de Paula da Cunha Corrêa

Transcrição

de Paula da Cunha Corrêa
O ESCUDO: FONTES E TRANSMISSAO DO FR. 5W DE ARQUILOCO
PAULADA CUNHA
CORREA
Universidade de Sc'io Paulo (Brasil)
ciorrí61 p i v Ca'twv T L U~ÚXXETUL
~
r) rrupu B ú p v w ~ ,
E V T O ~c i p d p q ~ o v ,~ ú X X ~ n oOUK
v i0íXwv.
U ~ T ~6 V
' i k o ú w o u . ~í ~ O ~
L ~ X do'f&
E L iK€ivq;
i p p í ~ wi [ a U ~ ~ Kq T ~ ~ O ~06U LK U K ~ W . ~
"Com um escudo um saio ufana-se, o qual junto a moita.
alma irsepreensível, deixei sein querer,
mas salvei-me. Que me importa aquele escudo?
Que vá! Assanjo outro, nao pior.
Este fragmento de Arquíloco, além de ser um dos mais célebres, é talvez o mais interessante do ponto de vista de sua transmissao e fortuna crítica. Examinaremos primeiro
suas fontes antigas, pois o texto presente nas edic6es modernas é na verdade uma compilacao de citaqoes feitas por Aristófanes, Plutarco, Sexto Empírico, e quatro neoplatonicos
(Proclo, Olimpiodoro, Elias e Ps.-Elias). Há um problema especialmente no que se refere
ao terceiro verso que, além de nao se apresentar exatamente dessa fosma em nenhum dos
autores antigos, possui cinco variantes.
i. comédia (Aristófanes)
A mais antiga citacao do fragmento 5 W de Arquíloco encontra-se em A Paz (12981304) de Aristófanes. No final da peca, após ouvir o filho de Limaco que nao faz senao recitar versos militarescos, Trigeu procura um "filho de Cleonimo" com a certeza de que
esse, ao contrário, nao cantará a guerra por ter um pai "prudente" (sóphron):
1298
1300
1304
2' menino:
Tí.
"ciorrí6~ p i v Caíwv T L ~~YÚXXETUL
~
ij n a p u O Ú p u ,
Ev-roq c i p d p q ~ o v ,KÚXXL~OV
OUK i e í x w v ..."
T . ~ i r r í~ O L6, r r ~ o ~ w vEL<, T ~ VDUUTOU I T U T ~u'i6~~q;
~
TI. 'Quxfiv 6 ',[coúwoa ..."
~ a ~ f i ~ o x u v6ai qT O K ~ U ~ .
cihX cioío~pcv. EU y u p $6 i y & oa+Wq
~ T ~
L a í j 0 '6
',
qiouv U ~ T Lrr~p'i ~ í j quorrí60q
oU p i j 'rr~XúBql ~ o T ' ,&v EKE~VOU
TOU n a ~ p ó q
"Com uin escudo um saio ufana-se, o qual junto a moita, arma ii-sepreensível,
deixei
sem querer"
"Diz, taludo, cantas para teu pai?"
Trigeu:
2' menino: "
mas salvei a vida".
...
554
Trigeu:
PAULADA CUNHACORREA
"para a vergonha dos pais.
Mas vamos, bem sei que o que sobre o escudo cantaste, jamais esquecerás. sendo filho de tal pai."
No terceiro verso de Arquíloco citado até a cesura masculina, o objeto do verbo "salve? (eksesáosn) é "alma" (psj)khén) e nao "si próprio" (nutón). Alguns editores' e comentadores' preferein essa versiio de Aristófanes principalinente em viihide de sua antigüidade." Mas, segundo ~ i g a n t e esse
~ , texto niio foi aceito pela maioria de seus conteirineos
porque "sua antigüidade é em parte falsa, ein parte autentica"; pois se o verbo eksesáosn
presente em Aristófanes é autentico, o pronoine autón que aparecia originalmente no poema de Arquíloco teria sido substituído porpsykhén. Isto porque, no quinto século, psykhén
era empregado como sendo equivalente a nutón ("si próprio") assim como, inais tarde, os
neoplat6nicos empregariam a z h parapsykhén
Esse é o argumento decisivo para a inaioria que niio acredita que o psykhén no texto de
Aristófanes seia aut~ntico.~
A versiio de Aristófanes seria uma variante oral ou uin "erro de
citaqiio ~oinuin"~),
pois, na Atenas do quinto século, a eliminaqiio do pronome reflexivo
era freqüente, e a substituiqiio de uin enfático psykhén original pelo pronome nutón, que figura em outras fontes, seria iinprovável).8
O fato de o poema ser recitado na comédia por um menino nao implica necessariamente que fizesse parte do cui~ículoescolar da época9. No entanto, é provável que fosse
bastante popular e conhecido ao público. Cle6niin0, o pai do "menino", era um político
ateniense satiiizado em quase todas as comédias de Aristófanes por sua glutonice, obesidade e, a partir das Nuvens, principalinente por ter abandonado o escudo e @ido ao coinbate." Niio sabemos, porém, se acusaram Cle6niino de rhipsaspin ("abandono do escudo"),
2
V. DE FALCO, & A. F. COIMBRA (eds.) Os Elegíacos Gregos, de Culino a Crates. Sao Paulo, 1941, F. R.
ADRADOS, Líricos Griegos I: Elegiacos j3 Yamóógrufos Arcucos. Madrid, 1956-76. F. LASSERRE & A.
BONNARD, Archiloque: Fragnients. Paris: 1958, e M. TREU, (ed. &trad.) Archilochos. Miinclieii: 1959.
' L. WEBER, "Suka eph' Hennei" 1: Zwei Arcli~locliosfiagmeiite.Philologus 74 (1917) 96, A. HAUVETTE, Archiloqtre, su vie et ses poésies. Paris, 1905,95, e M. BENAVENTE, "Comentario a dos Pasajes de la Poesia Griega." Estudios 7 (1963) 322.
4
V. DE FALCO ,op. cit.., p. 102 n.39, "Note Criticlie e Filologiche: Note ai Lirici Greci l. Arcliiloco Soldato e la
Perdita dello Scudo (Fr. 1 & 6); 11. Archiloco Fr. 112D." PP (1946) 347). BENAVANTE, "loc. cit." cita Euripides (Heracl. 15), aludindo a possíve! iiifliiencia de Arquiloco.
5
M. GIGANTE, "11 testo del Fr. 6, 3 di Archiloco"." PP 11 (1956) 198.
6
Para GIGANTE, "art. cit.", 198-199, alénl das deniais citaqoes de Arquiloco em Aristófanes nao serem
textualmente indiscutiveis, o comediógrafo também teria substituido autón porpsykhén, visando criar urna antítese
para tokias ("pais"). Segundo A. COLONNA, "Su alcuni fiammenti di Lirici Greci." SIFC 21 (1946), p.: 28, que
aceita a versa0 en1 Sexto Enipirico como sendo a legitima, o verso foi propositalmente abreviado por Aristófanes a
fun de que Trigeu pudesse cotnpletá-lo. J.V. ROMANO, The Litervry Art of Archiloch~is.(Diss.) Univ. of Michigan: 1974, p.89, sugere quepsykhén, presente en1 Aristófanes, possa ter sido empregado pelo efeito dramático ou,
simplesmente, como conven@o do quinto século.
M.L. WEST, Studies ir7 Greek Elegv and Ianlblrs. Berlin: 1974, p. 118
8
T. HUDSON-WiLLIAMS(ed.) ,EarIJ,GreekEleg,~~.
CardiE 1926, P. 85, WEST, loc. cit. Cf. M. PLAT-NAUER
(ed.) Aristophanes: Peuce. Oxford, 1964, pp. 171-172: "como os últimos (os neoplat61iicos) chamani a atenqao
para a equivalencia 'si próprio' = 'alma', nao Iiá dúvida que Aristófanes tenlia distorcido a citacio para que se
adequasse ao uso ático."
c o m w DE FALCO, "art. cit.", p. 349
10
Aristófanes (Nzr.. 353-4, V. 592, 822-3, PU.Y 444-6, 673-8, 1295-1304, Av. 290, 1473-81). Cf. A. H.
0 ESCUDO: FONTES E TRANSMISSAO DO FR. 5W DE ARQUILOCO
555
que no final do quinto século era criine"). O inais importante é que, desde a priineira cit a @ ~de que temos notícia, os versos, associados a figura de Cleonimo, sfio lidos como expressfio de covardia, adquirindo uina conotaqfio escandalosa.'"
ii. costumes e leis (Plutarco, Sexto Empírico e Crícias)
No relato sobre os antigos costumes dos espartanos, Plutarco (Inst. Lac. 34.239 b-c) diz
que Arquíloco, ao chegar na Lacedemonia, foi de lá iinediatamente expulso quando souberam que ele preferiu abandonar as amas a morrer ein combate." Ao citar o poema, Plutarco omite o início do terceiro verso, justamente a parte mais controvertida.
Aproximadamente um século mais tarde, Sexto Empírico cita nas Hipotiposes Pirronicm (24.3.216) os dois priineiros versos e uma variante do terceiro, provavelinente dependendo da mesma tradiqfio seguida por Plutarco, ou tendo o próprio Plutarco como fonte;
pois é tainbéin em contraste aos costumes lacedemhios que o poema de Arquíloco é leinbrado. Ao encontrar entre os povos grande divergencia quanto as foimas de piedade, leis,
costuines e crenqas relativas ao que se deve ou nao fazer, Sexto Empírico observa que,
sendo várias as noqoes sobre o que é ímpio, vergonhoso, e sobre os seus contrários, nada é
por natureza bom, mau ou indiferente.
Um exemplo da diferenqa entre leis e noqoes de virilidade encontra-se entre os costumes lacedernonios e o que dizem os versos de Arquíloco:
uXX& K U ~SELAOS K U ~ i) i ) í $ U ~ ~ ~!Jfip
l ~ KOXÚ~ETUL ~ U P UIToXXO~S v Ó ~ ( $ . hl0
~ u ij
i TGV ÚoníSu Slj ~ U L S
ini
L ~ Ó X E K O V ~ [ L Ó V T L S ~ F j o U o u AUKULVU
YTÚ"
E+q, " T ~ K V O V , r] i n i TUÚTUV." ' A p x í h o [ o ~ 66, W o n ~ po ~ ~ v u v ó p ~jlJ"v
v o ~
T
iT
L T"T+
V u n í 6 u p p í $ u q ~ U Y E ~ Vi ,v TOQT T O L ~ ~ T~E ~~ LCUUTOU
V
4~piv
U o n í S i ~ i Cvu í w v TLS UYÚXXETUL ij TTUPU O U ~ V W L ,
EVTOS U K Ó K ~ T O V , KÚXXLTTOV OÚK i e í X ~ v
UUTOC 6 ' iEí4uyov O u v c h o u T~XOS.
"mas tambéin o homein covarde e o que abandona o escudo sfio punidos por lei ein
muitas regioes. Por isso, quando a laconia entregava o escudo ao seu filho que partia para a guerra, dizia: "tu, filho, (volta) com ele, ou sobre ele". Mas Arquíloco,
como se estivesse vangloriando-se para nós de ter fugido após abandonar o seu escudo, diz de si próprio em seus poemas:
"Com um escudo um saio ufana-se, o qual junto a moita,
arma irrepreensível, deixei sem querer,
mas eu próprio escapei ao temo da morte."
Após outros exemplos, Sexto Empírico conclui que: "... assim também, no que concerne a justiqa, a injustiqa, e a virtude viril, há muita divergencia." O autor, como boin cético,
SOMMERSTEiN, The Conzedies of Aristophanes: Wusps (IV). Warminster , 198, p. 153, n.19 para as demais
referihcias a Cle6nimo em Aristófmes.
11
J.V. ROMANO, op. cit., p. 87
12
M THEUNISSEN, "A propos des fragnients 2 et 6 (Dielil) d' Arcliiloque." AC 22 (1953) 441) acredita que o
poema nao possuia originalmente tal coiiota@o, mas que Aristófmes, tirando-o de seii contexto, o teria
desfigurado, influenciando as leituras posteriores.
13
Segundo Valério Máximo (6.3.12), os lacedein611ios proibiram os livros de Arquíloco en1 virtude de sua
indec61iciae falta de pudor. Nesse caso, porérn, é provável que a proibiqio visasse os poemas eróticos.
556
PAULADA CUNHACORREA
abstém-se de julgamentos, constatando apenas que Arquíloco se jacta daquilo que, entre os
lacedemonios, sería punido por lei.
Essa variante do terceiro verso figura nas ediqoes de Liebel, Bergk e ~ a r d i t i 'A
~ .fiase
faz ecoar duas fórmulas épicas, .'escapas a moi-te (ekphygéein thánatonI5) e termo da inorte
(rélos thaí?átozi16),que conferein ao verso um tom homérico, notado por todos que o elegem como sendo a forma original." Segundo ~allavotti'~,
o uso da linguagem épica em
nova combina@o é característica de Arquíloco e, nesse caso, a fiase homérica nao teria
efeito comico, mas indicaria urna atitude "nobre e séria".I9
No entanto, é possível que a versa0 presente em Sexto Empírico pei-tenqa a una tradiqao tasdia que teria criado a fiase a partir de Hoinero, com o intuito de tornar o poema
menos escandaloso. Um foste asgumento contra a autenticidade do verso é o fato de ele
apresentar urna cesura geralinente evitada nas elegias. Gerber e ~ o m a n o *estranharam
~
tambéin a solenidade épica que, a seu ver, nao seria adequada nesse momento do poema.
Mas Sexto Empírico pode ter esquecido o final do verso e o completado coin uma fórmula
h~inérica.~'Como as citaqoes feitas de memória tendem a ser deformadas no final, ele pode ter conseguido inanter-se fiel ao texto até a piimeira parte do terceiro verso e, depois,
dele ter-se afastado.
Csícias, o filósofo pré-socrático, sem citar o poema propriamente, comenta o episódio
da perda do escudo entre outros "dados biográficos" de Arquíloco (Ael. V.H. 10.13, fi.
44DK):
14
1. LIEBEL, Archilochi Reliqitiae. Leipzig, 1812, 1818" T. BERGK,. Poetae Lyrrci Giaeci 11. Leipzig, 18821915'; G. TARDITI, Archiloco. Roma, 1968.
l 5 11. (21.66). Para outras variantes formulares, cf II. (1 1.362,20.350,449).
16
I/.(3.309, 9.416), Od. (5.326). Hesiodo (Eiga 166).
l 7 U. BAHNTJE, Quaestiones Arcliilocl~eae.Gottii~gen,
1900, p. 37; COLONNA, op. cit., pp. 27-30, C. GALAVOTTI,, "Arcliiloco", PP 4 (1949) 130-53; GIGANTE , op. cit, p.198) e H. FRANKEL, Early Gieek Poetty and
Philosopliy (trad. M. Hadas & J. Willis). New York, 1975, p.137. O verso, apesar de maiiter o pronome azitós, é
"hoinerizante" quanto ao resto.
18
"art. cit." p. 36
19
Para A.P. BURNETT, Three Archaic Poefs:Archilochirs,Alcaezrs, Sappho. London, 1983, p. 4 1, ao contrário, a
verssio de Sexto Enipírico aumenta a no@o de covardia.
20
D.E. GERBER, Euterpe: An Antliolog)~ofEarly Gieek Ljaic, Elegiac aiid Iambic Poeti3: Anisterdain, 1970,
p. 16; ROMANO, op. cit. p. 88
21
Cf. O. HOFFMANN, Die Giiechischen Dialekle I77 Ihwni Histor~scheiiZusanoiienhange (3): Der Ioiiiscke
Dialehi, Gottingen, 1898, pp.92-3; HUDSON-WILLIAMS , op. crt., p. 84 e WEST, Stzrd~es
... 1974, p. 118.
"Pois, dizia ele, se [Asquíloco] nao tivesse trazido ao conhecimento dos gsegos tal
opiniao de si próprio, nao sabeiiainos que era filho de Enipo, urna escrava, nein
que, tendo deixado Paros por necessidade e pobreza, chegou a Tasos, ou que 1á se
toinou iniinigo deles, e que tanto os amigos quanto os iniinigos caluniou. Aléin
disso, dizia ele, nao saberíainos que era adúltero, se nao o tivésseinos apreendido
dele próprio, nein que era libertino e insolente, ou, o que é ainda inais vergonhoso,
que abandonou o escudo. Coin efeito, Arquíloco nao era bom testeinunho de si,
tendo deixado tal fama e infonnaqao a seu respeito."
O que choca o orador e político ateniense do quinto século, inais que os fatos ein si, é a
falta de pudor de Asquíloco, a quein ele censura por ter-se difamado tanto.
Como seinpre, os testemunhos antigos leem o poema como uma confissao de u n fato
real e biográfico, e todos, com a exceqao do cético, julgam Asquíloco moralmente, recriminando-~ein diferentes gsaus pelo seu ato. Sexto Empírico reconhece, porém, que o
abandono do escudo (rhipsnspín) era delito punido por lei entre muitos povos. Nao sabemos se havia na Jonia do sétimo século alguina lei contra os que abandonavam seus escudos, mas, caso nao hovesse, seiia o fato menos vergonhoso?
iii. geografía (Estrabáo, A V i h de Arnfo e Eustácio)
Um outro giupo - o geógrafo Estrabao, o autor desconhecido de A Vida de Arato e
Eustácio - preservou os dois primeiros versos do poema apenas em vista da infosmaqao
geográfica que contem.
No teinpo de Asquíloco, os tásios lutavain continuamente contra os seus vizinhos trácios, seja pelas temas, ou pelo doinínio das minas de ouro do continente. Os trácios sao
mencionados em outros poemas marciais de Arquíloco, mas, nesse fragmento (5W), há
rencia a uina tribo específica, a dos saios. Trata-se de um povo cujo nome nao consta do
vocabulásio hoinérico e, por isso, eses versos despertaram o interesse daqueles que buscavam situá-lo.
Estrabao (séc. 1 a. C. - 1 d. C) cita o primeiro dístico em duas passagens. Na primeira
(10.2.17), procurando justificas a osigem do nome da ilha de Samos, diz que ela foi assim
chamada por causa dos saios, antigos trácios que teriain habitado nao somente a ilha, mas
também o continente vizinho. Mais adiante, o geógrafo comenta as alteraq6es sofiidas pelos noines próprios ao longo do tempo, especialmente entre os bárbaros (12.3.19-20):
"Assim, alguns trácios, os síntios, forain depois chamados de "saios", entre os quais Asquíloco diz ter abandonado o escudo (...)". Esses "saios", segundo Estrabiio, eram os mesmos que, em sua época, chamavam-se "sapaios".
O autor desconhecido da Vidn de Arato (sec. IVAII d. C.) distingue duas cidades chamadas "Saís" (Vitn Arati p.77.1 Maass): urna era trácia, a outra, egípcia. Os cidadaos
egípcios chamavam-se "saitai", enquanto os trácios, "saios", e o dístico de Asquíloco é citado como evidencia disto.
Eustácio (séc. XII d. C) refere-se duas vezes aos versos de Arquíloco em seu comentário ao poema épico-geográfico de Dionísio periegetes.12 Essas notas, porém, nada acres77
+- ~ i l p ~ i j y i l uniq
~ q oíitouli.íiqq. Essa obra de Dionisio, autor alexaiidruio do periodo de Adriano, era uina
558
PAULADA CUNHACORREA
centain, sendo o seu conteúdo quase identico ao dos coinentários de Estrabao, u n de seus
autores diletos e que lhe servia Ereqüenteinente como fonte. Eustácio (in Dion. Per. 533)
repete que Sainos é ilha trácia cujo nome tein sua origein nos saios, o antigo povo que a
habitava, e que essa tribo é mencionada por Arquíloco, "que confessa ter abandonado entre
eles o seu escudo iinpecável, fugindo a luta". Na segunda referencia ao poema, Eustácio (in
Dion. Per. 767) tainbém comenta as mudangas de nomes dos povos: "como em Hoinero se
diz que os síntios foram depois chamados trácios, assiin também, segundo Arquíloco, havia os saios e, posterioimente, os sápai (...)".
iv. a Segunda Sofistica e Neoplatonismo (Filóstrato, Proclo, Olimpiodoro, Elias e
Pseudo-Elias)
Esses autores apresentam questoes mais interessantes, tanto do ponto de vista do uso que
fazem dos versos de Arquíloco, quanto dos problemas de crítica textual, pois, como se verá
adiante, é a partir das citayoes feitas por Olimpiodoro, Elias e Pseudo-Elias que Diehl e
outsos editores estabeleceram o problemático terceiro verso.
Filóstrato, sofista do segundo ao terceiro século (c. 170-245 d. C.), escreveu diálogos,
nanativas, tratados sofisticos e "qciase filosóficos" que S ~ Oexeinplos típicos da curiosa
inescla das coi-sentes sofísticas e religiosas da época. A Vida dos Sofistas, ein que Filóstrato descreve a chamada '.segunda sofistica", nao serve como testemunho confiável, pois
nao pasa de uma compilagao de biogsafias anedóticas, obtidas ein fontes diversas sem
muito critéiio2' . Assim também, a Vida de Apolbnio de Tima fica a ineio caminho entre a
biogsafia e o romance: tendendo ao sensacional e inaravilhoso, Filóstrato narra viagens, curiosidades e milagres do filósofo pitagórico e taumaturgo que nao ficain muito a dever aos
de cristo2"
Na Vida de Apolbnio de Tiana, nao há propriainente uina citaqao, mas una refesncia
ao poeina de Arquíloco (fi. 5W). Apolonio (11.7) diz que nao abandonará sua filosofia coino os soldados covardes abandonain o escudo, pois se, de acordo com Arquíloco, quein
abandona o escudo pode manjar outro melhor, aquele que abandona a filosofia jamais poderá recobrá-la. O escudo de Arquíloco serve a Filóstrato como um temo negativo de
comparagao: ao contsáiio da ama, a filososofia e insubstituível. E a mengao dos versos se
faz com o intuito de ornamentar seu texto com uina referencia erudita.
Proclo (séc. V d. C.) é o piimeiro dentse os neoplatonicos a citar, em seu Comentário
ao Alcebíades de Platfio (1. 139.26S), parte do terceiro verso do poema de Arquíloco. O
Alcebíades foi um dos diálogos platonicos mais lidos e estudados na Antigüidade, um texto
bein conhecido, igualmente por pagaos e csistiios, durante os séculos 11 e 111 d. C. Há dois
comentários neoplatonicos ao diálogo, por Proclo e Olimpiodoo, e o que restou do texto de
Proclo, aproximadamente quarenta por cento do original, deve ter sido composto entse 440
a 480 d. C.). Proclo, partindo sempre de explica@es de caráter geral, seguidas por questoes
mais específicas relativas ao texto de Platao, comenta a seguinte fiase de Sócrates (Alcebíades 104e-105a):
descrigiio em hexfiinetros de toda a tema habitada.
B. P. REARDON, Cotirulits Llttéruires Gwcs des II et III S~eclesA p k J.-C. Paris, 1971, pp. 33, 11 8
24
REARDON, op. cit., pp.189, 265-7; A. BERNABÉ PAJARES, F~lostrato:Lu V~dude Apoloii~ode Tianu.
Madrid, 1979, p. 12.
23
0 ESCUDO: FONTES E TRANSMISSAO DO FR. 5W DE ARQUILOCO
iyW
$
yúp,
' A X K L ~ ~ L Ú ~i
~Qp
, ív
K U ~ O ~ Ó K E V O~~E ? V i
TOS,
W
YE
v
TOÚTOLS
m idpuv u VUV
fifi
K U T U P ~ V U L , TTÚXUL Ü V
559
I j ~ i j O o v U ~ U T T Ú V T Ú TE
d l T T & k l y ~ ~ ) V TOU
Epu-
fiil QILUUTO TTELOO.
Ó Alcibiades, caso eu te visse satisfeito coin as coisas que acabo de mencionas, julgando que entse elas devesses vives, ha inuito que eu teria deixado o meu amor;
assim, ao menos, estou persuadido.
Segundo Proclo, Sócrates revela claramente que o amante "divinamente inspirado" (éntheos) auxilia o seu amado quando o ve disposto a voltas-se "ao intelecto" (eis ton nolin),
mas
D~.LKPOV
8;
U ~ T O V E ~ ~ P ~ O K WKVU ~ &')'Evv~~
K U ~
K UL i
~ U U T ~ ~V~ T L U T P ~ &
TT&
EUUTOV
TIEP~TU
KÚTW
DTPE$Ó~EVOV
~ Ó V O V P X ~ I T E L , T i ) UÚTÓV
p.
'
<te-
aúcciou n p ó x ~ ~ p oTvT O L O Ú ~ E V O S .
"vendo-o mesquinho, ignóbil e voltado as coisas inferiores, ele se volta a si próprio
e só cuida de si, recorrendo ao famoso "salvei-me".
Ao citar a fiase "salvei-me" (azitón 111' eksesáosn), Proclo refere-se a ela como a algo
"pronto", "a mgo" - uma "frase feita". Nao sabemos se estava ciente de que se tratava de
parte de u n verso de Arquíloco, ou se a expressao, a partir do poema, tornou-se um "lugar
comuin" que circulava independentemente. Nota-se que, ao contrário da passagein em
Aristófanes, nesse contexto o que se salva nao é mais a "vida" (psykhén), mas "si próprio"
(azdón).
Oliinpiodoro, filósofo neoplatonico paga0 do século VI d. C., teria asistido a um curso
de Amonio sobre o Górgias, o que provavelmente Ihe serviu como base para o seu comentário ao diálogo. ~esterink"sup6e que Olimpiodoro ngo teria a sua disposiqiio o texto
do diálogo platonico, mas apenas notas do curso de Amonio e a obra de Proclo sobre o
mito, porque o seu coinentáiio, compasado aos outsos, é um dos mais pobres ein conteúdo,
repleto de lembranqas e anedotas relativas a Amonio.
Na passagem do Góvgias (483a) em questao, Cálicles discute o que é pior coin relaqgo
a natureza ou lei, cometer ou sofier urna injustiqa. Parte do poema (fr. 5W) de Arquíloco é
citado sem indicaqao do autor (01. Gorg. 140.28 - 144.2):
€ i %r
~ ~ L K E ~ T U TL L S T T E P ~ TU ~ K T ~ C TO CTGFU, 0 f i K
ovv~y~vv~Oqp.Ov
T O Ú T O L ~ , OOTE TU pfi
U x ~ o O u t -~i
66 U~LKO^LTO
d~~uXXuyrja~
~ í j qU
TE5
&e
ij
+UX$
i+'
KUKLOTOV,
fipv
TU X P ~ ~ ~ U KT UU ~TO
KUKÓV, 0%;
'@p
K U ~8
6 t ~ í u ~$ .p o v ~ i o w p ~oUv
v
TOÜ
E~TTEV ~ K E ~ V O C"UUTOV
'
ECTTL
~ T T O X X Ú V T EOUK
~
t)$~íXop~v
6 TÓTE O T T E Ú ~ E L VT U Ú T ~ S
C T ~ e f j T+
v ~ ~$ U X ~ V , ~ i & -
8
O W p U o Ú ~ ? v (SU~PÚXXOVTUL' T T O L ? ~ O W ~ EOV ~ V
W<V ~ ' ~ O Ú W O UT L, FOL p É k L d O + 5
~ K E ~ v T~ P
~ P; E T ~ I "
.'E se alguéin sofie uma injustiqa coin referencia As coisas externas ou ao corpo, nao
é um mal, pois nem somos concebidos com essas coisas, de modo que, quando perecemos, nao nos devemos afligir quanto as coisas que nao nos concernem. Se, porém, a alma sofie urna injustiqa, é pésimo e, entgo, é preciso procuras colocas um
temo a essa injustiqa. Pensemos, portanto, em salvas a alma, sabendo que os bens e
o corpo nada valein. Faqamos, entgo, o que aquele disse: "mas salvei-me. Que me
25
L. G. W E S T E R I N K & J. TROUILLARD, Prolégor~~ines
u la Philosopliie de Platon. Paris, 1990, p.xxi.
560
PAULADA CUNHACORREA
importa aquele escudo? Que vá."
Elias, que tainbém pertence a segunda metade do século VI d. C., é tradicionalmente
considerado uin aluno de Oliinpiodoro em funqao dos numerosos paralelos presentes em
suas obras. É justamente em uma dessas passagens comparáveis que se encontra a citaqao
dos versos de Asquíloco (Elias, Proleg6menos a FilosoJia 22.19-23 in Comm. in Arist.
Grneca e Oliinpiodoro, Gorg. 140.28-144.2). Elias (8.20-22) parte da definiqao da filosofia como "a arte das artes e ciencia das ciencias" que, como u n deus ou um rei, foinece todos os princípios as demais áreas, coi-rigindo suas falhas. Enquanto a retórica, por exemplo,
distingue o benéfico (synphéron) do justo, para a filosofia eles sao o mesino. Assiin, a aqao
de Antíloco que se sacrifica para salvar o pai é, segundo a retórica, justa mas nao benéfica,
porque ele perde a vida. Mas. quanto a filosofia, ela é tanto justa quanto benéfica, "pois o
benéfico é absolutamente justo, e o nao-benéfico nao-justo". Ela [a filosofia] entfio pergunta: "o que sao para nós as lesoes corporais?",pois "nós somos a ala".'6
p o ~y í h c ~u o m c íucívq; i p p í ~ m " ,uii-rov k i v ~ r j vi6íuv Suxfiv ~inóii,doní6u 6 i TO &ov oúipu uuXíouc
"Assim, alguém que foi ferido na guei-ra em defesa de um ente querido, dizia: "Salvei-me. Que me importa aquele escudo? Que vá"; chamando sua alma (psykhén) de
si próprio(autón), e seu corpo de escudo.
Essa versa0 se encontra tambérn no Cornentário 6 Isagoge de Poyfiio (12.1-2)'' de
Pseudo-Elias que, como o próprio Elias, era um neoplat6nico cristao e, provavelmente, um
médico, já que demonstra familiaridade coin a terminologia técnica".
Nesse comentário, Pseudo-Elias discute a definiqiio da morte ("do fim próximo"), tomando como ponto de partida uma passagem do Fédon: "os que filosofain acerca de si
próprios e dos outros nao percebem que nao cuidam de outra coisa senao de morrer e estar
morto". A seu ver (Pseudo-Elias 12.3-4), o morrer e a morte, isto é, a "mortificaqfio dos desejos corporais", sao belos, e é por isso que Platao disse ser necessário cuidar da morte nao da morte fisica, mas da deliberativa (proairetikón). Pseudo-Elias refere-se a imagem
do corpo como uma prisao da alma, explicando que o coipo chama-se dénzas por ser a
"amarra" (desniós) da alma, ou sonla, por ser "lápide" (sima) e caixao da alma. Pouco
adiante, ele continua (Pseudo-Elias 12.17-21):
26nyiip
27
28
~ i p oi l ~b i i ~~ i ~i o i lm i p n o c ~ p u ú p u - rijwü~
~
T+ a q i l v .
Este texto revela correspondEnciascoiii outro comentário feito por David o11Pseudo-David (RE)
WESTERINK op. ccl m v i i
0 ESCUDO: FONTES E TRANSMISSAO DO FR. 5W DE ARQUILOCO
UX~UT
~ V T ~ P O U L ~ E T L K O V >K U ~'
0~
V E K ~ O ~ O UTU lTÚ8il
561
6 SUX~~
OW~LLTO~
UVUTE~VELÉ U U T ~ ~ V
TIPO< ~ E W P ~ U V .
"Pois Sócrates, o ateniense, também dizia que 'a iniin, h i t o pode matar, mas nao
pode ferir-me', isto é 'a ininha alma ele nao danifica porque é incorpórea, mas o
coipo ele pode destruir porque é perecível' E, novamente, Anaxarco dizia ao ser sui-rado: 'Bate, bate no saco de Anaxarco, pois jainais baterás no próprio Anaxasco',
chainando o corpo de saco." Mímaco, ao ser mosto, tarnbém dizia: 'Salvei-me. O
que importa aquele escudo? Que vá'. Assiin, ele indica que nao está <refesindo-se a
inoi-te física, inas a deliberativa>, segundo a qual a alina, tendo mortificado as
paixoes do coipo, eleva-se a contemplaqfio."
O mais surpreendente nas leituras neoplat6nicas é a foima pela qual invei-tein o sentido
dos versos de Arquíloco. Filóstrato serviu-se do poema pasa fazer uina coinpara$io negativa (a filosofia nao é substituível como o escudo) inas, ao contrário dos neoplat6nicos, sua
leitura representa uma continuaqao face a tsadiqao inais antiga, pois silo, nas suas palavras,
"soldados covardes" que abandonain o escudo. Talvez Filóstsato conhecesse o poema inteiro ou, pelo menos, o piimeiro dístico. Proclo, por outro lado, nao chega a citas um verso
inteiro, enquanto Oliinpiodoro, Elias e Pseudo-Elias parecem todos depender de una
mesina fonte, possivelmente de uma antologia, na qual os dois priineiros versos esain oiniti do^.'^ Caso contsário, como teiiam surgido essas inusitadas interpretaqoes?
No texto de Proclo, o pronome autón (antes, "si próprio") já parece significar "alma",
einbora ele nao o a k n e explicitamente. As leituras claramente alegosizantes comeqain
coin Olimpiodoro, que le "corpo" em lugar de "escudo", "alma" em lugar de autón ("si
próprio").3' Elias e Pseudo-Elias, alunos csistaos de Olimpiodoro, seguem o mestre, acrescentando detalhes desconcertantes. Pouco antes de citar os versos, Elias relata a aqao "justa" de Antíloco, que pesdeu a vida para salvar o pai." Ein seguida, os dois versos silo atsibuídos a "alguém" (tis) que mosreu em combate defendendo um "ente querido" (Elias
proleg. philos. 8.20-22). Segundo Pseudo-Elias, é Amfímaco que profere os versos ao mos r e ~ . Apesar
~'
das diferenqas, Elias e Pseudo-Elias concordam que o "ezl " desse dístico seja
um comandante, um herói que nao escapa coin vida, mas que alcanqa uma "bela morte" no
campo de batalha.
Nos neoplat6nicos, com a exceqao de Proclo, os versos de Arquíloco sao citados para
comparas a alma (que deve ser salva) a "vida" do guerreiro, e o corpo (que é supérfluo e
até um impecilho), ao escudo. De onde Elias e Pseudo-Elias tirasam tais contextos e de-
tal he^?^"
29
. Essa célebre anedota é também uma das correspond~nciastextuais entre Elias (Prolegónier?~~
u FdosoJia 22,
25-26) e Olimpiodoro (Gorg. 185.20-22).
30
WEBER, op. cit., p. 94, GIGANTE, op. cit., p. 198 e ROMANO, op. cit., p. 89.
31
Olimpiodoro certamente conhecia o comentário de Proclo ao Alcebíades.
",A
Antiloco, filho de Nestor, era um dos pretendentes de Helena e o comandmte encarregado de dar a Aquiles a
noticia da morte de Pátroclo (11. 23.556, 13.545). Quando Nestor foi atacado por Meiimiio, Antiloco morreu para
salvar a vida do pai. (Pindaro P. 6.28).
2,
Há dois Amfiinacos na Iliada: un1 comandante grego que é niorto por Heitor (11. 2.620, 13.185), e um cário,
morto por Aquiles no Escammdro (11. 2.870).
34
WEST sugere que eles coiifundiram os nomes Antíloco e Arquiloco, criando o espiirio Amfirnaco.
No final dessa trajetória pelas leitwas antigas, sein conhecerem o poema todo, sein saberein das intencoes do autor, nem seques quem ele seja, por ironia do destino as tres últimas fontes chegam a um significado diametralmente oposto ao inicial: o "ezi" do poema
nao é mais um covasde que sobrevive ao combate, mas uin nobre guei~eiroque more ein
plena batalha para salvar o pai.

Documentos relacionados