BRASIL FUTEBOL CLUBE_COMPLETO - Português

Transcrição

BRASIL FUTEBOL CLUBE_COMPLETO - Português
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BRASIL FUTEBOL CLUBE –
Roteiro de Daniel J. ZIMERMAN
Episódio I: SER OU NÃO SER
PARTE I
PRÓLOGO
5 MINUTOS
INT. BANCO DE RESERVAS/COMISSÃO TÉCNICA/ARENA BRASIL – NOITE.
Uma imagem geral do banco de reservas termina focalizando o italiano
GIANPAOLO MANCINI, treinador do Brasil FC, tendo ao lado o diretor técnico,
JOSÉ ROBERTO QUINTERO. Ouvimos a barulheira infernal feita pelas duas
torcidas e os gritos que caracterizam jogadas perigosas.
Mancini levanta-se, tenso, enquanto Quintero permanece calmo, ainda sentado.
Um som forte do apito do juiz invade a trilha e a gritaria que sugere a
marcação de um pênalti é clara. O Maracanã é a Arena Brasil.
Uma imagem mostra o juiz bem próximo marcando um pênalti.
Mancini parece explodir. Os gritos dele misturam-se aos gritos de outros
integrantes do banco, sempre com a exceção do imperturbável QUINTERO.
MANCINI
Filho da puta! Ladrão! Filho da puta!
JOGADOR UM
Juiz ladrão! Quanto você está levando, seu safado?!
JOGADOR DOIS
Meu Deus! Puta que o pariu! Estamos ferrados!
De repente, as imagens passam a desfilar em CAM lenta. Mancini começa a
passar mal: está tendo um infarto fulminante. Em poucos segundos
acompanhamos o susto das outras pessoas na área destinada à comissão
técnica e aos jogadores reservas: Mancini é amparado por Quintero.
O som de uma ambulância começa a se destacar. VEMOS Mancini desmaiado
nos braços de Quintero; aproxima-se o médico do BRASIL FC (DR FABIO) e
presta os primeiros socorros. O médico identifica o infarto e percebe que
Mancini está morrendo. Dá muitas pancadas no peito dele, desesperado.
As imagens do socorro são intercaladas com imagens da torcida adversária e
da bola estufando as redes, em detalhe, entrando o grito de GOL e a
comemoração da torcida adversária na trilha sonora.
EXT. AV. ATLÂNTIDA/RIO DE JANEIRO – NOITE.
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Uma ambulância segue em alta velocidade pela avenida.
INT. AMBULÂNCIA/RIO DE JANEIRO – NOITE.
Ao lado de Mancini (no oxigênio), o médico está apreensivo.
MÉDICO
Desfibrilador! Rápido! Rápido!
Um enfermeiro dá choques com um eletrodo no peito de Mancini.
EXT. HOSPITAL CARDIOLÓGICO/RIO DE JANEIRO – NOITE.
A ambulância para abruptamente e dois enfermeiros abrem a porta, ajudando
o enfermeiro e o médico que estavam dentro do veículo a puxar a maca com
Mancini. O grupo entra no hospital em alta velocidade.
INT. CORREDOR ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE.
No corredor mal iluminado, Quintero está sozinho, encostado na parede.
Parece desolado, abatido. FEDERICA ANCELOTTI OCTÁVIO, uma mulher bela,
mas sem glamour, sempre com roupas básicas, cabelo preso.
Ela aproxima-se dele sem nada falar. Coloca a mão no ombro de José Roberto,
que permanece cabisbaixo. Sem poder conter-se mais, Quintero começa a
chorar.
FEDERICA
(com leve sotaque italiano)
Chore caro mio. É só o que podemos fazer.
Quintero chora convulsivamente.
QUINTERO
Alguém avisou a mulher dele?
FEDERICA
Carlão está com ela no hospital. Está tudo sob controle.
QUINTERO
(sem ironia, angustiado)
Sob controle de quem? De quem, meu Deus?!
Os soluços de Quintero fundem-se ao ruído das hélices de um helicóptero, que
vai crescendo e abafando o choro de Quintero.
EXT. BAÍA DE GUANABARA/RIO DE JANEIRO – DIA.
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Um helicóptero faz um voo rasante na baía, indo na direção de um iate
luxuoso, que está ancorado.
A aeronave pousa devagar no HELIPONTO do barco; FEDERICA surge na porta
que é aberta e começa a sair, enfrentando a forte ventania provocada pelas
hélices.
Um tripulante uniformizado se aproxima dela e a ajuda a descer.
INT. CORREDOR DO IATE/BAÍA DE GUANABARA – DIA.
FEDERICA caminha por um corredor. Um tripulante está diante da porta que dá
acesso à cabine de ANDRÉ OCTÁVIO.
Ela o cumprimenta com um gesto mecânico e faz menção de entrar.
TRIPULANTE
O Doutor André está acordando, senhora. Ele pede para a
senhora aguardá-lo na biblioteca.
FEDERICA
Não há necessidade. Somos casados há 20 anos.
TRIPULANTE
(impedindo-a de entrar)
Eu insisto senhora.
FEDERICA finge que vai dar meia volta e surpreende o tripulante, abrindo a
porta rapidamente.
INT. SUÍTE DE ANDRÉ/IATE – NOITE.
FEDERICA entra e vê duas mulheres nuas tentando acomodar-se num armário
próximo à piscina.
André está na água, nu. Fica surpreso com a entrada da esposa.
ANDRÉ
Você não deveria ter feito isso.
FEDERICA
Que papel ridículo você está fazendo. Definitivamente você não
tem mais qualquer compostura. Mande essas garotas irem
embora. (senta-se numa espreguiçadeira)
ANDRÉ
Não seja grosseira. As meninas são minhas amigas. Elas vão
ficar onde estão.
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André sai da piscina e enrola-se numa toalha, sentando-se à mesa e servindose de um copo de suco de laranja. Serve uma dose de uísque, sem pressa.
FEDERICA
O médico inglês confirmou o diagnóstico?
ANDRÉ
Não quero falar disso.
FEDERICA
Sou sua mulher. Tenho o direito de participar. Os americanos
nos convocaram para uma reunião em Nova York.
ANDRÉ
Vá você. Estou fora. Isso é definitivo.
FEDERICA
Muito cômodo tirar o corpo fora. Logo agora que perdemos
Mancini. O que pretende fazer?
ANDRÉ
Aproveitar a vida bem longe do futebol. Vou cuidar só do banco,
morando em Londres. Esse é nosso último encontro.
FEDERICA
Quintero quer ir embora. A partida final da Liga Sul Americana
vai acontecer em duas semanas e eu estou sem técnico. Não sei
se vou conseguir lidar com os conselheiros do fundo.
ANDRÉ
Vai sim. Você é inteligente. É competente. E vai ter poder.
Assinei a papelada passando minhas ações no time para seu
nome.
FEDERICA
Você não deveria ter feito isso. Quero estar ao seu lado, querido.
Tenho esse direito.
ANDRÉ
Tenho o direito de viver sozinho esse momento. Respeite isso se
realmente me ama.
FEDERICA
Você é muito frio. Pelo amor de Deus, me deixe ficar junto de
você.
ANDRÉ
Você vai receber os papéis do divórcio.
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FEDERICA
Não faça isso com a gente. Deixe-me cuidar de você.
ANDRÉ
(tira o roupão e pula na piscina)
Tempo esgotado.
FEDERICA
(limpando as lágrimas)
O que eu faço com seu tio?
ANDRÉ
Você vai ter que se compor com Carlão. Ele foi imposto pelos
conselheiros do fundo. Minha participação acionária é grande,
suas ações agora, mas não é suficiente para controlar tudo.
FEDERICA
(levanta-se e caminha na direção da saída)
Você não vai me ajudar em nada?
ANDRÉ
Vou falar com Quintero. Mas esse vai ser nosso último encontro,
amore mio. Em nenhuma hipótese você me verá mais uma vez.
FEDERICA
(abaixa-se e toca o rosto dele, que ainda está na piscina)
Que Deus acompanhe você, querido. Avise se mudar de ideia.
Largo tudo e vou ficar com você.
ANDRÉ
Eu sei. Vou sozinho a partir daqui. (pausa) Meninas!
As duas louras nuas saem do armário e pulam na piscina. FEDERICA levanta-se
e sai da suíte, dando uma última olhada para o marido, que finge ignorá-la,
divertindo-se na piscina.
TEASER E CRÉDITOS DA MINISSÉRIE:
EXT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE.
Uma multidão chega à Arena BRASIL (MARACANÃ), moderno estádio do clube, para mais um jogo do
Brasil Futebol Clube, clube-empresa do Rio de Janeiro que foi vice-campeão brasileiro em seu primeiro ano
de existência. Pessoas de todas as idades, homens, mulheres, crianças: todos unidos pela paixão pelo
futebol. Um retrato da torcida, que chega para mais um grande jogo. Muita cor, realçada pela força da luz
dos holofotes que iluminam a arena.
LEGENDA
ARENA BRASIL, RIO DE JANEIRO.
INT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE.
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Na trilha, o zum-zum-zum dentro da enorme edificação: sentimos a energia da paixão dos torcedores já
na trilha sonora, com gritos, conversas misturadas, barulho isolado de charangas.
Nas arquibancadas, VEMOS desfilar representantes das torcidas dos principais clubes do país. Os primeiros
a aparecer são Samuel Rosa, com a camiseta azul do Cruzeiro e Nando Reis, com a camisa branca com
listras horizontais do São Paulo. Coincidindo com planos aproximados dos dois, na trilha sonora entra a
música-tema, “UMA PARTIDA DE FUTEBOL”, com a banda de rock brasileiro SKANK.
Celebridades com as camisas dos demais times (Chico Buarque com a do Fluminense; Washington Olivetto com a
do Corinthians, a atriz Adriana Esteves com a do Flamengo, e assim por diante: Botafogo, Vasco, Fluminense,
Corinthians, Palmeiras, Santos, Guarani, Brasil FC, Atlético MG, Internacional, Grêmio, Bahia, Coritiba, Goiás, Atlético
Paranaense, Portuguesa, Sport, Vitória, Náutico).
Bandeiras, camisetas, bonés: é variado o estoque de símbolos e adereços de todos os times. Na imagem,
integrantes das charangas dos times, das torcidas organizadas. Rostos anônimos, perdidos na multidão
movimentada pela paixão ao seu time. CLOSE-UP’s de pessoas que chamam atenção: mulheres lindas,
uniformizadas, trabalhadores, gente humilde, classe média, gente rica, crianças pequenas no colo e no
pescoço de seus pais: é a festa da chegada da torcida, que democratiza o sonho de ver seu time
campeão.
CORTA para as cabines da imprensa: em cena os jornalistas e radialistas que vão transmitir a emoção do
jogo. Um olhar sobre a sala de imprensa, com jornalistas digitando com rapidez em seus lap top’s: tudo
organizado, com espaço para cada órgão de imprensa.
VAMOS para o campo de futebol. AUMENTA A PARTICIPAÇÃO DAS CHARANGAS, cresce o zum-zum-zum
nas arquibancadas. Acompanhamos a movimentação prévia que antecede, em poucos segundos, a
entrada dos times em campo. Os repórteres de campo movimentam-se enlouquecidos pela adrenalina:
não podem perder as imagens iniciais; os fotógrafos, segurando máquinas fotográficas com lentes
enormes, nas mãos ou em suportes, apontam suas câmeras para a entrada do túnel de um dos times.
VEMOS a entrada do trio de árbitros em campo CAM no túnel de acesso ao campo, como nos jogos da
UEFA Champions League: cresce a emoção em todo o estádio.
Com imagens do campo e de cima, VEMOS os quatro árbitros o reserva também entrarem em campo o
árbitro principal, com a bola nas mãos e OBSERVAMOS a recepção da torcida: vaias. Imagens nas
arquibancadas mostram a expectativa dos torcedores dos diversos times: não sabemos ainda qual time vai
entrar em campo.
CORTA PARA o túnel: vemos os jogadores do Brasil FC, segurando os garotos mascotes pelas mãos,
prontos para a entrada triunfal. CORTES sucessivos mostram a mesma imagem, mas dos outros times,
preparando-se, também, para entrarem em campo.
Os jogadores do Brasil FC começam a entrar em campo. O goleiro LUCAS puxa a fila e os jogadores
começam a sair do túnel. De repente, a explosão: começa uma gritaria ensurdecedora quando o time do
Brasil FC entra em campo. Imagens de conjunto alternam-se com planos aproximados e CLOSE-UP’s,
mostrando em detalhes a emoção que toma conta do estádio inteiro.
Torcedores do Brasil FC gritam e soltam foguetes, agitando as bandeiras e camisetas. A fumaça toma o
campo. Imagens no campo mostram os jogadores dos diversos times mencionados, em cortes sucessivos,
assediados pelos repórteres, pelas câmeras de TV.
Reconhecemos o uniforme titular do Brasil Futebol Clube: camisas, calções e camisetas inteiramente
laranja, com frisos e números pretos. Os nomes dos jogadores e a logomarca do único patrocinador, o
Crystal Fund são pretos também. O segundo uniforme é inteiramente preto, com os mesmos frisos e
números laranja. Números e logo do fundo são laranjas. Marcas dos outros patrocinadores nas mangas
das camisas e nas costas, abaixo dos números.
Os jogadores correm para o campo, preparando-se para a foto oficial. CAM segue com ele, alternando
imagens dos craques com flagrantes da torcida agitada. O centro das atenções é o principal jogador do
Brasil FC, LEONARDO REYNA, 25 anos, número CATORZE às costas. É um sujeito simpático, boa pinta,
com um corte de cabelo estilizado, fashion. De bom gosto, ao contrário do que é comum entre os
jogadores brasileiros.
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É longilíneo, muito branco, alguém que parece não gostar de sol. Não usa chuteira colorida, mas pretas. É
um sujeito com uma autoconfiança que beira a arrogância, agradável, sempre com um sorriso que revela
uma atitude de desafio diante do mundo.
Um grupo de repórteres cerca REYNA, todos ávidos por gravar uma fala do jogador, artilheiro do Brasil.
Quando ele começa a falar alguma coisa, antes mesmo de conseguir pronunciar a primeira palavra, uma
barulheira ainda maior sacode o estádio: é o adversário entrando em campo. Sucedem-se imagens da
entrada em campo, devidamente saudadas pelas torcidas respectivas, das equipes mostradas antes,
mencionadas antes.
Em cortes rápidos, VEMOS que o adversário do Brasil FC é, a um só tempo, cada um dos times reais
mencionados. A entrevista acaba sem começar, pois Leo aproveita e escapa dos jornalistas.
CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO,
impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas
respectivas torcidas nas arquibancadas.
INTERVALO.
PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS.
INT. REDAÇÃO/JORNAL FOLHA DO RIO – NOITE.
Movimento intenso na redação. ISABELA FALCÃO, 25 anos, linda, sempre
vestida com elegância, produzida. Ela caminha pela redação em direção à sala
de Ariel Peçanha, diretor do jornal. Os jornalistas reparam nela, mas são
discretos. Jonas e Tonico, da editoria de esportes, falam sobre ela.
TONICO
Que mulherão. E podre de rica ainda por cima.
JONAS
Ela anda como uma deusa. Que coisa.
TONICO
Dizem que foi bailarina.
JONAS
Deve ter o pé todo machucado. Uma pena.
TONICO
Será que é ela mesma que faz a coluna do Sobre?
JONAS
Só pode ser. Mas, porra. Sou o editor de esportes. Ela tinha que
vir conversar comigo.
TONICO
Filha de dono só conversa com diretor. Pode apostar que veio
trazer outro furo.
JONAS
Ela garantiu que José Roberto Quintero vai ficar.
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TONICO
Vai pisar na bola pela primeira vez. Carlão jamais vai aceitar e
nem ele quer ficar. Se o jornal der, vai ser barriga.
JONAS
Sobrenatural de Almeida porra nenhuma. Sobrenatural mesmo é
a bunda dela.
Isabela entra na sala do Diretor de Redação. Antes olha na direção de Jonas e
Tonico. PLANO APROXIMADO de Isabela: com um sorriso maroto, ela pisca
para os dois.
EXT. ARENA MARACANÃ/RIO DE JANEIRO – DIA.
Num Mini Cooper branco, com faixas preta e laranja (nos tons do uniforme do
BRASIL FC), FEDERICA chega ao complexo administrativo e de treinamentos do
time, num espaço nobre da Marina da Glória, no Rio de Janeiro.
FEDERICA cumprimenta o porteiro e os seguranças com um sorriso acolhedor e
um gesto com a cabeça.
INT. RECEPÇÃO/SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FC – DIA.
FEDERICA chega e a secretária FÁTIMA leva a ela uma xícara de café (das
grandes, amarela e verde).
FEDERICA
Tchau, cara mia. Quintero já chegou?
FÁTIMA
Já. Coitado. Até parece que morreu alguém da família.
FEDERICA
Não passe nenhuma ligação. Alguma coisa urgente?
FÁTIMA
O doutor Carlos Magno mandou avisar você que não vem hoje
nem amanhã e nem depois.
FEDERICA
Desde quando Carlão dá satisfação do que faz?
FÁTIMA
Ele está com o rei na barriga. Olhou-me como se eu fosse
propriedade dele. Sujeito asqueroso.
FEDERICA
Fez a reserva no WALDORF?
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FÁTIMA
Fiz. O comandante está esperando seu aviso. Sua mala já está
lá. Já falei com Mary: o apartamento já está preparado para sua
chegada.
FEDERICA
Ótimo.
(entra finalmente em sua sala)
INT. SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FC – DIA.
FEDERICA entra e vai direto para sua mesa, saboreando o café. Senta-se e
QUINTERO olhando um quadro de KANDINSKI, artista preferido de FEDERICA.
FEDERICA
Gosta de KANDINSKI, José Roberto?
Adoro.
Quer pra você?
QUINTERO
FEDERICA
QUINTERO
Não posso aceitar. Esse quadro é muito valioso e sei que você o
adora.
FEDERICA
Um presente só tem valor quando é valioso tanto para quem dá
como para quem ganha. Aceite como um gesto de gratidão.
QUINTERO
Eu sei. Suborno não é sua praia. André faria isso. Você não.
FEDERICA
Nunca precisei de alguém como estou precisando de você agora,
José Roberto. Mancini escolheu a pior hora possível para morrer.
QUINTERO
Muito oportuno você mencionar isso. Não quero ter um infarto e
morrer na beira de um campo de futebol.
FEDERICA
Ele teria um infarto mesmo se fosse um monge tibetano. Colocou
três pontes de safena antes dos trinta anos.
QUINTERO
Você sabe que não vou mudar de ideia.
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FEDERICA
As coisas mudaram muito, José Roberto. André afastou-se do
time. Passou-me as ações e vai morar em Londres. Não volta ao
Brasil.
Ano sabático?
Vida sabática.
QUINTERO
FEDERICA
QUINTERO
Por quê?
FEDERICA
Ele tem as razões dele.
Carlão já sabe?
QUINTERO
FEDERICA
Não sei. As coisas vão ter que mudar por aqui. Há muito a fazer.
QUINTERO
Bom saber. Desejo a você toda a sorte do mundo. Vou cumprir
meu contrato e voltar para a Europa.
FEDERICA
Preciso de você, José Roberto. Não vou ser efetivada na
presidência se nós perdermos a final com os argentinos.
QUINTERO
Não vamos perder. Coloque Bonilha no comando do time. Ele era
unha e carne com Mancini.
FEDERICA
Não confio nele. Tem que ser você.
QUINTERO
Aceito dirigir o time na final e é só. Prometi a TOMOKO que não
volto a ser técnico.
FEDERICA
Cubro qualquer oferta dos espanhóis. Você recebe duas vezes.
Como diretor técnico e como treinador.
QUINTERO
Não é uma questão de dinheiro. Você sabe que não.
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FEDERICA
O que está em jogo não é só um time. É um projeto de ética e
profissionalismo no futebol. Uma revolução completa. Estamos
fazendo história, José Roberto. Deixe-me falar com TOMOKO.
QUINTERO
Não adianta. O problema não é ela. Eu não quero voltar a ser
treinador. Isso é definitivo. Não insista: é perda de tempo e de
energia.
FEDERICA
Tenho que insistir. É questão de sobrevivência. Um ano de
contrato. Só um, juro. Você precisa me ajudar.
QUINTERO
Não estou em condições. Não depende de minha vontade.
FEDERICA
Você me deve uma explicação.
QUINTERO
Essa conversa vai ficar aqui, nessa sala? Promete?
FEDERICA
Claro. Com certeza.
QUINTERO
Eu tenho um problema de ordem médica. Problema sério.
Coração também?
FEDERICA
QUINTERO
Não. Outra coisa. Não quero falar disso. É muito íntimo.
FEDERICA entende então. Levanta-se e caminha pela sala, nervosa.
FEDERICA
Eu respeito. Seja lá o que for. Mas continuo precisando de você.
Minha situação vai ser insustentável. Carlão vai me derrubar.
QUINTERO
Sou bipolar, FEDERICA.
Como assim?
FEDERICA
QUINTERO
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Tenho transtorno bipolar. Não tenho condições para lidar com a
pressão desse cargo.
FEDERICA
Você já técnico antes.
QUINTERO
Era mais novo. O quadro era menos complicado.
FEDERICA
Medicamento resolve isso. Você pode ter uma vida normal.
QUINTERO
Vida de técnico não é normal.
FEDERICA
Fui convocada a Nova York tão logo Mancini morreu. E eles já
sabem que André se afastou. Carlão desapareceu. Deve estar
tramando para assumir o time. É isso que você quer?
QUINTERO
Claro que não. Não suporto a ideia daquele corrupto na
presidência. O que deu na cabeça de André para colocar esse
sujeito na vice-presidência?
FEDERICA
Não faz diferença agora. Posso contar com você?
QUINTERO
Só até a final. Não vou sacrificar minha saúde.
INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT BRASIL FC – ENTARDECER.
Num dos campos de futebol do imenso CT do Brasil FC, só há dois jogadores
em campo: LEONARDO REYNA e o goleiro titular LUCAS. REYNA está treinando
cobranças de falta: há um anteparo próprio que simula os adversários e LUCAS
está fazendo um grande esforço para alcançar as bolas chutadas com absoluta
precisão por REYNA.
Pelé, um garoto negro, de aproximados 15 anos, filho do roupeiro VIOLÃO,
ajuda os dois no treinamento, movendo o anteparo com a orientação de
REYNA.
REYNA
Mais para a direita agora, Pelé. Não muito. Uns vinte
centímetros.
PELÉ
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(movimenta o anteparo)
Está bom assim?
REYNA
Ótimo. Assim mesmo. Pode sair.
Vê-se que uma fileira de bolas está colocada na horizontal, em paralelo ao
anteparo.
REYNA começa a chutar as bolas, num intervalo que é suficiente apenas para
que o goleiro possa levantar-se e se posicionar para a próxima cobrança. É
grande o esforço de LUCAS.
Das nove cobranças, sete entraram no gol. Pelé, entusiasmado, comemora os
gols como se estivessem num jogo oficial.
REYNA para então, ensopado de suor. Vai até LUCAS e o ajuda a levantar-se:
ambos estão exaustos.
INT. VESTIÁRIO/CT DO BRASIL FC – NOITE.
Cada um em uma banheira, REYNA e LUCAS descansam após o treino rigoroso.
REYNA está fumando um charuto enorme. Traga com visível prazer. Pelé está
de roupa trocada, de saída.
PELÉ
Vou estudar um pouco. Semana que vem começam as provas.
LUCAS (ao garoto)
Ano que vem vamos apresentar você ao Bonilha. Agora é melhor
você jogar as peladas de rua. Não tem escola melhor, garoto.
REYNA
Vai nessa, Ed. Amanhã tem mais.
PELÉ (a Lucas)
Porque ele chama todo mundo de Ed?
LUCAS
Não deu para perceber ainda? Esse sujeito é doido varrido. Trate
de ir estudar.
Pelé ri e sai.
LUCAS
E aí? O que você resolveu?
REYNA
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Não aceito essa pressão, Ed. Ninguém vai dizer como eu devo
viver minha vida. Muito menos um verme como Carlão.
LUCAS
Não é só o Carlão. O grupo não aceita seus privilégios. Já disse
isso a você.
REYNA
Que se dane o grupo. Privilégios porra nenhuma. Eu dou um
duro danado.
LUCAS
Fora do campo. Quase não vem aos treinos, joga só quando
quer e mesmo assim um tempo só.
REYNA
Sujeitos como Carlão eu costumo deixar na privada duas vezes
ao dia. Não aceito cobrança dele.
LUCAS
A italiana não vai dar conta do recado. Carlão está com a faca e
o queijo na mão.
REYNA
Não obriguei ninguém a assinar contrato comigo. Eles é que me
procuraram em casa. (pausa) Você está do meu lado ou está
dando razão àquele corrupto?
LUCAS
Você me ofende com essa pergunta. Vá tomar no rabo.
REYNA
Se me pressionarem, eu saio do time. Não preciso do futebol,
Ed. Não jogo bola para ganhar dinheiro.
LUCAS
Você fala isso como se fosse melhor do que a gente.
REYNA (sério)
Você está pegando pesado, Ed.
LUCAS
Você não passa de um garoto mimado. A boa vida vai acabar.
Carlão vai rescindir seu contrato.
REYNA traga forte e joga a fumaça no rosto de LUCAS, que começa a tossir.
INT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE.
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REYNA correndo em CAM lenta, com o braço esquerdo levantado, na posição
preferida para comemorar seus gols. Só ele no foco, com a multidão de
torcedores ao fundo, sem nitidez. Na trilha sonora, locução de rádio. A torcida
vibrando, em êxtase.
LOCUTOR
Gooooooooooooooo! Gooooooool! REYNA espetacular!
TORCIDA (em uníssono)
REYNA! REYNA! REYNA!
PLANO APROXIMADO mostra o rosto de REYNA, extasiado: é indescritível a
emoção de marcar um gol importante. VEMOS que futebol é a vida dele.
EXT. AEROPORTO KENNEDY/NOVA YORK – NOITE.
Um avião particular está taxiando e para numa área VIP. FEDERICA desce e
dirige-se imediatamente a uma limusine preta. Um motorista uniformizado abre
a porta e ela entra. Dentro, o advogado LUDOVICO MARTINEZ a aguarda.
MARTINEZ
Bem-vinda a Nova York. Fez boa viagem?
FEDERICA
Ótima. Vamos direto para a reunião?
MARTINEZ
Eles estão à nossa espera. O Doutor Carlos Magno foi convidado.
Você sabia?
FEDERICA
Não. Imaginei que ele iria aprontar algo assim quando soubesse
do afastamento de André.
MARTINEZ (ao motorista)
Vamos embora, Alberto. (a FEDERICA) O doutor Carlos Magno
acredita piamente que você vai afastar-se do time. Você disse
alguma coisa a ele?
FEDERICA
Freud chamava isso de projeção. É o que ele quer.
Ele está errado?
MARTINEZ
FEDERICA
O que você acha?
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MARTINEZ
Por que você não cai fora dessa confusão?
FEDERICA
O time agora é minha vida. É questão de sobrevivência. Eu não
vou desistir.
MARTINEZ
OK. Vamos lá, então.
INT. VESTIÁRIO/CT BRASIL FC – NOITE.
REYNA e LUCAS ainda estão no vestiário. LUCAS está vestido, penteando-se de
olho num espelho fixado na porta do armário metálico. REYNA não aparece
ainda.
LUCAS acaba de pentear-se e fecha o armário.
Só então REYNA aparece: está vestido inteiramente de branco. Pega a mala
pequena de médico.
LUCAS
Por que Carlão odeia tanto você?
REYNA
A lista de razões é grande, Ed. Quer ouvir tudo ou só o mais
importante?
LUCAS
Três está de bom tamanho.
REYNA
Comi a filha dele.
A casada?
Tem outra?
LUCAS
REYNA
LUCAS
Você é maluco. Totalmente insano, cara. O cara é coronel do
Exército. Vingativo, mau feito o rabudo.
REYNA
Estou defecando e andando para a patente dele, Ed. Sargento,
coronel ou general é tudo a mesma merda.
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O que mais?
LUCAS
REYNA
Além do fato de que adoro fumar e beber? E de brigar com os
juízes? E de sair na balada?
LUCAS
Acabou ou tem mais?
REYNA
Comi a namorada dele também.
LUCAS
Meu Deus! A dinamarquesa?
REYNA
Péssima de cama. Ela me contou que o pinto do Carlão tem
menos de seis centímetros. Em posição de sentido.
Jura?
LUCAS (rindo)
REYNA
Eu não vi. Não deu para enxergar.
Os dois caem na risada.
INT. CORREDOR DE HOSPITAL PÚBLICO – NOITE.
Uma fila interminável de doentes aguarda de pé uma consulta médica. É um
pronto socorro. Há gente ferida, seriamente machucada, temporariamente
atendida até chegar ao médico.
REYNA, paciente, toma a pressão de um senhor de idade, que parece
desidratado.
INTERVALO.
PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS.
EXT. SEDE DO CRYSTAL FUND/NOVA YORK – NOITE.
A limusine para diante da entrada de um belo edifício comercial em Manhattan.
O porteiro do prédio abre a porta e FEDERICA sai do carro, acompanhada por
Martinez.
INT. SALA DE REUNIÕES DO CONSELHO/CRYSTAL FUND – DIA.
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A sala de reuniões do fundo americano está cheia. Jornalistas observam tudo
sem interferir, na área disponibilizada para a imprensa (sinalizada por um
galhardete específico: PRESS). O idioma usado na reunião é o inglês. Num
parlatório, conduzindo o encontro, está o presidente do fundo, BUDDY
MARLOWE.
MARLOWE
O afastamento de André Octávio é definitivo. As ações dele vão
ser subscritas no nome de FEDERICA Octávio, de acordo com
documentação apresentada aos conselheiros. Está tudo em
ordem.
CARLÃO
Eu quero comprar as ações de meu sobrinho.
MARLOWE
A hora é essa. Já acertou tudo com a senhora Octávio?
CARLÃO
Se os senhores me derem dez minutos acertamos tudo agora.
Vou pagar um bom preço.
MARLOWE
Vamos fazer uma pausa de 10 minutos. Senhora Octávio?
FEDERICA
Não pretendo vender as ações, senhor presidente. Não é
necessário fazer nenhuma pausa.
CARLÃO
Não há nada pessoal, FEDERICA. Seu negócio não é futebol.
Compro suas ações por 30 milhões de dólares. É um ótimo
preço.
FEDERICA
Não quero vender. E apresento a este conselho moção para tirar
o senhor Carlos Magno da vice-presidência do time.
MARLOWE
(faz sinal para Carlão ficar quieto)
Moção indeferida. A senhora deveria estar mais preocupada em
melhorar os resultados entregues a esse conselho.
IVANOV
O senhor Carlos Magno promete resultados bem melhores.
Proponho que ele assuma o comando do time e não a senhora
Octávio.
19
MARLOWE
Há um rito a cumprir, senhor Ivanov. A senhora Octávio assume
a presidência na vacância do cargo. Em um mês vence o
mandato atual e haverá eleição para eleger o novo presidente.
EXT. AEROPORTO DO GALEÃO/RIO DE JANEIRO – DIA.
Carregando uma mala móvel (de rodinhas), CARLÃO sai da área de
desembarque, recepcionado pelo secretário Madureira, que entrega a ele um
jornal do dia.
CLOSE-UP DA COLUNA ASSINADA DE SOBRENATURAL DE ALMEIDA. Não há
foto do colunista.
Título:
Carlão perde mais uma em Nova York.
MADUREIRA
Saiu hoje, chefe. Aquele filho da puta de novo. Faz sentido o que
ele escreveu?
CARLÃO (lendo, enquanto caminha)
Onde esse filho da mãe arruma essas informações?
MADUREIRA
Só pode ser a italiana.
CARLÃO
Ela não. Não tem peito para fazer isso tipo de coisa. E os árabes?
Já chegaram?
MADUREIRA
Estão no CT da Barra da Tijuca.
INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT DA BARRA DA TIJUCA – DIA.
O campo está ocupado por um jogo de exibição: garotos de 17 anos jogam
entre si, em dois times de camisas diferentes. O treinador das categorias de
base, BONILHA, é o juiz.
Na arquibancada, vários sujeitos com vestimentas tipicamente árabes, de
branco, observam com atenção.
CARLÃO
(em OFF)
Os garotos estão com a papelada em ordem? Acertou tudo com
os pais? Assinaram tudo direitinho?
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MADUREIRA
(em OFF)
Tudo redondo, chefe. Vai dar pra levantar uns dois milhões de
euros. É o melhor lote que a gente já vendeu. Bonilha garantiu
que tem pelo menos dois craques.
VOLTAMOS AO AEROPORTO.
CARLÃO
Mande o dinheiro do Mancini para a viúva. Não gosto de dar
cano em defunto. Bonilha já assumiu?
MADUREIRA (para)
Notícia ruim, chefe. É bom se preparar.
CARLÃO
(suspira, coça o nariz: um tique nervoso)
Qual é a burrice da vez, imbecil?
IMAGENS de Quintero dirigindo um treino no CT do Brasil FC.
CARLÃO
Vocês estão tratando a japa do jeito que eu mandei?
VEMOS imagens de TOMOKO QUINTERO no quarto dela, cheirando duas filas
de cocaína. Ao lado do rosto da mulher, num porta-retratos, uma foto dela e
Quintero juntos, felizes.
MADUREIRA
(em OFF)
Claro, chefe. Ela pressionou o marido de tudo quanto é jeito,
mas a italiana conseguiu convencê-lo a ficar.
VOLTAMOS AO AEROPORTO. Os dois estão tomando café.
CARLÃO
Merda. Fale ao Bonilha para levar os bons para o GALÁTICO
ainda hoje. No BRASIL só ficam os pernas de pau, hein? Corto
seus bagos fora se ficar algum garoto bom de bola para
Quintero. Limpem os registros deles, entendeu?
MADUREIRA
Já fiz isso, chefe. A papelada está toda guardada na sala de
diretoria do GALÁTICO. Cuidei pessoalmente disso. Só ficou
perna de pau para o galego. Além do mais ele só está pensando
na final.
VAMOS NOVAMENTE AO CT DAS CATEGORIAS DE BASE DO BRASIL FC.
21
As imagens mostram uma grande operação de logística: os atletas da base
estão saindo de seus alojamentos, conduzidos por homens uniformizados. A
garotada não parece importar-se com a mudança: está divertindo-se.
Cinco ônibus grandes os aguardam do lado de fora e rapidamente são lotados
pelo grupo de atletas de variadas idades, de 14 a 19 anos.
CARLÃO
(em OFF)
Em quê mais você queria que ele pensasse, energúmeno?
MADUREIRA
(em OFF)
Eu só quis dizer que ele nem perguntou pela base, chefe. Não
vai dar pela falta dos garotos, é isso.
DE VOLTA AO AEROPORTO.
Um carro está esperando os dois. O motorista uniformizado sai e abre a porta
para Carlão.
CARLÃO (entrando)
Esse filho da mãe ainda vai dar trabalho. Avise ao Bonilha pra ter
paciência e esperar. Em um mês eu assumo a presidência e ele
sobe.
ENTRAMOS NO CARRO com eles.
MADUREIRA
Vou falar sim, chefe.
CARLÃO
Acerte uma reunião minha com o Gomide. Amanhã, lá em casa.
Não quero correr riscos. Não admito a hipótese de vitória nossa.
Tudo que eu não preciso é desse título logo agora. A gente tem
que perder dos argentinos.
MADUREIRA
Fique tranquilo. Nós vamos perder. (pausa) Ele está esperando
você na Liga, chefe. Agora.
MOTORISTA
Para a Liga, doutor Carlão?
CARLÃO
E rápido. (a Madureira) Outra coisa. Os olheiros devem ser
orientados para levar os garotos bons de bola para o GALÁTICO
22
a partir de agora. De vez em quando manda um melhorzinho
para Quintero. (De dedo em riste) De vez em quando.
Entendido, chefe.
MADUREIRA
INT. SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FUTEBOL CLUBE – DIA.
FEDERICA está sentada diante da tela do laptop. Fátima está na frente dela,
numa cadeira de visitante, com um tablet, para anotações.
FEDERICA
Onde está Bonilha?
FÁTIMA
Não foi trabalhar hoje. A mulher dele ligou dizendo que ele está
com diarreia.
FEDERICA
Quero falar com ele amanhã bem cedo. Na primeira hora da
manhã. Quero uma estimativa de faturamento com a venda de
jogadores das categorias de base.
FÁTIMA
Falo com ele em casa hoje mesmo. Mais tarde.
FEDERICA
O pessoal da TV já deu retorno?
FÁTIMA
Já. O percentual deles nos naming rights vai ser de 5%. A parte
do leão é nossa. NELSON já está mantendo contato com o
patrocinador.
FEDERICA
Qual é a estimativa de faturamento?
FÁTIMA
Dez milhões de dólares ano.
Só isso?
FEDERICA
FÁTIMA
Foi o que ele disse.
FEDERICA
Está muito pouco. Diga a ele que eu quero o dobro.
23
Ele vai chiar.
FÁTIMA
FEDERICA
Provavelmente ele e Carlão estão ficando com um bom pedaço.
Que tirem a diferença da parte deles. Marque uma reunião com
a cervejaria. E não chame Nelson.
INT. CORREDOR/CT BRASIL FC – DIA.
José Roberto Quintero caminha pelo corredor que dá acesso à sala de
entrevistas coletivas. Ao lado dele, BRUNO DE FARIA, assessor de imprensa do
time.
BRUNO
Seja sempre direto e procure não fugir de nenhuma pergunta. Se
achar que não deve responder, diga que não irá responder. E
passe para a próxima.
QUINTERO
Nesse caso, prefiro olhar para você. Você intervém e passa para
o próximo. Combinado?
BRUNO
OK.
Bruno abre uma porta.
INT. SALA DE IMPRENSA/BRASIL FC – DIA.
Os dois entram direto atrás de uma mesa. Ao fundo, de frente para os
jornalistas, um painel com as marcas dos patrocinadores (destaque para o fundo
americano). Dois microfones sob a mesa, além de copos e garrafas de água
mineral.
Bom dia, amigos.
BRUNO
QUINTERO
Bom dia.
TODOS (uníssono)
Bom dia.
Depois que os dois assentam-se, o PONTO-DE-VISTA é sempre na perspectiva
de Quintero ou de Bruno.
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VEMOS os repórteres fazendo as perguntas, olhando para CAM. Vê-se que a
sala está cheia de jornalistas, refletores de TV jogando luz nos dois
entrevistados etc.
REPÓRTER UM
A coluna de Sobrenatural de Almeida noticiou que você resistiu a
assumir o cargo de treinador.
QUINTERO
(em OFF)
Fico apenas até a final. Vou ajudar a contratar o novo técnico e
volto para a Europa.
REPÓRTER TRÊS
O jogo vai ser daqui a duas semanas. Você acredita que esse
tempo é suficiente para seu entrosamento com o grupo?
QUINTERO
Eu acompanhei de perto o trabalho de Mancini. Os jogadores me
conhecem bem. Não vai haver problema.
REPÓRTER TRÊS
O que muda com você no comando temporário do time?
QUINTERO
Só o nome do treinador. Vou manter o desenho tático de
Mancini.
REPÓRTER DOIS
Na final da Liga Sul Americana e na próxima temporada?
QUINTERO
Já disse que só fico duas semanas como treinador. Não existe
tempo hábil para fazer mudanças táticas profundas. Não gosto
de jogar em contra-ataques, coisas que os italianos fazem muito
bem. Mas é assim que vamos jogar contra o Arsenal Juniors. Foi
assim que chegamos à final.
EXT. SEDE/LIGA NACIONAL DE CLUBES/RIO DE JANEIRO – DIA.
O carro de Carlão para diante de um edifício imponente, na Barra da Tijuca. Ao
sair, Carlão observa que há um pequeno tumulto na entrada do prédio: o
jogador italiano DI PIETRO está cercado por muitos fãs.
Ele é o mais popular jogador do Brasil FC, zagueiro talentoso, carismático,
capitão do time. Paciente, ele assina a todos os pedidos de autógrafo. Carlão
entra rapidamente e é seguido por Di Pietro, que consegue escapar dos fãs
com agilidade.
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INT. PORTARIA/EDIFÍCIO DA LIGA NACIONAL – DIA.
Carlão e Di Pietro diante do elevador, que ainda não chegou.
CARLÃO
O que o traz aqui, Di Pietro? Veio falar comigo?
DI PIETRO
(com sotaque italiano)
Precisamos ter uma conversa, Carlão. Você está com tempo? É
urgente.
O elevador chega e os dois entram.
INT. ELEVADOR – DIA.
No elevador apenas os dois. Carlão aperta o botão que indica o vigésimo
andar.
CARLÃO
Desembucha. Estou com compromisso marcado.
Di Pietro aperta o botão que trava o elevador.
DI PIETRO
Mancini era meu amigo.
E eu com isso?
CARLÃO
DI PIETRO
Eu sei do acordo que vocês dois tinham.
CARLÃO
Não sei do que você está falando.
DI PIETRO
Ele levava comissão pela venda dos garotos das divisões de base
e fazia vista grossa para seus negócios pessoais.
CARLÃO
Vá direto ao assunto. O que você está querendo?
DI PIETRO
Tenho muita liderança entre os jogadores. Posso desestabilizar o
novo treinador. Sei que você queria colocar Bonilha lá e não
conseguiu. Ajudo você a derrubar Quintero.
26
CARLÃO
E o que você quer em troca?
DI PIETRO
Vou largar o futebol depois da final. Eu assumo o lugar de
Bonilha. E as comissões, naturalmente. Continuamos a tocar sua
mina de ouro. Bonilha sobe para o time principal. Todo mundo
fica feliz.
Carlão destrava o elevador e estende a mão para Di Pietro.
CARLÃO
Negócio fechado.
INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT BRASIL FC – DIA.
É bem cedo. Os jogadores estão reunidos no meio do campo, formando uma
meia-lua, em torno do preparador físico, Jaime Santos.
Quintero e FEDERICA (ela vestida com o abrigo do time, usando tênis) aproximam-se e
dão a volta, ficando ao lado de Santos.
QUINTERO
Bom dia, pessoal. A doutora FEDERICA gostaria de conversar
com vocês. (a FEDERICA) Fique à vontade, doutora.
JOGADORES (uníssono)
Bom dia.
FEDERICA
Bom dia, rapazes. Não vou tomar muito o tempo de vocês. Mas
quero dar algumas notícias importantes.
DI PIETRO (debochado)
E aí? Levou um pé na bunda do maridão?
O grupo cai na risada.
FEDERICA (séria,)
Não confunda informalidade com intimidade,
Mantenha-se em seu lugar ou vá embora.
Di
Pietro.
Desafiador, Di Pietro levanta-se e vai embora.
QUINTERO
Volte e desculpe-se com a senhora presidente. Você não tem
permissão dela para ir embora.
27
Di Pietro faz um gesto de enfado com a mão e segue andando.
QUINTERO
Você está multado em 50% de seu salário por indisciplina. Se
sair dessa reunião sem autorização vai ser emprestado de graça
para um time de segunda divisão.
DI PIETRO
E o que vocês vão dizer para a torcida e para a imprensa?
QUINTERO
Que você é um idiota absolutamente prescindível. Não vai ser
novidade para ninguém, acredite.
DI PIETRO volta e assenta-se, enfurecido.
QUINTERO
Doutora FEDERICA. (gesto com as mãos sinaliza: continue)
FEDERICA
O presidente Octávio afastou-se em definitivo e eu estou no
lugar dele. Vou cuidar pessoalmente do futebol profissional.
Conto com vocês para sermos campeões da América do Sul.
LUCAS
Falo por mim mesmo, presidente. O grupo está determinado e
unido. Vamos ganhar esse título e dedicá-lo a Mancini, que nos
trouxe até aqui. Perdemos o campeonato nacional na reta final,
mas aprendemos as lições.
Posso falar?
DI PIETRO
QUINTERO
Pode. Mas se ainda sobrou algum juízo em sua cabeça oca
convém ficar de boca fechada.
Di Pietro fica quieto, visivelmente contrariado. REYNA chega correndo, com as
chuteiras na mão.
REYNA
Desculpe o atraso, Presidente, José Roberto, Jaime.
FEDERICA
Não há problema, REYNA. Sente-se e fique à vontade.
REYNA senta-se.
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FEDERICA
Cada um de vocês vai ganhar 300 mil dólares de premiação se o
título for nosso. Titulares e reservas.
Assovios e comemoração dos jogadores.
FEDERICA
Essa premiação vai ser feita em caráter pessoal como presente
de despedida de meu marido. Nossas metas são o campeonato
nacional e o título de campeão mundial interclubes, em
dezembro. Façam a parte de vocês, que nós faremos a nossa.
FEDERICA sai, aplaudida pelo grupo. Di Pietro é o único que não bate palmas.
INTERVALO.
PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS.
INT. SALA DE CARLÃO/LIGA NACIONAL – DIA.
Carlão entra na sala ampla e bem decorada e Gomide, sentado numa poltrona,
lá continua. Gomide, 65 anos, árbitro famoso aposentado, afeminado, diretor
da Comissão de Arbitragem da Liga, está tomando uísque com gelo.
CARLÃO
Gomide, meu amigo. Devo um pedido de desculpas. Fiquei preso
no trânsito.
GOMIDE
O que é isso, meu presidente? Não esperei quase nada. Fez boa
viagem?
CARLÃO
Boa sim. E a família?
GOMIDE
Dona Celeste está reclamando que o amigo sumiu.
CARLÃO
Passo lá amanhã pra tomar aquela sopinha. Vamos direto ao
ponto, Gomide. Meu dia vai ser cheio. Falou com o chileno?
GOMIDE
Foi mais fácil do que eu pensava. Ele foi bem receptivo.
CARLÃO
Ótimo. Mas houve uma mudança de planos. Agora vamos perder
e não ganhar.
GOMIDE
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Perder? Não entendi.
CARLÃO
Não precisa entender. Dobre o valor do presente. Quero ter
certeza de que os argentinos vão ganhar aquela final.
GOMIDE
Minha comissão também dobra?
CARLÃO
Deixe de ser guloso. O sujeito é de confiança?
GOMIDE
Absoluta. Ponho a mão no fogo por ele.
CARLÃO
Se o Brasil ganhar a final contra aquele time de Buenos Aires
você vai queimar inteiro no fogo do inferno, Madame. Garanto
isso.
INT. SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FC – DIA.
A música é LIFE IS LIFE, da banda pop austríaca OPUS (1984) e entra janela à
dentro na sala de FEDERICA.
Atraída, ela vai até a janela e olha na direção do campo principal, onde estão
os jogadores. Sorrindo, fica observando a brincadeira comandada por Quintero:
começou o aquecimento, de forma bem descontraída.
INT. CAMPO DE TREINO/CT BRASIL FC – DIA.
As arquibancadas do campo principal do CT do Brasil FC estão lotadas de
torcedores.
Nos alto-falantes, em volume alto, a música da banda OPUS dá o tom do
aquecimento dos jogadores. Como no famoso vídeo de aquecimento de
Maradona no NÁPOLI (http://www.youtube.com/watch?v=4vashrNoXTE), VEMOS os
jogadores aquecendo-se antes de começar o treino.
REYNA, em substituição a Maradona, é quem faz acrobacias e malabarismo
com a bola, dança se aquecendo, brincando, divertindo-se como uma criança.
A torcida aplaude com entusiasmo e dança também.
Uma cena deliciosa, que dura um minuto inteiro.
PLANO DE CONJUNTO mostra FEDERICA na janela, na perspectiva de quem
está no campo.
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EXT. CENTRO DE TREINAMENTO BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA/RIO – DIA.
FEDERICA está saindo de carro (no Mini Cooper). Com um sinal de cabeça
cumprimenta o porteiro e ganha a avenida bem arborizada com rapidez.
INT. CAFÉ EM IPANEMA – DIA.
FEDERICA entra e vai direto para a mesa em que Isabela está tomando um
suco de laranja. Isabela levanta-se e trocam um beijo carinhoso.
FEDERICA
Tudo bem com você?
ISABELA
De acordo com o previsto. Carlão ligou para meu pai fazendo
ameaças. O sujeito é um gangster.
FEDERICA
Um gangster vaidoso. Se alguém divulga uma derrota dele,
qualquer derrota, ganha um inimigo para a vida toda.
ISABELA
Meu pai tem a maior coleção de inimigos do Rio de Janeiro. Um
a mais não vai fazer muita diferença.
FEDERICA
O que você queria me dizer?
ISABELA
Bonilha está plantando notícias desabonadoras sobre José
Roberto.
FEDERICA
(faz sinal a um garçom, apontando o suco de Isabela)
Que coisa. Nunca imaginei que ele desceria tão baixo.
ISABELA
Já cansei de falar que ele não presta. Estou preparando uma
série sobre a exportação de pé de obra. Ele, Carlão e Mancini
são sócios num time de fachada, GALÁTICO.
FEDERICA
Mancini também? Tem certeza?
ISABELA
Vou provar. Mas não quero levantar a lebre antes de ter um
quadro completo. Aquele sujeito da TV também tem ligação com
essa máfia.
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Ele ou a TV?
FEDERICA
ISABELA
As pessoas físicas dos dois lados.
FEDERICA
Às vezes chego a pensar que você acredita nessas teorias de
conspiração, Bel.
ISABELA
Sou jornalista. Todo bom repórter acredita. Você não vai mais ter
notícias de Bonilha. Ele sumiu.
FEDERICA
Ficou melindrado por que não o escolhi como técnico?
ISABELA
Se minhas fontes estão certas ele é cumplice de Carlão no
comércio de pé de obra. Você acompanha as divisões de base?
FEDERICA
Não. Essa área era de Carlão. (pausa) Você acredita que Di Pietro
comprou uma briga comigo, sem mais nem menos?
ISABELA
Acredito. Minha fonte na Liga disse que ele esteve ontem lá, com
Carlão. Isso não sugere nada a você?
FEDERICA
Coincidência. Deve ter ido resolver algum assunto burocrático.
Vai largar o futebol depois da decisão com os argentinos.
ISABELA
Se você continuar com essa ingenuidade Carlão detona você na
eleição lá em Nova York.
FEDERICA
Di Pietro quer começar carreira de treinador nas divisões de base
da seleção brasileira. Já me pediu ajuda.
ISABELA
Pois eu acho que aí tem coisa. Fique esperta com Di Pietro. Ele
não tem escrúpulos. Carlão vai tirar proveito do interesse dele.
Pode apostar.
FEDERICA
Menos, Bel. O que ele pode fazer?
32
ISABELA
Pode prejudicar vocês na decisão da Liga Sul Americana.
FEDERICA
E dar um tiro no próprio pé? Ele vai é procurar sair em alto
estilo.
INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT BRASIL FC – DIA.
Os vinte e cinco jogadores foram divididos em cinco grupos, um grupo na área
central e os demais nos cantos do gramado. É um treinamento físico: cada
grupo faz um tipo de exercícios, com a orientação do preparador físico e dos
assistentes dele.
Pelé está do lado de fora, de pé, no local destinado à comissão técnica. Ele
está com um celular na mão, na função rádio. Seguem imagens do treino, até
o final da fala de Sobrenatural (em OFF).
LOCUTOR DE RÁDIO
(em OFF)
Se você quer saber a verdade sobre tudo o que acontece no
mundo bola tem um encontro marcado com SOBRENATURAL DE
ALMEIDA.
Música de filme de suspense, terror, como se o personagem fosse um
ser de outro mundo.
SOBRENATURAL DE ALMEIDA
(voz gutural, grave, visivelmente trabalhada em estúdio de som)
Está chegando a hora da verdade para o novo treinador do Brasil
FC, José Roberto Quintero. Num episódio dramático, o time
perdeu o técnico Mancini a duas semanas de enfrentar o Arsenal
Juniors de Buenos Aires, sete vezes campeão sul-americano.
José Roberto é gente boa, inteligente, talentoso, de
personalidade forte. O sucesso de Quintero será o sucesso da
renovação e profissionalização no futebol brasileiro.
Pelé desliga o rádio e continua observando o treino.
NO PONTO DE VISTA DELE, VEMOS que Quintero faz sinal e REYNA deixa o
grupo que integrava, correndo na direção dele.
Os dois saem do gramado e sentam-se nas arquibancadas, para conversar com
privacidade. PLANO APROXIMADO de Di Pietro, prestando atenção na saída de
REYNA.
INT. ARQUIBANCADA DO CAMPO PRINCIPAL/CT BRASIL FC – DIA.
33
Quintero e REYNA sentam-se. O atleta ainda respirando com dificuldade.
QUINTERO
E Samuel? Não vai mais aparecer para assistir aos treinos?
REYNA
Nesses dias não. Ele começou uma tournée com a banda.
QUINTERO
A gente precisa conversar. Conversa séria.
REYNA
Um filho da puta esse Di Pietro. Sujeito mais vulgar.
QUINTERO
A guerra entre FEDERICA e Carlão foi declarada. O clima vai
fechar. Di Pietro já escolheu o lado dele. Você acha que ele puxa
muita gente?
REYNA
Ele tem liderança, Ed.
QUINTERO
Fique na sua. Não quero aumentar o tamanho da encrenca.
Deixe Di Pietro comigo. Mas não é disso que eu preciso falar
contigo.
REYNA
Você assinou por um ano?
QUINTERO
Não. Eu só fico até a final.
REYNA
Você vai embora mesmo se a gente ganhar?
QUINTERO
Volto para a Europa de qualquer jeito. Mas não é disso que eu
queria falar.
Carlão?
REYNA
QUINTERO
É. Se a gente perder a final ele vai assumir. FEDERICA não se
sustenta se o Brasil for vice mais uma vez.
REYNA
Um time que tem menos de um ano? Conta outra.
34
QUINTERO
A coisa é séria. Não é hora de brincar. Eu só fiquei porque
FEDERICA me convenceu de que tudo pode ir para o vinagre.
Vamos entregar tudo para aquele safado?
REYNA
Não se depender de mim, Ed.
QUINTERO
Vai depender, Leo. Eu estou avaliando a necessidade de afastar
Di Pietro do grupo. Não quero esse sujeito armando pelas
minhas costas.
REYNA
Não seja precipitado, Ed. Se você não vai ficar, não faz sentido
detonar o sujeito.
QUINTERO
Não resolvi nada ainda. Eu só sei que tenho que enquadrar esse
camarada se quiser ser campeão. O grupo tem que estar na
minha mão e ele vai questionar minha liderança.
REYNA
É complicado, Ed. Já está questionando. E bem ou mal ele tem
prestígio com o grupo.
QUINTERO
É aí que você entra.
REYNA
(agora sério)
Não estou gostando do rumo dessa conversa, Ed.
QUINTERO
Preciso que você tire uma licença no hospital e fique 100%
focado na final. Preciso de um comportamento impecável seu.
Nada de bebidas, de cigarros nem de baladas. Duas semanas,
Leo. É só isso que eu peço.
REYNA
Só isso, Ed? Não quer uma cirurgia para restaurar minha
virgindade?
QUINTERO
O que está em jogo não é só minha liderança. É um projeto
sério. Algo maior do que eu e você. Seja generoso, abra seus
olhos e enxergue mais além.
35
REYNA (sério)
O nome do que você está fazendo é muito feito, Ed.
QUINTERO
Não estou fazendo nenhum tipo de ameaça. Faço um apelo ao
sujeito decente que sei que você é. Fale com FEDERICA se não
acredita em mim. Você tem essa liberdade.
REYNA (suspirando)
Não é tão simples. Estou concluindo a residência. Não existe
licença nem férias em residência médica.
QUINTERO
Estive ontem com o diretor do hospital e expliquei o que está
acontecendo. Ele libera você até a final. Depois você volta e
termina a residência.
REYNA (ri)
Você é mesmo um filho da puta, Ed. Vou pensar com carinho e
até a noite eu dou um retorno a você.
Quintero oferece a palma da mão levantada e REYNA bate na mão dele, num
gesto de camaradagem e união.
O treinador faz sinal ao assistente LUCIANO SABINO, que usa um apito e
interrompe o treino físico.
Pelé entra no gramado, dirigindo um carrinho (dos usados no golfe), que carrega
os coletes amarelos do time titular.
Os jogadores titulares aproximam-se dele, pegam os coletes e vestem-se.
O técnico Quintero assume o papel de juiz e dá início a um coletivo. REYNA
começa o treino na reserva.
Imagens de jogadas num coletivo. Na trilha sonora entra a música-tema do
antigo canal 100, NA CADÊNCIA DO SAMBA (QUE BONITO É), de Waldir
Calmon (http://www.youtube.com/watch?v=5uCPo6p97Pw).
As imagens do coletivo seguem até Quintero, ao som da música de Waldir
Calmon, seguem até a expulsão de Di Pietro por Quintero, que interrompe o
treino uma ou duas vezes, orientando os jogadores.
Di Pietro entra duramente num jogador do time reserva e é repreendido com
gestos por Quintero.
QUINTERO
Vá com calma, Di Pietro. Não quero ninguém machucado.
36
REYNA faz uma jogada de efeito, dando um drible em Di Pietro. Os torcedores
aplaudem.
O treino segue e, numa jogada mostrada em CAM lenta, DI PIETRO dá uma
entrada criminosa em REYNA, que parece ter uma contusão séria.
PLANO APROXIMADO mostra como o rosto de REYNA transforma-se numa
máscara de dor: jogado para cima, ele cai em cima do próprio braço. O médico
(DR. FÁBIO) entra em campo e REYNA é levado para atendimento fora do
campo. Di Pietro é chamado para uma conversa com QUINTERO: VEMOS que
Quintero “expulsa” o zagueiro titular de campo.
Di Pietro não parece dar importância. Sai sem olhar para REYNA e para
Quintero. Quintero faz sinal ao preparador físico, que se aproxima dele.
Quintero fala algo no ouvido de Jaime e o preparador físico segue Di Pietro.
Depois, aproxima-se de REYNA, que está sentindo muitas dores no braço
lesionado.
QUINTERO (ao médico)
É grave, doutor?
DR. FÁBIO
Acho que o braço está quebrado. Vou tirar um raio X para
confirmar.
REYNA (a Quintero)
Depois eu acerto as contas com aquele filho da puta!
QUINTERO
Esqueça aquele sujeito. Ele não entra mais aqui.
INT. VESTIÁRIO DO CT BRASIL FC – DIA.
Di Pietro está tomando uma ducha. Quintero chega.
QUINTERO
Pegue suas coisas e saia do CT. Você vai cumprir os últimos dias
de em casa. Está proibido de entrar em qualquer dependência do
clube.
DI PIETRO
Vamos ver quem vai ficar em casa.
QUINTERO
Pessoas como você fazem mal ao futebol. Saia logo. Se estiver
aqui quando o grupo chegar, eu mando rescindir seu contrato
por justa causa. Aí você não recebe um centavo da indenização
nem a gratificação que nós estamos dispostos a dar.
37
INT. ARQUIBANCADA/CT BRASIL FC – DIA.
O técnico usa o apito e sinaliza que o treino acabou. Os jogadores começam a
sair de campo. Os torcedores levantam-se e começam a sair das
arquibancadas.
INT. ENFERMARIA DO CT BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA – DIA.
Leo REYNA está sentado, com o braço estendido numa mesa. O braço dele
está fixado numa tala e enfaixado.
REYNA
Não vai ser preciso engessar?
DR FÁBIO
Não houve fratura. Essa tala vai ser suficiente. Fique com o
braço em repouso até amanhã cedo. Durma direito hoje.
Amanhã consigo uma proteção e você pode fazer treinamento
físico. Jaime vai fazer um trabalho específico contigo.
REYNA
OK, doutor. Posso ir para o vestiário? O clima lá deve estar
quente.
DR FÁBIO
Nada de banho hoje. Pode.
INT. VESTIÁRIO DO BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA – DIA.
Os jogadores estão todos no vestiário: uns tomam ducha, outros estão na
piscina térmica e outros na banheira. Clima descontraído, apesar do incidente
com Di Pietro.
Quintero está de sunga, sentado numa cadeira de descanso, ao lado de LUCAS.
REYNA entra e é cumprimentado.
PAULO CESAR
E aí, doutor? Tudo em cima?
REYNA
Beleza, Ed. Não quebrou nada.
LUCIO
(dá um abraço em REYNA)
Vaso ruim não quebra fácil.
INTERVALO.
PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS
38
VOLTAMOS AO VESTIÁRIO. CONTINUA A CENA ANTERIOR.
REYNA
Pessoal! Atenção! Tenho um comunicado oficial a fazer.
PAULO CESAR
Comunicado oficial. A coisa promete.
LUCIO
Será que ele fez exame de fezes e descobriu que está com
vermes?
Risadas gerais.
REYNA
Vou ficar sem fumar e sem beber até o jogo com Los Hermanos.
E vou tirar licença no hospital. Fico hospedado aqui no CT. Mas
vejam bem: parar de transar, não! Vou me virar com O Violão.
Risadas gerais. O massagista Violão é negro, tem quase 130 kg. Aparece de
repente.
Alguém chamou?
VIOLÃO
PAULO CESAR
Tu já compraste lingerie, Violão?
Mais risos.
VIOLÃO
O que é isso, rapaz? Está me estranhando? Lingerie eu só uso
quando vou passar o fim de semana com a sua mãe.
Outra rodada de risadas. Violão sai.
QUINTERO
A notícia é ótima, Leo. Para quando é o casamento? Quero ser o
padrinho.
Mais risadas.
LÚCIO
Ninguém vai convidar Di Pietro? Aliás, onde ele está?
Ninguém ri.
QUINTERO
39
Ele foi para casa, Lúcio. Vai ficar lá até acabar o contrato dele.
Não joga mais no Brasil.
LÚCIO
Como assim? Ele é o nosso capitão.
QUINTERO
Não é mais. O capitão agora é LUCAS.
DURVAL (a Quintero)
Você está querendo entregar o ouro para os argentinos? Não
estou entendendo você, José Roberto.
QUINTERO
Di Pietro foi suspenso. É bem fácil entender.
DURVAL
Você está levando as coisas para o lado pessoal, José Roberto.
LUCIO
Está mesmo. Não podemos ficar sem nosso xerife contra o
Arsenal Juniors. Ele é metade da defesa, todo mundo sabe.
Pense no que é melhor para o time. Reconsidere.
QUINTERO
Di Pietro não me deixou alternativa. É assunto encerrado. Vamos
colocar uma pedra nesse assunto e seguir sem ele.
DURVAL
Não concordo com isso. Você está sendo mesquinho e vingativo.
Um péssimo jeito de começar como técnico.
LUCIO
Eu também não aceito isso. Di Pietro tem que jogar.
O clima está tenso.
REYNA (a Lucio)
Não é hora de complicar as coisas, Ed. (a Durval) Deixa disso, Ed.
Vamos nos unir senão vamos perder outra final. O grupo tem
que estar fechado com o treinador. O xerife é Quintero, não Di
Pietro.
O grupo está quieto. Olham-se uns para os outros.
QUINTERO
40
Todos me conhecem. Sou um sujeito ponderado, justo. É ótimo
que essa conversa aconteça agora. Quero que todos fiquem à
vontade para opinar. Absolutamente à vontade.
LUCAS
Não foi a primeira vez que Di Pietro entrou para machucar um de
nós. Não se esqueçam de que Maurinho ficou afastado oito
meses por conta da violência dele.
MARCELO
LUCAS está certo. Mas acho que Leo não precisava ter dado
aquele drible em cima do italiano.
REYNA
Nós estamos em casa, Ed. É treino.
LUCIO (a Marcelo)
Mandou bem, cara. Treino de casa cheia. Leo desmoralizou Di
Pietro. Foi sacanagem dele.
REYNA (a Lucio)
Não foi essa a intenção, Ed. Se for preciso me desculpo com ele.
Na hora estava querendo matar esse italiano, mas a raiva já
passou.
QUINTERO (a Marcelo)
Você acha injusta a punição a Di Pietro?
MARCELO
Eu acho que quem tem que decidir esse tipo de coisa é o
treinador e a direção. Não quero entrar no mérito.
QUINTERO
Mais alguém pensa como Durval e Lucio?
Ninguém fala. Lucio e Durval procuram apoio, mas ninguém se manifesta.
QUINTERO
Durval e Lucio. Fiquem à vontade para procurar outro clube.
Minha decisão não tem volta.
DURVAL
Ficou maluco? Quer desmontar o time?
QUINTERO
Prefiro saber com quem eu posso contar. É bom que todos
saibam que Carlão não é bem bem-vindo a esse vestiário. Nem à
sala de FEDERICA Octávio.
41
LUCIO
Eu estou fora. Vamos embora, Durval.
QUINTERO
Se alguém mais não está satisfeito, que fique à vontade para ir
com eles. Não vou criar dificuldade para ninguém sair. Prometo a
vocês.
Ninguém fala nada. Durval e Lucio pegam suas sacolas e vão para uma área
mais isolada do vestiário.
REYNA
O que acontece aqui, agora vai ficar aqui. As comadres
fofoqueiras meninas de recado de Carlão estão fora.
QUINTERO
(a Durval e a Lucio)
Se alguma coisa do que aconteceu aqui vazar para a imprensa,
vou deixar vocês na geladeira um bom tempo. Está entendido?
Sejam corretos e consigo a transferência de vocês para bons
times na Europa.
LUCIO
(se reaproxima)
Não vamos deixar vocês na mão. Vamos, Durval?
DURVAL
Claro que não. Merda! (começa a rir e aceita o abraço de REYNA)
Fofoqueira é sua mãe (diz sem agressividade)!
Todos se abraçam: termina a crise.
INT. SALA DE QUINTERO/CT BRASIL FC – NOITE.
Quintero está diante da TV, acompanhado pelos integrantes da equipe técnica.
Parecem cansados, depois de muitas horas assistindo a jogos do adversário na
final que está próxima.
QUINTERO
O que vocês acham?
LUCIANO
O time deles é forte demais. Não vai ser fácil. Eles jogam fora de
casa melhor ainda.
ALBERTO
Os caras tem um preparo físico de primeira qualidade. Sabem
tocar a bola. Atacam em bloco.
42
QUINTERO
Qual é o ponto fraco deles?
LUCIANO
Não vi nenhum ponto fraco.
ALBERTO
Os caras jogam no ataque o tempo todo, marcam por pressão.
Defendem em bloco. É um esquema que cria muitas dificuldades
para nós.
QUINTERO
Isso não significa que eles não tenham ponto fraco. Vamos ver
todos os jogos de novo.
ALBERTO
De novo? Não acredito. Você não tem família, José Roberto?
Tenho que dormir em casa.
LUCIANO
Eu estou morto de cansado. Vamos ver essas fitas amanhã.
QUINTERO
Vão vocês. Eu não consigo dormir enquanto não descobrir como
neutralizar esse time.
ALBERTO
Eles jogam juntos há cinco anos. Vieram juntos das divisões de
base. Não se esqueça disso. Os caras são amigos, unidos até
debaixo d’água.
QUINTERO
Todo time tem ponto fraco. O deles também tem. E eu vou
achar. Bom sono. (pausa) Luciano. Dá uma passada lá em casa e
avise TOMOKO que eu vou dormir aqui.
LUCIANO
Já estou vendo. Vai sobrar pra mim.
QUINTERO
Relaxe. Ela é japonesa. Jamais vai discutir com você.
Quintero pega uma pilha de sete fitas e prepara-se para rever os jogos do
Arsenal Juniors.
Abre uma embalagem portátil com diversos comprimidos coloridos e toma três
deles, de cores diferentes.
43
Fusões seguidas: a imagem do relógio com os ponteiros avançando pela noite
(até 10h do dia seguinte) mostram a evolução do tempo.
EXT. RESTAURANTE/LEBLON/RIO DE JANEIRO – NOITE.
Quintero, Lucas, Durval e REYNA estão beliscando aperitivos enquanto não
chega o jantar. REYNA usa uma proteção no braço lesionado.
QUINTERO
Vamos dar o maior susto da vida daqueles caras. Vão ter uma
surpresa completa.
REYNA
Que tipo de surpresa, Ed?
DURVAL
Sabe que eu andei pensando nisso também?
QUINTERO
Eles estão contando que a gente jogue como sempre joga,
contra qualquer time, em casa ou fora.
LUCAS
Na defesa, atraindo o time deles para o nosso campo e armando
contra-ataques rápidos.
REYNA
Nosso time só joga assim, Ed. Qual é o problema? Ganhamos de
todo mundo jogando assim.
DURVAL
De quase todo mundo. O Flamengo foi campeão em cima da
gente, não se esqueça.
LUCAS
Aquilo foi um acidente. Em 10 jogos nós ganharíamos nove.
QUINTERO
Perdemos exatamente o que não podíamos perder. Não adianta
ganhar 10 e perder o único que realmente vale a pena.
DURVAL
Futebol é imprevisível. Naquele dia nada deu certo pra gente. Já
entramos derrotados em campo. Vou carregar essa culpa o resto
da vida.
QUINTERO
44
Não vai. Você não teve culpa. Acontece. Esqueça essa estória de
culpa.
DURVAL
Eu falhei no segundo gol deles.
REYNA
Falhar faz parte do jogo, Ed. Faz parte da vida. (a Quintero) Direto
ao ponto.
QUINTERO
Vamos fazer o que CAESER fez com Pompeu em Cartagena.
DURVAL
E o que foi que ele fez?
REYNA
Ataque maciço, de surpresa. Ed. Mandou os arqueiros mirarem
os olhos dos homens de Pompeu. A surpresa é uma arma letal.
LUCAS
Alguém pode me explicar quem é esse tal CAESER?
QUINTERO
E derrotou todos seus inimigos.
LUCAS
Inimigos?
Guerra é foda.
DURVAL
REYNA (a Lucas)
O general romano. O que faturou Cleópatra. Elisabeth Taylor.
LUCAS
O que esse cara tem a ver com futebol?
DURVAL (a Quintero)
A esperteza quando é grande demais come o dono. Acho
arriscado demais.
QUINTERO
CAESER foi o maior estrategista da história. Ele era imprevisível.
Ganhava todas surpreendendo os adversários.
Pode dar certo.
LUCAS (pensativo)
45
QUINTERO
Vai dar certo. Passei 20 horas vendo jogos do Arsenal Juniors.
Eles não sabem se defender. Jogam no ataque porque ninguém
vai pra cima deles.
Nós vamos atacar!
DURVAL
QUINTERO
Eles não sabem se defender. Jogam sempre no ataque. Botam o
rolo compressor para funcionar e marcam por pressão no campo
do adversário. É difícil ganhar deles no contra-ataque.
LUCAS
Temos um esquema tático sólido. Estamos sem perder há um
tempão. Vamos fazer o que a gente sabe fazer bem feito.
Inventar moda agora é loucura.
REYNA
O melhor ataque contra a melhor defesa. É o que eles esperam.
DURVAL
(oferece a palma da mão para Leo)
Vamos abandonar nosso esquema tradicional e jogar no ataque.
REYNA
(levanta-se e bate a mão na palma da mão de Durval)
Genial!
LUCAS
Meu Deus. Vocês não podem estar falando sério. É uma
pegadinha?
QUINTERO
(bate a mão também na palma de Durval)
Leo vai começar jogando. Não vai entrar no segundo tempo.
Vamos com tudo pra cima deles no primeiro tempo. Vamos
matar os caras no primeiro tempo e no segundo tempo vamos
montar o mais terrível ferrolho italiano que o futebol já viu!
LUCAS
Estão todos malucos? Nós não sabemos jogar no ataque!
QUINTERO
Hoje não. Mas temos tempo para aprender.
LUCAS (preocupadíssimo)
Vocês são loucos. Completamente loucos.
46
EXT. ARENA BRASIL FC/RIO DE JANEIRO – TARDE.
Imagens de torcedores chegam ao campo para o grande jogo. Uma visão de
conjunto da majestosa arena de futebol. Imagens de um helicóptero mostram
que as arquibancadas estão quase inteiramente tomadas.
PLANO APROXIMADO do placar luminoso: BRASIL FC 0 x 0 Arsenal Juniors.
INT/EXT. ÔNIBUS/ACESSO ARENA BRASIL/CORREDORES VESTIÁRIOS – DIA.
Uma sequência mostra, sempre na perspectiva dos jogadores, imagens dentro
do ônibus do Brasil FC que conduz os atletas à arena onde vai ser realizado o
jogo com o Arsenal Juniors, de Buenos Aires.
O veículo para e os jogadores começam a sair, saudados como heróis pelos
torcedores que se comprimem para ver seus ídolos de perto. Os jogadores
usam abrigos/uniforme do time; muitos estão com fones de ouvidos. Carregam
suas próprias sacolas com a marca do time. O técnico Quintero está entre eles,
bem como o assistente Luciano e o preparador físico Jaime.
ACOMPANHAMOS os jogadores quando eles entram nas dependências que
levam aos vestiários.
Caminham pelo corredor e são saudados por Carlão, que ignora a expressão
fechada (para ele) dos atletas e da comissão técnica: faz questão de aparecer
para as câmeras de TV que acompanham a chegada do Brasil FC ao vestiário.
Faz menção de entrar após a entrada do último atleta, mas um segurança
barra a entrada dele.
Vendo que está sendo filmado, finge que mudou de ideia e sai acenando às
câmeras de TV: é um cara de pau nato. Imagens dentro do vestiário mostram
os atletas trocando-se, calçando suas chuteiras, colocando as proteções na
canela.
QUINTERO
(em OFF)
Atletas são seres humanos que vivem em condições especiais. A
paixão dos torcedores é irracional. Jogadores são como os
gladiadores de Roma antiga: tornam-se escravos da fama, reféns
da cobrança para uma entrega absoluta dentro de campo. O
esporte transformou-se num negócio que envolve muito
dinheiro.
VAMOS À SALA DE UMA CPI DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. Quintero está de
terno e gravata, falando a um microfone, do púlpito em que falam os
depoentes convocados pela comissão.
47
QUINTERO
Quanto mais contratos publicitários eles tem, menos foco no
futebol os jogadores vão ter; é difícil ajustar as duas agendas.
Não podemos esquecer que a maioria dos jogadores é gente
jovem, em formação. São garotos que nem sempre tiveram uma
boa base familiar e isso faz muita falta quando a fama chega.
NO VESTIÁRIO.
À medida que a fala do treinador menciona a pressão, entram na trilha sonora
as batidas fortes dos corações dos atletas e VEMOS a expressão tensa de todos
eles.
Detalhes mostram como fica o vestiário quando os jogadores estão vestindo-se
para o jogo.
QUINTERO
(em OFF)
Antes de um jogo importante, é enorme a pressão psicológica
que os atletas sofrem. Muitas vezes, é uma pressão desumana e
é muito difícil controlar isso. Há atletas que não suportam o
estresse e sofrem uma espécie de apagão: não conseguem
render bem, paralisados pelo excesso de adrenalina. Há casos
em que a pressão provoca mal estar físico, que muitas vezes
impede o atleta de disputar a partida. Procuro capitalizar a
adrenalina, conversando com os jogadores: é como se fosse um
doping psicológico. Mas há atletas que se tornam extremamente
violentos com a pressão que sofrem da imprensa especializada e
da torcida. Há muito em jogo: a vitória pode consagrar e a
derrota pode abalar a carreira de um atleta. É uma profissão
muito difícil.
INTERVALO
PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS
INT/EXT. VESTIÁRIO/ARQUIBANCADAS/BANCO DE RESERVAS/COMISSÃO TÉCNICA – DIA.
Uma sequência que apresenta o jogo final da Liga Sul Americana. As imagens
se alternam em cinco ambientes diferentes:
1-) Violão e Pelé (filho dele) no vestiário;
2-) jogadores e comissão técnica na área privativa específica que cabe a eles;
3-) torcedores nas arquibancadas;
4-) campo de futebol: SEMPRE em CAM LENTA; foco parcial em quem participa
diretamente da jogada descrita; e
48
5-) cabine da rádio que transmite o jogo . Tensão e desabafo aparecem nos
três primeiros, completando-se com a comemoração a cada gol feito e a
frustração a cada gol sofrido. Na trilha sonora, a transmissão em rádio da
partida, na locução vibrante, emocionante que os radialistas fazem do jogo.
LOCUTOR DE RÁDIO
(em OFF)
Começa a partida na arena Brasil. REYNA começa jogando, o
craque está com fome de bola. O juizão vai autorizar, autoriza e
começa a final da Liga sul americana. Um jogo só, o Brasil FC
precisa vencer, pois o melhor saldo de gols é do Arsenal Juniors.
Empate dá Arsenal Juniors na cabeça. O Brasil tem que ganhar
se quiser ser campeão. Bola na intermediária com REYNA,
lançamento longo para Benitez, avança o meia paraguaio, o
garoto é bom de bola, toca para Dodô, que faz o pivô e encosta
a pelota para o doutor REYNA. E é falta!
IMAGEM DE um argentino (uniforme igual ao do ATLETICO DE MADRID) fazendo falta
em REYNA, em PLANO DE CONJUNTO, CAM LENTA: apenas os dois jogadores
em foco, com a torcida ao fundo, em imagem que não é nítida.
VOLTAMOS a mostrar, sucessivamente, imagens dos quatro ambientes.
LOCUTOR DE RÁDIO
(em OFF)
Falta perigosa contra o gol de Carlos Ramirez! Vamos ver quem
vai bater. Parece que é Durval, mas não. Não é. É ele mesmo.
Leonardo REYNA. E ele vai bater.
IMAGEM DE REYNA chutando em CAM LENTA: bola entra devagar no gol,
estufando as redes.
LOCUTOR DE RÁDIO
(em OFF)
Bateu REYNA e é gol! Gooooollllllllllllllll! REYNA espetacular! É
gol! Gol! Gol! Brasil FC 1, Arsenal Juniors da Argentina, 0.
VIBRAÇÃO NOS AMBIENTES 1, 2 e 3:
Pelé chora de alegria.
Quintero vibra pouco, ao contrário dos outros integrantes da comissão técnica
e dos reservas, que fazem uma grande festa.
Na torcida, parece que todos enlouqueceram: paixão levada ao paroxismo.
LOCUTOR DE RÁDIO
(em OFF)
49
Esse jogo é espetacular, minha gente. Emoção puuuuura na
arena do Brasil FC. O ataque é argentino. Max Lopez carrega a
bola com carinho, passa por Durval, dribla Lúcio, está em
condição de marcar, segura que o gringo é bom de bola, bate
firma na bola e seguuuuuuura LUCAS. Uma defesa extraordinária
do arqueiro carioca. Cobrado o tiro de meta, a recuperação é de
Fred, que segue rápido pela esquerda, tem Josias com ele, mas
prefere Aílton. Corta o zagueirão argentino e recupera a bola o
Arsenal. Galhardo lança em profundidade o artilheiro Mendonza,
que avança sozinho. E é falta!
IMAGEM DA FALTA DE LUCAS, em CAM LENTA: foco nos dois jogadores, com a
torcida ao fundo, desfocada.
CORTA para o juiz mostrando o cartão amarelo.
LOCUTOR DE RÁDIO
(em OFF)
Falta de LUCAS em Mendoza. O quê? Esse juiz é maluco! Cartão
amarelo para LUCAS.
Gritos de revolta nos três ambientes.
GRITOS EM UNÍSSONO
Ladrão! Ladrão! Juiz ladrão!
LOCUTOR DE RÁDIO
(em OFF)
Reiniciado o jogão de bola na Arena Brasil, segue o time
brasileiro, Rafael conduz a pelota com carinho, lança REYNA em
profundidade, ele está sozinho.
IMAGEM DE REYNA EM CAM LENTA, entrando com a bola na grande área
adversária: só ele tem imagem nítida, no foco. Fora de foco, os demais
jogadores.
LOCUTOR DE RÁDIO
(em OFF)
REYNA pode marcar, ele vai marcar, chuta REYNA direto para o
gol e é gol. Gooooooollll. Gol.Gol.Gol. REYNA camisa 14 sacode a
Arena Brasil! Goooooooooooooooooooooooolllllllllll.
Vibração nos três ambientes. Quintero sempre comedido, elegante.
LOCUTOR DE RÁDIO
(em OFF)
E é falta! (EM CAM LENTA: PLANO APROXIMADO) Falta criminosa do
meio campista argentino. Durval está desacordado. Esse
argentino é um criminoso. Não é possível, seu juiz. Nem cartão
50
amarelo para Gutierrez? Aí tem coisa, amigo da Rádio Clube do
Rio de Janeiro. Aí tem coisa.
Revolta nos três ambientes.
GRITOS EM UNÍSSONO
Ladrão! Ladrão! Juiz ladrão! Fora Gutierrez! Fora Gutierrez!
LOCUTOR DE RÁDIO
(em OFF)
É. Não dá mesmo para Durval continuar (CAM LENTA: sai Durval, na
maca; entra Marcos Paulo). Vai entrar ao garoto Marcos Paulo. 30
minutos do primeiro tempo. O Brasil joga no ataque, os
argentinos estão começando a apelar. Esse juiz está dando mole
para os gringos, está mesmo! Entra Marcos Paulo, conduz a bola,
passa Rafael, Rafael de novo a REYNA, vai com vontade o nosso
doutor da bola, toca a Fred, que devolve a REYNA e é falta.
Dessa vez o juizão não pode deixar de marcar. Uma falta
obscena de Gutierrez em REYNA. Mas ele já de pé. Prepara-se
para bater. Mas o que é isso? Lucio está caído na grande área. O
que está acontecendo, meu Deus! Lucio parece desacordado.
Alguém pode explicar o que está acontecendo. Paulinho: é com
você. O que houve com Lucio, meu repórter preferido?
PAULINHO
(repórter, em OFF)
O que houve foi uma agressão do número 10 argentino. Sem
bola ele deu uma cotovelada na cabeça de Lucio. O juiz tem que
expulsar. Um absurdo isso que acontecendo nesse jogo. Mas o
juiz não deu nada! Absolutamente nada, Raul! Nem cartão
amarelo. REYNA vai bater a falta depois que Lucio for retirado de
campo.
A torcida revoltada, apreensiva.
VEMOS Lúcio caído, aparentemente desacordado. Os enfermeiros o colocam na
maca, ele dá sinais de que está grogue.
Sangue sai em grande quantidade da cabeça dele. Dr. FÁBIO estanca o sangue
e faz sinal para QUINTERO: não dá mais para Lucio continuar.
LOCUTOR
(em OFF)
Inacreditável. O juiz não deu nada e Lucio está fora do jogo. O
Brasil vai ter que fazer uma segunda substituição. Entra BELLETI
no lugar de Lucio. Num jogo que pode ter prorrogação. Esse juiz
é perigoso, amigos da Rádio Clube do Rio. Mas continua o jogo
eletrizante. Prepara-se REYNA, toma distância. Vai nessa, doutor.
51
Vamos dar uma lição nesse árbitro pilantra. Doutora FEDERICA:
é preciso recorrer à Liga Mundial. O que está acontecendo hoje
vai entrar para a História do Futebol como uma das páginas mais
negras que já foram escritas. Mas o jogo continua, emoção pura,
vai bater, correu para bola, chutou e é gol. Gol. Gol. Gol.
Goooooooollllll.
Golaaaaaaaaaaaçooooooooo
de Leonardo
REYNA. Três para o Brasil FC, zero para o Arsenal.
PAULINHO
(repórter, em OFF)
Lucio vai ser levado para o hospital. O doutor FÁBIO disse que a
pancada foi fortíssima. Um criminoso esse argentino. Alguém
tem que tomar uma providência.
LOCUTOR
(em OFF)
O Arsenal já recomeçou o jogo. Bola com Benitez, passa Max
Lopez, esse é bom de bola, o Arsenal não se entrega, minha
gente. Cruzamento na grande área, sai LUCAS, a bola sobra para
Max Lopez, ele vai marcar, não marca não. REYNA aparece não
se sabe de onde e tira a bola. Tiro de meta para o Brasil FC.
Algum problema com LUCAS, Paulinho? Estamos no final do
primeiro tempo, só falta uma contusão do goleiro do Brasil. Bola
com você, Paulinho.
PAULINHO
(repórter, em OFF)
Parece que a coisa é séria. LUCAS trombou de frente com Max
Lopez e o argentino também se machucou. Max Lopez está fora,
LUCAS está tonto, parece que vai se recuperar. Já se levantou,
Raul, LUCAS continua no jogo.
LOCUTOR
(em OFF)
Que alívio, torcida brasileira! LUCAS está de pé. Vai continuar.
Não vai. Ele está sendo examinado pelo médico do Brasil. O
doutor FÁBIO faz sinal para Quintero. LUCAS vai sair. E o Brasil
não tem mais substituições. E agora, José Roberto Quintero?
Imagens de Max Lopez saindo carregado na maca e de LUCAS andando com
dificuldade, com ajuda do Dr. FÁBIO.
LOCUTOR
(em OFF)
Uma situação inimaginável. REYNA vai para o gol. Ele está
colocando a camisa de LUCAS. O doutor REYNA vai ser o goleiro
do Brasil. A situação é dramática, pois o time não pode mais
fazer substituições. E acaba o primeiro tempo.
52
INT. CAMPO/ARENA BRASIL – NOITE.
A noite está chegando. Imagens da torcida apreensiva, que sugira problemas
para o Brasil FC.
VEMOS os refletores acendendo-se e o placar eletrônico passa a ocupara a tela
inteira.
Os diferentes placares se sucedem em fusões lentas, que sugerem o
transcorrer do tempo: Brasil FC 3 x 1 Arsenal Juniors. Brasil FC 3 x 2 Arsenal
Juniors. Brasil FC 3 x 3 Arsenal Juniors. Brasil FC 3 x 4 Arsenal Juniors. Brasil
FC 4 x 4 Arsenal Juniors.
Imagens dos torcedores cabisbaixos, indo embora.
INT. VESTIÁRIO BRASIL FC/ARENA BRASIL – NOITE.
FEDERICA e Quintero entram no vestiário vazio. Só REYNA está lá, ainda na
banheira, fumando um charuto enorme. Parece desanimado. Os dois
aproximam-se devagar.
FEDERICA
Quintero me disse que você ainda estava aqui. Fiz questão de vir
agradecer pessoalmente sua dedicação e seu empenho. Além
dos gols, claro.
QUINTERO
Estamos chateados, mas conscientes de que fizemos a nossa
parte. Era impossível ganhar esse jogo hoje. O mundo inteiro viu
o que aprontaram conosco. Uma vergonha.
FEDERICA
Vamos entrar com um pedido de impugnação na Liga Mundial. O
resultado foi manipulado, todo mundo viu.
REYNA
Perdemos. Nada vai mudar isso.
QUINTERO
Vamos embora, Leo. Precisamos descansar. Amanhã você tem
plantão. Meu combinado com o diretor do hospital foi só até
hoje.
REYNA
Termino a residência e fico só aqui. Mas só com uma condição.
Que condição?
FEDERICA
53
QUINTERO
Eu não vou estar aqui quando você terminar a residência. Acerte
direto com FEDERICA.
REYNA (a FEDERICA)
Só renovo contrato se José Roberto ficar, Ed. Se ele for embora,
eu fico com a medicina.
INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS/BRASÍLIA – DIA.
Todos os episódios da minissérie (com exceção do sexto) serão encerrados com
uma cena num ambiente que será identificado por uma legenda como uma CPI
da Câmara dos Deputados.
LEGENDA
Comissão Parlamentar de Inquérito
Câmara dos Deputados/Brasília
2014
O depoimento será sempre feito por Juca KFOURI, no púlpito destinado aos
depoentes da CPI, ao microfone, diante de uma plateia de jornalistas, com
toda a parafernália técnica para transmissão ao vivo.
Cada depoimento vai durar um minuto e meio; vai abordar termas cruciais da
agenda do futebol brasileiro, escolhidos de comum acordo entre o roteirista e o
jornalista JUCA KFOURI.
Episódio II: A PATRIA DE CHUTEIRAS
PARTE I
PRÓLOGO
5 MINUTOS
EXT. CT BRASIL FUTEBOL CLUBE/BARRA DA TIJUCA/RIO – DIA.
REYNA está entrando com seu RANGE ROVER, devidamente liberado pelo
porteiro Feijão, negro, idoso, cabelos brancos.
REYNA
Tudo bem com você, Ed?
FEIJÃO
Se melhorar estraga, Leo. E com você?
REYNA
Existe espaço para melhorar.
FEIJÃO
Já assinou o contrato novo?
54
REYNA
Vou resolver agora. Fique bem, Ed.
FEIJÃO (ao telefone)
Fátima? É o Feijão. Avise à doutora que Leo acabou de chegar.
Ele entra. Feijão fica olhando para ele, com carinho.
INT. RECEPÇÃO/SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FC – DIA.
Fátima coloca o telefone no gancho e entra na sala de FEDERICA.
INT. SALA DE FEDERICA/CT BRASIL FC – DIA.
FEDERICA está servindo-se de café, depois de servir a Quintero.
QUINTERO
Você bebe café como água. Desse jeito nunca vai conseguir
parar de fumar.
FEDERICA (senta-se)
Esse é o menor de meus problemas. Amanhã posso estar fora
dessa cadeira.
QUINTERO
Achei que isso já estivesse resolvido. E o recurso à Liga Mundial?
FEDERICA
Magno tem muito mais influência lá do que eu imaginava.
Perdemos feio.
QUINTERO
Que absurdo. O mundo inteiro viu que fomos garfados.
FEDERICA
Isso não faz a menor diferença na Liga. O secretário executivo
alemão já tinha adiantado que seria difícil ganhar.
QUINTERO
Até que ponto isso vai atrapalhar sua estratégia para conseguir
permanecer na presidência?
FEDERICA
Os americanos não sabem como a Liga Mundial é corrupta. Vai
ficar parecendo que é choro de perdedor. Não estou
propriamente otimista.
QUINTERO
55
Os caras não acompanham futebol na imprensa?
FEDERICA
Nos Estados Unidos ninguém dá importância para soccer
masculino. A imprensa pouco fala nas falcatruas da Liga.
QUINTERO
Quando é que você fica sabendo se fica?
FEDERICA
Magno não conseguiu adiar para o próximo mês, como queria. A
reunião do conselho vai ser amanhã à noite. Vou daqui a pouco
para Nova York.
QUINTERO
Vou torcer por você. De coração.
FEDERICA
Você não vai mesmo mudar de ideia?
QUINTERO
Ainda que eu quisesse não seria possível. Minha saúde está em
primeiro lugar. Não quero definhar como Telê Santana nem
morrer em campo como o pobre Mancini.
FEDERICA
Falei com dois médicos e eles afirmaram que a medicação certa
pode resolver o problema.
QUINTERO
Claro que pode. Mas levando uma vida normal, sem tanta
pressão.
FEDERICA
Eu não pressionaria você. Ninguém pressionaria você aqui no
clube.
QUINTERO
E a torcida? E a imprensa? Sem falar que Carlão tem tudo para
ser presidente. Não. Não dá para ficar como treinador.
FEDERICA
E se eu vencê-lo na assembleia de acionistas?
QUINTERO
Você não vai vencer.
FEDERICA
56
E se vencer?
QUINTERO
Aí voltamos a conversar. Mas não conte com isso. Quero
descansar.
FEDERICA
Que seja o que Deus quiser. (pausa) REYNA já chegou. Você fala
com ele? Resolva isso para mim. Ele só ouve você.
QUINTERO
Vou falar com ele. Mas não se iluda: ele só fala com o
travesseiro dele.
FEDERICA
Convença o travesseiro então.
QUINTERO
Vamos ver. Acho difícil, já que não vou ficar. (levanta-se; estende a
mão para ela) Boa sorte.
FEDERICA
Quando é que você volta para Londres?
Em duas semanas.
QUINTERO
FEDERICA
Você está se precipitando.
QUINTERO
Não quero mais amolação. Ela está irredutível.
FEDERICA
Posso fazer um comentário pessoal?
QUINTERO
Outro dia. Tenho que voltar para casa rápido. Fernando vai ter
prova amanhã. Prometi estudar com ele.
FEDERICA
Sua mulher tem um temperamento difícil.
QUINTERO
Outro dia.
FEDERICA
A ideia de voltar para a Europa é dela?
57
QUINTERO
É. Se dependesse de mim eu ficaria aqui. Mas como diretor
técnico. A pressão é toda sobre o técnico.
FEDERICA
Fique então só como diretor.
QUINTERO
Isso a gente resolve depois da assembleia de acionistas.
Fátima entra na sala.
FÁTIMA
O assistente de seu marido ligou agora há pouco.
FEDERICA
André foi internado?
FÁTIMA
Nada a ver com André. É sobre Magno. Ele vai assumir o lugar
de Ricardo Sérgio na Liga Nacional.
FEDERICA faz sinal a Quintero, que já ia saindo.
FEDERICA
Um minuto, José Roberto. (a Fátima) Ricardo Sérgio renunciou ou
foi afastado?
Quintero volta ao sofá e assenta-se.
QUINTERO
Não faz diferença. Faz?
FEDERICA
Claro que faz. Um afastamento seria uma ótima notícia para o
futebol brasileiro.
FÁTIMA
(sorrindo)
André pediu a ele para antecipar a saída. Para Magno assumir
antes da reunião do conselho.
Tem certeza?
FEDERICA
FÁTIMA
O conselho já confirmou você na presidência. Marlowe ligou para
André. Hoje é seu primeiro dia de mandato.
58
TEASER E CRÉDITOS DA MINISSÉRIE
CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO,
impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas
respectivas torcidas nas arquibancadas.
INTERVALO.
PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS.
INT. CORREDOR/DIRETORIA /BRASIL FC – DIA.
Quintero está no corredor, próximo da segunda sala à direita. FEDERICA surge.
FEDERICA
Estou confirmada na presidência. Conto com você?
Não dá.
QUINTERO
FEDERICA
Como diretor você disse que dava.
QUINTERO
Disse que ia pensar. Mas não vai dar mesmo. Minha vida vira um
inferno se eu ficar no Brasil.
FEDERICA
Você vai jogar por terra um projeto maravilhoso só por conta da
neurótica de sua mulher?
QUINTERO
Você está avançando o sinal. Menos, FEDERICA. Menos.
FEDERICA
Ela não tem direito de interferir assim na sua vida.
REYNA
(abre a porta da sala de Quintero e põe a cabeça de fora)
Não tem mesmo, José Roberto.
QUINTERO
(fechando a cara)
Minha vida pessoal não diz respeito a vocês. E muito menos
numa conversa de corredor.
EXT. SEDE/LIGA NACIONAL DE CLUBES/RIO DE JANEIRO – DIA.
Intenso movimento de jornalistas em frente ao prédio da Liga.
59
Veículos de externas para transmissão ao vivo; repórteres engravatados
gravando na rua, movimento intenso de gente saindo e entrando.
INT. SALA DA PRESIDÊNCIA DA LIGA NACIONAL – DIA.
Carlão está sentado na cadeira do presidente, ao telefone.
Uma secretária remove fotografias do presidente que saiu. Com ele, o assessor
de imprensa da Liga, Rodrigo Fabiano.
Uma equipe de TV está na sala, preparando-se para gravar. O repórter é
Armando Sales, da Rede América; ele está lendo as anotações que fez à mão,
num pequeno bloco de papel.
RODRIGO
Não acho adequado, Carlão. Vai pegar muito mal. Nenhuma rede
pode ter uma exclusiva numa situação como essa. Nem a
América.
CARLÃO (ao telefone)
Volta logo, Madureira. Aqui nesse lugar só tem gente
incompetente. (a Rodrigo) Alguém aqui pediu sua opinião?
RODRIGO
Estou fazendo meu trabalho. Você decide o que quiser, mas
tenho obrigação de alertar você.
CARLÃO
Eu falo com quem quero, na hora em que quero. Vou dar
exclusiva para a rede América sim.
RODRIGO
Uma exclusiva com o Armando vai criar problema com as outras
redes. Na coletiva vão pegar no seu pé.
CARLÃO
É para isso que tenho um assessor de imprensa. Você inventa
uma desculpa e limpa minha barra. E não me encha mais o saco.
Armando, meu filho. Estou pronto. Vamos começar?
ARMANDO
Claro, presidente. (ao cameraman ) Tudo pronto, Laurinho?
LAURO
Beleza.
Rodrigo afasta-se e Armando aproxima-se da mesa de Carlão.
60
ARMANDO
O senhor pretende manter o técnico da seleção?
CARLÃO
Não pretendo mudar nada. SCALIONI já provou que é
competente. Confio nele para ganharmos a Copa do Mundo.
ARMANDO
O senhor vai interferir na convocação que para o amistoso contra
a seleção russa em São Paulo?
CARLÃO
Silvinho discutiu comigo os nomes que vão ser convocados e eu
aprovei todos. Faço questão de discutir cada convocação com o
técnico e Silvinho entendeu isso muito bem. A última palavra é
do presidente.
INT. SALA DE QUINTERO/CT BRASIL FC – DIA.
Quintero entra e vê REYNA sentado numa poltrona confortável, assistindo a
TV.
Ao vê-lo entrar, ele usa o controle remoto e desliga a TV.
REYNA
(sentando-se na cadeira de visitantes, diante da mesa de Quintero)
Você dá muita colher de chá para a japonesa, Ed.
QUINTERO
Alguma vez já me meti em sua vida pessoal?
REYNA
Já. Muitas vezes. Se fosse ouvir você teria entrado num
convento.
QUINTERO
(sentando-se na cadeira giratória)
Só falei do que afetava sua vida profissional.
REYNA
É justamente esse o ponto. Sua mulher é intolerante e está
interferindo na sua vida profissional. E na minha, o que é mais
grave.
QUINTERO
Você não é casado. No dia em que se casar podemos discutir
isso, OK?
61
REYNA
Se você fizer o que sua mulher quer vai deixar de viver, Ed. Já
conversei muitas vezes com TOMOKO. Sei do que estou falando,
Ed.
QUINTERO (irritado)
Que estória é essa, Leo?
REYNA
Não é o que você está pensando, ED. Esqueceu-se de que
namorei a irmã dela?
QUINTERO
Você namorou MITIKO?
REYNA
Meu recorde. Três meses. Sem intervalo para respirar.
QUINTERO
Por que eu nunca soube disso?
REYNA
E eu sei? Mas não mude de assunto.
QUINTERO
Depois de alguns anos de casamento você se cansa de brigar.
TOMOKO quer voltar para a Inglaterra de qualquer jeito. Está
obcecada com isso. Botou na cabeça que eu vou ser sequestrado
e ninguém tira essa ideia idiota de lá.
REYNA
Faz algum sentido, devo admitir. O Rio está ficando insuportável.
Mas se você ceder, amanhã ela vai exigir coisa ainda pior, Ed.
QUINTERO
Ela não queria vir para o Brasil. Agora é minha vez de ceder.
REYNA
Tem uma coisa no mundo que me enche mortalmente o saco:
discutir vida de casado. OK, você venceu. Faça o que sua boneca
japonesa quer. Estou defecando e andando.
QUINTERO
Trate de limpar a sujeira então, boca suja. Vamos então tratar
do que realmente interessa. FEDERICA foi confirmada na
presidência.
REYNA
62
Imaginei. Estava vendo na TV a posse de Carlão na Liga. Que
atraso. Sair de Ricardo Sérgio e cair em José Carlos Magno.
Ninguém merece.
QUINTERO
Veja a coisa do lado positivo. Com ele mandando, dificilmente
você vai ser convocado pelo sargentão.
REYNA
E quem disse que eu não quero ser convocado?
QUINTERO
Você quer?
REYNA
Claro. Para dizer NÃO na cara gorda do sargentão, eu teria que
ser convocado, não acha Ed?
QUINTERO
Você está sendo infantil. O mundo é bem maior do que o Brasil.
REYNA
Sei muito bem onde está meu nariz, Ed. Sei que há técnicos
como você. Mas eu não quero sair do Brasil. Adoro essa cidade.
QUINTERO
Agora o medo de sequestro desapareceu, hein?
REYNA
Sou um sujeito tão sortudo que se for sequestrado vai ser por
uma mulher linda, cheia de amor para dar.
A campainha do telefone celular de Quintero toca.
Ele atende rápido, antes que REYNA responda.
QUINTERO
Quintero. O quê? Tem certeza? Pode deixar. Eu falo com ele.
O que foi, Ed?
Adivinhe quem era?
REYNA
QUINTERO (rindo)
REYNA
Minha cunhada japa?
63
Silvio SCALIONI.
Silvinho?
QUINTERO
REYNA
QUINTERO
O próprio.
REYNA
O que ele queria?
QUINTERO
Perguntou-me se você toparia ser convocado para a seleção da
Liga. O sujeito de bobo só tem a cara. Não vai convocar você
para pagar mico.
E você disse o quê?
REYNA
QUINTERO
O que você ouviu. Que iria falar contigo.
EXT. ASILO PARA VELHICE/SANTA TERESA/RIO – DIA.
Carlão está saindo pela porta principal, acompanhado de uma freira negra, já
idosa. O prédio é simples; na varanda, alguns velhinhos tomam sol.
IRMÃ ALICE
Não sei como agradecer o senhor, Doutor José Carlos. Sem sua
ajuda já teríamos fechado as portas há muitos anos.
CARLÃO
Não precisa agradecer, Irmã. Não faço mais do que minha
obrigação. Posso fazer uma pergunta?
IRMÃ ALICE
A que o senhor quiser.
CARLÃO
Por que a senhora não muda para um prédio mais amplo, mais
novo e mais confortável?
IRMÃ ALICE (preocupada)
O senhor não está satisfeito com nosso trabalho?
CARLÃO
64
O que é isso, irmã. Não se trata disso. Ninguém faria melhor por
meus velhinhos do que a senhora.
IRMÃ ALICE
O dinheiro que o senhor nos dá é dividido com mais seis asilos.
Prefiro pagar bem às enfermeiras e aos médicos do que investir
em um prédio. Essa casa é boa, todos nós nos apegamos a ela.
CARLÃO
Há quantos anos a senhora está aqui, Irmã?
IRMÃ ALICE
Desde que eu deixei o convento. Sessenta e cinco anos, doutor
José Carlos.
CARLÃO
Um dia a senhora vai me receber aqui.
IRMÃ ALICE
O que é isso, doutor José Carlos. O senhor é um homem rico.
CARLÃO
Dinheiro vai e vem, Irmã. Vou abrir uma conta no banco para o
asilo e aplicar um dinheiro para o futuro. A senhora tem alguém
de confiança para cuidar disso?
IRMÃ ALICE (ri)
Alguém mais jovem, o senhor quer dizer.
CARLÃO
De forma alguma, Irmã. A senhora ainda é uma mocinha.
IRMÃ ALICE
Vou fazer 94 anos. Gente da minha cor não aparenta a idade.
Mas pode ficar tranquilo. Minha neta veio trabalhar comigo. Ela é
assistente social e é ela que vai ficar em meu lugar quando a
idade chegar.
CARLÃO
A senhora pensa em tudo, hein?
IRMÃ ALICE
Faço o possível, doutor José Carlos. (pausa) O que eu digo para
aquele jornalista?
CARLÃO
Não diga meu nome em hipótese alguma, Irmã. Por favor. Não
quero que minha modesta ajuda seja divulgada na imprensa.
65
Tenho muitos inimigos. Vão dizer que eu estou comprando um
lugar no céu.
IRMÃ ALICE
Eu compreendo. O senhor está certo. Mas muita gente poderia
ajudar outros asilos se soubesse que o senhor é nosso amigo
muito caro.
CARLÃO
Prefiro que meu nome não apareça, Irmã Alice. Preciso ir
embora. Na semana que vem meu assistente Madureira volta de
férias e vem falar com sua neta.
Carlão vai até os velhinhos que estão na varanda e abraça e beija cada um
deles.
Os idosos estão debilitados, mas olham com gratidão e carinho para Carlão; ele
entra no carro que o aguarda em frente ao asilo (o motorista abre a porta para ele).
O carro sai. Carlão olha com carinho para Irmã Alice, que se despede com um
gesto com a mão direita.
INT. SALA/QUINTERO/CT BRASIL FC – DIA.
REYNA está sentado no sofá que fica diante da mesa de Quintero, que está
servindo-se de um uísque.
QUINTERO
Sirvo um para você?
REYNA
Como é que você sabe que eu não vou treinar hoje?
QUINTERO
Você é movido pela lei do menor esforço. Tendo uma boa
desculpa não treina.
REYNA
Quero um sim. Preciso estar turbinado quando o sargentão ligar.
QUINTERO
Estou com a impressão de que subitamente seu bom humor
evaporou.
REYNA
Nada disso, Ed. Estou pensando.
QUINTERO
O dia promete. Mudou de ideia? Vai topar a seleção da Liga?
66
REYNA
Terminei minha residência. Já posso clinicar.
Não me respondeu.
QUINTERO
REYNA
Você é que não prestou atenção. Respondi bem respondido.
QUINTERO.
Parabéns. Você conseguiu. Sei muito bem o quanto você lutou
para isso. Fico orgulhoso de sua conquista.
REYNA
Não fique. Não foi difícil como você imagina.
QUINTERO
Sua autoconfiança é irritante. É claro que foi difícil conciliar um
curso exigente como o de Medicina com o futebol e com suas
gandaias.
REYNA
Não tenho culpa de ser bom em tudo o que faço. Os fatos me
dão razão.
QUINTERO
Estou curioso para saber como é que um sujeito tão inteligente
como você resolver essa encrenca. O convite para a seleção da
Liga é só o começo. Ed. (enfatiza “Ed”: está brincando com Leo)
REYNA
Não existe encrenca nenhuma. É evidente que não vou aceitar a
convocação. Não tenho a menor intenção de fazer parte da
Família SCALIONI.
QUINTERO
Você está sem contrato.
REYNA
Estou.
QUINTERO
Silvinho sabe que você não tem preparo físico para jogar mais do
que um tempo.
REYNA
O Brasil inteiro sabe. Mas resolveu convocar-me assim mesmo.
Ele tocou nesse assunto com você?
67
QUINTERO
Nem de longe. Só perguntou se você toparia a convocação.
REYNA
O sargentão sabe que eu não pretendo deixar de fumar. Nem
vou abrir mão da balada. Nem por isso deixei de fazer muitos
gols no time que ele treinou.
QUINTERO
Claro que sabe. Mas nem tocou nesse assunto comigo.
REYNA
O que significa que vai falar disso comigo.
QUINTERO
Ele vai enquadrar você.
REYNA
Ou eu vou enquadrá-lo.
QUINTERO
Como diz você, o Brasil inteiro sabe como é a família SCALIONI.
REYNA
O que me leva a concluir que ele sabe que eu também sei.
QUINTERO
Ele sabe mais uma coisa sobre você.
Sabe?
REYNA
QUINTERO
Sabe que sua maior ambição é ser considerado o maior jogador
do mundo.
REYNA
E como é que ele soube disso?
Eu contei.
INTERVALO.
QUINTERO
PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS.
EXT. HOTEL CINCO ESTRELAS DE SÃO PAULO – NOITE.
São 19h. O movimento é intenso diante de um sofisticado hotel localizado na
zona nobre de São Paulo.
68
Carros de externas, populares isolados pela segurança da Liga Nacional e pela
PM, refletores acessos.
Mas só um repórter está a postos para gravar: Armando Sales, da Rede
América.
Um último jogador está chegando: é REYNA, em seu Range Rover. Ele desce
do carro e dá um abraço carinhoso no manobrista.
É ovacionado pelos fãs e, principalmente pelas fãs.
FÃS (em uníssono)
Lindo! Lindo! Lindo! Lindo!
ARMANDO
Leonardo! Ei, aqui, Leonardo! REYNA! Sou eu, Armando. Da
América!
REYNA para perto de Armando.
REYNA
Tudo bem com você, Ed?
ARMANDO
Show de bola. Vamos gravar?
REYNA
Onde estão seus colegas? (olha em volta, não vê ninguém) Porque
eles não estão aqui?
ARMANDO (a Lauro)
Vamos lá, Laurinho. Agora! (a REYNA) Satisfeito com a
convocação, Leo?
Lauro aponta a CAM para REYNA, que não fala absolutamente nada. Fica
olhando para a objetiva e só.
ARMANDO
Corta! O que foi Leo? Qual é o problema?
REYNA
O problema é você, Ed. É muita falta de ética você estar aqui
sozinho. Aposto que os outros foram impedidos de estar aqui.
ARMANDO
Pega leve, Leo. O doutor José Carlos Magno autorizou exclusiva
para a Rede América.
69
REYNA (afastando-se)
Então vá gravar com ele, Ed.
Amontoados entre os fãs do selecionado, os outros repórteres aplaudem
REYNA. Armando fica sem graça, visivelmente contrariado.
REPÓRTER UM
Dá-lhe, REYNA! Parabéns, garoto!
REPÓRTER DOIS
Parabéns, Leo! É assim que se faz.
ARMANDO
(arrogante, quando Leo já estava distanciando-se)
Você vai ter problemas, garoto. Isso não vai ficar assim.
Apesar do barulho, REYNA ouve a ameaça de Armando. Volta-se e se aproxima
dele.
REYNA
Claro que não vai.
Para delírio dos fãs e dos demais repórteres, Leo aproxima seu rosto do rosto
de Armando e dá um beliscão no nariz dele, sem muita força.
CORTA PARA
CLOSE-UP de uma notícia de primeira página no Jornal Folha do Rio, com a
mãe de REYNA apertando o nariz de Armando.
IMAGEM CONGELADA DA FOTO: A MÃO DE REYNA APERTANDO O NARIZ DE
ARMANDO.
DE VOLTA
Flashes piscam enlouquecidamente.
Armando, surpreso, não resiste e começa a rir.
ARMANDO
(rindo, bem humorado)
Esse sujeito é maluco. Só pode ser.
REYNA entra pela porta principal de acesso ao hotel.
INT. CORREDOR QUE DÁ ACESSO AO RESTAURANTE/HOTEL – NOITE.
70
Carlão está lendo a relação de convocados, feita por Silvinho (62 anos, alto e
magro), que está ao lado dele.
SILVINHO
Tudo certo? O que achastes da minha escolha?
CARLÃO
(com dificuldade para ler, procura e não acha seus óculos)
Do que você está falando, Silvinho?
SILVINHO
Tu não prestares atenção no que te disse depois da tua coletiva?
CARLÃO
Estava tumultuado, não prestei. E daí?
SILVINHO
Marcelo Paraná não pode se apresentar. Teve uma entorse.
Chamei um atacante seu.
CARLÃO
Atacante meu? Eu não tenho nenhum atacante.
SILVINHO
Do seu time, Carlão. Leonardo REYNA.
CARLÃO
O quê? Você convocou aquele moleque sem falar comigo?
SILVINHO
Tive que convocar um substituto para Marcelo. Não deu tempo
de falar contigo.
CARLÃO
Pois pode desconvocar. Aquele filho da mãe não joga na
seleção enquanto eu estiver por aqui.
SILVINHO
Agora é tarde. Ele já deve estar chegando.
CARLÃO
Problema seu. Ou desconvoca ou você cai fora com ele.
SILVINHO (pega um celular e tecla um número)
Um minuto. Por favor. Só um minuto.
CARLÃO
Não tem conversa. Não adianta chamar Ricardo Sérgio.
71
SILVINHO
Coronel Santana? Sou eu. Silvinho. Por favor, me deixe falar com
o presidente.
CARLÃO (pálido)
Que presidente?
SILVINHO
(faz sinal com a mão direita)
Presidente? Tu estás bem? É Silvinho. Tu tinhas razão. Carlão
disse que vai demitir-me. Sim. Está. Tu falas com ele?
Silvinho entrega o telefone móvel a Carlão.
CARLÃO
(a voz falhando)
Sim?! É ele mesmo. Presidente? Bom dia, excelência.
OUVIMOS gritos ao telefone. Carlão fica mudo.
CORTA PARA uma imagem externa do Palácio do Planalto.
CLOSE-UP da boca de um homem que usa bigode ao telefone.
PRESIDENTE
Estamos entendidos?
DE VOLTA AO CORREDOR DO HOTEL.
CARLÃO
Claro, senhor presidente. Claro que estamos. Pode ficar
tranquilo.
Com um olhar gélido, Carlão devolve o celular a Silvinho, que sorri para ele,
triunfante.
PRESIDENTE
Ninguém é melhor amigo do que eu. Nem pior inimigo. Você
nunca mais vai dirigir um clube no Brasil. E não vai estar aqui na
Copa do Mundo. Mas sou um sujeito generoso. Dispense o
doutorzinho e você fica.
INT. SAGUÃO DO HOTEL/SÃO PAULO – NOITE.
REYNA entra e é recebido por MADRUGA, assistente de SCALIONI.
MADRUGA
(sem estender a mão)
72
Seja bem-vindo, Leonardo REYNA. O senhor está atrasado dois
minutos.
REYNA
Segundo o seu relógio, Ed. Mas o senhor Breitling (mostra o relógio:
CLOSE-UP) aqui diz que estou sendo absolutamente pontual.
MADRUGA
O que o faz pensar que o meu é que está atrasado?
REYNA
(sem afetação)
Leon Breitling começou a fabricar os relógios mais pontuais do
mundo em 1884, na cidade suíça de Saint-Imier. Com todo
respeito pelo fabricante do seu relógio, fico com as obras-primas
do senhor Breitling.
MADRUGA
(rindo; estendendo a mão direita)
Muito prazer. Hamilton Madruga. Sou assistente do prof.
Silvinho.
REYNA
Eu sei. O prazer é meu, Ed. Devo ir direto ao restaurante?
MADRUGA
Sim, claro. Pode me chamar de Madruga mesmo. (pausa) Estava
esperando justamente você. Vamos lá.
REYNA e Madruga seguem na direção do restaurante principal do hotel, que foi
reservado para a seleção.
Um funcionário do hotel (baixinho, esquelético) aproxima-se e timidamente pede
autógrafo. REYNA olha para Madruga e ele aprova, com um gesto de cabeça.
REYNA
Qual é seu nome, Ed?
FUNCIONÁRIO
Felipe. Felipão para os amigos.
Está certo, Ed.
REYNA
O rapaz lê o que REYNA escreve e fica exultante.
FELIPÃO
Muito obrigado, Leo!
73
MADRUGA
O que foi que você escreveu?
REYNA
(sorrindo; piscando)
O nome de um remédio muito bom para abrir o apetite.
INT. RESTAURANTE DO HOTEL/SÃO PAULO – NOITE.
O restaurante é amplo, com as mesas em formato de U. Nas posições
principais, Carlão e Silvinho.
Leo assenta-se no único lugar vago, ao lado de seu colega de clube, Lucas.
Madruga senta-se ao lado de Silvinho, depois de falar algo no ouvido dele e
mostrar o relógio. Silvinho balança a cabeça, olha na direção de REYNA e faz
um cumprimento quase imperceptível.
Carlão levanta-se e pega o microfone sem fio que estava sobre a mesa.
CARLÃO
(sorrindo, simpático)
Sejam todos bem-vindos. Inclusive eu mesmo.
Risos na mesa.
CARLÃO
Começamos hoje a guerra que só vai terminar em julho do ano
que vem, quando o Brasil será mais uma vez o campeão do
mundo. Jamais perdi uma briga na vida e não pretendo perder a
mais importante de todas elas. Nem todos vocês que estão aqui
hoje vão estar na Copa do Mundo.
Carlão faz uma pausa, para dar mais efeito dramático a sua fala.
CARLÃO
É bom entender isso. Ninguém tem vaga garantida. Nem o
técnico. Eu estarei lá, porque meu mandato vai até o final do ano
que vem. Quem for acomodado ou não entender que hoje
estamos começando uma guerra contra o resto do mundo vai
sair logo. Prometo que vai. Quem der sangue, quem colocar a
pátria nas chuteiras vai ter lugar no meu time (olha para Silvinho).
Alguém quer perguntar alguma coisa?
Silêncio absoluto. REYNA levanta-se.
Eu quero.
REYNA
74
CARLÃO
Pergunte.
(de cara fechada)
A tensão está no ar.
REYNA (sério)
A que horas será servido o jantar?
Risadas gerais.
CARLÃO
Boa pergunta. (olha para ALCIDES, diretor administrativo da Liga)
Alcides?
Alcides abre as portas e os garçons entram com as bandejas. O clima se
descontrai.
INT. QUARTO DO HOTEL/SÃO PAULO – NOITE.
REYNA está deitado, lendo um livro grosso: um romance de capa dura, em
inglês. Ele tem um companheiro de quarto: o centroavante Alberto, titular
absoluto da seleção há cinco anos, jogador do adversário local do Brasil, o
Atlético do Rio.
Alberto está usando o celular, teclando uma mensagem.
ALBERTO
É verdade que você só tem preparo físico para jogar um tempo?
REYNA
(para de ler)
Normalmente jogo só meia hora, Ed. (Acende um charuto) Até hoje
foi suficiente. Não incomodo mesmo você?
ALBERTO
Nem um pouco. Até gosto do cheiro. É cubano?
REYNA
Puro de origem. Sou muito amigo de um sobrinho de Fidel. Ele
me manda duas caixas a cada trimestre, Ed.
ALBERTO
O que o professor Silvinho falou sobre isso?
REYNA
Isso o quê? O charuto ou jogar só meia hora?
75
ALBERTO
As duas coisas. Sem falar nas baladas. Você sai toda semana
numa coluna social enchendo a cara.
REYNA
A vida não tem graça quando se está sóbrio.
ALBERTO
Concordo plenamente. Mas precaução e caldo de galinha nunca
são demais. É sua primeira vez, garoto.
REYNA
É a minha natureza, Ed.
ALBERTO
Disso o professor Silvinho não vai gostar.
REYNA
Também não gosto de algumas coisas que ele faz.
ALBERTO
Inacreditável. Aliás, sua convocação é um milagre da natureza.
Você contraria tudo o que o professor espera de um atleta.
REYNA
Deve gostar de meu futebol. Carlão não me suporta e ele me
convocou assim mesmo. (pausa) Isso aqui está parado demais,
Ed. O que acha de trazermos umas meninas para brincar de
médico?
ALBERTO
E você acha que o professor deixa? Tem segurança para tudo
quanto é lado. Alcides usa até câmera para vigiar a gente.
REYNA
(falando baixo)
Tem um sujeito que trabalha aqui que ficou de arrumar duas
meninas para nós. Vou dar quinhentos dólares a ele.
ALBERTO
Está falando sério?
REYNA
Sério, Ed. Marquei 11 horas. (olha para o relógio) Material de
primeira qualidade, Ed.
ALBERTO
Uma birita vai fazer falta. Sem falar no azulzinho.
76
REYNA
O champanhe eu garanto. O azulzinho eu vou ficar devendo, Ed.
Batidas na porta.
REYNA
(a Alberto) Será que vieram mais cedo? (na direção da porta) Quem
é?
MADRUGA
Madruga.
(em OFF)
Alberto levanta-se rápido e abre a porta.
ALBERTO
Grande Madruga! O que você manda, meu peixe?
MADRUGA
O chefe quer falar com o doutor REYNA. Ele já dormiu?
INT. CORREDOR DO HOTEL – NOITE.
No corredor, dois seguranças guardam os dois extremos e um está postado
diante do elevador. O funcionário esquelético a quem REYNA deu autógrafo sai
do elevador de serviço e fica surpreso ao ver REYNA.
FELIPÃO
(fala alto, para certificar-se de que os seguranças estão ouvindo)
Boa noite, senhor REYNA. Está satisfeito com o quarto?
REYNA
Foi bom encontrar você, Ed. Faça o favor de mandar alguém
trocar a roupa de cama. Tenho alergia a algodão.
FELIPÃO
Perfeitamente, senhor. Vou providenciar.
REYNA
(entra no elevador social com Madruga)
Volto logo, Ed.
INT. SUITE DO TÉCNICO SILVINHO/HOTEL – DIA.
REYNA e Madruga entram na espaçosa suíte em que está o corpulento
treinador. Silvinho está de calção e camiseta.
SILVINHO
77
Entre, Leo. Não tivemos oportunidade de conversar.
REYNA
Achei que ia receber uma ligação sua antes desse encontro aqui,
Ed.
SILVINHO
Madruga disse que tu chamas todas as pessoas de Ed. Pitoresco
isso, hein, guri?
REYNA
É um costume antigo. Incomoda você?
SILVINHO
Nem um pouco. (a Madruga) Se quiseres ir embora, fiques à
vontade, Madruga.
MADRUGA (saindo)
Boa noite.
REYNA
Boa.
SILVINHO (a Madruga)
Boa noite, irmão. (a REYNA) Por que tu achas que te convoquei?
REYNA
Só existe uma possibilidade.
SILVINHO
E qual seria ela?
REYNA
Por alguma razão você queria afrontar seu novo chefe.
SILVINHO
(dá uma gargalhada sonora)
Tu és mesmo inteligente, guri.
REYNA
Você sabe a briga que comprou. Carlão é um verme perigoso.
SILVINHO
Devo concluir que tu gostas de brincar com o perigo?
REYNA
Parece que temos isso em comum, treinador.
78
SILVINHO
Foi um risco calculado. Meu padrinho é forte. Era preciso mostrar
ao perigo, que não vou aceitar pressão dele nem de
empresários.
REYNA
Mesmo que isso signifique um problema a mais? Eu não sou
como os outros. Nem sei se vou continuar no futebol. Ainda não
resolvi se vou deixar a Medicina.
SILVINHO
A quem queres enganar, guri? É claro que já resolveste.
REYNA
É. Parece que resolvi mesmo. Como é que nós ficamos?
SILVINHO
Já consegui o que queria com tua convocação. Eu não preciso
mais de ti. Tu precisas de mim para alcançar o que mais desejas.
REYNA
Manter-me na seleção pode ser uma forma interessante de
demonstrar independência. O Brasil inteiro sabe que Carlão me
odeia.
SILVINHO
Há outras formas, guri. Sem tanto risco. O recado já foi dado.
REYNA
Eu sou o melhor batedor de faltas que o Brasil já viu. Cobro
escanteio com perfeição. Coloco a bola onde quero, sem
dificuldade.
SILVINHO
Eu sei. Não duvido dos ganhos. Mas você vai jogar meus
jogadores contra mim.
INTERVALO.
PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS.
INT. SUÍTE DE SILVINHO/HOTEL – NOITE.
Continuação da cena anterior.
REYNA
Por que eu faria isso?
SILVINHO
79
Não digo que farias isso propositalmente. Mas sendo quem tu és,
tua presença seria uma contestação à minha autoridade e isso
eu não posso admitir.
REYNA
Sou tão bom cabeceador quanto Alberto. Se entrar no lugar dele,
você continua com uma jogada aérea eficiente.
SILVINHO
Por mais que você seja útil. (pausa) Tu és indisciplinado e só
jogas meia hora por partida.
REYNA
O que não me impediu de ser o artilheiro do campeonato da Liga
Nacional. Média de 2,5 gols por jogo.
SILVINHO
Tu és inteligente demais. Vais criar problemas com meus
jogadores. Sem falar nos prejuízos à minha reputação.
REYNA
Assumo o compromisso de ficar na minha. Não quero comprar
briga com ninguém.
SILVINHO
E as baladas? E os charutos? As expulsões? Em hipótese alguma
aceito esse tipo de coisa. Nem que tu fosses Pelé eu aceitaria,
guri.
REYNA
Prometo a você um gol por jogo se me deixar bater as faltas e os
escanteios. Se não cumprir a promessa, faço o que você quiser.
Mas vou cumprir.
SILVINHO
É uma questão de princípios. Você vai ter que se enquadrar nos
meus critérios. Não admito nenhuma exceção.
REYNA
Assim não há mais o que discutir. Você não é o sujeito
inteligente que pensei que fosse. Boa noite, treinador.
Levanta-se para ir embora. Silvinho deixa ele se aproximar da porta e fala.
SILVINHO
Não estragues uma carreira promissora por infantilidade, guri.
REYNA
80
Promissora? Tenho 24 anos e nunca treinei de verdade enquanto
ainda estava na Medicina. Recebi propostas de três grandes
clubes da Europa.
SILVINHO
Quero que tu te comportes enquanto estiveres aqui na seleção
da Liga. Fora daqui não é problema meu. O que tu achas?
REYNA
Você me pede para deixar de ser eu mesmo. Isso é inegociável.
SILVINHO
Tu és mesmo cabeça dura, guri. Tu não passas de um garoto
mimado que nunca aprendeu o que é respeitar limites.
INT. CORREDOR DO HOTEL – NOITE.
REYNA caminha na direção do quarto dele.
Do elevador de serviço sai uma empregada uniformizada do hotel, idosa,
empurrando com dificuldade um carrinho de mão mais comprido do que os
usuais.
REYNA
É a senhora que vai trocar a roupa de cama?
EMPREGADA
Eu mesma.
Vou ajudá-la, vovó.
REYNA
EMPREGADA
Não é preciso, senhor. Eu consigo.
REYNA
(olha para o segurança)
Você aí, fortão. Seja um bom gorila e dê uma força para a vovó
aqui.
O segurança empurra o carro.
SEGURANÇA
Que carrinho pesado, vovó. O que a senhora leva aí?
EMPREGADA
Roupa de cama para todos os quartos, meu filho.
81
Chegam ao quarto de REYNA.
REYNA
Deixe comigo, fortão.
O segurança volta ao lugar dele. REYNA entra no quarto empurrando o
carrinho, seguido pela empregada.
INT. QUARTO DE REYNA E ALBERTO/HOTEL – NOITE.
Já no quarto, REYNA fecha a porta e abre as portas do carrinho. De dentro
saem três mulheres lindas, de biquínis.
Uma delas pega um balde de champanhe.
Caraca!
ALBERTO (grita)
EMPREGADA
Fale baixo, menino! Se vocês fizerem barulho o Felipão vai me
enforcar.
EXT. AVENIDA PAULISTA/SÃO PAULO – DIA.
O dia está amanhecendo. A imagem do sol incide sobre os majestosos edifícios
da avenida: é um belo espetáculo.
EXT. HOTEL CINCO ESTRELAS/SÃO PAULO – DIA.
Um carro sedan Mercedes preto, último modelo, para em frente à entrada
principal.
O motorista (uniformizado) sai e abre a porta traseira. Um sujeito bem-vestido,
cerca de 40 anos, sai do carro e caminha na direção da recepção. É Juan
Manuel de Noriega, famoso empresário de futebol.
NORIEGA
(leve sotaque espanhol)
Bom dia. Sou aguardado pelo doutor José Carlos Magno.
CONCIERGE
Bom dia, senhor. A quem devo anunciar?
Noriega.
NORIEGA
CONCIERGE
82
Perfeitamente. (pega o telefone interno) Bom dia. É da recepção. O
senhor Noriega está na recepção. Pois não. (a Noriega) O senhor
pode subir. O doutor Magno está na suíte presidencial. Último
andar.
Obrigado.
NORIEGA
Noriega vai para o elevador. O diretor administrativo, Alcides, está a
poucos metros, conversando com sua assistente, Bruna.
ALCIDES
O ônibus já está aí?
BRUNA
Chegou na hora marcada, sem um minuto de atraso. Tudo
pronto para o traslado. Os batedores da Polícia Militar estão a
postos.
ALCIDES
Vá para o centro de treinamento e cuide para que esteja tudo
certo. O doutor Lamego já está lá?
BRUNA
Já. Já chequei com todo mundo, Dr. Alcides. Tudo perfeito, sem
furo.
E a imprensa?
ALCIDES
BRUNA
Rodrigo está com eles. O assistente dele já foi para o CT.
ALCIDES
Não quero que ninguém fale com os jogadores nem com a
comissão técnica. Só imagens do pessoal entrando no ônibus.
BRUNA
Pode ficar tranquilo. Nenhum jornalista entra no CT até Rodrigo
autorizar. Posso ir?
ALCIDES
Pode. Eu vou mais tarde. Obrigado, Bruna. Bom trabalho.
INT. SUÍTE PRESIDENCIAL DE CARLÃO – DIA.
83
Noriega entra na suíte e é recebido por uma loura linda, alta e magra, vestida
com uma saia curta, de camisetinha. É BIRGIT, alemã de 34 anos, namorada
de Carlão.
BIRGIT
(beijando-o)
Bom dia, Juan. Tudo bem com você?
NORIEGA
Um pouco cansado, mas tudo bem. Carlão já acordou?
BIRGIT
Entrou para o banho agora mesmo.
NORIEGA
Quanto tempo nós temos?
Dez minutos.
Ótimo.
BIRGIT
NORIEGA
Noriega aperta o corpo de BIRGIT contra o dele; beijam-se com paixão.
Ouvem um ruído e afastam-se rápido.
Carlão entra ainda molhado, de roupão, com os cabelos molhados.
CARLÃO
Vamos tomar o café de uma vez. Tenho pouco tempo. Saia,
menina.
BIRGIT sai sem falar nada. Carlão mostra uma mesa no canto da sala,
preparada para o café da manhã. Sentam-se.
CARLÃO
Ele ainda não assinou contrato com o Brasil. Chequei isso ontem
à noite. Nem vai assinar. Ele só fica se Quintero ficar.
NORIEGA
Como é que você pode ter tanta certeza de que ele não vai ficar?
Eu sou empresário dele e não tenho nenhuma confirmação.
CORTA PARA
84
NA SALA (VAZIA) DE QUINTERO, MADUREIRA, secretário de Carlão, coloca um
envelope na pasta do treinador, verificando com cuidado se ninguém está
vendo o que ele faz.
DISSOLVE PARA
TOMOKO, mulher de Quintero, sempre olhando para os lados, abre a pasta de
Quintero e vê várias fotos, em tamanho grande, de FEDERICA. FEDERICA está
de maiô, em poses naturais.
Um belo corpo, que TOMOKO observa com evidente irritação.
CARLÃO
Madureira mexeu os pauzinhos. A essa altura a japa tem certeza
de que o marido está enrabichado pela italiana. E é ela quem
manda.
Se você diz.
NORIEGA
CARLÃO
O filho da mãe do doutorzinho está com a faca e o queijo na
mão. Você falou com os europeus?
NORIEGA
Falei com os espanhóis. Eles acreditaram um mim. Não foi difícil
convencê-los. Mas eles já falaram com REYNA.
CARLÃO
Ótimo. É melhor assim. Deixe o doutorzinho achar que vai poder
escolher. O tombo vai ser maior. E os ingleses?
NORIEGA
Ninguém quer saber de REYNA na PREMIER LEAGUE. Falaram
com os espanhóis e caíram fora.
CARLÃO
Tem certeza?
NORIEGA
Absoluta. Os ingleses não podem nem ouvir de cocaína. Falei
que a japonesa também cheira. Ficaram horrorizados. Perderam
uma fortuna com aquele sérvio viciado. Mas tem uma coisa que
me preocupa.
CARLÃO
O quê?
85
NORIEGA
Será que nós não estamos dando um tiro no pé? Podemos
ganhar três milhões de euros sem fazer esforço. E você se livra
de um incômodo. REYNA confia em mim. Abrir mão desse
dinheiro é burrice.
CARLÃO
Vamos ganhar duzentas vezes mais agora que eu assumi a Liga.
Um homem na minha posição não pode ser humilhado. Ninguém
vai me respeitar se eu não desmoralizar esse filho da mãe.
NORIEGA (irônico)
Foi para desmoralizar que ele foi convocado?
CARLÃO
Vai ser só dessa vez. O filho da mãe do Silvinho me pegou
desprevenido. Mas já estou cuidando dele. Não preciso mais do
que de dois meses para mandar esse gaúcho babaca de volta
para Pelotas.
EXT. HOTEL CINCO ESTRELAS/SÃO PAULO – DIA.
Os jogadores estão isolados dos fãs por policiais e seguranças da Liga. Um a
um, eles vão saindo do hotel e entrando no ônibus que vai levá-los ao CT da
Liga. Flashes de máquinas fotográficas e refletores das TVs iluminam a
entrada, ao som dos gritos dos fãs. A maioria usa fone de ouvido, conectados a
celulares; REYNA não: carrega um livro bem grosso.
Silvinho, o auxiliar Madruga e o preparador físico ALMADA, estão entre os
jogadores. Usam o uniforme esportivo da seleção da liga, no tom verde e
amarelo.
Os três últimos a entrar trazem tamborim, bateria e chocalhos: é a turma do
pagode. Esses três últimos são ovacionados: Alberto (negro) está entre eles.
INT. ÔNIBUS DA SELEÇÃO – DIA.
Uma verdadeira algazarra instalou-se no ônibus: o pagode corre solto, atraindo
a maioria dos jogadores.
REYNA está bem na frente, dormindo a sono solto, sem se incomodar com o
barulho. Madruga, sentado ao lado de Silvinho, tenta cochilar, sem conseguir.
MADRUGA
Como é que esse sujeito consegue dormir numa bagunça
dessas?
SILVINHO
86
Será que ele está dormindo mesmo?
MADRUGA
Roncando desse jeito? Só pode estar.
VEMOS REYNA profundamente adormecido ao lado de Lucas, companheiro do
Brasil FC.
LUCAS
Ele está dormindo sim, Madruga. Leo tem uma facilidade
inacreditável para dormir. Ele sempre tira um cochilo no
vestiário, antes de entrar em campo.
SILVINHO
É bom descansar mesmo. Podes apostar.
EXT. RUAS DE SÃO PAULO – DIA.
O ônibus da seleção passa pelas principais vias da cidade, despertando a
atenção dos populares. Quatro batedores da PM seguem à frente; atrás do
ônibus, duas vans cheias de segurança e carros da imprensa.
Os jogadores acenam das janelas, tratando os fãs com carinho.
INT. ESTÚDIO DE RÁDIO/RÁDIO CARIOCA – DIA.
Um técnico de sonoplastia faz o sinal para o início da transmissão, entrando no
ar a vinheta do programa de Sobrenatural de Almeida. Antes de vermos o rosto
do apresentador do programa,
CLOSE-UP do rádio do motorista que conduz o ônibus da seleção da liga
brasileira de futebol e, em seguida, PLANO APROXIMADO do motorista.
PONTO DE VISTA DO MOTORISTA revela que estamos a bordo do ônibus da
seleção: vemos os batedores da PM e os acenos dos fãs.
Na trilha sonora, a vinheta do programa de SOBRENATURAL, com um coro
feminino, relâmpagos e sons de uma noite mal assombrada.
CORO
Sobrenatural de Almeida! Sem mistérios no mundo da bola!
DE VOLTA AO ESTÚDIO.
VEMOS o apresentador de costas: não dá para perceber como é Sobrenatural
de Almeida. A imagem do apresentador vai ser intercalada com cortes para
vários CLOSES de diversos rádios diferentes, em ambientes diferentes, para
sugerir que o programa tem elevada audiência.
87
A imagem mostrará que o apresentador usa um aparelho misturador de vozes,
para dar o tom ligeiramente fantasmagórico que o espectador vai ouvir.
SOBRENATURAL DE ALMEIDA
Na apresentação dos convocados para a seleção da Liga ontem à
noite em São Paulo, uma surpresa que nem mesmo Sobrenatural
de Almeida pode prever: lá estava o impávido doutor Leonardo
REYNA. Por que a surpresa, perguntará um dos cinco ouvintes
deste programa? Por que até as pedras do Arpoador sabem que
o novo presidente da Liga é inimigo pessoal do craque do Brasil
Futebol Clube, que, por sinal, está sem contrato em seu clube.
Ou Carlão levou o maior susto da vida dele e os dias do treinador
Silvinho estão contados, ou Carlão Malvadeza transformou-se em
Carlinhos Paz e Amor.
VINHETA COM O CORO.
CORO
Você decide! Você decide! Você decide!
SOBRENATURAL DE ALMEIDA
Por que razão terá Silvinho SCALIONI convocado um notório
desafeto do Doutor Carlos Magno, logo no primeiro dia de um
mandato que provavelmente irá durar mais de dez anos?
VINHETA COM O CORO.
CORO
Você decide! Você decide! Você decide!
SOBRENATURAL DE ALMEIDA
Ou Silvinho resolveu medir forças com Carlão ou sabe que vai
sair e resolveu sair atirando.
VINHETA COM O CORO.
CORO
Você decide! Você decide! Você decide!
VEMOS então que Sobrenatural de Almeida é uma mulher: a jornalista Isabela
Falcão.
EXT. CENTRO DE TREINAMENTO DA SELEÇÃO DA LIGA/SP – DIA.
José Roberto Quintero chega ao CT, num taxi. Os jornalistas correm para ele.
Ele força o passo e não aceita ser pressionado pelos repórteres. Só responde a
duas perguntas.
88
REPÓRTER UM
José Roberto! Você vai substituir Silvinho SCALIONI?
REPÓRTER DOIS
Quinteroooo! Você veio contratar Silvinho SCALIONI para o Brasil
Futebol Clube?
QUINTERO
Devagar pessoal, devagar com especulações. Eu vim a convite
de Silvinho, para trocar ideias com ele. Outros técnicos virão, é
assim que ele trabalha. Eu estou sem contrato e não fico mais no
Brasil. Depois Silvinho fala com vocês. Com licença, com licença.
INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT SELEÇÃO DA LIGA – DIA.
No alto das arquibancadas, Silvinho e Quintero conversam tranquilamente.
Quatro jogadores batem bola, descontraídos. Muitas bolas estão espalhadas
pelo campo.
Integrantes da comissão técnica preparam aparelhos que serão usados no
treinamento físico que vai começar logo depois que os jogadores saírem dos
exames médicos.
Imagens de REYNA e de outros jogadores fazendo exames de resistência física,
cardiológicos, laboratoriais, de imagem; todos enfim.
Quintero e Silvinho conversam, em OFF.
QUINTERO
Ele já fez os exames médicos?
SILVINHO
Deve estar fazendo agora. Só aqueles fizeram. A gauchada veio
cedinho para cá (ri). Liberei, achei bacana da parte deles.
QUINTERO
O velho deve estar querendo matar você.
SILVINHO
Pois vai ter que guardar o punhal. Enquanto o presidente estiver
em Brasília ninguém me tira daqui.
QUINTERO
Melhor. Sei que você não tem apego a esse cargo. Não será hora
de mudar? O futebol europeu hoje é muito superior ao nosso. Há
um longo caminho até o nível de excelência da Espanha e da
Alemanha.
89
SILVINHO
Tu sempre foste correto comigo, Zé. Perdeste duas
oportunidades de pegar meu lugar e jamais agiste com
deslealdade. Sei que tu falas com boa intenção. Mas discordo. O
futebol brasileiro sempre foi e continua sendo o melhor do
mundo.
As imagens dos exames médicos dissolvem-se em imagens dos treinamentos
físicos. Um treinamento puxado, que exige muito dos jogadores.
ACOMPANHAMENTOS REYNA em particular, constatando que ele, mais do os
outros está sendo muito exigido.
Depois de muitos planos do treinamento coletivo, as imagens DISSOLVEM para
apenas REYNA em campo, fazendo mais exercícios físicos. Ele está ensopado
de suor, inteiramente exausto, mas não deixa de fazer os exercícios.
SILVINHO
Teu garoto tem fibra.
QUINTERO
Desse jeito ele vai estar morto antes do primeiro treino com
bola.
SILVINHO
Bobagem. O guri tem o coro duro. Mas quero que tu me digas
uma coisa.
QUINTERO
Se você prometer que vai pegar leve com Leo, eu prometo. Já
começo a me sentir culpado. O cara está quase morto, Silvinho.
Silvinho usa um apito e o preparador físico ALMADA dá folga a Leo.
Depois de ver os sinais de Silvinho, Almada prepara o treinamento de
cobranças de falta, colocando um anteparo que é usado para substituir a
barreira.
No gol, está Lucas. Leo molha o rosto com água, respira com dificuldade.
Logo começam as cobranças: Leo tem aproveitamento extraordinário. Coloca a
bola onde quer, como se não houvesse barreira.
Cortes rápidos mostram diversas cobranças. Depois ele vai treinar cobranças
de escanteio. Faz vários gols olímpicos, para raiva de Lucas.
90
Finalizando o treinamento, Leo faz cobranças de pênalti. Não erra uma única
cobrança.
IMAGENS DE SILVINHO E QUINTERO.
SILVINHO
O médico garantiu que ele aguenta. Tu podes ficar tranquilo, Zé.
Mas diga-me. Qual é o ponto fraco de teu guri?
QUINTERO
No sentido que você quer saber, não sei se ele tem. Se ele tem
um, desconheço qual é.
SILVINHO
Toda pessoa tem um ponto fraco. Preciso saber para dobrar a
espinha desse garoto arrogante.
QUINTERO
Leo é um sujeito muito acima da média. Tudo que ele faz, faz
com extrema facilidade. Fui ver as notas dele na Faculdade de
Medicina. Nunca tirou menos do que 9,5. Nunca estudou. Só
assistia às aulas. Quer ser o melhor do mundo e vai ser. Mas do
jeito dele.
SILVINHO
É esse o ponto. O jeito dele não serve para mim e ele se recusa
a adaptar-se. Ele é que tem que dançar a minha música e não eu
a dele. Uma pena. Não vou mais convocá-lo.
INTERVALO.
PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS
INT. QUARTO DE HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE.
Alberto está deitado na cama, lendo uma revista de nus femininos, com fone
de ouvido.
REYNA está no quarto, diante da tela de um laptop, que está no colo dele.
Conversa com NORIEGA, via Internet: PLANO APROXIMADO de Leo e CLOSEUP da tela do laptop.
REYNA
Como assim, JUAN? Não entendi.
NORIEGA
Os caras esfriaram, foi isso. De uma hora para outra ninguém
me atende ao telefone.
REYNA
91
Isso não faz sentido, Ed. Foram eles que me procuraram. Você
chegou a tratar de cifras?
NORIEGA
Em nenhum momento falei de dinheiro. Sempre deixo a grana
para o final. Primeiro a duração do contrato, os direitos de
imagem. Eu expliquei a você.
REYNA
Mas todos os três desistiram ao mesmo tempo? Tem que ter
alguma coisa errada nessa estória, Ed.
NORIEGA
Não foi exatamente ao mesmo tempo. Provavelmente eles
conversaram entre si. Os jornais espanhóis deram a negociação
com destaque.
REYNA
Talvez seja uma estratégia para evitar um leilão. Faz sentido,
Ed?
NORIEGA
Pode ser. Vamos ver como a coisa vai ficar. É preciso ter
paciência. E aí? Como é que vão as coisas com o sargentão?
REYNA
De mal a pior. O sacana está querendo me obrigar a pedir o
boné. Mas não vai conseguir. Ele vai ter que sujar as mãos de
sangue.
NORIEGA
Grande garoto. É assim que se fala. Será que ele vai deixar você
jogar pelo menos um pouco contra os russos?
REYNA
Tenho certeza, Ed. O cão sarnento está me usando para
espicaçar Carlão.
NORIEGA
Que use à vontade. Você tem que dar show de bola no jogo com
os russos, garoto. O mundo inteiro vai ver que você chegou para
ficar.
REYNA
Um saco esse negócio de seleção.
NORIEGA (sem ironia)
92
Você tem que ter paciência com o sargentão. Seja um bom
patriota, Leo. O Brasil precisa de você.
REYNA
Deixe de conversa mole, Ed. Isso aqui é só jogo de bola. Sem
patriotada pra cima de mim, OK?
REYNA fecha o laptop.
INT. RESTAURANTE DE SHOPPING/RIO DE JANEIRO – DIA.
FEDERICA e Isabela estão almoçando.
FEDERICA
Quintero está se comportando de forma estranha.
ISABELA
Será que ele parou de tomar os remédios?
FEDERICA
Não é isso. Ele passou lá em casa ontem à noite e começou a
falar da vida particular dele.
ISABELA
Exatamente o quê?
FEDERICA
Reclamou da mulher o tempo todo. Insinuou que pode divorciarse a qualquer momento.
ISABELA
Esse cara está de olho em você. Essa conversa é típica de quem
quer ter um caso.
FEDERICA
Claro que não! Isabela! Ele não insinuou nada. Sempre foi muito
respeitoso.
ISABELA
Aí você aproveitou e negociou a permanência dele, claro.
FEDERICA
Eu fiquei tão sem graça que não aproveitei a oportunidade. Fui
uma idiota perfeita.
ISABELA
93
Perfeita não. Perfeita seria se você tivesse cortado a onda dele.
(em dúvida) Você cortou? Não me diga que você deu um chega
pra lá no bonitão. Deu?
FEDERICA
Não. Isso não. Mas não estimulei nada. Nem poderia estimular.
Não tenho interesse pessoal nele.
ISABELA
Por que não? Você ainda está ligada ao André?
FEDERICA
Você não entendeu ainda, Isabela?
ISABELA
Seu lance com André é gratidão, querida. Nunca foi amor. Vocês
não iam para cama há mais de cinco anos.
FEDERICA
10 anos.
ISABELA
Eram irmãos, não marido e mulher.
FEDERICA
Nós só fomos para a cama quando eu tentei engravidar. André
não gosta de sexo.
ISABELA
Ele é gay? Meu Deus, que desperdício.
FEDERICA
Você é quem disse isso. André simplesmente não gosta de sexo.
O que movimenta a alma dele é dinheiro. Pensa em negócios o
tempo todo.
ISABELA
Sempre foi assim? Durante todo o casamento de vocês?
FEDERICA faz sinal positivo com a cabeça.
ISABELA
E você nunca sentiu falta? Não teve nenhum amante?
FEDERICA
(dá um suspiro)
Nenhuma. Nenhuma (ressalta o “a”). Entendeu?
94
FEDERICA coloca a mão direita sobre a mão esquerda de Isabela.
FEDERICA
Quer que eu desenhe?
INT. CAMPO DE FUTEBOL/CT DA LIGA – DIA.
Silvinho, de boné, apito na mão, dirige um coletivo de reservas contra titulares.
REYNA usa o colete dos reservas.
Nas arquibancadas, Madruga conversa com o médico da seleção, Dr. LAMEGO
e o preparador físico, ALMADA. Madruga está com os exames médicos de
REYNA nas mãos, lendo com atenção.
MADRUGA
Quanto tempo o senhor acha que aguenta em um jogo?
LAMEGO
Do ponto de vista clínico ele está liberado. Os testes de
resistência foram razoáveis. Para quem bebe, fuma e dorme
apenas 3 horas por noite, Leonardo REYNA é um fenômeno.
ALMADA
No máximo um tempo. Acho que ele aguenta 45 minutos sem
problema.
MADRUGA
Ele só dorme três horas? Tem certeza?
LAMEGO
Ele me disse. Não há razão para crer que está mentindo, até
porque ele é médico como eu.
MADRUGA
O que ele fica fazendo quando não dorme?
LAMEGO
Lá fora eu não sei, mas aqui ele lê. Lê o tempo todo. Ele me
pediu emprestado alguns livros de fisiologia e já devolveu dois.
ALMADA
Mas uma pessoa não precisa de oito horas de sono?
LAMEGO
Aos 24 anos, oito horas de sono é a média. Mas fiz outros
exames com ele e não identifiquei qualquer tipo de exaustão
física.
MADRUGA
95
E mental?
LAMEGO
Conversei com ele sobre os livros. Não acreditei que ele tinha
lido. Ele sugou tudo do livro feito uma ameba. Citou até algumas
páginas quando percebeu que estava duvidando dele. Quase
morri de vergonha.
VAMOS AO COLETIVO. Na trilha sonora entra a música-tema do antigo canal
100, NA CADÊNCIA DO SAMBA (QUE BONITO É), de Waldir Calmon
(http://www.youtube.com/watch?v=5uCPo6p97Pw).
Falta contra o time titular, sem colete. Alberto se posiciona para bater. Silvinho
grita e manda Leo fazer a cobrança. Gol do time reserva.
O time titular dá a saída. Leo rouba a bola na intermediária e cruza com
perfeição para Lima, atacante que joga pela esquerda. Segundo gol dos
reservas.
Silvinho para o treino e orienta o posicionamento dos zagueiros do time titular.
Nova saída. O time titular ataca pela direita, um jogador reserva rouba a bola e
passa a REYNA, que recebe a bola e parte em velocidade na direção do gol.
O zagueiro central titular dá um carrinho (jogada ilegal), mas Silvinho manda
continuar, apesar dos protestos de REYNA.
Nova roubada de bola dos reservas; um reserva chuta de longe, quase
surpreendendo o goleiro Lucas, que espalma para fora, pela linha de fundo.
REYNA apresenta-se para bater o escanteio. Silvinho intervém e manda outro
jogador bater. Manda REYNA ir para a área.
O batedor joga a bola na área, REYNA sobe e faz seu terceiro gol, agora de
cabeça.
Na trilha a música continua, em volume mais baixo, ao fundo.
MADRUGA, LAMEGO e ALMADA olham-se, absolutamente surpresos.
MADRUGA
Esse menino é um fenômeno. Silvinho vai ter que ser mais
flexível. Ele é um bom garoto. Não dá para deixar um jogador
com essa classe fora da Copa.
ALMADA
Silvinho está frito. Ainda bem que a imprensa não está assistindo
ao treino.
96
CORTA PARA
De um prédio muito alto, situado diante do campo de treino, VEMOS o repórter
Armando Sales, ao lado do cinegrafista.
PONTO DE VISTA do cinegrafista mostra REYNA prestes a bater um escanteio.
Ele e bate e faz um gol olímpico.
VOLTAMOS AO CAMPO.
Os jogadores reservas vibram com o quarto gol de Leo, que vibra ainda mais.
Os jogadores pulam sobre ele: uma bela comemoração. O goleiro Lucas não
consegue evitar um sorriso.
Silvinho está visivelmente contrariado com a atuação de REYNA.
INT. SALA DE SILVINHO/CT SELEÇÃO DA LIGA – DIA.
Silvinho está sentado no sofá. Diante dele, Madruga.
SILVINHO
Tu viste que merda foi o treino?
MADRUGA
De que merda você está falando, Silvio? O que eu vi hoje foi o
coletivo mais extraordinário que já presenciei em 35 anos de
futebol.
SILVINHO
Meu time estava uma merda. Só melhorou no segundo tempo.
MADRUGA
Esse é um ponto de vista. Outro ponto de vista é que o time de
cima só melhorou com a entrada de REYNA. Outro ponto de vista
seria que o time de baixo piorou com a saída do garoto.
SILVINHO
E tu achas isso ótimo? Não percebes um momento sequer que
eu estou numa encrenca dos diabos? E o pior é que não posso
culpar ninguém!
MADRUGA
Qualquer técnico do mundo adoraria estar nessa encrenca,
Silvio. O problema é que você não gosta do garoto.
SILVINHO
Não é questão de gostar. É uma questão de princípios, tu bem
sabes.
97
Almada entra na sala e interrompe.
MADRUGA
Armando Sales gravou o treino de um prédio ao lado. Todos os
gols já saíram na TV e já estão na Internet.
SILVINHO
O quê? Mas não é possível uma coisa dessas.
MADRUGA
Vou avisar ao Alcides para colocar vigilância naquele prédio no
treino da tarde e de amanhã cedo.
SILVINHO
Não. Almada, tu fazes isso?
ALMADA
Claro, Silvio. Falo com ele agora mesmo.
Almada sai.
SILVINHO
Agora mesmo é que a merda entornou de vez.
MADRUGA
Seja mais flexível, Silvio. Toda regra admite exceção. O garoto
joga muita bola, não pode ficar de fora. Ainda mais agora que o
mundo inteiro vai ver o carnaval que Leo aprontou nesse
coletivo.
SILVINHO
E com que autoridade eu vou exigir um comportamento de atleta
dos outros jogadores? Tu podes explicar-me?
MADRUGA
Enquanto ele fizer gols abra uma exceção para ele. Se parar de
fazer gols, acaba a exceção.
SILVINHO
Enquanto isso ele toma todas as biritas, passa as madrugadas na
gandaia, fuma feito pai de santo e o palhaço aqui, exigindo bom
comportamento dos outros. É assim que tu queres?
MADRUGA
Eu entendo que pode ser desconfortável, mas o objetivo maior é
ganhar a Copa do Mundo. Com jeito a gente administra o
menino.
98
SILVINHO
Tu pensas que já não tentei?
MADRUGA
Ele é muito inteligente, tem QI alto. Não deve ser difícil ajeitar as
coisas.
SILVINHO
Tu pensas que eu sou burro?
MADRUGA
Não. Mas penso que você pode ser inflexível quando quer. E
mais teimoso do que uma mula.
SILVINHO
Não posso manter o garoto no grupo. Esperava que tu
entendesses que não tenho alternativa. Ele vai não joga contra a
Rússia e não volta a ser convocado. A menos que se enquadre.
Ponto final.
MADRUGA
Eu sou contra. Essa atitude é um tiro no pé. O mundo inteiro viu
o treino do garoto.
SILVINHO
Teu papel é concordar comigo. É para isso que tu estás aqui.
MADRUGA
Você não precisa de um assistente. Não precisa de ninguém.
Você acha que está sempre certo, Silvio. Eu cansei. Cansei de
verdade!
Madruga levanta-se e sai da sala, irritado.
SILVINHO
Tu me desapontas e ainda ficas bravo. Volte aqui, Madruga.
Volte imediatamente ou mando-te para o olho da rua!
MADRUGA (volta)
Não manda porque eu já me demiti. Não vou ser cúmplice com o
que você vai fazer. (sai)
Silvinho levanta-se e vai atrás dele.
INT. CORREDOR/CT SELEÇÃO DA LIGA – DIA.
Silvinho coloca o corpo para fora de sua sala e vê Madruga afastando-se
corredor afora. PONTO DE VISTA de Silvinho.
99
SILVINHO
Está bem, tu venceste. Vou falar com o garoto mais uma vez.
MADRUGA
Vai falar na boa? Dar a ele uma oportunidade real de ficar?
SILVINHO
Vou fazer melhor. Tu mesmo conversas com ele. E expliques que
a única coisa que quero é que ele siga as regras que todos no
grupo vão seguir.
INT. SUÍTE DE CARLÃO/HOTEL CINCO ESTRELAS – DIA.
Carlão está na cama, deitado ao lado de BIRGIT. Fizeram amor. Toca o
telefone, ele atende.
CARLÃO
É ele. O que foi? Como? Tem certeza? Não. Não precisa. O
treinador resolve isso, é problema dele. (desliga o telefone)
Ela procura aninhar-se no corpo dele, mas é repelida.
CARLÃO
Sem grude, minha filha. Vou tomar uma ducha. Ligue a TV na
Rede América. Não demoro.
Usando o controle remoto, BIRGIT liga a TV. Na tela da enorme TV de cristal
líquido surge o rosto de REYNA.
Carlão já estava entrando no banheiro, mas volta-se para ver a entrevista de
REYNA.
Na TV, ACOMPANHAMOS a entrevista, no PONTO DE VISTA de Carlão.
REYNA
A decisão de sair de uma vez foi minha. O treinador falou que no
grupo dele todos têm que dançar no ritmo da música que ele
toca. Eu detesto música folclórica gaúcha. Resolvi cair fora antes
de ser cortado.
ARMANDO
Mesmo fazendo sete gols no coletivo e com lugar garantido no
jogo contra a Rússia você pediu para sair?
REYNA
Devagar com andor porque o santo é de barro, Ed. Eu não iria
jogar contra os russos. O treinador deixou claro que não haveria
a menor possibilidade de entrar.
100
ARMANDO
Não faltou diálogo entre você e a Comissão Técnica?
REYNA
Minha convocação foi bacana, o treinador achou que iria me
enquadrar, mas calculou mal. Conversamos numa boa, temos
opiniões diferentes e é só isso.
ARMANDO
Não lhe ocorreu que sua imagem diante dos torcedores pode
ficar prejudicada por deixar a seleção que vai representar o
Brasil na Copa do Mundo?
REYNA
Não. Acho que o torcedor é muito mais inteligente do que
supõem os jornalistas. Quem consegue sobreviver num país
como o Brasil não é burro. Sabe que nosso futebol está entregue
a um bando de corruptos que só representa seus próprios
interesses. Essa turma vai para a cadeia e não demora. Cana
neles, JOAQUIM!
Possesso, Carlão atira um travesseiro na TV.
CARLÃO
Cachorro filho da mãe! Camelo sem alma!
INTERVALO
PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS
INT. SUÍTE DE CARLÃO/HOTEL CINCO ESTRELAS – DIA.
Carlão está tomando café da manhã, acompanhado de Silvinho.
Tu compreendeste?
SILVINHO
CARLÃO
Compreendi que o garoto deu um baile em você e quem ficou
bem na foto fui eu. Todos vão pensar que fui eu que mandei
você cortar o doutorzinho de merda.
SILVINHO
Não estou preocupado com isso. Fiz isso para restaurar o bom
clima contigo. Amigos de novo? (estende a mão direita para ele)
CARLÃO
Não é tão simples assim, gaúcho de merda. Você vai ter que
fazer mais se quiser ser perdoado pelo comportamento
101
inaceitável que você teve. Aliás, já acertei tudo com seu amigo
do Palácio do Planalto.
SILVINHO
O que tu queres que eu faça?
CARLÃO
(passa a ele uma folha de papel dobrada)
Você está vendo esses nomes?
SILVINHO
(lê com calma)
É para convocá-los? Só tem um que se adapta ao meu esquema
de jogo.
CARLÃO
O esquema é feito a partir dos jogadores que você tem à
disposição, meu filho. E não o contrário. Você vai chamar esses
meninos para a Copa. É gente minha, ligada a empresários
amigos.
SILVINHO
Não vou aceitar esse tipo de coisa. Tu sabes que não.
CARLÃO
Vai sim, meu querido. E não adianta ir chorar com papai porque
ele não mais proteger você.
SILVINHO (suspira)
Está certo. Farei o que pedes.
CARLÃO
Eu não peço. Eu mando. E não vai ficar só nisso.
INT. QUARTO DE REYNA/APARTAMENTO DE REYNA – DIA.
REYNA está dormindo. O irmão dele, o roqueiro SAMUEL ROSA (da banda SKANK)
entra e abre as cortinas.
SAMUEL
Acorda mano. Já passou da hora de ir para o treino.
REYNA
Samuca?! O que você está fazendo aqui?
SAMUEL
Acabei de falar com Quintero.
102
REYNA
(levanta rápido e vai para o banheiro)
Da próxima vez que você me acordar assim esqueço que você é
meu irmão mais velho e enfio uma de suas guitarras em seu
rabo.
SAMUEL
Menino malcriado. Não quer saber o que Quintero falou?
REYNA
(escovando os dentes)
Perguntou sobre Madruga?
SAMUEL
Não. Disse que mudou de ideia e que conta com você.
REYNA
(ainda com a escova na boca)
Diretor técnico ou treinador?
SAMUEL
Diretor. Chamou o tal Madruga para técnico. Ele é fã do SKANK,
sabia?
REYNA
Madruga ou Quintero?
SAMUEL
Os dois. Claro.
EXT. CASA DE QUINTERO/BARRA DA TIJUCA – DIA.
Uma bela casa, com muito verde e um portão eletrônico grande. Ao lado, uma
guarita com segurança.
INT. CASA DE QUINTERO – DIA.
Quintero está tomando café da manhã, protegido do sol na varanda. Lê um
jornal, que é o mesmo que publicou a foto de REYNA torcendo o nariz de
Armando. Perto dele, na piscina, seus meninos (Fernando de 10 anos e Luca, de 8)
brincam na piscina com TOMOKO, mãe deles.
A mulher de Quintero sai da piscina, pega uma toalha e vai sentar-se ao lado
dele. Ele para de ler o jornal.
TOMOKO
Você não vai entrar querido? A água está uma delícia.
103
QUINTERO
Não meu bem. Vou dar um pulo ao Brasil. Tenho que resolver
minha situação.
TOMOKO (irritada)
Resolver o quê? A situação já está mais do que resolvida.
QUINTERO
O assistente técnico de Silvio SCALIONI me ligou há pouco. Ele
desligou-se ontem à noite da seleção.
TOMOKO
E você com isso?
QUINTERO
Vou sugerir a contratação dele como treinador.
TOMOKO
Se ele é assistente não é um nome adequado para o Brasil. É
evidente. Vai queimar seu filme.
QUINTERO
Evidente para você, que entende mais de futebol do que eu.
TOMOKO
Detesto quando você usa ironia comigo.
QUINTERO
(sem mudar o tom de voz)
Então não dê palpites quando eles não forem solicitados.
TOMOKO
Estou estranhando esse tom de voz. O que deu em você?
QUINTERO
Nada demais. Resolvi aceitar a proposta de FEDERICA e ficar no
Brasil. Volto a ser diretor técnico.
TOMOKO
Não vai não. Isso já está resolvido e pacificado. Vamos morar em
Londres. Estou cansada de viver nessa cidade selvagem.
QUINTERO
Você pode voltar se quiser. Mas as crianças ficam comigo. Elas
adoram o Rio.
TOMOKO dá um violento bofetão em Quintero.
104
Os garotos param de brincar e olham assustados para os pais.
TOMOKO
Isso não é jeito de falar comigo! Meu pai não vai gostar nem um
pouco do que você está fazendo.
QUINTERO (frio)
Problema dele. Não abuse de minha paciência... estamos no
limite da irresponsabilidade.
TOMOKO
(acende um cigarro, nervosa)
É aquela mulher! Sei que é ela! Eu vi as fotos dela em sua pasta,
seu filho da mãe!
QUINTERO
Deixe de ser histérica e comporte-se como uma pessoa
civilizada. FEDERICA não tem nada a ver com minha decisão. É
direito meu, é a minha vida.
TOMOKO
Você vai estragar sua saúde por causa dessa mulher. Quando é
que você vai perder essa mania de resolver os problemas dos
outros? Você tem que cuidar é de sua saúde e de sua família.
QUINTERO
Não vou discutir mais, TOMOKO. Já resolvi e está resolvido.
TOMOKO
No meu quarto você não dorme mais!
INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS – DIA.
Depoimento número DOIS de Juca KFOURI.
Episódio III: PAIXÃO DE TORCEDOR
PARTE I
PRÓLOGO
5 MINUTOS
INT. SALA/DIRETOR DA FOLHA DO RIO – DIA.
Isabela, elegante e graciosa, está na cadeira de visitantes do diretor Ariel
Peçanha, 65 anos. Ao fundo, VEMOS a redação: as persianas da sala do
executivo estão arriadas.
ISABELA
Vou fazer uma série de reportagens sobre as torcidas
organizadas.
105
ARIEL
É um bom tema. De onde vem tanto interesse?
ISABELA
Da paixão pela Roma antiga. Adoro Júlio Cesar e Cleópatra.
ARIEL
Já troquei suas fraldas, Bolinha. Não se esqueça disso.
ISABELA
Se me chamar de Bolinha de novo aceito o convite de meu pai e
assumo seu lugar.
ARIEL
(fingindo que as mãos tremem)
Veja minhas rugas de preocupação. Olhe as minhas mãos.
ISABELA
Foi mal. Mas você mereceu. Não tem um santo dia sem que seu
jornal publique uma notícia sobre violência entre as torcidas
organizadas.
ARIEL
Por isso mesmo. Já é assunto manjado.
ISABELA
As organizadas são um câncer que precisa ser extirpado. Nada
me convence de que os clubes não estão por trás desses
marginais.
ARIEL
OK. Vamos supor que você esteja certa. E daí?
ISABELA
Você está pedindo mais uma patada.
ARIEL
O jornal não pode se indispor com os clubes. Nenhum jornal
pode fazer isso.
ISABELA
Estou me lixando para os clubes. O futebol brasileiro está
apodrecendo e eu pretendo por o dedo na ferida. Alguém tem
que fazer isso.
ARIEL
Enquanto eu estiver na direção, a Folha do Rio não vai comprar
briga com os clubes. Brigar com os clubes é a mesma coisa que
106
brigar com os torcedores. É tiro no pé, mocinha. Não vai
acontecer.
Veremos.
ISABELA
ARIEL
Vou falar com seu pai.
ISABELA
Fique à vontade para ligar.
Ariel pega seu telefone.
ARIEL
Jonas? Ariel. Dê um pulo até aqui.
ISABEL
Meu pai mudou de nome?
ARIEL
Chamei o editor de esportes. Não é ético tratar de uma pauta na
editoria dele ignorando o cara.
ISABELA
Não acho legal. Amanhã ou depois vou ficar no lugar dele. É
constrangedor.
ARIEL
Não há como fazer omelete sem quebrar os ovos. Mas fique
tranquila. Jonas é um ótimo profissional. Não vai ficar no sereno.
ISABELA
Arrume outra editoria para ele.
ARIEL
Ele não vai aceitar. Adora a área de esportes. A bola é minha,
OK? Senão você vai levar umas palmadas na frente de todo
mundo.
Você não ousaria.
ISABELA
ARIEL
Já fiz isso duas vezes. Já se esqueceu?
Jonas entra, depois de bater na porta rapidamente.
107
JONAS
E aí? Qual é a encrenca?
ARIEL
Quem disse que tem encrenca?
JONAS
(olha para Isabela)
Modo de falar. Enfim chegou a hora de conhecer o ilustre
Sobrenatural de Almeida.
ISABELA
Não tão ilustre. Garanti que Quintero ficaria até o fim do ano e
errei.
JONAS
Um pequeno deslize entre muitos acertos. E essa parada ainda
não está decidida. Ainda acho que você vai acertar essa também.
Muito prazer. Jonas Mello.
ISABELA
Você é muito gentil, Jonas. Isabela Falcão.
ARIEL
Estamos conversando sobre a violência no futebol.
JONAS
No campo ou fora dela?
ISABELA
Fora.
Ariel olha para Isabela, censurando, visivelmente, a fala dela. Isabela abaixa os
olhos, arrependida.
ARIEL
A que você atribui a violência nos estádios, Jonas?
JONAS
São muitas as causas.
ARIEL
Temos tempo. Vamos a elas.
JONAS
O desconforto nos estádios. Nossos estádios só agora estão
transformando-se em arenas mais confortáveis. O torcedor está
acostumado a pagar caro pelos ingressos sem direito a conforto.
108
Tem estádio em que os torcedores ficam como sardinha numa
lata.
Fator número 2.
ARIEL
JONAS
Horários inadequados. Um absurdo um jogo de futebol ocorrer
às 22h. Numa cidade como o Rio ou São Paulo o torcedor que
não tem carro só chega em casa lá pelas duas da madrugada.
ARIEL
Gente demais comprimida dentro dos coletivos, de torcidas
diferentes. Uns felizes outros chateados com a derrota. Um fio
desencapado.
ARIEL
Três.
JONAS
A crônica esportiva também tem culpa no cartório. Nós tratamos
os jogos de forma passional, mais como torcedores do que como
jornalistas.
É mesmo?
ISABELA
JONAS
Claro. Se não for assim ficamos atrás da concorrência. Não dá
para ser mais realista do que o rei. Empatia com o leitor deixa o
pessoal do comercial muito feliz.
ARIEL
E as torcidas organizadas?
Jonas mostra quatro dedos da mão direita.
TEASER E CRÉDITOS DA MINISSÉRIE:
CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO,
impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas
respectivas torcidas nas arquibancadas.
INTERVALO.
PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS.
EXT. EDIFÍCIO RESIDENCIAL NO LEBLON/RIO DE JANEIRO – DIA.
Um prédio de classe média alta. É onde mora Leo REYNA.
109
Ele sai devagar, dirigindo seu carro, um jipe RANGE ROVER. É quase meio dia.
Algumas pessoas estão do outro lado da rua: SANDRO, CHIQUINHO e
MELISSA.
Sandro, 39 anos, careca, todo tatuado, musculoso, de bermudas, boné e
óculos escuros se aproxima da mesa, acompanhado pelo motoboy Chiquinho,
30 anos, baixinho, miúdo, os dois fanáticos pelo Atlético, filiados à Cara de
Cão. Melissa tem 25 anos, é down, loura de farmácia, de batom, unhas feitas,
sensual.
Eles estão de olho em REYNA, seguindo o carro dele, que logo se afasta dos
três.
Um furgão aproxima-se do grupo e para perto deles. O motorista sai e entrega
a chave a Sandro.
MOTORISTA
Pode ficar com ele até cinco da tarde. Tome cuidado, hein? Seu
pai me mata se souber disso.
SANDRO
Relaxe, meu irmão. Dou até uma lavada nele. Entra aí. Deixo
você lá no centro.
MOTORISTA
Não precisa. Vou fazer um serviço aqui perto.
O motorista vai embora. Os três já estão no furgão.
SANDRO
Vamos mesmo fazer esse negócio? Tem certeza, Chico?
CHIQUINHO
Não vai dar para trás, vai?
SANDRO
De jeito nenhum. Vamos pegar o homem.
MELISSA
Não é para machucar o meu amor.
O furgão dá a partida.
EXT. RESTAURANTE NO LEBLON/RIO DE JANEIRO – DIA.
REYNA está almoçando numa mesa isolada. Lucas está com ele.
110
LUCAS
Você não se arrepende de ter largado a medicina?
REYNA
Largar não é o verbo certo. Não vou deixar de ser médico.
Continuo estudando, quero ficar atualizado.
LUCAS
Você acha que dá pra fazer mil coisas ao mesmo tempo.
REYNA
Quem falou em mil foi você, Ed. Meu foco vai ser a bola. Quero
ser o melhor do mundo. Sou ambicioso.
LUCAS
Melhor do mundo enchendo a cara, direto na balada, transando
com tudo quanto é Maria Chuteira?
REYNA
Não vejo o que uma coisa tem a ver com a outra. Não pretendo
deixar de viver para jogar futebol.
LUCAS
Tem hora que eu penso que essa estória de QI de 150 é
conversa pra boi dormir. Acabou a boa vida, meu irmão. Agora
você vai ser cobrado como qualquer um de nós. A torcida não
vai deixar você em paz, malandro.
Sandro se aproxima da mesa, acompanhado pelo motoboy Chiquinho, 30 anos.
LUCAS (a eles)
Pois não? Querem autógrafo?
CHIQUINHO
Autógrafo porcaria nenhuma. Quero mais é que vocês tenham
indigestão.
SANDRO (a REYNA)
Se o Atlético perder de novo e for rebaixado, eu te pego.
LUCAS
(faz sinal a um garçom, apontando os dois)
É melhor vocês caírem fora. A segurança já vem cuidar de vocês.
REYNA
(levanta-se)
Não vai ser preciso segurança nenhuma. O gordo é boiola e o
nanico não assusta nem um poodle.
111
Sandro parece meio bobo: tem visível limitação mental, embora não seja um
anormal típico.
SANDRO
(partindo para cima de REYNA)
Tu vai ver quem é boiola!
Lucas levanta-se e fica entre os dois. Três seguranças chegam e seguram
Sandro e CHIQUINHO.
CHIQUINHO
Vamos com calma aí! A gente é da paz!
SEGURANÇA UM
Vamos lá para fora! Os dois, rápido!
SEGURANÇA DOIS
Devagar, campeão. Vamos sair. Devagar. Bem mansinho.
REYNA
Da paz porra nenhuma. Vocês vieram arrumar confusão.
CHIQUINHO
Fica quieto, Sandro. Calma aí. Vamos embora, Sandro.
INT. REDAÇÃO/JORNAL FOLHA DO RIO – DIA.
São 10h da manhã. A redação já está cheia.
A passagem de Isabela Falcão pela redação, caminhando devagar até a sala do
diretor de redação ARIEL PEÇANHA é observada com atenção por quase todos
os jornalistas (só as mulheres fingem evitar olhar para ela).
INT. SALA/DIRETOR DE REDAÇÃO/FOLHA DO RIO – DIA.
ROQUE SILVANO, 67 anos, presidente da torcida organizada CARA DE CÃO – a
mais ruidosa e importante torcida do Rio, ligada ao principal rival local do
BRASIL FC (o Atlético do Rio), mais antigo clube do país –, está diante do diretor.
Vestido com uma camisa com a logomarca da torcida organizada Cara de Cão
estampada com destaque, Roque olha com desdém para Isabela, que não o
cumprimenta.
ARIEL
Temos uma visita ilustre, Isabela. Roque Silvano, da Cara de
Cão. Isabela Falcão, repórter especial.
ROQUE
112
(levanta-se e estende a mão)
Não se se sou ilustre, mas estou às suas ordens.
Ela não aceita a mão estendida e senta-se na outra cadeira de visitante.
ISABEL
Provavelmente a família daquele garoto que ficou paralítico
concorda com o senhor.
ROQUE
Aquela tragédia lamentável não foi culpa da Cara de Cão. Quem
mandou o rapaz desafiar a minha turma?
ISABEL
Desde quando oferecer um refrigerante à sua filha é um desafio?
ARIEL (conciliador)
Vamos esquecer essa estória. (a Isabela, firme) Roque veio aqui
em paz, Isabela. E vai ser tratado com educação e gentileza.
ROQUE (irritado)
Minha filha foi desrespeitada.
ISABELA
Você não me chamou aqui para dar boas-vindas a esse sujeito.
ROQUE (a Ariel)
Essa mulher não gosta de nós. Não é a pessoa adequada para
fazer a reportagem.
ARIEL
Você pediu Sobrenatural de Almeida. É Isabela quem faz a
coluna dele.
ROQUE
Não é um velho?
ISABELA
Não dá para perceber a diferença?
ARIEL
Ela é quem faz a coluna, Roque. Se você mudar de ideia destaco
outro repórter.
ROQUE
Não. Ela mesma serve. Tem que ser ela.
ISABEL
113
Serve para quê?
ARIEL
Vamos começar aquela pauta com uma reportagem especial
sobre a Cara de Cão. Para o caderno de domingo. Roque
convidou o jornal para conhecer a sede administrativa da Cara
de Cão.
ROQUE
Você vai ver que somos gente de bem. Trabalhadores de carteira
assinada e não marginais como você costuma dizer na coluna.
ISABELA
Vou ter liberdade para conversar com todas as pessoas que
quiser?
ROQUE
Se prometer que vai ser neutra e deixar de lado os preconceitos,
vai.
ARIEL
Pode ficar tranquilo. Isabela é uma jornalista isenta e sabe
separar a reportagem do que escreve como colunista.
ROQUE (desafiador)
É bom mesmo que saiba.
Vamos lá?
ISABELA (levanta-se)
ROQUE
Agora não dá. Tenho um emprego. Consegui uma folga para
amanhã no início da tarde. Espero você a partir de duas horas.
Uma.
ISABELA
ROQUE
Eu só chego às duas.
ISABELA
Três então. Pra dar tempo de você ver como estão as coisas.
Isabela caminha até a porta de saída. De costas, despede-se de Roque e sai.
ISABEL
Até amanhã.
114
ROQUE
Metida essa menina. Difícil acreditar que ela é o Sobrenatural de
Almeida.
ARIEL
Você não faz ideia do que essa menina é capaz de fazer. Vamos
à redação. Vou apresentar você ao pessoal que trabalha na
editoria de esportes.
ROQUE
Ela não é a chefe dos esportes?
ARIEL
Não. É repórter especial. Reporta-se direto a mim.
Os dois levantam-se e saem.
EXT. RESTAURANTE NO LEBLON/RIO DE JANEIRO – DIA.
REYNA e Lucas saem do restaurante.
LUCAS
Vamos pegar um cinema mais tarde?
REYNA
Não vai dar. Uma Maria Chuteira suculenta vai passar lá em
casa.
Lucas entra no carro dele, que está bem perto da entrada do restaurante.
LUCAS
OK. A gente se vê. Carona?
REYNA
Meu carro ficou ali na frente. Obrigado, Ed.
REYNA caminha na direção que indicou a Lucas. Quando se aproxima de um
furgão, ouve um assovio e volta-se para trás.
MELISSA
(em OFF)
Leo? Meu amor: você já almoçou?
REYNA fica curioso e aproxima-se da porta traseira do furgão, que está um
pouco aberta. A porta abre-se devagar.
Em PLANO APROXIMADO, VEMOS uma mão aproximar-se por trás e colocar
um lenço umedecido no nariz de REYNA, que fica sem ação e desmaia.
115
Sandro surge logo após, segurando Leo e o empurra para dentro do furgão.
INT. FURGÃO – DIA.
Chiquinho, que está lá dentro junto com Melissa, ajuda a segurar o corpo
inerte de REYNA, com ajuda de Melissa. Com carinho, ela ajeita REYNA no piso
do carro. Sandro fecha e tranca a porta.
EXT. FURGÃO/LEBLON/RIO – DIA.
Sandro entra rápido no furgão e sai em alta felicidade.
EXT. SUBÚRBIO DO RIO/RIO DE JANEIRO – DIA.
O furgão aproxima-se lentamente do portão de entrada do enorme galpão em
que está instalada a sede da Cara de Cão. O portão está fechado e há um vigia
uniformizado de guarda, devidamente armado.
O furgão para e espera a aproximação do guarda de vigilância.
GUARDA
Bom dia, garoto. Tudo beleza?
SANDRO
Tudo em ordem. O chefe já chegou?
GUARDA
Já. O homem está irritado contigo. Cadê a menina?
SANDRO
Calma, irmão. Ela está aqui. Leão ou veado?
GUARDA
Parei com o jogo do bicho. Crie juízo e pare também.
Sandro dá a partida e entra no galpão. A área interna é enorme.
Em rápida panorâmica, VEMOS que é o galpão é dividido em vários ambientes,
separados por divisórias que vão até o teto: academia de ginástica, quadras de
futebol de salão, salão de sinuca/bilhar/pebolim, academia de jiu-jitsu,
octógono de MAM, piscina, lanchonete.
Tudo aberto, sem portas. Há gente em todos os ambientes: é um ambiente
dinâmico, agitado. A área de circulação é igualmente ampla; há muitos carros
estacionados.
116
Sandro leva o furgão até uma casa pré-fabricada, recém-pintada, identificada
com o nome ADMINISTRAÇÃO.
Sandro estaciona e sai rápido. Abre a porta de trás e VEMOS REYNA ainda
desmaiado. Sandro faz sinal a um terceiro homem.
SANDRO
Vem cá, LAUDELINO. Ajuda a levar essa encomenda para a sala
do chefe.
Laudelino, negro, fortíssimo de mais de 2m de altura, aproxima-se e vê de
quem se trata, antes que comecem a levar REYNA para fora do furgão.
LAUDELINO
Esse não é aquele REYNA, do Brasil?
SANDRO
É ele mesmo, negão. Trouxemos de presente para o chefe.
CHIQUINHO
Eu entro primeiro. Esperem aqui uns dois minutos. Deixe-me
falar com o chefe primeiro.
LAUDELINO
Vamos deixar ele lá na piscina.
SANDRO
E aí, Chiquinho?
MELISSA
Eu vou com ele para lá.
CHIQUINHO
Lá não é fechado. A gente pode usar o quartinho do corredor
polonês. Tem alguma coisa lá, Laudelino?
LAUDELINO
Tem não. Mas não tem cama.
CHIQUINHO
Lá está bom demais. É por pouco tempo.
Laudelino leva REYNA ainda desmaiado para o ambiente que fica perto: há
uma porta fechada no final de uma linha pontilhada
LAUDELINO
O que vocês deram pra esse sujeito?
117
Nada não.
SANDRO (com receio)
LAUDELINO
E quem fez o camarada dormir desse jeito? Parece que morreu.
MELISSA
O Leo morreu? Meu Deus!
Melissa começa a chorar.
SANDRO
Morreu não, querida. Ele está só dormindo. (a Laudelino) Está
vendo o que tu fez?
LAUDELINO
Olha lá o que você está aprontando, irmão. Não vai colocar a
gente numa fria.
MELISSA
(a Laudelino, que está abrindo a porta)
Vamos colocar ele numa cama. Cama é que é lugar de dormir.
LAUDELINO
O Chiquinho disse que era para ficar aqui mesmo.
Os três entram (Laudelino usa uma chave para abrir o portão de acesso à piscina) no
quartinho entulhado.
MELISSA
Não quero que o meu Leo fique aqui. É muito sujo. Sujo demais
aqui.
SANDRO
Ele vai ter que ficar aqui mesmo até Chiquinho conversar com
seu pai.
Melissa não quer soltar o corpo desacordado de REYNA (segurou na mão dele o
tempo todo do trajeto do furgão até o quartinho).
MELISSA
Eu fico com ele aqui.
Eu também.
SANDRO
LAUDELINO
118
Vocês me deixem fora dessa estória. Não quero saber de
confusão.
SANDRO
Deixe de ser medroso. Melissinha está feliz. Está tudo bem.
MELISSA
Está tudo bem sim. Veja como ele é lindo. Meu Leo. Ele é meu,
Laudelino. Só meu.
Laudelino sai.
INT. RECEPÇÃO/SALA/ROQUE/SEDE DA CARA DE CÃO – DIA.
Chiquinho é atendido pela secretária, Marlene.
MARLENE
Quem é vivo sempre aparece, senhor Chiquinho. Cadê seu amigo
destrambelhado?
CHIQUINHO
Não gosto que você fale assim de Sandro. Ele é gente boa.
MARLENE
Gente boa por quê? Não trabalha, fica enfiado o dia inteiro
naquela academia e quando resolve sair vai andar de skate,
como se tivesse 16 anos.
CHIQUINHO
Ele que ser campeão de jiu-jitsu, precisa treinar. (pausa) Preciso
dar uma palavrinha com o chefe. Pode ser?
Vai demorar?
MARLENE
CHIQUINHO
Cinco minutos, dez. Melissinha está aí fora. Com Sandro.
MARLENE
Tá bom. Vai lá e não demore. O chefe está esperando uma
jornalista da Folha. A moça vai chegar a qualquer momento.
CHIQUINHO
O doutor Francisco já chegou?
MARLENE
Não. Por quê?
119
CHIQUINHO
Por nada não. Falei por falar.
INT. SALA DE ROQUE/CARA DE CÃO – RIO.
Roque está sentado à mesa, lendo com atenção o jornal do dia. A sala é
decorada com mau gosto, cheia de fotos do Atlético: feitas durante jogos, além
das fotos oficiais de times diferentes do Atlético em várias temporadas.
Medalhas e certificados também ilustram a parede.
ROQUE
(com óculos de leitura)
Que cara é essa, minhoca? Cadê seu amigo retardado?
CHIQUINHO
Ele está ali fora.
ROQUE
Estou com vontade de estrangular aquele nojento. Onde é que
ele se meteu com minha filha?
CHIQUINHO
Pode ficar tranquilo, chefe. Ela já está aqui.
ROQUE
(volta a ler)
Fale para o retardado que não é para sair com minha filha sem
minha autorização.
CHIQUINHO
O senhor não devia chamar Sandro de retardado. Ele não é igual
a sua filha.
ROQUE
(levanta-se, irritado)
E quem disse que a minha filha é retardada?
CHIQUINHO (amedrontado)
O senhor devia era agradecer a gente.
ROQUE (irônico)
É mesmo?
CHIQUINHO
A gente trouxe um presente para o senhor.
Cadê?
ROQUE
120
CHIQUINHO
Não é presente de pegar. Nem de carregar. Vamos comigo na
piscina. O senhor vai ver.
ROQUE
Que suspense besta é esse? Fale logo do que se trata.
CHIQUINHO (sorrindo)
A gente trouxe o REYNA. O senhor fala com o sujeito e ele
convence o Brasil a perder o segundo jogo pra gente.
INTERVALO.
PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS.
INT. RECEPÇÃO/SALA/ROQUE – DIA.
Roque sai da sala dele, com cara de poucos amigos.
MARLENE
Está quase na hora da jornalista chegar.
ROQUE
Merda! Segura a dona na portaria. Não a deixe entrar de jeito
nenhum.
MARLENE
O que foi? O Chiquinho vai ficar em sua sala?
ROQUE
Vai. Eu ainda vou falar com ele.
CORTA PARA: Chiquinho caído no chão, meio tonto.
MARLENE
O que eu você quer que fale para a moça?
ROQUE
Qualquer coisa. Diz que ainda não cheguei. Não a deixe entrar
mesmo se ela insistir.
MARLENE
Não convém deixar a moça esperando muito tempo, Roque.
Roque sai, em passos rápidos.
INT. QUARTINHO DA CARA DE CÃO/CORREDOR POLONÊS – DIA.
121
Roque chega ao ambiente em que fica o quartinho: uma quadra de futsal. Está
havendo uma brincadeira de bobinho. VEMOS que é gente mais simples, de
classes sociais D e E. Apenas metade da quadra é usada.
Roque ignora o grupo, que o cumprimenta.
JOGADOR UM
Olha o chefe aí, pessoal! Você quer jogar, Roque?
JOGADOR DOIS
Tudo bem, Roque? Já está se acostumando com a segundona?
JOGADOR TRÊS
Os ingressos já chegaram? Guarda três pra mim, Roque.
Roque vai direto ao quartinho e destranca a porta. Entra rápido.
MELISSA
Paizinhooooo! Meu paizinhooooooooooo!
SANDRO
Olhe quem está aqui, Roque!
Roque dá um murro no rosto de Sandro. Ele cai e fica meio tonto. Roque
abraça e beija Melissa. REYNA continua desmaiado.
ROQUE
Vocês são dois irresponsáveis! Isso que fizeram é crime! É
sequestro, seu imbecil!
MELISSA
Sandro não tem culpa. Fui eu que pedi a ele.
SANDRO
Foi o Chiquinho que deu a ideia, Roque.
ROQUE
Dois mentecaptos. O que vocês deram para ele dormir assim?
SANDRO
A gente comprou um negócio na farmácia.
Roque pega seu celular e tecla um número.
ROQUE
Laudelino! Vem rápido no quartinho do corredor polonês. Agora!
MELISSA
122
Eu vou casar com ele, paizinho. Posso casar com ele, paizinho?
ROQUE
Isso não é assim, minha filha. Ele tem que querer casar com
você. Depois do que vocês fizeram com ele, esse sujeito não vai
gostar muito dessa ideia.
SANDRO
Ninguém machucou o moço, Roque. Melissinha não deixou. Eu
bem queria bater nele. Ele me chamou de boiola!
Laudelino chega. Entra rápido. Finge que não sabe de nada.
ROQUE
Leve esse sujeito para minha sala. (a Sandro) Tire a camiseta. Não
é bom ninguém saber que ele está aqui. (a Laudelino) Cubra o
rosto dele. (a Sandro, de novo) Bico calado, entendeu? Depois falo
com você.
REYNA dá um gemido.
MELISSA
Ele está acordando!
ROQUE
Rápido com isso, Laudelino.
INT. GALPÃO/CARA DE CÃO/SUBÚRBIO – RIO.
Roque segue na frente, seguido por Laudelino com REYNA ainda desacordado
nas costas; Melissa sempre segurando uma das mãos de REYNA.
Os jogadores vêm a saída dos três.
FICAMOS COM OS JOGADORES, que estão fazendo agora “dois toques” de
aquecimento.
VEMOS Roque, Laudelino, REYNA e Melissa ao fundo, na direção da sala da
presidência.
JOGADOR UM
Quem é aquele cara?
JOGADOR DOIS
Não sei. Não tenho a mínima ideia.
JOGADOR UM
123
Do jeito que Melissinha está grudada nele deve ser um novo
pretendente.
JOGADOR TRÊS
Tomara que esse seja nosso. Roque não merece o desgosto de
ver a filha apaixonada por um jogador do Brasil.
JOGADOR DOIS
Eles estão com tudo. E o pior é que o rabo é nosso.
JOGADOR UM
Será que vamos mesmo para a segunda divisão?
JOGADOR DOIS
Você tem alguma dúvida? Nosso time está uma merda e o Brasil
está comendo a bola. Se a gente perder de pouco está bom
demais.
INT. RECEPÇÃO/SALA/ROQUE – RIO.
Chegam à recepção.
ROQUE
O Chiquinho está lá dentro?
MARLENE
Não. Saiu daqui emburrado.
ROQUE (a Laudelino)
Leve ele para minha sala. Depois fique aqui fora, esperando.
Coloque um esparadrapo na boca dele e amarre o filho da mãe
bem amarrado.
LAUDELINO
Aonde?
ROQUE
Coloque-o numa cadeira. Amarrado. Bem amarrado. Com fita
isolante. Eu não demoro. Você fica com ele, Melissa.
MELISSA
Posso colocar ele no sofá, paizinho?
ROQUE
Nada de sofá. Na cadeira de rodinha.
Os três entram na sala de Roque, seguidos por Marlene.
124
E a jornalista?
ROQUE
MARLENE
Ainda não chegou. Pode ficar tranquilo. Ela não vai entrar. Já
falei na portaria.
ROQUE
Mande comprar clorofórmio para mim.
Clorofórmio?
MARLENE
ROQUE
E me arrume um lenço de pano também.
MARLENE
(a Laudelino, entregando uma nota de R$100,00)
Vai à farmácia comprar. Vê se não demora
Laudelino sai.
EXT. PORTARIA SEDE DA CARA DE CÃO/SUBÚRBIO – DIA.
O jipe Suzuki de Isabela conseguiu uma vaga próxima da portaria e ela sai do
carro. Repara cuidadosamente na fachada externa da sede da Cara de Cão,
enquanto aproxima-se da guarita.
Boa tarde.
ISABELA
GUARDA
Boa tarde.
ISABELA
Quero falar com Roque Silvano. Ele está me esperando.
GUARDA
Deve haver algum engano, senhora. Roque não está na sede.
ISABELA
Não há engano algum. Ele marcou comigo às duas. Por favor:
telefone para o celular dele.
GUARDA
Ele não dá o celular para ninguém, senhora.
ISABELA
125
Vou entrar e esperar lá, se não se importar. Sou jornalista. Vim
fazer uma reportagem sobre a Cara de Cão.
GUARDA
Não recebi autorização para deixar ninguém entrar, senhora.
Sinto muito, mas não vai dar para entrar.
ISABELA
O senhor podia me deixar entrar. Aqui fora está quente demais.
GUARDA
Se Roque combinou com a senhora deve estar chegando.
ISABELA
Tem alguma lanchonete aqui perto?
GUARDA
Tem si. Lá dentro tem uma.
ISABELA (animando-se)
O senhor me deixa ir lá?
GUARDA
Não pode. Só com ordem de Marlene.
ISABELA
Você pode me colocar em contato com Marlene?
GUARDA
Vou ver. Um minuto só.
Isabela se afasta e olha em volta, procurando algo.
VAMOS COM ELA. Pouco movimento na rua em que fica o galpão. VEMOS o
guarda falando ao telefone. Ela volta e se aproxima novamente.
ISABELA
E então?
GUARDA
Tem que aguardar mesmo, senhora. Depois a senhora entra.
Isabela suspira e afasta-se da guarita e entra no carro dela, que está perto.
INT. CARRO DE ISABELA – DIA.
Isabela entra em seu carro e liga o ar condicionado. PONTO DE VISTA DE
ISABELA: de olho no portão de entrada da sede da Cara de Cão.
126
INT. SALA/ROQUE SILVANO – DIA.
Roque, REYNA amarrado, começando a acordar, e Melissa estão na sala.
Marlene não está presente.
ROQUE
Dê um copo d’água para ele, minha filha.
Ele está com sede?
MELISSA
CLOSE-UP em REYNA, acordando.
ROQUE
Deve estar.
Melissa caminha até um filtro carregado com um barril de água, serve um copo
e, sempre carinhosa, dá na boca de REYNA.
REYNA
(preso por fitas isolantes à cadeira giratória)
Obrigado. (pausa) O que está acontecendo aqui? O que é isso?
Quem são vocês?
MELISSA
(ajeita os cabelos)
Quer mais água, querido?
REYNA
(fecha a boca)
Por que vocês me amarraram assim? O que está acontecendo?
MELISSA (a Roque)
Ele não quer beber, paizinho.
ROQUE
Depois você dá mais, Melissa. Vá lá para fora, filha. Preciso
conversar com ele. (a Roque) Não deu para perceber ainda,
mocinho?
Melissa beija REYNA e sai.
REYNA
Isso é um tipo de sequestro?
ROQUE
Ainda não. Estou avaliando a situação.
127
REYNA
Foi você quem mandou os dois sujeitos do restaurante.
ROQUE
Eu não mandei ninguém. Aqueles dois imbecis agiram por conta
própria.
REYNA
O que você vai fazer comigo, Ed? Por que estou amarrado?
ROQUE
Ainda não sei o que vou fazer. Vamos conversar e eu resolvo.
Meu nome não é Ed. É Roque Silvano.
REYNA
Sequestro é crime inafiançável, Ed. Você está numa enrascada.
ROQUE
Você está amarrado, preso aqui, e eu estou numa enrascada?
Curioso seu ponto de vista. Pare de me chamar de Ed.
REYNA
Vamos combinar uma coisa. Eu relevo o que aconteceu, você me
solta, dá um puxão de orelhas naqueles dois e a coisa termina
aqui. Combinado, Ed?
ROQUE
Se você me chamar de Ed mais uma vez vai levar cacete.
REYNA
Vamos parar por aqui. Numa boa, sem problemas com a polícia.
Eu prometo.
ROQUE
Não é tão simples assim. Minha filha vai ter muita dificuldade
para aceitar essa sugestão sua.
REYNA
Aquela moça que estava aqui é sua filha?
ROQUE
Minha princesa. A única coisa boa que Deus me deu na vida.
REYNA
Qual é a encrenca com ela?
ROQUE
128
Ela ama você mais do que tudo na vida. E eu a amo mais do que
tudo na vida. A encrenca é essa. É por essa razão que você
ainda está vivo.
REYNA
Você não acredita em mim, Ed?
Nem um pouco.
ROQUE
Ele dá uma pancada na cabeça de REYNA.
ROQUE
Meu nome é Roque. Roque Silvano.
Você vai me matar?
REYNA
ROQUE
Você precisa entender meu ponto de vista. Aqueles dois que
trouxeram você são gente do meu grupo.
Que grupo?
A Cara de Cão.
REYNA
ROQUE
REYNA
Nunca ouvi falar.
ROQUE
Jogador de futebol é mesmo alienado. Você não lê jornal?
REYNA
Quatro por dia. Mas nunca li nada sobre Cara de Cão.
Roque dá outra pancada em REYNA (sempre com a mão aberta).
ROQUE
Meu grupo é a maior torcida organizada do Brasil. Tenho 40 mil
filiados. Eu sou presidente. Quem manda aqui sou.
REYNA
Torcida organizada? Do Atlético?
ROQUE
Do Brasil é que não é.
129
REYNA
Agora eu me lembrei. Vocês não passam de um bando de
baderneiros. Não são torcedores, são selvagens. Quase mataram
aquele garoto. Um absurdo o que fizeram com ele.
ROQUE
É isso que você pensa da Cara de Cão?
REYNA
É isso que todo mundo pensa. Vocês deveriam estar presos.
ROQUE
O Atlético não pensa assim. Você sabia que quem bancou a Cara
de Cão nos primeiros tempos foi o Atlético? Somos uma torcida
de verdade, que empurra o time pra frente. O clube reconhece
isso e nos apoia.
REYNA
Então o clube é cúmplice das barbaridades que vocês fazem.
Marlene abre a porta e entra.
MARLENE
Está aqui o clorofórmio. E o lenço. Achei que você pode precisar
de mais fita isolante.
ROQUE
Pode colocar em cima da mesa. Obrigado, Marlene. E a
jornalista?
MARLENE
Esperando lá fora. Não é melhor trazer a moça para cá?
REYNA
Você está ferrado, Ed. Logo a imprensa vai saber e você vai
passar o resto da vida na cadeia.
MARLENE
Um amigo meu tem uma padaria. Lá tem uma fornalha enorme.
Quanto tempo será que leva para derreter o corpo de uma
pessoa? Se o corpo desaparecer não há crime.
REYNA
Socorro! Socorro! Estou preso aqui! Alguém me ajude, por favor!
Roque pega a fita isolante, corta um pedaço e tapa a boca de REYNA. Depois
dá mais uma pancada nele.
130
ROQUE (a Marlene)
É. Tem razão. Essa jornalista não é qualquer uma. Em dois
minutos você pode mandar a moça entrar. Ou melhor, vá até a
portaria e acompanhe a moça até aqui.
Marlene sai. Roque empurra a cadeira (que tem rodinhas) até o banheiro privativo
da sala dele.
INT. BANHEIRO/SALA DE ROQUE SILVANO – DIA.
Roque entra, empurrando a cadeira de REYNA.
ROQUE
Você vai ficar bem quietinho aqui. Se eu ouvir qualquer coisa, se
a moça desconfiar de qualquer coisa, a padaria de meu amigo
vai receber dois corpos e não apenas um. Juízo, mocinho. Juízo.
INTERVALO.
PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS.
EXT. PORTARIA/SEDE DA CARA DE CÃO/SUBÚRBIO DO RIO – DIA.
Marlene sai e vê o carro de Isabela. Faz sinal para ela, chamando-a. Isabela
desce do carro e caminha na direção dela.
MARLENE
Bom dia. Sou Marlene. Trabalho aqui. Vamos entrar?
ISABELA
Bom dia. Não vi ninguém chegando. Roque já está aí?
MARLENE
Há outro acesso, direto na sala dele. Roque está esperando a
senhora. Vamos?
ISABELA
Isso aqui parece coisa de militar.
INT. GALPÃO/SEDE/CARA DE CÃO – DIA.
Isabela e Marlene caminhando pela área interna.
Isabela observa cada um dos ambientes e anota em um bloquinho, do tipo que
é usado por repórteres de campo. Para um pouco para fazer as anotações.
ISABELA
Isso aqui é grande, hein? Lá de fora não dá pra perceber como
isso é grande. Todos são filiados?
131
MARLENE
É melhor a senhora conversar com Roque.
ISABELA
Os filiados praticam artes marciais? Aquilo é um octógono de
MMA, não é?
MARLENE
Eu não sei de nada. A senhora tem que falar é com Roque.
Isabela
(olhando tudo num ângulo de 180º)
Impressionante a infraestrutura de vocês.
CAM NO PONTO DE VISTA DE ISABELA. PAN.
INT. SALA/ROQUE/SEDE/CARA DE CÃO – DIA.
Isabela entra na sala de Roque e Marlene puxa a porta. Roque está sentado,
lendo jornal. Levanta-se e cumprimenta Isabela.
ROQUE
Boa tarde, Isabela. Desculpe o atraso. Fiquei preso no trânsito. O
túnel ficou interditado por causa de um acidente.
ISABELA
Não tem problema. Essa é a sua sala?
ROQUE
Minha não. Da presidência.
ISABELA
Há quanto tempo você é o presidente?
ROQUE
Sempre fui. Desde a criação da Cara de Cão, há 30 anos.
Então a sala é sua.
ISABELA
ROQUE
Eu diria que ela pertence aos associados e é usada por mim.
ISABELA
Sei. Essa estrutura toda existe há quanto tempo? Eu vi pintura
recente.
ROQUE
132
A Cara de Cão está crescendo com muita rapidez. Essa sede tem
cinco anos. Você gostou?
ISABELA
Fiquei muito impressionada. Vi um tatame para lutas marciais e
um octógono para MMA. O que significa isso na sede social de
uma torcida organizada?
ROQUE
Nós somos uma associação recreativa, Isabela. O número de
associados foi crescendo, crescendo e estamos hoje com a
estrutura que você viu. Muitos associados gostam de jiu-jitsu e
de lutas MMA. Meu papel é providenciar o que querem os
associados.
ISABELA
Quantos são os associados da Cara de Cão?
ROQUE
Temos 40 mil filiados em todo o Brasil. 40 mil que pagam
mensalidade em dia. O número chega a 100 mil se
considerarmos todos os cadastrados.
ISABELA
Impressionante. É gente demais.
ROQUE
O Atlético é o clube mais antigo do Brasil. Tem 50 milhões de
torcedores. Foi campeão brasileiro mais de 10 vezes.
ISABELA
E vai para a segunda divisão pela segunda vez.
ROQUE
Isso ainda não está resolvido. Falta um jogo.
ISABELA
Contra o Brasil? Você realmente acha que o Atlético tem chance
de golear o Brasil por quatro a zero? Com ‘esse’ time?
OUVIMOS o barulho da queda da cadeira de REYNA, provocada por ele mesmo.
CORTA para REYNA no chão, fazendo um esforço enorme para gemer em voz
alta e chamar atenção de Isabela.
CLOSE-UP de Isabela, olhando para a porta do banheiro.
ISABELA
133
O que foi isso?
ROQUE
Nada. Não ouvi nada.
ISABELA
Vocês já estão na segunda divisão. Espero que aceitem isso
pacificamente.
ROQUE
Ainda não fomos desclassificados e não vamos ser. Mas se
acontecer. Veja bem, não acredito nessa hipótese, mas, se
acontecer, vamos encarar com absoluta naturalidade.
ISABELA
Da mesma forma que fizeram no primeiro rebaixamento?
ROQUE
(fechando a cara)
Não se depender de nós. Aqueles problemas no aeroporto foram
causados por um bando de radicais que se infiltraram na Cara de
Cão para desmoralizar nossa entidade. A Cara de Cão não teve
nada a ver com aquilo.
ISABELA
Não foi o que achou a polícia.
ROQUE
O delegado voltou atrás e inocentou a Cara de Cão.
ISABELA
O importante é que aquilo jamais se repita. Aquele jogador
holandês que foi agredido saiu do Brasil no mesmo dia. Pegou
mal para o futebol brasileiro lá fora.
ROQUE
A Cara de Cão não acredita na violência.
ISABELA
Você não acha está estimulando a violência com aquele aparato
que eu vi lá fora?
ROQUE
Uma coisa nada tem a ver com a outra. Somos uma associação
recreativa. Há natação, futebol, voleibol, além de sinuca. Nós
temos uma biblioteca e uma videoteca.
OUVIMOS MAIS RUÍDOS: batidas na porta do banheiro.
134
CORTA PARA REYNA: ele está chutando a porta do banheiro.
ISABELA
Tem alguém batendo na porta do banheiro.
ROQUE
Minha filha está lá. Ela é meio desastrada. (ríspido) Vamos dar
uma volta pela sede.
ISABELA
Quero conversar depois com alguns associados.
ROQUE
Vamos lá. Você conversa, sem problema.
ISABELA
Quero falar com eles sem sua presença. Para que eles fiquem
mais à vontade.
ROQUE
Escute uma coisa, Isabel. Eles são todos adultos e falam com
quem quiserem falar. Mas enquanto você estiver aqui na nossa
sede, eu vou estar ao seu lado.
ISABEL
Sem problema. Vou pegar os telefones deles e depois converso
com cada um, fora daqui.
ROQUE
Você é quem sabe.
Roque caminha para a porta quando Marlene entra.
MARLENE
Estou com um problema sério, Roque. Melissa está chorando
muito. Ela está muito nervosa. Não dá para continuar essa
conversa depois?
ROQUE (a Isabela)
Você vai me desculpar, mas vou ter que dar atenção a minha
filha. Ela é especial. É down. Conto com sua compreensão. Eu a
eduquei sozinho. A mãe morreu quando ela nasceu. Você me
desculpe, mas ela é minha prioridade.
ISABELA
Fique à vontade. Eu vou conversar com os associados.
ROQUE
135
Você não entendeu. Vamos continuar noutro dia.
ISABELA
Isso não é correto. Eu não tenho nada a ver com os problemas
de sua filha. Tenho prazo para entregar a matéria, o senhor
sabia?
ROQUE
Vou telefonar para Ariel e explicar a situação a ele. Por favor, vá
embora, Isabel. Prometo que vamos continuar em breve.
ISABELA
Hoje ainda? Mais tarde?
ROQUE
Hoje não. Qualquer outro dia, prometo.
ISABELA (decepcionada)
Se não tem outro jeito, outro jeito não tem. Paciência.
EXT. PORTARIA/SEDE/CARA DE CÃO – DIA.
Os dois saem pelo portão principal. Roque acompanha Isabel até o carro dela.
ROQUE
(com um cartão de visitas na mão)
Eu entro em contato com você.
ISABELA
Você já tem o número. Eu espero que não demore muito. Se
você não ligar em dois dias vou falar com a organizada do Brasil
FC.
ROQUE
Sei. Vai falar com um grupinho de menos de 200 torcedores. OK.
Se você prefere. Vou dar a entrevista para o Diário Carioca. Você
já cansou a minha beleza, moça.
Roque rasga o cartão de visitas, vira as costas para Isabela e vai embora.
ISABELA
Ei! Vamos com calma aí. Não fique nervoso. Eu teria de falar
com a organizada do Brasil de qualquer jeito.
PLANO APROXIMADO do portão sendo fechado rispidamente.
INT. SALA/ROQUE SILVANO – DIA.
136
Roque entra de novo na sala, seguido por Marlene.
ROQUE
Jornalistazinha petulante. Foi uma ótica sacada a sua, Marlene.
MARLENE
Não foi nenhuma sacada, Roque. Não inventei nada. Melissinha
está mesmo tendo uma crise de choro. Sandro, aquele imbecil do
jiu-jitsu, falou para ela que nós vamos matar o moço.
ROQUE
Filho da mãe! Eu ainda acabo com a raça desse idiota. Vá lá
buscar Melissinha. Traga ela aqui. Mas antes dê água com
açúcar pra ela e diga que Sandro é mentiroso. Que eu disse a
você que ninguém vai matar o jogador.
MARLENE
Vou fazer um chá de camomila para ela.
Marlene sai e Roque vai direto ao banheiro. Abre com dificuldade a porta e vê
REYNA ainda amarrado, caído.
EXT. CARRO DE ISABELA/SEDE CARA DE CÃO – DIA.
Isabela está no carro. Sol forte.
PONTO DE VISTA de Isabela: VEMOS com ela uma faxineira uniformizada (de
boné, inclusive, com cabelos presos) sai pelo portão e acende um cigarro. Fica
parada, saboreando o cigarro.
EXT. SEDE/CARA DE CÃO/SUBÚRBIO DO RIO – DIA.
Isabela sai, pega o celular e faz uma ligação.
ISABELA
Lício? Isabela. Venha rápido para cá. Logo que chegar, procure
Roque e insista com ele que precisa falar comigo. Ele precisa
saber que você sabe que eu estou aqui e que vai insistir em falar
comigo. Isso. Não demora. (desliga)
Isabela se aproxima da faxineira LOURDES. Olha para a guarita e observa que
o guarda não a viu se aproximar da faxineira.
ISABELA
Você trabalha aí?
LOURDES
137
Trabalho. Quer dizer. Só hoje. Estou substituindo a moça que
trabalha fixo aqui.
ISABELA
(estende a mão para ela)
Isabela Falcão. Muito prazer.
LOURDES
(aperta a mão de Isabela)
Lourdes de Souza. Prazer.
ISABELA
Quer ganhar 1000 reais?
LOURDES (interessada)
A senhora está falando sério? É mais do que meu salário.
ISABELA
Vamos conversar ali, longe do porteiro.
As duas afastam-se da guarita. Nenhum sinal do guarda.
ISABELA
(estende duas notas de R$500,00 a Lourdes)
Preciso de seu uniforme para entrar lá dentro.
LOURDES
Nem pensar. Vão me despedir. Pode ficar com o dinheiro.
ISABELA
Eu sou jornalista. Não vou fazer nada errado. Só preciso dar uma
espiada. Vou fazer seu serviço, ninguém vai notar que não é
você. Meu pai é dono do jornal FOLHA DO RIO. Se der algum
problema eu coloco você lá com salário maior. Prometo.
LOURDES
A senhora só vai olhar? Não vai aprontar nenhuma confusão?
ISABELA
Só vou dar uma espiada. Prometo. Arrumo o emprego novo pra
você de qualquer jeito.
INT. SALA/ROQUE SILVANO – DIA.
Roque está sentado diante de REYNA, na outra cadeira de visitantes. REYNA
continua amarrado, sem poder falar.
Roque vai até seu telefone e coloca o aparelho no modo Viva Voz.
138
CLOSE-UP da mão de Roque tocando no aparelho de telefone no modo Viva
Voz.
ROQUE
O que eu vou fazer com você? Quero que você me diga. O que
eu vou fazer com você? (pausa; ao telefone) Está ouvindo bem,
Marlene?
MARLENE
(em OFF)
Perfeitamente, Roque.
ROQUE (a REYNA)
Não posso libertar você agora. É claro que você vai à polícia e
vai fazer uma denúncia de sequestro. Imagine só o circo na
mídia. Vou ficar na prisão um bom tempo. Se eu pagar bons
advogados e as comissões certas, pego poucos anos. Mas se
ficar mais de uma semana na cadeia é quase líquido e certo que
vão me estuprar lá.
REYNA faz sinal de negação com a cabeça.
ROQUE
Claro que vão. Cadeia é para assassino e para veado. Se eu não
matar alguém logo de cara vão me estuprar. E como é que vou
conseguir matar alguém na prisão? Como? Você acha que um
sujeito com quase 70 anos tem condição de matar alguém numa
penitenciária? Tem?
REYNA faz sinal positivo com a cabeça.
ROQUE
Você é bem confiante. Isso é bom. Mas não adianta matar
qualquer um. Se matar um Zé Mané qualquer, que é estuprado
todas as noites, não vai adiantar absolutamente nada. Tenho
que matar um sujeito duro. Um valentão.
REYNA faz sinal de negação com a cabeça.
REYNA
(tira a fita da boca dele)
Eu juro que isso não vai acontecer. Você não vai ser preso
porque não cometeu nenhum crime. Eu sei que você não teve
culpa. Foram aqueles dois. O gordo boiola e o nanico. Eles é que
vão entrar em cana. Você não.
ROQUE
Sei. E você não vai contar para a polícia que minha filha estava
junto com os dois.
139
REYNA
Não. E mesmo que eu contasse não haveria problema. Por que
ela não responde juridicamente por seus atos.
ROQUE
Muito esperto o mocinho. Falta combinar com os jornalistas, feito
essa Isabela que estava aqui. Um prato cheio para a imprensa
(faz gesto com a mão, visualizando a manchete): filha retardada do
presidente da maior torcida organizada do país sequestra craque
do Brasil Futebol Clube.
REYNA
Não vou deixar fazerem isso com ela. Não vou mencionar que ela
estava junto com os dois.
ROQUE
E aqueles dois, hein? Você realmente acredita que eles não vão
contar nada sobre minha filha? Aquele lutador de jiu-jitsu mata
quantos forem necessários se minha filha fizer um sinal com o
dedo mindinho. Vai acabar falando que sequestrou você para
agradar Melissa.
Foi isso mesmo?
REYNA
ROQUE
Infelizmente parece minha filha também queria fazer essa
merda, o que complica tudo. Ela é obcecada por você. Não
entendo o que ela viu em você, mas ela ama você de verdade.
Ela está lá fora, numa crise de choro, porque disseram a ela que
você vai ser morto.
REYNA
Você não vai fazer uma coisa dessas. É um homem inteligente.
Não existe crime perfeito. Muita gente já passou a vida inteira na
cadeia por acreditar que existe.
ROQUE
Chiquinho disse que sequestrou você para que o Brasil perdesse
o jogo da semana que vem. Veja você como existe gente maluca
nesse mundo. O sujeito acredita que a gente manda uma carta
para o presidente do seu time dizendo que você foi sequestrado.
Que o time vai ter que perder para o Atlético por quatro a zero
se eles quiserem ver você vivo outra vez.
REYNA
Um delírio. A polícia chegaria a você em menos de um dia.
Tenho certeza.
140
ROQUE
Eu também tenho. Por isso não vamos mandar carta nenhuma.
Cedo ou tarde eu seria pego e você confirmaria que eu participei
da coisa toda.
REYNA
Com certeza. (percebendo que errou) Quer dizer, eu não delataria
você de jeito nenhum.
ROQUE
Veja você em que situação aquele Chiquinho me deixou. Vou ter
que matar você. Não há outro jeito.
REYNA
E se nós fizermos como Chiquinho sugeriu? Eu escrevo qualquer
coisa. Falo ao telefone, num gravador. Vamos falar apenas com
o treinador. Quintero é meu amigo. Ele vai entender, vai ajudar.
Prometo que a polícia não vai participar de nada. Vai ficar só
entre nós três.
ROQUE
Nós três e os caras que me estuprarem na penitenciária. Não se
esqueça deles, mocinho.
REYNA (impaciente)
Eu acho que no fundo você está mesmo é gostando da ideia de
ser estuprado.
Roque dá um murro violento em REYNA.
ROQUE
Você é mesmo um arrogante filho da puta. Vou ter o maior
prazer em colocar você vivo na fornalha do amigo de Marlene.
Melissa e Laudelino entram na sala.
MELISSA
(feliz, corre para abraçar Roque)
Paizinho! Laudelino me disse que meu noivo não vai morrer!
Quando é que eu vou casar com ele? Laudelino vai ser meu
padrinho! Não vai, Laudelino?
LAUDELINO
(sorriso amarelo)
Claro que vou. Se você se casar mesmo vou ser o padrinho.
REYNA
141
Que história de casamento é essa? Eu não vou me casar com
ninguém! Vocês ficaram malucos? Todo mundo enlouqueceu?!
ROQUE
Sabe que essa é uma ótima ideia, minha filha?
MELISSA
(senta-se no colo do pai)
Eu vou casar com meu amor! Eu vou casar com meu amor!
Melissa levanta-se e beija REYNA na boca, com paixão.
INTERVALO.
PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS
EXT. SEDE DA CARA DE CÃO/SUBÚRBIO – DIA.
Isabela, usando o uniforme de Lourdes, puxa bem o boné para cobrir
parcialmente o rosto.
Aproxima-se do portão e olha discretamente para o guarda, entrando logo que
OUVIMOS o ruído da abertura do portão automático.
INT. SEDE DA CARA DE CÃO – DIA.
Isabela pega uma vassoura e começa a varrer o chão, observando
discretamente o ambiente. PONTO DE VISTA de Isabela, olhando para a casa
em que fica o escritório de Roque.
INT. SALA DE ROQUE/SEDE DA CARA DE CÃO – DIA.
Roque e REYNA na sala.
ROQUE
(na direção do telefone)
Marlene? Pode entrar.
Marlene entra e Roque aperta uma tecla do aparelho de telefone, desligando o
modo Viva Voz.
ROQUE (a Marlene)
Como é que chama mesmo aquele negócio em que os artistas do
cinema americano acreditam?
MARLENE
Cientologia.
ROQUE
142
Pois bem. Vamos resolver essa encrenca usando o conhecimento
dos cientistas. O que é que você acha que um sujeito desses
faria se estivesse em meu lugar?
MARLENE
Eu só fiz uns cursos, mas acho que peguei a essência da coisa. O
primeiro mandamento você já praticou com perfeição, Roque.
É mesmo?
ROQUE
MARLENE
Nota 10. Os cientologistas dizem que a mentira é uma coisa
válida e necessária para se conseguir alcançar os objetivos. O
rapaz realmente acreditou que você está pensando em matá-lo.
Não acreditou?
REYNA
Não era para acreditar?
ROQUE
Era para acreditar sim, porque se for necessário matar alguém
para defender minha princesa mato até o presidente da
República.
MARLENE
Você assumiu o controle, Roque. Magistral essa ideia de deixar o
rapaz amarrado e vulnerável o tempo todo. É como se você
tivesse feito uma lavagem cerebral nele.
REYNA
De que merda vocês estão falando? Vocês são dois loucos. Vocês
tem ideologia política?
MARLENE
Nossa ideologia é o Atlético.
ROQUE
(aproxima-se e fala ao ouvido dele)
Marlene andou fazendo uns cursos sobre esse negócio. Tem um
amigo dela, americano, que ensinou uma técnica incrível. Sabe
o que o cara fez? Usou um detector de mentiras na Marlene.
REYNA
Eu não estou interessado em saber nada dessa estória. Quero
que vocês dois se danem.
MARLENE
143
Tive que contar tudo quanto é coisa errada que eu já fiz. Coisas
de sexo. Coisas muito íntimas. Todo mundo que trabalha com as
técnicas da Cientologia tem que fazer isso. Proteção para não ser
denunciado pela vítima.
ROQUE
Agora você tem que me dizer como é que nós vamos sair dessa
enrascada.
MARLENE (tom professoral)
O rapaz foi sequestrado por que Chiquinho teve a ideia de fazer
chantagem contra o time dele para fazer o Atlético ganhar o jogo
e tirar a gente da segunda divisão.
ROQUE
Tirar não. Evitar que o Atlético caia de novo para a segunda
divisão. Seria péssimo para o time e para nós também. Nós não
podemos deixar isso acontecer. Eu prometi ao presidente que
não iria deixar isso acontecer.
MARLENE
Está certo. O presidente do Atlético confia em você. Sabe que
promessa sua é dívida.
REYNA
O quê? O Atlético sabe que vocês fazem jogo sujo e pede a
ajuda de vocês?
MARLENE
Chiquinho aproveitou uma ideia que Melissa teve. Foi ela quem
pensou em trazer o rapaz aqui para a Cara de Cão. E é
justamente isso que incrimina Melissinha. Ela pode ser
humilhada, ficar exposta e nós não podemos deixar isso
acontecer.
ROQUE
Nem pensar. E tenho que cumprir a promessa que eu fiz ao
doutor Adriano. Não se esqueça disso, Marlene. O que a gente
vai fazer?
MARLENE
Abra o sofá cama, Roque. Agora.
Roque vai até o sofá e faz o que Marlene disse que era para fazer.
ROQUE
E agora?
144
MARLENE
Agora o rapaz vai ter que tomar uma decisão muito séria.
ROQUE
(de novo ao ouvido de REYNA)
Vai tomar uma decisão séria, entendeu?
REYNA
Eu não sou surdo.
MARLENE
Agora você pega seu telefone celular e prepara o aparelho para
gravar as imagens do que vai acontecer daqui a pouco.
ROQUE
E o que vai acontecer daqui a pouco? Diga Marlene. Estou
morrendo de curiosidade.
MARLENE
Amarre bem o rapaz no sofá. Ele tem que ficar amarrado de um
jeito ou de outro.
Não entendi.
ROQUE
MARLENE
Ele vai ficar pelado no sofá. E vai ser amarrado de peito para
cima ou de costas para cima.
ROQUE
Pelado e amarrado? Para quê, Marlene?
REYNA
Ninguém vai me amarrar pelado aqui. Eu mato quem se
aproximar de mim. Juro que mato!
ROQUE
Mata nada, rapaz. Você vai ficar bem quietinho senão vai levar
bala.
Levanta-se e pega um revólver calibre 44, enorme, na gaveta de sua mesa.
ROQUE
Vamos ver quem vai matar alguém aqui.
MARLENE
Agora você chama o Laudelino.
145
Roque vai até a porta, abre e grita o nome de Laudelino.
ROQUE
Laudelino! Vem cá, Negão!
Laudelino chega.
MARLENE
Você fica com a arma na mão, apontada para o rapaz e se afasta
dele, para atirar se for preciso quando Laudelino tirar a roupa
dele.
ROQUE
(apontando a arma)
Vamos lá, Negão. Faça o que Marlene está mandando.
Desamarre o mocinho, tire a roupa dele e amarre o bonitão no
sofá. De costas ou de peito pra cima, Marlene?
MARLENE
Quem vai resolver isso é o rapaz.
REYNA
Eu não vou resolver nada!
ROQUE
Pode tirar a roupa dele. Deixe só a cueca. Por enquanto.
MARLENE
O rapaz vai ter que escolher se prefere ter uma lua de mel com
Laudelino ou com Melissinha. E você vai filmar a lua de mel. Se
ele não convencer o time dele a perder de quatro para o Atlético,
quem vai ficar de quatro para Laudelino vai ser ele.
REYNA
O quê? Que estória é essa, sua maluca?!
ROQUE
Que ideia fantástica, Marlene. Você se superou dessa vez. Em
qualquer situação o mocinho vai ter a maior boa vontade do
mundo em ajudar o Atlético. E nem vai pensar em denúncia,
claro que não vai!
Laudelino começa a soltar REYNA, que cospe nele.
REYNA
Não vou fazer lua de mel com ninguém. Você vai ser preso por
sequestro, Laudelino! Saia daqui: vá embora enquanto é tempo!
146
Ele vai usar você e quem vai pagar o pato sozinho vai ser só
você, Laudelino!
Roque vai até a mesa, entorna um pouco de clorofórmio no lenço que Marlene
colocou sobre a mesa e molha a peça.
Caminha até Roque, que ainda não foi solto e pressiona o lenço umedecido no
nariz dele, que desmaia.
Laudelino acaba de soltá-lo e o carrega até o sofá, tirando a roupa e deixando
REYNA só de cuecas.
INT. DO LADO DE FORA DA CASA/SEDE DA CARA DE CÃO – DIA.
Isabela está perto da casa, sempre varrendo.
Dá a volta e procura uma janela: a janela do banheiro da casa. Chega perto, vê
que está aberta e dá uma espiada, observando o interior do banheiro.
VEMOS que a janela é grande: dá para uma pessoa sair de lá, sem muita
dificuldade.
CAM NO PONTO DE VISTA de Isabela mostra o interior do banheiro privativo
de Roque.
INT. SALA DE ROQUE NA SEDE DA CARA DE CÃO – DIA.
Roque, REYNA, Laudelino e Marlene estão na sala.
ROQUE
Eu me esqueci da corda. Onde é que eu vou arranjar uma corda?
LAUDELINO
No almoxarifado tem uma.
ROQUE
O que você está esperando para buscar a corda, Negão?
LAUDELINO
Eu já vou, Roque.
Laudelino sai.
MARLENE
Não quero ver isso. Eu espero lá fora. Não machuque o rapaz,
hein? Se tiver que atirar, atire no joelho dele. Cuidado para não
acertar mais em cima.
147
ROQUE
(vai até ela e a beija)
Vou aumentar seu salário, querida. Vamos marcar um gol de
placa. Antes de sair, vá até lá e acorde o mocinho.
Marlene chega até REYNA e começa a sacudi-lo.
Dá tapinhas no rosto de REYNA e o jogador não acorda. Dá uma pancada bem
forte e REYNA acorda assustado. Marlene sai.
REYNA está sempre sob a mira do revólver de Roque, que fica a uma distância
prudente.
INT. BANHEIRO PRIVATIVO DE ROQUE – DIA.
Isabela entra no banheiro, deslizando agilmente pela janela. Evitando fazer
qualquer ruído, ela entra e vai até a porta.
Abre um pouco, bem pouco, o suficiente para ver o que está acontecendo na
sala de Roque.
CAM no PONTO DE VISTA de Isabela, observando o que ocorre na sala de
Roque pela fresta aberta.
VEMOS REYNA deitado na cama, de cuecas e Marlene tentando despertá-lo.
PERCEBEMOS que ela reconhece REYNA, surpresa. Mas ela disfarça e mantém
o controle de suas reações.
INT. SALA DE ROQUE SILVANO – DIA.
Roque e REYNA sozinhos na sala, sendo observados por Isabela, que continua
no banheiro.
ROQUE
Já resolveu com quem vai ser sua lua de mel?
REYNA
Você não tem vergonha de fazer uma coisa dessas com a própria
filha? Uma filha doente?
ROQUE
Doente é a sua mãe, filho da puta. Melissa é uma menina
saudável, especial. É a luz de minha vida.
REYNA
E você quer que sua filha faça sexo com um desconhecido, no
sofá de sua sala?
148
ROQUE
Eu não faço questão. Por mim sua lua de mel seria com
Laudelino. Você viu a cara de satisfação dele? Você nem faz ideia
de como esse Negão é carinhoso. Se minha filha ficar satisfeita,
deixo você se divertir com Laudelino depois. Prometo.
REYNA
Filho da puta!
ROQUE
Tem uma coisa que eu não suporto que é palavrão. Você sabe
que aqui na Cara de Cão ninguém pode falar palavrão? Além de
mim, claro. Em ocasiões extraordinárias.
REYNA
Você está enganado se pensa que eu vou ficar de bico calado.
Mesmo se eu tiver que transar com sua filha vou contar para a
polícia o que aconteceu.
ROQUE
Coloco o filme na Internet logo depois.
REYNA
E expõe sua filha nua, na frente de todo mundo? É assim que
você respeita Melissa?
ROQUE
(coçando a cabeça)
É. Vai ficar mal para ela.
REYNA
As pessoas vão chamar sua filha de prostituta.
ROQUE
Pode ser. Mas por outro lado, vai pegar muito mal para você.
Vou dizer que peguei você transando com ela. Que você a
seduziu. Já pensou como vai ficar sua reputação?
REYNA
Eu vou dizer que você me forçou a fazer isso.
ROQUE
Vai ser sua palavra contra a minha, de Laudelino e de Marlene.
Vamos ver em quem a polícia vai acreditar.
REYNA
149
E se eu não conseguir transar com sua filha? É difícil se
concentrar numa situação dessas. Coloque-se no meu lugar. É
pior do que colher esperma para fazer exame.
ROQUE
Fique tranquilo quanto a isso. Melissa é uma mulher feita. Você
vai ficar bem animado, eu garanto. Se não ficar eu chamo
Laudelino e ele dá uma forcinha.
REYNA
E se ele não conseguir?
ROQUE
Ele consegue. Pode ter certeza que ele consegue. Você não tem
ideia de como aquele Negão gosta de uma inauguração. Quer
saber de uma coisa? Vou pedir ao Laudelino para dar uma
forcinha de qualquer jeito. Aí você não vai ter coragem de
denunciar a Cara de Cão.
PLANO APROXIMADO: Isabela pode ser vista pela fresta da porta. Está
chocada com o plano de Roque.
ROQUE
Acho que uma trilha sonora vai ser bacana, para descontrair a
sua lua de mel. Que tipo de música você prefere?
REYNA
Vá tomar no rabo.
Roque vai até um aparelho de CD’s e coloca uma música de funk.
ROQUE
Essa é a preferida de Melissinha.
Na trilha, OUVIMOS o funk característico das favelas cariocas.
REYNA
Eu já saquei como é essa estória de terrorismo. Você está me
assustando, mas não tem peito para fazer essa nojeira com sua
própria filha.
ROQUE
Não se esqueça de que ela ama você, mocinho. Vou dar um
presente para minha filha adorada. E se quer mesmo saber, ela é
virgem. Seja carinhoso, senão eu jogo você vivo na fornalha.
Entendeu?
INT. BANHEIRO PRIVATIVO DE ROQUE SILVANO – DIA.
150
Isabela começa a ouvir a música e pega o celular.
Tecla um número e fala baixo, para não ser ouvida por Roque. Não ouvimos o
que ela fala, pois a música ocupa toda a trilha sonora.
EXT. SEDE DA CARA DE CÃO – DIA.
Lício, secretário pessoal de Isabela, estaciona o carro ao lado do carro dela, sai
e aproxima-se da guarita.
LÍCIO
Boa tarde. Eu quero falar com Isabela Falcão. Ela está aí dentro,
com o senhor Roque Silvano. Eu trabalho com ela.
GUARDA
Ela não está aqui. Já foi embora.
LÍCIO
O carro dela é aquele ali (mostra o carro). Ela me ligou a pouco da
sala do senhor Roque. Não saio daqui sem falar com ela ou com
ele.
GUARDA
Um minuto. Vou ver isso.
Ele pega o telefone.
GUARDA
Marlene? Tem um sujeito aqui dizendo que precisa falar com a
jornalista. Disse que ela ligou para ele aí da sala do Roque.
MARLENE
(em OFF)
Ela não está aqui mais. Já foi embora.
GUARDA
Eu disse isso ao cara, mas ele insiste em falar com ela ou com o
Roque.
MARLENE
(em OFF)
Está bem. Roque vai estar aí daqui a pouco.
GUARDA
Roque está vindo falar com o senhor. Ela já foi embora mesmo.
INT. SALA DE ROQUE/SEDE DA CARA DE CÃO – DIA.
Marlene entra.
151
MARLENE
Tem um cara na portaria querendo falar com a jornalista.
ROQUE
Diz que ela já foi embora.
MARLENE
O porteiro já falou com ele e não adiantou. Ele quer falar com
você.
ROQUE
Quem é esse sujeito?
MARLENE
Disse que trabalha com a moça. Convém ir falar com ele. Esse
pessoal da imprensa é insistente.
ROQUE
Está certo. Vou lá daqui a pouco.
Ela sai.
ROQUE
Vá para o banheiro e fique quieto lá. Não adianta gritar: a
portaria é longe daqui. Nem adianta tentar fugir, mocinho. Se
fizer alguma confusão ponho você com Laudelino o dia inteiro e
não uma vez só. Juízo.
INT. BANHEIRO PRIVATIVO DE ROQUE – DIA.
Isabela entra em pânico. Olha para os lados, fecha a porta devagar e entra no
box, escondendo-se atrás da cortina que não é transparente. Roque entra
(ainda está de cueca) e a porta é trancada.
INTERVALO
PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS
INT. BANHEIRO DA SALA DE ROQUE – DIA.
Isabela (com os cabelos presos), com o dedo indicador da mão esquerda sobre os
lábios (pede silêncio), aparece para o surpreso REYNA. Na trilha, continua o funk.
ISABELA
(voz baixa, mais audível)
Eu não sou faxineira. (começa a tirar o uniforme de Lourdes) Coloque
esse uniforme e saia pela janela. Finja que é faxineiro e suma
daqui o mais rápido que puder.
REYNA
152
(colocando o macacão)
Quem é você, Ed?
ISABELA
Isabela Falcão, da Folha do Rio. Rápido. Daqui a pouco Roque
está de volta.
REYNA
(já de macacão, de olho nas belas pernas dela)
E você? Vai ficar aqui?
ISABELA
(de calcinha e camiseta)
Eu me viro. Vá logo. E só saia de trás da casa quando Roque
voltar. Pegue meu carro e suma daqui o mais rápido que puder.
(entrega a chave) É um jipe Suzuki.
REYNA
Um minutinho, Ed. Tenho que pegar meu tênis.
ISABELA
Não! Esqueça isso. Vá descalço mesmo.
REYNA
Vai chamar atenção. Meu pé é muito branco. Num minuto eu vou
lá e pego.
REYNA sai e volta logo, com seus tênis nas mãos. Senta-se no vaso sanitário e
calça os tênis.
REYNA
E você, Ed? Como vai embora?
ISABELA
Para de me chamar de Ed! Que saco! (pausa) Eu já disse que
resolvo. Não se preocupe com isso.
REYNA
(beija Isabela nos lábios, para surpresa dela)
OK, Ed. Vamos jantar juntos hoje à noite?
Vá logo embora!
ISABELA
REYNA
(antes de enfiar-se para fora da janela)
Nove da noite. Eu te ligo depois no jornal.
ISABELA
153
Tudo bem. Nós nos falamos depois. Vá logo!
REYNA sai pela janela.
INT. SEDE DA CARA DE CÃO/SUBÚRBIO DO RIO – DIA.
Roque está voltando para seu escritório. Caminha em passos rápidos.
VEMOS REYNA espiando atrás de uma parede, de olho em Roque.
EXT. SEDE DA CARA DE CÃO/SUBÚRBIO DO RIO – DIA.
REYNA sai pela portaria, com o boné abaixado.
VEMOS que Lício está de pé, esperando ISABELA ao lado do carro dele.
INT. SALA DE ROQUE/SEDE DA CARA DE CÃO – DIA.
Roque entra e, surpreso, vê Isabela sentada na cadeira giratória em que
REYNA esteve amarrado. Está tranquila, como se fosse natural ela estar de
camiseta e calcinha na sala de ROQUE.
ROQUE
Você?! O que está fazendo aqui?
ISABELA
Parece que temos muito a conversar, senhor Roque Silvano.
ROQUE (suspirando)
Você deu sua roupa para ele?
ISABELA
Dei. Ele já está lá fora. REYNA me ligou do carro dele. (tem o
celular na mão). Já falei com meu assistente. Ele está me
esperando lá fora e já avisou ao jornal que eu estou aqui.
ROQUE
Merda. O que você vai fazer?
ISABELA
Sua filha é um amor. Não merece um pai maluco como você.
Não pretendo expor Melissa. Quanto a isso, fique tranquilo.
ROQUE
Não vai chamar a polícia?
ISABELA
Vai depender de você. Quero fazer uma reportagem completa
sobre as torcidas organizadas. Todas, mas principalmente a Cara
154
de Cão. Quero que você me conte tudo. Tudo mesmo,
entendido?
ROQUE
(vai até a porta)
Marlene. Vem cá.
ISABELA
Não adianta apelar para seu Maquiavel de bolso. Essas técnicas
de terrorismo não vão resolver essa encrenca.
MARLENE (entrando)
O que está acontecendo aqui?
ROQUE
A vaca foi para o brejo. O jogador fugiu com a ajuda dela. Com
as roupas dela.
MARLENE
Impossível. Não passaria na portaria de jeito nenhum.
ROQUE
É mesmo! Ele ainda está na sede!
ISABELA
Devagar com o andor que o terrorismo é de barro. Eu entrei sem
ser vista pelo porteiro e ele saiu do mesmo jeito.
MARLENE
(na direção da porta, que está aberta)
É mesmo? Laudelino! Laudelino!
ISABELA
Você vai demitir essa bruxa. Eu entrei com o uniforme da
faxineira diarista. (mostra o celular) O jornal já sabe que estou aqui.
Você vai ser acusada de sequestro. Trate de combinar com os
dois gorilas um jeito de não expor Melissa.
E aí, Marlene?
ROQUE
MARLENE
(senta-se, desanimada)
Ela está certa. Não há o que fazer. Estamos ferrados. Ele não
pode me demitir. Eu sou proprietária do galpão e dessa sede.
Sou casada com Roque.
ISABELA
155
Como uma mãe é capaz de expor a filha desse jeito?
ROQUE
(muito abatido)
Melissa não é filha dela. Só minha.
INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS/BRASÍLIA – DIA.
Depoimento de Juca KFOURI.
Episódio IV: JOGO DE EMOÇÕES
PARTE I
PRÓLOGO
5 MINUTOS
EXT. LANCHONETE BARRA DA TIJUCA/RIO DE JANEIRO – DIA.
ERNESTO FALCÃO, presidente do Atlético, time mais popular do Rio, está
tomando cafezinho com o Diretor de Arbitragem da Liga, Armando GOMIDE.
FALCÃO é juiz aposentado, sempre impecável e formal, cabelos engomados.
GOMIDE
Doutor Falcão: o senhor vai me desculpar, mas eu não tenho
autonomia para fazer esse tipo de coisa.
FALCÃO
Tem sim. Quando você quer, você faz. A diretoria do Atlético
conhece você de outros carnavais, Armando. O delegado Peixoto
me contou dos acertos que já foram feitos com o senhor.
GOMIDE
As coisas estão muito diferentes agora juiz. Carlão faz questão
de decidir tudo. Ninguém dá um peido naquele prédio (aponta o
prédio da Liga de Clubes, do outro lado da rua) sem autorização dele.
FALCÃO
Resolve isso para mim, Armando. Fico devendo essa. O Atlético
sabe ser generoso com quem ajuda na hora do aperto.
GOMIDE
O que é isso, doutor Falcão. O senhor não é desse tipo de gente.
FALCÃO
Faço qualquer coisa para evitar que o Atlético seja rebaixado em
minha gestão. Qualquer coisa, o senhor está entendendo?
GOMIDE
Se eu fosse do tipo de gente que o senhor está imaginando, e eu
não sou, iria me aproveitar de sua boa vontade, juiz. Mas não dá
156
mesmo. Carlão me manda embora se eu acertar qualquer coisa
com o senhor.
FALCÃO
Que escrúpulo é esse agora, Armando?
GOMIDE
Não é questão de escrúpulo, juiz. Eu preciso desse emprego. O
senhor precisa falar com o presidente. É ele quem resolve esse
tipo de coisa agora.
FALCÃO
Não tem outro jeito? Eu abomino aquele sujeito. Tenho nojo
daquela cara de peixe ensaboado. Não aguento aquele sujeito!
GOMIDE
(tenta descontrair)
Tem uma farmácia aqui ao lado. Tome um comprimido para
enjoo e o senhor aguenta numa boa. (coloca uma nota de dez reais no
balcão e fala com o balconista gorducho, que acena para ele) Vou nessa,
Leitão. (pega o juiz no braço) Vamos lá, doutor. Vai ser fácil.
Os dois saem da lanchonete e atravessam a rua, entrando no belo edifício-sede
da Liga Nacional de Clubes.
INT. SALA DA PRESIDÊNCIA DA LIGA – DIA.
Gomide conduz Falcão ao espaçoso sofá do gabinete de trabalho de Carlão. Os
móveis foram todos substituídos pelo novo ocupante da sala.
GOMIDE
(falando baixo)
Todo dia, pontualmente nesse horário, Carlão vai ao banheiro. É
que nem um relógio suíço.
Sentam-se. OUVIMOS ruído de uma descarga e logo depois surge Carlão
apertando o cinto.
Ele caminha na direção do juiz e estende a mão para cumprimentá-lo. O juiz
fica constrangido: observa que não deu tempo de Carlão lavar as mãos.
Depois de titubear uns segundos, aperta a mão de Carlão.
CARLÃO
É um prazer recebê-lo, juiz. Faz tempo que a gente não se
encontra. Como tem passado a família?
GOMIDE
157
A família vai bem. Mas o Atlético vai muito mal. É sobre isso que
vim conversar com você.
CARLÃO
(sem ironia)
O que isso, juiz? Não tem nada decidido ainda. O Atlético pode
perfeitamente ganhar do Brasil por quatro gols de diferença. Não
dizem que futebol é uma caixinha de surpresas?
FALCÃO
Numa outra situação ganharia mesmo. Mas agora não dá e você
sabe muito bem disso.
Sentam-se.
CARLÃO
Você já mostrou a casa para o juiz, Gomide? É uma honra para
nossos colaboradores receber uma visita tão ilustre.
GOMIDE
O juiz quis vir direto falar com o senhor, presidente.
CARLÃO
Então pode ir embora, Gomide. Espere lá fora. Depois chamo
você.
Gomide, sem graça, sai.
FALCÃO
Deus sabe o quanto me custa vir aqui nessa situação. Mas eu
não tenho alternativa. Se eu tiver que me humilhar para salvar o
Atlético vou fazer o sacrifício.
CARLÃO
Salvar é uma palavra muito forte, juiz. Não vai acontecer
nenhuma desgraça se o seu time for rebaixado. Isso já
aconteceu com grandes times. Não é nenhuma vergonha ir para
a segunda divisão.
FALCÃO
É sim. Você sabe que é.
CARLÃO
A vida vai continuar. Isso é só futebol, juiz. Não leve isso a ferro
e fogo.
FALCÃO
Você diz isso porque não é seu time que vai ser rebaixado.
158
CARLÃO
Pode (ênfase aqui) ser rebaixado. Não quer dizer que vai (ênfase
aqui) ser rebaixado. Quem sabe na hora do jogo dá tudo certo
para o Cão e tudo errado para o Brasil? Futebol tem dessas
coisas. Além do mais, a segunda divisão tem média de renda
mais alta do que a primeira. O senhor sabia disso?
FALCÃO
Não é uma questão financeira, Carlão. O Atlético é o clube mais
tradicional do Rio de Janeiro. Para nós é inaceitável seremos
rebaixados. É uma questão de orgulho, de honra.
CARLÃO
Exatamente o quê o senhor quer de mim, juiz?
Você sabe o quê.
FALCÃO
CARLÃO
O senhor está enganado, juiz. Não tenho a menor ideia.
FALCÃO (levanta-se)
É isso então. Você quer me humilhar.
CARLÃO
Acalme-se, juiz. Ninguém precisa disso aqui. O senhor é uma
reserva moral do Rio de Janeiro.
FALCÃO
(senta-se de novo)
Você vai ajudar o Atlético a sair dessa situação ou não vai?
CARLÃO
Tenho a maior boa vontade do mundo com qualquer clube
associado à Liga. Mas o senhor precisa ser mais específico e me
dizer exatamente o que espera que eu faça.
FALCÃO
Diga logo quanto vai custar, Carlão.
CARLÃO
(um toque de ironia começa a aparecer; só agora)
Quanto vai custar o quê, juiz? Continuo sem entender.
GOMIDE
Vamos deixar de hipocrisia, Carlão. Ninguém está ouvindo a
gente. (pausa) Ou está?
159
CARLÃO
Não tem traíra aqui não, juiz. Pode ficar tranquilo. Fale sem
receio, juiz. O senhor está em casa.
Falcão está desconfortável, constrangido.
FALCÃO
Está certo. Eu vou dizer. É o juiz. É do juiz que estou falando.
CARLÃO
Qual juiz? Algum colega seu?
Falcão levanta-se de novo.
CARLÃO (sardônico)
O senhor está falando é do juiz que vai apitar o jogo do Atlético?
TEASER E CRÉDITOS DA SÉRIE:
CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO,
impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas
respectivas torcidas nas arquibancadas.
INTERVALO.
PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS.
INT. BANHEIRO/CASA DE ROBERTO CAMINHÃO – DIA.
O técnico do Atlético, ROBERTO CAMINHÃO, 44 anos, está fazendo barba.
Meticuloso, usa uma navalha. A mulher, Galina, uma loura russa linda de 35,
está no banho. A suíte é espaçosa e confortável.
GALINA
Roberto?
(sotaque forte)
ROBERTO
Estou quase acabando. Já estou indo.
GALINA
(em OFF durante toda a cena)
Não é isso, querido. Esqueci a outra toalha.
Roberto pega uma toalha no armário e coloca na mão de Galina, estendida
para fora. Ela pega a toalha, sem desligar o chuveiro, que também é muito
espaçoso. Ele volta a barbear-se.
ROBERTO
Não vai me esperar?
160
GALINA
Entrou sabão em meus olhos.
ROBERTO
Acho que você pode começar a preparar a mudança, meu bem.
Vão me dispensar na quarta-feira.
GALINA
Não gosto que fale assim. O jogo ainda não aconteceu.
ROBERTO
Não tem jeito, meu bem. Os caras me rifaram.
GALINA
Isso foi antes, Roberto. Agora é diferente. Não interessa a eles ir
para a segunda divisão. Vão ficar desvalorizados.
ROBERTO
Jogador não pensa assim, meu bem. Eles querem se vingar.
GALINA
Vingar por quê? Você não fez mal nenhum a eles.
ROBERTO
Você sabe as sacanagens que eles fizeram comigo. Mas não
contei a você as que eu fiz com eles. Não tem santo no futebol.
GALINA
Você é incapaz de fazer mal a uma criança, Roberto.
ROBERTO
Você é que pensa. Fiz o jogo do presidente, deixei o grupo na
mão.
GALINA
O Atlético é uma casa de Mãe... Mãe do quê mesmo?
ROBERTO
Joana, meu bem. Mãe Joana.
GALINA
(coloca a cabeça para fora do BOX, com shampoo na cabeça)
Nunca vi um clube tão bagunçado. Você fez a coisa certa,
Roberto. Era o único jeito de ter respaldo da diretoria para
enquadrar aqueles preguiçosos. Não tem culpa se o juiz deixou
você na mão. (volta ao banho)
ROBERTO
161
No Brasil o técnico não tem apoio da diretoria. Os jogadores
fazem o que querem. Estou cansado dessa merda. Ai, ai. (corta o
rosto)
GALINA
Você confia em mim, Roberto? Vai me ouvir?
ROBERTO
Alguma vez deixei de ouvir, meu bem? O que você acha que eu
devo fazer?
GALINA
Faça um pacto com o grupo. Valorize o valor da multa que o
Atlético vai ter que pagar quando você sair. Mostre que está
pensando mais no grupo do que em você quando fala em
vencer.
ROBERTO
O juiz vai ficar possesso se eu contar.
GALINA
Ele que se dane. Deixou você na mão, agora que aguente. A
imprensa vai divulgar. Vai ser ótimo.
ROBERTO
Só isso não vai dar para motivar aqueles merdas. Sem o
comprometimento deles não dá para fazer quatro gols nem na
seleção do Taiti.
GALINA
Seu empresário também cuida da carreira daquele menino,
Marcelinho. Não cuida?
Cuida. E daí?
ROBERTO
GALINA
Você leva seu empresário para falar com eles. Mostrar para eles
que os maiores prejudicados com o rebaixamento vão ser eles
mesmos. Você sai com três milhões de dólares na mão e eles
vão jogar nos campinhos do interior.
ROBERTO (pensativo)
Melhorou. Mas vou fazer um pouco mais do que isso. Pode dar
certo.
GALINA
Vai (ênfase aqui) dar certo.
162
ROBERTO
Você é um gênio, minha loura. Não sei o que eu faria sem você.
Roberto acabou de barbear-se. Limpa o rosto com uma toalha e vai fazer
companhia a Galina debaixo do chuveiro.
INT. SALA DA PRESIDÊNCIA DA LIGA – DIA.
Carlão continua sentado no sofá.
CARLÃO
(sem sair do lugar, gritando)
Gomide! Gomide!
Gomide entra rápido.
E aí, presidente?
GOMIDE
CARLÃO
Como é que chama aquele sujeito irritante, aquele intratável que
todo mundo elogia?
GOMIDE
O alemão? Aquele que apitou a final da Copa do Mundo?
É. O próprio.
CARLÃO
GOMIDE
Reine Schumann. Por quê?
CARLÃO
Por que eu estou pensando em fazer um piquenique com ele no
Arpoador. Ora, faça-me o favor, Gomide!
GOMIDE
O senhor está pensando nele para o jogo do Atlético, presidente?
CARLÃO
Alguma coisa contra?
GOMIDE (desconfiado)
Depende. O que o senhor quer que aconteça?
CARLÃO
Quero ver o Cão ser rebaixado. Não vou negar-me esse prazer.
163
GOMIDE
Então pode ficar tranquilo, presidente. Não existe a menor
chance de que o alemão vai aceitar o dinheiro do Atlético. Se é
que o Doutor Falcão teria peito para fazer uma coisa dessas.
CARLÃO
Você está doidinho para saber, não é, Gomide?
GOMIDE
(sem graça)
Ele falou alguma coisa, presidente?
CARLÃO
É mais informação do que você precisa Gomide. Trate de escalar
o alemão e divulgue logo para a imprensa.
INT. ESTÚDIO DE RÁDIO – DIA.
No estúdio, Isabela grava o programa de Sobrenatural de Almeida. Ao lado
dela o juiz Falcão.
ISABELA
(voz de SOBRENATURAL)
A semana começa quente no Rio de Janeiro. Depois de amanhã
o Atlético vive um momento decisivo. Ou reage e joga um
futebol à altura de sua gloriosa tradição ou vai ser mais um time
carioca na segunda divisão.
VINHETA SONORA DO PROGRAMA.
Parece impossível que MARCELINHO e companhia consigam
fazer quatro gols na defesa do Brasil e não levar nenhum do
ataque mais efetivo do campeonato da Liga. O programa de hoje
tem um convidado ilustre: o presidente do Atlético, juiz Ernesto
Falcão. Bom dia, juiz.
JUIZ
Bom dia, Sobrenatural de Almeida. Bom dia, amigos do futebol.
ISABELA
Juiz: o rebaixamento do Cão é inevitável?
FALCÃO
Inevitável só a morte. Vamos superar nossas dificuldades e
vencer com quatro gols de diferença.
ISABELA
O time está jogando mal. De onde vem tanto otimismo?
164
FALCÃO
O Atlético é um time vencedor, sempre foi. Não admito a
hipótese do rebaixamento em minha gestão. Seria muito injusto
por tudo que fizemos e eu confio na Justiça de Deus.
ISABELA
O senhor fez contratações caras, trouxe os reforços exigidos pela
torcida, mas o time não correspondeu. Qual é o problema do
Atlético?
FALCÃO
Temos o melhor técnico do Brasil e um plantel cheio de craques.
Tudo o que tinha que acontecer de ruim já aconteceu. Agora é
ganhar de qualquer jeito.
EXT. RUA OSCAR FREIRE/JARDINS/SÃO PAULO – DIA.
Imagens mostram um sobrado na Oscar Freire. Um PORSCHE prateado está
estacionado numa das vagas do estacionamento.
CAM se aproxima e enquadra um adesivo do Atlético, com o Cão estilizado.
Dez seguranças (todos de terno preto) vigiam o movimento na rua.
LEGENDA
SÃO PAULO
INT. ESTÚDIO DE FOTOGRAFIA – DIA.
MARCELINHO, principal atacante do Atlético, 20 anos, está posando para o
fotógrafo JÚLIO BOANOVA, que faz várias fotos na sequência, mudando de
posição o tempo todo.
Um ventilador levanta os cabelos longos de Marcelinho, que mais parece um
cantor de rock dos anos 70.
O empresário dele, Juan M. de Noriega observa atentamente a sessão. O pai
do jogador, MARCELO FONTANA, está ao lado do empresário.
JÚLIO
Isso, Marcelinho. Sorria. Isso. Descontraído. Pense numa
cervejinha geladinha. Vai. Isso. Rindo, Brincando. Fique à
vontade, Marcelinho. Vire para a esquerda. Isso. Direita, agora.
Ótimo. Ótimo. Muito bom. Valeu garoto!
A sessão prossegue. Um assistente traz uma nova câmera e Júlio continua
fazendo fotos. Júlio faz sinal para a maquiadora.
165
JÚLIO
Débora, meu bem. Por favor, prenda os cabelos de Marcelinho.
Ela vai até lá e prende os cabelos dele. As fotos continuam.
MARCELO
Estou começando a ficar preocupado, Noriega.
Com quê?
NORIEGA
MARCELO
Marcelinho está ficando muito cansado. A gente tem que voltar
logo para o Rio e esse negócio não acaba nunca.
NORIEGA
Calma. Essas coisas levam tempo mesmo.
MARCELO
Depois de amanhã tem um jogo decisivo e você não deixa meu
menino descansar.
NORIEGA
Os compromissos com os patrocinadores foram assumidos há
mais de seis meses, Marcelo. São eles que pagam o salário de
seu filho.
MARCELO
Já fazem sete jogos que ele não faz gol. A torcida já está
pegando no pé dele. Se o Cão for rebaixado é ele quem vai
pagar o pato.
NORIEGA
Não seja pessimista, meu caro. Vai dar tudo certo.
MARCELO
Tudo certo para quem? Meu menino quase não tem tempo para
treinar.
NORIEGA
A campanha vai ser lançada amanhã. Não dá para evitar. Faz
parte, Marcelo. Fique tranquilo. Vai dar tudo certo.
EXT. SEDE DO ATLÉTICO/RIO DE JANEIRO – DIA.
Imagens externas da sede social do Atlético (que, na verdade, é a do Flamengo).
INT. RESTAURANTE DA SEDE SOCIAL DO ATLÉTICO – DIA.
166
Um garçom uniformizado serve à mesa em que estão Falcão e o DELEGADO
PEIXOTO (58 anos), vice-presidente de futebol do Atlético.
FALCÃO
Nunca fui tão humilhado em minha vida. Minhas orelhas estão
fervendo até agora, Peixoto.
PEIXOTO
Bobagem, juiz. Não dê importância a isso. Você fez o que tinha
que fazer. Carlão é um verme. Não vale a pena ficar chateado
com aquele protozoário. Ele não merece tanta atenção.
FALCÃO
Bom será se ele realmente não tiver gravado tudo. Ele garantiu
que não tinha câmera, mas um canalha daquela laia bem que
poderia aprontar comigo. Imagina se minha canhestra tentativa
de suborno cai na Internet?
PEIXOTO
Simplesmente não vai acontecer, juiz. Existe limite para tudo.
Até para gente como o Carlão. Vamos ver a coisa pelo lado
positivo.
FALCÃO
Esse seu otimismo tem hora que enche meu saco, Peixoto. Vá
ser Poliana noutra freguesia, tá?
PEIXOTO
Ficar nervoso não resolve nosso problema. Um juiz honesto é
melhor do que um desonesto trabalhando para desmoralizar
ainda mais a gente.
FALCÃO
Talvez seja até melhor assim. Eu não conseguiria colocar a
cabeça no travesseiro se tivesse que subornar alguém.
PEIXOTO
Devagar, juiz. Todo mundo tem seus pecados. O que a gente
tem que fazer é descobrir o preço daquele camarada.
FALCÃO
Vamos combinar uma coisa? Não quero mais saber desse
negócio de suborno. Você cuida disso a partir de agora. Eu
assino o cheque, mas não quero participar.
PEIXOTO
Vou fazer alguns contatos. Acho que aquele menino da
assessoria da imprensa é meio parente de Reine Schumann.
167
FALCÃO
(tapa os ouvidos)
Não quero saber. Pelo amor de Deus não me diga nada.
EXT. CT DO ATLÉTICO/RIO – DIA.
Os jogadores do Atlético estão treinando. Peixoto está de pé ao lado do campo.
O treino está sendo acompanhado pela imprensa, que se espalhou pela
arquibancada e acompanha tudo.
LINCOLN SCHUMANN, assessor de imprensa, louro, sardento, 25 anos,
aproxima-se de Peixoto.
LINCOLN
O senhor queria falar comigo, delegado?
PEIXOTO
Sim, meu filho. Quero dar uma palavrinha com você. Pode ser?
LINCOLN
Se for até o final do coletivo, tudo bem.
PEIXOTO
Ótimo. É rápido. Não vou atrapalhar seu trabalho. Vamos sentar
ali.
Aponta um banco de madeira, perto do alambrado; eles caminham até lá e
sentam-se.
PEIXOTO
(querendo aparentar descontração)
Ouvi dizer que você tem um primo que é juiz de futebol.
LINCOLN
Tenho sim. Reine Schumann.
PEIXOTO
Você sabe que é ele quem vai apitar o jogo de quarta-feira?
LINCOLN
Claro. Fiquei até aliviado quando soube que ele é quem iria
apitar o jogo.
Por quê?
PEIXOTO
LINCOLN
168
Por que ele é muito competente. Não vai aceitar pressão de
nenhum dos dois lados.
PEIXOTO
E você acha que isso é bom?
LINCOLN
O senhor acha que não é?
PEIXOTO
Eu perguntei primeiro.
LINCOLN
É bom sim. Acho que nossas chances aumentam com um juiz
isento.
PEIXOTO
(aponta para o campo)
Mesmo jogando aquela bolinha de merda que a gente está
vendo?
LINCOLN
Treino é assim mesmo, delegado. Ainda mais na véspera de um
jogo decisivo. O pessoal fica com medo de lesão. É natural.
PEIXOTO
Sei. Então você acha que dá para ganhar de quatro do Brasil.
LINCOLN
Acho que dá sim, delegado. Para eles, que estão na liderança do
campeonato, será um jogo sem importância. Se entrarmos em
campo com determinação dá para ganhar sim.
PEIXOTO
Com quatro gols de diferença? Em cima da melhor defesa do
campeonato? Do goleiro menos vazado?
LINCOLN
Se entrarmos com determinação dá pra fazer até mais gols. Eles
vão entrar relaxados, pensando no próximo jogo do campeonato
sul-americano.
PEIXOTO
Por sinal, onde está Marcelinho? Não estou vendo o garoto.
LINCOLN
Ele foi a São Paulo fazer umas fotos e gravar um comercial.
169
PEIXOTO
Logo agora?
LINCOLN
Também achei errado, mas foi ordem do presidente. Roberto
Caminhão ficou possesso, mas teve que aceitar.
PEIXOTO
Desse jeito fica difícil ganhar. O menino está cansado. Por isso
não faz gols há tanto tempo. Com tantos compromissos
publicitários não dá para concentrar no futebol.
LINCOLN
Também acho. Mas o presidente alegou que a programação foi
feita com antecedência. Dois jornalistas já vieram perguntar
onde está Marcelinho.
O que você disse?
PEIXOTO
LINCOLN
Falei que ele está com dores musculares, relaxando na piscina de
água aquecida.
PEIXOTO
Fez bem. Mas me diga uma coisa.
LINCOLN
O que o senhor quiser.
PEIXOTO
Você conhece bem o juiz que vai apitar? É mesmo seu primo?
INTERVALO.
PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS.
Continua a conversa entre Peixoto e Lincoln, ao lado do campo de treinos do
Atlético.
LINCOLN
Conheço. Meu pai é muito amigo dele.
PEIXOTO
(baixinho, olhando para os lados)
Ele nunca levou bola de ninguém?
LINCOLN
Como assim?
170
PEIXOTO
Bola. Jabaculê. Suborno.
LINCOLN
Que eu saiba, não. Ele é protestante, daqueles bem rígidos.
Duvido que ele tenha levado.
PEIXOTO
Todo mundo diz que o sujeito é honesto, mas nunca se sabe.
LINCOLN
(baixinho também)
Cá entre nós, delegado. Se ele aceitasse seria show de bola para
nós. Imagina se o time for rebaixado? Vai ser uma merda.
PEIXOTO
Que bom que você é um rapaz inteligente. Faz uma pesquisa.
Converse com seu pai. Ele é Cão, não é?
LINCOLN
Fanático, delegado. O senhor não conte para ninguém, mas
Reine também é Cão.
PEIXOTO
É mesmo? Que notícia boa.
LINCOLN
Mas não adianta tentar nada, delegado. Ele pode até me bater
se eu falar qualquer coisa nesse sentido.
De dinheiro?
PEIXOTO
LINCOLN
Não. Se falar em dinheiro com ele é perigoso ter um assassinato.
No caso de uma colher de chá para o Cão, que eu falei.
PEIXOTO
Faz o seguinte, meu filho. Conversa com seu pai. Conversa de
pé-de-ouvido. Homem para homem, só vocês dois. Sozinhos.
Pergunta sobre o juiz. Ele deve ter um ponto fraco. Deve haver
um jeito de conquistar a boa vontade dele.
LINCOLN
Vou fazer isso, delegado. Hoje à noite ele vai jantar lá em casa.
PEIXOTO
171
Essas coisas tem que ser bem-feitas. Tire o dia para cuidar disso.
Fale com seu pai. Com jeito. Cuidado.
LINCOLN
À tarde ele está no trabalho, delegado. Mas falo com ele antes
de Reine chegar para o jantar.
PEIXOTO
Ótimo. Bom menino. Muito bom menino. Vou ver um aumento
para você.
LINCOLN
Não é preciso, delegado. Não por isso. Faço qualquer coisa que
puder ajudar o Cão.
EXT. DELEGACIA DE POLÍCIA/ZONA SUL/RIO – DIA.
Um carro de polícia (PM), conduzido pelo cabo BELLINI, chega à entrada
principal de uma delegacia da zona Sul de São Paulo. Chiquinho e Sandro estão
na parte de trás do veículo (ambos algemados).
Um policial (de colete da Polícia Civil, armado com uma metralhadora portátil), DANILO,
chega até o carro.
BELLINI
Olha só quem veio fazer uma visita, Danilo.
DANILO
(dá uma olhada em Chiquinho e Sandro)
Quem são esses dois mané, cabo?
BELLINI
Os caras que sequestraram o jogador do Brasil. Aquele REYNA.
DANILO
Jura?! Eles não têm cara de bandido.
BELLINI
E quem disse que bandido tem cara de marginal? Foi-se o tempo
em que era só olhar para o meliante e saber que ele deveria ser
preso.
DANILO
(ainda olhando)
Mas esses dois parecem bem inofensivos.
BELLINI
Um dos dois é até meio retardado.
172
CHIQUINHO
Retardado é a... (para de falar porque percebe que não seria adequado)
DANILO
O retardado é o nanico?
CLOSE-UP em Chiquinho.
BELLINI
Sabe que eu não sei? Deve ser o nanico.
CHIQUINHO
Não tem nenhum retardado aqui.
SANDRO
Nós somos torcedores do Cão. Prenderam a gente por causa
disso. Sacanagem. Sacanearam a gente.
Saem do carro e são escoltados até a delegacia por Danilo.
INT. SALA DO DELEGADO PEIXOTO – DIA.
O delegado está lendo jornal. Toca o telefone na mesa dele.
PEIXOTO
Peixoto. Oi, meu filho. Alguma novidade?
VAMOS A LINCOLN, que está na sala da casa dele, ao lado do pai.
LINCOLN
Estou com meu pai aqui, delegado. Já expliquei tudo a ele.
(pausa) Vai sim. Seguinte. Meu pai disse que se o Atlético oferecer
alguma coisa Reine vai para a imprensa e denuncia todo mundo.
OUVIMOS GRITOS AO TELEFONE, sem entender exatamente o quê está
falando o delegado.
LINCOLN
Calma, delegado. Ninguém falou nada até agora. Meu pai deu
uma dica pra gente. Fica tranquilo, delegado. Seguinte. Reine
tem um filho com problemas sérios nos rins. É. O menino precisa
fazer um transplante de rim. Precisa de um rim. Não. Pode ser
qualquer um. Se a gente conseguir um doador para o garoto,
Reine vai ficar muito agradecido e provavelmente pode dar
algum tipo de ajuda. Nada absurdo, mas ajuda.
O delegado continua ao telefone.
173
PEIXOTO
Já é alguma coisa. Vamos arrumar um doador então. Está certo.
Mande para meu e-mail particular. Bom trabalho, garoto. Deixe
comigo agora. Depois entro em contato com você.
Peixoto fica parado, pensativo, com o telefone na mão.
OUVIMOS batidas na porta. Danilo entra na sala.
DANILO
Doutor Peixoto. Os caras já estão aqui.
Ah, é? E daí?
PEIXOTO (irritado)
DANILO
Os caras que sequestram o jogador, doutor Peixoto.
PEIXOTO
Jogador? Que jogador?
DANILO
Aquele que é médico. REYNA, do Brasil.
Médico?!
PEIXOTO
O rosto dele se ilumina.
PEIXOTO
Por que você não disse logo, sua anta? Traga os dois. Vou ao
banheiro e já volto.
Danilo sai de quadro e volta empurrando os dois novos presos. Mostra aos dois
uma faixa amarela situada a um metro e meio da mesa do delegado.
DANILO
Não pode passar dessa faixa amarela. Fiquem sempre atrás da
faixa amarela. Nada de chegar perto do doutor Peixoto,
entendido?
SANDRO
Pode pisar na faixa?
CHIQUINHO
Deixe de ser besta, Sandro.
DANILO (a Sandro)
174
Pisa que você vai ver o que acontece. Bico calado agora. Não
falem com o delegado. Ele é que vai falar.
INT. GABINETE DO DELEGADO PEIXOTO – RIO.
O delegado Peixoto sai do banheiro e volta a sentar-se. Olha atentamente para
Chiquinho e para Sandro.
PEIXOTO
Vocês sabem quem eu sou?
CHIQUINHO
Ele acabou de chamar o senhor de delegado.
SANDRO
Eu conheço o senhor.
PEIXOTO
(reconhece Chiquinho)
Você também deveria me conhecer. Você não é motoboy?
CHIQUINHO
O senhor desculpe, mas conheço não.
PEIXOTO
Você já fez duas entregas para mim. Eu sou vice-presidente de
futebol do Atlético.
CHIQUINHO
Lembrei agora. O senhor mora no Leblon, não é?
SANDRO
Eu já vi o senhor na Cara de Cão!
PEIXOTO (a Chiquinho)
Moro. Claro que já me viu. Eu sou muito amigo de Roque
Silvano. Eu não sabia que você estava envolvido no sequestro de
REYNA.
CHIQUINHO
Deu tudo errado, doutor. Mas ninguém machucou o moço. Juro.
PEIXOTO
Calma, meu filho. Eu sei que não. Mas sequestro é crime
hediondo. Vocês vão pegar uma cana demorada.
SANDRO
Meu pai vai me matar quando chegar de viagem!
175
PEIXOTO
Falei com Roque. Ele me contou a estória toda.
CHIQUINHO
Ele é que tinha que estar aqui. Mas ele é importante. Ele tem
grana. Eu sou um pobre coitado e é só por isso que sou eu que
estou aqui.
PEIXOTO
Sua intenção foi boa, meu filho. Você fez alguma coisa para
ajudar seu time, ao contrário de quase todo mundo, que está de
braços cruzados vendo o Cão ser rebaixado.
CHIQUINHO
Mas deu tudo errado. Quem fez merda foi Roque, não fui eu. Se
não fosse REYNA eu estava frito.
SANDRO
Eu também fiz coisa errada.
PEIXOTO (a Sandro)
Foi você quem jogou aquele foguete no sujeito da cadeira de
rodas, não foi?
SANDRO
Foi sim. Mas foi para defender Melissinha.
PEIXOTO
Foi uma pena não ter dado certo. A gente livrou a cara do
Roque. Nós cuidamos bem de nossos amigos. (a Chiquinho)
esqueça REYNA. É um filho da puta.
CHIQUINHO
Não acho. Mas não vem ao caso. O senhor vai ajudar a gente
também?
PEIXOTO
Depende.
SANDRO
Ajuda a gente doutor. A gente não fez por mal.
CHIQUINHO
Depende do quê, delegado?
PEIXOTO
De vocês colaborarem. Vamos fazer a coisa direito dessa vez.
176
DANILO
Cuidado com eles, delegado. O grandão é meio retardado.
SANDRO
Retardado é a sua mãe!
PEIXOTO (a Danilo)
Alguém aqui pediu sua opinião?
CHIQUINHO
O quê?
DANILO (sai)
Desculpa delegado. Eu só queria ajudar.
Peixoto faz sinal para Chiquinho aproximar-se.
O quê?
CHIQUINHO
PEIXOTO (baixinho)
Seu amigo. Ele é mesmo ruim da cabeça?
SANDRO
O pior de tudo vai ser aguentar a gozação dos torcedores do
Brasil.
CHIQUINHO
(baixo também)
Só um pouco. Mas é gente boa.
PEIXOTO (a Sandro)
Talvez não. Se a gente fizer as coisas certas dá para escapar do
rebaixamento.
CHIQUINHO (interessado)
O senhor está pensando em liberar a gente para sequestrar o
sujeito do jeito certo?
PEIXOTO
Que sequestrar merda nenhuma. Eu sou delegado de polícia,
esqueceu?
CHIQUINHO
Mas como o senhor acha que dá para ajudar o Atlético?
PEIXOTO
(coça o pescoço, olha para Sandro)
177
Depende. Talvez a gente possa dar uma força para o Cachorro.
Vai depender da boa vontade de seu amigo.
EXT. CT BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA/RIO – ENTARDECER.
Final de treino. Os jogadores, exaustos, estão saindo do campo. Madruga e
Quintero estão no centro do campo.
O que achou?
MADRUGA
QUINTERO
Show de bola. Você ganhou a confiança dos jogadores bem
antes do que eu imaginava. É como se tivesse trabalhado com
eles a vida toda.
MADRUGA
Experiência pesa muito, José Roberto. Estou no futebol há mais
de 30 anos e sei lidar com jogador.
QUINTERO
Reparei que você não se preocupa muito com a parte tática.
MADRUGA
Jogador que diz que gosta de treino tático está mentindo. Prefiro
adotar um esquema de jogo simples, sem inventar muita coisa.
Deixar os jogadores mais livres.
QUINTERO
Está funcionando. A turma está motivada, relaxada.
MADRUGA
De 10 orientações táticas, no máximo duas ficam mesmo na
cabeça deles. Não adianta forçar a barra.
QUINTERO
Mancini fazia exatamente o contrário.
MADRUGA
Ele era um grande técnico, mas não percebeu que com jogador
brasileiro a coisa é diferente. Eles gostam mesmo é de técnico
que não atrapalha.
QUINTERO
Aprendi com você em uma semana o que levei cinco anos para
aprender na Europa.
MADRUGA
178
Na hora do jogo a pressão é muito grande e o jogador só faz o
que está na cabeça. No máximo 10% de tudo que o técnico fala.
E olhe lá.
QUINTERO
Mas você conversa muito com eles.
MADRUGA
Quero que eles saibam exatamente o que eu quero. Que confiem
em mim tanto quanto confiam neles mesmos. Você reparou
como Leo é ouvido pelo grupo?
Começam a caminhar. Devagar, na direção dos vestiários.
QUINTERO
Leonardo é um psicólogo nato. Vai dar um belo treinador.
MADRUGA
Uma pena ele ainda não poder jogar o tempo todo. Com ele em
campo a possibilidade deles fazerem o que a gente combina aqui
é muito maior.
QUINTERO
Você vai mesmo partir com tudo para cima do Atlético?
MADRUGA
É o que os jogadores querem. Ninguém falou em dar moleza
para o Atlético. E olhe que eles têm amigos lá.
QUINTERO
Não é bom transformar isso numa coisa pessoal. A imprensa fica
botando fogo, o jogador acaba entrando nessa onda. Não gosto
disso.
MADRUGA
Não dá para evitar, José Roberto. Eles querem fazer média com
a torcida e vão fazer o que quiserem. Você tem que fazer de
conta que não vê, senão perde autoridade.
FEDERICA surge à beira do campo e faz sinal para Quintero.
MADRUGA
Você se dá muito bem com ela. Isso é ótimo para mim.
QUINTERO
Vem novidade por aí. Eu conheço aquela cara.
MADRUGA
179
Vou tomar uma ducha. Depois a gente se fala. (a FEDERICA) Boa
tarde, presidente.
FEDERICA
Tudo bem com você? Gostou do treino?
MADRUGA
Ótimo treino, presidente. Vou deixar vocês à vontade. (sai)
FEDERICA
Você está satisfeito com ele?
QUINTERO
Muito. Ele é muito bom. Tranquilo, sem muita conversa fiada. O
que você conta?
FEDERICA
O presidente do Atlético me chamou para jantar. Hoje.
QUINTERO
(rindo, com ironia)
É mesmo? O que você acha que ele quer?
FEDERICA
Provavelmente o juiz vai pedir para você escalar o time reserva.
Eu não. Madruga.
QUINTERO
FEDERICA
Você entendeu.
QUINTERO
E você ainda não. O treinador é ele.
FEDERICA
Você que ir comigo?
Quer que eu vá?
Você é quem sabe.
QUINTERO
FEDERICA
QUINTERO
Acho melhor você ir sozinha. Parece que o juiz convidou só você.
INT. SALA DE FALCÃO/SEDE SOCIAL DO ATLÉTICO – DIA.
180
Falcão e Peixoto tomam uísque no fim de tarde. Janelas abertas, temperatura
agradável.
Ela topou.
FALCÃO
PEIXOTO
Vai escalar o time reserva?
FALCÃO
Não. Topou o jantar.
INTERVALO.
PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS.
INT. SALA DE FALCÃO/SEDE SOCIAL DO ATLÉTICO – DIA.
O juiz e Peixoto continuam a conversa.
PEIXOTO
Vai ser perda de tempo. Ela não interfere. Quem resolve é
Quintero e ele não vai fazer isso de jeito nenhum.
FALCÃO
A situação é emergencial. Não custa nada ela colaborar. (pausa;
um garçom serve mais um uísque para o juiz) Amanhã cedo vou fazer
uma reunião de diretoria e apresentar nossa estratégia.
PEIXOTO
Ótimo. Divida a responsabilidade com eles.
FALCÃO
Vão me apertar por causa do juiz que Carlão escolheu.
PEIXOTO
Relaxa. Eles conhecem o filho da mãe.
FALCÃO
Eu não estou levando muita fé nesse negócio de transplante de
rim. Tem que ter muito cuidado para a coisa não vazar para a
imprensa.
PEIXOTO
Vou cuidar pessoalmente disso. Cuide da diretoria que fica de
bom tamanho. Vem muita pressão amanhã.
FALCÃO
181
Estou apostando mesmo é na festinha. Já mandei contratar as
meninas. Botei umas gostosas da televisão também. Jogador
adora artista.
PEIXOTO
Quanto você vai gastar com a festa?
FALCÃO
Uns 60 mil. 30 com o buffet e o resto com as meninas. Uísque
por fora. Vou mandar uma caixa de scotch de primeira.
PEIXOTO
É pouco. Coloque pelo menos uma artista famosa. Consiga uns
100 mil e põe uma de novela. Ou uma daquelas dançarinas
daqueles shows.
FALCÃO
Está certo. Você não acha que 300 paus é muito dinheiro?
PEIXOTO
Foi o que Durval pediu. Não é hora de pão-durismo. Tem que
abrir a carteira. Ele prometeu que vai levar quase todos os
jogadores do Brasil. Contratou uma banda de pagode.
FALCÃO
Estou apostando nessa festinha. Os caras vão estar mortos no
dia seguinte.
PEIXOTO
Tem que orientar bem as meninas. Elas não podem dar sossego
pros caras. Tem que fazer a turma beber como se o mundo fosse
acabar.
FALCÃO (ri)
Estou até com vontade de ir lá aproveitar as meninas.
PEIXOTO
Promete que esqueceu aquela estória do purgante? Vai queimar
o filme de Durval. Ele vai ficar possesso. Não vale a pena
escorregar nessa casca de banana.
FALCÃO
Sem purgante. Vamos guardar o purgante para o dia do jogo.
PEIXOTO
Só em último caso. É perigoso. Pode dar suspensão na Liga.
FALCÃO
182
Está certo. (propondo um brinde) À vitória!
PEIXOTO
Vitória só, não. Com quatro gols de diferença.
INT. VESTIÁRIO DO CT/BRASIL FC – DIA.
Os jogadores estão tomando banho: uns nos chuveiros, outros numa das
banheiras de hidromassagem; outros estão terminando de colocar a roupa.
REYNA está na banheira, ao lado de Durval.
DURVAL
E aí, Violão? Você vai aparecer lá em casa hoje?
VIOLÃO
(em OFF)
Tu tá pensando que eu sou algum folgado? Amanhã cedo pego
no batente às 7h.
REYNA
(com o charuto na boca, apagado)
Você não sabe o que está perdendo. Amanhã vai ter pagode.
VIOLÃO
(em OFF)
Pois me incluam fora dessa, moçada. Semana passada a patroa
me deixou trancado fora do quarto. Estou dormindo no sofá até
hoje.
DURVAL
Essa vai ser a melhor festa do mês. Vai ter até atriz da televisão.
REYNA
(imitando o sotaque carioca)
Atriz ou modelo e atriz?
Todos que estão no vestiário riem.
DURVAL
Uma amiga minha ficou de levar aquela loirinha da novela das
oito.
Gritos e assovios.
REYNA
(levanta as mãos para cima, vibrando)
Graaaaaaande Durval!
Madruga chega ao vestiário. Silêncio.
183
MADRUGA
Desse jeito eu vou pensar que vocês estão combinando alguma
coisa para hoje à noite.
REYNA
O que é isso, professor? Aqui só tem gente responsável.
MADRUGA
Vinte anos de praia, moçada. Cuidem-se. Vamos pegar leve.
Senão a gente volta com a concentração.
Gritos e assovios.
GRUPO (uníssono)
Madruga! Madruga! Madruga! Madruga!
INT. QUARTO DE HOSPITAL – DIA.
Sandro está deitado numa cama, Chiquinho em outra, as duas bem próximas.
O delegado Peixoto está com eles, sentado no sofá de visitas. Uma enfermeira
e um enfermeiro estão tirando sangue dos dois.
INT. SALA DA CASA DE LINCOLN – NOITE.
Lincoln, PAULO SCHUMANN e REINE estão sentados, tomando um cafezinho.
Paulo levanta-se.
PAULO
Vou deixar vocês à vontade. (a Lincoln) Abra o coração para seu
primo, filho. (sai)
REINE
Quanto mistério. Vou ser convidado para ser seu padrinho de
casamento? Não se esqueça de que bancário não ganha nada.
LINCOLN
Que casamento que nada. Minha praia é outra, Reine.
REINE (preocupado)
Você é gay?
LINCOLN
Não. Fiz um tratamento e me curei há dois anos.
REINE
Você está falando sério?
LINCOLN
184
Claro que não. Eu sou facão. O papo é outro.
Qual é a encrenca?
REINE
LINCOLN
É um assunto delicado. Você promete que vai ouvir até o fim?
Por favor.
REINE
Não estou gostando dessa estória.
LINCOLN
Confie em mim. Promete?
Fala.
REINE
LINCOLN
Eu consegui um doador para Luisinho.
REINE
É mesmo? Graças Deus! Mas tem que ser doador universal. Tem
certeza de que esse que conseguiu é universal?
LINCOLN
Absoluta, Reine. O Atlético já verificou tudo.
REINE (desconfiando)
O Atlético? O que o Atlético tem a ver com isso?
LINCOLN
Nada. Quer dizer. Não no sentido que você está pensando.
REINE
Em que sentido eu estou pensando?
LINCOLN
Você sabe. O jogo de amanhã. (Reine levanta-se) Calma. Não é
isso. Um diretor do Atlético conseguiu o doador, só isso.
REINE (firme)
Sei. Na véspera do jogo que pode rebaixar seu time aparece
você dizendo que um diretor arrumou um doador universal para
meu menino. Você está pensando que eu sou um imbecil?
LINCOLN
185
Ninguém vai pedir nada em troca. Todo mundo sabe que não iria
adiantar.
REINE
E aí você vem com essa conversa mole e pensa que eu caio
nessa onda.
LINCOLN
Ok. Está certo. Você não quer. Tudo bem. Mesmo sabendo que
ninguém vai cobrar nada de você, não vai ajudar seu menino.
Tudo bem. Quem sabe daqui a um ano ou dois aparece outro
doador universal.
REINE
Eles não vão exigir nada em troca?
LINCOLN
Nada que ofenda sua dignidade. Você vai sair de campo de
cabeça erguida como sempre fez. O que o Atlético espera de
você é só um pouco, um pouquinho só de boa vontade.
CLOSE-UP de Reine. Ele não diz nada, mas parece aceitar.
INT. QUARTO DE HOSPITAL – DIA.
De volta ao quarto de hospital. Sandro repousa adormecido no leito. Ao lado
dele, Peixoto e Chiquinho. Um médico está saindo.
PEIXOTO
Obrigado, doutor. Não sei como agradecer.
MÉDICO
Eu sei. Não deixe o cão ser rebaixado. (e sai)
CHIQUINHO
O senhor tem certeza de que ele vai ter uma vida normal?
PEIXOTO
Você ouviu o doutor Marcelo. Inteiramente normal.
CHIQUINHO
Quando é que a gente pode ir embora?
PEIXOTO
O médico vai liberar seu amigo amanhã cedo. Depois vocês
podem ir embora, sem problema.
INT. SALA DA CASA DE DURVAL – NOITE.
186
Uma sala ampla, decorada com gosto duvidoso: uma residência de novos ricos.
A sala está escura e, aos poucos, um discreto feixe de luz surge na escuridão.
Vemos uma mulher morena (cabelos presos em rabo de cavalo), com o corpo cheio
de espuma, inclusive o rosto.
Na trilha sonora entra uma música típica de strip-tease, lenta, sensual entra
junto com a imagem da mulher.
Aos poucos, irresistivelmente, ela vai tirando espuma do corpo e revelando
curvas perfeitas, de uma mulher que frequenta academias de musculação. O
corpo é bem-definido, mas sem exageros.
Gemidos, aplausos e gritos começam devagar, seguidos por gritos
entusiasmados de homens: reconhecemos na plateia entusiasmada a voz de
REYNA.
REYNA
Linda! Linda! Gostosa! Vem aqui, que eu te ajudo!
VÁRIAS VOZES (em uníssono)
Tesão! Gostosa! Vem aqui, vem?!
O entusiasmo é grande, mas ninguém interrompe o ritual. De repente a música
para e a dançarina fica imóvel como uma estátua; a luz sobre ela apaga-se e
VEMOS que só rosto dela ainda não foi mostrado (ainda está coberto de espuma).
Ela desaparece, tragada pela escuridão, ao mesmo tempo em que...
...o som de suspense de uma bateria invade a sala.
Outro feixe de luz aparece e surgem duas mulheres belíssimas, vestidas como
dançarina de dança do ventre, tendo à frente um anão vestido como escravo
árabe das Mil e Uma Noites, carregando sobre a cabeça uma pequena urna.
Música árabe, sensual, começa a ser ouvida; toques de violino são ouvidos na
sala.
No escuro, VEMOS que outras mulheres, também vestidas como odaliscas,
estão recolhendo pequenas fichas numeradas (como de um cassino) e
depositando-os na urna que continua na cabeça do anão, que olha com desejo
para as duas mulheres seminuas que estão ao lado dele.
Recolhidas e depositadas todas as urnas, a música é interrompida pela bateria
e uma das duas mulheres que estavam iluminadas enfia a mão na urna...
187
...OUVIMOS GRITOS DE HOMENS E DE MULHERES...
VOZES
(em uníssono, cantando a música famosa, acompanhada por violinos)
Com quem será? Com quem será? Com quem será que a LUÍSA
vai casar? ...com quem será?
A mulher mostra o número do cartão sorteado. CLOSE-UP na ficha: número 7.
REYNA
(pulando no escuro)
Ganhei! Ganhei!
Ele aproxima-se da luz, ganha dois beijos de cada dançarina do ventre, que
começam a sacudir o corpo belíssimo (entram na TRILHA os acordes de uma dança
árabe típica: as mulheres balançando o ventre).
REYNA vê um feixe iluminar-se de novo e lá está de volta a loura, com o corpo
novamente coberto de espuma.
Ele se aproxima dela, beija-a com carinho e os dois perdem-se na escuridão;
OUVIMOS gritos de inveja dos homens que estão na plateia.
Imediatamente luzes fracas surgem e VEMOS que a sala está cheia de
odaliscas seminuas.
Os homens presentes, jogadores do BRASIL FC, pegam uma ou duas mulheres
pelas mãos (há mais mulheres do que homens) e saem com elas.
Outros ficam e as mulheres continuam a dança do ventre, com a música que
não parou de tocar depois da saída de REYNA.
CORTA PARA
Um corredor, em que VEMOS REYNA conduzindo com carinho a mulher com o
corpo cheio de espuma.
Ele entra por uma porta protegida por um homem enorme, negro, vestido
como escravo das Mil e Uma Noites, que a abre para o casal.
ENTRAMOS com REYNA na suíte e vemos uma mesa posta, com balde e uma
garrafa de champanhe nas mãos do anão, que imediatamente ‘estoura’ a
garrafa e serve em duas taças para o casal que segue para a cama.
REYNA recebe a taça e dá para a mulher; pega a dele e ambos bebem juntos.
O anão sai discretamente.
CORTA PARA IMAGENS DA FESTA DE DURVAL.
188
IMAGENS INTERCALADAS POR FUSÕES DE UM CLOSE-UP DE UM RELÓGIO DE
PAREDE QUE ESTÁ NA SALA: vemos o tempo evoluindo de 11h da noite até 5h
da manhã do dia seguinte.
Lá fora, uma banda de pagode tem alguns jogadores tentando tocar junto. O
churrasco está sendo servido por garçons uniformizados. Na trilha, PAGODE.
Numa suíte enorme, com uma cama absurdamente grande, três jogadores do
Brasil (identificamos Lúcio, Lucas, Alberto) estão cheirando uma fileira de cocaína
colocada sobre um livro de capa dura preta, que repousa sobre a barriga de
uma mulher seminua.
Na sala, o grupo bebe uísque e cerveja, divertindo-se para valer. Ao fundo a
música de PAGODE executada lá fora.
INT. SUÍTE DA CASA DE DURVAL – NOITE.
REYNA e a morena na cama. Devagar, ele vai tirando a espuma do corpo dela.
Lentamente, tira do rosto também. REYNA olha fixamente para o rosto dela,
come expectativa para ver quem é a mulher. CLOSE-UP do rosto da mulher: é
o rosto de Isabela Falcão, a jornalista da Folha do RIO.
O quê? Você?
REYNA
CORTA PARA NOVO CLOSE-UP. O rosto não é mais o de Isabela, mas de uma
mulher loura, linda também. Uma atriz famosa da TV (facilmente identificada como
tal pelos espectadores).
ATRIZ
(sem perceber o que houve com REYNA)
Sou sua. Todinha sua. Estava rezando para ser você, meu lindo.
Graças a Deus ganhei esse presente. Sou sua. Inteirinha sua.
CLOSE-UP no ponto de vista de REYNA, que está confuso. Ele reconhece a
loura da TV, mas logo depois vê o rosto de Isabela mais uma vez. Pisca os
olhos, confuso. Ela pensa que ele mal está acreditando que tem uma famosa
estrela na cama.
ATRIZ
Sou eu mesma, querido.
No ponto de vista de REYNA, mais uma vez: ela só vê a loura então.
Tranquiliza-se.
REYNA
Você é uma rainha. A minha rainha.
189
EXT. PRÉDIO DE ISABELA FALCÃO/LEBLON/RIO – MADRUGADA.
O LAND ROVER de REYNA chega cantando pneus e para, mal estacionado, bem
em frente à portaria.
O porteiro sai do prédio, vai até o carro e vê que o motorista (REYNA)
desmaiou. Volta ao prédio.
INT. PORTARIA DO PRÉDIO DE ISABELA – MADRUGADA.
O porteiro está usando o telefone interno. Chama várias vezes e espera.
PORTEIRO
Dona Isabela? É o Josivaldo. Desculpe acordar a senhora assim,
numa hora dessas. Mas aquele jogador que foi sequestrado está
aqui embaixo. É a terceira vez que ele vem aqui. Não. De jeito
nenhum. Ele está dormindo no carro. Está certo. Eu aviso.
INT. SALA DA CASA DE ISABELA FALCÃO – MADRUGADA.
Isabela entra na sala (usa um pijama de seda, delicado, sensual) e VEMOS que
QUINTERO está dormindo, sentado no sofá, com a cabeça encostada numa
almofada. Delicadamente, ela o acorda.
ISABELA
José Roberto? José Roberto?
QUINTERO
(assustado, grogue)
Hein?! Como? O que foi?
ISABELA
Calma, Zé. Escute. Leonardo REYNA está lá embaixo.
QUINTERO
(vê um vidrinho de comprimidos coloridos sobre a mesa de centro)
Leo? Aqui? O que ele veio fazer aqui?
ISABELA
E eu sei? Todo mundo resolveu aparecer hoje aqui. Vamos.
Levante-se. Vá lá.
QUINTERO
(pega o vidrinho e olha o conteúdo)
Eu não posso. Estou bêbado ainda.
ISABELA
(puxa-o pelo braço, obrigando-o a levantar-se)
190
Anime-se homem. Vá lá. O porteiro disse que Leo está bêbado
também. Apagou no carro.
FEDERICA aparece na sala, só de calcinha. Um corpo espetacular. QUINTERO
dá um salto: parece que fica sóbrio de uma só vez.
FEDERICA
(com olhos apertados, com dificuldades com a claridade na sala)
O que aconteceu? Que barulheira é essa?
Quintero parece em estado de choque: não desgruda os olhos das curvas do
corpo de FEDERICA por um segundo.
ISABELA
(empurrando Quintero na direção da porta)
Você vai lá embaixo buscar Leo. Tome seu remédio de novo,
porque vomitou tudo. (a FEDERICA) Você volta para seu quarto.
Não aconteceu nada. Eu quero dormir. Estou morrendo de sono.
Vamos, vamos. Já para cama (puxando uma confusa FEDERICA na
direção do corredor).
INT. QUARTO DE ISABELA FALCÃO – AMANHECER.
Isabela está no quarto dela; aproxima-se da janela e olha para baixo.
PONTO DE VISTA DE ISABELA mostra, lá embaixo, Quintero abrindo a porta do
carro e ajudando REYNA, que caminha com dificuldade (muito bêbado) a entrar
no prédio em que ela mora.
INT. PORTARIA PRÉDIO DE ISABELA – DIA.
Quintero praticamente arrasta REYNA até o elevador, com ajuda do porteiro.
INT. ELEVADOR – DIA.
Quintero tem dificuldade para manter REYNA de pé. REYNA solta um peido,
arrota. Quintero faz uma careta.
INT. SALA DO APARTAMENTO DE ISABELA – DIA.
Quintero entra na sala, carregando REYNA e, sempre com muita dificuldade,
deixa que o corpo dele se espalhe no sofá. Olha para o corredor, em busca de
Isabela.
QUINTERO (voz baixa)
Isabela. Isabela. Isabela!
Como não há resposta, Quintero atravessa a sala e vai até a cozinha.
191
ACOMPANHAMOS Quintero: ele vai até a geladeira, pega uma jarra cheia de
água e bebe um gole interminável, no bico da própria jarra.
Repara então num cigarro feito à mão, sobre a mesa. Curioso, pega o cigarro e
cheira. Sorri quando percebe que é um baseado.
QUINTERO
Quer dizer que Sobrenatural de Almeida gosta de um baseado?...
Pega um isqueiro que está ao lado e acende o baseado, tragando devagar,
saboreando lentamente as baforadas no baseado.
A imagem de Quintero aos poucos se perde no meio de tanta fumaça: ele fuma
DEMAIS.
INTERVALO.
PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS
INT. CAMPO DE TREINOS DO ATLÉTICO – DIA.
O treinador Roberto Caminhão está no centro do campo. Os jogadores estão
em volta dele (reservas com colete): vai começar uma preleção.
ROBERTO
Não vamos treinar hoje cedo.
MARCELINHO
Foi mal, professor. Marcar um treino para as sete de matina e
depois dizer que não vai ter nada?
ROBERTO
Eu não disse que não vai ter nada. Só falei que não vai ter
treino.
MARCELINHO
O que a gente vai fazer então, professor?
ROBERTO
Primeiro vamos conversar. Conversa de homem. De peito aberto.
(teatral, rasga a camiseta e mostra o peito) Jogo limpo. Quem está
dentro?
TODOS
Eu! Aqui! Vamos lá, professor! Manda ver!
ROBERTO
Meu empresário falou de meu contrato com vocês. Deu para
perceber que minha vida não vai piorar em nada se o time for
rebaixado?
192
HIDALGO
(forte sotaque francês)
Deu sim, professor. Você fica na boa e a gente vai ter
dificuldades para sair.
MARCELINHO
Eu não pretendo sair. Vou disputar a segunda divisão de a gente
perder.
ROBERTO
Falou como homem, Marcelinho. É isso mesmo. Nessa altura do
campeonato a gente tem que ter vergonha na cara, mais do que
dinheiro no bolso.
HIDALGO
Falar é muito bonito, Roberto. Quero ver você agir.
ROBERTO
Tenho uma proposta para vocês. Se a gente fechar agora um
acordo de macho, de homem que respeita o fio da barba...
HILDALGO
Desembucha logo, Caminhão.
ROBERTO
Vá tomar no rabo, Hidalgo. Quem desembucha é sua mãe.
Hidalgo levanta-se: quer briga. Marcelinho, ao lado dele, segura Hidalgo.
MARCELINHO
Qual é tua proposta, professor?
ROBERTO
Abro mão da minha multa rescisória. Não recebo nenhum
centavo dos dólares a que tenho direito.
HIDALGO
E daí? O que a gente ganha com isso?
ROBERTO
Divido a grana com vocês. A gente aluga um barco, coloca umas
mulheres lindas lá e fica uma semana torrando meus dólares.
HIDALGO
Está falando sério, Caminhão?
ROBERTO
193
Nunca falei tão sério em minha vida. Fazemos aqui um
compromisso de macho. Vamos suar a camisa para valer, como
se fosse o jogo de nossas vidas. Deixamos para trás nossas
brigas e jogamos como nas primeiras partidas. Com
determinação, indo nas bolas para decidir o jogo. Assim a gente
ganha.
HIDALGO
Melhor perder a fazer a farra no barco.
O grupo ri com vontade.
ROBERTO
Se a gente ganhar esse jogo e não for rebaixo garanto que o juiz
banca essa farra para gente. No mesmo valor da minha multa
rescisória.
O grupo faz festa. Estão pacificados.
ROBERTO
Vamos fazer uma pelada, rapaziada. O juiz está de olho na
gente. Vamos mostrar a ele que ninguém aqui esqueceu como se
joga bola.
Os jogadores, alegres, reúnem-se e jogam Roberto Caminhão para cima, várias
vezes, na comemoração antecipada do ótimo jogo que sabem que vão fazer.
Ainda que não ganhem por quatro gols de diferença.
O Juiz e Peixoto aproximam-se, felizes, acompanhados por Lincoln e Chiquinho:
o Cão está vivo.
O delegado traz um pastor alemão numa coleira: é a mascote do time.
EXT. HOSPITAL DAS CLÍNICAS/RIO – DIA.
Uma visão geral da entrada principal.
INT. CORREDOR DO HOSPITAL – DIA.
Um médico já idoso entra num apartamento em cuja porta há um homem com
um colete da Polícia Civil.
MÉDICO
O pai do garoto já chegou?
POLICIAL
Já sim, doutor. Está com ele agora.
194
O médico entra.
INT. APARTAMENTO DE ALAN – DIA.
Um garoto pálido, de 15 anos idade, está deitado, adormecido. Está sedado. É
ALAN, filho do juiz de futebol R. Schumann, que está na cabeceira.
Uma enfermeira está lá também, vigilante, à espera do médico.
MÉDICO
Bom dia Reine. Tudo bem com você?
REINE
Depende do senhor, doutor. Meu menino vai ficar bem?
MÉDICO
Dou minha palavra que ele vai ficar bem. Pode descansar para o
jogo. Seu dia vai ser duro, meu filho.
REINE
Ele disse alguma coisa antes de adormecer, doutor?
Enfermeira?
MÉDICO
Discretamente, o médico pisca o olho esquerdo para a enfermeira, sem que
Reine se dê conta.
ENFERMEIRA
Disse que ama muito o senhor e que tem certeza de que o time
dele vai ganhar o campeonato.
MÉDICO
(recriminando-a discretamente)
Campeonato... as mulheres não entendem mesmo nada de
futebol.
REINE
Eu entendi doutor. (à enfermeira) Não se preocupe com esses
detalhes. Cuide bem de meu menino. (ao médico) Acho que não
vou trabalhar. Vou ficar aqui com meu filho.
MÉDICO
Não é necessário, meu filho. Ele vai ficar sedado até a hora em
que o bloco cirúrgico desocupar. Uma cirurgia de coração
delicadíssima está começando agora e não termina antes de 8 da
noite. Quando você voltar, Alan já vai estar aqui esperando você.
Vai tranquilo, meu filho. Nós vamos cuidar bem dele.
195
REINE olha para o médico. Não diz nada. Aproxima-se do filho e faz carinho no
rosto dele. CLOSE-UP do rosto de REINE.
Na trilha sonora ressoa o silvo de um apito. CORTA para uma imagem de
REINE durante um jogo, à noite.
PLANO APROXIMADO dele, apitando um pênalti. CAM abre e mostra vários
jogadores (de um time qualquer) partindo para cima do juiz, reclamando contra a
marcação feita.
Firme, REINE mantém-se irredutível.
Ao fundo, na trilha sonora:
TORCIDA (uníssono)
Ladrão! Ladrão! Ladrão! Ladrão!
INT. QUARTO/APARTAMENTO DE ISABELA – DIA.
Na cama de solteiro, FEDERICA, só de calcinha, está dormindo. Ao lado dela,
enlaçando-a (ela se aconchegou aos braços dele), Quintero. Isabela abre a porta sem
fazer ruídos e sorri quando vê os dois abraçados na cama. Fecha a porta então,
bem devagar.
INT. CORREDOR DO APTO DE ISABELA – DIA.
Isabela, cabelos molhados, caminha pelo corredor. Já tomou um banho: usa
um roupão amarelo, curtinho, que revela as pernas lindas. Vai em direção à
copa.
INT. COPA/APARTAMENTO DE ISABELA – DIA.
REYNA está tomando um café da manhã frugal. Parece descansado, como se
tivesse acordado agora. Isabela entra e dá um beijo demorado nele.
ISABELA
Adivinhe o que eu acabei de ver.
REYNA
José Roberto na cama com FEDERICA.
ISABELA
Assim não vale. Você já sabia?
REYNA
Ele estava na sala, do meu lado, fumando um baseado atrás do
outro. Ela chegou, deu uns tragos e os dois se atracaram ali
mesmo. No chão. Como se eu não existisse.
196
ISABELA
(tira uma maçã da geladeira e dá uma mordida, sentando-se ao lado dele)
Sempre achei que rolava uma eletricidade entre os dois. Mas a
coisa custou para acontecer. Ela achava que era gay.
REYNA
Como assim? Não tem esse negócio de achar, Ed. Ou é ou não é.
ISABELA
Ela não sabia que gostava de homem.
REYNA
Aprendeu a gostar bem rápido. Deu para ouvir em Niterói os
gemidos dela divertindo-se com José Roberto.
ISABELA
Essa noite foi uma loucura. Até agora não estou entendendo o
que aconteceu. O que deu na sua cabeça de aparecer aqui às
cinco da manhã?
REYNA
Paixão. Nunca consigo pensar noutra mulher desde aquele
sequestro maluco. (pausa) Estava numa festa na casa de Durval.
ISABELA
Quintero também estava lá?
REYNA
Claro que não, Ed. Se estivesse acabava com a festa. Ele encheu
a cara noutra freguesia.
ISABELA
Eu preciso ir gravar.
REYNA
Beleza. Não vá falar da festa, hein?
Você vai jogar?
ISABELA
REYNA
Só se for preciso. Estou com dores musculares, Madruga só vai
me usar se tiver que fazer gol de bola parada.
ISABELA
E é assim? Você tem tanta certeza assim de que vai fazer gol de
falta? Você é convencido demais, Leo.
197
REYNA
Os fatos me dão razão. Faço gols de falta quase sempre. Porque
não faria hoje?
ISABELA
Para não jogar meu time para a segunda divisão. Esse não é um
bom motivo?
REYNA
(faz uma careta ao comer um gomo de uma mexerica)
Você torce pelo Atlético?
ISABELA
Meu pai me levou desde pequena ao estádio. Virei atleticana
muito antes de entender o que aqueles sujeitos ficavam fazendo
no gramado. Tinha só quatro anos. É paixão antiga.
REYNA
Sei. E está me fazendo uma proposta indecente.
ISABELA
Indecente até demais. Minha intenção é seduzir você, corromper
você para garantir que não vai fazer nenhum gol para
desclassificar meu time do coração.
REYNA
Se eu não estivesse ouvindo com meus próprios olhos não
acreditaria, Ed. Você usou meu corpinho com segundas
intenções? As piores intenções possíveis?
ISABELA
Usei. E você usou o meu também. Logo, vai ter que fazer o que
eu pedi.
REYNA
Não pense que sou um traidor, um sujeito que não honra a
camisa de seu time.
ISABELA
Você gostou. A-do-rou ser corrompido. É bom fazer coisa errada
de vez em quando.
REYNA
Você realmente não me conhece, Ed. Não aceito suborno sexual
nem financeiro.
ISABELA
Por que você me chama com nome de homem?
198
REYNA
Por que eu quero. Vai encarar?
ISABELA
Vou fazer um strip-tease aqui na cozinha.
REYNA
Vai nada. Você não tem coragem.
ISABELA
Se eu fizer você aceita minha proposta?
REYNA
Vou pensar com muito
possibilidade. Bem pequena.
carinho.
Existe
uma
pequena
Beijam-se com paixão.
INT. SALA DE IMPRENSA/BRASIL FC – DIA.
A sala do hotel está lotada. Madruga e Quintero estão na mesa. Quintero com
a cara de quem foi atropelado por um trem. Está visivelmente diferente,
alterado, agressivo.
MADRUGA
Prefiro deixar a resposta para Quintero.
Por mim tudo bem.
REPÓRTER UM
QUINTERO
Dá para repetir? Passei a noite em claro. Perdi os remédios que
uso habitualmente.
REPÓRTER UM
Você também foi ao churrasco?
QUINTERO
Não fui a churrasco nenhum. Nem sei de que churrasco está
falando.
REPÓRTER UM
Os jogadores fizeram um churrasco ontem. Na casa de Durval.
QUINTERO
E daí? Eles podem fazer churrasco na hora em que quiserem.
São adultos. No Brasil já abolimos a concentração de véspera.
199
REPÓRTER UM
Acontece que os vizinhos falaram que o churrasco durou a noite
inteira. E que havia mulheres de programa e uma banda de
pagode.
Risos. Até Madruga riu. Quintero continua sério.
REPÓRTER UM
E Madruga escalou um time misto. Minha pergunta é justamente
sobre a relação que existe entre as duas coisas.
QUINTERO
Você está fazendo inferência indevida. Uma coisa é uma coisa e
outra coisa é outra coisa.
REPÓRTER UM
Você nega que os jogadores ficaram acordados a noite toda?
QUINTERO
Não nego nem afirmo. Digo que o clube entende que eles são
adultos e sabem o que fazem.
E você, Madruga?
REPÓRTER UM
MADRUGA
O diretor já respondeu.
REPÓRTER DOIS
Vocês não acham que escalar um time misto significa favorecer o
Atlético? A torcida não está gostando de você poupar seis
titulares, Madruga.
MADRUGA
Não estou poupando ninguém. Alguns atletas estão com diarreia,
não têm condição física de jogar.
REPÓRTER
Ninguém vai ser punido? A bebedeira no churrasco na casa de
Durval é que provocou esse surto de diarreia. É evidente.
QUINTERO
A única coisa evidente é que você tem má fé. Se seis pessoas
estão com diarreia é porque provavelmente comeram a mesma
coisa que estava estragada.
REPÓRTER UM
Mais alguém no clube está com diarreia?
200
QUINTERO
Mas você é mesmo insistente, hein? Temos mais o que fazer do
que fazer um inventário sobre a liquidez intestinal das pessoas.
Bola para frente.
REPÓRTER DOIS
O Brasil vai marcar sob pressão?
QUINTERO (ríspido)
Você é que deve estar sob pressão de seu parco conhecimento
sobre a língua portuguesa. Nenhum time marca sob pressão,
marca POR PRESSÃO. O time vai jogar como sempre, segundo
me disse o técnico Madruga. (a Madruga) Não é?
MADRUGA
É.
REPÓRTER TRÊS (a Madruga)
Você está a pouco tempo no Brasil. Já dá pra dizer que você tem
o time nas mãos?
QUINTERO
(interrompe Madruga, que ia responder)
O time é pesado demais, meu amigo. Vamos acabar com esses
clichês. Nem um técnico do mundo tem um time na mão. Os
jogadores não são crianças. O técnico que pensa essa bobagem
não dura um mês no cargo.
REPÓRTER QUATRO
Você acha possível o Atlético fazer quatro gols?
QUINTERO
Claro que é possível. Pode até fazer, mas vai levar também. É
assim que nós jogamos. Sempre no ataque.
REPÓRTER CINCO
O Atlético vai ter que correr atrás do prejuízo. O matador
Marcelinho está com fome de gols. Algum esquema especial para
acabar com ele?
QUINTERO
Só alguém muito burro corre atrás do prejuízo. Roberto
Caminhão é um ótimo treinador. É claro que vai correr atrás do
lucro.
Isso mesmo.
MADRUGA
201
QUINTERO
E esse jogo é apenas mais um jogo de futebol. Não é uma
guerra.
MADRUGA
Vocês da imprensa ficam tratando os jogadores como se eles
fossem gladiadores. Ninguém vai matar ninguém. Marcelinho
joga o fino da bola, se matar alguma coisa é a bola no peito. Mas
ele vai ser muito bem marcado e não vai fazer nenhum gol.
REPÓRTER UM
Pelo que eu entendi vocês vão jogar no erro do Atlético.
QUINTERO
Ninguém joga no erro. Nós vamos jogar no acerto da tática
definida pelo treinador.
REPÓRTER UM
(mostra o livro escrito por Tostão)
Você está repetindo as coisas que Tostão escreveu nesse livro
aqui.
QUINTERO
Estou mesmo. Que bom que alguém aqui costuma ler. Os
locutores berram como se o mundo fosse acabar e os
comentaristas não analisam time nenhum. Ficam só falando o
que acham que os técnicos deveriam fazer. (irritadíssimo, batendo na
mesa) Já estou de saco cheio de vocês da televisão!
REPÓRTER
Você está sendo grosseiro desde o começo da entrevista. Deve
ter se esquecido de tomar seus calmantes, está nervoso demais.
QUINTERO
Eu estou mesmo com uma falta de paciência danada. Será que
não existe vida inteligente na crônica esportiva além daquela
menina linda que faz o Sobrenatural de Almeida?
Silêncio na sala.
QUINTERO
O que foi? Ficaram com vergonha de saber que o melhor
comentarista esportivo do Brasil é uma mulher?
O assessor de imprensa do Brasil, Bruno aproxima-se e fala algo ao ouvido de
Quintero.
BRUNO
202
(puxando Quintero)
Continuem com o treinador Madruga. Quintero tem um
compromisso agora. Com licença.
Zum-zum-zum entre os jornalistas. Ninguém entendeu o comportamento de
Quintero.
ACOMPANHAMOS OS DOIS. NO CORREDOR:
BRUNO
Ninguém sabia que Sobrenatural de Almeida é uma mulher.
Quem sabe, ficou de bico calado.
QUINTERO
(baixinho também)
Mas o presidente do Atlético foi ao estúdio e gravou entrevista
com Isabela. Eu ouvi.
BRUNO
O juiz é tio dela. Pelo menos não falou que era Isabela Falcão.
Vamos sair daqui, você não está bem.
INTERVALO
PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS
EXT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE.
Imagens externas da Arena Brasil, em vários enquadramentos diferentes
(incluindo aéreo), mostram um estádio de casa cheia, em noite de clássico
regional.
Os efeitos sonoros aqui são essenciais, mostrando a exuberância e a força das
torcidas.
INT. VESTIÁRIO DO ATLÉTICO CARIOCA – NOITE.
A trilha sonora com a zoeira da torcida vai diminuindo e, aumentando
gradativamente, entra a música-tema do antigo canal 100, NA CADÊNCIA DO
SAMBA
(QUE
BONITO
É),
de
Waldir
Calmon
(http://www.youtube.com/watch?v=5uCPo6p97Pw), enquanto as imagens evoluem
para cenas que mostram os jogadores no vestiário, já colocando o uniforme,
caneleiras, meias etc.
Depois de 30’ de música – com imagens que nunca são vistas na TV (plano
conjunto, planos aproximados, detalhes dos acessórios dos jogadores, CLOSE-UP’s) – CAM
para enquadrando ROBERTO CAMINHÃO, que começa a preleção antes do
jogo.
203
Todos os jogadores param o que estão fazendo (já quase prontos) e prestam
muita atenção nele, como demonstram os diversos CLOSES e PLANOS
APROXIMADOS que revelam isso.
Vemos ao fundo o juiz FALCÃO, discretamente escondido atrás da porta de um
armário.
ROBERTO
Chegou a hora, rapaziada. Daqui a pouco mais de 50 milhões de
pessoas em todo o Brasil vão estar de olho no que vocês estão
fazendo em campo. Nós não podemos e não vamos decepcionar
essas pessoas. Há gente humilde que nunca teve dinheiro para
ver um jogo como esse e é nessas pessoas que devemos pensar
agora.
Os jogadores se aproximam uns dos outros e formam um círculo.
Roberto incluído.
ROBERTO
Gente que se alimenta de suas vitórias, que dorme pensando em
vocês, acorda pensando em vocês e têm filhos com os nomes de
vocês. Nós não vamos decepcionar essas pessoas humildes e
batalhadoras. Não, não podemos fazer isso. E não vamos fazer
isso.
JOGADORES (em uníssono)
Não podemos fazer isso! Não vamos fazer isso!
ROBERTO
Claro que não! Vamos ganhar do Brasil. Vamos ganhar,
rapaziada!
JOGADORES (em uníssono)
Vamos ganhar! Vamos ganhar!
ROBERTO
Sabem por que nós vamos ganhar? Porque nós PRECISAMOS
ganhar! Nós vamos dar sangue em campo se for preciso! Nós
vamos brigar pela bola como se ela fosse de ouro! Os caras do
outro lado não precisam ganhar! Nós precisamos!
JOGADORES (em uníssono)
Nós precisamos! Nós precisamos!
ROBERTO
A bola não vai chegar à nossa defesa de jeito nenhum. Não é
hora para vacilar, rapaziada! Vamos parar o jogo de qualquer
jeito! Segurem o jogador se não der para segurar a bola! Não
204
fiquem com medo de fazer falta! A torcida exige raça. Entrem
firme, mostrem àqueles babacas convencidos do Brasil que vocês
são melhores!
MARCELINHO
Minha preocupação é a bola parada, professor! Cobrança de falta
do Leo é meio gol. A gente tem que anular aquele filho da mãe!
ROBERTO
Não se preocupem com Leo. Quem vai cuidar dele é o Cicinho.
Cicinho! Porra, Cicinho! Cadê você?
Cicinho chega correndo, amarrando o calção. Um sujeito enorme, fortíssimo.
CICINHO
Eu estava no banheiro professor!
ROBERTO
Você vai arrebentar o tal de Leonardo se ele começar a fazer
aquelas fintas. Hoje não vale palhaçada daquele filho da mãe!
Arrebenta o cara, Cicinho!!!
CICINHO
Deixa comigo, professor! Hoje o safado não vai fazer gol nem
que a vaca tussa!
ROBERTO
É assim que se fala, garoto! Marcelinho!
Aqui, professor.
MARCELINHO
ROBERTO
Eu fui informado que os caras colocaram uma foto sua lá na
privada deles. Colocaram uma foto do Cicinho também! Na
privada, pessoal!
MARCELINO
Filhos da mãe! Eles vão ver comigo é no campo. Hoje eu mato
esses caras!
CICINHO
Não, Celinho. Quem mata sou eu!
ROBERTO
Sabem por que eles fizeram isso?
MARCELINHO
205
Pra humilhar a gente!
ROBERTO
Não! Foi porque eles ficam morrendo de medo quando olham
para vocês dois. Aí é bom estar bem perto da privada!
Todos riem com vontade.
ROBERTO
Eles vão jogar sem motivação, com o time reserva! O Brasil quer
humilhar a gente! Os filhos da mãe querem nos humilhar! Mas
não vão conseguir! Nós só estamos nessa merda de posição na
tabela por que nós mesmos vacilamos. Eu sou o responsável!
Não vocês! Mas quem vai ganhar esse jogo vai ser vocês!
Vamos ganhar!
melhores!
JOGADORES (em uníssono)
Vamos ganhar! Somos melhores!
Somos
ROBERTO
Nós temos o maior craque do mundo!
CLOSE-UP em Marcelinho (que faz o sinal da cruz).
JOGADORES (em uníssono)
Marcelinho! Marcelinho!
ROBERTO
Marcelinho tem idade de garoto, mas já é homem feito e é ele
que vai mostrar a vocês o caminho dos gols. A bola tem que
chegar nele. Se chegar ele faz. Precisamos de quatro gols e
vamos fazer quatro gols! E o Brasil? Quantos gols o Brasil vai
fazer?
JOGADORES (em uníssono)
Nenhum! Nenhum! Nenhum!
ROBERTO
Vamos lá, gente! É agora! Vamos vencer esse jogo! É agora!
Os jogadores gritam como guerreiros. Volta música de Waldir.
Fusão gradativa com as imagens que seguem.
EXT. ARENA BRASIL – NOITE.
Imagens internas da Arena Maracanã. Uma energia extraordinária, com
mais de 60 mil pessoas berrando enlouquecidas.
206
VEMOS o placar: ATLÉTICO 4 x 0 BRASIL FC.
EXT. CAMPO/ARENA BRASIL/RIO – NOITE.
A única imagem com foco é a de Leonardo REYNA correndo. Ao fundo,
imagens da torcida, com a zoeira da torcida na trilha sonora.
Ele evolui em CAM lenta, correndo sozinho.
De repente, um jogador, Cicinho, surge no quadro, num carrinho violentíssimo.
Leo fica no chão, gemendo de dor.
No telão da Arena Brasil, a imagem de Leo deitado no chão, com a mão no
joelho direito, chorando, visivelmente gritando de dor.
Silêncio absoluto na trilha sonora, PLANOS APROXIMADOS de REYNA: imagens
dramáticas.
INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS/BRASÍLIA – DIA.
Depoimento de Juca KFOURI.
Episódio V: Fábrica de pé-de-obra
PARTE I
PRÓLOGO
5 MINUTOS
INT. TELÃO DA ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE.
Imagem de REYNA caído no chão, com a mão no joelho direito.
CLOSE-UP no joelho dele: fraturas múltiplas revelam a gravidade da contusão.
Ele está gemendo, com a mão esquerda segurando a perna machucada e a
direita batendo no chão.
Uma imagem impressionante, que paralisa todas as pessoas que estão na
arena. É de arrepiar.
CLOSE UP dos rostos de vários torcedores, intercalados pela imagem
desoladora do banco de reservas do BRASIL FC.
PLANO APROXIMADO do jogador agressor, CICINHO, com as mãos no rosto,
horrorizado ao ver a perna de REYNA; ele não resiste à visão e começa a
vomitar.
As pessoas mal podem acreditar no que está acontecendo. Na trilha sonora, os
berros e gemidos de REYNA, fundindo-se com o silêncio estarrecedor que
invadiu o estádio.
207
As imagens colocam foco no que está em primeiro plano, deixando fora de foco
a multidão que observa, chocada, a cena.
INT. ARENA BRASIL – NOITE.
O carrinho de socorro entra no campo, seguido por VIOLÃO e pelo DR. FABIO,
médico do BRASIL FC (carregando a mala preta típica da profissão). Quintero e
Madruga correm junto deles.
Na trilha, murmúrios e exclamações de espanto dos torcedores. Acompanhados
pelo juiz do jogo, REINE SCHUMANN, o pequeno grupo cerca REYNA, que não
para de gritar de dor.
A preocupação é visível no rosto do médico, que sinaliza para Quintero.
Quintero puxa seu celular e faz uma ligação. Com extremo cuidado, VIOLÃO e
o DR. FABIO colocam REYNA numa maca e o depositam no carrinho. O médico
abre a mala e tira uma seringa.
Cercado pelos integrantes da comissão técnica do BRASIL FC, JOGADORES,
jornalistas e curiosos, REYNA é carregado numa maca para o vestiário. Ele
continua a gritar de dor, apertando a mão de Clayton.
REYNA
Pelo amor de Deus, ZÉ ROBERTO, me ajude! Está doendo muito!
Por favor, doutor FABIO. É fratura exposta, eu vi que é fratura
exposta! Preciso de morfina, rápido! É uma dor de enlouquecer!
Morfina, doutor! Morfina, pelo amor de Deus!
DR. FABIO
(preparando a seringa)
Calma, REYNA. Já vou aplicar.
QUINTERO
Calma, garoto. Vai dar tudo certo. Você vai ficar bom logo.
REYNA
O filho da mãe me arrebentou, doutor. Ele foi expulso, Ed? Foi?
QUINTERO
Claro que foi Leo. Não se preocupe com isso agora.
O médico aplica nele uma injeção.
INT. ENFERMARIA ARENA BRASIL – NOITE.
REYNA está deitado numa cama, cercado por muitas pessoas, entre colegas,
jornalistas e integrantes da comissão técnica.
208
CAM assume o ponto de vista de REYNA, estendido na cama, grogue. CAM
LENTA. Sensação de desmaio iminente.
Não se entende o que dizem as vozes que ecoam ao fundo. Vamos ouvir então,
nítidos, os pensamentos de REYNA naquele momento de torpor.
Ele volta a chorar.
REYNA
Meu Deus, o que será que está acontecendo?! Eu não estou mais
sentindo dor, Ed. Parou de doer, graças a Deus. O que houve
com a minha perna, Fabio? Parece fratura exposta. É fratura
exposta? Estou com medo de olhar.
REYNA tenta colocar sua mão no joelho, mas seu braço está preso.
REYNA
Eu quero sair daqui! Por favor, me soltem! Eu quero meu joelho,
o que é que houve com meu joelho? O que é que vai acontecer
comigo? Eu vou morrer, Ed? Eu estou fora do futebol? Acabou?
O médico dá mais uma injeção em REYNA, que desmaia.
MADRUGA
O juiz quer continuar o jogo! Meu Deus! Tem cabimento uma
coisa dessas! Segura essa, Quintero. Vou lá falar com o sujeito.
QUINTERO
Ele não sabe que a coisa é feia, Madruga. Calma, vai lá. Eu cuido
das coisas aqui. E aí, DR. FABIO? Vamos direto para hospital?
FABIO (a Quintero)
Claro! Ele está certo. É fratura múltipla. (Dá a ele o celular, depois
tenta imobilizar a perna dele) Ligue para o Doutor SANTAROSA.
Peça a ele para buscar o doutor ROBBE-GRILLET no hotel.
Mande preparar a sala de cirurgia. Imediatamente!
QUINTERO
(procurando o nome do médico no celular)
Não atende. Merda! Não atende.
FABIO
(limpando e imobilizando a perna de REYNA)
Continue tentando. É assim mesmo, Ele vai atender.
QUINTERO
Quem é esse francês? Para quê esse francês? Para qual hospital,
doutor Fabio?
209
FABIO
É o maior ortopedista do mundo. Graças a Deus ele está aqui no
Rio, num Congresso. Hospital Samaritano. É aqui perto. É a
melhor opção.
QUINTERO (ao celular)
Doutor SANTAROSA? É QUINTERO, diretor do Brasil, da parte do
DR. FABIO. É mesmo? O senhor viu? Obrigado, doutor. (ao DR.
Fabio) Ele está assistindo ao jogo. Já fez contato com seu amigo
francês.
INT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE.
REYNA está sendo colocado numa ambulância. QUINTERO e DR. FABIO
ENTRAM também. Madruga está próximo.
QUINTERO (a Madruga)
Não avisei FEDERICA. Ligue para ela, Madruga. Faça esse favor.
Avise a ela que estamos indo para o Hospital Samaritano, que é
aqui perto. Mande o pessoal da assessoria de imprensa para lá.
MADRUGA
É grave?
QUINTERO
Grave demais Madruga. Mas não diga nada a ninguém ainda.
(fecha a porta da ambulância) Vamos embora!
CORTA PARA
VISTA EXTERNA DA ARENA BRASIL. IMAGENS DA AMBULÂNCIA AVANÇANDO
NUMA AVENIDA MOVIMENTADA. SIRENE ALTA.
INT. SALA/APARTAMENTO DE ISABELA/LEBLON – NOITE.
FEDERICA e Isabela movimentam-se com rapidez.
ISABELA
(pegando a bolsa)
Não entendi. Exatamente o que foi que aconteceu?
FEDERICA
(desliga a TV e joga o controle remoto no sofá)
Também não entendi direito. Madruga estava muito nervoso.
Parece que a coisa é séria.
ISABELA
Séria como? O sujeito da TV não soube explicar nada.
210
FEDERICA
(abre a porta; as duas saem)
Parece que Leonardo quebrou a perna. Mas não deve ser tão
grave assim.
EXT. HOSPITAL SAMARITANO/RIO – NOITE.
A ambulância que leva REYNA chega à entrada privativa do hospital. Todos
descem; REYNA ainda está sedado.
Do lado de fora, o médico SANTAROSA recebe o grupo.
DR SANTAROSA
O centro cirúrgico já está preparado. DR DAVI vai ser o
anestesista.
DR FABIO
E ROBBE-GRILLET?
DR SANTAROSA
Daqui a pouco vai estar aqui. Mandei um helicóptero buscá-lo.
QUINTERO
Obrigado, DR SANTAROSA. Depois reembolsamos o hospital.
DR SANTAROSA
Não se preocupe com isso agora. Sua equipe de imprensa já foi
acionada? Daqui a pouco isso aqui vai estar coalhado de
jornalistas.
QUINTERO
Já cuidei disso, doutor. A operação vai demorar muito?
DR FABIO
Provavelmente, Quintero. Mas só vamos saber depois dos
exames.
QUINTERO
Meu Deus. Ele está correndo risco de não voltar a jogar?
DR FABIO
Vamos centralizar em você as informações. Vá para a sala de
espera do centro cirúrgico e espere notícias lá.
QUINTERO
Boa sorte, doutor. Boa sorte.
TEASER E CRÉDITOS DA MINISSÉRIE:
211
CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO,
impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas
respectivas torcidas nas arquibancadas.
INTERVALO.
PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS.
EXT. RUA/FAVELA DO ALEMÃO/RIO DE JANEIRO – DIA.
Um grupo numeroso de meninos na faixa de 10 anos joga uma pelada numa
rua estreita da favela do Alemão, no Rio. Entre eles, destacando-se pela altura
e pela facilidade no controle da bola, Pelé (15 anos), filho do massagista Violão.
Ele está usando uniforme novo, preparado para um jogo de verdade.
EXT. CASA DE VIOLÃO/FAVELA DO ALEMÃO/RIO – DIA.
Violão está saindo de casa. Tranca a porta e olha na direção de Pelé.
VIOLÃO
Está na hora, Pelé. Vamos embora senão a gente chega
atrasado.
PELÉ
Claro, pai. Já estou pronto. Vou nessa, rapaziada!
Um garoto dá uma entrada mais dura, num carrinho. Pelé vai até o garoto e
puxa-o pela orelha.
PELÉ
Quantas vezes eu vou ter que falar que é para jogar na bola. Na
bola! Entendeu malandro? A gente é amigo. Não está aqui para
arrebentar ninguém.
MENINO
Ai, ai, ai, tá doendo! Está certo! Desculpe! Foi mal! Já entendi! Já
entendi!
PELÉ
Peça desculpas ao Xibiu.
MENINO
Foi mal, Xibiu. Desculpa.
XIBIU
(aceita a mão estendida)
Não foi nada. Não machucou.
PELÉ
Mas podia ter machucado.
212
VIOLÃO
Não vou esperar a manhã inteira, Pelé.
PELÉ
Foi mal, pai. Vou nessa, rapaziada!
Pelé alcança Violão.
Uma senhora, NELMA, aponta a cabeça na janela da casa próxima.
É agora, Violão?
NELMA
VIOLÃO
Daqui a pouco. Reza para dar tudo certo, Nelma.
NELMA
Fica tranquilo, Violão. (a Pelé) Tu vai arrebentar a boca balão,
neguinho! Sonhei que tu foi aprovado nos GALÁTICOS e foi para
a seleção!
PELÉ
Deus te ouça, Dona Nelma.
NELMA
Dê notícia logo que chegar, Violão. Vou pegar meu terço e vou
rezar a manhã inteira.
Violão, já afastado, faz sinal com a mão para Nelma. Os dois seguem em
frente, Violão com a mão no ombro direito de Pelé.
EXT. AVENIDA DE COPACABANA/ZONA SUL/RIO DE JANEIRO – DIA.
O coletivo segue em alta velocidade por uma via de Copacabana.
INT. COLETIVO/RECREIO DOS BANDEIRANTES/RIO – DIA.
Violão e Pelé estão passando pela roleta. Dão sinal para o ônibus parar. O
coletivo freia bruscamente, tentando inutilmente parar num ponto de ônibus.
Como os outros passageiros, Pelé e Violão são impulsionados para frente, mas
não reclamam.
Descem, como se aquilo fosse uma rotina.
EXT. HOSPITAL SAMARITANO/RIO – DIA.
213
A imprensa já chegou ao hospital: VEMOS vários carros de externas. Um
movimento grande de gente chegando.
Fãs são isolados por policiais, que os mantém à distância. Os torcedores que
compareceram estão apreensivos.
INT. SALA DE IMPRENSA/HOSPITAL SAMARITANO – DIA.
Na improvisada sala de imprensa, que está lotada, o assessor de imprensa do
BRASIL FC (Bruno de Faria), o diretor técnico Quintero e o médico DR FABIO
estão sentados à mesa, com microfone à frente.
BRUNO
OK, pessoal. Vamos começar. QUINTERO vai expor a vocês a
situação atual. Eu peço a vocês que respeitem a ordem do
sorteio e só comecem as perguntar depois da exposição de
QUINTERO.
Faz sinal a QUINTERO.
QUINTERO (suspira)
Não sou médico e não sei esclarecer qualquer aspecto mais
técnico. Isso vai ser feito pelo Doutor Fábio, médico do clube,
que vai falar em seguida. O que eu tenho a dizer aos senhores é
que o clube não está medindo esforços nem recursos para
proporcionar ao atleta o melhor tratamento médico possível.
REYNA me pediu para dizer aos senhores que lamenta o que
aconteceu com ele, mas que não acredita que Cicinho tenha
entrado com intenção de machucá-lo. (emocionado, fala com
dificuldade) REYNA acredita que o que aconteceu com ele poderia
ter acontecido com qualquer outro jogador de futebol e que
Cicinho não deve ser visto como atleta mal intencionado. Doutor
Fábio.
DR FABIO
A contusão de REYNA foi a mais séria que já vi em 20 anos de
futebol. As duas pernas de REYNA foram atingidas num impacto
frontal, com extrema violência. De ontem para hoje, Leonardo
REYNA fez duas cirurgias. Ele teve fratura exposta na tíbia e no
perônio da perna direita, com rompimento de alguns tendões
dessa mesma perna, a perna direita. Leonardo REYNA teve
torções nos dois joelhos e no tornozelo esquerdo, com lesão na
cabeça do perônio esquerdo.
Murmúrios na sala.
DR FABIO
214
São lesões extremamente delicadas, que poderão afetar a
musculação das duas pernas do atleta. Depois de 48h a equipe
liderada pelo DR. François ROBBE-GRILLET vai definir quais
cirurgias serão necessárias a seguir.
Confusão na sala. Os jornalistas começam a fazer perguntas ao mesmo tempo.
BRUNO
Calma, gente. Vamos com calma e todo mundo vai poder falar.
DR FABIO: a maior curiosidade é sobre a volta de REYNA ao
futebol e quanto tempo ele deverá ficar inativa.
Os jornalistas concordam, fazendo sinais de agradecimento a BRUNO.
JORNALISTA A
É isso aí, Bruno. Essas são as principais respostas que
precisamos ouvir.
JORNALISTA B
Obrigado, Bruno. Valeu.
DR FABIO
Ainda não é possível falar em prazo de recuperação. As primeiras
48 horas vão ser decisivas. O organismo reage naturalmente e é
dessa reação do corpo do atleta que vai depender o que deverá
ser feito pela equipe médica. A ruptura dos ligamentos
certamente vai exigir a implantação de fios metálicos, mas isso
vai ser feito somente depois desse prazo que eu mencionei.
JORNALISTA A
Existe possibilidade de Leonardo não voltar a jogar futebol?
DR FABIO
A medicina não é uma ciência exata. Há muitas variáveis que
devem ser consideradas ao mesmo tempo e é difícil prever como
será a reação do organismo de REYNA. O DR. François ROBBEGRILLET é a maior autoridade mundial em ortopedia aplicada a
atletas profissionais e é ele, apenas ele, que poderá esclarecer
isso. Os boletins médicos serão assinados por ele a partir de
agora.
JORNALISTA B
O senhor não respondeu. Existe a possibilidade de que REYNA
não volte a jogar futebol como profissional? Sim ou não.
DR FABIO
(olhando para Quintero, que balança a cabeça em sinal afirmativo)
215
Não posso opinar. Qualquer prognóstico deverá ser feito pelo
chefe da equipe médica.
JORNALISTA A
O Brasil precisa saber o que vai acontecer com REYNA, o senhor
há de compreender. Há milhões de pessoas esperando uma
posição.
DR FABIO
Prometo a vocês que vou conversar com o DR ROBBE-GRILLET e
ainda hoje volto a falar com vocês.
JORNALISTA A
Ajuda aí, doutor. Nós precisamos de informações imediatas. Não
dá para o senhor ir buscar o francês?
EXT. ESTÁDIO DE FUTEBOL/RIO DE JANEIRO – DIA.
Violão e Pelé descem do coletivo diante da entrada principal de um estádio de
futebol: é o GALÁTICOS (placa), de segunda divisão. Olham para um cartaz,
onde IDENTIFICAMOS a palavra PENEIRA HOJE ÀS 10H. Os dois entram.
INT. ESTÁDIO DO GALÁTICO/RIO – DIA.
Dentro do estádio as arquibancadas são ocupadas por familiares dos garotos
que participam da peneira.
VEMOS Bonilha, que foi técnico das divisões de base do BRASIL FC (aparece no
primeiro episódio) no comando. Uma fila de garotos uniformizados está sentada
nos primeiros degraus da arquibancada. São garotos fortes, altos em
comparação a Pelé.
É para lá que se dirige Pelé, orientado por Violão, que espera junto aos outros
pais e familiares, degraus acima.
Violão repara que os meninos da fila estão com um cartão numerado nas mãos
e sai.
Na trilha sonora entra a música-tema do antigo canal 100, NA CADÊNCIA DO
SAMBA
(QUE
BONITO
É),
de
Waldir
Calmon
(http://www.youtube.com/watch?v=5uCPo6p97Pw).
VEMOS que Bonilha faz substituições, chamando a turma que está na
arquibancada, pelos números.
VIOLÃO desce da arquibancada e aproxima-se do alambrado, chegando bem
perto de BONILHA.
216
VIOLÃO
Bonilha! E aí, amigão! Tudo bem?
BONILHA
Ah, é você?
(sem dar atenção a ele)
VIOLÃO
Onde é que eu pego um cartão com número para o meu
menino?
BONILHA
Não precisa. Você é de casa. Deixa comigo. Ele vai fazer o teste.
Qual é que é ele?
VIOLÃO
(gritando para Pelé)
Levanta a mão, Pelé!
Pelé, animado, levanta-se e acena para o pai.
VIOLÃO
É aquele lá. Eu comprei o uniforme do GALÁTICOS.
BONILHA
(com leve toque de desprezo)
Aquele magrinho? Miudinho?
VIOLÃO
O menino bate um bolão. O doutor REYNA disse que ele vai
longe.
BONILHA
Será? Ele é meio pequeno, não é mesmo? Quantos anos ele
tem?
VIOLÃO
É pequeno não. Normal. 15 anos.
BONILHA
É meio mirradinho sim. Mas vou dar uma chance para ele. Pode
esperar. Ainda tem muito treino pela frente.
EXT. HOSPITAL SAMARITANO/RIO – DIA.
O repórter Armando Sales, da Rede América, está gravando uma matéria para
um jornal de TV, do lado de fora do hospital.
217
Um cameraman
iluminação.
grava a imagem dele falando, um assistente posiciona a
REPÓRTER
A cirurgia de Leonardo REYNA terminou agora a pouco aqui
no Hospital Samaritano, zona norte do Rio de Janeiro. Na
verdade foram duas as cirurgias, feitas em sequência. O chefe
da equipe médica que operou o atleta brasileiro ainda não fez
qualquer prognóstico, mas apurei que são remotas as
possibilidades de volta do jogador aos gramados, como atleta
profissional. A contusão de REYNA foi muito séria e ele vai
sofrer novas cirurgias. Eu sou Armando Sales. Direto do
Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro.
INT. SALA DE ESPERA/HOSPITAL SAMARITANO – DIA.
FEDERICA e MADRUGA estão aguardando notícias, com aparência de quem
passou a noite em claro. Quintero chega.
FEDERICA
Preciso telefonar para a mãe de REYNA. Ela já ligou várias vezes.
O que eu digo a ela?
QUINTERO
Diga que ele está passando bem. Foi afastado o risco de
amputação da perna direita, que era o que o médico francês
mais temia.
MADRUGA
Amputação? A coisa é muito mais séria do que eu imaginei.
FEDERICA
Muito cuidado com o que for falar, Madruga. É preciso ter
cautela e prudência. Ele vai voltar a jogar futebol, Zé Roberto?
QUINTERO
(senta-se e passa a mão na cabeça)
Ninguém sabe dizer. Fale com a mãe dele que a recuperação
está sendo boa e que ele vai voltar a andar normalmente. Isso é
suficiente por enquanto.
FEDERICA
(beija Quintero; Madruga olha, curioso)
Obrigada, querido. Vou falar com ela.
EXT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – DIA.
218
REYNA, com as duas pernas imobilizadas, envoltas em gaze e bandagem, está
dormindo.
A perna esquerda está levantada, dobrada, formando um ângulo agudo. Isabela
está no sofá, cochilando.
PLANO APROXIMADO de REYNA. CAM destaca a bomba injetora de morfina, em
CLOSE UP.
A enfermeira entra e acorda Isabela, delicadamente.
ENFERMEIRA
Desculpe acordá-la, senhora.
Sim. Pois não.
ISABELA
ENFERMEIRA
Seu marido poderá acordar a qualquer momento. Por favor,
me avise se o efeito da anestesia passar. Ele vai sentir dor.
ISABELA
Entendido, enfermeira. Muito obrigado.
Toca o telefone. A enfermeira dirige-se para a porta.
ENFERMEIRA
Se for necessário pode me chamar pela campainha. Virei
imediatamente, está bem? Tão logo seu marido esteja bem
disposto, a senhora me avise, por gentileza, pois vou solicitar
a presença do doutor ROBBE-GRILLET. Com licença, bom dia.
Isabela olha para o telefone, que continua a tocar. Vai até o aparelho, olha
para REYNA e reduz o ruído da campainha. Agora bem mais baixo, o telefone
continua a tocar.
INT. CORREDOR/HOSPITAL – DIA.
De banho tomado e roupa trocada, Quintero está parado no corredor, quase
em frente à porta do apartamento em que está REYNA, conversando com o
doutor FABIO.
QUINTERO
Seja realista, DR FABIO. Preciso fazer um relato confiável para
FEDERICA. Sem falar na imprensa. Eles estão esperando
notícias frescas. O médico francês acredita ou não na
recuperação de REYNA?
219
DR FABIO
ROBBE-GRILLET é muito franco, direto. Ainda não tem opinião
formada sobre isso. É preciso aguardar. Não tem outro jeito.
QUINTERO
Tudo bem. Está certo. Vamos esperar. Mas e sua opinião? Você
também é ortopedista. É autoridade no assunto. Quero que você
me diga o que pensa, já é alguma coisa.
DR FABIO
Eu acho muito pouco provável que Leo volte a jogar futebol
como profissional.
QUINTERO
Mas existe a possibilidade? Leo é o sujeito mais disciplinado que
eu conheço. Se existe alguém que pode dar a volta por cima é
ele.
DR FABIO
Eu não posso dizer que não acredito nessa possibilidade. Sempre
há possibilidade. Mas aqui é preciso considerar que a perna
direita perdeu muita massa óssea na primeira cirurgia. Ele vai
ficar com uma perna mais curta do que a outra, entende?
QUINTERO
Como assim? Muito mais curta?
DR FABIO
Oito. Nove centímetros.
QUINTERO
Mas isso não se resolve com fisioterapia intensiva?
DR FABIO
O fato de Leo não ter muita massa muscular pode ser positivo.
Nunca vi recuperação em casos similares, mas o DR ROBBEGRILLET já conseguiu resultados em situações ainda mais
graves. Ele costuma dizer que a recuperação depende da força
de vontade do paciente.
QUINTERO
De que forma vai depender dele? Da dedicação e do esforço
dele, você quer dizer?
DR FABIO
Não sei dizer, Quintero. DR. ROBBE-GRILLET não adiantou muita
coisa sobre o tratamento. Perguntou se Leo era um sujeito firme,
220
com muita força de vontade para enfrentar muita dificuldade.
Mais do que uma pessoa normal aguentaria.
QUINTERO
Vá direto ao assunto, pelo amor de Deus, doutor FABIO. O que
isso quer dizer?
DR FABIO
Não sei. Não tenho ideia.
QUINTERO
Ele não está usando Leo como cobaia para um tratamento
experimental. Está?
DR FABIO
Claro que não. O professor ROBBE-GRILLET é sistemático
demais, mas não é maluco. Isso poderia cassar o diploma dele.
QUINTERO
Leo sabe disso? Vocês informaram isso a ele?
DR FABIO
Claro. Ele foi operado com anestesia local. Ele sabe que vai
enfrentar a maior pedreira da vida dele. Durante pelo menos um
ano.
QUINTERO
Você apostaria sua credibilidade na volta dele? Se ele suportar
as condições do tratamento desse médico francês?
DR FABIO
Não faço esse tipo de aposta. Mas eu já disse que não
acredito. Mas tem uma pessoa que acredita e é isso que
importa.
Quem?
QUINTERO
DR FABIO
O DR. ROBBE-GRILLET. Há poucas chances, mas existe sim a
possibilidade. Segundo ele, quero ressaltar.
QUINTERO
Seja mais específico. Em termos percentuais, quanto você
diria?
DR FABIO
A medicina não se expressa por meio de probabilidades.
221
QUINTERO
Quantos por cento?
DOUTOR FABIO
Vinte por cento. Talvez menos.
QUINTERO
Então o mais provável é que ele não se recupere mesmo. Mas
não é impossível que ele volte a jogar bola. É isso?
DOUTOR FABIO
Nós não podemos tirar a motivação dele. É preciso ser
otimista. O doutor ROBBE-GRILLET acredita na recuperação
se ele tiver força de vontade e determinação.
INTERVALO.
PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS.
INT. CAMPO DE FUTEBOL/GALÁTICOS/RIO – DIA.
Continua a peneira. Volta a música de Waldir Calmon. Outros garotos vão
sendo chamados. Fusões repetidas mostram a passagem do tempo. Só Pelé
ainda não foi chamado. VEMOS que Violão está ficando preocupado. Ele
aproxima-se do alambrado de novo.
VIOLÃO
Você não esqueceu meu garoto, Bonilha?
BONILHA
Ah, é. Chame ele agora.
VIOLÃO
Pelé! É você agora, meu filho! O treinador está chamando!
Pelé desce rápido e entra no campo.
Bonilha faz sinal para um garoto que está jogando e ele sai para a entrada de
Pelé. CAM acompanha Pelé.
Repetidas vezes Pelé se apresenta para receber a bola, mas ninguém dá um
passe a ele.
Ele rouba uma bola de um jogador adversário e vai em direção ao gol. Bonilha
apita e encerra o jogo, antes mesmo de Pelé chutar. A frustração está visível
no rosto dele, EM PLANO APROXIMADO.
Violão também fica frustrado.
VIOLÃO
222
Dá uma força, Bonilha. Foi só o menino pegar na bola e você
acabou o jogo. Mais dez minutos só.
BONILHA
Fica para outra peneira. Daqui a um mês tem mais. Os meninos
estão cansados.
O treinador vira as costas para Violão e se afasta.
INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – DIA.
Quintero, Fabio e Isabela entram no apartamento. REYNA está com as pernas
imobilizadas, abatidíssimo.
A bomba de acesso à morfina está próxima à mão dele (vista em CLOSE-UP).
REYNA
Não sabia que vocês iriam trazer meu anjo da guarda. Minha
recuperação agora vai ser bem melhor, Ed.
ISABELA
(beijando-o, com carinho)
Você está bem, querido?
REYNA
Pronto para outra, Ed.
ISABELA
Não diz isso nem brincando. Que susto eu levei, você nem
imagina.
REYNA
Imagino sim. Mas te garanto que o meu foi bem maior, Ed.
Não gosto nem de lembrar como ficou minha perna direita.
Parecia que um trem passou em cima.
QUINTERO
O doutor ROBBE-GRILLET esteve aqui há pouco. O que ele
disse sobre a recuperação?
REYNA
Não chegou a falar muita coisa. Vai voltar daqui a pouco. A
mulher dele chamou ao telefone.
QUINTERO
Arrumamos alguém para amassar o pão com você.
DR FABIO
223
Com pão ou sem pão é preciso ser realista. É bom se
acostumar com a ideia de que você terá um ano duríssimo
pela frente. Um ano com otimismo. Pode ser até mais.
REYNA
Tenho mesmo chance de voltar a jogar, Ed?
DR FABIO
O que ROBBE-GRILLET disse a você?
REYNA
Você não concorda com ele, Ed?
QUINTERO
Claro que concorda.
REYNA
Você agora tem porta-voz, Ed?
DR FABIO
Clinicamente as chances existem. Mas não se anime. É
possível, mas é bem pouco provável que você consiga. É
preciso ser realista. Você viu as radiografias. Suas pernas
estão literalmente devastadas.
REYNA
Espero que o francês seja mais otimista do que você, Ed.
ISABELA
Não convém se animar muito, querido. Infelizmente. É preciso
ser realista.
DR FABIO
Acompanhei a operação. As lesões são muito mais graves do
que você imagina, REYNA. Eu não contaria com um retorno ao
futebol. Sendo otimista, creio que se você voltar a andar
normalmente já será fantástico.
QUINTERO
É isso que você chama de otimismo, Fabio? Seu conceito de
motivação é bem diferente do meu.
E você, Ed?
REYNA (a Isabela)
ISABELA
O quê?
224
REYNA
Você acredita na minha recuperação?
Isabela abaixa os olhos e não fala nada.
REYNA (a Isabela)
Nem você acredita nas minhas chances, Ed.
ISABELA
Não é questão de acreditar, Leonardo.
QUINTERO (a REYNA)
Se é que faz alguma diferença, eu acredito.
DR FABIO
Você não tem ideia dos sacrifícios que vai ter que fazer se
quiser voltar a jogar futebol.
REYNA
Eu só quero saber de uma coisa, Ed. Existe essa possibilidade?
ISABELA
É preciso ser realista. É muito difícil.
DR FABIO
Quase impossível. Conte como se fosse impossível.
REYNA (a Quintero)
Tire esses abutres do meu quarto. Saiam daqui. Saiam!
Constrangidos, Isabela, QUINTERO e o doutor Fabio saem do quarto.
INT. CORREDOR/HOSPITAL – DIA.
Logo depois de saírem do quarto, os três conversam.
QUINTERO
Vocês dois enlouqueceram? (ao DR FABIO) Não se trata
ninguém desse jeito. Não acredito no que eu acabei de ouvir.
O que você achou?
DR FABIO (a Isabela)
ISABELA
(com um sorriso cúmplice)
Excelente. Você brilhou.
QUINTERO
225
Alguém pode desenhar para eu entender o que está
acontecendo aqui?
DR FABIO
Nosso craque precisa ser provocado, Quintero. Motivação para
ele é dizer que não pode. Eu conheço REYNA há anos. Falei
com a mãe dele. Fomos bem orientados.
Isso é verdade?
QUINTERO (a Isabela)
ISABELA (rindo)
É assim que ele funciona. A mãe dele garantiu. Falei com o DR
ROBBE-GRILLET também.
QUINTERO
Não achei muita graça em fazer parte desse teatro. Mas vou
dar um voto de confiança pra esse comportamento maluco de
vocês.
DR FABIO
Você trouxe suas coisas?
ISABELA
Trouxe. Estão na recepção.
DR FABIO
Pode trazer aqui para o apartamento dele.
QUINTERO
Você vai ficar aqui? No hospital?
ISABELA
Vou. Algum problema?
QUINTERO
Não. Nenhum. Mas e seu trabalho?
ISABELA
Ser filha do dono tem muitas vantagens. Tirei licença
remunerada por tempo indeterminado.
DR FABIO
Vocês me dão licença. Vou tomar um banho.
QUINTERO
(abraça o médico)
Claro. Fique à vontade. Obrigado, Fabio.
226
DR FABIO sai.
QUINTERO
Essa vida é mesmo maluca. Você e Leo parecem que passaram a
vida juntos. Impressionante como as coisas aconteceram rápido.
ISABELA
A mãe dele me pediu para ficar aqui, Zé Roberto. Ela disse que
eu vou ser a maior motivação para Leo. Acredita?
QUINTERO
Deus ouça vocês duas.
ISABELA
Você já falou com FEDERICA? Ela já está sem unhas. Se não
acalmar sua namorada, ela vai comer a ponta dos dedos.
QUINTERO
Vou sair de casa. Resolvemos morar juntos.
ISABELA
É o primeiro caso de cura gay que eu já ouvi falar, pastor
QUINTERO.
QUINTERO
Não entendo como isso foi acontecer.
ISABELA
FEDERICA resolver gostar de homem?
QUINTERO (rindo)
Não. Eu ter coragem de sair de casa.
ISABELA
Vai encarar a fera nipônica? Fez um intensivo de Kung Fu?
QUINTERO
Não. Vou aproveitar quando ela for fazer compras no supermercado e
juntar minhas coisas. Um milagre só já é suficiente. Não convém abusar
da boa vontade do Papa Chico.
Os dois riem com vontade.
EXT. ESTÁDIO DO GALÁTICOS/RIO – DIA.
Sol forte de meio dia.
227
Devagar, custando para levar as pernas para frente, Violão e Pelé caminham
lado a lado. Violão sempre com a mão direita sobre o ombro direito de Pelé.
VIOLÃO
E pensar que eu já ajudei aquele filho da mãe. Esse Bonilha
nunca prestou. Bem que Dr. Leonardo falou.
PELÉ
Vamos esquecer aquele Bonilha, pai. Um dia vai dar certo.
VIOLÃO
Esperar duas horas naquele sol desgraçado para você nem tocar
na bola.
PELÉ
Eu ia fazer aquele gol, pai. Leo me ensinou a bater falta.
Daquela distância eu não erro de jeito nenhum.
VIOLÃO
Juro por Deus que eu vou dar um jeito nisso, filho. Vou esperar
uns dias e depois vou ao hospital pedir ajuda ao Doutor
Leonardo.
PELÉ
Esquenta não, pai. Se dona Nelma sonhou que eu vou para a
seleção é porque eu vou passar na peneira. Ela nunca errou.
VIOLÃO
É. Ela nunca errou. Vamos entrar pelos fundos. Estou com
vergonha da vizinhança. Eu falhei com você, meu filho.
PELÉ
(sorrindo, confiante)
Não fala isso, “seu” Violão. Você é o melhor pai que um garoto
pode ter. Leo já me falou isso mil vezes. Vai dar tudo certo da
próxima vez, você vai ver. Deus é grande.
VIOLÃO
Claro que vai, meu filho. Você vai para a seleção. Aí eu quero ver
a cara daquele filho da mãe.
Violão e Pelé ouvem um assovio.
BARBOSA
Ei! Espere aí, você que dançou na peneira.
BARBOSA, 38 anos, magro, cara de malandro carioca, aproxima-se.
228
BARBOSA
Você é o Pelé lá do Alemão, não é?
VIOLÃO
(depois de fazer sinal ao filho)
É ele sim. Por quê? Quem quer saber?
BARBOSA
SALVIANO Barbosa, seu criado. Eu sou olheiro. Trabalho para o
dono do GALÁTICOS.
VIOLÃO
E daí? Vocês nem deixaram meu menino pegar na bola.
BARBOSA
Seu menino estava seu cartão. Sem cartão não pega mesmo.
Mas na próxima peneira ele pode ter cartão.
VIOLÃO (desconfiado)
O senhor consegue um cartão para ele?
BARBOSA
Eu faço mais do que isso. Se o senhor quiser. Posso apresentar o
senhor ao meu chefe. Aí ele ganha um contrato. O menino já fez
15 anos?
VIOLÃO
Já.
BARBOSA
E porque só agora o senhor está trazendo ele aqui? Tinha que
trazer bem antes.
VIOLÃO
Eu sou massagista do BRASIL. Leonardo REYNA é que orienta
meu menino. Foi ele que disse que era para deixar ele nas
peladas até hoje.
BARBOSA (dá meia volta)
Então o senhor pede a ele para arrumar um contrato para o
menino.
VIOLÃO
Não, seu Barbosa! Espere aí, vamos conversar.
Barbosa volta-se para eles. É teatro puro.
BARBOSA
229
O que o senhor quer conversar?
VIOLÃO
Eu só contei ao senhor para explicar porque meu menino só veio
agora para a peneira.
BARBOSA
No Brasil não tem divisão de base?
VIOLÃO
Acabaram com a divisão de base. Coisa da diretoria. Não sei por
que fizeram uma coisa dessas. Todo clube tem que ter divisão de
base, o senhor não acha?
BARBOSA
Posso contar um segredo para o senhor? Conto com sua
discrição?
VIOLÃO
Pode contar qualquer coisa. Daqui não vai sair nada.
PELÉ
Nem daqui.
Violão faz gesto de repreensão: ele que Pelé de boca fechada.
BARBOSA
Eles acabaram com a divisão de base porque todo mundo veio
aqui para o GALÁTICO. Meu chefe trouxe a menina toda que
sabia jogar bola. Só perna de pau ficou lá.
VIOLÃO
E quem é o seu chefe?
BARBOSA
É o doutor Madureira.
Ele é médico?
VOLÃO
BARBOSA
Que médico da onde. É doutor advogado. Quer conhecer ele?
VIOLÃO
Você apresenta a gente para ele?
BARBOSA
Depende. De graça só relógio.
230
Quanto?
Dois mil.
VIOLÃO
BARBOSA
VIOLÃO
Você sabe que o menino é bom de bola. Vai fazer média com seu
chefe com a minha grana. Mil.
BARBOSA
Fechado. É ali naquela casa. Vamos lá agora mesmo. Se der
sorte você fala com ele agora mesmo.
Barbosa aponta um sobrado perto, do outro lado da rua. Os três vão juntos em
direção à casa e entram.
INT. CASA DE CARLÃO/RECREIO/RIO – DIA.
Sem bater, conduzidos por Barbosa, Violão e Pelé são recebidos por uma
recepcionista que faz o estilo boazuda.
RECEPCIONISTA
E aí, Barbosinha? O que é que tu conta de novo?
BARBOSA
Vim trazer esse menino para assinar contrato. Doutor Madureira
está aí?
RECEPCIONISTA
Chegou agora mesmo. Você deu sorte.
Violão e Pelé trocam olhares, satisfeitos.
BARBOSA
Vamos lá resolver isso logo.
RECEPCIONISTA
Vou levar água gelada. Ou vocês preferem um refrigerante?
Água está bom.
VIOLÃO
Barbosa bate na porta: três batidas. A porta abre automaticamente.
INT. SALA DE MADUREIRA/RECREIO/RIO – DIA.
231
Mobiliada com luxo excessivo, a sala de Madureira tem dois potentes aparelhos
de ar condicionado. Está bem mais fresco o ambiente.
MADUREIRA
Vamos entrar. Quem é esse aí, Barbosa?
BARBOSA
É aquele menino do complexo do Alemão. Pelé. Falei dele ontem
para você. Lucilene já deixou o contrato aí na sua mesa.
MADUREIRA
Está certo. Está aqui. Vamos sentar. Qual é a sua graça?
VIOLÃO
(pega o contrato)
É Violão mesmo. (tenta ler; tem dificuldade)
Toca o telefone.
MADUREIRA (atendendo)
Boa tarde, Carlão. Já estou saindo. Não demoro. Em uma hora
estou aí. (desliga) Assina logo que eu vou ter que sair. Coloque
seu nome em letra de forma. (mostra o papel) Aqui.
VIOLÃO
Eu não estou conseguindo ler nada. A letra é muito pequena.
Não posso assinar sem ler o que está escrito. O senhor me deixa
ler com calma que eu assino.
MADUREIRA
Não posso esperar. É pegar ou largar.
INTERVALO.
PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS.
VOLTAMOS À SALA DE MADUREIRA. Continuação da cena anterior.
BARBOSA
Não vacila meu chapa. Assina logo. Não vai haver outra
oportunidade.
Violão está apreensivo, em dúvida. Olha para Pelé: os olhos dele estão
brilhando. Aí não tem dúvida: assina o contrato.
Nas três vias.
MADRUGA
INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL/RIO – DIA.
232
REYNA e Isabela estão no quarto; ele ainda com as duas pernas imobilizadas.
ISABELA
Precisamos ter uma conversa séria.
REYNA
Pisei na bola, fui muito mal educado. Peço desculpas, Ed. De
coração. Você tem sido um amor, não merecia aquela cena
ridícula.
ISABELA
Tudo bem. Você está estressado. Mas não se trata disso.
REYNA (preocupado)
Que cara é essa? Tem mais alguma notícia ruim?
ISABELA
Não. Sem mais notícias. Mas é um assunto pessoal. Delicado.
REYNA
Fala logo. Quero saber.
ISABELA
Por que você chama todo mundo de Ed? Quem é Ed? De onde
você tirou essa estória? Pelo amor de Deus: esclarece isso ou eu
vou enlouquecer de curiosidade.
Os dois riem com vontade.
REYNA
Você realmente quer saber?
ISABELA
Quero. Já que vamos ficar juntos aqui por muito tempo tenho
direito de saber.
REYNA
Você conversou com a minha mãe?
ISABELA
Conversei. Antes de você falar com ela. Mas achei melhor não
perguntar nada a ela.
REYNA
OK. Vou contar. Mas você vai ter que fazer um juramento.
ISABELA
233
Eu faço o que você quiser. Mas pelo amor de Deus, me conte por
quê!
REYNA
(sem graça)
Ed era o nome de um ursinho que eu tinha quando era pequeno.
Eu era doido com ele.
ISABELA
Você está me gozando. Fala sério.
REYNA
Verdade. Pergunta para minha mãe. Comecei com essa
brincadeira quando tinha quatro anos e continuo com ela até
hoje. Um lance freudiano.
ISABELA
(querendo rir, mas se contendo)
Meu Deus. Aonde é que eu fui me meter? (pausa) Já que é assim,
tudo bem. Assunto encerrado. Esse é um ótimo motivo, sem
dúvida.
Mais risadas.
REYNA
Vamos falar sério agora. O recreio acabou. Arquive meu ursinho
de pelúcia.
ISABELA
(custando para não rir)
Está arquivado. Ed.
REYNA (sério)
Mandei fazer uma reforma em meu apartamento. Vou fazer uma
sala de musculação igual à que tem lá no clube.
Por que isso agora?
ISABELA
REYNA
Vou ter muita fisioterapia pela frente. Muita musculação. Eu acho
que vou passar o dia inteiro dentro dessa academia que vou
montar lá em casa.
ISABELA
Que bom que está otimista.
REYNA
234
Eu vou dar a volta por cima. Pode apostar nisso, Ed.
ROBBE-GRILLET entra. De óculos, um tipo frio, distante, cabelos grisalhos, 60
anos.
Isabela traduz o que ele fala tão logo termina o que diz o francês.
REYNA
Chame Fabio. François não gosta de falar inglês. Eu não entendo
nada de francês.
ISABELA
Não precisa. Falo francês. Ele é casado com uma brasileira,
entende português, embora não fale.
Oui.
ROBBE-GRILLET
REYNA
OK. Vamos em frente.
DOUTOR ROBBE-GRILLET
Mais il faut que vous compreniez que, plus vous utilisez de morphine, moins de
chance vous aurez de reprendre votre carrière d’athlète professionnel.
ISABELA
O senhor deve entender que quanto mais morfina usar, menores são as suas
possibilidades de voltar a ser um atleta profissional.
CLOSE-UP de REYNA. Atento.
DOUTOR ROBBE-GRILLET
Votre organisme s’habitue rapidement à la morphine. Il l’absorbe presque
complètement. C’est le grand obstacle à la récupération naturelle des tissus
lacérés.
ISABELA
Seu organismo se acostuma rápido com a morfina. Absorve a morfina quase que
integralmente. E isso é um grande obstáculo para a recuperação natural dos
tecidos lacerados.
PLANO APROXIMADO de REYNA. CLOSE-UP DO FRANCÊS.
DOUTOR ROBBE-GRILLET
(pisca discretamente para Isabela)
C’est pour cette raison, il n’existe pas un seul cas de récupération, jusqu’au niveau
de carrière d’athlète professionnel, avec le type de lésions, que vous avez,
Monsieur.
ISABELA
É por essa razão que não existe um único caso de recuperação para a vida
profissional em casos de lesões como a que o senhor teve.
CLOSE-UP de REYNA.
235
REYNA
Nenhum caso de recuperação?
DOUTOR ROBBE-GRILLET
(sinal negativo com a cabeça)
Non. Aucun. Personne n’a pu surmonter l’obstacle de la douleur. Normalement, ils
abandonnent tous après le cinquième jour sans morphine. Et croyez-moi la douleur
est intolérable.
ISABELA
Nenhum. Ninguém conseguiu superar a barreira da dor. Normalmente, depois de
quinto dia sem morfina, todos desistem. É um dor insuportável, acredite.
REYNA
(aponta a bomba injetora)
E se eu optar pela morfina?
DOUTOR ROBBE-GRILLET
Vous n’aurez pas mal. Le traitement prendra plus de temps. Vous pourrez avoir une
vie normale. Mais vous ne pourrez plus être footballeur professionnel.
ISABELA
O senhor não sentirá dores. O tratamento será mais demorado. O senhor terá uma
vida normal. Mas jamais voltará ao futebol profissional.
CLOSE-UP de REYNA.
Entendi.
REYNA
DOUTOR ROBBE-GRILLET
Qual é a sua decisão?
ISABELA
Qu’est-ce que vous décidez ?
PLANO APROXIMADO de REYNA.
REYNA
Eu vou ser um estudo de caso nos congressos científicos. Vou
poder tomar outra medicação, um sedativo?
ROBBE-GRILLET
Oui. But something soft. Not heavy. Soft.
ISABELA
Claro. Mas algo suave, não muito forte.
REYNA
Que assim seja então.
ROBBE-GRILLET não diz nada. Aperta a mão de REYNA fortemente.
ROBBE-GRILLET
(com forte sotaque)
236
Depois eu volto.
ROBBE-GRILLET entrega algo a Isabela.
REYNA
Obrigado, François. Não seria adequado ficar mais preso à
cama?
ROBBE-GRILLET
Yes, of course. I will provide this. (a Isabela) Obrigado.
O francês beija a mão dela e sai.
Isabela começa a traduzir, ele interrompe.
REYNA
Não precisa. Eu entendi. Obrigado. Vou ficar de olho nesse
francês de bico doce.
ISABELA
Deixe de ser bobo. Ele tem idade para ser meu avô.
REYNA faz uma inspeção visual na bomba injetora de morfina.
REYNA
Está decidido. Mas não vou usar essa coisa.
ISABELA
A dor é tão grande assim?
REYNA
Já teve cólica de rim? Pedra nos rins? É aquela dor. Multiplicada
por dez. Durante dois dias inteiros.
ISABELA
Será que vale a pena?
REYNA
Quem disse que eu desisto de alguma coisa sem tentar?
ISABELA
Reparou que você não está mais chamando a gente de Ed?
REYNA
É. Reparei.
ISABELA
237
Assim é que se fala querido. Você vai parar com o futebol
quando quiser e não quando um bandido feito aquele Cicinho
decidir.
REYNA
Não fale assim dele. Futebol tem dessas coisas. Se ele soubesse
no que ia dar aquele carrinho, ele não teria dado, tenho certeza.
Fabio entra, seguido por dois enfermeiros.
FABIO
Tudo com você é diferente. O efeito da anestesia local já deveria
estar passando.
Meu santo é forte.
REYNA
Os enfermeiros puxam correias que estavam embutidas na cama e atam o
corpo dele à cama.
DR FABIO
Conversei com o professor. Vamos usar um sonífero muito forte,
sem nenhum componente que atrapalhe o processo de
recomposição dos tecidos. A enfermeira vem aplicar se você
quiser. É uma droga muito forte, recomendada para pacientes
terminais, quando a morfina deixa de fazer efeito.
REYNA
Vou querer. E a perna esquerda, Fabio?
DR FABIO
Sabe quantos graus tem a sua flexão agora?
REYNA
(olha a perna esquerda)
Não tenho ideia. Imagino que cinquenta, cinquenta e cinco
graus.
Menos.
DR FABIO
REYNA
Quanto?
DR FABIO
Trinta.
REYNA
238
Merda. Para voltar a jogar, quanto vai ter que ser? Noventa?
DR FABIO
Cento e quinze graus. No mínimo.
REYNA
A fisioterapia vai ser divertida.
DR FABIO
Tudo (enfatiza bem a pronúncia) vai ser divertido.
REYNA
Você não acredita que eu vou aguentar.
DR FABIO
(inspecionando as correias)
Não vai mesmo. (aos enfermeiros) Ficou bom. Podem ir.
Os enfermeiros saem.
REYNA (ao DR FABIO)
Vá tomar no seu cu.
Leonardo!
ISABELA
REYNA
Só ela e minha mãe me chamam de Leonardo. Até parece que
estamos casados.
ISABELA
Viu como ele é esperto, doutor?
DR FABIO (a Isabela)
Cuidado com ele. (em voz baixa, perto do ouvido de REYNA) Talvez as
correias não sejam suficientes para segurar você. Estou
pensando em trazer Violão para ficar aqui contigo. É melhor ela
ir para casa.
ISABELA
Como é que é?
DR FABIO
Nada. Não está aqui quem falou. (Dá um beijo na testa de REYNA,
repentinamente) Para dar sorte.
Isabela ri. O médico sai rápido, rindo também.
REYNA
239
Você fala com ele?
Fabio faz sinal positivo com a cabeça e sai.
REYNA
Fabio vai trazer um amigo muito forte. Violão. Do clube. Você
não vai conseguir me segurar.
ISABELA
Eu vou ficar aqui com você.
REYNA
Três nesse apartamento vai ser demais.
ISABELA
Só vai ser preciso durante dois dias, até passar o período em que
você não pode tomar morfina. A gente se vira e dá um jeito.
REYNA
Tem certeza? Vai ser difícil para você.
ISABELA
Muito menos do que para você. Eu aguento.
REYNA
Meus pais querem vir me ver. Por favor, ligue pra minha mãe
e diga que não é pra vir. Quando eu estiver em casa eles vem.
Antes não.
ISABELA
Ela disse que você iria falar exatamente isso. Ela não vem nem
seu pai. Nem seu irmão.
REYNA
Melhor. O que foi que François entregou a você?
Ela estende uma peça de borracha, como as que são usadas pelos lutadores de
boxe, para proteger os dentes. Ela tira o plástico que envolve o protetor.
REYNA
(coloca a peça na boca)
Vai começar a brincadeira. Vou dormir um pouco. Tenho que
descansar.
EXT. CASA DE VIOLÃO/FAVELA DO ALEMÃO/RIO – FIM DE TARDE.
240
Violão e Pelé estão no terraço da casa dele: uma construção simples, mas
bem-feita. Nelma e outros vizinhos estão com eles. Eles participam de um
churrasco regado à cerveja. O pagode rola solto.
Violão sai discretamente, logo depois de atender ao celular.
INT. SALA DA CASA DE VIOLÃO – DIA.
Lucas, goleiro do BRASIL FC, muito amigo de Violão, entra na sala.
Cadê o contrato?
LUCAS
Violão pega num armário a pasta com o contrato e dá a Lucas.
LUCAS (senta-se)
Vamos ver. Mas essa estória está cheirando mal. Você não devia
ter assinado.
INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – TARDE.
CAM mostra o rosto de Isabela, dormindo na poltrona de visitante. O rosto dela
é lindo, repousa em paz.
CLOSE-UP nos olhos de REYNA, que se abrem de repente. OUVIMOS gemidos.
Gemidos de dor e agonia: REYNA acordou. Ela acorda, sobressaltada. REYNA
está molhado de suor.
REYNA
O efeito da anestesia passou! Como dói, meu Deus! É horrível,
não vou aguentar! Ahhhhhhhhh!!!!!!
ISABELA
Aperte a bomba de morfina, REYNA. Aperte logo!
REYNA
Não. Eu não vou apertar. Eu não posso! Eu não posso! Cadê ao
protetor? O protetor caiu! Dê alguma coisa pra morder, Isabela.
Por favor, me dê.
Isabela procura o protetor de borracha na cama; acha a peça e a coloca na
boca de REYNA. Ele comprime os dentes. Está sentindo uma dor enorme. O
rosto dele transforma-se numa máscara de dor.
Ele olha para a bomba injetora de morfina. Imagens dele vestido de médico,
atendendo num ambulatório, invadem a tela.
241
ISABELA
O que você quer que eu faça?
REYNA
(tira o protetor e coloca de novo, depois de falar)
A enfermeira! A enfermeira! O sonífero!
ISABELA
Um minuto, querido. Vou buscar a enfermeira. (Sai)
OUVIMOS a respiração entrecortada de gemidos de REYNA. Ele está ensopado.
CLOSE-UP do rosto de REYNA, sofrendo dores atrozes.
A enfermeira entra rápido, seguida por Isabela. Ela vem com uma seringa na
mão direita; injeta o conteúdo nas veias de REYNA.
ISABELA
Obrigado, enfermeira. Muito obrigado.
Enfermeira sai.
INT. SALA/CASA DE VIOLÃO/FAVELA DO ALEMÃO – DIA.
Lucas ainda lendo o contrato. Violão esperando.
LUCAS
O filho da mãe comprou os direitos econômicos de Pelé por uma
mixaria. Esse contrato vale até os 20 anos.
Violão passa as mãos no rosto, desanimado. Lucas dá um abraço nele.
INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – DIA.
Imagens distorcidas, no PONTO DE VISTA de REYNA, já sob o efeito do
sonífero. Ele está com o protetor de borracha na boca, com os cabelos
molhados; ainda sente dor, mas está grogue.
Na trilha sonora, OUVIMOS o ruído característico de um gongo usado nas lutas
de boxe.
Sempre com imagens deformadas e efeitos sonoros que ilustrem com clareza
que REYNA está “viajando”, VEMOS o jogador num ringue, usando luvas de
boxe, tomando repetidas pancadas: no rosto, no abdome.
Ele se defende como pode; está apanhando muito, impiedosamente socado
pelo adversário, que é o DR ROBBE-GRILLET.
242
Fusões sucessivas do gongo soando, do relógio no apartamento de REYNA
mostram o transcurso do tempo. Sucessivamente, os ponteiros apontam a
passagem das horas, a partir de 4 da tarde até 4 da manhã.
VEMOS que Violão está segurando o corpo de REYNA, evitando que as pernas
se mexam; sempre com o protetor na boca.
VOLTAMOS ao apartamento. Isabela está dormindo na poltrona, Violão firme,
atento a REYNA, que está dormindo, encharcado de suor.
INTERVALO.
PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS
EXT. HOSPITAL SAMARITANO/RIO DE JANEIRO – ENTARDECER.
Imagem externa do hospital. O sol está indo embora.
INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – ENTARDECER.
CLOSE-UP revela que REYNA está acordando, abrindo os olhos devagar. De
olhos fundos, está extremamente abatido; procura Isabela com os olhos, até
ver que quem está na poltrona de visitas é Violão.
Isabela está dormindo na cama de visitante, virada de costas para REYNA.
VIOLÃO
Ela está dormindo. Tudo bem, doutor?
REYNA
Uma fome desgraçada. Mas sem dor. Meu Deus, nem acredito.
Quanto tempo eu dormi?
VIOLÃO
Dois dias. Dois dias e meio.
Jura? Isso tudo?
REYNA
VIOLÃO
Doutor FABIO mandou e eu apertei esse negócio aí (mostra a
bomba injetora de morfina) há mais ou menos 3 horas.
REYNA
Fale baixo, Viola. Vai acordar Isabela.
VIOLÃO
Nem um terremoto acorda essa menina agora. Ela ficou duas
noites sem dormir. Escolheu bem, doutor. Custou mas escolheu,
hein?
243
REYNA
Por que ela não dormiu?
VIOLÃO
Com você gemendo feito louco o tempo todo nem querendo ela
conseguiria. Mas ela ficou firme. A gente revezou para cuidar de
você.
REYNA
Você também está sem dormir esse tempo todo?
VIOLÃO
E eu iria dormir se ela aguentou firme?
REYNA
Vá para casa, Violão. Vá dormir. Depois a gente conversa direito.
VIOLÃO
Vou sim. Agora o doutor pode tomar esse remédio aí, não vai
ficar mais com dor. Teve uma hora que eu achei que você ia
morrer. Menino, foi difícil segurar você.
REYNA
E Pelé? Ficou com quem?
VIOLÃO
Ficou na casa da minha vizinha. No Alemão todo mundo se
ajuda.
E a peneira?
REYNA
VIOLÃO
Nem te falo. Depois eu volto e conto tudo.
REYNA estende a mão esquerda.
REYNA
Obrigado, amigo. Vê se volta mesmo, hein? Quero saber essa
estória direito.
VIOLÃO
Fique com Deus, doutor. Trate de dar valor a essa menina. Não
é fácil encontrar mulher assim hoje em dia.
REYNA
Obrigado, amigo. Vou cuidar sim.
244
Violão sai e quase se choca com Doutor Fabio, que está entrando.
DR FABIO
Aonde vai com essa pressa toda, Violão?
VIOLÃO
Para casa, doutor Fabio. O senhor ainda vai precisar de mim?
DR FABIO
Não, vá em paz. Consegui uma folga de uma semana para você.
Vê se aproveita e descansa um pouco. Sei que você vende suas
férias há mais de cinco anos.
VIOLÃO
Valeu. Obrigado, doutor.
Violão vai embora.
DR FABIO
Acabou o suplício, meu samurai.
REYNA
Eu sou ateu, mas quase soltei um graças a Deus.
DR FABIO
Pode usar a bomba à vontade agora. Dor mesmo você só vai
sentir de novo quando começar a fisioterapia.
REYNA
E quando é que eu vou poder começar?
DR FABIO
Devagar com o andor que o santo é de barro. Você ainda tem
pelo menos mais umas quatro cirurgias pela frente.
REYNA
E o francês seu amigo? Vai morar aqui no Rio por conta do
Brasil?
DR FABIO
Não vai ser preciso. A partir de agora a bola é nossa. Ele voltou
para Paris hoje cedo. Está muito otimista. Acha que você vai
conseguir se recuperar.
E você não?
REYNA
DR FABIO
245
Se você mostrar a mesma força de vontade na fisioterapia, eu ia
acabar de dizer. Ele mandou dar a você os parabéns. O professor
ficou muito impressionado com você, Leo.
REYNA
Você não respondeu.
DR FABIO
Não mudei minha opinião.
INT. SALA DE BONILHA/CT DO GALÁTICOS/RECREIO – DIA.
Violão e Bonilha.
BONILHA
Seu menino tem potencial, Violão. Mas vai precisar de um
programa intensivo de fortalecimento. Vamos investir nele. Você
tem muita sorte.
VIOLÃO
Eu tenho sorte? Você compraram os direitos econômicos do
garoto por uma mixaria e eu tenho sorte? Conta para mim aonde
a dona sorte foi parar, Bonilha.
BONILHA
Daqui a alguns anos você vai agradecer a gente. Se seu menino
for bom de bola feito você diz pode até ser vendido para o
exterior. Vai ser bom para toda a família.
VIOLÃO
Mas vai ser melhor ainda para vocês. E pode ir tirando o cavalo
da chuva. Não vou deixar vocês tirarem meu menino da escola
nem tomar remédio para crescer.
BONILHA
Não quero ser desagradável, mas acho que vale pena você dar
mais uma lida no contrato que assinou conosco.
VIOLÃO
O que você quer dizer com isso?
BONILHA
Ele vai continuar treinando com os outros garotos e vai ter pelo
menos duas horas de musculação. Mas isso não é suficiente para
ele ficar com o físico adequado. Vai ter que sair da escola sim. E
trate de não encher meu saco, negão.
BONILHA sai, irritado.
246
INT. APARTAMENTO DE REYNA/HOSPITAL – DIA.
O cabelo de REYNA cresceu e a barba também. Isabela cortou os cabelos:
alguns meses se passaram. Ele está parado, pensativo, olhando pela janela,
observando o movimento no pátio interno do hospital.
Isabela está teclando em laptop. Ela volta-se e olha para REYNA.
ISABELA
Leo? Tudo bem com você, Leo?
Ele não responde. Ela se aproxima.
ISABELA
O que foi?
REYNA
Estou pensando no que Lucas me falou.
ISABELA
Sobre o filho de Violão?
REYNA
É. Preciso arrumar um jeito de ajudar Viola com essa máfia
que passou a perna nele.
ISABELA
Estou pesquisando exatamente esse assunto. Vou fazer uma
reportagem especial sobre esses empresários. Você sabia que
o negócio de compra e venda de jogadores profissionais
movimenta mais de três bilhões de dólares por ano?
Tanto assim?
REYNA
ISABELA
São duzentas transferências por mês. Em média. Só no Brasil.
Incluindo as categorias de base.
REYNA
Não é à toa que tantos investidores estão entrando no ramo do
futebol. Empresas e pessoas físicas. Uma delas vai ter ação na
bolsa.
ISABELA
Andei fazendo uns contatos. Sabe quem é o dono daquele clube
que assinou com o garoto de Viola?
247
Não. Quem?
REYNA
ISABELA
O presidente de seu fã-clube.
REYNA
Carlão?
ISABELA
Em carne e osso. Mais carne do que osso, aliás.
REYNA
Que filho da mãe. O sujeito está em tudo quanto é negócio.
O motorista de Isabela entra.
SALGADO
As malas são essas, Isabela?
ISABELA
Só essas duas. Viu como eu fiquei bem comportada?
SALGADO
Também pudera. Num hospital não dá pra fazer desfile, não é?
ISABELA
Você levou as muletas de Leo?
SALGADO
(aponta as muletas, no canto)
Não. É para levar? E ele vai de que jeito? Voando?
REYNA
Isso mesmo, Salgado. Não dá mole para ela.
ISABELA
Você podia ter pensado que ele iria de cadeira de rodas.
SALGADO
Com a perna dobrada?
REYNA
Salgado, dois. Isabela, zero.
Ela fecha o laptop. E entrega as muletas a REYNA.
ISABELA
248
Esse complô masculino não vai durar muito. Salgado está
aposentando.
SALGADO
Hoje é meu último dia. Mas eu vou continuar morando na casa
dela. Não consigo me separar dessa chata.
ISABELA
Na casa de meu pai, você quer dizer. E não é por minha causa.
Ele está aposentando também e os dois vão ficar azarando as
meninas na praia.
SALGADO
Olha o respeito, menina. Mais amor e MENAS confiança. Muito
MENAS.
REYNA
Lula também é cultura.
SALGADO
Cuidado senão a gente leva seu namorado também. Ele também
está aposentando, não é?
Acaba o clima descontraído. Leo fecha a cara e sai com as muletas: a perna
esquerda dobrada, muito enfaixada.
SALGADO
O que foi? Falei bobagem?
ISABELA
Não é verdade o que a imprensa anda dizendo, Salgado. Leo
está se matando para conseguir voltar ao futebol. Mas mesmo
que não voltasse ele não iria se aposentar. É médico.
EXT. SALA DE MUSCULAÇÃO/CASA DE REYNA – DIA.
REYNA está deitado numa cama própria para fisioterapia. Junto com Isabela um
assistente espanhol, JOAQUÍN, alto, musculoso, muito forte. JOAQUÍN está
exercitando a perna esquerda de REYNA, que se dobra muito pouco. O
fisioterapeuta, com a orientação de Isabela, força cada vez mais a perna, o que
provoca muita dor em REYNA.
JOAQUÍN
(forte sotaque espanhol)
Um pouco mais, REYNA. Força! Vamos! Mais forte!
REYNA
Não dá! Não dá!
249
ISABELA
Dá sim, Leonardo. Tem que dar, você precisa conseguir mais uns
graus hoje. É preciso forçar, não tem outro jeito.
REYNA
(gemendo, ensopado de suor)
Pega um pouco de água, por favor. Meu Deus, como dói essa
merda.
Isabela dá água a REYNA.
ISABELA (ao espanhol)
Você precisa jogar o peso de seu corpo em cima da perna dele.
Jogue o peso. Pra valer, tem que forçar mesmo.
Ele não vai aguentar.
Ele vai aguentar.
JOAQUÍN
REYNA
ISABELA
Vamos lá, Leo. Prepare-se. Vai, JOAQUÍN, vai! Agora!
JOAQUÍN
Pronto?
Pronto, porra!
REYNA
JOAQUÍN joga o corpo, pressionando a perna de REYNA, forçando que ela se
dobre. REYNA grita de dor, começa a chorar, gemendo, urrando de dor.
ISABELA
De novo, JOAQUÍN! Mais forte! Mais um pouco! Você consegue
Leo!
REYNA não consegue segurar mais: solta sua bexiga, seu intestino e suja o
calção que está suando.
Isabela faz sinal, JOAQUÍN para de fazer força. Percebemos que há mau cheiro
no ar.
REYNA
(com os olhos cheios de lágrimas)
Que vergonha. Não consegui segurar. Não sei o que falar.
ISABELA
250
Não tem que falar nada. Isso acontece. Você está fazendo força
demais. É natural.
JOAQUÍN
Vamos parar um pouco. Eu preciso descansar.
REYNA (brincando)
Você? Você precisa? Eu aqui todo borrado e molhado feito um
bebê e é você que tem de descansar? Seu filho da mãe! Admita.
Admita que você é torcedor do Atlético!
JOAQUÍN
Já que você falou, meu time do coração é mesmo o Cão.
REYNA
Ninguém é perfeito. Só podia ser.
REYNA desce da cama; Isabela entrega a ele as muletas.
REYNA verifica se a roupa de baixo está firme, se está em condições de se
levantar. Com a perna dobrada, mancando, ele vai em direção ao seu quarto.
ISABELA
Vou com você, querido.
REYNA
Não precisa. Deixa. Eu me viro sozinho. Eu prefiro.
Isabela ignora e vai com ele.
INT. BANHEIRO/CASA DE REYNA – DIA.
REYNA já tem prática no uso das muletas. Isabela chega com ele e o ajuda a
tirar a roupa suja.
Isabela limpa a roupa suja na banheira e ajuda REYNA com o chuveirinho,
lavando-o.
REYNA
Você é uma mulher muito especial.
ISABELA
(passando sabonete no corpo dele)
Sou sua mulher. É isso que faz de mim uma mulher especial.
INT. QUARTO DE UM INTERNAUTA QUALQUER – NOITE.
251
O quarto típico de quem fica horas por dia na Internet. Caixas de som potentes,
microfones, tela de cristal líquido. Pedaços de pizza e garrafas de refrigerantes
vazias espalhadas na imensa mesa em que vemos um desktop e um laptop,
ambos ligados.
Ao fundo, uma TV ligada mostra a chamada do Jornal Nacional, da Rede Globo,
com som ao fundo, mais baixo.
Ouvimos os gemidos de REYNA, amplificados na parafernália do equipamento
do internauta MARCELO, 24 anos, gordíssimo. Comendo um sanduíche sem
desgrudar da tela um único instante, ele observa na tela a imagem de REYNA
malhando no NAUTILUS, ensopado de suor.
CORTA PARA
VAMOS à sala de musculação da casa de REYNA e vemos uma CAM, gravando
a imagem dele, enquanto faz os exercícios no NAUTILUS. Ao lado dele,
JOAQUÍN, orientando.
JOAQUÍN
De novo, REYNA. Não pare agora. (REYNA continua, assentindo
num sinal com a cabeça)
RETORNAMOS ao quarto de Marcelo (quase 130 kg), que fala com outro
internauta, LUISINHO, de 19 anos, pelo microfone do laptop. Na tela do micro,
vemos MARCELO, conversando em tempo real com LUISINHO.
LUISINHO
Ele já voltou a treinar com bola?
MARCELO
(na tela, imagem não muito nítida)
Semana passada. Fui ver o treino com a galera. Nem parece
que o cara quebrou as duas pernas.
LUISINHO
Dez meses malhando oito horas por dia, todo santo dia.
MARCELO
Se esse cara não merece voltar a jogar bola ninguém merece.
INT. CT DO BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA – DIA.
Os jogadores estão fazendo aquecimento no gramado. Todos rindo muito,
felizes com a reintegração de REYNA.
Madruga reúne os jogadores no centro do campo e distribui as camisetas, para
reservas e titulares.
252
Isabela está no alambrado, ao lado de QUINTERO e de Fábio.
INT. GRAMADO DO CT/BARRA DA TIJUCA/RIO – DIA.
Um coletivo do BRASIL FC. O time titular contra o time reserva. REYNA está
entre os reservas. Corre sem medo, entra nas bolas sem receio.
As imagens mostram as jogadas feitas pelos jogadores, enquanto Isabela e o
doutor FABIO, que observam o treino, trocam ideias. Na trilha, NA CADÊNCIA
DO SAMBA (Que bonito que é).
INTERVALO
PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS
INT. SALA DE QUINTERO/CT BRASIL FC/RIO – DIA.
QUINTERO e REYNA estão conversando. QUINTERO sentado, REYNA de pé,
olhando pela janela. REYNA acende um charuto.
QUINTERO
Você deu sorte de não aparecer sujo de cocô na Internet.
REYNA
Não corri esse risco, Zé. Meu acordo com o sindicato era de uma
hora de imagens por dia. Não era exatamente um Big Brother da
vida.
QUINTERO
Estou sentindo falta de você me chamar de Ed. Aliás, só eu não.
Até Violão veio se queixar.
REYNA
Meu negócio é bagunçar o que está arrumado e arrumar o que
está bagunçado. Cansei desse negócio de Ed.
QUINTERO
Você não vai ganhar nem um centavo com a veiculação dos
filmes na Internet? Li hoje no jornal que seus vídeos são os mais
vistos no Brasil.
REYNA
O sindicato precisa de cada centavo dessa grana. Não me
sentiria bem faturando em cima disso. A classe é muito
desunida. Quem sabe agora mais alguém faz alguma coisa pelo
sindicato? Alguém tem que começar.
QUINTERO
253
Mas vamos ao que interessa. Não chamei você aqui para falar
disso. (pausa) Um amigo meu da Inglaterra me ligou ontem à
noite.
REYNA
E...
QUINTERO
Como é sua relação com Noriega?
REYNA
Normal. Igual a sua. Ele também é seu empresário, não é?
QUINTERO
Vai deixar de ser depois do telefonema que eu mencionei.
REYNA
Qual é a encrenca?
QUINTERO
Meu amigo inglês garantiu que foi Noriega quem plantou aquela
estória de cocaína lá em Londres.
REYNA
Não faz sentido. Porque ele faria uma coisa dessas? Ele não é
burro. Ia levar uma bela grana com a minha transferência.
QUINTERO
Ele tinha um motivo. Um motivo muito forte, eu diria.
Qual?
REYNA
QUINTERO
Convém você sentar.
REYNA (senta-se)
Fala logo.
QUINTERO
Ele é sócio de Carlão. Plantou aquela merda a pedido do filho da
mãe.
REYNA
Tem certeza?
Absoluta.
QUINTERO
254
REYNA
Que escroto esse Noriega.
QUINTERO
Perdi a confiança no cara. Vou romper o contrato hoje mesmo.
Ele me disse que ia jantar com você. Achei que era bom
conhecer um pouco mais a pessoa com quem está lidando.
REYNA
Posso pedir para você deixar esse rompimento para daqui a
alguns dias?
QUINTERO
Por que eu faria isso?
REYNA
Isabela resolveu ajudar Violão. Aquela estória do contrato que
ele assinou, praticamente dando os direitos econômicos de Pelé
a um sujeito chamado Madruga.
QUINTERO
Qual é a relação entre uma coisa e outra? Não entendi.
REYNA
O sujeito quer 300 mil dólares para vender os direitos de
transferência do menino de Violão.
QUINTERO
O garoto é bom assim?
REYNA
O menino vai longe. Eu aceitei a ajuda dela porque sei que ele
vai ser craque.
QUINTERO
Onde entra Noriega nessa estória?
REYNA
O tal Madruga é testa de ferro de Carlão. De Noriega também,
provavelmente.
QUINTERO
Exatamente o quê você pretende fazer?
REYNA
Vou contar para Noriega que o menino tem um problema
cardíaco e jogar o preço para baixo.
255
QUINTERO
Quanto você acha que ela deve pagar sem despertar suspeitas?
Não se esqueça de que essa gente é esperta. Eles farejam
problemas.
REYNA
50 mil. Para Isabela é troco.
Dólares?
QUINTERO
REYNA (sorrindo)
Não. Reais.
QUINTERO
Vai ser divertido ver alguém passar a perna naquele safado. OK.
E se Noriega desconfiar? Ele sabe que o menino é seu xodó.
REYNA
Mas não sabe que eu sei que ele vai ficar com boa parte desses
300 mil. Vou contar como se estivesse preocupado com a saúde
do menino. Coisa de padrinho.
QUINTERO ri. REYNA também. Os dois batem as palmas das mãos, cúmplices.
INT. SALA DE MADRUGA/RECREIO/RIO – DIA.
Madruga e Isabela na sala dele. Estão assinando o contrato de transferência de
direitos econômicos de Pelé.
MADRUGA
Você é uma negociante esperta. Conseguiu um futuro craque por
um preço irrisório.
ISABELA
Você diz isso porque não foi você quem assinou o cheque. Meu
pai quase teve um infarto. Para ele é loucura pagar 20 mil reais
por um garoto que mal saiu das fraldas.
Apertam as mãos.
INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS/BRASÍLIA – DIA.
Depoimento de Juca KFOURI.
Episódio VI : A revolução do craque
256
PARTE I
PRÓLOGO
5 MINUTOS
EXT. BAÍA DE GUANABARA/RIO DE JANEIRO – NOITE.
Vista cartão postal do Rio. Planos da orla, carros indo e vindo.
INT. ESTÚDIO DE TV/RIO DE JANEIRO – NOITE.
Três anos se passaram desde o retorno aos campos de Leonardo REYNA, que
aqui aparece com um penteado diferente.
No estúdio, ele e os três jornalistas (PAULO VINÍCIUS COELHO, JOSÉ TRAJANO E
FERNANDO CALAZANS), que vão entrevistá-lo num programa que vai começar a
ser gravado daqui a pouco, após os ajustes finais que estão sendo feitos:
VEMOS a movimentação dos técnicos para tornar isso possível.
VOZ DO DIRETOR
Tudo OK?
OK, Paulinho.
Beleza.
OK.
TÉCNICO UM
TÉCNICO DOIS
TÉCNICO TRÊS
VOZ DE DIRETOR
Meninos: vamos começar? PVC? Trajano? Calazans?
TRAJANO
Acabou o recreio. Vamos trabalhar.
Por mim tudo bem.
OK.
Gravando!
PVC
CALAZANS
VOZ DE DIRETOR
A VOZ DOS ENTREVISTADORES ESTARÁ SEMPRE EM OFF: REYNA é
enquadrado de perto, em PLANO APROXIMADO e em CLOSE-UP. Mudam as
CAM, mas mantêm-se o enquadramento, para sugerir um clima intimista.
TRAJANO
257
Fomos procurar o Amarildo e vejam vocês quem nós
encontramos. Leonardo REYNA, craque de bola, médico,
presidente do sindicato dos atletas profissionais. Tudo bem com
você, Leo?
REYNA
Existe espaço para melhorar, Trajano. No futebol. Na vida
pessoal minha vida está tranquila.
TRAJANO
Mesmo casado?
REYNA
Sobrenatural de Almeida é uma mulher e tanto.
TRAJANO
Minha memória não é boa como a do PVC, mas tenho a
impressão de que seus problemas no futebol começaram depois
que você assumiu a presidência do sindicato de jogadores.
REYNA
Sua memória é boa também. Os problemas começaram antes,
mas se agravaram muito com o início de minha gestão no
sindicato.
PVC
Você se refere às expulsões frequentes ou ao aumento da
violência de seus marcadores?
REYNA
Às duas coisas, pois na verdade elas são uma coisa só. Você é
bom com números. Compare as estatísticas de meu primeiro ano
após o retorno ao futebol com os números dos dois anos
seguintes, quando já estava no sindicato.
PVC
É verdade. Não é necessário torturar os números para dar razão
a você.
REYNA
Se você considerar que entrei com a ação que tanto incomoda os
cartolas logo na primeira semana de minha gestão vai concluir o
que todo mundo já sabe.
CALAZANS
Você se julga perseguido pelos dirigentes do futebol nacional?
REYNA
258
Eu e a torcida do Atlético.
TRAJANO
Mas seu temperamento também não ajuda a melhorar essa
situação. Você sempre foi um sujeito briguento.
REYNA
Sou meio esquentado mesmo. Mas é muito mais do que isso.
Estou sendo perseguido pelos juízes. Sou expulso por qualquer
bobagem. É retaliação da cartolagem.
PVC
Mas você ficou mais violento também. Os números mostram
isso.
REYNA
Você vai se cansando de levar pancada o tempo todo. O que
estão fazendo comigo em campo com a leniência dos juízes é um
absurdo. Os juízes eu até entendo. É coisa de dirigente, de
Carlão, que é meu desafeto pessoal, além de tudo. Mas de
colegas de profissão?
TRAJANO
Esse negócio de fumar e de ir para as baladas é entendido por
muita gente como provocação. A torcida acha que é falta de
profissionalismo.
REYNA (irritado)
Você também acha. Mas não vou mudar para agradar a torcida e
a imprensa.
TRAJANO
Desse jeito você não volta para a seleção tão cedo.
REYNA
Ninguém tem tudo o que quer na vida.
CALAZANS
Você ainda tem esperança de voltar à seleção da Liga?
REYNA
Que jogador não tem? Eu não sou exceção. Voltar à seleção é
questão de honra para mim.
PVC
É interessante isso. De um lado você não recebe solidariedade
de seus colegas de profissão, que vão ser beneficiados com a
259
redução do número de jogos. E de outro é sempre eleito o
melhor jogador do ano.
REYNA
Deve ser uma compensação. A rapaziada tem complexo de culpa
e acaba votando em mim.
CALAZANS
Mas não é só jogador que vota. Técnicos e cronistas esportivos
também.
REYNA
Na verdade a nova lei vai beneficiar o futebol de forma geral e
não apenas os jogadores. Jogar duas vezes por semana significa
ceder aos caprichos de nossos cartolas, que são os mais burros
do mundo.
TRAJANO
Você se refere ao calendário?
REYNA
O calendário da Liga é político. Os cartolas da Liga querem fazer
média com os políticos e transformaram o calendário numa
bagunça. Excesso de clubes, excesso de jogos inexpressivos.
CALAZANS
Não só por isso. A violência nos estádios e no entorno também
aumentou muito. Sem falar no aumento do preço dos ingressos,
que aconteceu com a chegada das arenas e na falta de
credibilidade dos dirigentes, que contagiou o futebol. O pobre
está sendo afastado dos campos de futebol.
REYNA
São várias as causas, concordo. Mas a fundamental é a queda de
qualidade dos jogos. Não podemos esquecer que o futebol é
hoje um espetáculo da indústria de entretenimento. Sem um
produto de qualidade o público não prestigia.
PVC
Se prevalecer o intervalo mínimo de uma semana entre os jogos
o campeonato da Liga fica inviável.
REYNA
Na verdade, já é inviável. É preciso acabar com essa coisa
ufanista de que o Brasil tem o maior campeonato do mundo. O
número de times tem que ser reduzido e deve sobrar tempo para
amistosos internacionais, como ocorre na Europa.
260
TRAJANO
Vou finalizar a entrevista com uma questão delicada. O
presidente da Liga Nacional diz que você não é chamado para a
seleção porque é mau exemplo para a juventude.
REYNA (nervoso)
Mau exemplo é ele, que é um gangster disfarçado de dirigente.
Esse negócio de ficar dizendo que eu sou viciado em drogas já
rendeu a ele três processos. Mas ele é poderoso, se esconde
atrás da imunidade parlamentar.
TRAJANO
Há quem pense que um jogador no comando da Liga seria uma
boa coisa. Como aconteceu na Europa, com Franz Beckenbauer.
REYNA
Se existisse alguma chance de tomar o lugar daquele verme eu
seria candidato no dia seguinte.
TEASER E CRÉDITOS DA MINISSÉRIE:
CRÉDITOS DE APRESENTAÇÃO DA MINISSÉRIE E DO EPISÓDIO,
impressos nas imagens dos diversos times reais entrando em campo, intercaladas com a ovação de suas
respectivas torcidas nas arquibancadas.
INTERVALO.
PARTE II (Ato I) – 10 MINUTOS.
EXT. NIGHT CLUB/ZONA SUL/RIO DE JANEIRO – NOITE.
O Range Rover de REYNA para em frente à entrada da casa noturna. Um
porteiro abre a porta do carona e Isabela sai do carro. Está linda, elegante num
vestido preto curto, mas sóbrio.
REYNA, elegante, sóbrio, todo de preto, sai do carro também, um manobrista
da casa sai no carro e, de mãos dadas, os dois dirigem-se à entrada do night
club.
Muitos fotógrafos estão a postos: começa o brilho dos flashes, a cada vez que
chega uma celebridade. Os fotógrafos pedem a Leo para parar para fazer fotos.
FOTÓGRAFO UM
REYNA, por favor. Parem um pouco. Só uma foto.
FOTÓGRAFO DOIS
Abraçados, por favor.
Muitas pessoas aproximam-se de REYNA pedindo autógrafo. Pedem a ela
também e ela assina os papéis que lhe dão para assinar.
261
INT. NIGHT CLUB – NOITE.
REYNA está numa mesa de quatro lugares, ao lado de FEDERICA e QUINTERO.
REYNA
Quem fica com a turminha quando vocês saem à noite?
QUINTERO
Arrumei uma babá fantástica. Os garotos adoram a moça.
FEDERICA
Moniquinha gosta mais dela do que de mim.
seriamente em demitir a moça.
Estou
pensando
QUINTERO
Nem pensar. Esse é meu departamento.
REYNA (a FEDERICA)
Que estória é essa de meu departamento? Não é você o homem
da casa?
FEDERICA
Zé Roberto ainda não entendeu isso. Explique para ele, Leo.
REYNA (a Quintero)
Você cuida das coisas realmente importantes e estratégicas. Tipo
efeito estufa, terrorismo internacional, desmatamento da
Amazônia, essas coisas que afetam o destino da humanidade.
QUINTERO
Entendi. A ideia me parece bem razoável.
FEDERICA
E eu cuido das pequenas bobagens irrelevantes. Da grana da
família, da escola dos trigêmeos, do pediatra, da escolha da
babá, de onde nós vamos morar, trivialidades enfim. Nada que
interesse a um sujeito sintonizado na solução dos problemas
mundiais.
Como você.
REYNA
QUINTERO
Um arranjo sustentável esse. Mas aprovo. Desde que a babá
fique onde está.
FEDERICA
E Isabela? Cadê a primeira dama?
262
ISABELA
Cuidando da organização da festa. Fez questão de levar
pessoalmente um convite a Carlão.
QUINTERO
Fica cada vez mais difícil justificar sua ausência da seleção.
Mesmo para um cara de pau juramentado como Carlão.
FEDERICA
Zé Roberto me disse que é a primeira vez que um jogador da
América do Sul foi eleito melhor do mundo.
QUINTERO
Que joga na América do Sul, querida.
REYNA
Demoraram mas reconheceram meu talento insuperável.
FEDERICA (a Quintero)
A humildade desse sujeito só é superada pela modéstia.
REYNA
O que eu posso fazer se os fatos me dão razão?
QUINTERO
Não deixo de reconhecer que você merece a Bola de Ouro, mas
cá entre nós eu acho que sua batalha épica contra Carlão é que
realmente pesa na balança.
REYNA
Invejoso. Se os eleitores fossem jogadores eu até concordaria.
FEDERICA
Quem é que vota nessa eleição?
Só treinadores.
QUINTERO
FEDERICA
Os dois estão errados. Se o Brasil não fosse bicampeão mundial
de clubes ninguém prestaria atenção em jogadores que jogam
aqui.
De repente, a música de fundo desaparece e começa a soar uma bateria, com
as batidas tradicionais que antecedem ocasiões muito esperadas, como nos
espetáculos circenses.
263
As luzes são reduzidas ao máximo. Vemos então que um enorme bolo de
aniversário, carregado por dois empregados da casa, aproxima-se devagar da
mesa onde está REYNA.
Atrás do bolo, carregando o troféu Bola de Ouro da FIFA, com um sorriso
maroto, vem Isabela. Na trilha sonora entra “WE ARE THE CHAMPIONS”, com
FREDDIE MERCURY (QUEEN).
Isabela entrega a ele o troféu, ele a beija e levanta a Bola de Ouro. Mais
flashes.
Acabando de cantar, todos batem palmas.
DJ
(em OFF)
Leonardo REYNA: o melhor jogador do mundo!
EXT. SEDE DO STF/BRASÍLIA – DIA.
Imagem do edifício sede do Supremo Tribunal Federal, na capital da República.
CLOSE-UP da placa, que identifica o prédio.
EXT. PILOTIS DO EDIFÍCIO SEDE DO STF/BRASÍLIA – DIA.
Vestido num terno azul marinho bem cortado, REYNA está saindo do prédio,
acompanhado do advogado MAURÍCIO MONTEIRO. A alegria de Leo contrasta
com a expressão fechada de Maurício. O advogado acende um cigarro, começa
a fumar; os dois param para conversar.
MAURÍCIO
A guerra não acabou, Leonardo. Não pense que eles vão
deixar barato essa vitória.
REYNA
Os caras ainda podem recorrer? Aqui não é o fim da linha?
MAURÍCIO
Não é disso que eu estou falando. Sentença do STF é final.
Não tem recurso.
REYNA
Qual é a encrenca então?
MAURÍCIO
O advogado do outro lado é um velho conhecido meu, foi
colega de faculdade. Ele se abriu comigo, em nome dos velhos
tempos. Eles já sabem da sua ideia de fazer a CPI.
264
REYNA
Tudo bem. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
A decisão do Tribunal não vai entrar imediatamente em vigor?
MAURÍCIO
Não é tão simples. Eles vão recorrer. Há muitos instrumentos
jurídicos que eles vão poder usar.
REYNA
Uma espécie de Tapetão? Aqui também tem isso?
MAURÍCIO
Na prática sim. As decisões aprovadas em plenário serão
publicadas com texto final do relator. E isso leva mais um mês.
REYNA
O relator é amigo de minha mãe e vai entregar rapidinho o
relatório.
MAURÍCIO
Depois há os embargos declaratórios e os embargos infringentes.
Isso morde?
REYNA
MAURÍCIO
Não se esqueça de que o outro lado tem os melhores advogados
do país.
REYNA
Tem nada. O melhor é você. Nós ganhamos.
MAURÍCIO
A pressão popular é que ganhou. Se você não tivesse mobilizado
as pessoas nas redes sociais eletrônicas não teríamos nem três
votos.
REYNA
Eu não mobilizei ninguém, Maurício. As pessoas querem ver o
futebol brasileiro moralizado. Os ministros também gostam de
futebol.
MAURÍCIO
No Congresso não vai ser tão fácil, pode apostar. Não acredite
muito nessa CPI.
REYNA
265
A pressão popular também vai funcionar lá. Vou procurar ajuda
de gente que entende. Vamos ganhar lá também.
MAURÍCIO
Acho que você deve contratar um escritório de lobby. Não é fácil
criar uma CPI. A bancada da bola dança com a música de Carlão.
Ele é deputado, cuida do curral com mão de ferro.
REYNA
Acho lobby uma coisa podre. Não vou contratar nada.
MAURÍCIO
Fale com sua mãe antes de descartar a ideia. Ela conhece
Brasília melhor do que você.
REYNA
Não acredito que ela tenha coragem para sugerir uma coisa
dessas. E se sugerir vai ser perda de tempo. Lobby é coisa de
gente que não bote colocar a cabeça no travesseiro e dormir em
paz.
MAURÍCIO
(para subitamente)
E não é só isso. Você tem que se preparar para o pior.
REYNA
Pior de que jeito? Só falta me matarem. É nisso que está
pensando?
MAURÍCIO
Nem tanto. Mas não duvide da falta de escrúpulos dessa gente.
Você está contrariando interesses poderosos, meu caro. Não é só
seu amigo Carlão. Ele é só a ponta do iceberg.
REYNA
Exatamente do que você está falando?
MAURÍCIO
Você vai ter que encerrar sua carreira de bad boy. Trate de virar
o cara mais caseiro do mundo. Evite esses programas noturnos,
leve uma vida mais discreta. Recatada mesmo, eu diria. Case-se.
REYNA (ironizando)
Frequentar a igreja também? Catecismo?
MAURÍCIO
266
Eu estou falando sério, Leonardo. Essa gente não está
acostumada a perder. Mal perderam aqui e você vem com essa
estória de CPI.
REYNA
O problema de vocês advogados é que sempre esperam o
pior. É exatamente o contrário de nós médicos.
MAURÍCIO
Eu não estou pensando no pior. Essa turma não vai mandar
matar você, Leonardo.
REYNA
Fala sério, meu amigo. O que é que pensa que essa máfia
pode fazer a essa altura do campeonato?
MAURÍCIO
Desmoralizar você. Destruir sua reputação. Desconstruir sua
imagem.
REYNA
Eu não sou candidato ao prêmio Nobel. E não sou exatamente
santo.
MAURÍCIO
Mas está querendo investigar os malfeitos de quem está
mandando há mais de 30 anos. Desmoralizar você é a mesma
coisa que desmoralizar as coisas que você defende.
REYNA
Menos, doutor Maurício. Menos. Sem paranoia.
Um grupo grande de jornalistas (TV, imprensa e rádio) vem em direção a REYNA.
Muitos microfones surgem à frente do rosto de REYNA num passe de mágica: é
uma típica entrevista coletiva feita às pressas, sem organização.
REYNA
Não vou dar nenhuma declaração agora. Tenho que ir pra São
Paulo agora mesmo. Tenho concentração. Jogo amanhã à
noite.
REPÓRTER UM
Só uma pergunta, REYNA. Por favor. Precisamos levar alguma
coisa para a redação.
REYNA
267
Falem com Carlão. Ele adora falar com vocês (faz sinal,
apontando um grupo que se aproxima). Não vai dar mesmo. Eu
preciso ir para o aeroporto. (pausa) Táxi!
Ele vê um táxi, faz sinal e corre para o carro, sempre acompanhado pelo
advogado. ENTRAMOS com REYNA e Maurício no táxi. Já acomodados,
continuam a conversa.
MAURÍCIO
Você fez mal em não falar com eles. Agora vai ficar só a
versão dos cartolas. Aliás, de onde é que vem esse nome?
Cartola?
REYNA
E eu sei lá? Imagino que é porque os dirigentes são gente
fina, do tipo que usava cartola. (pausa) Eles que falem o que
quiser. O problema agora não é meu.
O carro se afasta rapidamente.
PONTO DE VISTA de REYNA, no carro: os jornalistas cercam um representante
dos dirigentes de clubes de futebol.
Um homem se destaca no grupo que sai do tribunal. É CARLÃO. Alto, forte, voz
grossa, uma presença física que impõe respeito.
CARLÃO (descontraído)
Vamos organizar esse negócio, pessoal. Falo primeiro com o
pessoal da TV, tá certo? Depois rádio e depois imprensa.
Senão vira um tumulto. Não adianta.
REPÓRTER UM
Como a Liga vê a sentença do tribunal?
CARLÃO
Sentença do STF é para cumprir. Os ministros não entendem
a dimensão prática da decisão que tomaram. Lamento o que
foi decidido. Vai haver muito prejuízo para os torcedores, não
só para os clubes.
REPÓRTER UM
Por que os torcedores vão ser prejudicados?
CARLÃO
Vamos ter que reduzir o número de clubes no campeonato.
Com um jogo por semana não há outro jeito. Os torcedores
dos times que vão sair do campeonato devem ir tomar
268
satisfações com o REYNA. Ele é que aprontou essa confusão
toda.
REPÓRTER DOIS (mulher)
O tribunal não proibiu mais de um jogo por semana,
presidente. Proibiu que os jogadores façam mais do que duas
partidas na semana.
CARLÃO
(irritado com ela)
De que lado você está, querida? Na prática proibiu sim. Não
dá para fazer um jogo com o time titular e outro com o
reserva.
REPORTER TRÊS
Há quem acredite que o campeonato vai ficar melhor.
CARLÃO
Quem é que vai explicar isso para os torcedores dos times que
caírem para a segunda divisão?
REPÓRTER DOIS
A Liga está por trás do projeto de lei que na prática vai alterar
a decisão do Tribunal?
CARLÃO
Não respondo mais nenhuma pergunta dessa moça. Não me
encham saco. Acabou. Não tem mais entrevista. (empurra os
jornalistas e sai irritado)
INT. CARRO DE CARLÃO/BRASÍLIA – DIA.
Carlão entra no carro e recebe uma pasta que a mulher que parece estrangeira
– KATE – lhe entrega. Ele olha a pasta, examina os papéis. Não olha para trás.
CARLÃO (ao motorista)
Dê uma volta e depois vá para o Congresso.
KATE
(sotaque forte, inglês)
O site está pronto para entrar no ar. Inglês, espanhol e
português.
E as reportagens?
CARLÃO
KATE
269
Os principais jornais da Inglaterra, da Espanha, da Alemanha
e da França. Além das agências de notícias.
TV?
CARLÃO
KATE
BBC e CNN. Mas só depois da publicação nos jornais e
revistas. Já está acertado. Vão pegar o depoimento de SILVIO
SCALIONI.
CARLÃO
Bom trabalho. Show de bola. Foi complicado?
KATE
Não sei dizer. A empresa de Londres é que cuidou de tudo.
Eles cobram caro, mas são os melhores do mundo na área de
Relações Públicas. Vai valer a pena.
CARLÃO
Tem que valer. Se apertarem os ingleses tem alguma chance de
chegarem a mim?
KATE
Nenhuma. Um amigo de confiança é quem fez todos os contatos.
CARLÃO
Aquele de Genebra que usamos para fazer aquele trabalho para
a Liga Mundial?
CARLÃO
Não. Outro. Sérvio, colega de faculdade também. Pode ficar
tranquilo. Não vai ficar nenhum vínculo com você ou com o
Brasil.
CARLÃO
Se pesquisarem o site eles vão chegar a quem?
KATE
Um Zé ninguém espanhol, que nunca ouviu falar de você.
Fique tranquilo, Carlão. Segurança 100%.
CARLÃO
Vamos recorrer no Tribunal?
KATE
Não tem jeito. Mas dá para protelar até o fim do campeonato.
270
CARLÃO
Não vou preso se não mudar nada no campeonato?
KATE
Pode ficar tranquilo. Sem chance.
CARLÃO
Avise ao Madureira que vai ficar tudo como dantes no quartel de
Abrantes.
KATE
O convite do UNICEF está programado para daqui a duas
semanas. Chequei ontem com nosso pessoal de Nova York.
REYNA já foi sondado e aceitou. Claro.
CARLÃO
(volta-se para ela)
Esse convite não pode sair. O filho da mãe só ganhou na
Justiça porque mobilizou a opinião pública. Essa CPI não pode
sair. Não subestime o sujeito.
KATE (sorri)
Nunca se sabe o que passa pela cabeça daqueles caras. São
europeus. Se fossem americanos o assunto estaria resolvido.
CARLÃO
Vá para Londres e faça barulho. Amplie ao máximo que você
puder a repercussão das notícias. Quero que o filho da puta
seja o assunto da semana.
KATE
E a verba para nossa bancada? Madureira é pão duro demais.
Desse jeito não dá para trabalhar.
CARLÃO
Era só até o Tribunal definir a posição final. Fale para seu marido
que está liberado.
INTERVALO.
PARTE III (Ato II, primeira metade) – 10 MINUTOS.
EXT. FOLHA DO RIO/RIO DE JANEIRO – NOITE.
Imagem externa do jornal, cuja sede é majestosa.
INT. SALA DE ISABELA/FOLHA DO RIO – DIA.
Isabela ocupa agora a sala do antigo diretor de redação, ARIEL PEÇANHA. Ela
está reunida com o editor-executivo, JONAS LIPIANI.
271
ISABELA
Pare de dar voltas e vá direto ao assunto, Jonas. Conheço você
de outros carnavais.
JONAS
(entrega a ela algumas folhas de papel A4)
Recebi agora a pouco esse material da agência.
ISABELA
(começa a ler)
Meu Deus.
Jonas levanta-se e dirige-se para a porta de saída da sala.
ISABELA (compenetrada)
Não vá. Quero falar com você. Um minuto.
Ela continua lendo. Não fala nada durante 10 segundos.
ISABELA (mais tranquila)
Confirme se isso é mesmo da agência. Pode ser coisa de hacker.
JONAS
Liguei lá e falei com Jeremy. O material é genuíno.
ISABELA (suspira)
Você tentou saber qual é a fonte?
JONAS
Claro. Mas ele não abriu. É confiável. O material é genuíno.
Infelizmente. O que eu faço com isso?
ISABELA
(custando para conter o choro)
O que você acha?
JONAS
A gente tem que publicar. Eu mesmo vou ouvir Leo, se você não
se importar.
ISABELA
Pode deixar. Eu mesmo cuido disso.
Primeira página?
JONAS
ISABELA
272
Naturalmente. Preciso só de uma hora. Mande o arquivo para
minha caixa postal.
JONAS
Está lá. Sinto muito, Isabela. De coração.
ISABELA
(com os olhos molhados)
Eu sei. Obrigado, querido.
Jonas sai. Ela fica sozinha. Levanta-se e fecha as persianas que impedem que
seja vista pelos que estão na redação. Começa a chorar, desaba.
INT. APARTAMENTO DE FEDERICA/LEBLON – NOITE.
Quintero e REYNA estão na sala. REYNA com o inseparável charuto.
QUINTERO
FEDERICA volta amanhã. O corpo vai ser cremado. André não
queria enterro.
REYNA
Bom sujeito. Deve ter morrido feliz. Não é todo mundo que
consegue realizar seu sonho.
Uma empregada uniformizada aproxima-se de REYNA, tira do ganho um
telefone e entrega o aparelho a ele.
Sua esposa.
EMPREGADA
QUINTERO
Engraçado. Não ligou no celular.
REYNA
Isabela detesta celular. Só usa se não tiver outro jeito. Dá
licença. (a Isabela) Oi, minha linda. Tudo bem? Não. Pode falar.
(assusta-se) Como? Não pode ser. Não é verdade. Devem ser fotos
antigas, só pode ser. Pode parar! Você está acreditando nessa
merda? Está? Não vou falar merda nenhuma!
Visivelmente alterado, REYNA bate o telefone com violência.
QUINTERO
O que foi? O que é isso, Leo?
REYNA
(respirando fundo)
273
Uma agência de notícias preparou um material sobre mim.
QUINTERO
Que tipo de material? Montagem?
REYNA
Não. Coisa antiga. De antes de meu casamento. Mas ela disse
que tem coisa recente também. Uma merda completa. Parece
que é daquela festa na casa do Marcelinho.
QUINTERO (em pânico)
Aquela que em que eu fui com você?
REYNA
(passando a mão na cabeça)
Só pode ser. Depois que me casei foi a única festa em que fui
sem Isabela.
REYNA levanta-se.
QUINTERO
Eu sabia que ia dar merda. Quem terá sido o filho da mãe que
fotografou a gente? FEDERICA vai me matar.
REYNA
Nessa altura do campeonato não faz diferença. Alguém armou
para gente.
QUINTERO
Tem certeza que eu também estou nas fotos?
REYNA
Isabela disse que sim.
QUINTERO
Você cheirou aquele dia?
REYNA
Olha que merda. Cheirei sim. A primeira vez. Acredita?
E eu?
QUINTERO
REYNA
Bom será se você não apareceu fantasiado de baianinha. Aquela
noite foi uma loucura. (ri, sem graça) Pelo menos valeu a pena. Foi
bom demais.
274
QUINTERO
Você ficou maluco? Valeu a pena merda nenhuma! O que a
gente vai fazer agora?
REYNA
Eu achei que só tinha foto antiga e neguei. Eu estou ferrado,
meu amigo. Você nem tanto.
QUINTERO
Ela é que disse isso?
REYNA
Você não apareceu em nenhuma cheirando. Só eu. Uma
escapada não mata ninguém.
Quintero serve-se de um uísque.
REYNA
Não faça isso, Zé. Essa merda corta o efeito dos remédios. Você
precisa estar lúcido. Eu preciso.
QUINTERO
O que você vai fazer?
REYNA
Agora? Nada. Falei para Isabela que não vou falar nada. E não
vou sofrer por antecipação. Amanhã eu convoco uma coletiva e
falo a verdade. Já é resultado da CPI. Fazer o quê?
QUINTERO
Eu vou com você. Entramos nessa junto. Vamos sair juntos. E a
merda do antidoping?
REYNA
Eu estava suspenso por dois jogos. Não tem esse risco. Sabe de
uma coisa?
O quê?
QUINTERO
REYNA
Eu vou sozinho para a coletiva. O destaque sou eu. Fique quieto
e eu falo por você. Limpo a sua barra.
QUINTERO
Nem pensar. Vou assumir minha responsabilidade.
REYNA
275
Os caras da imprensa vão te cercar no clube. Você vai ter que
falar, de qualquer jeito. Vão querer ouvir você. Vamos separar as
duas coisas. É melhor. Vou falar com um amigo jornalista. Ele
prepara a coletiva. Vamos deixar o time de fora dessa encrenca.
QUINTERO
Que merda! Porque acontece uma coisa dessas logo agora que
está tudo bem? Só pode ser praga de TOMOKO.
REYNA
Bobagem. É armação. Coisa de Carlão. Convém você tomar um
supositório de tungstênio para criar coragem e avisar FEDERICA.
Vai que a imprensa chega nela no aeroporto?! Vai sobrar para o
Marcelinho também.
QUINTERO
Quer saber de uma coisa? Vamos encher a cara. Marque essa
merda de coletiva para a tarde. Eu vou com você. Vou
apresentar minha demissão.
REYNA
Deixe de ser besta, Zé. Uma escapada não é contra a lei.
QUINTERO
Eu sou diretor técnico do clube. Estava junto com você. Não
posso continuar depois disso. Em tese fui leniente indo numa
festa dessas.
REYNA
Não faça essa bobagem. Vamos avaliar a repercussão. Talvez
não seja preciso fazer uma coisa tão radical.
Já descontraído, olha para ele e faz um sinal com o dedo indicador, de
baixo para cima: uma menção à brincadeira do supositório. Os dois
riem com vontade. Quintero serve uma dose para REYNA e os dois
brindam.
Posso dormir aqui?
REYNA
QUINTERO
Sem problema. Mas isso não vai piorar ainda mais as coisas?
REYNA
Isabela não confiou em mim. Não quero conversa com ela.
QUINTERO
276
Experimente se colocar no lugar dela. É natural que ela fique
brava com você.
REYNA
Natural merda nenhuma. Ela tinha que ficar do meu lado. Estão
sacaneando a gente. Não é hora para ter ciúme bobo.
EXT. BAÍA DE GUANABARA/RIO – TARDE.
Um calor insuportável. Movimento intenso.
INT. LANCHONETE/RIO DE JANEIRO – DIA.
Madureira está tomando um café na lancho-te que fica em frente à sede da
Liga Nacional. A televisão está ligada. Na tela VEMOS um trecho da coletiva de
REYNA.
REYNA
(na TV, cercado por microfones)
As imagens são verdadeiras. Assumo integralmente isso. A maior
parte foi feita há quase quatro anos, mas tem fotos recentes. A
festa aconteceu mesmo na casa de um colega. Nunca usei droga
antes. Provavelmente ninguém vai acreditar, mas é a verdade.
Sou médico, sei o mal que pode causar.
REPÓRTER
Por que você cheirou então?
REYNA
Eu estava embriagado. Cheiraria até o sovaco de um bode
naquela noite. Quem me conhece sabe que sou fraco para
bebida. Eu estava revoltado com minha última suspensão e
resolvi tomar um porre. Sou humano, de carne e osso.
Madureira ri. Faz sinal a Leitão, que abaixa o som da TV.
MADUREIRA
Que decepção, caro amigo Leitão. Que decepção.
LEITÃO
Deixe de ser hipócrita, Madureira. Sei que você detesta esse
moço.
MADUREIRA
Eu não. Quem não gosta dele é Carlão.
LEITÃO
Qual é o problema dele com o moço?
277
MADUREIRA
Ele namorou a filha do chefe. E dispensou a menina, que tentou
suicídio de desgosto. Não fosse pouco, o sujeito ainda transou
com a namorada de Carlão.
LEITÃO
Isso é coisa de gente nova. Seu chefe deve ter feito isso demais
quando era jovem.
MADUREIRA
Chifre na cabeça dos outros não dói mesmo. Queria ver se a
cabeça enfeitada fosse a sua, Leitão.
INT. SALA DA CASA DE ISABELA – NOITE.
REYNA entra na sala devagar. A governanta CÉLIA o recebe.
REYNA
Boa noite, Célia. Isabela está em casa?
CÉLIA
Não, doutor. Ela disse que não queria encontrar com o senhor.
REYNA
Está certo. Vou pegar minhas coisas.
CÉLIA
(aponta várias caixas e malas)
Está tudo embalado e pronto para o senhor levar.
REYNA pega a mala menor, abre e dá uma espiada, fechando o zíper depois.
REYNA
Vou levar só essa. Mando alguém buscar o resto amanhã cedo.
Obrigado, Célia. Foi um prazer conviver com você.
CÉLIA
Eu lamento o que está acontecendo com vocês, doutor
Leonardo.
REYNA
Não lamente Célia. Essas coisas acontecem. (Vai até ela, dá um
abraço e um beijo) Fique bem, minha querida.
CÉLIA
Vá com Deus, doutor Leonardo.
INT. SALA/APARTAMENTO DE FEDERICA – NOITE.
278
Quintero e FEDERICA estão na sala. Ele muito constrangido. Ela tranquila.
FEDERICA
Você transou com aquela moça?
QUINTERO (cabisbaixo)
Não me lembro. Acho que devo ter transado. Estávamos todos
bêbados. Não sei o que dizer, amor.
FEDERICA
Não vamos transformar isso num drama de filme barato. Sei que
você é um sujeito correto, querido. Vamos tocar nossa vida em
frente. Temos três filhos para criar.
QUINTERO
Se eu pudesse voltar no tempo.
FEDERICA
Faria tudo de novo, querido. Acontece. Você usou camisinha?
Não me lembro.
QUINTERO
FEDERICA
Isso (ênfase aqui) é que é imperdoável. Vá amanhã ao laboratório
e faça um exame. Não quero pegar uma doença venérea ou
coisa pior.
QUINTERO
Não acho que há esse risco. Mas concordo. Você falou com os
jornalistas?
FEDERICA
Não entrei no mérito. Disse que o que aconteceu diz respeito à
vida pessoal de vocês dois. No que me diz respeito o assunto
está encerrado.
EXT. CONGRESSO NACIONAL/BRASÍLIA – DIA.
Uma imagem do Congresso Nacional. ZOOM numa janela do anexo principal.
INT. ENTRADA DO GABINETE DO SENADOR ALMEIDA RAMOS – DIA.
Estamos na entrada do Gabinete do presidente do Senado. CLOSE-UP na placa,
duas secretárias lindas na recepção.
INT. GABINETE SENADOR ALMEIDA RAMOS – DIA.
279
No espaçoso gabinete do SENADOR ALMEIDA RAMOS, presidente do Congresso
Nacional, Carlão (que é deputado federal) e um grupo grande de parlamentares,
representantes da chamada bancada da bola.
CARLÃO
Precisamos juntar nossas forças agora. Vocês devem isso ao
futebol brasileiro.
SENADOR ALMEIDA RAMOS
(forte sotaque nordestino)
Não vem com essa, deputado. Minha dívida com o futebol já
foi paga com juros e correção monetária.
DEPUTADO FREITAS JOBIM
Na Câmara rejeitamos fácil a CPI. No Senado não posso
garantir nada.
SENADOR ALMEIDA RAMOS
Estou negociando com bancada ruralista. Pode dar certo. Mas
é preciso saber que não vai ser mole. A imprensa está a favor
da CPI. Estão de olho em Carlão desde que ele ficou com
aquela grana da renda do amistoso contra os russos.
CARLÃO
Eu não fiquei com merda nenhum. Fui assaltado.
SENADOR ALMEIDA RAMOS
(sem convicção)
Está certo. Desde o assalto. O fato é que a imprensa está
querendo ver sangue.
CARLÃO
Estou defecando e andando para a imprensa, senador.
Lembre aos seus colegas que haverá outras eleições e nós
sabemos recompensar quem defende os interesses do futebol
brasileiro.
SENADOR ALMEIDA RAMOS
A imprensa segue a onda do que o povo está querendo. Não
dá para contar com o ovo no fiofó da galinha.
CARLÃO
Não vem com desculpa esfarrapada por que não vai colar.
Desmoralizei o sujeito. É brincadeira de criança aprovar matar
essa CPI. Ninguém dá a menor pelota para viciado em
entorpecente.
SENADOR ALMEIDA RAMOS
280
Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Aquele jogador
está bancando a vítima. Deve ter aprendido com o deputado
Jobim, mestre nessa arte.
CARLÃO
Já distribuí a bonificação a toda a bancada. Não quero saber de
conversa fiada. Vou segurar a onda no Tribunal até o final do
ano. Quero a CPI morta e enterrada e não vou abrir mão disso.
Tratem de trabalhar.
SENADOR ALMEIDA RAMOS
Bonificação de merda, diga-se de passagem. Você acha que é
assim? Dá um trocado aqui, outro ali e vai colocar exgovernador, ex-ministro, trabalhando para defender seus
interesses? O Senado é o Senado. A Câmara é a Câmara.
DEPUTADO FREITAS JOBIM
Vamos falar claro. Na Câmara a gente segura a onda. Deputado
é mais barato do que Senador. Qualquer troco e a gente fica
feliz. Senador é mais exigente.
CARLÃO
Pois a gente vai aumentar a bonificação dos senadores. Não
quero deixar nenhuma desculpa para esses senadores de
merda. Deixem comigo. Vou dar um pau nesse jogadorzinho
de merda.
SENADOR ALMEIDA RAMOS
Vá com calma, Carlão. Você não aprende mesmo, hein? O
garoto tem costa quente. Não cutuque o diabo com vara curta
por que você vai se danar. A mãe dele é judia, tinhosa, tem
muito senador na mira. Não prejudique os interesses da Liga
levando as coisas para o plano pessoal.
CARLÃO
Pra você pode não ser. Pra mim é. E não se meta a me dar
ordens, senador. Quem dá ordens aqui sou eu.
SENADOR ALMEIDA RAMOS
Calma, Carlão. Não falei por mal.
INTERVALO.
PARTE IV (Ato II, segunda metade) – 10 MINUTOS.
INT. ARENA MARACANÃ – NOITE.
REYNA comemora um gol com aquele gesto que é a marca registrada dele:
uma corrida curta, com o braço levantado, punho cerrado.
281
A torcida do BRASIL FC grita enlouquecida: vemos REYNA ser abraçado pelos
colegas. Ele grita algumas palavras: parece desabafar. Depois do gol, cercado
pelos colegas, ele pega a camiseta, no escudo, e mostra para a torcida.
A ovação aumenta. Ele olha para a CAM que se aproxima, agarra o escudo do
BRASIL e grita, com muita raiva:
REYNA
(no fundo, o barulho ensurdecedor da torcida vibrando)
Você vai ter que me engolir! Filho da mãe!
Fusões consecutivas mostram REYNA comemorando outros gols, sempre
cercado pelos companheiros, sempre desabafando, provocando Carlão (anda
como um gorila), em CAM LENTA.
INT. VESTIÁRIO/ARENA MARACANÃ – NOITE.
REYNA e os companheiros no vestiário. Ele e Lucas, goleiro do time,
conversam. Estão relaxando em banheiras de hidromassagem. REYNA com o
charuto acesso.
LUCAS
Você viu o tal site na Internet?
REYNA
Vi. Muito bem-feito. Coisa de profissional. Já botei a boca no
trombone. Se fosse coisa de torcedor do Atlético não seria tão
bem feito. Cheio de depoimentos de gente que me detesta.
LUCAS
Eu apareço em algum dos vídeos?
REYNA
Claro. Você não é invisível. Mas só nos mais antigos. Ficou até
bem na foto. Bonitão. Fique tranquilo.
LUCAS
E Isabela?
REYNA
No canto dela. E eu no meu.
LUCAS
Deixe de ser teimoso, Leo. Ela tem razão. Mulher não aceita esse
tipo de coisa.
REYNA
A sua aceita. FEDERICA aceitou. Por que ela não pode aceitar?
282
LUCAS
Cada uma reage de um jeito. Você sabe. Não é burro. É pura
teimosia. Faça um aceno de paz. Não vale a pena ficar brigado.
Você não para de pensar nela.
REYNA
Você combinou com Quintero? Ele fica falando isso no meu
ouvido a noite toda.
LUCAS
Por que ele é seu amigo. Gosta de você.
EXT. ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS/BRASÍLIA – NOITE.
Uma visão geral da esplanada. Imagens do Ministério da Justiça, do Itamaraty,
do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e, por fim, do STF.
EXT. RESTAURANTE DE BRASÍLIA – NOITE.
O ambiente é refinado. A ministra Ana REYNA está jantando com o advogado
Maurício Monteiro e com o jornalista Herbert Carvalho, grande especialista em
gestão de imagem, contratado pela ministra para cuidar da imagem de REYNA,
a contragosto dele.
ANA REYNA
Precisamos fazer alguma coisa. E rápido.
HERBERT
Se Leonardo continuar se recusando a fazer a parte dele não
há milagres que possam ser feitos, ministra.
MAURÍCIO
A senhora não falou com ele?
ANA REYNA
Ele é teimoso como o pai. É o sangue espanhol. Se fosse fácil
eu não estaria aqui com vocês dois agora. Vocês são os
melhores. São pagos para fazer milagres.
HERBERT
Seu filho não é santo, ministra. Não dá pra fazer a
canonização dele.
Nunca chegou
concentração.
MAURÍCIO
atrasado num
HERBERT
treino.
Nunca
fugiu
da
283
Tem certeza?
MAURÍCIO
Aquela vez na seleção não conta.
ANA REYNA
Nunca machucou um colega de trabalho. Há coisa boa pra ser
trabalhada, Herbert.
HERBERT
Pelo menos a torcida adora Leonardo do jeito que ele é.
Nenhum patrocinador reclamou até agora. É interessante isso.
ANA REYNA
Mas não são os patrocinadores nem a torcida que vão levar
Leonardo de volta à seleção. Trate de fazer as suas bruxarias,
meu caro. E faça rápido.
HERBERT
Não adianta insistir com o UNICEF. Se o comportamento
público dele não for impecável fora de campo não vira
embaixador deles nem daqui a vinte anos.
ANA REYNA
Ele é o maior artilheiro da história dos campeonatos
brasileiros. É solteiro, não tem trinta anos. Dá cursos de
futebol nas favelas nas horas de descanso. Está sempre
associado a causas de defesa das crianças. O UNICEF há de
reconhecer isso.
MAURÍCIO
Faz contribuições espontâneas para instituições de caridade
desde os 18 anos. Isso tem que fazer a diferença.
HERBERT
Só que ele não me deixa trabalhar com isso. Não posso
divulgar essas coisas. Ele acha que é demagogia. A senhora
tem que falar com ele. O trabalho com as crianças faveladas,
por exemplo. Isso dá reportagem internacional. Vai sensibilizar
o UNICEF.
ANA REYNA (levanta-se)
Leonardo detesta a minha interferência. A partir de agora
você faz as coisas com ou sem autorização dele. Eu decido e
ponto final. Divulgue tudo o que achar que é adequado. Ele
quer a seleção, eu quero o UNICEF.
MAURÍCIO
284
Ele não vai aceitar, ministra. Vamos ter problemas. Essa
estória da CPI vai acabar com qualquer coisa que a gente
fizer. A briga agora não é só com Carlão.
ANA REYNA
Eu me entendo com ele, não se preocupe. Meu filho é um
ingênuo, um sonhador. (a Herbert) Quero resultados e quero
rápido. Quero você 24 h por dia cuidando da imagem de meu
filho. Não perca tempo conversando com ele. (a Maurício) E
você continue negociando com os cartolas. Eles têm que
suspender esse veto. Diga ao senador Almeida Ramos que
vou trabalhar contra eles se não removerem o veto na
seleção. Não vou fazer nada ilegal, mas vou acompanhar no
detalhe cada causa que interessar a eles. Dê esse recado a
ele, meu filho.
HERBERT
O problema é que Carlão manda nele. Manda na bancada inteira.
MAURÍCIO
O recado vai ser dado. Mas não se iluda, ministra. Eles têm
poder pra fazer o que quiserem. E a verdade é que seu filho
não ajuda nem um pouco.
EXT. NIGHTCLUB DE COPACABANA/ZONA SUL/RIO – NOITE.
REYNA está saindo, visivelmente bêbado. Olha para a rua, procurando um taxi.
Dois travestis aproximam-se dele.
TRAVESTI UM
Vamos dar uma volta, bonitão?
TRAVESTI DOIS
Você vai adorar fazer um sanduba com a gente, querido.
REYNA
Agradeço de coração o oferecimento das meninas, mas sou um
homem comprometido. Outro dia, quem sabe?
TRAVESTI UM
(tenta abraçar REYNA)
Deixe de onda. A gente sabe que você separou da mulher.
Vamos lá. Você não vai se arrepender.
REYNA
(afasta-se, mas não consegue evitar o abraço)
Vamos com calma, minha filha. Não me toque, por favor.
285
TRAVESTI DOIS
Qual é bonitão? Vai rejeitar minha amiga, é?
Gostoso.
TRAVESTI UM (beija REYNA)
REYNA limpa os lábios rispidamente.
Um dos travestis coloca alguma coisa no bolso da camisa dele.
Tudo acontece muito rapidamente: REYNA e os travestis são cercados por
policiais civis, que apontam armas. Um deles é DANILO, que aparece no
episódio IV.
DANILO
Polícia! Todo mundo quietinho! Bem quietinho!
REYNA
Calma, policial. Fique calmo que aqui não tem problema.
O POLICIAL DOIS vai direto ao bolso da camisa dele e retira o que parece ser –
CLOSE-UP – um papelote de cocaína.
POLICIAL DOIS
Muito bonito amigão. Pensando em fazer uma farra com as
meninas?
REYNA
Isso não é meu! Foi você que colocou isso aí!
TRAVESTI UM
Foi nada, moço. Você até ofereceu pó pra gente.
REYNA
É mentira! Isso é armação!
REYNA é algemado por DANILO.
TRAVESTI UM
Eu sou testemunha, doutor. Olha aqui o dinheiro que ele deu pra
gente (mostra duas notas de mil reais).
CAM AFASTA-SE e enquadra toda a movimentação de longe. Num carro da
Polícia Civil alguém observa a cena de longe: é o Delegado Peixoto, nosso
conhecido do episódio IV. ENTRAMOS NO CARRO DELE.
DELEGADO PEIXOTO (ao celular)
286
Madureira? Peixoto. O pássaro está na gaiola. Pode mandar a
imprensa na DP. Estou indo pra lá agora.
REYNA é colocado num camburão junto com os dois travestis. A viatura parte
em alta velocidade.
EXT. DELEGACIA DE POLÍCIA/ZONA SUL/RIO – NOITE.
A área externa da delegacia está cercada de repórteres. Vários carros de
externas: o circo está montado para repercutir a prisão de REYNA.
O camburão chega e ele é retirado da viatura, juntamente com os travestis. Os
refletores estão ligados. Os travestis ajeitam as roupas, retocam a maquiagem
(não estão com algemas, como REYNA).
Os repórteres estão isolados: só podem gravar imagens à distância. O
delegado Peixoto chega e se aproxima dos jornalistas.
DELEGADO PEIXOTO
Vamos com calma, pessoal. Eu vou saber o que foi que houve e
prometo que deixo vocês trabalharem. Por ora vocês ficam aqui.
REPÓRTER UM
Leonardo REYNA foi pego com drogas, delegado?
REPÓRTER DOIS
Ele estava com os travestis num motel, delegado?
DELEGADO PEIXOTO
Depois. Depois eu falo com vocês.
Ele entra na delegacia e os jornalistas são impedidos de entrar.
INT. DELEGACIA – NOITE.
REYNA está sentado diante do delegado Peixoto. Estão a sós.
DELEGADO PEIXOTO
Que papelão, doutor REYNA. Um sujeito como o senhor andando
com gente dessa espécie.
REYNA
Vamos deixar de teatro que ninguém está ouvindo a gente.
Ambos sabemos que isso foi armado. Quero saber quando é
posso chamar meu advogado.
DELEGADO PEIXOTO
287
Todos sempre dizem a mesma coisa. Vocês viciados em
entorpecentes poderiam ser um pouco mais criativos. Você vai
falar com seu advogado sim, mas vai ser na hora em que eu
quiser.
REYNA
O senhor não tem vergonha de participar de uma coisa sórdida
assim?
DELEGADO PEIXOTO
Nem um pouco. Pessoas como você fazem mal para o futebol.
Não vou deixar meu time cair para a segunda divisão depois de
tudo que tivemos que fazer para evitar isso.
REYNA
Estou me lembrando de onde conheço você. Foi na casa do Juiz
Falcão, tio de minha mulher. Você é diretor do Atlético.
DELEGADO PEIXOTO
Vice-presidente não remunerado. Mas aqui sou delegado. Para
quem fica aqui eu sou Deus. Eu decido quem é bom e quem é
ruim. E você é traficante de droga.
REYNA
Você não passa de um servidor público corrupto e mal
remunerado. Quanto levou para armar essa contra mim?
DELEGADO PEIXOTO
Trate de ficar bem comportado ou você vai ter uma nova
orientação sexual quando sair daqui. Estamos entendidos?
REYNA
Não se esqueça de que eu sou médico. Tenho direito a cela
individual. A Constituição me garante isso.
DELEGADO PEIXOTO
Você vai ter sua cela. Mas antes pode fazer um estágio nas que
ficam ali no fundo. Tem 50 presos em cada uma. Separei por
torcida. Gosto de tratar bem meus companheiros de time.
REYNA
Carlão ameaçou o Cão de rebaixamento quando a lei mudar? É
isso?
DELEGADO PEIXOTO
Esse pó que você levava pode complicar a sua vida. Nem mamãe
vai poder ajudar.
288
REYNA
Carlão não tem peito para rebaixar o Cão, delegado. É conversa
fiada dele.
DELEGADO PEIXOTO
Tem sim, infelizmente. Ele está com a faca e o queijo na mão e
você é que colocou a faca na mão dele.
REYNA
Ninguém tem peito para fazer uma coisa dessas de forma
arbitrária com a maior torcida do Brasil. Nem um imbecil como
Carlão.
DELEGADO PEIXOTO
Quero propor um trato. Não pense que gosto de fazer esse tipo
de coisa. Sou um sujeito decente. Não tive alternativa, acredite.
Que trato?
REYNA
DELEGADO PEIXOTO
Eu só faço questão que a imprensa saiba que você foi detido por
SUSPEITA (ênfase aqui) de posse de droga e por brigar com os
travecos. Arrumo uma desculpa qualquer e solto você.
REYNA
Sei. E eu entro com o rabo. Não estou vendo vantagem
nenhuma.
DELEGADO PEIXOTO
Você escapa do flagrante. Fica a sua versão contra a versão dos
travestis. É palavra contra palavra. Os travecos tem
antecedentes, você é limpo.
REYNA
E eu esqueço essa conversa que estamos tendo.
DELEGADO PEIXOTO
Estou disposto a aceitar sua palavra. Carlão está chantageando o
Atlético, mas posso convencê-lo de que não foi possível prender
você.
REYNA
Posso falar com meu advogado?
DELEGADO PEIXOTO
Pode. (oferece o celular a ele) Estou ali fora. Acabando de falar me
avisa (sai da sala).
289
INT. QUARTO DE ISABELA – NOITE.
Isabela está dormindo. Abajur acesso. Toca o telefone, ela atende.
ISABELA (acordando)
Jonas? O que houve? O Brasil declarou guerra ao Paraguai?
VAMOS à redação da Folha do Rio. Jonas ao telefone, numa redação com dois
ou três gatos pingados.
JONAS
Desculpe acordar você essa hora.
DE VOLTA à casa de Isabela.
Tudo bem. Fala.
ISABELA
JONAS
(em OFF)
Um sujeito ligou aqui há poucos minutos e disse que colocou um
vídeo bem interessante na Internet.
INT. SALA DO DELEGADO PEIXOTO – NOITE.
REYNA está terminando a conversa com Maurício.
REYNA (algemado)
Tudo bem. Mas o tal delegado disse que iria me colocar numa
cela cheia de torcedores do Atlético.
MAURÍCIO
(em OFF, voz metálica)
Como? Torcedores do Atlético?
REYNA
O sujeito é diretor do Atlético. Disse que divide os presos de
acordo com o time. Tem cabimento uma coisa dessas? Falei. Mas
ele repetiu a ameaça. OK, Maurício. Vou fazer o que você está
mandando. Se eu perder a minha virgindade, coloco na sua
conta e depois cuido da sua, OK? (desliga o celular) Delegado!
PEIXOTO volta.
DELEGADO PEIXOTO
E aí? Trato feito?
REYNA
290
Meu advogado acha que você está blefando. Ele está vindo para
cá. Tenho o direito constitucional de ficar numa cela individual.
DELEGADO PEIXOTO
Depois não diz que não avisei. Danilo! Vem cá Danilo!
O policial Danilo entra.
DELEGADO PEIXOTO
Pode recolher nosso craque. Coloca na cela dois.
DANILO
Tem certeza, doutor Peixoto? Cela dois?
DELEGADO PEIXOTO
Você acha que eu cheguei até aqui sem ter certeza de alguma
coisa? Vá logo. Leva o rapaz. O advogado dele está chegando.
Avise a turma que eles têm no máximo 20 minutos de diversão.
Danilo puxa REYNA.
REYNA
Você vai se arrepender, Delegado. Isso não vai ficar barato.
DELEGADO PEIXOTO
Nem um minuto a mais, Danilo.
Danilo e REYNA saem.
EXT. AV. NOSSA SENHORA DE COPACABANA/RIO – NOITE.
O carro dirigido por Maurício avança em alta velocidade pela avenida, que tem
pouco movimento naquela hora. O sinal fecha. Maurício para o carro,
impaciente. Ao lado dele, uma viatura faz sinal para ele estacionar. Os dois
carros estacionam e um policial desce da viatura, caminhando na direção de
Maurício.
INT. CORREDOR DA DELEGACIA – NOITE.
Danilo empurra REYNA. Duas celas lotadas. Dois outros policiais fortemente
armados acompanham REYNA e Danilo.
A porta de uma das celas é aberta. Sob a ameaça das armas dos dois
carcereiros os presos afastam-se da porta, abrindo espaço para a entrada de
REYNA: há pouquíssimo espaço dentro da cela.
DANILO
291
Atenção rapaziada. O rapaz aqui é gente fina, jogador de
futebol. Já avisei a ele que a maioria esmagadora de nossos
hóspedes é torcedor do Atlético. Acho que se vocês quiserem dá
pra convencer o rapaz a sair do Brasil e ir jogar no Cão. Tratem
bem o novo hóspede, OK? Quem cuidar bem dele vai ganhar
ponto com o Doutor Peixoto.
REYNA, lívido, entra devagar, fitando as expressões dos presos: todos
estão de olho nele. Danilo tranca a porta e sai.
INTERVALO.
PARTE V (Ato III) – 10 MINUTOS
INT. QUARTO DE ISABELA – NOITE.
Isabela levantou. Ainda está de pijama.
ISABELA
Que loucura. Leo deve estar preso. Você checou se o vídeo está
mesmo na Internet? OK. Descubra em que delegacia ele está.
Por favor. Obrigado, Jonas. Nem sei como agradecer você.
VOLTAMOS À CELA EM QUE REYNA FOI COLOCADO.
Dois homens aproximam-se de REYNA, com cara de poucos amigos.
Subitamente uma voz é ouvida na cela.
VOZ
Vamos com calma, rapaziada. O rapaz é meu amigo. Ninguém
toca nele.
Os dois homens param. Devagar se afastam de REYNA, que, curioso, olha na
direção da voz.
Chiquinho, personagem dos episódios três e quatro, baixinho, surge diante de
REYNA. Está barbudo agora.
CHIQUINHO
Não está me reconhecendo, doutor?
REYNA olha para ele, sem reconhecer de quem se trata.
CHIQUINHO
O senhor foi o único que me estendeu a mão. Logo o senhor. O
único. E isso eu não esqueço nunca mais.
REYNA
Chiquinho? É você mesmo?
292
CHIQUINHO
Firme e forte, doutor. Às suas ordens.
REYNA (rindo)
Esse pessoal todo obedece você?
CHIQUINHO
Eu não. Mas ele sim.
Forte, altíssimo, o negro LAUDELINO, que aparece no episódio III, surge
sorridente.
Tudo bem, doutor?
LAUDELINO
REYNA começa a rir e dá um abraço afetuoso em Chiquinho e outro em
Laudelino.
INT. SALA DO DELEGADO PEIXOTO – NOITE.
Danilo entra na sala. O delegado está cochilando. Danilo faz alguns ruídos: ele
acorda.
DELEGADO PEIXOTO
O que foi? Branca de Neve gostou dos Sete Anões?
DANILO
Sei não, delegado. O que eu sei é que o senhor não vai gostar
de ver uma coisa que está na Internet.
DELEGADO PEIXOTO
Que coisa, seu energúmeno?
DANILO
Algum desocupado filho da mãe fez um vídeo mostrando a prisão
do jogador. Nós estamos ferrados, doutor. A televisão já está a
caminho.
O DELEGADO LIGA A TV. VEMOS os travestis conversando com Danilo, antes
da chegada de REYNA. Está impresso na tela o horário da gravação:
2h2min30seg.
Sem cortes, VEMOS a aproximação de REYNA e o afastamento de Danilo e,
logo depois, a cena da prisão, TUDO VISTO DE CIMA, no ponto de vista de um
morador do prédio em frente, de um apartamento no segundo andar.
A imagem do travesti colocando o papelote de cocaína no bolso de REYNA está
sendo exibida. É repetida.
293
O delegado Peixoto dá um suspiro e passa a mão na careca.
DELEGADO PEIXOTO
Passe o Branca de Neve para a cela individual. Merda. Volte aqui
depois.
DANILO
É pra já delegado.
EXT. DELEGACIA DE POLÍCIA/COPACABANA – NOITE.
Isabela chega quase ao mesmo tempo em que Maurício. Ela está acompanhada
por um sujeito gordo e alto. É Marcelo, um internauta que apareceu no
episódio quatro. Os dois entram rápido na delegacia.
INT. SALA DO DELEGADO PEIXOTO/COPACABANA – NOITE.
O delegado está sentado à mesa. Danilo entra.
DELEGADO PEIXOTO
(coça a cabeça)
Ele está muito machucado?
DANILO
O senhor não vai acreditar. Está novinho em folha. Quem olhar
não diz que arrombaram a porta dos fundos dele. O que a gente
vai fazer?
DELEGADO PEIXOTO
Vai ver que é veado. (pausa) Fique tranquilo. A última coisa do
mundo que o nosso amigo Branca de Neve vai fazer é contar que
foi enrabado. O advogado dele chegou. Pode mandar entrar.
Danilo abre a porta e volta acompanhado por Maurício e por Isabela.
DELEGADO PEIXOTO
A senhora não devia vir a um lugar como esse.
ISABELA
Onde está meu marido? Como ele está?
MAURÍCIO
Aqui está o habeas corpus. O secretário de Segurança está vindo
para a delegacia a pedido do governador. Se o senhor teve a
infeliz ideia de colocar meu cliente numa cela coletiva prepare-se
porque é para lá que vai também.
DELEGADO PEIXOTO
294
Vá cantar de galo noutra freguesia, advogado. (examina o
documento entregue por Maurício) Seu cliente vai ser liberado quando
começar o expediente normal. (olha para seu relógio de pulso) Daqui
a duas horas e meia. Nem um segundo antes.
ISABELA
Você não tem ideia do tamanho da briga que comprou.
DELEGADO PEIXOTO
Saiam os dois de minha sala. Não estou com saco para ouvir
conversa fiada.
Maurício ia responder, mas interrompeu-se quando ouviu o celular do delegado
tocando.
MAURÍCIO
É o secretário. Vamos ver se vai continuar tão valente agora.
Não vamos sair daqui e o senhor vai soltar meu cliente agora
mesmo.
DELEGADO PEIXOTO
Peixoto. (OUVIMOS gritos no telefone dele, que afasta o ouvido do
aparelho) Tenha calma doutor Quintino. O moço está bem. Está
certo, está certo.
Peixoto olha para Danilo, que está imóvel.
Solte o rapaz.
DELEGADO PEIXOTO
ISABELA
Nós vamos com ele.
MAURÍCIO
Não tente impedir, delegado. Vai ser pior ainda.
Os três saem, passando por um homem bem vestido, seguido por dois PM’s,
entra em seguida.
DOUTOR SANTIAGO
Você está preso, delegado. (a um dos soldados) Algeme o delegado,
sargento.
DELEGADO PEIXOTO
Eu obedeci a ordens específicas, Santiago. Não me obrigue a
esse constrangimento.
DOUTOR SANTIAGO.
295
Você é uma vergonha para a Polícia Civil, Peixoto. Um sujeito
burro feito você tem que passar por essa humilhação.
Acompanhe o homem com o carcereiro, sargento.
INT. CELA INDIVIDUAL – NOITE.
Danilo abre a porta da cela, REYNA levanta-se. Isabela corre até ele. Abraçamse emocionados.
MAURÍCIO
Não pude vir antes, amigo. Fui detido como você. Aconteceu
alguma coisa?
REYNA
(fingindo raiva)
Depois conto. Vamos sair daqui agora.
Não sei o que dizer.
MAURÍCIO (cabisbaixo)
ISABELA
Do que vocês estão falando? O que foi que aconteceu aqui?
REYNA
(pisca para o advogado)
Um probleminha meu com Maurício, meu amor. Depois acerto
com ele.
Maurício parece arrasado.
Brincadeirinha.
REYNA (sorriso amarelo)
MAURÍCIO (suspira, aliviado)
Filho da mãe. Vá assustar sua mãe.
REYNA
Você me dá um minuto com minha mulher?
MAURÍCIO
Claro. Desculpe minha falta de sensibilidade.
Sai.
ISABELA
(fazendo carinho no rosto dele)
Jamais vou me perdoar por não ter confiado em você.
REYNA
296
Eu também errei. Vamos esquecer o que houve. Há muito a
fazer e estou morrendo de saudade de minha mulher.
ISABELA
Vamos para casa, meu amor.
REYNA
Ainda não. Preciso fazer algo importante e tem que ser agora.
Você viu o tal vídeo?
ISABELA
Claro. A TV já veiculou. Já é o vídeo mais visto da Internet.
REYNA
Quem é que fez? Você soube?
ISABELA
Um sujeito esquisito. Parece que ele não sai da frente do
computador.
REYNA
Saiu quando os caras armaram para mim. Você sabe como
encontrá-lo? Quero agradecer pessoalmente.
ISABELA
E eu não conheço meu marido? Ele está aí fora, esperando você.
REYNA
Você é única. Vamos lá. Quero falar com ele. Tive uma ideia.
EXT. DELEGACIA DE COPACABANA/RIO – AMANHECER.
Uma multidão está do lado de fora da delegacia. Repórteres de rádio, TV e
jornal misturam-se de forma desorganizada no meio da multidão, tentando
conseguir um lugar mais adequado, com melhor visibilidade: todos esperam a
saída de REYNA.
INT. SALA DE ESPERA/DELEGACIA – AMANHECER.
A sala está cheia. Santiago está tentando organizar a confusão.
DOUTOR SANTIAGO
Ninguém da imprensa entra antes da chegada do secretário.
Ninguém! Está entendido, Danilo?
DANILO
297
Um assessor do homem ligou e disse que ele não vem mais. Aí
fora está coalhado de gente e ele está com medo de alguma
manifestação.
DOUTOR SANTIAGO
Liga para o coronel OLIVEIRA. Vou resolver isso com ele.
Os dois perdem-se na confusão. Surgem REYNA e Isabela, aproximando-se de
Marcelo, o internauta. REYNA dá um abraço demorado em Marcelo.
REYNA
Não sei como agradecer, Marcelo. Se não fosse você eu estaria
enrascado para valer.
MARCELO
A gente deu muita sorte. Eu estava no computador, ouvi a
conversa dos caras e resolvi filmar.
REYNA
Você é daqueles sujeitos que ficam o dia inteiro no computador,
nas redes sociais eletrônicas?
MARCELO
Eu sou o pai da turma toda, Leo. Sou o precursor.
REYNA
Você aceita fazer um trabalho para mim? Preciso conseguir apoio
das redes sociais para pressionar os deputados em Brasília.
MARCELO
Quem você acha que mobilizou a turma para o julgamento no
STF? Fui eu que criei aquele perfil seu. (sorriso amarelo)
ISABELA
Você deveria ter falado com a gente.
REYNA
Não ligue para Isabela. Fez bem feito. Pode criar quantos perfis
quiser. Use aqueles negócios todos. Você está nomeado meu
assessor para assuntos de Internet.
MARCELO
Jura? Posso botar pra quebrar?
REYNA
Não só pode como deve. Você tem procuração para falar em
meu nome. Acompanhei as coisas que escreveu da outra vez.
Você me conhece melhor do que eu mesmo.
298
MARCELO
Acompanho sua carreira desde o começo. Uma vez você salvou a
vida de um primo meu.
REYNA
Eu?
MARCELO
No pronto socorro. Ele chegou lá com uma overdose e você
praticamente ressuscitou o cara. Virei seu anjo da guarda depois
disso. Tirei muita pedra de seu caminho. (abre um sorriso) Com o
maior prazer do mundo.
REYNA
Que mundo maluco esse, hein? Mas quem trabalha de graça é
relógio. Vamos acertar uma remuneração bacana para você.
MARCELO
Não precisa. Eu sou rico. Não parece, mas sou.
Emocionado, REYNA o abraça.
MAURÍCIO
Vamos embora, Leo. Já está amanhecendo. Você tem que
descansar. Esqueceu que tem treino às 10 horas?
REYNA
Maurício: quero que você fique aqui e ajude dois amigos meus
que estão lá dentro (aponta as celas). Chiquinho e Laudelino. Se
não fosse por eles eu estaria falando fino agora.
ISABELA
(dá um cartão a Marcelo)
Liga para mim depois, Marcelo. Vamos trabalhar junto nessa
mobilização. O jornal vai apoiar tudo o que você fizer.
MARCELO
O trabalho começa agora mesmo. Tem mais de mil pessoas aí
fora, esperando você. Chamei a minha turma. Vamos fazer uma
passeata até a sede da Liga?
MAURÍCIO
Vou cuidar dos seus amigos, Leo. Mas vá logo para casa, OK?
Deixe esse negócio de passeata para outro dia.
REYNA
299
E perder a chance de fazer a CPI no Congresso? Está maluco?
Vamos fazer a passeata sim. (a Isabela) Avise ao Quintero. Vou
ficar por conta de Marcelo hoje.
MAURÍCIO
Você é atleta profissional, Leonardo! Pode ter baderneiro nessa
passeata. Você vai ser responsabilizado!
REYNA
Cada um assume responsabilidade pelo que faz. Eu não vou
fazer nenhuma loucura. Vai ser uma manifestação pacífica.
ISABELA (vai à janela)
O carro da Folha já chegou!
REYNA (a Marcelo)
Você me orienta. Não tenho a menor ideia de como fazer esse
negócio.
MARCELO
Fale com a imprensa o maior tempo que você puder. Vou
começar a chamar as pessoas para a passeata (mostra o
smartphone).
MAURÍCIO
Não vai dar certo! É cedo demais. É dia útil.
MARCELO
A gente começa a chamar agora e a coisa esquenta mesmo é à
tarde. A gente fica de plantão em frente ao prédio da Liga e o
povo vai chegando. Sacou?
MAURÍCIO
Vocês estão ficando malucos! Isabela, por favor. Fale com seu
marido!
ISABELA
O que você acha que eu devo escrever no meu cartaz?
Sai daí, Carlão.
REYNA
MARCELO
Boa, Leo. Sai daí, Carlão. Vai ser esse o nosso slogan!
ISABELA
(animadíssima, beija REYNA)
300
Vou mandar buscar cartola e pincel atômico! Vamos botar para
quebrar! Sempre quis ir a uma passeata, querido! Estou tão
emocionada! Vai ser demais. Vem também, Maurício. Se o
estupro é inevitável, relaxe e aproveite.
REYNA
Pelo amor de Deus não fale essa palavra. Estou traumatizado
com o susto que tomei hoje cedo.
EXT. DELEGACIA DE POLÍCIA/COPACABANA – DIA.
Visão geral da multidão defronte a delegacia. REYNA está conversando com a
imprensa, em meio à confusão, refletores acessos etc. Na trilha sonora, NA
CADÊNCIA DO SAMBA.
Fusões sucessivas (e cortes rápidos) entre PLANOS APROXIMADOS de várias
pessoas distintas, de todas as idades e raças, teclando diante das telas de seus
micros. São pessoas comuns, rostos desconhecidos de pessoas que passam
horas diante de sites das redes sociais eletrônicas.
O tamanho dos grupos de manifestantes vai crescendo gradativamente, para
ilustrar o crescimento exponencial dos que aderem às manifestações por
interações nas redes sociais.
INT. COPA/APARTAMENTO DE FEDERICA/LEBLON – DIA.
FEDERICA e Quintero estão tomando o café da manhã.
QUINTERO
As crianças dormiram bem essa noite. Parece que a virose está
cedendo.
FEDERICA
Trate de voltar para a minha cama. Às vezes acho que você
prefere dormir com os meninos que comigo.
QUINTERO
Eu adoro ouvir o sono deles. (olha a TV) Olha lá! Vão mostrar
Leonardo.
REYNA na tela da TV, cercado de microfones.
REYNA
Não dá mais para tolerar as práticas desse bando de larápios. O
que fizeram comigo dessa vez é pouco perto do que estão
fazendo com o futebol brasileiro. Precisamos nos unir e expulsar
essa gente do comando do futebol. (Aponta o dedo indicador para a
tela) Sai daí, Carlão!
301
FEDERICA começa a rir. Quintero também.
QUINTERO
Leonardo endoidou de vez. Você viu o que ele fez? Ele agora
quer demitir o presidente da Liga. Esse sujeito precisa ser
internado.
FEDERICA
Pode começar a se despedir do seu craque, querido. Está
nascendo um político.
QUINTERO
(batendo os nós dos dedos na mesa)
Deus nos livre e guarde!
INTERVALO
PARTE VI – EPÍLOGO – 5 MINUTOS
INT. CENTRO DE IMPRENSA/BRASIL FC – DIA.
A sala de imprensa do BRASIL FC está lotada. Na mesa com lugares para três
pessoas, FEDERICA Octávio e a ministra Ana REYNA.
No púlpito está o diretor executivo do UNICEF, Anthony Lake.
Os jornalistas amontoam-se no canto direito da sala, com refletores e câmeras
a postos, à espera de Leo REYNA. Os flashes disparam ruidosamente, refletores
das câmeras de TV são acessos.
LAKE
Em nome do Fundo das Nações Unidas para a Infância, tenho a
honra de designar Leonardo JULIO REYNA Embaixador Global da
Boa Vontade do UNICEF.
Lake entrega a REYNA um diploma emoldurado. Leo está visivelmente
emocionado.
REYNA
Assumo publicamente o compromisso de juntar-me aos que
lutam para defender os direitos fundamentais das crianças, em
todo o mundo e, em particular, em meu país, o Brasil.
Mais flashes e aplausos.
EXT. CENTRO DE TREINAMENTO DO BRASIL FC/BARRA DA TIJUCA – DIA.
Mais um treino chega ao fim. Os jogadores saem devagar, esgotados, mas
REYNA permanece no campo. Junto a ele, agora adulto, PELÉ, filho do
302
massagista VIOLÃO, que treina com a equipe principal. Lucas está no gol. Os
dois começam a treinar cobranças de falta.
INT. SALA DE QUINTERO/BRASIL FC – DIA.
Quintero e REYNA estão sentados no sofá.
QUINTERO
Você está perdendo a concentração, Leo. Não vai dar para fazer
tudo ao mesmo tempo.
REYNA
Eu continuo fazendo gols.
QUINTERO
Mas sua cabeça não está mais aqui. Por que não ajuda a si
mesmo e admite?
REYNA
Eu não posso perder a oportunidade de contribuir para o
UNICEF.
QUINTERO
Não é o UNICEF. É o sindicato. A imprensa. A Câmara dos
Deputados. Tudo, menos o futebol.
REYNA
Eu não sei fazer nada pela metade, Zé. Você sabe que sou
intenso em tudo que faço.
QUINTERO
Esse é o ponto. Você não estabelece prioridades. Se tudo é
prioritário, nada é prioritário.
REYNA
Há uma pequena possibilidade de que pela primeira vez na vida
eu esteja errado e você esteja certo.
QUINTERO
Você nunca foi de empurrar com a barriga. Você está muito mais
preocupado com essa CPI do que com o campeonato. E não dá
para conciliar isso com o futebol. Estou falando como diretor
técnico. Detesto dizer isso, mas o BRASIL está sendo
prejudicado.
REYNA
Vamos combinar uma coisa. Dê-me três dias de folga, eu vou
para Brasília e volto com uma decisão.
303
Mais três dias?
QUINTERO
REYNA
Só mais três. Prometo que será a última vez.
Cumprimentam-se batendo mão direita na mão direita.
EXT. CONGRESSO NACIONAL/BRASÍLIA – DIA.
Imagem externa da Esplanada dos Ministérios. Imponente, o prédio do
Congresso Nacional atrai a atenção de turistas, que fotografam tudo.
INT. CORREDOR DA CÂMARA DOS DEPUTADOS/BRASÍLIA – DIA.
REYNA, vestido de terno, elegante, caminha de mãos dadas com Isabela (de
tailleur, igualmente elegante, linda).
Eles chegam ao gabinete do deputado federal Chico Alencar, da bancada do
Rio de Janeiro. CLOSE-UP da placa com o nome do deputado.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
Não é assim que as coisas funcionam aqui, Leo. Infelizmente.
REYNA
O que mais eu preciso fazer?
DEPUTADO CHICO ALENCAR
Você tem que procurar os governadores, um por um, e pedir
apoio deles. Pedir aos governadores para pressionarem a
bancada do Estado deles. Não tem outro jeito.
REYNA
Eu pedi para o pessoal das
pressionarem os governadores.
redes
sociais
eletrônicas
DEPUTADO CHICO ALENCAR
Não adianta. Tem que fazer corpo-a-corpo. Com
governador, com cada senador, com cada deputado.
cada
REYNA
E o futebol? E minha mulher? E minha vida?
DEPUTADO CHICO ALENCAR
Você é quem sabe. Não é fácil aprovar uma CPI dessas. A
bancada governista não morre de amores pelo Carlão, mas você
não chega a ser o ídolo daquela turma.
REYNA
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Sabe de uma coisa, deputado? Nós vamos ter que eleger uma
bancada inteira. Vou começar a pensar nisso. Cada Estado vai
eleger um jogador ou ex-jogador. Não vai ser difícil conseguir
votos. Você topa ajudar?
CHICO ALENCAR
Aqui há mais ou menos trinta votos de gente séria, correta, que
certamente estará com vocês em qualquer situação. Gente que
não aguenta mais os desmandos de Carlão.
REYNA
Você acha viável? Tem deputado estadual eleito pelas torcidas
em todo o Brasil. E bem votados. Como Marques, de Minas.
Bebeto, no Rio.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
É viável sim. Vamos juntar as forças, Leo.
INT. SALA DE CPI/CÂMARA DOS DEPUTADOS – DIA.
Na mesa estão cinco parlamentares. Um deles é Carlão. Na presidência, Chico
Alencar, do PSOL/RJ.
O jornalista Juca KFOURI faz um depoimento, a exemplo dos cinco que já fez
nos episódios anterior.
O depoimento, como antes, leva aproximadamente um minuto e meio.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
A mesa agradece ao jornalista Juca KFOURI. Obrigado por ter
vinco depor nessa CPI, Juca.
JUCA KFOURI
Não há o que agradecer, presidente. Foi um privilégio ser ouvido
numa CPI tão importante para o futuro do futebol brasileiro.
Juca sai do púlpito e ocupa um lugar no plenário.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
A mesa convoca agora o diretor executivo da Liga Nacional de
Futebol, bacharel Antônio Ricardo Madureira.
Carlão explode, batendo a mão na mesa.
CARLÃO
Eu protesto! Protesto veementemente! Não admito que um
subordinado meu venha a essa CPI sem que eu tenha sido
comunicado previamente.
305
DEPUTADO CHICO ALENCAR
Seu protesto será consignado na ata da sessão.
CARLÃO
A convocação do diretor Madureira não foi submetida à votação!
É uma arbitrariedade, senhor presidente! Não vou admitir esse
absurdo! Vou ao Supremo Tribunal Federal!
DEPUTADO CHICO ALENCAR
Esta presidência tem a prerrogativa de convocar quem julgar
adequado. Bacharel Antônio Marcos Madureira. Por favor.
Madureira caminha devagar até o púlpito. Evita olhar na direção de Carlão.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
Obrigado, bacharel. Podemos começar?
MADUREIRA
Perfeitamente, senhor presidente.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
O senhor teve conhecimento do contrato firmado entre a Liga
Nacional de Clubes e o Bank of North America?
CARLÃO
Isso é inconstitucional! Você não pode fazer isso, seu filho da
mãe!
DEPUTADO CHICO ALENCAR
O senhor comporte-se ou será levado à Comissão de Ética.
(olhando para o fundo) Cortem o som do microfone do deputado.
Polícia legislativa?
Dois homens vestido de terno levantam as mãos.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
Tirem o deputado Carlão desse recinto se ele abrir a boca para
falar sem minha autorização. Está entendido?
Os homens fazem sinal positivo.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
Bacharel Antônio Marcos Madureira.
MADUREIRA
Todos os contratos de patrocínio eram assinados por mim,
deputado. A Liga realmente firmou contrato com a mencionada
casa bancária.
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DEPUTADO CHICO ALENCAR
Qual foi o valor do patrocínio, bacharel?
80 milhões.
MADUREIRA
Zum-zum-zum na plateia. Flashes espocam.
Silêncio! De reais?
DELEGADO CHICO ALENCAR
MADUREIRA
Não, senhor presidente. De dólares.
Mais zum-zum-zum, mais flashes. Carlão está apoplético: parece que vai
explodir a qualquer momento.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
Esse dinheiro entrou no caixa da Liga?
MADUREIRA
Sim, senhor presidente. Entrou.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
E que contrapartida foi oferecida ao banco pelo referido aporte
de 80 milhões de dólares?
MADUREIRA
O nome da referida casa bancária deveria constar nas camisetas
dos jogadores, tanto nos uniforme de treinos como nos
uniformes oficiais. Além de exposição da logomarca do banco no
tapume que fica na sala de imprensa.
Mais zum-zum-zum na plateia. Mais flashes.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
E isso foi feito, bacharel Madureira?
MADUREIRA
Não, senhor presidente.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
E por que razão a Liga não cumpriu a parte dela no contrato?
MADUREIRA
Não sei dizer, senhor presidente. Recebi a ordem do presidente
para não oferecer a contrapartida contratada e não costumo
discutir ordens superiores.
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Zum-zum-zum. Flashes.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
E qual foi a atitude do banco diante do descumprimento do
contrato?
MADUREIRA
Eles queriam o dinheiro de volta.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
O dinheiro foi devolvido?
Não que eu saiba.
MADUREIRA
DEPUTADO CHICO ALENCAR
E eles não reclamaram?
MADUREIRA
Reclamaram sim. Mas o presidente disse que se quisessem
poderiam entrar na Justiça.
Zum-zum-zum. Mais flashes.
DEPUTADO CHICO ALENCAR
E eles entraram na Justiça?
MADUREIRA
Não, senhor presidente.
Por que não?
DEPUTADO CHICO ALENCAR
MADUREIRA
Isso eu não sei dizer. O que eu sei é que Carlão disse que iria
jogar a torcida contra a casa bancária e eles preferiram ficar
calados.
Zum-zum-zum na plateia de novo.
DEPUTADO CHICO
Silêncio! A Liga usou o dinheiro do banco para investimentos?
MADUREIRA
Nem um centavo. O dinheiro foi para uma conta de Carlão num paraíso
fiscal.
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Subitamente, Carlão levanta-se e tira um COLT 38 enorme de dentro do paletó,
atirando (em acertar) em Madureira em seguida.
FADE OUT.
FADE IN.
INT. AEROPORTO INTERNACIONAL DO GALEÃO/RIO – NOITE.
Carlão caminha lentamente. Ao lado dele uma mulher jovem, alta, belíssima.
Um carregador uniformizado traz muitas malas num carrinho de mão.
LOCUTORA OFICIAL
(em OFF)
Passageiros do voo 1247 para Miami. Apresentem-se no portão
12 para embarque imediato.
Os dois aproximam-se do portão 12 e entram. Carlão vira-se e olha para trás: é
a despedida dele.
EXT. ARENA BRASIL/RIO DE JANEIRO – NOITE.
É noite de jogo importante. Movimento intenso.
INT. CAMPO DE FUTEBOL/ARENA BRASIL – NOITE.
REYNA está dando uma volta olímpica em volta do campo. É ovacionado pela
torcida. PLANO APROXIMADO: REYNA está emocionado, em primeiro plano. Ao
fundo, sem nitidez, VEMOS a torcida, ao longe.
TORCIDA (em coro)
REYNA seleção! REYNA seleção! REYNA seleção!
FIM
Roteiro de Daniel J. ZIMERMAN
Depoimentos de JUCA KFOURI
Participação afetiva: deputado CHICO ALENCAR, José Trajano, PVC e
Fernando Calazans.
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