isabela sai, pega o celular e faz uma ligação. ISABELA Lício? Isabela. Venha rápido para cá. Logo que chegar, procure Roque e insista com ele que precisa falar comigo. Ele precisa saber que você sabe que eu estou aqui e que vai insistir em falar comigo. Isso. Não demora. (desliga) Isabela se aproxima da faxineira LOURDES. Olha para a guarita e observa que o guarda não a viu se aproximar da faxineira. ISABELA Você trabalha aí? LOURDES 137 Trabalho. Quer dizer. Só hoje. Estou substituindo a moça que trabalha fixo aqui. ISABELA (estende a mão para ela) Isabela Falcão. Muito prazer. LOURDES (aperta a mão de Isabela) Lourdes de Souza. Prazer. ISABELA Quer ganhar 1000 reais? LOURDES (interessada) A senhora está falando sério? É mais do que meu salário. ISABELA Vamos conversar ali, longe do porteiro. As duas afastam-se da guarita. Nenhum sinal do guarda. ISABELA (estende duas notas de R$500,00 a Lourdes) Preciso de seu uniforme para entrar lá dentro. LOURDES Nem pensar. Vão me despedir. Pode ficar com o dinheiro. ISABELA Eu sou jornalista. Não vou fazer nada errado. Só preciso dar uma espiada. Vou fazer seu serviço, ninguém vai notar que não é você. Meu pai é dono do jornal FOLHA DO RIO. Se der algum problema eu coloco você lá com salário maior. Prometo. LOURDES A senhora só vai olhar? Não vai aprontar nenhuma confusão? ISABELA Só vou dar uma espiada. Prometo. Arrumo o emprego novo pra você de qualquer jeito. INT. SALA/ROQUE SILVANO – DIA. Roque está sentado diante de REYNA, na outra cadeira de visitantes. REYNA continua amarrado, sem poder falar. Roque vai até seu telefone e coloca o aparelho no modo Viva Voz. 138 CLOSE-UP da mão de Roque tocando no aparelho de telefone no modo Viva Voz. ROQUE O que eu vou fazer com você? Quero que você me diga. O que eu vou fazer com você? (pausa; ao telefone) Está ouvindo bem, Marlene? MARLENE (em OFF) Perfeitamente, Roque. ROQUE (a REYNA) Não posso libertar você agora. É claro que você vai à polícia e vai fazer uma denúncia de sequestro. Imagine só o circo na mídia. Vou ficar na prisão um bom tempo. Se eu pagar bons advogados e as comissões certas, pego poucos anos. Mas se ficar mais de uma semana na cadeia é quase líquido e certo que vão me estuprar lá. REYNA faz sinal de negação com a cabeça. ROQUE Claro que vão. Cadeia é para assassino e para veado. Se eu não matar alguém logo de cara vão me estuprar. E como é que vou conseguir matar alguém na prisão? Como? Você acha que um sujeito com quase 70 anos tem condição de matar alguém numa penitenciária? Tem? REYNA faz sinal positivo com a cabeça. ROQUE Você é bem confiante. Isso é bom. Mas não adianta matar qualquer um. Se matar um Zé Mané qualquer, que é estuprado todas as noites, não vai adiantar absolutamente nada. Tenho que matar um sujeito duro. Um valentão. REYNA faz sinal de negação com a cabeça. REYNA (tira a fita da boca dele) Eu juro que isso não vai acontecer. Você não vai ser preso porque não cometeu nenhum crime. Eu sei que você não teve culpa. Foram aqueles dois. O gordo boiola e o nanico. Eles é que vão entrar em cana. Você não. ROQUE Sei. E você não vai contar para a polícia que minha filha estava junto com os dois. 139 REYNA Não. E mesmo que eu contasse não haveria problema. Por que ela não responde juridicamente por seus atos. ROQUE Muito esperto o mocinho. Falta combinar com os jornalistas, feito essa Isabela que estava aqui. Um prato cheio para a imprensa (faz gesto com a mão, visualizando a manchete): filha retardada do presidente da maior torcida organizada do país sequestra craque do Brasil Futebol Clube. REYNA Não vou deixar fazerem isso com ela. Não vou mencionar que ela estava junto com os dois. ROQUE E aqueles dois, hein? Você realmente acredita que eles não vão contar nada sobre minha filha? Aquele lutador de jiu-jitsu mata quantos forem necessários se minha filha fizer um sinal com o dedo mindinho. Vai acabar falando que sequestrou você para agradar Melissa. Foi isso mesmo? REYNA ROQUE Infelizmente parece minha filha também queria fazer essa merda, o que complica tudo. Ela é obcecada por você. Não entendo o que ela viu em você, mas ela ama você de verdade. Ela está lá fora, numa crise de choro, porque disseram a ela que você vai ser morto. REYNA Você não vai fazer uma coisa dessas. É um homem inteligente. Não existe crime perfeito. Muita gente já passou a vida inteira na cadeia por acreditar que existe. ROQUE Chiquinho disse que sequestrou você para que o Brasil perdesse o jogo da semana que vem. Veja você como existe gente maluca nesse mundo. O sujeito acredita que a gente manda uma carta para o presidente do seu time dizendo que você foi sequestrado. Que o time vai ter que perder para o Atlético por quatro a zero se eles quiserem ver você vivo outra vez. REYNA Um delírio. A polícia chegaria a você em menos de um dia. Tenho certeza. 140 ROQUE Eu também tenho. Por isso não vamos mandar carta nenhuma. Cedo ou tarde eu seria pego e você confirmaria que eu participei da coisa toda. REYNA Com certeza. (percebendo que errou) Quer dizer, eu não delataria você de jeito nenhum. ROQUE Veja você em que situação aquele Chiquinho me deixou. Vou ter que matar você. Não há outro jeito. REYNA E se nós fizermos como Chiquinho sugeriu? Eu escrevo qualquer coisa. Falo ao telefone, num gravador. Vamos falar apenas com o treinador. Quintero é meu amigo. Ele vai entender, vai ajudar. Prometo que a polícia não vai participar de nada. Vai ficar só entre nós três. ROQUE Nós três e os caras que me estuprarem na penitenciária. Não se esqueça deles, mocinho. REYNA (impaciente) Eu acho que no fundo você está mesmo é gostando da ideia de ser estuprado. Roque dá um murro violento em REYNA. ROQUE Você é mesmo um arrogante filho da puta. Vou ter o maior prazer em colocar você vivo na fornalha do amigo de Marlene. Melissa e Laudelino entram na sala. MELISSA (feliz, corre para abraçar Roque) Paizinho! Laudelino me disse que meu noivo não vai morrer! Quando é que eu vou casar com ele? Laudelino vai ser meu padrinho! Não vai, Laudelino? LAUDELINO (sorriso amarelo) Claro que vou. Se você se casar mesmo vou ser o padrinho. REYNA 141 Que história de casamento é essa? Eu não vou me casar com ninguém! Vocês ficaram malucos? Todo mundo enlouqueceu?! ROQUE Sabe que essa é uma ótima ideia, minha filha? MELISSA (senta-se no colo do pai) Eu vou casar com meu amor! Eu vou casar com meu amor! Melissa levanta-se e beija REYNA na boca, com paixão. INTERVALO. PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS EXT. SEDE DA CARA DE CÃO/SUBÚRBIO – DIA. Isabela, usando o uniforme de Lourdes, puxa bem o boné para cobrir parcialmente o rosto. Aproxima-se do portão e olha discretamente para o guarda, entrando logo que OUVIMOS o ruído da abertura do portão automático. INT. SEDE DA CARA DE CÃO – DIA. Isabela pega uma vassoura e começa a varrer o chão, observando discretamente o ambiente. PONTO DE VISTA de Isabela, olhando para a casa em que fica o escritório de Roque. INT. SALA DE ROQUE/SEDE DA CARA DE CÃO – DIA. Roque e REYNA na sala. ROQUE (na direção do telefone) Marlene? Pode entrar. Marlene entra e Roque aperta uma tecla do aparelho de telefone, desligando o modo Viva Voz. ROQUE (a Marlene) Como é que chama mesmo aquele negócio em que os artistas do cinema americano acreditam? MARLENE Cientologia. ROQUE 142 Pois bem. Vamos resolver essa encrenca usando o conhecimento dos cientistas. O que é que você acha que um sujeito desses faria se estivesse em meu lugar? MARLENE Eu só fiz uns cursos, mas acho que peguei a essência da coisa. O primeiro mandamento você já praticou com perfeição, Roque. É mesmo? ROQUE MARLENE Nota 10. Os cientologistas dizem que a mentira é uma coisa válida e necessária para se conseguir alcançar os objetivos. O rapaz realmente acreditou que você está pensando em matá-lo. Não acreditou? REYNA Não era para acreditar? ROQUE Era para acreditar sim, porque se for necessário matar alguém para defender minha princesa mato até o presidente da República. MARLENE Você assumiu o controle, Roque. Magistral essa ideia de deixar o rapaz amarrado e vulnerável o tempo todo. É como se você tivesse feito uma lavagem cerebral nele. REYNA De que merda vocês estão falando? Vocês são dois loucos. Vocês tem ideologia política? MARLENE Nossa ideologia é o Atlético. ROQUE (aproxima-se e fala ao ouvido dele) Marlene andou fazendo uns cursos sobre esse negócio. Tem um amigo dela, americano, que ensinou uma técnica incrível. Sabe o que o cara fez? Usou um detector de mentiras na Marlene. REYNA Eu não estou interessado em saber nada dessa estória. Quero que vocês dois se danem. MARLENE 143 Tive que contar tudo quanto é coisa errada que eu já fiz. Coisas de sexo. Coisas muito íntimas. Todo mundo que trabalha com as técnicas da Cientologia tem que fazer isso. Proteção para não ser denunciado pela vítima. ROQUE Agora você tem que me dizer como é que nós vamos sair dessa enrascada. MARLENE (tom professoral) O rapaz foi sequestrado por que Chiquinho teve a ideia de fazer chantagem contra o time dele para fazer o Atlético ganhar o jogo e tirar a gente da segunda divisão. ROQUE Tirar não. Evitar que o Atlético caia de novo para a segunda divisão. Seria péssimo para o time e para nós também. Nós não podemos deixar isso acontecer. Eu prometi ao presidente que não iria deixar isso acontecer. MARLENE Está certo. O presidente do Atlético confia em você. Sabe que promessa sua é dívida. REYNA O quê? O Atlético sabe que vocês fazem jogo sujo e pede a ajuda de vocês? MARLENE Chiquinho aproveitou uma ideia que Melissa teve. Foi ela quem pensou em trazer o rapaz aqui para a Cara de Cão. E é justamente isso que incrimina Melissinha. Ela pode ser humilhada, ficar exposta e nós não podemos deixar isso acontecer. ROQUE Nem pensar. E tenho que cumprir a promessa que eu fiz ao doutor Adriano. Não se esqueça disso, Marlene. O que a gente vai fazer? MARLENE Abra o sofá cama, Roque. Agora. Roque vai até o sofá e faz o que Marlene disse que era para fazer. ROQUE E agora? 144 MARLENE Agora o rapaz vai ter que tomar uma decisão muito séria. ROQUE (de novo ao ouvido de REYNA) Vai tomar uma decisão séria, entendeu? REYNA Eu não sou surdo. MARLENE Agora você pega seu telefone celular e prepara o aparelho para gravar as imagens do que vai acontecer daqui a pouco. ROQUE E o que vai acontecer daqui a pouco? Diga Marlene. Estou morrendo de curiosidade. MARLENE Amarre bem o rapaz no sofá. Ele tem que ficar amarrado de um jeito ou de outro. Não entendi. ROQUE MARLENE Ele vai ficar pelado no sofá. E vai ser amarrado de peito para cima ou de costas para cima. ROQUE Pelado e amarrado? Para quê, Marlene? REYNA Ninguém vai me amarrar pelado aqui. Eu mato quem se aproximar de mim. Juro que mato! ROQUE Mata nada, rapaz. Você vai ficar bem quietinho senão vai levar bala. Levanta-se e pega um revólver calibre 44, enorme, na gaveta de sua mesa. ROQUE Vamos ver quem vai matar alguém aqui. MARLENE Agora você chama o Laudelino. 145 Roque vai até a porta, abre e grita o nome de Laudelino. ROQUE Laudelino! Vem cá, Negão! Laudelino chega. MARLENE Você fica com a arma na mão, apontada para o rapaz e se afasta dele, para atirar se for preciso quando Laudelino tirar a roupa dele. ROQUE (apontando a arma) Vamos lá, Negão. Faça o que Marlene está mandando. Desamarre o mocinho, tire a roupa dele e amarre o bonitão no sofá. De costas ou de peito pra cima, Marlene? MARLENE Quem vai resolver isso é o rapaz. REYNA Eu não vou resolver nada! ROQUE Pode tirar a roupa dele. Deixe só a cueca. Por enquanto. MARLENE O rapaz vai ter que escolher se prefere ter uma lua de mel com Laudelino ou com Melissinha. E você vai filmar a lua de mel. Se ele não convencer o time dele a perder de quatro para o Atlético, quem vai ficar de quatro para Laudelino vai ser ele. REYNA O quê? Que estória é essa, sua maluca?! ROQUE Que ideia fantástica, Marlene. Você se superou dessa vez. Em qualquer situação o mocinho vai ter a maior boa vontade do mundo em ajudar o Atlético. E nem vai pensar em denúncia, claro que não vai! Laudelino começa a soltar REYNA, que cospe nele. REYNA Não vou fazer lua de mel com ninguém. Você vai ser preso por sequestro, Laudelino! Saia daqui: vá embora enquanto é tempo! 146 Ele vai usar você e quem vai pagar o pato sozinho vai ser só você, Laudelino! Roque vai até a mesa, entorna um pouco de clorofórmio no lenço que Marlene colocou sobre a mesa e molha a peça. Caminha até Roque, que ainda não foi solto e pressiona o lenço umedecido no nariz dele, que desmaia. Laudelino acaba de soltá-lo e o carrega até o sofá, tirando a roupa e deixando REYNA só de cuecas. INT. DO LADO DE FORA DA CASA/SEDE DA CARA DE CÃO – DIA. Isabela está perto da casa, sempre varrendo. Dá a volta e procura uma janela: a janela do banheiro da casa. Chega perto, vê que está aberta e dá uma espiada, observando o interior do banheiro. VEMOS que a janela é grande: dá para uma pessoa sair de lá, sem muita dificuldade. CAM NO PONTO DE VISTA de Isabela mostra o interior do banheiro privativo de Roque. INT. SALA DE ROQUE NA SEDE DA CARA DE CÃO – DIA. Roque, REYNA, Laudelino e Marlene estão na sala. ROQUE Eu me esqueci da corda. Onde é que eu vou arranjar uma corda? LAUDELINO No almoxarifado tem uma. ROQUE O que você está esperando para buscar a corda, Negão? LAUDELINO Eu já vou, Roque. Laudelino sai. MARLENE Não quero ver isso. Eu espero lá fora. Não machuque o rapaz, hein? Se tiver que atirar, atire no joelho dele. Cuidado para não acertar mais em cima. 147 ROQUE (vai até ela e a beija) Vou aumentar seu salário, querida. Vamos marcar um gol de placa. Antes de sair, vá até lá e acorde o mocinho. Marlene chega até REYNA e começa a sacudi-lo. Dá tapinhas no rosto de REYNA e o jogador não acorda. Dá uma pancada bem forte e REYNA acorda assustado. Marlene sai. REYNA está sempre sob a mira do revólver de Roque, que fica a uma distância prudente. INT. BANHEIRO PRIVATIVO DE ROQUE – DIA. Isabela entra no banheiro, deslizando agilmente pela janela. Evitando fazer qualquer ruído, ela entra e vai até a porta. Abre um pouco, bem pouco, o suficiente para ver o que está acontecendo na sala de Roque. CAM no PONTO DE VISTA de Isabela, observando o que ocorre na sala de Roque pela fresta aberta. VEMOS REYNA deitado na cama, de cuecas e Marlene tentando despertá-lo. PERCEBEMOS que ela reconhece REYNA, surpresa. Mas ela disfarça e mantém o controle de suas reações. INT. SALA DE ROQUE SILVANO – DIA. Roque e REYNA sozinhos na sala, sendo observados por Isabela, que continua no banheiro. ROQUE Já resolveu com quem vai ser sua lua de mel? REYNA Você não tem vergonha de fazer uma coisa dessas com a própria filha? Uma filha doente? ROQUE Doente é a sua mãe, filho da puta. Melissa é uma menina saudável, especial. É a luz de minha vida. REYNA E você quer que sua filha faça sexo com um desconhecido, no sofá de sua sala? 148 ROQUE Eu não faço questão. Por mim sua lua de mel seria com Laudelino. Você viu a cara de satisfação dele? Você nem faz ideia de como esse Negão é carinhoso. Se minha filha ficar satisfeita, deixo você se divertir com Laudelino depois. Prometo. REYNA Filho da puta! ROQUE Tem uma coisa que eu não suporto que é palavrão. Você sabe que aqui na Cara de Cão ninguém pode falar palavrão? Além de mim, claro. Em ocasiões extraordinárias. REYNA Você está enganado se pensa que eu vou ficar de bico calado. Mesmo se eu tiver que transar com sua filha vou contar para a polícia o que aconteceu. ROQUE Coloco o filme na Internet logo depois. REYNA E expõe sua filha nua, na frente de todo mundo? É assim que você respeita Melissa? ROQUE (coçando a cabeça) É. Vai ficar mal para ela. REYNA As pessoas vão chamar sua filha de prostituta. ROQUE Pode ser. Mas por outro lado, vai pegar muito mal para você. Vou dizer que peguei você transando com ela. Que você a seduziu. Já pensou como vai ficar sua reputação? REYNA Eu vou dizer que você me forçou a fazer isso. ROQUE Vai ser sua palavra contra a minha, de Laudelino e de Marlene. Vamos ver em quem a polícia vai acreditar. REYNA 149 E se eu não conseguir transar com sua filha? É difícil se concentrar numa situação dessas. Coloque-se no meu lugar. É pior do que colher esperma para fazer exame. ROQUE Fique tranquilo quanto a isso. Melissa é uma mulher feita. Você vai ficar bem animado, eu garanto. Se não ficar eu chamo Laudelino e ele dá uma forcinha. REYNA E se ele não conseguir? ROQUE Ele consegue. Pode ter certeza que ele consegue. Você não tem ideia de como aquele Negão gosta de uma inauguração. Quer saber de uma coisa? Vou pedir ao Laudelino para dar uma forcinha de qualquer jeito. Aí você não vai ter coragem de denunciar a Cara de Cão. PLANO APROXIMADO: Isabela pode ser vista pela fresta da porta. Está chocada com o plano de Roque. ROQUE Acho que uma trilha sonora vai ser bacana, para descontrair a sua lua de mel. Que tipo de música você prefere? REYNA Vá tomar no rabo. Roque vai até um aparelho de CD’s e coloca uma música de funk. ROQUE Essa é a preferida de Melissinha. Na trilha, OUVIMOS o funk característico das favelas cariocas. REYNA Eu já saquei como é essa estória de terrorismo. Você está me assustando, mas não tem peito para fazer essa nojeira com sua própria filha. ROQUE Não se esqueça de que ela ama você, mocinho. Vou dar um presente para minha filha adorada. E se quer mesmo saber, ela é virgem. Seja carinhoso, senão eu jogo você vivo na fornalha. Entendeu? INT. BANHEIRO PRIVATIVO DE ROQUE SILVANO – DIA. 150 Isabela começa a ouvir a música e pega o celular. Tecla um número e fala baixo, para não ser ouvida por Roque. Não ouvimos o que ela fala, pois a música ocupa toda a trilha sonora. EXT. SEDE DA CARA DE CÃO – DIA. Lício, secretário pessoal de Isabela, estaciona o carro ao lado do carro dela, sai e aproxima-se da guarita. LÍCIO Boa tarde. Eu quero falar com Isabela Falcão. Ela está aí dentro, com o senhor Roque Silvano. Eu trabalho com ela. GUARDA Ela não está aqui. Já foi embora. LÍCIO O carro dela é aquele ali (mostra o carro). Ela me ligou a pouco da sala do senhor Roque. Não saio daqui sem falar com ela ou com ele. GUARDA Um minuto. Vou ver isso. Ele pega o telefone. GUARDA Marlene? Tem um sujeito aqui dizendo que precisa falar com a jornalista. Disse que ela ligou para ele aí da sala do Roque. MARLENE (em OFF) Ela não está aqui mais. Já foi embora. GUARDA Eu disse isso ao cara, mas ele insiste em falar com ela ou com o Roque. MARLENE (em OFF) Está bem. Roque vai estar aí daqui a pouco. GUARDA Roque está vindo falar com o senhor. Ela já foi embora mesmo. INT. SALA DE ROQUE/SEDE DA CARA DE CÃO – DIA. Marlene entra. 151 MARLENE Tem um cara na portaria querendo falar com a jornalista. ROQUE Diz que ela já foi embora. MARLENE O porteiro já falou com ele e não adiantou. Ele quer falar com você. ROQUE Quem é esse sujeito? MARLENE Disse que trabalha com a moça. Convém ir falar com ele. Esse pessoal da imprensa é insistente. ROQUE Está certo. Vou lá daqui a pouco. Ela sai. ROQUE Vá para o banheiro e fique quieto lá. Não adianta gritar: a portaria é longe daqui. Nem adianta tentar fugir, mocinho. Se fizer alguma confusão ponho você com Laudelino o dia inteiro e não uma vez só. Juízo. INT. BANHEIRO PRIVATIVO DE ROQUE – DIA. Isabela entra em pânico. Olha para os lados, fecha a porta devagar e entra no box, escondendo-se atrás da cortina que não é transparente. Roque entra (ainda está de cueca) e a porta é trancada. INTERVALO PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS INT. BANHEIRO DA SALA DE ROQUE – DIA. Isabela (com os cabelos presos), com o dedo indicador da mão esquerda sobre os lábios (pede silêncio), aparece para o surpreso REYNA. Na trilha, continua o funk. ISABELA (voz baixa, mais audível) Eu não sou faxineira. (começa a tirar o uniforme de Lourdes) Coloque esse uniforme e saia pela janela. Finja que é faxineiro e suma daqui o mais rápido que puder. REYNA 152 (colocando o macacão) Quem é você, Ed? ISABELA Isabela Falcão, da Folha do Rio. Rápido. Daqui a pouco Roque está de volta. REYNA (já de macacão, de olho nas belas pernas dela) E você? Vai ficar aqui? ISABELA (de calcinha e camiseta) Eu me viro. Vá logo. E só saia de trás da casa quando Roque voltar. Pegue meu carro e suma daqui o mais rápido que puder. (entrega a chave) É um jipe Suzuki. REYNA Um minutinho, Ed. Tenho que pegar meu tênis. ISABELA Não! Esqueça isso. Vá descalço mesmo. REYNA Vai chamar atenção. Meu pé é muito branco. Num minuto eu vou lá e pego. REYNA sai e volta logo, com seus tênis nas mãos. Senta-se no vaso sanitário e calça os tênis. REYNA E você, Ed? Como vai embora? ISABELA Para de me chamar de Ed! Que saco! (pausa) Eu já disse que resolvo. Não se preocupe com isso. REYNA (beija Isabela nos lábios, para surpresa dela) OK, Ed. Vamos jantar juntos hoje à noite? Vá logo embora! ISABELA REYNA (antes de enfiar-se para fora da janela) Nove da noite. Eu te ligo depois no jornal. ISABELA 153 Tudo bem. Nós nos falamos depois. Vá logo! REYNA sai pela janela. INT. SEDE DA CARA DE CÃO/SUBÚRBIO DO RIO – DIA. Roque está voltando para seu escritório. Caminha em passos rápidos. VEMOS REYNA espiando atrás de uma parede, de olho em Roque. EXT. SEDE DA CARA DE CÃO/SUBÚRBIO DO RIO – DIA. REYNA sai pela portaria, com o boné abaixado. VEMOS que Lício está de pé, esperando ISABELA ao lado do carro dele. INT. SALA DE ROQUE/SEDE DA CARA DE CÃO – DIA. Roque entra e, surpreso, vê Isabela sentada na cadeira giratória em que REYNA esteve amarrado. Está tranquila, como se fosse natural ela estar de camiseta e calcinha na sala de ROQUE. ROQUE Você?! O que está fazendo aqui? ISABELA Parece que temos muito a conversar, senhor Roque Silvano. ROQUE (suspirando) Você deu sua roupa para ele? ISABELA Dei. Ele já está lá fora. REYNA me ligou do carro dele. (tem o celular na mão). Já falei com meu assistente. Ele está me esperando lá fora e já avisou ao jornal que eu estou aqui. ROQUE Merda. O que você vai fazer? ISABELA Sua filha é um amor. Não merece um pai maluco como você. Não pretendo expor Melissa. Quanto a isso, fique tranquilo. ROQUE Não vai chamar a polícia? ISABELA Vai depender de você. Quero fazer uma reportagem completa sobre as torcidas organizadas. Todas, mas principalmente a Cara 154 de Cão. Quero que você me conte tudo. Tudo mesmo, entendido? ROQUE (vai até a porta) Marlene. Vem cá. ISABELA Não adianta apelar para seu Maquiavel de bolso. Essas técnicas de terrorismo não vão resolver essa encrenca. MARLENE (entrando) O que está acontecendo aqui? ROQUE A vaca foi para o brejo. O jogador fugiu com a ajuda dela. Com as roupas dela. MARLENE Impossível. Não passaria na portaria de jeito nenhum. ROQUE É mesmo! Ele ainda está na sede! ISABELA Devagar com o andor que o terrorismo é de barro. Eu entrei sem ser vista pelo porteiro e ele saiu do mesmo jeito. MARLENE (na direção da porta, que está aberta) É mesmo? Laudelino! Laudelino! ISABELA Você vai demitir essa bruxa. Eu entrei com o uniforme da faxineira diarista. (mostra o celular) O jornal já sabe que estou aqui. Você vai ser acusada de sequestro. Trate de combinar com os dois gorilas um jeito de não expor Melissa. E aí, Marlene? ROQUE MARLENE (senta-se, desanimada) Ela está certa. Não há o que fazer. Estamos ferrados. Ele não pode me demitir. Eu sou proprietária do galpão e dessa sede. Sou casada com Roque. ISABELA 155 Como uma mãe é capaz de expor a filha desse jeito? ROQUE (muito abatido) Melissa não é filha dela. Só minha. INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS/BRASÍLIA – DIA. Depoimento de Juca KFOURI. Episódio IV: JOGO DE EMOÇÕES PARTE I PRÓLOGO 5 MINUTOS EXT. LANCHONETE BARRA DA TIJUCA/RIO DE JANEIRO – DIA. ERNESTO FALCÃO, presidente do Atlético, time mais popular do Rio, está tomando cafezinho com o Diretor de Arbitragem da Liga, Armando GOMIDE. FALCÃO é juiz aposentado, sempre impecável e formal, cabelos engomados. GOMIDE Doutor Falcão: o senhor vai me desculpar, mas eu não tenho autonomia para fazer esse tipo de coisa. FALCÃO Tem sim. Quando você quer, você faz. A diretoria do Atlético conhece você de outros carnavais, Armando. O delegado Peixoto me contou dos acertos que já foram feitos com o senhor. GOMIDE As coisas estão muito diferentes agora juiz. Carlão faz questão de decidir tudo. Ninguém dá um peido naquele prédio (aponta o prédio da Liga de Clubes, do outro lado da rua) sem autorização dele. FALCÃO Resolve isso para mim, Armando. Fico devendo essa. O Atlético sabe ser generoso com quem ajuda na hora do aperto. GOMIDE O que é isso, doutor Falcão. O senhor não é desse tipo de gente. FALCÃO Faço qualquer coisa para evitar que o Atlético seja rebaixado em minha gestão. Qualquer coisa, o senhor está entendendo? GOMIDE Se eu fosse do tipo de gente que o senhor está imaginando, e eu não sou, iria me aproveitar de sua boa vontade, juiz. Mas não dá 156 mesmo. Carlão me manda embora se eu acertar qualquer coisa com o senhor. FALCÃO Que escrúpulo é esse agora, Armando? GOMIDE Não é questão de escrúpulo, juiz. Eu preciso desse emprego. O senhor precisa falar com o presidente. É ele quem resolve esse tipo de coisa agora. FALCÃO Não tem outro jeito? Eu abomino aquele sujeito. Tenho nojo daquela cara de peixe ensaboado. Não aguento aquele sujeito! GOMIDE (tenta descontrair) Tem uma farmácia aqui ao lado. Tome um comprimido para enjoo e o senhor aguenta numa boa. (coloca uma nota de dez reais no balcão e fala com o balconista gorducho, que acena para ele) Vou nessa, Leitão. (pega o juiz no braço) Vamos lá, doutor. Vai ser fácil. Os dois saem da lanchonete e atravessam a rua, entrando no belo edifício-sede da Liga Nacional de Clubes. INT. SALA DA PRESIDÊNCIA DA LIGA – DIA. Gomide conduz Falcão ao espaçoso sofá do gabinete de trabalho de Carlão. Os móveis foram todos substituídos pelo novo ocupante da sala. GOMIDE (falando baixo) Todo dia, pontualmente nesse horário, Carlão vai ao banheiro. É que nem um relógio suíço. Sentam-se. OUVIMOS ruído de uma descarga e logo depois surge Carlão apertando o cinto. Ele caminha na direção do juiz e estende a mão para cumprimentá-lo. O juiz fica constrangido: observa que não deu tempo de Carlão lavar as mãos. Depois de titubear uns segundos, aperta a mão de Carlão. CARLÃO É um prazer recebê-lo, juiz. Faz tempo que a gente não se encontra. Como tem passado a família? GOMIDE 157 A família vai bem. Mas o Atlético vai muito mal. É sobre isso que vim conversar com você. CARLÃO (sem ironia) O que isso, juiz? Não tem nada decidido ainda. O Atlético pode perfeitamente ganhar do Brasil por quatro gols de diferença. Não dizem que futebol é uma caixinha de surpresas? FALCÃO Numa outra situação ganharia mesmo. Mas agora não dá e você sabe muito bem disso. Sentam-se. CARLÃO Você já mostrou a casa para o juiz, Gomide? É uma honra para nossos colaboradores receber uma visita tão ilustre. GOMIDE O juiz quis vir direto falar com o senhor, presidente. CARLÃO Então pode ir embora, Gomide. Espere lá fora. Depois chamo você. Gomide, sem graça, sai. FALCÃO Deus sabe o quanto me custa vir aqui nessa situação. Mas eu não tenho alternativa. Se eu tiver que me humilhar para salvar o Atlético vou fazer o sacrifício. CARLÃO Salvar é uma palavra muito forte, juiz. Não vai acontecer nenhuma desgraça se o seu time for rebaixado. Isso já aconteceu com grandes times. Não é nenhuma vergonha ir para a segunda divisão. FALCÃO É sim. Você sabe que é. CARLÃO A vida vai continuar. Isso é só futebol, juiz. Não leve isso a ferro e fogo. FALCÃO Você diz isso porque não é seu time que vai ser rebaixado. 158 CARLÃO Pode (ênfase aqui) ser rebaixado. Não quer dizer que vai (ênfase aqui) ser rebaixado. Quem sabe na hora do jogo dá tudo certo para o Cão e tudo errado para o Brasil? Futebol tem dessas coisas. Além do mais, a segunda divisão tem média de renda mais alta do que a primeira. O senhor sabia disso? FALCÃO Não é uma questão financeira, Carlão. O Atlético é o clube mais tradicional do Rio de Janeiro. Para nós é inaceitável seremos rebaixados. É uma questão de orgulho, de honra. CARLÃO Exatamente o quê o senhor quer de mim, juiz? Você sabe o quê. FALCÃO CARLÃO O senhor está enganado, juiz. Não tenho a menor ideia. FALCÃO (levanta-se) É isso então. Você quer me humilhar. CARLÃO Acalme-se, juiz. Ninguém precisa disso aqui. O senhor é uma reserva moral do Rio de Janeiro. FALCÃO (senta-se de novo) Você vai ajudar o Atlético a sair dessa situação ou não vai? CARLÃO Tenho a maior boa vontade do mundo com qualquer clube associado à Liga. Mas o senhor precisa ser mais específico e me dizer exatamente o que espera que eu faça. FALCÃO Diga logo quanto vai custar, Carlão. CARLÃO (um toque de ironia começa a aparecer; só agora) Quanto vai custar o quê, juiz? Continuo sem entender. GOMIDE Vamos deixar de hipocrisia, Carlão. Ninguém está ouvindo a gente. (pausa) Ou está? 159 CARLÃO Não tem traíra aqui não, juiz. Pode ficar tranquilo. Fale sem receio, juiz. O senhor está em casa. Falcão está desconfortável, constrangido. FALCÃO Está certo. Eu vou dizer. É o juiz. É do juiz que estou falando. CARLÃO Qual juiz? Algum colega seu? Falcão levanta-se de novo. CARLÃO (sardônico) O senhor está falando é do juiz que vai apitar o jogo do Atlético? TEASER E CRÉDITOS DA SÉRIE: CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO, impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas respectivas torcidas nas arquibancadas. INTERVALO. PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS. INT. BANHEIRO/CASA DE ROBERTO CAMINHÃO – DIA. O técnico do Atlético, ROBERTO CAMINHÃO, 44 anos, está fazendo barba. Meticuloso, usa uma navalha. A mulher, Galina, uma loura russa linda de 35, está no banho. A suíte é espaçosa e confortável. GALINA Roberto? (sotaque forte) ROBERTO Estou quase acabando. Já estou indo. GALINA (em OFF durante toda a cena) Não é isso, querido. Esqueci a outra toalha. Roberto pega uma toalha no armário e coloca na mão de Galina, estendida para fora. Ela pega a toalha, sem desligar o chuveiro, que também é muito espaçoso. Ele volta a barbear-se. ROBERTO Não vai me esperar? 160 GALINA Entrou sabão em meus olhos. ROBERTO Acho que você pode começar a preparar a mudança, meu bem. Vão me dispensar na quarta-feira. GALINA Não gosto que fale assim. O jogo ainda não aconteceu. ROBERTO Não tem jeito, meu bem. Os caras me rifaram. GALINA Isso foi antes, Roberto. Agora é diferente. Não interessa a eles ir para a segunda divisão. Vão ficar desvalorizados. ROBERTO Jogador não pensa assim, meu bem. Eles querem se vingar. GALINA Vingar por quê? Você não fez mal nenhum a eles. ROBERTO Você sabe as sacanagens que eles fizeram comigo. Mas não contei a você as que eu fiz com eles. Não tem santo no futebol. GALINA Você é incapaz de fazer mal a uma criança, Roberto. ROBERTO Você é que pensa. Fiz o jogo do presidente, deixei o grupo na mão. GALINA O Atlético é uma casa de Mãe... Mãe do quê mesmo? ROBERTO Joana, meu bem. Mãe Joana. GALINA (coloca a cabeça para fora do BOX, com shampoo na cabeça) Nunca vi um clube tão bagunçado. Você fez a coisa certa, Roberto. Era o único jeito de ter respaldo da diretoria para enquadrar aqueles preguiçosos. Não tem culpa se o juiz deixou você na mão. (volta ao banho) ROBERTO 161 No Brasil o técnico não tem apoio da diretoria. Os jogadores fazem o que querem. Estou cansado dessa merda. Ai, ai. (corta o rosto) GALINA Você confia em mim, Roberto? Vai me ouvir? ROBERTO Alguma vez deixei de ouvir, meu bem? O que você acha que eu devo fazer? GALINA Faça um pacto com o grupo. Valorize o valor da multa que o Atlético vai ter que pagar quando você sair. Mostre que está pensando mais no grupo do que em você quando fala em vencer. ROBERTO O juiz vai ficar possesso se eu contar. GALINA Ele que se dane. Deixou você na mão, agora que aguente. A imprensa vai divulgar. Vai ser ótimo. ROBERTO Só isso não vai dar para motivar aqueles merdas. Sem o comprometimento deles não dá para fazer quatro gols nem na seleção do Taiti. GALINA Seu empresário também cuida da carreira daquele menino, Marcelinho. Não cuida? Cuida. E daí? ROBERTO GALINA Você leva seu empresário para falar com eles. Mostrar para eles que os maiores prejudicados com o rebaixamento vão ser eles mesmos. Você sai com três milhões de dólares na mão e eles vão jogar nos campinhos do interior. ROBERTO (pensativo) Melhorou. Mas vou fazer um pouco mais do que isso. Pode dar certo. GALINA Vai (ênfase aqui) dar certo. 162 ROBERTO Você é um gênio, minha loura. Não sei o que eu faria sem você. Roberto acabou de barbear-se. Limpa o rosto com uma toalha e vai fazer companhia a Galina debaixo do chuveiro. INT. SALA DA PRESIDÊNCIA DA LIGA – DIA. Carlão continua sentado no sofá. CARLÃO (sem sair do lugar, gritando) Gomide! Gomide! Gomide entra rápido. E aí, presidente? GOMIDE CARLÃO Como é que chama aquele sujeito irritante, aquele intratável que todo mundo elogia? GOMIDE O alemão? Aquele que apitou a final da Copa do Mundo? É. O próprio. CARLÃO GOMIDE Reine Schumann. Por quê? CARLÃO Por que eu estou pensando em fazer um piquenique com ele no Arpoador. Ora, faça-me o favor, Gomide! GOMIDE O senhor está pensando nele para o jogo do Atlético, presidente? CARLÃO Alguma coisa contra? GOMIDE (desconfiado) Depende. O que o senhor quer que aconteça? CARLÃO Quero ver o Cão ser rebaixado. Não vou negar-me esse prazer. 163 GOMIDE Então pode ficar tranquilo, presidente. Não existe a menor chance de que o alemão vai aceitar o dinheiro do Atlético. Se é que o Doutor Falcão teria peito para fazer uma coisa dessas. CARLÃO Você está doidinho para saber, não é, Gomide? GOMIDE (sem graça) Ele falou alguma coisa, presidente? CARLÃO É mais informação do que você precisa Gomide. Trate de escalar o alemão e divulgue logo para a imprensa. INT. ESTÚDIO DE RÁDIO – DIA. No estúdio, Isabela grava o programa de Sobrenatural de Almeida. Ao lado dela o juiz Falcão. ISABELA (voz de SOBRENATURAL) A semana começa quente no Rio de Janeiro. Depois de amanhã o Atlético vive um momento decisivo. Ou reage e joga um futebol à altura de sua gloriosa tradição ou vai ser mais um time carioca na segunda divisão. VINHETA SONORA DO PROGRAMA. Parece impossível que MARCELINHO e companhia consigam fazer quatro gols na defesa do Brasil e não levar nenhum do ataque mais efetivo do campeonato da Liga. O programa de hoje tem um convidado ilustre: o presidente do Atlético, juiz Ernesto Falcão. Bom dia, juiz. JUIZ Bom dia, Sobrenatural de Almeida. Bom dia, amigos do futebol. ISABELA Juiz: o rebaixamento do Cão é inevitável? FALCÃO Inevitável só a morte. Vamos superar nossas dificuldades e vencer com quatro gols de diferença. ISABELA O time está jogando mal. De onde vem tanto otimismo? 164 FALCÃO O Atlético é um time vencedor, sempre foi. Não admito a hipótese do rebaixamento em minha gestão. Seria muito injusto por tudo que fizemos e eu confio na Justiça de Deus. ISABELA O senhor fez contratações caras, trouxe os reforços exigidos pela torcida, mas o time não correspondeu. Qual é o problema do Atlético? FALCÃO Temos o melhor técnico do Brasil e um plantel cheio de craques. Tudo o que tinha que acontecer de ruim já aconteceu. Agora é ganhar de qualquer jeito. EXT. RUA OSCAR FREIRE/JARDINS/SÃO PAULO – DIA. Imagens mostram um sobrado na Oscar Freire. Um PORSCHE prateado está estacionado numa das vagas do estacionamento. CAM se aproxima e enquadra um adesivo do Atlético, com o Cão estilizado. Dez seguranças (todos de terno preto) vigiam o movimento na rua. LEGENDA SÃO PAULO INT. ESTÚDIO DE FOTOGRAFIA – DIA. MARCELINHO, principal atacante do Atlético, 20 anos, está posando para o fotógrafo JÚLIO BOANOVA, que faz várias fotos na sequência, mudando de posição o tempo todo. Um ventilador levanta os cabelos longos de Marcelinho, que mais parece um cantor de rock dos anos 70. O empresário dele, Juan M. de Noriega observa atentamente a sessão. O pai do jogador, MARCELO FONTANA, está ao lado do empresário. JÚLIO Isso, Marcelinho. Sorria. Isso. Descontraído. Pense numa cervejinha geladinha. Vai. Isso. Rindo, Brincando. Fique à vontade, Marcelinho. Vire para a esquerda. Isso. Direita, agora. Ótimo. Ótimo. Muito bom. Valeu garoto! A sessão prossegue. Um assistente traz uma nova câmera e Júlio continua fazendo fotos. Júlio faz sinal para a maquiadora. 165 JÚLIO Débora, meu bem. Por favor, prenda os cabelos de Marcelinho. Ela vai até lá e prende os cabelos dele. As fotos continuam. MARCELO Estou começando a ficar preocupado, Noriega. Com quê? NORIEGA MARCELO Marcelinho está ficando muito cansado. A gente tem que voltar logo para o Rio e esse negócio não acaba nunca. NORIEGA Calma. Essas coisas levam tempo mesmo. MARCELO Depois de amanhã tem um jogo decisivo e você não deixa meu menino descansar. NORIEGA Os compromissos com os patrocinadores foram assumidos há mais de seis meses, Marcelo. São eles que pagam o salário de seu filho. MARCELO Já fazem sete jogos que ele não faz gol. A torcida já está pegando no pé dele. Se o Cão for rebaixado é ele quem vai pagar o pato. NORIEGA Não seja pessimista, meu caro. Vai dar tudo certo. MARCELO Tudo certo para quem? Meu menino quase não tem tempo para treinar. NORIEGA A campanha vai ser lançada amanhã. Não dá para evitar. Faz parte, Marcelo. Fique tranquilo. Vai dar tudo certo. EXT. SEDE DO ATLÉTICO/RIO DE JANEIRO – DIA. Imagens externas da sede social do Atlético (que, na verdade, é a do Flamengo). INT. RESTAURANTE DA SEDE SOCIAL DO ATLÉTICO – DIA. 166 Um garçom uniformizado serve à mesa em que estão Falcão e o DELEGADO PEIXOTO (58 anos), vice-presidente de futebol do Atlético. FALCÃO Nunca fui tão humilhado em minha vida. Minhas orelhas estão fervendo até agora, Peixoto. PEIXOTO Bobagem, juiz. Não dê importância a isso. Você fez o que tinha que fazer. Carlão é um verme. Não vale a pena ficar chateado com aquele protozoário. Ele não merece tanta atenção. FALCÃO Bom será se ele realmente não tiver gravado tudo. Ele garantiu que não tinha câmera, mas um canalha daquela laia bem que poderia aprontar comigo. Imagina se minha canhestra tentativa de suborno cai na Internet? PEIXOTO Simplesmente não vai acontecer, juiz. Existe limite para tudo. Até para gente como o Carlão. Vamos ver a coisa pelo lado positivo. FALCÃO Esse seu otimismo tem hora que enche meu saco, Peixoto. Vá ser Poliana noutra freguesia, tá? PEIXOTO Ficar nervoso não resolve nosso problema. Um juiz honesto é melhor do que um desonesto trabalhando para desmoralizar ainda mais a gente. FALCÃO Talvez seja até melhor assim. Eu não conseguiria colocar a cabeça no travesseiro se tivesse que subornar alguém. PEIXOTO Devagar, juiz. Todo mundo tem seus pecados. O que a gente tem que fazer é descobrir o preço daquele camarada. FALCÃO Vamos combinar uma coisa? Não quero mais saber desse negócio de suborno. Você cuida disso a partir de agora. Eu assino o cheque, mas não quero participar. PEIXOTO Vou fazer alguns contatos. Acho que aquele menino da assessoria da imprensa é meio parente de Reine Schumann. 167 FALCÃO (tapa os ouvidos) Não quero saber. Pelo amor de Deus não me diga nada. EXT. CT DO ATLÉTICO/RIO – DIA. Os jogadores do Atlético estão treinando. Peixoto está de pé ao lado do campo. O treino está sendo acompanhado pela imprensa, que se espalhou pela arquibancada e acompanha tudo. LINCOLN SCHUMANN, assessor de imprensa, louro, sardento, 25 anos, aproxima-se de Peixoto. LINCOLN O senhor queria falar comigo, delegado? PEIXOTO Sim, meu filho. Quero dar uma palavrinha com você. Pode ser? LINCOLN Se for até o final do coletivo, tudo bem. PEIXOTO Ótimo. É rápido. Não vou atrapalhar seu trabalho. Vamos sentar ali. Aponta um banco de madeira, perto do alambrado; eles caminham até lá e sentam-se. PEIXOTO (querendo aparentar descontração) Ouvi dizer que você tem um primo que é juiz de futebol. LINCOLN Tenho sim. Reine Schumann. PEIXOTO Você sabe que é ele quem vai apitar o jogo de quarta-feira? LINCOLN Claro. Fiquei até aliviado quando soube que ele é quem iria apitar o jogo. Por quê? PEIXOTO LINCOLN 168 Por que ele é muito competente. Não vai aceitar pressão de nenhum dos dois lados. PEIXOTO E você acha que isso é bom? LINCOLN O senhor acha que não é? PEIXOTO Eu perguntei primeiro. LINCOLN É bom sim. Acho que nossas chances aumentam com um juiz isento. PEIXOTO (aponta para o campo) Mesmo jogando aquela bolinha de merda que a gente está vendo? LINCOLN Treino é assim mesmo, delegado. Ainda mais na véspera de um jogo decisivo. O pessoal fica com medo de lesão. É natural. PEIXOTO Sei. Então você acha que dá para ganhar de quatro do Brasil. LINCOLN Acho que dá sim, delegado. Para eles, que estão na liderança do campeonato, será um jogo sem importância. Se entrarmos em campo com determinação dá para ganhar sim. PEIXOTO Com quatro gols de diferença? Em cima da melhor defesa do campeonato? Do goleiro menos vazado? LINCOLN Se entrarmos com determinação dá pra fazer até mais gols. Eles vão entrar relaxados, pensando no próximo jogo do campeonato sul-americano. PEIXOTO Por sinal, onde está Marcelinho? Não estou vendo o garoto. LINCOLN Ele foi a São Paulo fazer umas fotos e gravar um comercial. 169 PEIXOTO Logo agora? LINCOLN Também achei errado, mas foi ordem do presidente. Roberto Caminhão ficou possesso, mas teve que aceitar. PEIXOTO Desse jeito fica difícil ganhar. O menino está cansado. Por isso não faz gols há tanto tempo. Com tantos compromissos publicitários não dá para concentrar no futebol. LINCOLN Também acho. Mas o presidente alegou que a programação foi feita com antecedência. Dois jornalistas já vieram perguntar onde está Marcelinho. O que você disse? PEIXOTO LINCOLN Falei que ele está com dores musculares, relaxando na piscina de água aquecida. PEIXOTO Fez bem. Mas me diga uma coisa. LINCOLN O que o senhor quiser. PEIXOTO Você conhece bem o juiz que vai apitar? É mesmo seu primo? INTERVALO. PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS. Continua a conversa entre Peixoto e Lincoln, ao lado do campo de treinos do Atlético. LINCOLN Conheço. Meu pai é muito amigo dele. PEIXOTO (baixinho, olhando para os lados) Ele nunca levou bola de ninguém? LINCOLN Como assim? 170 PEIXOTO Bola. Jabaculê. Suborno. LINCOLN Que eu saiba, não. Ele é protestante, daqueles bem rígidos. Duvido que ele tenha levado. PEIXOTO Todo mundo diz que o sujeito é honesto, mas nunca se sabe. LINCOLN (baixinho também) Cá entre nós, delegado. Se ele aceitasse seria show de bola para nós. Imagina se o time for rebaixado? Vai ser uma merda. PEIXOTO Que bom que você é um rapaz inteligente. Faz uma pesquisa. Converse com seu pai. Ele é Cão, não é? LINCOLN Fanático, delegado. O senhor não conte para ninguém, mas Reine também é Cão. PEIXOTO É mesmo? Que notícia boa. LINCOLN Mas não adianta tentar nada, delegado. Ele pode até me bater se eu falar qualquer coisa nesse sentido. De dinheiro? PEIXOTO LINCOLN Não. Se falar em dinheiro com ele é perigoso ter um assassinato. No caso de uma colher de chá para o Cão, que eu falei. PEIXOTO Faz o seguinte, meu filho. Conversa com seu pai. Conversa de pé-de-ouvido. Homem para homem, só vocês dois. Sozinhos. Pergunta sobre o juiz. Ele deve ter um ponto fraco. Deve haver um jeito de conquistar a boa vontade dele. LINCOLN Vou fazer isso, delegado. Hoje à noite ele vai jantar lá em casa. PEIXOTO 171 Essas coisas tem que ser bem-feitas. Tire o dia para cuidar disso. Fale com seu pai. Com jeito. Cuidado. LINCOLN À tarde ele está no trabalho, delegado. Mas falo com ele antes de Reine chegar para o jantar. PEIXOTO Ótimo. Bom menino. Muito bom menino. Vou ver um aumento para você. LINCOLN Não é preciso, delegado. Não por isso. Faço qualquer coisa que puder ajudar o Cão. EXT. DELEGACIA DE POLÍCIA/ZONA SUL/RIO – DIA. Um carro de polícia (PM), conduzido pelo cabo BELLINI, chega à entrada principal de uma delegacia da zona Sul de São Paulo. Chiquinho e Sandro estão na parte de trás do veículo (ambos algemados). Um policial (de colete da Polícia Civil, armado com uma metralhadora portátil), DANILO, chega até o carro. BELLINI Olha só quem veio fazer uma visita, Danilo. DANILO (dá uma olhada em Chiquinho e Sandro) Quem são esses dois mané, cabo? BELLINI Os caras que sequestraram o jogador do Brasil. Aquele REYNA. DANILO Jura?! Eles não têm cara de bandido. BELLINI E quem disse que bandido tem cara de marginal? Foi-se o tempo em que era só olhar para o meliante e saber que ele deveria ser preso. DANILO (ainda olhando) Mas esses dois parecem bem inofensivos. BELLINI Um dos dois é até meio retardado. 172 CHIQUINHO Retardado é a... (para de falar porque percebe que não seria adequado) DANILO O retardado é o nanico? CLOSE-UP em Chiquinho. BELLINI Sabe que eu não sei? Deve ser o nanico. CHIQUINHO Não tem nenhum retardado aqui. SANDRO Nós somos torcedores do Cão. Prenderam a gente por causa disso. Sacanagem. Sacanearam a gente. Saem do carro e são escoltados até a delegacia por Danilo. INT. SALA DO DELEGADO PEIXOTO – DIA. O delegado está lendo jornal. Toca o telefone na mesa dele. PEIXOTO Peixoto. Oi, meu filho. Alguma novidade? VAMOS A LINCOLN, que está na sala da casa dele, ao lado do pai. LINCOLN Estou com meu pai aqui, delegado. Já expliquei tudo a ele. (pausa) Vai sim. Seguinte. Meu pai disse que se o Atlético oferecer alguma coisa Reine vai para a imprensa e denuncia todo mundo. OUVIMOS GRITOS AO TELEFONE, sem entender exatamente o quê está falando o delegado. LINCOLN Calma, delegado. Ninguém falou nada até agora. Meu pai deu uma dica pra gente. Fica tranquilo, delegado. Seguinte. Reine tem um filho com problemas sérios nos rins. É. O menino precisa fazer um transplante de rim. Precisa de um rim. Não. Pode ser qualquer um. Se a gente conseguir um doador para o garoto, Reine vai ficar muito agradecido e provavelmente pode dar algum tipo de ajuda. Nada absurdo, mas ajuda. O delegado continua ao telefone. 173 PEIXOTO Já é alguma coisa. Vamos arrumar um doador então. Está certo. Mande para meu e-mail particular. Bom trabalho, garoto. Deixe comigo agora. Depois entro em contato com você. Peixoto fica parado, pensativo, com o telefone na mão. OUVIMOS batidas na porta. Danilo entra na sala. DANILO Doutor Peixoto. Os caras já estão aqui. Ah, é? E daí? PEIXOTO (irritado) DANILO Os caras que sequestram o jogador, doutor Peixoto. PEIXOTO Jogador? Que jogador? DANILO Aquele que é médico. REYNA, do Brasil. Médico?! PEIXOTO O rosto dele se ilumina. PEIXOTO Por que você não disse logo, sua anta? Traga os dois. Vou ao banheiro e já volto. Danilo sai de quadro e volta empurrando os dois novos presos. Mostra aos dois uma faixa amarela situada a um metro e meio da mesa do delegado. DANILO Não pode passar dessa faixa amarela. Fiquem sempre atrás da faixa amarela. Nada de chegar perto do doutor Peixoto, entendido? SANDRO Pode pisar na faixa? CHIQUINHO Deixe de ser besta, Sandro. DANILO (a Sandro) 174 Pisa que você vai ver o que acontece. Bico calado agora. Não falem com o delegado. Ele é que vai falar. INT. GABINETE DO DELEGADO PEIXOTO – RIO. O delegado Peixoto sai do banheiro e volta a sentar-se. Olha atentamente para Chiquinho e para Sandro. PEIXOTO Vocês sabem quem eu sou? CHIQUINHO Ele acabou de chamar o senhor de delegado. SANDRO Eu conheço o senhor. PEIXOTO (reconhece Chiquinho) Você também deveria me conhecer. Você não é motoboy? CHIQUINHO O senhor desculpe, mas conheço não. PEIXOTO Você já fez duas entregas para mim. Eu sou vice-presidente de futebol do Atlético. CHIQUINHO Lembrei agora. O senhor mora no Leblon, não é? SANDRO Eu já vi o senhor na Cara de Cão! PEIXOTO (a Chiquinho) Moro. Claro que já me viu. Eu sou muito amigo de Roque Silvano. Eu não sabia que você estava envolvido no sequestro de REYNA. CHIQUINHO Deu tudo errado, doutor. Mas ninguém machucou o moço. Juro. PEIXOTO Calma, meu filho. Eu sei que não. Mas sequestro é crime hediondo. Vocês vão pegar uma cana demorada. SANDRO Meu pai vai me matar quando chegar de viagem! 175 PEIXOTO Falei com Roque. Ele me contou a estória toda. CHIQUINHO Ele é que tinha que estar aqui. Mas ele é importante. Ele tem grana. Eu sou um pobre coitado e é só por isso que sou eu que estou aqui. PEIXOTO Sua intenção foi boa, meu filho. Você fez alguma coisa para ajudar seu time, ao contrário de quase todo mundo, que está de braços cruzados vendo o Cão ser rebaixado. CHIQUINHO Mas deu tudo errado. Quem fez merda foi Roque, não fui eu. Se não fosse REYNA eu estava frito. SANDRO Eu também fiz coisa errada. PEIXOTO (a Sandro) Foi você quem jogou aquele foguete no sujeito da cadeira de rodas, não foi? SANDRO Foi sim. Mas foi para defender Melissinha. PEIXOTO Foi uma pena não ter dado certo. A gente livrou a cara do Roque. Nós cuidamos bem de nossos amigos. (a Chiquinho) esqueça REYNA. É um filho da puta. CHIQUINHO Não acho. Mas não vem ao caso. O senhor vai ajudar a gente também? PEIXOTO Depende. SANDRO Ajuda a gente doutor. A gente não fez por mal. CHIQUINHO Depende do quê, delegado? PEIXOTO De vocês colaborarem. Vamos fazer a coisa direito dessa vez. 176 DANILO Cuidado com eles, delegado. O grandão é meio retardado. SANDRO Retardado é a sua mãe! PEIXOTO (a Danilo) Alguém aqui pediu sua opinião? CHIQUINHO O quê? DANILO (sai) Desculpa delegado. Eu só queria ajudar. Peixoto faz sinal para Chiquinho aproximar-se. O quê? CHIQUINHO PEIXOTO (baixinho) Seu amigo. Ele é mesmo ruim da cabeça? SANDRO O pior de tudo vai ser aguentar a gozação dos torcedores do Brasil. CHIQUINHO (baixo também) Só um pouco. Mas é gente boa. PEIXOTO (a Sandro) Talvez não. Se a gente fizer as coisas certas dá para escapar do rebaixamento. CHIQUINHO (interessado) O senhor está pensando em liberar a gente para sequestrar o sujeito do jeito certo? PEIXOTO Que sequestrar merda nenhuma. Eu sou delegado de polícia, esqueceu? CHIQUINHO Mas como o senhor acha que dá para ajudar o Atlético? PEIXOTO (coça o pescoço, olha para Sandro) 177 Depende. Talvez a gente possa dar uma força para o Cachorro. Vai depender da boa vontade de seu amigo. EXT. CT BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA/RIO – ENTARDECER. Final de treino. Os jogadores, exaustos, estão saindo do campo. Madruga e Quintero estão no centro do campo. O que achou? MADRUGA QUINTERO Show de bola. Você ganhou a confiança dos jogadores bem antes do que eu imaginava. É como se tivesse trabalhado com eles a vida toda. MADRUGA Experiência pesa muito, José Roberto. Estou no futebol há mais de 30 anos e sei lidar com jogador. QUINTERO Reparei que você não se preocupa muito com a parte tática. MADRUGA Jogador que diz que gosta de treino tático está mentindo. Prefiro adotar um esquema de jogo simples, sem inventar muita coisa. Deixar os jogadores mais livres. QUINTERO Está funcionando. A turma está motivada, relaxada. MADRUGA De 10 orientações táticas, no máximo duas ficam mesmo na cabeça deles. Não adianta forçar a barra. QUINTERO Mancini fazia exatamente o contrário. MADRUGA Ele era um grande técnico, mas não percebeu que com jogador brasileiro a coisa é diferente. Eles gostam mesmo é de técnico que não atrapalha. QUINTERO Aprendi com você em uma semana o que levei cinco anos para aprender na Europa. MADRUGA 178 Na hora do jogo a pressão é muito grande e o jogador só faz o que está na cabeça. No máximo 10% de tudo que o técnico fala. E olhe lá. QUINTERO Mas você conversa muito com eles. MADRUGA Quero que eles saibam exatamente o que eu quero. Que confiem em mim tanto quanto confiam neles mesmos. Você reparou como Leo é ouvido pelo grupo? Começam a caminhar. Devagar, na direção dos vestiários. QUINTERO Leonardo é um psicólogo nato. Vai dar um belo treinador. MADRUGA Uma pena ele ainda não poder jogar o tempo todo. Com ele em campo a possibilidade deles fazerem o que a gente combina aqui é muito maior. QUINTERO Você vai mesmo partir com tudo para cima do Atlético? MADRUGA É o que os jogadores querem. Ninguém falou em dar moleza para o Atlético. E olhe que eles têm amigos lá. QUINTERO Não é bom transformar isso numa coisa pessoal. A imprensa fica botando fogo, o jogador acaba entrando nessa onda. Não gosto disso. MADRUGA Não dá para evitar, José Roberto. Eles querem fazer média com a torcida e vão fazer o que quiserem. Você tem que fazer de conta que não vê, senão perde autoridade. FEDERICA surge à beira do campo e faz sinal para Quintero. MADRUGA Você se dá muito bem com ela. Isso é ótimo para mim. QUINTERO Vem novidade por aí. Eu conheço aquela cara. MADRUGA 179 Vou tomar uma ducha. Depois a gente se fala. (a FEDERICA) Boa tarde, presidente. FEDERICA Tudo bem com você? Gostou do treino? MADRUGA Ótimo treino, presidente. Vou deixar vocês à vontade. (sai) FEDERICA Você está satisfeito com ele? QUINTERO Muito. Ele é muito bom. Tranquilo, sem muita conversa fiada. O que você conta? FEDERICA O presidente do Atlético me chamou para jantar. Hoje. QUINTERO (rindo, com ironia) É mesmo? O que você acha que ele quer? FEDERICA Provavelmente o juiz vai pedir para você escalar o time reserva. Eu não. Madruga. QUINTERO FEDERICA Você entendeu. QUINTERO E você ainda não. O treinador é ele. FEDERICA Você que ir comigo? Quer que eu vá? Você é quem sabe. QUINTERO FEDERICA QUINTERO Acho melhor você ir sozinha. Parece que o juiz convidou só você. INT. SALA DE FALCÃO/SEDE SOCIAL DO ATLÉTICO – DIA. 180 Falcão e Peixoto tomam uísque no fim de tarde. Janelas abertas, temperatura agradável. Ela topou. FALCÃO PEIXOTO Vai escalar o time reserva? FALCÃO Não. Topou o jantar. INTERVALO. PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS. INT. SALA DE FALCÃO/SEDE SOCIAL DO ATLÉTICO – DIA. O juiz e Peixoto continuam a conversa. PEIXOTO Vai ser perda de tempo. Ela não interfere. Quem resolve é Quintero e ele não vai fazer isso de jeito nenhum. FALCÃO A situação é emergencial. Não custa nada ela colaborar. (pausa; um garçom serve mais um uísque para o juiz) Amanhã cedo vou fazer uma reunião de diretoria e apresentar nossa estratégia. PEIXOTO Ótimo. Divida a responsabilidade com eles. FALCÃO Vão me apertar por causa do juiz que Carlão escolheu. PEIXOTO Relaxa. Eles conhecem o filho da mãe. FALCÃO Eu não estou levando muita fé nesse negócio de transplante de rim. Tem que ter muito cuidado para a coisa não vazar para a imprensa. PEIXOTO Vou cuidar pessoalmente disso. Cuide da diretoria que fica de bom tamanho. Vem muita pressão amanhã. FALCÃO 181 Estou apostando mesmo é na festinha. Já mandei contratar as meninas. Botei umas gostosas da televisão também. Jogador adora artista. PEIXOTO Quanto você vai gastar com a festa? FALCÃO Uns 60 mil. 30 com o buffet e o resto com as meninas. Uísque por fora. Vou mandar uma caixa de scotch de primeira. PEIXOTO É pouco. Coloque pelo menos uma artista famosa. Consiga uns 100 mil e põe uma de novela. Ou uma daquelas dançarinas daqueles shows. FALCÃO Está certo. Você não acha que 300 paus é muito dinheiro? PEIXOTO Foi o que Durval pediu. Não é hora de pão-durismo. Tem que abrir a carteira. Ele prometeu que vai levar quase todos os jogadores do Brasil. Contratou uma banda de pagode. FALCÃO Estou apostando nessa festinha. Os caras vão estar mortos no dia seguinte. PEIXOTO Tem que orientar bem as meninas. Elas não podem dar sossego pros caras. Tem que fazer a turma beber como se o mundo fosse acabar. FALCÃO (ri) Estou até com vontade de ir lá aproveitar as meninas. PEIXOTO Promete que esqueceu aquela estória do purgante? Vai queimar o filme de Durval. Ele vai ficar possesso. Não vale a pena escorregar nessa casca de banana. FALCÃO Sem purgante. Vamos guardar o purgante para o dia do jogo. PEIXOTO Só em último caso. É perigoso. Pode dar suspensão na Liga. FALCÃO 182 Está certo. (propondo um brinde) À vitória! PEIXOTO Vitória só, não. Com quatro gols de diferença. INT. VESTIÁRIO DO CT/BRASIL FC – DIA. Os jogadores estão tomando banho: uns nos chuveiros, outros numa das banheiras de hidromassagem; outros estão terminando de colocar a roupa. REYNA está na banheira, ao lado de Durval. DURVAL E aí, Violão? Você vai aparecer lá em casa hoje? VIOLÃO (em OFF) Tu tá pensando que eu sou algum folgado? Amanhã cedo pego no batente às 7h. REYNA (com o charuto na boca, apagado) Você não sabe o que está perdendo. Amanhã vai ter pagode. VIOLÃO (em OFF) Pois me incluam fora dessa, moçada. Semana passada a patroa me deixou trancado fora do quarto. Estou dormindo no sofá até hoje. DURVAL Essa vai ser a melhor festa do mês. Vai ter até atriz da televisão. REYNA (imitando o sotaque carioca) Atriz ou modelo e atriz? Todos que estão no vestiário riem. DURVAL Uma amiga minha ficou de levar aquela loirinha da novela das oito. Gritos e assovios. REYNA (levanta as mãos para cima, vibrando) Graaaaaaande Durval! Madruga chega ao vestiário. Silêncio. 183 MADRUGA Desse jeito eu vou pensar que vocês estão combinando alguma coisa para hoje à noite. REYNA O que é isso, professor? Aqui só tem gente responsável. MADRUGA Vinte anos de praia, moçada. Cuidem-se. Vamos pegar leve. Senão a gente volta com a concentração. Gritos e assovios. GRUPO (uníssono) Madruga! Madruga! Madruga! Madruga! INT. QUARTO DE HOSPITAL – DIA. Sandro está deitado numa cama, Chiquinho em outra, as duas bem próximas. O delegado Peixoto está com eles, sentado no sofá de visitas. Uma enfermeira e um enfermeiro estão tirando sangue dos dois. INT. SALA DA CASA DE LINCOLN – NOITE. Lincoln, PAULO SCHUMANN e REINE estão sentados, tomando um cafezinho. Paulo levanta-se. PAULO Vou deixar vocês à vontade. (a Lincoln) Abra o coração para seu primo, filho. (sai) REINE Quanto mistério. Vou ser convidado para ser seu padrinho de casamento? Não se esqueça de que bancário não ganha nada. LINCOLN Que casamento que nada. Minha praia é outra, Reine. REINE (preocupado) Você é gay? LINCOLN Não. Fiz um tratamento e me curei há dois anos. REINE Você está falando sério? LINCOLN 184 Claro que não. Eu sou facão. O papo é outro. Qual é a encrenca? REINE LINCOLN É um assunto delicado. Você promete que vai ouvir até o fim? Por favor. REINE Não estou gostando dessa estória. LINCOLN Confie em mim. Promete? Fala. REINE LINCOLN Eu consegui um doador para Luisinho. REINE É mesmo? Graças Deus! Mas tem que ser doador universal. Tem certeza de que esse que conseguiu é universal? LINCOLN Absoluta, Reine. O Atlético já verificou tudo. REINE (desconfiando) O Atlético? O que o Atlético tem a ver com isso? LINCOLN Nada. Quer dizer. Não no sentido que você está pensando. REINE Em que sentido eu estou pensando? LINCOLN Você sabe. O jogo de amanhã. (Reine levanta-se) Calma. Não é isso. Um diretor do Atlético conseguiu o doador, só isso. REINE (firme) Sei. Na véspera do jogo que pode rebaixar seu time aparece você dizendo que um diretor arrumou um doador universal para meu menino. Você está pensando que eu sou um imbecil? LINCOLN 185 Ninguém vai pedir nada em troca. Todo mundo sabe que não iria adiantar. REINE E aí você vem com essa conversa mole e pensa que eu caio nessa onda. LINCOLN Ok. Está certo. Você não quer. Tudo bem. Mesmo sabendo que ninguém vai cobrar nada de você, não vai ajudar seu menino. Tudo bem. Quem sabe daqui a um ano ou dois aparece outro doador universal. REINE Eles não vão exigir nada em troca? LINCOLN Nada que ofenda sua dignidade. Você vai sair de campo de cabeça erguida como sempre fez. O que o Atlético espera de você é só um pouco, um pouquinho só de boa vontade. CLOSE-UP de Reine. Ele não diz nada, mas parece aceitar. INT. QUARTO DE HOSPITAL – DIA. De volta ao quarto de hospital. Sandro repousa adormecido no leito. Ao lado dele, Peixoto e Chiquinho. Um médico está saindo. PEIXOTO Obrigado, doutor. Não sei como agradecer. MÉDICO Eu sei. Não deixe o cão ser rebaixado. (e sai) CHIQUINHO O senhor tem certeza de que ele vai ter uma vida normal? PEIXOTO Você ouviu o doutor Marcelo. Inteiramente normal. CHIQUINHO Quando é que a gente pode ir embora? PEIXOTO O médico vai liberar seu amigo amanhã cedo. Depois vocês podem ir embora, sem problema. INT. SALA DA CASA DE DURVAL – NOITE. 186 Uma sala ampla, decorada com gosto duvidoso: uma residência de novos ricos. A sala está escura e, aos poucos, um discreto feixe de luz surge na escuridão. Vemos uma mulher morena (cabelos presos em rabo de cavalo), com o corpo cheio de espuma, inclusive o rosto. Na trilha sonora entra uma música típica de strip-tease, lenta, sensual entra junto com a imagem da mulher. Aos poucos, irresistivelmente, ela vai tirando espuma do corpo e revelando curvas perfeitas, de uma mulher que frequenta academias de musculação. O corpo é bem-definido, mas sem exageros. Gemidos, aplausos e gritos começam devagar, seguidos por gritos entusiasmados de homens: reconhecemos na plateia entusiasmada a voz de REYNA. REYNA Linda! Linda! Gostosa! Vem aqui, que eu te ajudo! VÁRIAS VOZES (em uníssono) Tesão! Gostosa! Vem aqui, vem?! O entusiasmo é grande, mas ninguém interrompe o ritual. De repente a música para e a dançarina fica imóvel como uma estátua; a luz sobre ela apaga-se e VEMOS que só rosto dela ainda não foi mostrado (ainda está coberto de espuma). Ela desaparece, tragada pela escuridão, ao mesmo tempo em que... ...o som de suspense de uma bateria invade a sala. Outro feixe de luz aparece e surgem duas mulheres belíssimas, vestidas como dançarina de dança do ventre, tendo à frente um anão vestido como escravo árabe das Mil e Uma Noites, carregando sobre a cabeça uma pequena urna. Música árabe, sensual, começa a ser ouvida; toques de violino são ouvidos na sala. No escuro, VEMOS que outras mulheres, também vestidas como odaliscas, estão recolhendo pequenas fichas numeradas (como de um cassino) e depositando-os na urna que continua na cabeça do anão, que olha com desejo para as duas mulheres seminuas que estão ao lado dele. Recolhidas e depositadas todas as urnas, a música é interrompida pela bateria e uma das duas mulheres que estavam iluminadas enfia a mão na urna... 187 ...OUVIMOS GRITOS DE HOMENS E DE MULHERES... VOZES (em uníssono, cantando a música famosa, acompanhada por violinos) Com quem será? Com quem será? Com quem será que a LUÍSA vai casar? ...com quem será? A mulher mostra o número do cartão sorteado. CLOSE-UP na ficha: número 7. REYNA (pulando no escuro) Ganhei! Ganhei! Ele aproxima-se da luz, ganha dois beijos de cada dançarina do ventre, que começam a sacudir o corpo belíssimo (entram na TRILHA os acordes de uma dança árabe típica: as mulheres balançando o ventre). REYNA vê um feixe iluminar-se de novo e lá está de volta a loura, com o corpo novamente coberto de espuma. Ele se aproxima dela, beija-a com carinho e os dois perdem-se na escuridão; OUVIMOS gritos de inveja dos homens que estão na plateia. Imediatamente luzes fracas surgem e VEMOS que a sala está cheia de odaliscas seminuas. Os homens presentes, jogadores do BRASIL FC, pegam uma ou duas mulheres pelas mãos (há mais mulheres do que homens) e saem com elas. Outros ficam e as mulheres continuam a dança do ventre, com a música que não parou de tocar depois da saída de REYNA. CORTA PARA Um corredor, em que VEMOS REYNA conduzindo com carinho a mulher com o corpo cheio de espuma. Ele entra por uma porta protegida por um homem enorme, negro, vestido como escravo das Mil e Uma Noites, que a abre para o casal. ENTRAMOS com REYNA na suíte e vemos uma mesa posta, com balde e uma garrafa de champanhe nas mãos do anão, que imediatamente ‘estoura’ a garrafa e serve em duas taças para o casal que segue para a cama. REYNA recebe a taça e dá para a mulher; pega a dele e ambos bebem juntos. O anão sai discretamente. CORTA PARA IMAGENS DA FESTA DE DURVAL. 188 IMAGENS INTERCALADAS POR FUSÕES DE UM CLOSE-UP DE UM RELÓGIO DE PAREDE QUE ESTÁ NA SALA: vemos o tempo evoluindo de 11h da noite até 5h da manhã do dia seguinte. Lá fora, uma banda de pagode tem alguns jogadores tentando tocar junto. O churrasco está sendo servido por garçons uniformizados. Na trilha, PAGODE. Numa suíte enorme, com uma cama absurdamente grande, três jogadores do Brasil (identificamos Lúcio, Lucas, Alberto) estão cheirando uma fileira de cocaína colocada sobre um livro de capa dura preta, que repousa sobre a barriga de uma mulher seminua. Na sala, o grupo bebe uísque e cerveja, divertindo-se para valer. Ao fundo a música de PAGODE executada lá fora. INT. SUÍTE DA CASA DE DURVAL – NOITE. REYNA e a morena na cama. Devagar, ele vai tirando a espuma do corpo dela. Lentamente, tira do rosto também. REYNA olha fixamente para o rosto dela, come expectativa para ver quem é a mulher. CLOSE-UP do rosto da mulher: é o rosto de Isabela Falcão, a jornalista da Folha do RIO. O quê? Você? REYNA CORTA PARA NOVO CLOSE-UP. O rosto não é mais o de Isabela, mas de uma mulher loura, linda também. Uma atriz famosa da TV (facilmente identificada como tal pelos espectadores). ATRIZ (sem perceber o que houve com REYNA) Sou sua. Todinha sua. Estava rezando para ser você, meu lindo. Graças a Deus ganhei esse presente. Sou sua. Inteirinha sua. CLOSE-UP no ponto de vista de REYNA, que está confuso. Ele reconhece a loura da TV, mas logo depois vê o rosto de Isabela mais uma vez. Pisca os olhos, confuso. Ela pensa que ele mal está acreditando que tem uma famosa estrela na cama. ATRIZ Sou eu mesma, querido. No ponto de vista de REYNA, mais uma vez: ela só vê a loura então. Tranquiliza-se. REYNA Você é uma rainha. A minha rainha. 189 EXT. PRÉDIO DE ISABELA FALCÃO/LEBLON/RIO – MADRUGADA. O LAND ROVER de REYNA chega cantando pneus e para, mal estacionado, bem em frente à portaria. O porteiro sai do prédio, vai até o carro e vê que o motorista (REYNA) desmaiou. Volta ao prédio. INT. PORTARIA DO PRÉDIO DE ISABELA – MADRUGADA. O porteiro está usando o telefone interno. Chama várias vezes e espera. PORTEIRO Dona Isabela? É o Josivaldo. Desculpe acordar a senhora assim, numa hora dessas. Mas aquele jogador que foi sequestrado está aqui embaixo. É a terceira vez que ele vem aqui. Não. De jeito nenhum. Ele está dormindo no carro. Está certo. Eu aviso. INT. SALA DA CASA DE ISABELA FALCÃO – MADRUGADA. Isabela entra na sala (usa um pijama de seda, delicado, sensual) e VEMOS que QUINTERO está dormindo, sentado no sofá, com a cabeça encostada numa almofada. Delicadamente, ela o acorda. ISABELA José Roberto? José Roberto? QUINTERO (assustado, grogue) Hein?! Como? O que foi? ISABELA Calma, Zé. Escute. Leonardo REYNA está lá embaixo. QUINTERO (vê um vidrinho de comprimidos coloridos sobre a mesa de centro) Leo? Aqui? O que ele veio fazer aqui? ISABELA E eu sei? Todo mundo resolveu aparecer hoje aqui. Vamos. Levante-se. Vá lá. QUINTERO (pega o vidrinho e olha o conteúdo) Eu não posso. Estou bêbado ainda. ISABELA (puxa-o pelo braço, obrigando-o a levantar-se) 190 Anime-se homem. Vá lá. O porteiro disse que Leo está bêbado também. Apagou no carro. FEDERICA aparece na sala, só de calcinha. Um corpo espetacular. QUINTERO dá um salto: parece que fica sóbrio de uma só vez. FEDERICA (com olhos apertados, com dificuldades com a claridade na sala) O que aconteceu? Que barulheira é essa? Quintero parece em estado de choque: não desgruda os olhos das curvas do corpo de FEDERICA por um segundo. ISABELA (empurrando Quintero na direção da porta) Você vai lá embaixo buscar Leo. Tome seu remédio de novo, porque vomitou tudo. (a FEDERICA) Você volta para seu quarto. Não aconteceu nada. Eu quero dormir. Estou morrendo de sono. Vamos, vamos. Já para cama (puxando uma confusa FEDERICA na direção do corredor). INT. QUARTO DE ISABELA FALCÃO – AMANHECER. Isabela está no quarto dela; aproxima-se da janela e olha para baixo. PONTO DE VISTA DE ISABELA mostra, lá embaixo, Quintero abrindo a porta do carro e ajudando REYNA, que caminha com dificuldade (muito bêbado) a entrar no prédio em que ela mora. INT. PORTARIA PRÉDIO DE ISABELA – DIA. Quintero praticamente arrasta REYNA até o elevador, com ajuda do porteiro. INT. ELEVADOR – DIA. Quintero tem dificuldade para manter REYNA de pé. REYNA solta um peido, arrota. Quintero faz uma careta. INT. SALA DO APARTAMENTO DE ISABELA – DIA. Quintero entra na sala, carregando REYNA e, sempre com muita dificuldade, deixa que o corpo dele se espalhe no sofá. Olha para o corredor, em busca de Isabela. QUINTERO (voz baixa) Isabela. Isabela. Isabela! Como não há resposta, Quintero atravessa a sala e vai até a cozinha. 191 ACOMPANHAMOS Quintero: ele vai até a geladeira, pega uma jarra cheia de água e bebe um gole interminável, no bico da própria jarra. Repara então num cigarro feito à mão, sobre a mesa. Curioso, pega o cigarro e cheira. Sorri quando percebe que é um baseado. QUINTERO Quer dizer que Sobrenatural de Almeida gosta de um baseado?... Pega um isqueiro que está ao lado e acende o baseado, tragando devagar, saboreando lentamente as baforadas no baseado. A imagem de Quintero aos poucos se perde no meio de tanta fumaça: ele fuma DEMAIS. INTERVALO. PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS INT. CAMPO DE TREINOS DO ATLÉTICO – DIA. O treinador Roberto Caminhão está no centro do campo. Os jogadores estão em volta dele (reservas com colete): vai começar uma preleção. ROBERTO Não vamos treinar hoje cedo. MARCELINHO Foi mal, professor. Marcar um treino para as sete de matina e depois dizer que não vai ter nada? ROBERTO Eu não disse que não vai ter nada. Só falei que não vai ter treino. MARCELINHO O que a gente vai fazer então, professor? ROBERTO Primeiro vamos conversar. Conversa de homem. De peito aberto. (teatral, rasga a camiseta e mostra o peito) Jogo limpo. Quem está dentro? TODOS Eu! Aqui! Vamos lá, professor! Manda ver! ROBERTO Meu empresário falou de meu contrato com vocês. Deu para perceber que minha vida não vai piorar em nada se o time for rebaixado? 192 HIDALGO (forte sotaque francês) Deu sim, professor. Você fica na boa e a gente vai ter dificuldades para sair. MARCELINHO Eu não pretendo sair. Vou disputar a segunda divisão de a gente perder. ROBERTO Falou como homem, Marcelinho. É isso mesmo. Nessa altura do campeonato a gente tem que ter vergonha na cara, mais do que dinheiro no bolso. HIDALGO Falar é muito bonito, Roberto. Quero ver você agir. ROBERTO Tenho uma proposta para vocês. Se a gente fechar agora um acordo de macho, de homem que respeita o fio da barba... HILDALGO Desembucha logo, Caminhão. ROBERTO Vá tomar no rabo, Hidalgo. Quem desembucha é sua mãe. Hidalgo levanta-se: quer briga. Marcelinho, ao lado dele, segura Hidalgo. MARCELINHO Qual é tua proposta, professor? ROBERTO Abro mão da minha multa rescisória. Não recebo nenhum centavo dos dólares a que tenho direito. HIDALGO E daí? O que a gente ganha com isso? ROBERTO Divido a grana com vocês. A gente aluga um barco, coloca umas mulheres lindas lá e fica uma semana torrando meus dólares. HIDALGO Está falando sério, Caminhão? ROBERTO 193 Nunca falei tão sério em minha vida. Fazemos aqui um compromisso de macho. Vamos suar a camisa para valer, como se fosse o jogo de nossas vidas. Deixamos para trás nossas brigas e jogamos como nas primeiras partidas. Com determinação, indo nas bolas para decidir o jogo. Assim a gente ganha. HIDALGO Melhor perder a fazer a farra no barco. O grupo ri com vontade. ROBERTO Se a gente ganhar esse jogo e não for rebaixo garanto que o juiz banca essa farra para gente. No mesmo valor da minha multa rescisória. O grupo faz festa. Estão pacificados. ROBERTO Vamos fazer uma pelada, rapaziada. O juiz está de olho na gente. Vamos mostrar a ele que ninguém aqui esqueceu como se joga bola. Os jogadores, alegres, reúnem-se e jogam Roberto Caminhão para cima, várias vezes, na comemoração antecipada do ótimo jogo que sabem que vão fazer. Ainda que não ganhem por quatro gols de diferença. O Juiz e Peixoto aproximam-se, felizes, acompanhados por Lincoln e Chiquinho: o Cão está vivo. O delegado traz um pastor alemão numa coleira: é a mascote do time. EXT. HOSPITAL DAS CLÍNICAS/RIO – DIA. Uma visão geral da entrada principal. INT. CORREDOR DO HOSPITAL – DIA. Um médico já idoso entra num apartamento em cuja porta há um homem com um colete da Polícia Civil. MÉDICO O pai do garoto já chegou? POLICIAL Já sim, doutor. Está com ele agora. 194 O médico entra. INT. APARTAMENTO DE ALAN – DIA. Um garoto pálido, de 15 anos idade, está deitado, adormecido. Está sedado. É ALAN, filho do juiz de futebol R. Schumann, que está na cabeceira. Uma enfermeira está lá também, vigilante, à espera do médico. MÉDICO Bom dia Reine. Tudo bem com você? REINE Depende do senhor, doutor. Meu menino vai ficar bem? MÉDICO Dou minha palavra que ele vai ficar bem. Pode descansar para o jogo. Seu dia vai ser duro, meu filho. REINE Ele disse alguma coisa antes de adormecer, doutor? Enfermeira? MÉDICO Discretamente, o médico pisca o olho esquerdo para a enfermeira, sem que Reine se dê conta. ENFERMEIRA Disse que ama muito o senhor e que tem certeza de que o time dele vai ganhar o campeonato. MÉDICO (recriminando-a discretamente) Campeonato... as mulheres não entendem mesmo nada de futebol. REINE Eu entendi doutor. (à enfermeira) Não se preocupe com esses detalhes. Cuide bem de meu menino. (ao médico) Acho que não vou trabalhar. Vou ficar aqui com meu filho. MÉDICO Não é necessário, meu filho. Ele vai ficar sedado até a hora em que o bloco cirúrgico desocupar. Uma cirurgia de coração delicadíssima está começando agora e não termina antes de 8 da noite. Quando você voltar, Alan já vai estar aqui esperando você. Vai tranquilo, meu filho. Nós vamos cuidar bem dele. 195 REINE olha para o médico. Não diz nada. Aproxima-se do filho e faz carinho no rosto dele. CLOSE-UP do rosto de REINE. Na trilha sonora ressoa o silvo de um apito. CORTA para uma imagem de REINE durante um jogo, à noite. PLANO APROXIMADO dele, apitando um pênalti. CAM abre e mostra vários jogadores (de um time qualquer) partindo para cima do juiz, reclamando contra a marcação feita. Firme, REINE mantém-se irredutível. Ao fundo, na trilha sonora: TORCIDA (uníssono) Ladrão! Ladrão! Ladrão! Ladrão! INT. QUARTO/APARTAMENTO DE ISABELA – DIA. Na cama de solteiro, FEDERICA, só de calcinha, está dormindo. Ao lado dela, enlaçando-a (ela se aconchegou aos braços dele), Quintero. Isabela abre a porta sem fazer ruídos e sorri quando vê os dois abraçados na cama. Fecha a porta então, bem devagar. INT. CORREDOR DO APTO DE ISABELA – DIA. Isabela, cabelos molhados, caminha pelo corredor. Já tomou um banho: usa um roupão amarelo, curtinho, que revela as pernas lindas. Vai em direção à copa. INT. COPA/APARTAMENTO DE ISABELA – DIA. REYNA está tomando um café da manhã frugal. Parece descansado, como se tivesse acordado agora. Isabela entra e dá um beijo demorado nele. ISABELA Adivinhe o que eu acabei de ver. REYNA José Roberto na cama com FEDERICA. ISABELA Assim não vale. Você já sabia? REYNA Ele estava na sala, do meu lado, fumando um baseado atrás do outro. Ela chegou, deu uns tragos e os dois se atracaram ali mesmo. No chão. Como se eu não existisse. 196 ISABELA (tira uma maçã da geladeira e dá uma mordida, sentando-se ao lado dele) Sempre achei que rolava uma eletricidade entre os dois. Mas a coisa custou para acontecer. Ela achava que era gay. REYNA Como assim? Não tem esse negócio de achar, Ed. Ou é ou não é. ISABELA Ela não sabia que gostava de homem. REYNA Aprendeu a gostar bem rápido. Deu para ouvir em Niterói os gemidos dela divertindo-se com José Roberto. ISABELA Essa noite foi uma loucura. Até agora não estou entendendo o que aconteceu. O que deu na sua cabeça de aparecer aqui às cinco da manhã? REYNA Paixão. Nunca consigo pensar noutra mulher desde aquele sequestro maluco. (pausa) Estava numa festa na casa de Durval. ISABELA Quintero também estava lá? REYNA Claro que não, Ed. Se estivesse acabava com a festa. Ele encheu a cara noutra freguesia. ISABELA Eu preciso ir gravar. REYNA Beleza. Não vá falar da festa, hein? Você vai jogar? ISABELA REYNA Só se for preciso. Estou com dores musculares, Madruga só vai me usar se tiver que fazer gol de bola parada. ISABELA E é assim? Você tem tanta certeza assim de que vai fazer gol de falta? Você é convencido demais, Leo. 197 REYNA Os fatos me dão razão. Faço gols de falta quase sempre. Porque não faria hoje? ISABELA Para não jogar meu time para a segunda divisão. Esse não é um bom motivo? REYNA (faz uma careta ao comer um gomo de uma mexerica) Você torce pelo Atlético? ISABELA Meu pai me levou desde pequena ao estádio. Virei atleticana muito antes de entender o que aqueles sujeitos ficavam fazendo no gramado. Tinha só quatro anos. É paixão antiga. REYNA Sei. E está me fazendo uma proposta indecente. ISABELA Indecente até demais. Minha intenção é seduzir você, corromper você para garantir que não vai fazer nenhum gol para desclassificar meu time do coração. REYNA Se eu não estivesse ouvindo com meus próprios olhos não acreditaria, Ed. Você usou meu corpinho com segundas intenções? As piores intenções possíveis? ISABELA Usei. E você usou o meu também. Logo, vai ter que fazer o que eu pedi. REYNA Não pense que sou um traidor, um sujeito que não honra a camisa de seu time. ISABELA Você gostou. A-do-rou ser corrompido. É bom fazer coisa errada de vez em quando. REYNA Você realmente não me conhece, Ed. Não aceito suborno sexual nem financeiro. ISABELA Por que você me chama com nome de homem? 198 REYNA Por que eu quero. Vai encarar? ISABELA Vou fazer um strip-tease aqui na cozinha. REYNA Vai nada. Você não tem coragem. ISABELA Se eu fizer você aceita minha proposta? REYNA Vou pensar com muito possibilidade. Bem pequena. carinho. Existe uma pequena Beijam-se com paixão. INT. SALA DE IMPRENSA/BRASIL FC – DIA. A sala do hotel está lotada. Madruga e Quintero estão na mesa. Quintero com a cara de quem foi atropelado por um trem. Está visivelmente diferente, alterado, agressivo. MADRUGA Prefiro deixar a resposta para Quintero. Por mim tudo bem. REPÓRTER UM QUINTERO Dá para repetir? Passei a noite em claro. Perdi os remédios que uso habitualmente. REPÓRTER UM Você também foi ao churrasco? QUINTERO Não fui a churrasco nenhum. Nem sei de que churrasco está falando. REPÓRTER UM Os jogadores fizeram um churrasco ontem. Na casa de Durval. QUINTERO E daí? Eles podem fazer churrasco na hora em que quiserem. São adultos. No Brasil já abolimos a concentração de véspera. 199 REPÓRTER UM Acontece que os vizinhos falaram que o churrasco durou a noite inteira. E que havia mulheres de programa e uma banda de pagode. Risos. Até Madruga riu. Quintero continua sério. REPÓRTER UM E Madruga escalou um time misto. Minha pergunta é justamente sobre a relação que existe entre as duas coisas. QUINTERO Você está fazendo inferência indevida. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. REPÓRTER UM Você nega que os jogadores ficaram acordados a noite toda? QUINTERO Não nego nem afirmo. Digo que o clube entende que eles são adultos e sabem o que fazem. E você, Madruga? REPÓRTER UM MADRUGA O diretor já respondeu. REPÓRTER DOIS Vocês não acham que escalar um time misto significa favorecer o Atlético? A torcida não está gostando de você poupar seis titulares, Madruga. MADRUGA Não estou poupando ninguém. Alguns atletas estão com diarreia, não têm condição física de jogar. REPÓRTER Ninguém vai ser punido? A bebedeira no churrasco na casa de Durval é que provocou esse surto de diarreia. É evidente. QUINTERO A única coisa evidente é que você tem má fé. Se seis pessoas estão com diarreia é porque provavelmente comeram a mesma coisa que estava estragada. REPÓRTER UM Mais alguém no clube está com diarreia? 200 QUINTERO Mas você é mesmo insistente, hein? Temos mais o que fazer do que fazer um inventário sobre a liquidez intestinal das pessoas. Bola para frente. REPÓRTER DOIS O Brasil vai marcar sob pressão? QUINTERO (ríspido) Você é que deve estar sob pressão de seu parco conhecimento sobre a língua portuguesa. Nenhum time marca sob pressão, marca POR PRESSÃO. O time vai jogar como sempre, segundo me disse o técnico Madruga. (a Madruga) Não é? MADRUGA É. REPÓRTER TRÊS (a Madruga) Você está a pouco tempo no Brasil. Já dá pra dizer que você tem o time nas mãos? QUINTERO (interrompe Madruga, que ia responder) O time é pesado demais, meu amigo. Vamos acabar com esses clichês. Nem um técnico do mundo tem um time na mão. Os jogadores não são crianças. O técnico que pensa essa bobagem não dura um mês no cargo. REPÓRTER QUATRO Você acha possível o Atlético fazer quatro gols? QUINTERO Claro que é possível. Pode até fazer, mas vai levar também. É assim que nós jogamos. Sempre no ataque. REPÓRTER CINCO O Atlético vai ter que correr atrás do prejuízo. O matador Marcelinho está com fome de gols. Algum esquema especial para acabar com ele? QUINTERO Só alguém muito burro corre atrás do prejuízo. Roberto Caminhão é um ótimo treinador. É claro que vai correr atrás do lucro. Isso mesmo. MADRUGA 201 QUINTERO E esse jogo é apenas mais um jogo de futebol. Não é uma guerra. MADRUGA Vocês da imprensa ficam tratando os jogadores como se eles fossem gladiadores. Ninguém vai matar ninguém. Marcelinho joga o fino da bola, se matar alguma coisa é a bola no peito. Mas ele vai ser muito bem marcado e não vai fazer nenhum gol. REPÓRTER UM Pelo que eu entendi vocês vão jogar no erro do Atlético. QUINTERO Ninguém joga no erro. Nós vamos jogar no acerto da tática definida pelo treinador. REPÓRTER UM (mostra o livro escrito por Tostão) Você está repetindo as coisas que Tostão escreveu nesse livro aqui. QUINTERO Estou mesmo. Que bom que alguém aqui costuma ler. Os locutores berram como se o mundo fosse acabar e os comentaristas não analisam time nenhum. Ficam só falando o que acham que os técnicos deveriam fazer. (irritadíssimo, batendo na mesa) Já estou de saco cheio de vocês da televisão! REPÓRTER Você está sendo grosseiro desde o começo da entrevista. Deve ter se esquecido de tomar seus calmantes, está nervoso demais. QUINTERO Eu estou mesmo com uma falta de paciência danada. Será que não existe vida inteligente na crônica esportiva além daquela menina linda que faz o Sobrenatural de Almeida? Silêncio na sala. QUINTERO O que foi? Ficaram com vergonha de saber que o melhor comentarista esportivo do Brasil é uma mulher? O assessor de imprensa do Brasil, Bruno aproxima-se e fala algo ao ouvido de Quintero. BRUNO 202 (puxando Quintero) Continuem com o treinador Madruga. Quintero tem um compromisso agora. Com licença. Zum-zum-zum entre os jornalistas. Ninguém entendeu o comportamento de Quintero. ACOMPANHAMOS OS DOIS. NO CORREDOR: BRUNO Ninguém sabia que Sobrenatural de Almeida é uma mulher. Quem sabe, ficou de bico calado. QUINTERO (baixinho também) Mas o presidente do Atlético foi ao estúdio e gravou entrevista com Isabela. Eu ouvi. BRUNO O juiz é tio dela. Pelo menos não falou que era Isabela Falcão. Vamos sair daqui, você não está bem. INTERVALO PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS EXT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE. Imagens externas da Arena Brasil, em vários enquadramentos diferentes (incluindo aéreo), mostram um estádio de casa cheia, em noite de clássico regional. Os efeitos sonoros aqui são essenciais, mostrando a exuberância e a força das torcidas. INT. VESTIÁRIO DO ATLÉTICO CARIOCA – NOITE. A trilha sonora com a zoeira da torcida vai diminuindo e, aumentando gradativamente, entra a música-tema do antigo canal 100, NA CADÊNCIA DO SAMBA (QUE BONITO É), de Waldir Calmon (http://www.youtube.com/watch?v=5uCPo6p97Pw), enquanto as imagens evoluem para cenas que mostram os jogadores no vestiário, já colocando o uniforme, caneleiras, meias etc. Depois de 30’ de música – com imagens que nunca são vistas na TV (plano conjunto, planos aproximados, detalhes dos acessórios dos jogadores, CLOSE-UP’s) – CAM para enquadrando ROBERTO CAMINHÃO, que começa a preleção antes do jogo. 203 Todos os jogadores param o que estão fazendo (já quase prontos) e prestam muita atenção nele, como demonstram os diversos CLOSES e PLANOS APROXIMADOS que revelam isso. Vemos ao fundo o juiz FALCÃO, discretamente escondido atrás da porta de um armário. ROBERTO Chegou a hora, rapaziada. Daqui a pouco mais de 50 milhões de pessoas em todo o Brasil vão estar de olho no que vocês estão fazendo em campo. Nós não podemos e não vamos decepcionar essas pessoas. Há gente humilde que nunca teve dinheiro para ver um jogo como esse e é nessas pessoas que devemos pensar agora. Os jogadores se aproximam uns dos outros e formam um círculo. Roberto incluído. ROBERTO Gente que se alimenta de suas vitórias, que dorme pensando em vocês, acorda pensando em vocês e têm filhos com os nomes de vocês. Nós não vamos decepcionar essas pessoas humildes e batalhadoras. Não, não podemos fazer isso. E não vamos fazer isso. JOGADORES (em uníssono) Não podemos fazer isso! Não vamos fazer isso! ROBERTO Claro que não! Vamos ganhar do Brasil. Vamos ganhar, rapaziada! JOGADORES (em uníssono) Vamos ganhar! Vamos ganhar! ROBERTO Sabem por que nós vamos ganhar? Porque nós PRECISAMOS ganhar! Nós vamos dar sangue em campo se for preciso! Nós vamos brigar pela bola como se ela fosse de ouro! Os caras do outro lado não precisam ganhar! Nós precisamos! JOGADORES (em uníssono) Nós precisamos! Nós precisamos! ROBERTO A bola não vai chegar à nossa defesa de jeito nenhum. Não é hora para vacilar, rapaziada! Vamos parar o jogo de qualquer jeito! Segurem o jogador se não der para segurar a bola! Não 204 fiquem com medo de fazer falta! A torcida exige raça. Entrem firme, mostrem àqueles babacas convencidos do Brasil que vocês são melhores! MARCELINHO Minha preocupação é a bola parada, professor! Cobrança de falta do Leo é meio gol. A gente tem que anular aquele filho da mãe! ROBERTO Não se preocupem com Leo. Quem vai cuidar dele é o Cicinho. Cicinho! Porra, Cicinho! Cadê você? Cicinho chega correndo, amarrando o calção. Um sujeito enorme, fortíssimo. CICINHO Eu estava no banheiro professor! ROBERTO Você vai arrebentar o tal de Leonardo se ele começar a fazer aquelas fintas. Hoje não vale palhaçada daquele filho da mãe! Arrebenta o cara, Cicinho!!! CICINHO Deixa comigo, professor! Hoje o safado não vai fazer gol nem que a vaca tussa! ROBERTO É assim que se fala, garoto! Marcelinho! Aqui, professor. MARCELINHO ROBERTO Eu fui informado que os caras colocaram uma foto sua lá na privada deles. Colocaram uma foto do Cicinho também! Na privada, pessoal! MARCELINO Filhos da mãe! Eles vão ver comigo é no campo. Hoje eu mato esses caras! CICINHO Não, Celinho. Quem mata sou eu! ROBERTO Sabem por que eles fizeram isso? MARCELINHO 205 Pra humilhar a gente! ROBERTO Não! Foi porque eles ficam morrendo de medo quando olham para vocês dois. Aí é bom estar bem perto da privada! Todos riem com vontade. ROBERTO Eles vão jogar sem motivação, com o time reserva! O Brasil quer humilhar a gente! Os filhos da mãe querem nos humilhar! Mas não vão conseguir! Nós só estamos nessa merda de posição na tabela por que nós mesmos vacilamos. Eu sou o responsável! Não vocês! Mas quem vai ganhar esse jogo vai ser vocês! Vamos ganhar! melhores! JOGADORES (em uníssono) Vamos ganhar! Somos melhores! Somos ROBERTO Nós temos o maior craque do mundo! CLOSE-UP em Marcelinho (que faz o sinal da cruz). JOGADORES (em uníssono) Marcelinho! Marcelinho! ROBERTO Marcelinho tem idade de garoto, mas já é homem feito e é ele que vai mostrar a vocês o caminho dos gols. A bola tem que chegar nele. Se chegar ele faz. Precisamos de quatro gols e vamos fazer quatro gols! E o Brasil? Quantos gols o Brasil vai fazer? JOGADORES (em uníssono) Nenhum! Nenhum! Nenhum! ROBERTO Vamos lá, gente! É agora! Vamos vencer esse jogo! É agora! Os jogadores gritam como guerreiros. Volta música de Waldir. Fusão gradativa com as imagens que seguem. EXT. ARENA BRASIL – NOITE. Imagens internas da Arena Maracanã. Uma energia extraordinária, com mais de 60 mil pessoas berrando enlouquecidas. 206 VEMOS o placar: ATLÉTICO 4 x 0 BRASIL FC. EXT. CAMPO/ARENA BRASIL/RIO – NOITE. A única imagem com foco é a de Leonardo REYNA correndo. Ao fundo, imagens da torcida, com a zoeira da torcida na trilha sonora. Ele evolui em CAM lenta, correndo sozinho. De repente, um jogador, Cicinho, surge no quadro, num carrinho violentíssimo. Leo fica no chão, gemendo de dor. No telão da Arena Brasil, a imagem de Leo deitado no chão, com a mão no joelho direito, chorando, visivelmente gritando de dor. Silêncio absoluto na trilha sonora, PLANOS APROXIMADOS de REYNA: imagens dramáticas. INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS/BRASÍLIA – DIA. Depoimento de Juca KFOURI. Episódio V: Fábrica de pé-de-obra PARTE I PRÓLOGO 5 MINUTOS INT. TELÃO DA ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE. Imagem de REYNA caído no chão, com a mão no joelho direito. CLOSE-UP no joelho dele: fraturas múltiplas revelam a gravidade da contusão. Ele está gemendo, com a mão esquerda segurando a perna machucada e a direita batendo no chão. Uma imagem impressionante, que paralisa todas as pessoas que estão na arena. É de arrepiar. CLOSE UP dos rostos de vários torcedores, intercalados pela imagem desoladora do banco de reservas do BRASIL FC. PLANO APROXIMADO do jogador agressor, CICINHO, com as mãos no rosto, horrorizado ao ver a perna de REYNA; ele não resiste à visão e começa a vomitar. As pessoas mal podem acreditar no que está acontecendo. Na trilha sonora, os berros e gemidos de REYNA, fundindo-se com o silêncio estarrecedor que invadiu o estádio. 207 As imagens colocam foco no que está em primeiro plano, deixando fora de foco a multidão que observa, chocada, a cena. INT. ARENA BRASIL – NOITE. O carrinho de socorro entra no campo, seguido por VIOLÃO e pelo DR. FABIO, médico do BRASIL FC (carregando a mala preta típica da profissão). Quintero e Madruga correm junto deles. Na trilha, murmúrios e exclamações de espanto dos torcedores. Acompanhados pelo juiz do jogo, REINE SCHUMANN, o pequeno grupo cerca REYNA, que não para de gritar de dor. A preocupação é visível no rosto do médico, que sinaliza para Quintero. Quintero puxa seu celular e faz uma ligação. Com extremo cuidado, VIOLÃO e o DR. FABIO colocam REYNA numa maca e o depositam no carrinho. O médico abre a mala e tira uma seringa. Cercado pelos integrantes da comissão técnica do BRASIL FC, JOGADORES, jornalistas e curiosos, REYNA é carregado numa maca para o vestiário. Ele continua a gritar de dor, apertando a mão de Clayton. REYNA Pelo amor de Deus, ZÉ ROBERTO, me ajude! Está doendo muito! Por favor, doutor FABIO. É fratura exposta, eu vi que é fratura exposta! Preciso de morfina, rápido! É uma dor de enlouquecer! Morfina, doutor! Morfina, pelo amor de Deus! DR. FABIO (preparando a seringa) Calma, REYNA. Já vou aplicar. QUINTERO Calma, garoto. Vai dar tudo certo. Você vai ficar bom logo. REYNA O filho da mãe me arrebentou, doutor. Ele foi expulso, Ed? Foi? QUINTERO Claro que foi Leo. Não se preocupe com isso agora. O médico aplica nele uma injeção. INT. ENFERMARIA ARENA BRASIL – NOITE. REYNA está deitado numa cama, cercado por muitas pessoas, entre colegas, jornalistas e integrantes da comissão técnica. 208 CAM assume o ponto de vista de REYNA, estendido na cama, grogue. CAM LENTA. Sensação de desmaio iminente. Não se entende o que dizem as vozes que ecoam ao fundo. Vamos ouvir então, nítidos, os pensamentos de REYNA naquele momento de torpor. Ele volta a chorar. REYNA Meu Deus, o que será que está acontecendo?! Eu não estou mais sentindo dor, Ed. Parou de doer, graças a Deus. O que houve com a minha perna, Fabio? Parece fratura exposta. É fratura exposta? Estou com medo de olhar. REYNA tenta colocar sua mão no joelho, mas seu braço está preso. REYNA Eu quero sair daqui! Por favor, me soltem! Eu quero meu joelho, o que é que houve com meu joelho? O que é que vai acontecer comigo? Eu vou morrer, Ed? Eu estou fora do futebol? Acabou? O médico dá mais uma injeção em REYNA, que desmaia. MADRUGA O juiz quer continuar o jogo! Meu Deus! Tem cabimento uma coisa dessas! Segura essa, Quintero. Vou lá falar com o sujeito. QUINTERO Ele não sabe que a coisa é feia, Madruga. Calma, vai lá. Eu cuido das coisas aqui. E aí, DR. FABIO? Vamos direto para hospital? FABIO (a Quintero) Claro! Ele está certo. É fratura múltipla. (Dá a ele o celular, depois tenta imobilizar a perna dele) Ligue para o Doutor SANTAROSA. Peça a ele para buscar o doutor ROBBE-GRILLET no hotel. Mande preparar a sala de cirurgia. Imediatamente! QUINTERO (procurando o nome do médico no celular) Não atende. Merda! Não atende. FABIO (limpando e imobilizando a perna de REYNA) Continue tentando. É assim mesmo, Ele vai atender. QUINTERO Quem é esse francês? Para quê esse francês? Para qual hospital, doutor Fabio? 209 FABIO É o maior ortopedista do mundo. Graças a Deus ele está aqui no Rio, num Congresso. Hospital Samaritano. É aqui perto. É a melhor opção. QUINTERO (ao celular) Doutor SANTAROSA? É QUINTERO, diretor do Brasil, da parte do DR. FABIO. É mesmo? O senhor viu? Obrigado, doutor. (ao DR. Fabio) Ele está assistindo ao jogo. Já fez contato com seu amigo francês. INT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE. REYNA está sendo colocado numa ambulância. QUINTERO e DR. FABIO ENTRAM também. Madruga está próximo. QUINTERO (a Madruga) Não avisei FEDERICA. Ligue para ela, Madruga. Faça esse favor. Avise a ela que estamos indo para o Hospital Samaritano, que é aqui perto. Mande o pessoal da assessoria de imprensa para lá. MADRUGA É grave? QUINTERO Grave demais Madruga. Mas não diga nada a ninguém ainda. (fecha a porta da ambulância) Vamos embora! CORTA PARA VISTA EXTERNA DA ARENA BRASIL. IMAGENS DA AMBULÂNCIA AVANÇANDO NUMA AVENIDA MOVIMENTADA. SIRENE ALTA. INT. SALA/APARTAMENTO DE ISABELA/LEBLON – NOITE. FEDERICA e Isabela movimentam-se com rapidez. ISABELA (pegando a bolsa) Não entendi. Exatamente o que foi que aconteceu? FEDERICA (desliga a TV e joga o controle remoto no sofá) Também não entendi direito. Madruga estava muito nervoso. Parece que a coisa é séria. ISABELA Séria como? O sujeito da TV não soube explicar nada. 210 FEDERICA (abre a porta; as duas saem) Parece que Leonardo quebrou a perna. Mas não deve ser tão grave assim. EXT. HOSPITAL SAMARITANO/RIO – NOITE. A ambulância que leva REYNA chega à entrada privativa do hospital. Todos descem; REYNA ainda está sedado. Do lado de fora, o médico SANTAROSA recebe o grupo. DR SANTAROSA O centro cirúrgico já está preparado. DR DAVI vai ser o anestesista. DR FABIO E ROBBE-GRILLET? DR SANTAROSA Daqui a pouco vai estar aqui. Mandei um helicóptero buscá-lo. QUINTERO Obrigado, DR SANTAROSA. Depois reembolsamos o hospital. DR SANTAROSA Não se preocupe com isso agora. Sua equipe de imprensa já foi acionada? Daqui a pouco isso aqui vai estar coalhado de jornalistas. QUINTERO Já cuidei disso, doutor. A operação vai demorar muito? DR FABIO Provavelmente, Quintero. Mas só vamos saber depois dos exames. QUINTERO Meu Deus. Ele está correndo risco de não voltar a jogar? DR FABIO Vamos centralizar em você as informações. Vá para a sala de espera do centro cirúrgico e espere notícias lá. QUINTERO Boa sorte, doutor. Boa sorte. TEASER E CRÉDITOS DA MINISSÉRIE: 211 CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO, impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas respectivas torcidas nas arquibancadas. INTERVALO. PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS. EXT. RUA/FAVELA DO ALEMÃO/RIO DE JANEIRO – DIA. Um grupo numeroso de meninos na faixa de 10 anos joga uma pelada numa rua estreita da favela do Alemão, no Rio. Entre eles, destacando-se pela altura e pela facilidade no controle da bola, Pelé (15 anos), filho do massagista Violão. Ele está usando uniforme novo, preparado para um jogo de verdade. EXT. CASA DE VIOLÃO/FAVELA DO ALEMÃO/RIO – DIA. Violão está saindo de casa. Tranca a porta e olha na direção de Pelé. VIOLÃO Está na hora, Pelé. Vamos embora senão a gente chega atrasado. PELÉ Claro, pai. Já estou pronto. Vou nessa, rapaziada! Um garoto dá uma entrada mais dura, num carrinho. Pelé vai até o garoto e puxa-o pela orelha. PELÉ Quantas vezes eu vou ter que falar que é para jogar na bola. Na bola! Entendeu malandro? A gente é amigo. Não está aqui para arrebentar ninguém. MENINO Ai, ai, ai, tá doendo! Está certo! Desculpe! Foi mal! Já entendi! Já entendi! PELÉ Peça desculpas ao Xibiu. MENINO Foi mal, Xibiu. Desculpa. XIBIU (aceita a mão estendida) Não foi nada. Não machucou. PELÉ Mas podia ter machucado. 212 VIOLÃO Não vou esperar a manhã inteira, Pelé. PELÉ Foi mal, pai. Vou nessa, rapaziada! Pelé alcança Violão. Uma senhora, NELMA, aponta a cabeça na janela da casa próxima. É agora, Violão? NELMA VIOLÃO Daqui a pouco. Reza para dar tudo certo, Nelma. NELMA Fica tranquilo, Violão. (a Pelé) Tu vai arrebentar a boca balão, neguinho! Sonhei que tu foi aprovado nos GALÁTICOS e foi para a seleção! PELÉ Deus te ouça, Dona Nelma. NELMA Dê notícia logo que chegar, Violão. Vou pegar meu terço e vou rezar a manhã inteira. Violão, já afastado, faz sinal com a mão para Nelma. Os dois seguem em frente, Violão com a mão no ombro direito de Pelé. EXT. AVENIDA DE COPACABANA/ZONA SUL/RIO DE JANEIRO – DIA. O coletivo segue em alta velocidade por uma via de Copacabana. INT. COLETIVO/RECREIO DOS BANDEIRANTES/RIO – DIA. Violão e Pelé estão passando pela roleta. Dão sinal para o ônibus parar. O coletivo freia bruscamente, tentando inutilmente parar num ponto de ônibus. Como os outros passageiros, Pelé e Violão são impulsionados para frente, mas não reclamam. Descem, como se aquilo fosse uma rotina. EXT. HOSPITAL SAMARITANO/RIO – DIA. 213 A imprensa já chegou ao hospital: VEMOS vários carros de externas. Um movimento grande de gente chegando. Fãs são isolados por policiais, que os mantém à distância. Os torcedores que compareceram estão apreensivos. INT. SALA DE IMPRENSA/HOSPITAL SAMARITANO – DIA. Na improvisada sala de imprensa, que está lotada, o assessor de imprensa do BRASIL FC (Bruno de Faria), o diretor técnico Quintero e o médico DR FABIO estão sentados à mesa, com microfone à frente. BRUNO OK, pessoal. Vamos começar. QUINTERO vai expor a vocês a situação atual. Eu peço a vocês que respeitem a ordem do sorteio e só comecem as perguntar depois da exposição de QUINTERO. Faz sinal a QUINTERO. QUINTERO (suspira) Não sou médico e não sei esclarecer qualquer aspecto mais técnico. Isso vai ser feito pelo Doutor Fábio, médico do clube, que vai falar em seguida. O que eu tenho a dizer aos senhores é que o clube não está medindo esforços nem recursos para proporcionar ao atleta o melhor tratamento médico possível. REYNA me pediu para dizer aos senhores que lamenta o que aconteceu com ele, mas que não acredita que Cicinho tenha entrado com intenção de machucá-lo. (emocionado, fala com dificuldade) REYNA acredita que o que aconteceu com ele poderia ter acontecido com qualquer outro jogador de futebol e que Cicinho não deve ser visto como atleta mal intencionado. Doutor Fábio. DR FABIO A contusão de REYNA foi a mais séria que já vi em 20 anos de futebol. As duas pernas de REYNA foram atingidas num impacto frontal, com extrema violência. De ontem para hoje, Leonardo REYNA fez duas cirurgias. Ele teve fratura exposta na tíbia e no perônio da perna direita, com rompimento de alguns tendões dessa mesma perna, a perna direita. Leonardo REYNA teve torções nos dois joelhos e no tornozelo esquerdo, com lesão na cabeça do perônio esquerdo. Murmúrios na sala. DR FABIO 214 São lesões extremamente delicadas, que poderão afetar a musculação das duas pernas do atleta. Depois de 48h a equipe liderada pelo DR. François ROBBE-GRILLET vai definir quais cirurgias serão necessárias a seguir. Confusão na sala. Os jornalistas começam a fazer perguntas ao mesmo tempo. BRUNO Calma, gente. Vamos com calma e todo mundo vai poder falar. DR FABIO: a maior curiosidade é sobre a volta de REYNA ao futebol e quanto tempo ele deverá ficar inativa. Os jornalistas concordam, fazendo sinais de agradecimento a BRUNO. JORNALISTA A É isso aí, Bruno. Essas são as principais respostas que precisamos ouvir. JORNALISTA B Obrigado, Bruno. Valeu. DR FABIO Ainda não é possível falar em prazo de recuperação. As primeiras 48 horas vão ser decisivas. O organismo reage naturalmente e é dessa reação do corpo do atleta que vai depender o que deverá ser feito pela equipe médica. A ruptura dos ligamentos certamente vai exigir a implantação de fios metálicos, mas isso vai ser feito somente depois desse prazo que eu mencionei. JORNALISTA A Existe possibilidade de Leonardo não voltar a jogar futebol? DR FABIO A medicina não é uma ciência exata. Há muitas variáveis que devem ser consideradas ao mesmo tempo e é difícil prever como será a reação do organismo de REYNA. O DR. François ROBBEGRILLET é a maior autoridade mundial em ortopedia aplicada a atletas profissionais e é ele, apenas ele, que poderá esclarecer isso. Os boletins médicos serão assinados por ele a partir de agora. JORNALISTA B O senhor não respondeu. Existe a possibilidade de que REYNA não volte a jogar futebol como profissional? Sim ou não. DR FABIO (olhando para Quintero, que balança a cabeça em sinal afirmativo) 215 Não posso opinar. Qualquer prognóstico deverá ser feito pelo chefe da equipe médica. JORNALISTA A O Brasil precisa saber o que vai acontecer com REYNA, o senhor há de compreender. Há milhões de pessoas esperando uma posição. DR FABIO Prometo a vocês que vou conversar com o DR ROBBE-GRILLET e ainda hoje volto a falar com vocês. JORNALISTA A Ajuda aí, doutor. Nós precisamos de informações imediatas. Não dá para o senhor ir buscar o francês? EXT. ESTÁDIO DE FUTEBOL/RIO DE JANEIRO – DIA. Violão e Pelé descem do coletivo diante da entrada principal de um estádio de futebol: é o GALÁTICOS (placa), de segunda divisão. Olham para um cartaz, onde IDENTIFICAMOS a palavra PENEIRA HOJE ÀS 10H. Os dois entram. INT. ESTÁDIO DO GALÁTICO/RIO – DIA. Dentro do estádio as arquibancadas são ocupadas por familiares dos garotos que participam da peneira. VEMOS Bonilha, que foi técnico das divisões de base do BRASIL FC (aparece no primeiro episódio) no comando. Uma fila de garotos uniformizados está sentada nos primeiros degraus da arquibancada. São garotos fortes, altos em comparação a Pelé. É para lá que se dirige Pelé, orientado por Violão, que espera junto aos outros pais e familiares, degraus acima. Violão repara que os meninos da fila estão com um cartão numerado nas mãos e sai. Na trilha sonora entra a música-tema do antigo canal 100, NA CADÊNCIA DO SAMBA (QUE BONITO É), de Waldir Calmon (http://www.youtube.com/watch?v=5uCPo6p97Pw). VEMOS que Bonilha faz substituições, chamando a turma que está na arquibancada, pelos números. VIOLÃO desce da arquibancada e aproxima-se do alambrado, chegando bem perto de BONILHA. 216 VIOLÃO Bonilha! E aí, amigão! Tudo bem? BONILHA Ah, é você? (sem dar atenção a ele) VIOLÃO Onde é que eu pego um cartão com número para o meu menino? BONILHA Não precisa. Você é de casa. Deixa comigo. Ele vai fazer o teste. Qual é que é ele? VIOLÃO (gritando para Pelé) Levanta a mão, Pelé! Pelé, animado, levanta-se e acena para o pai. VIOLÃO É aquele lá. Eu comprei o uniforme do GALÁTICOS. BONILHA (com leve toque de desprezo) Aquele magrinho? Miudinho? VIOLÃO O menino bate um bolão. O doutor REYNA disse que ele vai longe. BONILHA Será? Ele é meio pequeno, não é mesmo? Quantos anos ele tem? VIOLÃO É pequeno não. Normal. 15 anos. BONILHA É meio mirradinho sim. Mas vou dar uma chance para ele. Pode esperar. Ainda tem muito treino pela frente. EXT. HOSPITAL SAMARITANO/RIO – DIA. O repórter Armando Sales, da Rede América, está gravando uma matéria para um jornal de TV, do lado de fora do hospital. 217 Um cameraman iluminação. grava a imagem dele falando, um assistente posiciona a REPÓRTER A cirurgia de Leonardo REYNA terminou agora a pouco aqui no Hospital Samaritano, zona norte do Rio de Janeiro. Na verdade foram duas as cirurgias, feitas em sequência. O chefe da equipe médica que operou o atleta brasileiro ainda não fez qualquer prognóstico, mas apurei que são remotas as possibilidades de volta do jogador aos gramados, como atleta profissional. A contusão de REYNA foi muito séria e ele vai sofrer novas cirurgias. Eu sou Armando Sales. Direto do Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro. INT. SALA DE ESPERA/HOSPITAL SAMARITANO – DIA. FEDERICA e MADRUGA estão aguardando notícias, com aparência de quem passou a noite em claro. Quintero chega. FEDERICA Preciso telefonar para a mãe de REYNA. Ela já ligou várias vezes. O que eu digo a ela? QUINTERO Diga que ele está passando bem. Foi afastado o risco de amputação da perna direita, que era o que o médico francês mais temia. MADRUGA Amputação? A coisa é muito mais séria do que eu imaginei. FEDERICA Muito cuidado com o que for falar, Madruga. É preciso ter cautela e prudência. Ele vai voltar a jogar futebol, Zé Roberto? QUINTERO (senta-se e passa a mão na cabeça) Ninguém sabe dizer. Fale com a mãe dele que a recuperação está sendo boa e que ele vai voltar a andar normalmente. Isso é suficiente por enquanto. FEDERICA (beija Quintero; Madruga olha, curioso) Obrigada, querido. Vou falar com ela. EXT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – DIA. 218 REYNA, com as duas pernas imobilizadas, envoltas em gaze e bandagem, está dormindo. A perna esquerda está levantada, dobrada, formando um ângulo agudo. Isabela está no sofá, cochilando. PLANO APROXIMADO de REYNA. CAM destaca a bomba injetora de morfina, em CLOSE UP. A enfermeira entra e acorda Isabela, delicadamente. ENFERMEIRA Desculpe acordá-la, senhora. Sim. Pois não. ISABELA ENFERMEIRA Seu marido poderá acordar a qualquer momento. Por favor, me avise se o efeito da anestesia passar. Ele vai sentir dor. ISABELA Entendido, enfermeira. Muito obrigado. Toca o telefone. A enfermeira dirige-se para a porta. ENFERMEIRA Se for necessário pode me chamar pela campainha. Virei imediatamente, está bem? Tão logo seu marido esteja bem disposto, a senhora me avise, por gentileza, pois vou solicitar a presença do doutor ROBBE-GRILLET. Com licença, bom dia. Isabela olha para o telefone, que continua a tocar. Vai até o aparelho, olha para REYNA e reduz o ruído da campainha. Agora bem mais baixo, o telefone continua a tocar. INT. CORREDOR/HOSPITAL – DIA. De banho tomado e roupa trocada, Quintero está parado no corredor, quase em frente à porta do apartamento em que está REYNA, conversando com o doutor FABIO. QUINTERO Seja realista, DR FABIO. Preciso fazer um relato confiável para FEDERICA. Sem falar na imprensa. Eles estão esperando notícias frescas. O médico francês acredita ou não na recuperação de REYNA? 219 DR FABIO ROBBE-GRILLET é muito franco, direto. Ainda não tem opinião formada sobre isso. É preciso aguardar. Não tem outro jeito. QUINTERO Tudo bem. Está certo. Vamos esperar. Mas e sua opinião? Você também é ortopedista. É autoridade no assunto. Quero que você me diga o que pensa, já é alguma coisa. DR FABIO Eu acho muito pouco provável que Leo volte a jogar futebol como profissional. QUINTERO Mas existe a possibilidade? Leo é o sujeito mais disciplinado que eu conheço. Se existe alguém que pode dar a volta por cima é ele. DR FABIO Eu não posso dizer que não acredito nessa possibilidade. Sempre há possibilidade. Mas aqui é preciso considerar que a perna direita perdeu muita massa óssea na primeira cirurgia. Ele vai ficar com uma perna mais curta do que a outra, entende? QUINTERO Como assim? Muito mais curta? DR FABIO Oito. Nove centímetros. QUINTERO Mas isso não se resolve com fisioterapia intensiva? DR FABIO O fato de Leo não ter muita massa muscular pode ser positivo. Nunca vi recuperação em casos similares, mas o DR ROBBEGRILLET já conseguiu resultados em situações ainda mais graves. Ele costuma dizer que a recuperação depende da força de vontade do paciente. QUINTERO De que forma vai depender dele? Da dedicação e do esforço dele, você quer dizer? DR FABIO Não sei dizer, Quintero. DR. ROBBE-GRILLET não adiantou muita coisa sobre o tratamento. Perguntou se Leo era um sujeito firme, 220 com muita força de vontade para enfrentar muita dificuldade. Mais do que uma pessoa normal aguentaria. QUINTERO Vá direto ao assunto, pelo amor de Deus, doutor FABIO. O que isso quer dizer? DR FABIO Não sei. Não tenho ideia. QUINTERO Ele não está usando Leo como cobaia para um tratamento experimental. Está? DR FABIO Claro que não. O professor ROBBE-GRILLET é sistemático demais, mas não é maluco. Isso poderia cassar o diploma dele. QUINTERO Leo sabe disso? Vocês informaram isso a ele? DR FABIO Claro. Ele foi operado com anestesia local. Ele sabe que vai enfrentar a maior pedreira da vida dele. Durante pelo menos um ano. QUINTERO Você apostaria sua credibilidade na volta dele? Se ele suportar as condições do tratamento desse médico francês? DR FABIO Não faço esse tipo de aposta. Mas eu já disse que não acredito. Mas tem uma pessoa que acredita e é isso que importa. Quem? QUINTERO DR FABIO O DR. ROBBE-GRILLET. Há poucas chances, mas existe sim a possibilidade. Segundo ele, quero ressaltar. QUINTERO Seja mais específico. Em termos percentuais, quanto você diria? DR FABIO A medicina não se expressa por meio de probabilidades. 221 QUINTERO Quantos por cento? DOUTOR FABIO Vinte por cento. Talvez menos. QUINTERO Então o mais provável é que ele não se recupere mesmo. Mas não é impossível que ele volte a jogar bola. É isso? DOUTOR FABIO Nós não podemos tirar a motivação dele. É preciso ser otimista. O doutor ROBBE-GRILLET acredita na recuperação se ele tiver força de vontade e determinação. INTERVALO. PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS. INT. CAMPO DE FUTEBOL/GALÁTICOS/RIO – DIA. Continua a peneira. Volta a música de Waldir Calmon. Outros garotos vão sendo chamados. Fusões repetidas mostram a passagem do tempo. Só Pelé ainda não foi chamado. VEMOS que Violão está ficando preocupado. Ele aproxima-se do alambrado de novo. VIOLÃO Você não esqueceu meu garoto, Bonilha? BONILHA Ah, é. Chame ele agora. VIOLÃO Pelé! É você agora, meu filho! O treinador está chamando! Pelé desce rápido e entra no campo. Bonilha faz sinal para um garoto que está jogando e ele sai para a entrada de Pelé. CAM acompanha Pelé. Repetidas vezes Pelé se apresenta para receber a bola, mas ninguém dá um passe a ele. Ele rouba uma bola de um jogador adversário e vai em direção ao gol. Bonilha apita e encerra o jogo, antes mesmo de Pelé chutar. A frustração está visível no rosto dele, EM PLANO APROXIMADO. Violão também fica frustrado. VIOLÃO 222 Dá uma força, Bonilha. Foi só o menino pegar na bola e você acabou o jogo. Mais dez minutos só. BONILHA Fica para outra peneira. Daqui a um mês tem mais. Os meninos estão cansados. O treinador vira as costas para Violão e se afasta. INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – DIA. Quintero, Fabio e Isabela entram no apartamento. REYNA está com as pernas imobilizadas, abatidíssimo. A bomba de acesso à morfina está próxima à mão dele (vista em CLOSE-UP). REYNA Não sabia que vocês iriam trazer meu anjo da guarda. Minha recuperação agora vai ser bem melhor, Ed. ISABELA (beijando-o, com carinho) Você está bem, querido? REYNA Pronto para outra, Ed. ISABELA Não diz isso nem brincando. Que susto eu levei, você nem imagina. REYNA Imagino sim. Mas te garanto que o meu foi bem maior, Ed. Não gosto nem de lembrar como ficou minha perna direita. Parecia que um trem passou em cima. QUINTERO O doutor ROBBE-GRILLET esteve aqui há pouco. O que ele disse sobre a recuperação? REYNA Não chegou a falar muita coisa. Vai voltar daqui a pouco. A mulher dele chamou ao telefone. QUINTERO Arrumamos alguém para amassar o pão com você. DR FABIO 223 Com pão ou sem pão é preciso ser realista. É bom se acostumar com a ideia de que você terá um ano duríssimo pela frente. Um ano com otimismo. Pode ser até mais. REYNA Tenho mesmo chance de voltar a jogar, Ed? DR FABIO O que ROBBE-GRILLET disse a você? REYNA Você não concorda com ele, Ed? QUINTERO Claro que concorda. REYNA Você agora tem porta-voz, Ed? DR FABIO Clinicamente as chances existem. Mas não se anime. É possível, mas é bem pouco provável que você consiga. É preciso ser realista. Você viu as radiografias. Suas pernas estão literalmente devastadas. REYNA Espero que o francês seja mais otimista do que você, Ed. ISABELA Não convém se animar muito, querido. Infelizmente. É preciso ser realista. DR FABIO Acompanhei a operação. As lesões são muito mais graves do que você imagina, REYNA. Eu não contaria com um retorno ao futebol. Sendo otimista, creio que se você voltar a andar normalmente já será fantástico. QUINTERO É isso que você chama de otimismo, Fabio? Seu conceito de motivação é bem diferente do meu. E você, Ed? REYNA (a Isabela) ISABELA O quê? 224 REYNA Você acredita na minha recuperação? Isabela abaixa os olhos e não fala nada. REYNA (a Isabela) Nem você acredita nas minhas chances, Ed. ISABELA Não é questão de acreditar, Leonardo. QUINTERO (a REYNA) Se é que faz alguma diferença, eu acredito. DR FABIO Você não tem ideia dos sacrifícios que vai ter que fazer se quiser voltar a jogar futebol. REYNA Eu só quero saber de uma coisa, Ed. Existe essa possibilidade? ISABELA É preciso ser realista. É muito difícil. DR FABIO Quase impossível. Conte como se fosse impossível. REYNA (a Quintero) Tire esses abutres do meu quarto. Saiam daqui. Saiam! Constrangidos, Isabela, QUINTERO e o doutor Fabio saem do quarto. INT. CORREDOR/HOSPITAL – DIA. Logo depois de saírem do quarto, os três conversam. QUINTERO Vocês dois enlouqueceram? (ao DR FABIO) Não se trata ninguém desse jeito. Não acredito no que eu acabei de ouvir. O que você achou? DR FABIO (a Isabela) ISABELA (com um sorriso cúmplice) Excelente. Você brilhou. QUINTERO 225 Alguém pode desenhar para eu entender o que está acontecendo aqui? DR FABIO Nosso craque precisa ser provocado, Quintero. Motivação para ele é dizer que não pode. Eu conheço REYNA há anos. Falei com a mãe dele. Fomos bem orientados. Isso é verdade? QUINTERO (a Isabela) ISABELA (rindo) É assim que ele funciona. A mãe dele garantiu. Falei com o DR ROBBE-GRILLET também. QUINTERO Não achei muita graça em fazer parte desse teatro. Mas vou dar um voto de confiança pra esse comportamento maluco de vocês. DR FABIO Você trouxe suas coisas? ISABELA Trouxe. Estão na recepção. DR FABIO Pode trazer aqui para o apartamento dele. QUINTERO Você vai ficar aqui? No hospital? ISABELA Vou. Algum problema? QUINTERO Não. Nenhum. Mas e seu trabalho? ISABELA Ser filha do dono tem muitas vantagens. Tirei licença remunerada por tempo indeterminado. DR FABIO Vocês me dão licença. Vou tomar um banho. QUINTERO (abraça o médico) Claro. Fique à vontade. Obrigado, Fabio. 226 DR FABIO sai. QUINTERO Essa vida é mesmo maluca. Você e Leo parecem que passaram a vida juntos. Impressionante como as coisas aconteceram rápido. ISABELA A mãe dele me pediu para ficar aqui, Zé Roberto. Ela disse que eu vou ser a maior motivação para Leo. Acredita? QUINTERO Deus ouça vocês duas. ISABELA Você já falou com FEDERICA? Ela já está sem unhas. Se não acalmar sua namorada, ela vai comer a ponta dos dedos. QUINTERO Vou sair de casa. Resolvemos morar juntos. ISABELA É o primeiro caso de cura gay que eu já ouvi falar, pastor QUINTERO. QUINTERO Não entendo como isso foi acontecer. ISABELA FEDERICA resolver gostar de homem? QUINTERO (rindo) Não. Eu ter coragem de sair de casa. ISABELA Vai encarar a fera nipônica? Fez um intensivo de Kung Fu? QUINTERO Não. Vou aproveitar quando ela for fazer compras no supermercado e juntar minhas coisas. Um milagre só já é suficiente. Não convém abusar da boa vontade do Papa Chico. Os dois riem com vontade. EXT. ESTÁDIO DO GALÁTICOS/RIO – DIA. Sol forte de meio dia. 227 Devagar, custando para levar as pernas para frente, Violão e Pelé caminham lado a lado. Violão sempre com a mão direita sobre o ombro direito de Pelé. VIOLÃO E pensar que eu já ajudei aquele filho da mãe. Esse Bonilha nunca prestou. Bem que Dr. Leonardo falou. PELÉ Vamos esquecer aquele Bonilha, pai. Um dia vai dar certo. VIOLÃO Esperar duas horas naquele sol desgraçado para você nem tocar na bola. PELÉ Eu ia fazer aquele gol, pai. Leo me ensinou a bater falta. Daquela distância eu não erro de jeito nenhum. VIOLÃO Juro por Deus que eu vou dar um jeito nisso, filho. Vou esperar uns dias e depois vou ao hospital pedir ajuda ao Doutor Leonardo. PELÉ Esquenta não, pai. Se dona Nelma sonhou que eu vou para a seleção é porque eu vou passar na peneira. Ela nunca errou. VIOLÃO É. Ela nunca errou. Vamos entrar pelos fundos. Estou com vergonha da vizinhança. Eu falhei com você, meu filho. PELÉ (sorrindo, confiante) Não fala isso, “seu” Violão. Você é o melhor pai que um garoto pode ter. Leo já me falou isso mil vezes. Vai dar tudo certo da próxima vez, você vai ver. Deus é grande. VIOLÃO Claro que vai, meu filho. Você vai para a seleção. Aí eu quero ver a cara daquele filho da mãe. Violão e Pelé ouvem um assovio. BARBOSA Ei! Espere aí, você que dançou na peneira. BARBOSA, 38 anos, magro, cara de malandro carioca, aproxima-se. 228 BARBOSA Você é o Pelé lá do Alemão, não é? VIOLÃO (depois de fazer sinal ao filho) É ele sim. Por quê? Quem quer saber? BARBOSA SALVIANO Barbosa, seu criado. Eu sou olheiro. Trabalho para o dono do GALÁTICOS. VIOLÃO E daí? Vocês nem deixaram meu menino pegar na bola. BARBOSA Seu menino estava seu cartão. Sem cartão não pega mesmo. Mas na próxima peneira ele pode ter cartão. VIOLÃO (desconfiado) O senhor consegue um cartão para ele? BARBOSA Eu faço mais do que isso. Se o senhor quiser. Posso apresentar o senhor ao meu chefe. Aí ele ganha um contrato. O menino já fez 15 anos? VIOLÃO Já. BARBOSA E porque só agora o senhor está trazendo ele aqui? Tinha que trazer bem antes. VIOLÃO Eu sou massagista do BRASIL. Leonardo REYNA é que orienta meu menino. Foi ele que disse que era para deixar ele nas peladas até hoje. BARBOSA (dá meia volta) Então o senhor pede a ele para arrumar um contrato para o menino. VIOLÃO Não, seu Barbosa! Espere aí, vamos conversar. Barbosa volta-se para eles. É teatro puro. BARBOSA 229 O que o senhor quer conversar? VIOLÃO Eu só contei ao senhor para explicar porque meu menino só veio agora para a peneira. BARBOSA No Brasil não tem divisão de base? VIOLÃO Acabaram com a divisão de base. Coisa da diretoria. Não sei por que fizeram uma coisa dessas. Todo clube tem que ter divisão de base, o senhor não acha? BARBOSA Posso contar um segredo para o senhor? Conto com sua discrição? VIOLÃO Pode contar qualquer coisa. Daqui não vai sair nada. PELÉ Nem daqui. Violão faz gesto de repreensão: ele que Pelé de boca fechada. BARBOSA Eles acabaram com a divisão de base porque todo mundo veio aqui para o GALÁTICO. Meu chefe trouxe a menina toda que sabia jogar bola. Só perna de pau ficou lá. VIOLÃO E quem é o seu chefe? BARBOSA É o doutor Madureira. Ele é médico? VOLÃO BARBOSA Que médico da onde. É doutor advogado. Quer conhecer ele? VIOLÃO Você apresenta a gente para ele? BARBOSA Depende. De graça só relógio. 230 Quanto? Dois mil. VIOLÃO BARBOSA VIOLÃO Você sabe que o menino é bom de bola. Vai fazer média com seu chefe com a minha grana. Mil. BARBOSA Fechado. É ali naquela casa. Vamos lá agora mesmo. Se der sorte você fala com ele agora mesmo. Barbosa aponta um sobrado perto, do outro lado da rua. Os três vão juntos em direção à casa e entram. INT. CASA DE CARLÃO/RECREIO/RIO – DIA. Sem bater, conduzidos por Barbosa, Violão e Pelé são recebidos por uma recepcionista que faz o estilo boazuda. RECEPCIONISTA E aí, Barbosinha? O que é que tu conta de novo? BARBOSA Vim trazer esse menino para assinar contrato. Doutor Madureira está aí? RECEPCIONISTA Chegou agora mesmo. Você deu sorte. Violão e Pelé trocam olhares, satisfeitos. BARBOSA Vamos lá resolver isso logo. RECEPCIONISTA Vou levar água gelada. Ou vocês preferem um refrigerante? Água está bom. VIOLÃO Barbosa bate na porta: três batidas. A porta abre automaticamente. INT. SALA DE MADUREIRA/RECREIO/RIO – DIA. 231 Mobiliada com luxo excessivo, a sala de Madureira tem dois potentes aparelhos de ar condicionado. Está bem mais fresco o ambiente. MADUREIRA Vamos entrar. Quem é esse aí, Barbosa? BARBOSA É aquele menino do complexo do Alemão. Pelé. Falei dele ontem para você. Lucilene já deixou o contrato aí na sua mesa. MADUREIRA Está certo. Está aqui. Vamos sentar. Qual é a sua graça? VIOLÃO (pega o contrato) É Violão mesmo. (tenta ler; tem dificuldade) Toca o telefone. MADUREIRA (atendendo) Boa tarde, Carlão. Já estou saindo. Não demoro. Em uma hora estou aí. (desliga) Assina logo que eu vou ter que sair. Coloque seu nome em letra de forma. (mostra o papel) Aqui. VIOLÃO Eu não estou conseguindo ler nada. A letra é muito pequena. Não posso assinar sem ler o que está escrito. O senhor me deixa ler com calma que eu assino. MADUREIRA Não posso esperar. É pegar ou largar. INTERVALO. PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS. VOLTAMOS À SALA DE MADUREIRA. Continuação da cena anterior. BARBOSA Não vacila meu chapa. Assina logo. Não vai haver outra oportunidade. Violão está apreensivo, em dúvida. Olha para Pelé: os olhos dele estão brilhando. Aí não tem dúvida: assina o contrato. Nas três vias. MADRUGA INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL/RIO – DIA. 232 REYNA e Isabela estão no quarto; ele ainda com as duas pernas imobilizadas. ISABELA Precisamos ter uma conversa séria. REYNA Pisei na bola, fui muito mal educado. Peço desculpas, Ed. De coração. Você tem sido um amor, não merecia aquela cena ridícula. ISABELA Tudo bem. Você está estressado. Mas não se trata disso. REYNA (preocupado) Que cara é essa? Tem mais alguma notícia ruim? ISABELA Não. Sem mais notícias. Mas é um assunto pessoal. Delicado. REYNA Fala logo. Quero saber. ISABELA Por que você chama todo mundo de Ed? Quem é Ed? De onde você tirou essa estória? Pelo amor de Deus: esclarece isso ou eu vou enlouquecer de curiosidade. Os dois riem com vontade. REYNA Você realmente quer saber? ISABELA Quero. Já que vamos ficar juntos aqui por muito tempo tenho direito de saber. REYNA Você conversou com a minha mãe? ISABELA Conversei. Antes de você falar com ela. Mas achei melhor não perguntar nada a ela. REYNA OK. Vou contar. Mas você vai ter que fazer um juramento. ISABELA 233 Eu faço o que você quiser. Mas pelo amor de Deus, me conte por quê! REYNA (sem graça) Ed era o nome de um ursinho que eu tinha quando era pequeno. Eu era doido com ele. ISABELA Você está me gozando. Fala sério. REYNA Verdade. Pergunta para minha mãe. Comecei com essa brincadeira quando tinha quatro anos e continuo com ela até hoje. Um lance freudiano. ISABELA (querendo rir, mas se contendo) Meu Deus. Aonde é que eu fui me meter? (pausa) Já que é assim, tudo bem. Assunto encerrado. Esse é um ótimo motivo, sem dúvida. Mais risadas. REYNA Vamos falar sério agora. O recreio acabou. Arquive meu ursinho de pelúcia. ISABELA (custando para não rir) Está arquivado. Ed. REYNA (sério) Mandei fazer uma reforma em meu apartamento. Vou fazer uma sala de musculação igual à que tem lá no clube. Por que isso agora? ISABELA REYNA Vou ter muita fisioterapia pela frente. Muita musculação. Eu acho que vou passar o dia inteiro dentro dessa academia que vou montar lá em casa. ISABELA Que bom que está otimista. REYNA 234 Eu vou dar a volta por cima. Pode apostar nisso, Ed. ROBBE-GRILLET entra. De óculos, um tipo frio, distante, cabelos grisalhos, 60 anos. Isabela traduz o que ele fala tão logo termina o que diz o francês. REYNA Chame Fabio. François não gosta de falar inglês. Eu não entendo nada de francês. ISABELA Não precisa. Falo francês. Ele é casado com uma brasileira, entende português, embora não fale. Oui. ROBBE-GRILLET REYNA OK. Vamos em frente. DOUTOR ROBBE-GRILLET Mais il faut que vous compreniez que, plus vous utilisez de morphine, moins de chance vous aurez de reprendre votre carrière d’athlète professionnel. ISABELA O senhor deve entender que quanto mais morfina usar, menores são as suas possibilidades de voltar a ser um atleta profissional. CLOSE-UP de REYNA. Atento. DOUTOR ROBBE-GRILLET Votre organisme s’habitue rapidement à la morphine. Il l’absorbe presque complètement. C’est le grand obstacle à la récupération naturelle des tissus lacérés. ISABELA Seu organismo se acostuma rápido com a morfina. Absorve a morfina quase que integralmente. E isso é um grande obstáculo para a recuperação natural dos tecidos lacerados. PLANO APROXIMADO de REYNA. CLOSE-UP DO FRANCÊS. DOUTOR ROBBE-GRILLET (pisca discretamente para Isabela) C’est pour cette raison, il n’existe pas un seul cas de récupération, jusqu’au niveau de carrière d’athlète professionnel, avec le type de lésions, que vous avez, Monsieur. ISABELA É por essa razão que não existe um único caso de recuperação para a vida profissional em casos de lesões como a que o senhor teve. CLOSE-UP de REYNA. 235 REYNA Nenhum caso de recuperação? DOUTOR ROBBE-GRILLET (sinal negativo com a cabeça) Non. Aucun. Personne n’a pu surmonter l’obstacle de la douleur. Normalement, ils abandonnent tous après le cinquième jour sans morphine. Et croyez-moi la douleur est intolérable. ISABELA Nenhum. Ninguém conseguiu superar a barreira da dor. Normalmente, depois de quinto dia sem morfina, todos desistem. É um dor insuportável, acredite. REYNA (aponta a bomba injetora) E se eu optar pela morfina? DOUTOR ROBBE-GRILLET Vous n’aurez pas mal. Le traitement prendra plus de temps. Vous pourrez avoir une vie normale. Mais vous ne pourrez plus être footballeur professionnel. ISABELA O senhor não sentirá dores. O tratamento será mais demorado. O senhor terá uma vida normal. Mas jamais voltará ao futebol profissional. CLOSE-UP de REYNA. Entendi. REYNA DOUTOR ROBBE-GRILLET Qual é a sua decisão? ISABELA Qu’est-ce que vous décidez ? PLANO APROXIMADO de REYNA. REYNA Eu vou ser um estudo de caso nos congressos científicos. Vou poder tomar outra medicação, um sedativo? ROBBE-GRILLET Oui. But something soft. Not heavy. Soft. ISABELA Claro. Mas algo suave, não muito forte. REYNA Que assim seja então. ROBBE-GRILLET não diz nada. Aperta a mão de REYNA fortemente. ROBBE-GRILLET (com forte sotaque) 236 Depois eu volto. ROBBE-GRILLET entrega algo a Isabela. REYNA Obrigado, François. Não seria adequado ficar mais preso à cama? ROBBE-GRILLET Yes, of course. I will provide this. (a Isabela) Obrigado. O francês beija a mão dela e sai. Isabela começa a traduzir, ele interrompe. REYNA Não precisa. Eu entendi. Obrigado. Vou ficar de olho nesse francês de bico doce. ISABELA Deixe de ser bobo. Ele tem idade para ser meu avô. REYNA faz uma inspeção visual na bomba injetora de morfina. REYNA Está decidido. Mas não vou usar essa coisa. ISABELA A dor é tão grande assim? REYNA Já teve cólica de rim? Pedra nos rins? É aquela dor. Multiplicada por dez. Durante dois dias inteiros. ISABELA Será que vale a pena? REYNA Quem disse que eu desisto de alguma coisa sem tentar? ISABELA Reparou que você não está mais chamando a gente de Ed? REYNA É. Reparei. ISABELA 237 Assim é que se fala querido. Você vai parar com o futebol quando quiser e não quando um bandido feito aquele Cicinho decidir. REYNA Não fale assim dele. Futebol tem dessas coisas. Se ele soubesse no que ia dar aquele carrinho, ele não teria dado, tenho certeza. Fabio entra, seguido por dois enfermeiros. FABIO Tudo com você é diferente. O efeito da anestesia local já deveria estar passando. Meu santo é forte. REYNA Os enfermeiros puxam correias que estavam embutidas na cama e atam o corpo dele à cama. DR FABIO Conversei com o professor. Vamos usar um sonífero muito forte, sem nenhum componente que atrapalhe o processo de recomposição dos tecidos. A enfermeira vem aplicar se você quiser. É uma droga muito forte, recomendada para pacientes terminais, quando a morfina deixa de fazer efeito. REYNA Vou querer. E a perna esquerda, Fabio? DR FABIO Sabe quantos graus tem a sua flexão agora? REYNA (olha a perna esquerda) Não tenho ideia. Imagino que cinquenta, cinquenta e cinco graus. Menos. DR FABIO REYNA Quanto? DR FABIO Trinta. REYNA 238 Merda. Para voltar a jogar, quanto vai ter que ser? Noventa? DR FABIO Cento e quinze graus. No mínimo. REYNA A fisioterapia vai ser divertida. DR FABIO Tudo (enfatiza bem a pronúncia) vai ser divertido. REYNA Você não acredita que eu vou aguentar. DR FABIO (inspecionando as correias) Não vai mesmo. (aos enfermeiros) Ficou bom. Podem ir. Os enfermeiros saem. REYNA (ao DR FABIO) Vá tomar no seu cu. Leonardo! ISABELA REYNA Só ela e minha mãe me chamam de Leonardo. Até parece que estamos casados. ISABELA Viu como ele é esperto, doutor? DR FABIO (a Isabela) Cuidado com ele. (em voz baixa, perto do ouvido de REYNA) Talvez as correias não sejam suficientes para segurar você. Estou pensando em trazer Violão para ficar aqui contigo. É melhor ela ir para casa. ISABELA Como é que é? DR FABIO Nada. Não está aqui quem falou. (Dá um beijo na testa de REYNA, repentinamente) Para dar sorte. Isabela ri. O médico sai rápido, rindo também. REYNA 239 Você fala com ele? Fabio faz sinal positivo com a cabeça e sai. REYNA Fabio vai trazer um amigo muito forte. Violão. Do clube. Você não vai conseguir me segurar. ISABELA Eu vou ficar aqui com você. REYNA Três nesse apartamento vai ser demais. ISABELA Só vai ser preciso durante dois dias, até passar o período em que você não pode tomar morfina. A gente se vira e dá um jeito. REYNA Tem certeza? Vai ser difícil para você. ISABELA Muito menos do que para você. Eu aguento. REYNA Meus pais querem vir me ver. Por favor, ligue pra minha mãe e diga que não é pra vir. Quando eu estiver em casa eles vem. Antes não. ISABELA Ela disse que você iria falar exatamente isso. Ela não vem nem seu pai. Nem seu irmão. REYNA Melhor. O que foi que François entregou a você? Ela estende uma peça de borracha, como as que são usadas pelos lutadores de boxe, para proteger os dentes. Ela tira o plástico que envolve o protetor. REYNA (coloca a peça na boca) Vai começar a brincadeira. Vou dormir um pouco. Tenho que descansar. EXT. CASA DE VIOLÃO/FAVELA DO ALEMÃO/RIO – FIM DE TARDE. 240 Violão e Pelé estão no terraço da casa dele: uma construção simples, mas bem-feita. Nelma e outros vizinhos estão com eles. Eles participam de um churrasco regado à cerveja. O pagode rola solto. Violão sai discretamente, logo depois de atender ao celular. INT. SALA DA CASA DE VIOLÃO – DIA. Lucas, goleiro do BRASIL FC, muito amigo de Violão, entra na sala. Cadê o contrato? LUCAS Violão pega num armário a pasta com o contrato e dá a Lucas. LUCAS (senta-se) Vamos ver. Mas essa estória está cheirando mal. Você não devia ter assinado. INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – TARDE. CAM mostra o rosto de Isabela, dormindo na poltrona de visitante. O rosto dela é lindo, repousa em paz. CLOSE-UP nos olhos de REYNA, que se abrem de repente. OUVIMOS gemidos. Gemidos de dor e agonia: REYNA acordou. Ela acorda, sobressaltada. REYNA está molhado de suor. REYNA O efeito da anestesia passou! Como dói, meu Deus! É horrível, não vou aguentar! Ahhhhhhhhh!!!!!! ISABELA Aperte a bomba de morfina, REYNA. Aperte logo! REYNA Não. Eu não vou apertar. Eu não posso! Eu não posso! Cadê ao protetor? O protetor caiu! Dê alguma coisa pra morder, Isabela. Por favor, me dê. Isabela procura o protetor de borracha na cama; acha a peça e a coloca na boca de REYNA. Ele comprime os dentes. Está sentindo uma dor enorme. O rosto dele transforma-se numa máscara de dor. Ele olha para a bomba injetora de morfina. Imagens dele vestido de médico, atendendo num ambulatório, invadem a tela. 241 ISABELA O que você quer que eu faça? REYNA (tira o protetor e coloca de novo, depois de falar) A enfermeira! A enfermeira! O sonífero! ISABELA Um minuto, querido. Vou buscar a enfermeira. (Sai) OUVIMOS a respiração entrecortada de gemidos de REYNA. Ele está ensopado. CLOSE-UP do rosto de REYNA, sofrendo dores atrozes. A enfermeira entra rápido, seguida por Isabela. Ela vem com uma seringa na mão direita; injeta o conteúdo nas veias de REYNA. ISABELA Obrigado, enfermeira. Muito obrigado. Enfermeira sai. INT. SALA/CASA DE VIOLÃO/FAVELA DO ALEMÃO – DIA. Lucas ainda lendo o contrato. Violão esperando. LUCAS O filho da mãe comprou os direitos econômicos de Pelé por uma mixaria. Esse contrato vale até os 20 anos. Violão passa as mãos no rosto, desanimado. Lucas dá um abraço nele. INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – DIA. Imagens distorcidas, no PONTO DE VISTA de REYNA, já sob o efeito do sonífero. Ele está com o protetor de borracha na boca, com os cabelos molhados; ainda sente dor, mas está grogue. Na trilha sonora, OUVIMOS o ruído característico de um gongo usado nas lutas de boxe. Sempre com imagens deformadas e efeitos sonoros que ilustrem com clareza que REYNA está “viajando”, VEMOS o jogador num ringue, usando luvas de boxe, tomando repetidas pancadas: no rosto, no abdome. Ele se defende como pode; está apanhando muito, impiedosamente socado pelo adversário, que é o DR ROBBE-GRILLET. 242 Fusões sucessivas do gongo soando, do relógio no apartamento de REYNA mostram o transcurso do tempo. Sucessivamente, os ponteiros apontam a passagem das horas, a partir de 4 da tarde até 4 da manhã. VEMOS que Violão está segurando o corpo de REYNA, evitando que as pernas se mexam; sempre com o protetor na boca. VOLTAMOS ao apartamento. Isabela está dormindo na poltrona, Violão firme, atento a REYNA, que está dormindo, encharcado de suor. INTERVALO. PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS EXT. HOSPITAL SAMARITANO/RIO DE JANEIRO – ENTARDECER. Imagem externa do hospital. O sol está indo embora. INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – ENTARDECER. CLOSE-UP revela que REYNA está acordando, abrindo os olhos devagar. De olhos fundos, está extremamente abatido; procura Isabela com os olhos, até ver que quem está na poltrona de visitas é Violão. Isabela está dormindo na cama de visitante, virada de costas para REYNA. VIOLÃO Ela está dormindo. Tudo bem, doutor? REYNA Uma fome desgraçada. Mas sem dor. Meu Deus, nem acredito. Quanto tempo eu dormi? VIOLÃO Dois dias. Dois dias e meio. Jura? Isso tudo? REYNA VIOLÃO Doutor FABIO mandou e eu apertei esse negócio aí (mostra a bomba injetora de morfina) há mais ou menos 3 horas. REYNA Fale baixo, Viola. Vai acordar Isabela. VIOLÃO Nem um terremoto acorda essa menina agora. Ela ficou duas noites sem dormir. Escolheu bem, doutor. Custou mas escolheu, hein? 243 REYNA Por que ela não dormiu? VIOLÃO Com você gemendo feito louco o tempo todo nem querendo ela conseguiria. Mas ela ficou firme. A gente revezou para cuidar de você. REYNA Você também está sem dormir esse tempo todo? VIOLÃO E eu iria dormir se ela aguentou firme? REYNA Vá para casa, Violão. Vá dormir. Depois a gente conversa direito. VIOLÃO Vou sim. Agora o doutor pode tomar esse remédio aí, não vai ficar mais com dor. Teve uma hora que eu achei que você ia morrer. Menino, foi difícil segurar você. REYNA E Pelé? Ficou com quem? VIOLÃO Ficou na casa da minha vizinha. No Alemão todo mundo se ajuda. E a peneira? REYNA VIOLÃO Nem te falo. Depois eu volto e conto tudo. REYNA estende a mão esquerda. REYNA Obrigado, amigo. Vê se volta mesmo, hein? Quero saber essa estória direito. VIOLÃO Fique com Deus, doutor. Trate de dar valor a essa menina. Não é fácil encontrar mulher assim hoje em dia. REYNA Obrigado, amigo. Vou cuidar sim. 244 Violão sai e quase se choca com Doutor Fabio, que está entrando. DR FABIO Aonde vai com essa pressa toda, Violão? VIOLÃO Para casa, doutor Fabio. O senhor ainda vai precisar de mim? DR FABIO Não, vá em paz. Consegui uma folga de uma semana para você. Vê se aproveita e descansa um pouco. Sei que você vende suas férias há mais de cinco anos. VIOLÃO Valeu. Obrigado, doutor. Violão vai embora. DR FABIO Acabou o suplício, meu samurai. REYNA Eu sou ateu, mas quase soltei um graças a Deus. DR FABIO Pode usar a bomba à vontade agora. Dor mesmo você só vai sentir de novo quando começar a fisioterapia. REYNA E quando é que eu vou poder começar? DR FABIO Devagar com o andor que o santo é de barro. Você ainda tem pelo menos mais umas quatro cirurgias pela frente. REYNA E o francês seu amigo? Vai morar aqui no Rio por conta do Brasil? DR FABIO Não vai ser preciso. A partir de agora a bola é nossa. Ele voltou para Paris hoje cedo. Está muito otimista. Acha que você vai conseguir se recuperar. E você não? REYNA DR FABIO 245 Se você mostrar a mesma força de vontade na fisioterapia, eu ia acabar de dizer. Ele mandou dar a você os parabéns. O professor ficou muito impressionado com você, Leo. REYNA Você não respondeu. DR FABIO Não mudei minha opinião. INT. SALA DE BONILHA/CT DO GALÁTICOS/RECREIO – DIA. Violão e Bonilha. BONILHA Seu menino tem potencial, Violão. Mas vai precisar de um programa intensivo de fortalecimento. Vamos investir nele. Você tem muita sorte. VIOLÃO Eu tenho sorte? Você compraram os direitos econômicos do garoto por uma mixaria e eu tenho sorte? Conta para mim aonde a dona sorte foi parar, Bonilha. BONILHA Daqui a alguns anos você vai agradecer a gente. Se seu menino for bom de bola feito você diz pode até ser vendido para o exterior. Vai ser bom para toda a família. VIOLÃO Mas vai ser melhor ainda para vocês. E pode ir tirando o cavalo da chuva. Não vou deixar vocês tirarem meu menino da escola nem tomar remédio para crescer. BONILHA Não quero ser desagradável, mas acho que vale pena você dar mais uma lida no contrato que assinou conosco. VIOLÃO O que você quer dizer com isso? BONILHA Ele vai continuar treinando com os outros garotos e vai ter pelo menos duas horas de musculação. Mas isso não é suficiente para ele ficar com o físico adequado. Vai ter que sair da escola sim. E trate de não encher meu saco, negão. BONILHA sai, irritado. 246 INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – DIA. O cabelo de REYNA cresceu e a barba também. Isabela cortou os cabelos: alguns meses se passaram. Ele está parado, pensativo, olhando pela janela, observando o movimento no pátio interno do hospital. Isabela está teclando em laptop. Ela volta-se e olha para REYNA. ISABELA Leo? Tudo bem com você, Leo? Ele não responde. Ela se aproxima. ISABELA O que foi? REYNA Estou pensando no que Lucas me falou. ISABELA Sobre o filho de Violão? REYNA É. Preciso arrumar um jeito de ajudar Viola com essa máfia que passou a perna nele. ISABELA Estou pesquisando exatamente esse assunto. Vou fazer uma reportagem especial sobre esses empresários. Você sabia que o negócio de compra e venda de jogadores profissionais movimenta mais de três bilhões de dólares por ano? Tanto assim? REYNA ISABELA São duzentas transferências por mês. Em média. Só no Brasil. Incluindo as categorias de base. REYNA Não é à toa que tantos investidores estão entrando no ramo do futebol. Empresas e pessoas físicas. Uma delas vai ter ação na bolsa. ISABELA Andei fazendo uns contatos. Sabe quem é o dono daquele clube que assinou com o garoto de Viola? 247 Não. Quem? REYNA ISABELA O presidente de seu fã-clube. REYNA Carlão? ISABELA Em carne e osso. Mais carne do que osso, aliás. REYNA Que filho da mãe. O sujeito está em tudo quanto é negócio. O motorista de Isabela entra. SALGADO As malas são essas, Isabela? ISABELA Só essas duas. Viu como eu fiquei bem comportada? SALGADO Também pudera. Num hospital não dá pra fazer desfile, não é? ISABELA Você levou as muletas de Leo? SALGADO (aponta as muletas, no canto) Não. É para levar? E ele vai de que jeito? Voando? REYNA Isso mesmo, Salgado. Não dá mole para ela. ISABELA Você podia ter pensado que ele iria de cadeira de rodas. SALGADO Com a perna dobrada? REYNA Salgado, dois. Isabela, zero. Ela fecha o laptop. E entrega as muletas a REYNA. ISABELA 248 Esse complô masculino não vai durar muito. Salgado está aposentando. SALGADO Hoje é meu último dia. Mas eu vou continuar morando na casa dela. Não consigo me separar dessa chata. ISABELA Na casa de meu pai, você quer dizer. E não é por minha causa. Ele está aposentando também e os dois vão ficar azarando as meninas na praia. SALGADO Olha o respeito, menina. Mais amor e MENAS confiança. Muito MENAS. REYNA Lula também é cultura. SALGADO Cuidado senão a gente leva seu namorado também. Ele também está aposentando, não é? Acaba o clima descontraído. Leo fecha a cara e sai com as muletas: a perna esquerda dobrada, muito enfaixada. SALGADO O que foi? Falei bobagem? ISABELA Não é verdade o que a imprensa anda dizendo, Salgado. Leo está se matando para conseguir voltar ao futebol. Mas mesmo que não voltasse ele não iria se aposentar. É médico. EXT. SALA DE MUSCULAÇÃO/CASA DE REYNA – DIA. REYNA está deitado numa cama própria para fisioterapia. Junto com Isabela um assistente espanhol, JOAQUÍN, alto, musculoso, muito forte. JOAQUÍN está exercitando a perna esquerda de REYNA, que se dobra muito pouco. O fisioterapeuta, com a orientação de Isabela, força cada vez mais a perna, o que provoca muita dor em REYNA. JOAQUÍN (forte sotaque espanhol) Um pouco mais, REYNA. Força! Vamos! Mais forte! REYNA Não dá! Não dá! 249 ISABELA Dá sim, Leonardo. Tem que dar, você precisa conseguir mais uns graus hoje. É preciso forçar, não tem outro jeito. REYNA (gemendo, ensopado de suor) Pega um pouco de água, por favor. Meu Deus, como dói essa merda. Isabela dá água a REYNA. ISABELA (ao espanhol) Você precisa jogar o peso de seu corpo em cima da perna dele. Jogue o peso. Pra valer, tem que forçar mesmo. Ele não vai aguentar. Ele vai aguentar. JOAQUÍN REYNA ISABELA Vamos lá, Leo. Prepare-se. Vai, JOAQUÍN, vai! Agora! JOAQUÍN Pronto? Pronto, porra! REYNA JOAQUÍN joga o corpo, pressionando a perna de REYNA, forçando que ela se dobre. REYNA grita de dor, começa a chorar, gemendo, urrando de dor. ISABELA De novo, JOAQUÍN! Mais forte! Mais um pouco! Você consegue Leo! REYNA não consegue segurar mais: solta sua bexiga, seu intestino e suja o calção que está suando. Isabela faz sinal, JOAQUÍN para de fazer força. Percebemos que há mau cheiro no ar. REYNA (com os olhos cheios de lágrimas) Que vergonha. Não consegui segurar. Não sei o que falar. ISABELA 250 Não tem que falar nada. Isso acontece. Você está fazendo força demais. É natural. JOAQUÍN Vamos parar um pouco. Eu preciso descansar. REYNA (brincando) Você? Você precisa? Eu aqui todo borrado e molhado feito um bebê e é você que tem de descansar? Seu filho da mãe! Admita. Admita que você é torcedor do Atlético! JOAQUÍN Já que você falou, meu time do coração é mesmo o Cão. REYNA Ninguém é perfeito. Só podia ser. REYNA desce da cama; Isabela entrega a ele as muletas. REYNA verifica se a roupa de baixo está firme, se está em condições de se levantar. Com a perna dobrada, mancando, ele vai em direção ao seu quarto. ISABELA Vou com você, querido. REYNA Não precisa. Deixa. Eu me viro sozinho. Eu prefiro. Isabela ignora e vai com ele. INT. BANHEIRO/CASA DE REYNA – DIA. REYNA já tem prática no uso das muletas. Isabela chega com ele e o ajuda a tirar a roupa suja. Isabela limpa a roupa suja na banheira e ajuda REYNA com o chuveirinho, lavando-o. REYNA Você é uma mulher muito especial. ISABELA (passando sabonete no corpo dele) Sou sua mulher. É isso que faz de mim uma mulher especial. INT. QUARTO DE UM INTERNAUTA QUALQUER – NOITE. 251 O quarto típico de quem fica horas por dia na Internet. Caixas de som potentes, microfones, tela de cristal líquido. Pedaços de pizza e garrafas de refrigerantes vazias espalhadas na imensa mesa em que vemos um desktop e um laptop, ambos ligados. Ao fundo, uma TV ligada mostra a chamada do Jornal Nacional, da Rede Globo, com som ao fundo, mais baixo. Ouvimos os gemidos de REYNA, amplificados na parafernália do equipamento do internauta MARCELO, 24 anos, gordíssimo. Comendo um sanduíche sem desgrudar da tela um único instante, ele observa na tela a imagem de REYNA malhando no NAUTILUS, ensopado de suor. CORTA PARA VAMOS à sala de musculação da casa de REYNA e vemos uma CAM, gravando a imagem dele, enquanto faz os exercícios no NAUTILUS. Ao lado dele, JOAQUÍN, orientando. JOAQUÍN De novo, REYNA. Não pare agora. (REYNA continua, assentindo num sinal com a cabeça) RETORNAMOS ao quarto de Marcelo (quase 130 kg), que fala com outro internauta, LUISINHO, de 19 anos, pelo microfone do laptop. Na tela do micro, vemos MARCELO, conversando em tempo real com LUISINHO. LUISINHO Ele já voltou a treinar com bola? MARCELO (na tela, imagem não muito nítida) Semana passada. Fui ver o treino com a galera. Nem parece que o cara quebrou as duas pernas. LUISINHO Dez meses malhando oito horas por dia, todo santo dia. MARCELO Se esse cara não merece voltar a jogar bola ninguém merece. INT. CT DO BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA – DIA. Os jogadores estão fazendo aquecimento no gramado. Todos rindo muito, felizes com a reintegração de REYNA. Madruga reúne os jogadores no centro do campo e distribui as camisetas, para reservas e titulares. 252 Isabela está no alambrado, ao lado de QUINTERO e de Fábio. INT. GRAMADO DO CT/BARRA DA TIJUCA/RIO – DIA. Um coletivo do BRASIL FC. O time titular contra o time reserva. REYNA está entre os reservas. Corre sem medo, entra nas bolas sem receio. As imagens mostram as jogadas feitas pelos jogadores, enquanto Isabela e o doutor FABIO, que observam o treino, trocam ideias. Na trilha, NA CADÊNCIA DO SAMBA (Que bonito que é). INTERVALO PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS INT. SALA DE QUINTERO/CT BRASIL FC/RIO – DIA. QUINTERO e REYNA estão conversando. QUINTERO sentado, REYNA de pé, olhando pela janela. REYNA acende um charuto. QUINTERO Você deu sorte de não aparecer sujo de cocô na Internet. REYNA Não corri esse risco, Zé. Meu acordo com o sindicato era de uma hora de imagens por dia. Não era exatamente um Big Brother da vida. QUINTERO Estou sentindo falta de você me chamar de Ed. Aliás, só eu não. Até Violão veio se queixar. REYNA Meu negócio é bagunçar o que está arrumado e arrumar o que está bagunçado. Cansei desse negócio de Ed. QUINTERO Você não vai ganhar nem um centavo com a veiculação dos filmes na Internet? Li hoje no jornal que seus vídeos são os mais vistos no Brasil. REYNA O sindicato precisa de cada centavo dessa grana. Não me sentiria bem faturando em cima disso. A classe é muito desunida. Quem sabe agora mais alguém faz alguma coisa pelo sindicato? Alguém tem que começar. QUINTERO 253 Mas vamos ao que interessa. Não chamei você aqui para falar disso. (pausa) Um amigo meu da Inglaterra me ligou ontem à noite. REYNA E... QUINTERO Como é sua relação com Noriega? REYNA Normal. Igual a sua. Ele também é seu empresário, não é? QUINTERO Vai deixar de ser depois do telefonema que eu mencionei. REYNA Qual é a encrenca? QUINTERO Meu amigo inglês garantiu que foi Noriega quem plantou aquela estória de cocaína lá em Londres. REYNA Não faz sentido. Porque ele faria uma coisa dessas? Ele não é burro. Ia levar uma bela grana com a minha transferência. QUINTERO Ele tinha um motivo. Um motivo muito forte, eu diria. Qual? REYNA QUINTERO Convém você sentar. REYNA (senta-se) Fala logo. QUINTERO Ele é sócio de Carlão. Plantou aquela merda a pedido do filho da mãe. REYNA Tem certeza? Absoluta. QUINTERO 254 REYNA Que escroto esse Noriega. QUINTERO Perdi a confiança no cara. Vou romper o contrato hoje mesmo. Ele me disse que ia jantar com você. Achei que era bom conhecer um pouco mais a pessoa com quem está lidando. REYNA Posso pedir para você deixar esse rompimento para daqui a alguns dias? QUINTERO Por que eu faria isso? REYNA Isabela resolveu ajudar Violão. Aquela estória do contrato que ele assinou, praticamente dando os direitos econômicos de Pelé a um sujeito chamado Madruga. QUINTERO Qual é a relação entre uma coisa e outra? Não entendi. REYNA O sujeito quer 300 mil dólares para vender os direitos de transferência do menino de Violão. QUINTERO O garoto é bom assim? REYNA O menino vai longe. Eu aceitei a ajuda dela porque sei que ele vai ser craque. QUINTERO Onde entra Noriega nessa estória? REYNA O tal Madruga é testa de ferro de Carlão. De Noriega também, provavelmente. QUINTERO Exatamente o quê você pretende fazer? REYNA Vou contar para Noriega que o menino tem um problema cardíaco e jogar o preço para baixo. 255 QUINTERO Quanto você acha que ela deve pagar sem despertar suspeitas? Não se esqueça de que essa gente é esperta. Eles farejam problemas. REYNA 50 mil. Para Isabela é troco. Dólares? QUINTERO REYNA (sorrindo) Não. Reais. QUINTERO Vai ser divertido ver alguém passar a perna naquele safado. OK. E se Noriega desconfiar? Ele sabe que o menino é seu xodó. REYNA Mas não sabe que eu sei que ele vai ficar com boa parte desses 300 mil. Vou contar como se estivesse preocupado com a saúde do menino. Coisa de padrinho. QUINTERO ri. REYNA também. Os dois batem as palmas das mãos, cúmplices. INT. SALA DE MADRUGA/RECREIO/RIO – DIA. Madruga e Isabela na sala dele. Estão assinando o contrato de transferência de direitos econômicos de Pelé. MADRUGA Você é uma negociante esperta. Conseguiu um futuro craque por um preço irrisório. ISABELA Você diz isso porque não foi você quem assinou o cheque. Meu pai quase teve um infarto. Para ele é loucura pagar 20 mil reais por um garoto que mal saiu das fraldas. Apertam as mãos. INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS/BRASÍLIA – DIA. Depoimento de Juca KFOURI. Episódio VI : A revolução do craque 256 PARTE I PRÓLOGO 5 MINUTOS EXT. BAÍA DE GUANABARA/RIO DE JANEIRO – NOITE. Vista cartão postal do Rio. Planos da orla, carros indo e vindo. INT. ESTÚDIO DE TV/RIO DE JANEIRO – NOITE. Três anos se passaram desde o retorno aos campos de Leonardo REYNA, que aqui aparece com um penteado diferente. No estúdio, ele e os três jornalistas (PAULO VINÍCIUS COELHO, JOSÉ TRAJANO E FERNANDO CALAZANS), que vão entrevistá-lo num programa que vai começar a ser gravado daqui a pouco, após os ajustes finais que estão sendo feitos: VEMOS a movimentação dos técnicos para tornar isso possível. VOZ DO DIRETOR Tudo OK? OK, Paulinho. Beleza. OK. TÉCNICO UM TÉCNICO DOIS TÉCNICO TRÊS VOZ DE DIRETOR Meninos: vamos começar? PVC? Trajano? Calazans? TRAJANO Acabou o recreio. Vamos trabalhar. Por mim tudo bem. OK. Gravando! PVC CALAZANS VOZ DE DIRETOR A VOZ DOS ENTREVISTADORES ESTARÁ SEMPRE EM OFF: REYNA é enquadrado de perto, em PLANO APROXIMADO e em CLOSE-UP. Mudam as CAM, mas mantêm-se o enquadramento, para sugerir um clima intimista. TRAJANO 257 Fomos procurar o Amarildo e vejam vocês quem nós encontramos. Leonardo REYNA, craque de bola, médico, presidente do sindicato dos atletas profissionais. Tudo bem com você, Leo? REYNA Existe espaço para melhorar, Trajano. No futebol. Na vida pessoal minha vida está tranquila. TRAJANO Mesmo casado? REYNA Sobrenatural de Almeida é uma mulher e tanto. TRAJANO Minha memória não é boa como a do PVC, mas tenho a impressão de que seus problemas no futebol começaram depois que você assumiu a presidência do sindicato de jogadores. REYNA Sua memória é boa também. Os problemas começaram antes, mas se agravaram muito com o início de minha gestão no sindicato. PVC Você se refere às expulsões frequentes ou ao aumento da violência de seus marcadores? REYNA Às duas coisas, pois na verdade elas são uma coisa só. Você é bom com números. Compare as estatísticas de meu primeiro ano após o retorno ao futebol com os números dos dois anos seguintes, quando já estava no sindicato. PVC É verdade. Não é necessário torturar os números para dar razão a você. REYNA Se você considerar que entrei com a ação que tanto incomoda os cartolas logo na primeira semana de minha gestão vai concluir o que todo mundo já sabe. CALAZANS Você se julga perseguido pelos dirigentes do futebol nacional? REYNA 258 Eu e a torcida do Atlético. TRAJANO Mas seu temperamento também não ajuda a melhorar essa situação. Você sempre foi um sujeito briguento. REYNA Sou meio esquentado mesmo. Mas é muito mais do que isso. Estou sendo perseguido pelos juízes. Sou expulso por qualquer bobagem. É retaliação da cartolagem. PVC Mas você ficou mais violento também. Os números mostram isso. REYNA Você vai se cansando de levar pancada o tempo todo. O que estão fazendo comigo em campo com a leniência dos juízes é um absurdo. Os juízes eu até entendo. É coisa de dirigente, de Carlão, que é meu desafeto pessoal, além de tudo. Mas de colegas de profissão? TRAJANO Esse negócio de fumar e de ir para as baladas é entendido por muita gente como provocação. A torcida acha que é falta de profissionalismo. REYNA (irritado) Você também acha. Mas não vou mudar para agradar a torcida e a imprensa. TRAJANO Desse jeito você não volta para a seleção tão cedo. REYNA Ninguém tem tudo o que quer na vida. CALAZANS Você ainda tem esperança de voltar à seleção da Liga? REYNA Que jogador não tem? Eu não sou exceção. Voltar à seleção é questão de honra para mim. PVC É interessante isso. De um lado você não recebe solidariedade de seus colegas de profissão, que vão ser beneficiados com a 259 redução do número de jogos. E de outro é sempre eleito o melhor jogador do ano. REYNA Deve ser uma compensação. A rapaziada tem complexo de culpa e acaba votando em mim. CALAZANS Mas não é só jogador que vota. Técnicos e cronistas esportivos também. REYNA Na verdade a nova lei vai beneficiar o futebol de forma geral e não apenas os jogadores. Jogar duas vezes por semana significa ceder aos caprichos de nossos cartolas, que são os mais burros do mundo. TRAJANO Você se refere ao calendário? REYNA O calendário da Liga é político. Os cartolas da Liga querem fazer média com os políticos e transformaram o calendário numa bagunça. Excesso de clubes, excesso de jogos inexpressivos. CALAZANS Não só por isso. A violência nos estádios e no entorno também aumentou muito. Sem falar no aumento do preço dos ingressos, que aconteceu com a chegada das arenas e na falta de credibilidade dos dirigentes, que contagiou o futebol. O pobre está sendo afastado dos campos de futebol. REYNA São várias as causas, concordo. Mas a fundamental é a queda de qualidade dos jogos. Não podemos esquecer que o futebol é hoje um espetáculo da indústria de entretenimento. Sem um produto de qualidade o público não prestigia. PVC Se prevalecer o intervalo mínimo de uma semana entre os jogos o campeonato da Liga fica inviável. REYNA Na verdade, já é inviável. É preciso acabar com essa coisa ufanista de que o Brasil tem o maior campeonato do mundo. O número de times tem que ser reduzido e deve sobrar tempo para amistosos internacionais, como ocorre na Europa. 260 TRAJANO Vou finalizar a entrevista com uma questão delicada. O presidente da Liga Nacional diz que você não é chamado para a seleção porque é mau exemplo para a juventude. REYNA (nervoso) Mau exemplo é ele, que é um gangster disfarçado de dirigente. Esse negócio de ficar dizendo que eu sou viciado em drogas já rendeu a ele três processos. Mas ele é poderoso, se esconde atrás da imunidade parlamentar. TRAJANO Há quem pense que um jogador no comando da Liga seria uma boa coisa. Como aconteceu na Europa, com Franz Beckenbauer. REYNA Se existisse alguma chance de tomar o lugar daquele verme eu seria candidato no dia seguinte. TEASER E CRÉDITOS DA MINISSÉRIE: CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO, impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas respectivas torcidas nas arquibancadas. INTERVALO. PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS. EXT. NIGHT CLUB/ZONA SUL/RIO DE JANEIRO – NOITE. O Range Rover de REYNA para em frente à entrada da casa noturna. Um porteiro abre a porta do carona e Isabela sai do carro. Está linda, elegante num vestido preto curto, mas sóbrio. REYNA, elegante, sóbrio, todo de preto, sai do carro também, um manobrista da casa sai no carro e, de mãos dadas, os dois dirigem-se à entrada do night club. Muitos fotógrafos estão a postos: começa o brilho dos flashes, a cada vez que chega uma celebridade. Os fotógrafos pedem a Leo para parar para fazer fotos. FOTÓGRAFO UM REYNA, por favor. Parem um pouco. Só uma foto. FOTÓGRAFO DOIS Abraçados, por favor. Muitas pessoas aproximam-se de REYNA pedindo autógrafo. Pedem a ela também e ela assina os papéis que lhe dão para assinar. 261 INT. NIGHT CLUB – NOITE. REYNA está numa mesa de quatro lugares, ao lado de FEDERICA e QUINTERO. REYNA Quem fica com a turminha quando vocês saem à noite? QUINTERO Arrumei uma babá fantástica. Os garotos adoram a moça. FEDERICA Moniquinha gosta mais dela do que de mim. seriamente em demitir a moça. Estou pensando QUINTERO Nem pensar. Esse é meu departamento. REYNA (a FEDERICA) Que estória é essa de meu departamento? Não é você o homem da casa? FEDERICA Zé Roberto ainda não entendeu isso. Explique para ele, Leo. REYNA (a Quintero) Você cuida das coisas realmente importantes e estratégicas. Tipo efeito estufa, terrorismo internacional, desmatamento da Amazônia, essas coisas que afetam o destino da humanidade. QUINTERO Entendi. A ideia me parece bem razoável. FEDERICA E eu cuido das pequenas bobagens irrelevantes. Da grana da família, da escola dos trigêmeos, do pediatra, da escolha da babá, de onde nós vamos morar, trivialidades enfim. Nada que interesse a um sujeito sintonizado na solução dos problemas mundiais. Como você. REYNA QUINTERO Um arranjo sustentável esse. Mas aprovo. Desde que a babá fique onde está. FEDERICA E Isabela? Cadê a primeira dama? 262 ISABELA Cuidando da organização da festa. Fez questão de levar pessoalmente um convite a Carlão. QUINTERO Fica cada vez mais difícil justificar sua ausência da seleção. Mesmo para um cara de pau juramentado como Carlão. FEDERICA Zé Roberto me disse que é a primeira vez que um jogador da América do Sul foi eleito melhor do mundo. QUINTERO Que joga na América do Sul, querida. REYNA Demoraram mas reconheceram meu talento insuperável. FEDERICA (a Quintero) A humildade desse sujeito só é superada pela modéstia. REYNA O que eu posso fazer se os fatos me dão razão? QUINTERO Não deixo de reconhecer que você merece a Bola de Ouro, mas cá entre nós eu acho que sua batalha épica contra Carlão é que realmente pesa na balança. REYNA Invejoso. Se os eleitores fossem jogadores eu até concordaria. FEDERICA Quem é que vota nessa eleição? Só treinadores. QUINTERO FEDERICA Os dois estão errados. Se o Brasil não fosse bicampeão mundial de clubes ninguém prestaria atenção em jogadores que jogam aqui. De repente, a música de fundo desaparece e começa a soar uma bateria, com as batidas tradicionais que antecedem ocasiões muito esperadas, como nos espetáculos circenses. 263 As luzes são reduzidas ao máximo. Vemos então que um enorme bolo de aniversário, carregado por dois empregados da casa, aproxima-se devagar da mesa onde está REYNA. Atrás do bolo, carregando o troféu Bola de Ouro da FIFA, com um sorriso maroto, vem Isabela. Na trilha sonora entra “WE ARE THE CHAMPIONS”, com FREDDIE MERCURY (QUEEN). Isabela entrega a ele o troféu, ele a beija e levanta a Bola de Ouro. Mais flashes. Acabando de cantar, todos batem palmas. DJ (em OFF) Leonardo REYNA: o melhor jogador do mundo! EXT. SEDE DO STF/BRASÍLIA – DIA. Imagem do edifício sede do Supremo Tribunal Federal, na capital da República. CLOSE-UP da placa, que identifica o prédio. EXT. PILOTIS DO EDIFÍCIO SEDE DO STF/BRASÍLIA – DIA. Vestido num terno azul marinho bem cortado, REYNA está saindo do prédio, acompanhado do advogado MAURÍCIO MONTEIRO. A alegria de Leo contrasta com a expressão fechada de Maurício. O advogado acende um cigarro, começa a fumar; os dois param para conversar. MAURÍCIO A guerra não acabou, Leonardo. Não pense que eles vão deixar barato essa vitória. REYNA Os caras ainda podem recorrer? Aqui não é o fim da linha? MAURÍCIO Não é disso que eu estou falando. Sentença do STF é final. Não tem recurso. REYNA Qual é a encrenca então? MAURÍCIO O advogado do outro lado é um velho conhecido meu, foi colega de faculdade. Ele se abriu comigo, em nome dos velhos tempos. Eles já sabem da sua ideia de fazer a CPI. 264 REYNA Tudo bem. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. A decisão do Tribunal não vai entrar imediatamente em vigor? MAURÍCIO Não é tão simples. Eles vão recorrer. Há muitos instrumentos jurídicos que eles vão poder usar. REYNA Uma espécie de Tapetão? Aqui também tem isso? MAURÍCIO Na prática sim. As decisões aprovadas em plenário serão publicadas com texto final do relator. E isso leva mais um mês. REYNA O relator é amigo de minha mãe e vai entregar rapidinho o relatório. MAURÍCIO Depois há os embargos declaratórios e os embargos infringentes. Isso morde? REYNA MAURÍCIO Não se esqueça de que o outro lado tem os melhores advogados do país. REYNA Tem nada. O melhor é você. Nós ganhamos. MAURÍCIO A pressão popular é que ganhou. Se você não tivesse mobilizado as pessoas nas redes sociais eletrônicas não teríamos nem três votos. REYNA Eu não mobilizei ninguém, Maurício. As pessoas querem ver o futebol brasileiro moralizado. Os ministros também gostam de futebol. MAURÍCIO No Congresso não vai ser tão fácil, pode apostar. Não acredite muito nessa CPI. REYNA 265 A pressão popular também vai funcionar lá. Vou procurar ajuda de gente que entende. Vamos ganhar lá também. MAURÍCIO Acho que você deve contratar um escritório de lobby. Não é fácil criar uma CPI. A bancada da bola dança com a música de Carlão. Ele é deputado, cuida do curral com mão de ferro. REYNA Acho lobby uma coisa podre. Não vou contratar nada. MAURÍCIO Fale com sua mãe antes de descartar a ideia. Ela conhece Brasília melhor do que você. REYNA Não acredito que ela tenha coragem para sugerir uma coisa dessas. E se sugerir vai ser perda de tempo. Lobby é coisa de gente que não bote colocar a cabeça no travesseiro e dormir em paz. MAURÍCIO (para subitamente) E não é só isso. Você tem que se preparar para o pior. REYNA Pior de que jeito? Só falta me matarem. É nisso que está pensando? MAURÍCIO Nem tanto. Mas não duvide da falta de escrúpulos dessa gente. Você está contrariando interesses poderosos, meu caro. Não é só seu amigo Carlão. Ele é só a ponta do iceberg. REYNA Exatamente do que você está falando? MAURÍCIO Você vai ter que encerrar sua carreira de bad boy. Trate de virar o cara mais caseiro do mundo. Evite esses programas noturnos, leve uma vida mais discreta. Recatada mesmo, eu diria. Case-se. REYNA (ironizando) Frequentar a igreja também? Catecismo? MAURÍCIO 266 Eu estou falando sério, Leonardo. Essa gente não está acostumada a perder. Mal perderam aqui e você vem com essa estória de CPI. REYNA O problema de vocês advogados é que sempre esperam o pior. É exatamente o contrário de nós médicos. MAURÍCIO Eu não estou pensando no pior. Essa turma não vai mandar matar você, Leonardo. REYNA Fala sério, meu amigo. O que é que pensa que essa máfia pode fazer a essa altura do campeonato? MAURÍCIO Desmoralizar você. Destruir sua reputação. Desconstruir sua imagem. REYNA Eu não sou candidato ao prêmio Nobel. E não sou exatamente santo. MAURÍCIO Mas está querendo investigar os malfeitos de quem está mandando há mais de 30 anos. Desmoralizar você é a mesma coisa que desmoralizar as coisas que você defende. REYNA Menos, doutor Maurício. Menos. Sem paranoia. Um grupo grande de jornalistas (TV, imprensa e rádio) vem em direção a REYNA. Muitos microfones surgem à frente do rosto de REYNA num passe de mágica: é uma típica entrevista coletiva feita às pressas, sem organização. REYNA Não vou dar nenhuma declaração agora. Tenho que ir pra São Paulo agora mesmo. Tenho concentração. Jogo amanhã à noite. REPÓRTER UM Só uma pergunta, REYNA. Por favor. Precisamos levar alguma coisa para a redação. REYNA 267 Falem com Carlão. Ele adora falar com vocês (faz sinal, apontando um grupo que se aproxima). Não vai dar mesmo. Eu preciso ir para o aeroporto. (pausa) Táxi! Ele vê um táxi, faz sinal e corre para o carro, sempre acompanhado pelo advogado. ENTRAMOS com REYNA e Maurício no táxi. Já acomodados, continuam a conversa. MAURÍCIO Você fez mal em não falar com eles. Agora vai ficar só a versão dos cartolas. Aliás, de onde é que vem esse nome? Cartola? REYNA E eu sei lá? Imagino que é porque os dirigentes são gente fina, do tipo que usava cartola. (pausa) Eles que falem o que quiser. O problema agora não é meu. O carro se afasta rapidamente. PONTO DE VISTA de REYNA, no carro: os jornalistas cercam um representante dos dirigentes de clubes de futebol. Um homem se destaca no grupo que sai do tribunal. É CARLÃO. Alto, forte, voz grossa, uma presença física que impõe respeito. CARLÃO (descontraído) Vamos organizar esse negócio, pessoal. Falo primeiro com o pessoal da TV, tá certo? Depois rádio e depois imprensa. Senão vira um tumulto. Não adianta. REPÓRTER UM Como a Liga vê a sentença do tribunal? CARLÃO Sentença do STF é para cumprir. Os ministros não entendem a dimensão prática da decisão que tomaram. Lamento o que foi decidido. Vai haver muito prejuízo para os torcedores, não só para os clubes. REPÓRTER UM Por que os torcedores vão ser prejudicados? CARLÃO Vamos ter que reduzir o número de clubes no campeonato. Com um jogo por semana não há outro jeito. Os torcedores dos times que vão sair do campeonato devem ir tomar 268 satisfações com o REYNA. Ele é que aprontou essa confusão toda. REPÓRTER DOIS (mulher) O tribunal não proibiu mais de um jogo por semana, presidente. Proibiu que os jogadores façam mais do que duas partidas na semana. CARLÃO (irritado com ela) De que lado você está, querida? Na prática proibiu sim. Não dá para fazer um jogo com o time titular e outro com o reserva. REPORTER TRÊS Há quem acredite que o campeonato vai ficar melhor. CARLÃO Quem é que vai explicar isso para os torcedores dos times que caírem para a segunda divisão? REPÓRTER DOIS A Liga está por trás do projeto de lei que na prática vai alterar a decisão do Tribunal? CARLÃO Não respondo mais nenhuma pergunta dessa moça. Não me encham saco. Acabou. Não tem mais entrevista. (empurra os jornalistas e sai irritado) INT. CARRO DE CARLÃO/BRASÍLIA – DIA. Carlão entra no carro e recebe uma pasta que a mulher que parece estrangeira – KATE – lhe entrega. Ele olha a pasta, examina os papéis. Não olha para trás. CARLÃO (ao motorista) Dê uma volta e depois vá para o Congresso. KATE (sotaque forte, inglês) O site está pronto para entrar no ar. Inglês, espanhol e português. E as reportagens? CARLÃO KATE 269 Os principais jornais da Inglaterra, da Espanha, da Alemanha e da França. Além das agências de notícias. TV? CARLÃO KATE BBC e CNN. Mas só depois da publicação nos jornais e revistas. Já está acertado. Vão pegar o depoimento de SILVIO SCALIONI. CARLÃO Bom trabalho. Show de bola. Foi complicado? KATE Não sei dizer. A empresa de Londres é que cuidou de tudo. Eles cobram caro, mas são os melhores do mundo na área de Relações Públicas. Vai valer a pena. CARLÃO Tem que valer. Se apertarem os ingleses tem alguma chance de chegarem a mim? KATE Nenhuma. Um amigo de confiança é quem fez todos os contatos. CARLÃO Aquele de Genebra que usamos para fazer aquele trabalho para a Liga Mundial? CARLÃO Não. Outro. Sérvio, colega de faculdade também. Pode ficar tranquilo. Não vai ficar nenhum vínculo com você ou com o Brasil. CARLÃO Se pesquisarem o site eles vão chegar a quem? KATE Um Zé ninguém espanhol, que nunca ouviu falar de você. Fique tranquilo, Carlão. Segurança 100%. CARLÃO Vamos recorrer no Tribunal? KATE Não tem jeito. Mas dá para protelar até o fim do campeonato. 270 CARLÃO Não vou preso se não mudar nada no campeonato? KATE Pode ficar tranquilo. Sem chance. CARLÃO Avise ao Madureira que vai ficar tudo como dantes no quartel de Abrantes. KATE O convite do UNICEF está programado para daqui a duas semanas. Chequei ontem com nosso pessoal de Nova York. REYNA já foi sondado e aceitou. Claro. CARLÃO (volta-se para ela) Esse convite não pode sair. O filho da mãe só ganhou na Justiça porque mobilizou a opinião pública. Essa CPI não pode sair. Não subestime o sujeito. KATE (sorri) Nunca se sabe o que passa pela cabeça daqueles caras. São europeus. Se fossem americanos o assunto estaria resolvido. CARLÃO Vá para Londres e faça barulho. Amplie ao máximo que você puder a repercussão das notícias. Quero que o filho da puta seja o assunto da semana. KATE E a verba para nossa bancada? Madureira é pão duro demais. Desse jeito não dá para trabalhar. CARLÃO Era só até o Tribunal definir a posição final. Fale para seu marido que está liberado. INTERVALO. PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS. EXT. FOLHA DO RIO/RIO DE JANEIRO – NOITE. Imagem externa do jornal, cuja sede é majestosa. INT. SALA DE ISABELA/FOLHA DO RIO – DIA. Isabela ocupa agora a sala do antigo diretor de redação, ARIEL PEÇANHA. Ela está reunida com o editor-executivo, JONAS LIPIANI. 271 ISABELA Pare de dar voltas e vá direto ao assunto, Jonas. Conheço você de outros carnavais. JONAS (entrega a ela algumas folhas de papel A4) Recebi agora a pouco esse material da agência. ISABELA (começa a ler) Meu Deus. Jonas levanta-se e dirige-se para a porta de saída da sala. ISABELA (compenetrada) Não vá. Quero falar com você. Um minuto. Ela continua lendo. Não fala nada durante 10 segundos. ISABELA (mais tranquila) Confirme se isso é mesmo da agência. Pode ser coisa de hacker. JONAS Liguei lá e falei com Jeremy. O material é genuíno. ISABELA (suspira) Você tentou saber qual é a fonte? JONAS Claro. Mas ele não abriu. É confiável. O material é genuíno. Infelizmente. O que eu faço com isso? ISABELA (custando para conter o choro) O que você acha? JONAS A gente tem que publicar. Eu mesmo vou ouvir Leo, se você não se importar. ISABELA Pode deixar. Eu mesmo cuido disso. Primeira página? JONAS ISABELA 272 Naturalmente. Preciso só de uma hora. Mande o arquivo para minha caixa postal. JONAS Está lá. Sinto muito, Isabela. De coração. ISABELA (com os olhos molhados) Eu sei. Obrigado, querido. Jonas sai. Ela fica sozinha. Levanta-se e fecha as persianas que impedem que seja vista pelos que estão na redação. Começa a chorar, desaba. INT. APARTAMENTO DE FEDERICA/LEBLON – NOITE. Quintero e REYNA estão na sala. REYNA com o inseparável charuto. QUINTERO FEDERICA volta amanhã. O corpo vai ser cremado. André não queria enterro. REYNA Bom sujeito. Deve ter morrido feliz. Não é todo mundo que consegue realizar seu sonho. Uma empregada uniformizada aproxima-se de REYNA, tira do ganho um telefone e entrega o aparelho a ele. Sua esposa. EMPREGADA QUINTERO Engraçado. Não ligou no celular. REYNA Isabela detesta celular. Só usa se não tiver outro jeito. Dá licença. (a Isabela) Oi, minha linda. Tudo bem? Não. Pode falar. (assusta-se) Como? Não pode ser. Não é verdade. Devem ser fotos antigas, só pode ser. Pode parar! Você está acreditando nessa merda? Está? Não vou falar merda nenhuma! Visivelmente alterado, REYNA bate o telefone com violência. QUINTERO O que foi? O que é isso, Leo? REYNA (respirando fundo) 273 Uma agência de notícias preparou um material sobre mim. QUINTERO Que tipo de material? Montagem? REYNA Não. Coisa antiga. De antes de meu casamento. Mas ela disse que tem coisa recente também. Uma merda completa. Parece que é daquela festa na casa do Marcelinho. QUINTERO (em pânico) Aquela que em que eu fui com você? REYNA (passando a mão na cabeça) Só pode ser. Depois que me casei foi a única festa em que fui sem Isabela. REYNA levanta-se. QUINTERO Eu sabia que ia dar merda. Quem terá sido o filho da mãe que fotografou a gente? FEDERICA vai me matar. REYNA Nessa altura do campeonato não faz diferença. Alguém armou para gente. QUINTERO Tem certeza que eu também estou nas fotos? REYNA Isabela disse que sim. QUINTERO Você cheirou aquele dia? REYNA Olha que merda. Cheirei sim. A primeira vez. Acredita? E eu? QUINTERO REYNA Bom será se você não apareceu fantasiado de baianinha. Aquela noite foi uma loucura. (ri, sem graça) Pelo menos valeu a pena. Foi bom demais. 274 QUINTERO Você ficou maluco? Valeu a pena merda nenhuma! O que a gente vai fazer agora? REYNA Eu achei que só tinha foto antiga e neguei. Eu estou ferrado, meu amigo. Você nem tanto. QUINTERO Ela é que disse isso? REYNA Você não apareceu em nenhuma cheirando. Só eu. Uma escapada não mata ninguém. Quintero serve-se de um uísque. REYNA Não faça isso, Zé. Essa merda corta o efeito dos remédios. Você precisa estar lúcido. Eu preciso. QUINTERO O que você vai fazer? REYNA Agora? Nada. Falei para Isabela que não vou falar nada. E não vou sofrer por antecipação. Amanhã eu convoco uma coletiva e falo a verdade. Já é resultado da CPI. Fazer o quê? QUINTERO Eu vou com você. Entramos nessa junto. Vamos sair juntos. E a merda do antidoping? REYNA Eu estava suspenso por dois jogos. Não tem esse risco. Sabe de uma coisa? O quê? QUINTERO REYNA Eu vou sozinho para a coletiva. O destaque sou eu. Fique quieto e eu falo por você. Limpo a sua barra. QUINTERO Nem pensar. Vou assumir minha responsabilidade. REYNA 275 Os caras da imprensa vão te cercar no clube. Você vai ter que falar, de qualquer jeito. Vão querer ouvir você. Vamos separar as duas coisas. É melhor. Vou falar com um amigo jornalista. Ele prepara a coletiva. Vamos deixar o time de fora dessa encrenca. QUINTERO Que merda! Porque acontece uma coisa dessas logo agora que está tudo bem? Só pode ser praga de TOMOKO. REYNA Bobagem. É armação. Coisa de Carlão. Convém você tomar um supositório de tungstênio para criar coragem e avisar FEDERICA. Vai que a imprensa chega nela no aeroporto?! Vai sobrar para o Marcelinho também. QUINTERO Quer saber de uma coisa? Vamos encher a cara. Marque essa merda de coletiva para a tarde. Eu vou com você. Vou apresentar minha demissão. REYNA Deixe de ser besta, Zé. Uma escapada não é contra a lei. QUINTERO Eu sou diretor técnico do clube. Estava junto com você. Não posso continuar depois disso. Em tese fui leniente indo numa festa dessas. REYNA Não faça essa bobagem. Vamos avaliar a repercussão. Talvez não seja preciso fazer uma coisa tão radical. Já descontraído, olha para ele e faz um sinal com o dedo indicador, de baixo para cima: uma menção à brincadeira do supositório. Os dois riem com vontade. Quintero serve uma dose para REYNA e os dois brindam. Posso dormir aqui? REYNA QUINTERO Sem problema. Mas isso não vai piorar ainda mais as coisas? REYNA Isabela não confiou em mim. Não quero conversa com ela. QUINTERO 276 Experimente se colocar no lugar dela. É natural que ela fique brava com você. REYNA Natural merda nenhuma. Ela tinha que ficar do meu lado. Estão sacaneando a gente. Não é hora para ter ciúme bobo. EXT. BAÍA DE GUANABARA/RIO – TARDE. Um calor insuportável. Movimento intenso. INT. LANCHONETE/RIO DE JANEIRO – DIA. Madureira está tomando um café na lancho-te que fica em frente à sede da Liga Nacional. A televisão está ligada. Na tela VEMOS um trecho da coletiva de REYNA. REYNA (na TV, cercado por microfones) As imagens são verdadeiras. Assumo integralmente isso. A maior parte foi feita há quase quatro anos, mas tem fotos recentes. A festa aconteceu mesmo na casa de um colega. Nunca usei droga antes. Provavelmente ninguém vai acreditar, mas é a verdade. Sou médico, sei o mal que pode causar. REPÓRTER Por que você cheirou então? REYNA Eu estava embriagado. Cheiraria até o sovaco de um bode naquela noite. Quem me conhece sabe que sou fraco para bebida. Eu estava revoltado com minha última suspensão e resolvi tomar um porre. Sou humano, de carne e osso. Madureira ri. Faz sinal a Leitão, que abaixa o som da TV. MADUREIRA Que decepção, caro amigo Leitão. Que decepção. LEITÃO Deixe de ser hipócrita, Madureira. Sei que você detesta esse moço. MADUREIRA Eu não. Quem não gosta dele é Carlão. LEITÃO Qual é o problema dele com o moço? 277 MADUREIRA Ele namorou a filha do chefe. E dispensou a menina, que tentou suicídio de desgosto. Não fosse pouco, o sujeito ainda transou com a namorada de Carlão. LEITÃO Isso é coisa de gente nova. Seu chefe deve ter feito isso demais quando era jovem. MADUREIRA Chifre na cabeça dos outros não dói mesmo. Queria ver se a cabeça enfeitada fosse a sua, Leitão. INT. SALA DA CASA DE ISABELA – NOITE. REYNA entra na sala devagar. A governanta CÉLIA o recebe. REYNA Boa noite, Célia. Isabela está em casa? CÉLIA Não, doutor. Ela disse que não queria encontrar com o senhor. REYNA Está certo. Vou pegar minhas coisas. CÉLIA (aponta várias caixas e malas) Está tudo embalado e pronto para o senhor levar. REYNA pega a mala menor, abre e dá uma espiada, fechando o zíper depois. REYNA Vou levar só essa. Mando alguém buscar o resto amanhã cedo. Obrigado, Célia. Foi um prazer conviver com você. CÉLIA Eu lamento o que está acontecendo com vocês, doutor Leonardo. REYNA Não lamente Célia. Essas coisas acontecem. (Vai até ela, dá um abraço e um beijo) Fique bem, minha querida. CÉLIA Vá com Deus, doutor Leonardo. INT. SALA/APARTAMENTO DE FEDERICA – NOITE. 278 Quintero e FEDERICA estão na sala. Ele muito constrangido. Ela tranquila. FEDERICA Você transou com aquela moça? QUINTERO (cabisbaixo) Não me lembro. Acho que devo ter transado. Estávamos todos bêbados. Não sei o que dizer, amor. FEDERICA Não vamos transformar isso num drama de filme barato. Sei que você é um sujeito correto, querido. Vamos tocar nossa vida em frente. Temos três filhos para criar. QUINTERO Se eu pudesse voltar no tempo. FEDERICA Faria tudo de novo, querido. Acontece. Você usou camisinha? Não me lembro. QUINTERO FEDERICA Isso (ênfase aqui) é que é imperdoável. Vá amanhã ao laboratório e faça um exame. Não quero pegar uma doença venérea ou coisa pior. QUINTERO Não acho que há esse risco. Mas concordo. Você falou com os jornalistas? FEDERICA Não entrei no mérito. Disse que o que aconteceu diz respeito à vida pessoal de vocês dois. No que me diz respeito o assunto está encerrado. EXT. CONGRESSO NACIONAL/BRASÍLIA – DIA. Uma imagem do Congresso Nacional. ZOOM numa janela do anexo principal. INT. ENTRADA DO GABINETE DO SENADOR ALMEIDA RAMOS – DIA. Estamos na entrada do Gabinete do presidente do Senado. CLOSE-UP na placa, duas secretárias lindas na recepção. INT. GABINETE SENADOR ALMEIDA RAMOS – DIA. 279 No espaçoso gabinete do SENADOR ALMEIDA RAMOS, presidente do Congresso Nacional, Carlão (que é deputado federal) e um grupo grande de parlamentares, representantes da chamada bancada da bola. CARLÃO Precisamos juntar nossas forças agora. Vocês devem isso ao futebol brasileiro. SENADOR ALMEIDA RAMOS (forte sotaque nordestino) Não vem com essa, deputado. Minha dívida com o futebol já foi paga com juros e correção monetária. DEPUTADO FREITAS JOBIM Na Câmara rejeitamos fácil a CPI. No Senado não posso garantir nada. SENADOR ALMEIDA RAMOS Estou negociando com bancada ruralista. Pode dar certo. Mas é preciso saber que não vai ser mole. A imprensa está a favor da CPI. Estão de olho em Carlão desde que ele ficou com aquela grana da renda do amistoso contra os russos. CARLÃO Eu não fiquei com merda nenhum. Fui assaltado. SENADOR ALMEIDA RAMOS (sem convicção) Está certo. Desde o assalto. O fato é que a imprensa está querendo ver sangue. CARLÃO Estou defecando e andando para a imprensa, senador. Lembre aos seus colegas que haverá outras eleições e nós sabemos recompensar quem defende os interesses do futebol brasileiro. SENADOR ALMEIDA RAMOS A imprensa segue a onda do que o povo está querendo. Não dá para contar com o ovo no fiofó da galinha. CARLÃO Não vem com desculpa esfarrapada por que não vai colar. Desmoralizei o sujeito. É brincadeira de criança aprovar matar essa CPI. Ninguém dá a menor pelota para viciado em entorpecente. SENADOR ALMEIDA RAMOS 280 Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Aquele jogador está bancando a vítima. Deve ter aprendido com o deputado Jobim, mestre nessa arte. CARLÃO Já distribuí a bonificação a toda a bancada. Não quero saber de conversa fiada. Vou segurar a onda no Tribunal até o final do ano. Quero a CPI morta e enterrada e não vou abrir mão disso. Tratem de trabalhar. SENADOR ALMEIDA RAMOS Bonificação de merda, diga-se de passagem. Você acha que é assim? Dá um trocado aqui, outro ali e vai colocar exgovernador, ex-ministro, trabalhando para defender seus interesses? O Senado é o Senado. A Câmara é a Câmara. DEPUTADO FREITAS JOBIM Vamos falar claro. Na Câmara a gente segura a onda. Deputado é mais barato do que Senador. Qualquer troco e a gente fica feliz. Senador é mais exigente. CARLÃO Pois a gente vai aumentar a bonificação dos senadores. Não quero deixar nenhuma desculpa para esses senadores de merda. Deixem comigo. Vou dar um pau nesse jogadorzinho de merda. SENADOR ALMEIDA RAMOS Vá com calma, Carlão. Você não aprende mesmo, hein? O garoto tem costa quente. Não cutuque o diabo com vara curta por que você vai se danar. A mãe dele é judia, tinhosa, tem muito senador na mira. Não prejudique os interesses da Liga levando as coisas para o plano pessoal. CARLÃO Pra você pode não ser. Pra mim é. E não se meta a me dar ordens, senador. Quem dá ordens aqui sou eu. SENADOR ALMEIDA RAMOS Calma, Carlão. Não falei por mal. INTERVALO. PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS. INT. ARENA MARACANÃ – NOITE. REYNA comemora um gol com aquele gesto que é a marca registrada dele: uma corrida curta, com o braço levantado, punho cerrado. 281 A torcida do BRASIL FC grita enlouquecida: vemos REYNA ser abraçado pelos colegas. Ele grita algumas palavras: parece desabafar. Depois do gol, cercado pelos colegas, ele pega a camiseta, no escudo, e mostra para a torcida. A ovação aumenta. Ele olha para a CAM que se aproxima, agarra o escudo do BRASIL e grita, com muita raiva: REYNA (no fundo, o barulho ensurdecedor da torcida vibrando) Você vai ter que me engolir! Filho da mãe! Fusões consecutivas mostram REYNA comemorando outros gols, sempre cercado pelos companheiros, sempre desabafando, provocando Carlão (anda como um gorila), em CAM LENTA. INT. VESTIÁRIO/ARENA MARACANÃ – NOITE. REYNA e os companheiros no vestiário. Ele e Lucas, goleiro do time, conversam. Estão relaxando em banheiras de hidromassagem. REYNA com o charuto acesso. LUCAS Você viu o tal site na Internet? REYNA Vi. Muito bem-feito. Coisa de profissional. Já botei a boca no trombone. Se fosse coisa de torcedor do Atlético não seria tão bem feito. Cheio de depoimentos de gente que me detesta. LUCAS Eu apareço em algum dos vídeos? REYNA Claro. Você não é invisível. Mas só nos mais antigos. Ficou até bem na foto. Bonitão. Fique tranquilo. LUCAS E Isabela? REYNA No canto dela. E eu no meu. LUCAS Deixe de ser teimoso, Leo. Ela tem razão. Mulher não aceita esse tipo de coisa. REYNA A sua aceita. FEDERICA aceitou. Por que ela não pode aceitar? 282 LUCAS Cada uma reage de um jeito. Você sabe. Não é burro. É pura teimosia. Faça um aceno de paz. Não vale a pena ficar brigado. Você não para de pensar nela. REYNA Você combinou com Quintero? Ele fica falando isso no meu ouvido a noite toda. LUCAS Por que ele é seu amigo. Gosta de você. EXT. ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS/BRASÍLIA – NOITE. Uma visão geral da esplanada. Imagens do Ministério da Justiça, do Itamaraty, do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e, por fim, do STF. EXT. RESTAURANTE DE BRASÍLIA – NOITE. O ambiente é refinado. A ministra Ana REYNA está jantando com o advogado Maurício Monteiro e com o jornalista Herbert Carvalho, grande especialista em gestão de imagem, contratado pela ministra para cuidar da imagem de REYNA, a contragosto dele. ANA REYNA Precisamos fazer alguma coisa. E rápido. HERBERT Se Leonardo continuar se recusando a fazer a parte dele não há milagres que possam ser feitos, ministra. MAURÍCIO A senhora não falou com ele? ANA REYNA Ele é teimoso como o pai. É o sangue espanhol. Se fosse fácil eu não estaria aqui com vocês dois agora. Vocês são os melhores. São pagos para fazer milagres. HERBERT Seu filho não é santo, ministra. Não dá pra fazer a canonização dele. Nunca chegou concentração. MAURÍCIO atrasado num HERBERT treino. Nunca fugiu da 283 Tem certeza? MAURÍCIO Aquela vez na seleção não conta. ANA REYNA Nunca machucou um colega de trabalho. Há coisa boa pra ser trabalhada, Herbert. HERBERT Pelo menos a torcida adora Leonardo do jeito que ele é. Nenhum patrocinador reclamou até agora. É interessante isso. ANA REYNA Mas não são os patrocinadores nem a torcida que vão levar Leonardo de volta à seleção. Trate de fazer as suas bruxarias, meu caro. E faça rápido. HERBERT Não adianta insistir com o UNICEF. Se o comportamento público dele não for impecável fora de campo não vira embaixador deles nem daqui a vinte anos. ANA REYNA Ele é o maior artilheiro da história dos campeonatos brasileiros. É solteiro, não tem trinta anos. Dá cursos de futebol nas favelas nas horas de descanso. Está sempre associado a causas de defesa das crianças. O UNICEF há de reconhecer isso. MAURÍCIO Faz contribuições espontâneas para instituições de caridade desde os 18 anos. Isso tem que fazer a diferença. HERBERT Só que ele não me deixa trabalhar com isso. Não posso divulgar essas coisas. Ele acha que é demagogia. A senhora tem que falar com ele. O trabalho com as crianças faveladas, por exemplo. Isso dá reportagem internacional. Vai sensibilizar o UNICEF. ANA REYNA (levanta-se) Leonardo detesta a minha interferência. A partir de agora você faz as coisas com ou sem autorização dele. Eu decido e ponto final. Divulgue tudo o que achar que é adequado. Ele quer a seleção, eu quero o UNICEF. MAURÍCIO 284 Ele não vai aceitar, ministra. Vamos ter problemas. Essa estória da CPI vai acabar com qualquer coisa que a gente fizer. A briga agora não é só com Carlão. ANA REYNA Eu me entendo com ele, não se preocupe. Meu filho é um ingênuo, um sonhador. (a Herbert) Quero resultados e quero rápido. Quero você 24 h por dia cuidando da imagem de meu filho. Não perca tempo conversando com ele. (a Maurício) E você continue negociando com os cartolas. Eles têm que suspender esse veto. Diga ao senador Almeida Ramos que vou trabalhar contra eles se não removerem o veto na seleção. Não vou fazer nada ilegal, mas vou acompanhar no detalhe cada causa que interessar a eles. Dê esse recado a ele, meu filho. HERBERT O problema é que Carlão manda nele. Manda na bancada inteira. MAURÍCIO O recado vai ser dado. Mas não se iluda, ministra. Eles têm poder pra fazer o que quiserem. E a verdade é que seu filho não ajuda nem um pouco. EXT. NIGHTCLUB DE COPACABANA/ZONA SUL/RIO – NOITE. REYNA está saindo, visivelmente bêbado. Olha para a rua, procurando um taxi. Dois travestis aproximam-se dele. TRAVESTI UM Vamos dar uma volta, bonitão? TRAVESTI DOIS Você vai adorar fazer um sanduba com a gente, querido. REYNA Agradeço de coração o oferecimento das meninas, mas sou um homem comprometido. Outro dia, quem sabe? TRAVESTI UM (tenta abraçar REYNA) Deixe de onda. A gente sabe que você separou da mulher. Vamos lá. Você não vai se arrepender. REYNA (afasta-se, mas não consegue evitar o abraço) Vamos com calma, minha filha. Não me toque, por favor. 285 TRAVESTI DOIS Qual é bonitão? Vai rejeitar minha amiga, é? Gostoso. TRAVESTI UM (beija REYNA) REYNA limpa os lábios rispidamente. Um dos travestis coloca alguma coisa no bolso da camisa dele. Tudo acontece muito rapidamente: REYNA e os travestis são cercados por policiais civis, que apontam armas. Um deles é DANILO, que aparece no episódio IV. DANILO Polícia! Todo mundo quietinho! Bem quietinho! REYNA Calma, policial. Fique calmo que aqui não tem problema. O POLICIAL DOIS vai direto ao bolso da camisa dele e retira o que parece ser – CLOSE-UP – um papelote de cocaína. POLICIAL DOIS Muito bonito amigão. Pensando em fazer uma farra com as meninas? REYNA Isso não é meu! Foi você que colocou isso aí! TRAVESTI UM Foi nada, moço. Você até ofereceu pó pra gente. REYNA É mentira! Isso é armação! REYNA é algemado por DANILO. TRAVESTI UM Eu sou testemunha, doutor. Olha aqui o dinheiro que ele deu pra gente (mostra duas notas de mil reais). CAM AFASTA-SE e enquadra toda a movimentação de longe. Num carro da Polícia Civil alguém observa a cena de longe: é o Delegado Peixoto, nosso conhecido do episódio IV. ENTRAMOS NO CARRO DELE. DELEGADO PEIXOTO (ao celular) 286 Madureira? Peixoto. O pássaro está na gaiola. Pode mandar a imprensa na DP. Estou indo pra lá agora. REYNA é colocado num camburão junto com os dois travestis. A viatura parte em alta velocidade. EXT. DELEGACIA DE POLÍCIA/ZONA SUL/RIO – NOITE. A área externa da delegacia está cercada de repórteres. Vários carros de externas: o circo está montado para repercutir a prisão de REYNA. O camburão chega e ele é retirado da viatura, juntamente com os travestis. Os refletores estão ligados. Os travestis ajeitam as roupas, retocam a maquiagem (não estão com algemas, como REYNA). Os repórteres estão isolados: só podem gravar imagens à distância. O delegado Peixoto chega e se aproxima dos jornalistas. DELEGADO PEIXOTO Vamos com calma, pessoal. Eu vou saber o que foi que houve e prometo que deixo vocês trabalharem. Por ora vocês ficam aqui. REPÓRTER UM Leonardo REYNA foi pego com drogas, delegado? REPÓRTER DOIS Ele estava com os travestis num motel, delegado? DELEGADO PEIXOTO Depois. Depois eu falo com vocês. Ele entra na delegacia e os jornalistas são impedidos de entrar. INT. DELEGACIA – NOITE. REYNA está sentado diante do delegado Peixoto. Estão a sós. DELEGADO PEIXOTO Que papelão, doutor REYNA. Um sujeito como o senhor andando com gente dessa espécie. REYNA Vamos deixar de teatro que ninguém está ouvindo a gente. Ambos sabemos que isso foi armado. Quero saber quando é posso chamar meu advogado. DELEGADO PEIXOTO 287 Todos sempre dizem a mesma coisa. Vocês viciados em entorpecentes poderiam ser um pouco mais criativos. Você vai falar com seu advogado sim, mas vai ser na hora em que eu quiser. REYNA O senhor não tem vergonha de participar de uma coisa sórdida assim? DELEGADO PEIXOTO Nem um pouco. Pessoas como você fazem mal para o futebol. Não vou deixar meu time cair para a segunda divisão depois de tudo que tivemos que fazer para evitar isso. REYNA Estou me lembrando de onde conheço você. Foi na casa do Juiz Falcão, tio de minha mulher. Você é diretor do Atlético. DELEGADO PEIXOTO Vice-presidente não remunerado. Mas aqui sou delegado. Para quem fica aqui eu sou Deus. Eu decido quem é bom e quem é ruim. E você é traficante de droga. REYNA Você não passa de um servidor público corrupto e mal remunerado. Quanto levou para armar essa contra mim? DELEGADO PEIXOTO Trate de ficar bem comportado ou você vai ter uma nova orientação sexual quando sair daqui. Estamos entendidos? REYNA Não se esqueça de que eu sou médico. Tenho direito a cela individual. A Constituição me garante isso. DELEGADO PEIXOTO Você vai ter sua cela. Mas antes pode fazer um estágio nas que ficam ali no fundo. Tem 50 presos em cada uma. Separei por torcida. Gosto de tratar bem meus companheiros de time. REYNA Carlão ameaçou o Cão de rebaixamento quando a lei mudar? É isso? DELEGADO PEIXOTO Esse pó que você levava pode complicar a sua vida. Nem mamãe vai poder ajudar. 288 REYNA Carlão não tem peito para rebaixar o Cão, delegado. É conversa fiada dele. DELEGADO PEIXOTO Tem sim, infelizmente. Ele está com a faca e o queijo na mão e você é que colocou a faca na mão dele. REYNA Ninguém tem peito para fazer uma coisa dessas de forma arbitrária com a maior torcida do Brasil. Nem um imbecil como Carlão. DELEGADO PEIXOTO Quero propor um trato. Não pense que gosto de fazer esse tipo de coisa. Sou um sujeito decente. Não tive alternativa, acredite. Que trato? REYNA DELEGADO PEIXOTO Eu só faço questão que a imprensa saiba que você foi detido por SUSPEITA (ênfase aqui) de posse de droga e por brigar com os travecos. Arrumo uma desculpa qualquer e solto você. REYNA Sei. E eu entro com o rabo. Não estou vendo vantagem nenhuma. DELEGADO PEIXOTO Você escapa do flagrante. Fica a sua versão contra a versão dos travestis. É palavra contra palavra. Os travecos tem antecedentes, você é limpo. REYNA E eu esqueço essa conversa que estamos tendo. DELEGADO PEIXOTO Estou disposto a aceitar sua palavra. Carlão está chantageando o Atlético, mas posso convencê-lo de que não foi possível prender você. REYNA Posso falar com meu advogado? DELEGADO PEIXOTO Pode. (oferece o celular a ele) Estou ali fora. Acabando de falar me avisa (sai da sala). 289 INT. QUARTO DE ISABELA – NOITE. Isabela está dormindo. Abajur acesso. Toca o telefone, ela atende. ISABELA (acordando) Jonas? O que houve? O Brasil declarou guerra ao Paraguai? VAMOS à redação da Folha do Rio. Jonas ao telefone, numa redação com dois ou três gatos pingados. JONAS Desculpe acordar você essa hora. DE VOLTA à casa de Isabela. Tudo bem. Fala. ISABELA JONAS (em OFF) Um sujeito ligou aqui há poucos minutos e disse que colocou um vídeo bem interessante na Internet. INT. SALA DO DELEGADO PEIXOTO – NOITE. REYNA está terminando a conversa com Maurício. REYNA (algemado) Tudo bem. Mas o tal delegado disse que iria me colocar numa cela cheia de torcedores do Atlético. MAURÍCIO (em OFF, voz metálica) Como? Torcedores do Atlético? REYNA O sujeito é diretor do Atlético. Disse que divide os presos de acordo com o time. Tem cabimento uma coisa dessas? Falei. Mas ele repetiu a ameaça. OK, Maurício. Vou fazer o que você está mandando. Se eu perder a minha virgindade, coloco na sua conta e depois cuido da sua, OK? (desliga o celular) Delegado! PEIXOTO volta. DELEGADO PEIXOTO E aí? Trato feito? REYNA 290 Meu advogado acha que você está blefando. Ele está vindo para cá. Tenho o direito constitucional de ficar numa cela individual. DELEGADO PEIXOTO Depois não diz que não avisei. Danilo! Vem cá Danilo! O policial Danilo entra. DELEGADO PEIXOTO Pode recolher nosso craque. Coloca na cela dois. DANILO Tem certeza, doutor Peixoto? Cela dois? DELEGADO PEIXOTO Você acha que eu cheguei até aqui sem ter certeza de alguma coisa? Vá logo. Leva o rapaz. O advogado dele está chegando. Avise a turma que eles têm no máximo 20 minutos de diversão. Danilo puxa REYNA. REYNA Você vai se arrepender, Delegado. Isso não vai ficar barato. DELEGADO PEIXOTO Nem um minuto a mais, Danilo. Danilo e REYNA saem. EXT. AV. NOSSA SENHORA DE COPACABANA/RIO – NOITE. O carro dirigido por Maurício avança em alta velocidade pela avenida, que tem pouco movimento naquela hora. O sinal fecha. Maurício para o carro, impaciente. Ao lado dele, uma viatura faz sinal para ele estacionar. Os dois carros estacionam e um policial desce da viatura, caminhando na direção de Maurício. INT. CORREDOR DA DELEGACIA – NOITE. Danilo empurra REYNA. Duas celas lotadas. Dois outros policiais fortemente armados acompanham REYNA e Danilo. A porta de uma das celas é aberta. Sob a ameaça das armas dos dois carcereiros os presos afastam-se da porta, abrindo espaço para a entrada de REYNA: há pouquíssimo espaço dentro da cela. DANILO 291 Atenção rapaziada. O rapaz aqui é gente fina, jogador de futebol. Já avisei a ele que a maioria esmagadora de nossos hóspedes é torcedor do Atlético. Acho que se vocês quiserem dá pra convencer o rapaz a sair do Brasil e ir jogar no Cão. Tratem bem o novo hóspede, OK? Quem cuidar bem dele vai ganhar ponto com o Doutor Peixoto. REYNA, lívido, entra devagar, fitando as expressões dos presos: todos estão de olho nele. Danilo tranca a porta e sai. INTERVALO. PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS INT. QUARTO DE ISABELA – NOITE. Isabela levantou. Ainda está de pijama. ISABELA Que loucura. Leo deve estar preso. Você checou se o vídeo está mesmo na Internet? OK. Descubra em que delegacia ele está. Por favor. Obrigado, Jonas. Nem sei como agradecer você. VOLTAMOS À CELA EM QUE REYNA FOI COLOCADO. Dois homens aproximam-se de REYNA, com cara de poucos amigos. Subitamente uma voz é ouvida na cela. VOZ Vamos com calma, rapaziada. O rapaz é meu amigo. Ninguém toca nele. Os dois homens param. Devagar se afastam de REYNA, que, curioso, olha na direção da voz. Chiquinho, personagem dos episódios três e quatro, baixinho, surge diante de REYNA. Está barbudo agora. CHIQUINHO Não está me reconhecendo, doutor? REYNA olha para ele, sem reconhecer de quem se trata. CHIQUINHO O senhor foi o único que me estendeu a mão. Logo o senhor. O único. E isso eu não esqueço nunca mais. REYNA Chiquinho? É você mesmo? 292 CHIQUINHO Firme e forte, doutor. Às suas ordens. REYNA (rindo) Esse pessoal todo obedece você? CHIQUINHO Eu não. Mas ele sim. Forte, altíssimo, o negro LAUDELINO, que aparece no episódio III, surge sorridente. Tudo bem, doutor? LAUDELINO REYNA começa a rir e dá um abraço afetuoso em Chiquinho e outro em Laudelino. INT. SALA DO DELEGADO PEIXOTO – NOITE. Danilo entra na sala. O delegado está cochilando. Danilo faz alguns ruídos: ele acorda. DELEGADO PEIXOTO O que foi? Branca de Neve gostou dos Sete Anões? DANILO Sei não, delegado. O que eu sei é que o senhor não vai gostar de ver uma coisa que está na Internet. DELEGADO PEIXOTO Que coisa, seu energúmeno? DANILO Algum desocupado filho da mãe fez um vídeo mostrando a prisão do jogador. Nós estamos ferrados, doutor. A televisão já está a caminho. O DELEGADO LIGA A TV. VEMOS os travestis conversando com Danilo, antes da chegada de REYNA. Está impresso na tela o horário da gravação: 2h2min30seg. Sem cortes, VEMOS a aproximação de REYNA e o afastamento de Danilo e, logo depois, a cena da prisão, TUDO VISTO DE CIMA, no ponto de vista de um morador do prédio em frente, de um apartamento no segundo andar. A imagem do travesti colocando o papelote de cocaína no bolso de REYNA está sendo exibida. É repetida. 293 O delegado Peixoto dá um suspiro e passa a mão na careca. DELEGADO PEIXOTO Passe o Branca de Neve para a cela individual. Merda. Volte aqui depois. DANILO É pra já delegado. EXT. DELEGACIA DE POLÍCIA/COPACABANA – NOITE. Isabela chega quase ao mesmo tempo em que Maurício. Ela está acompanhada por um sujeito gordo e alto. É Marcelo, um internauta que apareceu no episódio quatro. Os dois entram rápido na delegacia. INT. SALA DO DELEGADO PEIXOTO/COPACABANA – NOITE. O delegado está sentado à mesa. Danilo entra. DELEGADO PEIXOTO (coça a cabeça) Ele está muito machucado? DANILO O senhor não vai acreditar. Está novinho em folha. Quem olhar não diz que arrombaram a porta dos fundos dele. O que a gente vai fazer? DELEGADO PEIXOTO Vai ver que é veado. (pausa) Fique tranquilo. A última coisa do mundo que o nosso amigo Branca de Neve vai fazer é contar que foi enrabado. O advogado dele chegou. Pode mandar entrar. Danilo abre a porta e volta acompanhado por Maurício e por Isabela. DELEGADO PEIXOTO A senhora não devia vir a um lugar como esse. ISABELA Onde está meu marido? Como ele está? MAURÍCIO Aqui está o habeas corpus. O secretário de Segurança está vindo para a delegacia a pedido do governador. Se o senhor teve a infeliz ideia de colocar meu cliente numa cela coletiva prepare-se porque é para lá que vai também. DELEGADO PEIXOTO 294 Vá cantar de galo noutra freguesia, advogado. (examina o documento entregue por Maurício) Seu cliente vai ser liberado quando começar o expediente normal. (olha para seu relógio de pulso) Daqui a duas horas e meia. Nem um segundo antes. ISABELA Você não tem ideia do tamanho da briga que comprou. DELEGADO PEIXOTO Saiam os dois de minha sala. Não estou com saco para ouvir conversa fiada. Maurício ia responder, mas interrompeu-se quando ouviu o celular do delegado tocando. MAURÍCIO É o secretário. Vamos ver se vai continuar tão valente agora. Não vamos sair daqui e o senhor vai soltar meu cliente agora mesmo. DELEGADO PEIXOTO Peixoto. (OUVIMOS gritos no telefone dele, que afasta o ouvido do aparelho) Tenha calma doutor Quintino. O moço está bem. Está certo, está certo. Peixoto olha para Danilo, que está imóvel. Solte o rapaz. DELEGADO PEIXOTO ISABELA Nós vamos com ele. MAURÍCIO Não tente impedir, delegado. Vai ser pior ainda. Os três saem, passando por um homem bem vestido, seguido por dois PM’s, entra em seguida. DOUTOR SANTIAGO Você está preso, delegado. (a um dos soldados) Algeme o delegado, sargento. DELEGADO PEIXOTO Eu obedeci a ordens específicas, Santiago. Não me obrigue a esse constrangimento. DOUTOR SANTIAGO. 295 Você é uma vergonha para a Polícia Civil, Peixoto. Um sujeito burro feito você tem que passar por essa humilhação. Acompanhe o homem com o carcereiro, sargento. INT. CELA INDIVIDUAL – NOITE. Danilo abre a porta da cela, REYNA levanta-se. Isabela corre até ele. Abraçamse emocionados. MAURÍCIO Não pude vir antes, amigo. Fui detido como você. Aconteceu alguma coisa? REYNA (fingindo raiva) Depois conto. Vamos sair daqui agora. Não sei o que dizer. MAURÍCIO (cabisbaixo) ISABELA Do que vocês estão falando? O que foi que aconteceu aqui? REYNA (pisca para o advogado) Um probleminha meu com Maurício, meu amor. Depois acerto com ele. Maurício parece arrasado. Brincadeirinha. REYNA (sorriso amarelo) MAURÍCIO (suspira, aliviado) Filho da mãe. Vá assustar sua mãe. REYNA Você me dá um minuto com minha mulher? MAURÍCIO Claro. Desculpe minha falta de sensibilidade. Sai. ISABELA (fazendo carinho no rosto dele) Jamais vou me perdoar por não ter confiado em você. REYNA 296 Eu também errei. Vamos esquecer o que houve. Há muito a fazer e estou morrendo de saudade de minha mulher. ISABELA Vamos para casa, meu amor. REYNA Ainda não. Preciso fazer algo importante e tem que ser agora. Você viu o tal vídeo? ISABELA Claro. A TV já veiculou. Já é o vídeo mais visto da Internet. REYNA Quem é que fez? Você soube? ISABELA Um sujeito esquisito. Parece que ele não sai da frente do computador. REYNA Saiu quando os caras armaram para mim. Você sabe como encontrá-lo? Quero agradecer pessoalmente. ISABELA E eu não conheço meu marido? Ele está aí fora, esperando você. REYNA Você é única. Vamos lá. Quero falar com ele. Tive uma ideia. EXT. DELEGACIA DE COPACABANA/RIO – AMANHECER. Uma multidão está do lado de fora da delegacia. Repórteres de rádio, TV e jornal misturam-se de forma desorganizada no meio da multidão, tentando conseguir um lugar mais adequado, com melhor visibilidade: todos esperam a saída de REYNA. INT. SALA DE ESPERA/DELEGACIA – AMANHECER. A sala está cheia. Santiago está tentando organizar a confusão. DOUTOR SANTIAGO Ninguém da imprensa entra antes da chegada do secretário. Ninguém! Está entendido, Danilo? DANILO 297 Um assessor do homem ligou e disse que ele não vem mais. Aí fora está coalhado de gente e ele está com medo de alguma manifestação. DOUTOR SANTIAGO Liga para o coronel OLIVEIRA. Vou resolver isso com ele. Os dois perdem-se na confusão. Surgem REYNA e Isabela, aproximando-se de Marcelo, o internauta. REYNA dá um abraço demorado em Marcelo. REYNA Não sei como agradecer, Marcelo. Se não fosse você eu estaria enrascado para valer. MARCELO A gente deu muita sorte. Eu estava no computador, ouvi a conversa dos caras e resolvi filmar. REYNA Você é daqueles sujeitos que ficam o dia inteiro no computador, nas redes sociais eletrônicas? MARCELO Eu sou o pai da turma toda, Leo. Sou o precursor. REYNA Você aceita fazer um trabalho para mim? Preciso conseguir apoio das redes sociais para pressionar os deputados em Brasília. MARCELO Quem você acha que mobilizou a turma para o julgamento no STF? Fui eu que criei aquele perfil seu. (sorriso amarelo) ISABELA Você deveria ter falado com a gente. REYNA Não ligue para Isabela. Fez bem feito. Pode criar quantos perfis quiser. Use aqueles negócios todos. Você está nomeado meu assessor para assuntos de Internet. MARCELO Jura? Posso botar pra quebrar? REYNA Não só pode como deve. Você tem procuração para falar em meu nome. Acompanhei as coisas que escreveu da outra vez. Você me conhece melhor do que eu mesmo. 298 MARCELO Acompanho sua carreira desde o começo. Uma vez você salvou a vida de um primo meu. REYNA Eu? MARCELO No pronto socorro. Ele chegou lá com uma overdose e você praticamente ressuscitou o cara. Virei seu anjo da guarda depois disso. Tirei muita pedra de seu caminho. (abre um sorriso) Com o maior prazer do mundo. REYNA Que mundo maluco esse, hein? Mas quem trabalha de graça é relógio. Vamos acertar uma remuneração bacana para você. MARCELO Não precisa. Eu sou rico. Não parece, mas sou. Emocionado, REYNA o abraça. MAURÍCIO Vamos embora, Leo. Já está amanhecendo. Você tem que descansar. Esqueceu que tem treino às 10 horas? REYNA Maurício: quero que você fique aqui e ajude dois amigos meus que estão lá dentro (aponta as celas). Chiquinho e Laudelino. Se não fosse por eles eu estaria falando fino agora. ISABELA (dá um cartão a Marcelo) Liga para mim depois, Marcelo. Vamos trabalhar junto nessa mobilização. O jornal vai apoiar tudo o que você fizer. MARCELO O trabalho começa agora mesmo. Tem mais de mil pessoas aí fora, esperando você. Chamei a minha turma. Vamos fazer uma passeata até a sede da Liga? MAURÍCIO Vou cuidar dos seus amigos, Leo. Mas vá logo para casa, OK? Deixe esse negócio de passeata para outro dia. REYNA 299 E perder a chance de fazer a CPI no Congresso? Está maluco? Vamos fazer a passeata sim. (a Isabela) Avise ao Quintero. Vou ficar por conta de Marcelo hoje. MAURÍCIO Você é atleta profissional, Leonardo! Pode ter baderneiro nessa passeata. Você vai ser responsabilizado! REYNA Cada um assume responsabilidade pelo que faz. Eu não vou fazer nenhuma loucura. Vai ser uma manifestação pacífica. ISABELA (vai à janela) O carro da Folha já chegou! REYNA (a Marcelo) Você me orienta. Não tenho a menor ideia de como fazer esse negócio. MARCELO Fale com a imprensa o maior tempo que você puder. Vou começar a chamar as pessoas para a passeata (mostra o smartphone). MAURÍCIO Não vai dar certo! É cedo demais. É dia útil. MARCELO A gente começa a chamar agora e a coisa esquenta mesmo é à tarde. A gente fica de plantão em frente ao prédio da Liga e o povo vai chegando. Sacou? MAURÍCIO Vocês estão ficando malucos! Isabela, por favor. Fale com seu marido! ISABELA O que você acha que eu devo escrever no meu cartaz? Sai daí, Carlão. REYNA MARCELO Boa, Leo. Sai daí, Carlão. Vai ser esse o nosso slogan! ISABELA (animadíssima, beija REYNA) 300 Vou mandar buscar cartola e pincel atômico! Vamos botar para quebrar! Sempre quis ir a uma passeata, querido! Estou tão emocionada! Vai ser demais. Vem também, Maurício. Se o estupro é inevitável, relaxe e aproveite. REYNA Pelo amor de Deus não fale essa palavra. Estou traumatizado com o susto que tomei hoje cedo. EXT. DELEGACIA DE POLÍCIA/COPACABANA – DIA. Visão geral da multidão defronte a delegacia. REYNA está conversando com a imprensa, em meio à confusão, refletores acessos etc. Na trilha sonora, NA CADÊNCIA DO SAMBA. Fusões sucessivas (e cortes rápidos) entre PLANOS APROXIMADOS de várias pessoas distintas, de todas as idades e raças, teclando diante das telas de seus micros. São pessoas comuns, rostos desconhecidos de pessoas que passam horas diante de sites das redes sociais eletrônicas. O tamanho dos grupos de manifestantes vai crescendo gradativamente, para ilustrar o crescimento exponencial dos que aderem às manifestações por interações nas redes sociais. INT. COPA/APARTAMENTO DE FEDERICA/LEBLON – DIA. FEDERICA e Quintero estão tomando o café da manhã. QUINTERO As crianças dormiram bem essa noite. Parece que a virose está cedendo. FEDERICA Trate de voltar para a minha cama. Às vezes acho que você prefere dormir com os meninos que comigo. QUINTERO Eu adoro ouvir o sono deles. (olha a TV) Olha lá! Vão mostrar Leonardo. REYNA na tela da TV, cercado de microfones. REYNA Não dá mais para tolerar as práticas desse bando de larápios. O que fizeram comigo dessa vez é pouco perto do que estão fazendo com o futebol brasileiro. Precisamos nos unir e expulsar essa gente do comando do futebol. (Aponta o dedo indicador para a tela) Sai daí, Carlão! 301 FEDERICA começa a rir. Quintero também. QUINTERO Leonardo endoidou de vez. Você viu o que ele fez? Ele agora quer demitir o presidente da Liga. Esse sujeito precisa ser internado. FEDERICA Pode começar a se despedir do seu craque, querido. Está nascendo um político. QUINTERO (batendo os nós dos dedos na mesa) Deus nos livre e guarde! INTERVALO PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS INT. CENTRO DE IMPRENSA/BRASIL FC – DIA. A sala de imprensa do BRASIL FC está lotada. Na mesa com lugares para três pessoas, FEDERICA Octávio e a ministra Ana REYNA. No púlpito está o diretor executivo do UNICEF, Anthony Lake. Os jornalistas amontoam-se no canto direito da sala, com refletores e câmeras a postos, à espera de Leo REYNA. Os flashes disparam ruidosamente, refletores das câmeras de TV são acessos. LAKE Em nome do Fundo das Nações Unidas para a Infância, tenho a honra de designar Leonardo JULIO REYNA Embaixador Global da Boa Vontade do UNICEF. Lake entrega a REYNA um diploma emoldurado. Leo está visivelmente emocionado. REYNA Assumo publicamente o compromisso de juntar-me aos que lutam para defender os direitos fundamentais das crianças, em todo o mundo e, em particular, em meu país, o Brasil. Mais flashes e aplausos. EXT. CENTRO DE TREINAMENTO DO BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA – DIA. Mais um treino chega ao fim. Os jogadores saem devagar, esgotados, mas REYNA permanece no campo. Junto a ele, agora adulto, PELÉ, filho do 302 massagista VIOLÃO, que treina com a equipe principal. Lucas está no gol. Os dois começam a treinar cobranças de falta. INT. SALA DE QUINTERO/BRASIL FC – DIA. Quintero e REYNA estão sentados no sofá. QUINTERO Você está perdendo a concentração, Leo. Não vai dar para fazer tudo ao mesmo tempo. REYNA Eu continuo fazendo gols. QUINTERO Mas sua cabeça não está mais aqui. Por que não ajuda a si mesmo e admite? REYNA Eu não posso perder a oportunidade de contribuir para o UNICEF. QUINTERO Não é o UNICEF. É o sindicato. A imprensa. A Câmara dos Deputados. Tudo, menos o futebol. REYNA Eu não sei fazer nada pela metade, Zé. Você sabe que sou intenso em tudo que faço. QUINTERO Esse é o ponto. Você não estabelece prioridades. Se tudo é prioritário, nada é prioritário. REYNA Há uma pequena possibilidade de que pela primeira vez na vida eu esteja errado e você esteja certo. QUINTERO Você nunca foi de empurrar com a barriga. Você está muito mais preocupado com essa CPI do que com o campeonato. E não dá para conciliar isso com o futebol. Estou falando como diretor técnico. Detesto dizer isso, mas o BRASIL está sendo prejudicado. REYNA Vamos combinar uma coisa. Dê-me três dias de folga, eu vou para Brasília e volto com uma decisão. 303 Mais três dias? QUINTERO REYNA Só mais três. Prometo que será a última vez. Cumprimentam-se batendo mão direita na mão direita. EXT. CONGRESSO NACIONAL/BRASÍLIA – DIA. Imagem externa da Esplanada dos Ministérios. Imponente, o prédio do Congresso Nacional atrai a atenção de turistas, que fotografam tudo. INT. CORREDOR DA CÂMARA DOS DEPUTADOS/BRASÍLIA – DIA. REYNA, vestido de terno, elegante, caminha de mãos dadas com Isabela (de tailleur, igualmente elegante, linda). Eles chegam ao gabinete do deputado federal Chico Alencar, da bancada do Rio de Janeiro. CLOSE-UP da placa com o nome do deputado. DEPUTADO CHICO ALENCAR Não é assim que as coisas funcionam aqui, Leo. Infelizmente. REYNA O que mais eu preciso fazer? DEPUTADO CHICO ALENCAR Você tem que procurar os governadores, um por um, e pedir apoio deles. Pedir aos governadores para pressionarem a bancada do Estado deles. Não tem outro jeito. REYNA Eu pedi para o pessoal das pressionarem os governadores. redes sociais eletrônicas DEPUTADO CHICO ALENCAR Não adianta. Tem que fazer corpo-a-corpo. Com governador, com cada senador, com cada deputado. cada REYNA E o futebol? E minha mulher? E minha vida? DEPUTADO CHICO ALENCAR Você é quem sabe. Não é fácil aprovar uma CPI dessas. A bancada governista não morre de amores pelo Carlão, mas você não chega a ser o ídolo daquela turma. REYNA 304 Sabe de uma coisa, deputado? Nós vamos ter que eleger uma bancada inteira. Vou começar a pensar nisso. Cada Estado vai eleger um jogador ou ex-jogador. Não vai ser difícil conseguir votos. Você topa ajudar? CHICO ALENCAR Aqui há mais ou menos trinta votos de gente séria, correta, que certamente estará com vocês em qualquer situação. Gente que não aguenta mais os desmandos de Carlão. REYNA Você acha viável? Tem deputado estadual eleito pelas torcidas em todo o Brasil. E bem votados. Como Marques, de Minas. Bebeto, no Rio. DEPUTADO CHICO ALENCAR É viável sim. Vamos juntar as forças, Leo. INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS – DIA. Na mesa estão cinco parlamentares. Um deles é Carlão. Na presidência, Chico Alencar, do PSOL/RJ. O jornalista Juca KFOURI faz um depoimento, a exemplo dos cinco que já fez nos episódios anterior. O depoimento, como antes, leva aproximadamente um minuto e meio. DEPUTADO CHICO ALENCAR A mesa agradece ao jornalista Juca KFOURI. Obrigado por ter vinco depor nessa CPI, Juca. JUCA KFOURI Não há o que agradecer, presidente. Foi um privilégio ser ouvido numa CPI tão importante para o futuro do futebol brasileiro. Juca sai do púlpito e ocupa um lugar no plenário. DEPUTADO CHICO ALENCAR A mesa convoca agora o diretor executivo da Liga Nacional de Futebol, bacharel Antônio Ricardo Madureira. Carlão explode, batendo a mão na mesa. CARLÃO Eu protesto! Protesto veementemente! Não admito que um subordinado meu venha a essa CPI sem que eu tenha sido comunicado previamente. 305 DEPUTADO CHICO ALENCAR Seu protesto será consignado na ata da sessão. CARLÃO A convocação do diretor Madureira não foi submetida à votação! É uma arbitrariedade, senhor presidente! Não vou admitir esse absurdo! Vou ao Supremo Tribunal Federal! DEPUTADO CHICO ALENCAR Esta presidência tem a prerrogativa de convocar quem julgar adequado. Bacharel Antônio Marcos Madureira. Por favor. Madureira caminha devagar até o púlpito. Evita olhar na direção de Carlão. DEPUTADO CHICO ALENCAR Obrigado, bacharel. Podemos começar? MADUREIRA Perfeitamente, senhor presidente. DEPUTADO CHICO ALENCAR O senhor teve conhecimento do contrato firmado entre a Liga Nacional de Clubes e o Bank of North America? CARLÃO Isso é inconstitucional! Você não pode fazer isso, seu filho da mãe! DEPUTADO CHICO ALENCAR O senhor comporte-se ou será levado à Comissão de Ética. (olhando para o fundo) Cortem o som do microfone do deputado. Polícia legislativa? Dois homens vestido de terno levantam as mãos. DEPUTADO CHICO ALENCAR Tirem o deputado Carlão desse recinto se ele abrir a boca para falar sem minha autorização. Está entendido? Os homens fazem sinal positivo. DEPUTADO CHICO ALENCAR Bacharel Antônio Marcos Madureira. MADUREIRA Todos os contratos de patrocínio eram assinados por mim, deputado. A Liga realmente firmou contrato com a mencionada casa bancária. 306 DEPUTADO CHICO ALENCAR Qual foi o valor do patrocínio, bacharel? 80 milhões. MADUREIRA Zum-zum-zum na plateia. Flashes espocam. Silêncio! De reais? DELEGADO CHICO ALENCAR MADUREIRA Não, senhor presidente. De dólares. Mais zum-zum-zum, mais flashes. Carlão está apoplético: parece que vai explodir a qualquer momento. DEPUTADO CHICO ALENCAR Esse dinheiro entrou no caixa da Liga? MADUREIRA Sim, senhor presidente. Entrou. DEPUTADO CHICO ALENCAR E que contrapartida foi oferecida ao banco pelo referido aporte de 80 milhões de dólares? MADUREIRA O nome da referida casa bancária deveria constar nas camisetas dos jogadores, tanto nos uniforme de treinos como nos uniformes oficiais. Além de exposição da logomarca do banco no tapume que fica na sala de imprensa. Mais zum-zum-zum na plateia. Mais flashes. DEPUTADO CHICO ALENCAR E isso foi feito, bacharel Madureira? MADUREIRA Não, senhor presidente. DEPUTADO CHICO ALENCAR E por que razão a Liga não cumpriu a parte dela no contrato? MADUREIRA Não sei dizer, senhor presidente. Recebi a ordem do presidente para não oferecer a contrapartida contratada e não costumo discutir ordens superiores. 307 Zum-zum-zum. Flashes. DEPUTADO CHICO ALENCAR E qual foi a atitude do banco diante do descumprimento do contrato? MADUREIRA Eles queriam o dinheiro de volta. DEPUTADO CHICO ALENCAR O dinheiro foi devolvido? Não que eu saiba. MADUREIRA DEPUTADO CHICO ALENCAR E eles não reclamaram? MADUREIRA Reclamaram sim. Mas o presidente disse que se quisessem poderiam entrar na Justiça. Zum-zum-zum. Mais flashes. DEPUTADO CHICO ALENCAR E eles entraram na Justiça? MADUREIRA Não, senhor presidente. Por que não? DEPUTADO CHICO ALENCAR MADUREIRA Isso eu não sei dizer. O que eu sei é que Carlão disse que iria jogar a torcida contra a casa bancária e eles preferiram ficar calados. Zum-zum-zum na plateia de novo. DEPUTADO CHICO Silêncio! A Liga usou o dinheiro do banco para investimentos? MADUREIRA Nem um centavo. O dinheiro foi para uma conta de Carlão num paraíso fiscal. 308 Subitamente, Carlão levanta-se e tira um COLT 38 enorme de dentro do paletó, atirando (em acertar) em Madureira em seguida. FADE OUT. FADE IN. INT. AEROPORTO INTERNACIONAL DO GALEÃO/RIO – NOITE. Carlão caminha lentamente. Ao lado dele uma mulher jovem, alta, belíssima. Um carregador uniformizado traz muitas malas num carrinho de mão. LOCUTORA OFICIAL (em OFF) Passageiros do voo 1247 para Miami. Apresentem-se no portão 12 para embarque imediato. Os dois aproximam-se do portão 12 e entram. Carlão vira-se e olha para trás: é a despedida dele. EXT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE. É noite de jogo importante. Movimento intenso. INT. CAMPO DE FUTEBOL/ARENA BRASIL – NOITE. REYNA está dando uma volta olímpica em volta do campo. É ovacionado pela torcida. PLANO APROXIMADO: REYNA está emocionado, em primeiro plano. Ao fundo, sem nitidez, VEMOS a torcida, ao longe. TORCIDA (em coro) REYNA seleção! REYNA seleção! REYNA seleção! FIM Roteiro de Daniel J. ZIMERMAN Depoimentos de JUCA KFOURI Participação afetiva: deputado CHICO ALENCAR, José Trajano, PVC e Fernando Calazans. 309 310