Controle e normalização: Michel Foucault e a relação entre corpo e

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Controle e normalização: Michel Foucault e a relação entre corpo e
Controle e normalização: Michel Foucault e
a relação entre corpo e poder
Marcos Vinícius Paim da Silva
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia. Docente e membro do Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade
Maria Milza (FAMAM). Docente e membro do Conselho Superior de Ensino da Faculdade Batista Brasileira (FBB).
Coordenador do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Leituras da Religião (NEPLER) da FBB. Coordenador da Pós-Graduação
Ciências da Religião, Filosofia e História - Lato Sensu da FBB. E-mail: [email protected]
Resumo
Considera-se que muito da obra de Michel Foucault é dedicada a uma análise sobre o poder.
Primeiro sobre o poder disciplinar e o desdobramento deste, o biopoder. Este artigo analisa
que, na ideia deste autor, a organização social está respaldada pelas microrrelações de
dominação que se encontram estrategicamente construídas e fortalecidas pelos espaços
institucionais, garantidores de estabelecerem, a partir do século XVII, formas de controle
sobre os indivíduos, tendo como lugar, os seus corpos. A docilidade que oferece os corpos faz
com que, por meio de determinados mecanismos, como o da disciplina, por exemplo, possam
ser manipulados e com isto, normalizados e regularizados, a fim de que se cumpram
determinados objetivos políticos. Vamos ter um Foucault em Vigiar e punir, dedicando-se em
analisar o nascimento das prisões, mas também demonstrando como uma concepção social do
corpo, como objeto, ali se efetiva. Percorre o itinerário foucaultiano esclarecendo um pouco
mais esta questão que se fabricou com a relação entre corpo e poder, a partir da época
clássica.
Palavras-chave: Disciplina. Dominação. Poder. Corpo. Michel Foucault.
Control and standardization: Michel Foucault and the relationship between
body and power
Abstracts
It is considered that much of the work of Michel Foucault and dedicated to an analysis on the
power. First on the disciplinary power and the deployment of the biopower. This article
analyzes the idea of this author, the social organization is backed by the weavings of
domination that are strategically built and strengthened by institutional spaces, guarantors of
setting, from the 17th Century, forms of control over the individuals, having as place, their
bodies. The docility that offers the bodies means that, by means of certain mechanisms, such
as the discipline, for example, can be manipulated and with this, standardised and settled, in
order to meet certain political goals. We will be having a Foucault in Watch and punish, and
to devote themselves to analyze the birth of prisons, but also showing how a social conception
of the body, as an object, there is effective. Following the journey foucauldian explaining a
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little more this issue which is manufactured with the relationship between body and power,
from the classical era.
Keywords: Discipline. Domination. Power. Body. Michel Foucault.
UM OLHAR PARA O PRESENTE: o caminho poder-sujeito
O filósofo Gilles Deleuze, em seu escrito, Foucault, delineia com maestria o arcabouço
filosófico perturbador construído por Michel Foucault. E parece-nos caber aqui citá-lo para
que tenhamos, em linhas gerais, uma idéia do quanto é inquietante, e não menos tumultuado,
o contato com a verve foucaultiana. Abre ele as páginas do seu livro nos dizendo:
Um novo arquivista foi nomeado na cidade. Mas será que foi mesmo
nomeado? Ou agiria ele por sua própria conta? As pessoas rancorosas dizem
que ele é o novo representante de uma tecnologia, de uma tecnocracia
estrutural. Outros, que tomam sua própria estupidez por inteligência, dizem
que é um epígono de Hitler, ou, pelo menos, que ele agride os direitos do
homem [não lhe perdoam o fato de ter anunciado a ‘morte do homem’].
Outros dizem que é um farsante que não consegue apoiar-se em nenhum
texto sagrado e que mal cita os grandes filósofos. Outros, ao contrário,
dizem que algo de novo, de profundamente novo, nasceu na filosofia, e que
esta obra tem a beleza daquilo que ela mesma recusa: uma manhã de festa.
(DELEUZE, 1988, p. 13).
As concepções de Foucault trazem discussões das mais variadas e para várias áreas do
saber. Elas nos servem para, pelo menos, nos conduzir a um ponto de visão mais crítico e
atento diante da diversidade de problemas com os quais os homens contemporâneos se vêm
engendrados.
O pensador francês Michel Foucault constrói o seu pensamento filosófico em torno de
três noções bem pontuais: o poder, o saber e o cuidado de si. Com elas, a estrutura de uma
reflexão acerca das condições de possibilidades de constituições de sujeitos, vai se firmar
como nervura de investigações que se abrem para analisar diversas problemáticas. Portanto,
quando somos levados a analisar determinadas questões, que têm como referência noções
foucaultianas, não podemos nos furtar, de uma abordagem da sua inicial concepção de poder,
e de como esta vem a tornar-se fundamento primordial para as suas reais investigações sobre
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as sociedades modernas que perpassa toda a sua filosofia, a saber, o sujeito e suas respectivas
constituições históricas.
Não existe, para Foucault, a possibilidade de se pensar o sujeito moderno como uma
entidade que pré-existe ao mundo social. Em, praticamente, toda a sua obra, as especulações
se configuram em analisar não apenas o que constitui a noção de sujeito, própria da
modernidade, mas também de que maneiras nós mesmos nos constituímos como sujeitos.
Melhor ainda, como os diversos discursos de vários saberes, na história, foram capazes de
criar certas modalidades de subjetivação a ponto de produzir sujeitos com suas práticas e
estratégias de regularização, normalização e controle, ou seja, de mecanismos de poder sobre
os indivíduos.
O sujeito é visto, para Foucault, como elaborado, trabalhado e constituído, segundo
critérios de estilo por meio de tecnologias de saber, de poder e de si, por ele consideradas de
tecnologias do eu. Como ele nos mostrou, ao longo da sua obra, cada um de nós, enquanto
sujeito, é o resultado de uma produção que se dá no interior do espaço delimitado pelos três
eixos da ontologia do presente: os eixos do ser-saber, do ser-poder e do ser-si. São, portanto,
para Foucault, os dispositivos e suas técnicas de fabricação, dentre as quais a disciplinaridade
é um grande exemplo, que instituem o que chamamos de sujeito. Neste sentido, cada um faz
não o que quer, mas aquilo que pode; aquilo que lhe cabe na posição de sujeito que ele ocupa
numa determinada sociedade, submetido aos ditames de instituições sociais e políticas.
Foucault é considerado, por muitos dos seus estudiosos, um filósofo que analisa as
“estruturas do poder”. Quando, indagado em uma entrevista concedida a J. Bauer, em 1978,
na Playmen, porque ele não sendo um antropólogo se interessa mais pelas estruturas das
instituições do que pelos mecanismos evolutivos, responde:
O que procuro fazer - e que sempre procurei fazer desde a História da
loucura na Idade Clássica - é contestar, através de um trabalho de
intelectual, diferentes aspectos da sociedade, mostrando suas fraquezas e
seus limites. Contudo, meus livros não são proféticos e tampouco um apelo
às armas. Eu ficaria extremamente irritado se eles pudessem ser vistos sob
essa luz. O objetivo a que eles se propõem é o de explicar, do modo mais
explícito - mesmo se, às vezes, o vocabulário é difícil -, essas zonas da
cultura burguesa e estas instituições que influem diretamente nas atividades
e nos pensamentos cotidianos do homem. (FOUCAULT, 2003, p. 306).
Eis, portanto, o grande propósito deste pensador. A partir de uma análise das instituições
burguesas e dos malefícios que elas trazem à sociedade como estrutura social, radiografar
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uma crítica a ponto de nos fazer evidenciar qual o nosso papel como sujeito, e por quais meios
nós podemos dizer o que somos na nossa mais ordinária cotidianidade, inclusive na nossa
própria forma de pensar este nosso presente. Esta perspectiva gravita em torno das
especulações que faz Foucault sobre o poder e da estreita relação que possui este com o saber.
A dimensão dada por Foucault à analítica do poder, como um objeto de inquietação e
que suscitou no seu pensar uma investigação acerca dele, já foi em muito dada uma atenção
em seu entorno. Muitos autores o estudaram. Mas o que propõe ele é algo diferente, não mais
atrelado à idéia do poder como produzido nos aparelhos de Estado como uma aberração, mas
observar como na vida cotidiana este fenômeno insurgia tão visivelmente e com tanta
frequência na vida dos homens. Contudo, o que mais preocupava a este autor era não só o
porquê de exercermos o poder, mas com que direito este exercício se estabelece e para que
isto serve.
A noção de poder que Foucault concebe, distancia-se daquela dada por inspiração
marxista que, segundo ele, não mais funcionava para demonstrar este tipo de fenômeno, visto
apenas como o poder de Estado. O poder não é algo que se encontra estático, em um
determinado lugar, capaz de se exercer meramente para fazer visível a luta das classes ou da
superestrutura de uma sociedade. O que existe são mecanismos e práticas de poder, que atuam
favorecidos pela construção de determinados discursos com propósitos bem específicos de
controle e disciplinarização dos indivíduos. Segundo Foucault, o aparecimento do poder está
vinculado às microrrelações sociais. Para ele,
[...] as relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre
aquele que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na
família. Na sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por
conseguinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos, micro lutas de
algum modo. Se é verdade que estas pequenas relações de poder são com
freqüência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de Estado
ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer que, em
sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de Estado só
podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder. O
que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por exemplo, o serviço
militar, senão houvesse em torno de cada indivíduo todo um feixe de
relações de poder que o liga a seus pais, a seu patrão, a seu professor –
àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na cabeça tal e tal idéia?.
(FOUCAULT, 2003, p. 231).
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Ele se opõe ao pensamento tradicional filosófico moderno que vê o sujeito autônomo,
herança capital do cartesianismo. Portanto,
Foucault não assume as metanarrativas que marcaram profundamente a
nossa tradição ocidental, principalmente ao longo dos últimos três ou quatro
séculos. Na contramão da corrente, ele não quer criar um sistema, nem
mesmo alguma teoria filosófica, mas quer dar liberdade à sua filosofia. O
que o move é, no fundo, uma permanente suspeita; suspeita que se contorce
e se volta até mesmo contra sua própria filosofia e contra sua intensa
militância política, como se ele quisesse se libertar de si mesmo. (VEIGANETO, 2003, p. 25).
A aproximação entre poder e saber não se trata da mesma coisa, mas são lados opostos
de um mesmo processo. A real imbricação entre ambos se entrecruza no sujeito, seu produto
concreto, e não num universal abstrato. Foucault nos oferece um saber como construção
histórica, e como tal um “[...] saber que produz ele mesmo, suas verdades, seus regimes de
verdades [...] que ao mesmo tempo se instauram e se revelam nas práticas discursivas e não
discursivas.” (VEIGA-NETO, 2003, p. 156).
Em, Vigiar e Punir, Foucault (2000) desenvolve uma análise crítica da sociedade
moderna a partir de estreitas relações que se estabelecem entre o poder e o saber. Ele parte de
uma investigação acerca dos sistemas penitenciários, e de como estes se tornaram o local
perfeito para disciplinarização de sujeitos. Contudo, estas suas análises se estendem a outros
espaços modernos como a escola, a fábrica, o hospital, por exemplo. Os seus questionamentos
giram em torno de analisar os meios pelos quais nós, ocidentais, nos ofertamos para punição,
correção e adestramento, diferentes dos meios de punir de outras épocas. Ao tratar das
relações entre as tecnologias e produção de saberes não está propondo uma teoria do poder,
mas uma análise de certa economia de poder que, no século XVIII demandava máquinas,
olhares vigilantes e normas disciplinares.
Os pressupostos teóricos que o guiam são o de que: a punição não é só uma sanção
derivada da repressão, mas tem uma função social; a punição não provém das regras do
direito, mas é um entre outros procedimentos de poder existentes em táticas políticas; o
surgimento das ciências humanas pode ser buscado nos saberes que se fizeram necessários
para conhecer a alma do criminoso; o corpo passou a ser sujeitado a espaços e técnicas
disciplinares que permitiram “dar nascimento” ao homem como objeto de saber para um
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discurso com estatuto científico. Portanto, o poder é, antes, uma estratégia de localização,
trama de relações, batalha perpétua, efeito das posições e estratégias da classe dominante e
não algo que conserva e possui. Ao invés de desapossar, apóia-se nos despossuídos, encontrase disseminado. Em toda parte se está em luta:
[...] as relações de poder suscitam necessariamente, apelam a cada instante,
abrem a possibilidade a uma resistência, e é porque há possibilidade de
resistência e resistência real que o poder daquele que domina tenta se manter
com tanto mais força, tanto mais astúcia quanto maior for a resistência. De
modo que é mais a luta perpétua e multiforme [...]. (FOUCAULT, 2003, p. 232).
Foucault estabelece, com suas concepções, a noção de um sujeito obediente. Este sujeito
é visto como uma realidade fabricada, que existe em muitas e diferentes modalizações. É
produzido e sustentado por um poder pouco notado e difícil de denunciar: um poder que
circula através dessas pequenas técnicas, numa rede de instituições sociais. Ninguém foge ao
próprio posicionamento nessa operação eficiente, produtiva, em forma de rede. Treinados
para olhar o indivíduo que desobedece a determinadas prescrições normativas; os
profissionais reúnem informações sobre toda forma de serviço executado para restaurar o
desviante ao estado normal. Isso é notório, nas respostas cuidadosamente reguladas e
vigilantes dos sistemas escolares, por exemplo, em relação aos estudantes considerados como
uma “ameaça” de abandonar o típico programa escolar, ou estudantes que demonstram um
padrão de comportamento social inaceitável. Um olhar atento e vigilante, por parte de
educadores, amparados pelas estratégias de controles que se encontram devidamente
institucionalizadas no espaço escolar é possível, segundo as análises de Foucault, construir
por meio de uma pedagogia, indivíduos prontamente determinados para atender aos anseios
de normas vigentes de ordem política e moral estabelecida pela sociedade. Ou seja, a
superfície sobre a qual o poder opera é ampliado no processo de produzir indivíduos
segmentados, permitindo um aumento na quantidade de poder exercido. As observadas
visibilidades do sujeito são a medida de um poder que se move, a fim de disciplinar. Enquanto
somos produzidos, não somos meramente um artefato ossificado do poder e do saber. O
sujeito é uma presença plástica, uma resposta urgente à desordem, tanto no sentido terapêutico
quanto no político.
As instituições, portanto, segundo Foucault, são locais disciplinares de poder-saber num
sentido positivo ou constitutivo. Ela pode ser um local perigoso, não por causa da presença de
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formas grosseiras, brutais ou ilícitas de poder, mas porque produzem instrumentalidades
disciplinares, aparentemente benevolentes, eficientes e em busca da verdade. A veia de um
“exercício” do poder entre os indivíduos nas sociedades modernas atua de forma subrepticial.
Contudo, extremamente dinâmica na medida em que se faz ver e dizer-se a todo o momento:
de baixo para cima ou vice versa, e em todas as direções.
A atividade intelectual de Michel Foucault pode ser considerada, a partir de muitos dos
seus estudiosos, como um lugar de aberturas ao pensar, um desdobrar-se. E seus escritos
proporcionam e permitem novas interpretações, mostrando assim um sinal de sua riqueza,
profundidade e complexidade. As influências que ele teve de Nietzsche e Heidegger, o
levaram, na seara destes dois autores, “[...] a enfatizar e desvelar relações conceituais e
históricas entre as noções de verdade, poder e subjetividade em suas investigações
genealógicas.” (BESLEY; PETERS, 2007, p. 17-18).1 Embora vale ressaltar que
substancialmente só escreveu um artigo sobre Nietzsche e nada sobre Heidegger. Após a sua
morte, o escritor e amigo Paul Veyne fez o seguinte comentário, referindo-se à primeira
palestra que Foucault proferiu no Collège de France:
Foucault contrastou uma filosofia analítica da verdade em geral com sua
própria preferência pelo pensamento crítico que tomará a forma de uma
ontologia de nós mesmos, de uma ontologia do presente; naquele dia, ele
chegou a relacionar seu próprio trabalho à forma de reflexão que se estende
de Hegel à Escola de Frankfurt via Nietzsche e Max Weber (VEYNE apud
BESLEY; PETERS, 2007, p. 17).
CORPO E PODER
Na terceira parte de Vigiar e punir, “Disciplina”, Foucault (2000) dá início a uma
elaboração conceitual política da estreita relação entre corpo e poder que se estabelece durante
a época clássica. Onde demonstra a construção, fabricação e modelação que se efetiva sobre
os corpos dóceis dos indivíduos, no meio social, como característica de uma modalidade de
subjetivação, que perdurará até os nossos dias, com firmes propósitos de normalização e
regularização da sociedade. O exército e as suas práticas é o exemplo ilustrado por Foucault
para mostrar o início, do que ele vem a chamar, de uma sociedade disciplinar de controle, cujo
corpo do indivíduo começa a ser visto como objeto.
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Havia, no século XVII, uma descrição da figura ideal do soldado; se criou, portanto,
neste período, uma retórica corporal da honra em que este indivíduo era, sem dúvida,
reconhecido de longe pelo modo como o seu corpo era identificado e associado a certos
gestuais, pela maneira como os sinais naturais de vigor, coragem e marcas de seu orgulho
eram ressaltados pelo seu corpo que se considerava ser o brasão de sua força. Com isso, a
ideia para o cumprimento de exercícios e práticas dos homens que faziam parte do exército foi
alimentada, desde esse século, como a condição em que os indivíduos pertencentes a esta
instituição corresponderiam às suas exigências de funcionamento, caso os soldados passassem
por uma disciplinarização dos seus corpos, atendendo aos ideais desta retórica corporal. E,
neste sentido, a partir do século XVIII, o soldado, em detrimento do camponês, passou a ser
aquilo que se pode fabricar. De uma massa sem forma e de um corpo inapto construiu-se a
máquina de que se precisa. As posturas aos poucos foram corrigidas; um lento cálculo de
coação é realizado sobre muitas partes do corpo. Uma capacidade de assenhoramento, e
condições de tornar o corpo perpetuamente disponível, numa automatização de seus hábitos
eram realizadas de maneira silenciosa.
O que historicamente começa a ser evidenciado durante a época clássica, segundo
Foucault (2000, p. 117) “[...] é uma descoberta do corpo como objeto.” Muito facilmente,
sinais são encontrados de uma grande atenção ao corpo. Um corpo que se modifica, modela,
se torna hábil, se treina e se obedece. O grande livro do “Homem- máquina”2 havia sido
escrito sob dois registros simultâneos:
[...] no anátamo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por
Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro, constituído
por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por
processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do
corpo. Dois registros bem distintos, pois tratava-se ora de submissão e
utilização, ora de funcionamento e explicação: corpo útil, corpo inteligível.
E, entretanto, de uma ao outro, pontos de cruzamentos. [...] É dócil um corpo
que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e
aperfeiçoado. (FOUCAULT, 2000, p. 117-118).
Essa docilidade dos corpos que tanto interesse teve no século XVIII, o que de novo
existe? Pergunta Foucault. Pois, o sabemos, não é a primeira vez em que o corpo é objeto de
poderosos investimentos em qualquer sociedade, onde de uma forma ou de outra está
agrilhoado no interior de podres que o limita, proíbe ou sobre ele é favorecido uma série
ampla de obrigações.
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As sociedades modernas apenas vieram de maneira mais segura e determinada promover
um tipo de sujeição aos corpos, que antes atendia a outros objetivos. Novas técnicas, portanto,
se investem ao corpo dos indivíduos. E dele tenta-se, e há um sucesso nesta investida, extrair
uma obediência pela facilidade com qual o mesmo pode ser trabalhado, aponta Foucault.
Muitas são as estratégias que garantiriam esta subordinação. Em primeiro lugar, a escala do
controle – o corpo não é cuidado como se fosse uma unidade indissociável, mas uma entidade
que pode ser trabalhada detalhadamente; um lugar em que sobre ele pode-se exercer
proibições diversas, ou seja, algo que é visto ao nível da mecânica. Dele, consegue-se retirar
movimentos, atitudes, gestos e rapidez. Constrói-se, sobre o corpo passível de atividade, um
poder de ordem infinitesimal. Em segundo lugar, o objeto de controle – o corpo não mais
visto à luz das suas significações comportamentais e da sua linguagem, mas sobre a sua
economia, isto é, elemento cujas eficácias de movimentos, coações que se realizam sobre ele
funda-se na capacidade de uma cerimônia de exercícios com os quais ele se adéqua sem
restrições. Por último, a modalidade – o corpo submetido a uma coerção sem interrupções,
que gerencia e facilita o esquadrinhamento máximo do tempo, do espaço e dos movimentos.
A estes métodos que fazem com que se obtenham um controle detalhado e silencioso das
operações do corpo e que lhe impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que nós
podemos chamar de “disciplinas”, segundo Foucault (2000).
Processos disciplinares já existem há muito tempo em espaços como conventos,
exército e, também, nas oficinas. Contudo, no decorrer dos séculos XVII e XVIII as
disciplinas tornaram-se formas gerais de uma eficaz dominação dos indivíduos no meio
social. O rastro de submissão dos sujeitos que foi sendo construído pelas expectativas das
disciplinas, nas suas formas mais variadas, tornaram-se a mola propulsora para que cada vez
mais nas sociedades, requintadas, novas maneiras de regularização e normalização se
evidenciassem. Segundo Foucault (2000, p. 179) “A formação da sociedade disciplinar está
ligada a certo número de amplos processos históricos no interior dos quais ela tem lugar:
econômicos, jurídico-político, científicos, enfim.” Além disso, as disciplinas, portanto,
objetivam punições no interior dos seus espaços. Pois sem elas, as punições, o cumprimento
de normalização nos meios sociais tornar-se-iam insuficientes. Com isto,
[...] na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma
micropenalidade do tempo [atrasos, ausências, interrupções das tarefas], da
atividade [desatenção, negligência, falta de zelo], da maneira de ser
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[grosseria desobediência], dos discursos [tagarelice, insolência], do
corpo[atitudes ‘incorretas’, gestos não conformes, sujeira], da sexualidade
(imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição,
toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações
ligeiras e pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tronar
penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e dar uma função punitiva
aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando
ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada
indivíduo se encontre preso numa universalidade punível-punidora.
(FOUCAULT, 2000, p. 149).
Esta dominação, de ordem disciplinar sobre os corpos dóceis em uma atividade
mecânica de poder não pode ser comparada, segundo Foucault (2000), a outros tipos de
dominações
historicamente
evidenciadas
socialmente
como
o
da
escravidão,
da
domesticidade, da vassalidade e do ascetismo. Na escravidão, vemos uma apropriação dos
corpos, fato deselegante para a disciplina, já que se trata de uma custosa e violenta relação e
cujos efeitos de utilidade são muito grandes; na domesticidade, mostra-se um tipo de
dominação respaldada pelos “caprichos” dos patrões que é global, maciça, constante, não
analítica e ilimitada, ou seja, limita-se por uma vontade singular; a vassalidade é uma relação
extremamente codificada, se efetiva mais pelos produtos do trabalho e por um tipo ritualizado
de obediência; o ascetismo ou obediência monástica, se objetiva em realizar renúncias muito
mais do que utilidades, e que tem como característica um domínio de alguém sobre o próprio
corpo.
O que observamos nascer, segundo Foucault (2000), na época clássica é uma política
das coerções. O corpo humano destina-se como objeto de manipulações cujas garantias disto,
se concretizam pela perspectiva de uma militarização. Isto é,
[...] o corpo humano entra numa maquinaria que o esquadrinha, o desarticula
e o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma
‘mecânica do poder’, está nascendo; ela define como se pode ter domínio
sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer,
mas que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a
eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e
exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em
termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos
políticos de obediência). (FOUCAULT, 2000, p. 119).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda esta empreitada que se inicia sobre o corpo, nesse período clássico, para Foucault,
trará consequências extremas no âmbito da sociabilidade dos indivíduos. As tentativas de
controle sobre eles acabarão servindo, para uma elaboração de formas mais amplas de
dominação. Os propósitos das muitas instituições sociais, criadas a partir da idade moderna
teriam a garantia de fazer com que as pessoas que dela fazem parte cumpram de maneira
obediente aos seus reais objetivos.
O desenrolar de uma ideia, nas atuais sociedades modernas ocidentais, de vigilância,
dominação e submissão alcançam níveis muito altos, e se espraiam por todo o corpo social. O
poder se efetiva na estrutura social engendrando-se entre os indivíduos como numa rede. Ele
atua como micro relações em todas as direções e em muitas instâncias da sociedade. E
relaciona-se não apenas com o corpo, mas também com os saberes e os seus respectivos
discursos de verdade construídos por estes.
NOTAS
1
GENEOLOGIA. In: CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Genealogia (Généalogie). Falase de um período genealógico de Foucault para fazer referência àquelas obras dedicadas á análise
das formas de exercício de poder. À diferença do que ocorre com a arqueologia e com a noção de
episteme, Foucault não escreveu uma obra metodológica a respeito da genealogia [...] É necessário
precisar que não devemos entender a genealogia de Foucault como uma ruptura e, menos ainda
como uma oposição à arqueologia. Arqueologia e genealogia se apóiam sobre um pressuposto
comum: escrever a história sem referir a análise à instância fundadora do sujeito. No entanto, a
passagem da arqueologia à genealogia é uma ampliação do campo de investigação para incluir de
maneira mais precisa o estudo das práticas não discursivas e, sobretudo, a relação não
discursividade/discursividade. Em outras palavras, para analisar o âmbito das lutas. Uma apreciação
correta do genealógico de Foucault requer seguir detalhadamente sua concepção das relações de
poder. As lutas não são concebidas, finalmente, como uma oposição termo a termo que as bloqueia,
como um antagonismo essencial, mas como um agonismo, uma relação, ao mesmo tempo, de
incitação recíproca e reversível.
2
Referência que faz Foucault ao livro de La Mettrie.
REFERÊNCIAS
BESLEY, Tina; PETERS, Michael A. (Org.). Por quê Foucault? novas diretrizes para a
pesquisa educacional. Tradução Vinícius Figueira Duarte. Porto Alegre: Artmed, 2007.
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Tradução Ingrid Müller Xavier. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004.
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DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense,
1988.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: estratégia, poder-saber. Tradução Vera Lucia Avelar
Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
______. Vigiar e punir. Tradução Raquel Ramalhete. 23. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
Artigo recebido em 25 de maio de 2008 e aceito para publicação em 16 de junho de 2008.
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