5297.6_Os Atletas Profissionais do Futebol.indb

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5297.6_Os Atletas Profissionais do Futebol.indb
OS ATLETAS PROFISSIONAIS DE FUTEBOL
NO DIREITO DO TRABALHO
1ª edição – 1998
2ª edição – 2015
domingos sávio zainaghi
Advogado. Doutor e Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP. Pós-doutorado em
Direito do Trabalho pela Universidad Castilla-La Mancha, Espanha. Membro da Academia
Nacional de Direito Desportivo da Academia Paulista de Direito. Presidente honorário
do Instituto Iberoamericano de Derecho Deportivo e da Asociación Iberoamericana de
Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social. Membro do Instituto Cesarino Jr. Membro da
Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo – ACEESP.
Membro da Associação Sulamericana dos Advogados do Futebol – ASAF.
Conselheiro Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo.
Doutor honoris causa da Universidad Paulo Freire da Nicaragua.
OS ATLETAS PROFISSIONAIS DE FUTEBOL
NO DIREITO DO TRABALHO
2ª Edição
EDITORA LTDA.
© Todos os direitos reservados
Rua Jaguaribe, 571
CEP 01224-001
São Paulo, SP – Brasil
Fone (11) 2167-1101
www.ltr.com.br
Junho, 2015
Versão impressa:
LTr 5297.6 — ISBN: 978-85-361-8460-9
Versão digital:
LTr 8730.3 — ISBN: 978-85-361-8450-4
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Zainaghi, Domingos Sávio
Os atletas profissionais de futebol no direito do trabalho / Domingos Sávio
Zainaghi. – 2. ed. – São Paulo : LTr, 2015.
Bibliografia.
1. Direito do trabalho 2. Direito do trabalho - Brasil 3. Futebol - Brasil 4.
Futebol - História 5. Jogadores de futebol I. Título.
15-03779CDD-34:331:796.332.071.2
Índice para catálogo sistemático:
1. Futebol : Jogadores profissionais : Direito do
trabalho 34:331:796.332.071.2
2. Jogadores profissionais de futebol : Direito do
trabalho 34:331:796.332.071.2
Ao meu pai, Orlando Zainaghi, que me fez amar o futebol.
(in memoriam)
À minha esposa, Sara Albuquerque Zainaghi, que já ama o futebol.
A Charles Miller, o pai do futebol no Brasil.
Sumário
Apresentação da Segunda Edição................................................11
Apresentação da Primeira Edição.................................................13
Prefácio.................................................................................................15
1. As Origens do Futebol.................................................................21
1.1. O desporto na história da humanidade..........................................21
1.2. O surgimento do futebol...............................................................27
1.3. Primeiras associações desportivas..................................................31
1.4. As regras do futebol no seu início..................................................32
2. O Futebol no Brasil......................................................................35
2.1. A introdução do futebol na sociedade brasileira. A importância
de Charles Miller...........................................................................35
2.2. Primeiras equipes..........................................................................38
3. O Futebol Como Profissão.........................................................41
3.1. Evolução legislativa da profissão de atleta de futebol no Brasil......41
3.2. Contrato de trabalho do atleta profissional de futebol....................42
3.3. Sujeitos do contrato.......................................................................44
3.3.1. O empregador....................................................................44
3.3.2. O empregado.....................................................................45
3.4. Forma do contrato.........................................................................46
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Domingos Sávio Zainaghi
3.5. Prazo do contrato..........................................................................48
3.6. Formalidades e registro..................................................................49
3.7. Suspensão, interrupção e terminação do contrato..........................50
3.7.1. Suspensão e interrupção.....................................................50
3.7.2. Terminação do contrato......................................................52
4. Remuneração do Atleta Profissional de Futebol..............59
4.1. A parte fixa da remuneração..........................................................59
4.2. “Bichos”: natureza jurídica............................................................60
4.3. “Luvas”: natureza jurídica.............................................................60
4.4. O FGTS e o atleta profissional de futebol......................................61
4.5. Direito de imagem........................................................................66
5. Duração do Trabalho do Atleta Profissional de Futebol......................................................................................................71
5.1. Limitação da duração do trabalho em geral...................................71
5.2. A duração semanal e a jornada de trabalho do atleta profissional
de futebol......................................................................................73
5.3. Os intervalos para repouso e alimentação.....................................75
5.4. Intervalo entre partidas..................................................................76
5.5. O trabalho noturno do atleta profissional......................................82
5.5.1. Horário noturno em geral...................................................82
5.5.2. Trabalho noturno do atleta profissional de futebol..............84
5.6. Das horas extraordinárias..............................................................86
6. Férias do Atleta Profissional de Futebol..............................91
6.1. Origem, objetivos e definição........................................................91
6.2. Período aquisitivo..........................................................................92
6.3. Período concessivo........................................................................93
6.4. Período de gozo............................................................................94
6.5. Remuneração................................................................................94
6.5.1. A remuneração dos atletas contratados há menos de doze
meses.................................................................................95
6.6. Considerações finais sobre as férias...............................................96
7. Poder Disciplinar..........................................................................99
7.1. Natureza jurídica..........................................................................99
7.2. Princípios básicos do poder disciplinar.........................................102
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7.3. Condutas puníveis.........................................................................102
7.4. Aplicação das penalidades............................................................105
7.5. Poder disciplinar e irredutibilidade dos salários.............................107
8. Direito de Arena.............................................................................115
8.1. Conceito e natureza jurídica.........................................................115
8.2. Titularidade do direito...................................................................118
8.3. Participação dos jogadores na arrecadação...................................120
8.4. Alterações inconstitucionais no Direito de Arena..........................122
ReferÊNCIAS bIBLIOGRÁFICAS..............................................................129
Anexo.....................................................................................................133
Lei n. 9.615/98.....................................................................................133
Decreto n. 7.984, de 8 de abril de 2013...............................................167
Apresentação da
Segunda Edição
Após o sucesso da primeira edição, isso em 1988, dedicamo-nos a outros trabalhos na área do Direito do Trabalho Desportivo. Esta obra sempre foi
material de consulta para advogados, magistrados, atletas, dirigentes e outras
pessoas que se interessam pelas relações de trabalho dos atletas profissionais
de futebol.
Vários foram os pedidos para que escrevêssemos uma segunda edição deste livro, mas como muitas alterações ocorreram na área laboral desportiva, não
nos animamos a atender a tão honrosos apelos.
Esta segunda edição é escrita com muita emoção, pois são dezessete anos
desde sua primeira publicação. Fomos os pioneiros em escrever uma tese de
doutorado em Direito do Trabalho sobre o tema, e nesses anos todos vimos o
interesse pelo assunto crescer.
Participamos como examinador de muitas dissertações de mestrado sobre
Direito do Trabalho Desportivo; muitos livros foram publicados, e na grande
maioria nosso trabalho sempre foi citado.
Logo, mais do que um prazer em publicar esta segunda edição, cremos
ser um dever para com a comunidade jurídico-desportiva a apresentação deste
nosso trabalho.
Alteramos a obra em relação à sua primeira edição, há quase duas décadas.
Excluímos o capítulo sobre Direito estrangeiro, pois na primeira edição
fora fruto de nossa tese de doutoramento junto à PUC-SP, e nesta a preocupação
foi de escrever uma obra mais prática.
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Domingos Sávio Zainaghi
Mantivemos um anexo com a Lei n. 9.615/98 e seu regulamento, com o
intuito de tornar a obra um instrumento de trabalho útil para os profissionais
do Direito.
Pedimos licença a você, leitor, para fazer neste espaço um agradecimento
muito especial.
A Luis Guilherme Krenek Zainaghi, sobrinho querido, acadêmico de Direito e já versado em Direito Desportivo, pela cobrança e incentivo que prestou
para que nos debruçássemos na realização deste trabalho.
Esperamos mais uma vez ter contribuído para os estudos das relações de
trabalho no nosso amado futebol.
O Autor.
[email protected]
Apresentação da
Primeira Edição
Este livro é, com algumas alterações, nossa tese de doutoramento, apresentada à banca examinadora da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC/SP.
É estudada a profissão de atleta de futebol, à qual são escassas as
manifestações científicas na área do Direito Laboral.
Mesmo tratando-se de tese de doutoramento, nosso intuito é o de incentivar
os estudiosos do Direito do Trabalho a investigar e a dar mais atenção ao tema.
Inicialmente, é feito um estudo, em dois capítulos, das origens históricas
do futebol no mundo e no Brasil, passando pelo estudo da importância dos
esportes para a humanidade.
Em seguida, é estudado o direito comparado, sendo certo que tivemos
grandes dificuldades em encontrar material sobre o assunto, valendo-nos, para
tal, além da aquisição por nós efetuada quando em viagens ao exterior para participarmos de congressos, de contatos mantidos com consulados, professores
de outros países e até com federações estrangeiras (via “fax”), além, claro, de
“garimpagem” em livrarias especializadas em obras importadas.
Após, damos início ao estudo do direito brasileiro, iniciando com a análise
do futebol como profissão, desde as primeiras manifestações legislativas, analisando o contrato de trabalho: sujeitos, forma, prazo, formalidades, registro,
suspensão, interrupção e terminação.
Logo depois, é estudada a remuneração do atleta profissional de futebol,
com todas as particularidades de sua composição, principalmente os “bichos”
e as “luvas”, além do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, no que pertine
ao empregado-atleta.
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Domingos Sávio Zainaghi
A duração do trabalho do atleta profissional inicia-se com a análise do
tema em geral para, em seguida, tratar das peculiaridades do contrato do jogador de futebol, principalmente quanto ao período de concentração e horas
extras.
Estudam-se, também, as férias anuais, as quais trazem particularidades que
as fazem diferentes das concedidas aos demais empregados, principalmente
quanto à época de gozo, que deve ser sempre coincidente com o recesso dos
clubes; e quanto à remuneração dos atletas contratados há menos de doze meses, há semelhança com o período de férias coletivas previsto na CLT.
É dedicado um capítulo sobre a transferência do atleta profissional de
futebol, onde se faz um estudo do controvertido instituto do “passe”, com
as inovações da “Lei Zico” e da Resolução n. 1 do Instituto Nacional de
Desenvolvimento do Esporte – INDESP, tratando-se, inclusive, de sua natureza
jurídica.
A seguir é apresentado estudo sobre o poder disciplinar, desde sua natureza jurídica até as penalidades próprias da relação de trabalho do atleta profissional de futebol.
O direito de arena é analisado sob a ótica do Direito do Trabalho, em que
é demonstrada sua similitude com as gorjetas.
É estudada, também, a processualística desportiva, na qual analisa-se a
competência das justiças desportiva e trabalhista, com estudo dos artigos da
Constituição Federal e das leis ordinárias.
Encerra-se esta nossa humilde contribuição com as conclusões, as quais
são decorrentes de todo o estudo elaborado.
Do original, que foi apresentado como tese junto à PUC, este livro traz,
como afirmado no início, algumas alterações, as quais são frutos dos conselhos
recebidos, no dia da defesa pública na Universidade, da banca examinadora,
composta pelos professores doutores Cássio Mesquita Barros Jr., Renato Rua de
Almeida, Oris de Oliveira, Carlos Moreira de Luca e Bismark Duarte Diniz, aos
quais consigno meus sinceros agradecimentos.
Por último faz-se necessário deixar claro que este trabalho foi elaborado
levando-se em conta o pensamento Kelseniano, ou seja, tentou-se fazer uma
análise unicamente jurídica do tema, desprezando-se, até onde isso é possível,
as influências da ideologia política e de outras que não a do Direito.
Prefácio
O estudo das relações jurídicas dos esportistas profissionais, o qual tenho
a honra e a satisfação de prefaciar, toma como modelo as dos jogadores de futebol, certamente porque o jogo de futebol é modalidade de esporte-espetáculo
muito apreciada no Brasil.
Embora difundido nos diversos países, não parece exercer tanto fascínio
como em nosso país. Aqui o futebol eletriza as massas, ocupa o tempo anterior
e o posterior às disputas, inunda a imprensa falada e escrita de noticiários, comentários, prognósticos, debates, entrevistas e discussões que dividem amigos
e familiares e, enfim, envolvem e entusiasmam cada um de nós.
É natural que esporte-espetáculo dessa dimensão ocupe a maior parte deste trabalho despertado pelo interesse de conhecer as relações jurídicas que
se estabelecem entre os desportistas profissionais e aqueles que organizam as
disputas, que os mantêm ou que empreendem torneios. Outras modalidades de
esporte já, por seu turno, empolgando o público, têm despertado entusiasmo
antes reservado só ao futebol.
No que se refere aos esportes, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu,
no art. 217, o dever do Estado de fomentar os desportos, conferiu às entidades
desportivas, dirigentes e associações, liberdade de organização e funcionamento, a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto
educacional e o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não
profissional.
O tratamento diferenciado se justifica, pois as relações jurídicas dos desportistas profissionais, realmente, são típicas ou bem atípicas, melhor dizendo,
são relações especiais que se desenvolvem desde o texto básico até o conjunto
de normas que formam a legislação tratada neste oportuno estudo.
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Poder-se-ia empiricamente intuir que se entre o atleta profissional e o seu
empresário existe relação de emprego, esta se rege pelas normas da CLT. Mas
o que se precisa saber é qual a legislação supletiva que se aplica e que integra
os vazios encontrados. Até que ponto a lei geral reunida na CLT é compatível
com as peculiaridades dessas relações atípicas e especiais. Diante da legislação
especial, qual a forma dos contratos de trabalho dos atletas profissionais, qual
o conteúdo que haverão de ter, quais as modalidades de contratos existentes
na prática e admitidos na legislação supletiva? Qual o período de prova ou experiência? Qual a duração que podem ter esses contratos, como se rescindem,
quais as justas causas e reparações devidas na rescisão injusta? Qual é a jornada
de trabalho do esportista profissional? Nela se compreende somente a prestação
dos serviços ante o público ou todo o tempo em que o atleta se encontra sob
as ordens diretas do clube ou entidade desportiva para preparação física e técnica? Computa-se na jornada de trabalho o tempo dedicado as concentrações?
Também se incluem na jornada as reuniões do tipo técnico informativo, os
períodos de sauna, massagens, exames? O atleta profissional tem férias iguais
ao trabalhador da indústria e do comércio? Pode tirar essas férias a qualquer
momento? Os treinadores e técnicos estão sujeitos as mesmas regras legais dos
atletas profissionais, mesmo que detentores de faculdades de direção mais ampla do que as estritamente técnicas?
Os clubes ou entidades que não prestam atividades esportivas profissionais
no sentido estrito do termo estão sujeitos à normativa dos esportes e à legislação trabalhista? Como é a remuneração dos jogadores de futebol? O “passe”,
os “bichos, as “gratificações” integram o salário, nota distintiva de toda relação
de emprego?
Sabe-se, por exemplo, que o âmbito funcional e material do ordenamento
esportivo ou das atividades estritamente esportivas conferem faculdades disciplinares a organismos federativos, tais como a repressão a condutas anticomunitárias que quase sempre implicam sanções econômicas. Essas normas
preexistentes alcançam não só as entidades filiadas como a todos e quaisquer
atletas profissionais, enquadrados na sua estrutura. Teoricamente essas normas
não se confundem com as que regem as relações contratuais entre os profissionais e os clubes ou empresários. Entretanto, na prática, existe ponto de conflito
quando a infração ao ordenamento desportivo implica simultaneamente o descumprimento de determinadas obrigações contratuais de ordem trabalhista? A
competência constitucionalmente reservada à Justiça do Trabalho prorroga seu
poder de decidir as questões esportivas e trabalhistas? Isso não implica a anulação ou desapreço aos organismos desportivos e à Justiça Desportiva?
Essas e outras questões encontram resposta corajosa e direta, ou encaminhamento no conjunto dos comentários do ilustre autor deste interessante
estudo. O simples enunciado dessas questões mostra a necessidade deste trabalho monográfico, pormenorizado e sistemático, das relações especiais, o
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qual foi realizado neste trabalho. O autor aficionado do futebol e do esporte
toca e encaminha as complexas questões jurídicas que envolvem a normação
do desporte profissional.
O trabalho já mereceu a consagração pois a Banca Examinadora o aprovou, com distinção, no concurso de doutorado a que se submeteu o autor na
Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade de São Paulo. Por todos os
títulos, portanto, é obra que se recomenda.
Estamos convencidos de que constitui valiosa contribuição ao Direito do
Trabalho e ao esporte nacional e que merecerá o apreço do público leitor.
Cássio Mesquita Barros Jr.
Advogado – Professor Titular de Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo
e da Universidade Católica de São Paulo.
“Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender o
futebol, pois deles é o reino da tranquilidade.”
Carlos Drummond de Andrade
1. As Origens do Futebol
1.1. O desporto na história da humanidade
Há evidências importantes da existência da prática de esportes nas civilizações antigas, mas seus registros não são exatos. As civilizações primitivas
(maias, incas, egípcios etc.) praticavam jogos com caráter esportivo, muitas vezes com intuito religioso. A própria natação encontra sua origem numa prática
“esportiva” que consistia em afogar o adversário, sagrando-se vencedor aquele
que conseguisse sobreviver.
Mas foi na Grécia antiga que as atividades esportivas ganharam importância.
A prática de esporte ganha realce no momento em que o homem dá um
maior valor ao seu corpo.
E como ensina Angelo Luiz Vargas, “a linguagem do corpo não vislumbra
fronteiras. Ela é universal e comum a qualquer homem em qualquer espaço
geográfico”.(1)
O esporte ganhou espaço e floresceu de forma magnífica na Grécia, mas
por não merecer maiores cuidados ou atenção, debilitou-se, ressurgindo na
Idade Média de forma selvagem.
No século XIX o esporte ganha dimensões espetaculares, surgindo diversas
modalidades de práticas esportivas.
Gomes Tubino(2), após estudar as teorias sobre o esporte, extrai alguns pontos comuns, os quais permanecem no esporte moderno:
(1) VARGAS, Angelo Luiz. Desporto. Fenômeno social. São Paulo: Sprint, 1995. p. 3.
(2) Tubino, M. J. Gomes. Teoria geral do esporte. São Paulo: Ibrasa, 1987. p. 21.
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Domingos Sávio Zainaghi
“a) que o componente psicossocial fundamental do esporte é o caráter competitivo;
b) que o esporte, desde o início colocado sempre na perspectiva do
progresso do homem, necessita de uma visão interdisciplinar;
c) que o esporte moderno, ao delimitar-se pelas regulamentações e
codificações, supõe um autocontrole, que se constitui num dos princípios
básicos da convivência humana.”
João Lyra Filho(3) sintetiza a origem da prática esportiva:
“Sabemos que o jogo é anterior à cultura, ao contrário do desporto, e
que a cultura é fator condicionado à existência da sociedade humana. O
jogo, em sentido lúdico, sempre constituiu atividade até mesmo entre os
animais. Huizinga recordou que os cachorrinhos brincam jogando, com a
participação de todos os elementos essenciais do jogo aparelhado como
divertimento dos seres humanos. Os cachorrinhos ‘convidam-se uns aos
outros para brincar com o emprego de um certo ritual de atividades e gestos’. Eles fingem ficar zangados e, o que é mais importante, ‘experimentando prazer e alegria’. Sabemos que as brincadeiras dos cachorrinhos apenas constituem uma das formas simples de jogo entre os animais; outras
existem, bem mais complexas, que constituem verdadeiras competições
promovidas para regalo do público.
As crianças também brincam jogando, desde a mais tenra idade. Os
jogos infantis e os jogos dos animais não revelam marcas e cultura, embora traduzam alguma coisa mais do que as simples atividades mecânicas.
Torna-se curioso notar que o ato puramente fisiológico de rir é exclusivo do
homem. Huizinga registrou essa verdade, mas a feição significante do jogo é
comum aos homens e aos animais. O animal ridens de Aristóteles caracteriza o homem, em oposição aos animais, de modo quase tão absoluto quanto
o homo sapiens. O jogo antecipou-se à cultura e com esta coexiste sem
mudanças acentuadas. As sociedades primitivas valiam-se de sua existência
e o atraíram até mesmo para sustento dos cultos e ritos sagrados, nas provas
de sacrifício ou nas honras oferecidas às consagrações e aos mistérios.”
Não se trata apenas de uma diferença linguística. O jogo tem um caráter
lúdico, ou seja, apenas um brinquedo, uma distração ou divertimento. Já competição é o jogo levado a sério. Competir não é brincar nem passar o tempo.
Mas foi do jogo que nasceu a competição. Contudo, não é em toda prática esportiva que há competição. Existem esportes que independem de luta ou
disputa entre seus praticantes (exemplo: caça, pesca, alpinismo).
(3) LYRA FILHO, João. Introdução à sociologia dos desportos. Rio de Janeiro: Bloch, 1973.
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“Os desportos são competitivos quando entram em jogo a supremacia do placar, da marca, do escore, do tempo e tantos outros índices que
demonstram a referida supremacia a favor de um desportista ou de um
elenco de desportistas. Certos autores admitem como características gerais
do jogo a tensão e a incerteza, estando sempre presente a dúvida: ‘Dará
certo?’. Essa expectativa, segundo eles, verifica-se até mesmo quando se
joga paciência ou quando se preenche o vazio do tempo com acrósticos,
palavras cruzadas, quebra-cabeças etc. É possível que a tensão e a incerteza atuem aí, mas não há mérito social ou cultural no resultado desse jogo
ou passatempo, logo esquecido até mesmo pelos protagonistas insulados
no fundo de uma sala onde não chegam os clamores da vida lá de fora,
tanto mais densa quanto mais social e culturalmente cruzada. Os desportos entranham-se nessa vida.”(4)
Os jogos de azar não ensejam competição, e até mesmo o xadrez já foi
alvo de críticas de Huizinga(5):
“Não há mérito sociológico em jogos que dependam da sorte, principalmente. Os jogos de azar, como os brinquedos e os divertimentos,
poderão atrair a atenção de alguns pesquisadores afeiçoados ao estudo
das ciências sociais, é certo, mas não acrescentam nada à vida do espírito. O jogo valoriza-se como desporto quando, mobilizando atributos de
substância social e cultural, não interessa apenas aos jogadores; interessa
à vida comunitária e envolve a humanidade. Huizinga subestimou o valor
desportivo do jogo de xadrez: ‘É possível que possa fascinar os espectadores, embora, apesar disso, seja estéril para a cultura e destituído de qualquer encanto visível’. Penso bastar sua influência, a ponto de fascinar os
espectadores, para valorizar-se social e culturalmente. Não se desprovém
de encanto visível um desporto que atrai o interesse de multidões em numerosas partes do mundo e que incorpora atributos fecundos, aplicados
pela educação no cultivo do raciocínio e na temperança da desenfreada
imaginação dos adolescentes.”
João Lyra Filho(6) mostra-nos o quanto é importante a prática de esportes
para o homem:
“O último quartel do século dezoito surpreendeu o mundo com uma
nova civilização industrial. A vida mundial anterior vinha decorrendo em
clima de sustento das atividades mansas da agricultura e da pecuária;
(4) Idem.
(5) Idem.
(6) Idem.
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Domingos Sávio Zainaghi
individualizava-se conforme a predileção do trabalho humano. A máquina ainda não havia criado seu império. Mas, ao acontecer a transformação sob seu domínio, gerou-se uma nova ordem nas relações entre o
capital e o trabalho, alterando-se a fisionomia moral e social do mundo.
A vida humana passou a ganhar em intensidade o que perdia em extensão, tais os distúrbios orgânicos originários das sobrecargas do trabalho
e das preocupações do capital. A maioria dos trabalhadores teve de se
submeter às exigências da máquina montada pelo capital de indústria
com sacrifícios orgânicos permanentes. A máquina passou a governar os
trabalhadores impondo-lhes até mesmo posturas ao corpo. O nomadismo
do trabalho solto no campo, ao ar puro, cedeu vez ao sedentarismo do
trabalho preso, ao ar viciado, nas fábricas e nas oficinas. Para neutralizar os efeitos negativos do trabalho sedentário, os desportos entraram em
cena, institucionalizaram-se e passaram a exercer uma função social de
caráter corretivo. A tal ponto os desportos se intensificaram no mundo
que passaram a influir com um espírito peculiar, distinto do espírito jurídico, político, religioso ou militar. Mas o bem criativo de um desporto
não advém da natureza espetacular que possa conter. Torna-se imperioso
que o atleta se forme para adestrar o corpo, valorizar o espírito, elevar a
visão e mobilizar-se em benefício de sua saúde e em busca de sua paz.
O destino do atleta não se resume, como nos parece ante a imagem do
futebol, num campo gramado e numa bola de couro. Há que pensar, por
interesse nacional e do povo, na difusão dos parques desportivos, na política de animação da juventude ao aprendizado e à prática dos desportos,
matando a fadiga precoce, fugindo aos descaminhos da vida e vivendo a
vida com dignidade e confiança.”
O esporte ganha estruturação no final do século XVIII e início do século
XIX, quando na Inglaterra surgem as organizações específicas denominadas clubes, com regulamentações e codificações as quais facilitaram a internacionalização das modalidades desportivas. E é nesse período que se exalta a conduta
esportiva cavalheiresca, com ênfase no respeito ao adversário, com aceitação
da derrota, o que se convencionou chamar de “fair play”, e que vige até hoje,
valendo lembrar que a FIFA – órgão máximo do futebol mundial – tem incentivado essa conduta nas competições.
O esporte, sem dúvida alguma, além de ter caráter competitivo e de proporcionar a prática de exercícios físicos, traz, ainda, funções higiênica, educativa, hedonística, biológica e de promoção social, constituindo-se, outrossim,
numa conduta lúdica com forte alcance psicossomático.
O termo esporte tem origem no século XIV com os marinheiros mediterrâneos que utilizavam as expressões fazer esporte, desportar-se ou estar de portu,
referindo-se a diversões de confronto entre as suas habilidades físicas.
Os Atletas Profissionais do Futebol no Direito do Trabalho
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Contudo, os vocábulos esporte e desporte, não obstante serem usados
como sinônimos, mereceram, dos expertos em esportes, estudos dos respectivos significados e conteúdos em diversos países.
Gomes Tubino(7), após aprofundar-se nos autores que estudaram os termos
esporte e desporto, faz rica síntese deles:
“Loy Jr. (1968), ao desenvolver a interpretação destes termos na língua
inglesa, focaliza o esporte como um acontecimento de jogo, no qual é
definido como ‘qualquer forma alegre de competição cujo resultado é determinado pela habilidade física, estratégica, ou oportunidade empregada
individualmente ou em combinação’. Nesta perspectiva, o esporte é considerado como coletividade de esportes individuais que podem ser compreendidos como tipos de jogos especializados. Essa definição de jogo, e
consequentemente de esporte, segundo Broekhoff (1986), é remetida principalmente das concepções de Huizinga (1938) e Caillois (1958). Também
Rijsdorp (1966) respalda o conceito de esporte de Loy Jr. ao afirmar que
o esporte é ‘o desenvolvimento da antítese do jogo na direção da competição’. Mas é o próprio Loy Jr. quem concebe o esporte como um jogo
institucionalizado, já que compreende uma organização, a constituição
de equipes, responsabilidades, funções simbólicas e outras características,
provocando uma relação com a educação, por considerar que o resultado
e o seu conhecimento necessitam de mais processos de instrução formal
do que informal e de aprendizagem casual.”
“Broekhoff, ao identificar na literatura esportiva alemã diferenças terminológicas e de conteúdo no vocábulo esporte do alemão para o inglês,
encontra uma explicação na reforma educacional germânica de 1950,
quando ocorreu a substituição do termo Leibeseiziechung Korpereziechung, traduzido por esporte. Essa mudança não foi somente semântica
como à primeira vista parece, pois a evolução social e a importância política e promocional do esporte após a Segunda Guerra Mundial foram
determinantes nessa alteração, que coincidiu com o aparecimento de estímulos do governo alemão para a ciência do esporte, criando instituições
científicas e mecanismos de financiamento à pesquisa esportiva nas universidades.”
“Por sua vez, nos Estados Unidos, embora se registrem algumas tentativas de mudança de terminologia como na Alemanha Federal, segundo
Broekhoff (1986), o termo educação física permaneceu nas escolas públicas e universidades, e o termo esporte continuou com o sentido utilizado
na Inglaterra. Na França, também ocorreu o mesmo fenômeno, permanecendo no idioma francês os termos ‘Education Physique’ e ‘Sport’.”
(7) Op. cit., p. 38.