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ISSN 1517-2422
cadernos
metrópole
Subjetividade e cultura
na metrópole contemporânea
Cadernos Metrópole
v. 13, n. 26, pp. 331-576
jul/dez 2011
Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–,
Semestral
ISSN 1517-2422
A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22
1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles
CDD 300.5
Periódico indexado na Library of Congress – Washington
Cadernos Metrópole
Profa. Dra. Lucia Bógus
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles
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ssubjetividade
ubjetividade e c
cultura
u ltt u r a
na
n a metrópole
m e t ró p o l e c
contemporânea
ontemporânea
PUC-SP
Reitor
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Luís António Vicente Baptista (UNL, Lisboa, Portugal)
Weber Soares (UFMG, Minas Gerais, Brasil)
Márcia da Silva Pereira Leite (UERJ, Rio de Janeiro, Brasil)
sumário
339 Apresentação
Ci zenship, inclusion and voice 341 Cidadania, inclusão e voz
Manuel Villaverde Cabral
Ways of being and feeling in the accelera on 359 Maneiras de ser e de sen r na aceleração
and the contemporary limitlessness
e a ilimitação contemporânea
Claudine Haroche
dossiê
subjetividade e cultura
na metrópole contemporânea
Narra ves about a centennial metropolis: 379 Narra vas sobre a metrópole centenária:
Simmel, Hessel and Seabrook
Simmel, Hessel e Seabrook
Carlos Fortuna
Culture and urbanity: from Simmel’s metropolis 395 Cultura e urbanidade: da metrópole de Simmel
to the fragmented and deterritorialized city
à cidade fragmentada e desterritorializada
Jovanka B. Cavalcan Scocuglia
Territorial prac ces of urban middle class: 419 Prá cas territoriais da classe média urbana:
o Jardim Icaraí em Niterói/RJ
Jardim Icarai (Icaraí Garden) in Niterói/RJ
Brasilmar Ferreira Nunes
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337
From Simmel to everyday life 439 De Simmel ao co diano na metrópole pós-urbana
in post-urban metropolis
Silke Kapp
The metropolis as a space-a kind 451 A metrópole como espaço- po de uma experiência
of sensory experience
sensível
Julieta M. de Vasconcelos Leite
The city of Simmel, the city of men 461 A cidade de Simmel, a cidade dos homens
Lúcia Leitão
City postmodern gentrifica on 473 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção
and the social produc on of fragmented space
social do espaço fragmentado
Luís Mendes
The phenomenon of counterurbaniza on 497 El fenómeno de contraurbanización
y el protagonismo de ciudades menores
and the prominence of smaller ci es
y de espacios rururbanos metropolitanos
and rururban metropolitan areas
María Mercedes Cardoso
Homeless families and families without 523 Família sem casa e casas sem família: o caso
homes: the case of the Metropolitan
da Região Metropolitana de Belo Horizonte
Region of Belo Horizonte
Ana Paula Maciel
Ana Paula Baltazar
Poor housing and tenements 549 Habitação precária e os cor ços da área
in downtown Santos
central de Santos
André da Rocha Santos
338
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 331-576, jul/dez 2011
Apresentação
Imbuída de intento em inovar no lançamento de cada um dos números dos Cadernos
Metrópole, a Comissão Editorial implementa conjunto de estratégias voltadas ao aprimoramento
do veículo comentado, cuja essência é a de lidar com a problemática urbana contemporânea. De
estratégia pautada no lançamento de números temáticos, migramos para um formato mais aberto
e que não rompe completamente com essa tradição, peculiar de nosso periódico. Guarda-se a ideia
inicial do temático, preservando em sua estrutura espaço de reunião de papers no formato de
dossiê, ao mesmo tempo em que se dispõe a publicar conjunto de trabalhos submetidos livremente
pelo autores em sua plataforma.
O Cadernos Metrópole 26 se apresenta, portanto, como um divisor de águas em nossa
política de editoração. Seu foco é a sociabilidade metropolitana, inspirado em intento inicial de ter
como ponto de partida a contribuição de estudo clássico do sociólogo e filósofo alemão George
Simmel: A metrópole e a vida mental.
Como diz Jeffrey Alexander, clássica é uma obra que possui um status privilegiado em face
da exploração contemporânea do tema. Além disso, há também nos clássicos, ou pelo menos em
alguns deles, a possibilidade de antecipação do porvir. Essa é a sensação deixada na leitura do
ensaio em foco: estavam todas aquelas condições já plenamente desenvolvidas na Berlim do início
do século XX, ou algumas delas só se fariam sentir mais contemporaneamente?
Passado mais de um século da sua publicação, o estudo citado continua a instigar os
pesquisadores, suscitando novas interrogações e desdobramentos. Por isso é considerado,
nas ciências sociais, um dos artigos cuja leitura se torna obrigatória, não por sua importância
histórica, mas justamente pela atualidade das questões apresentadas e pela possibilidade de
estabelecimento de link com o que contemporaneamente já se produziu.
Por essa razão, e como se verá nas leituras dos artigos deste número dos Cadernos
Metrópole, os clássicos lidos e interpretados com liberdade e ante os desafios do contexto
contemporâneo, são um convite constante à nossa imaginação e inventividade no campo
da reflexão acadêmica, principalmente se considerarmos as transformações observadas nas
metrópoles contemporâneas, distantes mais de um século da Berlim de Simmel.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 339-340, jul/dez 2011
339
Apresentação
Espelhando-se nesse clássico, o Cadernos Metrópole disponibiliza conjunto de artigos cujo
foco é a sociabilidade metropolitana. Para isso, contou com a participação de pesquisadores de
diferentes áreas do conhecimento, assim como de diferentes contextos nacionais e internacionais,
guardando o caráter cosmopolita do Cadernos Metrópole, como o são a vida e a sociabilidade
metropolitana.
Na estruturação do número 26 do Cadernos Metrópole reunimos papers distribuídos:
– Primeiro, no tratamento da subjetividade metropolitana a partir do olhar europeu, com
apresentação de trabalhos escritos por dois pesquisadores: “Cidadania, inclusão e voz”, de Manuel
Villaverde Cabral e “Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea”, de
Claudine Haroche.
– Segundo, com conjunto significativo de artigos inspirados na obra de Simmel, filtrado a
partir dos contextos atuais e incluídos neste número dos Cadernos como dossiê. Em se tratando de
artigos associados à racionalidade das metrópoles periféricas, apresentam-se como contribuições
instigantes, posto possibilitarem, a partir desse diálogo, apresentação de novos modos de
subjetivação nas metrópoles da atualidade. Os textos apresentados são o seguinte: “Narrativas
sobre a metrópole centenária: Simmel, Hessel e Seabrook”, de Carlos Fortuna; “Cultura e
urbanidade: da metrópole de Simmel à cidade fragmentada e desterritorializada”, de Jovanka B.
Cavalcanti Scocuglia; “Práticas territoriais da classe média urbana: o Jardim Icaraí em Niterói/RJ”,
de Brasilmar Ferreira Nunes; “De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana”, de Silke Kapp;
“A metrópole como espaço-tipo de uma experiência sensível’, de Julieta M. de Vasconcelos Leite;
“A cidade de Simmel, a cidade dos homens”, de Lúcia Leitão e “Cidade pós-moderna, gentrificação
e a produção social do espaço fragmentado”, de Luís Mendes.
– Terceiro, a contemplar artigos submetidos livremente na plataforma da revista. Da
demanda induzida, com lançamento de edital temático para o número 26, apresenta-se espaço
voltado à recepção de contribuições cuja natureza possibilita apreensão das temática de estudo
desenvolvidas na área de planejamento urbano e correlatas. Foram incluídos, nessa perspectiva,
os trabalhos: “El fenómeno de contraurbanización y el protagonismo de ciudades menores y de
espacios rururbanos metropolitanos” de María Mercedes Cardoso; “Família sem casa e casas sem
família: o caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte”, de Ana Paula Maciel e Ana Paula
Baltazar e “Habitação precária e os cortiços da área central de Santos”, de André da Rocha Santos.
A nossa expectativa é que este número represente uma real contribuição, a partir dos
novos desafios colocados pela vida metropolitana contemporânea, às pesquisas que se fazem hoje
no Brasil sobre a sociabilidade e os modos de vida urbanos.
Eustógio Wanderley Correia Dantas
Luciana Teixeira Andrade
Comissão Editorial
Cadernos Metrópole
340
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 339-340, jul/dez 2011
Cidadania, inclusão e voz*
Citizenship, inclusion and voice
Manuel Villaverde Cabral
Resumo
Em primeiro lugar, são propostas as referências
que presidem a uma teoria conjunta da cidadania
e da sociedade civil; em segundo lugar, é apresentada sinteticamente a reflexão produzida na última
década e meia acerca da exclusão e inclusão sociais, bem como as suas manifestações concretas
mais importantes, que continuam a se desenvolver
sob os nossos olhos; em terceiro lugar, usaremos
algumas investigações acerca da sociedade portuguesa para tentar identificar a natureza da relação
entre cidadania e inclusão, bem como os défices
de ordem cívica e política, ou seja, os défices de
“voz”, que se observam a este nível; a concluir,
são apresentados alguns desenvolvimentos recentes das modalidades de exercício da “voz” por
parte dos cidadãos portugueses numa perspectiva
comparada.
Abstract
Firstly, the references which underlie a
joint theory of citizenship and civil society
are proposed. Secondly, we present a brief
reflection on what has been produced over
the last fifteen years about social exclusion
and inclusion as well as their more concrete
manifestations that keep on taking place
right under our eyes. Thirdly, we use some
investigations of the Portuguese society to try to
identify the nature of the relationship between
citizenship and inclusion. We also examine
the deficits in civic and political order, that is,
deficits of “voice”, which are observed at this
level. As a conclusion we show some recent
developments of the modality of exercising
"voice" by Portuguese citizens in a comparative
perspective.
Palavras-chave: cidadania; inclusão; saída; voz.
Keywords: citizenship; inclusion; output; voice.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011
Manuel Villaverde Cabral
Trata-se aqui de uma breve reflexão in-
Dividi então o texto em três momentos
formativa e despretensiosa sobre os temas da
distintos. Em primeiro lugar, procurarei ofere-
cidadania e da inclusão, aos quais acrescentei
cer rapidamente as referências que presidem a
o conceito de “voz”, que pedi emprestado ao
tudo aquilo que se poderia chamar uma teoria
pequeno grande livro do economista político
conjunta da cidadania e da sociedade civil; em
norte-americano Albert Hirschman, cujo título
segundo lugar, debruçar-me-ei sinteticamente
cito em inglês por ser difícil de traduzir: Exit,
sobre a reflexão produzida na última década
Voice and Loyalty (Hirschman, 1970). Exit quer
e meia acerca da exclusão e inclusão sociais,
dizer saída, mas nesse livro significa muito mais
bem como as suas manifestações concretas
do que isso. Pode designar o ato de deixar de
mais importantes que continuam a desenvol-
comprar uma determinada marca ou deixar
ver-se sob os nossos olhos; em terceiro lugar,
de fazer compras numa determinada loja, mas
usarei algumas investigações acerca da socie-
pode também significar o abandono de uma
dade portuguesa para tentar identificar, generi-
organização à qual se pertence, por exemplo,
camente, a natureza da relação entre cidadania
um partido ou um sindicato, e pode ainda sig-
e inclusão, bem como os défices de ordem cívi-
nificar, no nível dos Estados, qualquer coisa co-
ca e política, ou seja, os défices de voz, que se
mo “votar com os pés”, por exemplo, emigrar.
observam a este nível, concluindo com a apre-
Exit é uma forma de exprimir silenciosamente
sentação de alguns desenvolvimentos recentes
o descontentamento, seja com uma firma, com
das modalidades de exercício da voz por parte
uma organização ou com um sistema político.
dos cidadãos.
Voice, voz, significa a expressão não silenciosa
desse mesmo descontentamento. Por seu turno,
Loyalty, lealdade, significa a permanência passiva nos respectivos grupos de pertença, o assen-
Cidadania e sociedade civil
timento com o statu quo ou a ordem vigente.
O argumento de Hirschman é que as
Sociedade civil e cidadania remetem, de algum
respostas positivas ou negativas das firmas,
modo, uma para a outra, sendo difícil dizer qual
organizações ou Estados às ameaças de declí-
precede ou qual pressupõe a outra. Em todo
nio, que sempre os confrontam, reside numa
caso, pode dizer-se que sociedade civil – isto é,
feliz ou infeliz combinatória entre as três atitu-
a organização de redes e grupos autônomos de
des referidas, sendo a “voz”, previsivelmente,
defesa de valores e interesses distintos ou con-
aquela que faz a diferença. Se a “saída” for
corrrentes entre si e, sobretudo, distintos das
esmagadora ou se prevalecer uma “lealdade”
esferas de interesse do Estado e das Igrejas –
passiva, a resultante será o declínio; inversa-
constitui a materialização efetiva do exercício
mente, uma resposta positiva e eficiente ao
da cidadania. Contudo, se a noção de socieda-
declínio resultará daquilo que o autor designa
de civil só faz sentido com a formação do Esta-
como the elusive optimal mix of exit and voice,
do moderno no século XVII, ela pode emergir
ou seja, a fugidia combinação optimal entre
antes mesmo do reconhecimento dos direitos
“saída” e “voz”.
políticos e da sua institucionalização sob os
342
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011
Cidadania, inclusão e voz
regimes liberais, ao longo de um processo lento
a nacionalidade garantida pelos Estados
e tudo menos linear, cheio de avanços e recuos
absolutistas, originariamente no século XVII e
da franquia eleitoral individual, percurso este
prolongando-se pelo XVIII e em boa parte do
que, em Portugal, apenas se universalizou de
XIX, reabsorveu a sociedade civil embrionária
forma genuína com o 25 de Abril de 74, fazen-
das cidades medievais e renascentistas. Já a
do então coincidir cidadania e sociedade civil
nacionalidade enquanto cidadania – conjunto
num mesmo espaço estadual nacional.
de direitos civis, políticos e sociais – é algo de
A noção de cidadania parece, no entan-
muito mais tardio, identificado apenas a se-
to, ser anterior à de sociedade civil e remeter
guir à 2ª Guerra Mundial por Thomas Herbert
para a emergência dos direitos pessoais e
Marshall, num ensaio luminoso de 1950 so-
corporativos que os habitantes de algumas
bre cidadania e classes sociais, que desde en-
cidades medievais, os chamados “burgueses”,
tão tem constituído, de algum modo, a bíblia
incluindo em países como Portugal, foram ad-
da inclusão social. Marshall (1992) estava, na
quirindo através de determinados tipos de fo-
realidade, a teorizar o início do contrato social
rais, como na Lisboa do final do século XIV. O
Keynesiano – devido, como sabemos, ao futu-
ponto é que a cidadania nasce territorializada,
ro Lord Beveridge – que configurava para as
circunscrita primeiro às cidades e suas áreas
próximas décadas o modelo do Welfare State,
de influência, tipicamente na Itália renas-
adotado mutatis mutandis nas democracias
centista, e ainda hoje é possível observar um
europeias, com muitas diferenças já também
efeito metropolitano positivo sobre o exercício
teorizadas (Esping-Andersen, 1990), enquanto
ativo da participação cívica e da mobilização
contrapartida material ou, se preferirmos, como
política (Cabral, 2008), como se, para usar
substanciação dos direitos conferidos à cidada-
uma expressão recuperada por Weber, o ar da
nia cívica e política pela democracia.
cidade trouxesse, efetivamente, um espírito
Estes novos direitos sociais, aos quais a
de liberdade (Weber, 1958/1921). Só depois
sociedade portuguesa ascenderia, à sua ma-
a cidadania se foi estendendo, mitigadamen-
neira, com o 25 de Abril e de então para cá,
te, aos chamados Estados-Nação, sob a forma
correspondem, keynesianamente, à necessida-
daquilo a que damos, correntemente, o nome
de de sustentar a procura solvável das famílias
de nacionalidade, mas que os anglo-saxônicos
nas três situações em que, identificadamente,
designam por citizenship, mantendo assim a
os membros da população ativa, os trabalha-
ligação entre cidadania e território.
dores, não estão em condições de trabalhar e,
A nacionalidade, nos poucos territórios
portanto, de angariar recursos próprios: o de-
onde de início ela se vai manifestando, Por-
semprego, a velhice e a doença. Com a evolu-
tugal é um deles, começa na realidade por
ção do impropriamente chamado “estado-pro-
ser o direito de proteção interna e externa de
vidência” – já que o Estado nada providencia,
pessoas e bens, correlativo da entrega, por as-
nós é que providenciamos os nossos impostos
sim dizer, da soberania ao Estado, segundo o
ao Estado, – a inclusão econômica e a coesão
esquema hobbesiano de troca, digamos assim,
social foram sendo assumidas pelos seus dois
de soberania por segurança. Neste sentido,
pilares estatais: a Segurança Social e o Sistema
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011
343
Manuel Villaverde Cabral
Nacional de Saúde. Eis o ponto em que o de-
burgo, conferindo assim à noção de sociedade
senvolvimento histórico da noção de cidadania
civil o significado de uma esfera de interesses
nos faz chegar ao domínio da inclusão e da ex-
econômicos privados, autônomos e, no limite,
clusão, que abordarei daqui a um instante.
em competição com o Estado-Nação em nas-
Em compensação, a educação pública,
cimento, se não mesmo opostos às suas insti-
frequentemente acrescentada ao “Estado-
tuições. Para Hegel, enquanto cidadão alemão
providência”, em rigor não pertence ao Welfare
que ambicionava a formação de um Estado-
State, e só é considerada, na teoria, como uma
-Nação ainda muito atrasado na Alemanha,
despesa social na medida em que visa igualizar
a vigilância reguladora do Estado sobre essa
as condições de partida e não as de chegada –
sociedade civil era absolutamente necessária
como o desemprego, a doença ou a reforma –
para corrigir, por assim dizer, a livre atuação
a fim de garantir a uma sociedade moderna o
desta última.
capital humano de que esta, em princípio, carece
Mais tarde, inspirado pela sua visão da
e pretende portanto dotar-se. Inversamente, as
democracia norte-americana, Tocqueville foi
políticas de habitação, a chamada habitação
praticamente o último grande defensor da
social, sendo raramente convocada, faz parte
ideia de sociedade civil enquanto contrape-
integrante do welfare state (Wilensky, 1973).
so, simultâneo, ao individualismo liberal e ao
Entretanto, sem pretender fazer a narrati-
centralismo estatal. Contudo, numa espécie
va de um longo e complexo processo, convém
de síntese atualizada desta controvérsia polí-
recordar que o conceito propriamente dito de
tica, o filósofo americano John Rawls acabaria
sociedade civil emerge, como havia dito, no sé-
por designá-la como “sociedade organizada”,
culo XVIII, na Escócia, mais exatamente do que
organized society, na sua grande teoria sobre
na Inglaterra, com o filósofo Adam Ferguson,
a equidade social no século XX. Na mesma li-
que vai escrever em 1767 o primeiro “ensaio
nha que Hegel, também Rawls considera que
sobre história da sociedade civil” enquanto
a função do Estado é, precisamente, a de de-
manifestação dos novos interesses mercantis e
fender o interesse público contra as eventuais
industriais, mas também de secessão religiosa
vantagens adquiridas pelos interesses melhor
e intelectual, por diferenciação relativamente
organizados e porventura mais influentes poli-
à ordem estatal aristocrática e fundiária en-
ticamente (Rawls, 1972).
tão vigente. Ao amadurecer, o conceito evoluiu
Essa dimensão realista, para não dizer cí-
no sentido de uma esfera cívica diferenciada,
nica, da chamada sociedade civil, implícita na
embora nunca radicalmente autônoma do Es-
teoria de Rawls e retomada por outros “des-
tado, do mercado e das igrejas, assim como
contentes da sociedade civil”, como lhes cha-
da própria esfera familiar e privada no sentido
mam Arato e Cohen na sua magnífica síntese
pessoal do termo.
crítica de 1992, voltará a surgir com força na
Na Alemanha, contudo, com Hegel so-
última década do século XX, quando os temas
bretudo, o conceito é sintomaticamente de-
articulados da sociedade civil e do exercício da
signado por Bürgerliche Gesellschaft , ou seja,
cidadania reemergem, após um longo período
a “sociedade burguesa”, as “forças vivas” do
de silêncio, com o início da globalização e o
344
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011
Cidadania, inclusão e voz
retorno ao liberalismo econômico na década de
Calouste Gulbenkian (Cabral, 2008) e com o
70 do século passado.
colóquio que estou neste momento a planear
A partir do momento em que estas ten-
para a Fundação da Casa de Mateus. O livro
dências se conjugam, na década de 90, com a
de Putnam não faz mais, de fato, do que re-
implosão do chamado socialismo real, abre-se
descobrir a teoria do capital social de James
o espaço à emergência daquilo a que Alexander
Coleman, que era na realidade uma teoria
(1998) chamou as “sociedades civis reais”. Si-
econômica aplicada a microcomportamentos
multaneamente, generalizam-se os apelos à “li-
sociais; porém, ao aplicá-la à escala societal,
bertação da sociedade civil”, como já acontece-
Putnam abriu o campo a uma reconciliação
ra em Portugal no início da década de 80 com o
extremamente fértil, embora complexa e se-
apelo premonitório do então primeiro-ministro
meada de contradições e paradoxos, entre as
Francisco Pinto Balsemão, que introduziu pela
noções de cidadania e sociedade civil.
primeira vez o conceito no imaginário político
A sofisticação e a diferenciação crescen-
nacional, com toda a significação adversa ao
tes do modelo do capital social permitiram,
Estado, em todo o caso, ao Estado centralista e
inclusivamente, articulá-lo com a problemática
burocrático, que tal “libertação” continha.
da exclusão e inclusão sociais, assim como com
Foi, pois, nesse contexto que, de forma
a nova temática que está a reorientar, na minha
mais concreta e mais próxima das nossas rea-
opinião, a ciência política mais criativa, a saber,
lidades políticas e sociais, estes conceitos ga-
a emergência do paradigma da qualidade da
nharam atualidade e impacto na renovação
democracia. Paradoxalmente, mas de forma
da teoria democrática, nomeadamente com a
que se compreende bem a um nível superior de
investigação do cientista político norte-ameri-
inteligibilidade, a emergência do novo paradig-
cano Robert Putnam sobre a implementação
ma da auditoria e da qualidade democráticas
da descentralização político-administrativa em
fica a dever-se, de forma determinante, à que-
Itália. Com efeito, a forma diferenciada como
da do muro de Berlim e à implosão do sistema
o processo ocorreu permitiu a Putnam dar-
soviético. Com efeito, como tive oportunidade
-se conta de que o potencial democratizante
de referir desde cedo, na medida em que a
da devolução de direitos e deveres às regiões
democracia representativa passou a estar, por
italianas era tanto melhor utilizado por estas
assim dizer, sozinha no mercado da represen-
quanto mais profundas eram as raízes históri-
tação política, ficou sujeita a maior escrutínio e
cas do exercício do associativismo profissional
exigência por parte dos representados e, corre-
e empresarial, em suma, quanto mais preco-
lativamente, dos cientistas e analistas políticos
ces e fortes eram as sociedades civis regionais
(Cabral, 2000).
(Putnam, 1993).
O retorno da sociedade civil e o seu des-
A prolongada pesquisa de Putnam, pu-
dobramento em capitais sociais de diversa na-
blicada apenas em 1993, gerou uma controvér-
tureza – uns mais inclusivos, outros mais exclu-
sia que dura até hoje e promete continuar. Eu
dentes – geraram, entretanto, como é conheci-
próprio estou envolvido nela com um volume
do, um revival do associativismo e, sobretudo
que tive o gosto de organizar para a Fundação
no chamado Terceiro Setor, um prodigioso surto
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345
Manuel Villaverde Cabral
de organizações não-governamentais – essas
publicado em 2005 com o apoio, não à toa, da
ONGs tipicamente situadas entre o Estado e
Fundação Gulbenkian, da FLAD, da Fundação
o mercado, numa fronteira entre o público e
Ilídio Pinho e da Fundação Aga Khan (Franco,
o privado que nem sempre está traçada com
2005). Ora, segundo este levantamento, o 3º
clareza (Salamon et al., 1999-2004). Esta falta
Setor português representaria cerca de 4% do
de demarcação clara entre Estado, mercado e
PIB nacional e “envolveria as energias de qua-
sociedade deu inclusivamente origem àquilo
se um quarto de milhão de trabalhadores ETI”,
que no mundo anglo-saxônico se dá o nome
dos quais 50.000 em regime de voluntariado.
de QUANGOs, isto é, quasi-non governmental
No entanto, esta dimensão seria “consi-
organizations , ou seja ainda, quase-ONGs,
deravelmente inferior à média da maioria dos
onde todavia a mão do Estado e a do próprio
países da Europa ocidental [embora] quase
mercado estão muito próximas. Esta é uma
equivalente à de Espanha e Itália e significa-
ilustração recente daquilo que sempre foi visto,
tivamente superior à dos países em transição
por muitos observadores, como the dark side of
da Europa Central e de Leste”. Perto de meta-
social capital (Wacquant, 1998).
de dos recursos humanos do 3º setor nacional
Inversamente, nada ilustra melhor o pro-
dedica-se ao fornecimento de serviços sociais
blema da rigorosa independência a manter pe-
e uma proporção considerável aos serviços de
las organizações da sociedade civil em relação
saúde e de educação. Aqui, têm particular re-
aos poderes públicos, às organizações político-
levo as IPSSs, cuja inclusão no 3º setor é inter-
-partidárias, às igrejas e até aos próprios mo-
nacionalmente aceite, mas permanece contro-
vimentos sociais, do que a atividade desen-
versa, dado o comando hierárquico a que elas
volvida pelas Fundações e outras instituições
estão em geral sujeitas relativamente a institui-
filantrópicas e mecenáticas. Por sua vez, João
ções consideradas, por seu turno, exteriores pa-
Freire tem um trabalho muito importante onde
ra não dizer estranhas à sociedade civil, como
resume a evolução – à escala internacional,
as igrejas.
mas também em Portugal – do associativismo
clássico, participativo e cooperativo, para um
associativismo de prestação de serviços e de
delegação de poderes (Freire in Cabral, 2008),
Exclusão e inclusão sociais
como aliás assinalado pelo próprio Putnam
noutro famoso livro (Putnam, 2008).
Chegamos, por assim dizer naturalmente, ao
Existe por outro lado um estudo mui-
domínio do social, que preside a este Encontro
to completo sobre o chamado terceiro-setor
Nacional das Fundações. Procurarei, então, fa-
português onde operam as organizações da
zer muito sucintamente o arco das exclusões,
sociedade civil sem fins lucrativos. O estudo
como me foi sugerido, incluindo e para além da
está integrado no projeto internacional da
dimensão dos rendimentos econômicos, à qual
Johns Hopkins University e foi realizado pela
voltarei no entanto no fim desta seção. Para co-
Universidade Católica Portuguesa (Porto) em
meçar, focar-me-ei nas múltiplas ambiguidades
2002, sob a direção de Raquel Franco, sendo
da noção de exclusão social, reconhecidas aliás
346
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011
Cidadania, inclusão e voz
pelo próprio fundador deste paradigma desde
simplesmente, quando esta penetra pelo cam-
o momento em que o lançou. Estou a pensar,
po fora e acaba com as atividades agrícolas,
evidentemente, no psicanalista e sociólogo
destruindo do mesmo passo as qualificações
francês Robert Castel, cujas “metamorfoses da
profissionais dos habitantes dos territórios
questão social” lançaram, a partir de 1995, es-
peri-urbanos das grandes cidades, como foi
te novo paradigma dos direitos sociais na era
recentemente estudado aqui perto, em Vila
pós-keneysiana (Castel, 1995), paradigma este
Nova de Gaia, a propósito da implementação
que não cessou de se alargar desde essa altu-
do RMI, numa tese de doutoramemto (Eduardo
ra até adquirir novos aprofundamentos com a
Rodrigues, Departamento de Sociologia, Uni-
presente crise.
versidade do Porto).
Como Castel teve oportunidade de cla-
Esse conjunto de causas de algum mo-
rificar posteriormente, uma coisa é a discrimi-
do avulsas, distintas entre si e não estrutura-
nação negativa, em particular em torno dos
das, estende-se até ao isolamento extremo dos
imigrantes e dos jovens da segunda geração
sem-abrigos e dos vagabundos, associado por
de imigrantes, mas que também poderia ser,
vezes ao alcoolismo ou à toxicodependência,
tipicamente, a discriminação contra as pessoas
para recordar uma vez mais o elenco estabe-
de etnia cigana, em suma, uma exclusão social
lecido por Robert Castel. O mais relevante em
explícita de grupos que, de alguma maneira,
tudo isto é que foram tais situações que acaba-
são identificados como “não-nós”, como “ou-
ram por legitimar, no contexto da globalização
tros”, especialmente nos países da chamada
e das políticas neoliberais, o retorno das políti-
“velha Europa”, confrontados que são há dé-
cas sociais ao assistencialismo e ao casuísmo,
cadas com as sequelas pós-coloniais dos seus
para não dizer à arbitrariedade, dos chamados
impérios. Uma coisa é, pois, essa discriminação
means tests, agora levados ao absurdo da in-
negativa, trágica, mas por assim dizer trivial;
vasão da privacidade dos beneficiários, como
outra coisa, que constitui aquilo que mais nos
acontece com a atribuição do chamado “rendi-
interessa neste contexto, é a perda do laço so-
mento garantido”.
cial, ou seja, o que Castel chama de desfiliação,
désaffiliation (Castel, 1996).1
Por seu turno, esta verificação dos meios
de subsistência dos assistidos acarreta toda
Com essa noção de desfiliação, Cas-
sorte de disfunções potenciais, desde o clien-
tel refere-se pois a pessoas e, só em segunda
telismo ao paternalismo, abrindo um espaço
instância, a grupos que não são, à partida,
de negociação totalmente assimétrica, em si
objeto de discriminação étnica ou religiosa e
mesmo altamente criticável do ponto de vista
cuja exclusão se deveria menos a causas eco-
ético, e totalmente oposta ao caráter abstrato
nômicas, como o rendimento, do que sociais,
e universal dos direitos sociais que o contrato
num sentido restrito do social, vizinho do psi-
keneysiano e beveridgiano supunha. Castel foi
cossocial. Por exemplo, em caso de deficiên-
o primeiro a assinalar a profunda ambiguidade
cias físicas ou mentais, de ruptura familiar, ou
destas falsas discriminações positivas através
ainda da quebra das redes sociais quando as
das quais os direitos sociais têm vindo a ser
pessoas migram do campo para a cidade ou,
descontratualizados (Castel, 1995, p. 472).
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Manuel Villaverde Cabral
O próprio prolongamento da esperança
como a dos “intermitentes”, um regime criado
de vida, com o crescente envelhecimento so-
em França para certas profissões artísticas sem
ciodemográfico das populações, pode e tem in-
atividade regular; em Portugal, a abusiva ge-
felizmente contribuído para o alastramento de
neralização dos chamados “recibos verdes” é
formas de pobreza oculta ou mal-disfarçada,
paradigmática desta evolução precarizante do
devidas às baixas reformas, como acontece
mercado de trabalho.
tipicamente com as pensões do regime não
Na realidade, o chamado precariado, fre-
contributivo, mas não só. Mais recentemente,
quentemente disfarçado de trabalho indepen-
surgiu o desemprego maciço, algo de que a
dente sob a ominosa forma do “recibo verde”,
sociedade portuguesa se tinha mantido tenaz-
tornou-se uma nova categoria laboral, para
mente afastada, pagando por isso até aqui um
não dizer socioeconômica, por distinção relati-
elevado preço em termos de ineficiência econô-
vamente ao salariato. Castel tem razão quando
mica generalizada.
se eleva contra o fato de os precários serem le-
Com a atual crise, tornou-se mais difícil
galmente separados do salariato e dos direitos
de sustentar esse trade-off a que me referi num
históricos a este associados, para serem trata-
artigo sobre a economia política do mercado
dos como trabalhadores pseudoindependentes,
de trabalho português (Cabral, 1999). Com
em suma, uma espécie de gestores do seu capi-
efeito, em Portugal tem-se historicamente sub-
tal humano, com regime jurídico próprio (ibid.).
vencionado o subemprego a fim de manter as
A nova questão social seria, então, esta:
pessoas ativas e minimamente integradas, em-
uma nova ordem econômica onde o fosso en-
bora com rendimentos muitas vezes abaixo do
tre incluídos e excluídos ameaçaria a coesão da
chamado nível de pobreza, cujo caráter relativo
sociedade, com isto se regressando ao fantas-
já foi criticado por autores insuspeitos como
ma bem real da dissolução da substância dos
Amartya Sen (1983). Agora, com a crise, surgiu
elos sociais que Karl Polanyi (1994/1980) havia
o desemprego maciço e duradouro, bem como
levantado durante a 2ª Guerra Mundial na sua
a precarização generalizada do vínculo salarial,
famosa Grande Transformação. Seria caso para
conforme Castel assinalara, produzindo rendi-
perguntar se não é este o momento de evocar
mentos muito baixos, que podem levar, por sua
o problema da “voz”, da palavra que os cida-
vez, ao abuso do álcool e de outras drogas, fla-
dãos têm a dizer a este respeito. Antes, porém,
gelo ao qual a sociedade portuguesa tem sido
vale a pena registar que, depois de tudo o que
particularmente sujeita.
temos dito, o fenômeno mais grave que asso-
Para descrever este estado de vulnerabili-
la a sociedade portuguesa continua a ser o da
dades e de exclusões, mais ou menos violentas,
crescente desigualdade de rendimentos econô-
profundas e irreversíveis, Castel fala da “mul-
micos, acerca da qual dispomos de uma tese
tiplicação de pessoas que ocupam na socieda-
exemplar de Carlos Farinha Rodrigues (2007a),
de uma posição de supranumerários” (Castel,
feita em 2005 com base em dados de 2000;
1995). Hoje falaríamos, generalizadamente,
desde então, a situação não tem deixado de se
como ele aliás já antecipara, do “precariado” e
agravar, como o mesmo autor tem demonstra-
até de singulares categorias econômicas novas
do em várias ocasiões (2007b).2
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Cidadania, inclusão e voz
Assim, em 2000, com um índice de Gini
garantido”. Existe aliás um trade-off entre po-
de 35% e uma taxa de pobreza relativa supe-
breza e desigualdade quando se comparam as
rior a 19%, Portugal era o país mais desigual
zonas rurais e as urbanas. A pobreza prevalece
da União Europeia a 15, com um nível de
no campo e as desigualdades de rendimento
desigualdade 25% superior à média europeia
são mais gritantes nas cidades.3 Com a crise, ri-
e uma incidência da pobreza relativa 14% su-
gidificaram-se dois universos: o mundo urbano
perior à media dos 15. Em 1989, o índice de
da atividade, onde as desigualdades são muito
Gini tinha baixado a 32%, bastante melhor en-
grandes, mas persiste um certo dinanismo, e o
tão do que nos Estados Unidos, por exemplo, e
mundo das pequenas vilas e das aldeias, onde
neste momento, segundo estimativas de Carlos
em contrapartida prevalece uma espécie de
Farinha para 2005, teria atingido 41% contra
igualdade por baixo, mas ao qual falta dinamis-
31% na UE-25 e menos de 30% na UE-15; nos
mo para resistir.
últimos anos, o índice de Gini teria voltado a
Em segundo lugar, a clivagem geracional,
descer em Portugal mercê de prestações so-
que em larga medida se sobrepõe à clivagem
ciais pontuais junto de grupos particularmente
urbano-rural. Com o envelhecimento acelerado
empobrecidos.
da população, a percentagem de pessoas com
Ainda segundo este autor, a desigualda-
65 anos ou mais passou, na última década do
de e a pobreza possuem, em Portugal, um ca-
século XX, de 15% para 22%. Ora, a incidên-
ráter estrutural – distinguindo-se, neste sentido,
cia da pobreza relativa é sempre superior a
da noção avulsa de exclusões sociais – associa-
35%, contra uma média nacional em torno de
do a um determinado modelo de crescimento
19%, entre os agregados familiares compostos
econômico, que melhorou indiscutivelmente o
exclusivamente por idosos; dito de outro modo,
bem-estar da generalidade da população, ao
em 2000, 42,5% dos pobres – com rendimen-
longo das últimas décadas do século XX, mas
tos abaixo de 60% do rendimento mediano –
que não só não impediu o aumento das desi-
eram idosos.
gualdades, como foi gerador de novos fatores
de desigualdade e pobreza (Rodrigues, 2007).
Em terceiro lugar, a clivagem educacional. Segundo Carlos Farinha, é esta a principal
E quais são, então, os mecanismos ge-
variável explicativa dos níveis de rendimento e
radores dessa desigualdade e dessa pobreza?
de pobreza em Portugal. Este efeito discrimi-
Em primeiro lugar, a clivagem urbano-rural, à
nante aumentou na década de referência, ao
qual aludi qualitativamente e agora podemos,
mesmo tempo que o Estado, as Fundações e as
de algum modo, quantificar. Assim, o rendimen-
instituições da sociedade civil faziam esforços
to médio nas áreas rurais passou de 72% da
financeiros indiscutíveis no sentido da escolari-
rendimento nos centros urbanos em 1989 para
zação das nossas crianças e dos nossos jovens
61% em 2000, sofrendo pois uma perda consi-
(Candeias, 2008). No entanto, tudo leva a crer
derável. Na primeira metade da década de ‘90,
que o efeito discriminante do fator educativo
o rendimento rural médio diminuiu em valor
tenha continuado a aumentar na primeira dé-
absoluto e esta queda só terá sido sustida gra-
cada do século XXI, já que, pela primeira vez,
ças a paliativos como o “rendimento mínimo
nesta década, o aumento das desigualdades
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011
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Manuel Villaverde Cabral
entre o primeiro e último decil se fez à custa
não só do aumento do rendimento dos primei-
Saída, voz e lealdade
ros, como também da diminuição absoluta do
Veremos, para concluir, aquilo que se pode
rendimento dos últimos. Em todo o caso, entre
esperar do funcionamento da democracia e
1989 e 2000, o valor explicativo do fator edu-
do exercício da voz da cidadania neste vasto
cacional, numa regressão linear sobre a variân-
domínio da inclusão e exclusão sociais. No pri-
cia das desigualdades de rendimento, passou
meiro inquérito sociológico que tive oportuni-
de 25% para 40%. Assim, a prevalência da po-
dade de realizar na minha carreira, há quase 20
breza entre os agregados cujo chefe de família
anos, graças à iniciativa da Dra. Teresa Gouveia
possui um nível de instrução inferior ao básico,
através da FLAD, encontramos, como era aliás
é próxima de 50%.
de prever, uma correlação significativa mas ne-
Em quarto lugar, a exclusão total da ati-
gativa entre o exercício ativo da cidadania por
vidade produtiva, portanto do mundo do tra-
parte da população portuguesa e a percepção
balho e da sua sociabilidade, algo que iremos
que esta tinha da equidade social reinante na
estudar agora no Instituto do Envelhecimento,
nossa sociedade, estimada através da percep-
criado na Universidade de Lisboa graças à Fun-
ção subjetiva daquilo que na época designei
dação Calouste Gulbenkian, aumentou em 5
por equidade do sistema de oportunidades e
pontos a percentagem dos agregados familia-
recompensas socioeconómicas (Cabral, 1997).
res totalmente excluídos da atividade laboral,
Na altura, os inquiridos consideravam que
para atingir mais de 22% da população em
o sistema de oportunidades era relativamente
2000, apresentando estes agregados taxas de
aberto; em contrapartida, o sistema de recom-
pobreza superiores a 40%. Finalmente, para os
pensas era considerado muito iníquo. Não sei
ativos, a desigualdade salarial constituiu, na úl-
como é que os portugueses responderiam hoje.
tima década, o principal fator de aumento das
Desde então, mais do que na mediação socio-
desigualdades de rendimento.
econômica da cidadania, tenho-me concentra-
Ainda no mesmo estudo, o autor mos-
do nas mediações socioculturais subjacentes
tra que a capacidade redistributiva do sistema
ao exercício ativo da cidadania e à satisfação
fiscal português fica muito aquém daquilo que
com a democracia. Num estudo internacional
corresponderia à nossa carga fiscal (Amaral,
de 2004, cujos resultados tratei da forma que
2010, p. 60). Tudo isto para dizer, com base nos
se pode ver no Quadro 1, pretendi averiguar de
dados impressivos do Professor Farinha Ro-
que maneira se posicionavam a classe média-
drigues, que os principais fatores de exclusão
-alta e a classe trabalhadora perante os atri-
social na sociedade portuguesa continuam, afi-
butos e atitudes tipificadores da participação
nal, a estar estreitamente ligados ao fator ren-
política e da adesão à democracia. Comparei,
dimento – salários e pensões sobretudo – e aos
assim, o conjunto das duas camadas superiores
seus determinantes sociodemográficos: a cliva-
da sociedade europeia – empresários, proprie-
gem cidade-campo, a idade, a inatividade pro-
tários, profissionais liberais, técnicos superiores,
fissional e, acima de tudo, o nível de instrução!
etc., que designei por elites – com o operariado,
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Cidadania, inclusão e voz
Quadro 1 – Elites e Operariado ante a política,
segundo o país e UE (médias)
Portugal
Espanha
República Checa
Suécia
União Europeia (18)
EL
OP
MN
EL
OP
MN
EL
OP
MN
EL
OP
MN
EL
OP
MUE-18
Confiança inter-pessoal
4,40
4,39
4,45
5,21
4,71
4,84
4,89
4,05
4,42
6,57
5,76
6,25
5,29
4,52
4,86
Confiança nas instituições
5,00
4,61
4,82
5,05
4,61
4,84
4,80
4,21
4,42
6,21
5,36
5,90
5,46
4,83
5,18
Confança na classe política
3,16
2,51
2,82
3,84
3,09
3,37
3,60
2,99
3,22
5,15
4,19
4,72
3,96
3,17
3,60
Interesse pela política
2,58
1,89
2,12
2,27
1,76
1,88
2,47
2,03
2,20
2,86
2,45
2,60
2,76
2,19
2,38
Compreensão do fenômeno político
3,26
2,47
2,71
3,17
2,48
2,64
3,03
2,53
2,74
3,41
2,84
3,04
3,17
2,66
2,83
Iniciativa e resposta (responsiveness)
1,52
1,37
1,40
1,59
1,43
1,53
1,63
1,87
1,64
1,47
1,52
1,53
1,48
1,60
1,53
Proximidade dos partidos
2,81
2,71
2,74
2,85
2,70
2,75
2,85
2,75
2,78
2,95
2,86
2,89
2,85
2,79
2,84
Satisfação com a democracia
4,52
4,49
4,56
5,86
5,62
5,70
5,26
4,62
4,85
6,39
5,91
6,12
5,50
4,89
5,20
Escala Esquerda-Direita
5,18
4,89
5,08
4,45
4,13
4,41
6,01
4,90
5,45
5,28
4,41
4,88
4,92
4,78
4,93
Associativismo
0,17
0,07
0,09
0,23
0,09
0,13
–
–
–
0,49
0,33
0,39
0,32
0,14
0,21
Auto-Mobilização
0,81
0,30
0,41
1,64
0,72
0,99
1,22
0,62
0,90
2,20
1,34
1,81
1,55
0,67
1,02
Escalas 0-9 EL = Elite; OP = Operariado; MN = Média Nacional; MUE-18 = Média na União Europeia-18
que não é, como se sabe, a classe mais pobre da
a classe política e as instituições dos respecti-
sociedade nem a menos organizada da nossa
vos países; consequentemente, a sua satisfa-
sociedade (Cabral, 2006).
ção com a democracia é muito maior do que
Em linha, temos alguns dos mais impor-
a da classe operária. Por outras palavras, estes
tantes fatores habitualmente associados, na
resultados configuram uma autêntica confis-
teo ria da democracia, ao exercício ativo da
cação dos sistemas partidários e da própria
cidadania e à satisfação com o regime repre-
democracia pelas elites da União Europeia em
sentativo; em coluna, temos – para Portugal e
detrimento das respectivas classes subalternas.
quatro países com os quais nos quisemos com-
A única exceção relevante é o índice de-
parar, bem como para o conjunto da União Eu-
signado por responsiveness, que mede a capa-
ropeia (18 países disponíveis na base de dados
cidade de iniciativa dos indivíduos e a resposta
do ESS) – os valores apresentados pela elites,
do sistema à ação coletiva ou individual dos ci-
pelo operariado e pela média da população.
dadãos. Por aqui nos aproximamos dessa “voz”
Ora bem, só há uma conclusão a tirar, a nível
teorizada por Hirschman. São dois indicadores
de cada país ou a nível europeu: com raríssi-
simples: primeiro, perguntava-se que probabi-
mas exceções à escala nacional e europeia, se-
lidade haveria de os inquiridos se envolverem
ja qual for o indicador em causa, as elites não
num protesto contra alguma legislação da qual
só recorrem muito mais às oportunidades de
discordassem; e depois perguntava-se qual
participação política do que o operariado, co-
seria, segundo os inquiridos, a resposta do sis-
mo se identificam muito mais com os partidos,
tema no caso de as pessoas tomarem alguma
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011
351
Manuel Villaverde Cabral
iniciativa. Normalmente, a probabilidade de
Em Portugal, efetivamente, os índices de
tomar alguma iniciativa não é muito grande,
associativismo e de automobilização das eli-
mas o que faz, por assim dizer, baixar o índice
tes estão abaixo dos da classe operária sueca.
é o efeito de feedback negativo que tem, para
Comparativamente, Portugal sofre de um défice
mobilização dos cidadãos, a expectativa de que
societal de mobilização, podendo dizer-se que
eles têm de que as suas iniciativas “não servem
a capacidade de se automobilizar é definidora
para nada”.
de uma elite, porventura uma elite alternativa,
Ora, se em Portugal e Espanha, as elites
como veremos a seguir. Do lado das classes su-
tendem a tomar mais iniciativas de protesto do
balternas, também as lideranças sindicais são
que o operariado, não é esse o caso nos outros
elites, alvo potencial de contestações gerado-
países nem no conjunto da União Europeia.
ras, por seu turno, de elites alternativas, como
Comprova-se, assim, que prevalece na Penín-
aconteceu recentemente com o movimento dos
sula Ibérica uma relação política muito pouco
professores em Portugal.
construtiva, pouco dialogante e pouco frutuo-
É isso que se apercebe neste outro qua-
sa, entre uma elite que procura sistematica-
dro produzido no contexto de uma nova pes-
mente dissuadir o protesto e, por outro lado,
quisa sobre as modalidades de exercício da
uma classe operária que, perante as estratégias
cidadania (Cabral e Carreira da Silva, 2007). Pe-
dissuasórias das elites, renuncia por antecipa-
rante estes resultados, é lícito perguntar se não
ção a fazer ouvir a sua voz, interiorizando por
estaremos diante de uma mudança cultural, um
assim dizer a dissuasão e criando, portanto,
shift correlativo daquela outra mudança, iden-
uma espécie de círculo vicioso. Inversamente, a
tificada há duas décadas por Ronald Inglehart,
verificação de que a iniciativa serve para algu-
dos valores e atitudes materialistas em direção
ma coisa pode gerar um círculo virtuoso.
àquilo a que ele champou pós-materialismo
Finalmente, se é certo que na generali-
(Inglehart, 1990). Agora, porém, tratar-se-ia de
dade dos países da União Europeia as elites,
um shift, não tanto ao nível dos conteúdos co-
devido à abundância dos seus capitais humano
mo, sobretudo, ao nível das formas de exercer
e social, exercitam muito mais plenamente os
a cidadania e de desafiar as elites instaladas,
direitos constitucionais do que o resto da popu-
seja no poder, seja nos próprias instâncias de
lação, estes resultados mostram que só em Por-
contrapoder (Cabral, 2005).
tugal é que as próprias elites tendem a exercer
Identificamos, assim, duas modalidades
esses direitos menos do que o operariado de
distintas de exercício cidadão: por um lado, o
países como a Suécia, por exemplo, e por vezes
associativismo clássico, ou seja, a pertença
menos também do que a média europeia. Exis-
a associações cívicas, culturais, desportivas,
te, portanto, um efeito societal, segundo o qual
partidos, sindicatos, ordens profissionais, etc.,
a sociedade portuguesa sofre, no seu conjunto,
em suma, o associativismo clássico associado,
de um défice tal ao nível do exercício da cida-
passe a redundância, ao típico capital social
dania que as próprias elites revelam, frequen-
identificado por Putnam, em qualquer das
temente, possuir menos capital social do que o
suas vertentes, aberta (bridging) ou fecha-
conjunto da população europeia.
da (bonding); por outro lado, formas novas
352
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011
Cidadania, inclusão e voz
Quadro 2 – Associativismo e Auto-mobilização – Portugal (2004)
(Regressão Linear Múltipla)
Associativismo
Auto-mobilização
Interesse pela política
–
–
Mobilização cognitiva
–
0.141***
Iniciativa e resposta política
0.144***
0.112***
Exposição aos media noticiosos
0.155***
0.132***
Confiança interpessoal
Classe social
–
0.078*
–
0.110***
Classe social subjetiva
–
–
Escolaridade
–
–
Rendimento
0.135**
0.082*
Sexo
-0.065*
0.055*
Idade
0.111**
-0.083*
Prática religiosa
0.182***
–
Socialização primária
Socialização secundária
Efeito-metropolitano
–
0.220***
–
–
0.217***
0.081**
Posição política (esquerda vs. direita)
-0.103***
Variância explicada (Adjusted R2)
21,4%
48,5%
N (Minimum)
1152
1152
–
Nota: Os valores são coeficientes de regressão estandardizados (betas) estatisticamente significativos: * p < 0,05;
** p < 0,01; *** p <0,001. As células vazias correspondem a coeficientes de regressão estandardizados estatisticamente
não significativos (p> 0,01).
daquilo a que tenho chamado a automobiliza-
Ora bem, há indicadores sociodemográ-
ção, tipicamente, o cidadão é membro de um
ficos de sinal estatístico contrário. Dois são
partido; figura portanto na coluna do asso-
particularmente interessantes, pois apontam
ciativismo; quando esse partido convoca uma
para alguma mudança sociocultural. Trata-se
manifestação ou um comício, o cidadão é livre
do gênero e da idade. As mulheres estão menos
de responder ou não à convocatória, isto é, tem
presentes no associativismo e mais ligadas a
de fazer um esforço suplementar no sentido
novas formas da automobilização, porventura
de estar presente, de fazer ouvir a sua voz; é
mais soltas e até erráticas, com menos com-
este último passo pessoal que designo por
promissos no tempo, mas mais empenhamento
automobilização.
no momento, digamos assim. Os homens, em
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011
353
Manuel Villaverde Cabral
contrapartida, estão mais associados ao capi-
modelo do exercício ativo da cidadania política
tal social convencional e distinguem-se menos,
(em Portugal como noutros países europeus
não é que haja menos homens, naturalmente,
e no Canadá, a “variân cia explicada” pelo
mas têm menor saliência neste novo tipo de
associativismo é menos de metade: 21,4%; no
mobilização. Quanto à idade, passa-se algo de
Brasil, a diferença entre as duas modalidades
análogo: o associativismo convencional é uma
é menor: 27,5% para a automobilização e
forma de exercício cidadão de pessoas mais
20,8% para o associativismo).
velhas, enquanto os jovens se salientam entre
A concluir, descortina-se pois um princí-
quem se orienta preferencialmente para as
pio de mudança cultural e cognitiva que parece
modalidades de automobilização. O sentido da
ir, lentamente que seja, no sentido da emergên-
mudança em favor destas últimas modalidade
cia de jovens lideranças de tipo novo: menos
é indicado, precisamente, pela juventude dos
implicadas com os sistemas político-partidários
seus aderentes.
instalados, desafiando-os mesmo, não só em
Vale a pena acrescentar que não há ne-
Portugal como também na maior parte dos paí-
cessariamente contradição entre as duas mo-
ses europeus que analisamos e no Canadá. O
dalidades; elas não se excluem mutuamente,
caráter inovador desta evolução decorre, pre-
antes pelo contrário, reforçam-se até uma à
cisamente, do fato de essas lideranças serem
outra. Contudo, se fizermos uma análise esta-
jovens e femininas. Estas novas elites são, pois,
tística simples, verificamos que, havendo sobre-
menos dependentes das modalidades conven-
posição entre elas, como acontece em 40% a
cionais do capital social clássico, como o asso-
50% dos casos, a automobilização é mais ge-
ciativismo, e mais ligadas – por isso falamos, a
radora de associativismo do que este é gerador
propósito delas, de linking social capital, capi-
de mobilização.
tal social de ligação – a formas de expressão
Por outras palavras, é mais plausível
de uma sociedade civil em rede, menos cor-
que o envolvimento numa rede aberta de
porativa e menos mercantil do que tem sido
protesto leve à criação de uma associação
no passado, em especial nas velhas e não tão
ou à adesão a uma organização previamente
velhas democracias ocidentais. Em suma, para
constituída do que a pertença a uma destas
retomar os termos iniciais de Hirschman, jo-
associações – hierarquizadas e com objetivos
vens elites emergentes que não abandonaram
já estabelecidos – leve à participação ativa.
a liça (exit) e que, ao exercício mais ou menos
Acresce, por último, que a modalidade da
passivo da lealdade às instituições e interesses
automobilização é de longe aquela que melhor
estabelecidos (loyalty), preferem fazer ouvir a
adere (48,5% de “variân cia explicada”) ao
sua voz (voice).
Manuel Villaverde Cabral
Investigador Coordenador Jubilado do Instituto de Ciências Sociais e Diretor do Instituto do Envelhecimento da Universidade de Lisboa. Lisboa, Portugal.
[email protected]
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Cidadania, inclusão e voz
Notas
(*) Este texto foi inicialmente apresentado no XI Encontro Nacional das Fundações Portuguesas,
realizado na cidade do Porto em maio de 2010, a convite do Dr. Rui Vilar, Presidente do
Centro das Fundações Portuguesas e da Fundação Calouste Gulbenkian, a quem agradeço a
oportunidade desta reflexão.
(1) Fitoussi e Rosanvallon falam também de «déliaison» social, desligação social, especialmente em
relação à delinquência e à toxicomania.
(2) Segundo comunicação do Mestre Daniel Carolo, que agradeço, os dados da EU-SILC 2008 e
valores provisórios para 2009, publicados pelo Instituto Nacional de Estatística, mostram
um ligeiro decréscimo no rácio S80/S20, embora com um agravamento no S10/S90, mas
oficialmente é aceite como válida uma diminuição ligeira da desigualdade em Portugal.
Fonte: h p://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_
boui=83376167&DESTAQUESmodo=2
(3) Possivelmente devido ao aumento rela vo dos rendimentos mais altos nas cidades, sobretudo
Lisboa (comunicação de Daniel Carolo, que igualmente agradeço).
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Texto recebido em 4/nov/2010
Texto aprovado em 15/dez/2010
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011
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Maneiras de ser e de sentir na aceleração
e a ilimitação contemporânea
Ways of being and feeling in the acceleration
and the contemporary limitlessness
Claudine Haroche
Resumo
O texto aborda a questão do olhar nas sociedades
contemporâneas, assinalando a presença, cada
vez mais acentuada, de formas de individualismo
e narcisismo. Inscreve-se em uma perspectiva genealógica para esclarecer o contemporâneo, cujas
evoluções, transformações e comoções tenta
discernir. Lembra que as reviravoltas sociais, políticas e antropológicas, devidas em particular à
presença contínua de imagens e monitores, à existência de fluxos contínuos, às solicitações visuais
incessantes, afetam o olhar do indivíduo, evidenciando processos paradoxais de individualização e
massificação. Retomando e desdobrando aspectos
do debate já proposto por autores como Walter
Benjamin, Adorno, Horkhaimer, Elias, Mauss, Simmel e Le Goff, aborda, de uma perspectiva histórica, a questão da privação do olhar nas evoluções
da democracia, da desigualdade de atenção e,
depois, do individualismo narcisista e das tecnologias contemporâneas. O texto traz uma rica
reflexão acerca da condição do homem moderno
e a importância de repensar algumas das categorias de análise na interpretação das sociedades
contemporâneas.
Palavras-chave: olhar; genealogia; fluxos; individualização; massificação.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011
Abstract
This study aims at discussing the question of
looking in contemporary societies, highlighting
the increasingly marked presence of forms
of individualism and narcissism. It is based
on a genealogical perspective to clarify the
contemporary, trying to tell apart developments,
transformations and commotions. It remarks that
the social, political and anthropological upheavals,
in particular due to the presence of images and
monitors, the existence of continuous strea ms
and incessant visual requests affect the look of
the individual, showing paradoxical processes of
individualization and massification. Revisiting and
unfolding aspects of the debate already proposed
by authors such as Benjamin, Adorno, Horkheimer,
Elias, Mauss, Simmel and Le Goff, the article
addresses, from a historical perspective, the issue
of look deprivation throughout the evolvement
of democracy, of the inequality of attention and
later the narcissistic individualism of contemporary
technologies. Finally, a deep reflection on the
condition of modern man is provided together with
a discussion on the importance of rethinking some
of the categories of analysis in the interpretation of
contemporary societies
K e y w o r d s : clook; genealogy; streams;
individualisation; massification.
Claudine Haroche
É possível perceber e pensar em meio à
a condição do homem moderno e a oportuni-
aceleração, ao imediatismo, à instantaneidade?
dade de repensar algumas das categorias da
A que modos de subjetivação somos hoje con-
descrição.
frontados?
As reviravoltas sociais, políticas e mais
Se eu tivesse de resumir meu propósito
fundamentais, antropológicas, devidas em
hoje, diria que vou discorrer sobre a questão
particular à presença contínua de imagens e
do olhar nas sociedades democráticas contem-
monitores, à existência de fluxos contínuos, de
porâneas: o não ser alvo de atenção, o evoluir
solicitações visuais incessantes afetam o olhar
na indiferença, o não ser olhado pode levar a
do indivíduo.
uma negação da pessoa, à humilhação. Trata-
Lembremos, rapidamente, que em 1935,
-se de uma condição cada vez mais propalada
Walter Benjamin havia sublinhado a natureza
nas formas de individualismo e de narcisismo
histórica das maneiras de sentir, perceber e
contemporâneos: a injunção à visibilidade
olhar. Ele observou a evolução profunda com
contínua de si mesma é contrária ao olhar, ela
o surgimento da reprodução mecânica da obra
evidencia processos paradoxais de individua-
de arte nas sociedades de massa.
lização e de massificação: é empobrecedora e
subjugadora.
Adorno e Horkheimer vislumbraram os
efeitos políticos provocados sobre a subjetivi-
Interessei-me, ante a pressão cotidiana
dade pelo movimento contínuo, engendrando
de exigências burocráticas, pela mudança per-
determinadas formas de cegueira. Esses efeitos
manente, pela questão do assédio, do assédio
podem suprimir progressivamente a capacida-
moral, insidioso, repetido, pelas feridas narcí-
de do indivíduo de ver, desapropriá-lo de seu
sicas cotidianas, pelas pequenas humilhações,
olhar e seu sentido crítico.
que levam ao esgotamento, à exaustão.
Esse movimento se amplificou ainda
Foi a partir da sensação de um controle e
mais nas sociedades contemporâneas: o surgi-
de uma continuidade imposta a ritmos que es-
mento de uma atividade constante induz uma
capam completamente ao indivíduo, que che-
ausência de reflexão que impõe – e é imposta
guei à maneira pela qual a sensorialidade hoje
por – rapidez, instantaneidade e imediatismo,
não pode mais preservar, assegurar as condi-
contrários à alternância entre estacionário
ções para o exercício da sensibilidade.
e movimento exigida pela percepção e pela
Inscrevo-me em uma perspectiva genea-
reflexão.
lógica para esclarecer o contemporâneo, cujas
Incitado e compelido a consumir de ma-
evoluções, transformações e comoções tento
neira contínua, excedido pela acumulação e
discernir.
o excesso de solicitações – possa o indivíduo
Partirei hoje da questão do olhar. Re-
aproveitar da abundância e consumir ou, na
traçarei um histórico e falarei, em seguida, da
penúria mais completa, ver-se privado de tu-
privação do olhar, com as evoluções da demo-
do –, o indivíduo, convertido em espectador,
cracia, da desigualdade de atenção e, depois,
cuja imaginação e capacidade de represen-
do individualismo narcisista e das tecnologias
tação são entravadas, ou até suprimidas, por
contemporâneas, concluindo, finalmente, com
conseguinte, vê sem enxergar: ele vê sem ter a
360
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011
Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea
capacidade de fixar sua atenção, de parar, ana-
Elias discerne na vida social das socieda-
lisar, entender, assimilar e a fortiori de discernir,
des do passado, bem como na vida social do
criticar e rejeitar com toda a liberdade.
presente, mudanças que atingem a percepção
As maneiras de olhar levam a questões
sensorial e afetam a visão, o toque: “todas as
sociais e políticas preponderantes nas socie-
crianças vivenciam essa evolução ao crescer –
dades democráticas individualistas: as ligadas
um número cada vez maior de atividades que
aos olhares, a amabilidade, o respeito, a consi-
faziam intervir originalmente o indivíduo como
deração, o reconhecimento e a dignidade. São
um todo, com todos os seu membros, limitam-
tantas maneiras de nomear e designar a neces-
-se aos olhos [...]. À proporção que os movi-
sidade de atenção que sente uma pessoa.
mentos do corpo se restringem, a importância
(Uma breve digressão para lembrar que
da visão aumenta: a criança passa a ouvir: “po-
ao suprimir as atenções não igualitárias, a de-
de olhar, mas não mexa”; é imperativo que não
mocracia, que ignora de certa maneira essa
“levante a mão” para as pessoas” (Elias, 1991).
necessidade de atenção, teria imposto de fato
Logo de entrada, Elias estabelece nos
uma igualdade de desatenção a todos os in-
mecanismos da observação uma relação en-
divíduos nas sociedades democráticas. O fato
tre o pensamento e o corpo, em particular no
de ser “igualmente olhado” leva ao fato de
controle do movimento. Assim, ele retraça a
ser olhado “com desatenção e indiferença” e
genealogia do processo de reflexão, de repre-
privaria, portanto, o indivíduo da necessidade
sentação que está em pé de igualdade com
profunda de atenção e de olhar. A ausência de
um sentimento de desapego, condição da
olhar, a desatenção, pode surgir como uma in-
emergência concomitante da consciência e do
diferença protetora; pode também revelar uma
olhar individual, da representação da pessoa e
indiferença que ignora, esquece a pessoa no
da observação dos outros e de si.1 Elias insiste
indivíduo).
no fato de que o progresso da visão irá limi-
Haveria nas sociedades contemporâneas
tar, e até restringir, o movimento espontâneo,
um processo de transformação quase impalpá-
incontrolado, impor o domínio, o controle de
vel que tende a ignorar, a fazer regredir e até a
si, às vezes a imobilidade, o que produziria um
dissipar as dimensões não visíveis da pessoa,
efeito cada vez maior de afastar o contato, de
privilegiando apenas as dimensões visíveis?
prevenir de maneira mais geral os contatos, as
Antes de abordar esta última questão,
proximidades dos corpos.
gostaria de lembrar que Elias, no decorrer dos
Ele observa uma redistribuição, e mesmo
anos 1940, abordou e sintetizou o papel do
um desequilíbrio na divisão do trabalho dos
olhar nas sociedades democráticas. De fato,
sentidos imposta pela civilização, chegando à
ele destacou fragmentos de uma história do
conclusão de que “os prazeres dos olhos e dos
olhar, do Século das Luzes à modernidade e às
ouvidos se tornam cada vez mais intensos, mais
formas extremas de individualismo: explicitou
ricos, mais sutis e mais difundidos, que os pra-
as condições de possibilidade do olhar, que
zeres dos membros são cada vez mais limitados
supõem uma parada no fluxo das sensações
por preceitos e proibições”. Acrescenta que, em
visuais.
consequência, “percebemos mais coisas sem
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011
361
Claudine Haroche
nos movermos. Pensamos e nos observamos,
sobre alguém ou de desviá-lo por educação,
sem nos tocar” (ibid., pp. 163 e 165). Sendo a
respeito, compaixão ou ainda de ignorá-lo
visão considerada menos perigosa para a or-
por desprezo ou por medo –, a direção de um
dem social que o toque, convém agora evitar
olhar (olhar para os pés, para o chão, de cima,
o contato, e tocar apenas com os olhos. O fato
para outro lugar, de esguelha, por baixo), sua
de se estabelecer um contato, de deixar entre-
qualidade (direto, franco, dissimulado, pesado,
ver a amabilidade, ou até mais, o calor, o fato
equívoco, libidinoso), sua intensidade (atraen-
de sentir-se tocado, emocionado por outrem, o
te, cordial, caloroso, frio, convidativo, glacial,
semelhante, sua condição, se inclinará, por ra-
neutro), ou ainda a sua ausência (um olhar
zões diferentes, a declinar diante de um distan-
inexpressivo, impávido, indecifrável, impene-
ciamento, um afastamento, a frieza, a dureza, a
trável, fechado), as maneiras de olhar a outra
insensibilidade, uma atitude de observação, de
pessoa, de observá-la, de fixá-la, resultam ao
avaliação, de cálculo, que leva à intercambiali-
mesmo tempo de usos, aprendizagens e códi-
dade e à indiferença ante o semelhante.
gos de comportamentos. Elas são invariavel-
Através desse texto, Elias lembra tam-
mente acompanhadas de interpretações e, em
bém um certo número de funcionamentos so-
determinada medida – difícil de definir –, de
ciológicos, psicológicos e antropológicos – que
constantes antropológicas.
dão abertura a um conjunto de observações
Mauss distingue o fato de olhar fixamen-
fundamentais. Revelando, por um lado, a quali-
te no exército e na vida cotidiana: a fixação do
dade, a própria capacidade de ser uma pessoa,
olhar no exército representa a obrigação de
o olhar constitui, assim, desde o século XVIII,
obediência, a subordinação, a submissão, en-
um atributo, um dever e um direito reconhe-
quanto a fixação do olhar na vida cotidiana é
cido de um sujeito considerado como proprie-
considerada inoportuna, abusada, e até gros-
tário de si mesmo (Castel e Haroche, 2001). O
seira. Lembra, assim, que “atribuiremos valores
olhar supõe e permite o exercício, tanto de um
diferentes ao fato de olhar fixamente: símbo-
olhar de si mesmo como dos outros: o olhar é
lo de cortesia no exército, e de descortesia na
um elemento, e até mesmo a condição da au-
vida cotidiana” (Mauss, 1936). A origem, a
toestima, da dignidade de qualquer indivíduo,
razão dessas diferenças, continua Mauss, pro-
o que faz dele uma das condições e dos alvos
cedem de tradições e modelos de educação
da democracia.
que impõem certos princípios aos movimentos.
Ele evoca, assim, a educação da marcha e da
visão, o aprendizado de maneiras, que corres-
Educação do olhar
e domínio dos movimentos
ponde mais amplamente a uma “educação do
sangue-frio”. Veja-se aí uma observação análoga à de Elias no que diz respeito à moderação,
uma certa contenção, um domínio geral do mo-
Salientando o papel decisivo do olhar, Mauss
vimento, exigidos pela vida em sociedade, mas,
afirma que não há maneira natural de se olhar.
além disso, um “mecanismo de inibição de mo-
As maneiras de olhar – o fato de pousar o olhar
vimentos desordenados”, de distanciamento:
362
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Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea
um mecanismo que visa a instaurar formas e
olhar do outro, de fugir do olhar, de evitá-lo, de
mediações. Mauss nota, então, que “esta resis-
desviar o olhar, pode indicar um humor, reve-
tência à comoção invasiva é algo fundamental
lar a natureza dos sentimentos, e mais ainda,
na vida social e mental...”, que ela é acom-
revelar uma personalidade ou um caráter. Além
panhada por um domínio do movimento que
disso, ainda permite captar a natureza dos me-
emana da pessoa (ibid, p. 385). Mauss obser-
canismos de dominação e também de defesa
va, por fim, que a pessoa originalmente enten-
do ego.
dida como máscara, é “um fato fundamental
Simmel toma, então, um exemplo pro-
de direito”, na medida em que separa o espa-
fundamente esclarecedor, o da vergonha: “po-
ço interior do exterior, que induz as regras que
demos entender por que a vergonha – escre-
protegem a intimidade: ela dissimula e subtrai
ve – nos obriga a baixar os olhos, evitando o
o espaço do íntimo, do mais profundo da cons-
olhar do outro”, e explica que “com efeito, ao
ciência de cada um à vista de todos e, em con-
olhar para o chão, privo um pouco a outra pes-
sequência, é capaz de protegê-lo, preservá-lo
soa das possibilidades de me discernir” (ibid.,
da natureza inquisitiva que pode comportar o
pp. 631 e 670).
olhar alheio.
É na questão dos sentidos que se dese-
Onde Mauss se interessa pelo caráter
nha uma das contribuições cruciais de Simmel:
aprendido das maneiras de ver, Simmel tende,
são os sentidos, tanto na relação com o outro
quanto a ele, à maneira como o olhar contri-
como na relação consigo mesmo, que permi-
bui para dar um sentido às interações sociais,
tem a elaboração, a construção do sentido,
oferecendo desenvolvimentos próximos aos de
mais que a relação com o conhecimento. Sim-
Mauss.
mel sublinha que “a vida moderna remete, em
Simmel observa de início a ausência de
um grau cada vez maior, a grande maioria das
mediação na troca de olhares “é talvez a ação
relações sensoriais entre humanos para o senti-
recíproca [...] mais direta que possa existir”
do da visão unicamente” (ibid., p. 633).2
(Simmel, 1908, p. 630). Ele sublinha, assim,
Ele observa uma consequência política
que o olhar é difícil de apreender, de definir, de
importante sobre a gênese e o desenvolvimento
qualificar: inscrito no mais profundo do vínculo
das sociedades contemporâneas de massas, “o
social, o olhar de uma certa maneira entrava,
estabelecimento... de estruturas sociais muito
impede por seu caráter fugaz e até inconscien-
abstratas e não específicas será favorecido so-
te. O olhar instaura e exige um espaço comum,
bretudo pela proximidade visual e uma ausên-
no entanto, instável e transitório. Simmel su-
cia de proximidade verbal” (ibid., pp. 636-637).
blinha que o olhar supõe o contato imediato,
Toda a sensorialidade terá, assim, sido
porém efêmero.
modificada, desequilibrada pela extensão da
O caráter, profundamente imbricado, ex-
vista que impõe um imediatismo, porém, dis-
pressivo ou inexpressivo de um olhar, caloroso
tante, longínquo: o recuo do contato leva com
ou frio, convidativo ou distante, dominador ou
ele o esquecimento de uma ligação profunda
temeroso, conquistador ou submisso, arrogante
original entre o olhar e o toque que contribui
ou humilde é difícil de discernir. A maneira de
para o silêncio das massas.
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363
Claudine Haroche
A desatenção civil:
a cegueira por delicadeza
olhares: estas são ordenadas, sustentadas por
uma certa concepção da pessoa, o que ela deve
proteger, guardar, preservar, salvar, ganhar ou
pelo menos não perder nas interações sociais:
Em prolongamento aos trabalhos de Simmel,
Goffman oferece uma visão de conjunto do
papel do olhar nas interações face a face.
Fundamentando-se no papel das observações de Mauss sobre os modelos de comportamentos, as aprendizagens nas maneiras de
olhar, Goffman observa que nas interações,
de modo geral, e nos encontros entre sexos,
em particular, os códigos de interações sociais ordenam a direção do olhar, os avizinhamentos, as proximidades e distâncias e os
afastamentos.3
A atenção ao outro, os cuidados, bem
como a desatenção respeitosa, o fato de saber não ver seriam objeto de aprendizagens de
regras e princípios que visam a proteger, respeitar o outro, a proteger-se, defender-se, pela
observância de formas, de maneiras. Goffman
observa que “entre pessoas que não conhecem
umas às outras” existe um arranjo “regido pela
desatenção civil”, sequência de comportamentos codificados, ritualizados,
[...] que consistem em dirigir um olhar para o outro para sinalizar que não se tem
má intenção e que não se tem apreensão
em relação à outra pessoa, e depois, desviar o olhar, em um misto de confiança,
respeito e indiferença aparente. (Goffman,
1977)
a face social é uma certa imagem de si, fundamentalmente ligada à integridade, à dignidade.
“A própria face e a dos outros”, escreve, “são
construções da mesma ordem; são as regras do
grupo e a definição da situação que as determinam” (Goffman, 1967, p. 10).4 Essas propriedades rituais têm por função a afirmação e a
proteção de bens e atributos como a dignidade,
o sentimento do valor próprio que definem “o
modelo de sujeito capaz de confrontar em uma
interação” (ibid., p. 9).
Assim, Goffman sustenta que “quando
uma pessoa consegue manter as aparências”,
ela se sente confiante, reconfortada, sua postura corporal revelaria seu estado de espírito
interior.
Nos anos 1960, Günther Anders, prosseguindo as intuições e as análises de Benjamin
e de Adorno, realizou um conjunto de observações sobre os efeitos acentuados, e até provocados, pela técnica: a incapacidade de imaginar, de ver e de sentir. De fato, ele atribui a falta
de imaginação, a insuficiência existente na
percepção, no sentir (que se trate do mercado
ou das sociedades totalitárias, e em particular
do nazismo) à existência de um descompasso
imputável à divisão do trabalho – ao “fracionamento das tarefas”.
Anders sublinha, por fim, que nas socie-
Essa desatenção resulta, por um lado, de uma
dades contemporâneas, o trabalhador “apa-
educação, “de uma capacidade de avaliar ra-
rece como o detentor de uma capacidade de
pidamente uma situação social do ponto de
produção infinitamente superior à sua capaci-
vista de seu conteúdo expressivo”, de manei-
dade de sentir”, o que produz consequências
ras mais gerais de usos que comportem estra-
importantes sobre a subjetividade. Anders opõe
tégias de encontro, de contato, de trocas de
o caráter ilimitado de nossa “capacidade de
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Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea
fabricação” e o caráter ilimitado de nossa “ca-
modelada pela maneira como os imaginamos”,
pacidade de representação”, observando, en-
Scarry pesquisou sobre os efeitos da falta de
tão, os efeitos do processo de alienação no fato
imaginação nos comportamentos face aos ou-
que, ao renunciar, “nem sabemos que estamos
tros (Scarry, 2002, p. 98).7 Ela insistiu no fato de
renunciando, e que seria dever nosso imaginar
que o infligir crueldade resulta da “incapacida-
5
de de perceber, representar e imaginar o outro
aquilo que fazemos” (Anders, 1988, pp. 50-51).
como semelhante”, o que faz com que “não
consigamos acreditar na realidade dos outros”
O descompasso entre maneiras
de ver e maneiras de sentir
(ibid., pp. 101-103). Teria ela conhecido evoluções e regressões na história?
É esse desapego, essa frieza, essa crueldade que se descobre na obra de Primo Lévi,
Lasch, no contexto um pouco diferente dos
que observa e detalha o papel do olhar na ne-
anos 1980, abordou o papel do olhar na emer-
gação da condição humana.
gência da personalidade narcisista das socie-
Primo Lévi descreve uma cena em que
dades contemporâneas, “o êxito profissional
as pessoas se encontram paralisadas pela al-
dependeria menos agora das aptidões [...] do
tivez dos SS, pela inexpressividade, a impavi-
que da ‘visibilidade’ que exige ‘o gerenciamen-
dez de seus rostos, a lentidão e o desapego de
to da própria imagem’” (Lasch, 1979, p. 296).
seus gestos, a maneira como perscrutam em
Lasch atribuiu a responsabilidade em parte à
silêncio os prisioneiros, de maneira meticulo-
burocracia moderna, provocando e encorajan-
sa, sem a menor emoção. O Alemão não se
do uma grande inquietude quanto à impressão
dá ao trabalho de falar (o que poderia signi-
que os indivíduos produziam uns aos outros, ao
ficar uma expressão de um respeito mínimo),
desenvolvimento dessas preocupações concer-
ele continua a fumar enquanto o intérprete
nindo o eu, discernindo “traços de personalida-
lhe faz uma pergunta, “atravessando-o com
6
de de tipo narcisista...” (ibid.).
o olhar, como se fosse transparente, como se
É essa análise das formas de superficia-
ninguém tivesse falado”, realizando banais ta-
lidade contemporânea que Elaine Scarry dedi-
refas cotidianas (Lévi, 1958, p. 21). Nada po-
cou-se a aprofundar, esforçando-se para escla-
deria expressar com tanta força a intensidade
recer algumas das causas e alguns dos efeitos
da negação da pessoa, do outro. A recusa de
políticos da cegueira: assim, ela centrou sua
olhar, de falar e de escutar é concomitante.
atenção na ligação entre olhar e imaginação,
Ele distingue, então, claramente a escuta da
inferindo a insuficiência em matéria de sentir,
possibilidade de compreensão, de inteligência
uma insensibilidade ao sofrimento do outro.
do outro “mesmo se nos ouvissem, não nos
Lembrando que os sofrimentos infligidos ao
entenderiam”(ibid., p. 26).
corpo são “uma das razões profundas do con-
O olhar está no centro da condição hu-
trato social de Locke e dos contratos mais an-
mana: impassível, glacial, reificante, preten-
tigos das cidades”, e sublinhando que “a ma-
dendo provocar medo, vergonha e humilhação.
neira como nos conduzimos face aos outros é
A negação do olhar também ou pelo menos
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Claudine Haroche
tende a desapropriar a pessoa de seus atribu-
ou, pelo contrário, acreditando em sua potên-
tos mais fundamentais.
cia suprema). O homem não é mais tão su-
O declínio e mesmo a eliminação dos
bordinado ao outro, excluído como homem da
limites provocam sobre a subjetividade, a per-
sociedade contemporânea de mercado: os indi-
sonalidade contemporânea, efeitos maiores
víduos estariam agora isolados em seu eu, um
ligados aos fluxos sensoriais e informacionais,
eu privado de suporte, de apoio, de proteção,
suscetíveis de nos desviar do vínculo e do
tanto externa quanto interna. Pode-se, então,
sentido, de provocar a angústia, o pavor: eles
entender que a questão da dignidade e da hu-
incitam a questionar-se novamente sobre os
milhação passa a ser central.
sentidos e os comportamentos mais elemen-
O indivíduo nas sociedades democráticas
tares. Sendo a capacidade psíquica do olhar
contemporâneas está “isolado” no trabalho e
atingida pela eliminação dos limites da pessoa,
fora do trabalho, e é esse isolamento que faci-
dos limites e da pessoa, eles levam a meditar
lita e até encoraja o caráter repetido e intenso
sobre a questão profunda de Mauss referente à
da humilhação. A flexibilidade e a fluidez im-
permanência da categoria do eu: “quem sabe –
põem um ritmo, uma aceleração, uma veloci-
se perguntava Mauss – se esta ‘categoria’ que
dade que atingiriam as capacidades psíquicas
todos aqui acreditamos fundamentada será re-
e afetariam o eu, a identidade, a subjetividade.
conhecida como tal? Ela é unicamente formada
O interesse dos trabalhos de Elias e de
por nós, em nós” (Mauss, 1938, p. 362).
Arendt é destacar os processos psicológicos e
sociais de humilhação entre grupos e no interior dos grupos, por meio de mecanismos de
O empobrecimento interior
do indivíduo no individualismo
contemporâneo
exclusão, de estigmatização e de marginalização. Arendt ofereceu uma explicação global
da exclusão e da estigmatização, bem como
dos sentimentos de desvalorização e de humilhação, chegando aos atuais processos de hu-
Marx trouxe à luz a obrigação de vender-se: a
milhação por uma genealogia da história dos
parte de nós que vendemos, que somos obri-
judeus na Alemanha, através de suas relações
gados a vender, não diminuiu: ela mudou de
com a aristocracia e a burguesia. Para tanto, ela
natureza. Ela concerne agora cada indivíduo,
se ateve a um tipo de marginalidade particular:
atinge, hoje como no passado, o corpo, e mais
a do pária na minoria judia. Recordamos que a
ainda, por intermédio deste último, o homem
representação era central nos comportamentos
interior, a esfera psíquica. Ela será então feita
da aristocracia, enquanto na burguesia eram os
pela injunção à exibição de si próprio: trata-se
bens que contavam mais, Arendt sublinha que
de oferecer não mais a força unicamente, mas
se passou lenta e insensivelmente dos valores
a própria pessoa psíquica.
e comportamentos de representação aos dos
Os indivíduos não estão mais tão ape-
bens materiais; da valorização da visibilidade à
quenados em seus corpos indefinidos, sem li-
da invisibilidade” (Arendt, 1987, 1986). Na so-
mites (reconhecendo sua impotência profunda
ciedade da representação, o homem era visível.
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Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea
Na burguesia, em que se deve renunciar ao
condição do homem na modernidade, ela colo-
espaço da “representação”, após a dissolução
ca uma questão importante: “o que se possui
dos estados, nasce a angústia de não mais ser
quando não se tem nada além de si mesmo?”
visível, de não mais ter qualquer garantia de
Acreditamos que Arendt levanta um problema
sua própria realidade (Arendt, 1987).
maior na tentativa de compreender as formas
Ao retraçar a história da condição do
de humilhação nas sociedades individualistas
burguês no século XVIII, Arendt discerniu as
centradas no ego: o ser e o ter tendem à in-
origens da humilhação que se desenvolverá
distinção, “mostrar o que se tem” é, portanto,
mais tarde nas sociedades individualistas. Ela
mostrar “o que se é”, mostrar o eu, a redução
prefigurou, acreditamos, um vínculo profundo
a um ego exibido e, nessa perspectiva, diminuí-
entre a exigência da visibilidade de si, o encer-
do, fragmentado (ibid., pp. 82-83).
ramento, a redução a si próprio – a obrigação
Pode-se entender de que maneira a fi-
de mostrar-se para existir e o reforço do isola-
gura do pária, como sublinha Arendt, encerra
mento de cada indivíduo.
uma nova ideia do homem para a humanidade
Arendt detalhou os efeitos desse iso-
moderna que analisamos agora, bem como os
lamento como sendo indissociáveis de senti-
efeitos do individualismo contemporâneo sobre
mentos de desvalorização e de humilhação,
as formas de fragmentação, de divisão do eu.
colocando que, de fato, “ver-se forçado a representar o tempo todo e solitariamente algo em
particular, apenas para justificar o fato bruto de
sua existência, é uma fadiga que chega a ex-
As tiranias da visibilidade
tenuar todas as forças do indivíduo” (Arendt,
1986, p. 264). Ela incita a pensar que a justifica-
Gostaríamos de ressaltar aqui uma dimensão
ção contínua do direito de existir provoca não
específica e inédita que diz respeito à visibili-
apenas fadiga, mas uma humilhação profunda,
dade – a visibilidade de si próprio: um tipo de
que deixa supor que não se trate mais que de
visibilidade que, ignorando as fronteiras do
um direito inalienável. Acreditamos que é nesse
íntimo, do privado e do público, tende a en-
aspecto que o pária constitui uma figura deci-
cerrar o indivíduo pela exposição contínua de
siva da modernidade, das formas extremas do
si, encorajando e reforçando o voyeurismo, o
individualismo contemporâneo: o isolamento,
exibicionismo.
longe de significar uma eventual retirada, um
Reforçado pelas tecnologias contemporâ-
momento de introspecção, longe de proteger o
neas, o indivíduo seria compelido a representar
indivíduo, constituiria uma condição pesada de
não uma parte de si, mas uma exposição total,
ameaças para o mesmo.
uma revelação contínua de si, a mostrar-se pa-
Observando, então, de maneira admira-
ra ser valorizado, e além disso, mais fundamen-
velmente precisa os mecanismos sociais e psi-
talmente, para existir. A visibilidade seria sinô-
cológicos de isolamento do pária, cujo eu sem
nimo de legitimidade, de utilidade, de garantia
defesa é de uma grande vulnerabilidade; prefi-
de qualidade: a frequência, a quantidade, e
gurando nisso certos traços característicos da
até a continuidade da visibilidade valorizam o
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Claudine Haroche
indivíduo. A invisibilidade, quanto a ela, seria
É uma visão de conjunto dos efeitos de
sinônimo de inutilidade, de insignificância, e
alienação e humilhação produzidos pelo mer-
até de inexistência.
cado sobre a subjetividade dos indivíduos, se-
Essa visibilidade, pela qual o indivíduo é
jam pobres ou ricos, que Dany-Robert Dufour
valorizado, traduziria novas formas de poder, de
oferece na superficialidade das relações,
dominação econômica, social e política: ela seria
reforçadas pela fluidez das sociedades de mer-
acompanhada por transformações profundas do
cado contemporâneas: de fato, o mercado en-
tipo de personalidade, como ressaltam em parti-
coraja “menos de tudo o que possa entravar a
cular os trabalhos de Sennett e de Bauman.
circulação da mercadoria”, o que provoca efei-
Sennett lembra que o fluxo contínuo pro-
tos psicológicos desestruturantes sobre o indi-
voca efeitos de alienação profunda, e até de
víduo, mudanças profundas na subjetividade.
supressão do eu, insistindo na necessidade de
Pensamos que Dufour prosseguiu e aprofundou
“salvar o sentimento de si do fluxo sensorial”
as conclusões dos trabalhos de Lasch de 1978
(Sennett, 1998). O tipo de personalidade flexí-
sobre as sociedades narcísicas: com efeito, ele
vel se define paradoxalmente pela visibilidade
sublinha que ao incitar o consumo permanen-
máxima e pelo movimento, e mais ainda pela
te – em particular ao consumo permanente de
mudança incessante.
si –, levando o indivíduo a preocupar-se funda-
Foram esses traços de personalidade
mentalmente apenas consigo mesmo, o merca-
que interessaram Bauman, o qual discerniu
do procura “suprimir os laços, os vínculos, os
um estado, um momento específico da socie-
sentimentos que não são conversíveis em valo-
dade, que chamou de “modernidade líquida”:
res mercantis”(Dufour e Berthier, 2003).
esse estado caracteriza-se pela “desaparição
do que é contínuo, estável e sólido”, pelo declínio da individualidade em sua singularidade,
com aspirações de durabilidade, pelo declínio
Nada ter além de si mesmo
dos “compromissos duráveis, vinculantes, onde
a individualidade é valorizada pela exigência,
Portanto, a humilhação nas sociedades de con-
(os quais) foram substituídos por encontros
sumo do ego não é idêntica à humilhação das
breves, ordinários e intercambiáveis” (Bauman,
sociedades de produção. A privação específica
1998). Ele conclui que o desapego, e mais ain-
do olhar, do ego, a questão do sentimento, ain-
da, o descompromisso descrevem perfeitamen-
da mais que a consciência da humilhação está
te a atmosfera das sociedades individualistas
no âmago da humilhação nas sociedades de
contemporâneas.
consumo.
O descompromisso aparece como um
Analisemos novamente o que Arendt es-
traço fundamental do clima, da atmosfera das
tabeleceu: a existência de um vínculo profundo
sociedades individualistas, mais precisamente,
entre a injunção à visibilidade de si – a obriga-
da personalidade flexível como um elemento
ção de mostrar-se para existir –, o indissociável
essencial dos novos modos de poder e domínio,
isolamento e os sentimentos de desvalorização
dos mecanismos de alienação e humilhação.
e de humilhação envolvidos.
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Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea
Teríamos, assim, superado uma etapa su-
fica. Simmel evoca esse momento, como vimos,
plementar da angústia do burguês evocada por
que anuncia em particular as interrogações de
Arendt: a incerteza quanto a si próprio, seria
Mauss e de Benjamin, Adorno e Horkheimer.
então decuplicada. “O que se possui quando
Não tenho tempo hábil para abordar os recen-
não se tem nada além de si mesmo?”, interro-
tes trabalhos consagrados à história, à teoria
gava-se Arendt.
e à evolução das mídias, em particular, os de
A humilhação deve-se ao fato de se es-
Gitlin (Gitlin, 2003). Por isso, quero retornar
tar reduzido a si mesmo e, por conseguinte,
muito brevemente ao século XVIII, a Hume, em
ao corpo. Lévinas, ao discorrer sobre o homem
particular.
que “acorrentado ao próprio corpo, vê-se re-
A passagem de Hume nos parece par-
cusado o poder de escapar de si mesmo”, pre-
ticular mente interessante para elucidar os
figurou o clima contemporâneo, os valores, as
modos de percepção dos indivíduos na moder-
maneiras de ser e de sentir superficiais, des-
nidade – seu caráter fragmentar, instável, mu-
comprometidos: “o pensamento se torna um
tável, impalpável – e os modos de existência
jogo, o homem se compraz em sua liberdade
dos objetos, seu funcionamento intermitente,
e não se compromete definitivamente com
imaterial, intangível, virtual nas sociedades
nenhuma verdade”, escreveu em Algumas re-
pós-modernas, hipermodernas, supermodernas.
flexões sobre a filosofia do hitlerismo (Lévinas,
1934, pp. 20-21).
O espaço de intimidade, do corpo, é o local dos sentimentos mais profundos: lugar que
abriga e protege o sentimento de existência, o
sentimento de si, pode ser também um lugar
ameaçador para o eu, um espaço de encerramento, de redução ao corpo, o espaço do sentimento de vulnerabilidade e impotência, o território onde a humilhação pode se exercer de
maneira constante e inelutável.
Quero agora, antes de concluir, abordar
Um objeto pode existir e, no entanto, não
estar em lugar algum. Afirmo não apenas
que é possível, mas que a maioria dos
seres existem dessa maneira e nenhuma
outra – assevera Hume. […] Uma reflexão
moral não pode ser posicionada à direita
ou à esquerda de uma paixão, e um odor
ou um som não pode ter uma forma circular ou quadrada. Muito longe de necessitar um lugar particular, esses objetos e
percepções são absolutamente incompatíveis com qualquer lugar. (Hume, 2004,
p. 324)
rapidamente a condição sensível de hoje: a
continuidade das sensações, o declínio das faculdades de perceber e experimentar sentimentos. Partiremos dos escritos de Hume, e, depois,
analisaremos, no contexto do século XIX e do
início do século XX, as questões e reflexões
compartilhadas por Janet, Valéry e Bergson
A maneira como opera a percepção – o
meio no qual ela se efetua – não depende unicamente da natureza humana,
mas também da história. Durante longos
períodos da história, vemos transformar-se o modo de existência das comunidades humanas, sua forma de perceber,
em um período de efervescência intelectual,
de audácia e de imaginação criadora e cientí-
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escreve Benjamin (2000, p. 74).
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Claudine Haroche
Dois séculos separam os textos de Hu-
consequência: os fenômenos psicológicos não
me e de Benjamin: o primeiro foi redigido em
são mais sintetizados em uma mesma percep-
1739, o segundo data de 1935. Hume pressen-
ção pessoal” (Janet, 1898, p. 16).
te o papel decisivo do difuso, do impalpável, do
intangível, enquanto Benjamin, interessando-se pelo modo de existência das comunidades
humanas, por sua vez, trata de questões que
estão no centro da sociologia alemã. Formula-
Uma genealogia
dos sentimentos
da em termos diferentes, a interrogação, surpreendentemente persistente, estranhamente
Em termos diferentes, Janet prolonga as análi-
próxima, prefigura as preocupações que serão
ses de Hume, desenvolvendo-as em uma abor-
os fundamentos da abordagem fenomenológi-
dagem psicológica nova,
8
ca (Merleau-Ponty, 1945).
Os modos de funcionamentos da sensorialidade, as impressões, as sensações experimentadas, os modos de percepção, as maneiras de sentir – suas origens, seus suportes, sua
intensidade – evoluíram historicamente com
a modernidade no individualismo contemporâneo: será que “sentir” equivaleria aqui a
[...] se nos posicionarmos do ponto de
vista exclusivamente psicológico, se considerarmos o eu, não mais tanto como um
ser e uma causa, mas como uma ideia que
acompanha a maioria dos fenômenos psicológicos, seremos forçados a pensar que
existam sensações sem o eu, que possam
haver fenômenos de visão, ainda que ninguém diga “estou vendo” (ibid., p. 58).
provar unicamente sensações efêmeras e, ao
mesmo tempo, contínuas? A elaboração de
Simmel concebe, em uma linha de
uma dimensão pessoal, subjetiva na percep-
raciocí nio próxima à de Janet, certos senti-
ção é fácil, e até possível nos fluxos sensoriais
mentos – como efeitos de modos de vida, de
contínuos?
maneiras mais como elementos originários,
Formularemos aqui a hipótese de que
inefáveis e indizíveis: são os comportamentos
eles afetam a capacidade de experimentar
que induziriam os sentimentos. Ligando, assim,
sentimentos, fundamentalmente o sentimento
a emergência do sentimento moderno de deso-
de existência de si próprio e do outro. O sen-
rientação aos modos de existência das grandes
timento de si próprio supõe, com efeito, uma
cidades – que ele estenderá à vida moderna
certa forma de continuidade, de duração, re-
em seu conjunto – Simmel destacará, assim, os
quer um limite entre interioridade e exterio-
traços essenciais do homem moderno, sua sub-
ridade. Este limite é hoje questionado pelas
jetividade, seus modos de ser, suas maneiras
formas de tecnologias contemporâneas, o que
de sentir, definindo-as por “uma impressão de
traz consequências – por um lado conhecidas,
tensão e de vaga melancólica, uma insatisfação
por outro inéditas – sobre o funcionamento da
secreta, um sentimento de urgência que nasce
subjetividade, e além da própria existência do
no frenesi da vida moderna”. Essas disposições,
eu. Janet observou, assim, que “o estreitamen-
prossegue Simmel, “nos levam a procurar uma
to do campo da consciência tem uma grave
satisfação passageira, momentânea, estímulos
370
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011
Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea
sempre novos, sensações e atividades exter-
percepção”, escreveu Illich ao vislumbrar a
nas” (Simmel, 1908).
eventualidade de uma perda dos sentidos.
É aí que devemos – rapidamente – evo-
O que pode, então, se passar, que tipos
car a questão das mídias e das telas. As mídias
de problemas surgem quando a percepção e a
procuram um prazer imediato, deixam entrever
reflexão são substituídas pela sensação ilimi-
a promessa de sentir “mesmo se não sabemos
tada? A imersão nas imagens e sons, o prazer
realmente como e o que sentimos em uma
da sensação, a individualização nos tornaram
profusão de imagens” e até mais, se tivermos
menos sociáveis? Menos democratas? Menos
conservado a capacidade de sentir: de fato, não
civilizados, como diria Balandier? (2003).
existe nada além da sensação, do prazer que
A conclusão de Arendt é clara, “o eu
conduz, necessariamente, a interrogar-se sobre
e o mundo, a faculdade de pensar e de sentir
a parte de passividade e atividade no eu. As
são perdidos ao mesmo tempo”, conduzindo,
mídias permitem, com efeito, ver sem interrup-
então, a homens sem profundidade, sem inte-
ção, ouvir sem envolvimento psíquico, afetivo,
rioridade, sem consciência, ao “surgimento de
estar ligado sem contato.
homens cuja psicologia não se pode mais com-
Essas observações conduzem a inter-
preender” (Arendt, 1955).
rogações que dizem respeito ao humano e
Como evoluir e como se definem as ma-
aos fundamentos da civilização, suscitam a
neiras de sentir quando os fluxos sensoriais
angústia ante as formas eventuais e inéditas
contínuos em uma sociedade fluida penetram
de barbárie por meio de possibilidades tecno-
o espaço interior de cada um? As mídias per-
lógicas. “O que posso fazer para sobreviver
mitiriam experimentar, por intermédio das
no meio do show ?”, se questionava Illich,
telas como um prolongamento de si próprio
que lembrava que a questão apresentou-se
para fora de si: a constância da sensação,
a nós “quando percebemos a necessidade de
progressivamente privada de sentido, teria
defender a integridade e a clareza de nossos
se tornado primeira, confrontando-nos por
sentidos – nossa experiência sensorial – con-
conseguinte a novas experiências de vida e de
tra as invasões incessantes da multimídia a
pensamento.
partir do ciberespaço” (Illich, 1995, p. 288).
Somos, assim, confrontados a uma trans-
Sobreviver: não apenas mover-se, mexer-se,
formação maior das formas da percepção?
deslocar-se – livremente ou obrigado –, mas
A imagem de síntese é uma produção de um
ter a possibilidade de refletir, não se apres-
tipo inédito “suscetível de instituir uma nova
sar, ser ativo no pensamento; experimentar
prática de percepção, ampliando os critérios
certamente sensações difusas, passageiras,
pelos quais vinculamos essa atividade ao nos-
intensas, porém ainda poder experimentar
so corpo” (Belting, 2001, p. 28): não entende-
sentimentos – duráveis, profundos – que
mos mais, ou, o que é ainda mais terrível para
permitam pensar, perceber e reconhecer o
o exercício da sensibilidade de si e dos outros,
outro, e respeitá-lo. Os fluxos sensoriais con-
não conseguimos mais saber o que faz parte de
tínuos das mídias provocam “uma mudan-
nosso corpo – o que nos mergulha em um esta-
ça de papel atribuído ao espírito no ato da
do de ilimitação e de indiferenciação.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011
371
Claudine Haroche
Experimentaríamos outras maneiras de
Os trabalhos sobre os funcionamentos
sentir? Estaríamos antes confrontados a um
sensoriais até hoje abordaram mais frequen-
recuo, um declínio das qualidades sensíveis,
temente a visão e a audição, negligenciando
a uma evolução das formas elementares da
um pouco o sentido do tato. No entanto, é es-
percepção em primeiro plano, sobre as quais
sencial que se interesse novamente pelo papel
será necessário, em razão da onipresença das
original do tato nas origens do pensamento,
imagens, do virtual, interrogar-se sobre o de-
lembrar que o tato garante e permite o vínculo
clínio do toque, do tátil? E, em consequência
e o afeto no pensamento, contra o desapego, a
perceber modos inéditos de estruturação, de
indiferença e a insensibilidade.
divisão e de fragmentação do eu, temer, por
fim, formas radicais de surdez, de cegueira, de
insensibilidade?
A percepção é ainda possível na mudança permanente? Os fluxos sensoriais contínuos
Em conclusão: experimentar
maneira inéditas de sentir?
que previnem a percepção das diferenças culminam, assim, na indiferenciação. Interrogan-
O exercício do pensamento é ainda possível
do-se sobre o fato de saber “se uma antropo-
quando a duração, a profundidade faltam?
logia é ainda possível”, Balandier lembra que
Quando os enquadramentos e as referências se
“a antropologia, como modo de conhecimento
tornam obscuros, fazem falta os momentos de
das culturas e das sociedades, foi primeiro ex-
parada, de pausa? O exercício da sensibilidade,
ploradora do diverso”. Ele sublinha, por fim,
do pensamento pode subsistir em um eu sem
que “o homem se encontra comprometido em
limites?
uma história toda distinta, mudando continua-
Voltamos aqui aos escritos de Bergson –
mente o mundo e mudando a si próprio” e se
Mas ainda temos tempo? – para discernir as
questiona sobre o fato de ser “ainda possível
condições da percepção nos fluxos sensoriais:
recorrer ao saber constituído antes para com-
se perceber é tender a imobilizar por momen-
preender, interpretar, definir as formas inéditas
tos, como perceber quando a sensação do
da realização do humano hoje?”(Balandier,
movente é permanente? Pode-se, enquanto
2003, p. 252).
sujeito, expressar um desejo, uma escolha,
Em Le Grand Dérangement , Balandier
chama a atenção para a necessidade de
uma hesitação, uma recusa, em outras palavras, agir em um movimento ininterrupto,
fluido? Envolvidos em um movimento cons-
[...] prevenir os efeitos desastrosos de
uma ameaça ao que foi originalmente um
comércio sensível entretido com o mundo:
a espacialidade, a temporalidade, a materialidade e o vivo em... sua diversidade.
(Balandier, 2005, pp. 63-64)
372
tante, tenderíamos a experimentar apenas
impressões difusas e voláteis, mergulhadas
em uma sensação de mudança incessante?
O ritmo das mudanças econômicas, tecnológicas, sociais entrava a parte da intenção e
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Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea
do projeto, reduzindo-nos ao papel de atores
amplamente à obra que Ravaisson consagra ao
passivos de nossa própria existência? Adorno
hábito em 1838 (Ravaisson, 1838).
e Horkheimer observaram que a imaginação e
Ele atualizará uma tendência à perma-
a espontaneidade dos indivíduos são atrofia-
nência que concerne tanto o movimento, a
das através das mídias, que impedem qualquer
mudança, como a imobilidade, “a tendência a
atividade mental ao espectador, se ele não
persistir em sua maneira de ser”, perdurar no
quiser perder nada dos fatos que desfilam a
tempo. Em seguida, ele trata da questão do
toda velocidade diante de seus olhos” (Adorno
tempo, observa seu caráter ininterrupto, e infe-
e Horkheimer, 1944, p. 135).
re assim o eu como um imperativo funcional,
Essas interrogações são hoje decuplica-
uma necessidade. Porém, é quando examina
das pela intensificação dos fluxos sensoriais,
as condições de redução da sensibilidade, ob-
informacionais de mídias onipresentes. O mo-
serva o exercício da vontade, que Ravaisson
vimento contínuo leva a um estreitamento da
lança luz em particular sobre os mecanismos
consciência, uma exteriorização da esfera inte-
contemporâneos da percepção. “A excitação
rior, concomitantes com uma fragmentação do
sensorial contínua” – explica ele – “reduz a
eu e uma espacialização da experiência: uma
sensibilidade”, a capacidade de desejo, de dis-
relação com o tempo que parece esvair-se, uma
cernimento, observando que “na sensibilidade,
relação com o espaço ilimitado, porém virtual,
na atividade se desenvolve [...] pela continui-
acompanhadas pelo sentimento de um empo-
dade ou pela repetição uma classe de atividade
brecimento interior e da extensão ilimitada da
obscura, que previne cada vez mais o querer
sensorialidade.
e, em consequência, a impressão dos objetos
Existem hoje outras maneiras de sentir,
externos” (ibid., p. 71). Ravaisson se fixa, en-
perceber, pensar, ser que não dependam mais
tão, nesse conhecimento indistinto, e detalha
da existência de um eu – que o eu seja uma
os mecanismos empregados, as condições, os
ideia, uma representação, uma concepção,
caminhos para chegar a ele. Ele insiste sobre
uma necessidade prática ou uma necessidade
uma dimensão crucial dos funcionamentos
psíquica?
contemporâneos ao destacar o papel da repe-
A releitura dos escritos de Ravaisson e
tição, e, mais ainda, de uma repetição contínua,
de Bergson oferece um aporte decisivo para
da existência de uma sensação permanente e
a compreensão do contemporâneo: ambos se
de seus efeitos sobre os sentimentos: essa sen-
interessaram, de fato, ao estudo dos fluxos,
sação os atenua, os debilita, provocando-lhes a
examinam seus funcionamentos, suscetíveis de
mobilidade. É o que Ravaisson resume em uma
esclarecer as evoluções psíquicas mais recen-
fórmula extremamente concisa: “a continuida-
tes. Bergson atua, de certa maneira, como um
de ou a repetição diminui a sensibilidade; ela
pensador fundamental: dedicou-se a elucidar
exalta a mobilidade” (ibid., pp. 74-75).
os funcionamentos fundamentais da moder-
Longe de emanar do eu, essa atividade
nidade, interessando-se às categorias elemen-
incessante impõe-se a ele, o ativa, consome, ex-
tares de tempo e espaço na obra da percep-
tingue de certa maneira, enquanto o decuplica,
ção e no pensamento individual, referindo-se
amplia pela hiperatividade. Ravaisson permite
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011
373
Claudine Haroche
discernir a importância do corpo, do movimen-
Bergson levanta, então, uma questão que se
to, do hábito, do automatismo, o caráter mino-
coloca de maneira aguda e inédita na extensão
rado da personalidade: “é cada vez mais fora
dos funcionamentos automáticos contemporâ-
da esfera da personalidade […] nos órgãos
neos, afetando por conseguinte o papel do su-
imediatos dos movimentos que se formam as
jeito no exercício do pensamento: sublinhando
propensões que formam o hábito” (ibid., p. 79).
que a afeição está “intimamente ligada à mi-
Ponto crucial na proporção em que a
nha existência pessoal”, Bergson se pergunta
ilimitação – no âmago dos funcionamentos
“o que, com efeito, seria uma dor destacada
das sociedades contemporâneas – entrava a
do sujeito que a sente?” (ibid., pp. 53-54). Ele
percepção.
chega a concluir que a dor não poderia existir
É então que se deve deter sobre a necessidade prática, e mais além, sobre a necessi-
independentemente de um sujeito que a sinta:
a dor sem sujeito não existe, é inconcebível.
dade psíquica e afetiva de imobilidade “temos
Essas questões não cessarão de ser re-
necessidade de imobilidade”, diz ele em 1911
petidas, e são surpreendentemente atuais
durante a conferência de Oxford (Bergson,
para compreender a fluidez sem limite das
1938, p. 159).
socieda des contemporâneas. “Façamos um
Ele chega, assim, à questão do eu sensí-
esforço – escreveu Bergson – para perceber
vel, da sensibilidade, através de uma genealo-
a mudança como é, em sua indivisibilidade
gia da dor: para que haja dor, é preciso que ha-
natural” (Bergson, 1938, p. 174). Essa indivi-
ja um sujeito capaz de sentir. Ser sensível signi-
sibilidade não coloca em causa a própria pos-
fica ter a capacidade de sofrer ou sentir prazer,
sibilidade de categorização, de classificação?
alegria; é também a capacidade de imaginar,
Pode-se limitar a dizer que o eu nasce de uma
perceber o prazer e o sofrimento do outro. É
necessidade prática, funcional de organização
quando ele aborda a questão da capacidade
externa? De percepção da realidade? Ou de
sensível, da sensibilidade do ser humano ao
uma necessidade psíquica? Não se pode na-
outro que Bergson formula questões compor-
quilo que diz Bergson discernir além da neces-
tando um desafio civilizacional considerável.
sidade sensorial, uma necessidade fundamen-
Ele recorda que
tal de estabilidade psicológica, de continuidade subjetiva?
[...] quase não existe percepção que possa, por um acréscimo da ação de seu objeto sobre o nosso corpo, tornar-se afeição, e mais particularmente, dor. Assim,
se passa insensivelmente do contato da
agulha à picada. Inversamente, a dor decrescente coincide pouco a pouco com a
percepção de sua causa e se exterioriza
praticamente em representação. Portanto,
parece bom que haja uma diferença de
grau, e não de natureza, entre a afeição e
a percepção. (Bergson, 1939, p. 53)
374
Prosseguindo as interrogações de
Ravaisson e de Bergson, um certo número de
trabalhos importantes se interessaram recentemente pelas reviravoltas psíquicas induzidas pela flexibilidade e a fluidez no mundo
contemporâneo.
Sennett observa, quanto a ele, uma necessidade de fixação e de referências análoga à que Bergson elucidou: as enquetes que
Sennett realizou durante os dez últimos
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011
Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea
anos levaram-no a observar a incerteza dos
indivíduos quanto ao futuro e a enfatizar que
“o que mais necessitam é de uma ancoragem
mental e emocional” (Sennett, 2004, p. 148).
Isso o leva a pesquisar sobre os efeitos das or-
em uma atividade mais moderna, como
um laboratório científico. Porém, é também o caso em uma empresa bem administrada: longe de querer evitar dos problemas, presta-se atenção a eles. (Ibid.,
p. 138)
ganizações flexíveis e, a curto prazo, estudando
as consequências sobre os afetos: a necessi-
Por fim, dentre os autores de trabalhos
dade de inscrever-se no tempo, a necessidade
aos quais nos referimos longamente na aná-
de continuidade, de contar para os outros, de
lise como “a transformação das maneiras de
ter um lugar, de ser reconhecidos não podem
sentir”, Balandier é, sem dúvida, um dos que
mais ser satisfeitas. Sennett resume, então, o
foi mais longe no exame das consequências
estado em que se encontra hoje o sujeito nas
de tais efeitos: tendo entrevisto o declínio e a
duas fórmulas que destacam sua passividade
eliminação das categorias antigas, das classi-
ou, inversamente, seu caráter ativo: os indiví-
ficações tradicionais, ele evocou muito recen-
duos perderam a iniciativa motora, psicológica,
temente o caráter crucial de tais questões em
privados de uma necessidade fundamental que
diversos escritos e, há pouco, em um texto de-
decorre do “sentimento de ser um agente” ou
dicado à “desaparição”. Balandier se interroga,
do fato de “pensar como artesão” (ibid.). Ele
assim, sobre as categorias, os âmbitos em que
se interessará, então, por entender o efeito do
nos percebemos, concluindo que nos encontra-
consumo sobre as próprias condições do pen-
mos hoje confrontados menos à “passagem a
samento. Ele distingue e opõe as atividades
um novo período de uma história continuada
automáticas, as operações mecânicas exercidas
que (à) passagem a outros tempos, supermo-
no consumo das que requerem reflexão, pen-
dernos, que engendram o inédito e constituem
samento, autonomia, uma certa relação com o
a mudança contínua em um novo estado das
objeto, o interesse que se dedica ao trabalho, o
coisas” (Balandier, 1985). Ele recorda que se a
trabalho bem feito, o prazer que se poder obter
mobilidade é uma dimensão intrínseca às mí-
desse trabalho, em suma, o que ele designa co-
dias, no entanto, sublinha que “por sua multi-
mo o fato de pensar como artesão. O consumo
plicação e a extensão de seu domínio, os efei-
não poderá coexistir com o fato de pensar co-
tos de realidade tendem a se tornar a realidade
mo artesão
como um todo, em um estado de indistinção
[...] ou seja, de procurar a compreender
o que se faz [...] No que diz respeito ao
trabalho, o bom artesão é mais que um
mecânico. Ele quer entender por que um
pedaço de madeira ou um processo informático não basta; com isso, o problema
se torna abarcador e suscita um procedimento objetivo. Esse ideal se realiza em
um ofício tradicional, como a fabricação
de instrumentos de música, mas também
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011
crescente” (ibid., p. 240). Ele observa que o
aumento do virtual, contribuindo ao indistinto,
conduz ao questionamento das categorias pelas quais percebemos e pensamos o mundo.
Podem-se experimentar sensações, mas
se pode perceber, sentir, pensar no movimento
contínuo e na ilimitação, na instantaneidade e
no imediatismo? Não seria necessário repensar
o papel da sensorialidade e da percepção, criar
375
Claudine Haroche
um novo lugar à corporeidade, ao movimento,
tendem cada vez mais a faltar, a necessidade
à mobilidade, à mudança no processo de pen-
de tentar levá-las em consideração, protegê-
samento? Podem eles ter um sentido?
-las, garantir sua existência, na proporção em
Se admitirmos que existem necessida-
que constituem nossa humanidade, tornou-se
des psíquicas fundamentais, como a duração, a
hoje uma questão política, antropológica e ci-
estabilidade, a confiança, a profundidade que
vilizacional crucial.
Claudine Haroche
Diretora de Pesquisa do Le Centre National de la Recherche Scientifique–CNRS. Centro Edgar Morin/
Institut interdisciplinaire d’Anthropologie du Contemporain–IIAC da L’École des Hautes Études en
Sciences Sociales–EHESS. Paris, França.
[email protected]
Notas
(*) Este texto foi extraído de uma conferência realizada no IPPUR em 11 de novembro de 2009:
ele retoma os argumentos desenvolvidos em Haroche, C. L’avenir du sensible. Les sens et les
sen ments en ques on Paris, PUF, 2008 (Versão remanejada: A Condição Sensível (2009), Rio de
Janeiro, Contracapa.
(1) Elias remete a Descartes quanto à “necessidade de observar e de pensar antes de agir” (“Conscience
de soi et image de l’homme”, 1991, p. 152).
(2) Simmel observa que “antes da criação de ônibus, ferrovias e trâmueis no século XIX, os homens
simplesmente não podiam viver uma situação em que as pessoas pudessem ou devessem se fitar
mutuamente durante minutos ou horas sem se dirigir a palavra” (Ibid.) Goffman e Senne farão,
mais tarde, observações análogas.
(3) Ver L’Avenir du sensible (Haroche, 2008, capítulos 1 e 5). Rousseau foi um dos primeiros a se
mostrar particularmente sensível à necessidade fundamental de ser visto, de ser olhado,
condição para a autoes ma, a dignidade e a integridade. Os sen mentos nascidos do olhar
são o próprio fundamento do sen mento de existência: a invisibilidade não desejada poderia
suscitar um sen mento de abandono, de inexistência. Rousseau atualizou, assim, os mecanismos
inerentes ao olhar: não apenas ser olhado, mas, inevitavelmente, de maneira voluntária ou não,
ser olhado mais que os outros. Condensando opinião, consideração, aparência e olhar, Rousseau
conclui que “é, portanto, certo que é menos em nós mesmos e mais na opinião de outrem que
buscamos nossa felicidade. Todos os nossos esforços convergem apenas para o parecer ser feliz.
Não fazemos quase nada para sê-lo de fato, e se os melhores de nós deixassem por um momento
de se sen rem olhados, nem sua felicidade, nem suas virtudes seriam mais nada” (Rousseau,
1964, p. 324).
376
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Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea
(4) Ele nota que “a ‘desatenção civil’ permite ao homem e à mulher trocarem um rápido olhar
recíproco... o segundo breve olhar que ele lhe dirige pode ser um sinal de encorajamento (p. 62).
(5) Arendt tomou consciência, com estupor, durante o processo Eichmann, da superficialidade deste
úl mo, de sua incapacidade de refle r, de sua ausência tanto de reflexão como de olhar (ver
Eichmann à Jérusalem, op. cit.).
(6) Lasch sublinhava que esses traços consistem em “uma certa superficialidade protetora”.
(7) Lembra que um certo número de escritos polí cos tem como ponto de par da a questão da
crueldade contra os estrangeiros.
(8) Versamos aqui sobre as maneiras de sentir, os modos de percepção com uma abordagem
transdisciplinar de sociologia, antropologia e psicologia, procurando reformular as questões sobre
os fundamentos do eu, da pessoa, da subje vidade, do sen r, do sen mento. Não entramos aqui
em debates internos à filosofia que tratam dessas questões.
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Texto recebido em 4/maio/2011
Texto aprovado em 15/maio/2011
378
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011
Narrativas sobre a metrópole centenária:
Simmel, Hessel e Seabrook
Narratives about a centennial metropolis:
Simmel, Hessel and Seabrook
Carlos Fortuna
Resumo
A metrópole e a vida do espírito, de Georg Simmel,
é abordado como texto seminal da sociologia
urbana e da análise dos comportamentos humanos
em contextos metropolitanos. Estabelece-se
uma relação entre a atitude blasé e o surgimento
da figura do flâneur. Esta é tratada a partir dos
contributos de Franz Hessel de finais da década de
1920 que retrata com algum romantismo o universo
metropolitano europeu anterior à Segunda Guerra
Mundial. A terminar, o texto interroga a existência
da flânerie nas megacidades do sul global de hoje.
O autor usa o recente relato de J. Seabrook para
ilustrar como, passados cem anos, a metrópole de
Simmel passou por profundíssimas transformações.
Se se puder ainda falar de flânerie, certamente
ela sofreu uma alteração radical da sua natureza.
De tal modo que essa mudança implica a revisão
epistémica da sociologia urbana.
Abstract
Georg Simmel’s The Metropolis and Mental Life
is treated as a seminal study of urban sociology
and of the analysis of human behavior in
metropolitan contexts. A relationship between the
blasé attitude and the appearance of the flâneur
is established. The latter is seen through Franz
Hessel’s writings, in the late 1920s, which present
a somewhat romantic view of the pre World War
II in Europe. The article ends up by questioning
whether flânerie still exists in today’s global South
megacities. The author makes use of J. Seabrook’s
recent writings to show the deep transformation
Simmel’s metropolis went through in the past
hundred years. If we can still talk of flânerie, it
has certainly undergone a very radical change in
nature which leads to an epistemic revision of the
canon in urban sociology.
Palavras-chave: Simmel; metrópole; flânerie ;
cânone urbano.
Keywords: Simmel; metropolis; flânerie; urban
canon.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011
Carlos Fortuna
Introdução: Simmel
e o cânone urbano
metrópole europeia de finais do século XIX,
em torno da qual produziu um dos seus mais
influentes escritos – A metrópole e a vida do
espírito (Simmel, 1997 [1903]).
Georg Simmel é um daqueles intelectuais cujo
Pode dizer-se que A metrópole … de
nome reaparece a cada instante nas reflexões
Simmel contribuiu decisivamente para a cons-
sobre inúmeros temas da atualidade. Ou por-
tituição do cânone urbano ao longo do século
que as suas incursões se tornaram incontor-
XX. Entre os que puderam assistir à conferência
náveis e dificilmente descartáveis nos nossos
em que pela primeira vez Simmel expôs suas
dias, ou porque o entendimento da mudança
ideias sobre a condição urbana metropolitana,2
societal de hoje aconselha o recuo temporal às
poucos terão admitido estar perante um estudo
linhas originárias de seu questionamento, co-
seminal que alcançaria esse estatuto de obra
mo modo de fundamentar arqueologicamente
clássica, constitutiva, no sentido kuhniano, de
o saber contemporâneo. São esses atributos
um novo cânone ou paradigma em formação.
que conferem a Simmel o estatuto de um dos
O estudo, associado a muitas outras conside-
fundadores da sociologia e atribuem ao seu
rações de Simmel dispersas por textos de na-
trabalho a condição de obra clássica. Num e
tureza não imediatamente acadêmica, passou
noutro caso, enquanto legado intelectual sem-
rapidamente a ser comentado e glosado no
pre atual e sempre atualizável , Simmel e a sua
efervescente meio acadêmico e jornalístico
obra permanecem entre as marcas inspiradoras
alemão de princípios do século. As ideias ali
mais profundas do pensamento sociológico
expostas depressa atravessaram a fronteira
contemporâneo.
atlântica pela mão de Robert Park, discípulo de
São várias as razões que fazem de
Simmel, e viriam a constituir parte importante
Simmel esse pensador atual. A primeira des-
de património intelectual da chamada “Escola
sas razões decorre de partilhar com outros
de Chicago”. Traduzido e retraduzido de modo
contemporâneos seus uma inquietação sobre
incessante em todo o mundo, A metrópole… é
o que representa efetivamente a modernida-
na verdade uma referência incontornável e um
de no curso da civilização. A escala macro de
marco do conhecimento disponível sobre a ci-
tal objeto, contudo, foi abordada por Simmel
dade e a questão urbana.3
segundo uma metodologia que privilegiava a
Por essas razões, parece indispensável
análise de fragmentos (snapshots sub species
que regressemos ao estudo original de Simmel
aeternitatis), de novas formas e configurações
para contribuir para esse desafio que, em boa
societais muito específicas, conjugadas com
hora, os Cadernos Metrópole lançam, de equa-
abordagens filosóficas e estéticas que, umas
cionar o lugar de Simmel na interpretação do
e outras, colocaram Simmel paradoxalmente
mundo das metrópoles dos dias de hoje. Antes,
fora do mainstream acadêmico do seu tempo.1
porém, permito-me desenvolver brevemente
A preocupação de Simmel com o que é mo-
uma das facetas derivadas do fato de um es-
derno se encontra essencialmente assinalada
tudo como A metrópole… de Simmel poder ser
pela sua aturada reflexão sobre Berlim como
considerado como parte integrante do cânone
380
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011
Narrativas sobre a metrópole centenária
acadêmico urbano. A faceta a que me refiro é
população humana. No plano da teoria, esse
a da fixação ou delimitação teórica-metodoló-
universo das pequenas e médias cidades es-
gica do objeto de estudo que a obra canônica
tá limitado a ensaiar sucessivas tentativas de
constitui. O estudo de Simmel, reconhecida-
adequação das políticas desenhadas para os
mente centrado na evolução urbana de Berlim
contextos das megacidades ou, em alterna-
da viragem do século, dada a sua originalidade
tiva, têm de forçar a teoria a reconhecer que
e a pertinência heurística das suas hipóteses
a pequena dimensão de umas cidades não é
no tempo em que surgiu, ajudou a “fixar” a
um efeito perverso da desmedida grandeza de
abordagem sociológica urbana no contexto das
outras.
grandes cidades. Como sustento noutro lugar
Na política científica, sabemos interpre-
(Fortuna, 2011), tal opção teve como primeiro
tar o lugar dos efeitos não intencionais resul-
efeito derivado a estabilização da sociologia ur-
tantes da investigação. Um deles é, por certo,
bana no universo geocultural do ocidente euro-
o de não atribuirmos responsabilidades diretas
peu e norte-americano. Os efeitos epistêmicos
ao autor pelos “desvios” que a sua “teoria”
resultantes dessa “norte-ocidentalização” da
pode ter sofrido na mão dos seus seguidores.
sociologia urbana traduziram-se, fundamental-
Daqui retiro que o clássico ensaio de Simmel,
mente, na duradoura “desclassificação” de uni-
contribuindo embora para a constituição do câ-
versos urbanos alternativos da América Latina,
none sociológico urbano em torno às grandes
de África e da Ásia, no conjunto dos territórios
cidades, não restringiu a esse universo a ima-
empíricos e de investigação urbana pertinente.
ginação sociológica urbana posterior. Simmel,
Admito que a recente reflexão em redor das
aliás, escreveu sobre Berlim, a grande cidade
chamadas “outras” cidades ou cidades “ordi-
que tinha pela frente, e as suas considerações
nárias” possa constituir um contributo de rele-
foram sucessivamente comentadas e testadas
vo para a descanonização da sociologia urbana
em outros lugares, com predominância para as
e a reorientação dos seus princípios filosófi-
grandes cidades da Europa, que assim foram
cos e teórico-metodológicos (Amin e Graham,
sendo tornadas contextos naturais de investi-
1997; Mendieta, 2001; Robinson, 2006).
gação urbana. Supostamente porque era nes-
Um segundo efeito derivado do canônico
sas concentrações urbanas que se impunham
estudo de Simmel, e derivado do anterior, res-
os fenômenos sociopolíticos inusitados e mo-
peita à negligência do universo das “pequenas
dernos que, irrepetíveis em contextos de menor
e médias” cidades. Cerca de 60% da popula-
escala, reclamavam interpretações inovadoras.
ção urbana mundial de hoje vive em aglomerados de menos de 750 mil habitantes (United
Nations, 2010) e, entre estes, a grande maioria
reside em cidades de menos de 100 mil (Clark,
A metrópole e a atitude blasé
2003). O que resulta daqui é que a insistência
no estudo das megacidades risca deixar na pe-
Berlim, por volta de 1900, era um desses uni-
numbra um universo riquíssimo de experiên-
versos intrigantes de acelerada mudança po-
cia urbana de uma parcela não desprezível da
lítica e cultural. Com um pouco menos de 2
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011
381
Carlos Fortuna
milhões de habitantes, Berlim não era propria-
Seabrook, um irreverente repórter do mundo
mente uma cidade de grande escala. Em mea-
urbano dos países pobres. Se admitirmos que
dos do século, com os seus 3.3 milhões, inte-
a metrópole seja metonimicamente associada
grava ainda o grupo das 20 maiores cidades do
à figura do flâneur, nas novas metrópoles do
globo, mas cedo perdeu esse estatuto, como de
Sul o que mais se pode aproximar da flânerie
resto sucedeu com as restantes cidades euro-
desenrola-se agora não na condição blasé de
peias (Soja e Kanai, 2007, p. 60). Quer isto dizer
Simmel, mas na mais alienada e sub-humana
que, exceção feita ao caso de Nova Iorque e Los
condição de vida, de quem luta a cada instante
Angeles, o peso demográfico urbano do mundo
pela sobrevivência, nas condições mais adver-
se tem vindo a deslocar para “outras” cidades
sas. De Simmel a Seabrook decorreram pouco
fora do contexto europeu e norte-americano.
mais de cem anos, um lapso de tempo sufi-
Essa profunda alteração da geografia da
ciente para assinalar profundíssimas mudanças
urbanização metropolitana é importante para
ocorridas nas metrópoles, com destaque para
o argumento deste texto que passo a sumariar.
os atores sociais que melhor podem ilustrar a
Tudo começa com Simmel e Berlim. A metrópo-
condição de vida que elas enunciam. O percur-
le da viragem do século foi identificada como
so argumentativo faço-o discorrendo em traços
geradora de novas configurações societais,
breves sobre as narrativas que Simmel, Hessel e
mas também de novos atores, crescentemente
Seabrook oferecem sobre a vida urbana.
individualizados e em confronto com também
A capacidade da metrópole de gerar no-
novos desafios à sua condição cidadã. Para
vas mentalidades e estilos de vida é um traço
poder conservar o seu equilíbrio mental, segun-
sociológico da vida moderna, repetidamente
do Simmel, o frágil urbanita busca refúgio na
assinalado pela sociologia urbana desde os
atitude blasé de desprendimento e indiferença.
seus primeiros passos. Na linguagem simme-
Do eventual aprofundamento dessa condição
liana, é a “atitude blasé” a que melhor ilustra
resulta a possibilidade de uma total desafilia-
a moderna configuração psicossociológica do
ção dos sujeitos com o coletivo urbano. No li-
indivíduo. Essa atitude blasé, que Simmel faz
mite, o desprendimento do sujeito blasé pode
derivar do imoderado desafio sensorial que a
dar origem à figura do flâneur, quiçá o sujeito
metrópole suscita, é um dispositivo psíquico
urbano que melhor tipifica a moderna condição
essencial para que os indivíduos possam rea-
metropolitana. Quem é e como se manifesta es-
gir aos efeitos da generalizada monetarização
se flâneur? Recorro ao relativamente margina-
da moderna economia urbana. No limite, ela
lizado contributo de Franz Hessel – ele próprio
se constitui na atitude reiterada de indiferen-
um assumido flâneur – e à descrição que faz da
ça perante a diferença que distingue os obje-
Berlim da década de 1920. Na segunda metade
tos e mercadorias uns dos outros e separa as
do século XX, a intensa e rápida urbanização
pessoas entre si (Simmel, 1997/1903, p. 35),
do Sul global, por efeito da descolonização, ge-
convertendo-se em mecanismo de autodefesa
ra também ela novos atores. Que traços corres-
dos sujeitos modernos no quadro da grande
pondem à flâneurie nesses novos territórios ur-
cidade. É um traço comportamental carregado
banos, se ainda existe? Recorro aqui a Jeremy
de negatividade, que fomenta a distância e o
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011
Narrativas sobre a metrópole centenária
afastamento em face dos outros com quem nos
literatura sociourbanística e das belles lettres
cruzamos nos espaços abertos da cidade.
do século passado, a origem do flâneur está
No entanto, Simmel admite que o invólu-
identificada com um espaço específico (a cida-
cro de reserva mental e distanciação a que o in-
de de Paris) e um tempo determinado (segunda
divíduo se entrega na metrópole, constituindo
metade do século XIX).4 Não obstante, as con-
embora uma autodefesa, não é tão sólido co-
siderações tecidas por Simmel sobre a atitude
mo parece. Contra a sua permanente mobiliza-
blasé permitem, a meu ver, estabelecer uma li-
ção jogam as virtudes da ação interpessoal que
gação de proximidade temática com a flânerie.
forçam os sujeitos a uma estrutura variada de
Enquanto forma moderna de deambulação nos
sentimentos que, ao lado da atitude blasé, do
espaços abertos das grandes cidades, o flâneur
estranhamento e da aversão, encerra também
refugia-se no domínio pessoal e privado a par-
simpatias e afinidades, mesmo que efêmeras e
tir do qual estabelece os termos da sua rela-
transitórias, e também um sentido de autono-
ção com a multidão. Essa relação, portanto,
mia pessoal, ainda que indefinido. Nem tudo
constitui-se como relação marcada por uma
na relação urbana é, portanto, feito de reação
paradoxal íntima exterioridade, a partir da qual
negativa. A cidade moderna contém mesmo,
o indivíduo flâneur estabelece um vínculo tão
segundo Simmel, o potencial para pensarmos
egoísta como apaixonado com a multidão da
o lugar das relações de civilidade e interação
grande cidade. Proximidade e distância, en-
urbana nos espaços públicos da cidade. A regra
quanto estratégia de vida, são justamente a sá-
parece portanto ser a da conflitualidade vivida
bia combinação que preside ao comportamen-
de sentimentos contraditórios que interpelam
to público dos sujeitos urbanos racionais de A
os indivíduos a cada instante e exigem dele
metrópole... Aquilo que o blasé de Simmel pro-
uma decisão racional e objetiva.
cura com a racionalização da sua interação em
As várias personagens que passam a po-
contexto urbano não é a busca do deleite pes-
voar a paisagem metropolitana moderna – o
soal que tipifica o flâneur de Baudelaire.5 É, ao
estrangeiro, a prostituta, o pobre, o aventurei-
contrário e como vimos antes, uma modalidade
ro, etc. – experienciam essa conflitualidade de
de autodefesa e quase emancipação dos indi-
sentimentos. O mesmo se diga do flâneur, essa
víduos perante a multiplicação de estímulos e
figura destacada da sociedade de massas que,
desafios que a condição urbana metropolitana
mesmo não pertencendo ao léxico urbano e
lhes impõe e perante a qual estes se protegem
cultural simmeliano, representa a materializa-
de riscos e desequilíbrios psicomentais, como
ção dos constrangimentos psicossociais e emo-
os que Sartre trataria como náusea.
cionais enunciados em A metrópole…
Para além de fazer ressaltar a condição
Trata-se de um ator social intimamente
blasé como expressão individual de relação so-
associado aos modos de observação e à espe-
cial urbana dos sujeitos modernos, a incursão
tacularidade da urbanização e da metrópole
de Simmel, sem nunca mencionar a flânerie
europeia tal como esta se desenvolve sob a
baudelairdiana, permite-nos ir ao encontro da
égide do capitalismo e do consumo a partir de
ideia que a noção de flâneur é algo indetermi-
meados do século XIX. Motivo recorrente da
nada e sujeita a diversas interpretações. Com
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011
383
Carlos Fortuna
efeito, em anos mais recentes, encontramos a
Berlim sobre que Simmel se detivera no seu A
flânerie sendo considerada como prática de
Metrópole…. Por fim, quero considerar que a
observação urbana associada ao método do
visão de Hessel sobre o flâneur, exposta como
fragmento etnográfico da realidade6 ou sendo
conjunto de relatos de viagens e deambulações
tomada como posição privilegiada para enten-
ocasionais pelas ruas e ambientes públicos de
der o lugar da cultura visual e os modos de per-
Berlim, organizam um modo particular de ler a
cepção típicos do século XX.
metrópole europeia da época e permitem-nos
interpelar a sua evolução ao longo dos últimos
cem anos.
Franz Hessel, o flâneur
Franz Hessel, nascido em 1880 no seio de
uma família judia de renda alta, manteve uma
longa relação de amizade e profissional com
Menos de três décadas passaram desde o sur-
Benjamin. Admirado como intelectual e escri-
gimento de A metrópole… para que o flâneur
tor, entusiasta assumido da experiência política
berlinense surgisse com fulgor por entre as dis-
e cultural de Weimar, Franz Hessel pode ser ti-
cussões intelectuais locais. Até onde essa dis-
do, ao lado de Simmel, como um dos que pri-
cussão nos esclarece sobre a evolução da vida
meiro se aperceberam da importância da cida-
urbana metropolitana, é uma questão em aber-
de como complexa encruzilhada de signos por
to que não pretendo abordar neste texto. Li-
decifrar. Frequentador de círculos intelectuais,
mito-me somente a enunciar em traços breves
artísticos e boêmios da Alemanha de entre-
a incursão na flânerie, enquanto a um tempo
guerras (o Circulo do poeta Stefan George em
prática de vida e narrativa intelectual, de Franz
Munique era o seu preferido), estabeleceu um
Hessel, uma figura grada, porém algo margina-
contato próximo com a elite cultural europeia
lizada, da cena intelectual berlinense. Pretendo
da época, sobretudo berlinense e parisiense.
deter-me por uns instantes na visão de Franz
Os escritos de Hessel constituíam já um
Hessel, precisamente por considerar que repre-
gênero literário antes mesmo de W. Benjamin
senta uma atitude assumida de flânerie que
ou S. Kracauer se deixarem “apaixonar” por
vem atualizar em meados da década de 1920
este enigma cultural que é a captação da vi-
a relação que admito existir entre o flâneur de
da urbana da modernidade.8 Era um cultor da
Baudelaire e a atitude blasé de Simmel. Por
escrita fragmentada e do relato de situações
outro lado, o estilo e algumas das temáticas
ocasionais e furtuitas da realidade urbana, que
tratadas por Hessel antecedem os termos e as
revela ressonâncias claras com os snapshots
considerações de Benjamin sobre o tema, pelo
sub specie aeternitatis simmelianos. Em mui-
que, no conjunto, a sua obra pode ser conside-
tas circunstâncias, Walter Benjamin revela em
rada como uma leitura pioneira da metrópole
Rua de Sentido Único, por exemplo, uma franca
de entreguerras, ainda que marginalizada dada
simpatia pelo estilo de Hessel (Benjamin, 1992)
7
a sua limitada difusão. Outra virtude do tra-
e chega mesmo a declarar admiração pelo tra-
balho de Hessel que desejo sublinhar é o fato
balho de seu amigo Hessel.9 De acordo com o
de tratar precisamente da mesma cidade de
comentário de Anke Glebber, Hessel oferece
384
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011
Narrativas sobre a metrópole centenária
um modo singular de captar a flânerie, basea-
deixando transparecer certa obsessão e nostal-
da na construção literária da cidade como se
gia pelas ruínas e a destruição provocada pela
esta fosse um estudo de caso sociológico. Tal
guerra.
leitura torna possível “traçar a genealogia das
Hessel reconhece a grande dificulda-
formas de perceção que antecedem a condição
de em interpretar e habitar uma cidade co-
da flânerie” ao permitirem considerar a própria
mo Berlim, que se transforma rapidamente e
errância literária como um metatexto da urba-
se encontra “sempre em vias de se converter
nidade (Glebber, 1999, pp. 85 e 110).
em algo diferente sem nunca descansar sobre
Hessel, tão familiarizado com Berlim co-
o seu passado” (Hessel, 1997/1929, p. 212) e
mo com Paris, onde passava regulares tempo-
que, diga-se de passagem, tomaram de novo
radas anuais, é na verdade um amante român-
conta da cidade nos anos da sua reconstrução
tico da cidade, no sentido que Pierre Sansot
pós-Segunda Guerra Mundial, a que Hessel
fala de como amar uma cidade (Sansot, 1994,
já não assistiu, e novamente na sequência da
pp. 358-374). Escreve de acordo com um sen-
queda do muro e da reunificação alemã. Trata-
tido dialético próprio que, ao mesmo tempo
-se aqui de uma referência às contínuas trans-
que desvenda uma Berlim secreta cujos traços
formações materiais e arquitetônicas por que
vão sendo descritos como potentes elementos
Berlim passou nas primeiras décadas do século
de atração, trata a cidade como um estranho
XX (Frisby, 2001). Acima de tudo, acomodar-se
espelho através do qual cada um se vai poder
à contínua mudança da grande cidade requer
descobrir a si próprio. A relação de proximidade
a mobilização permanente de energias e sen-
de Hessel com os surrealistas é clara, já que os
timentos como condição de a saber perscrutar
seus passeios por Berlim, alguns compartilha-
e apreciar nos seus mais recônditos detalhes.
dos com o próprio Walter Benjamin, assinalam
Requer, sobretudo, uma atitude de inocente
um método particular da montagem de frag-
tolerância e reserva, ao mesmo tempo de pro-
mentos, em tudo semelhantes ao que Benjamin
ximidade e distância calculadas de onde brota
usaria na escrita das suas famosas Passagens
a apreciação estética da paisagem:
(Benjamin, 2009), ou que Guy Debord e os situacionistas iriam mais tarde promover com o
exercício da deriva (Coverley, 2006).
Quando passeia por Berlim e nos conduz
pelas suas artérias, praças e bairros, ou quando se dirige diretamente aos seus concidadãos
berlinenses, Franz Hessel dá mostras de uma
sensibilidade extrema para com a materialidade da cidade (por exemplo, nos detalhes minuciosos das ruas e das lojas ou nas descrições
de indivíduos), oferecendo uma visão intimista
e naturalista da metrópole e do seu passado,
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011
Se a rua é de verdade uma espécie de
leitura, então leiam-na, mas não a critiquem demasiado. Não sejam demasiado apressados em julgá-la bela ou feia.
Não podemos confiar nestes conceitos.
Deixem-se enganar ou seduzir um pouco
pela luminosidade, pelo decorrer do dia
e pelo ritmo das vossas passadas… Por
estar enclausurado de forma amistosa,
também aquilo que é feio revela a sua
própria beleza. Os esteticistas não sabem
disso… mas o flâneur conhece bem esta
realidade. (Hessel, 1981, pp. 59-60, citado em Reeh, 2009)
385
Carlos Fortuna
Hessel assume essa atitude de reserva
outra que os seus semelhantes? Hessel não
e ponderação perante a grande cidade. Nada
hesitaria em responder afirmativamente, com
de juízos avaliativos precipitados, antes se
certeza influenciado pela forte relação empáti-
aconselha reserva perante o objeto que, mes-
ca que estabeleceu com as duas metrópoles da
mo se de duvidosa beleza, terá sempre outros
sua vida: Berlim e Paris. O flâneur cultiva com
recursos para nos atrair. A mesma cautela que
elas e as suas “florestas de signos” uma rela-
proclamara Simmel para prevenir os habitan-
ção que faz ressoar o entendimento que Gilles
tes da metrópole de uma atitude resguardada,
Deleuze faz do amor, em que a pessoa amada
capaz de controlar os ímpetos psicossenso-
surge perante o amante como uma pluralidade
riais perante o bombardeamento a que ficam
de signos e impenetráveis e misteriosos, logo,
expostos os nossos sentidos, serve agora a
por isso mesmo, desafiadores objetos de desejo
Hessel para decifrar com competência emo-
(Machado, 2009, p. 196).
cional e reserva avaliativa os sinais contradi-
Desconcertante, a grande cidade parece
tórios da estética urbana. Berlim que, lamenta
poder ser tanto mais admirada e amada quan-
Hessel, “não tem sido suficientemente amada”
to mais severa e difícil de decifrar. Repleta de
(Hessel, 1997, p. 212), está disponível para se
indecifráveis hieróglifos, a grande cidade “não
deixar conquistar pelos seus residentes, bas-
se deixa ler!” (“Er lasst sich nicht lesen!”) co-
tando para isso que estes se entreguem à sua
mo enunciara Alan Poe no seu Homem da Mul-
devoção plena e dos seus secretos recantos.
tidão. A metrópole não tem a clareza espetral,
Tal pode ser tanto mais reconfortante, insiste
nem o princípio ou o fim dos outros espaços
Hessel, quanto “caminhar devagar pelas ruas
urbanos. Tornou-se excessiva na medida em
cheias de gente proporciona um prazer invul-
que deixou de poder ser percecionada em sua
gar”. Por isso declara: “Todos nós, berlinen-
plenitude pelos seus habitantes. Divorciada
ses, temos que habitar mais a nossa cidade…
da relação espacial que a definia e definia as
Concedei à cidade um pouco mais do vosso
suas fronteiras como no tempo da metrópole
amor…” (ibid., p. 212).
de Simmel, a metrópole já centenária de hoje
Walter Benjamin vê as investidas de
mostra-se indomável e caótica. Assim sendo,
Hessel na descoberta da cidade como uma
poderá ela continuar a ser objeto de desejo?
redefinição do flâneur parisiense, cuja arte su-
Nesta metrópole centenária tudo pode acon-
prema é saber habitá-la até ao ponto de saber
tecer, a todo o momento e em qualquer lugar.
perder-se nela. Para ele, a cidade, a grande ci-
Tanto pode esmagar o romântico flâneur hesse-
dade modernista europeia pode ser alvo dessa
liano e submetê-lo à condição inerte de quem
simpatia e paixão, tudo dependendo afinal da
não consegue decifrar o texto à sua frente e
nossa capacidade de a “descobrir” nas suas
se desorienta, como pode renovar a flânerie e
mais recônditas paragens. Isso é uma compe-
torná-la uma condição universal, não mais uma
tência ou uma epistemologia urbana que po-
condição personalista singular, porquanto num
de ser alcançada pela flânerie. Mas poderão
mundo dominado pelo "espírito" das metrópo-
afinal os seres humanos amar qualquer coisa
les todos seremos flâneurs.
386
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011
Narrativas sobre a metrópole centenária
A metrópole do irreverente
Jeremy Seabrook
em outros registos sobre as "outras" cidades,
também Seabrook produz uma leitura crítica
do modelo de crescimento econômico e urbano do mundo, num relato entrecortado de si-
Esta metrópole de hoje, arquetipicamente re-
tuações que, pela sua veemência, estabelecem
presentada pelas megacidades da Ásia, Áfri-
um contraste manifesto com as metrópoles dos
ca e América Latina, não permite alimentar a
primórdios da modernidade industrial.
narrativa romântica da vida urbana que Hessel
Cities levanta a questão dos limiares da
oferece a partir do universo berlinense dos
dignidade da vida urbana nos contextos mais
inícios do século passado. É nessas condições
pobres de megacidades das Sul global. Na
que pretendo fazer o contraponto com Hessel,
viagem que fazemos com Seabrook por algu-
deslocando a análise para o mal contido gri-
mas metrópoles da Índia ao Bangladesh, da
to de revolta do jornalista e ensaísta britâni-
África do Sul às Filipinas, do Sudeste asiático
co Jeremy Seabrook, num pequeno livrinho
à América Latina, os protagonistas são dis-
de 2007, intitulado Cities: small guides to big
tintos – profundamente distintos – do sujeito
issues (Seabrook, 2007).
central da narrativa metropolitana de inícios do
De modo muito sensível, Seabrook des-
século passado. O relato é pungente e impie-
taca os impactos sofridos na vida das pessoas
doso na denúncia da incapacidade de ação das
que um pouco por todas as megacidades do
agências internacionais e, principalmente, do
Sul global de hoje, continuam a migrar de al-
conhecimento social e político para encontrar
deias pobres para aglomerados urbanos colos-
solução para a dramática realidade descrita.
sais, desestruturados e violentos. Estamos nos
São também fragmentos de vidas de cidade,
antípodas, no duplo sentido político e geográfi-
numa colagem narrativa de que, vale a pena
co, da narrativa dos inícios do século XX sobre
assinalar, alguns retratos fílmicos brasileiros
a metrópole. O que Seabrook traz de novidade
poderiam ser eloquentes descritores.
é a dimensão política da vida metropolitana,
Seabrook mostra ser um fervoroso adep-
mesmo se se limita à descrição de situações
to da urgente necessidade de refazer as bases
pontuais, num registo por vezes impressionista,
e os princípios da nossa reflexão sociológica
à boa maneira da reportagem, ou, se se prefe-
sobre as cidades. De modo muito específico,
rir, no bom estilo dos snapshpots simmelianos
o livro de Seabrook, embora sem pretensões
e hesselianos.
acadêmicas, levanta a questão dos limites da
Os ensaios de Seabrook revelam um
sociologia urbana para responder às novas rea-
cotidiano metropolitano que implica, antes
lidades metropolitanas emergentes. Será que
de tudo, o reconhecimento de uma profunda
chegamos ao fim da cidade, enquanto catego-
alteração do significado político do viver nes-
ria pertinente mas ainda presa a paradigmas
ses espaços desestruturados e violentos. Da
do passado?10 Nessa linha de questionamento,
démarche seguida pelo autor retira-se o re-
interroga-se, por exemplo, acerca do que julga
conhecimento da transição rápida e profunda
ser o paradoxo das cidades dos países em de-
ocorrida na condição da metrópole. Tal como
senvolvimento, muitas das quais, apesar do seu
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011
387
Carlos Fortuna
estatuto de “cidades globais”, permanecem
redes de sobrevivência, porém todos acabam
desprovidas dos recursos que tipificam as suas
em condição infra-humana limite de catadores
11
congêneres do ocidente. O seu impressionan-
de lixo, de vendedores de órgãos humanos ou
te ritmo de crescimento, principalmente desde
de escravizados sexuais.12 O chamado setor
o período pós-colonial, faz ressaltar a multipli-
informal cresce desmesuradamente com eles
cação e a extensão da favela, ou do slum, com
e à custa deles e da sua estratégia de sobre-
essas ou outras designações, um pouco por to-
vivência. “Informal” é, em muitos casos, um
do o mundo. O estatuto de muitas dessas gran-
mero eufemismo, já que a linguagem nos pode
des cidades na escala dos poderes e nas gre-
prender o raciocínio. Será “informal” a situação
lhas classificatórias convencionais oscila muito
do condutor de riquexó que, com uma perna só,
em função de sua inserção em redes internacio-
pedala nas ruas de Daca para conseguir a sua
nais tecidas pelo capital industrial e financeiro,
renda diária? Será “informal” o jovem casal
pelo comércio e pela produção tecnológica da
que propõe a venda do seu filho de dias aos
era da globalização. Em função dessas hierar-
ocidentais que passam nas ruas de Jacarta?
quias, algumas metrópoles parecem estar mais
Serão “informais” os traficantes de cabelo de
próximas do “norte” (por exemplo, São Paulo,
jovens mulheres mortas ou as crianças que em
Singapura ou Mumbai) e outras mais próximas
Calcutá revendem as garrafinhas de água que
do “sul” (por exemplo, Bengalore, Dhaka, ou
trataram de encher com água contaminada?
Lagos). Outras parecem estar no que o próprio
Como Mike Davis diria, são estas e outras for-
Jeremy Seabrook designa de "situação de fron-
mas de “sobrevivencialismo informal” (ele in-
teira” em que se articulam, a um tempo, “to-
siste no qualificativo) que sinalizam o modo de
dos” os traços de todos os “suis” e de todos os
vida de gigantescas massas populacionais nas
“nortes” (Tijuana, Ciudad Juarez ou Durban).
megacidades do mundo pobre de hoje (Davis,
O "direito à cidade" que reclamam os
2007).
migrantes que insistem em demandar estas
Separada das outras cidades que formam
metrópoles não passa de uma quimera, impos-
a megacidade do Sul global, essa gigantes-
sível de alcançar. E assim vivem… e morrem,
ca massa de pobres urbanos foi destituída de
em ritmo obsceno, reclamando uma promessa
qualquer estatuto social pelo apartheid eco-
de cidadania sem concretização homens, mu-
nômico, não já étnico ou racial, que fratura o
lheres, crianças, velhos, doentes, todos pobres
mundo das “cidades do medo”, sem apoios
tornados incontornáveis perdedores da mo-
nem serviços básicos, de salubridade e segu-
dernidade. Ofendidos, expoliados, excluídos,
rança, sem fornecimento nem de água nem de
encontram-se na contramão do curso da histó-
cidadania. Tudo isso acontece num mundo de
ria dos pobres “respeitáveis” “envergonhados”
metrópoles que há apenas algumas décadas
do tempo da metrópole de Georg Simmel e
atrás dava os seus primeiros passos para exal-
Franz Hessel a quem o Estado providência es-
tar o seu amor à cidade, mesmo que o amor
tava prestes a acudir. Aqui, do Estado não se
típico e ambíguo da flânerie, que tanto se faz
conhece o paradeiro e das políticas sociais não
de proximidade, presença e afinidade, como
se vê rasto. Muitos procuram solução nas suas
dos seus contrários. Tudo isso sucede neste
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Narrativas sobre a metrópole centenária
tempo singular e sem paralelo no seu acúmulo
urbana desta metrópole centenária. Desde os
de conhecimento sobre as cidades e as mega-
seus primórdios, esta metrópole passou por
lópoles. Parece que sabemos hoje tudo sobre
uma rápida e profunda mudança na sua natu-
as questões urbanas e os desafios ambientais,
reza. De tal monta que não se dá conta que o
as necessidades de segurança, os sistemas de
reconhecimento urgente do seu próprio lugar
transporte ou de proteção sanitária, como dos
implica também a construção de um renovado
conflitos sociais e étnicos até às virtudes da go-
cânone urbano.
vernação democrática e participada.13
O relato irreverente de Jeremy Seabrook
é uma das vias para tornar visível e audível a
“humanidade excedentária” das “outras" ci-
Conclusão: uma nova flânerie?
dades que o poder político e as multinacionais
insistem em tornar invisível e silenciar. Como
o próprio flâneur, estas metrópoles invisíveis
Esta “outra” cidade, todavia, vive na penum-
e silenciadas são as mesmas que, todavia, in-
bra do nosso conhecimento e reclama a nossa
sistem em se mostrar e fazer ouvir com a bru-
indignação política. Seabrook indigna-se. Mas
talidade da sua condição de cidades excessi-
remete-se a uma contida condição de jorna-
vas. Será que alguém as vê? Alguém as está a
lista e clama por uma nova visão sociológica
escutar? Será que elas permitem ainda buscar
para esta macrocidade. Quem poderá ajudar?
refúgio na atitude blasé? Ou cancelaram-na
parece ser o seu principal questionamento. A
definitivamente? Esmagaram o flâneur? Ou
sociologia? perguntamos nós... Sim, se souber
simplesmente alteraram sem remédio a sua fi-
rever e refazer os seus princípios norteadores,
sionomia? Ou estarão essas metrópoles a con-
os seus métodos e os objetos que estiveram
tribuir para a universalização da sua própria
na sua origem como disciplina e no desenvol-
condição? O que isso poderá significar é que
vimento das suas especializações. Ou seja, a
num mundo de metrópoles como o que está a
sociologia sim, se souber recolher, reler e rea-
ser construído, a condição do flâneur deixará
tualizar os contributos dos seus fundadores.
de ser particularística e atributo de uns poucos
E se, ao seu lado, conseguir colocar todos os
apenas e pode converter a todos nós – resi-
relatos, uns de tonalidade mais amorosa e ro-
dentes urbanos de toda a espécie, analistas e
mântica, outros de maior indignação e politi-
comentadores, acadêmicos ou não – em novos
camente mais empenhados e dar-lhes sentido.
praticantes de uma flânerie globalizada. Como
No fundo, fabricando uma junção virtuosa de
Simmel aconselha, devemos mobilizar os nos-
todos os Simmel, Hessel e Seabrook do mundo
sos recursos mentais e saber reagir a mais esta
e com eles tentar contribuir para o reconheci-
investida à nossa frágil condição de habitantes
mento urgente e o resgate da nova condição
deste excessivo mundo de macrocidades.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011
389
Carlos Fortuna
Carlos Fortuna
Professor de sociologia e coordenador dos Programas de Mestrado e de Doutoramento em Cidades
e Culturas Urbanas na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.
[email protected]
Notas
(1) Uma dessas configurações societais é a metrópole, como passaria a ser convenção designar a
grande cidade posteriormente ao seu consagrado estudo de 1903 sobre a Grossstadt (A
metrópole e a vida do espírito).
(2) Efe vamente, A metrópole e a vida do espírito foi apresentado pela primeira vez em conferência
organizada pela Fundação Gehe em Dresden, em 1903, como o intuito de celebrar a Primeira
Exposição Municipal Alemã. Como outras exposições semelhantes (por exemplo, a Exposição
Comercial de Berlim de 1896), também a Exposição de Dresden reconheceria Berlim como
moderna “cidade mundial”, aberta às grandes inovações tecnológicas da época (transportes e
comunicações) e capaz de cul var um espírito de modernidade (Stewart, 2009, p. 2).
(3) A metrópole… centrado fundamentalmente sobre as novas tendências da vida urbana, trata da
racionalização das relações sociais em contextos urbanos em expansão e da crescente obje vação
da cultura como resultado da monetarização da economia. O texto tem sido cri cado por ser
desprovido de qualquer contextualização histórica substan va e por não apresentar qualquer
confirmação empírica e esta s ca que lhe confira um sen do compara sta. Comprovadamente,
como sustenta David Frisby, um dos mais destacados especialistas na obra de Simmel, não era
esse o intuito do autor ao discu r os traços psicossociais que pautavam a nova vida nas grandes
cidades europeias da viragem do século dezanove (Frisby, 2001). Além disso, encontram-se
claramente ausentes do texto problemá cas importantes da reflexão sociológica de hoje que
Simmel explorou noutros textos dispersos (por exemplo, a questão da governação polí ca da
cidade, ou os domínios específicos da produção, ou a própria estrutura social, ou as relações
sociais de gênero, ou a questão espacial e da esté ca urbana, entre outras). Assim, por exemplo,
os ensaios que Simmel escreveu sobre Roma (1898), Florença (1906) e Veneza (1907) cons tuem
reflexões histórico-filosóficas de grande per nência para o reconhecimento da importância que
o autor atribui à dimensão esté ca da cidade no seu todo (Fortuna, 2010). Tratando-se de uma
das “ausências” de A metrópole..., a questão da esté ca urbana em Simmel tem portanto de ser
captada num conjunto de textos e fragmentos dispersos.
(4) Os escritos de Charles Baudelaire (1821-1867), em par cular o seu ensaio sobre O Pintor da Vida
Moderna (Baudelaire 2010) e, acima de tudo, a interpretação que Walter Benjamin lhes dedicou
(Benjamin, 1983) foram os principais pilares da visão sociológica sobre esse ator social que não
deixou nunca de atrair outras numerosas reflexões posteriores (Frisby, 1992; Tester, 1994;
Waizbort, 2000).
(5) “O homem que adora perder-se no meio da multidão alcança fervorosos prazeres de que
aquele que se isola e fecha numa caixa e preguiçoso, qual molusco me do na sua concha, está
eternamente afastado” (Baudelaire, 1970, p. 20, citado em Tester, 1994, p. 2).
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Narrativas sobre a metrópole centenária
(6) Segundo David Frisby, este método “jornalístico” da reportagem, com grande afinidade à
a tude metodológica tão u lizado por Simmel, foi aplicado por Robert Park, no seu trabalho
de etnografia urbana. Por outro lado, Sigmunt Kracauer rejeita a “reportagem” na análise da
realidade cultural urbana e adota, em alterna va, uma perspe va “constru vista” na observação
dessa mesma realidade (Frisby, 1994, pp. 104-105).
(7) Esta opção por Hessel é deliberada, precisamente para dar atenção ao seu pioneirismo no
tratamento da flânerie berlinense. Não dedico atenção aqui ao estudo consagrado de Walter
Benjamin sobre o flâneur (Benjamin, 2009, pp. 461-498) centrado em Paris e na relação
econômico-espacial traduzida pela presença da mercadoria e do consumo no espaço público
das arcadas.
(8) Da obra pessoal de Franz Hessel merecem destaque os Paseos por Berlín, de 1929 – disponível
em castelhano –, uma recompilação de ensaios de 1933 – disponível em francês com o tulo
Encouragements au plaisir – e um texto sobre Marlene Dietrich, de 1931. Além da sua obra
pessoal, Franz Hessel foi também um tradutor admirado de obras de Stendhal, Baudelaire e
Proust, entre outros. A tradução para a língua alemã de A la Recherche du Temps Perdu, de
Marcel Proust, feita em colaboração com Walter Benjamin, foi um acontecimento muito
celebrado em que, todavia, o contributo de Hessel terá sido menorizado pela imprensa, que
o apresentou como tradutor secundário e atribuiu erradamente a W. Benjamin a primazia do
trabalho (Palmier 1997).
(9) Refiro-me ao epílogo significa vamente tulado “O regresso do flâneur” que Benjamin assina na
edição dos ensaios de Hessel “Passeios por Berlim” de 1929 (Benjamin, 1997).
(10) Tenho designado de “pós-cidade” essa con nua alteração das condições estruturais da vida
urbana e a crescente inadequação da retórica acadêmica para captar o essencial dessa mudança.
(11) Veja-se a esse propósito a reflexão incisiva de João Se e Whitaker Ferreira sobre a “globalidade”
de São Paulo (Ferreira, 2007).
(12) As descrições pontuais da vida de pessoas singulares das metrópoles do Sul surge
recorrentemente entre os escritos de Seabrook. Assim, pode ver-se também a sua acu lante
descrição do mundo urbano em desenvolvimento nas cidades do Sul (Seabrook, 1996).
(13) Num tempo e num mundo em que sabemos até (nós acadêmicos e as autoridades), com fina
exa dão, a que horas do dia (de todos os dias do ano) as mulheres da cidade indiana de Pune
são estupradas. Agradeço esta informação a Sujata Patel.
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Texto recebido em 4/nov/2010
Texto aprovado em 15/dez/2010
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011
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Cultura e urbanidade:
da metrópole de Simmel à cidade
fragmentada e desterritorializada
Culture and urbanity: from Simmel’s metropolis
to the fragmented and deterritorialized city
Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
Resumo
Este texto destaca conceitos centrais da obra de
Simmel sobre cultura urbana, metrópole e modernidade, bem como aspectos epistemológicos de suas
análises, articulando-os às teorias recentes sobre
as transformações nas cidades contemporâneas.
Ressalta a mercantilização, a “tragédia da cultura”
e seus efeitos sobre a mentalidade dos citadinos.
A metrópole vista como local de conflitos, trocas,
consumo, colisão de corpos, mobilidades, passagens de fronteiras e as metáforas das pontes e
portas, a moda, a coquetterie nos confrontam com
as posições filosóficas e sociológicas de Simmel na
busca por compreender em que elas nos ajudam a
pensar sobre a urbanidade contemporânea, considerando-se os novos espaços de comunicação,
fragmentação, (des)territorialização e outras dimensões socioculturais.
Abstract
This paper outlines the central concepts of
Simmel’s work on urban culture, metropolis and
modernity, as well as the epistemological aspects
of his analysis, linking them to current thinking on
the transformations of the contemporary city. It
highlights the money economy, the “tragedy of
culture” and its effects on the individual’s mental
life. The metropolis is seen as place for conflicts,
exchanges, consumption, collision of bodies,
mobilities, border crossings and the metaphors
of the bridges and the doors, the fashion and the
coquetterie. This view confronts us with Simmel’s
philosophical and sociological positions in our
quest to understand how they can help us to think
about contemporary urbanity, considering the new
spaces of communication, fragmentation, (de)
territorialization and other socio-cultural dimensions.
Palavras-chave: cultura; urbanidade; território;
metrópole contemporânea; desterritorialização.
Keywords : culture; urbanity; territoriality;
contemporary metropolis; deterritorialization.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011
Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
Introdução
que discutem cultura e urbanidade apontan-
O tema da metrópole ocupa um espaço cen-
vas formas de organização socioespaciais, as
tral nos escritos de teóricos importantes na
imagens e os conceitos de cidade que exigem
virada do século XIX para o XX, com ênfase
novas posições de análise, intervenção e ges-
nas transformações que aconteceram na Eu-
tão dos espaços urbanos. Finalizo este tex-
ropa Ocidental. A passagem da pequena para
to ressaltando as contribuições de Simmel, a
a grande cidade, a concentração de pessoas e
força analítica das abordagens centradas na
de riquezas, o desenvolvimento da indústria e
questão da copresença no espaço público, na
da economia monetária, a modernização tec-
própria análise da condição de habitantes das
nológica do meio ambiente, em particular a
metrópoles e nas dinâmicas relacionais para a
instalação de uma rede de transportes cole-
compreensão dos sentidos e dos desafios da
tivos e de eletricidade, o surgimento do lazer
urbanidade contemporânea.
do as transformações nas metrópoles, as no-
de massa, a agitação nas ruas, os movimen-
Simmel deu uma contribuição inédita
tos estéticos (impressionismo, expressionismo,
ao sentido da modernidade e à compreensão
naturalismo, etc.) e as tensões socioespaciais
da cidade de um ponto de vista especial, que
múltiplas representam para Georg Simmel a
pode ser qualificado de “sensível”. A despeito
emergência de uma cultura metropolitana vivi-
das teorias socioeconômicas e sócio-históricas
da de forma intensa cuja sensação se asseme-
da modernização desenvolvidas pelos precur-
lha, nas palavras de Füzesséry e Simay (2008),
sores da sociologia alemã, esse autor definiu
a um “choque das metrópoles”.
a modernidade pelo prisma das transforma-
Neste texto, busco traços da obra de
ções fisiológicas e psicológicas da experiência
Simmel (1858-1918), em especial suas percep-
subjetiva dos habitantes das grandes cidades.
ção e concepção da metrópole e da vida urba-
Mostrou que as mudanças do ambiente ur-
na moderna enquanto contribuições epistemo-
bano tinham transformado radicalmente as
lógicas fundamentais para a compreensão da
condições da experiência sensível e, por meio
urbanidade contemporânea, considerando-se
dela, modificado o aparelho sensitivo humano.
o contexto atual e os novos espaços de comu-
Ao fazê-lo, colocou as bases de uma teoria da
nicação, fragmentação, (des)territorialização
modernidade que Vandenbergue chama de
e outras dimensões socioculturais. Em outras
“relacionista e vitalista” (2005, p. 130).
palavras, procuro compreender em que ainda
Nas análises de Simmel, as implicações
nos servem suas metáforas e suas posições
espaciais do desenvolvimento da modernida-
filosóficas e sociológicas no esforço para en-
de estão presentes nas metrópoles segundo o
tender o que não é mais como na época de sua
mesmo paradoxo que ele identifica entre cul-
formulação.
tura objetiva e cultura subjetiva. Para Simmel,
Na sequência, ainda nesta introdução,
a fronteira, assim como a cidade, “não é uma
apresento aspectos gerais de seu pensamento
entidade espacial com consequências socioló-
e nos itens seguintes procuro articulá-los às
gicas, mas uma entidade sociológica formada
ideias de diferentes teóricos contemporâneos
espacialmente” (Simmel, 2000a, p. 143).
396
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011
Cultura e urbanidade
Convém esclarecer o que Simmel enten-
formas de interação social, Simmel aborda
de por cultura e como ele define o que seria a
questões espaciais como dimensões cruciais
crise da cultura ou a “tragédia da cultura” co-
da interação social e das formações culturais.
mo será referida ao longo deste texto. O con-
A maneira como explora essas dimensões é
ceito de cultura está posto em Simmel funda-
singular por fazê-lo segundo perspectivas
mentalmente na relação entre sujeito e objeto.
variadas, relacionando questões econômicas,
Relação esta de mútua determinação, dialética
filosóficas, sociológicas e observações da
e flutuando entre o dualismo de vida (fluxo
vida cotidiana.
contínuo) e forma (sua cristalização) e a supe-
O fato de Simmel estar presente com
ração desse dualismo. Simmel considera ainda
especial relevo nas obras de alguns dos
que os objetos sejam espíritos objetivados dos
principais sociólogos que pensam sobre a
quais ele procura apreender os significados
cidade contemporânea corrobora, por si
decorrentes desse processo de objetivação. O
mesmo, a atualidade e a pertinência do seu
jogo é explorar a relação sujeito e objeto, ana-
pensamento. Nesse sentido, destaco conceitos
lisando e interpretando este último para fazer
e ideias apresentadas por Simmel em seus
emergir o espírito cristalizado que permanece
próprios livros publicados mais recentemente
nele, considerando-se que o próprio objeto é o
em inglês e em francês, além dos trechos de
resultado do sujeito e ao mesmo tempo difere
sua obra e ensaios organizados em coletâneas
1
por diversos autores contemporâneos. 3 Em
dele.
A tragédia assume um sentido que re-
especial Filosofia do Dinheiro (Philosophie
monta à tragédia grega clássica, apontando
des Geldes, 1900) e Sociologia. Estudo sobre
para a peculiaridade de que as forças que des-
as formas de socialização ( Soziologie, 1908)
troem e desmobilizam um ser foram produzi-
e ensaios e trechos de suas obras como: O
das pelas próprias criações e tendências desse
conceito e a tragédia da cultura ( Der Begriff
mesmo ser. É na vida moderna regida pela eco-
und die Tragodie der Kultur, 1911/12), O
nomia monetária que acontece a transforma-
conflito da cultura moderna (Der Konflikt
ção descontrolada dos meios em fins e dos fins
der Modernen Kultur, 1918 ), O futuro da
em meios, dos sujeitos em meios e dos objetos
cultura (Die Zukunft unserer Kultur, 1909), A
em fins, ao ponto de afetar a própria subjetivi-
sociologia dos sentidos (Soziologie der Sinne,
dade dos sujeitos que passam a ser dominados
1907), A sociologia dos espaços (Soziologie
por eles ao invés de dominá-los segundo seu
des Raumes, 1903), Pontes e portas (Brüke und
desejo. 2 Simmel (2000b) atribui um caráter
Tür, 1909), A filosofia da moda (Philosophie
universal ao fetichismo da mercadoria e afirma
der Mode, 1905), A metrópole e a vida mental
ser essa uma situação problemática típica da
(Die Grossstädte und das Geistesleben, 1903),
vida moderna com uma capacidade de cresci-
A exposição de comércio em Berlim (Berliner
mento ilimitada e por vastos territórios.
Gewerbeausstellung , 1896), As ruí nas (Die
Preocupado em desdobrar a ideia de
Ruinen , 1908) e O indivíduo e a liberdade
uma “cultura filosófica” (Waizbort, 2000)
(Das Individuum und die Freiheit, 1909), entre
e com a possibilidade de existência das
outros.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011
397
Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
Dentre as coletâneas, acima menciona-
organização da vida social. Como afirma For-
das, ressalto neste artigo: Simmel on Culture.
tuna (2002), amplia-se a necessidade de uma
Selected writings, de Frisby e Featherstone
reforma epistêmica dos instrumentos analí-
(2000) e Simmel e a modernidade, organiza-
ticos e conceituais sobre a cidade e a “rein-
do por Souza e Öelze (1998), bem como dois
venção do urbano” assinalada, em parte, pelo
ensaios publicados no livro L’École de Chica-
movimento de afastamento gradual e pela não
go. Naissance de l’écologie urbaine por Yves
coincidência entre o território urbanizado da
Grafmeyer e Isaac Joseph (1990).4 A discussão
cidade e o modo como se estruturam as práti-
aqui apresentada se inspira ainda nas leituras
cas, mentalidades e relações sociais que ali se
e interpretações realizadas por outros estudio-
desenvolvem e que podemos chamar de cultu-
sos da obra simmeliana, em especial Vanden-
ra urbana.
bergue (2005), Füzesséry e Simay (2008), Pa-
Argan (1998) reforça esse debate ao
quot (2008), Jonas (2008) e Waizbort (2000).
colocar a necessidade de uma reforma epis-
Ademais, complemento estas reflexões com
temológica dos instrumentos analíticos e
outros autores que atualizam o tema da me-
conceituais sobre a cidade e o urbano, bem co-
trópole e da urbanidade contemporânea do
mo de se apontarem os limites da técnica. Nas
ponto de vista das transformações socioespa-
palavras do autor:
ciais recentes, em suas dimensões territoriais e
nas representações sobre a cidade articulando
campos disciplinares diversos, em especial, o
planejamento urbano, a sociologia e a antropologia do urbano.
[...] como disciplina que visa interpretar,
estabelecer, reorganizar e finalmente
programar para o futuro a conformação
da cidade, o urbanismo está se separando cada vez mais de seu objeto, dir-se-ia
até que aspira a destruí-lo. (Ibid., p. 15)
Bresciani (2008), por seu turno, nessa
O território urbanizado e como
se estruturam as práticas,
mentalidades e relações
Reconhece-se hoje a emergência de uma cultura urbana renovada, de formas de afirmação
de expressões culturais diversas, algumas consideradas “extremas” (Canevacci, 2005), outras localizadas, globalizadas e diferentes modos de (des)localização, (des)territorialização
e (re)resignificação em metrópoles mundiais.
Há também uma necessidade de avaliação rigorosa dos vários parâmetros socioculturais que condicionam os modos de
398
mesma crítica ao urbanismo e à cidade moderna, sobretudo quanto aos seus ideais de
progresso e à crença nas possibilidades infinitas da técnica, refere-se aos primeiros críticos
dessa forma de estabelecer a relação entre
homem e cidade, citando como exemplos: Camille Sitte, Georg Simmel, Walter Benjamim,
entre outros, que
[...] denunciavam a fatuidade de idealizar-se uma razão única, despojada da
tradição e da história, uma razão obediente à sua própria lógica, construtora
de formas belas e logicamente irrepreensíveis – constituições, governos, raciocínios, edifícios, cidades. (Ibid., p. 17)
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011
Cultura e urbanidade
Os ensaios de Simmel e a própria forma
racionalização das relações sociais que ana-
de construção de sua teoria social apontam
lisa como uma “proteção subjetiva contra as
também para a necessidade de uma nova pos-
ameaças constantes e as discrepâncias do am-
tura do urbanista/pesquisador ante a cidade:
biente externo” na metrópole (Ibid., p. 176).
5
se desterritorializar, rizomatizar (Deleuze e
As condições de vida moderna criaram
Guattari, 1995) para, em uma multiplicidade
as situações, formas e necessidades especí-
de sentidos, interrogar a cidade do ponto de
ficas de comportamento e sensibilidade, um
vista das subjetividades, reciprocidades e prá-
modo de vida que exerce influência sobre a
ticas cotidianas e avançar para identificar e
consciência dos homens. O verdadeiro bom-
avaliar a relação entre os “dispositivos técni-
bardeio de imagens a que são submetidos ao
cos” e as “disposições sociais” (Joseph, 2002),
saírem às ruas não pode ser acompanhado
a fabricação e os seus praticantes.
pela consciência, nem sua capacidade de lhes
Certamente que sua abordagem me-
atribuir sentidos. Diante do fluxo intenso de
todológica e epistemológica do fenômeno
imagens e sua variedade nas metrópoles, o in-
metropolitano é essencialmente sociológica,
divíduo reage como o faz no interior dos trans-
entretanto, Simmel realiza uma aproximação
portes públicos ou em outros locais quando se
com a metrópole enquanto lugar específico de
vê colocado em uma situação de proximidade
socialização e espaço de emergência de novas
excessiva, variável e relativamente demorada
formas espaciais e estéticas, como indicam
ante os outros: impossibilitado de reagir com
seus ensaios sobre Roma, Florença e Veneza
a energia apropriada ou de manter contato
(Jonas, 2008), entre outros. Mas é em seu en-
com elas, ele apenas deixa fluir, se distancia
saio sobre As grandes cidades e a vida do espí-
do que está próximo demais, transformando o
rito (Simmel, 2000c), no qual retoma o essen-
contato com o estranho suportável e corriquei-
cial de uma conferência intitulada Metrópole
ro. O anonimato e a impessoalidade, quando
e mentalidades (Grafmeyer e Joseph, 1979),
o indivíduo se esconde por trás do grupo, são
que desenvolve uma análise especialmente
também parte da objetividade característica
fecunda da condição urbana moderna.
da vida nas metrópoles.
Diferente da vida nas pequenas cida-
Essa atenção às transformações dos re-
des, a experiência metropolitana se caracteri-
gistros da experiência subjetiva conduz Simmel
za, segundo ele, por uma “intensificação dos
a estudar a aparição de novas condutas urba-
estímulos nervosos que resultam das trans-
nas – a reserva, a atitude blasé, a coquetterie,
formações ininterruptas de stimuli externos
o conflito, o estrangeiro – como os pontos de
e internos” gerados pelo ambiente urbano
partida de uma sociologia da cultura e uma
(Simmel, 2000c, p.175). O citadino é subme-
sociologia dos sentidos, próprias à grande ci-
tido a múltiplos choques dos quais ele tenta
dade, destinadas a analisar os fatos provenien-
se proteger, embora modifiquem profunda-
tes da constituição sensorial do homem, os
mente seu psiquismo e seu aparelho sensitivo.
modos de percepção mútuos e as influências
Segue-se uma propensão à individualização, à
recíprocas que daí derivam para a significação
intelectualização, ao cálculo, à indiferença e à
da vida coletiva. Para Simmel, os conflitos, a
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399
Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
definição de fronteiras simbólicas e o choque
metropolitano são também determinantes na
compreensão da experiência de modernidade.
É possível, então, identificar duas grandes direções das reflexões de Simmel imbricadas em suas obras e que incluem a metrópole:
as formas sociais que derivam da grande cidade do capital e da modernidade e o “espírito” das metrópoles. Na primeira, esclarece
conceitos e seu método de análise da morfologia social numa abordagem centrada em
religá-los por uma ponte. E o ser humano
é também um ser de fronteiras que não
tem fronteiras. O fechamento de sua vida doméstica através de uma porta significa que ele separa assim uma parcela
da unidade ininterrupta do ser natural.
Mas mesmo se a limitação disforme tomar forma, sua limitação encontra seu
significado e dignidade apenas no que
a mobilidade da porta representa: na
possibilidade de romper esta limitação
a todo instante para ganhar a liberdade.
(Simmel, 2000d, p. 174)
estabelecer tipos-ideais. Na segunda direção,
apresenta uma filosofia da vida e suas figuras
Pode-se, então, refletir sobre os muros,
urbanas são apreendidas como fragmentos do
reais e simbólicos, erguidos nas cidades con-
cotidiano. Simmel preocupa-se com os fato-
temporâneas e que não param de se multipli-
res estruturais do mundo moderno, a econo-
car ao nosso redor, encerrando não apenas
mia monetária e a divisão social do trabalho
bairros de uma cidade, favelas em bairros de
e com os fenômenos cotidianos mais fugidios
camadas médias, mas também entre cidades,
e fragmentários (que chama de conteúdos
as gated communities que se impõem atual-
das formas sociais: pulsões, interesses, ten-
mente como produtos imobiliários de valor e
dências, desejos, etc., que se expressam nos
o crescimento da demanda por esses enclaves
indivíduos). Como afirmam Souza e Öelzer:
residenciais, supostamente “seguros”. Tais
empreendimentos imobiliários não nos dão
Simmel possui o talento de perceber o
eterno, invariável e essencial nos fenômenos aparentemente mais casuais e superficiais da vida cotidiana. (1998, p. 17)
qualquer evidência de que aumentem assim
as relações comunitárias, as trocas entre vizinhos. Ao contrário, apenas banalizam o isolamento, revelando uma fragilidade afetiva de
Nesse sentido e na busca de compre-
seus moradores sempre à espera de uma cha-
ender a cidade contemporânea, parece-me
mada telefônica, de uma mensagem de e-mail,
essencial destacar a força metafórica das pon-
de um chamado distante que possa manifestar
tes e portas a partir da qual Simmel analisa a
certa proximidade, familiaridade, alguma liga-
capacidade do ser humano de associação e de
ção que justifique por ela mesma o desliga-
atravessar fronteiras. Ele afirma:
mento que esse tipo de moradia exige.
Assim também a cidade virtual, dentro
[...] porque o ser humano é um ser de
conexão que deve sempre separar e que
não pode conectar sem separar – precisa
primeiro conceber, intelectualmente,
como uma separação, a existência indiferente dos dois lados de um rio, para
400
da qual se tem um lugar (um portal, um endereço, um site, um blog, um twiter, etc.) para
o jogo das trocas de informações, facilita os
contatos e os afastamentos sem, entretanto,
assegurar o encontro e a integração. A troca
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011
Cultura e urbanidade
eletrônica não requer essa disponibilidade,
esferas da troca, do consumo e da circulação
essa presença, essa responsabilidade com o
de mercadorias e de indivíduos. Embora a me-
outro que o encontro, a conversa telefônica,
trópole fosse o lugar da dominação da cultura
a carta propiciam. No entanto, essa forma de
objetiva e da “cultura das coisas”, a problema-
comunicação apresenta hoje múltiplas facetas
tização do desenvolvimento da identidade e
a serem analisadas considerando-se seu po-
da subjetividade do citadino permaneceu uma
tencial transgressor e agregador evidenciado
preocupação central das “sociologias de Sim-
de forma muito clara no caso do recente con-
mel” (Vandenbergue, 2005).
flito político no Egito (fev. 2011), divulgado pe-
Diversos autores indicam que é da con-
la mídia nacional e internacional, no qual um
frontação de Simmel com a metropolização
ditador foi derrubado com a ajuda de cone-
da sociedade alemã, em especial de Berlim,
xões via internet, de pontes construídas para
que surge sua convicção de que a metrópole
romper as tentativas do poder estatal de im-
representa a imagem fragmentada, mas gené-
pedir a comunicação para a organização dos
rica da modernidade. É a partir de sua vivência
protestos nas ruas da cidade do Cairo. E mais,
em Berlim que se interessa pela forma como
as conexões cortadas foram viabilizadas por
as mudanças no ambiente urbano modificam
meio das redes internacionais disponibilizadas
a sensibilidade humana e, ao fazê-lo, afetam a
por sistemas alternativos em outros países.
natureza da experiência moderna.
Assim como Walter Benjamin, Simmel
também se refere às mudanças profundas no
Uma teoria relacional
e vitalista da modernidade
aparelho perceptivo observando os pedestres
nas ruas da grande cidade. Observa que o
deslocamento do indivíduo se encontra condicionado por uma série de choques e conflitos,
Se a modernidade é concebida e vivenciada
sobretudo visuais. Afirma que a superabun-
por Simmel como um fluxo de um mundo inte-
dância de imagens e impressões nas grandes
rior cujos conteúdos substanciais são constan-
cidades arranca do sistema nervoso, pela ra-
temente dissolvidos pelo movimento, numa vi-
pidez e intensidade de sua alternância, respos-
são muito próxima do sentido que Baudelaire
tas violentas, submetendo-o a choques tais
a entendia, ou seja, como o transitório, o fugi-
que o homem usa suas últimas forças e não
dio, o contingente (Frisby, 2008), a reflexão de
consegue se reconstituir.
Simmel sobre a metrópole representa o ponto
É importante relembrar que Simmel
de intensificação crucial da modernidade junto
explica esses novos registros da experiência
com a economia monetária. No contexto de
subjetiva não por meio de conceitos totalizan-
sua teoria social, é muito mais a vida urbana
tes, mas a partir de uma atenção aos detalhes
do que a indústria ou a produção ou a organi-
concretos, aos fenômenos de superfície, acessí-
zação racional a chave para a compreensão da
veis à experiência sensível da vida nas cidades:
modernidade. Sua análise se concentrou nas
o lugar característico das grandes cidades (as
consequências pessoais do envolvimento nas
ruas, os cafés, os cinemas, as salas de espera,
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401
Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
os parques, as calçadas), os objetos do coti-
metropolitana na Alemanha antes e depois da
diano (relógios, guarda-chuvas, máquinas de
Primeira Guerra Mundial. Muito embora ela
escrever, redes de montagem) ou ainda os ti-
deva muito à forma particular como esse au-
picamente citadinos (a indiferença, a reserva,
tor apreendeu o caráter, sobretudo, visual da
a propensão ao conflito, a moda, o lazer, as
urbanização berlinense.
exposições).
De fato, o contexto no qual se consti-
Esses objetos e lugares hoje seriam
tui o pensamento de Simmel e sua teoria da
outros, manter-se-iam as ruas, os bares, os
modernidade está dominado pelo processo de
parques, praças e calçadas, salas de espera,
metropolização, que atingiu a Alemanha de
acrescentar-se-iam as praças de alimentação
maneira particular. Pela sua extensão e rapi-
dos shoppings, os pontos de ônibus, os diver-
dez, o crescimento urbano alemão não afetou
sos espaços de encontro dos jovens, a inter-
apenas o quadro material de vida de numero-
net, sites, blogs, enquanto os objetos seriam
sos citadinos,6 mas produziu igualmente uma
os celulares, notebooks, palmtops, ipods e
experiência singular da época, dominada por
aspectos exacerbados do medo, da violência,
uma sensação de crise. Uma sensação que se
da desigualdade social, da estigmatização,
estende até a atualidade, tomando formas
a formação de tribos urbanas, a arquitetura
diversas e ampliadas, pelo caráter de confli-
da vigilância com suas grades, muros altos,
tividade, heterogeneidade e diversidade de
câmeras de segurança privadas e públicas.
experiências do espaço metropolitano. Além
Elementos presentes na experiência subjetiva
de estar constantemente em estado de es-
das metrópoles contemporâneas que indicam
truturação e reestruturação, de elaboração e
as novas formas desse jogo e a complexidade
reelaboração de suas definições e proprieda-
e o aguçamento de algumas das reações sub-
des, cada vez mais ampliado, mundializado e
jetivas identificadas nas metrópoles do início
desterritorializado.
do século XX, compatíveis com a alienação e
Observando o ritmo do crescimento ur-
a reificação, a ampliação do desequilíbrio trá-
bano alemão, Füzesséry e Simay (2008) dis-
gico entre cultura objetiva e cultura sujetiva
tinguem duas gerações: a primeira, nascida
e outras dimensões inexistentes na época da
entre meados dos anos 1850 e meados de
formulação das ideias de Simmel.
1870, contemporânea da explosão urbana e a
De uma série de observações empíricas,
segunda nascida entre meados dos anos 1880
Simmel extrai uma teoria geral da modernida-
e o fim dos anos 1890, posterior à explosão
de que atribui um lugar central às experiências
urbana. Entre esses dois grupos está a Gran-
vivenciadas na grande cidade. Essa forma de
de Guerra, pela profundidade de seu impacto
pensar a modernidade está associada a um
cultural sobre a sociedade alemã, marcando
contexto material e intelectual estruturado
um tipo de fronteira.
pelo crescimento explosivo das grandes ci-
Nascido em 1858, Simmel pertence à
dades na Alemanha na virada do século XIX
primeira geração confrontada à metropoliza-
para o XX e articula-se também ao modo co-
ção. É um testemunho do explosivo crescimen-
mo se constrói o debate sobre a modernidade
to urbano alemão. Dentro de um país ainda
402
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Cultura e urbanidade
dominado pelas estruturas do mundo rural, a
um entendimento sobre o modo como foi
urbanização intervém com uma rapidez sem
sentida, compreendida e rejeitada. Revela
comparação na Europa. Perto dos anos 1850,
que a experiência da grande cidade é, antes
15% dos alemães viviam em aglomerações de
de tudo, uma experiência traumática da mo-
mais de 5.000 hab. e apenas mais de 3% em
dernização, dominada pela hiperestimulação
cidades de mais de 100.000 hab. Em 1890,
sensorial e pelo estado de choque. Ademais,
51% dos alemães viviam em cidades, contra
essa experiência é a origem de um abatimen-
41% quinze anos antes. Em 1910, seriam apro-
to psíquico, de uma perda de orientação es-
ximadamente 49% de citadinos vivendo nas
paço-temporal, de certa dissolução das expe-
grandes cidades, sendo que um entre dois ale-
riências de transmissão intergeracionais, mas
mães vivendo e trabalhando na cidade, e cerca
pode, por outro lado, ser compreendida como
de um dentre cinco em uma das 48 metrópoles
uma tentativa ambígua de superação dessas
do Reich (ibid., p. 18).
mesmas críticas. Em Simmel, a hiperestimula-
A partir desse contexto, Simmel capta
ção sensorial continha também um potencial
e nos apresenta um estilo de vida metropoli-
libertador. Nesse sentido, o novo modo de vi-
tano paradigmático, onde o indivíduo precisa
da urbano poderia ser lido como uma reação
circular por um mundo cada vez mais objetivo,
do citadino às novas condições de percepção
onde a sensibilidade deve se refugiar nos in-
geradas pela metropolização. Dessa forma, a
terstícios da vida urbana cada vez mais socie-
experiência de modernidade metropolitana
tária e menos comunitária. É um mundo obje-
não geraria apenas alienação e reificação, in-
tivo individualista, dominado pelo intelectua-
dicaria ainda a possibilidade de uma liberdade
lismo, pelo cálculo e pela economia monetária.
individual.
Mas, ao mesmo tempo, Simmel não renuncia à
Assim, o transeunte e o flâneur interes-
ideia de que a metrópole da modernidade tam-
sam a Simmel, em primeiro lugar, porque as
bém seja capaz de criar as condições psicológi-
práticas urbanas cotidianas de quem passa
cas para a sensibilidade da alma do citadino
pela rua e da flânerie são consideradas como
(Simmel, 2000c, 2005). Como afirmam Jonas
fatores de socialização para os citadinos sub-
e Weidmann (2006), foi um dos primeiros so-
metidos aos múltiplos estímulos do espaço da
ciólogos e filósofos da cultura a perceber que
rua e colocam seu equilíbrio psicológico à pro-
o questionamento sobre a estética da cidade
va. E, em segundo, porque a observação e o
e o lazer de massa associa-se a uma reflexão
estudo dessas figuras parecem indispensáveis
sobre a sociedade e as novas formas sociais e
para a elaboração de uma microssociologia da
espaciais que ela mesma criou.
vida cotidiana (Simmel, 2000e).
Assim, a contribuição de Simmel à
O transeunte é o indivíduo apressado
discussão sobre a metrópole e a moderni-
que se desloca de maneira racional e objeti-
dade aponta, de um lado, para uma crítica
va, mecânica e quase automática por espaços
da modernização ou a reforça, mesmo que
urbanos estreitos sempre apertados, densos e
involuntariamente, uma vez que uma abor-
hipertrofiados. O flâneur é aquele que percor-
dagem sensitiva da modernidade possibilita
re quase sempre o mesmo espaço, mas com
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403
Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
descontração, sem objetivo preciso. Entretanto, os pedestres são alternativamente, segundo seus tempos, transeuntes ou flâneurs
na vida urbana. Seus estudos indicaram que
o pedestre desenvolve uma atitude blasé, de
reserva, aparentemente insensível à proximi-
relações infindáveis. E quando temos
uma configuração de uma constelação
qualquer, que ele cuidadosamente arma
para nós, é somente para nos mostrar
que, no mesmo momento, ela já se foi,
e é preciso escavar e escavar novamente.
(2000, p. 589)
dade e aos olhares dos outros. Porém, essa
reserva é interpretada como uma reação de
A leitura de Simmel traz para a discussão
insegurança, um sentimento de estar sendo
da metrópole dimensões epistemológicas sig-
ameaçado e uma reação à sugestibilidade
nificativas para a interpretação dos problemas
indiscriminada pela proximidade e aglomera-
contemporâneos que apontam para uma abor-
ção dos corpos, mas também a própria forma
dagem interacionista e fenomenológica. Trata-
que assume a urbanidade moderna e torna
-se de relacionar os espaços com os compor-
possível a vida nas grandes cidades (Simmel,
tamentos corporais e formas de sociabilidade
2000c, 2005).
que indicam as maneiras como os indivíduos
Apesar de Simmel considerar excessiva
territorializam, desterritorializam e reterrito-
a preocupação com métodos (certo fetichis-
rializam os lugares, para usar o vocabulário
mo entre seus contemporâneos) e indicar a
de Deleuze e Guattari (1995), se servem de
impossibilidade de leis sociológicas, diversos
seus corpos em ritmos específicos, de técni-
autores buscaram identificar os elementos re-
cas corporais repetidas nos espaços de modo
ferentes a uma forma própria de abordagem
cíclico ou linear e que envolvem processos tais
dos seus principais temas. Para Frisby (1992),
como: deslocamentos, passagens, permanên-
há na abordagem simmeliana uma “autono-
cias ou interações, velocidades, aberturas e
mia estética” que se pode dizer antipositivista,
fechamentos, aproximações e afastamentos,
antissistemática e antiacadêmica, ou seja, não
agrupamentos e dispersões de indivíduos de
busca um método causal-analítico ortodoxo.
modo regular, esporádicos ou excepcional.
E a natureza dos seus trabalhos caracteriza-
Essas práticas urbanas remetem à movimen-
-se por um ensaísmo consciente. Mesmo suas
tação física de tipos urbanos variados como:
duas grandes obras Filosofia do dinheiro
transeuntes, moradores, turistas, ambulantes,
(1900) e Sociologias (1908) foram construídas
mendigos que vivem diariamente nesses luga-
a partir de ensaios caracterizados, por David
res. Trata-se de “uma relação dialógica que se
Frisby, como “fragmentos que ele destaca pa-
instaura entre um espaço urbano e aquele que
ra construir uma ciência da sociedade” (1992,
o atravessa, o percorre ou o explora” (Joseph,
p. 70). Por sua vez, Waizborg destaca sua ca-
1999, p. 35).
pacidade para
[...] apontar para as variadas faces de
seus infinitos objetos, para sua como
que pulsão a desenrolar infatigavelmente os fios das relações, fios sem fim de
404
Outros autores precursores dessa abordagem da cidade “sensível” são Lefebvre
(1992), quando propôs uma reinterpretação
da cidade por meio da heurística da rua e dos
ritmos da vida cotidiana, além de Certeau
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Cultura e urbanidade
(1994). Ressalta-se uma cidade praticada que
As mudanças na esfera da produção afe-
se insinua no texto/conceito da cidade plane-
tam e modificam profundamente os sistemas e
jada e visível. Práticas do espaço que reme-
as formas de produzir bens de consumo, bem
tem às “maneiras de fazer” (ibid., 1994), aos
como de organizar o trabalho. Nas últimas três
“usos” dos espaços que evocam a coexistên-
décadas do século XX e início do século XXI as
cia física e social dos pedestres nos lugares
transformações se estenderam ao tipo de ter-
públicos.
ritório ou a processos de desterritorialização
Nesse sentido, convém ressaltar que
associados às mudanças tecnológicas e eco-
a experiência sensível do indivíduo na cida-
nômicas. A própria expansão física do espaço
de contemporânea se liga às práticas e inte-
construído torna cada vez mais fácil encontrar
rações, aos lugares, às histórias vividas e às
características próprias da cidade em lugares
imagens coletivas presentes nos discursos
tradicionalmente à margem dos processos de
partilhados. Essas experiências e as trocas
urbanização. As fronteiras ficam cada vez mais
ampliam-se na metrópole contemporânea as-
difíceis de serem definidas em termos estrita-
sim como também as tensões apontadas por
mente espaciais.
Simmel. Amplia-se, sobretudo, a tensão entre
Entretanto, esses fenômenos de descon-
a ruptura com o passado que está sob ameaça
centração que fizeram da periferia um territó-
de perda, um presente que está em estado de
rio mais flexível pela difusão e melhoria das
crises constantes e um futuro que oferece pos-
redes de comunicação e telecomunicação, que
sibilidades incertas, com riscos mundialmente
ampliaram a importância das cidades de tama-
compartilhados. Lembrando que hoje a mobi-
nho médio como centros urbanos importantes
lidade e velocidade das novas tecnologias de
no marco da economia global, parecem não re-
informação e de telecomunicação distinguem
presentar uma ruptura absoluta com o modelo
de modo mais intenso o espaço urbano atual
de concentração historicamente característi-
daquele do início do século XX.
co do sistema fordista7 (Roncayolo e Paquot,
1992). Soja considera que, apesar das tendências centrífugas, a nodalidade centrípeta não
As cidades e as culturas
contemporâneas: teorias,
conceitos e imagens
desaparece (2000, p. 263). O binômio centralidade-difusão passa a marcar as cidades do
mundo ocidental definido fundamentalmente
em termos de redes (Castells, 1999). Fala-se
de uma centralidade dependente dos níveis de
As cidades e as culturas urbanas constituem-
competência, competitividade e coo peração
-se como espaços em que as transformações
dentro de um conjunto de redes urbanas.
das últimas décadas mais se fizeram sentir,
Acrescentam-se também as novas for-
impulsionadas pelas inovações tecnológicas e
mas de mobilidade e de construção cultural
pelo desenvolvimento de novas formas de go-
da velocidade que ampliam os territórios de
vernança, gerando novas urbanidades e alte-
fluxos configurando um cenário de mobilidade
rando as existentes.
intensiva e uso extensivo do território próximo
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405
Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
ao que Harvey (1992) definiu como compres-
em integrar de forma crescente a mobilidade
são espaço-temporal, ou seja, compressão do
espacial na vida cotidiana ao ponto desta ser
espaço e aceleração do tempo.
estruturada por aquela” (1992, p. 14) conver-
Além da metáfora da “mancha de azei-
tendo a instabilidade em instrumento parado-
te” evocada para simbolizar as fases de con-
xal de estruturação que determina um con-
centração urbana das cidades, da ideia de re-
junto de usos e representações de um espaço
des e de fluxos para explicar os modelos de or-
nunca plenamente territorializado.
ganização do território urbano regional, temos
8
Esse quadro geral de renovação teórica
o conceito de rizoma de Deleuze e Guattari
vem sendo desenvolvido a partir da consta-
(1995, 1997) como um dos exemplos dessas
tação das transformações econômicas, tec-
aproximações que se pode chamar de forma-
nológicas, sociais e culturais que afetam as
listas aos diferentes tipos de crescimento que
metrópoles e que expressam, sobretudo, uma
a cidade vem desenhando sobre o território
reestruturação econômica pós-fordista 9 ou
ao longo dos últimos séculos. A cidade-rizoma
pós-industrial com ênfase nas consequências
seria a metáfora de um sistema urbano consti-
da concentração tecnológica no território ur-
tuído por territórios que crescem por desterri-
banizado, nas imagens de cidades emergentes
torialização e reterritorialização, que conjuga
que indicam processos de desterritorialização:
fluxos desterritorializados com características
a cidade global (Sassen, 1998), a metrópo-
diferenciadas e relações que se situariam além
le dos indivíduos (Bourdin, 2005), a cidade
dos critérios dicotômicos binários. Seriam rela-
conquistada (Borja, 2005), a cidade super ex-
ções mais complexas do que as definidas pelas
posta (Virilio, 1984), a cidade informacional,
típicas dicotomias centro-periferia ou campo-
a tecnopólis ou o espaço de fluxos (Castells,
-cidade.
1999), a telepólis ou cidade à distância (Eche-
Nesse ponto, convém mencionar a dis-
veria, 2000), a cidade virtual de bits (Mitchell,
tinção conceitual entre cidade e urbano apon-
2000), a metápolis (Ascher, 1995) ou a pós-
tada por Delgado (2008). Ele afirma que:
metrópole (Soja, 2000; Cacciari, 2008).
Esses conceitos de cidade expressam al-
A cidade não é o urbano. A cidade é uma
composição espacial definida pela alta
densidade populacional e de instalação
de um amplo conjunto de construções
estáveis, uma colônia humana densa e
heterogênea constituída essencialmente por estranhos entre si (…) o urbano,
ao contrário, é outra coisa: um estilo de
vida marcado pela proliferação de teias
relacionais deslocalizadas e precárias.
(Ibid., p. 23)
guns dos resultados concretos, a exemplo da
fragmentação da estrutura social urbana e da
própria cidade como espaço físico habitável,
uma excessiva valorização da imagem, a espetacularização10 e a mercantilização da cidade
enquanto objeto cultural (Debord, 1997; Jeudy
e Jacques, 2006; Scocuglia, 2010). E, nesse
sentido, a hegemonia de um conceito de cidade reificado que se expressa na celebração do
privado, na patrimonialização e na criação de
Por seu turno, Remy e Voye descrevem a
cenários (Fernandes, 2006; Scocuglia, 2010)
urbanização como “um processo que consiste
paradoxalmente legitimados por meio de um
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Cultura e urbanidade
discurso generalizado de valorização e de intervenção sobre o espaço público.
Dessa forma, aquilo que Simmel chamava de tragédia da cultura e os processos que
A vida urbana fica cada vez mais mar-
ele apresenta de forma paradigmática para
cada pela reapropriação capitalista da cida-
explicar os fundamentos das mudanças no
de, segundo uma dinâmica cujos elementos
estilo de vida tipicamente metropolitano se
fundamentais e recorrentes são a conversão
exacerbaram a tal ponto que afetam de uma
do espaço urbano em um parque temático, a
maneira ainda mais intensa a mentalidade do
“gentrificação”11 de centros urbanos (Zukin,
citadino, em especial dos jovens, e as diversas
2000; Scocuglia, 2010), a terceirização que
formas de expressão cultural influenciadas pe-
implica a reconversão de bairros industriais
la mercantilização, por uma lógica de consumo
inteiros, a dispersão de uma miséria crescente
e de espetacularização da vida em diversos
que não se consegue ocultar e o controle sobre
sentidos. Em Philosophie de l’argent (1999),
o espaço público cada vez menos público.
no capítulo sobre estilo de vida, Simmel mos-
Esses processos metropolitanos de al-
tra a preponderância da cultura objetiva sobre
cance planetário são apontados como reque-
a cultura subjetiva como característica central
rimentos da renúncia dos agentes públicos
da vida moderna, da divisão do trabalho e do
da suposta missão de garantir direitos demo-
consumo exacerbado. Essas são questões fun-
cráticos fundamentais – o usufruto das ruas
damentais de sua análise da alienação essen-
e praças em liberdade, de uma habitação
cialmente associada a uma crítica da maneira
digna e para todos, etc. – e a desarticulação
como a técnica e o meio predominaram sobre
do que resta do que um dia foi o Estado do
os fins.
12
bem-estar-social. Essa renúncia ou abando-
Esse abismo entre a cultura das coisas e
no das responsabilidades do Estado em maté-
a cultura dos homens, sempre maior nas socie-
ria do bem comum tem sido compatível com
dades movidas pelo dinheiro – que aliena, ho-
autoritarismos em outros âmbitos. As autori-
mogeneíza e retira “a coloração subjetiva do
dades e técnicos se submetem ao liberalismo
produto”, tornando-o impessoal, padronizado
urbanístico que converte a cidade em produto
e neutro –, é característico da modernidade
de marketing e ao mesmo tempo ampliam o
(Simmel, 2000b, p. 245). Hoje, encontra-se
controle e a vigilância sobre o espaço público
exacerbado dentro da lógica capitalista apro-
assegurando as operações imobiliárias e des-
fundada, estendida e globalizada, descendo
fazendo a imagem que se poderia pretender
fundo até a intimidade da vida cotidiana. Três
oferecer de um espaço público expurgado de
razões são apontadas por Simmel: a plurali-
qualquer elemento de conflitividade. Outra
dade dos objetos colocados à disposição no
expressão dessas ações de “pacificação” dos
mercado, uma diferenciação na ordem de con-
espaços públicos são a “limpeza” dos exterio-
tiguidade e a multiplicação dos estilos, sinta-
res urbanos das presenças e condutas incon-
xes particulares acentuando o sentimento de
venientes, a repressão e controle da pobreza
alienação dos seres diante das coisas.
e dos seus locais de concentração (Joseph,
2002; Bauman, 2009; Delgado, 2010).
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Entretanto, Vandenbergue (2005) afirma
que Simmel aponta para uma ambivalência
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Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
da modernidade que liga a dialética da reificação da vida e da alienação do individuo à
reificação das relações sociais e a libertação
do indivíduo. De certa forma contrabalançan-
Mercantilização,
espetacularização, fragmentação
e desterritorialização das cidades
do a reificação com a personalização, ele indica não saber quem levará a vantagem nessas
tendências coexistentes na sociedade mercantil. Contudo, alerta para os riscos da rejeição
da forma, em nome da experiência imediata,
quando o indivíduo tenta se proteger de sua
própria alienação por meio da subjetivação excessiva e do culto da personalidade, fortemente presentes na sociedade contemporânea. Seriam, tanto quanto a alienação e a reificação,
desvios do equilíbrio entre cultura objetiva e
subjetiva.
Milton Santos, em outra chave de análise, fala de algo parecido quando alerta para
uma urgência de reflexão sobre a cidade contemporânea enquanto “sistema de objetos e
de ações”, tendentes a uma artificialidade, a
fins estranhos, ao lugar e a seus habitantes
(Santos, 2008) e diante de uma “práxis invertida” que tem o discurso como base da ação e
dos objetos, impelindo os homens a cada dia
aprenderem tudo de novo estimulados pelas
“novíssimas inovações”, pelas novas dinâmicas e diferenciações. Seriam essas tarefas de
um planejamento urbano regional que
408
Se, por um lado, os processos contemporâneos
de urbanização são cada vez mais marcados
pela mercantilização da cidade e da vida urbana, por outro, a “modernização da sociedade”
aprofundou e generalizou a lógica capitalista
da cidade moderna produzida enquanto valor de troca e modificou a sua estrutura espacial e social no sentido da espetacularização (Debord, 1997), da “homogeneização”
(Sassen, 1998) ou da “urbanalização” (Muñoz,
2008) 13 das paisagens urbanas.
Alimentada em grande parte pelas economias de serviços, desde os serviços profissionais ao turismo global e a uma redescoberta do setor cultural, essa tendência, observada
nas metrópoles, é igualmente constatada nas
cidades médias, nas quais os efeitos “negativos” da mercantilização da cultura e de uma
espécie de culturalização generalizada e indiferenciada da cidade, dos seus espaços e de
seus processos se fazem sentir de forma intensa nas propostas hegemônicas de intervenção
nos espaços públicos (Fernandes, 2006).
Essa crítica ao processo atual de mercantilização e de espetacularização urbana se
[...] já não comporta fórmulas pré-fabricadas, nem pode admitir a utilização de
teorias historicamente superadas. É na
própria história contemporânea, história
conjunta do mundo e dos lugares, que
nos devemos inspirar, tanto para entender os problemas como para tentar resol-
tornou recorrente no meio acadêmico diante
vê-los. (Ibid., p. 91)
“hipertrofia da dimensão material e visual na
da forma cada vez mais explícita pela qual se
expressa no cotidiano da vida contemporânea.
Discute-se, em especial, a existência de uma
ruptura na relação da sociedade com seu passado e com seu futuro (ibid., pp. 53-59) e uma
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Cultura e urbanidade
compreensão do conceito de cidade” descon-
de grupos dominantes, e a um longo caminho
siderando indivíduos ou grupos e a diversida-
ainda a ser percorrido com relação aos direitos
de de suas histórias, memórias e experiências
sociais e à cidadania (Carvalho, 2003; Leitão,
(Brito e Jacques, 2009).
2009), o que resultou na constituição de cida-
Torna-se explícito o problema contem-
des excludentes nas quais os trabalhadores de
porâneo que Richard Sennet, em Carne e Pe-
baixa renda não têm acesso garantido a mora-
dra (2008, p. 15), descreve como “a privação
dia, nem aos serviços e equipamentos públicos
sensorial (…) a passividade, a monotonia e o
de qualidade. Segundo Maricato (2001), essa
cerceamento tátil que aflige o ambiente urba-
situação se agravou após a crise econômica
no”, cujas raízes o autor procura compreender
das décadas de 1980 e 1990, aprofundando o
por meio da investigação da história da rela-
óbice da “não cidade”, definida por se encon-
ção entre corpo e cidade na civilização ociden-
trar fora da esfera dos direitos, do acesso aos
tal. Remonta à Roma Antiga, ao Medievo, ao
referidos serviços e equipamentos públicos.
Renascimento, ao século XIX até chegar aos
Conforme ressalta Caldeira ( 20 0 0,
tempos modernos e atuais, em que se privile-
p. 212) , certos valores estão ameaçados em
giam as sensações do corpo e a liberdade de
diversas cidades de âmbito nacional e interna-
movimento e, entretanto, essa carência dos
cional. O espaço público não promove mais o
sentidos tornou-se notável, demonstrando a
ideal moderno de universalidade, ao contrário,
influência que os novos conhecimentos cientí-
promove a separação, a exclusão e a ideia de
ficos exerceram sobre corpos e a vida urbana,
que os grupos sociais precisam viver em en-
sinalizando para o problema dos projetos em
claves homogêneos, “enclaves fortificados”,
que “urbanistas e arquitetos modernos tinham
isolados daqueles considerados diferentes.
de alguma maneira perdido a conexão com o
Delineia-se um novo padrão de segregação
corpo humano” (ibid., p. 15).
espacial que serve de base a uma nova esfera
Os primeiros indícios dessa desconexão,
segundo esses críticos acima mencionados,
pública acentuando as desigualdades sociais e
as estratégias de exclusão.
são perceptíveis a partir das mudanças de ca-
Deleuze e Guattari (1997) reforçam essa
ráter das populações das cidades. A massa de
ideia ao afirmarem que as cidades modernas
corpos que antes se reunia nos centros urba-
sempre foram marcadas pelo signo do confi-
nos em experiências de diferenciação, comple-
namento, “aparelhos de captura” as cidades
xidade e estranheza (aspectos que sustentam
nasceram com muros, fortalezas renascentis-
a resistência à dominação), hoje parece se dis-
tas ou herdadas do mundo medieval. Poste-
persar em polos comerciais, se preocupa mais
riormente, a “maquinaria territorial” é cons-
em consumir do que em outro propósito mais
truída para controlar os diversos fluxos que
complexo, político ou comunitário.
as atravessam, incluindo o controle do olhar.
No Brasil, esses problemas estão asso-
Andrade (2008, p. 100) identifica a emergên-
ciados ainda à formação do espaço urbano
cia de um padrão de privacidade associado
marcada pelo patrimonialismo e fisiologismo
ao conforto e a um bem-estar cujos meios de
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Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
produção e os efeitos possam ser controlados.
Pelo que foi visto até aqui, mesmo que
Refere-se, assim, tanto aos “modernos banhei-
ainda existam atividades que possam ser de-
ros assépticos quanto os shoppings centers
finidas como centrais e que orientem a partir
com suas praças de alimentação como máqui-
delas as formas de conexões, as mobilidades
nas de conforto” que regulam parte das vidas
etc., essas polaridades podem se organizar
íntimas e públicas.
hoje em qualquer lugar. Os acontecimentos
Por outro lado, Borja (2005), analisando
produzidos por decisões de investimentos pro-
o que chama de “cidade conquistada” que se
dutivos, comerciais, administrativos, etc., po-
irradia a partir de seus centros, destruindo as
dem ser localizados sem contar com os eixos
persistências antigas, tornando-se acidentes
tradicionais de expansão da cidade. O papel
nesse sistema irradiante, considera que essa
do centro e da periferia pode mudar conti-
expansão é cada vez mais fortuita, menos pro-
nuamente sob a lógica da especulação e do
gramada e governada. Quanto mais a “rede
mercado.
nervosa” da metrópole se dilata, mais ela de-
No entanto, o paradoxo ou a tragédia,
vora o território ao redor, mais seu “espírito”
no sentido simmeliano, se coloca nos seguin-
parece desaparecer; quanto mais poderosa ela
tes termos: a mesma energia que libera a me-
se torna, menos ela parece conseguir ordenar
trópole nas últimas décadas, essencialmente
racionalmente sua vida. Um tipo de “crise es-
desterritorializante é a que tem o potencial
pacial” análoga àquela do Estado moderno na
para resistir ao processo de desterritorializa-
sua soberania territorial. Os poderes que de-
ção. Refiro-me a uma abordagem topológi-
terminam o crescimento metropolitano conse-
ca dos espaços, pela relação entre espaço e
guem cada vez menos territorializá-la, ordenar
corpo, por construir lugares adequados aos
as formas de “viver juntos”, visíveis e observá-
indivíduos, suas histórias e memórias, pela
veis sobre o território.
observação e análise das práticas urbanas co-
Na mesma direção, Cacciari, no artigo
tidianas, pelas formas de arte e de expressão
Nomades en prison. Réflexions sur la post-
corporal, bem como pelas mobilidades que es-
-métropole (2008), chega a afirmar que a ci-
timulem a desaceleração, a deriva e a aprecia-
dade está por todo lugar. Não habitamos mais
ção lenta dos percursos.
cidades, mas territórios desterritorializados. A
Paola Berenstein Jacques, numa visão
possibilidade de fixar os limites da metrópole
especulativa e menos pessimista, aponta a
parece inconcebível ou é uma possibilidade
desterritorialização como uma solução para
reduzida a uma tarefa puramente técnico-
o distanciamento do urbanista da experiência
-administrativa. As fronteiras espaciais são
urbana, da própria vivência da cidade pratica-
estabelecidas, sobretudo pelas conexões, pela
da. Concentra-se no que chama de “postura
geografia dos acontecimentos, pelas redes de
do urbanista errante”:
comunicação. À medida que essa rede se expande, expandem-se as fronteiras e ela não é
feita senão para ser ultrapassada.
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[...] aquele que (…) se preocupa mais
com as práticas, ações e percursos do
que com as representações gráficas,
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Cultura e urbanidade
planificações ou projeções, ou seja, com
os mapas e planos, com o culto do desenho e da imagem (…) que não vê a cidade somente de cima, em uma representação do tipo mapa, mas a experimenta
de dentro, sem necessariamente produzir
uma representação qualquer desta experiência. (2006, p. 118)
Para essa autora, há três temporalidades
distintas desse processo: orientação, desorientação e reorientação, também presentes no
pensamento rizomático de Deleuze e Guattari
(1997), nas noções de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, já mencionadas. O momento central seria a desterritorialização, quando são aguçados os sentidos e
tem-se outra percepção sensorial, além da visão, instada também pela “lentidão do errante
que não se refere a uma temporalidade absoluta e objetiva, mas sim relativa e subjetiva, ou
seja, que vai além da representação meramente visual” (ibid. 2006, p. 123). Nessa mesma
direção, considera ainda que um possível “antídoto” à espetacularização, homogeneização
seria a experiência corporal das cidades, que
traz em si a possibilidade tanto de crítica da
atual espetacularização quanto de outros caminhos de pesquisa. As formas seriam as “errâncias”, a “lentidão” e a “relação corporal”
com a cidade.
e metodológicas que mais se aproximam ou
dialogam com a forma como Simmel analisa a
cidade e a modernidade, como considera ser
possível identificar o “espírito” da metrópole,
são aquelas que trabalham nos cruzamentos
dos campos disciplinares buscando os próprios
pesquisadores se desterritorializarem e reterritorializarem em suas práticas e também valorizarem a experiência e a vivência cotidiana
ordinária da cidade.
Portanto, a atualidade do pensamento
de Simmel sobre as metrópoles e a modernidade está em procurar relacionar os fenômenos
estruturais de constituição das culturas urbanas aos aspectos cotidianos dos indivíduos
que vivem essa experiência. Perceber as possibilidades de extrair o invariável e o essencial
dos fenômenos mais casuais e cotidianos. O
desafio é imenso.
Hoje, as megalópoles abrigam populações desmesuradas enquanto o isolamento em
condomínios, o consumo e o lazer realizados
em shopping centers privam o habitante da
acessibilidade, do encontro com o outro, da diversidade e da gratuidade que eram, em tese,
as condições da cidade da modernidade democrática. O turismo em grande escala, a televisão e a internet homogeneízam as atividades
humanas, o espaço e o tempo são cada vez
mais separados um do outro pelas novas tecnologias e sua velocidade. As representações
Observações finais
do real chegam a nós defasadas com relação
às nossas vidas, às nossas práticas e vivências.
A urbanidade e nossas relações interpessoais
Em um jogo de aproximação e afastamento,
tornam-se bem mais fragmentadas e seletivas.
todos os aspectos discutidos ao longo deste
As transformações tecnológicas e cultu-
texto tiveram como fio condutor o pensamento
rais nas cidades contemporâneas são profun-
de Georg Simmel e as teorias contemporâneas
das, irreversíveis, antropológicas e afetam o
sobre as metrópoles. As abordagens teóricas
ser urbano na sua identidade e na noção de
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fronteira e territorialidade. O confronto com di-
E, dessa forma, a produção e a refle-
versas formas identitárias e culturais leva o ci-
xão sobre a cidade não podem prescindir dos
tadino a admitir sua condição de ser limitado,
conhecimentos gestados em outros campos
mas sem fronteiras. A dialética da metáfora da
disciplinares, em especial, da sociologia, da
ponte e da porta, apontada por Simmel, reve-
antropologia e das artes. Há uma necessi-
la, em parte, o futuro do urbano, indicado pela
dade crescente de aproximação entre áreas
urbanização planetária e pelas tecnologias de
sensíveis desses campos de conhecimentos,
comunicação que nos convidar a combinar, in-
no sentido da valorização das subjetividades,
cessantemente, a lógica dos lugares e a lógica
das práticas cotidianas, das experiências de
dos fluxos com o objetivo de delimitar, real e
copresença nos espaços urbanos e dos ins-
virtualmente, nosso lugar. A possibilidade de
trumentos analíticos e conceituais que podem
libertação dessa dialética de um esquema bi-
fundamentar uma compreensão da experiên-
nário, de rizomatizá-la, de admitir uma saída
cia de vida nas cidades contemporâneas a
desse paradoxo passa, então, por atravessar
ser rebatida na prática de intervenção e na
sem cessar as fronteiras dos territórios mutan-
concepção de novos espaços e cidades mais
tes existenciais.
humanitários.
Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
Arquiteta e urbanista, mestrado em ciências sociais, doutorado em sociologia, pós-doutorado em
sociologia e antropologia. Docente e pesquisadora do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba (João
Pessoa, Paraíba, Brasil).
[email protected]
Notas
(1) A cultura é uma síntese do espírito objetivo e do espírito subjetivo e somente nela há essa
possibilidade. Funciona em um duplo caminho: subjetivação do objeto e objetivação do
sujeito. O processo cultural de aperfeiçoamento do sujeito (o cul vo) é uma forma resultante
da obje vação do espírito. É como um ciclo sujeito-objeto, objeto-sujeito, no qual este úl mo
sujeito, dis nto do inicial, imergiria como um sujeito mais completo, cul vado.
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Cultura e urbanidade
(2) Nessa teia de relações, os objetos têm sempre função mediadora e o fim é sempre o sujeito.
Porém, na modernidade, acontece algo que rompe essa corrente, o objeto sai da sua posição
mediadora e ganha autonomia. Isso se consolida na alienação do objeto em relação ao sujeito,
na transformação dos meios em fins iden ficável no exemplo do dinheiro de forma fundamental
e mais acabada. Em sua “Filosofia do dinheiro” (1999), Simmel afirma que o objeto se torna
independente e se aliena do sujeito. A origem dessa alienação é a divisão do trabalho que
desprende o produto do trabalho daqueles que o fabricam, transformando-o em um fim em
si mesmo. O paradoxo ou a “tragédia da cultura” seria uma espécie de fenda nessa síntese
sujeito e objeto que mesmo estando na significação meta sica do conceito de cultura precisa
ser compreendida no processo histórico, relacionada com a teoria do moderno e a análise do
presente.
(3) As citações das obras de Simmel re radas das traduções publicadas em francês e inglês, a par r
dos originais em alemão, foram traduzidas para o português pela autora deste ar go.
(4) Os ensaios e trechos de livros mencionados neste ar go podem ser consultados nestes três livros.
(5) Seria proceder por meio da “variação, expansão, captura, picada, expansão, conquista” (Deleuze
e Guattari, 1995, p. 19). Trabalhar com uma multiplicidade de entradas e de relações entre
elementos não dispostos de forma hierárquica, pela heterogeneidade dos seus componentes
e pelas conexões organizadas entre linhas chamadas de direções em movimento. Seria
experimentar, deambular, vivenciar em direções movediças.
(6) U lizo citadino, diferentemente de quando u lizo transeunte, pedestre e cidadão porque, como
coloca Isaac Joseph (1984), ele não se confunde com a figura do transeunte, nem com a do
cidadão. É também u lizado pelos diversos tradutores das obras de Simmel para inglês e francês
(inclusive trabalhados neste ar go) indicando aquele que ocupa os espaços urbanos, circula por
territórios diversos e interage, em relações de aproximação e distanciamento que nem sempre
produzem ações poli zadas ou conduzem ao exercício da cidadania. É assim também que Isaac
Joseph concebe o conceito de urbanidade.
(7) O sistema fordista é um modelo de regulação econômica iniciada no período entre guerras, com
origem nos anos 1930 e apogeu na década de 1960 até a primeira metade da década de 1970,
no qual a produção de massa significava consumo em massa e um novo sistema de reprodução
da força de trabalho, bem como uma nova polí ca de controle e gestão deste (Harvey, 1992).
(8) O rizoma é uma crítica ao pensamento moderno ocidental, articulado sobre estruturas
hierárquicas e arvorecentes, caracterizadas por terem um começo e um fim, um passado e um
futuro com sen do evolucionista, uma hierarquia de circulação das informações entre pontos
e posições e por crescerem e se desenvolverem sobre a base dos raciocínios dicotômicos e da
lógica binária. Ao contrário, o rizoma é definido pela circulação de estados, se caracteriza pela
mul plicidade de entradas e de relações entre elementos não dispostos de forma hierárquica,
pela heterogeneidade dos seus componentes e pelas conexões organizadas entre linhas
chamadas de direções em movimento. “Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou
antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual
ele cresce e transborda” (Deleuze e Gua ari, 1995, p. 32). Seria ainda uma estrutura sem um
centro, caracterizada pela circulação de elementos heterogêneos, organizada em forma de
plateaux, “uma memória curta ou uma an memória” (ibid., p. 19).
(9) Pós-fordista seria a fase posterior à longa etapa de expansão do capitalismo, posterior ao modelo
de regulação econômica fordista e teria começado a par r da primeira metade da década de
1970.
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(10) A introdução do ”espetáculo” como palavra-chave da teoria social contemporânea começou
com Guy Debord e sua obra A sociedade do espetáculo, 1967. A obra contém 221 teses
sobre a sociedade capitalista do pós-guerra. Debord postulou que o aumento do nível de
vida engendrado pelo monopólio capitalista implicaria a erosão da riqueza e da diversidade
do cotidiano. O desenvolvimento da sociedade de consumo representando a ampliação da
alienação capitalista desde a esfera econômica (a alienação do trabalho) até a ngir todas as
esferas da vida. Espetáculo refere-se, portanto, à maneira como as imagens são mobilizadas
para assegurar a influência da forma produ va sobre o tempo do lazer, a fim de legi mar as
relações sociais existentes e de colocar o indivíduo em uma situação passiva e contempla va em
relação a sua própria dominação.
(11) Gentrificação é o aportuguesamento do termo de língua inglesa gentrifica on, que designa, de
um lado, um processo de deslocamento e de mudança de população dentro dos setores urbanos
centrais por categorias sociais mais abastadas e, de outro, a reabilitação sica dos mesmos
setores (Ruth Glass, 1964). Estudos mais recentes indicam que o conceito se transformou
para incluir outros processos, atores sociais e espaços. Ver: Jovanka B. C. Scocuglia. “Imagens
da cidade: cenários, patrimonialização e prá cas sociais”, 2010, e ar gos diversos da revista
Espaces et societés. La gentrifica on urbaine, n. 132-133, 2008.
(12) Segundo Claus Offe (2005), o Welfare State ou Estado do bem-estar keynesiano, teve sua origem
nos EUA, década de 1930, fundamentado em três princípios básicos: seguridade social, proteção
ao emprego e polí ca redistribu va.
(13) Saskia Sassen defende a tese de que a urbanização contemporânea se caracteriza cada vez mais
por uma homogeneização da paisagem urbana, alimentada em parte pelo fato de as cidades
estarem passando a ser economias de serviços avançados, desde o crescimento dos serviços
profissionais ao turismo global e o redescobrimento do espaço econômico do setor cultural
(1998). Francesc Muñoz (2008), por sua vez, observa um po banal de urbanização do território
que se pode repe r em lugares diferentes, a “urbanalizacão”: a produção de uma paisagem
comum em escala global que conduz ao uso, à manipulação e à reavaliação de alguns elementos
da esfera local em suas múltiplas dimensões: social, cultural ou em relação ao entorno
construído.
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Texto recebido em 18/fev/2011
Texto aprovado em 7/abr/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011
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Práticas territoriais da classe média urbana:
o Jardim Icaraí em Niterói/RJ
Territorial practices of urban middle class:
Jardim Icarai (Icaraí Garden) in Niterói/RJ
Brasilmar Ferreira Nunes*
Resumo
Discutimos, no presente artigo, a partir do pensamento de Georg Simmel, algumas hipóteses sobre
o sentido que o espaço residencial nas metrópoles
contemporâneas representa para seus ocupantes,
particularmente como mecanismo de classificação
social. Privilegiamos autores da ciência social,
procurando articular diferentes abordagens que,
na nossa leitura, se complementam e ajudam na
compreensão da lógica social urbana. Tomamos
como referência para ilustrar nossas reflexões uma
área de classe média na cidade de Niterói-RJ que
pelas suas características nos oferece o pano de
fundo para elaborarmos algumas considerações.
Abstract
In this paper we discuss, from the thought of Georg
Simmel’s , some assumptions about the meaning
of the residential space in the contemporary
modern metropolis for its occupants, particularly
as a mechanism of social classification. Favoring
authors of social science, we have tried to articulate
different approaches that, in our interpretation,
are self-complementary and that would help us to
understand urban social logic. In order to illustrate
our reflections we took as a reference a middle
class area in Niteroi, RJ whose characteristics
provided us with the necessary background to
elaborate some considerations.
Palavras-chave: metrópole; classe média; habitação; estética urbana; sociabilidades urbanas.
Keywords: metropolis; middle class; housing;
urban aesthetics; urban sociability.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011
Brasilmar Ferreira Nunes
Situando a questão
seja nas metrópoles, em Simmel se trata de
um aglomerado de pessoas com interesses
divergentes, divergências essas que oferecem
Georg Simmel tem inúmeros textos, a maioria
a sinergia para que cada um seja estimulado
ensaios, que tratam de questões que podem ser
a realizar as mais elevadas performances, ali-
úteis para uma análise sociológica da metrópo-
mentando a dinâmica da troca.
le em sociedades de mercado. Entretanto, sem
A diferença entre os dois modelos de ci-
dúvida, dois deles, com inúmeras edições, são
dade em Simmel não é numérica: se sustenta
referências obrigatórias: A metrópole e a vida
em razão do potencial de centralidade que a
mental e O Estrangeiro. São textos clássicos
aglomeração apresenta. De maneira dialética,
da sociologia urbana que alimentaram o pen-
Simmel vai insistir que a centralidade se mani-
samento social sobre a cidade, seja na Europa,
festa na medida em que a cidade expande sua
seja nas Américas, desde suas publicações em
influência externa. Entre maior concorrência
fins do século XIX.
e mais complexa divisão do trabalho há um
Há ali a síntese de um pensamento com-
contexto que leva ao enriquecimento geral.
plexo e sofisticado, que ultrapassa leituras tra-
Estabelece-se assim um círculo que se autoali-
dicionais do social. São atuais mais de um sé-
menta, fazendo da metrópole um “centro” eco-
culo depois de escritos, apesar de todas as mu-
nômico com capacidade de expandir e ampliar
danças que a vida social nas metrópoles vem
sua área de influência. Assim, um aglomerado
experimentando ininterruptamente. Antes de
de população pode ser denso, heterogêneo,
Freud, ele já apontava para os efeitos psíqui-
de grande dimensão e não possuir o potencial
cos que a multidão produz nas mentalidades
de centralidade evocado por Simmel. A metró-
individuais, e encontra Weber, por caminhos
pole, por outro lado, adquire uma autonomia
diferentes, quando argumenta que a grande
que historicamente faz dela uma forma e um
cidade, na medida em que instaura um padrão
conteúdo, sede da economia monetária, mes-
de sociabilidade específico, é um operador que
mo antes do aparecimento do capitalismo mo-
institui a racionalidade na vida cotidiana. De
derno.1 E aí talvez fosse útil insistir que quando
fato, Simmel dá lugar de destaque à cidade em
Simmel, a todo o momento, afirma que a gran-
seus escritos, tanto quanto Karl Marx o fez com
de cidade é sede da economia monetária, não
o mundo do trabalho e Max Weber com o pro-
se refere a uma dimensão estatística, mas sim
cesso de racionalização na era moderna.
à função de centralidade.
Enquanto Weber prioriza suas análises
A pequena cidade aparece em suas aná-
sobre a cidade até o século XVIII, Simmel, pa-
lises como se fosse para compreendermos por
ra quem Berlim era o protótipo da metrópole
contraste a originalidade da metrópole. Há nas
moderna, se debruça sobre a grande cidade da
entrelinhas de seu pensamento a possibilidade
modernidade. Suas reflexões sobre a cidade se
de uma metropolização do conjunto da socie-
constroem a partir de uma oposição entre a pe-
dade, o que terminaria com a distinção entre
quena cidade e a grande cidade, ou a metrópo-
os dois modelos de cidade. Isso poderia ser
le na modernidade. Seja nas pequenas cidades,
decorrência da generalização da moeda nas
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Práticas territoriais da classe média urbana
interações da vida cotidiana que daria primazia
podemos considerar que ninguém escapa da
ao intelecto sobre as demais dimensões da vida
sociedade e terminamos por nos adequar às re-
subjetiva. É nessa dinâmica contraditória entre
gras sociais definidas exteriormente a nós.
o mundo exterior, materialista, monetarizado,
São diferentes as esferas nas quais os
racional e o mundo interior, onde predominaria
sistemas classificatórios se constroem e po-
a subjetividade, que Simmel vai elaborar o seu
demos considerar a proposta weberiana das
argumento sobre a “tragédia da cultura”, fe-
esferas econômica, social e política, cada qual
nômeno típico da modernidade urbana, metro-
com suas regras e seus conceitos peculiares. A
2
politana. De certa maneira, aqui também ele
esfera econômica tem no conceito de “classe”
se antecede ao “O mal-estar na civilização” de
a sua unidade de análise principal. Estamos,
Freud, para quem a vida em sociedade pressu-
portanto, considerando, como o autor, que clas-
põe uma dose de sofrimento à qual estaríamos
ses seriam aqui tratadas como uma dimensão
todos submetidos. O individuo blasé, a atitude
da esfera econômica e vão estar condicionadas
de reserva, são duas categorias de análise que
às leis do mercado, da oferta e demanda por
nos ajudam a compreender a predominância
trabalho e seus níveis de remuneração monetá-
do intelecto, ou da racionalização, nos vínculos
rios. Como é incisivo em Weber, “classe é uma
sociais. Para Simmel, a reação do psiquismo
situação de mercado” (1981, p. 65).
nas interações que se passam nas metrópoles
No entanto, não é possível permanecer
seria uma apropriação ativa do contexto com
apenas nesse nível analítico para explicar os
vistas a exercer uma individuação e a liberdade
fenômenos sociais, pois é um enorme redu-
garantidas pelo anonimato (Remy, 1997, p. 64).
cionismo restringir, por exemplo, a sociedade
Pois bem, essas reflexões gerais nos
aos muros de uma fábrica ou às relações de
servem de referência para tratarmos de nos-
trabalho. Nesse sentido, a esfera social surge
so interesse neste artigo. Consideramos que a
em Weber como um elemento adicional na
relação indivíduo e sociedade é complexa, no
compreensão do espaço social. Sabemos, por
sentido em que dimensões particulares se en-
exemplo, que indivíduos na mesma faixa de
trecruzam com dimensões maiores, num ema-
renda têm muitas vezes padrões de consumo
ranhado de significados que, em última instân-
ou estilos de vida completamente diferentes.
cia, estão na base dos sistemas classificatórios
Assim, se na esfera econômica os sistemas
em sociedade. De fato, a vida em sociedade é
classificatórios são basicamente quantitativos
construída por trajetórias individuais que se
– quanto? – eles esbarram na esfera social,
definem dentro de parâmetros grupais, de tal
onde as dimensões qualitativas da vida se ma-
maneira que as exceções são consideradas ex-
nifestam – como?.
centricidades, e todos terminam por se adaptar
Na ordem social, a unidade de análise é
a estilos mais ou menos aceitos pelo grupo ao
o status que é percebido por outros critérios
qual pertencem. Temos sim um grau de auto-
diferentes dos quantitativos. Weber insiste que
nomia relativo que é estreito, porém raramen-
ao fim e ao termo o econômico e o social ter-
te estamos dispostos a romper radicalmente
minam por se autocondicionar. Entretanto, pa-
com os padrões vigentes. Em outros termos,
ra efeito de análise, é importante analisá-los
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Brasilmar Ferreira Nunes
separadamente, tendo em vista que guardam
maior autonomia de escolha da moradia, ou-
uma autonomia relativa em face dos demais e
tras dimensões entram em cena para fazer
só iremos compreender as lógicas implícitas se
valer seus critérios classificatórios. Isso nos
conseguirmos focar no específico de cada um
leva a considerar que o espaço construído da
deles. Em outros termos, os sistemas classifica-
cidade se guia, na sua produção, por valores de
tórios em sociedade são tanto de natureza eco-
classe e de status. Vejamos mais de perto esse
3
nômica como social.
argumento.
Essa lógica é comum às metrópoles contemporâneas, cada qual fazendo valer seus
A lógica social e estética
do espaço construído
critérios de renda, além, é claro, de valores
culturais. Entretanto, essa separação das moradias por renda no território não reduz o espaço
social da cidade a lógicas homogêneas. Conti-
Para entendermos a lógica social do espaço
nuam valendo regras de classificação, porém
construído, teremos que utilizar ambas as es-
imóveis nos melhores endereços não somente
feras que se guiam por princípios passíveis de
são os mais caros, mas geralmente também
decodificação. Sabemos que, por exemplo, o
são os maiores e de melhor qualidade. Imóveis
mercado imobiliário organiza o território da ci-
mais usados, que não atendem ao padrão mé-
dade por faixas de renda, e um olhar apressado
dio do comprador (por qualidade ou área, por
vai apontar algo que aparentemente obedece
exemplo) são adquiridos por grupos e famílias
às regras do bom senso: altas rendas preferem
de menor renda, garantindo o caráter social-
residir próximas aos seus semelhantes, da mes-
mente misto do bairro urbano. Queremos insis-
ma forma que baixas rendas também têm essa
tir que esses critérios de escolha do imóvel não
preferência. No entanto, essa “coincidência” de
se aplicam apenas às metrópoles europeias ou
gostos de lugar de moradia ou de lugar para
norte-americanas; na América Latina e no Bra-
habitar por faixas de renda tem componentes
sil, com a rápida industrialização e a formação
que escapam ao observador desavisado. Há
de uma classe média urbana com recursos ali-
uma conjunção de aspectos que levam a que
menta essa regra, que pode ser aplicada, como
determinados grupos procurem certas áreas e
veremos adiante. Assim, o contexto ambiental,
não outras. Sem dúvida, a valorização mone-
seja do imóvel, seja da área em que ele se situa
tária do imóvel é importante, pois através dos
contribui para a determinação dos moradores
preços a seleção é feita com base nas rendas
que optam, como vemos, por ambientes onde
das famílias, via mercado. Porém somam-se a
práticas simbólicas do grupo possam ser exer-
esse dado, fortalecendo naquilo que lhe é pe-
cidas. Isso explica, por exemplo, por que se op-
culiar, outras unidades de medida, tais como
ta por certo imóvel mesmo não tendo o padrão
acessibilidade, oferta de serviços e equipamen-
de renda médio da área, ou seja, se endividan-
tos urbanos, padrões urbanos das construções,
do para garantir um estilo de morar e de viver,
etc., que pesam na decisão da escolha. Em
uma estratégia peculiar a grupos que valorizam
outras palavras, por mais que a renda garanta
o status.
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Práticas territoriais da classe média urbana
Não se pode negar que nossas grandes
charme de um bairro privilegiado. Residir em
cidades são unidades urbanas heterogêneas,
tais endereços significa um privilégio que se
com uma importante parcela de seu espaço
procura e pelo qual quem pode pagar está dis-
construído escapando às características qua-
posto a desembolsar valores elevados.5
litativas dos imóveis. São áreas pauperizadas,
Retomando Simmel e considerando os
pobres, muitas vezes clandestinas, que surgem
elementos acima, não é fora de propósito con-
como espaços construídos sem critério ne-
cordar com o autor, para quem se a cidade gera
nhum, apenas a necessidade. Poderia, portanto,
formas de sociabilidade, ela pode também ser
ser colocada a questão sobre a manifestação
lida como o lugar de emergência de formas es-
da ordem social também nessas áreas. De fa-
téticas. Os dois aspectos devem ser colocados
to, basta se embrenhar ali, dialogar com seus
em relação, aliás, como Simmel os enxerga. É
morador(a)es para se perceber que há uma
esse mecanismo que faz das metrópoles con-
valorização do imóvel e do lugar que não é
temporâneas, especialmente nas economias de
monetária.
industrialização tardia, e com elevados níveis
São essas condições de sentido que o
de desigualdade econômica, um mundo de di-
espaço adquire para seus usuários que faz da
fícil domínio. Sobretudo porque a cidade como
cidade, mesmo nos tempos atuais, capaz de
paisagem pressupõe uma troca que significa
agir à maneira de uma grande personagem na
ver e sentir, que não se deixa apreender num
acumulação de experiências novas, ao mesmo
primeiro olhar: a descoberta é progressiva, ja-
tempo em que as integra ao passado. O abrigo
mais imediata. Temos o sentimento de que as
contra as intempéries da natureza, a proteção
coisas são ligadas somente depois de as ter
que um imóvel oferece tem significados para
percebido isoladamente: primeiro, é “preci-
cada um de seus moradores independentemen-
so separá-las para depois reuni-las” (Simmel,
te do nível de renda.4 Por outro lado, tampouco
2007, p. 46) tal como nos aparecerem nos am-
as áreas de altas rendas têm padrões estéticos
bientes com elevada dose de heterogeneidade
homogêneos, numa clara evidência de que ou-
física e social.
tros aspectos entram em questão no momen-
O que muitas vezes gera dificuldades de
to da escolha da moradia. Mais ainda, há, nas
percepção é que essa segregação urbana rara-
diferentes áreas, sistemas classificatórios dos
mente é absoluta. Faz parte da característica
imóveis que fazem com que o mosaico urba-
das cidades a mistura, porém sabemos per-
no tenha lógicas próprias de valoração e de
feitamente quando estamos circulando numa
sentido que se traduz muitas vezes num ape-
área “nobre” comparada a uma “popular” ou
go afetivo ao imóvel e ao lugar. Se assim o é,
de classe média. Além do mais, dependendo
habitar num determinado endereço no bairro é
da natureza do espaço físico da cidade, podem
um indicador de um status social: pode estar
ocorrer extremas variações e dispersões dos
indicando grandes apartamentos, preços eleva-
preços dos imóveis no interior de uma mesma
dos, qualidade da construção superior, aliado
área da cidade, tanto quanto entre as diferen-
a um valor-de-uso do imóvel, na medida em
tes áreas. O fato é que a segregação social
que aponta para uma certa “arte de viver” no
de uma dada sociedade pode ser percebida
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Brasilmar Ferreira Nunes
através da análise da organização de seu ter-
as altas rendas em relação às médias e peque-
ritório, especialmente o residencial: diferentes
nas é enorme, porém não há déficits estrutu-
bairros, muitas vezes opostos em qualidade de
rais de serviços.6 Em contextos similares, as
vida urbana, até mesmo a atmosfera que se
valorações sociais são menos evidentes: forte
sente nas ruas quando nelas se circula, padrão
hegemonia da esfera econômica e a esfera
de lojas e magazines, tudo aponta para uma di-
simbólica, via consumo, tem forte presença na
versidade social.
montagem de sistemas classificatórios. Assim,
frequentar certos ambientes culturais, cursar
determinadas escolas, exercer certas profissões,
Retomando a discussão
sobre as práticas de classe
no espaço urbano
morar em determinadas áreas da cidade são
maneiras de se diferenciar dentro do grupo. Em
contextos similares e tendo já equacionada a
questão econômica, a esfera social assume posição de destaque nos sistemas classificatórios
Temos então elementos analíticos que nos aju-
(se diferenciar, diferentemente!).
dam a compreender parte do sentido que o es-
Em sociedades emergentes, de urbaniza-
paço construído apresenta aos seus ocupantes:
ção e industrialização relativamente recentes
não se podem abstrair as classes sociais nem
temos contextos distintos. Primeiro o gap entre
tampouco o estilo de vida dos grupos. Ambas
as classes de renda chega a ser assustador. Há
as dimensões se completam na explicação e
níveis generalizados de pobreza urbana, convi-
aparecem como elementos de classificação.
vendo com grupos de renda média e alta numa
Assim, não seria apressada a incorporação do
situação tensa e problemática. Isso porque a
conceito de habitus para auxiliar nessa explica-
dificuldade de acesso à renda, à educação de
ção, pois temos que considerar tanto os valores
qualidade para o mercado de trabalho, o siste-
de classe como os de status a fim de darmos
ma de saúde precário, e principalmente um se-
conta da análise material e estética do espaço
tor habitacional popular que beira ao absurdo,
construído. O conceito de habitus, pois, pode
ferindo o bom senso: precariedade das constru-
ser entendido como um sistema de disposições
ções, completa inobservância de regras simples
duráveis interiorizadas pelos indivíduos a par-
de construção, ausência de serviços coletivos
tir de suas condições objetivas de existência
urbanos, etc., fazem de nossas metrópoles am-
(situação de classe) e que funciona como es-
bientes que se pode afirmar se guiam à “dupla
quemas conscientes de ação, de percepção e de
velocidade”. Áreas com padrões urbanísticos
reflexão (posição social) (Bourdieu, 1980).
corretos e adequados, ao lado de uma cidade
Os elementos de classificação social em
sociedades historicamente consolidadas se fa-
clandestina que sobrevive às bordas da área
integrada.
zem por critérios rígidos, porém dissimulados.
Se retomarmos nosso argumento sobre
No geral se tem acesso à renda monetária, à
os sistemas classificatórios em sociedade, po-
educação, saúde, e a habitação é regra geral,
deríamos argumentar que para enormes parce-
motivo de políticas universalistas. O gap entre
las dos moradores urbanos o que os guia nas
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Práticas territoriais da classe média urbana
decisões são as necessidades imediatas, não
humanização da arte, isto é, o aparecimento
havendo muito lugar para a manifestação da
do conceito de estética, que pode ser enten-
esfera simbólica em boa parte de nossas áreas
dido como uma teoria dos efeitos produzidos
metropolitanas. Isso é um equívoco que preci-
por certas realidades sobre nossa sensibilidade.
sa ser enfrentado academicamente. Para tanto,
Em se tratando de um efeito geral que alcan-
optamos por discutir a noção do “belo” que se
ça a todos, independentemente da posição na
manifestaria em diferentes dimensões da vida
estrutura social, podemos supor que todos te-
social e individual. Seja na forma de vestir, de
mos nossos critérios estéticos que refletem a
morar ou a partir de outros aspectos, temos
dimensão econômica (mercado), mas, sobretu-
sempre critérios para optarmos. Ou seja, se a
do, valores subjetivos de indivíduos e grupos,
dimensão econômica é ditada pelo mercado, a
afirmando a natureza política da estética, ou
dimensão social, mais simbólica, se utiliza de
da arte (ou do belo).
7
valores abstratos tais como a estética.
Pois bem, essa individuação da forma
A noção de “belo” guarda relação com
estética é vista por Simmel em conivência com
dimensões variadas da vida individual e social
uma individuação das formas de sociabilidade,
e muitas vezes surpreende. Trata-se de uma
a qual tem na metrópole o lugar de convergên-
noção subjetiva e tem relação no essencial
cia e amplificação de diversos processos de
àquilo que agrada ao nosso gosto, à nossa
transformação nos tempos atuais. Se somar-
sensibilidade. Podemos considerar de início
mos os diferentes sistemas classificatórios, ve-
o caráter histórico dessa noção. Ferry (2005)
remos que estamos todos inseridos em proces-
argumenta sobre a emergência de um univer-
sos que nos posicionam dentro do social, numa
so laico no qual os seres humanos vão se pre-
incessante passagem da dimensão social para
tender, enfim se pensar como os autores, os
a individual e vice-versa. Ocupar um lugar no
criadores de sua história, mas também de sua
social será, portanto, o resultado de nossas
cultura. Argumenta o autor que na Antiguida-
ações, que já seriam também produto de po-
de a verdade na arte era, primeiro, expressar
sições já existentes (agimos de acordo com o
a harmonia do cosmos; nas religiões mono-
que nos foi ensinado seja pela família, círculo
teístas é a grandeza e o sublime do divino;
de relações, sistema educacional, etc.). Signi-
nas democracias humanistas atuais, a arte é
fica assim que a adoção de um determinado
a expressão da profundidade e da riqueza do
valor ou estilo de vida indica a adequação aos
gênio humano (ibid., p. 16). Em síntese, o que
valores de certo círculo social, compartilhando
se pode argumentar é que em lugar de refletir
de suas convenções. Sem dúvida, na cidade,
uma ordem exterior aos homens (cósmica ou
a moradia é um dos elementos principais na
religiosa), a obra de arte vai se transformar,
explicitação de um sistema de valores estéti-
nas sociedades modernas, na expressão da
cos individuais e de classe. E onde ela é uma
personalidade de um indivíduo.8
evidência maior é nas preferências estéticas da
Vivemos, portanto, um fenômeno peculiar
e original na modernidade, que é justamente a
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classe média urbana, argumento que iremos
tentar demonstrar aqui.
425
Brasilmar Ferreira Nunes
A individualidade expressa
na moradia
estrutura física possa ser efeito de uma lógica
de exploração. Portanto, há situações em que
a dominação não é necessariamente exercida tendo em vista a exploração. Isso poderia
Refletir sobre a realidade social a partir do
ser o caso de sistemas socioculturais em que
conceito de classes, desde que adequada-
a dominação, por exemplo, propicia aos seus
mente entendido, constitui efetivamente um
beneficiários vantagens outras que não a ex-
construto teórico de valor incomparável. Po-
ploração de mais-valia (por exemplo, no pa-
rém, evitaremos aqui o debate sobre a “luta
triarcalismo). Poderia também ser o caso de
de classes”, no qual invariavelmente se cai
práticas da vida cotidiana quando certos valo-
quando o recorte analítico considera a estrutu-
res sociais válidos para determinados grupos
ra social como uma estrutura de classes e que
são impostos como legítimos para o conjun-
a mudança se dá como resultado de uma luta
to dos grupos da sociedade. Aqui, na esfera
entre as classes. Nessa concepção, poderíamos
simbólica é que se daria a verdadeira luta por
explicar os processos de mudança, porém tería-
hegemonia: quando valores de uma classe são
mos dificuldades para justificar a estabilidade
transpostos como senso comum para todas as
ou o equilíbrio social, mesmo quando se tem
classes. Ao mesmo tempo, lembrando as refle-
grandes desníveis econômicos. Tentaremos sim
xões simmelianas, o espaço da cidade, extra-
decodificar na existência cotidiana – fora dos
fábrica, é o lugar da “produção de relações”
“muros da fábrica” –, estratégias que refletem
mais do que das “relações de produção”, on-
essencialmente uma disfarçada luta de classes,
de, de forma original, de fato, há a interação
mas que se mostram como ações individuais.
interclasses.9 Seria aqui então que se criariam,
Parte de uma engrenagem complexa,
de forma permanente, novos modos de sub-
as ações individuais devem ser lidas como
jetivação, dando à vida social na metrópole o
estando firmemente assentadas na realidade
verdadeiro sentido de “sociedade” nos moldes
histórica e são o elemento que expressa a re-
goffmanianos, para quem também “sociedade
lação entre indivíduo e sociedade. Em outras
é interação” (Goffman, 1989).
palavras, o indivíduo, em suas ações, detém
Os elementos da discussão acima nos
um grau de autonomia que é determinada
auxiliam para retomarmos a temática sobre
pelo contexto social, cultural e histórico que o
“valores estéticos”, já esboçada nos parágra-
limita em suas decisões e sua autonomia será
fos anteriores e introduzirmos um exemplo
sempre relativa. O sentido de seus atos é da-
concreto de subjetivação nos processos de so-
do então pelo contexto no qual eles se mani-
ciabilidade. O significado que Simmel nos dá
festam e jamais é ditado exclusivamente pelo
de sociabilidade como “uma forma lúdica de
próprio sujeito da ação. Nesse movimento,
sociação, e algo cuja concretude determinada
uma sutil dialética entre exploração e domina-
se comporta da mesma maneira como a obra
ção deve ser a base da reflexão.
de arte se relaciona com a realidade” (Simmel,
No território da cidade, o que está
2006, p. 65) nos é útil. Para Simmel, o impul-
em questão é a dominação, mesmo que a
so artístico retira as formas da totalidade de
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011
Práticas territoriais da classe média urbana
coisas que lhe aparecem, configurando-as em
identitária, uma linguagem que aproxima indi-
uma imagem específica e correspondente a
víduos com padrões estéticos comuns.
esse impulso, “o impulso de sociabilidade em
sua efetividade se desvencilha das realidades
da vida social e do mero processo de sociação
como valor e constitui assim o que chamamos
de sociabilidade”.
Vimos que há valores de classe e certa
Um agrupamento
urbano de classe média:
Jardim Icaraí/Niterói
dose de autonomia individual na opção por um
estilo de vida que se combina para a definição
Tomando como referência um bairro de classe
de gostos e de percepção de mundo. Essa au-
média na cidade de Niterói, na Região Metro-
tonomia permite aos indivíduos expressarem
politana do Rio de Janeiro, fizemos algumas in-
suas subjetividades sempre tendo limites de
ferências a fim de testarmos elementos teóricos
liberdade nessa empreitada, ditados pelo con-
presentes nas páginas acima. Trata-se do Jar-
texto social. Essa possibilidade potencial de ex-
dim Icaraí, região de expansão de um mercado
pressar a subjetividade faz da vida em socieda-
imobiliário para um público de rendas médias
de um cenário múltiplo e diverso que retrata a
elevadas, e que vem atravessando um forte
diversidade presente, seja dentro de um grupo,
processo de expansão de sua área construída
seja entre diferentes grupos sociais. A expres-
ou mesmo a reconstrução de novos imóveis em
são de valores estéticos em toda e qualquer
áreas já ocupadas anteriormente em função da
dimensão da vida passa assim a ser dimensão
valorização que a área apresenta.
constitutiva da sociedade, mesmo que haja
Perguntávamo-nos, inicialmente, quais
certos padrões que possam ser considerados
seriam as razões da recente definição da área
em algum momento e por determinados gru-
como um “bairro”, bem como quais os limites
pos como legítimos. Talvez seja ali, nesse tea-
físicos que o delimitavam na geografia da cida-
tro social, que as identidades se apresentam
de. Supomos que a dimensão econômica estaria
e se firmam. A esfera do consumo é onde se
aqui equacionada e haveria outras motivações
têm margens de manobra para a inventividade,
que favoreceram a escolha da área como mora-
portanto, para expressar valores estéticos e por
dia pelos grupos ali residentes. Em outras pala-
consequência, subjetividades. E o cenário da
vras, dado o nível de renda das famílias, haveria
metrópole é sem dúvida o que oferece maior
um leque amplo de possibilidades de escolha
potencial de diversificação e de expressão de
do local de moradia. Nesse sentido, orienta-
10
individualidades. Seja no vestuário, no consu-
mos nosso levantamento qualitativo nos per-
mo cultural ou de bens materiais e imateriais
guntando “por que as pessoas almejam morar
e até mesmo na moradia existem diversas
no bairro?” e “por que essas mesmas pessoas
possibilidades de escolha, o que faz dessa es-
preferem em um tipo específico de prédio, com
fera uma das mais importantes na definição
características arquitetônicas peculiares?”
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011
427
Brasilmar Ferreira Nunes
A vida social do bairro
e seus moradores
de um bairro cuja mudança nos padrões habitacionais se fez com base numa publicidade de
empresas imobiliárias, e tem sua abrangência
delimitada no território segundo uma repre-
Nosso intuito foi, portanto, o de analisar a in-
sentação peculiar. Vendem-se os imóveis a par-
fluência dos valores de status (ordem social),
tir de uma aproximação do seu padrão com o
que seria a dimensão classificatória utilizada
bairro vizinho de Icaraí, que goza de uma tradi-
pelo grupo ali residente. Por detrás desse en-
cional valorização junto à classe média alta. As
foque, estaria uma hipótese subjacente, qual
dificuldades classificatórias surgiam o tempo
seja, a de que a localização de um grupo em
todo quando se tratava da indefinição de suas
determinada porção do território da cidade se
regiões fronteiriças. Observamos que todas as
relaciona com o desenvolvimento de um estilo
ruas que delimitam o território do bairro são
de vida específico por parte daqueles que dese-
alvos de constantes questionamentos quanto
jam pertencer ao círculo social e compartilhar
ao seu pertencimento: sendo contígua a outro
de suas convenções, assim, o lugar de moradia
bairro (Santa Rosa) há ambiguidades quanto
seria um forte indicador do lugar social. Portan-
às ruas que pertencem ao “Recanto Icaraí” ou
to, nos orienta o pressuposto de que a estratifi-
ao “Recanto Santa Rosa”, numa alusão a no-
cação por status caminha de mãos dadas com
vas formas classificatórias que se originam na
uma monopolização de bens ou oportunidades
região e que marcam a mesma oposição Icaraí
materiais e ideais (Weber, 1981, p. 76).
versus Santa Rosa. Assim, a proximidade com o
Uma primeira constatação surgia logo
bairro de Icaraí é tida como positiva, enquan-
de início: o bairro passava por um processo
to que com Santa Rosa acontece o contrário. O
de modificação dos padrões habitacionais que
próprio nome “Jardim Icaraí” já permite tornar
preexistiam à atual expansão imobiliária. Com
esse aspecto mais evidente: Icaraí sempre é ci-
grande rapidez, antigas casas, geralmente tér-
tado como bairro mais nobre, mais bem servido
reas e pequenos prédios de até cinco andares,
por serviços e equipamentos urbanos e como
cediam lugar a prédios com mais de dez anda-
símbolo de prosperidade. Em oposição, quando
res, inclusive com coberturas, abrigando cada
se referem ao Santa Rosa, nomeações como
um em torno de cem famílias. Esses lançamen-
“favela”, além da escassez de serviços são res-
tos imobiliários se espalham por todas as ruas
saltados. O Jardim Icaraí toma a posição, por-
do bairro, dando sinais de um mercado em forte
tanto, de um bairro intermediário entre esses
expansão. A substituição de antigas residências
dois universos, sendo renegados aspectos que
por essas novas, com características peculiares,
o aproximam de Santa Rosa, ao mesmo tempo
significa muito mais do que substituir os abri-
em que são ressaltados aqueles que definem
gos preexistentes: é de fato derrubar um modo
Icaraí como nobre, além das características que
de vida, pois a chegada de um grande número
Icaraí já teria deixado de possuir por conta da
de famílias altera o cotidiano do bairro.
expansão anterior.11 Nessa trama de consoli-
A delimitação física do bairro Jardim Ica-
dação de uma representação do bairro não se
raí é outra dimensão que vale destaque. Trata-se
pode considerar que se trata de uma cópia de
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Práticas territoriais da classe média urbana
Icaraí, nem tampouco se distancia simplesmen-
que o bairro apresenta. Como expressa um de
te de Santa Rosa. De fato, a área vai se forman-
nossos entrevistados “aqui as pessoas não be-
do a partir de uma lógica que lhe é própria e
bem em bar, bebem em restaurante”. Os que
seria reducionismo tratá-lo como cópia de um
mudaram para lá oriundos de Icaraí lamentam
ou de outro.
a mudança, apesar de se sentirem bem no lo-
Essas dificuldades classificatórias são
cal: “sinto falta da confusão de Icaraí, pois já
corroboradas pela inexistência de uma norma
estava acostumado com isso”. A oposição en-
administrativa, visto que a própria Secretaria
tre essas duas falas, quando vista pelos que as
de Urbanismo do município não confere legiti-
expressam, mostra com justeza a dinâmica de
midade ao bairro. Tudo indica que há uma de-
consolidação da identidade do lugar, muitas
fasagem entre o que é vivido pelos moradores
vezes contraditória, pois composta por eleva-
e aquilo que está estabelecido pelos órgãos
da dose de heterogeneidade social.
que regem o espaço urbano. Por exemplo, ruas
O fato é que pudemos perceber a di-
são como definidores dos limites de um deter-
versidade e a vitalidade que caracterizam o
minado território; são também unidades de
bairro. Isso se constata inclusive nos padrões
alto significado para saber reconhecê-las. Elas
habitacionais bastante variáveis: casas cons-
estruturam um continente, mapeiam e organi-
truídas em diferentes períodos vão perdendo
zam o seu conteúdo, sustentam uma tradição
espaço para novos edifícios, muitos abrigan-
ao evocarem um modo de vida para o qual
do comércio variado no nível das ruas. Esta-
funcionam como emblema e rótulo (Santos e
belecimentos escolares públicos e privados,
Voguel, 1981). Os habitantes da área confe-
lojas de vestuá rio, salões de beleza, farmá-
rem às ruas um papel de referência de bons
cias inclusive de manipulação, cursos de lín-
ou maus lugares ou de serem emblemas de um
guas estrangeiras, clínicas, apontando uma
modo de vida.12
certa sofisticação. Um desenho urbanístico
Os mais recentes moradores do bairro
que organiza pequenos quarteirões permite
falam de algo como uma “mudança de ares”
a circulação a pé e a possibilidade de se for-
ou da “qualidade de vida”. Entretanto, não se
mar um circuito de vizinhança que pode aos
pode considerar que a área seja socialmente
poucos consolidar uma zona moral, típica de
homogênea, sobretudo vista através da ori-
área de classe média. Além do mais, estão
gem de seus moradores recentes e suas dife-
presentes aí os quatro fatores ressaltados por
rentes configurações socioculturais. São indi-
Jane Jacobs como sendo indispensáveis para a
víduos e famílias de diferentes origens dentro
geração da diversidade urbana, quais sejam:
da própria cidade, muitos com recente inser-
a multiplicidade de usos primários garantindo
ção na classe média, guardando, portanto, va-
que diferentes pessoas sejam capazes de utili-
lores variados no que se refere à estética do
zar boa parte da infraestrutura em diferentes
lugar. Justamente aqueles oriundos de áreas
horários; a necessidade de quadras pequenas;
de menor prestígio são os que insistem nessa
a mistura de edifícios de idades e estados de
mudança no estilo de vida, seja pela proximi-
conservação variados e certa densidade resi-
dade da praia, seja pelas vantagens comerciais
dencial (Jacobs, 2003).
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Brasilmar Ferreira Nunes
Entretanto, mesmo com tais condições de
do anonimato, mas aquele onde dispomos
vida urbana, não se pode desconsiderar o fato
facilmente do direito de ser anônimo, de não
de que a rápida e excessiva valorização do so-
atrair as atenções ou os olhares. Temos aqui,
lo no bairro pode vir a se configurar como um
portanto, a possibilidade de “redefinir a situa-
fator de risco para tal diversidade. As leis de
ção”, ou seja, de negociar permanentemente
mercado têm potencial de redefinir o perfil mé-
seus territórios. Haveria assim uma lógica entre
dio dos moradores, bem como alterar o próprio
a segregação do espaço e a segregação das si-
comércio local. Porém, essa dinâmica é sempre
tuações, que segundo Joseph (2007) nos leva
acompanhada pela diversificação, sobretudo
à microssociologia interacionista, ou a uma
das atividades de comércio e serviços. Esse mo-
dramaturgia do social baseada nas técnicas de
vimento é de médio prazo e está relacionado
representação do eu (arte das fachadas e pala-
com outras variáveis, das quais a estabilidade
vras das circunstâncias).
econômica geral é importante. A classe média
Nesse jogo de representações, há dimen-
se expande através da expansão das atividades
sões que marcam territórios identitários. Pode-
do terciário e tudo indica que o caminho será
mos avançar afirmando que a moradia termina
esse, caso os ganhos salariais de seus assala-
desempenhando esse papel de defitichazador,
riados estejam num círculo ascendente.
pois o lugar de moradia na cidade termina sendo um indicador do lugar social do indivíduo:
define um padrão e um modo de vida ou pelo
As características
dos imóveis residenciais
menos o representa. Assim, circulando em diferentes zonas da cidade, a opção pelo anonimato é um dado de realidade, porém o endereço
restringe essa possibilidade. Já assinalamos,
Sociologicamente, o que é questão nas análi-
anteriormente, que os grupos, pela moradia,
ses da vida urbana é a natureza dos espaços
tendem a se aproximar, agindo via mecanismos
públicos e a sua relação com o mundo privado,
de atração (de iguais) e repulsa (do diferente)
ou seja, o lugar da moradia. Se a cidade é hoje
através inclusive da mediação de mercado.
um laboratório social atravessado pela questão
Essa dinâmica produz áreas homogêneas
do território, por suas fronteiras, as divisões
dentro da heterogeneidade das construções
que caracterizam as sociedades urbanas não
urbanas. Entretanto, é nas particularidades dos
podem ser compreendidas apenas com a utili-
projetos que a homogeneidade se apresen-
zação de abordagens clássicas do espaço. É a
ta. Para o Jardim Icaraí que estamos tomando
natureza do vínculo social que se apresenta co-
como ilustração, e tomando os lançamentos
mo problemática nos discursos atuais, sobretu-
imobiliários recentes na área, são recorrentes
do quando se reflete sobre se o espaço público
certas características, que se repetem: salão
da metrópole de hoje tem um ambiente onde é
de festas, piscina, sauna, salão de jogos, lan
possível tolerar o intruso, um indivíduo a mais.
house, spa/hidromassagem, churrasqueira, es-
Mas é importante deixar claro que esse espa-
paço fitness. Os apartamentos oferecidos por
ço público não é, necessariamente, o espaço
esses novos empreendimentos, assim como
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Práticas territoriais da classe média urbana
as áreas de lazer comum, partilham de carac-
tchan! Eles usam aqueles vidros verdes”. Ou-
terísticas que se mostram constantes: todos
tra interlocutora fala ainda com orgulho da sua
possuem varanda, pelo menos uma suíte e
“portaria climatizada e da mesa redonda com
pelo menos uma vaga na garagem. Vendidos
um lustre acima igualzinho ao projeto...”.
na planta, a maioria permite que o proprietá-
As áreas comuns de lazer são muito mar-
rio proponha alguma mudança do espaço no
cadas pela presença de diversos objetos de-
período da compra, agindo enquanto elemento
corativos como vasos, quadros, flores, etc. Da
de diferenciação e de expressão de subjetivida-
mesma forma, é repleta de móveis e aparelhos
de. Além do mais, como são entregues limpos,
como cadeiras tipo espreguiçadeiras, pufes,
até mesmo sem lâmpadas, há maior liberdade
televisões, videogames e brinquedos para os
para deixá-lo do jeito que preferir.
pequenos. Parece haver uma expectativa de
A planta do apartamento é constante-
transformá-las em uma extensão da casa, num
mente citada como elemento influenciador na
ambiente acolhedor e propício às interações
escolha do prédio: “o que mais me chamou
sociais, pois “não há necessidade de sair daqui
atenção aqui foi a planta do apartamento, gos-
para nada, você recebe seus amigos aqui mes-
to do tamanho da minha cozinha, é o mesmo
mo...”. Porém, Simmel (1979, p. 12) nos fala da
de um apartamento antigo, dá até para colocar
impessoalidade das metrópoles, da raridade de
uma mesa”. Ou ainda é a área de lazer comum
contatos íntimos entre moradores em compa-
dos prédios que divide com a planta a prefe-
ração com os contatos externos. Muitos dos
rência dos compradores. Jovens e crianças são
moradores mais antigos dos prédios conheciam
sempre mencionados como os que mais se be-
seus vizinhos “apenas de vista” ou então afir-
neficiam desses espaços, mesmo por aqueles
mam que “aqui as pessoas são mais distantes,
que ainda não têm filhos: “área de lazer era al-
mais frias”. Assim, se essas áreas de lazer se
go que eu prezava até mesmo porque pretendo
propõem de fato a atuar como extensões da
ter filhos e não queria morar num prédio que
própria casa são, da mesma forma, utilizadas
não tivesse isso”. A questão do status apare-
muito mais para consolidar círculos de amiza-
ce mais uma vez na fala de uma moradora que
des preexistentes do que com vizinhos.
diz: “aqui atendeu ao que eu queria em termos
O que é digno de ressaltar é que tais
de investimento e também tem coisas que as
características funcionam como um mecanis-
pessoas valorizam”.
mo de atração e de seleção dos compradores,
Finalmente, o estilo arquitetônico e os
gerando um espaço social com características
componentes dos ambientes externos dos pré-
comuns. A atração de novos moradores, sele-
dios (materiais utilizados na construção, obje-
cionados por um padrão econômico e estético
tos presentes na decoração da portaria, etc.),
peculiar que oferece um estilo de vida adequa-
remetendo a um estilo moderno, também são
do, age como um filtro que seleciona os “se-
valorizados pelos moradores. Demonstram or-
melhantes”, funcionando como mecanismo
gulho ao se referirem à fachada ou ao “visual”
classificatório.
do prédio: “olha que bonito, não é para ficar de
A aquisição de um apartamento em um
peito estufado?”, ou ainda: “o visual tem um
imóvel com características que correspondem a
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Brasilmar Ferreira Nunes
um padrão específico de vida só se torna possível uma vez que os indivíduos que almejam
comprá-lo se ponham em disputa no mercado
Esboço para uma conclusão
geral
e disponham de recursos econômicos para obter o bem desejado.13 É comum o argumento
Os aspectos diversos que contêm a decisão de
justificando a compra do apartamento como
morar em determinada área da cidade e não
uma valorização do patrimônio ou como um
em outra guardam uma lógica peculiar que
investimento seguro. Falam ainda na aquisição
procuramos decodificar. Estamos longe da afir-
de “um bem que ninguém vai te tirar!”. Po-
mativa weberiana, para quem o que caracteri-
rém, estamos nos perguntando se seria cabível
za sociologicamente a cidade são as relações
a definição desses indivíduos como sendo um
de vizinhança (Weber, 1979). Se essa assertiva
grupo de status. De fato, muitos dos atributos
pode se aplicar para as cidades da pré-moder-
definidores dessa categoria conceitual, confor-
nidade, Simmel vai insistir que agora há outro
me tratados por Weber em texto anteriormente
fator importante na cidade, que é justamente a
citado, podem ser encontrados no caso que es-
possibilidade do anonimato. Estamos em dife-
tamos tomando como exemplo; até mesmo nos
rentes níveis de análise: a divisão do trabalho
anúncios publicitários dos lançamentos podem
social leva à especialização de ofícios e ativida-
ser observadas essas proximidades.
des que, por sua vez, se baseia nas trocas mo-
14
Entretanto, a advertência feita por Becker
netárias para se manter e reproduzir. Assim, é a
quanto à escolha que o pesquisador deve fazer
aglomeração no território que sustenta e ofere-
entre deixar a categoria conceitual definir o caso
ce as condições gerais para a divisão do traba-
e deixar o caso definir a categoria (Becker, 2008)
lho; sem dúvida, temos aí uma das explicações
não deve ser esquecida. Ao se optar pela primei-
para a atração que a cidade oferece. Sendo lu-
ra alternativa, perdemos parcela significativa da
gar de mercado, produz fatos sociológicos pe-
complexidade própria da realidade e deixamos
culiares que, segundo Weber (ibid.), seriam as
de investigar aspectos do nosso caso apenas
relações de vizinhança.
por não fazerem parte da descrição da categoria
Entretanto, na medida em que estamos
com a qual trabalhamos. Faz sentido, portanto,
considerando as trocas monetárias via merca-
incluir todos os aspectos do caso em nossa aná-
do, temos que levar em conta que a concorrên-
lise, mesmo que a categoria conceitual não dê
cia é parte constitutiva da relação. Isso produz
espaço para eles. Assim, tomando nosso caso co-
mecanismos de diferenciação de produtos e
mo referência, a honra de status está diretamen-
preços caracterizando uma oferta geral de
te ligada a uma situação de classe envolvendo
bens e serviços profundamente diversificada,
proprietários em competição no mercado por
variada. O jogo de mercado é então um pro-
bens altamente valorizados. De maneira alguma
cesso contínuo de inovações, onde o que se
o “ter” se opõe ao “ser”. As distinções pessoais
oferece varia quantitativamente e, sobretudo,
não entram em contradição com as pretensões
qualitativamente. Na medida em que a própria
de aquisição puramente econômicas, que segun-
mercadoria trabalho entra nessa lógica, há nas
do Weber é próprio das “classes”.
esferas individuais a permanente expectativa
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Práticas territoriais da classe média urbana
de diferenciação para obter melhores resulta-
considerar, portanto, que a necessidade de
dos na concorrência. Submetido a estímulos
reconhecimento é o que move as tentativas
permanentes, o indivíduo tem seu psiquismo
de interação entre as pessoas e garante certa
envolto numa série ininterrupta de sensações
identidade social mantendo-as partes de um
cotidianas. O fenômeno é tanto na esfera da
grupo. É na metrópole onde essas possibilida-
qualificação profissional, na procura de méritos
des são mais disponíveis, pois o ambiente so-
de distinção, até na dimensão física, corporal
cial é de profunda heterogeneidade, permitindo
e no estilo de vida que se pode praticar. O ar-
escolhas eletivas.
gumento de Simmel é que se desenvolvem aí
Seria, assim, através de processos de in-
estratégias de “sobrevivência” psíquica com
teração social que se produz a sociedade, seja
o aparecimento do instinto de reserva ou até
mercantil ou não. Marcel Mauss, estudando o
mesmo da atitude blasé (Simmel, 2007). Assim,
regime das trocas em sociedades arcaicas, nos
aquilo que para Weber caracterizava sociologi-
lembra que a interação ali presente não se re-
camente a cidade pré-moderna, e poderia ser
sumia a uma simples troca de bens, de riquezas
lido como algo positivo, em Simmel passa a ser
ou de produtos num mercado estabelecido en-
visto como fonte de perturbação: a inexorabili-
tre os indivíduos. Insiste o autor:
dade do fenômeno é que daria o substrato para
seus argumentos sobre a “tragédia da cultura”.
Fizemos referência, ao longo do texto, ao
fato de que no capitalismo não há relações de
classe e sim relações de dominação e um grupo
se sobressai ante os demais. Ao mesmo tempo,
lembramos que há sim produção de relações e
que essas se dão nas esferas da circulação e
do consumo e onde o espaço urbano é privilegiado para suas manifestações. Simmel insiste
sobre a placidez da vida em pequenas cidades
ou no campo, comparada ao que se passa na
metrópole, onde a racionalidade da vida é levada ao extremo. Entretanto, o ser humano é um
ser social e tem mecanismos de sociação que
[...] em primeiro lugar não são indivíduos, são coletividades que se obrigam
mutua mente, trocam e contratam as
pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tribos famílias (grifo
nosso) que se enfrentam e se opõem seja
em grupos frente a frente num terreno,....
Ademais o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de tudo, habilidades,
banquetes, riquezas, serviços... dos quais
o mercado é apenas um dos momentos,
e nos quais a circulação de riquezas não
é senão um dos termos de um contrato
bem mais geral e bem mais permanente.
(Mauss, 2007, p. 190)
garantem um mínimo de interação, ao risco de
acabar com o que se entende por sociedade.
Percebemos assim que a troca é um fenôme-
Discutindo o caráter abstrato da sociologia,
no pré-mercado capitalista, o substrato mesmo
Simmel procura entender o que acontece com
da sociedade. Lévi-Strauss, em sua célebre in-
os seres humanos e segundo que regras eles
trodução à obra de Marcel Mauss, adverte ser
se movimentam quando, em virtude de seus
da natureza da sociedade que ela se exprima
efeitos mútuos, formam grupos e são determi-
simbolicamente em seus costumes e em suas
nados por essa existência em grupo. Podemos
instituições:
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[...] ao contrário, as condutas individuais
normais jamais são simbólicas por elas
mesmas (grifo no original), elas são os
elementos a partir dos quais um sistema
simbólico, que só pode ser coletivo, se
constrói. (Lévy-Strauss, 2007, p. 17)
A teoria social ainda não consegue definir claramente o estatuto desse grupo, dada
a indefinição, seja na natureza do mercado de
trabalho, seja nos próprios valores morais. Seria
suficiente talvez reafirmar a definição de “classes médias” corrente no debate sobre as socie-
São essas reflexões que nos ajudam a concor-
dades pós-industriais da segunda metade do
dar com a assertiva maussiana segundo a qual
século XX. É possível situá-las a partir de três
“sociedade é símbolo”, nos valermos do pen-
grandes referências complementares, próximas
samento de Simmel para quem
de uma descrição do que propriamente de uma
[...] a sociologia extrai dos fenômenos
uma série ou uma parte da totalidade e a
subsume a um conceito específico através
de processos de abstração e estudar, por
exemplo... os resultados da luta de classe
sem entrar nos detalhes do curso de uma
greve ou das negociações em torno de
uma taxa salarial. (2006)
definição: 1) as classes médias seriam aquelas cujo nível de remuneração se aproxima da
média; 2) seriam definidas pela posição intermediária de seus membros nas hierarquias sociais e profissionais, assim como na escala das
qualificações, marcados por uma competência
e um poder de organização; e 3) se definiriam
em função de um sentimento de pertencimen-
Aquilo que Mauss observa para as socie-
to, menos estático que dinâmico, notadamen-
dades que ele estuda é significativo para nos-
te pelo fato de identificar seu destino – ou o
sas reflexões. As trocas mercantis, hoje ainda,
de seus filhos àquele do grupo intermediário
guardam a sua essência de “atos coletivos”
(Tourraine, 2007, p. 17).
abstratos, mesmo quando aparecem como sen-
O fato é que seu universo privilegiado
do resultado de decisões individuais. A aquisi-
são as metrópoles, onde gozam das possi-
ção de um imóvel para moradia tem elementos
bilidades de um anonimato onde podem se
que contribuem para a formação de sistemas
apresentar segundo critérios racionais, meri-
simbólicos que só podem ser coletivos, como
tocráticos, escapando dos códigos tradicionais
afirma Lévi-Strauss. Talvez tivéssemos que in-
de aquisição de prestígio, dos quais a origem
corporar na análise a natureza das sociedades
familiar é uma das principais características.
modernas com seus sistemas de classes e seus
Entretanto, suas estratégias de reprodução
regimes de criação de esferas de prestígio so-
e de manutenção de prestígio vão sendo aos
cial. No caso que exemplificamos no presente
poucos consolidadas à medida que se firmam
artigo, trata-se de um grupo de classe média
no cenário do mercado de trabalho (terciário)
urbana, com história relativamente recente na
e se beneficiam das vantagens que o sistema
sociedade brasileira, mas que pelas facilidades
garante a segmentos sociais específicos. Não
de consumo que detém consegue gerar um sis-
há dúvidas de que a moradia é um dos ele-
tema de valores peculiar, envolvendo um estilo
mentos mais visíveis de uma posição social,
de vida próprio.15
cuidadosamente cultivada por esse segmento.
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Práticas territoriais da classe média urbana
Giddens é enfático quando afirma que “o mais
a particularidade nos ajuda a entender a tota-
importante dos fatores que promovem uma
lidade. Isso justifica a nossa ênfase na noção
diferenciação geral entre trabalhadores white-
de “belo”, em que a estética passa a ser um
-collar e blue-collar são os agrupamentos dis-
instrumento de diferenciação que identifica
tributivos formados pela “aglomeração” de
um grupo social através de padrões estéticos
vizinhança e por certos tipos de formação de
comuns ou similares. Esse recorte nos é útil
16
grupos de status.
inclusive para analisar as formas estéticas em
Nossa opção em exemplificar a análise a
áreas populares, guiadas por princípios idênti-
partir de um caso foi no sentido de obedecer
cos, porém com parâmetros próprios. Mas isso
a uma orientação simmeliana, segundo a qual
é assunto para outro artigo.
Brasilmar Ferreira Nunes
Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense.
Pesquisador do CNPq e da Faperj. Rio de Janeiro, Brasil.
[email protected]
Notas
(*) O autor agradece o trabalho de Natalia Carneiro Campagnani, estudante de Ciências Sociais da
Universidade Federal Fluminense e bolsista PIBIC, na pesquisa empírica e nas discussões que
deram origem ao texto.
(1) Simmel se interrogando sobre a maneira como quantidade induz à qualidade (da pequena
cidade à metrópole), argumenta que a par r de certo ponto as conexões se mul plicam ao
mesmo tempo em que o individuo ganha em liberdade de movimento e a grande cidade ganha
autonomia de personalidades únicas. Por exemplo, o estatuto de metrópole de Weimar se
ligava a figuras eminentes e desaparece com elas, enquanto a grande cidade [é] precisamente
caracterizada pela sua independência fundamental em relação a personalidades ilustres (Simmel
apud Rémy, 1997, p. 66).
(2) Ver a respeito: Simmel, G. (1998).
(3) A terceira esfera tratada por Weber é a “polí ca”, cuja análise é feita a par r da noção de poder.
Não iremos tratar dessa esfera nos quadros deste ar go.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011
435
Brasilmar Ferreira Nunes
(4) Uma ilustração desse fato é, por exemplo, durante catástrofes naturais, quando áreas precárias
das cidades são atingidas e destruídas. Nesse momento, a comoção da perda do abrigo é
reveladora do apego que o imóvel tem para seus moradores, independentemente de suas
qualidades materiais.
(5) A análise sobre o mercado imobiliário de alta renda na Região Parisiense é exemplar a este
respeito. Ver Pinçon e Pinçon-Charlot (1989).
(6) Claro que estamos considerando estabilidade de emprego e renda. Em momentos de crise, essa
situação pode se alterar, porém raramente chega ao nível das sociedades emergentes.
(7) A sociologia discute com parcimônia a dimensão esté ca, que de maneira diferenciada tem, de
fato, sen do profundo a todos os indivíduos e grupos. Na medida em que ela é confundida com
a dimensão econômica (“o belo é de alto custo”), se perde de vista que todos se submetem a
padrões esté cos nessa aventura que é a vida em sociedade.”Eis o que foi sem dúvida, depois de
sempre, a vocação essencial da arte: evidenciar... em um material sensível (cor, som, material...)
uma verdade considerada como superior” (Ferry, 1990, p. 16).
(8) “Secularização e humanização são duas palavras-chave destas variações às quais conviria prestar
um instante de atenção para se inserir com mais segurança nas discussões atuais” (Ferry, 2005,
p. 16).
(9) Na esfera das “relações de produção”, não se pode dizer que haja relações de classe. O que há é a
exploração de uma classe sobre outra e a imposição de seus interesses como legí mos.
(10) Vamos deixar claro que a esfera do consumo é acessível a todos, desde que detenham recursos
materiais/monetários. Assim, da mais baixa à mais elevada renda, todos par cipam segundo
suas possibilidades do consumo, sobretudo na vida urbana e metropolitana, onde a moeda é o
instrumento privilegiado de interação social.
(11) Por exemplo, ruas mais tranquilas, trânsito menos intenso.
(12) As alusões à rua da praia de Icaraí e à Cel. Moreira César, ambas em Icaraí, são constantes e
servem de referencial para a reprodução de um es lo de vida no bairro vizinho. Comparam o
comércio de seu bairro com o do vizinho: “aqui é bem servido das necessidades básicas como
padaria, farmácia, mas ainda não tem tantas lojas de roupas e presentes como a Moreira César
que é um shopping a céu aberto”.
(13) No momento de realização da pesquisa, no segundo semestre de 2010, os preços dos
apartamentos de dois quartos oscilavam em torno de R$250.000,00, enquanto os de três
quartos custavam em média R$350.000,00. Porém, é importante ressaltar que o aumento nos
preços desses imóveis se dá de forma extremamente rápida, vide a valorização da área em
questão e em poucos meses, até mesmo durante o período das obras, os preços podiam chegar
a R$400.000,00 e R$600.000,00, respec vamente.
(14) Os preços dos apartamentos variam segundo o pres gio da rua onde se localizam. Apartamentos
adquiridos na planta têm um imediato aumento de seu valor logo na entrega das chaves ou
mesmo no período das obras, caracterizando um inves mento financeiro pra camente sem
riscos.
(15) O estatuto teórico da “classe média” não é contemplado pela teoria marxista, sendo estudada
principalmente pela sociologia anglo-saxônica (Stuart Mills, Giddens, etc.). A denominação de
“White collars” é a que mais se popularizou para caracterizá-la (Giddens, 1975).
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Práticas territoriais da classe média urbana
(16) Mais ainda: “a força da tendência à separação de vizinhança é inegável em especial nas sociedades
capitalistas... a maior segurança de emprego, caracterís ca do trabalho white-collar, geralmente
leva a uma disponibilidade maior de emprés mos para habitação e hipotecas”(Giddens, 1975,
p. 225).
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Brasilmar Ferreira Nunes
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Texto recebido em 15/jan/2011
Texto aprovado em 9/maio/2011
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011
De Simmel ao cotidiano
na metrópole pós-urbana
From Simmel to everyday life in post-urban metropolis
Silke Kapp
Resumo
O presente artigo discute o ensaio de Georg
Simmel, “As grandes cidades e a vida do espírito”
com ênfase na contraposição entre metrópole
e cidade pequena, sociedade capitalista e précapitalista. Inicialmente, delinea-se a perspectiva
social e espacial de Simmel: a de um intelectual
burguês em Berlim por volta de 1900. A segunda
parte analisa a relação entre os fenômenos
psíquicos evidenciados por Simmel e o contexto
mais amplo em que ele os insere, retomando
elementos da Filosofia do Dinheiro e mostrando
que a metrópole a que Simmel se refere equivale
ao que Lefebvre chamará de “espaço abstrato”.
A parte final procura compreender o que resulta
da dissolução dessa metrópole ou de seu
espraiamento ao espaço em geral.
Abstract
This paper discusses Georg Simmel’s essay “The
Metropolis and Mental Life” focusing on the
opposition between metropolis and small town,
pre-capitalist and capitalist society. First, it outlines
Simmel’s social and spatial perspective as a
bourgeois intellectual living in Berlin around 1900.
The second part analyses the relationship between
the mental phenomena pointed out by Simmel and
the broader context in which he situates them,
exploring elements of his Philosophy of Money
and showing that the metropolis that Simmel has
in mind is equivalent to Lefebvre’s later concept
of “abstract space”. The paper concludes with
an attempt to understand what results from the
dissolution of such a metropolis or from its spread
into space in general.
Palavras-chave: Simmel; indivíduo; espaço abstrato; cultura urbana; cotidiano.
Keywords: Simmel; individual; abstract space;
urban culture; everyday life.
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Silke Kapp
A cidade da vida de Simmel
admiração –, Berlim é um caldeirão de experimentações urbanas pouco resistente à perda
de tradições e à modernização acelerada, que
O ensaio do sociólogo alemão Georg Simmel
se expressa, por exemplo, na massiva demoli-
“Die Großstädte und das Geistesleben” – lite-
ção das edificações mais antigas. E à diferença
ralmente, “As grandes cidades e a vida do espí-
de Londres ou Paris, que em meados do século
rito” – foi concebido no mesmo ambiente das
já eram metrópoles, o crescimento de Berlim
lembranças de Walter Benjamin em Infância em
coincide justamente com o período vivido por
Berlim por Volta de 1900: a região berlinense
Simmel: primeiro ela se transforma em “gran-
de Westende-Charlottenburg. A leitura do texto
de cidade” (Großstadt), depois, em metrópole
de Benjamin evoca a atmosfera quase pacata
(Metropole). Esse último atributo – o metro-
de uma vizinhança de famílias abastadas, onde
politano – cabe a “uma cidade que fornece ao
dificilmente se manifestam o tumulto de outros
mundo inteiro a matéria do seu trabalho e que
contextos e a pobreza de outros habitantes
o conforma em todas as formas essenciais que
urbanos (Benjamin, 1987, p. 92). O texto de
aparecem em algum lugar do mundo da cultura
Simmel, pelo contrário, interpreta essa cidade
contemporâneo” (Simmel, 1990, pp. 170-171),2
como um ambiente avassalador, que exacerba
isto é, a uma cidade cosmopolita.
a “vida nervosa” com o bombardeamento in-
As novidades berlinenses abrangem da
cessante de estímulos (Simmel, 1995, p. 116).
produção artística e intelectual legitimada
A diferença decorre – ao menos em parte – do
pelas instituições burguesas a grupos margi-
fato de Benjamin não ter presenciado as trans-
nais e subculturas que ali, na grande cidade,
formações de Berlim na segunda metade do
encontram pela primeira vez quantidade sufi-
século XIX, decisivas para o pensamento de
ciente de adeptos para se transformarem em
Simmel.
fenômenos qualitativamente novos (Bab, 1904;
Entre 1858, ano de nascimento deste úl-
Fischer, 1975). A Berliner Moderne (modernida-
timo, e 1903, ano de publicação do dito ensaio,
de berlinense) é uma inovação literária que faz
Berlim se transforma de capital da Prússia, com
de fábricas, moradias de aluguel, trabalhadores
400 mil habitantes, muita pobreza e alguma
e prostitutas cenários e protagonistas de suas
mecanização, em capital política, econômica e
obras. Ao mesmo tempo, a cidade dá origem
cultural do império alemão, com três milhões
a contraposições ou compensações do “caos”
de habitantes, industrialização, comércio e ex-
urbano: movimentos em prol da cidade jardim
posições mundiais, uma linha de metrô recém-
ou do nudismo, a Naturheilkunde (doutrina de
-inaugurada, iluminação pública, bondes elé-
cura pela natureza, inspirada em Jean-Jaques
tricos e automóveis, museus e cinemas, jornais
Rousseau e Paracelso), o Wandervogel (pássaro
e revistas ilustradas, lojas de departamento e
migrante ou pássaro caminhante, uma associa-
cafés, e um milhão de Mietskasernen, isto é,
ção de jovens, em sua maioria de origem bur-
precárias moradias de aluguel de um ou dois
guesa, ancorada nos ideais do Romantismo e,
cômodos.1 À diferença de Viena, Munique ou
ao mesmo tempo, uma espécie de precursora o
Roma – cidade pela qual Simmel tem enorme
movimento hippie).
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De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana
Figura 1 – Paul Hoeniger, Spittelmarkt (1912)
Fonte: http://de.wikipedia.org/wiki/Geschichte_Berlins (domínio público)
A conturbada cidade de Berlim da virada
feminista e a miséria habitacional, até as
do século se torna também objeto de um dos
“existências marginais”, como é o caso de
mais significativos projetos de pesquisa urbana:
Berlins drittes Geschlecht (o terceiro gênero
trata-se dos chamados Großstadt-Dokumente
de Berlim) de Magnus Hirschfeld, Uneheliche
organizados pelo escritor Hans Ostwald, com 50
Mütter (mães solteiras) de Max Marcuse ou
volumes e 40 autores participantes. Os volumes
Gefährdete und verwahrloste Jugend (juventude
são publicados entre 1904 e 1908 em fascículos
vulnerável e negligenciada) de Alfred Lasson.
relativamente baratos, de grande tiragem e, ao
Esse imenso projeto é, de fato, um “precursor
contrário do ensaio de Simmel, têm enorme
esquecido da Escola de Chicago” (Jazbinsek,
repercussão entre os contemporâneos. Seus
Joerges e Thies, 2001). Vários de seus autores
temas abrangem os mais variados aspectos da
o citam, e Louis Wirth (1925) lista a relação
vida na metrópole, desde a polícia, os bancos,
completa dos volumes e comenta cada um
a justiça, funcionalismo público, o movimento
deles no clássico The City.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011
441
Silke Kapp
Apesar de Simmel ter tido relações pes-
atribui à nova experiência urbana para esse
soais com pelo menos um dos colaboradores
estrato social estão sempre tensionadas e
dos Großstadt-Dokumente, o seu aluno Julius
ameaçadas. Como tentarei argumentar em se-
Bab, trata-se de uma temática que o sociólo-
guida, tais vantagens equivalem à potencializa-
go rejeita. Não apenas lhe é estranha a pes-
ção do ideal cosmopolita da burguesia cultural,
quisa social empírica da qual, com todas as
ao passo que a ameaça equivale à dissolução
eventuais deficiências teórico-metodológicas,
desse mesmo grupo na sociedade de massa.
os Dokumente decorrem, como também ele
evita o convívio com a cidade ali representada
(Jazbinsek, Joerges e Thies, 2001). Simmel sente aversão à pobreza, aos bairros proletários,
às já citadas Mietskasernen. Em Soziologie der
Distanciamento mental
e distanciamento espacial
Sinne (Sociologia dos sentidos), de 1907, ele
escreve que “a aproximação entre intelectuais
Como já mencionado no ínicio, o dito ensaio
e trabalhadores [...] fracassa simplesmente
de Simmel parte de uma elucidação da “vida
pela insuperabilidade da percepção olfativa”
nervosa” do habitante da grande cidade: mul-
(Simmel, 1993, p. 290). Aversão semelhante
tiplicidade e variedade de estímulos (hoje diría-
vale para a cultura urbana do entretenimento
mos “informações”) são tão maiores do que a
de massa e sua respectiva indústria, repletas
capacidade de apreensão e diferenciação do in-
de exageros e superficialidades apreciados
divíduo, que esse se “atomizaria” caso tentas-
especialmente pelos novos ricos e por assala-
se reagir plenamente a cada um deles. Por isso,
riados com algum poder aquisitivo, isto é, por
ele desenvolve um “caráter intelectualista”: o
um público ao qual falta capital cultural e gos-
“orgão psíquico” menos frágil ou “as camadas
to “legítimo”, no sentido que Bourdieu (2007)
mais conscientes e mais superficiais da alma”
atribui a esses termos.
(que a tradição filosófica chama de entendi-
Simmel, portanto, escreve o ensaio sobre
mento) lhe servem de escudo para proteger
“As grandes cidades e a vida do espírito” na
as “camadas mais inconscientes da alma” e,
perspectiva de um intelectual que vivenciou
ao mesmo tempo, anular sua ação no cotidia-
diretamente o choque da transformação de
no (Simmel, 1995). Na relação com o mundo à
uma cidade tradicional em metrópole moderna
sua volta, essa racionalização desemboca na
e que, pessoalmente, rejeita a maioria de suas
atitude blasé de quem já não se impressiona
consequências para a vida cotidiana, embora
com quase nada e é capaz de se orientar por
também seja sensível às possibilidades que ela
esquemas abstratos. Na relação com os outros
oferece para alguém em posição social relati-
indivíduos, desemboca na reserva que leva a
vamente privilegiada. Quando Simmel se refere
ignorar pessoas fisicamente próximas – como
a “indivíduos” trata-se sobretudo de membros
os vizinhos – e estabelecer relações puramente
da burguesia cultural (Bildungs-bürgertum) ou
formais, nas quais afetos e desafetos não têm
da burguesia industrial. As vantagens que ele
lugar.
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De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana
Observações em vários aspectos seme-
domésticos (synoikos). Na grande cidade, esse
lhantes às de Simmel comparecem em A Situa-
caráter constitutivo do grupo doméstico de-
ção da Classe Trabalhadora na Inglaterra, es-
saparece: “o ser humano se torna ser urbano
crito por Engels entre 1844 e 1845, que inclui
sem realmente fazer a cidade em que vive e
um capítulo intitulado “As grandes cidades”.
mora” (Behrens, 2010, s. p.). A grande cidade,
Engels não apenas descreve com admiração a
pelo contrário, é produzida por “uma organiza-
grandiosidade e o vigor de uma cidade como
ção monstruosa de coisas e poderes” (Simmel,
Londres, como também a repulsa que causa
1995) diante da qual o indivíduo é impotente.
o comportamento da multidão nas ruas. Ele
O contraste fica mais evidente quando
observa que “centenas de milhares de pessoas
Simmel descreve “o primeiro estágio de uma
de todas as classes e estamentos [...] passam
formação social”: “um círculo relativamen-
umas pelas outras como se não tivessem nada
te pequeno, com um forte fechamento contra
em comum” e “sem que ninguém considere
círculos vizinhos, estrangeiros ou de alguma
os outros dignos de um olhar sequer”; preva-
maneira antagônicos, e uma estreita coesão
lecem “a indiferença brutal”, “o egoísmo tor-
interna, que permite a cada membro individual
pe”, “o isolamento insensível de cada um nos
apenas um espaço muito pequeno para o de-
seus interesses privados”; a humanidade se
senvolvimento de qualidades peculiares e
dissolve em “mônadas” ou “átomos” (Engels,
movimentos livres, autônomos”. Simmel argu-
1972, p. 257). Engels também constata que es-
menta que todos os agrupamentos passam por
ses são os “princípios fundamentais da nossa
esse estágio, incluindo as religiões e os estados
sociedade atual”, mas que nunca encontram
nacionais, as guildas e os partidos políticos, e,
expressão tão direta e sem pudor como nas
finalmente, a própria cidade.
grande cidades. O que torna possível a miséria
urbana – tema central desse texto – é justamente a frieza.
Do ponto de vista da sociologia urbana,
o aspecto verdadeiramente interessante dessas descrições não está nos fenômenos da vida
psíquica em si mesmos, mas no contexto mais
amplo em que eles se inserem e nos dilemas
que suscitam. A interpretação de Simmel para
A vida em cidades pequenas, na Antiguidade como na Idade Média, impunha ao
indivíduo singular barreiras de movimento e de relações em direção ao exterior e
barreiras de autossuficiência e de diferenciação no interior entre as quais o ser humano moderno não conseguiria respirar.
Ainda hoje o habitante da grande cidade
sente um constrangimento dessa espécie
quando está na cidade pequena.
a vida na grande cidade ou na metrópole se faz
por contraste com o campo, a pequena cidade
À medida que um agrupamento cresce,
ou as cidades de outros tempos. A diferença
essas barreiras se desfazem paulatinamente.
não está somente nos números, mas na própria
Assim, a metrópole, fenômeno da formação
lógica de coesão. Como observa Behrens, a ca-
social moderna por excelência, tem pouca coe-
sa (oikos) e suas regras (nomos) formam a base
são interna e limites indefinidos, abrindo-se a
da oikonomia da cidade pequena ou mais anti-
infinitas conexões com o espaço exterior. O in-
ga, que se constitui como conjunto de grupos
divíduo pode habitar fisicamente a cidade – ou
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uma pequena porção dela – e, ao mesmo tem-
torna-se evidente que seu fundamento, para
po, estar presente numa geografia que em mui-
Simmel, é a objetivação ou coisificação das re-
to a ultrapassa. Isso não apenas pela facilidade
lações interpessoais pela economia. “O ponto
de viajar, mas sobretudo porque, dependendo
de partida de Simmel não é a cidade, mas o
da posição social que ocupa, as consequên-
dinheiro, e sua perspectiva não está focada na
cias de suas ações podem alcançar um espaço
sociedade urbana, mas na moderna sociedade
muito mais vasto do que aquele que percorre
capitalista” (Schöller-Schwedes, 2008, p. 654).
com o próprio corpo. Na Filosofia do Dinheiro, a
A ampliação do raio de ação de cada indivíduo
obra principal de Simmel, essa nova geografia
corresponde, também, à ampliação geográfi-
do indivíduo comparece com mais ênfase:
ca das relações econômicas. O “interesse pelo
remoto” não provém simplesmente de uma
As relações do homem moderno com seu
ambiente [Umgebung] se desenvolvem
geralmente de modo que ele se afasta
de seus círculos mais próximos e se aproxima dos mais afastados. O crescente
afrouxamento das relações familiares, o
sentimento de insuportável constrangimento pelo compromisso com os círculos
mais próximos [...], a crescente ênfase na
individualidade, que se destaca justamente do contexto mais imediato – todo esse
distanciamento anda de mãos dadas com
o estabelecimento de relações com o mais
distante, com o interesse pelo remoto,
com a comunidade de pensamento, com
círculos cujos laços substituem toda proximidade espacial. (Simmel, 2001, p. 541)
união entre “grandes espíritos”, mas é característica do colonialismo e do mercado mundial.
Lido dessa forma, o contraste entre a metrópole e a cidade pequena ou o campo, tal como comparece no ensaio de Simmel, é um contraste entre relações socioespaciais capitalistas
e pré-capitalistas. É a socialização mediada
pelo capital que, por volta de 1900, caracteriza
as metrópoles, mas ainda não domina o campo ou as cidades pequenas da mesma maneira.
Que Simmel se concentre no dinheiro e não nas
relações de produção criadas por seu emprego
como capital, apesar de ter sido um dos poucos
intelectuais de sua época e seu meio a ler Marx,
se deve, por um lado, à sua posição política en-
Schöller-Schwedes (2008) chama a aten-
tão mais próxima da social-democracia, e, por
ção para o fato de que, no âmbito da sociologia
outro, ao seu interesse maior pelas chamadas
urbana, a recepção da obra de Simmel se con-
“história da cultura” e “crítica da cultura” do
centrou no ensaio sobre a vida mental nas me-
que pela economia política (Waizbort, 2000, pp.
trópoles, sem dar a devida atenção à Filosofia
157 e 184). O conceito de “cultura” não figura
do Dinheiro, embora o próprio Simmel remeta
aí como mera discussão da cultura erudita, mas
a ela numa nota final. No entanto, quando se
como “o campo de batalha no qual se tenta ex-
interpretam temas como o distanciamento, a
plicar o [...] momento histórico” (ibid., p. 338)
reserva ou a atitude blasé apenas a partir des-
com pretensão de abrangência para além da
se ensaio, surge facilmente a impressão de que
economia política e de sua crítica.
sejam condicionados pelo simples dado físico
Castells (2000) questiona a ideia (e a
da densidade demográfica. Já quando se anali-
ideologia) da “cultura urbana” da qual se de-
sam esses temas à luz da Filosofia do Dinheiro,
riva a sociologia urbana e seu principal objeto,
444
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De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana
a chamada “sociedade urbana”. Tal questiona-
de outro modo, se todas as relações se regem
mento visa principalmente à cadeia causal que
pela ordem abstrata do capital, a ameaça de
esse ideário tem por pressuposto, isto é, que
nivelamento e massificação está em toda parte.
um certo “quadro ambiental” ou uma certa
Existem, então, fundamentalmente, duas
“forma ecológica” produzem uma nova moda-
possibilidades para o indivíduo. Quando me-
lidade de indivíduos, de sociedade, de cultura,
lhor provido de capital econômico ou cultural,
de civilização: a sociedade contemporânea pas-
poderá dar origem a ações de longo alcance
sa a ser “explicada” como um fenômeno pseu-
e, paralelamente, organizar sua vida privada
donatural. O “mito da cultura urbana” é, na
conforme lhe convém. Eventualmente, esse
opinião de Castells, uma ideologia que deixa
indivíduo tem influência política pessoal, im-
em segundo plano ou ignora inteiramente a es-
pulsiona o comércio interior e exterior, obtém
trutura produtiva que subjaz a essa sociedade.
informações amplas, tem a oportunidade de
Para Castells, Simmel veria a formação de uma
se comparar com seus pares no mundo intei-
economia de mercado e o desenvolvimento das
ro. A especialização decorrente da divisão do
grandes organizações burocráticas como con-
trabalho resulta, para esse indivíduo, não na
sequencias do processo psicossocial originado
simples alienação e na repetição infinita dos
pela aglomeração demográfica (ibid., p. 128).
mesmos gestos simplórios numa fábrica ou
Penso que Simmel não raciocina nessa forma
num escritório, mas na dedicação a um tema
causal. Mas Castells tem razão em apontar o
ou setor específico. Nesse contexto, importam
quanto o simples pressuposto de uma contra-
a vida privada e a “vida mundial”, enquanto a
posição urbano-rural, mais do que esclarecer,
vida da vizinhança, a atuação na própria rua,
torna nebulosas as relações sociais que aí se
no próprio bairro ou, enfim, numa produção do
tenta abarcar. Se Simmel é o primeiro a falar
espaço local ou microlocal, é quase nula. Essa
em “estilo de vida” (em A Filosofia do Dinhei-
produção resulta quase exclusivamente de de-
ro), é fato que ele “estiliza” o urbano, tanto
terminações ou esquemas abstratos.
quanto o rural ou tradicional. E é fato também
Se, por outro lado, o indivíduo não dis-
que essa estilização persiste todas as vezes
põe de capital econômico ou cultural, suas
em que o contraponto rural-urbano é repetido
possibilidades de ação se restringem, no mais
inadvertidamente.
das vezes, ao espaço privado. Assim como um
O dilema que não apenas a cidade, mas
intelectual burguês, o morador pobre de uma
toda a sociedade moderna põe para o indiví-
Mietskaserne na Berlim de 1900 tem poucas
duo está no fato de abrir infinitas possibilida-
possibilidades de agir sobre o espaço de sua
des para o desenvolvimento singular e, ao mes-
vizinhança, pois esse é determinado supralo-
mo tempo, dificultar imensamente a percepção
calmente. Mas, ao contrário do intelectual, sua
dessa singularidade, seja no espaço mais pró-
participação na “cultura mundial” também é
ximo, seja no mais distante. Se todos os outros
sempre heterônoma. Ele participa do cosmopo-
indivíduos assumem a mesma atitude blasé e a
litismo da metrópole apenas como admirador e,
mesma reserva, não resta quem possa reconhe-
eventualmente, quando sua situação financeira
cer o valor da individualidade alheia. Ou, dito
não é inteiramente precária, como consumidor.
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445
Silke Kapp
A investigação que Kracauer realiza em Berlim
de planejamento, ou então se restringe à esfera
na década de 1920 a respeito dos Angestellten
privada e se comporta no espaço público ape-
(empregados ou funcionários que trabalham
nas como consumidor ou “usuário”. Lido desse
em lojas, escritórios, etc.) evidencia como esse
modo, Simmel já aborda o que Lefebvre cha-
estrato se esforça em participar dos hábitos da
mará mais tarde de “espaço abstrato” e que
burguesia e se submete inteiramente a regras
gera usuários que “não conseguem reconhecer
dadas de antemão.
a si mesmos” (Lefebvre, 1991, p. 93) nesse espaço, mas tampouco conseguem confrontá-lo
O vício marcante na Alemanha burguesa
de se destacar da multidão por alguma
distinção, mesmo que seja apenas imaginária, dificulta a coesão entre os empregados mesmos. Eles dependem uns dos
outros e querem se distinguir uns dos outros. (Kracauer, 1971, p. 83)
criticamente porque o naturalizam.
O esfacelamento da cidade
Segundo o contraste que Simmel estabelece
Grande parte dessa população urbana
entre a grande cidade e o resto do território
não identifica a si mesma como classe domi-
(campo, cidade pequena), subsistem, lado a
nada e, por isso, tem ainda menos força política
lado, uma produção abstrata do espaço que
do que o operariado. A ameaça que assombra a
avança contiuamente para além de seus limi-
burguesia cultural nesse contexto é sua queda
tes e uma produção mais antiga, que tenta
no estado heterônomo da “massa”. O esforço
manter suas delimitações e sua autonomia in-
que ela pode fazer contra isso é, justamente,
terna (que, no caso, é coletiva, não individual).
o desenvolvimento da personalidade ou da in-
Não existe equilíbrio possível entre essas duas
dividualidade pelo reconhecimento no círculo
formas, isto é, entre cidade e campo ou, con-
geograficamente muito amplo de seus pares.3
siderando a crítica de Castells, entre produção
Tudo isso significa, em síntese, que o que
capitalista do espaço e um território ainda não
Simmel discute como um distanciamento men-
inteiramente determinado por ela. O contraste
tal em relação ao espaço (social e público) mais
tende a desaparecer, assim como cada um de
próximo vale tanto para os cidadãos melhor
seus termos. De fato, Lefebvre constata esse
posicionados (que podem desenvolver proxi-
desaparecimento.
midade mental com o que está espacialmente
distante e engendrar ações de longo alcance
geográfico), quanto para a massa de operários
e empregados (que não tem esse alcance senão como consumidora). Ele implica, concretamente, a alienação da produção do espaço cotidiano da cidade. Ou o indivíduo se engaja nas
esferas que geram os esquemas determinantes
dessa produção, tais como os orgão públicos
446
Capitalismo e neocapitalismo produziram
espaço abstrato, que inclui o “mundo das
mercadorias”, sua “lógica” e suas estratégias mundiais, bem como o poder do
dinheiro e o do estado político. Esse espaço é fundado na vasta rede de bancos,
centros de negócios e grandes entidades
produtivas, assim como em estradas, aeroportos e redes de informação. Dentro
desse espaço, a cidade – outrora a estufa
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De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana
da acumulação, fonte da riqueza e centro do espaço histórico – se desintegrou.
(Ibid., p. 53)
Metropolitana de Belo Horizonte. Uma pri-
O esgarçamento total dos limites da me-
da maioria dessa população” (ibid., p. 17), ou
trópole que Simmel ainda percebe como enti-
seja, trata-se de pessoas que experimentaram
dade relativamente diferenciada, torna-se mais
a lógica da grande cidade, seus múltiplos es-
evidente nas atuais regiões metropolitanas em
tímulos e seus mecanismos de alienação e
todo o mundo. Elas se tornaram estruturas que
massificação, e que não retornam às atividades
afetam e determinam todo o território e todos
rurais como se nunca tivessem saído do cam-
os processos sociais. Seus fenômenos incluem
po. A vida cotidiana dessa população não é um
as conurbações, a suburbanização e a periferi-
simples retorno a um estágio rural anterior. Na
zação, mas, o que me parece ainda mais sig-
maioria das famílias, há um ou mais membros
nificativo, incluem também uma fusão entre
com ocupações tipicamente urbanas (estudo
áreas urbanas e áreas tradicionalmente rurais e
ou trabalho), agregando renda e viabilizando
entre atividades urbanas e atividades tradicio-
sua permanência nos assentamentos. Uma se-
nalmente rurais. Na medida em que isso torna
gunda constatação importante é que a opção
a distinção urbano-rural desprovida de senti-
de retorno aos ofícios rurais teve, a julgar pelos
do, caberia a noção de uma metrópole “pós-
depoimentos dos próprios assentados, moti-
-urbana”.4
vações diretamente relacionadas ao desejo de
meira constatação importante é que o “vai-e-vem rural-urbano-rural [...] marcou o caminho
Não é nova a argumentação de que o
autonomia, tanto no trabalho e no controle do
êxodo rural massivo e a ampliação da agro-in-
tempo quanto na produção do espaço cotidia-
dústria vêm gerando novas articulações entre
no. Além da evidente possibilidade de “traba-
o rural e urbano, que impedem a classificação
lhar por contra própria”, são razões para a mi-
de determinados municípios em uma ou outra
gração: “correr do aluguel”, “cuidar dos filhos
categoria e dá origem à categoria do rurubano
da gente”, “ter uma vida mais lenta” ou deixar
(Veiga, 2001; Graziano da Silva, 1999). Cabe,
de se submeter a uma ordem abstrata; “se fô
no entanto, perceber também o reverso dessa
prás pessoa me dá um apartamento desses de
situação. Além da extensão da lógica econô-
luxo na cidade, Deus que me perdoa, eu não
mica de que, nas palavras de Lefebvre, a cida-
quero não” (ibid., pp. 18-19).
de foi “estufa”, há possibilidades de fusão de
Nesse tipo de situação, parece surgir
modos de vida que partem dos indivíduos. Um
uma modalidade de cotidiano que ultrapassa
exemplo concreto nesse sentido permite algu-
a submissão aos “mecanismos sociotécnicos”
mas inferências sobre como a “rurubanidade”
(no sentido de Simmel) ou ao “espaço abstra-
ou “pós-urbanidade” pode incidir na produ-
to” (no sentido de Lefebvre), fazendo mais jus
ção do espaço cotidiano nesse caso. Mazzetto
ao fato de que autonomia no espaço cotidiano
(2008) realizou uma pesquisa nessa direção em
é um elemento constitutivo de sujeitos politica-
assentamentos da reforma agrária na Região
mente autônomos.
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447
Silke Kapp
Enquanto a vida cotidiana permanecer
subjugada ao espaço abstrato, com seus
constrangimentos muito concretos, enquanto as únicas melhorias forem melhorias técnicas de detalhes (por exemplo, a
frequência e a velocidade do transporte
ou amenidades relativamente melhores),
enquanto, em suma, a única conexão
entre espaços de trabalho, espaços de
lazer e espaços de vida for fornecida por
agenciamentos do poder político e pelos
seus mecanismos de controle – enquanto
isso, o projeto de “mudar a vida” continua sendo não mais do que um grito de
torcida político a ser acatado ou abandonado conforme o humor do momento.
(Lefebvre, 1991, pp. 59-60)
inteiramente abstrato do subúrbio abastado
seria o padrão pós-urbano por excelência, contraposto a quaisquer imagens idealizadas da
cidade europeia pré-industrial.
Por outro lado, também se pode imaginar
que pós-urbana seria uma situação em que o
contraste entre engajamento ou não engajamento em espaços geograficamente próximos,
a constituição de grupos locais com certa coesão interna e força política, deixa de ser equivalente ao contraste entre campo e cidade, pré-moderno e moderno, tal como Simmel ainda
o vê, e passa a ser um contraste entre grupos
populacionais no interior do espaço urbano ou,
de modo mais abrangente, do espaço rururba-
Como nota o já citado Schöller-Schwedes
no. Assim como os assentamentos agrários, os
(2008), a sociologia urbana sempre operou
espaços autoproduzidos (vilas, favelas, slums)
predominantemente com referência a uma vi-
são lugares em que relações de vizinhança
zinhança idealizada, cujo caráter compulsório
(amistosas ou hostis) continuam sendo decisi-
é pouco tematizado. A abordagem de Simmel
vas e o potencial de uma identificação com in-
contraria essa ideia de que a solução para a mi-
teresses coletivos espacialmente definidos sub-
séria urbana estaria nas relações de vizinhança.
siste. Restaria então perguntar se a “proximi-
Talvez sua perspectiva esteja mais próxima de
dade mental do espacialmente próximo” exclui
um Estado de bem-estar social, tal como de fa-
necessariamente a proximidade mental com o
to predominou nas cidades de “primeiro mun-
espacialmente distante, como Simmel supõe.
do” durante algum tempo, tornando os indiví-
Os movimentos sociais das últimas décadas –
duos muito independentes uns dos outros, mas
incluindo o MST que deu origem aos supracita-
tanto mais dependentes dos “agenciamentos
dos assentamentos, bem como os movimentos
do poder político”. Nesse sentido, o espaço
pela reforma urbana – indicam o contrário.
Silke Kapp
Arquiteta e doutora em filosofia. Professora adjunta da Escola de Arquitetura da Universidade
Federal de Minas Gerais. Minas Gerais, Brasil.
[email protected]
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De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana
Notas
(1) É inteiramente distorcida, nesse sen do, a narra va de Theodor Lessing (1914), aluno de Simmel
e o primeiro a tentar relacionar sua teoria com sua própria experiência de vida na grande cidade.
Lessing supõe, por exemplo, que o local de nascimento de Simmel, esquina de Leipzigerstraße
e Friedrichstraße, já seria, em 1858, um conturbado e barulhento ambiente urbano, quando,
na verdade, tratava-se de um local que pareceria bastante pacato aos nossos olhos (Jazbinsek,
Joerges e Thies, 2001).
(2) A citação provém de um texto que Simmel escreve por ocasião da Exposição Industrial de Berlim,
em 1896. U lizo aqui a tradução de Waizbort (2000, p. 345).
(3) Entra aqui também a posição das vanguardas ar s cas que, como bem nota Waizbort (2000),
cons tuem dissidências da alta burguesia, opondo-se aos seus valores e, ao mesmo tempo,
dependendo se suas estruturas. Essa contradição – que pode ser resumida na contradição entre
um ideário an capitalista e a impossibilidade de existência sem o capitalismo – desemboca na
concentração no aperfeiçoamento esté co da personalidade.
(4) Teaford (2006) aborda a suburbanização com o termo “pós-urbano”, mas, como já dito, esse
aspecto não está em foco aqui.
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Texto recebido em 18/fev/2011
Texto aprovado em 1/jul/2011
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A metrópole como espaço-tipo
de uma experiência sensível*
The metropolis as a space-a kind of sensory experience
Julieta M. de Vasconcelos Leite
Resumo
A experiência sensível da metrópole nos finais do
século XIX constitui, na obra de Georg Simmel,
uma via de caracterização da cultura moderna. Ao
descrever as diversas facetas da cidade grande, ele
funda uma teoria sensível da modernidade, construída a partir da tomada de consciência de uma
reconfiguração espacial que corresponde às novas
formas de relações sociais e de existência coletiva.
Abre-se assim uma perspectiva para os estudos
urbanos com base na sensibilidade e na subjetividade. Este artigo propõe revisitar as análises da
metrópole de Simmel enquanto proposta de uma
abordagem estética das manifestações socioespaciais urbanas, a partir da qual podemos pensar as
transformações das metrópoles contemporâneas.
Abstract
The sensory experience of the metropolis analyzed
by Georg Simmel in the late nineteenth century
represents a way to characterize the modern
culture. Describing the various facets of the
city, he founded a sensible theory of modernity,
constructed from the awareness of a spatial
reconfiguration that corresponds to new forms of
social relations and collective existence. This point
of view opens a perspective for urban studies based
on the sensitivity and subjectivity. The aim of this
paper is to revisit Simmel’s analysis of metropolis
as a proposition for an aesthetic approach of
socio-spatial manifestations in urban space, from
which we could envision contemporary metropolis
transformations.
Palavras-chave: Georg Simmel; metrópole; experiência estética.
Keywords: Georg Simmel; metropolis; aesthetical
experience.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011
Julieta M. de Vasconcelos Leite
Introdução
que se desenvolveu nos finais do século XIX
em torno de esquemas de organização da
experiência vivida. Tal postura filosófica é res-
A metropolização da cidade europeia nos finais
saltada, por exemplo, no pensamento vitalista
do século XIX é um fenômeno que origina uma
(Bergson, 1927), que procura integrar dados
nova forma de experiência urbana. A imagem
sensoriais da percepção baseada na experiên-
da cidade, sua fisionomia, muda consideravel-
cia direta do corpo, e pela emergência de uma
mente sob efeito dos novos ritmos de vida, de
corrente de pensamento fundada no princípio
circulação e de concentração de pessoas, da
de Einfühlung, expressão de origem alemã que
diversificação de atividades, materiais e tipos
pode ser traduzida por empatia. Esses termos
de construções. Esses fatores contribuíram para
descrevem o ato de projeção dos sujeitos em
a dinamização das faculdades perceptivas dos
algo exterior estabelecendo uma espécie de fu-
espaços de vida metropolitano e servem de fio
são entre eles, que decorre da experiência sen-
condutor das análises sociológicas de Georg
sorial ou da emoção vividas em comum. Uma
Simmel sobre a cidade, mais especificamente
fusão que nasce, portanto, do contato com o
Berlim, verdadeiro genius loci do pensamento
ambiente, um espaço, um objeto.
desse autor.
Observa-se, assim, uma retomada do
O desenvolvimento tecnológico que
valor da experiência segundo as perspectivas
acompanha a revolução industrial é observado
estética e fenomenológica dos finais do século
do ponto de vista das transformações sensí-
XVIII quando, progressivamente, questões co-
veis na experiência espacial da Großstadt, do
mo a beleza, por exemplo, passam a ser tra-
alemão, a “cidade grande”. Tais mutações na
tadas em torno da relação entre o sujeito da
vida da sociedade urbana dão origem a um
percepção e o objeto percebido, e não mais de
novo panorama cultural, o da modernidade.
maneira objetiva, independente das capaci-
É nesse contexto que Simmel privilegia as for-
dades perceptivas dos sujeitos. Desse modo, é
mas de expressão individuais e coletivas como
possível identificar, na contracorrente do pen-
objetos centrais da sua análise, elas permitem-
samento mecanicista e cartesiano, as bases que
-lhe aprofundar diversos eixos de investigação
orientaram o reconhecimento e a valorização
que se estendem de modo geral às formas de
de uma “ambiência estética” (Maffesoli, 2007)
percepção e de interação no espaço e definem
metropolitana, fundamentada na partilha da
uma abordagem compreensiva da subjetivida-
experiência vivida. É sob tal concepção estéti-
de social da época.
ca, tomada em seu sentido etimológico, daqui-
A atenção dada por Simmel aos fenôme-
lo que remete à sensibilidade, ao sentimento,
nos que se produzem nas “grandes cidades”
à afetividade e às emoções, que Georg Simmel
contribui com uma corrente de pensamento
elabora um olhar sobre a metrópole.
voltada para a experiência perceptiva e psí-
Sua originalidade reside assim na cons-
quica nos estudos sociológicos. É importante
trução desse ponto de vista da cidade como
contextualizá-la num movimento de revalo-
forma de expressão cultural que vai além da vi-
rização de sensível no pensamento científico
são funcionalista em voga dentre os primeiros
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A metrópole como espaço-tipo de uma experiência sensível
estudos ditos “urbanos”1 e que toma em consideração fenômenos socioespaciais em mutação. Segundo Gilbert Durand (1994, p. 37), a
análise sociológica de Simmel da vida moderna
tem um grande mérito por alimentar um campo de pesquisa até então negligenciado. Este
artigo procura trazer à luz questões elaboradas
Esse me parece ser o motivo mais profundo pela qual a grande cidade sugere uma
tendência à pulsão rumo à existência pessoal a mais individual (...) o desenvolvimento da cultura moderna caracteriza-se
pela preponderância daquilo que se pode
denominar espírito objetivo sobre o espírito subjetivo. (1989 [1903], p. 238)2
na teoria de Georg Simmel sobre a metrópole como uma contribuição atual e necessá-
Desse modo, Simmel demonstra ver na
ria à compreensão dos fenômenos urbanos
metrópole vários aspectos favoráveis ao desen-
contemporâneos.
volvimento da razão e do intelecto, mas também um lugar de estímulo a novas formas de
sensibilidade. Apesar de colocar claramente a
A metrópole como espaço
sensível da experiência urbana
ideia de intensificação da nervosidade no modo
de vida urbano, diante de sua experiência concreta, ele atribui uma causa aos comportamentos sociais na metrópole, atribuindo-lhes uma
De modo geral, o estudo de Simmel sobre a
cidade moderna consiste mais numa interpretação do que um conjunto de conhecimentos.
Ele reconhece que, dada a complexidade do
fenômeno urbano, é mais adequado interpretá-lo por fragmentos. O conhecimento desse
objeto está essencialmente na construção de
uma imagem intelectualmente coerente que se
constrói a partir de impressões sensíveis e fragmentárias de seus componentes (físicos sociais
e imaginários). Sua teoria inaugura assim uma
série de novas e complexas abordagens: o estrangeiro, o dinheiro, a moda, a rua e a flânerie
que abrem uma via de integração dos signos
justificativa e até mesmo certa importância:
Mediante a acumulação de tantos homens, com interesses tão diferenciados,
suas relações e atividades engrenam
um organismo tão complexo que, sem a
mais exata pontualidade nas promessas
e rea lizações, o todo se esfacelaria em
um caos inextricável. (...) Se o contato
exterior constante com incontáveis seres
humanos devesse ser respondido com
tantas quantas reações interiores – assim
como na cidade pequena (...) – então os
habitantes da cidade grande estariam
completamente atomizados interiormente e cairiam em um estado anímico completamente inimaginável. (Ibid., p. 241)
da cultura urbana no discurso sobre a cidade
moderna.
Simmel não exclui da sua análise o as-
A dimensão psicossocial ocupa um lu-
pecto funcionalista da metrópole, vista tam-
gar considerável na análise da metrópole de
bém com sede da economia monetária, centro
Simmel. O problema da objetivação e da alie-
de trocas e de produção, como rede que ab-
nação do indivíduo perpassa vários dos seus
sorve as interações sociais, físicas e psíquicas
textos sobre a sociabilidade urbana, e é assim
e como espaço de atividades operacionais. É
colocado:
precisamente tal generalização das relações de
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Julieta M. de Vasconcelos Leite
produção que, segundo ele, cria um processo
vem a ilustrar um novo fenômeno veiculado
de racionalização das relações sociais. No en-
nos espaços públicos onde os indivíduos ou
tanto, teria esse autor uma visão pessimista do
“tipos urbanos” passam a ser um elemento a
sujeito na metrópole? Nas suas considerações,
mais de apreensão através do olhar. De manei-
o “espírito objetivo”, o “caráter blasé” e até
ra dinâmica, tal fenômeno associa-se ao desen-
mesmo a competição fazem parte de uma “di-
volvimento da flânerie, guiada pela fantasia
nâmica conflitual” da sociedade onde, apesar
e pelo prazer em observar tais personagens e
de tudo, é possível identificar certos valores
objetos e em percorrer os espaços da cidade
(Jonas, 2008, p. 69).
moderna.
Do ponto de vista físico dos espaços da
Desse modo, Simmel apresenta uma lei-
metrópole, o desenvolvimento da indústria, o
tura da experiência metropolitana guiada pelas
aparecimento do automóvel, a utilização do
sinalizações e interações que nascem das situa-
ferro e do vidro correspondem a uma estética
ções e dos contatos constantemente vividos no
própria aos novos modos de produção meca-
cotidiano dos recintos da cidade onde os sen-
nicista e padronizada. No entanto, aos olhos
tidos são cada vez mais solicitados. Vale res-
de Simmel, os espaços resultantes dessas ino-
saltar que, segundo essa análise, não se trata
vações tecnológicas não são, de modo algum,
simplesmente de uma proliferação de imagens
pobres nem em estímulos sensoriais, nem em
nas grandes cidades, mas de uma maneira de
formas imaginativas. A metrópole é considera-
integração dos sujeitos enquanto observado-
da como espaço de acentuada sensibilidade,
res e como elementos dinâmicos associados
em face dos estímulos provenientes da veloci-
uns aos outros e ao tecido urbano. Por detrás
dade, do movimento, da multiplicação de sím-
desses elementos surge um modo de vida e
bolos e de códigos socioculturais que solicitam
uma maneira de pensar o mundo, mas também
incessantemente a atenção dos cidadãos. Des-
uma hierarquia social e territorial, uma concep-
se modo, ela é tida como lugar específico de
ção de espaço e uma atitude diante da cidade
emergência de determinadas formas estéticas,
moderna.
associadas a uma sociabilidade e uma expressão cultural próprias.
Desse modo, a acuidade da visão torna-se
indispensável à experiência dos espaços metro-
Do ponto de vista social, a atomização
politanos e ao estabelecimento das relações
dos comportamentos e a indiferença que se
sociais, onde o olhar permite instaurar uma
estabelece diante da massificação de símbolos
comunicação baseada em símbolos e códigos
nos espaços de vida metropolitanos estimula
como a moda. Segundo a análise simmeliana,
um convite a exteriorizar os traços de singula-
o olho tem um sentido particularmente espe-
ridade e de distinção, possível de ser conside-
cial em relação aos demais órgãos de percep-
rado como um estímulo positivo na metrópole.
ção, responsável não somente por uma forma
Na análise de Simmel, as roupas e a aparência
de experiência espacial sensível, mas também
das pessoas agem como códigos de comunica-
por um papel sociológico. As situações de face
ção, de interação e de interiorização individual,
a face e as trocas de olhares decorrentes que
que atraem a atenção dos cidadãos. A moda
se produzem nos recintos e espaços públicos
454
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011
A metrópole como espaço-tipo de uma experiência sensível
da metrópole – como o ônibus, o metrô, o café
Tal citação corresponde à introdução do
e a rua – são consideradas como meios a par-
ensaio Roma, uma análise estética, de Georg
tir dos quais se estabelece um contato, muitas
Simmel (2006 [1898]), onde ele coloca em li-
vezes próximo da percepção tátil: “as relações
nhas gerais a essência da sua análise dessa
entre os homens das grandes cidades, se com-
cidade, a partir de um posicionamento episte-
paradas às das pequenas cidades, são caracte-
mológico que se constrói em torno da forma. A
rizadas por uma predominância acentuada da
forma urbana é o atributo principal através do
atividade da visão sobre aquela da audição”
qual ele descreve tanto a espacialidade como a
(Simmel, 1981, p. 230).
“vida mental” de Roma. Nesse texto, apresen-
Simmel destaca, assim, como, no espaço
tado como parte de um conjunto de ensaios,
da metrópole, as propriedades dos sentidos, e
Roma, Florença e Veneza (2006), Simmel faz
em particular a possibilidade de se relacionar
considerações aos aspectos psicológicos do es-
simultaneamente com um grande número de
tilo de vida dessas cidades, assim como fez com
pessoas dentro de um mesmo processo de per-
as metrópoles do século XIX (1989, [1903]). No
cepção seria um fato de coesão social. Segun-
entanto, a análise estética de Roma e Florença,
do ele, a “unidade de impressão” que nasce
feita a partir da analogia entre essas cidades e
da “comunhão de emoções” permite, pela sua
as obras de arte, apresenta um traço particular
intimidade, uma união qualitativa entre os indi-
na teoria de Simmel, na medida em que seus
víduos (ibid., p. 233). Tais considerações reme-
textos sobre Veneza e Berlim revelam outros
tem assim a uma concepção estética tanto dos
aspectos físicos (do espaço urbano) e psíqui-
modos de interação social como de experiência
cos (dos seus habitantes). Em todos os casos, a
urbana, tomando o espaço da metrópole como
abordagem estética expressa o “toque” vitalis-
matriz relacional da vida coletiva e como sua
ta e uma orientação fenomenológica nos seus
forma de expressão.
textos sobre a cidade.
A forma, fio condutor da análise dessas
cidades, é interpretada como resultado da or-
Da estética da forma
urbana à metrópole
como modelo cultural
ganização de diversos elementos que a compõem, reunidos por justaposição. Tal princípio
sugere uma concepção estético-espacial da
cidade enquanto unidade orgânica, que permite captar a transitoriedade de seus elementos
reunidos ao longo do tempo e em único lugar.
O maior encanto da beleza se deve, talvez, ao fato de que ela encarna a forma
de elementos que lhe são indiferentes
e dissociados, mas adquirirem um valor estético apenas por meio de sua
justaposição.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011
Segundo esse princípio, a forma encontra sua
“razão” nela mesma: é partir do interior que
ela extrai seu dinamismo, emite uma ideia de
vitalidade. A forma orgânica reúne e estabelece a conjunção de elementos distintos, ela
455
Julieta M. de Vasconcelos Leite
é resultado da sinergia entre seus componen-
perspectiva, ela representa o espaço de uma
tes, num estado de possível reversibilidade e
sociabilidade própria, cujos conteúdos são mais
de coexistência entre elementos estáticos e
ou menos explícitos, constantemente em movi-
dinâmicos. Tal princípio pode ser aplicado às
mento e transformação. A cidade grande define
cidades contemporâneas, cuja complexidade
assim um estilo de vida e uma cultura intima-
e fragmentação espacial são cada vez mais
mente relacionados ao progresso tecnológico e
expressivas.
econômico, mas também a uma determinada
Dotada de um valor estético, a forma remete à experiência sensível da cidade que se
experiência sensorial intensa em estímulos físicos e psicológicos.
constrói pela percepção de sua configuração,
fruto da reunião de elementos complexos, cuja
unidade se encontra na justaposição desses elementos, mas também naquele que os observa.
Nesse sentido, a noção de forma permite uma
apreensão da realidade social enquanto pro-
Contribuição do pensamento
simmeliano ao estudo das
metrópoles contemporâneas
duto de relações que remetem a processos de
empatia tal como a ideia de Einfühlung, ou seja,
Segundo a análise de Georg Simmel, é possí-
de partilha de sensações e emoções que fazem
vel tomar a metrópole como um espaço-tipo de
parte da experiência vivida. Ao levar em consi-
experiências sensoriais associado ao desenvol-
deração os fatos e as formas da cidade, pode-
vimento tecnológico da época, a uma forma de
mos constatar na metrópole de Simmel um tipo
sociabilidade e uma expressão cultural especí-
de sensibilidade social e cultural per se, cujo
ficas. Seus estudos terminam por elaborar uma
modelo é a cidade “idealtípica” de Berlim.
teoria sensível da modernidade marcada pela
Mesmo que a análise estética de Simmel
tomada de consciência de uma espacialidade
procure definir a "tonalidade emocional” de
própria, a da metrópole, e das relações que es-
cada cidade, ele não se propõe a apreendê-la
sa espacialidade estabelece com as formas de
inteiramente em sua totalidade. Isso se deve,
existência modernas. Desse modo, acredita-se
provavelmente, ao emprego de uma aborda-
que essa teoria possa constituir uma via para
gem fenomenológica, renunciando conceber o
os estudos sobre a sensibilidade e a subjetivi-
mundo como uma totalidade, e sim como orga-
dade urbanas contemporâneas; mais que isso,
nicidade. Simmel prioriza uma elaboração teó-
que o pensamento simmeliano merece ser re-
rica compreensiva, sob forma de vários ensaios
visitado e atualizado enquanto fundamento
que transmitem, por fragmentos, a complexi-
teórico e metodológico para a compreensão do
dade da vida urbana, impossível de ser apre-
estado atual das cidades. Afinal, a cidade con-
endida por meio de categorias globalizantes.
tinua sendo um campo de experiências senso-
Portanto, é como modelo cultural específico – e
riais, que se redefine segundo os valores cultu-
não como lugar de produção e circulação de
rais que lhe são próprios.
bens e valores típicos da era industrial – que
Faz-se necessário, assim, retomar deter-
a metrópole é concebida por Simmel. Nessa
minados elementos e estruturas presentes nas
456
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011
A metrópole como espaço-tipo de uma experiência sensível
reflexões sobre a metrópole de Simmel en-
Simmel caracteriza um processo de distinção
quanto pistas de reflexão sobre a experiência
socioespacial bastante difundido nos dias hoje
urbana contemporânea. Por exemplo, as cons-
e que está associado à formação de identida-
truções subjetivas, os imaginários cidadãos e
des múltiplas e de diversas comunidades fun-
suas modalidades de partilha e de interação
dadas dentro de um processo interativo da em-
que continuam a fazer parte do repertório de
patia. Os símbolos e códigos de comunicação
modelos, ou arquétipos, que determinam a re-
regem tanto os processos de individualização
lação com o outro e com o espaço e somente
como os de relação com o outro. Tal fenômeno,
são apreendidos a partir de uma perspectiva
observado em torno de manifestações estéticas
estética (Maffesoli, 1986). Enquanto constru-
como a moda, expressa a ambivalência dos de-
ção intelectual, esse tipo de sensibilidade é
sejos da e na cidade, como o de tentar alcançar
particularmente voltado para as manifestações
uma autonomia a partir da afirmação da dife-
individuais e coletivas e oferece uma compre-
rença. Se as considerações de Simmel sobre a
ensão do espaço urbano enquanto campo de
moda encontram hoje uma atualização, esta se
experiências sensoriais. É preciso também le-
deve às múltiplas formas de distinção observa-
var em consideração uma concepção orgânica
das nos espaços urbanos, por meio das quais os
dos espaços urbanos, definida pela reunião de
lugares, assim como os cidadãos, buscam uma
vários componentes, cujo caráter, o Stimmung,
possível singularidade, sem necessariamente
corresponde a uma atmosfera vivida e sentida.
romper com sua dimensão universalizante.
É nessa perspectiva, diferente da visão funcio-
Essa ambivalência nos territórios urbanos
nalista, que os espaços adquirem e transmitem
contemporâneos pode ser reinterpretada a par-
significados.
tir das considerações sobre a organicidade da
A abordagem estética de Simmel pode
forma urbana. Enquanto categoria ou “molde
então servir de ferramenta para a compreen-
cognitivo”, ela dá ordem às situações e aos
são dos espaços de vida da atualidade, onde
particularismos, colocando em relação as mo-
os símbolos e códigos se difundem por meio
tivações e as maneiras de ser que não são nem
da moda, das pichações, das manifestações
exclusivamente racionais, nem exclusivamente
das tribos urbanas; onde numerosas imagens
sensíveis. Ao permitir pensar o constante e o
e informações proliferam através dos écrans e
inconstante, ela serve como meio de compreen-
painéis digitais presentes nos espaços públicos.
são do princípio interno de organização dos
Tal abordagem dá valor e importância aos estí-
espaços urbanos enquanto expressão sensível
mulos sensoriais que participam da experiência
de uma realidade que se fundamenta na coe-
subjetiva da cidade, onde a arte e a arquitetu-
xistência e na interação entre elementos de na-
ra buscam uma visibilidade cada vez maior e
turezas diversas.
cujas formas de expressão refletem o humor, os
sentimentos e os ritmos da vida cotidiana.
Nosso discurso se insere numa visão
geral do estado atual da cidade e da socie-
Ao levar em consideração a comunicação
dade ocidentais, seguindo a lógica simme-
simbólica como fator de socialização, isto é,
liana, a partir da qual os questionamentos
de construção da interação no espaço urbano,
sobre a cidade emanam uma necessidade de
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Julieta M. de Vasconcelos Leite
compreensão da sociedade e de sua organi-
construção e da partilha de experiência vivi-
zação espacial. Retomamos assim alguns dos
da. Quase um século mais tarde, esses temas
valores que regem uma corrente sensível no
ressurgem de maneira atualizada, eles servem
pensamento da cidade moderna, tal como a
de categorias metodológicas ou como um ti-
percepção sensível do espaço, a perspectiva
po de ferramenta para analisar e descrever a
estética da forma, as práticas de socializa-
sensibilidade intelectualmente construída nos
ção por meio da comunicação simbólica, da
dias de hoje.
Julieta M. de Vasconcelos Leite
Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Sociologia pela
Université Paris Descartes, Sorbonne. Pesquisadora do CeaQ/Sorbonne.
[email protected]
Notas
(*) Este artigo foi elaborado a partir da tese intitulada Mediações tecnológicas na cidade: da
experiência do espaço à construção de interações sociais híbridas, apresentada por esta autora
em outubro de 2010 para obtenção do grau de doutor em sociologia na Université Paris
Descartes, Sorbonne. Este estudo foi desenvolvido com apoio do Alban (Programa de bolsas
de alto nível da União Europeia para a América La na, 2006-2009) e da Fundação Capes (20092010).
(1) O termo Urbanismo passa a ser empregado entre 1850 e 1870, época das primeiras grandes
reformas urbanas empreendidas pelo Barão Haussmann, em Paris, e por Idelfonso Cerdá, em
Barcelona. Segundo Françoise Choay (1965), seu texto fundador data de 1867, quando Cerdá
publica a “Teoría General de la Urbanización”. É a par r desse período em que se enunciam as
pretensões cien ficas de tornar o Urbanismo uma disciplina do conhecimento.
(2) As citações presentes no texto foram traduzidas pela autora.
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A metrópole como espaço-tipo de uma experiência sensível
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______ (2007). Les grandes villes et la vie de l'esprit, suivi de Pont et Porte [1909]. Trad. Françoise
Ferlan. Paris, l’Herne.
Texto recebido em 21/fev/2011
Texto aprovado em 24/maio/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011
459
A cidade de Simmel,
a cidade dos homens
The city of Simmel, the city of men
Lúcia Leitão
Abstract
Resumo
O texto a seguir apresenta uma leitura de A metrópole e a vida mental à luz da teoria psicanalítica. O ponto central dessa leitura é a extraordinária intuição de Simmel quanto à relação
entre cidade e psiquismo. Considera-se que essa
relação permite associar o sentimento de (des)
enraizamento (Simmel) à noção freudiana de
desamparo. Trabalha-se com a hipótese de que
a cidade desempenha uma função psíquica de
natureza substitutiva, da qual derivam os modos
de subjetivação na cidade. Conclui-se o texto argumentando que a cidade, inclusive em sua materialidade, não é algo apartado do sujeito, mas,
antes, um fenômeno marcado pela subjetividade
que caracteriza tudo que é humano.
The following text presents an interpretation
of The Metropolis and Mental Life in light of the
theory of psychoanalysis. The central point of
this interpretation is the Simmel’s extraordinary
intuition regarding the interrelation between city
and psychic. The text considers that this relation
allows the association of Simmel’s feeling of (un)
rooting to the Freudian notion of abandonment. It
is assumed that the city works as a psychic function
of substitutive nature, from where the subjective
ways of the city derive. The conclusion states that
the city, even in its material sense, is not apart
from the subject, but is rather a phenomenon that
is marked by the subjectivity which characterizes
everything that is human.
Palavras-chave: cidade; (des)enraizamento; psiquismo; subjetividade; desamparo.
Keywords: city; (un)rooting; psychism; subjectivity;
abandonment.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011
Lúcia Leitão
Le vieux Paris n´est plus (la forme d´une ville
Change plus vite, hélas ! que le coeur d´un mortel)
Baudelaire, no poema Le Cygne,
parênteses do poeta
Introdução
A chamada de trabalhos para este número dos
Cadernos Metrópole me chegou às mãos no
momento mesmo em que acabava de ler Le
monde diplomatique, edição 114, cujo tema
foi A urbanização do mundo. Em destaque, na
primeira parte da edição, a questão da insuficiência da reflexão teórica no que diz respeito
às cidades: “Desde o século XIX [escreveram
os editores], quando se deu o grande êxodo
para as cidades, o pensamento humano não o
seguiu: conservou suas raízes e o mesmo qua-
(1908-1982), dentre outros. Em um texto-manifesto publicado em 1970 pela Gallimard,
Mitscherlich chama a atenção para a dimensão subjetiva da vida urbana e, consequentemente, para os equívocos dos princípios norteadores da arquitetura moderna quando aplicados à cidade. Em tempos contemporâneos,
são internacionalmente conhecidos os escritos de Isaac Joseph, François Ascher, Manuel
Castells, Marc Augé, Saskia Sassen, Richard
Sennett, dentre muitos outros, todos atraídos
justamente pela cidade e sua complexidade,
inclusive como objeto de investigação teórica.
dro de referências”.1 Uma afirmativa surpreen-
Com essas referências em mente, sem
dente, à primeira vista, se se considera que
esquecer a filosofia e a literatura, chamou-me
“desde o século XIX” a cidade tem sido objeto
a atenção a inquietação presente no jornal pa-
privilegiado de estudo nos mais diversos cam-
risiense, bem como na chamada de trabalhos
pos disciplinares.
referida, no que diz respeito à cidade dos ho-
No âmbito das ciências sociais, a socio-
mens.2 Se o Le monde diplomatique abria sua
logia urbana, por exemplo, com expoentes
edição perplexo com A era das megalópoles e
como Max Weber e Georg Simmel, bem como
o despreparo teórico para compreendê-las, a
os teóricos que a eles se seguiram reunidos na
revista brasileira, não menos inquieta, convi-
Escola de Chicago (1920-30), inaugurou um
dava a comunidade acadêmica “a voltar o seu
modo de pensar a cidade que se mantém vivo
olhar para as metrópoles contemporâneas” –
ao longo do tempo, como indica, precisamen-
à luz de Simmel e de suas ideias seminais – e
te, a chamada dos Cadernos Metrópole. Na
a refletir sobre elas, ratificando, desse modo,
arquitetura, a Bauhaus (1919-1932) ofereceu
a percepção de insuficiência teórica que o Le
uma proposta concreta para a construção das
monde diplomatique assinalara. Foi, portanto,
cidades do pós-guerra, refutada, é bem verda-
nesse contexto de inquietude intelectual que
de, por seus equívocos, hoje evidentes, pelo
me dediquei à tarefa de reler Simmel e sua
psicanalista alemão Alexander Mitscherlich
obra inspiradora.
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011
A cidade de Simmel, a cidade dos homens
Como é próprio de obras seminais, o
que se dedicam a compreender a cidade à luz
texto que nós, brasileiros, conhecemos princi-
da subjetividade – no sentido psicanalítico do
palmente como A metrópole e a vida mental
termo – que define o humano. Em outras pa-
(Velho, 1976), oferece múltiplas possibilida-
lavras, não sabemos ainda, suficientemente,
des de leitura. Escolhi a noção de desamparo,
como acontecem os modos de subjetivação
tal como o define a teoria psicanalítica, como
nas metrópoles, como indica a proposta de re-
chave de leitura para refletir sobre os “modos
flexão feita pela revista paulistana.
de subjetivação nas metrópoles”, conforme
demanda explícita dos Cadernos Metrópole.
Essa escolha justifica-se por duas razões,
Uma outra razão da escolha dessa minha chave particular de leitura tem origem
na própria escrita simmeliana. A metrópole e
em especial. A primeira deriva da lacuna exis-
a vida mental apresenta uma desconcertan-
tente no que diz respeito a pensar a cidade em
te preocupação com as questões próprias da
sua expressão subjetiva, isto é, como produto
subjetividade, oferecendo, desse modo, um
e medida da experiência humana. Com efeito,
mote preciso para as reflexões aqui apresen-
Lefebvre (2010), na edição já mencionada do
tadas. Quando digo desconcertante, refiro-me
Le monde diplomatique, assinala justamente
principalmente ao momento em que o texto
esse ponto.
veio a público (1903), assim como ao tema
ao qual se dedicou o autor, a metrópole, ou a
A cidade era para os gregos um instrumento de organização política e militar.
Na Idade Média ela se torna um ambiente religioso para, em seguida, aceder
ao estatuto de reprodução da força de
trabalho, com a chegada da burguesia
industrial. Até aqui, apenas os poetas
compreenderam a cidade como a morada
do homem. (p. 20, tradução livre, destaques meus)
cidade (grande), tidas como sinônimos nestas
minhas notas breves.
No que diz respeito ao momento, é relevante considerar – dada a chave de leitura
escolhida – que a psicanálise estava apenas
nascendo. A obra basilar da escrita freudiana,
A interpretação dos sonhos, havia sido publicada em 1900 e não fora muito bem recebida
à época, como indicam os biógrafos de Freud.
No que diz respeito, portanto, à dimen-
Assim, parece estranho, desconcertante mes-
são subjetiva do ambiente construído, talvez
mo, que o sociólogo alemão apontasse para
o Le monde diplomatique tenha razão quando
a relevância da subjetividade, isto é, para a
lamenta a insuficiência da reflexão teórica so-
repercussão do modo como se organiza o psi-
bre a cidade ou, melhor dizendo, quando suge-
quismo humano na vida na cidade, num con-
re que as lentes de análise empregadas para
texto sócio-histórico hostil a essa ideia.
compreendê-la mantêm “o mesmo quadro de
Quanto ao tema tratado, a cidade gran-
referências” utilizado desde “o século XIX”.
de, o desconcerto não me parece menor, ou,
Com efeito, mais de um século após o surgi-
dito de outro modo, a abordagem simmeliana
mento da teoria com a qual Sigmund Freud re-
não me parece menos surpreendente. Afinal,
volucionaria o pensamento ocidental ao longo
a cidade, como se sabe, é algo coletivo por
do século XX, são poucos, ainda, os autores
definição e, aparentemente, não propicia a
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Lúcia Leitão
reflexão sobre a subjetividade, cujo objeto
Caso essa hipótese se confirme, repito, há
é o sujeito em sua singularidade. Nesse sen-
que se refletir sobre o modo como edifica-
tido, cabe perguntar do que falava Simmel
mos a cidade dos homens – e como dela nos
quando, pensando a cidade, apontava para as
apropriamos.
consequências da “preponderância do espírito objetivo em relação ao espírito subjetivo”?
Como compreender a ideia de que para viver
a cidade é preciso criar um “órgão protetor”?
Por que a cidade, que tem funcionado como
A cidade de Simmel:
estranhamento e desamparo
um ímã (Mumford, 1982) para gerações sucessivas de pessoas, em todos os recantos da
A cidade de Simmel é a cidade do estranha-
terra, seria tão ameaçadora?
mento. Não é para menos. Afinal, Georg
Como se vê, decorrido mais de um sé-
Simmel (1858-1918) vive o momento sócio-his-
culo de sua publicação, o texto de Simmel
tórico em que o mundo ocidental se organiza
ainda não se esgotou, como, aliás, é próprio
nas cidades em consequência das transforma-
dos clássicos. Questões relevantes quanto à di-
ções socioespaciais geradas pela Revolução
mensão subjetiva da cidade permanecem pou-
Industrial, como se sabe. É esse o tempo em
co exploradas. Eis, portanto, a segunda razão
que o planeta se torna cidade,3 conforme a ex-
para a chave de leitura por mim escolhida para
pressão do Le monde diplomatique na edição
reler Simmel, de um modo muito particular, na
citada. O tempo em que a Europa, por exem-
era das megalópoles.
plo, em aproximadamente um século, multipli-
O ponto central dessa leitura é a intui-
ca várias vezes a sua população urbana, como
ção, isto é, aquilo que é próprio dos grandes
registra Bardet (1990). O tempo, ainda, em
pensadores, de Simmel quanto à relação entre
que Paris se torna metrópole, no sentido sim-
cidade e psiquismo. É essa relação que me pos-
meliano do termo, com a anexação dos seus
sibilita associar o sentimento de (des)enraiza-
arredores à cidade-núcleo, em 1860, durante a
mento presente no texto simmeliano à noção
intervenção de Haussmann.
freudiana de desamparo. Penso que em torno
Para Simmel, portanto, a cidade grande,
dessa ideia é possível refletir sobre os modos
não por acaso quantitativamente indefinida ao
de subjetivação na cidade, algo que ainda nos
longo do texto, é a expressão da perplexidade,
surpreende, mesmo na era das megalópoles.
do desconhecido, da velocidade das mudanças
Para tanto, trabalho com a hipótese de
– das imagens mutantes, do inesperado das
que a cidade desempenha uma função psíqui-
impressões (2004, p. 62) –, do surpreendente,
ca de natureza substitutiva e, como tal, é parte
enfim, assinalado ao longo do texto. Imagens
importante na constituição da subjetividade.
mutantes, impressões inesperadas que fizeram
Caso essa hipótese se confirme, poderemos
o poeta, igualmente perplexo, anotar que a
compreender melhor um dos motivos do des-
forma de uma cidade muda mais rápido que o
conforto que a cidade tem gerado em muitos,
coração de um mortal, de acordo com o poe-
Nietzsche à frente, como escreveu Simmel.
ma registrado em epígrafe neste texto.
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A cidade de Simmel, a cidade dos homens
Nesse contexto, a cidade surge como o
do autor, surge como o lugar do desamparo,
ambiente do (des)enraizamento, da perda de
o equivalente psíquico à ideia de (des)enrai-
referências que marcam a experiência huma-
zamento, de estranhamento, de perdas, que o
na. Um espaço-tempo no qual “a individuali-
texto ora em foco traz à tona, ainda que o au-
dade [sofre] uma intensa estimulação nervosa
tor nele também registre aspectos positivos da
resultante da mudança rápida e ininterrupta
vida metropolitana.
de estímulos externos e internos” (2004, p.
Embora não seja possível discutir em
62). São mudanças que afetam o corpo (escala
profundidade a noção freudiana de desampa-
espacial), que ameaçam os valores locais (cos-
ro nestas minhas notas breves, nem o meu ob-
mopolitismo) e que põem em risco as relações
jetivo aqui – essa é uma tarefa para os teóri-
humanas mais caras (afeto).
cos da psicanálise –, é preciso indicar ao leitor,
Em termos psíquicos, a cidade de
mesmo que de maneira sucinta, notadamente
Simmel é, pois, um ambiente socioespacial
àquele menos familiarizado com a teoria psi-
onde o sujeito parece não se reconhecer, onde
canalítica, como e por que o desamparo marca
o sentimento de origem, de pertencimento,
a condição humana a fim de tornar plausíveis
se esvai desorganizando o indivíduo, tanto e
as ideias ora compartilhadas.
em tal medida que “ninguém se sente tão só
Em termos freudianos, o desamparo,
e abandonado como na multidão da grande
circunstância psíquica a partir da qual se es-
cidade” (ibid., p. 71). Nesse ambiente de de-
trutura a subjetividade, está associado à apar-
samparo, cada um vive sua própria experiên-
tação da mãe e, consequentemente, à ameaça
cia de exílio, essa “fratura incurável entre um
quanto à própria sobrevivência vivida pelo be-
ser humano e seu lugar natal”, como escreveu
bê humano por ocasião do nascimento. Uma
Said (2003, p. 46). Um exílio que não se refere
experiência de desamparo, conforme anota
a um tempo, a exemplo dos quarenta anos do
Rocha (1999), ou um estado de desamparo,
povo hebreu no Egito em tempos imemoriais,
como preferem Laplanche e Pontalis (2007),
mas, sim, a um espaço – talvez a uma circuns-
decorrente da incapacidade do recém-nascido
tância – para sempre perdido. Um exílio do
humano de valer-se a si mesmo em relação às
qual não há volta. Um espaço para o qual não
suas necessidades vitais, a exemplo da fome,
é possível o retorno.
da sede, etc. Trata-se, pois, num primeiro mo-
Para Simmel, esse lugar paradisíaco ha-
mento da vida humana, de uma experiência
via sido a aldeia, ou a cidade pequena, apre-
biológica assinalada pela perda, pela aparta-
sentada subliminarmente ao longo do texto
ção do espaço uterino onde as condições de
como um ambiente acolhedor, como o espaço
vida estavam asseguradas. Um estado de pro-
das relações afetivas, pautadas pela sensibili-
funda carência, portanto, do recém-nascido
dade, diz Simmel (2004, p. 62), do reconheci-
em relação ao cuidado e à proteção de um
mento mútuo – entre produtor e comprador
outro ser humano a fim de que a vida lhe seja
(ibid., p. 64) – dos valores compartilhados. É
preservada. Essa experiência de perda mani-
nesse contexto que a cidade, centro da vena-
festa-se no “primeiro grito” dado pelo bebê
lidade das coisas (ibid., p. 67), nas palavras
humano. Um “primeiro grito de desamparo”,
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011
465
Lúcia Leitão
anota André (2010, p. 38), que anuncia o
proteção? Não seria a cidade uma expressão
estado de desamparo como marca definitiva
de maturidade da civilização? Um modo de
da condição humana.
sobreviver – e de bem viver – a momentos
Para Freud (1926), esse estado de desamparo derivaria do fato de que “comparada
ameaçadores da vida, tal como ocorre com o
ser humano uma vez adulto?
à da maioria dos animais, a vida intrauterina
São questões pertinentes, na medida em
do homem é relativamente curta e quando é
que a experiência de desamparo vai bem além
lançado ao mundo [o bebê humano está] me-
do biológico – e é precisamente esse ir além
nos acabado do que eles” (destaques meus).
do biológico que me interessa aqui, uma vez
Despreparado, o mundo externo se mostra
oferece a chave para a leitura que ora faço da
terrivelmente ameaçador a ponto de suscitar o
escrita simmeliana. Pereira (1997) anota justa-
grito de que fala André, um grito que vai bem
mente esse ponto quando apoiado em Jacques
além das motivações biológicas também nele
Lacan lembra que,
manifestas. Freud utiliza a palavra Hilflosigkeit
para expressar essa circunstância, biológica
num primeiro momento, repito, mas, sobretudo psíquica, no que se refere à constituição
do sujeito humano. Zeferino Rocha, ao discutir
esse ponto fundamental da teoria freudiana,
anota-lhe o sentido preciso:
[...] o fundo essencial da questão [do
desamparo] não deve ser situado na
perspectiva biológica enquanto tal [...],
mas a partir do fato que essa situação
deixa transparecer uma falta fundamental – cujo sentido subjetivo é o de uma
perda ou de uma separação – à qual
cuidado algum [ou coisa alguma] pode
suprir. (p. 31, destaques meus)
A palavra Hilflosigkeit [...é] composta do
substantivo Hilfe que quer dizer auxílio,
ajuda, proteção, amparo, do sufixo adverbial modal losig , que indica carência,
ausência, falta de, e ainda da terminação
keit , que forma substantivos do gênero
feminino, cujo correspondente em português é a terminação “dade”. A palavra Hilflosigkeit significa, portanto, uma
experiência na qual o sujeito humano se
encontra sem ajuda – hilflos – sem recursos, sem proteção, sem amparo. Uma situação, portanto, de desamparo. (1999,
p. 334)
é, um espaço substitutivo por excelência? Teria
Seria essa situação de desamparo que
lembrar que a palavra metrópole deriva do
caracteriza o humano a razão de a cidade se
grego métra “matriz, útero, ventre”, metró-
mostrar tão ameaçadora? Seria contra esse
polis é “cidade mãe”, conforme registra o
desamparo inconsciente, arquetípico, que se-
Houaiss. Para além de uma definição técnica,
ria preciso criar um órgão protetor? Mas não
convém acompanhar o testemunho de Sara-
seria a cidade justamente um elemento de
mago quando, escrevendo sobre a terra onde
466
Seria a cidade, tida e vivida como o ambiente construído, um elemento substitutivo
dessa falta fundamental de que fala a psicanálise? Seria ela um sucedâneo do útero,4 isto
sido a percepção dessa função psíquica do espaço edificado que levou Bachelard (1978) a
anotar que “só mora com intensidade aquele
que já soube encolher-se”?
Para os que podem considerar essa
ideia demasiadamente psicanalítica, convém
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011
A cidade de Simmel, a cidade dos homens
nasceu, Azinhaga, associa precisamente esses
recém-nascido em relação à figura materna,
dois espaços fundamentais na vida humana.
principalmente, aponta para a onipotência
Diz ele:
do outro na constituição do sujeito humano,
[...] essa pobre e rústica aldeia, com sua
fronteira rumorosa de água e de verdes,
com suas casas baixas rodeadas pelo
cinzento prateado dos olivais [...] foi o
berço onde se completou a minha gestação, a bolsa [útero] onde o pequeno
marsupial se recolheu para fazer a sua
pessoa, em bem e talvez em mal, o que
por ela própria, calada, secreta, solitária,
poderia ter sido feita. (2006, p. 11, destaques meus)
conforme assinalam Laplanche e Pontalis no
texto citado. Esse ponto é essencial porque é
em decorrência dessa dependência subjetiva
em relação a um outro sujeito que a experiência de desamparo deixa de ser circunstancial
por ocasião do nascimento, “uma experiência
singular de abandono”, como anota André
(2010, p. 38), para se mostrar como elemento estruturante do sujeito humano. Em outras
palavras, para além do biológico, das necessidades básicas de sobrevivência, o sujeito
Sob essa perspectiva, a cidade desem-
humano está destinado a se constituir inteira-
penharia uma função psíquica de natureza
mente dependente de um outro sujeito, uma
substitutiva, ainda por melhor investigar. Seria
ideia que a filosofia já anunciara, como se
esse caráter substitutivo o centro do mal-estar,
sabe, ainda que com enquadramento episte-
vivenciado por tantos, em relação à cidade?
mológico distinto.
Construída para dar ao homem segurança e fe-
Nesse sentido, diz Freud (1926), “o fator
licidade, como queria Aristóteles (apud, Sitte,
biológico [que] está na origem das primeiras
1996, p. 2) – à semelhança, precisamente, do
situações de perigo [...] cria a necessidade de
ventre materno, um espaço “onde estávamos
ser amado, que não abandonará jamais o ser
em segurança e nos sentíamos tão bem”, co-
humano” (apud Rocha, 1999, p. 335). A ex-
mo escreveu Freud – teria ela falhado ao tra-
periência de desamparo assinala, pois, para o
zer à tona o desamparo que nos faz humanos?
sujeito humano, sua condição de refém, para
Quem sabe, talvez busquemos na cidade mui-
sempre, do amor – da atenção, do reconheci-
to mais do que ela tem a oferecer. Buscamos
mento do outro – sobre o qual se sustentam as
segurança e felicidade quando a condição hu-
relações humanas. É, portanto, essa circuns-
mana implica falta, incompletude, desamparo.
tância psíquica que faz do estado de desamparo uma experiência própria da condição humana, repito, e, do outro, um elemento essencial
A cidade dos homens:
afeto e reconhecimento
na construção da subjetividade.
Assim, anota Rocha, essa experiência
originária de desamparo, em termos estritamente psicanalíticos, transforma-se em “mo-
Um outro ponto a destacar na noção de
delo de inúmeras outras situações de desam-
Hilflosigkeit diz respeito ao fato de que, em
paro com as quais necessariamente o homem
termos psíquicos, o desamparo inicial do
se confronta no decorrer da existência” (ibid.,
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011
467
Lúcia Leitão
p. 336). Uma vez marcado por esse selo (ibid.,
(ibid.), arriscando, ele próprio, uma resposta
p. 335), o sujeito humano vivenciará o desam-
à questão formulada quanto à frequente
paro, ainda que de modo inconsciente, em
nostalgia da vida no campo vivenciada por
outras situações existenciais, como um padrão
quem habita a cidade. Em outras palavras, a
5
que se repete ad infinitum. É precisamente
cidade traria à tona o risco do não reconhe-
nesse ponto que a noção de desamparo pode
cimento, uma ameaça tão assustadora para o
ser útil para melhor entender os modos de sub-
psiquismo quanto a não satisfação, para o be-
jetivação na cidade. Agora, à dor da perda – de
bê humano das suas necessidades biológicas.
um ambiente onde as relações são “pautadas
Reduzidos a um grão de areia , como
pela sensibilidade”, onde “produtor e compra-
anotou Simmel (2004, p. 75), a cidade nos
dor se conhecem” –, associa-se a necessida-
desespera, nos atemoriza. Vale dizer, nos faz
de de reconhecimento do outro, circunstância
reviver, inconscientemente, mais uma vez, a
própria da experiência de desamparo.
ameaça de não sobrevivência, desta feita psí-
Nesse sentido, talvez menos a cidade
quica, presente na situação originária de de-
grande em si mesma e mais riscos de natureza
samparo. Atordoados por essa dor psíquica,
psíquica estejam no centro do sentimento de
atribuímos ao campo, aqui sinônimo da aldeia,
(des)enraizamento, de perda, de ameaça de
de cidade pequena ou de qualquer espaço
não reconhecimento, que o texto simmeliano
idealizado, o poder de “amenizar o peso da
registra. E isso menos pela cidade grande em
convivência social”, como anota Caligaris no
si do que pela idealização de um espaço-tem-
texto citado, um peso contra o qual a antipa-
po-circunstância para sempre perdido repre-
tia própria de quem vive na cidade grande nos
sentado pela vida na aldeia, uma ideia ilusória
protege, como escreve Simmel.
que encanta ainda, como o canto da sereia, o
habitante da era das megalópoles.
Nesse sentido, a cidade mostra-se como um fenômeno que vai muito além do que
Caligaris (1974) assinala precisamente
é perceptível à luz do quadro de referências
esse ponto quando chama a atenção para um
próprio do século XIX, como anotou o jornal
pretenso desejo de vida no campo que parece
parisiense. Lançado ao mundo e despreparado
atrair a muitos, mas que, na realidade, é um pro-
em relação às outras espécies, o ser humano
jeto de vida que poucos querem efetivamente
vivencia a cidade como uma construção socio-
viver –, como, aliás, indica o crescente aumento
espacial, sim, mas, também e, quiçá principal-
de população nas cidades e não no campo. “Por
mente, como uma experiência subjetiva, como
que será, pergunta Caligaris, que o campo apa-
um modo de habitar o mundo. Talvez por isso
rece tão frequentemente como o lugar de uma
só os poetas tenham conseguido compreen-
verdade perdida para quem se aventurou na ci-
dê-la adequadamente como a morada huma-
dade?” (ibid., p. 84, destaques meu).
na, tida aqui muito mais como uma busca do
Talvez porque, em termos psicanalí-
que um objeto em sua materialidade. Sob es-
ticos, a cidade nos faz viver “o imperativo
se modo de ver, a cidade seria uma resposta
de se fazer valer”, como afirma Caligaris
possível, humana – a coisa humana por exce-
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011
A cidade de Simmel, a cidade dos homens
lência, como escreveu Levi-Strauss em Tristes
Sob essa perspectiva, penso que o
Trópicos –, ao estado de desamparo de que se
“órgão protetor” para viver a cidade seria
falou aqui.
precisamente a compreensão das funções
Talvez seja a não compreensão, ainda,
psíquicas que inconscientemente lhe atribuí-
das circunstâncias psíquicas presentes na cons-
mos. A compreensão, por exemplo, de que o
trução e na apropriação da cidade dos homens
(des)enraizamento de que fala Simmel, o sen-
que nos faz tão inquietos, mesmo na era das
timento que a vida urbana explicita, é parte
megalópoles. Talvez ainda não tenhamos com-
da experiência humana e não uma condição
preendido que a função substitutiva que lhe
específica da cidade grande. Nesse sentido, a
atribuímos é impossível de ser desempenhada.
maturidade, pessoal e histórica, nos protege
Um espaço de acolhimento não apenas para o
à semelhança do que ocorre com o desenvol-
corpo e suas necessidades objetivas, mas, so-
vimento psíquico que faz do bebê humano
bretudo, para a alma (Rykwert, 1997). Talvez
inteiramente vulnerável, um adulto capaz de
queiramos dela mais do que ela pode dar. Tal-
lidar com as diversas situações que o estado
vez queiramos dela a segurança e o bem-estar
de desamparo o faz viver.
que a condição humana não permite obter.
É esse o fio condutor por mim persegui-
Em outras palavras, se do ponto de vista
do a partir da relação entre cidade e psiquismo
do “espírito objetivo“ a cidade se constrói pa-
extraordinariamente intuída pelo sociólogo
ra oferecer o espaço do abrigo às muitas ativi-
alemão. “Uma relação eterna, indissolúvel”,
dades humanas, para exercer o papel de sede
como a ela se referiu Thomas Bernhard (2006),
da atividade econômica, dentre tantas outras
ao escrever sobre Salzburg.
funções, do ponto de vista do “espírito subje-
Um segundo ponto a anotar à guisa de
tivo”, seria outro o tipo de reclamo humano ao
conclusão é que, uma vez tida como válida a
qual ela deveria atender.
hipótese levantada ao longo do texto, a cida-
Por fim, importa chamar a atenção do
de, inclusive em sua materialidade, não é algo
leitor para dois pontos, em particular. O pri-
apartado do sujeito. Não é apenas um invólu-
meiro diz respeito ao fato de que a experiên-
cro, não é um mero palco para as muitas ativi-
cia de desamparo deve ser vista não como
dades, tampouco a sua arquitetura é redutível
uma fatalidade, mas como um desafio, como
à simples construção de equipamentos. Com-
anota Rocha na obra já mencionada aqui.
preender a cidade como coisa humana impli-
Nesse sentido, diz ele, o desamparo é uma
ca reconhecê-la também como um fenômeno
experiência positiva porque, diferentemente
marcado pela subjetividade que caracteriza
de outras organizações psíquicas, abre para a
tudo que é humano.
alteridade. Assim, diferentemente do desespe-
É evidente que isso não significa de
ro, consequência de um grito que fica sem res-
modo algum desconsiderar ou minimizar as
posta, ainda seguindo Rocha, a experiência de
demais dimensões da cidade, seu “espírito
desamparo nos move na direção de encontrar
objetivo”, mas antes inquirir sobre sua alma
saídas para as muitas situações de profunda
precisamente como fez Simmel nos idos de
carência que a vida nos faz viver.
1903.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011
469
Lúcia Leitão
A cidade dos homens sempre nos fará
inquietos. Não há paz a esperar, diz Caligaris
existencial que nela se expressa de modo pleno e irrenunciável.
no texto já citado, mas será também sempre e
Sob esse modo de ver, como bem anotou
necessariamente a morada humana por exce-
Simmel, não nos cabe acusar nem perdoar, ape-
lência. Um espaço privilegiado para a aventura
nas, à semelhança de nós mesmos, compreender.
Lúcia Leitão
Doutora em arquitetura. Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano,
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, Pernambuco, Brasil.
[email protected]
Notas
(1) Manière de Voir. L´urbanisa on du monde. Le Monde diploma que. Paris, décembre 2010 - Janvier 2011, p. 5.
(2) Cidade dos homens é o tulo de um livro da professora emérita da UnB, Barbara Freitag, publicado no Rio de Janeiro pela editora Tempo Brasileiro em 2002.
(3) Et la planète devint ville é uma das matérias publicadas no n. 114 do Le Monde Diploma que e
refere-se ao período que vai de 1800 a 2000.
(4) A ideia de ambiente construído como um subs tuto do espaço uterino foi indicada por Freud
(2010 [1929-30], p. 451) “A casa, [é] um sucedâneo do ventre materno, a primeira morada [espaço que] ainda desejamos, onde estávamos em segurança e nos sen amos tão bem”. Tradução livre da autora a par r da edição francesa: “la maison d´habita on um subs tut du ventre
maternel, ce premier habitacle qui vraisemblablement est toujours resté objet de désirance, où
l´on était en sécurité et où l´on se sentait si bien”.
(5) O desconforto próprio dessa experiência originária surge na vida co diana em momentos de
perdas importantes a exemplo das situações de luto, de separações, de falta de, portanto, em
relação a um objeto ou a uma circunstância em que o amor, a presença, o cuidado do outro apazigua, ainda que momentânea e ilusoriamente, o estado de desamparo que nos faz humanos.
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BACHELARD, G. (1978). A poé ca do espaço. São Paulo, Abril Cultural (Col. Os Pensadores).
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011
A cidade de Simmel, a cidade dos homens
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NOTA: Parte das referências bibliográficas está indicada em francês, inclusive o texto de Simmel (Métropoles et mentalité), porque estou em Paris realizando estágio pós-doutoral (Universidade Paris-Descartes, Sorbonne). Por essa razão, não tenho à mão, em português, os textos aqui indicados em francês. Aproveito a oportunidade para registrar oficialmente os meus agradecimentos
à Capes, cuja bolsa de estudos me permite realizar o estágio referido.
Texto recebido em 4/nov/2010
Texto aprovado em 15/dez/2010
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011
471
Cidade pós-moderna,
gentrificação e a produção
social do espaço fragmentado
City postmodern gentrification and the social
production of fragmented space
Luís Mendes
Resumo
É indubitável que as últimas décadas têm assistido
à formação de um novo tipo de cidade a que, por
comodidade e na falta de melhor expressão, se designa de pós-moderna. A cidade compacta, de zonamento social estanque e de limites precisos, cujo
centro evidencia uma relativa homogeneidade social, estilhaça-se num conjunto de fragmentos distintos onde os efeitos de coesão, de continuidade e
de legibilidade urbanística dão lugar a formações
territoriais mais complexas, territorialmente descontínuas e sócio e espacialmente enclavadas. Daremos particular atenção às formulações teóricas
que defendem que essa tendência de gentrificação,
enquanto processo específico de recentralização
socialmente seletiva nas áreas centrais da cidade,
tem contribuído para a fragmentação social e residencial do espaço urbano contemporâneo.
Abstract
A new type of city has undoubtedly been taken
shape in latest decades which, by convenience
and lack of better wording, we call postmodern
city. The compact city, of sealed social zoning
and precise limits, whose centre shows a
relative social homogeneity is torn in a group of
distinct fragments where the effects of cohesion,
continuity and urban readability give way to more
complex and discontinuous territorial formations,
which are socially and spatially enclaved. We will
focus on theoretical formulations whose claims
are that the gentrification tendency, as a specific
process of socially selective recentring in the city’s
central areas, has contributed to a social and
residential fragmentation of contemporary urban
space.
Palavras-chave: gentrificação; fragmentação urbana; cidade pós-moderna; cultura de consumo;
esteticização da vida social.
Keywords: gentrification; urban fragmentation;
postmodern city; culture of consumption;
aestheticisation of social life.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011
Luís Mendes
Introdução
de aspectos que se encontram em relação de
descontinuidade com o passado, não significar
forçosamente que entre as diferenças não per-
Ao longo do último quarto de século, têm sur-
maneçam vestígios familiares e sinais de con-
gido reflexões pertinentes de que as cidades
tinuidade com a Modernidade. Um tipo de res-
do mundo ocidental ingressaram numa nova
posta às diversas transformações que se têm
Era da sua história. Essas ideias sugerem que,
vindo a processar no nível da condição urbana
conquanto ainda sejam cidades produzidas
consistiu na defesa do ponto de vista de que
por uma sociedade moderna, elas passaram
as mesmas representam variações de um tema
por mudanças de tal alcance que não podem
contínuo, manifestações da crise recorrente da
ser mais aceites pelas velhas designações, nem
cidade moderna. As mudanças são frequente-
estudadas no contexto das teorias urbanas
mente conceptualizadas apenas como sinto-
convencionais. Em resultado de todo um con-
mas passageiros no seio de uma modernida-
junto de transformações relacionadas com a
de urbana basicamente contínua e não como
reestruturação econômica global e a compres-
vestígios da emergência de uma forma de vida
são espacio-temporal propiciada pelas melho-
social urbana potencialmente nova.
rias significativas nos transportes e pelas no-
É indubitável que as últimas décadas
vas tecnologias da comunicação, as cidades de
têm assistido à formação de um novo tipo de
maior dimensão das sociedades capitalistas do
cidade a que, por comodidade e na falta de
mundo desenvolvido têm registrado alterações
melhor expressão, se designa de pós-moderna.
profundas em vários domínios fundamentais
A cidade compacta, de zonamento social es-
da vida urbana: na base econômica, na com-
tanque e de limites precisos, cujo centro evi-
posição sociocultural, na estrutura urbana, na
dencia uma relativa homogeneidade social,
política e gestão, entre outros. É já seguramen-
estilhaça-se num conjunto de fragmentos dis-
te consensual para um número crescente de
tintos onde os efeitos de coesão, de continui-
autores que se assiste, nas últimas décadas, à
dade e de legibilidade urbanística dão lugar
formação de um novo tipo de cidade que, por
a formações territoriais mais complexas, ter-
comodidade e na falta de melhor expressão, se
ritorialmente descontínuas e sócio e espacial-
designa de “pós-moderna”, “pós-industrial”
mente enclavadas. Esse processo deve-se, em
ou “pós-fordista”.
parte, ao fato de, desde finais dos anos 60, o
Porém, de fato, existem aspectos incon-
mercado de habitação das cidades do capita-
tornáveis na dinâmica urbana relativamente
lismo avançado, respondendo a uma crescen-
aos quais se poderá dizer, de há umas décadas
te fragmentação e complexidade sociais, ter
para o presente, que se está a experimentar
vindo a sofrer transformações significativas,
um período de transição de paradigma, sendo
através da emergência de novos produtos imo-
embora muitas as cautelas teóricas que cha-
biliários e de novos formatos de alojamento,
mam a atenção para o fato de a incidência
influenciando a organização espacial urbana
474
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011
Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado
no sentido de uma maior segregação a microescala (Smith, 1996). Nesse contexto, o processo de gentrificação pode ser encarado como
Da condição urbana
pós-moderna
um dos processos espaciais mais visíveis dessa
ampla mutação socioeconômica, como mate-
O conceito de pós-modernidade tem sido in-
rialização no espaço urbano desse profundo
vocado para descrever os desenvolvimentos
processo de reestruturação que experimentam
ocorridos num certo número de áreas, tais
as sociedades ocidentais de capitalismo avan-
como a arquitetura, a arte, a literatura, o ci-
çado, sob o signo de afirmação de uma condi-
nema, a música, a moda, as comunicações, as
ção pós-moderna.
experiências do espaço e do tempo, os aspec-
Daremos particular atenção às formula-
tos da identidade, assim como as respectivas
ções teóricas que defendem que essa tendên-
reflexões sobre essas e outras questões mais
cia de gentrificação, enquanto processo espe-
vastas da vida social empreendidas no âmbito
cífico de recentralização socialmente seletiva
da filosofia, da política e da sociologia e, tam-
nas áreas centrais da cidade, tem contribuído
bém, na geografia.
para a fragmentação social e residencial do
É vasta a literatura científica que acumu-
espaço urbano contemporâneo. A chegada de
la contribuições válidas em considerar a ques-
novos moradores à cidade centro, portadores
tão da pós-modernidade uma problemática re-
de um estilo de vida muito próprio, introduz
levante no discurso social, econômico, cultural
profundas alterações no tecido social e produz
político e epistemológico.1 A pós-modernidade,
uma apropriação social pontual e reticular do
não só como uma condição social, econômica
espaço da cidade. É da recentralização seleti-
e política contemporânea, mas também, e so-
va e da substituição social que a gentrificação
bretudo, como forma de reflexão e de resposta
enquanto processo de recomposição urbana
à acumulação de indícios sobre os limites e as
envolve, que devemos reter o tributo para a
limitações da modernidade. A pós-modernida-
construção de uma cidade crescentemente
de como condição indispensável de discussão
fragmentada. Assim, o presente texto trata-
das dúvidas, das incertezas e das ansiedades
-se de um ensaio teórico e exploratório dessa
que parecem cada vez mais ser o corolário de
problemática, desprovido de fundamentação
uma modernidade inacabada. A obra lapidar de
empírica direta, seguindo uma metodologia
Boaventura de Sousa Santos (1989) demonstra
hipotético-dedutiva, pelo que a sua constru-
que a ciência moderna se encontra mergulha-
ção parte de postulados ou conceitos já esta-
da numa profunda crise e que experimentamos
belecidos na literatura consultada, através de
uma época de transição paradigmática entre o
um trabalho lógico de relação de hipóteses,
paradigma da modernidade e um novo para-
que configura, a nosso ver, uma possível pers-
digma, de cuja emergência se vão acumulando
pectiva de interpretação dos fenômenos em
sinais evidentes, e a que, na falta de melhor de-
estudo.
signação, apelamos de pós-modernidade.
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475
Luís Mendes
Um dos primeiros pontos, senão o pri-
-moderna interceptou com frequência o da
meiro, que importa discutir a respeito da pós-
cidade (Cachinho, 2006). E existem análises
-modernidade é o de saber não só “o que
da modernidade do espaço urbano e das suas
significa”, mas também, e sobretudo, em caso
consequências que sugerem que é agora ne-
de significar algo, “qual o sentido daquilo que
cessário conceber e utilizar a noção de pós-
significa” (o que se pressupõe ser diferente
-modernidade para se conseguir compreender
daquilo que é designado por outros concei-
devidamente a condição urbana atual da gen-
tos e/ou paradigmas). O prefixo “pós-”, se é
trificação. Na verdade, a aplicação do adjetivo
certo que pretende expressar, antes de mais,
“pós-moderno” sugere que o fenômeno urba-
uma resposta à modernidade, quer como uma
no se acha hoje numa fase de transição, em
oposição/ruptura, quer como sua continuidade
que estão menos presentes as características
diferenciada, também remete, numa primeira
e os princípios que se lhe atribuíam no “perío-
abordagem, para um certo esgotamento das
do moderno”, senão mesmo correspondendo
taxinomias. Assim sendo, importa investigar
à ideia geral de um esgotamento da experiên-
se se pode mesmo falar da pós-modernidade
cia urbana que representou. Sugere-se implici-
como um novo paradigma (ou não paradigma)
tamente que os novos caracteres que se têm
e, em caso afirmativo, em que consiste e como
vindo a delinear ainda não configuram um
conceber os seus princípios teóricos. Não é esse
modelo coerente ao ponto de garantir uma
o objetivo do presente trabalho.
definição efetiva e uma aplicação completa-
Não obstante as críticas aos excessos do
discurso pós-moderno, o estudo do seu pensa-
mente descomplexada do adjetivo “pós-moderno” à cidade e ao espaço urbano.
mento afigura-se indispensável, pois se ainda
De acordo com uma aproximação em
que o debate teórico que originou repercutiu
termos de ciclos, podemos então pôr a hipó-
um escasso eco na geografia enquanto ciência
tese de que entramos num novo ciclo da vi-
espacial, a verdade é que as suas perspectivas
da da cidade, qualificado frequentemente de
de compreender o mundo e a ciência modifica-
pós-fordista. Essa denominação é também
ram as coordenadas de orientação da cultura
um pouco ambígua, pois supõe a superação
ocidental. Interessa-nos, todavia, e acima de
completa do fordismo e do paradigma do ciclo
tudo, produzir uma breve reflexão em torno
precedente, o que não é exatamente o caso. É,
do enfoque incontestável de interesse com que
todavia, já seguramente consensual para um
a pós-modernidade tem vindo a presentear a
número crescente de autores, que se assiste,
política da diferença, das “margens”, do con-
nas últimas décadas, à formação de um novo
sumo cultural e dos novos estilos de vida ur-
tipo de cidade que, por comodidade e na reco-
banos que marcam a paisagem da cidade con-
nhecida falta de melhor expressão, se designa
temporânea, a identidade “descentrada” do
de “pós-moderna”, “pós-industrial” ou “pós-
gentrifier e uma produção do espaço urbano
-fordista”.
fragmentado.
De um ponto de vista econômico, o novo
Nas últimas três décadas, o debate
ciclo que se inicia é marcado pela globalização
epistemológico e social sobre a condição pós-
(internacionalização), pela procura de novos
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Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado
tipos de produtividade, de flexibilidade, de poli-
constituído por diversos polos de emprego, de
valência, de procura sistemática da velocidade,
comércio, de serviços e de lazer, paralelamen-
da experimentação de novos modos de orga-
te a uma desconcentração das atividades e à
nização econômica, do desenvolvimento dos
redução da proeminência do centro tradicional
transportes e das telecomunicações. Em conse-
(Ascher, 1998).
quência disso, enquanto que a época fordista
Edward Soja (1994), ao apreciar o impac-
se mostrava dominada por uma tendência ge-
to da reestruturação urbana na estrutura socio-
ral para a concentração das atividades produti-
econômica dos espaços urbanos metropolita-
vas em grandes polos urbanos, o período mais
nos, nas relações de classe e na estratificação
recente assiste a uma presença simultânea de
dos rendimentos, na organização do trabalho e
impulsos centrífugos e centrípetos. Os primei-
no mercado imobiliário, bem como na própria
ros dizem respeito às atividades industriais e,
natureza da produção social e do consumo de
sobretudo, às que produzem bens de largo con-
bens e serviços, conclui que
sumo. Os impulsos centrípetos, em contrapartida, referem-se sobretudo às atividades terciárias mais qualificadas, da finança aos centros
de consultadoria e de marketing, da pesquisa
às atividades ligadas à cultura e à informação.
Essa transição para o novo regime de acumulação flexível de capital, lê-se no território através do aumento da fragmentação urbana e de
um mapeamento mais complexo das atividades
e das funções urbanas. Nas teorias da condição
urbana pós-moderna, a cidade é hoje apreendida como um “sistema complexo”, irredutível à
separação em funções elementares e em zonas
[...] paralelamente à estrutura espacial
da metrópole pós-moderna, o sistema
socioeconômico vem se tornando ao
mesmo tempo crescentemente segmentado e repolarizado, de um modo bem
diferente da “cidade dupla” convencional
do capital e trabalho, burguesia urbana
e proletariado urbano. Velhas e sólidas
hierarquias estão ruindo ou, pelo menos,
tornando-se instáveis e desorganizados
o suficiente para que nossas antigas teorias sociais sobre a cidade se apresentem
tão anacrônicas quanto nossas teorias
espaciais. (Ibid., pp. 162-163)
estanques. Ela deve ser concebida como uma
A cidade pós-moderna já não evidencia
realidade flexível que se pode adaptar e modi-
distinções sociais bem demarcadas no sentido
ficar ao longo do tempo, ao contrário da pro-
de se conseguir distinguir com clareza onde
dução massificada dos grandes conjuntos ha-
começa uma classe e onde acaba outra. Pas-
bitacionais, ilustração dramática da rigidez do
sa, na verdade, a possuir uma estrutura social
período moderno. O urbanismo deve ser “ágil”
mais desestabilizada e desorganizada, cuja
e realizar-se mais a partir de projetos urbanos
dualidade consiste, cada vez mais, numa “sub-
estratégicos do que de planos diretores. O pla-
classe” amorfa e heterogênea de novos po-
nejamento urbano deve ser mais pragmático,
bres urbanos e numa “superclasse” amorfa e
participado e elástico, promovendo a miscige-
heterogênea de executivos, empresários, entre
nação funcional e a polivalência. Todas essas
outros níveis profissionais mais qualificados e
características empurram a evolução da cidade
elevados socialmente. Essa estrutura social tí-
para um espaço crescentemente policêntrico,
pica da cidade pós-moderna deu origem a uma
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nova tipologia e vocabulário social, de que é
nível dos padrões de escolha, de (p)referência
exemplo o constante emprego de termos como
ao habitat (Ley, 1996).
os yuppies (young urban profissional people)
Como já foi referido anteriormente, o
e os dinks (famílias com double income, no
processo de gentrificação contextualiza-se no
kids). Ao fim ao cabo, a reestruturação urbana,
seio de uma ampla recomposição sociodemo-
na qual se insere o processo de gentrificação,
gráfica, traduzindo-se na constituição de uma
contribui para produzir uma cidade extraordi-
suposta “nova classe média” que se diferencia
nariamente volátil, segmentada, fragmentada,
da classe média tradicional (Ley, 1994, 1996;
descentralizada, amorfa e impressionantemen-
Butler, 1997). Os seus membros ocupam luga-
te heterogênea nas práticas socioculturais, nos
res em profissões tradicionais que tendem a
modos e estilos de vida e na organização espa-
crescer e em novas profissões no nível de ativi-
cial e na gestão de como o território é afetado
dades ligadas ao que Bourdieu (1989) apelidou
para cumprir uma diversidade funcional cada
de “produção simbólica”. São os intermediá-
vez maior.
rios culturais, ligados às indústrias culturais, às
A reestruturação da base econômica es-
artes, à publicidade, ao design, à moda, à cultu-
tá associada a uma progressiva desindustria-
ra, imagem e marketing, arquitetura e decora-
lização dos espaços urbanos e ao incremento
ção, entre outras.
da presença de atividades terciárias, fatores
que influenciam decisivamente a estrutura
funcional das cidades e que redefinem a sua
funcionalidade interna, já que se acelera o processo de substituição dos espaços de produção
pelos de serviços e de lazer. De fato, assiste-se
a uma profunda transformação da funcionalidade da cidade moderna, a qual assentava na
componente da produção. A transição da sociedade moderna para a sociedade pós-moder-
A gentrificação enquanto
estratégia urbana global
e os novos eufemismos
da regeneração urbana:
preliminares a uma
fragmentação socioespacial
na é caracterizada, entre muitos outros aspectos, por importantes alterações nos domínios
Voltando aos paradoxos inerentes à condição
demográfico e sociocultural – alterações na
urbana pós-moderna. O princípio da incerteza
estrutura e composição da família (crescimen-
revê-se na cidade pós-moderna, composta por
to do número de isolados, aumento das uniões
movimentos simultâneos antagônicos de des-
de fato e de casais sem filhos), crescente parti-
concentração e de recentralização, evidentes
cipação da mulher na esfera produtiva, acesso
também na mobilidade residencial intrametro-
ao ensino, democratização da educação, entre
politana, com os processos de suburbanização
outros. Todos esses fatores vêm igualmente
e de gentrificação, respectivamente. Existem
contribuir para a profunda alteração da estru-
áreas urbanas, entretanto, que atraem os in-
tura social e dos padrões, condutas e estilos
teresses dos grupos de estatuto socioeconô-
de vida a estas associados, nomeadamente, ao
mico mais elevado e se encontram em regiões
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Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado
também periféricas, em processo semelhante
urbano. Em diferentes graus e a partir sensivel-
ao dos subúrbios ricos norte-americanos, mas
mente dos anos 90, a gentrificação evoluiu em
com peculiaridades locais. Tais regiões normal-
muitos casos no sentido de uma estratégia ur-
mente são caracterizadas, principalmente, pela
bana crucial, ao serviço da ofensiva neoliberal
forte presença de condomínios fechados, en-
levada a cabo pelo setor privado, pelo mercado
quanto enclaves urbanos e fortificados de uma
em geral e pelos governos urbanos.
nova ordem privada. Exemplos típicos dessas
Segundo Savage e Warde (1993), para
áreas periféricas ricas no Brasil são a Barra da
que haja gentrificação no espaço urbano, tem
Tijuca, no Rio de Janeiro; Interlagos e os con-
de se dar uma coincidência de quatro proces-
domínios da Serra da Cantareira em São Pau-
sos: 1) uma reorganização da geografia social
lo e Mairiporã. Alguns condomínios existentes
da cidade, com substituição, nas áreas centrais
em cidades das regiões metropolitanas, como
da cidade, de um grupo social por outro, de
acontece com Alphaville e a Granja Viana, am-
estatuto mais elevado; 2) um reagrupamento
bos na Grande São Paulo. Assim, são também,
espacial de indivíduos com estilos de vida e
às vezes, considerados subúrbios ricos. Isso
características culturais similares; 3) uma trans-
ocorre, pois a conurbação entre as cidades faz
formação do ambiente construído e da paisa-
com que as áreas em redor da cidade central se
gem urbana, com a criação de novos serviços
tornem subúrbios devido aos crescentes movi-
e uma requalificação residencial que prevê
mentos pendulares de interdependência. Pode-
importantes melhorias arquitetônicas; 4) por
-se, falar, em alguns desses casos identificados
último, uma mudança da ordem fundiária, que,
e estudados por Flávio Villaça (1998) e Teresa
na maioria dos casos, determina a elevação dos
Caldeira (2008), em gentrificação dos espaços
valores fundiários e um aumento da quota das
periféricos, correspondendo àquilo que Neil
habitações em propriedade.
Smith (2002) caracterizou relativamente à difu-
Se bem que a definição clássica de gen-
são do fenômeno para além do característico
trificação lançada nos anos 70 diga respeito,
perímetro central (cidade centro, inner city). De
sobretudo, aos três primeiros aspectos, é de
anomalia local e esporádica, limitada à cidade
consenso geral que novas formas de gentrifica-
centro, a gentrificação passou a constituir-se
ção têm surgido – sobretudo no fim dos anos
como estratégia global ao serviço dos urbanis-
90 – e que uma renovada definição de gentri-
mo neoliberal e dos interesses da reprodução
ficação deverá se alargar, sobretudo ao último
capitalista e social, tendo-se generalizado por
aspecto, aquele que caracteriza o que de mais
todo o mundo urbano. É certo que, na reali-
específico existe no processo, à luz da evolução
dade, essa evolução evidencia-se de diferen-
das transformações significativas que o mer-
tes formas, em diferentes bairros e cidades, e
cado de habitação das cidades do capitalismo
segundo ritmos temporais diferentes. Por ser
avançado tem sofrido. A gentrificação trata-se
uma expressão da formação socioeconômica
de uma recentralização urbana e social seleti-
capitalista subjacente e mais ampla, a gentri-
va, alimentada por novas procuras, promotora
ficação numa cidade específica irá exprimir as
de uma crescente revalorização e reutilização
particularidades da constituição do seu espaço
física e social dos bairros de centro histórico,
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indiciando, por conseguinte, novos processos
urbanas, verificadas ao longo dos anos 80 e 90
de recomposição da sua textura socioespacial.
em muitas cidades e por vezes favorecidas ou
Essa tendência encontra-se associada à recom-
mesmo incentivadas pelas intenções políticas
posição do sistema produtivo, cuja evolução se
neoliberais dos governos urbanos. A gentrifi-
pauta por uma crescente terciarização e pela
cação, nesses casos, sofre mutações, pois dei-
emergência de um novo modelo de acumula-
xa de estar única e exclusivamente associada
ção capitalista mais flexível, que reconhece
à reabilitação urbana e passa a estar cada vez
no (re)investimento no centro histórico – de
mais ligada à regeneração ou mesmo à reno-
capital imobiliário, e na sua circulação – uma
vação de inteiros bairros de habitação, situa-
mais-valia. Atualmente, uma nova conjuntura
dos no centro ou nas suas proximidades e na
econômica revela a constituição de uma nova
sua substituição por conjuntos de construções
forma de gentrificação permeada por processos
de luxo, integrados, com serviços qualificados,
de promoção e marketing imobiliário submeti-
ou outras modalidades de residências de alta
dos à mediação do mercado e que, mais do que
qualidade, novos produtos imobiliários destina-
nunca, contribuem para transformar o espaço
dos a camadas de rendimentos elevados (Lees,
residencial da cidade centro em mercadoria.
Slater e Wyly, 2008).
Isso significa dizer que o momento atual
Já a meados dos anos 90, Neil Smith
do redesenvolvimento urbano sinaliza uma
(1996, p. 39) chamava a atenção de que
transformação no modo como o capital finan-
“ gentrification is no longer about a narrow
ceiro se realiza no espaço metropolitano de ho-
and quixotic oddity in the housing market but
je, contemplando a passagem da aplicação do
has become the leading residential edge of a
dinheiro do setor produtivo industrial ao setor
much larger endeavour: the class remake of
imobiliário, revelando que o espaço-mercadoria
the central urban landscape”. O que de mais
mudou de sentido com a mudança de orienta-
característico o processo de nova gentrificação
ção das aplicações financeiras dos promotores
salienta resulta, em parte, do desenvolvimento
imobiliários (Carlos, 2007). Essas tendências
irregular e flexível do mercado do solo
são muito evidentes numa extensão do con-
urbano, integrando-se no processo geral de
ceito de gentrificação a casos de renovação
acumulação flexível de capital, ao serviço dos
e regeneração urbanas. A gentrificação não é
interesses do mercado imobiliário neoliberal e
um fenômeno novo, contudo, as suas atuais
do desmantelamento do Estado-Providência
formas distinguem-se dos primeiros episódios
em matérias de habitação.
pontuais que se restringiam à cidade centro.
Como estudamos já noutros contex-
As principais diferenças entre as novas formas
tos (Mendes, 2008, 2010), a propósito da
de gentrificação dos anos 90 e a forma clássi-
gentrificação enquanto estratégia global ao
ca do fenômeno do início dos anos 70 são a
serviço do urbanismo neoliberal, Smith (1996,
escala e a extensão. Diversos estudos urba-
2001, 2002, 2005) deixa claro que os proje-
nos nos últimos quinze anos têm relacionado
tos de regeneração urbana, que suportam a
o processo de gentrificação com as numero-
promoção ideológica da gentrificação, alimen-
sas intervenções de renovação e regeneração
tam equívocos vários no que diz respeito às
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Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado
supostas intenções iniciais de reabilitação ha-
classes dominantes, em termos sociais e eco-
bitacional e integração/fixação da população
nômicos) e existe para servir os interesses do
de menor estatuto socioeconômico já anterior-
capital e não da maioria social. O mesmo pode
mente residente nos bairros da cidade centro
ser dito do Estado que, mesmo sob o disfarce
alvo de intervenção. De resto, nesses contextos,
liberal e formalmente voltado (no sentido de
o filtering up que a gentrificação pressupõe –
discurso teórico) para o interesse de toda a
pelo processo de substituição social que impli-
sociedade, representa particularmente sob es-
ca, de classes de menor estatuto socioeconômi-
te modo de produção a dominação da “classe
co pelas de maior – faz antever o acentuar dos
burguesa”, isto é, dos grupos de maior estatuto
traços de segregação socioespacial nas áreas
social e econômico e dos interesses do capital.
onde o fenômeno tem lugar. Nesses termos, ao
As intervenções públicas que provocam valo-
mesmo tempo que produto social e meio, o es-
rização da cidade desencadeiam mecanismos
paço é também instrumento da ação, meio de
contraditórios de expulsão e de reapropria-
controle, logo, de dominação e de poder, que
ção. As novas políticas urbanas traduzem uma
produz simultaneamente uma hierarquia dos
maior orientação para o mercado e para os
lugares centrada no processo de acumulação,
consumidores, em detrimento das classes mais
uma (re)centralização do poder. Imbuído de
desfavorecidas. O autor reconhece que, em
um papel de intervenção e crítica social, Neil
larga medida, o desenvolvimento de parcerias
Smith tem denunciado já há algumas décadas,
público-privado que nesse quadro é frequente
mas sobretudo recentemente, que o discurso
se desenhar, constitui um verdadeiro subsídio
“regenerativo” da gentrificação no âmbito de
aos mais ricos, ao tecido empresarial mais po-
políticas urbanas de valorização da imagem da
deroso e às funções e relações estratégicas de
cidade ainda que vise a fixação da população
controle, poder e dominação do espaço urba-
já existente, a modernização do tecido econô-
no, condição fundamental na perpetuação da
mico, o aumento do emprego e o crescimento
reprodução do capital, premissa essencial para
econômico; a verdade é que não deixa também
o suporte do sistema de produção e consumo
de funcionar como mecanismo de legitimação
capitalista. Tudo isso à custa dos investimentos
do poder instituído e da mobilização de grande
em serviços locais de consumo coletivo. É que
investimento público que, em última análise, é
se, em última análise, a atração e o crescimento
desviado do auxílio aos mais carenciados, fun-
propiciados pela gentrificação a todos benefi-
cionando como subsídio aos mais ricos (Banca,
ciam, em primeiro lugar ganham os promoto-
instituições financeiras, grandes grupos econô-
res imobiliários, as empresas e as instituições
micos e de construção civil, empreendedores,
financeiras, muito frequentemente à custa da
governantes, etc.).
expulsão dos residentes e das empresas mais
Como dedução preliminar dessas inten-
débeis dos lugares requalificados, lançados
ções, poderá dizer-se que Smith insiste nos
por via dessa (des)valorização, num processo
princípios que estabelecem que na socieda-
de exclusão. A seletividade dos investimentos
de capitalista o conjunto de leis que a regem
favorável à reprodução do capital implica o
é necessariamente burguês (sob domínio das
abandono, o esquecimento e a menor atenção
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à “cidade da maioria”, com particular gravi-
tudo é adaptado aos movimentos históricos e
dade para as áreas mais carenciadas onde se
cíclicos de investimento e desinvestimento de
concentram os mais desfavorecidos. É a emer-
capital no ambiente construído em meio urba-
gência da cidade revanchista produzida pela
no. Importando a tese de rent gap desse autor
ofensiva neoliberal e que Smith tem explorado
ao raciocínio de expansão da gentrificação na
mais recentemente (1996, 2001, 2002, 2005).
periferia urbana, quanto menores tiverem sido
O autor desvendou, dessa forma, a máscara so-
os investimentos na periferia, menores serão
cial de compreensão e “bondade institucional”
os desinvestimentos nos bairros abandonados
inerentes a estes recentes produtos imobiliários
da cidade centro, e menor terá sido a difusão
da nova gestão urbana, argumentando como
da gentrificação. Por isso mesmo, nas cidades
eles promovem uma lógica de controle social
em que a maior parte da extensão espacial é
favorável à reprodução do capital e às classes
mais recente, e nas quais as oportunidades de
dominantes.
desinvestimentos prolongados foram mais cir-
Do ponto de vista da emergência de novos produtos imobiliários e de novos formatos
cunscritas, do mesmo modo a difusão da gentrificação será limitada.
de alojamento no nível da gentrificação, com
À semelhança de outras formas socioes-
consequências na organização espacial urbana,
paciais como os centros comerciais regionais,
teremos de destacar os condomínios fechados
parques de escritórios, outlets, parques temá-
(Barata Salgueiro, 1994; Raposo, 2002; Caldei-
ticos, entre outros, os condomínios fechados
ra, 2008). A generalização dos condomínios
devem ser percebidos como um dos produtos
privados sob a forma de enclaves urbanos, es-
imobiliários que melhor preenche e caracteriza
pecialmente nos espaços periféricos, compro-
de modo distintivo a produção social do espa-
vam a mudança de escala de produção social
ço urbano da atualidade, estando associados
do espaço e de definição da gentrificação nas
a uma nova organização territorial da cidade,
últimas décadas. Estamos longe dos primórdios
frequentemente descrita como pós-moderna e
da gentrificação enquanto fenômeno urbano
fragmentada.
anômalo, ligeiro e banal, circunscrito à cidade centro. Presencia-se, na atualidade, a uma
fronteira da gentrificação que transbordou os
limites do perímetro central da cidade e se
estendeu a espaços e dinâmicas imobiliárias
mais amplas, incluindo as construções antigas
e ainda intatas, nos distritos mais afastados
Fragmentação, apropriação
pontual e reticular do espaço
urbano e descentração
do gentrifier
que foram atingidos pelo fenômeno. Segundo
Smith (2002), o modelo de difusão varia bas-
A gentrificação é sempre, por definição, um
tante e é influenciado por elementos relacio-
processo de “filtragem social” da cidade. Vem
nados com a arquitetura, com condições/ame-
despoletar um processo de recomposição so-
nidades ambientais únicas, tais como parques
cial importante em bairros antigos das cidades,
verdes ou espelhos de água, mas acima de
indiciando um processo que opera no mercado
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Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado
de habitação, de forma mais vincada e concre-
cidade, quer na natureza cada vez mais polié-
ta nas habitações em estado de degradação
drica e camaleônica da sua identidade, inerente
dos bairros tradicionalmente populares. Cor-
à sua condição de indivíduo na cidade pós-
respondendo à recomposição (e substituição)
-moderna, como desenvolve Cachinho (2006) a
social desses espaços e à sua transformação
propósito do consumidor.
em bairros de classes média, média-alta, não se
Por fragmentação do território deve
pode deixar de referir, por conhecimento des-
entender-se “uma organização territorial mar-
te processo de “substituição social”, o reforço
cada pela existência de enclaves territoriais
da segregação socioespacial na sua sequência,
distintos e sem continuidade com a estrutura
aprofundando a divisão social do espaço urba-
socioespacial que os cerca” (Barata Salgueiro,
no. A verdade é que a apropriação pontual do
1998, p. 225). A autora faz notar que o que de-
espaço, característica da gentrificação, introduz
fine o enclave não é tanto a sua dimensão (que
mudanças na escala da segregação sociorre-
se podia pressupor reduzida), mas o tipo de re-
sidencial produzida. Esta far-se-á, doravante,
lação (ou melhor a não relação) com as áreas
e contrariamente ao que acontecia na cidade
envolventes que lhe são contíguas em termos
moderna, a uma escala micro de maior com-
territoriais, porém, desprovidas de continui-
plexidade, baralhando o primórdio da divisão
dade social e funcional. O processo de gentri-
social da cidade em manchas homogêneas,
ficação que ocorre na cidade centro de várias
inerente ao princípio de zonamento funcional
metrópoles do mundo de capitalismo avançado
associado à cidade industrial.
aparenta, assim, corroborar a tese, advogada
Assim, quando se assiste à emergência
por Barata Salgueiro (1997, 1998, 1999, 2001),
de empreendimentos destinados à habitação
da cidade pós-moderna, enquanto espaço frag-
de grupos de estatuto socioeconômico mais
mentado. A cidade compacta, de limites preci-
elevado em bairros históricos de características
sos, cujo centro evidencia uma relativa homo-
essencialmente populares, verdadeiros encla-
geneidade social, estilhaça-se num conjunto de
ves de luxo no seio de áreas de residência de
fragmentos distintos onde os efeitos de coesão,
classes baixas, facilmente se conclui que a gen-
de continuidade e de legibilidade urbanística
trificação é um exemplo de uma nova organiza-
dão lugar a formações territoriais mais com-
ção do espaço urbano, reforçando uma estrutu-
plexas, territorialmente descontínuas e sócio e
ra fragmentada, típica da cidade pós-moderna.
espacialmente enclavadas (Graham e Marvin,
Queremos, todavia, realçar que uma caracte-
2001). É, igualmente, nesse sentido que Sposito
rística central das geografias pós-modernas da
(2011) defende que se devem ler as geografias
gentrificação é a fragmentação urbana, e que
das áreas, dos eixos, das redes e dos fluxos não
deriva da recentralização seletiva inerente ao
apenas como continuidades, mas também co-
processo. Essa fragmentação encontra-se pre-
mo rupturas, não apenas como partes de uma
sente quer na implantação pontual dos novos
totalidade, mas como fragmentos que podem
produtos imobiliários dirigidos aos potenciais
não compor uma unidade coesa.
gentrifiers, quer na apropriação socioespacial
As implantações dos projetos imobiliá-
descontínua que o gentrifier faz do bairro e da
rios dirigidos aos gentrifiers apresentam um
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Luís Mendes
caráter pontual, introduzindo uma diferença
relação à ordem próxima e à ordem distante,
brusca em relação ao tecido social envolvente.
num período em que as tecnologias da infor-
A estrutura urbana que promovem caracteriza-
mação e da comunicação se combinam com as
-se pela emergência de enclaves que são dis-
formas de deslocamento material de pessoas e
sonantes no seio de um tecido com uma certa
mercadorias (Sposito, 2011).
homogeneidade socioespacial. Digamos que
O território urbano apresenta, atualmen-
existe contiguidade espacial, mas não continui-
te, novos moldes de organização espacial, uma
dade social e funcional, pelo que preodomina
nova construção e funcionamento do espa-
a dessolidarização do entorno próximo, pois os
ço, através daquilo a que Santos (1988, 1994,
novos moradores e as atividades em que par-
2006) designou por uma diferenciação entre o
ticipam produzem-se cada vez mais em redes
peso das horizontalidades e verticalidades. En-
de relações. Cada gentrifier constrói assim uma
quanto as horinzontalidades são os domínios
rede de ligações sociais transversal aos vários
da contiguidade, dos lugares vizinhos reunidos
espaços de residência, pelo que os laços fortes
por uma continuidade territorial, uma mesma
de solidariedade e de amizade tendem a ultra-
realidade socioespacial – modo preferencial
passar a geografia do bairro.
e dominante de organização do espaço na ci-
Na cidade pós-industrial assiste-se a
dade dita industrial; as verticalidades são for-
uma gradual perda de importância do fator
madas por pontos distantes uns dos outros,
“proximidade territorial” na estruturação das
que apenas as práticas sociais unificam, isto é,
relações sociais. De fato, o “próximo” deixa de
ligados por formas e processos sociais desen-
ser o “mesmo”. As relações sociais dos novos
volvidos num espaço-rede. É a noção de rede
moradores estão cada vez menos focalizadas
que constitui a realidade da nova organização
no espaço do bairro e nos vizinhos. Cada indi-
espacial e na qual Santos constrói o conceito
víduo pode combinar à sua maneira a relação
de verticalidades. Esse autor contraria, contu-
de proximidade e a relação de distância, numa
do, a ideia de substituição simples do chamado
diversificação profusa de relações com os mais
“espaço banal” pelo espaço em rede:
diversos círculos sociais (Remy, 2002; Navez-Bouchanine, 2002; Miguel do Carmo, 2006).
Isso graças, entre outros fatores, às melhorias
nos transportes e comunicações, que reestruturam o padrão das acessibilidades individuais,
libertando muitas localizações dos constrangimentos da proximidade (Barata Salgueiro,
1998; Poche, 1998). Não é possível ver a cidade
atual como unidade, pois não parece haver o
dentro e o fora, até porque não é possível mais
delimitá-la, já que mesmo que se procure delimitar, as interações espaciais colocam em
484
Mas além das redes, antes das redes,
apesar das redes, depois das redes, com
as redes, há o espaço banal, o espaço de
todos, todo o espaço, porque as redes
constituem apenas uma parte do espaço e espaço de alguns. O território, hoje,
pode ser formado de lugares contíguos
e de lugares em rede. São, todavia, os
mesmos lugares que formam redes e que
formam o espaço banal. São os mesmos
lugares, os mesmos pontos, mas contendo simultaneamente funcionalizações
diferentes, quiçá divergentes ou opostas.
(Santos, 1994, p. 16).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011
Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado
É recuperando esse raciocínio de Santos
que se poderá deduzir que os lugares da gentrificação tanto podem participar nas ditas
verticalidades como nas horizontalidades. Se
a população autóctone nos bairros gentrificados privilegia uma apropriação social do espaço típica das horizontalidades, na população
gentrifier, por ser dotada de maior capacidade de mobilidade, predominará uma redução
das possibilidades de afirmação das formas
de viver cujas práticas de sociabilidade sejam
A nova metrópole é crescentemente
“descentralizada” e cada vez mais um
mosaico de desenvolvimento geograficamente desigual sobreposto às lentas
concentricidades e cunhas setoriais da
clássica cidade capitalista industrial. A
mistura das novas e velhas formas (visto
que as velhas certamente não desapareceram) está hoje desafiando nossas definições convencionais de urbano, suburbano, exurbano e rural, obrigando-nos a
repensar as premissas básicas da teoria e
da análise urbanas.
baseadas numa espacialidade contígua, na vizinhança do bairro. As práticas culturais e so-
Para Carlos (1994, 2007, 2008), a frag-
ciais dos gentrifiers reproduzem, em princípio,
mentação do espaço urbano encontra-se inti-
formas de apropriação do espaço que são con-
mamente associada com o processo de globa-
comitantes com a fragmentação das formações
lização econômica e cultural que produz mo-
territoriais. A gentrificação insere-se, por conse-
delos éticos-estéticos, gostos, valores, modas,
guinte, no contexto contemporâneo de desen-
comportamentos, representações, e se cons-
volvimento das relações sociais, caracterizado
titui, por via da fragmentação do espaço, um
pela fragmentação que faz explodir os terri-
elemento fundamental a ter em conta na repro-
tórios anteriormente encerrados em moldes
dução das relações sociais, no quotidiano, em
rígidos de zonamento social e funcionalmente
que a apropriação social do espaço é maiorita-
homogêneo. A estrutura social e funcional dos
riamente mediada pelo valor signo/mercadoria.
lugares, anteriormente homogênea e relativamente uniforme (característica da cidade industrial), apresenta-se, atualmente, retalhada
por uma espacialidade fragmentada, claramente mais heterogênea típica da chamada cidade
pós-moderna, comparativamente à anterior.
As dinâmicas territoriais do desenvolvimento
das metrópoles ditas pós-modernas deixam de
Esta fragmentação que se aprofunda divide o espaço em parcelas cada vez menores, que são compradas e vendidas no
mercado, como produtos de atividades
cada vez mais parceladas. Mundializado,
o espaço fragmenta-se por meio de formas de apropriação para o trabalho, para
o lazer, para o morar, para o consumo, etc.
(Carlos, 1994, p. 193)
apresentar uma estrutura decisivamente monocêntrica, tão determinadas por um modelo de
O problema da identidade moderna era
organização espacial tão singularmente pola-
o de como se construía uma identidade, man-
rizado por forças centrífugas e centrípetas. No
tendo-a sólida e estável. O problema da iden-
dizer de Soja (1994, p. 154)
tidade pós-moderna é, em primeiro lugar, o de
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485
Luís Mendes
como evitar a fixação e manter as opções em
pode ser entendida como o projeto de tornar
aberto. No contexto da cidade pós-industrial,
a vida uma obra de arte, enquadra-se neste
as diferentes apropriações do espaço derivam
contexto e empresta as figuras do dandy, do
da agregação temporária e fluída, estabelecida
flâneur, personificações do estilo de vida boê-
entre as várias ligações sociais (Bauman, 1995,
mio e blasé, que privilegia as sensações e as
2000, 2004) ou, dito de outro modo, decorrem
experiências de vida na produção do entendi-
da agregação das várias escolhas e vontades
mento da realidade social, ao perfil social do
interindividuais. As “velhas” identidades, que
gentrifier (Bowler e Mcburney, 1991), bem co-
por tanto tempo estabilizaram o mundo social,
mo, em geral, à vida mental das grandes me-
estão em declínio. Novas identidades surgiram,
trópoles, tal como teorizado por Georg Simmel
entretanto, deixando o indivíduo moderno frag-
(2009 [1903]).
mentado, subscrevendo trajetórias múltiplas e
O discurso simmeliano foi profícuo e vi-
fluentes. A “crise de identidade” faz parte de
sionário em analisar o papel da grande cidade
um processo amplo de mudanças que, segun-
no decurso da fase madura da civilização indus-
do Hall (2005), está a deslocar as estruturas e
trial de finais do século XIX e início do século
os processos centrais das sociedades moder-
XX. Juntamente com o dinheiro e favorecendo
nas e a abalar os quadros de referência que
um modo de vida mais heterogêneo, multipli-
davam aos indivíduos uma ancoragem estável
cando e misturando as diferenças, fomentan-
no mundo social. A apropriação do espaço
do a tolerância, acelera-se o tempo histórico,
particulariza-se em função das diferentes rami-
cultiva-se a originalidade mesmo se expressa
ficações que estruturam a vivência quotidiana
no exagero, alarga-se o espaço de ação, da
do indivíduo, doravante, cada vez mais frag-
iniciativa e da concorrência, fazendo emergir
mentada (Miguel do Carmo, 2006).
o comportamento blasé. Paradoxalmente, este,
Esses são os elementos centrais da ce-
que vive em plena ebulição das diferenças e da
lebração pós-moderna das dimensões frag-
novidade, arrastado pela crescente mobilidade
mentadas e multidimensionais da experiência
social e pela multiplicação dos vínculos ocasio-
socioespacial do gentrifier, indo de encontro
nais ou meramente formais, submerge cada vez
à obra de Deleuze e Guattari, e também à de
mais na indiferença do meio urbano, assolado
Lyotard, onde se sublinha o fato de a experiên-
pela racionalidade objetivante e instrumental.
cia contemporânea ser uma de fragmentação,
Simmel (2009 [1903], pp. 84-87) escreve:
desordem e polivalência. Ora, esses atributos
estendem-se da identidade social ao território
urbano. As geografias pós-modernas da gentrificação atacam a ontologia unidimensional
imposta pelo estruturalismo, nomeadamente
o ímpeto de controlo e de certeza que tenta
categorizar o sujeito gentrifier como unificado
e o seu perfil como perfeitamente tipificado.
A tendência de estetização da vida social, que
486
Os mesmo fatores que, assim, na exatidão e na precisão de minutos da forma
de vida, convergem para uma formação
da mais alta impessoalidade, atuam, por
outro lado, de um modo altamente pessoal. Talvez não haja nenhum fenômeno
anímico, que esteja reservado de modo
tão incondicional à grande cidade, como
o caráter blasé. [...] Nela culmina de certo
modo aquele resultado da concentração
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Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado
de homens e coisas que estimula o indivíduo à sua máxima atuação nervosa:
através da simples intensificação quantitativa das mesmas condições, este resultado inverte-se no seu contrário, no
fenômeno peculiar de adaptação que é
o caráter blasé, em que os nervos descobrem a sua derradeira possibilidade de se
ajustar aos conteúdos e à forma da vida
na grande cidade, renunciando a reagir a
ela [...]. Simmel conclui, contudo, que o
que pode aparentar ao cientista do social
e urbano como uma dissociação na configuração da vida na grande cidade, é, na
realidade, apenas uma das suas formas
elementares de socialização.
referências, mutável, além do mais, em função
dos ciclos de vida, confere uma componente
camaleônica ao modo de vida urbano típico do
gentrifier, donde advém uma aparência caótica
e uma dificuldade acrescida de operacionalização de categorias metodológicas capazes de
detectar as práticas (Beauregard, 1986).
Nos trabalhos de Deleuze e Guattari
(1995, 2004) essa permeabilidade e contingência espaciais são expressas pela metáfora
do rizoma, uma concepção pós-estruturalista
de estrutura, em que as ligações são sempre
(des)construídas em níveis diferentes e dentro de múltiplas ordens de escalas territoriais.
A tradicional e bem definida correspon-
É nesse sentido que se afigura com bastante
dência entre dado estatuto socioeconômico e
dificuldade construir um modelo genérico da
consumo e práticas sociais, com disposição ter-
apropriação social do espaço segundo a con-
ritorial em mancha homogênea contínua (típica
dição urbana pós-moderna, visto ser grande a
da cidade industrial moderna), desmembrou-se,
heterogeneidade das formas de apropriação do
na medida em que a maior parte dos estatu-
espaço e do tempo em diferentes e justapostos
tos culturais atuais se encontram localizados
contextos societários (Barata Salgueiro, 2002).
em redes difusas, cuja pertença deriva menos
O desenvolvimento da sociedade de con-
do local de residência, das relações familiares
sumo disponibiliza um tal número de alternati-
ou do meio socioeconômico. Nesse contexto,
vas identitárias que torna impossível de dedu-
Sposito (2011) frisa que não existe unidade
zir ou relacionar determinado tipo de práticas
espacial na cidade atual, pois a ação sobre o
culturais à espacialidade a que está implicita-
espaço e a sua apropriação são sempre par-
mente associado determinado estatuto socioe-
celares. Diferentes pessoas movimentam-se e
conômico do gentrifier. Pode-se dizer, no segui-
apropriam-se do espaço urbano de acordo com
mento da proposta de Barata Salgueiro (1997),
diferentes modos que lhe são peculiares, se-
que se tende para uma apropriação pontual do
gundo condições, interesses e escolhas que são
território urbano, em detrimento da tradicional
individuais, mas que são, simultaneamente, de-
apropriação extensiva e em mancha de uma
terminados historicamente, segundo diversas
determinada zona. O território continua a par-
formas de segmentação: idade, perfil cultural,
ticipar na identificação dos indivíduos, contu-
condições socioeconômicas, categoria socio-
do, a apropriação é agora mais seletiva e feita
profissional, preferências de consumo de bens
em um nível micro, quando interdependências
e serviços, bem como configuração dos estilos
funcionais ou de interesses se sobrepõem à
de vida, etc. A multipertença simultânea de ca-
solidariedade de vizinhança e às dependências
da indivíduo a diversos grupos com diferentes
de proximidade, na base das relações sociais.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011
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Assume relevância o aumento da diversidade
simultâneo por vários grupos sociais, segundo
social associada a novos padrões de consumo,
apropriações sincrônicas, em que cada uma de-
à pluralidade de estilos de vida que produzem
las lhe imprime uma lógica correspondente ao
novas e diversificadas procuras culturais. A
seu modelo societário, mas em descontinuida-
gentrificação assiste, enquanto fenômeno de
de com a presente na realidade socioespacial
reestruturação urbana, a um aprofundamento
do grupo vizinho.
de especificidades e particularismos sociais,
As novas formas territoriais nas quais se
que se refletem numa crescente diferenciação
podem reconhecer fragmentação e diminuição
das práticas sociais e culturais. Estas, por sua
ou mesmo desaparecimento da contiguidade
vez, espelham-se em espacialidades em rede,
não podem ser lidas apenas como um mero
formando um tecido social complexo e difícil
processo decorrente das novas tecnologias
de decifrar. O movimento teórico no sentido
da comunicação, informação e mobilidade.
da teorização das questões de pequena esca-
Deverão também ser percebidas como tradu-
la num contexto de forças mais amplas tem
zindo um padrão espacial de organização do
desviado o movimento de estudo das forças
território pelo indivíduo que é mais complexo
maiores produtoras da gentrificação. São os in-
e heterogêneo, mas também camaleônico, cor-
dícios de um espaço urbano mais diferenciado,
roborando a representação que aquele projeta
fragmentado e poliédrico, que anunciam uma
de si através da adesão mais fugaz, efêmera e
condição pós-moderna da vida social.
segmentada a hábitos, valores, comportamen-
Para Nicolas (1994), a fragmentação na
tos e estilos de vida, de acordo com os gostos
apropriação social do espaço e do território
ou preferências do momento. Essa vontade de
decorre em larga medida das transformações
hiperescolha acarreta diversas consequências
recentes no nível da economia e das inovações
que levam a uma reorganização importante
tecnológicas, das quais resulta um novo modo
das relações sociais e do próprio território. Em
de articulação entre o espaço e o tempo, que o
primeiro lugar, provocam uma rejeição, por par-
autor identifica como a “simultaneidade espa-
te do novo morador, de tudo quanto é visto co-
ço-tempo”, isto é, a possibilidade de que em
mo entrave ou simplesmente risco de entrave à
diferentes setores territoriais ocorram fenôme-
liberdade de escolha e de comportamento pes-
nos interligados. A nova apropriação social do
soal. Desse modo, verifica-se com frequência
espaço pelos vários grupos sociais passa a ser
uma desvalorização das relações de vizinhan-
mediada pelo individualismo contemporâneo,
ça, na medida em que o vizinho é considerado
o que a torna menos susceptível a tipologias
como susceptível de interferir a qualquer mo-
de classificação e a correspondências socio-
mento em todos os aspectos da vida quotidia-
espaciais. A fragmentação do espaço urbano
na. A partir daí, manifesta-se uma vontade de
implica modificações nas leituras possíveis de
distanciamento tanto mais forte quanto mais
uso do território. Este deixa de poder ser en-
espacialmente próximo for o vizinho e quanto
tendido segundo uma leitura unidireccional e
alguns espaços forem de uso comum.
linear, no sentindo de continuidade, para passar a ser entendido como susceptível de uso
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Novamente recorrendo aos escritos de
Simmel (2009 [1903], pp. 88 e 89):
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Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado
O estádio mais antigo das formações
sociais, que se encontra tanto nas formações históricas como naquelas que
hoje se instituem, é este: um círculo relativamente pequeno, com um fechamento
forte perante círculos vizinhos, estranhos
ou de algum modo antagônicos, mas
com uma união tanto mais estreita em si
mesmo, que faculta ao membro singular
apenas um espaço restrito para o desdobramento das suas qualidade peculiares
e de movimentos mais livres, de que ele
próprio é responsável. [...] Na medida em
que o grupo cresce, numérica e espacialmente, em significado e em conteúdos de
vida [...], o indivíduo ganha liberdade de
movimento, muito para lá da circunscrição inicial, ciumenta, e uma peculiaridade
a que a divisão do trabalho proporciona
oportunidade e urgência.
pp. 89 e 94) defende ainda, a este propósito: “a
brevidade e a raridade dos encontros com os
outros, dispensados a cada indivíduo” conduzem à definição da
[...] tentação de se apresentar de modo
mais notório, concentrado e, quanto possível, característico [...] que parece ser o
motivo mais profundo pelo qual justamente a grande cidade sugere o impulso
para uma existência pessoal mais individualizada [...] que faz explodir o enquadramento do todo.
Sem dúvida que o espaço social urbano
da gentrificação se encontra, atualmente, integrado em forma reticular, não dependendo
tanto dos espaço vizinhos imediatos quanto de
lógicas extraterritoriais e não raramente extranacionais, sendo que estas últimas represen-
Essa desvalorização das relações de vizi-
tam justamente o avanço da integração da ci-
nhança é compensada por diversas tendências
dade no movimento da globalização econômi-
que vêm, de algum modo, preencher as perdas
ca e cultural (Butler e Robson, 2001a, 2001b).
que esse comportamento implica. Lembremos
A sincronia na retícula não obriga, contudo, à
que nos colocamos aqui na perspectiva de uma
uniformidade com outras redes, pelo que cada
classe média em trajetória social ascendente
gentrifier poderá estabelecer ou reforçar a seu
em sociedades contemporâneas e que as ca-
belo prazer as redes de sociabilidade que bem
racterísticas que evocamos são susceptíveis
entender, independentemente da existência ou
de articulação, ou mesmo de contradição, para
não de contiguidade territorial.
outras posições. Assim, em face dessa desvalo-
Seria pouco consistente afirmar que a
rização das relações de vizinhança, essa classe
lógica da apropriação social do espaço típica
média tende a desenvolver redes de relações
da cidade fordista é uma etapa totalmente ul-
funcionais, isto é, relações que não implicam de
trapassada e, por isso mesmo, que a sua lógi-
forma definitiva e global e que são escolhidas
ca espaço-temporal baseada na contiguidade
em função da utilidade que se reconhece ne-
territorial e na unidade funcional e social de
las. O projeto individual tornou-se a condição
cada setor urbano houvesse desaparecido por
primeira da eficácia coletiva, na medida em
completo. Pouco consistente parecem também
que permite valorizar a lógica das escolhas e as
as perspectivas teóricas que negam a fragmen-
modalidades novas de sociabilidade, tendo-se
tação espacial da cidade pós-fordista e a apre-
tornado, igualmente, no princípio máximo de
sentação de novas articulações espaciais, em
fragmentação social e territorial. Simmel (ibid.,
que a apropriação social do espaço se processa
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011
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por via de complexas redes de sociabilida-
pontos distantes uns dos outros, ligados por
de parciais que permitem a integração, num
práticas culturais e padrões de vida social. Essa
mesmo espaço, de um movimento sincrônico
situação é a responsável pelo padrão espacial
de diversos modelos societais de acordo com
difuso da rede de práticas e apropriação social
o diferencial de grupos sociais que daquele
do espaço, deixando estas de assumir qualquer
usufruem. Esse reconhecimento da existência
tipo de continuidade territorial.
e do funcionamento complexo e sincrônico de
Aceita-se hoje que nas situações sociais
diferentes lógicas socioespaciais, mesmo em
do seu quotidiano, os sujeitos atuam de acordo
espaços reduzidos no interior das áreas metro-
com as suas competências identitárias que, ao
politanas, como seja o espaço-bairro coloca a
contrário do que sucedia na modernidade, não
necessidade ao geógrafo de rever o conceito de
são mais estáveis e rígidas, mas tornaram-se
espaço social e requer, necessariamente, o pri-
transitórias, efêmeras e plurais. São objeto da
vilégio de estudos de escala micro.
multiplicidade de escolhas e de possibilidades
e, como tal, não permitem o delimitar de um
padrão espacial bem definido. Eminentemente
Considerações finais
relacional e interativa, a identidade mostra-se contingente e remete para uma estrutura
pessoal, afetiva, subjetiva que é progressiva e
O aumento da mobilidade pelo acesso gene-
continuamente (re)construída pelos próprios
ralizado ao automóvel, a quantidade de infor-
sujeitos (Fortuna, 1994).
mação recebida (importância dos mass media),
A variedade, a justaposição e sobreposi-
o desenvolvimento das novas tecnologias de
ção de narrativas e parâmetros interpretativos
comunicação, permitem uma maior diversida-
sobre o mundo e a vida, sobre as identidades
de de contatos entre os indivíduos que se seg-
sociais, revelam como estas últimas vão sendo
mentam e desmultiplicam em diversos papéis
hoje destruídas de modo acelerado, cedendo
e identidades, mas também pertencem a diver-
lugar a identidades mais ou menos momen-
sas redes de práticas socioculturais (algumas
tâneas e desordenadas. Aquilo a que Fortuna
virtuais como a Internet) que se traduzem em
(ibid.) designou por a “destruição criadora”
espacialidades de consistência territorial frag-
das identidades. Esse contínuo reajustamento
mentada e difusa, em práticas culturais parti-
das matrizes identitárias dos sujeitos impõe a
lhadas por diversos lugares afastados entre si
necessidade de revisão do significado atribuí-
e sem continuidade territorial. Para muitos in-
do aos eixos primordiais em que assentam as
divíduos, a espacialidade de determinada prá-
identidade típicas da modernidade: a classe
tica sociocultural já não é mais definida pela
socioeconômica, o gênero, a condição labo-
continuidade territorial, mas pelo frequentar
ral, o estatuto educativo e familiar. Assiste-
de uma série de lugares, pontos que apenas
-se atual mente ao descentramento dos su-
as práticas de cada um unificam e dão sentido
jeitos e à problematização das identidades.
como conjunto. De fato, cada vez mais os espa-
A tendência parece ser a da busca narcisista
ços de ação dos indivíduos são formados por
da autossatisfação que se faz acompanhar da
490
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Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado
construção de personalidades errantes, desti-
É a partir do princípio do processo de
tuídas de vínculos e compromissos duradouros
personalização que o coletivo social se organi-
e sim mais aptos a adesões fugazes a novos
za e orienta. Novo modo de comportamentos
“centros” em emergência. O hedonismo pós-
e que no nível das práticas, vivências, valores
-moderno anda a par com tendências profun-
e representações da cidade implica uma con-
das de avanço do individualismo (por meio da
figuração das práticas e estilos de vida da
autonomia individual e especificidade pessoal,
urbanidade segundo um contexto de distinção
nas palavras de Simmel), ambos alimentados
social da individualidade (a necessidade da di-
pelas relações quantitativas, objetivas e fun-
ferença em Simmel, alimentada paradoxalmen-
cionais da grande cidade, ambos ancorados na
te pela tendência de esmagadora igualização
noção de liberdade que o ambiente social ur-
em meio urbano), que permita o mínimo pos-
bano confere e permite desde tempos imemo-
sível de coação, austeridade, constrangimento
riais, configurando o protótipo da vida mental
e o máximo possível de opções, desejo e prazer.
na metrópole (pós)moderna já estudado pela
Esse processo de personalização que se esten-
análise simmeliana.
de aos mais variados quadrantes da vida e da
Ley (1986, 1994, 1996) deixa também
atividade humana está na origem de uma in-
muito claro que muito do que se reflete no
tensa diferenciação social da estrutura urbana,
processo de gentrificação resulta de mudanças
contribuindo para aquilo que alguns autores
no domínio social e cultural que não só reper-
designam por fragmentação territorial e que
cutem implicações pontuais nas práticas e vi-
se tem vindo a aprofundar ao longo do último
vências quotidianas ou nos modelos de repre-
século, com maior intensidade nas últimas qua-
sentação e valores desses setores sociais mais
tro décadas de capitalismo avançado e tardio.
específicos, mas como também se têm vindo
É em grande medida a fragmentação/diferen-
a reforçar no conjunto da estrutura social das
ciação social que estrutura uma fragmentação
sociedades ocidentais contemporâneas. É o
territorial.
caso da emergência do que Lipovetsky (1983)
Esse processo de personalização orienta
definiu como o individualismo contemporâneo.
toda a configuração da estrutura motivacional
O universo contemporâneo, dominado pelos
do gentrifier e aplica-se no âmbito das práticas
objetos, pelas imagens, pela informação e pe-
inerentes ao processo de gentrificação, na me-
los valores hedonistas e permissivos, pela re-
dida em que o sucesso das áreas centrais da
volução do consumo, pelo culto da libertação
cidade e a eficácia do seu eixo de atratividade
pessoal e da descontração gerou uma nova
territorial variam em razão direta do grau de
forma de controle dos comportamentos, uma
satisfação daquele processo de personalização.
diversificação e transformação dos estilos de
Este domina profundamente todos os aspec-
vida, uma oscilação constante das crenças e
tos subjacentes ao fenômeno da gentrificação
dos papéis sociais assumidos. Melhor dizen-
(possibilidade de apropriação dos aspectos his-
do, trata-se de uma nova fase na história do
tóricos, patrimoniais e arquitetônicos das áreas
individualismo ocidental, a do processo de
antigas da cidade), uma vez que, doravante e
personalização.
na esfera da oferta por parte dos promotores
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imobiliários e no campo da produção em geral,
espaço-bairro histórico enquanto meio cons-
todos estes se fixam na prioridade de maximi-
trutivo da identidade do gentrifier não se coa-
zar a satisfação das motivações e desejos do
duna com a aplicação de uma teoria classista,
gentrifier, entendido como indivíduo único na
uma vez que contrariaria a própria essência
sua expressão singular.
da identidade que, por natureza, se afirma e
Por outro lado, para se entender a im-
define na diferença e no particular, nunca atra-
portância do espaço na construção da iden-
vés de práticas culturais e sociais homogêneas
tidade social terá que se partir do princípio
induzidas e condicionadas pelo meio da clas-
de que a identidade se define e se afirma na
se socioeconômica. Essa perspectiva analítica
diferença (Bourdieu, 1979). Assim, a identi-
tem gozado de vantagens evidentes nos últi-
dade não pode representar uma contínua ho-
mos escritos sobre a gentrificação, contudo,
mogeneidade de práticas, valores e represen-
não resolve as dificuldades de explicação da
tações nos diversos domínios culturais, dada
pluralidade discrepante de práticas, estraté-
a poliforma de contextos situacionais que em
gias e motivações de consumo no interior da
si mesmos determinam a produção de expres-
mesma classe. Porém, e ainda assim, dá con-
sões identitárias particulares. É necessário
ta das transformações inerentes à geografia
entender-se que o efeito de convergência de
da apropriação social do espaço urbano na
práticas sociais e culturais na condição do que
sociedade e economia tardiomodernas e, si-
é ser gentrifier é suscitado pela própria con-
multaneamente, da incapacidade dos modelos
dição e não à partilha conjunta das mesmas
teóricos tradicionais adotados com o objetivo
situações socioeconômicas. A compreensão do
da sua explicação.
Luís Mendes
Mestre em Estudos Urbanos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É Investigador Permanente no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa. Lisboa,
Portugal.
[email protected]
Nota
(1) Ver referências fundamentais da literatura científica dedicada à pós-modernidade e com
influência na Geografia: Harvey (1989, 1996); Dear, (2000); Dear e Flusty (2002); Soja (1989,
2001); Benko e Strohmayer (1997); entre outros.
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Texto recebido em 12/mar/2011
Texto aprovado 25/mar/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011
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El fenómeno de contraurbanización
y el protagonismo de ciudades menores
y de espacios rururbanos metropolitanos
The phenomenon of counterurbanization and the prominence
of smaller cities and rururban metropolitan areas
María Mercedes Cardoso
Resumen
El modelo clásico de ciudad se ve transformado
por una serie de procesos que responden a
las características de esta Era Informacional:
desconcentración poblacional y económica,
descentralización funcional, movimientos pendulares
de trabajadores, difusión urbana, repoblación
rural, crisis de las grandes aglomeraciones y
dinamismo de las pequeñas y medianas ciudades.
La dinámica demográfica inter e intraurbana
del Área Metropolitana de Santa Fe pone en
evidencia el nuevo protagonismo de las ciudades
menores y de los suburbios (constituidos tanto por
espacios ganadores – barrios cerrados –, como los
perdedores – de villa miseria) y espacios rururbanos
(anteriormente rurales); queda demostrado el
fenómeno de la contraurbanización en Argentina,
brindando herramientas para comprender los
complejos procesos que en América Latina se
suscitan y actuar sobre ellos.
Abstract
The classical model of city is transformed by a series
of processes that respond to the characteristics of
this Informational Era: population and economic
deconcentration, functional decentralization,
pendular movements of workers , urban spread,
rural repopulation, crisis of large agglomerations
and dynamism of small and medium-sized
cities. The inter- and intra-urban demographic
dynamics of the metropolitan area of Santa Fe,
shows the new leading role of the smaller cities
and the suburbs constituted both by winning
spaces (fenced condominiums), loser ones
(slums) and rururbans spaces (previously called
rural). Thereby we observed the phenomenon of
counterurbanization in Argentina, which offered
us the tools to understand the complex processes
that happen in Latin America and make it possible
to act on them.
Palabras claves: contraurbanización; crisi urbana;
pequeñas ciudades; suburbios metropolitanos;
espacio rururbano.
Keywords: counterurbanization; urban crisis;
minor cities; metropolitan suburbs; rururbans
spaces.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
María Mercedes Cardoso
Introducción
a la vez que en una mejora en los niveles de
escolarización rural. Su paralelo en Europa
Occidental se sitúa una década más tarde, pero
En la transición de la Era Industrial a la Post-
con ciertas similitudes, al igual que en Canadá
industrial o Informacional el elemento que
y Australia. Coinciden, también en que en los
cambia más vertiginosamente es la ciudad. Ya
80 se evidencia el resurgimiento de las grandes
poco queda del modelo tradicional conforme
ciudades, para luego experimentar un nuevo
la sociedad evoluciona. Nuevos procesos
crecimiento de las pequeñas ciudades y zonas
productivos tienen su expresión en el espacio,
rurales, en los años 90.
la estructura social emergente refleja relaciones
La contraurbanización no se restringe,
sociales diferentes a las imperantes en la
entonces, a espacios del mundo desarrollado.
Modernidad, los estilos de vida y los gustos
En América Latina se observa con algunas
de la población, así como las necesidades,
repercusiones diferentes, propias del contexto
también han variado.
económico, político y socio-cultural. En esta
En el ámbito internacional, alrededor
región del mundo, si bien no se han hecho
de 1970 comienza a observarse (algunos
estudios explícitos de contraurbanización,
autores ya lo ubican en 1960, como Hall,
si de nuevos patrones de redistribución de
1981, 1983), en algunas áreas metropolitanas
población y flujos migratorios, es dable pensar
estadounidenses ciertos cambios en los
que alrededor de los 90 se dan indicios de
modelos de asentamientos propios de los
contraurbanización en aquellas metrópolis
países industrializados. Esto es, los centros
millonarias asociadas a la industrialización.
metropolitanos más antiguos, relacionados
Argentina, en este contexto, tras haber
estrechamente a la industria tradicional
constituido su sistema urbano macrocéfalo
empiezan a perder atractivo demográfico y
reforzado en el período de industrialización
por lo tanto dejan de crecer, mientras que las
sustitutiva, experimenta una transformación
periferias residenciales continúan haciéndolo.
en las tendencias de crecimiento poblacional
Al mismo tiempo, espacios no metropolitanos,
y económico en los últimos censos, viéndose
localidades menores y áreas rurales alejadas
como Capital Federal pierde población entre
inician un incremento demográfico nunca antes
1991 y 2001, mientras que los municipios
visto a costa de aquellos que abandonaban
más alejados y el espacio rural circundante
dichas áreas centrales.
reciben esos elementos. Una de las principales
En 1979, Bradshaw y Blakely descubren
novedades de este trabajo radica en presentar
un proceso de cambio en el medio rural de
el caso de un área metropolitana menor, como
California, iniciado en los años 50´ y basado en
Santa Fe, poco asociada a la industrialización,
el desarrollo de una sociedad rural avanzada
en la que se evidencian los procesos estudiados
en la que el sector servicios crecía fuertemente
a través del mayor dinamismo de los pueblos
en detrimento del industrial, traduciéndose
grandes y del espacio rururbano y rural
en un incremento demográfico y económico,
circundante.
498
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
El fenómeno de contraurbanización...
El diagnóstico de los procesos de
económica y demográfica de los espacios
contraurbanización en el Área Metropolitana de
rurales provocada por la Revolución Agrícola
Santa Fe fue realizado a partir del análisis de los
e Industrial. La Revolución informacional de
censos poblacionales y económicos y del tráfico
los años 70 del siglo pasado, con el desarrollo
medio diario en las rutas que lo estructuran,
de las innovaciones tecnológicas y de las
indicativo de las relaciones y movimientos de
comunicaciones favorece al éxodo urbano:
trabajadores, bienes y servicios. Ésta, como una
movimientos centrífugos de población desde
de las metrópolis regionales argentinas, una
el centro de las grandes ciudades hacia
de las ciudades de tamaño intermedio, resulta
las zonas suburbanas o ciudades menores,
de significativo interés por cuanto concentra la
provocando el fenómeno del Declive Urbano
dinámica más relevante que define esta nueva
y el Renacimiento Rural. Se habla de Declive
tendencia urbana.
Urbano en el sentido de la reducción del
A nivel intraurbano, se pone el acento en
dinamismo económico y demográfico de las
el nuevo espacio suburbano y rururbano, pues
grandes ciudades, fenómeno detectado a partir
allí “conviven” poblaciones de altos recursos,
de los años ´60, pero intensificado en los ’70 y
quienes procuran autosegregarse privatizando
’80. Dicho dinamismo se traslada ahora a las
el espacio público, y los llamados marginales,
ciudades pequeñas o áreas rurales.
sectores cada vez más densos y extensos,
La crisis se distribuye selectivamente
separados del anterior por una valla, un río,
según tamaños urbanos, afectando más
una vía de tren; otro claro ejemplo de dualidad
intensamente a las ciudades mayores y a
urbana.
regiones de más antigua urbanización, en
especial cuando han experimentado una
urbanización temprana, caso de Europa. Un
Nuevos procesos
urbanos: el fenómeno
de contraurbanización
mismo país o región puede presentar cuadros
críticos muy contrastados, que requieran
tratamientos diferenciados (Valenzuela,
1988, p. 122). Para el caso de las ciudades
latinoamericanas, el declive urbano también
La crisis urbana por la que se está atravesando
se evidencia principalmente en las ciudades
hace unas décadas reviste gran complejidad;
mayores, las cuales reducen considerablemente
en ella se incluyen los siguientes fenómenos
su crecimiento y hasta comienzan a perder
de interés para los estudiosos del urbanismo:
población y actividades en los municipios
d e c l i v e u r b a n o, r e n a c i m i e n t o r u r a l ,
centrales. En Buenos Aires, ciudad que
contraurbanización.
encabeza la primacía urbana nacional, la
La Era Industrial se caracterizó por
pérdida de población del municipio nuclear
una urbanización concentrada, por un
(Capital Federal), la disminución de la
crecimiento de la población urbana gracias
densidad de población en el centro comercial y
a los flujos de población rural, es decir, que
financiero, y el desplazamiento de la actividad
estuvo relacionada estrechamente a la crisis
industrial desde el centro de la metrópoli
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
499
María Mercedes Cardoso
hacia la periferia seguido de un proceso
Las tasas de concentración urbana,
de terciarización de dicho centro (Gómez
reflejo de la proporción de población del país
Insausti, 1992, p. 457) está representando
que vive en la primera ciudad de la jerarquía
la contraurbanización a nivel intraurbano.
urbana nacional, tienen una tendencia a
Cotejando los datos de los censos, entre
descender (entre 1991 y 2001) y a aumentar
1991 y 2001 Capital Federal pierde 189.265
levemente para 2010, indicativo de una mejor
habitantes, es decir el 6,4% de su población;
redistribución de la población en localidades de
entre 2001 y 2010 gana 114.950 o sea el
menor tamaño.
4,14%, representando una leve recuperación,
R o s a r i o, t e r c e r a c i u d a d d e l a
pero que aún no revierte la tendencia. Es
jerarquía urbana argentina, registra una
notorio, además, la mayor variación intercensal
desconcentración relativa, que probablemente
de la corona metropolitana: los 24 partidos del
muy pronto será absoluta al igual que la Ciudad
Gran Buenos Aires, en comparación con Ciudad
de Buenos Aires, puesto que la población del
Autónoma.
municipio nuclear en 1991 era de 907.718
Cuadro 1 – Población y variación intercensal del Área Metropolitana
de Buenos Aires y sus componentes en las 3 últimas décadas
1991
Ciudad Autónoma de Buenos Aires
24 partidos del Gran Buenos Aires
Área Metropolitana de Buenos Aires
2.965.403
2001
2010
2.776.138
Variación
intercensal ’91-’01
2.891.082
Variación
intercensal ‘09-’10
-6,4%
4,14%
7.952.624
8.684.437
9.910.282
9,2%
12,37%
10.918.027
11.460.575
12.801.364
4,97%
10,47%
Fuente: INDEC. Censo Nacional de Población y Vivienda, 2001 y 2010.
Cuadro 2 – Evolución de las tasas de concentración urbana en Argentina
Año
Población total
(PT)
Ciudad de mayor tamaño
(CM)
Tasa de concentración urbana
(CM/PT)
1991
32.615.528
10.918.027
33,47
2001
36.260.130
11.460.575
31,61
2010
40.091.359
12.801.364
31,93
Fuente: INDEC. Censo Nacional de Población y Vivienda, 2001 y 2010.
500
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
El fenómeno de contraurbanización...
habitantes y para 2001, 908.163 habitantes,
a la universalidad de la teoría de la
por lo que su variación intercensal es de
Contraurbanización, extendiendo este
0,05%, muy inferior a la de Santa Fe (4,4%),
fenómeno a países en vías de desarrollo
caso que en el siguiente apartado analizaremos
como Argentina (Cardoso, 2008).
puntualmente.
Este proceso de cambio que viene a
Estos nuevos procesos urbanos son
alimentados por 3 factores principales:
transformar tan radicalmente la realidad
1) Auge de un nuevo modelo de
urbana generó, en la literatura científica
desarrollo endógeno, botton-up o desde
numerosas y variadas explicaciones y teorías.
abajo, que favorece el protagonismo de las
Para algunos se incorpora como una fase más
regiones y localidades, teniendo a las PyMEs
en el desarrollo de una metrópoli: llamada
(pequeñas y medianas empresas) y a su fuerza
desurbanización, en la que luego de la
de trabajo como actores centrales y otorgando
suburbanización, “la población de la ciudad
al estado (o municipio) su rol de facilitador de
central comienza a descender a un nivel tal
oportunidades, más que un mero redistribuidor
que de ello resulta un descenso absoluto de la
de recursos públicos. En este contexto,
población de toda la región urbana funcional”
[...] el territorio, como condensación
y expresión cultural-espacial de las
múltiples relaciones de sus actores
históricamente desarrollados, ha sido
presentado como “el ámbito” para la
generación de estas formas de desarrollo
flexibles a que dan lugar las redes locales.
(Fernández, 1999, p. 135).
(Estebanez, 1988, p. 454). Luego sobreviene la
fase de reurbanización provocada por el éxito
de los programas de renovación.
Para otros, en cambio, es una tendencia
de peso que no tiene vuelta atrás. Una
definición genérica de contraurbanización1 es
la de Ferrás Sexto:
[...] contraurbanización es el proceso de
movimiento desconcentrado de personas
y actividades económicas desde las
áreas urbanas hacia las rurales. Implica
la aceleración de la desconcentración
en las áreas urbanas y el consiguiente
crecimiento en determinadas áreas
rurales de los países desarrollados.
(1998, p. 607).
2) Nuevas vías de circulación rápidas
que comunican la ciudad con los suburbios y
un mayor acceso, de la población en general, al
coche.
3) N u e va s p r e f e r e n c i a s s o c i a l e s
de residir en espacios más verdes, menos
congestionados (la llamada ideología clorofila,
cada vez más extendida en la población),
acompañado de unos precios de los predios
El diagnóstico realizado en el Área
Metropolitana de Santa Fe contribuye
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
comparativamente más bajos que en la ciudad
o en sus zonas céntricas.
501
María Mercedes Cardoso
Contraurbanización
en el Área Metropolitana
de Santa Fe: el dinamismo
de ciudades menores
metropolitano por la gran importancia
y extensión del fenómeno, considera la
expansión física, los procesos económico,
demográficos y las dinámicas espaciales
generadas entre ciudades vecinas en la
conformación de zonas metropolitanas. Ellas
tienen que reunir los siguientes requisitos:
Definición y delimitación
del área de estudio
que el municipio central cuente al menos
con 50.000 habitantes, que de la población
ocupada de los municipios conurbados, el
La aglomeración Gran Santa Fe, capital de la
15% o más trabaje en el municipio central,
provincia homónima, es considerada una “ATI
que el porcentaje de la población empleada
mayor” (aglomeración de tamaño intermedio);
en los municipios conurbados, el 10% o más
se ubica en el octavo lugar en la jerarquía
provenga del municipio central, que el 75% o
urbana nacional con 454.238 habitantes en
mas de la población económicamente activa
2001.
de los municipios conurbados esté ocupada
El término área metropolitana surge por
en actividades no agrícolas, que los municipios
primera vez en Estados Unidos para dar nombre
conurbados cuenten con una densidad
al nuevo proceso urbano emergente. Se utiliza
media urbana de por lo menos 20 habitantes
oficialmente en 1910 por el United States
por hectárea y que la localidad conurbada
Census Bureau. En 1950 se define Stándard
funcionalmente se encuentre ubicada a
Metropolitan Area a un condado o grupo de
menos de 10 kilómetros por carretera de
condados contiguos que contiene, cuando
la conurbación que da origen a la zona
menos, una ciudad de 50.000 habitantes.
metropolitana (Inegi, Conapo, Sedesol, 2004).
Se incluyen los condados contiguos siempre
El área metropolitana, en la actualidad,
que sean esencialmente metropolitanos por
se basa en unas relaciones de interdependencia
su carácter y estén social y económicamente
entre una serie de núcleos generalmente
integrados a la ciudad central siguiendo
más pequeños (en términos de habitantes)
algunos criterios: que ese condado sea lugar
y con un menor grado de especialización
de trabajo o vivienda para trabajadores no
funcional y una ciudad central en la que
agrícolas al menos en un 75% y que la densidad
se localizan ciertas funciones dominantes.
de población no sea inferior a 150 personas
En síntesis, se define por la existencia de
por milla cuadrada. En 1960 se actualiza el
una ciudad central y un hinterland , por
término agregándole la palabra “stadistical”,
las relaciones de interdependencia mutua
quedando “Stándard Metropolitan Stadistical
entre ambos componentes, dándose una
Area” (SMSA), incluyéndose nuevos aspectos.
diferenciación funcional jerarquizada, con
Cada país toma y redefine dicho
un sistema de transportes y comunicaciones
concepto estableciendo sus propios criterios
lo suficientemente desarrollado como para
de delimitación. Por ejemplo, México, país
estructurar dichas relaciones.
502
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
El fenómeno de contraurbanización...
Dado que el área de influencia de las
encuentran en una interdependencia funcional
funciones de Santa Fe es más amplia que la
muy estrecha, debido a la especialización, que
que considera INDEC (Instituto Nacional de
se dio espontáneamente, de las actividades. Por
Estadísticas y Censo de la República Argentina)
ejemplo, la ciudad principal, Santa Fe, es capital
bajo el criterio de población, integrarían el
de provincia, por lo que desempeña funciones
Gran Santa Fe las siguientes: Santa Fe: ciudad
político – administrativas, y consecuentemente,
principal del área metropolitana, incluye Alto
desarrolló una gama de servicios bastante
Verde, Colastiné Norte y Sur y La Guardia;
especializados, al punto de que las demás
Santo Tomé, Sauce Viejo, comprende Sauce
localidades acuden a ella.
Viejo – que incluye Villa Angelita – y Villa
Las localidades del norte de Santa
Adelina – incluye Villa Adelina este y oeste
Fe (Monte Vera, Recreo, Ángel Gallardo,
y Parque Industrial; San Agustín, al sur;
Santa Rosa) representan el “cinturón fruti-
Recreo, al norte, incluye Loteo Ituzaingó y
hortícola”, se especializan en producción de
San Cayetano; Monte Vera; Ángel Gallardo;
frutas, verduras y flores que suministran a
Arroyo Aguiar; Santa Rosa de Calchines;
toda la zona. Esperanza, Franck, San Carlos,
Gobernador Candioti; Campo Andino (hasta
San Jerónimo Norte y del Sauce, Humboldt y
1991 denominado San Pedro); Laguna Paiva;
Empalme San Carlos constituyen la cuenca
Nelson; San José del Rincón, al este de Santa
lechera, un área de trascendencia nacional. A
Fe; Arroyo Leyes, comprende Arroyo Leyes
su vez, la industrialización de la leche abastece
y Rincón Norte; hacia el oeste de Santa Fe,
a la región, y se comercializa a nivel nacional
incluimos: Esperanza (según el censo de
e internacional (en ciertos productos). Estas
2001 incluye Barrio Alborada y Barrio Anahí);
ciudades, antiguas colonias agrícolas de
Franck; Empalme San Carlos; San Carlos
inmigrantes alemanes, suizos, franceses –
Centro – San Carlos Sur; San Carlos Norte;
preferentemente –, por su vocación artesanal,
San Jerónimo Norte; San Jerónimo del Sauce;
desarrollaron industrias destacadas como las
Humboldt; Las Tunas.
mueblerías, fábricas de arados, de calderas,
Todos estos municipios y comunas,
en Esperanza, o vidriería en San Carlos, etc.
que reúnen para 2001 un total de 558.352
Las relaciones comerciales y laborales entre
2
habitantes en 4.957 km , con una densidad
2
media poblacional de 86,45 hab/km , se
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
ellas dan el dinamismo que define este tipo de
aglomeración.
503
María Mercedes Cardoso
Figura 1 – Localidades del área metropolitana de Santa Fé
504
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
El fenómeno de contraurbanización...
población de las 25 localidades del área, desde
Diagnosis de los procesos
de contraurbanización en el Área
Metropolitana de Santa Fe
1960 hasta 2001 permite extraer algunos
indicios.
Entre 1980 y 2001 el Gran Santa Fe
Los procesos de contraurbanización se
disminuye su variación intercensal a la mitad
manifiestan en los aspectos tanto demográficos
(de 21,3 a 11,8%), a pesar de incorporar a Villa
como económicos. El análisis de los censos de
Angelita, Arroyo Leyes y Rincón Norte.
Cuadro 3 – Evolución de la población y variación intercensal
en el Área Metropolitana de Santa Fe, por localidad
Año
1960
Año
1970
Período
‘60-’70
(%)
Año
1980
Período
‘70-’80
(%)
Año
1991
Período
‘80-’90
(%)
Año
2001
208.350
244.655
17,4
295.350
20,7
353.063
19,5
368.668
4,4
Recreo
1.097
2.046
86,5
3.535
72,8
7.626
115,7
10.714
40,5
San José del Rincón
1.310
2.367
80,7
3.193
34,9
4.738
48,4
8.480
79
276
-
-
618
-
870
40,8
6.505
647,7
Localidad
Santa Fe
Sauce Viejo
Arroyo Leyes
Período
‘91-’01
(%)
-
-
-
-
-
35
-
1.594
4.454,3
Esperanza
14.572
17.636
21
23.277
32
28.605
22,9
33.672
17,7
Humboldt
1.229
1.569
27,7
2.063
31,4
2.642
28,1
3.269
23,7
San Carlos Centro
4.786
5.973
24,8
7.612
27,4
8.868
16,5
10.068
13,5
San Jerónimo Norte
2.928
3.686
25,9
4.435
20,3
4.891
10,3
5.449
11,4
Empalme San Carlos
79
-
-
-
-
52
-
101
94,2
Campo Andino
252
-
-
-
-
186
-
302
62,4
Angel Gallardo
95
-
-
-
-
271
-
519
91,5
Fuente: Elaboración propia a partir de los datos de los censos del INDEC. Se presentan valores de localidades seleccionadas
para demostrar los indicios de contraurbanización que conducen a las siguientes conclusiones.
La ciudad principal, Santa Fe siempre tuvo crecimiento poblacional, alcanzando su ápice entre 1970-1980 con 20,7%, para
luego caer a 4,4% (entre ´91-´01), obteniendo el segundo valor más bajo de toda el área metropolitana. Estimamos que en las
próximas décadas su crecimiento será negativo, de continuar con las mismas tendencias.
●
Las localidades que mayor variación intercensal presentan (´91-´01) son Sauce Viejo y Arroyo Leyes; la primera una localidad
de 6.505 hab. y la segunda de 1.594, ubicada junto al río, zona de pescadores y viviendas de segunda residencia. Sauce
Viejo pasó de ser población rural a la categoría de pueblo grande (de 2.000 a 19.999 habitantes) y Arroyo Leyes sigue siendo
espacio rural, pero con un crecimiento tal que pronto dejará de serlo.
●
Son las localidades menos pobladas las que tienen mayor crecimiento. Por ejemplo: las dos anteriores, Sauce Viejo y
Arroyo Leyes, Ángel Gallardo, Campo Andino, San José del Rincón, Empalme San Carlos, todas con tasas altas de variación
intercensal, más del 40%.
●
Las que ostentan mayor crecimiento son las localidades que tienen viviendas de segunda residencia: San José del Rincón,
Sauce Viejo, Arroyo Leyes, asociado al auge del turismo de río e islas y al cambio en las preferencias sociales.
●
●
Las localidades de la cuenca lechera, de tamaño medio, crecen en todos los períodos, pero moderadamente, en su mayoría.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
505
María Mercedes Cardoso
Desde 1960 hasta la actualidad se está
era campo o población dispersa (35 hab.) y en
produciendo una desconcentración relativa,
2001 registra 1.594 hab., con una variación
muy marcada en el último período ´91-´01,
intercensal de 4.454,3%), contribuyen de
caracterizado por el crecimiento de casi todas las
manera positiva a la redistribución demográfica
localidades, especialmente las más pequeñas,
y económica en el espacio.
del área y por el menor crecimiento de la ciudad
En cuanto a los aspectos económicos,
principal Santa Fe (y cada vez menor década
Santa Fe se terciariza cada vez más y se
tras década). Estos movimientos centrífugos de
especializa en los servicios. Este factor provoca
población y actividades desde grandes ciudades
el aumento de la afluencia de población desde
hacia pequeños asentamientos urbanos (por
las demás localidades, con todos los trastornos
ejemplo Rincón, Ángel Gallardo, Sauce Viejo) y
que ello conlleva (en términos de impacto
rurales (es el caso de Arroyo Leyes que en 1991
ambiental).
Cuadro 4 – Puestos de trabajo ocupados en total ramas de actividad.
Localidades el AMSF, 2004
Santa Fe
Total del puestos
de trabajo ocupados
Asalariados
Nº asalariados
37,852
26,159
11,693
Santo Tomé
3,197
1,909
1,288
Sauce Viejo
801
720
81
Laguna Paiva
712
316
396
1,071
747
324
Monte Vera
419
225
194
Nelson
181
69
112
San Jose del Rincón
143
57
86
35
11
24
5,538
3,960
1,578
510
332
178
Recreo
Arroyo Aguiar
Esperanza
Franck
Humboldt
San Carlos Centro
San Carlos Sur
San Jerónimo Norte
470
242
228
1,880
1,303
577
51
9
42
544
267
277
Fuente: Elaboración propia a partir de los datos del Censo Nacional Económico 2004/05 del INDEC.
506
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
El fenómeno de contraurbanización...
La ciudad de Santa Fe registra más
puestos de trabajo ocupados en servicios,
de establecimientos y puestos de trabajo en los
sectores industria, comercio y servicios.
en primer lugar, y en comercio, en segundo
En el ámbito económico, los factores
y con bastante diferencia cuantitativa en
involucrados en los procesos dados en las
industria (menos de la mitad) en último
últimas décadas en Argentina tienen una
lugar. Santo Tomé emplea más personas en
gran complejidad que no nos permiten
comercio y servicios, siendo la industria el
concluir simplemente diciendo que ocurrió
sector que menos trabajadores demanda.
una desconcentración y descentralización de
Otras localidades ocupan más trabajadores en
actividades y funciones. Las crisis económicas
industria, destacándose Esperanza, Franck, San
sucesivas, la desindustrialización afectaron a
Jerónimo Norte, Sauce Viejo, dándose así la
casi todas las localidades, sin embargo, (y este
complementariedad que caracteriza a las áreas
punto es de interés para esta investigación) la
metropolitanas.
localidad de Santa Fe pierde establecimientos y
Datos que demuestran el proceso de
puestos de trabajo en la industria y el comercio,
contraurbanización en los aspectos económicos
pero no ocurre lo mismo en servicios, mientras
son los referentes a la evolución en la cantidad
que otras localidades los ganan. En las tablas
5, 6 y 7 presentamos algunos ejemplos.
Cuadro 5 – Evolución de la industria en las localidades
del AMSF desde 1974 a 2004
Cantidad de establecimientos
Cantidad de puestos de trabajo
Localidad
Santa Fe
Santo Tomé
Recreo
San José del Rincón
Sauce Viejo
Laguna Paiva
1974
1985
1994
2004
1974
1985
1994
2004
1.188
1.003
1.057
143
129
108
702
8.812
7.813
6.332
4.767
107
1.091
964
815
858
19
50
16
34
83
763
396
592
9
-
5
6
119
-
19
37
15
16
23
29
2.572
652
530
681
7
42
21
17
27
110
225
165
277
222
223
254
2.470
2.578
2.438
2.651
Franck
6
25
31
27
83
386
588
251
Humboldt
7
26
22
30
88
205
247
107
Esperanza
Fuente: Elaboración propia a partir de los datos de los Censos Nacionales Económicos 1974, 1985, 1994 y 2004/05 del INDEC.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
507
María Mercedes Cardoso
Cuadro 6 – Evolución del comercio en las localidades
del AMSF desde 1974 a 2004
Cantidad de establecimientos
Cantidad de puestos de trabajo
Localidad
1974
1985
1994
2004
1974
1985
1994
2004
6.186
6.805
5.991
5.309
17.602
18.478
15.041
16.099
576
803
764
646
1.116
1.623
1.551
1.545
62
120
86
153
118
295
142
379
San José del Rincón
50
SD
47
43
77
SD
78
82
Sauce Viejo
33
36
30
30
99
94
50
66
Santa Fe
Santo Tomé
Recreo
Fuente: Elaboración propia a partir de los datos de los Censos Nacionales Económicos 1974, 1985, 1994 y 2004/05 del INDEC.
Cuadro 7 – Evolución de los servicios en las localidades
del AMSF desde 1974 a 2004
Cantidad de establecimientos
Cantidad de puestos de trabajo
Localidad
1974
1985
1994
2004
1974
1985
1994
2004
1.715
2.498
4.214
4.056
10.295
9.353
17.196
17.392
148
282
347
363
289
554
1.228
804
Recreo
18
53
29
60
24
89
197
135
San José del Rincón
11
SD
15
12
15
SD
43
19
6
11
13
15
34
23
25
3
Santa Fe
Santo Tomé
Sauce Viejo
Fuente: Elaboración propia a partir de los datos de los Censos Nacionales Económicos 1974, 1985, 1994 y 2004/05 del INDEC.
Para los datos del Censo 2004 / 05,
Dentro del AMSF se da el fenómeno de
en sector servicios se sumaron los valores
las migraciones pendulares: personas que
correspondientes a hoteles y restaurantes,
residen en diferentes puntos de la corona
servicios de transportes y anexos al mismo,
metropolitana y acuden diariamente a Santa
comunicaciones, financieros, educativos,
Fe a trabajar en la Administración Pública,
inmobiliarios, de salud y personales, no
servicios u otras actividades, o a realizar
pudiendo integrar se de obras sociales
compras, trámites o estudios, y por la noche
y medicina prepaga que no están
regresan a sus hogares.
especificados por localidad, sino que INDEC
Una forma de medir o cuantificar este
los contabiliza para el total de la provincia:
fenómeno es analizando el TMD (tráfico
total de establecimientos=158; puestos de
medio diario) de las rutas que comunican las
trabajo=4.878.
localidades y que estructuran el espacio.
508
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
El fenómeno de contraurbanización...
El AMSF está comunicado tanto por rutas
de 271 metros cada una, que comunica con
nacionales como provinciales. La RN 11 que va
la ciudad de Paraná. Desde los tiempos de
desde Rosario a Clorinda (Formosa) con destino
la conquista española, el río Paraná fue un
a Paraguay es la principal vía de circulación
eje de organización del espacio, en torno a
de la provincia; comunica todo el AMSF con
él se asentaban las ciudades más pobladas y
Rosario y luego con Buenos Aires (a través de la
dinámicas que luego llegarían a ser capitales
RN 21). Gracias a la construcción de la autopista
de provincia: Santa Fe, Paraná y Corrientes.
Santa Fe – Rosario – Arroyo del Medio se puede
También el río significó un obstáculo para la
transitar rápidamente y de modo más seguro
comunicación entre las provincias del litoral,
entre estas ciudades del frente fluvial.
principalmente debido al amplio lecho de
La RN 19, desde la RN 11 en Santo
inundación del Paraná, con sus lagunas, islas,
Tomé se dirige a Córdoba, pasando por San
arroyos y riachos que representan un verdadero
Francisco. Ambas rutas nacionales son las que
obstáculo. Es así como la RN 168 comunica hoy
presentan una mayor densidad de TMD, tal
y desde 1960 Santa Fe con Paraná a través del
como se analizará a continuación, señalando
lecho del Paraná gracias a una serie de puentes
la importancia de Santa Fe como centro
y el túnel.
estratégico en la provincia y el país.
La RP 1 llamada “camino de la costa” va
La RN 168 comunica Santa Fe con el
desde la RN168 hasta Reconquista (en el norte
atracadero de balsas del Paraná y el acceso al
provincial) comunicando Colastiné, La Guardia
Túnel Subfluvial, obra de ingeniería de 2449
y San José del Rincón. La RP 4 enlaza Laguna
metros de largo, con 2397 metros de sección
Paiva y Nelson con San Cristóbal (noroeste
entubada (36 tubos) y dos rampas de acceso
provincial).
Cuadro 8 – Tráfico Medio Diario por ruta nacional en los tramos comprendidos
entre localidades del AMSF según clasificación vehicular. Año 2002.
Ruta
Limite
del tramo
11
RN 19 - Santa Fe
(entrada)
11
Santa Fe (entrada)
Santa Fe (salida)
11
Santa Fe (salida)
RP 70
11 RP 70 - RP 4
Vehículos livianos
Vehículos pesados
Bus
Sin acoplado
Con acoplado Con semiacoplado
Total
TMD
Autos
Camionetas
460,65
464,6
3,95
SD
21.500
20.650
43.079,2
464,6
476,65
2,05
urbanos
urbanos
urbanos
943,3
476,65
483,16
6,18
SD
9.100
8750
18.815,99
483,16
507,82
24,72
SD
3.500
3350
7.865,7
19 RN 11 - RP 6
SD
28,92
28,97
SD
4.850
4600
9.507,89
168 RN 11 - RP 1
468,08
477,54
9,28
SD
15.300
14.500
30.754,2
477,54
487,68
10,86
8984
8869
8289
27.118,08
168
RP 1 - Acceso al
túnel subfluvial
Fuente: Elaboración propia a partir de datos de Vialidad Nacional, distrito Santa Fe, 2002.
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509
María Mercedes Cardoso
Observando el cuadro del TMD en las
del AMSF, cumplen la función de transporte de
rutas nacionales del AMSF, datos del 2002, se
mercancías a la región y al país, son nudos de
evidencia un mayor tráfico en la RN 11, en el
cambio de modos de transporte (fluvial, por
tramo RN 19 y entrada a Santa Fe, es decir,
carretera, por ferrocarril), también son rutas de
entre Santo Tomé y Santa Fe. Este fenómeno
paso hacia diversas direcciones (entre Paraná y
se explica por lo siguiente: 1) principalmente
el norte del país, desde Buenos Aires al norte
esta vía es transitada por vehículos que vienen
y oeste, etc.), y forman parte del llamado
desde Rosario, la ciudad más grande y dinámica
corredor Bioceánico de comunicación entre los
de la provincia y la tercera del país, y a su vez
países integrantes del Mercosur y asociados.
desde Buenos Aires pasando por Rosario a
Otra ruta de tráfico considerable es la
través de la RN 21; 2) este tramo comunica las
RN 11 entre la salida de Santa Fe y la RP 70,
localidades más pobladas del AMSF: Santa Fe
es decir, hasta Recreo, con 18.815,99 unidades
y Santo Tomé. Muchas personas que radican
vehiculares a través de ella se comunica Santa
en Santo Tomé viajan a diario a trabajar, por
Fe y el sur provincial con el Norte provincial y el
compras, por servicios, diversión, etc. a Santa
oeste (por la RP 70). En el cuadro se evidencia
Fe, dicha localidad es percibida como un barrio
el reparto del tráfico en estos dos rumbos,
más de Santa Fe, puesto que solo las separa el
puesto que la cantidad de vehículos de la RN
puente carretero y no existe intersticio urbano
11 entre la RP 70 y la RP 4 se reduce a 7.865,7
entre ellas. Pese a ello, la existencia de una sola
diarios.
vía de comunicación entre las dos ciudades
representa un problema de comunicación.
En la RN 11 dentro de Santa Fe se
contabilizan solo 943,3 vehículos livianos y
En segundo lugar, teniendo en cuenta el
2,05 buses. Por la RN 19, en el tramo RN 11 –
tráfico total del año 2002 en rutas nacionales,
RP 6 rumbo a San Jerónimo Norte y San Carlos
se observan elevadas cantidades de vehículos
Centro el tráfico es de 9.507,89 vehículos/día.
por día en la RN 168 entre la RN 11 y RN 1 con
Entre los vehículos livianos predomina el uso
30.754,2 vehículos por día, principalmente del
de las camionetas, para transporte de bienes
tipo pesados con acoplados y semiacoplados;
y servicios, y los coches para transporte de
este tramo comunica Santa Fe con la RN 1 que
personas. El uso de autobuses es más frecuente
conduce hacia el norte a Colastiné, Rincón,
en la RN 19 rumbo a San Jerónimo Norte y San
Santa Rosa y hacia el este a Paraná. Este último
Carlos Centro y en la RN 11, entre la RP 70 y
tramo de la RN 168 (entre RP 1 y acceso al túnel)
RP 4, por más que la cantidad de vehículos no
también presenta elevados valores vehiculares:
supere las 3 decenas, es necesario considerar
27.118,08 por día con una mayor participación
que en cada autobús entran alrededor de 50
en ese total de los vehículos pesados sin
personas, por lo tanto representa un medio
acoplados, con acoplados y semiacoplados.
de transporte en el AMSF muy importante,
Este factor responde al hecho de que las rutas
mientras que un coche puede transportar de 1
nacionales, además de comunicar localidades
a 5 personas como máximo.
510
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
El fenómeno de contraurbanización...
Cuadro 9 – Tráfico Medio Diario por ruta provincial en los tramos comprendidos
entre localidades del AMSF según clasificación vehicular. Año 2004.
Vehículos livianos
Ruta
Limite del tramo
Automóviles
y camionetas
Vehículos pesados
Autobuses
Camión
mediano
Camión
pesado
Total
TMD
70
RN 11 – RP 6
3348
(86%)
93
(2%)
235
(6%)
218
(6%)
3894
(100%)
6
San Carlos Sur – RN 19
1552
(85%)
34
(2%)
120
(7%)
130
(7%)
1836
(100%)
6
RP 250s – RP 70
2028
(77,7%)
34
(1,3%)
171
(6,55%)
377
(14,44%)
2610
(100%)
2
Santa Fe – RP 5
5416
(88%)
110
(2%)
337
(5%)
324
(5%)
6187
(100%)
2
RP 5 – Arroyo Aguiar
2017
(90%)
60
(3%)
109
(5%)
55
(2%)
2241
(100%)
2
Arroyo Aguiar – Laguna
Paiva
1424
(90%)
51
(3%)
76
(5%)
26
(2%)
1577
(100%)
1
RN 168 – Acceso San José
del Rincón
11172
(88%)
307
(2%)
661
(5%)
596
(5%)
12736
(100%)
1
Acceso San José del Rincón
– Santa Rosa
1614
(83%)
44
(2%)
145
(7%)
145
(7%)
1948
(100%)
Fuente: Elaboración propia a partir de datos de Vialidad Provincial de Santa Fe, 2004.
En las rutas provinciales destaca el
RP 70, entre la RN 11 y la RP 6, es decir, rumbo
tráfico de la RP 1 entre la RN 168 y el acceso a
a Esperanza, con 3.894 vehículos por día (86%
Rincón con un total de 12.736 vehículos diarios
son camionetas y autos).
en 2004, lo notorio es que el 88% de ese tráfico
En síntesis, podemos afirmar que a
son automóviles y camionetas, indicativo de
diferencia de las rutas nacionales que tienen
que el tráfico lo realizan residentes de la zona;
como función principal la comunicación y el
además este tramo no es de gran relevancia en
transporte de productos de la región y el país,
la circulación regional o nacional.
en las rutas provinciales predomina el tráfico
En el tramo que sigue hacia el norte
de vehículos livianos (coches y camionetas)
de la RP 1, hasta Santa Rosa se reduce
de transporte de personas en toda el AMSF.
considerablemente el tráfico a 1.948,
En este último, los autobuses tienen un papel
también con un elevado porcentaje de
preponderante, por más que su cantidad no
autos y camionetas: 83%. Esto señala que el
sea elevada, si lo es el volumen de población
abundante tráfico del tramo anterior se dirige
que transporta, por ejemplo, en la RP 1,
a Rincón, Colastiné, La Guardia.
tramo RN 168 y Rincón son 307 buses por
En segundo lugar de tráfico en rutas
día con capacidad para 50 personas, pueden
provinciales se ubica la RP 2 entre Santa Fe y
transportar hasta 15.350 personas por día (el
la RP 5, con 6.187 vehículos y en tercer lugar la
doble de la población de Rincón para 2001).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
511
María Mercedes Cardoso
Otro factor desencadenante de la
1) El centro urbano se densifica y se
contraurbanización incipiente son las
especializa cada vez más en ciertas funciones
viviendas de segunda residencia: al ser un
generales: comerciales y de servicios,
medio dominado por ríos y lagunas, la gente
desplazando la de residencia e industrial y
construye sus “quintas” o casas de fines de
dejando atrás la mezcla de funciones en el
semana, en lugares de naturaleza inigualable
espacio que caracterizó etapas anteriores. Santa
como San José del Rincón, Arroyo Leyes, Santa
Fe, como otras ciudades latinoamericanas,
Rosa, Sauce Viejo y las localidades aledañas,
posee un centro histórico, donde se ubican
aprovechando el precio comparativamente más
dependencias del Gobierno Provincial y
bajo de los terrenos. El caso de San José del
un centro comercial, donde se concentran
Rincón, es destacable por su crecimiento. Nació
las funciones político-administrativas del
como lugar de “quintas” de los santafesinos;
municipio, los comercios y los servicios, los
creció y lo sigue haciendo de manera
cuales atraen población de toda la ciudad y de
asombrosa.
localidades del área metropolitana. “El centro
se convierte en ámbito de decisión” (Castells,
1988, p. 274); recibe el nombre de centro de
Contraurbanización
en el municipio nuclear
Santa Fe: el dinamismo
de los suburbios
negocios, incluyendo la gestión pública, política
y administrativa, considerando que el papel
simbólico y la función comercial del viejo centro
urbano tienden a difuminarse paulatinamente
en el espacio.
2) La ciudad se expande hacia las afueras,
La ciudad de Santa Fe ha tenido un significativo
en un sentido centrífugo: surgen nuevos
crecimiento desde mediados del siglo XIX
barrios, principalmente al norte del ejido
hasta mitad del XX, alcanzando unos valores
urbano, puesto que al sur, al este y al oeste
exorbitantes entre 1887 y 1895 con un 134,6%,
su espacio se encuentra acotado por el río
período en el cual se multiplicaron las vías
Salado y el Sistema Lagunar Setúbal-Leyes. El
ferroviarias en la provincia, enlazándose con las
sentido de la expansión espacial se estructura
de Buenos Aires, factor que facilitó la movilidad
por los grandes ejes viarios, que corriendo de
en toda la pampa y promovió el ingreso de
norte a sur, abren nuevas urbanizaciones a
los inmigrantes europeos llegados a la capital
sus alrededores: Av. Gral. Paz, Av. Aristóbulo
argentina hasta esta ciudad. Sin embargo, este
del Valles, Av. Facundo Zuviría, Av. López y
gran crecimiento se fue reduciendo década tras
Planes (al sur), luego se transforma en Av. Gral.
década hasta llegar a una variación intercensal
Peñalosa y finalmente Av. Blas Parera.
de 4,4% en el último período (1991-2001).
3) En las zonas aledañas al centro
Los efectos del gran crecimiento
histórico, asociadas a actividades que
poblacional en la estructura de la ciudad fueron
históricamente tuvieron gran dinamismo
variados:
como el puerto y el ferrocarril, pero que hoy
512
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
El fenómeno de contraurbanización...
ya no desempeñan esas funciones, así como
Fe, sino de una desconcentración absoluta,
en amplias zonas del entorno suburbano, se
la pérdida de población residente en el
localizan espacios territorialmente deteriorados
centro urbano. Si bien en el centro y su área
y socialmente marginales. En los últimos años,
circundante (vecinales Zona Sur, República del
tanto el área del antiguo Puerto de Santa Fe,
Oeste, Plaza España, Candioti Sur y Candioti
como del Ferrocarril General Belgrano, Molino
Norte) aun se construyen edificios de viviendas
Marconetti, han sido objeto de rehabilitación
habitación, la población decrece debido a que
urbana (Zárate, 1992) pasando a desempeñar
las funciones de servicios y comercio desplazan
funciones culturales, de esparcimiento y
la función de residencia casi completamente.
entretenimiento (públicos y privados), cuyo
Gran parte de las construcciones son
hinterland excede el territorio del municipio
destinadas a oficinas. En contraposición, las
central.
vecinales de las afueras de la ciudad tienen
4) En las últimas 4 décadas surgen los
barrios en los suburbios de Santa Fe como
mayor crecimiento, como por ejemplo destacan
Colastiné Norte y Altos Noguera.
lugares de viviendas de segunda residencia,
Tal como se observa en el cuadro, las
asociados al ocio, descanso y vacaciones. Sin
vecinales aledañas al centro pierden población,
embargo, es en las últimas 2 décadas que los
a pesar de que entre 1991 y 2001 el INDEC
mismos tienen un crecimiento poblacional sin
ha modificado los límites de estas divisiones
precedentes.
administrativas y ha creado en esta zona
Es evidencia de una desconcentración
una nueva vecinal: Centro. Mientras que las
ya no relativa, como la que se da a nivel
vecinales de los suburbios tienen una variación
interurbano en el área metropolitana de Santa
intercensal exponencial.
Cuadro 10 – Evolución de la población en algunas vecinales céntricas
y de los suburbios de Santa Fe, 1991 a 2001
Vecinal
Colastiné Norte
Altos Nogueras
1991
2001
Variación intercensal
1991 - 2001 (%)
1.873
3.220
71,9
963
1.523
158,2
Zona Sur (Pedro Candioti)
17.918
11.090
-38,1
República del Oeste
11.434
10.046
-12,1
Plaza España
13.352
9.248
-30,7
Candioti Sur
7.203
6.236
-13,4
11.821
11.118
-5,9
Candioti Norte
Fuente: IPEC, 1991, 2001.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
513
María Mercedes Cardoso
Figura 2 – La contraurbanización en la ciudad de Santa Fe
Los suburbios de las ciudades
que los comunican con el resto de la ciudad;
latinoamericanas constituyen paisajes
y espacios perdedores: las villas miseria,
antrópicos duales; se componen, desde
sectores urbanos densos, no planificados,
la perspectiva urbanística, de espacios
ni loteados, carentes de servicios, de plano
ganadores (Svampa, 2005): los barrios
irregular, caótico, donde su población no tiene
cerrados, delimitados con muros, de viviendas
la propiedad del terreno y autoconstruye su
unifamiliares, con amplios jardines y espacios
vivienda con materiales de recuperación.
comunes de ocio y deportes, dotados de
La ubicación de los barrios cerrados, mal
seguridad y sistemas de vigilancia privada que
llamados privados, así como de las viviendas
dan “sensación de seguridad” a sus usuarios,
de segunda residencia de los santafesinos,
poseedores de servicios y buenas vialidades
generalmente provistas de amplio jardín
514
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
El fenómeno de contraurbanización...
o parque, piscinas y hasta instalaciones
Las vecinales de villa miseria santafesina
deportivas, es a gran distancia del centro
se ubican tanto en los suburbios, junto a los
urbano, preferentemente en el ambiente de
espacios ganadores (caso de Altos de Noguera,
islas o en la ribera de los riachos o junto a
ubicada al norte, Alto Verde, al este y La Guardia
importantes vías de comunicación como la
Colastiné, en la zona de la costa, donde residen
autopista Santa Fe-Rosario. En los últimos
pescadores), como en zonas aledañas al centro
años, así como ocurrió con los clubes de
urbano, caso de Villa del Parque, un barrio que
campo, las viviendas de segunda residencia
nació de cirujas2, gracias a la presencia de un
pasaron a ser de residencia permanente
gran basural, y de empleadas domésticas y
gracias a la gran movilidad de la población, a
acarreadores que trabajan en el centro, pero
las vías rápidas de circulación y mejoras en los
que en las últimas décadas se transformó en
accesos a los barrios costeros (Colastiné Norte,
un sitio donde imperan la venta de drogas,
San José del Rincón, Arroyo Leyes, etc.), a las
la prostitución, y demás delitos que tienen
preferencias de la gente por vivir en lugares
por actores centrales a las bandas urbanas,
más tranquilos, en contacto con la naturaleza,
instaurando un ambiente de inseguridad, vicio
más seguros, menos contaminados, etc.
y pobreza en el amplio sentido de la palabra.
Cuadro 11 – Características socio-demográficas de la población en 2001
de algunas vecinales de clases bajas y altas en Santa Fe
Vecinales de clase baja
Indicador
Vecinales de clase alta y media-alta
La GuardiaColastiné
Villa del
Parque
Altos de
Noguera
Alto
Verde
Colastiné
Norte
Redisencial
Guadalupe
Villa
Setúbal
Población 1991
1.190
3.990
963
5.983
1.873
–
–
Población 2001
4.573
3.066
1.523
7.351
3.220
4.584
2.297
Crecimiento intercensal ‘91-’01
284,3
-22,4
58,2
22,9
71,9
–
–
Población con NBI (1) (%).
Media Ciudad: 13,9%
32,4
18,7
31,3
32,3
15
1,1
0,9
Promedio de hijos por mujer (2).
Media Ciudad: 2
2,6
2,5
2,5
3
2
1,6
1,6
Desocupación (%).
Media Ciudad: 25,9%
28,5
36,6
32,2
40
17,5
21
19,4
Población sin nivel de instrucción
o primario incompleto (%).
Media Ciudad: 12,4%
24,0
22,1
23,5
26,5
11,5
4,3
4,2
Hogares con deficiente calidad de
materiales de la vivenda (3). (%)
Media Ciudad: 2,49%
17
5,43
10,3
6,3
5,4
0,07
0
Fuente: IPEC 1991 y 2001.
(1) NBI: Necesidades Básicas Insatisfechas. (2) Cociente entre la cantidad de hijos e hijas nacidos vivos y la cantidad de
mujeres, de 14 años o más. (3) Viviendas que presentan materiales no resistentes ni sólidos o de desecho al menos en uno de
parámetro considerados. Categoría CALMAT IV.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
515
María Mercedes Cardoso
El grupo de variables seleccionadas
Reglamento de Zonificación de usos del suelo
permiten caracterizar la situación habitacional,
urbano de 1984 y el actualizado en 2009 aún
demográfica, educativa y económica de las
no los incluye por su localización rururbana,
personas, pudiendo observarse que las vecinales
alejada de la ciudad. Constituyen un grupo de
con el rótulo de clase baja se encuentran en
emprendimientos surgidos en las dos últimas
una posición de desventaja respecto de la
décadas, en distintas etapas de avance:
media de la ciudad y con grandes diferencias
• Aires del llano, country club. Obra finalizada,
respecto de las tres vecinales de clase alta y
ubicada sobre la Autopista Santa Fe–Rosario,
media alta estudiadas. La vecinal Colastiné
km 5,5.
Norte presenta valores intermedios puesto que
• El Paso, country club. Obra finalizada (cuenta
allí se identifican situaciones contrastadas, de
con 204 viviendas construidas, 540 lotes de
población de altos recursos y otros sectores en
165 ha en total y club de golf), ubicada sobre la
transición a La Guardia-Colastiné en los que los
Autopista Santa Fe–Rosario, km 7.
indicadores corresponden a personas de bajos
• La Tatenguita, barrio cerrado. Obra finalizada,
recursos.
ubicada sobre la Autopista Santa Fe–Rosario,
Un indicador fiel de la segregación
km 4.
urbana son los altos porcentajes de población
• El Pinar , barrio cerrado. Obra finalizada,
con NBI, pues mide la pobreza estructural y
ubicada sobre la Autopista Santa Fe–Rosario,
es menos sensible a los cambios coyunturales
km 4.
de la economía. Los hogares con Necesidades
• Altos de la Ribera, country club. Obra en
Básicas Insatisfechas (NBI) son los que
construcción, ubicada sobre la Autopista Santa
presentan al menos una de las siguientes
Fe–Rosario, km 7, frente a El Paso.
Las Alamedas , barrio privado. Obra
situaciones: hacinamiento (hogares que
•
tuvieran más de tres personas por cuarto),
finalizada, ubicado sobre la Autopista Santa
vivienda precaria o pieza de inquilinato,
Fe–Rosario.
condiciones sanitarias deficientes (sin retrete),
• Dos Lagunas , barrio cerrado. Obra en
asistencia escolar (algún niño en edad
construcción, ubicado sobre la Autopista Santa
escolar –de 6 a 12 años- que no asistiera a la
Fe–Rosario, km 7, frente a El Paso.
escuela) y capacidad de subsistencia (hogares
• Los Molinos, club de golf. Obra finalizada,
que tuvieran 4 o más personas por miembro
ubicada en Recreo Sur, ruta 11, km 11. Área
ocupado y cuyo jefe no haya completado tercer
Metropolitana de Santa Fe.
grado de escolaridad primaria).
• Ubajay, country club. Obra finalizada,
Los barrios cerrados de Santa Fe no se
encuentran incluidos en el ejido urbano de
ubicada en San José del Rincón, ruta 1, km 9.
Área Metropolitana de Santa Fe.
Portal del Leyes , country club. Obra
la ciudad, ni integran alguna vecinal, por lo
•
que no se cuentan con datos demográficos
finalizada, ubicada en Arroyo Leyes, ruta 1, km
comparables a los de la tabla anterior. El
11,7. Área Metropolitana de Santa Fe.
516
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
El fenómeno de contraurbanización...
Santa Fe vive el fenómeno de la dualidad
urbana:
Tanto los barrios “ricos” como los
“pobres” contribuyen a la difusión urbana,
Nos encontramos, en definitiva, con dos
ciudades frente a frente: la ciudad rica
y la ciudad pobre, o la ciudad blanca y
la ciudad de color, con una separación
constituida por las clases medias. El
paso de una a otra es tanto más brusco
cuanto más débiles son las clases medias.
(Santos, 1973, p. 228)
al obligar a Santa Fe a crecer en forma de
“mancha de aceite”; los barrios cerrados,
al impedir el ingreso y circulación de
cualquier persona en su interior, hacen los
recorridos urbanos más largo, puesto que
hay que rodearlos, no se puede penetrarlos,
ocasionando una fragmentación de la ciudad;
además, especulando con el valor de la tierra,
Se trata de dos ciudades en una sola:
[...] la de los que pueden consumir – y
lo hacen en exceso – y la de los que
no pueden consumir sino lo mínimo; la
ciudad legal y la ciudad ilegal (desde
el punto de vista de la ocupación del
suelo); la ciudad formal y la ciudad
informal – considerando la economía–;
la ciudad limpia y la ciudad sucia; la
ciudad con áreas verdes y la ciudad sin
áreas verdes. Estas dos ciudades no
viven en contraposición, al contrario,
una se sirve de la otra, una necesita a la
otra. (Geraiges de Lemos, 1990, p. 99)
Esta dualidad urbana lejos de debilitarse
con la difusión urbana y la tendencia reciente
generalmente se ubican en espacios netamente
rurales, provocando intersticios urbanos,
que hacen de la ciudad una “máquina”
devoradora de todo tipo de recursos (suelo
fértil, infraestructura, materiales, etc). Por otro
lado, los barrios de villa miseria, también se
vuelven impermeables, intransitables, ya no
por un elemento físico como es el muro, sino
por la inseguridad que provocan las bandas de
delincuentes, quienes realmente se apropian
del espacio público y lo “privatizan” de una
manera muy singular.
Conclusiones
al reequilibrio incipiente en las jerarquías
urbanas latinoamericanas, se acentúa cada
Entrando en el nuevo siglo, las ciudades medias
vez más, agravando la crisis social y la pobreza
albergan la mayoría de la población urbana del
extrema. Es expresión de la situación en la que
planeta; sus habitantes y los que habitan el
se encuentra la ciudad respecto al proceso
espacio rural circundante acceden a servicios,
globalizador: parte de la ciudad se encuentra
bienes, infraestructura y fuentes de empleo.
conectada globalmente, pero desconectada
Tradicionalmente, los estudios urbanos ponían
localmente.
su mirada especialmente en las megaciudades
La dualidad urbana es considerada
y grandes metrópolis, encontrándose escasos
un mal de la gran ciudad latinoamericana,
análisis sobre ciudades medias y los procesos
que se evidencia en el espacio a través de la
que allí ocurren.
segregación territorial (de aquellas personas
Hoy, es allí, en las ciudades medias y
que son relegadas a vivir en terrenos no aptos
pequeñas de las jerarquías urbanas nacionales
y sin servicios) y la marginalidad social.
donde se produce la mayor dinámica de
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
517
María Mercedes Cardoso
cambio; es preciso conocer los procesos para
porque tienden a reequilibrar la población,
encauzar los esfuerzos de gestión y trabajar
a reducir las densidades demográficas, pero
de manera integrada, atendiendo a la realidad
en verdad, contribuyen a la radicación,
metropolitana.
cada vez con más peso de la ciudad difusa,
La contraurbanización representa
modelo de gran impacto (muy negativo,
un riesgo y a la vez una oportunidad,
se entiende) ambiental y social. Espacios
principalmente para las ciudades medias
rurales tradicionales que pasan a desempeñar
argentinas, de saber explotar sus ventajas
funciones residenciales ven, en poco tiempo,
comparativas, de realzar sus virtudes y
cómo se transforma radicalmente el paisaje y
fortalezas, ya sea por medio de sus elementos
se deteriora el sistema natural en su totalidad.
heredados, o de los recientemente creados en
En los aspectos sociales, el choque brusco entre
el contexto del desarrollo endógeno y de la
población rural y los nuevos habitantes urbanos
globalización.
(o rururbanos) a esos medios, con pautas
En el Área Metropolitana de Santa Fe
culturales distintas, genera conflictos que los
se están dando procesos de desconcentración
alejan de la buena convivencia e integración.
poblacional porque crecen más las ciudades
Así, se exageran los contrastes sociales y se
de la corona metropolitana que el municipio
acrecienta la segregación.
principal; además la ciudad de Santa Fe
D e s d e l a p e r s p e c t i va a m b i e n t a l ,
disminuye su dinámica económica en las
resulta imperativo controlar la difusión
actividades secundarias y en comercio, pero se
urbana desencadenada por el surgimiento
terciariza, especializándose en servicios, con el
de barrios cerrados suburbanos o la
perjuicio de generar movimientos pendulares.
densificación de vecinales de bajos recursos, de
La incorporación de suelo rural al ejido
autoconstrucción, que fragmenta la ciudad, que
urbano responde a la necesidad de la ciudad
margina grupos sociales, que crea verdaderos
de contar con mas y mejores espacios, a precios
muros interiores y que atenta, en definitiva, con
más accesibles; parecería tener repercusiones
la verdadera y tradicional función de la ciudad:
positivas en la calidad de vida de los habitantes
la convivencia de sus habitantes.
María Mercedes Cardoso
Doctora y Profesora en Geografía en la Facultad de Humanidades y Ciencias da Universidad Nacional
del Litoral. Santa Fe, Argentina,
[email protected]
518
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
El fenómeno de contraurbanización...
Notas
(1) El primer autor en referirse a contraurbanización fue B. Berry, quien se refiere a movimientos
centrífugos desde las grandes ciudades hacia los pequeños asentamientos urbanos y rurales.
BERRY, B. J. (1976). Urbaniza on and Contraurbaniza on. Nova York, Arnold.
(2) Personas que recorren las calles recogiendo basura para luego seleccionarla y venderla.
Generalmente cuentan con un carro rado por caballos.
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Texto recebido em 11/fev/2011
Texto aprovado em 22/mar/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011
521
Família sem casa e casas sem família:
o caso da Região Metropolitana
de Belo Horizonte
Homeless families and families without homes:
the case of the Metropolitan Region of Belo Horizonte
Ana Paula Maciel
Ana Paula Baltazar
Resumo
Os dados sobre déficit habitacional e vacância
residencial na RMBH mostram que enquanto
faltam imóveis para habitação de interesse social,
sobram domicílios vazios. Este artigo apresenta
um diagnóstico crítico da vacância residencial
na região, que visa subsidiar a caracterização do
estoque vago e sua possível mobilização para
habitação de interesse social. Primeiramente,
delineia-se a relação entre vacância residencial
e produção capitalista de moradias, visando
precisar o cenário que propicia o desencontro
entre déficit e vacância. Posteriormente, são
listados conceitos relevantes para a definição do
fenômeno estudado, partindo-se para uma análise
do (pseudo) equilíbrio do mercado de moradias e
da divisão econômico-social do espaço residencial
e suas relações com a existência do estoque de
domicílios ociosos na RMBH.
Abstract
Data on housing shortage and housing vacancy
of homes in the Metropolitan Region of Belo
Horizonte (MRBH) show that while there is a lack
of properties for social housing, some buildings
remain empty. This paper presents a critical
diagnosis of property vacancies in that region
aiming to support the characterization of vacant
properties and their possible mobilization for
social housing. It first outlines the relationship
between vacant housing and capitalist production,
to clarify the scenario that provides the mismatch
between housing shortage and current vacancy.
Subsequently relevant concepts for the definition of
the phenomenon are listed, moving to an analysis
of the (pseudo) equilibrium of the housing market
and economic and social division of the residential
space and its relations to the existing stock of
empty homes in the MRBH.
Palavras-chave: vacância imobiliária; habitação
de interesse social; Região Metropolitana de Belo
Horizonte; produção capitalista de moradia.
Keywords: real state vacancy; social housing;
Metropolitan Region of Belo Horizonte; capitalist
housing production.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar
Introdução
Habitação, Vida Cotidiana e Qualidade de Vida
A crise da habitação no Brasil é marcada por
do Ministério das Cidades (MCidades) de que a
uma grande contradição. Em 2005, a Fundação
[...] informação municipal, mesmo quando baseada em estimativas, costuma
representar uma maior aproximação da
realidade do que a informação obtida
em bases de dados muito abrangentes e
atua lizadas em períodos relativamente
longos. (PDDI-HVQ-4, 2010, p. 194)
(HVQ).3 Tal pressuposto reforça o entendimento
João Pinheiro (FJP)1 já apontava que 5.890.139
famílias moravam em estruturas improvisadas,
compartilhavam a mesma habitação ou viviam
em moradias rústicas, impróprias ao uso. Em
contrapartida, 6.029.756 domicílios permaneciam vazios, apesar de apresentarem condições
de ocupação. Se todos eles fossem ocupados
A pesquisa bibliográfica revelou a exis-
pelas famílias que compõem o déficit habita-
tência de uma série de estudos internacionais
cional, ainda teríamos um saldo de 139.617
sobre o assunto em contraposição a um relati-
domicílios vagos. Os cálculos evidenciam que
vo silêncio na literatura nacional. É necessário,
sobram condições materiais para responder à
portanto, que o fenômeno da vacância imobi-
demanda por habitação no país. Na maioria
liária seja também estudado na realidade bra-
dos casos, entretanto, as moradias ociosas não
sileira, em face das altas taxas de ociosidade
são acessíveis às famílias que delas necessitam.
encontradas. Diante da existência simultânea e
Pretende-se aqui entender a simultanei-
contraditória de imóveis vagos e carência ha-
dade entre déficit e ociosidade de habitações
bitacional, entende-se que seja crucial uma in-
na Região Metropolitana de Belo Horizonte
vestigação para começar a discutir mecanismos
(RMBH), tomada como objeto de estudo. Tam-
capazes, tanto de coibir o aumento contínuo
bém para 2005, a FJP indicou a existência na
de imóveis vagos na região e em todo o país
região de 163.554 domicílios vagos e 104.048
quanto de remover os obstáculos para a dispo-
famílias morando em condições características
nibilização de domicílios ociosos para famílias
2
do déficit habitacional. Para o presente estudo,
com carência de moradia.
além da compreensão dos números fornecidos
A investigação objetiva identificar os
pela FJP, buscou-se informações qualitativas
aspectos teóricos que circundam o fenômeno
nas prefeituras de cada um dos 34 municípios
estudado. Num primeiro momento, busca-se
que compõem a RMBH. O “conhecimento vivi-
estabelecer as bases para a compreensão da
do” dos técnicos entrevistados somado aos da-
relação entre vacância residencial e produ-
dos estatísticos conferiu-lhes maior densidade.
ção capitalista de moradias. Num segundo,
A obtenção de esclarecimento junto a agentes
apresenta-se um panorama das necessidades
mais próximos da realidade dos espaços coti-
habitacionais e do quantitativo de domicílios
dianos foi uma das premissas dessa pesquisa,
vagos na RMBH. No terceiro momento, listam-
desenvolvida no âmbito do Plano Diretor de
-se alguns conceitos importantes para a defi-
Desenvolvimento Integrado da RMBH (PDDI-
nição do fenômeno da vacância imobiliária,
-RMBH) como parte dos trabalhos da equipe de
fundamentados em pesquisa bibliográfica. Na
524
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
Famílias sem casa e casas sem família
quarta parte, explicita-se como a crença em
Diferentemente do que acontece sob a coor-
um (pseudo) equilíbrio do mercado de mora-
denação do Estado, o acesso ao solo urbano
dias está relacionada à formação do estoque
via mercado é definido essencialmente pelo
vago, com destaque para o papel desempe-
acúmulo de capital monetário. Quando a distri-
nhado pelo Estado na definição dos rumos
buição da riqueza é determinada estritamente
da economia. Por fim, encerra-se com uma
por relações de troca, capitais dos tipos políti-
discussão sobre a divisão econômico social do
co, simbólico e institucional perdem em ordem
espaço residencial e sua ligação com o deslo-
de importância. Também cabe observar que as
camento de famílias e com a permanência de
trocas podem ocorrer legal ou ilegalmente, ca-
domicílios ociosos na RMBH.
racterizando o que convencionalmente conhecemos como mercados formal e informal.
As lógicas do Estado e do mercado são
Imóveis vagos, lógicas
de produção e consumo
da habitação
largamente exploradas em trabalhos acadêmicos e preponderam na literatura sobre o solo
urbano. Abramo, entretanto, chama a atenção
para uma terceira forma de coordenação social
ainda pouco estudada, por ele denominada
A análise do fenômeno da vacância imobiliá-
“lógica da necessidade”. Diferentemente das
ria passa por uma problematização conceitual
demais, ela
dos processos sociais de acesso e utilização do
espaço urbano. Muitos autores propõem uma
organização da estrutura socioespacial das
grandes cidades segundo duas lógicas distintas
de coordenação das ações individuais e coletivas: lógica do Estado e lógica do mercado. Na
[...] não exige um capital político, institucional ou monetário acumulado; a princípio, a necessidade absoluta de dispor de
um lugar para instaurar-se na cidade seria
o elemento para acionar essa lógica de
acesso à terra urbana. (Ibid., p. 2)
primeira delas, o Estado, como coordenador social, tem poder de definição sobre as formas de
distribuição da riqueza da sociedade. Nesse caso, para o acesso ao solo urbano, um indivíduo
ou grupo de indivíduos deve ter
[...] algum acúmulo de capital que pode
ser político, institucional, simbólico ou de
outra natureza de tal forma que permita o
seu reconhecimento como parte integrante da sociedade e do seu jogo de distribuição das riquezas sociais. (Abramo, 2005,
p. 2)
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
A lógica da necessidade é baseada, simultaneamente, na motivação e instrumentalização social, sendo seus principais exemplos as favelas
e as ocupações de terras e de edificações ociosas.4 As três formas de acesso ao solo urbano
coexistem nas cidades brasileiras sob o manto
econômico-social capitalista e podem interagir
de forma harmoniosa ou conflitante. Importa entendermos que a existência simultânea
de concordâncias e desequilíbrios não é mera
disfunção, mas sim uma condição inerente à
525
Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar
essência contraditória e incoerente das rela-
demonstram as autoras, tal correspondência
ções capitalistas de produção. A permanência
entre termos (capitalista/de mercado/comer-
de domicílios ociosos em áreas consolidadas
cial, não capitalista/não comercial) incorre no
das cidades em números superiores aos do dé-
equívoco de se equiparar forma de produção a
ficit habitacional é apenas um dos resultados
forma de circulação:
dessa contradição.
As lógicas do Estado e da necessidade
são, em princípio, formas não capitalistas de
produção de moradia, uma vez que o agente
que investe na produção não tem como meta
a valorização de um capital, mas sim o uso do
imóvel, criando desse modo o chamado “valor
de uso”, que é independente do “valor de troca”5 (Kapp, Baltazar e Velloso, 2005). Inversamente, na lógica do mercado, a produção de
um valor de uso só se justifica para obtenção
de mais-valia, ou seja, para alcançar um valor
de troca superior ao capital inicialmente investido no processo de produção. O fenômeno da
Enquanto a mercadoria produzida no
processo de valorização de capital precisa ser comercializada para atingir seus
objetivos, isto é, dar fim ao ciclo produtivo, realizar o lucro e reiniciar um
novo ciclo, o bem produzido por outros
processos atinge seus objetivos com a
obtenção do valor de uso sem que a comercialização seja necessária. Mas isso
não impede que o objeto produzido seja
comercializado como mercadoria em algum momento de sua vida útil. Mercado imobiliário e produção capitalista de
imóveis não são a mesma coisa. (Kapp,
Baltazar e Velloso, 2006, p. 8, grifos
nossos)
vacância imobiliária segue a lógica de mercado, uma vez que a reserva de imóveis para os
Outro equívoco recorrente é a genera-
capitais, independentemente das necessida-
lização da noção de especulação imobiliária
des sociais de uso, é uma ação voltada funda-
nos debates. Na verdade, a emergência desse
mentalmente para o valor de troca. Isso não
tema nas discussões funciona mais como cor-
impede, contudo, que esse fenômeno também
tina de fumaça, relegando as reflexões sobre
esteja relacionado às lógicas do Estado e da
a distribuição dos produtos imobiliários (mer-
necessidade, seja pela omissão do poder pú-
cado) e a produção dos imóveis (capitalista
blico na produção do espaço, 6 seja pela visi-
ou não) a um segundo plano. É importante ter
bilidade conferida aos imóveis vagos após a
em mente que mercado imobiliário não é um
ocupação de edificações e lotes urbanos pelos
sinônimo de produção capitalista de imóveis
movimentos de luta por moradia.
e nem, tampouco, de especulação imobiliária.
O uso do termo “mercado”, entretanto,
Além disso, a noção de especulação é apenas
apresenta algumas limitações para a abor-
um terceiro aspecto do debate que, em geral,
dagem pretendida. Segundo Kapp, Baltazar e
“serve mais para confundir do que para expli-
Velloso (2006), o emprego de termos como “de
car, pois remete a relação a uma indetermi-
mercado” ou “comercial” para designar produ-
nação econômica, sobretudo quando se quer
ção capitalista é corriqueiro, do mesmo modo
estabelecer relações entre ganhos ‘lícitos’ e
que para produção não capitalista é usada a
‘ilícitos’” (Ribeiro, 1982, p. 32). Kapp, Baltazar
expressão “não comercial”. No entanto, como
e Velloso esclarecem a esse respeito que
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
Famílias sem casa e casas sem família
[...] embora os discursos neoliberais tenham nos habituado a identificar esses
termos, cabe lembrar que mercado é uma
instância de compra e venda, capitalismo
é um modo de produção, e especulação é
um expediente improdutivo de apropriação circunstancial de valor. (2009, p. 11)
o estoque de domicílios vagos computados pelas estatísticas oficiais.
Em síntese, pode-se dizer que a falta
de correspondência entre moradias vagas e
carência habitacional se deve, em grande parte, ao fato de que a produção de moradias é
fundamentalmente capitalista, atendendo a
Conforme mencionado, há um desco-
uma demanda solvável que cresce em função
nhecimento generalizado sobre o fenômeno
da renda e que, por isso, negligencia as neces-
da vacância de edificações no país. Apesar da
sidades habitacionais de famílias com menor
existência de pesquisas quantitativas em âm-
poder aquisitivo. Na verdade, é importante ob-
bito nacional,7 veremos a seguir que os dados
servar que essas necessidades nem sequer se
carecem de uma abordagem qualitativa e de
configuram como demandas no contexto da
um trabalho empírico que confira peso ade-
produção capitalista de moradias. Tais consi-
quado aos números coletados. Atualmente,
derações preliminares serão ilustradas no item
a falta de informações produz algo como um
seguinte, que traz um panorama das necessida-
“senso comum” sobre o fenômeno da vacân-
des habitacionais e domicílios vagos na RMBH.
cia residencial. Esse senso comum, somado
O objetivo é evidenciar a contradição existente
aos equívocos que podem ser gerados pelo
entre o número de famílias sem casa e de casas
uso genérico dos termos “especulação imobi-
sem família no contexto específico da região,
liária” e “mercado imobiliário” pode conduzir
além de apontar alguns aspectos sobre a meto-
ao entendimento de que o fenômeno estudado
dologia de cálculo de domicílios vagos adotada
ocorre somente no âmbito da circulação dos
pela FJP.
imóveis (mercado) quando na verdade suas
raízes estão na forma de produção capitalista de moradias. Como visto, essa produção é
pautada pelo valor de troca, tendo como enfoque aspectos como a geração de empregos
Famílias sem casa e casas
sem família na RMBH
e o aquecimento da economia. Vários são os
obstáculos para a reprodução desse capital,
Os dados referentes às necessidades habita-
como a alta durabilidade das habitações e a
cionais têm passado por um notável processo
falta de solvabilidade da demanda, mas, por
de qualificação desde a década de 1990. Hoje
ora, importa observar que a produção capita-
já é possível distinguir, dentre várias catego-
lista, seja de carros, habitações ou bolas de fu-
rias,8 aquelas unidades rústicas que precisam
tebol, trabalha sempre com o conceito de so-
ser repostas ou as unidades carentes de servi-
bra ou acumulação. No contexto específico da
ços de infraestrutura que necessitam somente
produção capitalista de moradias, a contínua
de melhorias, por exemplo. Uma rápida análi-
acumulação tem como resultado um enorme
se quantitativa das categorias propostas pela
excedente de imóveis. Tais imóveis compõem
FJP na realidade específica da RMBH aponta
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
527
Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar
claramente que a solução do problema habi-
para suprir as necessidades de reposição e
tacional não deve se restringir ao provimento
incremento do estoque, ainda assim, resta-
de novas unidades habitacionais. Conforme
ria um saldo de 9.474 domicílios vazios. Ca-
indicam os Gráficos 1 e 2 a seguir, a aborda-
be destacar que esse número pode tornar-se
gem também deve levar em conta a melhoria
ainda maior. A categoria “ônus excessivo com
do estoque existente, o maior provimento de
aluguel”, incluída como necessidade de incre-
infraestrutura e a redistribuição dos imóveis
mento de estoque em 2006,10 representa cer-
ociosos. Os dados sobre domicílios vagos, por
ca de 47% do déficit habitacional da região e
sua vez (Gráfico 3), evidenciam a existência
se sobrepõe às demais categorias. Desse mo-
de um número de unidades ociosas e em cons-
do, caso todas as moradias que se encontram
trução na RMBH (108.474+30.404 = 138.878
nessa condição fossem desocupadas, cerca de
domicílios) superior ao déficit habitacional,
60 mil unidades seriam somadas ao estoque
correspondente, em 2007, a 129.404 unida-
ocioso já existente. A inserção desse compo-
9
des. Isso quer dizer que se todas as unidades
nente no cálculo do déficit habitacional torna-
vagas ou em construção fossem mobilizadas
-se, portanto, questionável.
Gráficos 1 e 2 – Déficit e inadequação habitacional RMBH
Fonte: FJP, 2009 – dados trabalhados.
528
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
Famílias sem casa e casas sem família
Gráfico 3 – Domicílios vagos RMBH
Fonte: FJP, 2009 – dados trabalhados.
Diferentemente dos dados utilizados
O estudo de um percentual residencial
para o cálculo de necessidades habitacionais,
médio necessário para o funcionamento natu-
as informações sobre domicílios vagos não
ral do mercado imobiliário será contemplado
são coletadas observando critérios qualitati-
no item seguinte, quando alguns fenômenos
vos, apesar de revelarem números expressivos
pertinentes aos imóveis vagos serão concei-
que não devem ser desconsiderados. Por essa
tuados. Como veremos, tal percentual, usual-
razão, os pesquisadores da FJP consideram as
mente chamado “taxa de vacância natural”
estatísticas fornecidas insuficientes como único
tem sido objeto de várias pesquisas inter-
respaldo para a formulação de políticas públi-
nacionais, enquanto que, em âmbito nacio-
cas que contemplem a vacância residencial e
nal, ainda é encontrado um relativo silêncio.
chamam a atenção para a importância de uma
Seria interessante que uma pesquisa similar
caracterização qualitativa do estoque existente.
fosse realizada para os padrões brasileiros. A
Segundo a instituição de pesquisa (FJP, 2009),
identificação do público a que se direcionam
devem ser considerados quatro pontos princi-
e dos motivos que os deixam vagos também
pais com relação aos imóveis vagos:
serão discutidos com o objetivo de investigar
(1) estudo de um percentual médio do estoque
as raízes do fenômeno da vacância residencial
habitacional necessário para o funcionamento
e os fatores que mantêm os imóveis vagos e
natural do mercado imobiliário;
inacessíveis para a população de renda baixa.
(2) identificação dos motivos que os deixam
Para isso, é importante que a compatibilidade
vagos;
entre os perfis dos domicílios ociosos e das
(3)
famílias que compõem o déficit habitacional
identificação do público a que se
direcionam;
seja verificada, tendo como horizonte a atua-
(4) obtenção de detalhamentos mais precisos
ção das políticas públicas de habitação de
sobre suas condições, localização, situação de
interesse social11 (HIS). Ante o cenário contra-
propriedade e padrão de construção.
ditório que se apresenta entre imóveis vagos
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
529
Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar
e déficit habitacional, busca-se entender as
de moradias e não na sua distribuição. Esta se-
possibilidades e limites da mobilização do es-
rá a discussão proposta nos dois itens seguin-
toque ocioso para a promoção de moradias de
tes. Por ora, serão listados alguns conceitos
interesse social em áreas consolidadas, tendo
relevantes para uma melhor compreensão do
como contraponto a lógica preponderante de
fenômeno estudado.
produção de habitações destinadas às famílias
socialmente vulneráveis em regiões periféricas
com o consequente crescimento excessivo do
perímetro urbano e esvaziamento dos centros
adensados dos municípios.
Imóveis vagos e seus
fenômenos típicos
Com relação ao quarto ponto colocado
pela FJP – detalhamento dos imóveis vagos –,
Os termos empregados para caracterizar os
não há dúvidas da importância de que ca-
fenômenos típicos que podem ocorrer quando
racterísticas como o grau de conservação e a
lotes existentes em áreas consolidadas não
compartimentação interna dos imóveis sejam
são ocupados ou quando edificações ficam
conhecidas para que, por exemplo, as possibi-
desocupadas carecem de um esclarecimento
lidades de ocupação imediata sejam discutidas.
conceitual. Tal esclarecimento pretende tornar
Também devem ser identificadas a localização,
claros alguns aspectos teóricos que circundam
a existência de pendências jurídicas e a situa-
o objeto de estudo, fundamentados em pesqui-
ção patrimonial do imóvel. Sua posição na
sa bibliográfica, ainda que sejam escassas as
cidade se relaciona às possibilidades de aten-
referências nacionais sobre o tema.
dimento ao público-alvo dos programas ha-
A obsolescência designa o momento em
bitacionais. Uma identificação preliminar dos
que a função original de um edifício deixa de
imóveis de propriedade do poder público ou
existir. A partir de então, a estrutura pode ser
daqueles cujas condições patrimoniais sejam
demolida, adequada a outra função ou até
menos complexas, facilitaria todo o processo.
mesmo desmontada, transformada e arma-
No entanto, uma microcaracterização nesse ní-
da em outro local, se sua constituição assim
vel só seria possível mediante a realização de
permitir. A alternativa adotada dependerá do
uma pesquisa em larga escala, que ultrapassa
grau de flexibilidade da edificação: estruturas
o objetivo deste trabalho, mas que deve ser
que oferecem poucas possibilidades de muta-
considerada como ponto de partida para a ela-
ção e adequação a novos usos acabam tendo
boração de qualquer política pública que tenha
que ser demolidas. Em contrapartida, em um
como mote a mobilização do estoque vago.
edifício cuja obsolescência é programada (ou
Como já destacado, para conferir maior
prevista), menos problemáticas são as adapta-
densidade aos dados coletados é proposta uma
ções. Edificações coordenadas modularmente,
abordagem qualitativa da vacância residencial.
por exemplo, permitem alterações de espa-
Pretende-se com isso ir além das considerações
ço e de uso com mais facilidade, ampliando
feitas pela FJP, partindo do pressuposto de que
as possibilidades de utilização das estruturas
a raiz do problema está na produção capitalista
quando a configuração espacial original se
530
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
Famílias sem casa e casas sem família
torna obsoleta. Alternativas como essa são
espaços (vazios e ocupados), é estratificado de
potentes por pensarem o edifício no tempo,
acordo com os distintos usos e funções. Assim,
programando sua obsolescência. Se bem utili-
espaços não edificados, domicílios e unidades
zadas, podem contribuir para evitar que o es-
comerciais, por exemplo, nunca entram na mes-
toque de edificações obsoleto se torne ocioso,
ma conta. Convencionalmente, a ociosidade
ou seja, paralisado no tempo e sem exercer
comercial e fundiária é medida por área, en-
sua função social. A obsolescência progra-
quanto a residencial é calculada por unidades
mada é uma estratégia que pode ser adotada
domiciliares (Santiago, 2005, p. 17). Assim, na
como forma de prevenção ao acúmulo de edi-
RMBH teríamos em 200512 uma taxa de vacân-
ficações ociosas ao longo do tempo, em áreas
cia correspondente a 13,94% (163.554 domi-
consolidadas.
cílios vagos/1.173.032 domicílios particulares
A ociosidade é gerada quando um lo-
permanentes).
te ou um edifício permanece vazio apesar de
Discussões sobre o percentual de vacân-
apresentar condições de ocupação. No caso
cia de edificações são corriqueiras na literatura
das edificações, a ociosidade pode vir após a
internacional que há tempos debate a perti-
obsolescência, quando a estrutura não apre-
nência de se estabelecerem taxas típicas para
senta condições de adequação para novos usos
medir a ociosidade do espaço construído, con-
e também não é demolida. Jud e Frew (1990)
vencionalmente chamadas “taxas de vacância
vinculam a ociosidade de moradias à sua “ati-
natural”. Segundo Amy, Ming e Yuam (2000)
picidade”, ou seja, quanto mais diferente dos
essas taxas correspondem a um nível ideal de
padrões convencionais de construção e arran-
“equilíbrio” do estoque imobiliário (comércio,
jos internos for a unidade, maior probabilidade
serviços e domicílios), necessário tanto como
terá de tornar-se obsoleta (mesmo não ocor-
estoque regulador para atender às contingên-
rendo modificação de uso) e futuramente ocio-
cias futuras quanto como facilitador das tran-
sa. Algumas edificações, no entanto, tornam-se
sações de venda e aluguel no mercado. Caso
ociosas mesmo nunca tendo sido obsoletas,
não existissem edificações vagas à disposição,
muitas vezes pelo simples abandono. Esse ca-
a atividade imobiliária se traduziria numa
so ocorre com muitas habitações, sendo um
“dança de cadeiras”: a cada desejo ou necessi-
dos fatores responsáveis pelo grande estoque
dade de mudança, famílias deveriam trocar de
de domicílios ociosos, como demonstra a FJP.
casa entre si ao invés de adquirirem novas ha-
Estima-se que esse tipo de ociosidade resulte
bitações ou de alugarem domicílios com confi-
de um fenômeno típico da produção capitalista
gurações espaciais e/ou localizações diferentes.
de moradias: a superprodução.
Em outras palavras, sem um percentual mínimo
Ao percentual de lotes e edificações que
de unidades vagas, não haveria mercado imo-
permanece ocioso em uma determinada área
biliário. Daí o intenso debate internacional em
(um bairro, um município, uma região ou um
torno das taxas de vacância naturais. No Bra-
país) é dado o nome taxa de vacância. Esse
sil, o foco das discussões acerca da tipicidade
percentual, que corresponde à relação en-
e atipicidade desse percentual é o tempo que
tre todos os espaços vazios e o total geral de
o imóvel permanece vago, embora profissionais
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Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar
da área já se posicionem em favor de ampliar o
tratando-se dessa produção, como bem coloca
debate no sentido de buscar as razões da ocio-
Gorender (1996, p. 32): “o equilíbrio não po-
13
sidade dos imóveis.
de ser mais do que uma tendência que pres-
Algumas pesquisas internacionais con-
siona em meio aos fatores desequilibrantes e
sideram que o percentual médio do estoque
se manifesta enquanto média de inumeráveis
habitacional necessário para o funcionamento
flutuações, jamais suscetível de fixação”. Nes-
“natural” do mercado de moradias estaria em
se sentido, o estoque de edificações vagas é,
torno de 5 (Belskya, 1992) a 6,5% (Jud e Frew,
com razão, um regulador, mas jamais pode ser
1990). Ao ultrapassar esse limite, a ociosidade
considerado um estoque “de equilíbrio”. A re-
já se tornaria atípica e, portanto, um problema.
lação entre imóveis vagos e pseudoequilíbrio
Seguindo esse raciocínio, Amy, Ming e Yuam
do mercado de moradias será aprofundada no
(2000) consideram que a relação entre a ta-
item seguinte.
xa de vacância natural e a existente (e não o
Outro conceito relacionado aos domi-
seu percentual existente total) determinaria o
cílios vagos é a cadeia de vacância, definida
“equilíbrio” ou “desequilíbrio” das transações
pela sucessão de deslocamentos espaciais ao
imobiliárias. A fixação de percentuais “natu-
longo da estrutura urbana. O deslocamen-
rais” seria, portanto, importante para monito-
to de famílias para novos empreendimentos
rar as condições de mercado (ibid., 2000). Se
imobiliários é considerado seu ponto inicial, a
considerarmos hipoteticamente o percentual
partir do qual uma reação em cadeia de tran-
médio proposto por Belskya (1992) para a RM-
sações com imóveis mais antigos é gerada.
BH, a taxa de vacância residencial teria 8,94%
Quanto maior a abrangência da cadeia, menor
de atipicidade (vacância encontrada menos a
será a atipicidade da taxa de vacância, ou seja,
vacância típica ou natural), atestando o “de-
mais próxima ela estará do índice considera-
sequilíbrio” do mercado de habitações na re-
do “natural” para seu ambiente. O movimento
gião. Isso também significaria que, dos 163.554
que torna o estoque de habitações gerado por
domicílios vagos existentes em 2005, cerca de
famílias que trocaram de residência acessível a
105.000 poderiam ser ocupados sem prejudicar
outros grupos com uma renda inferior é conhe-
as transações de moradias na região.
cido como filtragem. O grande estoque de edi-
No entanto, cabe contrapor que a fun-
ficações ociosas existente na RMBH é resultan-
ção reguladora do estoque imobiliário não
te de uma filtragem pouco efetiva, caracterís-
pode ser verdadeiramente caracterizada como
tica de cadeias de vacância curtas. Movimen-
“de equilíbrio”, como suposto por Jud e Frew.
tos de filtragem ineficientes e cadeias pouco
De fato, o conjunto de edificações vagas con-
abrangentes na cidade são características de
siderado típico exerce uma função importante
realidades como a brasileira, onde é grande a
no ajuste dos desequilíbrios sucessivos ineren-
desigualdade de distribuição de riquezas (San-
tes à produção capitalista do espaço. Contudo,
tiago, 2005).
532
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
Famílias sem casa e casas sem família
Imóveis vagos
e pseudoequilíbrio
do mercado de moradias
do que controlar as atividades econômicas,
busca a regulação de mecanismos inerentes ao
mercado, no sentido de estabelecer um equilíbrio, ainda que fictício. Isso demonstra que
mesmo no país-símbolo do mercado livre capi-
Cabe chamar a atenção para o fato de que os
talista, justifica-se a ação do Estado na política
fenômenos listados no item anterior só são vá-
urbana. Harvey (2010) chama a atenção para o
lidos e “típicos” de uma formação econômico-
fato de que Adam Smith, além de aconselhar os
-social capitalista. Em Cuba, país que adota um
chefes de Estado a cultivar a riqueza em seus
sistema político-econômico socialista, a pro-
países por intermédio do sistema de livre mer-
priedade privada foi confiscada em 1959 por
cado, também considerava a intervenção do Es-
Fidel Castro e não existe mercado imobiliário.
tado como regulador e garantidor da distribui-
Sem mercado e sem produção capitalista de
ção das riquezas, algo que é sistematicamente
moradias, também inexistem unidades vagas
omitido dos discursos que citam o teórico do
à disposição e a atividade imobiliária de fato
liberalismo econômico. Em outras palavras, a
se resume à mencionada “dança de cadeiras”.
mão invisível do mercado de Smith não signi-
Nos Estados Unidos, a cidade de Nova Iorque
fica, segundo Harvey, a saída completa de cena
tem, desde a década de 1960, uma espécie de
da ação estatal. Tal pressuposto foi amplamen-
monitoramento de imóveis vagos regulamen-
te divulgado por Keynes. Desacreditado de que
tado em lei. Ao contrário de Cuba, entretanto,
o egoísmo dos produtores individuais seria o
a política da cidade é manter um estoque per-
instrumento da riqueza das nações, “Keynes
manente de domicílios vagos como estratégia
incumbiu a mão visível do Estado de intervir
de controle dos preços de aluguel no mercado.
no mercado, pôr as coisas em ordem e estabe-
Desse modo, uma taxa de vacância inferior a
lecer o equilíbrio do pleno emprego desejável
5% é considerada um problema, sendo inclu-
à segurança da organização social burguesa”
sive classificada como “estado de emergência
(Gorender, 1996, p. 32).
habitacional”. Tal parâmetro é fixado por leis
Entretanto, o que se percebe em muitos
que regem o valor do aluguel no estado e o
casos, em especial no Brasil, é que a interven-
controle periódico é feito por encomenda ao
ção do Estado tem ocorrido prioritariamen-
US Census Bureau, pelo Departamento de Pre-
te no sentido de manter o funcionamento do
servação e Desenvolvimento de Moradias da
mercado de oferta e procura de classes que já
cidade.14
ocupam os mais altos patamares de renda do
Os dois exemplos ilustram níveis dife-
país, em detrimento dos grupos com baixos
rentes de participação do Estado na regulação
rendimentos. A existência paralela do déficit
do mercado de moradias. Em Cuba, país onde
habitacional e de um estoque de domicílios
não há economia de mercado, quase todas as
ociosos cujo quantitativo supera o das neces-
atividades econômicas são, por premissa, sub-
sidades habitacionais demonstra o quão con-
metidas ao controle estatal. No caso norte-
traditória pode ser a ação estatal. Isso eviden-
-americano, contudo, há um Estado que mais
cia que a política urbana e habitacional tem
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
533
Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar
assumido um papel funcional na desobstrução
de forma conjunta na cidade para evitar incer-
sistemática de quaisquer fatores que se colo-
tezas e risco nos empreendimentos, até os con-
quem como obstáculos para as estruturas tra-
sumidores, “que não desejam outra coisa se-
dicionais de produção capitalista, sempre com
não a convergência espacial de famílias de um
a bandeira de crescimento econômico e rever-
mesmo tipo” (ibid., p. 126). Para Keynes, esses
são de problemas sociais. Nesse contexto, cabe
comportamentos atestam a existência de uma
ressaltar que o quadro contraditório da coexis-
convenção, que nada mais é do que uma certa
tência entre déficit e ociosidade habitacional
regularidade das relações de mercado. Contu-
não se configura, no sistema de produção ca-
do, tal regularidade é continuamente abalada
pitalista, como exceção, mas sim como regra.
pela inserção de inovações. A convenção como
Já foi visto que parte do montante de
princípio regulador opera, desse modo, através
edificações vagas é considerada um tipo de
de contradições e desequilíbrios sempre reno-
estoque regulador, necessário para atender às
vados que, de acordo com a teoria econômica
contingências futuras e facilitar as transações
marxista seriam “inerentes à essência das re-
de venda e aluguel. A necessidade de um per-
lações de produção capitalistas e não meras
centual “natural” de imóveis vagos é, entre-
disfunções [...] como as conceberia o funcio-
tanto, apenas um dos aspectos da questão. Na
nalismo” (Gorender, 1996, p. 33, grifos nossos).
verdade, a existência de domicílios ociosos não
Assim, a existência de vacância residen-
é funcional somente para que não haja “dança
cial atesta o que podemos denominar “pseu-
de cadeiras”, mas também, e principalmente,
doequilíbrio” do mercado de moradias. Uma
para garantir a produção de moradias de mo-
espécie de estabilidade momentânea que,
do global, uma vez que a retirada dos imóveis
bem distante do conceito de equilibração ideal
mais velhos de circulação é a única forma de
proposto pela tradição econômica ortodoxa,
garantir um fluxo de vendas contínuo para a
jamais consegue se ver livre de oscilações e
indústria imobiliária. Abramo (2007) considera
desvios. A inserção contínua de inovações pela
a depreciação fictícia dos estoques existentes
indústria imobiliária, desestabilizando as con-
uma estratégia de inovação adotada por essa
venções, atesta o papel de desequilibrador da
indústria para reduzir a concorrência que esses
ordem urbana assumido pelo empresário capi-
imóveis poderiam fazer ante a oferta capitalis-
talista. O imenso estoque de domicílios vagos
ta de novos produtos.
existente nas cidades brasileiras torna eviden-
A inovação espacial, entretanto, só é pos-
te que tal regulação pelo mercado se afasta
sível em função da existência do que Keynes
muito dos pressupostos de eficiência urbana.
denomina convenção. Segundo ele, no mercado
Ao contrário, o que ocorre é a depreciação de
residencial, há uma confluência de ações des-
mercadorias (habitações) e uma contínua su-
centralizadas dos indivíduos (atores do mer-
cessão de deseconomias. É evidente, portanto,
cado residencial), geralmente lançando mão
a necessidade premente da introdução de for-
de comportamentos característicos de massa.
mas de mediação não mercantilistas. Em ou-
Todos procuram antecipar as escolhas alheias,
tras palavras, isso significa que o Estado deve
desde os produtores de habitação, que atuam
começar a se ocupar em identificar os rastros
534
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
Famílias sem casa e casas sem família
de vacância e garantir que as famílias de baixa renda tenham acesso (direto e indireto) aos
imóveis vagos.
Imóveis vagos e mobilidade
residencial
residenciais pode ser estendida à cidade
como um todo, dando lugar a uma transformação generalizada dos bairros residenciais. (Ibid., p. 58)
Cabe contrapor, entretanto, que a descrição da cadeia de vacância ideal proposta por
Abramo não corresponde à realidade dos deslocamentos intrametropolitanos realizados na
Apesar da convergência entre os conceitos
RMBH. Como será visto, as mudanças de famí-
“mobilidade residencial” e “cadeia de vacân-
lias na região dificilmente são capazes de gerar
cia” (ou, em outras palavras, entre o desloca-
um encadeamento de deslocamentos que atin-
mento de famílias e o estoque de imóveis de-
ja a ordem urbana global e motive mudanças
le decorrente), as muitas pesquisas nacionais
residenciais de grupos com renda inferior. Esse
relacionadas ao primeiro tema dificilmente
é, inclusive, um dos principais motivos para a
tocam na questão do estoque imobiliário va-
existência do grande estoque de domicílios va-
go gerado pelo deslocamento, permanecendo
gos na RMBH.
o estudo sobre as cadeias de vacância uma
Mendonça estabelece uma relação entre
lacuna nos trabalhos nacionais. A pesquisa de
mobilidade residencial e disputas pela apro-
Abramo (2007) pode ser considerada, contudo,
priação dos recursos urbanos: “dado que a
uma exceção a essa regra. O autor propõe um
apropriação dos recursos urbanos é, no capita-
estudo da mobilidade residencial com foco nas
lismo, intrinsecamente desigual, a consequente
estratégias adotadas pela indústria imobiliária
divisão social do espaço faz com que a mobi-
para manter um fluxo de produção contínuo de
lidade residencial surja como fruto dessa divi-
moradias. Todavia, a redistribuição do estoque
são social e expresse, ao mesmo tempo, uma
de domicílios desencadeada pelo avanço do
mobilidade social” (2002, p. 15). Ainda segun-
capital é um tema também abordado em seu
do a autora, tais disputas resultam em um es-
trabalho, que mesmo sem utilizar a expressão
paço urbano hierarquizado e segregado, onde
“cadeia de vacância”, acaba nos fornecendo
não há mistura entre os diferentes estratos de
uma definição precisa do termo:
renda. A Figura 1 mostra como as famílias de
[...] as famílias (oportunistas) que se
mudam para zonas de renda superior
deixam para trás lugares que serão (potencialmente) ocupados por famílias de
renda inferior, gerando assim um processo de transformação de sua antiga zona
residencial [...]. E prosseguindo com esse
raciocínio até o nível mais baixo da escala dos rendimentos familiares, vemos
que a alteração da composição das zonas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
diferentes rendimentos se distribuem no território da RMBH. A imagem retrata um espaço
geograficamente segmentado, onde os grupos
mais ricos permanecem concentrados no centro da metrópole (espaço mais bem provido
de amenidades urbanas) enquanto a periferia
abriga predominantemente pessoas com renda
inferior. Merece destaque o alto percentual de
áreas ocupadas por famílias cujo chefe possui
535
Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar
Figura 1 – Divisão econômico social do espaço residencial RMBH
Fonte: FJP, 2005 – dados trabalhados pelo grupo de pesquisa MOM-UFMG.
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Famílias sem casa e casas sem família
Figura 2 – Domicílios vagos segundo a renda dos chefes de família RMBH
Fonte: FJP, 2005 – dados trabalhados pelo grupo de pesquisa MOM-UFMG.
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537
Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar
renda igual ou menor que 3 salários mínimos:
De acordo com a FJP (2009), cerca de 90% do
72% do território metropolitano. O restante
déficit habitacional da região metropolitana
do território (28% da área ocupada da RMBH)
(Gráfico 4) se concentra em áreas cuja renda
abriga famílias em que o chefe recebe entre
da população é igual ou inferior a 3 salários
3-6, 6-10 e 10 ou mais salários mínimos, esta
mínimos, ao passo que, como vimos, um gran-
última faixa contando com apenas 4% dos gru-
de número de unidades vazias se localiza em
pos familiares da região.
áreas ocupadas por famílias com rendimentos
A relação existente entre a desigualda-
acima dessa faixa salarial (Figura 2). Em nú-
de de distribuição de riquezas e a mobilidade
meros absolutos, isso significa dizer que de
residencial também deve ser pensada para
104.048 famílias carentes de moradia na RM-
o estoque de domicílios vagos, decorrente do
BH, cerca de 94.000 têm rendimento igual ou
deslocamento das famílias. A Figura 2 mostra
menor a três salários mínimos. Entretanto, 58%
a combinação de domicílios vagos com renda
(Figura2) dos imóveis vagos da RMBH não es-
dos chefes de família na RMBH (dados forneci-
tão localizados em áreas habitadas por essas
15
dos pelo Censo Demográfico de 2000). Como
famílias. Do total de 163.554 domicílios ocio-
era de se esperar, há uma clara relação entre
sos, cerca de 95.000 situam-se em áreas cujos
renda e vacância: o percentual de domicílios
chefes de família possuem rendimento médio
vagos nas áreas ocupadas por famílias de alta
mensal superior a três salários mínimos.16
renda (18% – Figura 2) é 4,5 vezes maior do
Como pode ser visto, mesmo que sobrem
que a participação desses grupos na área total
moradias, elas não são acessíveis para as famí-
da RMBH (4% – Figura 1). A ocupação do es-
lias que delas precisam. A simultaneidade entre
paço pelos grupos com maiores rendimentos é,
domicílios vagos e déficit habitacional é, por-
portanto, importante para o estudo do fenôme-
tanto, um problema que não se resolve por in-
no da vacância imobiliária na RMBH.
termédio de uma simples equação matemática
A distribuição do déficit habitacional
entre estoque positivo e negativo, subtraindo-
por faixa salarial também é útil para uma com-
-se do montante ocioso o déficit habitacional.
paração entre a concentração das moradias
Em outras palavras, a mobilização do estoque
desocupadas e a distribuição dos grupos ca-
vago para a promoção de HIS não se efetiva-
rentes de abitação no território metropolitano.
rá pela ocupação dos imóveis mais caros pela
Gráfico 4 – Déficit habitacional RMBH - divisão por faixa de renda
Fonte: FJP, 2009 – dados trabalhados.
538
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
Famílias sem casa e casas sem família
população de baixa renda. De outro modo, o
por uma distância dada pela natureza, mas,
que deve ser proposto é que o comprimento
sobretudo, pela localização intraurbana dos
das cadeias de vacância, ativadas pela mudan-
diversos tipos de famílias” (ibid., p. 39). Desse
ça de grupos de renda superior, seja alongado
modo, os grupos com maior renda não só de-
de maneira a atingir, na outra ponta, as famí-
finem sua própria localização no espaço como
lias que compõem o déficit habitacional. Assim,
acabam condicionando, ou mesmo escolhendo
é crucial que os fatores que contribuem para a
efetivamente, a localização dos demais grupos
pequena abrangência das cadeias de vacância
sociais. A possibilidade de escolha da localiza-
ativadas na RMBH, especialmente em áreas
ção residencial, diretamente proporcional ao
ocupadas pela população de alta renda, sejam
acúmulo de capital (monetário, político, insti-
elucidados.
tucional e simbólico), reflete assim, a divisão
De acordo com Mendonça (2002), a divisão econômico-social do espaço residencial
econômico-social do espaço residencial19 e a
hierarquia dos preços do solo.
tem sido uma marca da morfologia espacial
Essa divisão dificulta o funcionamen-
da RMBH desde sua formação, inaugurada
to das cadeias de vacância na RMBH. A cada
pelo projeto higienista de Aarão Reis. O pla-
mudança das famílias de renda superior, os an-
no do engenheiro não previa moradias para
tigos domicílios ou são mantidos vazios como
os trabalhadores, que passaram a ocupar as
formas de entesouramento, ou retornam ao
áreas periféricas da nova capital. Segundo a
mercado com preços inacessíveis para as fa-
autora, ao contrário do que ocorre em outras
mílias que não possuem nível de renda similar
17
metrópoles brasileiras, esse padrão de dinâ-
ao da antiga ocupante. Desse modo, quebra-se
mica de estruturação urbana se manteve na
o elo da cadeia de vacância e a sucessão de
RMBH, acentuando a separação entre grupos
deslocamentos espaciais ao longo da estrutura
populacionais com rendas distintas. Também
urbana não ocorre, pois o estoque de habita-
de acordo com Mendonça, os grupos de renda
ções gerado por famílias que trocaram de resi-
superior são os que mais se concentram no es-
dência não se torna acessível a outros grupos
paço, caracterizando um movimento voluntário
com uma renda inferior. O exame de Mendonça
de autoexclusão. Tal concentração é fruto das
(2002) sobre os fluxos migratórios na RMBH
18
disputas coletivas pela apropriação dos recur-
durante a década de 1980 revela que as áreas
sos urbanos e também das escolhas individuais
ocupadas por famílias com renda acima de 10
de localização com base em “externalidades
salários mínimos sofreram, simultaneamen-
de vizinhança”, termo empregado por Abramo
te, perdas populacionais e mudanças sociais
(2007) para definir a opção residencial de de-
ascendentes (cadeia de vacância comum), ao
terminados grupos, baseada na localização de
passo que o crescimento populacional e as
outras famílias. Segundo o autor, “basta intro-
mudanças sociais descendentes são típicas
duzir nas preferências individuais uma dimen-
das áreas ocupadas por famílias de baixa ren-
são de repulsa a tipos de famílias de menor
da nas periferias da metrópole, onde ocorre o
renda (externalidade de vizinhança) para que o
que pode ser considerado uma cadeia de va-
espaço, daí em diante, já não seja representado
cância invertida. Contraditoriamente, as áreas
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539
Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar
de maior renda, apesar de apresentarem perda
grandes obras e regulamentação de legislações
populacional, registram transbordamento terri-
urbanísticas. Todavia, como visto, tais ações de
torial e um crescimento substancial no número
intervenção do Estado têm se dado prioritaria-
de domicílios.
mente no sentido de garantir a expansão de
A predominância de um movimento de
capitais, sem necessariamente resguardar uma
mobilidade residencial descendente contribui
divisão igual de riquezas. Desse modo, as ações
para que as habitações deixadas vagas pelos
estatais, que têm impacto direto nas disputas
grupos de maior renda não motivem o encadea-
pelo território urbano, acabam por contribuir
mento de deslocamentos de outras famílias de
também na definição da divisão do espaço resi-
renda menor (movimento ascendente). Dessa
dencial da RMBH, impedindo que as cadeias de
forma, habitações com preços acessíveis para
vacância atinjam a ordem urbana global. Com
esses grupos não são disponibilizadas na outra
relação à execução de grandes obras, cabe di-
ponta. Essa cadeia de vacância incompleta, in-
zer que, em décadas passadas, houve um cla-
capaz de abranger a ordem urbana global, tem
ro privilégio das áreas de moradia dos grupos
como resultado o enorme estoque de domicí-
de renda superior. Hoje tais obras se voltam à
lios vagos registrado pelas estatísticas oficiais.
promoção de novas áreas de expansão para a
Como vimos, disputas coletivas pela apropria-
indústria imobiliária, como o Centro Adminis-
ção dos recursos urbanos e escolhas individuais
trativo de Minas Gerais (CAMG) implantado
de localização levam a um movimento de auto-
em uma área tradicionalmente ocupada por
exclusão dos grupos de renda superior que, de
grupos de renda baixa no vetor norte da re-
um lado, realizam mudanças de moradia sem-
gião. Contudo, fatores como a alta dos preços
pre ascendentes e, de outro, ao interditarem o
de terrenos nas áreas circundantes, em especial
prolongamento das cadeias de vacância que
no município de Santa Luzia, indicam que, ao
seriam ativadas por seu deslocamento, acabam
invés de uma melhoria dos espaços com a per-
por influenciar o padrão descendente de mobi-
manência de suas populações, o que ocorrerá
lidade residencial, realizado pelas famílias com
será um enobrecimento das áreas e a posterior
menores rendimentos. Entretanto, os grupos de
expulsão dos moradores originais, certamente
renda superior não estão sozinhos na definição
para espaços de renda inferior, confirmando o
da divisão econômico-social do espaço residen-
padrão de mobilidade residencial descendente
cial esboçada. Há outros agentes importantes
dos grupos mais pobres.
no jogo, destacando-se o papel do Estado e da
industria imobiliária.
A legislação edilícia também é um fator
crucial para a divisão econômico-social do es-
Como visto, o início da ocupação da no-
paço residencial. A Lei de Uso e Ocupação do
va capital de Minas Gerais esteve nas mãos
Solo (LUOS) é o instrumento que regulamenta
do poder público, por intermédio do plano de
a produção do espaço nas cidades e, depen-
Aarão Reis. Desde então, a intervenção es-
dendo do critério utilizado (como o zoneamen-
tatal tem orientado a ocupação do espaço
to de usos, por exemplo), pode tornar-se “com-
metropolitano, especialmente por intermé-
provadamente segregacionista e excessiva-
dio de políticas habitacionais, realização de
mente determinista das relações cotidianas na
540
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
Famílias sem casa e casas sem família
cidade” (PDDI-HVQ-4, 2010, p. 248). Atualmen-
grupos sociais na cidade, mas é a inovação,
te, a LUOS de Belo Horizonte adota o critério
entretanto, a estratégia responsável por elevar
do adensamento com quota de terreno por uni-
em seu grau máximo a divisão econômico-
dade, uma atualização da antiga lei antes ba-
-social do espaço residencial. A indústria imo-
seada no zoneamento por usos. Entretanto, por
biliária depende da exacerbação de diferenças
estar definido segundo o número de domicílios
na ocupação urbana para que possa manter
por hectare, o tipo de adensamento proposto
um fluxo de vendas continuo de seus produtos
tende a ampliar o tom segregacionista da lei
(residências). Tendo em vista que sua cartela de
anterior, definindo de antemão onde cada gru-
clientes se restringe a famílias que já possuem
po socioeconômico deve se localizar na cidade.
casas, somente a diferenciação real ou simbó-
As quotas de terreno por unidade habitacional
lica dos novos espaços, paralela à depreciação
associadas ao potencial construtivo “induzem
também simbólica das antigas habitações, irá
a ocupação dos terrenos com unidades de mes-
garantir a manutenção desse fluxo de vendas.
ma metragem quadrada e, consequentemente,
Em outras palavras, as pessoas que já possuem
para uma mesma faixa de renda, levando à
casas só irão adquirir novas habitações me-
homogeneidade e à segregação por zoneamen-
diante o oferecimento de algum “diferencial”,
tos” (ibid., p. 250).
seja ele de localização ou de produto (novos
Legislações urbanísticas desse tipo
ambientes no programa arquitetônico como
também geram condições favoráveis para a
varanda gourmet, pet care, etc.). As desigual-
indústria imobiliária. De modo geral, sua atua-
dades espaciais são, portanto, funcionais para
ção se dá por intermédio de duas estratégias
a indústria imobiliária que, mais do que seguir
distintas: expansão e inovação, esta última já
os movimentos populacionais, os antecede.20
abordada. A estratégia de expansão tem como
Mais uma vez, temos uma realidade que nada
objetivo absorver uma maior parte da renda
contribui para que as cadeias de vacância se
fundiária. Desse modo, a indústria imobiliária
tornem mais abrangentes no território. Ao con-
busca antecipar oportunidades através da ex-
trário, a falha da cadeia é ela mesma o sucesso
pansão do perímetro urbano dos municípios,
da convenção criada, uma vez que a autoexclu-
seja para a produção de lotes periféricos para
são dos grupos de renda superior é utilizada
baixa renda, seja para a promoção de novas
como estratégia de marketing das campanhas
localidades com seu posterior enobrecimento
dos novos empreendimentos.
e valorização dos empreendimentos. Outra
forma de antecipar oportunidades ocorre por
intermédio de pressão junto ao poder público
Post Scriptum
para o aumento dos coeficientes de aproveitamento em determinadas regiões visando a
A análise aqui apresentada integra a dis-
verticalização com moradias para as classes
sertação de mestrado da autora, orientada
média e alta.
pela coautora, que objetivou reunir informa-
A expansão já seria por si só um me-
ções para alimentar uma discussão qualita-
canismo eficiente de seleção e localização de
tiva sobre a vacância residencial na RMBH
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
541
Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar
e, consequentemente, em âmbito nacional.
fim, que contribuam para sua difusão estimu-
Partiu-se da constatação de que esse fenômeno
lando novos arranjos produtivos que remune-
tem sido tratado de modo superficial até então,
rem o trabalho e não os capitais. Essas medidas
seja por parte das instituições de pesquisa que
são consideradas cruciais para a redução da
divulgam dados sem profundidade, seja por in-
vacância residencial em todo o país. Espera-se,
termédio das políticas públicas nacionais, que
além disso, que elas também estimulem uma
tratam da vacância residencial de modo pou-
redução do controle dos capitais sobre os espa-
co articulado e com foco restrito às ações de
ços cotidianos. Não se pode perder de vista que
melhoria de edificações degradadas e/ou aban-
a forma de atuação da indústria imobiliária é
donadas, desconsiderando medidas mais estru-
decisiva para a formação do imenso estoque de
turais voltadas à mobilização do estoque vago
domicílios vagos existente. Assim, a produção
existente. Buscou-se discutir formas que facili-
capitalista de moradias pode ser considerada
tem o acesso das famílias carentes ao estoque
um dos principais contribuintes para a que-
de domicílios vagos, que interditem a ociosida-
bra de elos das cadeias de vacância não só na
de desse estoque forçando sua liquidez e, por
RMBH como em todo o país.
Ana Paula Maciel
Mestre em Arquitetura e Urbanismo, professora voluntária da Escola de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do grupo MOM-UFMG (Morar de Outras
Maneiras-UFMG).
[email protected]
Ana Paula Baltazar
Mestre em Arquitetura e Urbanismo, professora adjunta da Escola de Arquitetura da Universidade
Federal de Minas Gerais e pesquisadora do grupo MOM, UFMG.
[email protected]
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Famílias sem casa e casas sem família
Notas
(1) Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro (2005). Apesar de já existirem informações mais
atualizadas sobre déficit e vacância domiciliar, divulgadas pela ins tuição de pesquisa em 2006
e 2007, os dados sobre domicílios ociosos desagregados por setor censitário são provenientes
da pesquisa realizada em 2005. Desse modo, para garantir a equivalência de informações
optou-se por u lizar todos os dados do mesmo ano, ainda que isso implique uma defasagem de
dois anos. Cabe ressaltar que sendo esta uma pesquisa qualita va, os dados esta s cos serão
interpretados apenas como tendências, o que minimiza o problema da defasagem de dois anos
dos dados existentes, e, principalmente, da defasagem de cinco anos da vacância atual.
(2) Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro (2005).
(3) A elaboração do PDDI foi coordenada pelo Prof. Roberto Luis Monte-Mór (Cedeplar/UFMG) em
atendimento à solicitação da Secretaria de Estado de Desenvolvimento e Polí ca Urbana de
Minas Gerais (SEDRU-MG) e a equipe HVQ foi coordenada pela Profa. Silke Kapp (MOM/UFMG).
(4) Apesar de corresponderem à lógica da necessidade, é comum ver ocupações de terras ociosas
repe ndo padrões de ocupação pra cados em empreendimentos da indústria da construção
(lógica do mercado): “Ao contrário da favela ou de outros aglomerados consolidados, as
ocupações por movimentos sociais organizados têm reproduzido a lógica de parcelamentos
adotada pelo poder público ou por loteadores privados: as decisões são tomadas em um
único momento e segundo um plano geral, que define lotes individuais de propriedade
privada. Nas favelas, pelo contrário, a fluidez espacial e as possibilidades de negociação são
maiores; pedaços do terreno de um vizinho podem ser usados como passagem, ven lação
ou depósito, assim como eventualmente comprados ou alugados. O lote privado tem seus
limites rigorosamente definidos apenas com a ação externa de regularização. Já nas ocupações
organizadas, o parcelamento se faz nos moldes da cidade formal, inclusive com a perspec va
de formalização superior; apenas os lotes são menores (na ocupação Dandara, 128 m2)” (PDDIHVQ-4, 2010, p. 213).
(5) Ribeiro, diferente de Kapp, Baltazar e Velloso e de Abramo, considera a produção estatal de
moradias, via companhias estaduais de habitação , um submercado do segmento capitalista,
correspondente, portanto, à lógica de mercado. Segundo o autor, trata-se de “uma produção
capitalista cujo produto não circula necessariamente como capital. Com efeito, como o promotor
neste caso é um organismo público (CEHAB) ou os próprios compradores (cooperativas),
em princípio, não é a apropriação de um lucro de incorporação que orienta a produção.
Isto é possível pela função direta ou indiretamente exercida pelo Estado que, financiando
com subsídios a produção e a comercialização, fornece um capital que circula de maneira
desvalorizada” (Ribeiro, 1997, p. 124). Para Ribeiro, o segmento não capitalista de produção de
moradias restringe-se às formas de autoprodução “que têm como traço comum o fato de não
ser a acumulação de capital o que orienta a produção, mas a produção de valores de uso. Assim
sendo, quando estas moradias são colocadas no mercado, seus preços são fixados por condições
totalmente alheias à sua produção. Cons tuem-se, portanto, em moradias-mercadorias, mas
não capital” (ibid., p. 124).
(6) A produção do espaço, na verdade, não tem ocorrido sem algum po de intervenção estatal.
Como será visto adiante, o Estado tem atuado no sen do de garan r o privilégio das classes
mais abastadas em detrimento dos mais pobres.
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(7) Censo Demográfico 2000 e pesquisas FJP, “Déficit Habitacional no Brasil” 2005 e 2007, realizadas
pela FJP (vide referências).
(8) O conceito de necessidades habitacionais proposto pela FJP incorpora duas condições: o déficit
habitacional propriamente dito e a inadequação de moradias. A primeira categoria está
ligada à necessidade de reposição (domicílios rús cos) ou incremento de estoque (domicílios
improvisados), coabitação familiar não voluntária, ônus excessivo com aluguel e domicílios
alugados com adensamento excessivo. Todas as categorias do déficit são mutuamente
excludentes. A inadequação, por sua vez, possui cinco componentes (que podem se sobrepor):
domicílios próprios com densidade excessiva de moradores por dormitório, carência de serviços
de infraestrutura (energia elétrica, abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de
lixo), inadequação fundiária urbana, inexistência de unidade sanitária domiciliar exclusiva e
cobertura inadequada.
(9) Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro (2009). Como nesse momento interessa mais discu r
os componentes da metodologia atual do que entender as relações microlocais nos setores
censitários, optou-se por u lizar os dados mais recentes, fornecidos pela ins tuição em 2009
(ano de referência 2007), em razão das revisões metodológicas no cálculo dos componentes
da inadequação e déficit habitacional que, respec vamente, passaram a contemplar os itens
“cobertura inadequada” e “ônus excessivo com aluguel”. Como tais componentes aparecem
de forma discriminada nos gráficos, julga-se mais coerente que sejam u lizados dados menos
defasados e divididos segundo os acertos metodológicos mais recentes, implementados pela
FJP. Para todo o restante do trabalho, serão u lizados os dados da pesquisa de 2005 (FJP, 2005),
desagregados por setor censitário.
(10) Segundo a FJP, o ônus excessivo com aluguel “corresponde ao número de famílias urbanas, com
renda familiar de até três salários mínimos, que moram em casa ou apartamento (domicílios
urbanos duráveis) e que despendem mais de 30% de sua renda com aluguel” (FJP, 2007, p. 16).
Ainda de acordo com a ins tuição, na metodologia original, esse componente era considerado
como um dos critérios da inadequação de domicílios e não como déficit habitacional.
(11) O termo “interesse social” será u lizado para qualificar a habitação produzida com subsídio
público para famílias com renda mensal de 0 a 3 salários mínimos (conforme literatura nacional
das polí cas públicas), ainda que o termo venha sendo ques onado em alguns debates que
consideram toda habitação como sendo de interesse social, independentemente da renda do
público-alvo ao qual se des na.
(12) Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro (2005).
(13) Segundo a arquiteta Iracema Generoso de Abreu Bhering, coordenadora da equipe contratada
pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional e Polí ca Urbana (SEDRU) em 2010 para
a elaboração de quatro Planos de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais em municípios da
RMBH (Lagoa Santa, Santa Luzia, Sabará e Confins), os estudos nacionais se baseiam usualmente
no fator tempo para medir a a picidade de taxas de vacância encontradas. De acordo com a
arquiteta: “sempre são feitas pesquisas com profissionais ligados ao mercado imobiliário
(corretores, etc.) e para o período atual, um momento em que o mercado está aquecido –
temos a informação de que 3 meses de vacância é um período considerado normal. Acima disso,
temos que buscar outras razões para jus ficar a ociosidade dos imóveis” (entrevista realizada
em set/ 2010).
(14) Maiores informações disponíveis em: <http://www.census.gov/hhes/www/housing/nychvs/
nychvs.html>. Acesso em: jul/ 2010.
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(15) Como já falado, as esta s cas sobre domicílios vagos divulgadas pelas ins tuições de pesquisa
consistem em dados totalmente desqualificados, cuja única informação possível de ser ob da é
o nível de renda do setor censitário onde os imóveis estão localizados. Desse modo, para uma
maior qualificação das informações fornecidas, procedeu-se a um cruzamento entre os dados
de domicílios vagos e renda dos chefes de família em cada setor censitário. As informações
cruzadas têm como resultado a Figura 2, que classifica os domicílios vagos segundo a renda dos
chefes de família. O gráfico com dados percentuais na parte superior da imagem, consiste em
um somatório dos domicílios vagos. O percentual expresso pela faixa cinza escura, por exemplo,
significa que 18% dos domicílios vagos estão concentrados em áreas habitadas por famílias cujo
chefe tem rendimento superior a 10 salários mínimos..
(16) Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro (2005).
(17) Segundo Mendonça (2002), muitos autores que estudam mudanças na estruturação urbana
das demais metrópoles brasileiras constataram, nos úl mos anos, que famílias com padrões
de renda dis ntos voltaram a coabitar o espaço urbano, mesmo que separados por enclaves
for ficados. Esse novo padrão seria diferente, portanto, do modelo centro-periferia que, de
acordo com a autora, ainda permanece como padrão predominante na RMBH.
(18) Ao passo que as disputas cole vas pela apropriação dos recursos urbanos correspondem a uma
abordagem marxista do espaço, que enfa za as chances desiguais de acesso aos bens ofertados
pela cidade, as escolhas individuais correspondem à análise das correntes heterodoxas do
pensamento econômico, que conferem um peso maior às escolhas individuais e distâncias
sociais entre grupos. Tendo em vista que, para o trabalho aqui apresentado, mais do que a
corrente ideológica, importa o fato de exis rem agentes heterogêneos interagindo no mercado
de moradias, e que essa premissa é também adotada pelas duas abordagens (heterogeneidade
de agentes para as correntes heterodoxas e luta de classes para os marxistas), optou-se por
colocá-las lado a lado na defesa do argumento, segundo o entendimento de que ambas se
reforçam mutuamente.
(19) A expressão “divisão econômico-social do espaço residencial” ou DESER é picamente empregada
pela tradição marxista. De acordo com Abramo, “Segundo os termos neoclássicos, seria preciso
falar de uma análise da cidade segregada” (2007, p. 42), conforme adotado por Mendonça
(2002). Optou-se pela tradição marxista, pelo entendimento de que mesmo que a expressão
não faça originalmente menção às escolhas individuais (ou microeconomia) analisadas pelas
correntes heterodoxas, ela permite uma abordagem mais condizente com a pretendida pelo
trabalho, se comparada à expressão “segregação espacial”, mais restri va.
(20) Por saberem que sua opinião idividual não tem valor, as pessoas acabam se voltando para
as decisões dos que consideram mais bem informados, no caso do mercado de moradias os
agentes da indústria imobiliária são os maiores detentores de conhecimentos: “No meu enfoque
espacial, é possível fazer a figura do empresário schumpeteriano intervir numa dinâmica de
antecipação especular e as famílias procurarem indícios nas pessoas que consideram mais
bem informadas sobre o futuro da estrutura urbana. Nesse caso, é de imaginar que elas vão
se voltar para os empresários urbanos, na suposição de que eles teriam indicações sobre a
localização dos diversos pos de família que compõem o mercado residencial. A crença de que
os empresários estão mais bem informados, apesar de ninguém saber de antemão qual será a
futura configuração residencial, não é desprovida de sen do. De fato, se todos os par cipantes
desse mercado precisam especular sobre a ordem residencial futura, para eles os empresários
devem agir como verdadeiros profissionais da antecipação. Como a decisão de produzir
moradias é tomada em uma temporalidade cronológica (histórica), elas serão oferecidas em
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momento posterior à decisão, o que obriga os decididores a antever as antecipações de todo
mundo. Por outro lado, tratando-se de um bem que implica imobilidade espacial, e como as
convenções referentes à localização domiciliar das famílias são precárias (como todas as
convenções), o exercício especula vo dos empresários é mais crí co que o das famílias. De
modo que elas são propensas a acreditar que os empresários dispõem dos indícios mais seguros
sobre a configuração futura das externalidades de vizinhança. Em seu isolamento mercan l,
as famílias podem até ter a ilusão (cogni va) de que a oferta con nua soberana no mercado
residencial – o que algumas proposições da sociologia marxista deram a entender –, como se
fosse insensível aos problemas da coordenação mercan l” (Abramo, 2007, p. 131).
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Texto recebido em 4/nov/2010
Texto aprovado em 15/dez/2010
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011
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Habitação precária e os cortiços
da área central de Santos
Poor housing and tenements in downtown Santos
André da Rocha Santos
Resumo
Este artigo aborda os cortiços localizados no
Centro de Santos. O objeto de análise são as
habitações precárias de aluguel e o objetivo é
fazer um histórico do processo de sua constituição
até os dias atuais. A primeira parte situa a
importância das áreas centrais, sua degradação
física e as recentes discussões envolvendo sua
revitalização. A segunda seção enfoca aspectos
relevantes sobre os cortiços enquanto modalidade
de habitação operária mais antiga de Santos e sua
contextualização histórica. A terceira parte traça
um panorama socioeconômico dessas habitações
e sua precariedade. A quarta parte trata das
legislações e dos projetos desenvolvidos pelo poder
público na área. Por fim, as considerações finais
fazem uma avaliação dessas ações destacando
avanços e problemas a serem enfrentados.
Abstract
This article discusses the tenements located
downtown Santos. The object of analysis is the
precarious rented houses and the goal is to make
a historical record of their settlement process until
today. The first part places the importance of the
central areas, their physical deterioration and
recent discussions involving their revitalization. The
second section focuses on relevant aspects of the
tenements as the oldest housing modality of Santos’
working class, placing them in a historical context.
The third part presents a socio-economic overview
of this type of housing and its precariousness. The
fourth part deals with the laws and the projects
developed by public authorities in the area. Finally,
concluding remarks are an evaluation of those
actions highlighting the progress achieved and the
problems to be faced.
Palavras-chave: cortiços; habitação precária; vulnerabilidade social; precariedade urbana; política
habitacional.
Keywords: tenement; precarious housing; social
vulnerability; urban precariousness; housing
policy.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
André da Rocha Santos
A importância desse debate
década de 1950, tem se intensificado em grandes cidades mundiais, possuindo relação direta
com as formas de produção e consumo. Carac-
Cidades brasileiras que serviam como elo de
ligação do país com o exterior, como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e o binômio Santos-São
Paulo, espantavam investimentos e imigrantes
no final do século XIX. Isso ocorria porque cidades como estas constituíam motivos de repulsa
a qualquer um que estivesse habituado aos padrões arquitetônicos e sanitários das grandes
capitais europeias, como Londres, Viena, Paris
terísticas como o forte crescimento populacional e a expansão física da malha urbana, além
da inserção da cidade em um contexto econômico industrial, estabeleceram novas formas de
apropriação e valorização do solo urbano com
reflexos no mercado imobiliário, se manifestando mais intensamente nas áreas centrais dessas cidades (cf. Simões Jr., 1994, p. 11).
Segundo Vargas e Castilho:
e São Petersburgo.
Assim, era preciso tirar as antigas cidades coloniais brasileiras, sobretudo as que se
reanimavam com a economia cafeeira, dos limites de suas estruturas arcaicas em face das
novas exigências econômicas (cf. Marins, 1998,
pp. 131-214; Andrade,1992, pp. 206-233). Cidades que estivessem na rota do capital, como
Rio de Janeiro e Santos, entre outras cidades
brasileiras, foram reformadas sanitariamente,
tanto do ponto de vista de sua circulação viária, como do embelezamento e remodelação,
adquirindo assim uma nova imagem.
Além de sanear as cidades tomadas pelas
epidemias, o urbanismo dará a elas um padrão
Ao mesmo tempo em que os centros
congestionam-se pela intensidade de
suas atividades, amplia-se a concorrência
de outros locais mais interessantes para
morar e viver. Assiste-se ao êxodo de atividades ditas nobres e à saída de outras
grandes geradoras de fluxos, como as
implementadas pelas instituições públicas. A substituição faz-se por atividades
de menor rentabilidade, informais e, por
vezes, ilegais e praticadas por usuários e
moradores com menor ou quase nenhum
poder aquisitivo. Consequentemente,
a arrecadação de impostos diminui e o
poder público reduz a sua atuação nos
serviços de limpeza e segurança públicas.
(2006, p. 6)
estético moderno, formas urbanas próprias que
acompanham a tecnologia de saneamento. Du-
Conforme vai acontecendo a expansão,
rante toda a República Velha, a implantação
os padrões de uso e ocupação daquelas áreas
desse projeto urbanístico se tornou um dos
urbanas consolidadas vão sofrendo alterações
principais objetivos do Estado brasileiro (cf. An-
e modificações e, nesse sentido, vai se tor-
drade, 1992, pp. 208-233).
nando necessária sua readequação aos novos
Entretanto, muitas dessas áreas que num
condicionantes decorrentes do crescimento da
primeiro momento foram objeto de interven-
cidade. Ocorre que nem sempre se dá essa rea-
ção passaram, em alguns casos, por processos
daptação e é esse fator que faz com que certas
de declínio e/ou degradação com o passar do
áreas de degradem ou se deteriorem.
tempo. A deterioração de certas áreas urbanas
Quando a estrutura econômica, física,
é um fenômeno mundial que, desde meados da
social e ambiental existente no local não está
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Habitação precária e os cortiços da área central de Santos
mais satisfazendo o papel funcional que lhe é
novas denominações, geralmente com o pre-
exigido pela cidade, isto é, não está mais aten-
fixo re, como, por exemplo, revitalização, re-
dendo às expectativas definidas pela atividade
qualificação ou revalorização (Vaz e Jacques,
imobiliária,ocorre a degradação (Simões Jr.,
2003, pp. 129-140 ; Vasconcellos e Mello,
1994, p. 12).
2006, pp. 53-66).
Os anos de 1970 e 1980 marcaram a
Vargas e Castilho (2006) identificam os
época de crise da ideia de plano ou de plane-
anos 1980-2000 como a Era da Reinvenção
jamento no sentido modernista. Por oposição
Urbana, na qual esse período seria o reflexo
à prática do planejamento urbano, as práticas
de um novo modelo de produção, ou seja, o
pós-modernistas passaram a se pautar por pro-
intervalo de tempo em que vem ocorrendo
jetos urbanos abandonando a visão do espaço
a transição do regime de acumulação de ca-
como algo a ser moldado para propósitos so-
pital fordista-keynesiano para um regime de
ciais, ou seja, sempre subordinada a um proje-
acumulação flexível (Harvey, 1992; Vargas e
to abrangente e macroestrutural e passando a
Castilho, 2006).
ver as intervenções nos espaços urbanos mais
Neste momento, a discussão em torno de
parciais ou pontuais como coisa “independente
políticas públicas visando à revitalização das
e autônoma a ser moldada segundo objetivos
áreas urbanas centrais que se encontram em
e princípios estéticos que não têm necessaria-
processo de deterioração passou a representar
mente nenhuma relação com algum objetivo
uma resposta possível à crise instaurada por
social abrangente” (Harvey, 1992, p. 69).
tais alterações. A partir de determinado mo-
Esse processo ocasionou várias mudan-
mento, grandes investimentos em megaproje-
ças em muitas cidades que, diante de inúmeros
tos, que até recentemente estavam concentra-
fatores como a desindustrialização, o enxuga-
dos em áreas periféricas ou em áreas de expan-
mento da produção e precarização do trabalho
são imobiliária, passaram a dirigir seus esfor-
(com declínio das profissões formais, aumento
ços e atenções para áreas situadas em pontos
da subcontratação e do desemprego estrutu-
centrais, históricos e de grande valor simbólicos
ral), a perda da capacidade de investimentos
nas cidades.
do setor público e o aumento do setor de serviços, financeiro, de consumo e de entretenimento, vêm induzindo a certa mudança de visão
nas práticas tradicionais, não só do Estado, mas
de outros agentes interventores sobre o espaço
urbano (Simões Jr., 1994; Frúgoli Jr., 2000).
Os cortiços enquanto
modalidade habitacional
na área central de Santos
Nesse sentido, surgiu um novo momento
no processo de intervenção nos centros urba-
O novo modelo de urbanismo iniciado no final
nos. Por serem ações voltadas a tecidos
do século XIX em certas cidades brasileiras
urbanos já existentes, no sentido de adequá-
passou a ser o espaço privilegiado das inte-
-los outra vez, ou readaptá-los, essas realiza-
rações e dos conflitos entre os grupos sociais
ções vêm recebendo, a cada novo contexto,
mais poderosos interessados ou beneficiados
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André da Rocha Santos
pelas intervenções urbanas. A partir dessa épo-
casa do largo dos Gusmões que não deveria
ca, as negociações desses grupos sociais com
acomodar sequer a quarta parte disso” (Gam-
o poder público e o papel subalterno que foi
beta, 1984, p. 19).
dado às camadas populares – em geral excluí-
Os proprietários dos cortiços geralmente
das das decisões que afetam a cidade – se con-
se aproveitavam dos quintais das residências
figuraram na regra dos processos sociais que
e casas de comércio onde construíam em ma-
resultaram nas intervenções urbanas (Frúgoli
deira e zinco diversos barracos enfileirados,
Jr., 2000, p. 20).
assemelhando-se bastante aos descritos, em
Entretanto, é também nesse mesmo
1890, por Aluízio Azevedo em sua obra rea-
processo, que está ligado ao sistema expor-
lista O Cortiço. O terreno não era cimentado,
tador de café e aos primórdios da industriali-
não havia água corrente e uma única latrina
zação que se iniciou nas últimas décadas do
servia a todas as famílias. Certas vezes, nem
século XIX, que o cortiço, como modalidade
mesmo latrina existia e os dejetos recolhidos
de habitação operária mais antiga em cidades
eram lançados em fossas permeáveis abertas
como São Paulo e Santos, aumentou vertigi-
no solo. Lugares como os armazéns, o espa-
nosamente sua quantidade em decorrência
ço entre o forro e o telhado, os corredores,
do grande fluxo de imigrantes (Kowarick e
os vãos das escadas, os porões subterrâneos,
Ant, 1994, pp. 73-91). Entre 1886 e 1900, es-
ou seja, qualquer local onde se possa colocar
sas duas cidades cresceram, respectivamente,
uma cama ou esteira era usado como moradia
223% e 403%, dividindo entre si as maiores
ou dormitório. Em 1890, foram contados, pe-
responsabilidades do setor urbano da econo-
la municipalidade, 771 cortiços numa cidade
mia cafeeira.
que não tinha mais de 3.000 prédios no total,
Dessa forma, para milhares de trabalha-
ou seja, pode-se estimar que pouco menos da
dores ocupados com as obras do cais, com o
metade de toda população morava em corti-
embarque do café e com os trabalhos na estra-
ços (ibid., p. 20).
da de ferro, a proximidade ao Centro era im-
Foi nessa situação de total degradação
prescindível. Tal situação, somada ao incessan-
que, em 1892, as obras da rede de esgotos da
te aumento da população, esgotou a oferta de
cidade foram encampadas pelo Governo do
moradias próximas ao local de trabalho, dando
Estado através da Comissão Sanitária instala-
origem a uma desenfreada especulação imobi-
da em fevereiro de 1893. Em 1897, a Sanitária
liária, em que muitas das casas deixadas pelos
como era chamada, foi fortalecida pelo Códi-
que fugiam da febre amarela, inicialmente nos
go de Posturas Santista que, junto com o Có-
bairros Centro e Valongo, foram transformadas
digo Sanitário do Estado, promoveu grandes
em habitações coletivas repartidas em peque-
transformações nas construções e no meio
nos cubículos e subalugadas a dezenas de fa-
urbano. A extinção dos cortiços e das cochei-
mílias imigrantes. Essas “casas de cômodos”
ras era um dos principais pontos do programa
eram subalugadas às famílias que pagassem
e eles foram, de forma violenta e autoritária,
o maior preço possível. “A fiscalização muni-
sendo demolidos do meio urbano entre 1896
cipal contou, certa feita, 186 moradores numa
e 1900.
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Habitação precária e os cortiços da área central de Santos
Ao se definir pela demolição ou desocupação das habitações dos trabalhadores não
se pensava onde os alojar. Isso não era
órbita da Comissão Sanitária. Em geral,
num movimento de expansão das fronteiras urbanas os despossuídos foram recolocar os mesmos padrões de habitação e
precariedade, mas longe dos olhares civilizados. (Lanna, 1996, p. 113)
Após a demolição dos cortiços e a trans-
Como mostrou Lanna:
[...] essa dualidade permanece até hoje
quando existem quase duas cidades. A
ligada à praia e a do centro. Uma mais
moderna, turística, mais rica. A outra,
chamada centro, concentra as atividades
comerciais, de abastecimento, a zona cerealista, atacadista, os cortiços, a população mais pobre muitas vezes ligada aos
trabalhos do porto. (1996)
ferência das cocheiras para longe das áreas de
É preciso observar também que, até os
adensamento, os trabalhadores sem ter aonde
anos 1930, a acumulação produtiva estava ba-
ir começaram a construir nos arredores barracos
seada em torno de poucos lugares, nas proximi-
iguais aos que alugavam nos quintais das casas.
dades do cais, estruturando a cidade de modo
Entretanto, todo o processo histórico,
a concentrar os trabalhadores nos locais próxi-
econômico e espacial ocorrido até então será
mos ao trabalho, pois, além das longas jorna-
o momento de ruptura a partir do qual a região
das de trabalho, os gastos com o transporte em
central da cidade consolidará sua tradição por-
bondes, se as distâncias fossem longas, seriam
tuária e comercial e se tornará, com todas as
extremamente elevados e, portanto, incompatí-
transformações do final do século XIX e come-
veis com a compensação salarial.
ço do XX, em uma cidade civilizada, saneada e
Quando Santos ultrapassa 220 mil habi-
moderna. Porém, esse será também o momen-
tantes, entre as décadas de 40 e 50, tem início
to em que o Centro começará a perder uma de
a ocupação nos morros, mangues e restingas
suas principais características – qual seja –, o
e os terrenos que ladeavam a velha linha 1 de
lugar de moradia das camadas de alta renda.
bondes, área pantanosa e pouco povoada que,
As espaçosas casas térreas e os sobrados do
por isso mesmo abrigava, desde fins do século
Paquetá e do Valongo são em pouco tempo
XIX, o Matadouro Municipal. Essa população
transformados em habitações coletivas de esti-
instala-se também em áreas de pior infraes-
vadores, portuários e empregados do pequeno
trutura dos municípios de Cubatão (Jardim
comércio.
Casqueiro), São Vicente (Humaitá e Samaritá),
As famílias de maior poder aquisitivo tomam o “caminho da Barra”, isto é, das praias,
Guarujá (Vicente de Carvalho) e Praia Grande
(Carvalho, 1999; Pimenta, 2002).
que tiveram seu acesso facilitado pelo sistema
Durante as décadas de 60 e 70, com o
de bondes puxados a burro, pela orientação
crescimento do polo industrial de Cubatão,
das novas Avenidas Ana Costa e Conselheiro
bem como com a expansão do comércio e do
Nébias e pelos canais de Saturnino de Brito.
turismo ligados à orla nas outras cidades da
A partir desse período, foi relegada ao Centro
região metropolitana como São Vicente, Gua-
outra “função” na estruturação econômica e
rujá e Praia Grande, o Centro tradicional foi
espacial da cidade.
sendo gradativamente preterido por atividades
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
553
André da Rocha Santos
geradoras de fluxos e substituído por outras
mesma direção, o emprego assalariado formal
“de menor rentabilidade, informais e, por ve-
decresce ao longo das décadas de 1990 e iní-
zes, ilegais e praticadas por usuários e morado-
cio do século XXI.
res com menor ou quase nenhum poder aquisitivo” (Vargas e Castilho, 2006, p. 4).
Na Tabela 1, podemos ver como, num
período de apenas quatro anos, apesar das
oscilações, a porcentagem de pessoas na informalidade aumentou de 29,2% para 33,0%.
Com uma participação muito grande de pes-
O panorama socioeconômico
da área central
soas na informalidade em razão do desemprego, o trabalhador, quando consegue se
integrar à cadeia produtiva, o faz de forma
O período dos anos 1980 traz, segundo
precária, além de não garantir acesso aos
Kowarick (2002), a configuração de um fato
direitos sociais básicos e de ter uma renda
inédito em nossa história republicana, isto é,
muito baixa. Nessa direção, a parcela de pes-
o bloqueio na mobilidade social ascendente.
soas desempregadas também é muito alta. A
O resultado de tal situação foi o considerável
Tabela 2 mostra uma parcela considerável de
aumento do contingente de trabalhadores
22,1% da população economicamente ativa
desempregados ou que desenvolviam tarefas
desempregada em fins da década de 1990 na
assalariadas marcadas pela informalidade. Na
cidade de Santos:
Tabela 1 – Participação do mercado de trabalho
formal e informal em Santos/SP
jun/99
mar/00
set/00
mar/01
set/01
mar/02
set/02
% formal
70,8
80,9
77,8
69,8
70,0
65,0
67,0
% informal
29,2
19,1
22,2
30,2
30,0
35,0
33,0
Total
100
100
100
100
100
100
100
Fonte: Núcleo de Estudos Socioeconômicos (setembro/2002).
Tabela 2 - População economicamente ativa
Habitantes
Total
257.033
Empregados
200.144
Desempregados
56.889
Índice de desemprego
22,1%
Fonte: Núcleo de Estudos Socioeconômicos (dezembro/1998).
554
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
Habitação precária e os cortiços da área central de Santos
Tabela 3 – Emprego e desemprego em Santos
Faixa etária
Desempregados
Empregados
Abaixo de 15 anos
3,1
0,7
De 15 a 17 anos
10,7
2,0
De 18 a 24 anos
34,4
22,3
De 25 a 29 anos
9,9
12,1
De 30 a 38 anos
19,1
16,5
De 40 a 49 anos
13,7
25,6
De 50 a 59 anos
7,6
13,2
Acima de 60 anos
1,5
7,6
Total
100
100
Fonte: Núcleo de Estudos Socioeconômicos, dezembro/1998.
Dentre os desempregados, destaca-se o
básicos da sociedade. Esses indivíduos esta-
elevado número de jovens nessa situação, co-
riam desenraizados social e economicamente
mo mostrado na Tabela 3, em que se somando
com o enfraquecimento de certas relações so-
a porcentagem de jovens entre 15 e 17 anos
ciais referentes à família, ao bairro, à vida as-
mais as porcentagens de jovens entre 18 e 24
sociativa e ao próprio mundo do trabalho, com
e entre 25 e 29, chega-se à enorme porcenta-
o desemprego de longa duração ou o trabalho
gem de 55% dos jovens entre 15 e 24 anos
irregular, informal ou ocasional que o faz estar
desempregados.
excluído do sistema produtivo (Kowarick, 2002
Essa parcela da população, que repre-
apud Castell, 1998).
senta um número bastante alto em meados
É nesse quadro de subcidadania e au-
dos anos 1980 e 1990, caracteriza, segundo
mento do desemprego nos anos de 1980 e
Kowarick (2002), nossa questão social, onde
1990, que foi feito o primeiro levantamento
essas recentes situações precárias de trabalho
sobre a situação socioeconômica precária dos
e, por conseguinte, de moradia caminham no
cortiços em Santos. Apesar do processo de pe-
sentido teórico de problematizar o conceito de
riferização que ocorreu na Baixada Santista a
desfiliação que, conforme proposto pelo autor,
partir dos anos 50, o cortiço nunca deixou de
baseado em Castell (1998), denota perda de
existir e, em certos momentos, alcançou den-
raízes e remete àqueles que foram desliga-
sidades populacionais bastante altas. Sobre os
dos, desatados, desabilitados para os círculos
cortiços Kowarick e Ant (1994), afirmam que:
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
555
André da Rocha Santos
Nas áreas mais centrais da cidade, de
implantação mais antiga, em zonas que
jamais alcançaram altos valores imobiliários e mesmo em áreas extremamente
valorizadas, estão os cortiços que, pela
proximidade dos serviços, pela disponibilidade de infraestrutura e principalmente
pela facilidade de transportes, abrigam
aquela parcela de trabalhadores que, por
opção ou por obrigação, recusa o padrão
periférico. Comprar um terreno, construir
uma casa, por mínima que seja, exige um
arranjo familiar e econômico que nem todos podem enfrentar. Por outro lado, estar
próximo ao trabalho, ter um transporte de
fácil acesso aos diversos pontos da cidade, gastar menos tempo e dinheiro para
se locomover, usufruir dos serviços e até
mesmo da diversão são fatores que, contrapostos ao isolamento e precariedade
da periferia, pesam significativamente.
1990, existiam 840 habitações coletivas precá-
Segundo estimativas realizadas pela
dentes, o número foi de 253 e o total de indiví-
Prefeitura, através da Secretaria de Desenvol-
duos residentes foi de 622. O período da coleta
vimento Urbano e Meio Ambiente, no ano de
de dados foi em setembro e outubro de 2001.
rias de aluguel na cidade (Sedam, 1992).
Os levantamentos posteriores, de 2001,
feitos pela Fundação Seade para o Programa
de Atuação em Cortiços (PAC) da CDHU do Governo do Estado, mais a pesquisa de 2002, feita
pela Secretaria de Planejamento da Prefeitura,
apontam para 14.500 moradores encortiçados
nos bairros Vila Nova, Paquetá e parte da Vila
Mathias.
A seguir, apresentamos os dados mais
relevantes, segundo as diferentes pesquisas, começando pelo PAC, que teve como base territorial de amostra a Rua Amador Bueno e Avenida
São Francisco no Paquetá. Nessa pesquisa, o total de imóveis pesquisados foi de 40. O total de
domicílios e de domicílios ocupados foi de 352
e 239 respectivamente. Dentre as famílias resi-
Gráfico 1 – Distribuição dos indivíduos segundo faixa etária
3%
6%
20%
9%
Até 9 anos
10 a 19 anos
20 a 29 anos
30 a 39 anos
14%
40 a 49 anos
16%
50 a 59 anos
60 a 69 anos
70 anos e mais
13%
19%
Fonte: Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, 2002.
556
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
Habitação precária e os cortiços da área central de Santos
Gráfico 2 – Inserção no mercado de trabalho e renda
22%
Trabalha
Não trabalha porque não
encontra trabalho
10%
Outros motivos
68%
Fonte: Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, 2002.
O perfil da população pesquisada é
O rendimento per capita, entre as famí-
predominantemente jovem. Mais da metade
lias encortiçadas, concentra-se nas classes de
possui até 29 anos (55,9%), com significa-
meio até um salário mínimo (32,5%) e mais de
tiva concentração de crianças (21,3%). Do
um até dois salários mínimos (31,6%) sendo
outro lado da pirâmide etária encontramos
18,4% sem rendimentos ou que dispõem de
poucos indivíduos com mais de 60 anos, ape-
até meio salário mínimo per capita, como mos-
nas 9%.
trado no Gráfico 3.
É elevada a proporção de chefes de
A maioria dos domicílios tem apenas um
família fora do mercado de trabalho. Cerca
cômodo e esse espaço interno é bastante re-
de 70% dos chefes de família estão ocupa-
duzido. Lembrando que se considera cômodo
dos, contudo, 10,4% encontram-se desem-
todo compartimento contido no domicílio que
pregados e 21,5% não trabalham por outros
é separado por paredes fixas de alvenaria ou
motivos.
de madeira:
Gráfico 3 – Distribuição das famílias segundo renda per capita
1%
Sem rendimento
2%
Até 0,5 salário mínimo
5%
9%
15%
Mais de 0,5 até 1 salário mínimo
Mais de 1 até 2 salários mínimos
Mais de 2 até 3 salários mínimos
32%
33%
Mais de 3 até 4 salários mínimos
Mais de 4 até 5 salários mínimos
Mais de 5 salários mínimos
Fonte: Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, 2002.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
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André da Rocha Santos
Gráfico 4 – Distribuição dos domicílios segundo presença de divisórias
100
80
60
Sequência 1
40
20
0
Possuem divisórias
Não possuem divisórias
Fonte: Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, 2002
Como podemos ver no Gráfico 4, na
até três pessoas (68%) e estas são naturais do
grande maioria dos domicílios (83,3%), os dife-
estado de São Paulo. Foi constatado que 23%
rentes espaços internos não possuem divisórias
das famílias têm apenas um filho e as que pos-
móveis ou improvisadas. “Apenas 16,7% das
suem um número acima de quatro filhos com-
unidades habitacionais contêm cortinas, armá-
põem a minoria, com apenas 8%.
rios e outros tipos de paredes removíveis para
A baixa renda familiar predominante po-
separar funções como, por exemplo, o quarto e
de ser explicada pela baixa escolaridade. Dos
a cozinha (ou a cama e o fogão)” (CDHU, 2002,
chefes de família, 10% são analfabetos e 67%
p. 33).
possuem apenas o curso fundamental incom-
O resultado do censo dos moradores dos
pleto. Já nos aspectos econômicos, conclui-se
cortiços foi realizado pela Seplan, entre outu-
que 93% dos chefes de família estão econo-
bro e dezembro de 2002, e divulgado em agos-
micamente ativos, porém apenas 47% têm
to de 2003. O universo da pesquisa consistiu
atividade profissional formal com comprovação
em 14.500 moradores encortiçados e a amos-
de renda. A maioria dessas pessoas recebe até
tra feita corresponde a 1.238 moradores inte-
R$400, representando 73% da amostra, e 40%
grantes de 412 famílias pesquisadas.
recebe menos de R$200.
Os principais dados são bastante pare-
No que se refere às questões físicas, a
cidos com a pesquisa realizada pela Fundação
maior parte das famílias (86%) ocupa apenas
SEADE. Assim como na pesquisa encomendada
um cômodo nas residências e foram verifica-
pela CDHU, a população é predominantemente
dos, em alguns casos, que essas famílias têm
jovem: 41% possuem de zero até 19 anos, 60%
um número alto de componentes habitan-
de zero até 29 anos e somente 15% estão aci-
do esse local sem condições físicas para essa
ma de 50 anos. A maioria das famílias possui
demanda.
558
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
Habitação precária e os cortiços da área central de Santos
Gráfico 5 – Distribuição das famílias segundo número de cômodos
1%
3%
10%
1 Cômodo
2 Cômodos
3 Cômodos
6 Cômodos ou mais
86%
Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento, 2003.
A distribuição das famílias nos cortiços
e quatro famílias se somarmos as porcentagens
mostra que 51% dessas habitações compor-
dos cortiços com treze a quinze famílias, mais
ta de uma a seis famílias em cada um. E em
a porcentagem com dezesseis a vinte e quatro
15% desses cortiços coabitam de treze a vinte
famílias, como mostrado no Gráfico 6.
Gráfico 6 – Distribuição dos cortiços segundo número de famílias
De 1 a 3 famílias
De 4 a 6 famílias
6%
9%
17%
De 7 a 9 famílias
15%
De 10 a 12 famílias
19%
34%
De 13 a 15 famílias
De 16 a 24 famílias
Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento, 2003.
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André da Rocha Santos
Gráfico 7 – Distribuição dos domicílios segundo utilização do banheiro
9%
Privado
Coletivo
91%
Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento, 2003.
Gráfico 8 – Distribuição dos domicílios segundo utilização do tanque
6%
Privado
Coletivo
94%
Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento, 2003.
Outros dados que mostram o alto nível
A Fundação SEADE criou, em 2000, o Ín-
de precariedade e promiscuidade das habita-
dice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS),
ções são os relativos ao uso do banheiro e do
com o intuito de construir indicadores que ex-
tanque de lavar roupa, onde 91% dos domicí-
pressassem o grau de desenvolvimento social
lios utilizam banheiros coletivos e em 94% os
e econômico dos 645 municípios do estado
tanques são de uso comum.
de São Paulo, além de identificar os espaços
Quanto aos vínculos urbanos da popula-
e as dimensões da pobreza a partir do censo
ção encortiçada – permanência na cidade –, o
demográfico de 2000. Esse índice classifica os
censo revela que grande parte dos moradores
municípios paulistas referentes às questões de
dos cortiços vive no município há mais de 15
equidade e condições de vida no interior dessas
anos (46%), sendo que 26% do total perma-
localidades. Para os objetivos de nosso trabalho,
necem no mesmo bairro há mais de 15 anos.
reproduzimos a classificação do IPVS dos três
560
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
Habitação precária e os cortiços da área central de Santos
grupos de vulnerabilidade social que se situam
nos bairros da área central:
Grupo 4 – Vulnerabilidade média: setores que apresentam níveis médios na dimensão socioeconômica; encontrando-se
em quarto lugar na escala em termos de
renda e escolaridade do responsável pelo
domicílio. Nesses setores concentram-se
famílias jovens, isto é, com forte presença
de chefes jovens (com menos de 30 anos)
e de crianças pequenas.
Grupo 5 – Vulnerabilidade alta: setores
censitários que possuem as piores condições na dimensão socioeconômica (baixa), situando-se entre os dois grupos em
que os chefes de domicílios apresentam,
em média, os níveis mais baixos de renda
e escolaridade. Concentra famílias mais
velhas, com menor presença de crianças
pequenas.
Grupo 6 – Vulnerabilidade muito alta: o
segundo dos dois piores grupos em termos de dimensão socioeconômica (baixa)
com grande concentração de famílias jovens. A combinação entre chefes jovens,
com baixos níveis de renda e de escolaridade e presença significativa de crianças pequenas, permite inferir ser este o
grupo de maior vulnerabilidade à pobreza
(Seade, 2003).
Para o município de Santos, temos o seguinte mapa do IPVS:
Figura 1 – Índice Paulista de Vulnerabilidade Social
Município de Santos – 2000
Setores censitários
Município de Santos
Hidrografia
Logradouros
Fonte: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 2003.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
561
André da Rocha Santos
Os bairros Centro, Valongo, Paquetá, Vila
Nova e parte da Vila Mathias estão totalmente
situados entre os grupos de vulnerabilidade média (grupo 4), alta (grupo 5) e muito alta (grupo
6). Segundo a Fundação Seade, esses dados são
analisados para Santos da seguinte forma:
Grupo 4 (vulnerabilidade média): 13.425
pessoas (3, 2% do total). No espaço
ocupado por esses setores censitários, o
rendimento nominal médio dos responsáveis pelo domicílio era de R$450 e 61,9%
deles auferiam renda de até três salários
mínimos. Em termos de escolaridade, os
chefes de domicílios apresentavam, em
média, 5,3 anos de estudo, 88,9% deles
eram alfabetizados e 30,1% completaram
o ensino fundamental. Com relação aos
indicadores demográficos, a idade média
dos responsáveis pelos domicílios era de
40 anos e aqueles com menos de 30 anos
representavam 24,7%. As mulheres chefes de domicílios correspondiam a 30,4%
e a parcela de crianças de 0 a 4 anos
equivalia a 12,3% do total da população
desse grupo.
Grupo 5 (vulnerabilidade alta): 31.389
pessoas (7,5% do total). No espaço
ocupado por esses setores censitários, o
rendimento nominal médio dos responsáveis pelo domicílio era de R$493 e 57,8%
deles auferiam renda de até três salários
mínimos. Em termos de escolaridade, os
chefes de domicílios apresentavam, em
média, 5,0 anos de estudo, 84,7% deles
eram alfabetizados e 28,3% completaram
o ensino fundamental. Com relação aos
indicadores demográficos, a idade média
dos responsáveis pelos domicílios era de
46 anos e aqueles com menos de 30 anos
representavam 13,8%. As mulheres chefes de domicílios correspondiam a 32,9%
e a parcela de crianças de 0 a 4 anos
equivalia a 9,4% do total da população
desse grupo.
562
Grupo 6 (vulnerabilidade muito alta):
21.378 pessoas (5,1% do total). No espaço ocupado por esses setores censitários, o rendimento nominal médio dos
responsáveis pelo domicílio era de R$345
e 74,3% deles auferiam renda de até três
salários mínimos. Em termos de escolaridade, os chefes de domicílios apresentavam, em média, 4,6 anos de estudo,
82,4% deles eram alfabetizados e 21,9%
completaram o ensino fundamental. Com
relação aos indicadores demográficos, a
idade média dos responsáveis pelos domicílios era de 40 anos e aqueles com
menos de 30 anos representavam 24,4%.
As mulheres chefes de domicílios correspondiam a 33,7% e a parcela de crianças
de 0 a 4 anos equivalia a 12,3% do total
da população desse grupo. (Seade, 2003)
As estimativas com relação à população
moradora em cortiços na cidade de Santos não
são precisas, sendo, em alguns pontos, bastante frágeis. Como afirmam Moreira, Leme, Naruto e Pasternak (2006), desde sua conceituação
até sua mensuração, as pesquisas envolvendo
esse tipo de objeto são uma realidade bastante difícil de captar de forma precisa apenas por
pesquisas de caráter quantitativo. Contudo, as
repetições de alguns dados em diferentes pesquisas realizadas na área mostram inúmeros
traços em comum e “apontam para situações
em que a vulnerabilidade social acontece em
um quadro de precariedade urbana” (Moreira,
Leme, Naruto e Pasternak, ibid., p. 23).
Essas condições de precariedade se
transformam, mas é a relação entre a vulnerabilidade social e a precariedade urbana, características de cortiços como os de Santos,
que explicam sua existência e constância há
mais de um século e as dificuldades do Poder
Público em erradicá-las (ibid.).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
Habitação precária e os cortiços da área central de Santos
Planos, programas
e projetos envolvendo
a questão habitacional
Construção de Habitação Popular e do Conselho Municipal de Habitação, bem como foram
desenvolvidas as estratégias de intervenção
dos programas em favelas e de novos assentamentos habitacionais, em ação conjunta do
Em 1968, foi aprovado o primeiro plano diretor
Executivo e segmentos populares (Carvalho,
da cidade. É a primeira legislação a prever zonas
1999, p. 152).
com diferentes adensamentos urbanos, ou seja,
A política de planejamento urbano foi
com limites de construção de prédios diferencia-
efetivada na prática com a implantação da
dos por bairros e regiões. O projeto vislumbrava
parte do plano diretor relativo ao Zoneamen-
o uso da orla como zona turística e proibia a
to Especial de Interesse Social, através de uma
construção de habitações no Centro que deve-
política municipal de habitação executada no
ria ser planejado para ser uma zona comercial.
governo David Capistrano (1993-1996). Com a
Além disso, criava zonas mistas, com a possi-
definição da habitação como uma das priorida-
bilidade de exploração comercial e residencial.
des de agenda, esta administração desenvol-
Os limites de adensamento foram relativamente
veu a política de habitação sobre as bases das
respeitados, embora a lei tenha sido várias ve-
condições criadas no governo anterior (Martins,
zes alterada para acomodar interesses imobiliá-
1998, pp. 17-18).
rios e comerciais, além das habitações no Cen-
O ponto de partida para a intervenção
tro continuarem a existir, na forma dos cortiços.
no setor habitacional foram os novos regula-
No final da década de 1970, esse plano
mentos instituídos com a lei de ZEIS, especí-
já não atendia às necessidades reais da cidade
ficos para o parcelamento, uso e ocupação
em vista das transformações urbanas ocorridas
dos lotes urbanos destinados à habitação de
e o resultado foi a contínua decadência do co-
interesse social. As perspectivas da sua con-
mércio no Centro e Paquetá, tornando-se, cada
tinuidade como política participativa assenta-
vez mais, bairros de habitações precárias (Sil-
ram-se nos instrumentos legais que, em 1992,
vares, 1980).
criaram o CMH e as Comissões de Urbanização
Dessa forma, a cidade chegou ao final da
e Legalização e estabeleceram a diretriz de
década de 1980 sem uma política habitacio-
atendimento da demanda organizada (Carva-
nal efetiva para o perímetro urbano das áreas
lho, 1999, p. 153).
central e portuária, onde o problema dos cor-
A lei de ZEIS compunha o capítulo do zo-
tiços não era tratado ou o era de forma isola-
neamento especial, delimitando áreas do terri-
da e separada do conjunto. Apenas na gestão
tório insular do município com funções especí-
Telma de Souza (1989-1992) essa questão foi
ficas, objeto de regulação urbana diferenciada,
debatida de forma direta e especifica na pro-
e incluía ainda as propostas de Zonas Especiais
posta do novo plano diretor (PMS, 1995). Nessa
de Interesse Cultural, Ambiental e Urbanís-
gestão, foram aprovadas as leis de instituição
tico e de criação de Corredores de Atividades
das ZEIS e de criação do Fundo de Incentivo à
Econômicas.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
563
André da Rocha Santos
Essas ZEIS correspondem a áreas ocupadas por favelas, loteamentos irregulares ou
clandestinos, cortiços e terrenos vazios ou mal
utilizados, nas quais o poder público se propõe a intervir com base no reconhecimento da
necessidade da população de ocupar ordenadamente os espaços urbanos. Identificadas e
delimitadas espacialmente, foram criadas três
categorias de ZEIS: ZEIS 1, que correspondem a
[...] renovação urbana e produção de unidades habitacionais de caráter popular
através da intervenção em área com concentração de habitação coletiva precária
de aluguel (cortiços), onde haja interesse
de se promoverem programas e projetos
habitacionais destinados prioritariamente à população de baixa renda familiar
moradora da área. A delimitação desta
área corresponde ao tipo de zoneamento
denominado ZEIS 3. (1999, p. 105)
áreas já ocupadas, de forma irregular ou clandestina, nas quais se propõe a regularização ju-
Contudo, tal mecanismo não conseguiu
rídica e urbanística; ZEIS 2, que correspondem
se efetivar na prática. Esse instrumento teve
a áreas não ocupadas, nas quais se propõe a
a sua inclusão na lei complementar n. 53/92
implantar empreendimentos habitacionais
ocorrendo de forma distinta dos demais tipos,
segundo critérios especiais de parcelamento,
não se apoiando em nenhum programa público
uso e ocupação do solo; e ZEIS 3, que corres-
de intervenção em andamento. De forma dis-
pondem a áreas de concentração de cortiços,
tinta das ZEIS 1 e 2, que poucas resistências so-
localizados em bairros centrais deteriorados,
freram, a proposta de intervenção nos cortiços
nos quais o poder público propõe recuperar as
localizados na área central da cidade foi critica-
condições de habitabilidade (ibid., p. 75).
da pelo setor da construção civil.
A Lei Complementar que criou as ZEIS foi
Nesse sentido, a política de intervenção
promulgada em 15 de maio de 1992. Ela estru-
nos cortiços – e, por decorrência, na área cen-
tura a intervenção visando solucionar o proble-
tral da cidade, onde foi delimitado o perímetro
ma de moradia de interesse social através de
de ZEIS 3 – teve de ser redefinida, passando a
legislação que regulamenta as zonas de ocupa-
se estruturar como programa de locação social.
ção especial para esse uso específico, indican-
Enquanto programa de locação social, os resul-
do os mecanismos jurídicos para o tratamento
tados quantitativos alcançados foram baixos
da questão fundiária, os mecanismos especí-
e, ao final da segunda administração petista,
ficos relacionados à partilha do solo urbano e
apenas dois empreendimentos haviam sido
às exigências para edificação e os mecanismos
concluídos. Ambos os empreendimentos con-
financeiros próprios para o acesso à moradia
sistiam na reforma de imóveis localizados na
popular (Carvalho, 2001, p. 104).
área central da cidade e visavam o direito de
A abrangência do problema habitacional
moradia e não de propriedade à população. O
objeto de intervenção dessa modalidade de zo-
primeiro atendeu 14 idosos e o segundo, 8 fa-
neamento especial destinou-se ao atendimento
mílias. Além destes, em 1996, um terceiro em-
da necessidade da população de baixa renda.
preendimento encontrava-se em andamento e
Segundo Carvalho, no caso da ZEIS 3, a inter-
outros três em fase de estudos (Carvalho, 1999,
venção é feita através da ação pública de:
pp. 152-155).
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
Habitação precária e os cortiços da área central de Santos
Segundo a diretora da COHAB-ST, o pro-
a construção de moradias com verbas dos pro-
jeto de ZEIS 3 não foi formulado a partir da
gramas habitacionais, promovidos pelo Gover-
demanda expressa por qualquer segmento da
no do Estado. O Município ficou responsável
população, tal como ocorreu com as ZEIS 1 e 2.
pela promoção do ordenamento territorial,
Além disso, tal mecanismo foi incorporado ao
mediante planejamento e controle de uso.
projeto de lei de criação das ZEIS “de última
O CMDU já havia aprovado também a
hora”, posto que se concluiu que era “interes-
proposta de alteração da Lei de ZEIS, incluindo
sante” (Carvalho, 2001, p. 106):
algumas das sugestões encaminhadas por conselheiros, que visavam melhorar a redação da
A ZEIS 3 não aconteceu na prática. Tivemos levantamento, pesquisas em cortiços.
Chegamos a fazer projeto, no governo do
David mais ainda. (...) A ZEIS 3 mesmo
não dá pra falar que foi uma experiência
bem-sucedida... (Ibid.)1
proposta, evitando dúvidas de interpretação.
Além das ZEIS, outro instrumento de
das pelos componentes do CMDU, foi a melho-
política urbana visando à questão da moradia
ra da redação, deixando clara a nomenclatura
na área central foi amplamente debatido na
de locais especificados pela Lei de ZEIS, além
cidade nos últimos anos. Trata-se do Progra-
de explicar – no próprio texto da lei – alguns
ma de Atuação em Cortiços da Companhia de
termos específicos da matéria. A minuta que
Desenvolvimento Habitacional e Urbano do
foi confrontada com a Lei atual (cuja alteração
Governo do Estado. Em 1999, houve o primei-
estava sendo sugerida) foi elaborada por meio
ro anúncio e, em 2001, o primeiro estudo de
do trabalho coordenado pela Seplan, do qual
ocupação e a proposta de convênio, para dar
participaram técnicos da Cohab Santista, CET
início ao programa criado em junho de 1998.
e Seosp. Com a aprovação do projeto, o mu-
A iniciativa do PAC visava extinguir esse tipo
nicípio passou a contar com 46 áreas de ZEIS
de locação habitacional, além da revitaliza-
e, entre as novas, está a ZEIS-3 no bairro Pa-
ção urbana das áreas em que se concentram,
quetá no perímetro que compreende as ruas
permitindo que as famílias permaneçam na
Amador Bueno, Doutor Cóchrane, João Pessoa
mesma região onde moram e possam usufruir
e Conselheiro Nébias (D. O., 28/5/2002).
Encaminhadas pelos membros ao conselho, as
sugestões foram alvo de debates e avaliações
que resultaram na aprovação do texto da minuta do projeto.
O objetivo principal das alterações, vota-
a infraestrutura disponível. O Programa con-
Tendo como foco a ação nas áreas cen-
centra o seu foco de ação nas Áreas Centrais,
trais encortiçadas das grandes cidades do es-
cumprindo o papel de revitalizar o centro
tado, a equipe do PAC demonstrou grande
deteriorado das maiores cidades do Estado.
interesse em Santos, por conta de algumas
(CDHU, 2003).
características que deram ao município priori-
Em 2002, foi aprovada a sanção da Lei
dade na implantação do projeto. Dentre essas
Complementar n. 457 que alterou o anexo
características, o fato de a área ser bem menor
I da Lei que criou as ZEIS. Com essas altera-
do que em outras cidades e estar concentra-
ções ficaram estabelecidas as condições para
da espacialmente, além de os imóveis terem
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André da Rocha Santos
Figura 2 – Ruas dos bairros
Valongo, Centro, Paquetá, Vila Nova e parte da Vila Matias
Fonte: Google Maps, 2007.
particularidades arquitetônicas de relevo histó-
Em março de 2004, houve o ato simbóli-
rico que deverão ser reabilitadas, reurbanizadas
co de acionamento do bate-estaca no terreno
e requalificadas urbanisticamente, visando ex-
da Rua João Pessoa, 400, no Centro, onde seria
tinguir esse tipo de concentração habitacional.
construído um conjunto habitacional com 600
De acordo com o levantamento da Pre-
unidades, sendo que as 60 primeiras deveriam
feitura entregue ao órgão estadual, a área de
ser entregues em julho de 2005 pela CDHU.
atuação do PAC seria a região do Mercado
Na mesma solenidade foi anunciado que o
Municipal e do Cemitério do Paquetá, on-
governo estadual estava investindo R$1,4 mi-
de as intervenções abrangeriam cerca de 10
lhão no projeto que teria três prédios, de cinco
quarteirões. Segundo o convênio, o programa
pavimentos cada. Nesse caso, o município não
seria implantado por meio da parceria entre a
entraria com nenhum encargo, que seriam sub-
Prefeitura, o Governo Estadual e Banco Intera-
sidiados, meio a meio, pelo BID e CDHU.
mericano de Desenvolvimento (BID) – órgão fi-
Ainda no mesmo ano de 2004, em no-
nanciador –, que estaria empregando em torno
vembro, o secretário de Estado da Habitação e
de US$100 milhões para o projeto em todo o
o gerente regional da CDHU, em visita ao Pa-
2
Estado (D.O., 5/10/2001).
566
ço Municipal, reafirmaram as parcerias entre
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Habitação precária e os cortiços da área central de Santos
Prefeitura e Governo do Estado nas políticas
foi analisada pela Caixa Econômica Federal,
públicas para moradia popular e anunciaram
agente financiador do programa ( A Tribuna,
que até o final de 2006 seriam totalizadas 339
21/6/2006) e empreende desde o início de
moradias habitacionais dentro do PAC. O in-
2009 a construção de 181 unidades habitacio-
vestimento seria da ordem R$10 milhões e as
nais – sendo 113 apartamentos pelo Programa
construções teriam o cuidado de ser adequada
Crédito Solidário, e 68 pelo Programa Minha
com os objetivos propostos pela revitalização
Casa, Minha Vida – Entidades, ambos do Go-
do Centro Histórico (D. O., 29/11/2004).
verno Federal – em terreno recebido pela Se-
O programa funcionaria na cidade em
cretaria do Patrimônio da União (SPU), ligada
três frentes. A primeira delas, a Santos F, con-
ao Ministério do Planejamento, Orçamento e
templaria 60 apartamentos que estavam sendo
Gestão, através de Concessão de Uso, instru-
construídos na Rua João Pessoa, número 400.
mento jurídico do Estatuto da Cidade. A pri-
Depois de dois anos de atrasos, a previsão
meira etapa, que prevê a construção dos 113
era de que a obra estaria pronta até março de
apartamentos, recebeu também recursos do
2007, mas esse prazo não foi cumprido.
governo do estado de São Paulo.
Na segunda frente do programa, a San-
Essa ação proveniente essencialmente da
tos H, na Rua Amador Bueno números 387/397,
organização popular dos moradores de cortiços
a situação não foi diferente. A previsão mais
é hoje (2011) a maior intervenção na área cen-
otimista era que as obras seriam entregues
tral de Santos e, segundo a previsão, irão retirar
somente em novembro de 2008. Na Santos I,
dos cortiços, até o final de 2012, aproximada-
localizada na Avenida São Francisco números
mente 800 pessoas. Contudo, segundo a ACC,
409/415, as obras para a construção dos 81
tal iniciativa não tem recebido da prefeitura a
apartamentos sequer saíram do papel. Ao todo,
devida atenção, pois desde o início do proces-
as áreas abrigariam 311 famílias.
so tem sido buscada uma parceria, através da
Diante dos constantes atrasos nas obras,
COHAB Santista, para complementação de re-
foram realizadas Audiências Públicas no primei-
cursos para que os apartamentos sejam entre-
ro semestre de 2007, com várias manifestações
gues com todos os seus acabamentos previstos
de cobrança em relação aos programas habi-
em projeto, o que não ocorre atualmente. Isso
tacionais em andamento e os que estavam em
ocorre porque os recursos disponíveis para a
processo de execução (A Tribuna, 17/6/2006).
construção são menores do que os recursos
Sem uma solução de curto prazo, a enti-
necessários e, por conta disso, além de os aca-
dade Associação de Cortiços do Centro (ACC)
bamentos internos dos apartamentos ficarem a
recorreu ao Crédito Solidário do Ministério das
cargo de cada morador, os mesmos ainda estão
Cidades, um programa de habitação destina-
tendo que pagar uma parcela da construção
do a associações e cooperativas de morado-
através de trabalho por mutirão, ou seja, mem-
res que atendem famílias com renda de um
bros das famílias participam da construção au-
a cinco salários mínimos. A proposta da ACC
xiliando na realização dos trabalhos técnicos
para a construção das unidades habitacionais
da mão de obra contratada.
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André da Rocha Santos
Considerações finais
as razões que têm impedido que a proposta
de edificação de prédios de apartamentos seja
executada na área. Ainda segundo tal discurso,
Muitas das ações e dos acontecimentos relacio-
dentre as dificuldades que dificultariam a ope-
nados à região central estão ocorrendo junto
racionalização do programa encontram-se as
com a realização desta pesquisa e, dessa forma,
próprias condições do solo santista, que invia-
procuramos dar uma contribuição à discussão e
bilizariam financeiramente esse tipo de solução
ao debate mais amplo sobre os caminhos e o
para segmentos de baixa renda.
futuro dessa região. Entretanto, podemos obser-
Finalmente, podemos acrescentar que a
var que o Centro de Santos vem recebendo nos
região central permanece como uma área de
últimos anos diversas intervenções do poder
alto nível de exclusão social em que os “subci-
público que vem dotando a área com uma signi-
dadãos”, principalmente na região do mercado
ficativa infraestrutura urbana e um conjunto de
municipal e no Paquetá, lá permanecem sem
propostas específicas e articuladas. Todas essas
uma política efetiva de promoção da inclusão.
ações têm procurado dinamizar a região com o
A fragilidade da cidadania nessas áreas, en-
incentivo à geração de empregos, à instalação
tendida como as inúmeras formas de vulnera-
de atividades econômicas públicas e privadas e
bilidade quanto ao emprego, aos serviços de
o reforço da identidade cultural.
proteção social e à violência criminal, além da
O projeto urbano contemporâneo tem
perda ou ausência de direitos e a precarização
colocado na pauta de ações do poder público
de serviços coletivos que garantiriam uma ga-
a importância do Centro como uma localização
ma mínima de proteção pública para grupos
que, apesar de não estar mais satisfazendo o
carentes de recursos privados, tem permaneci-
papel imobiliário que lhe é exigido pela cidade,
do sem modificações como um componente da
possui dentro da rede intraurbana toda uma in-
vida urbana na região.
fraestrutura de transportes, serviços e equipa-
Dessa forma, podemos dizer que dentre
mentos já implantada, e investimentos nesses
os objetivos pretendidos pelo discurso das ad-
locais tem a possibilidade de produzir uma no-
ministrações locais nas últimas duas décadas,
va adequação funcional atraindo capital e pes-
alguns foram cumpridos e outros ainda não,
soas, tornando a região convidativa do ponto
ou seja, apesar dos inúmeros avanços, o pro-
de vista turístico e comercial.
jeto ainda não foi capaz de reverter o processo
Entretanto, podemos afirmar que, apesar
mais amplo de declínio econômico e nem de
de o poder público ter uma ação destacada
melhorar as condições de vida da população
no que tange às intervenções de cunho cul-
residente, pois as principais ações prometidas
tural e de entretenimento, não tem tido uma
na área habitacional como as relativas à ZEIS 3
ação eficaz no que se refere às ações ligadas
e ao PAC praticamente não saíram do papel, e
a questões sociais, notadamente as relaciona-
a situação social e habitacional na área perma-
das à habitação. Segundo o discurso oficial, di-
nece sem nenhuma alteração significativa há
ficuldades técnicas, financeiras e políticas são
mais de três décadas.
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Habitação precária e os cortiços da área central de Santos
Assim, palavras como frustração e decepção
acreditaram que o processo de revitalização do
ilustram o pensamento de grande parte dos mora-
Centro pudesse, na mesma velocidade, também
dores dessa região que em determinado momento
melhorar suas precárias condições de vida.
André da Rocha Santos
Sociólogo pela Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”. Mestre em Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil.
[email protected]
Notas
(1) Entrevista concedida a Carvalho (2001) por Márcia Cristol Luz, em 6/8/98.
(2) O inves mento seria de R$20 milhões, numa média de R$22 a 25 mil para cada uma das unidades
que terão em torno de 40m² com um ou dois quartos. A prestação do financiamento para as
moradias seria de 15% do salário mínimo, em torno de R$40,00. Segundo a CDHU, as famílias dos
cor ços da Rua Amador Bueno e da Avenida São Francisco seriam cadastradas e iden ficadas
pela empresa e pela Prefeitura (D. O., 8/3/2004).
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Texto recebido em 17/fev/2011
Texto aprovado em 11/abr/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011
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Instruções aos autores
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gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de
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AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso.
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