Realeza, santidade e tirania nas narrativas - PPGHC

Transcrição

Realeza, santidade e tirania nas narrativas - PPGHC
Adriana Conceição de Sousa
Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise
comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do
bispo Julian de Toledo (século VII)
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História
Comparada (PPGHC), da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
História Comparada.
Orientadora:
Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva
Rio de Janeiro
2012
Adriana Conceição de Sousa
Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise comparativa da Vita
Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (século
VII)
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História
Comparada (PPGHC), da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
História Comparada.
Banca Examinadora:
Prof. Dr.ª Leila Rodrigues da Silva (PPGHC/UFRJ - orientadora)
Prof. Dr.ª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (PPGHC/UFRJ)
Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos (UFF)
Rio de Janeiro
2012
________________________________________________________
SOUSA, Adriana Conceição de.
Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise
comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae,
do bispo Julian de Toledo (século VII) / Adriana Conceição de Sousa
– 2012.
96 p.
Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História
Comparada, Rio de Janeiro, 2012.
Orientadora: Profª Drª Leila Rodrigues da Silva
1. Reino visigodo
2. Hagiografia e santidade
3. Historiografia medieval
4. Península Ibérica
________________________________________________________
Agradecimentos
A cada etapa da vida que se encerra, da vida intelectual inclusive, convém olhar
para trás, para os lados, e prestar, pelo menos uma bendita vez, a atenção devida a todos
aqueles que contribuíram de algum modo para que as coisas sejam enfim o que são. Não
me alongarei muito, e não porque deva pouco ou porque não deva nada ninguém, muito
pelo contrário: os aliados neste caminho foram muitos, o valor do seu apoio, inefável.
Assim, deixo registradas desde já as minhas desculpas a todos aqueles que infelizmente
não citarei e também àqueles que vou citar, porque não vou conseguir oferecer a
nenhum deles um agradecimento à altura da gratidão que sinto e que eles merecem.
Em primeiro lugar, à família: pai, mãe, irmão, (futura) cunhada, tios, primada...
Sei que foi duro lidar com o mau humor, à intolerância ao barulho, a falta de tempo e
disposição pros encontros, pros passeios e para as viagens necessárias. Foi por uma boa
causa – espero – e pretendo retribuir-lhes a compreensão com juros.
Devo agradecimentos sinceros também aos colegas “bárbaros” do PEM/UFRJ,
valentes graduandos (Juliana Raffaeli, Guilherme Marinho, Nat(h)álias Lacerda e
Xavier, Bruno Garcia, Ingrid Assunção, Vanessa, Bárbara, Izabella, Priscila.... esqueci
alguém?), companheiros mestrandos (Rodrigo Ballesteiro, Bruno Uchoa, e outros
companheiros de martírio pelo PPGHC afora), e inspiradores doutorandos (Rita Diniz,
Jaque Calazans, Rodrigo Rainha, Alex Oliveira, Paulo Duarte): suas dicas, seu
interesse, sua disposição para o debate intelectual franco – e para um ainda mais franco
happy hour no bar da esquina ou piadas non-sense no Facebook, por que não dizer –
tudo isso teve uma contribuição inestimável no meu desenvolvimento e na construção
desta dissertação. Há muito de vocês nas linhas e entrelinhas dela, acreditem!
E é claro que a pessoa que, a despeito da imensa importância das demais, terá
um parágrafo só pra ela será minha grande mentora Leila Rodrigues. Agradeço
muitíssimo pela tolerância, pela paciência, pela dedicação, pelas chacoalhadas
oportunas e pela sensibilidade incrível para dar os conselhos e as direções que eu
precisava sempre que eu as pedia, ou quando eu estava perdida demais até pra conseguir
perguntar o que quer que fosse. Eu, como todos os seus orientandos, concluo esta etapa
com a certeza de ter entregado a minha alma a alguém que cuidou muito bem dela,
obrigada!
ii
RESUMO
SOUSA, Adriana Conceição de. Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas:
uma análise comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do
bispo Julian de Toledo (século VII). Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em
História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em História Comparada,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
Este trabalho tem como foco o discurso que relaciona realeza, santidade e tirania
nas narrativas Vita Desiderii e Historia Wambae, escritas no reino visigodo do século
VII. O objetivo é verificar os vínculos que podem ser identificados entre tal discurso e
as relações de poder naquele reino romano-germânico, relações que envolviam
monarcas, bispos e aristocratas, de uma forma muito mais complexa do que a ideologia
da centralização e do consenso defendida pela monarquia e pelo episcopado visava
sugerir.
Discute-se aqui o modo como conflitos entre reis e aristocratas, entre reis e
bispos, entre reis, bispos e aristocratas, no caso das duas narrativas selecionadas para
análise, são representados de acordo com um esquema que resumia todas essas
divergências, suas diferentes naturezas e motivações, a um único embate: a oposição
entre Virtude e Vício, entre fé e impiedade. Demonstramos como tal discurso serve a
estratégias ideológicas de legitimação no interior das disputas políticas que permeavam
a Igreja e o reino visigodos, estratégias levadas a cabo pelo monarca no primeiro dos
casos, pelo arcebispo de Toledo no segundo.
iii
ABSTRACT
SOUSA, Adriana Conceição de. Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas:
uma análise comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do
bispo Julian de Toledo (século VII). Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em
História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em História Comparada,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
This work focuses on the discourse that relates royalty, holiness and tyranny in
the narratives Vita Desiderii and Historia Wambae, written in the seventh century
Visigothic kingdom. Our goal is to verify the connections that can be identified between
this discourse and the power relations in the roman-barbarian kingdom; relations
involving monarchs, aristocrats and bishops, in a much more complex way than that
which the ideology of centralization and consensus held by the monarchy and the
bishops sought to suggest.
We discuss how conflicts between kings and aristocrats, between kings and
bishops, between kings, bishops and aristocrats are represented, in the case of the two
selected narratives, according to a scheme that summarized all these struggles, their
different natures and motivations, to a single collision: the opposition between Virtue
and Vice, between faith and impiety. We demonstrate how such discourse serves the
ideological strategies of legitimacy within the political disputes that permeated the
Visigothic Church and realm, strategies carried out by the monarch in the first case, and
by the Archbishop of Toledo in the second.
iv
Índice
APRESENTAÇÃO .....................................................................................................................................1
CAPÍTULO 1: CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS ......................................................................3
1. PROBLEMÁTICA E HIPÓTESES DE TRABALHO .........................................................................................4
2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS .......................................................................................7
3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A DOCUMENTAÇÃO.......................................................................................11
CAPÍTULO 2: DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA .................................................................................17
1. MONARQUIA E REALEZA NA IDADE MÉDIA.........................................................................................18
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A VITA DESIDERII ..........................................................................................24
3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTORIA WAMBAE.....................................................................................33
CAPÍTULO 3: AS RELAÇÕES DE PODER NO REINO VISIGODO DO SÉCULO VII E A
CONSTRUÇÃO DA VITA DESIDERII E DA HISTORIA WAMBAE ................................................38
1. AS RELAÇÕES DE PODER NO REINO VISIGODO DOS SÉCULOS VI E VII: ASPECTOS DAS ASSOCIAÇÕES E
CONFLITOS ENTRE REIS, ARISTOCRACIA E EPISCOPADO IBÉRICO .............................................................39
1.1. ASPECTOS DO PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MONARQUIA VISIGODA TOLEDANA ...........39
1.2. SISEBUTO E A TEORIZAÇÃO POLÍTICA DE ISIDORO DE SEVILHA (570-636) .......................................45
1.3. REBELIÕES NOBILIÁRQUICAS NO REINO VISIGODO APÓS A MORTE DE SISEBUTO (621-693).............49
1.4. DISPUTAS DE PODER EM TORNO DA MONARQUIA, ATIVIDADE CONCILIAR E O PAPEL DE JULIAN DE
TOLEDO ..................................................................................................................................................54
2. ANÁLISE DOCUMENTAL ......................................................................................................................58
2.1. HUMILDADE E VERDADE CONTRA SOBERBA E FALSIDADE ..............................................................59
2.2. RESPONSABILIDADE EM CORRIGIR OS PECADOS E O DEVER DA MISERICÓRDIA.................................64
2.3. MANIFESTAÇÕES DIVINAS EM FAVOR DO SANTO E DO REI................................................................73
2.4. MANUTENÇÃO DA ORDEM, DA PAZ E DA LEGALIDADE CONTRA A VIOLÊNCIA E A DESAGREGAÇÃO .78
CAPÍTULO 4: CONCLUSÕES ..............................................................................................................87
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................92
v
Apresentação
A pesquisa que aqui se apresenta visa dar continuidade ao trabalho por nós
desenvolvido desde a graduação, também sob orientação da professora Leila Rodrigues
da Silva, em que nos preocupávamos com o modo como as concepções de realeza cristã
em vigor no reino visigodo interferiram na construção da hagiografia Vita Desiderii, do
rei Sisebuto. No mestrado, ampliamos o alcance de nossa prévia problematização, à luz
das propostas metodológicas da História Comparada, inserindo na discussão a narrativa
historiográfica Historia Wambae, redigida pelo bispo Julian de Toledo, em fins do
mesmo século VII.
Como demonstraremos, a metodologia comparativa possibilitou-nos refletir
sobre a construção dos dois textos em uma perspectiva relacional, que nos permitiu
reconsiderar prévias conclusões e pressupostos tanto a respeito dos documentos quanto
do contexto político-ideológico no qual ambos se inserem, isto é, o da aproximação
entre monarquia visigoda e episcopado ibérico, e suas implicações políticas, ideológicas
e discursivas, ao longo do século VII.
Objetivando, assim, analisar as relações estabelecidas entre realeza, santidade e
tirania nos discursos presentes nas narrativas Vita Desiderii e Historia Wambae, a
dissertação estruturar-se-á da seguinte forma:
No primeiro capítulo, teceremos considerações introdutórias destinadas a
apresentar nossos objetos de estudo, problemáticas de pesquisa, objetivos e hipóteses,
bem como os conceitos e metodologia que orientaram o estudo dos nossos documentos,
cuja inserção tipológica também receberá atenção.
No segundo capítulo, exporemos nossa discussão bibliográfica divida em três
itens: um primeiro dedicado a uma seleção de estudos voltados à monarquia e realeza na
Idade Média, com destaque para estudos voltados aos reinos romano germânicos; um
segundo item discutindo estudos voltados de forma parcial ou específica à Vita
Desiderii; e, por fim, um terceiro item avaliando estudos dedicados à obra de Julian de
Toledo e à Historia Wambae.
O terceiro capítulo é dividido em duas partes. Na primeira, com auxílio da
historiografia, trataremos dos diferentes aspectos das relações de poder no reino
visigodo do século VII que interferiram direta ou indiretamente na produção da Vita
Desiderii e da Historia Wambae. Discutiremos o processo de conversão e cristianização
da monarquia e suas associações, por um lado, à atividade conciliar e à organização
eclesiástica, e por outro, aos conflitos entre reis e aristocracia registrados ao longo
daquele século. Na segunda parte, será exposta a nossa análise documental que, como
indicamos anteriormente, estruturar-se-á em torno de quatro eixos-temáticos comuns a
ambos os textos, a partir dos quais realizamos o procedimento de comparação.
No quarto capítulo, serão expostas, em síntese, as nossas conclusões.
2
CAPÍTULO 1: Considerações introdutórias
3
1. Problemática e hipóteses de trabalho
O objeto desta pesquisa são os discursos e ideologias de afirmação da monarquia
visigoda no século VII tal como se apresentam em duas narrativas elaboradas no
período: a Vita Desiderii, escrita pelo rei Sisebuto (610-621) no ano de 615
aproximadamente, e a Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (680-692) na
década de 680.
Temos em vista que os discursos produzidos ao longo do século VII visando a
legitimação da posição dos monarcas visigodos possuíam como característica comum a
valorização do seu papel como soberanos cristãos e de sua vinculação com o
episcopado.1 Entendemos que uma aproximação comparativa entre os mencionados
documentos nos permite refletir sobre o modo como tal característica se manifesta em
uma forma particular assumida por tais discursos: referimo-nos à atribuição de sentido a
eventos ocorridos em um passado recente, seja por meio de uma obra hagiográfica,
como a Vita Desiderii, seja por meio de um relato cronístico, como a Historia Wambae,
bem como da associação que seus autores buscam estabelecer entre esse passado e o
presente que vivenciam. Cabe ressaltar que aspectos dos dois textos permitem-nos
deduzir que o público pretendido provável dos textos fosse a própria aristocracia
hispano-visigoda, em particular seus elementos letrados.2 Convinha, pois, a proposição
de modelos direcionados a esse segmento social em particular, modelos que
contemplassem os projetos de poder e sociedade da monarquia e do episcopado
toledanos.
A Vita Desiderii narra a trajetória do bispo Desidério de Vienne desde seu
nascimento até a sua morte por assassinato, em 607, que, na versão que o rei Sisebuto
dá aos eventos, teria sido encomendado pela rainha Brunequilda e por seu neto, o rei
merovíngio Teuderico II, que governavam a região da Burgúndia na época. Destaca-se
aqui o papel negativo que é atribuído aos monarcas, cuja atuação no comando do reino é
1
Questões referentes a esse processo de aproximação deverão ser tratadas com mais detalhe na primeira
parte do capítulo 3.
2
Além das características inerentes aos gêneros literários a que pertenciam, faz-se necessário lembrar que
tratam-se de textos escritos em língua latina, a qual, no caso da população visigótica, estudiosos
sugeriram não ser a língua utilizada para comunicação cotidiana. Cf. HEN, Yitzhak. Literacy and orality –
the place of the written word in Merovingian Gaul. In: ____. Culture and Religion in Merovingian
Gaul. A.D. 481-751. New York: Brill, 1995, p.21-42. p.25. Como será apontado no capítulo 2, e
conforme a historiografia já indicou, Desidério de Vienne, santo que protagoniza a Vita Desiderii, nunca
foi objeto de culto na Península Ibérica, o que nos leva a crer que embora Sisebuto possa ter colaborado
com a promoção da devoção ao santo na Gália merovíngia, a produção e difusão da hagiografia em
questão no reino visigodo atendia a outros propósitos.
4
contraposta todo o tempo ao papel desempenhado por Desidério em sua diocese, e
corresponde a uma inversão do ideal de monarca cristão proposto pelo bispo Isidoro de
Sevilha (560-636) em obras escritas durante o reinado do rei visigodo autor da
narrativa.3
Já a Historia Wambae, de Julian de Toledo, escrita em fins da década de 680,
trata de acontecimentos ocorridos no início do reinado do rei visigodo Wamba (672680), desde sua eleição, logo após a morte de seu antecessor Recesvinto (653-672), até a
repressão, em 673, da rebelião nobiliárquica liderada pelo dux Paulo na Septimania,
única região da Gália que ainda fazia parte dos domínios da monarquia visigoda
toledana. O texto destaca positivamente a atuação de Wamba frente à “tirania” do
concorrente. Entretanto, note-se que, tendo o relato sido produzido após o reinado de
Wamba, que teria renunciado ao trono por força de uma manobra aristocrática que
contou com a participação do próprio bispo Julian,4 o texto possivelmente tinha como
foco menos a atuação pessoal daquele soberano, do que uma valorização dos reis de
Toledo em geral,5 e, acrescentamos, a defesa de um ideal de boa conduta régia,
devidamente reforçado pela contraposição a um personagem identificado com o oposto
desse mesmo ideal.
Ressaltemos ainda as diferenças entre os contextos de produção de cada uma das
narrativas no que diz respeito ao processo de fortalecimento da autoridade da monarquia
no reino visigodo. O reinado de Sisebuto começa em 612, no início do século VII, e
pouco mais de duas décadas após a conversão de Recaredo e da aristocracia goda ao
cristianismo niceno – acontecimento que formalizaria a aliança entre rei, aristocracia e o
episcopado ibérico.6 Já o reinado de Wamba é marcado pelas conseqüências do
avançado processo de regionalização do poder no reino,7 processo do qual a própria
rebelião dos aristocratas da Septimania seria uma decorrência.
3
MARTIN, José Carlos. Une nouvelle édition critique de la « Vita Desiderii » de Sisebut, accompagnée
de quelques réflexions concernant la date des « Sententiae » e du « De uiris illustribus » d’Isidore de
Séville. Hagiographica, Firenze, n. 7, p. 127-80, 2000. p. 134-140.
4
O bispo presidiu o XII Concílio de Toledo (681), responsável pela oficialização da deposição de
Wamba. Cf. FRIGHETTO, Renan. Religião e poder no reino hispano-visigodo de Toledo: a busca da
unidade político-religiosa e a permanência das práticas pagãs no século VII. Iberia, Logroño, n. 02, p.
133-150, 1999. p. 140.
5
GARCIA HERRERO, Gregório. Julian de Toledo y la realeza visigoda. Antigüedad y Cristianismo,
Murcia, n. 08, p. 201-255, 1991. p. 202. O autor também defende que a narrativa teria sido escrita durante
o reinado de Ervígio.
6
COLLINS, Roger. La España Visigoda. Barcelona: Crítica, 2005. p. 64.; CASTELLANOS, Santiago.
Los godos y la cruz. Recaredo y la unidad de Spania. Madrid: Alianza, 2007. p. 235-267.
7
FRIGHETTO, Renan. O problema da legitimidade e a limitaçao do poder régio na Hispania visigoda: o
reinado de Ervígio (680-687). Gérion, Madrid. v. 22, n. 01, p. 421-435, 2004. p. 424.
5
Nosso objetivo nessa dissertação será, portanto, o de comparar a construção dos
personagens na Vita Desiderii e na Historia Wambae tendo em vista sua relação
diferenciada com as ideologias de legitimação da monarquia visigoda. Tais ideologias
passam a ser elaboradas e defendidas no âmbito da produção intelectual identificada
com o episcopado hispano-godo, ao longo do período que sucede a conversão oficial da
aristocracia ao cristianismo niceno em 589.
Entendemos que a produção de discursos por parte do episcopado, ou mesmo
dos próprios monarcas, visando a proposição de uma interpretação, ideologicamente
orientada, de eventos do passado, era de capital importância para os grupos
comprometidos com o projeto político de fortalecimento da monarquia visigoda em
função do significado que a história, naquela época, possuía para a atribuição de sentido
à realidade presente.8
Nosso problema fundamental diz respeito primeiramente às questões que
levaram, num primeiro caso, um rei visigodo, Sisebuto, a escrever uma hagiografia em
que detentores do poder político desempenham o papel de antagonistas, ao enfrentarem
um bispo e, num segundo caso, levaram o bispo de Toledo, Julian, a ocupar-se da
narração de eventos envolvendo uma rebelião nobiliárquica que, apesar do pouco
impacto que teve na organização eclesiástica e da ausência de qualquer motivação
religiosa nas ações dos rebelados, foi dotada de um sentido eminentemente
providencialista, exposto nos termos de uma contraposição entre fé e impiedade. Nossa
hipótese mais geral para solucionar o problema é a de que Vita Desiderii e Historia
Wambae contêm em si discursos referenciados, de distintas formas, em uma ideologia
que, no reino visigodo do século VII, tornava indissociáveis o poder e a legitimidade
dos reis e o seu respectivo grau de comprometimento com Deus e com a Igreja.
A Vita Desiderii relacionar-se-ia com a referida ideologia no sentido de que
apresentaria uma proposta de delimitação das fronteiras que distinguiriam os bons dos
maus reis, tendo como critério suas virtudes e sua relação com o episcopado.
8
KOSELLECK, Reinhart. Historia Magistra Vitae: sobre a dissolução do topos na história moderna em
movimento. In: ___. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006. p. 43. Neste capítulo, Koselleck trata de, dentre outras questões, a
importância do topos ciceroniano historia magistra vitae no período que antecede a era moderna, a qual,
em seu entendimento, seria marcada por uma leitura da história que se distinguiria daquela da
Antiguidade e da Idade Média na medida por perceber o futuro como superação necessária do passado e
do presente ou, para usarmos os termos cunhados pelo autor, pelo afastamento progressivo do horizonte
de expectativa em relação ao espaço de experiência. A relação entre a reflexão deste autor e a análise do
corpus documental da pesquisa será melhor desenvolvida no item dedicado ao nosso quadro teórico.
6
A Historia Wambae, por sua vez, visa emitir juízo sobre a violência aristocrática
contra os monarcas toledanos, apontando para as diferenças que marcariam as ações de
legítimos reis cristãos e as dos tiranos que lhes contestavam – diferenças situadas todas
no âmbito da fé, das virtudes e do favorecimento divino.
Mas ainda seria necessário responder à questão sobre o porquê do recurso às
narrativas para veicular tais idéias. Temos como pressuposto o de que o recurso às
narrativas, fossem elas de cunho hagiográfico ou historiográfico, servia à difusão das
concepções propostas pela elite político-religiosa do reino visigodo. Narrativas como a
Vita Desiderii e a Historia Wambae apresentam conceitos expostos a partir de sua
concretização histórica, sua materialização no tempo. A materialização dos princípios
propostos pela monarquia e pela parcela do episcopado que defendia seus interesses, no
caso dos documentos considerados, seria identificável para seus autores tanto na vida e
no martírio de Desidério de Vienne, como no desenrolar da guerra entre o rei Wamba e
o duque Paulo.
A fim de demonstrar tais hipóteses, nosso estudo deverá orientar-se em função
de determinados objetivos específicos. O primeiro será o de sintetizar, a partir da
produção historiográfica, os principais aspectos do processo de associação entre
monarquia e episcopado no reino visigodo desde fins do século VI. Em seguida, analisar
comparativamente as narrativas Vita Desiderii e Historia Wambae, observando o modo
como valores cristãos aparecem associados ou dissociados de dados personagens,
eventos e outros elementos presentes nos textos.
2. Considerações teórico-metodológicas
A noção de ideologia que utilizamos é aquela que se refere a um “sistema de
crenças característicos de certos grupos ou classes sociais, compostas por elementos
tanto discursivos como não-discursivos. [...] se aproxima da noção de uma ‘visão de
mundo’ no sentido de um conjunto relativamente bem sistematizado de categorias que
fornecem um ‘arcabouço’ para a crença, a percepção e a conduta de um grupo de
indivíduos”.9
No entendimento de Terry Eagleton, as ideologias podem apresentar-se tanto
como conjuntos de crenças destinados a orientar a ação política,10 quanto como
9
EAGLETON, Terry. Ideologia – uma introdução. São Paulo: UNESP, 1997. p. 15-16; 18; 29-30; 49.
Ibidem. p. 53-55. Eagleton parte da definição segundo a qual ideologia consistiria em uma “luta de
interesses sociais antagônicos no nível do signo”.
10
7
discursos em que interesses sociais são não apenas expressos mas também
“racionalizados”.11 A racionalização, neste caso, envolve a tentativa de oferecer
explicação ou justificação para comportamentos ou concepções que, de outro modo,
podem ser alvo de questionamento e crítica. Desse modo, a ideologia se associa
intimamente à noção de legitimação, que Eagleton define como o “processo pelo qual
um poder dirigente vem a assegurar de seus sujeitos, pelo menos, uma anuência tácita à
sua autoridade”, por meio de recursos discursivos, entre os quais podemos mencionar a
afirmação da universalidade e da naturalidade de determinadas idéias e práticas que se
querem legitimadas.
As noções que Terry Eagleton apresenta, em sua proposta de síntese a respeito
dos debates intelectuais em torno da noção de ideologia, contribuem com a nossa
reflexão na medida em que nos permitem avaliar como as ideologias de legitimação do
poder monárquico em voga no reino visigodo se manifestam nas narrativas que
selecionamos para análise, a partir da identificação de como as “estratégias ideológicas”
se apresentam nos textos. Considerando a presença de discursos12 legitimadores,
avaliamos ser pertinente o desenvolvimento de uma análise pautada na construção
desses discursos, principalmente no aspecto que é o do recurso à referência ao passado e
sua associação com o presente ao qual os autores se dirigem, isto é, com as questões
políticas em voga nos contextos de produção das narrativas.
No que diz respeito à perspectiva comparada, referenciamo-nos nas propostas de
Jürgen Kocka, em que a comparação em História é definida como a discussão de “dois
ou mais fenômenos históricos sistematicamente a respeito de suas similaridades e
diferenças de modo a se alcançar determinados objetivos intelectuais”.13 Consideramos
que um estudo comparativo pode contribuir significativamente para a compreensão do
fenômeno que é a construção de discursos em torno da realeza e da monarquia no reino
visigodo. Kocka assinala que um dos benefícios da História Comparada é a
11
Ibidem. p. 56-58.
José Luiz Fiorin define discurso como “uma unidade no plano do conteúdo, o nível do percurso
gerativo do sentido em que formas narrativas abstratas são revestidas por elementos concretos.”. FIORIN,
José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2011. p. 45. De acordo com o autor,
tributário dos estudos marxistas, “os discursos materializam representações ideológicas”, desse modo,
analisar discursos constitui o meio fundamental para o estudo das próprias ideologias. Cf. FIORIN, José
Luiz. Linguagem e ideologia. 6ª ed. São Paulo: Ática, 1998. p.34.
13
KOCKA, Jürgen. Comparison and Beyond. History and Theory, n. 42. p. 39-44, fev/2003. p. 39.
[tradução de Maria Elisa Bustamante]
12
8
possibilidade de “esclarecer os perfis de casos singulares, frequentemente de apenas um
único caso, ao contrastá-lo com outros”.14
Alinhando-nos a esta perspectiva, entendemos que a metodologia comparada
pode nos permitir refinar a compreensão não apenas sobre as duas narrativas em si, ou
os seus contextos de produção em particular, como também sobre as suas possíveis
relações e conexões no que tange à sua inserção na produção intelectual destinada ao
fortalecimento, no plano ideológico, da monarquia visigoda toledana. A comparação
nos permite problematizar não apenas a forma como um mesmo processo político
interfere na elaboração de discursos distintos tipológica e diacronicamente, como
também discutir como um mesmo tema (no nosso caso, a dimensão política das virtudes
cristãs) pode sofrer variações condicionadas não apenas por características inerentes aos
gêneros literários a que cada texto pertence, mas também por interesses sociais dos
autores e seus respectivos interlocutores políticos.
Nossa metodologia de análise baseou-se nos conceitos expostos por José Luiz
Fiorin sobre semântica discursiva e a função dos temas e figuras na construção de
sentido do texto.15 O procedimento básico consistiu em identificar temas presentes nos
textos, as figuras e elementos que fazem referência a eles e analisar suas relações de
sentido. Em termos mais específicos, analisamos as figuras presentes nos textos
(personagens, ações, acontecimentos, caracterizações etc.) e por meio delas chegamos
aos temas/sentidos fundamentais de cada texto, tais como santidade, pecado,
legitimidade régia etc.. Comparando os temas de cada texto e suas contraposições,
chegamos a uma "configuração discursiva"16 mais genérica, na qual ambos os textos
poderiam ser inseridos, no caso de nossas narrativas, a contraposição entre “Vício” e
“Virtude”.
Os elementos presentes nos textos podem então ser analisados tanto em relação à
temática interna a cada texto, quando em relação à temática geral que engloba os dois.
Na exposição de nossa análise, no capítulo 3, os temas e contraposições foram
estruturados na forma de quatro itens, aos quais reis, tiranos e homem santo foram
associados a cada um dos temas de diferentes formas.
14
Ibidem. p. 40.
FIORIN, José Luiz. op. cit. p. 89-118.
16
Configurações discursivas se referem a temas genéricos o suficiente para se apresentar em vários
discursos distintos (ex: amor, morte, infância, Bem, Mal, etc.). Cf. Ibidem. p. 107. Analisar uma
configuração discursiva, nesse sentido, implica em não apenas avaliar como dado tema aparece em dado
discurso, mas analisar as variações de tratamento que esse tema recebe em vários discursos distintos.
15
9
Para expor o procedimento em detalhe: durante a leitura dos documentos,
primeiramente observamos os diversos elementos que compõem a narrativa. Em
seguida verificamos as isotopias, isto é, a possibilidade de inserção de um determinado
conjunto de elementos em uma ou mais dadas categorias temáticas, em ordem crescente
de abstração. Ex: a referência a misericórdia do santo, na Vita Desiderii, foi inserida em
uma primeira categoria que denominamos “santidade”, a qual por sua vez pode ser
inserida em uma configuração discursiva mais ampla, que é a da “Virtude” e suas
diferentes manifestações.
O procedimento de análise documental da Historia Wambae assemelhou-se com
o adotado quanto à Vita Desiderii, isto é, a partir dos temas identificados na narrativa,
realizamos uma decomposição do texto, partindo dos temas mais gerais (contraposição
entre Vício e Virtude ou, neste caso, entre o universo da Legitimidade e o da
Ilegitimidade) para os mais específicos (como, por exemplo, humildade, misericórdia,
etc. ou perjúrio, covardia, etc.), aos quais associaremos referências selecionadas do
texto.
Embora na Historia Wambae, a contraposição mais explícita seja a que opõe
legitimidade régia e tirania, aqui entendida como obtenção e exercício ilegítimo do
poder político, utilizaremos para reunir os elementos positivos e negativos no texto as
categorias Virtude e Vício, respectivamente. O motivo é que, como demonstraremos
posteriormente, Julian de Toledo opõe legitimidade e tirania em termos de uma
oposição entre retidão moral e pecado, assemelhada a que podemos encontrar nos
relatos hagiográficos.
A escolha por essa abordagem metodológica se justificaria, no caso de nossa
pesquisa, pois, de acordo com supracitado autor, “o nível dos temas e das figuras é o
lugar privilegiado de manifestação da ideologia. Com efeito, não é nos níveis mais
abstratos do percurso gerativo que se manifesta, com plenitude e nitidez, a ideologia,
mas na concretização dos valores semânticos”.17
Análise semântica e análise comparativa foram associadas em nossa leitura, de
modo a permitir a identificação de padrões e relações de sentido comuns, bem como
para que identificássemos diferenças, que pudessem ser associadas a especificidades das
fontes ou de seus respectivos contextos de elaboração. A metodologia utilizada foi
fundamental para nossa argumentação, pois propiciou a identificação das confluências
17
Ibidem. p. 106.
10
discursivas existentes nos documentos, que apontam para o interesse de ambos os seus
autores de filiar-se a diretrizes ideológicas, vinculadas por sua vez a dado consenso
estabelecido conjuntamente pela monarquia e pela Igreja. Além disso, nos permitiu
identificar as diferenças também presentes no teor dos referidos discursos, as quais, por
sua vez, apontam para a existência, no seio daquele grupo político e social que
correspondia à corte e ao episcopado toledano, de perspectivas e posicionamentos
variáveis em relação àquele prévio consenso.
3. Considerações sobre a documentação
Como já mencionamos, os dois
documentos
selecionados
para
o
desenvolvimento de nossa problematização são a Vita vel passio Sancti Desiderii
(conhecida também simplesmente como Vita Desiderii), escrita pelo rei Sisebuto, e a
Historia Wambae Regis, do bispo Julian de Toledo. Do ponto de vista formal, os dois
documentos pertencem a duas tipologias distintas: um se trata de uma narrativa
hagiográfica e outro pertence ao gênero das historiae. Ao passo que o segundo gênero
possui uma tradição que remonta à Antiguidade Clássica greco-latina, sofrendo
transformações significativas ao ser integrado à diversificada literatura produzida pelas
lideranças cristãs, o primeiro começa a se desenvolver já durante os últimos séculos da
Antiguidade romana, no contexto do surgimento do culto à memória dos mártires do
cristianismo.
A hagiografia se define como o conjunto de escritos concernentes aos santos ou
à santidade, bem como a área da teologia dedicada ao estudo da santidade – esta
conhecida também como hagiologia.18 Os escritos hagiográficos podem pertencer a
gêneros literários diversos – narrativas, sermões, poemas, epígrafes etc. – sendo que o
aspecto que os define como textos propriamente hagiográficos é o propósito de
perpetuar a memória dos santos e de edificar moralmente o público leitor/ouvinte,
estimulando os cristãos a imitar o exemplo dos santos e mártires. Assim, a literatura
hagiográfica constituiu-se em um importantíssimo veículo de difusão de modelos de
conduta cristã durante a Antiguidade e a Idade Média.19
18
GOULLET, Monique. Introduction: saints et hagiographie. In : WAGNER, Anne (org.). Les saints et
l’histoire : sources hagiographiques du haut Moyen Âge. Paris : Bréal, 2004, p. 14.
19
VELAZQUEZ, Isabel. Hagiografia y culto a los Santos en la Hispania Visigoda: aproximación a
sus manifestaciones literárias. Mérida: Museo Nacional de Arte Romano, 2005., p. 23-32.
11
Ela guarda proximidades com vários estilos literários da Roma pagã como as
historiae, os panegíricos, e as biografias.20 O historiador Peter Brown aponta que umas
das características mais peculiares do mundo clássico tardio (também chamado por ele
de Civilização da Paidéia) é o fato de que a exemplaridade costumava ser buscada
muito mais em indivíduos do que em instituições e outras entidades mais genéricas, o
que fica comprovado pela força retórica que possuía a referência a heróis, heroínas ou a
grandes intelectuais e governantes do passado.21
A recorrência destes tópicos em um grande número de textos produzidos entre
os séculos IV-VIII e, às vezes, também em textos posteriores pode ser associada a uma
outra idéia trazida por Peter Brown. Quando este autor destaca a “inovação” do discurso
hagiográfico cristão em relação ao pensamento clássico: a santidade, sendo concebida
como imitatio Christi e/ou repraesentatio Christi, difere-se do discurso pagão
tradicional na medida em que os santos e mártires cristãos tornam contemporâneos os
exemplos do passado; em outras palavras, o santo/mártir é visto e cultuado como o
próprio Cristo tornado presente por meio da vida de um fiel.22 Cristo era eterno, o que
permitia a ele ser enviado a todas as eras e todos os lugares por meio de seus eleitos,
eles mesmos exemplos da grande potencialidade do primeiro modelo de humanidade: o
Adão antes da queda, natureza humana perfeita porque criada “à imagem de Deus”.23
Tal “inovação”, entretanto, pode ser relativizada, já que a “antiguidade” permanece
como referência, comprovando a existência de simbiose entre a cultura clássica e a
teologia judaico-cristã.
Os santos são distribuídos pelos historiadores entre algumas categorias. A
primeira forma de santidade a ser reconhecida pelas comunidades cristãs é a dos
mártires, que surgem inicialmente no período das perseguições aos cristãos pelo
Império romano (séculos II e III); com o fim da hostilidade oficial, o martírio passa a
ser associado a outros tipos de ação religiosa, como às missões de evangelização ou aos
conflitos protagonizados por bispos e líderes laicos.24 É nesta categoria que podemos
inserir o bispo Desidério de Vienne, que protagoniza a Vita Desiderii. Peter Brown
indica também que um dos papéis desempenhados pelos santos no imaginário cristão
tardo antigo e medieval era o de permitir que os fiéis fizessem uso dos acontecimentos
20
Ibidem. p. 33-40.
BROWN, Peter. The Saint as Exemplar in Late Antiquity. Representations, Berkeley. n. 2, p. 01-26,
1983. p. 02-03.
22
Ibidem. p. 06-08.
23
Ibidem, p. 07, 19.
24
Ibidem, p. 08-09.
21
12
presentes nos textos hagiográficos para atribuir sentido às suas próprias ações e
experiências pessoais, bem como para julgar a de outros.25 Esta forma peculiar de
conceber o conteúdo dos textos hagiográficos, no nosso entender, tornava uma narrativa
como a Vita Desiderii bastante conveniente à difusão de um projeto político-ideológico
como o proposto pela produção intelectual eclesiástica dos anos posteriores à conversão
oficial do reino visigodo, em 589, que influencia diretamente a elaboração da obra de
Sisebuto.
Sobre a produção historiográfica cristã, na qual podemos inserir a Historia
Wambae, ela possuiria quatro finalidades principais, segundo E. Sánchez Salor: 1)
finalidade testemunhal, ou seja, a de oferecer evidências da interferência divina no curso
dos acontecimentos no mundo terreno; 2) finalidade edificadora, que aproxima essa
literatura das narrativas hagiográficas, a ponto de o autor inseri-las também na categoria
“historiografia”; 3) finalidade apologética, isto é, a defesa da fé cristã contra eventuais
detratores; 4) finalidade “terapêutica” (sic), a menos recorrente, por meio da qual seus
autores visariam oferecer consolo ao seu público em situações de crise, pela referência à
glória de tempos passados.26 Sobre a historiografia visigoda em particular, Sanchez
Salor aponta para a forte influência da obra de Paulo Orosio no elemento
providencialista presente nessas narrativas.27
Paul Merritt Basset, tratando de uma obra em particular desse gênero produzido
no reino visigodo, o Chronicon, de Isidoro de Sevilha, comenta que esta, ainda que
tenha sido redigida sob forte influência de escritos anteriores de autores como Eusébio
de Cesárea e Agostinho, teria sido a primeira a narrar uma pretensa “história universal”
como uma linha singular de acontecimentos, em que o sagrado e o profano confluem
progressivamente à medida que o cristianismo se expande. A história universal, assim
entendida, se confundiria com a história da Igreja universal – ao passo que as heresias
seriam caracterizadas pelo seu restrito alcance. O autor também menciona, ao comentar
as leituras da historiografia factualista a respeito das crônicas e historiae isidorianas, o
problema de elas serem avaliadas em função do seu grau de (in)exatidão, ao invés de
terem considerados os seus propósitos ideológicos,28 traço que, como demonstraremos
25
BROWN, Peter. Enjoying the saints in late antiquity. Early Medieval Europe, 9 (I), p. 01-24, 2000. p.
19-22.
26
SÁNCHEZ SALOR, Eustáquio. El providencialismo en la historiografía cristiano-visigótica de España.
Anuario de Estudios Filológicos, Extremadura. v. 05, p. 179-192, 1982.. p. 179-180.
27
Ibidem. p. 180.
28
BASSET, Paul Merritt. The use of History in the Chronicon of Isidore of Seville. History and Theory,
Middletown. v. 15, n. 03, p. 278-292, 1976. p. 278-280, 286, 291-292.
13
no próximo capítulo, identificamos também em boa parte da historiografia que faz
menção a Vita Desiderii e a Historia Wambae.
A respeito das contribuições do historiador Reinhart Koselleck à reflexão sobre a
escrita da história, podemos mencionar uma que possui particular importância para a
leitura que temos de nossa documentação, pois trata da influência do pensamento
agostiniano na apreensão cristã da história:
“O que foi decisivo para Santo Agostinho – e que vale para todas as
tentativas de transformar as doutrinas da Idade do Mundo em determinações
históricas do tempo – foi o fato de que as doutrinas da Idade do Mundo eram
concebidas de tal maneira que se acreditava que, depois do nascimento de
Cristo, vivia-se a última delas. Desde então não poderia acontecer mais nada
de novo, pois o mundo se encontrava sob a perspectiva do Juízo Final. O
sexto aetas é o último e, portanto, estruturalmente idêntico a si mesmo. Com
isso, Santo Agostinho colocava-se em dupla vantagem. Empiricamente, nada
mais poderia surpreendê-lo, mas do ponto de vista teológico, tudo era inédito
e renovado [...] Desse modo, Santo Agostinho esboça um horizonte para a
civitas terrena, dentro do qual formula uma série de regularidades que, em
sua estrutura formal, delineiam as condições de um possível movimento
histórico.”29
Tais considerações nos permitem analisar uma narrativa hagiográfica como a
Vita Desiderii e uma historia como a Historia Wambae a partir de um eixo comum
interpretativo comum, já que esta perspectiva agostiniana, que insere passado e presente
em uma estrutura única dentro do plano divino, marcando a experiência do tempo e da
história na Antiguidade cristã e na Idade Média, influencia a construção de ambas as
narrativas. Ou, como Santiago Castellanos indica no caso específico das hagiografias
visigodas, essas narrativas consistiam em tentativas de seus autores de interferir, criando
ou controlando, uma dada memória social em construção. Tratava-se de uma forma de
fabricar consenso e unanimidade em contextos nos quais diferentes interesses, posições
de poder, e concepções a respeito do passado se viam em conflito.30
A Vita Desiderii se encontra conservada em seis manuscritos, que estão
distribuídos entre diversos arquivos espanhóis, entre os quais o da Biblioteca Nacional,
em Madrid (códices 590, 1346, 13085, 18735/29), o do El Escorial (códice b.III.14), e o
da Biblioteca Capitular de Toledo (códices 27-24). Todos os manuscritos, produzidos ao
longo dos séculos XVI-XIX, têm como base, direta ou indireta, um manuscrito que
fazia parte do famoso códice ovetense, pertencente ao bispo Pelayo, datado do século
29
KOSELLECK, Reinhart. História, histórias e estruturas temporais formais. In: ___. Op. cit. p. 128.
CASTELLANOS, Santiago. The Significance of Social Unanimity in a Visigothic Hagiography: Keys
to an Ideological Screen. Journal of Early Christian Studies, Baltimore, v.11, n.03, p. 387-419, 2003.
p.395, 418.
30
14
XII, e atualmente perdido. O manuscrito do códice ovetense é o mais antigo, até o ponto
que conhecemos, que incluía a Vita Desiderii. Entre as edições existentes, encontramos
três, a saber: a de E. Flórez, de 1751; a de B. Krusch, de 1896; e duas de J. Gil, de 1972
e 1991, respectivamente.31
Os manuscritos da Historia Wambae se encontram conservados em códices
armazenados na Catedral de Toledo, na biblioteca da Catedral de Narbona, códice este
conhecido como “códice narbonense”, em Madrid (Academia de la historia G-1 e A189; e BN. 1376)), na biblioteca capitular de Segorbe (G-1), e em Toledo (BC 27-26).
Entre as edições que já foram produzidas, podemos mencionar: uma de E. Flórez
(século XVIII), do Cardeal Lorenzana (reeditada por P. Migne em sua Patrologia
Latina), e uma de W. Levison, na Monumenta Germaniae Historica.32
Em nossa pesquisa, utilizaremos uma tradução da Vita Desiderii e da Historia
Wambae para o castelhano, elaboradas por Pedro R. Diaz y Diaz, da Universidade de
Granada, e publicadas em 1993 e 1990, respectivamente.33 Para observações mais
apuradas, contaremos ainda com o apoio das edições latinas presentes na Monumenta
Germaniae Historica, de B. Krusch e W. Levison.34
Em suma, neste capítulo delimitamos as questões que nos ocupam na
dissertação. Tais questões são relativas ao modo como a construção de duas narrativas
produzidas no reino visigodo do século VII relaciona-se com as relações de poder
envolvendo monarquia, episcopado e aristocracia no reino visigodo e com estratégias
ideológicas utilizadas pelos dois primeiros com vistas a privar de legitimidade a
emergência de pólos de poder alternativos, representados em geral na figura de
aristocratas rivais e opositores da centralização política e religiosa em torno de Toledo.
Contamos para isso com as possibilidades do método comparativo, que nos permite
aproximar textos com perfis tipológicos e temporais distintos, no caso uma narrativa
hagiográfica e uma narrativa histórica separadas por um período de aproximadamente
31
MARTIN, José Carlos. Una revisión de la tradición textual de la Vita Desiderii de Sisebuto. Emerita,
64, n. 02, 1996, p. 239-248.
32
MIRANDA CALVO, José. San Julian, cronista de guerra. Anales Toledanos, Toledo. v. 03, p. 159170, 1971. p. 05.
33
DIAZ Y DIAZ, Pedro R. Tres Biografías latino medievales de San Desiderio de Viena (traducción y
notas). Fortunatae, La Laguna, nº 05, p. 215-252, 1993. e JULIAN DE TOLEDO. Historia del Rey
Wamba. Trad. e Notas de Pedro Rafael Diaz y Diaz. Florentina Iliberritana, v. 1, p. 89-114, 1990.
34
KRUSCH, Bruno (ed.). Vita vel passio Sancti Desiderii a Sisebuto Rege composita. In: ______ (org.).
Monumenta Germaniae Historica. SS rer. Merov. (vol. I). Hannover, 1896. p. 630-637. e LEVISON,
W. (ed.). Historia wambae regis auctore iuliani episcopo toletano. In: Ibidem. v. 05, p. 486-535.
15
sete décadas, e estabelecer parâmetros de análise capazes de evidenciar relações e
associações entre os documentos até então não consideradas, e rever sua inserção em
uma conjuntura social e política mais ampla.
16
CAPÍTULO 2: Discussão Bibliográfica
Considerando a importância que as questões relacionadas à monarquia e à
realeza assumem em nossa dissertação, bem como às referentes à Vita Desiderii e à
Historia Wambae, dividimos este capítulo em três blocos: um primeiro dedicado a uma
seleção de estudos voltados à monarquia e realeza na Idade Média, com destaque para
estudos voltados aos reinos romano germânicos; um segundo bloco discutindo estudos
voltados de forma parcial ou específica à Vita Desiderii; e, por fim, um terceiro
avaliando estudos dedicados à obra de Julian de Toledo e à Historia Wambae.
1. Monarquia e realeza na Idade Média1
No início do século XX, Fritz Kern (1915) já ia além da perspectiva que
identifica nos governantes germanos uma política de caráter puramente patrimonialista e
personalizado, apontando que é apenas no Antigo Regime que a dignidade régia se torna
um dom pessoal (e não mais familiar) e que durante a maior parte do período medieval e
mais ainda nos primeiros séculos dele, predominava a concepção que via o direito
legítimo ao trono como oriundo de três bases: laços dinásticos, providência divina e a
vontade do povo.2 No que tange a essas três bases, o autor identifica a primeira como
uma herança germânica, a segunda como fruto da influência eclesiástica e a terceira
como relacionada a conceitos tradicionais da burocracia/magistratura romana.
Com relação à associação entre monarquias e Igreja, Kern ressalta a importância
que os rituais de sagração assumiram ao longo do período medieval no sentido de
oferecer sustentação institucional à ascensão de soberanos cuja legitimidade pudesse ser
objeto de contestação por parte de seus pares, mas ressaltando que ela sempre seria
apresentada como uma confirmação divina de um direito secular existente.3 O autor
identifica uma íntima relação entre as sagrações e a noção da realeza como ofício, o que
serviria à Igreja para impor uma série de obrigações ao governante, mas que, no
entendimento de Kern, termina servindo basicamente para assegurar direitos, mais que
para estabelecer deveres.4
1
Distinguimos, genericamente, monarquia como instituição régia ou forma de governo centralizada na
figura do rei, e realeza como a condição ou função real, relativa à pessoa do monarca.
2
KERN, Fritz. Kingship and Law in the Middle Ages. Westport: Greenwood, 1985. p. 12-26.
Concordamos com P. Grierson, entretanto, quando o mesmo aponta para o fato de que Kern atribui peso
excessivo à “vontade do povo” nos processos sucessórios, argumentando que ostrogodos, visigodos,
lombardos, vândalos e burgúndios possuíam estirpes régias – ainda que o nível de reconhecimento delas
pelos súditos fosse variável – e que a palavra “eleição” no período tinha um sentido muito vago, podendo
fazer referência tanto a uma eleição genuína quanto à simples aceitação de um sucessor previamente
definido ou de um golpe de Estado bem-sucedido. Cf.: GRIERSON, P. Election and Inheritance in Early
Germanic Kingship. Cambridge Historical Journal, Cambridge, v. 7, n. 01, p. 1-22, 1941. p. 1-3.
3
KERN, Fritz. op. cit. p. 34; 46.
4
Ibidem. p. 50.
18
Ernst Kantorowicz, por sua vez, no seu clássico The King’s Two Bodies,5 tem
como objetivo apresentar uma reflexão sobre as origens medievais de noções relativas a
uma identidade jurídica dual atribuída aos monarcas nos primeiros séculos da
Modernidade. No que tange à questão que nos ocupa de modo particular, que é a da
relação entre monarquia e Igreja, Kantorowicz discute textos produzidos na Idade
Média Central que, fazendo referência a leis e concílios do reino visigodo, por exemplo,
defendem a dualidade da pessoa real, baseados na idéia de que o monarca seria uma
persona geminata, tal como o próprio Cristo, ao mesmo tempo humano e divino, mas
que diferentemente da segunda pessoa da Trindade, que é divino por natureza, o rei
tornar-se-ia divino por graça. Para o autor, esta concepção prenuncia a premissa,
predominante em períodos posteriores, que distingue o “rei como pessoa” do “rei como
ofício”.6
Outro autor que podemos destacar entre aqueles que propõem uma apreensão
mais geral da política no período medieval é René Fédou.7 Com o fim de invalidar a
tese que identifica a Primeira Idade Média como uma época de caos, o autor fornece
diversos elementos não apenas de continuidade entre a Europa romano-germânica e a
realidade política baixo-imperial (a organização episcopal, o latim com língua escrita e
de culto e o direito romano), como também de similitude entre elementos considerados
de origem germânica e práticas romanas (o caráter personalizado das leis e das relações
políticas – contraposto à territorialidade tipicamente atribuída à legislação romana; o
peso do aspecto militar do poder régio; o direito de bannus – que, para o autor, se
assemelha ao imperium em sua acepção original etc.). Desse modo, Fédou conclui que,
mais correto do que falar em continuidades e rupturas entre Roma e os reinos
germânicos, seria falar em uma síntese, que favoreceria os aspectos de cada conjunto
cultural que fossem mutuamente inteligíveis.8
Sobre a questão da relação entre autoridades eclesiásticas e seculares, Fédou
diverge de Kern na medida em que, diferentemente deste, que identifica e enfatiza a
existência uma relação de subordinação da Igreja para com os monarcas,9 o historiador
francês acentua não apenas a importância do pensamento agostiniano para o
desenvolvimento de concepções que defendiam a preeminência da autoridade episcopal
5
KANTOROWICZ, Ernst H. The King’s Two Bodies: a study in mediaeval political theology.
Princeton: Princeton University, 1957.
6
Ibidem. p. 42-60.
7
FÉDOU, René. El Estado en la Edad Media. Madrid: EDAF, 1977.
8
Ibidem. p. 15-35.
9
KERN, Fritz. op. cit. p. 51.
19
em detrimento dos interesses dos soberanos seculares, como também ressalta o papel
desempenhado pelas reuniões conciliares na definição de diretrizes políticas e até
mesmo na ratificação de processos sucessórios violentos no reino visigodo, por
exemplo. Fédou destaca também a relevância da atividade política e intelectual de
bispos como Gregório Magno (590-604) e Isidoro de Sevilha (570-636) no
aconselhamento de monarcas nos reinos franco e visigodo e na construção da idéia da
realeza como ministerium, cujo objetivo fundamental deveria ser a salvaguarda da
disciplina cristã nos seus respectivos domínios. 10
Reconhecemos a pertinência de estudos como os dos três autores supracitados,
cujo objetivo essencial é o de oferecer um panorama o mais abrangente possível a
respeito das características do exercício do poder político na Europa medieval desde o
século VI ao século XV. Entretanto, consideramos necessário estar atentos às
especificidades, tanto em nível espacial quanto temporal, das questões políticas da
Primeira Idade Média, o que obras com tal grau de abrangência tendem a não acentuar
ou a evocar muito vagamente. Em outras palavras, entendemos ser apropriado abordar a
política do período medieval no plural, ao invés de descrevê-lo como uma experiência
histórica unívoca.
Com relação às especificidades no plano cronológico, Katherine Fisher Drew,
por exemplo, a partir da análise das legislações dos reinos franco, visigodo, lombardo e
dos anglo-saxões, aponta para uma série de diferenças entre elas e a legislação romana
no que concerne a questões como uso legítimo da violência e as relações senhoriais e de
dependência. Para a autora, a principal mudança que caracterizou a organização social
dos reinos germânicos da Primeira Idade Média foi a forma diferenciada pela qual
passaram a ser concebidas as relações entre os indivíduos e a sua segurança pessoal.11
A seguir, apresentaremos exemplos de estudos recentes dedicados de maneira
específica à questão da realeza nos reinos germânicos nos primeiros séculos da Idade
Média, com destaque para algumas das reflexões voltadas particularmente ao reino
visigodo.
Um primeiro estudo que podemos mencionar é o livro da professora Leila
Rodrigues da Silva publicado em 2008, produto da revisão e atualização da sua tese de
doutorado, defendida em 1997, e cuja temática eram as relações entre monarquia e
10
FÉDOU, René. op. cit. p. 42; 90-93.
DREW, Katherine Fischer. Another Look at the Origins of the Middle Ages: A Reassessment of the
Role of the Germanic Kingdoms. Speculum, Cambridge, v. 62, n. 4, p. 803-812, 1987.
11
20
Igreja na Galiza do século VI, região então controlada pelos suevos.12 O estudo da
autora centrou-se no modelo de monarca tal como se apresentava na obra do bispo
Martinho de Braga (556-580) e sobre a inserção desse modelo no processo de
aproximação entre autoridades laicas e eclesiásticas da região verificado no período e no
qual o bispo em questão desempenhou um papel bastante significativo. Entre os muitos
méritos do estudo, podemos mencionar a evidência da importância de se reavaliar o
valor da história da monarquia sueva na Galiza, a despeito da sua curtíssima duração
(menos de um século), para a compreensão da dinâmica que envolveu, em um primeiro
momento, a desarticulação do domínio romano nas antigas áreas ocidentais do Império
a partir do século V e sua substituição - ou cooptação - pelas elites germânicas e, em um
segundo momento, a aproximação da realeza com a alta hierarquia eclesiástica e a
relação de tutelamento que o episcopado busca estabelecer com os monarcas, resultando
em uma ação política e intelectual direcionada à cristianização dos princípios de
governo.
A esta questão se dedica também o professor Marcelo Cândido da Silva, no livro
intitulado A Realeza Cristã na Alta Idade Média, igualmente publicado em 2008.13
Neste estudo o autor, a partir da análise de uma ampla e variada documentação, dedicase a analisar o processo que, no reino franco merovíngio ao longo do século VI, é
definido por ele como sendo o da transformação da concepção constantiniana de
realeza, caracterizada pelo controle dos governantes laicos sobre a estrutura eclesiástica,
em uma concepção de realeza cristã, em que o episcopado adquire influência
progressiva na determinação dos deveres e prioridades do soberano. Outro problema
que recebe atenção do estudioso é o da permanência da noção romana de res publica
entre os governantes merovíngios, noção a qual, no entendimento dele e diferentemente
do que defendia parte da historiografia oitocentista, não apenas não entrava em conflito
com a crescente influência eclesiástica nos assuntos políticos, como estava intimamente
relacionada a ela, na medida em que a idéia de uma realeza cristã traz consigo o
entendimento que apresenta a garantia da salvação dos fiéis como interesse público e,
portanto, como parte das competências e deveres do monarca.
Entre os estudos dedicados à análise do caso visigodo, destacamos a obra do
historiador Luis A. Garcia Moreno, que tem como um de seus pontos centrais, a
12
SILVA, Leila Rodrigues da. Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: o
modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Niterói: EdUFF, 2008.
13
SILVA, Marcelo Cândido da. A Realeza Cristã na Alta Idade Média: os fundamentos da
autoridade pública no período merovíngio (séculos V-VIII). São Paulo: Alameda, 2008.
21
existência de um “Estado Protofeudal” no reino visigodo ibérico.14 Garcia Moreno
destaca o papel estruturante dos vínculos pessoais na organização da sociedade hispanovisigoda, tanto no que concerne à relação entre os camponeses e seus patroni, quanto ao
poder dos reis sobre seus fideles aristocráticos. Aponta ainda para as dificuldades
crescentes dos reis visigodos em converter a legitimidade como soberanos cristãos, de
que foram investidos pelo episcopado a partir de 589, em poder efetivo sobre uma
aristocracia provincial que se autonomizava progressivamente. Tais elementos levam o
autor a concluir que o reino visigodo anteciparia, de certo modo, a organização política
registrada cerca de um século depois, na Europa carolíngia.
Podemos citar também um artigo do professor Pablo C. Díaz, intitulado “Rey y
poder en la monarquia visigoda”,15 que aborda, dentre outras questões, a da
transformação dos critérios que definiam a legitimidade dos reis visigodos,
primeiramente reconhecidos pelos seus pares fundamentalmente em função de suas
qualidades como chefes militares, mas que, com o estabelecimento territorial, na Gália a
partir do século V e na Península Ibérica a partir do século VI, passam a ver a sua
autoridade adquirir institucionalidade à moda romana.16 Os reis visigodos passam a ser
além de líderes guerreiros, legisladores e administradores de regiões altamente
romanizadas. Nesse sentido, Diaz entende que a conversão dos visigodos, até então
arianos, à ortodoxia nicena em 589, sob a liderança de Recaredo (586-601), seria mais
um passo em direção à territorialização do poder dos reis godos, que passariam, desse
modo, a exercer domínio sobre toda a Península Ibérica, ao invés de serem governantes
de apenas um segmento da elite. Também no que concerne à aproximação entre
monarquia e Igreja neste reino, o autor entende que a instituição do ritual de unção à
maneira dos reis do Antigo Testamento,17 no momento da coroação dos monarcas,
documentada a partir do reinado de Wamba (672-680),18 foi decorrência da
14
Este conceito se apresenta em vários de seus trabalhos, e é desenvolvido com particular ênfase em
GARCIA MORENO, Luis A. El estado protofeudal visigodo: precedente y modelo para la Europa
carolíngia. In: FONTAINE, Jacques; PELLISTRANDI, Christine (orgs.). L’Europe héritière de
l’Espagne wisigothique. Madrid: Casa de Velazquez, 1992. p. 17-43.
15
DÍAZ, Pablo C. Rey y poder en la monarquía visigoda. Iberia, Logroño, n. 1, p. 175-195, 1998.
16
Sobre a questão da adoção por parte dos monarcas visigodos dos signos e idéias da tradição clássica
latina, cf. FRIGHETTO, Renan. Aspectos Teóricos e Prácticos da Legitimidade do Poder Régio na
Hispania Visigoda: o Exemplo da Adoptio. Cuadernos de Historia de España, Buenos Aires, v.79, n.1,
p. 237-245, 2005.; ____. Da antigüidade clássica à idade média: a idéia da Humanitas na antigüidade
tardia ocidental. Temas Medievales, Buenos Aires, v.12, p. 147-163, 2004.
17
BARBERO DE AGUILERA, Abílio. La sociedad visigoda y su entorno histórico. Madrid: Siglo
XXI, 1992. p. 57-77.
18
Barbero de Aguilera defende, por sua vez, a possibilidade de a prática da unção dos reis visigodos datar
do IV Concílio de Toledo, de 633, em que a ascensão ao trono por via de golpe de Sisenando (630-636) é
22
impossibilidade de alcançar um princípio válido e único de sucessão ao trono – uma vez
que, ao longo dos séculos VI-VII, tanto monarcas eleitos quanto monarcas por
associação dinástica viram sua autoridade ser alvo de contestação por setores da
aristocracia.
Maria Del Rosario Valverde Castro, atualmente professora titular na
Universidad de Salamanca, publicou em 2000 uma obra bastante abrangente em que
trata de questões semelhantes às desenvolvidas de forma mais sintética por Pablo Diaz
no artigo supracitado. A obra intitula-se Ideología, simbolismo y ejercicio del poder
real en la monarquía visigoda: un proceso de cambio,19 e analisa o processo de
transformação da autoridade régia visigoda desde o período das migrações até a plena
institucionalização no reino toledano.
Dentre outras conclusões, a autora aponta como um dos principais marcos desse
processo, além da questão da territorialidade já apontada por Diaz, em que os reis
visigodos deixam de ser reis apenas dos godos para estender seu poder sobre toda a
população que habitava seus domínios, a busca de distinção dos monarcas em relação
aos demais membros da elite goda. A autora aponta que tal tentativa de diferenciação se
apresenta na prática da imitatio imperii, sistemática desde o reinado de Leovigildo (572586), e da afirmação da origem divina de autoridade dos reis, por meio da qual estes
visam apresentar-se como entidades autônomas e superiores com relação aos demais
aristocratas, com quem desde o período tolosano travam uma disputa constante por
poder político e recursos econômicos.
O professor Renan Frighetto endossa as conclusões de Diaz e Valverde Castro a
respeito da adoção, por parte dos reis visigodos, de signos e práticas imperiais, e analisa
também o impacto da conversão da monarquia ao cristianismo niceno nos discursos
referentes às disputas políticas no reino. Além de apontar para o atrelamento da idéia de
humanitas à noção de christianitas,20 o autor destaca ainda que a infidelidade
nobiliárquica adquire nos textos um sentido semelhante àquele que os antigos romanos
atribuíam à barbárie, isto é, à não-romanidade, à incivilização.21
ratificada. Esse concílio é marcado também pela expressão da teoria política de Isidoro de Sevilha em sua
forma plena, no cânone 75. cf. Ibidem. p. 68.
19
VALVERDE CASTRO, M.ª R. Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía
visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 2000.
20
FRIGHETTO, Renan. Da antigüidade clássica à idade média: a idéia da Humanitas na antigüidade
tardia ocidental. Temas medievales. Buenos Aires, v.12, n. 1, 2004. Disponível em:
http://www.scielo.org.ar/. Acesso em: 08/09/2008.
21
FRIGHETTO, Renan. Infidelidade e barbárie na Hispania visigoda. Gérion, Madrid, v.20, n.01. p. 491509, 2002.
23
Podemos concluir, a partir das conclusões dos autores selecionados, que, entre
os aspectos que têm recebido atenção dos estudiosos das monarquias durante a Primeira
Idade Média, sobressaem a manutenção e/ou reformulação do legado romano pelas
monarquias germânicas recém-estabelecidas, e o aprofundamento da relação entre
instituições políticas e eclesiásticas, que levou, por um lado à intensificação do processo
de cristianização dos valores herdados da Antiguidade Clássica, em curso desde o Baixo
Império e que prossegue ao longo da Idade Média, e por outro lado, à uma ampliação da
presença e da influência das autoridades episcopais na definição das relações e
configurações de poder na sociedade secular.
Nosso trabalho se insere em meio a tais iniciativas, na medida em que nos
ocupamos da compreensão das implicações da aproximação política entre a monarquia
visigoda e a alta hierarquia eclesiástica na produção de discursos que exaltavam os
princípios de boa conduta régia e a legitimidade da própria monarquia. Entendemos que
a comparação entre a Vita Desiderii e a Historia Wambae pode oferecer uma
contribuição a esse conjunto de estudos ao nos permitir confrontar discursos produzidos
por um rei e por um bispo, e desse modo, ir para além das discussões que restringem a
análise das relações de poder ideológico envolvendo monarquia e episcopado a partir da
lógica do tutelamento, que muitas vezes os próprios autores das fontes buscavam
transmitir ao seu público sem que esta correspondesse necessariamente à realidade.
Considera-se necessária uma problematização capaz de considerar as
contradições presentes nas relações entre autoridades/instituições políticas e religiosas e
o modo como essas contradições são representadas ou trabalhadas discursivamente. A
análise e a comparação de textos narrativos que definem e situam poderes e indivíduos
no tempo de modo peculiar como as historiae e as hagiografias, nesse sentido, se
tornam um recurso muito útil à compreensão da dinâmica por meio da qual grupos e
indivíduos naquelas sociedades atribuíam sentido à ordem social em suas diferentes
dimensões.
2. Considerações sobre a Vita Desiderii
Com relação aos estudos voltados ao papel da Vita Desiderii no contexto
político visigodo, destacaremos a contribuição da área de Letras, que se apresenta nos
trabalhos de Jacques Fontaine, José Carlos Martín e de Isabel Velazquez, bem como as
reflexões trazidas pelos estudos dos historiadores Janet Nelson e Santiago Castellanos.
24
Jacques Fontaine, em artigo já clássico publicado em 1980,22 revê uma antiga
tese, segundo a qual a hagiografia de Sisebuto era apresentada como propaganda
política contra a monarquia franca. Nesta nova reflexão, Fontaine fornece indicações
que permitem acrescentar nuanças alternativas não apenas à análise da funcionalidade
política do discurso hagiográfico como também ao estudo das interações entre o reino
visigodo ibérico e o reino franco merovíngio.
O primeiro aspecto a ser assinalado por Fontaine é a atipicidade da Vita
Desiderii – texto escrito por um monarca visigodo, narrando a vida e a morte de um
bispo bem como a sua relação com eventos políticos ocorridos fora da Península
Ibérica. Entretanto, o autor destaca que esta hagiografia deve ser analisada menos em
comparação com outros textos hagiográficos produzidos na Hispania visigoda – como a
Vida de Emiliano ou a Vida dos Padres Emeritenses – mas sim em relação ao conjunto
da produção literária de Sisebuto, incluindo a correspondência diplomática do rei
dirigida ao representante do Império Bizantino ou ao rei lombardo de Pavia. Para
Fontaine, a atividade literária de Sisebuto não pode ser dissociada da idéias de que ele
se achava incumbido de uma dupla missão, concomitantemente política e religiosa,
como rei cristão e como cristão católico. Para ele, os aspectos morais, religiosos e
políticos dessa missão estavam totalmente mesclados em um. A produção literária de
Sisebuto se realizaria segundo interesses deste monarca tanto dentro da esfera política
quanto da religiosa. Para o historiador, ter noção quanto à multiplicidade de objetivos
que Sisebuto poderia ter, portanto, facilita a investigação dos possíveis alvos da Vita
Desiderii.
Fontaine também indica que o trabalho hagiográfico de Sisebuto foi influenciado
não apenas pela “Renascença Isidoriana”23 como também pela concepção que os
homens da época tinham sobre os chamados “homens de Deus”: profetas, mártires, em
constante conflito com as elites laicas, e muitas vezes destinados a um fim trágico. O
modelo típico de representação do conflito entre poderes político e religioso pode ser
encontrado em Sulpicius Severus, no seu relato sobre São Martinho, e Prudentius. As
presentes conclusões do autor seriam reafirmadas por estudo de Isabel Velazquez,
22
FONTAINE, Jacques. King Sisebut’s Vita Desiderii and the political function of Visigothic
Hagiography. In: JAMES, Edward (ed.). Visigothic Spain: new aproaches. Oxford: Claredon, 1980, p.
93-129.
23
Designa-se por “Renascença Isidoriana” o esforço intelectual levado a cabo por Isidoro de Sevilha no
sentido de efetuar uma espécie de resgate da cultura e dos valores clássicos cristãos e romanos, que fica
patente em obras como as Etimologias ou as Sentenças.
25
publicado posteriormente.24 A Vita Martini teve uma influência considerável no modo
como os embates entre santos e governantes temporais eram representados nas
hagiografias da Alta Idade Média, nas quais, muitas vezes o poder político aparece
associado ao Diabo. A Vita Desiderii, então, parece ter sido profundamente inspirada
pelo que o autor designa como “martinismo político”.25
Outra indicação fornecida pelo autor é a de que Sisebuto tenha distorcido os
fatos deliberadamente, e envolvido Teodorico e Brunequilda numa disputa que outras
fontes, discorrendo sobre os mesmos eventos, apresentam como tendo se dado no
interior da hierarquia episcopal franca.26
O manuscrito de Oviedo, atualmente perdido, mas do qual provêm as melhores
versões da Vita Desiderii, está na mesma coleção em que se encontra a correspondência
diplomática do monarca (incluindo suas cartas ao filho Teudila e ao rei lombardo
Aladoaldo), e próxima aos textos da chamada historiografia asturiana e visigoda. Tal
fato, na visão de Fontaine, seria mais um indício do peso marcadamente político da
hagiografia.
A política de alianças matrimoniais entre visigodos e francos vinha se revelando
desastrosa desde o século VI.27 Além disso, desde o reinado de Recaredo, godos e
francos disputavam a posse da Septimania. Às vésperas das mortes de Teodorico e
Brunequilda, godos e burgúndios estavam à beira de uma guerra aberta pelos territórios
na região dos Pirineus. Witerico se aliou a Clotário II, da Nêustria, contra Teodorico da
Burgúndia e os avaros. A vitória de Clotário foi recebida com alívio pela chancelaria
24
VELAZQUEZ, Isabel. Hagiografia y culto a los Santos en la Hispania Visigoda: aproximación a
sus manifestaciones literárias. Mérida: Museo Nacional de Arte Romano, 2005. p. 164-176.
Analisaremos as contribuições trazidas por esta obra adiante.
25
Sobre o modelo emanado da Vita Martini de Sulpicius Severus, Martin Heinzelmann escreve: “En
présentant l’existence de Martin comme un « martyre sans sang » (ép. 2, 12), attribuant, sur la foi de son
style de vie ascétique, les mérites des martyrs à l’évèque, la Vie a fortement favorisé l’élargissement du
cercle des saints susceptibles de dever l’object d’une venération au-delà des seuls martyrs. De plus, par
la synthèse « de la dignité de l’évêque avec le mode de vie et la vertu du moine » (10, 2), l’oevre de
Sulpice Sévère devint un modèle couramment imité dans l’hagiographie du très haut Moyen Âge en
Gaule, par le remploi de passages de la Vie ou par une stylisation conséquente du saint concerné. Ainsi,
la présentation plus ou moin fictive d’une image d’ascète suivant le modèle élaboré par Sulpice Sévère a
permis à de nombreux évêques francs d’être valorisés en tant que saints.”. Cf. HEINZELMANN, Martin.
Le modèle martinien. In : WAGNER, Anne (org.). Les saints et l’histoire: sources hagiographiques du
Haut Moyen Age. Paris : Bréal, 2004, p. 34. Entende-se como “martinismo político”, assim, a
reprodução da contraposição presente na Vita Martini, entre poder político e poder episcopal, em outros
textos hagiográficos elaborados durante a Alta Idade Média.
26
Segundo documentos produzidos no reino franco posteriormente à Vita Desiderii de Sisebuto, o
verdadeiro responsável pela condenação de Desidério teria sido um outro membro do episcopado da
Gália, o bispo Aridius de Lyon.
27
Cf. ISLA FREZ, A. Las relaciones entre el reino visigodo y los reyes merovingios a finales del siglo
VI. En la España Medieval, 13, p. 11-32, 1990.
26
visigoda. Não por acaso, verifica-se um teor bastante virulento em textos referentes à
política de Brunequilda produzidos durante os reinados de Witerico e Gundemaro,
monarcas de quem Sisebuto herda não só o trono, mas também as diretrizes políticas
quanto ao reino franco.
Logo, o provável interesse do rei visigodo seria o de inaugurar uma nova fase
nas relações entre godos e francos. Amaldiçoando a memória de Brunequilda e seus
aliados mais próximos, o monarca visigodo desvinculava a imagem da rainha da do
reino visigodo e ganhava pontos junto ao fortalecido rei Clotário.
Janet Nelson, em artigo presente em publicação de 1986, também trata da
inserção da Vita Desiderii no mundo franco, mas discutindo as relações entre a imagem
e a efetiva atuação da rainha Brunequilda.28 Ela insere os problemas entre Brunequilda e
Desidério no contexto da rivalidade entre as sedes episcopais de Lyon e Vienne e, em
diálogo com Fontaine, aponta que a Vita de Sisebuto seria uma obra pra consumo da
aristocracia da Gália visigótica. Ela destaca que, de acordo com a Vita Columbani, as
críticas feitas por Desidério aos monarcas – que Sisebuto não detalha – se voltariam ao
status matrimonial de Teuderico II, cujos filhos não haviam nascido de relações
legítimas. A autora aponta que a reação de Brunequilda se explicaria menos pela relação
com algum tipo de orgulho ferido ou sentimento semelhante, e mais com o possível
temor dela de que o direito das crianças de suceder o pai no trono, mantendo a linhagem
da qual ela fazia parte no poder, fosse contestado – como de fato veio a ser – e, pior, que
com isso Burgúndia e Austrásia passassem às mãos de Clotário II, filho da sua rival
Fredegunda – o que também acabou acontecendo.
A estudiosa aponta para as “coincidências” entre Brunequilda e a Jezebel da
Bíblia: estrangeiras, filhas de reis, lançam falsas acusações contra inimigos pessoais,
que são condenados à morte por apedrejamento, e têm mortes violentas. Em nossa
interpretação, tais “coincidências” poderiam indicar algo mais: que toda a narrativa de
Sisebuto, ou ao menos a parte dela referente à Brunequilda, foi construída de modo a
produzir essa associação, de forma relativamente independente dos acontecimentos que
de fato se deram na Gália franca.
Ao longo dos anos 90, José Martin nos ofereceu contribuições relevantes ao
estudo formal da Vita Desiderii, concernentes à sua correspondência aos parâmetros
temáticos e formais do chamado “gênero hagiográfico” – como a revelada em função da
28
NELSON, Janet L. Queens as Jezebels: Brunhild and Balthild in Merovingian History. In: ___. Politics
and Ritual in Early Medieval Europe. London: Hambledon, 1986. p. 1-48.
27
omissão de dados cronológicos e geográficos exatos, com a finalidade de pôr em relevo
o dados propriamente moralizantes na narrativa,29 bem como apontando para os
paralelismos e eventuais divergências existentes entre a Vita Desiderii e textos
hagiográficos merovíngios elaborados posteriormente, também dedicados à trajetória do
bispo de Vienne e, principalmente, à enumeração de seus milagres póstumos.30
Nestes trabalhos, o autor analisa não apenas a influência que a narrativa escrita
pelo monarca visigodo teve em terreno merovíngio e na propagação do culto ao santo
em questão, como abre caminho para a problematização das diversas alterações e o
reposicionamento de eventos que podem ser encontrados ao comparar-se o primeiro
texto aos demais. Embora o autor opte por concordar com Krusch e referir-se às
alterações encontradas no texto merovíngio Passio Sancti Desiderii, produzido por volta
de 617, como tentativa deliberada de seu autor anônimo de ocultar a reprodução do
texto de Sisebuto,31 nós podemos nos interrogar quanto à relação entre as diferentes
formas de organizar os eventos e milagres da vida/morte de Desidério e as diferentes
finalidades às quais os dois textos se destinavam, apesar de voltados a um mesmo
objeto.
Outro importante dado apresentado por Martín relaciona-se à identidade de um
personagem da Vita Desiderii que, a despeito da sua importância no curso da narrativa
de Sisebuto, não tem nome, sendo apresentado pelo rei/hagiógrafo apenas como
pestiferae mentis hominem.32 O filólogo fornece várias indicações que o permitiram
demonstrar que o personagem em questão, assassinado por uma turba em determinado
ponto da narrativa, é fictício, mas inspirado em dois personagens reais, a saber, o
aristocrata Protadius – que Fredegar apresentaria em sua crônica como um amante de
Brunequilda – e o bispo Aridius de Lyon – também segundo Fredegar, um inimigo
político de Desidério e principal responsável pela condenação do prelado de Vienne ao
exílio, e que ainda se encontrava vivo em 613. Martín aponta para a grande
probabilidade de o personagem anônimo da Vita Desiderii ter sido construído a partir de
29
MARTIN, José Carlos. Verdad histórica y verdad hagiográfica em la Vita Desiderii de Sisebuto. Habis,
29, p. 291-301, 1998; e MARTIN, José Carlos. Caracterizacion de personajes y tópicos del género
hagiográfico en la Vita Desiderii de Sisebuto. Helmantica, 48, v. 145-146, p. 111-133, 1997.
30
MARTIN, José Carlos. Una posible datación de la Passio Sancti Desiderii BHL 2149. Evphrosyne,
23, p. 439-456, 1995.
31
MARTIN, José Carlos. Un ejemplo de influencia de la Vita Desiderii de Sisebuto en la hagiografía
merovingia. Minerva, 9, p. 165-185, 1995
32
MARTIN, José Carlos. Qvendam pestiferae mentis hominem, un personaje sin nombre de la Vita
Desiderii. In: PEREZ GONZALEZ, Maurilio (org). Actas del I Congreso Nacional de Latin Medieval.
Leon: Universidad de Leon, 1993, p. 307-313.
28
uma mescla entre eventos selecionados das biografias de Protadius e Aridius. Teria sido
esse o modo encontrado por Sisebuto para ater-se minimamente aos fatos e garantir aos
leitores e ouvintes de sua hagiografia, para fins de exemplificação, que todos os
perseguidores do santo foram devidamente punidos pela justiça divina.
Santiago Castellanos endossa as conclusões de Jacques Fontaine e Janet Nelson
em dois trabalhos publicados no ano de 2004,33 e apresenta um desenvolvimento das
linhas de análise propostas pelo francês, destacando não apenas a relação do texto com
as disputas dinásticas do reino franco - nas quais a rainha Brunequilda, demonizada por
Sisebuto, desempenhou um papel mais que fundamental - , como também a sua
articulação com a teorização política em construção no reino visigodo, evocando aqui a
supracitada relação entre o monarca e Isidoro de Sevilha.
No primeiro dos textos, o artigo “Obispos y santos. La Construcción de la
Historia Cósmica en la Hispania Visigoda”, Santiago Castellanos se propõe a analisar a
forma como, na Hispania visigoda, a produção hagiográfica e os discursos referentes
aos santos em geral se relacionavam com a cosmologia providencialista que
caracterizava a produção intelectual eclesiástica no período.
A aliança com a hierarquia episcopal era fundamental para a monarquia visigoda
em processo de consolidação, diante de um quadro no qual o poder político se
encontrava progressivamente pulverizado entre as diversas aristocracias que
controlavam as províncias da Hispania. O apoio, formalizado por meio de um discurso
centrado na idéia de unidade e consenso, converteu o episcopado em sustentáculo social
e ideológico da monarquia. Os líderes religiosos locais - designados pelo autor como
hombres santos -, nesse contexto, ganham uma função bastante importante, que seria a
de servir como elo entre esse projeto ideológico unificador e as suas respectivas
comunidades. Nos textos hagiográficos, pode-se perceber uma espécie de simbiose entre
a noção de santidade (santitas) e nobreza (nobilitas). Textos como a Vita Desiderii
constroem-se a partir de personagens-tipo. Segundo Castellanos, os tipos positivos
funcionam como um eixo que permite que os leitores/ouvintes, por meio de um
processo de auto-identificação, sejam capazes de estabelecer ligações entre o passado
apresentado na hagiografia e o status quo presente, representado na figura do bispo.
33
Nos referimos aqui a CASTELLANOS, Santiago. Obispos y santos. La Construcción de la Historia
Cósmica en la Hispania Visigoda. In: AURELL, Martín; GARCÍA DE LA BORBOLLA, Angeles. La
imagen del obispo hispano en la Edad Media. Pamplona: EUNSA, 2004, p. 15-36; e CASTELLANOS,
Santiago. La hagiografia en la articulación política del Regnum. In: _______. Hagiografia visigoda.
Domínio Social y proyección cultural. Logroño: Fundacion San Millan de la Cogolla, 2004, p. 163-302.
29
Em relação à Vita Desiderii, o autor aponta que Sisebuto usa de uma estratégia
retórica comum nos textos hagiográficos, que é a ocultação de lugares e datas concretas
dos acontecimentos – o que certamente facilitava a identificação dos leitores com a vida
do santo e contribuía para certa universalização do discurso. No contexto merovíngio,
ocorreu uma instrumentalização política do culto ao santo, na medida em que o culto a
Desidério foi fomentado por Clotário II. A valorização do martírio do santo servia como
uma forma de damnatio memoriae de Brunequilda, que também interessava à
aristocracia visigoda, pelas razões já enunciadas por Fontaine.
No que se refere ao contexto propriamente visigodo, Castellanos observa que a
caracterização da rainha e de seu neto na hagiografia - os dois são claramente descritos
como exemplos de tirania e de má realeza - era muito conveniente para a ratificação dos
valores e modelos por meio dos quais a monarquia e o episcopado visigodos buscavam,
nesse momento, legitimar a posição da realeza, valores os quais viriam a ser
apresentados no IV Concílio de Toledo em sua forma plena.34 Assim, a caracterização
da má realeza que se apresenta na Vita Desiderii foi, também, uma forma de reforçar a
associação do próprio Sisebuto com o modelo contrário.
Nesse sentido, Santiago Castellanos conclui que os milagres do bispo/santo
Desidério e os feitos dos reis na Vita Desiderii se convertem em eixos de interpretação
do passado a partir de uma ótica providencialista.
Esta questão também é discutida no livro publicado pelo autor no mesmo ano,
“Hagiografia visigoda. Domínio Social y proyección cultural”. No que concerne à Vita
Desiderii especificamente, a principal contribuição do autor aqui é a minuciosa análise
do entorno político-aristocrático de um dos principais personagens da narrativa: a rainha
Brunequilda. Ele aponta para o fato de ela se tratar de uma rainha estrangeira e
excessivamente influente, o que incomodava amplos segmentos da aristocracia
austrásica, os quais eram apoiados muitas vezes por membros do alto clero. O caso da
execução do bispo Desidério de Vienne não teria sido o primeiro, tampouco o único. A
rainha, entretanto, manteve diálogo próximo com o bispo de Roma da época, Gregório
34
Aqui nos referimos especificamente ao cânone 75 das atas desse concílio, que contém uma longa
admoestação à população para que esta não se coloque contra a autoridade do monarca. Cf. IV Concílio
de Toledo (633). In: VIVES, José (org.). Concílios Visigóticos y Hispano-Romanos. Madrid: CSIC.
Instituto Enrique Florez, 1963.
30
Magno, e o retrato dela desenhado por Gregório de Tours em suas cartas é mais afável
que o de Sisebuto.35
Castellanos recompõe o contexto de institucionalização da soberania de Clotário
II sobre o conjunto da Gália merovíngia. Aqui ele aponta que, embora a hegemonia de
Clotário estivesse definitivamente estabelecida no plano militar, a existência de
registros concernentes a rebeliões contra a sua autoridade indica que pareceu necessário
a esse monarca garantir um referendo moral à sua vitória sobre a facção liderada por
Brunequilda. E é aí que entra em cena o discurso hagiográfico, que contribui com o
projeto de Clotário por meio da damnatio memoriae da rainha. Trata-se do caso da Vita
Desiderii de Sisebuto, que Castellanos entende como um texto por meio do qual este
monarca indica o seu próprio posicionamento diante da reorganização das forças
políticas no reino franco, provocada pela recente e definitiva vitória de Clotário II. Ao
mesmo tempo, ao narrar a derrocada de Brunequilda e de seu neto Teodorico na
Burgúndia em função do martírio do bispo Desidério, a Vita Desiderii contribuía para
transmitir a idéia de que as relações entre eles e a Igreja eram conflituosas, dado que o
apoio de parte do episcopado aos dois poderia desmentir e fragilizar o apoio buscado
por Clotário junto às autoridades eclesiásticas.
No que se refere à relação entre a Vita Desiderii e as questões políticas internas
ao reino visigodo, Castellanos também faz referência ao paralelismo existente entre este
texto e o ideal de realeza das Sententiae de Isidoro de Sevilha.36 Além disso, ao
aproximar-se da dinastia franca vitoriosa, Sisebuto provavelmente buscava reduzir as
potenciais dificuldades em controlar a província Narbonense, com a qual a monarquia
toledana ainda teria muitos problemas ao longo do século VII, como se verificaria no
caso da ascensão do grupo de Sisenando ao poder, na década de 630.
Isabel Velazquez, em obra publicada em 2005,37 apresenta uma grande síntese
dos estudos relacionados à hagiografia de Sisebuto, com ênfase nos seus aspectos
35
Deve-se considerar aqui que Gregório de Tours, nos seus Decem Libri Historiarum, tende a posicionarse de forma favorável a Sigeberto da Austrásia, marido de Brunequilda, e Gontrão, da Burgúndia, em
detrimento de Chilperico da Nêustria, pai de Clotário II, e Cariberto da Aquitânia, os quatro netos de
Clóvis, irmãos que ao longo da segunda metade do século VI travavam uma intensa guerra uns contra os
outros em prol da expansão ou da defesa de seus próprios domínios. Cf. SILVA, Marcelo Cândido da. op.
cit. p. 232-236. Michel Rouche também menciona a política pró-romana levada a cabo pela rainha
enquanto governava a Burgúndia junto ao seu neto Teodorico. ROUCHE, Michel. Brunehaut, romaine ou
wisigothe? Antiguidad y Cristianismo, Murcia. n. 03, p. 103-115, 1986. p. 104, 107, 109.
36
Mas sem entrar em detalhes, já que nesta obra o autor parece optar por uma ênfase nas questões
históricas externas aos textos hagiográficos em si. Esta opção do autor também é constatada por Isabel
Velazquez. Ver VELAZQUEZ, Isabel. op. cit. p. 154.
37
VELAZQUEZ, Isabel. Hagiografia y culto a los santos... op. cit, p. 163-177.
31
propriamente literários. Comentando o trabalho de autores como José Martín, Carmen
Cordoñer, Jacques Fontaine e Santiago Castellanos, Velazquez concorda com os dois
últimos com relação à presença de uma clara intencionalidade política permeando o
texto da hagiografia, fato evidenciado pelo destaque dado por Sisebuto aos crimes e às
mortes de Brunequilda – princesa visigoda que se torna uma rainha franca em meados
do século VI e que teve relações problemáticas com reis e aristocratas dos dois reinos –
e dos demais inimigos do santo, dentre outros elementos. A autora discorda de Carmen
Cordoñer no ponto em que esta afirma a existência, na Vita Desiderii, de uma
“confusão” entre dois gêneros literários – no caso, o histórico e o hagiográfico, e
contesta, portanto, a possibilidade de uma dicotomia rigorosa entre discurso
hagiográfico e discurso político-ideológico.
Velazquez também propõe uma resposta à questão sobre o porquê da escolha do
gênero hagiográfico para narrar a derrocada de Brunequilda. Aqui, a autora evoca a
inserção da produção literária de Sisebuto no contexto do chamado “renascimento
cultural isidoriano”, bem como os paralelos existentes entre o discurso sobre
Brunequilda e Teodorico que se apresenta na Vita Desiderii e a concepção do papel da
realeza que Isidoro de Sevilha desenvolve principalmente nas Sentenças. 38 Logo, a vida
e o martírio do bispo Desidério de Vienne atenderiam a vários interesses políticos:
referendar a execução de Brunequilda por Clotário II, denegrindo a imagem de uma
forte inimiga do regnum visigodo, e dar uma resposta literária aos pressupostos
isidorianos, por meio de uma exemplificação prática da teoria do bispo hispalense sobre
o bom governo dos reis. Daí, uma obra hagiográfica pode ter parecido mais adequada
que uma crônica comum para permitir que eventos políticos – como os ocorridos na
Gália franca de princípios do século VII – fossem revestidos de uma justificativa
moralizadora.39
Tendo em vista os aspectos apresentados, podemos concluir, por fim, que desde
o marco representado pelo artigo publicado por Jacques Fontaine em 1980 e pelos
comentários de Janet Nelson em 1986, percebe-se uma intensificação das discussões em
torno da Vita Desiderii.
Apesar disso, até o ponto em que pudemos apurar, percebemos que a hagiografia
de Sisebuto ainda é um tema relativamente marginal dentre os estudos sobre o reino
visigodo, talvez em função da atipicidade comumente assinalada pelos autores que
38
39
Tal como ressaltado por Jacques Fontaine. Vide FONTAINE, J. op. cit. 121.
Idem, p. 173-176.
32
sobre ela se debruçam, já que foi produzida por um rei ao invés de um bispo como era
mais comum. Some-se isso a tendência de certa parcela da historiografia em buscar nos
documentos escritos apenas dados a respeito da realidade que os textos se propõem a
descrever, ao invés de utilizá-los para problematizar também o seu contexto de
elaboração.40 Entretanto, trabalhos como os de José Carlos Martín, Santiago
Castellanos, e Isabel Velazquez têm contestado a existência de um suposto isolamento
histórico entre os reinos franco e visigodo, ressaltando a grande interdependência entre
as dinâmicas políticas de um e de outro, fenômeno do qual a Vita Desiderii é um dos
principais exemplos, e abrem espaço para uma ampliação cada vez maior das
abordagens sobre a estreita relação entre a produção hagiográfica e projetos políticoideológicos vigentes naquele período.
3. Considerações sobre a Historia Wambae
Há que se destacar na historiografia concernente ao reino visigodo uma
tendência de fusão – ou confusão – entre a discussão sobre os personagens e
acontecimentos históricos aos quais a Historia Wambae se refere e as questões relativas
à construção da narrativa e ao contexto no qual ela se insere. Nesta seção, destacamos
contribuições à segunda das problemáticas citadas. Embora a reflexão sobre a atuação
de Wamba e Paulo, bem como os conflitos entre reis e aristocracia visigodos na segunda
metade do século VII, não sejam de forma alguma desprovidos de importância em nossa
reflexão, consideramos necessária a distinção das análises da Historia Wambae voltadas
à obtenção de dados sobre pessoas, fenômenos, lugares e acontecimentos nela
mencionados, em relação a análises como a nossa, isto é, estudos objetivando
problematizar lugares-comuns,
idéias,
conceitos,
ideologias
e discursos
que
perpassaram a produção da obra de Julian de Toledo e interferiram, sob diferentes
aspectos, na sua construção.
Temos um artigo de Suzanne Teillet, publicado em 1986, intitulado "L'Historia
Wambae est-elle une ouvre de circunstance?".41 Autora de uma obra clássica, destinada
a defender a existência de uma espécie de "projeto de nacionalidade" nos textos escritos
40
Um exemplo deste tipo de leitura podemos encontrar na obra de Luis Garcia Moreno, quando este, ao
listar documentos hagiográficos que poderiam fornecer informações a um estudioso sobre o reino
visigodo, sequer menciona a Vita Desiderii, possivelmente apenas porque os acontecimentos que ela narra
se passam fora da Península Ibérica. Cf. GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda.
Barcelona: Crítica, 1989. p. 12.
41
TEILLET, S. L’Historia Wambae est-elle une ouvre de circunstance?. Antiguedad y Cristianismo,
Murcia, V. III, p. 415-424, 1986.
33
no reino visigodo de Toledo do século VII, Teillet, neste artigo, analisa os elementos
presentes na Historia Wambae que denotam a influência da linguagem dos antigos
panegíricos latinos na redação da obra. No entendimento da autora, Julian opta por
escrever uma historia ao invés de um panegírico assim denominado em virtude de sua
intenção de desvincular a imagem dos reis visigodos da dos imperadores romanos pagãos - para associá-los diretamente aos reis de Israel.
Um aspecto digno de nota são as semelhanças apontadas pela autora entre o
texto da Historia e a narrativa bíblica que descreve a unção e os feitos de guerra do rei
Saul de Israel, específicamente. Teillet parte do pressuposto de que a Historia Wambae
foi escrita durante o reinado de Wamba e por encomenda do monarca - daí a grande
aproximação que ela estabelece entre o texto de Julian e os panegíricos, discursos que
eram habitualmente proferidos na presença dos imperadores a quem eram dedicados.42
Tal leitura também conduz a autora à conclusão de que a ligação estabelecida pelo bispo
toledano entre Wamba e Saul explicaria a participação atribuída ao prelado nos eventos
que culminaram no destronamento de Wamba e na ascensão de Ervigio ao trono
visigodo, ao invés do contrário. Isto é, sendo a Historia Wambae um texto de redação
posterior ao reinado de Wamba e aos eventos que narra, a explicação mais plausível
para a associação poderia ser a de uma tentativa de Julian de apresentar Wamba como
um novo Saul, rei o qual, segundo o relato bíblico, não só foi o primeiro ungido, como
também, e após um começo de reinado marcado por vitórias militares expressivas,
terminou abandonado por Deus em virtude de sua desobediência às ordens divinas.43
Em livro publicado dois anos antes, Suzanne Teillet já havia indicado que a
historia nessa narrativa assume um duplo sentido: o do evento histórico propriamente
dito, mas também o de narrativa edificante, ou exemplum, voltado à ilustração de uma
verdade doutrinal, o que distinguiria sua natureza daquela de textos historiográficos
escritos na Península Ibérica visigótica anteriormente, como os elaborados por Isidoro
Sevilha.44 A autora aponta que, se cremos na imagem descrita por Julian de Toledo,
42
Vale lembrar que Julian foi alçado ao cargo de bispo de Toledo em 680, mesmo ano que Wamba foi
deposto.
43
Outro autor que registra a aproximação estabelecida por Julian entre os eventos em torno à deflagração
e repressão da rebelião de Paulo e as narrativas bíblicas é Eustáquio Sanchez Salor, em sua análise que
aponta para a presença de um forte pensamento providencialista tanto na Historia Wambae como em
outros relatos cronísticos produzidos no reino visigodo. Cf. SÁNCHEZ SALOR, Eustáquio. El
providencialismo en la historiografía cristiano-visigótica de España. Anuario de Estudios Filológicos,
Extremadura. v. 05, p. 179-192, 1982. p. 185.
44
TEILLET, Suzanne. Des Goths a la nation gothique: les origines de l’idée de nation en Occident du
Ve au VIIe siècle. Paris: Les Belles Lettres, 1984. p. 586, 602-603.
34
Wamba atuou em seu reinado de modo a imitar os reis do Antigo Testamento,45 o que
indicaria a possibilidade de o autor estar apresentando os fatos menos em função do que
foram e mais como o que ele considera que deveriam ter sido, isto é, que o bispo
toledano aproximasse Wamba dos reis de Israel não porque o primeiro tivesse
efetivamente se inspirado neles durante o seu reinado, mas porque o relato em si visava,
dentre outras coisas, apresentar um modelo de monarca a ser seguido.
Isabel Velazquez Soriano, partindo da leitura da própria Teillet, escreve em 1989
um pequeno trabalho tratando de maneira mais específica de aspectos relativos à
rebelião de Paulo e à contraposição entre a imagem do rebelde e a de Wamba.46
Velazquez entende que a rebelião de Paulo é sintomática de um processo de
fragmentação territorial do reino visigodo, em que grupos nobiliárquicos fortalecem-se
progressivamente em detrimento do poder central. A autora também ressalta o caráter
localizado da rebelião, que foi apoiada pela nobreza vinculada a regiões bem
determinadas; a expressão que Paulo usa em carta para referir-se a si próprio, rex
orientalis, pode ser compreendida como um indício de que não tinha pretensões no
sentido de concorrer com Wamba pelo governo de todo o reino, ao associar seu título ao
domínio de apenas uma parte dele.
Já nos anos 90, Gregório Garcia Herrero publica dois trabalhos bastante densos,
dedicados à análise do léxico relacionado às noções de "realeza" e "reino" empregado
por Julian de Toledo no conjunto de sua obra literária. Apresentaremos aqui uma breve
síntese de suas contribuições à leitura da Historia Wambae, especificamente.
No primeiro estudo, publicado em 1991,47 e dedicado à temática da realeza,
Garcia Herrero reafirma o entendimento de S. Teillet sobre a parcial substituição do
modelo de monarca imperial-bizantino pelo vetero-testamentário na obra de Julian. Na
leitura deste estudioso, a unção descrita por Julian na Historia Wambae ratifica e ao
mesmo tempo dá novo desenvolvimento à idéia de inviolabilidade da autoridade régia,
previamente defendida por Isidoro de Sevilha. A unção coloca a legitimidade do
soberano em um nível acima daquele conferido pelas leis e pela eleição por seus pares
aristocratas, dotando-a de um caráter sagrado derivado da sua condição de ungido do
Senhor. Uma evidência da importância que o caráter sagrado da autoridade régia
adquire a partir dos escritos de Julian seria o fato de a Historia Wambae ser a primeira
45
Ibidem. p. 600-601.
VELAZQUEZ SORIANO, Isabel. Wamba y Paulo: dos personalidades enfrentadas y una rebelión.
Espacio, tiempo y forma. Serie II, Historia antigua, nº 2, p. 213-222, 1989.
47
GARCIA HERRERO, Gregório. Julian de Toledo y la realeza visigoda. op. cit.
46
35
fonte visigoda a designar o rei como princeps religiosus, denominação que passaria
então a ser comum inclusive nas atas conciliares.
Mais um dado apontado pelo autor, já em relação às diferenças entre a
representação da realeza ideal em Julian de Toledo e Isidoro de Sevilha, que escreve em
princípios do mesmo século VII, é que enquanto este daria maior valor a virtudes mais
"contemplativas" (sapientia, clementia, misericordia, gravitas), o primeiro, mais
fortemente influenciado pela representação dos reis no Antigo Testamento, daria um
grande destaque a virtudes mais "ativas" e guerreiras (celeritas, disciplina, vigor). Em
relação à caracterização tipológica do documento, Garcia Herrero se distancia da leitura
de Teillet, ao considerar que as influências panegiristas no texto ficam em segundo
plano, ao passo que a historia se põe a serviço do exemplum. O autor faz referência à
questão do maravilhoso na narrativa, apontando que seriam poucas, mas ressaltando, no
entanto, seu valor significativo, no sentido de reforçar a aura sacral que cercaria Wamba
e sua gente,48 além de servir para evidenciar a provável distância cronológica entre a
narrativa e os eventos aos quais se refere: para ele, a época de redação mais provável
para a Historia Wambae são os primeiros anos do reinado de Egica (687-702). Outra
das evidências que o autor destaca seria o discurso anti-franco presente na narrativa,
incompatível com um texto produzido durante o reinado de Wamba quando, de acordo
com a própria Historia, vigorava um acordo entre os dois reinos germânicos vizinhos.49
Em outro estudo, de 1995,50 o autor analisa as relações de sentido construídas
em torno da noção de regnum, expressão que segundo ele é encontrada na obra de
Julian, com significado semelhante ao de Imperium, tanto referida à autoridade do
monarca, quanto à extensão de seus domínios. Entre as considerações dignas de nota,
podemos citar a de que, se em obras como o Prognosticum Futuri Saeculi, o De
Comprobatione Sextae Aetatis ou o Antikeimenon, Julian de Toledo buscou sintetizar
uma espécie de "teoria da História" (suas causas, sentidos e fins), na Historia Wambae,
o que o prelado toledano tem em vista é a "realização concreta, viva e dinâmica" de uma
história em particular. A análise do uso de termos como gens, patria, e populus
evidenciaria, por sua vez, a percepção peculiar que Julian possuía a respeito da história
48
GARCIA HERRERO, Gregorio. Julian de Toledo y la realeza visigoda. Antigüedad y Cristianismo,
Murcia, n.08, p. 201-255, 1991. p. 202; 210.
49
GARCIA HERRERO, Gregorio. Sobre la autoria de la Insultatio y la fecha de composición de la
Historia Wambae de Julian de Toledo. Arqueologia, paleontologia y etnografia, Madrid, n.04, p. 187213, 1998. p.195, 201-203.
50
GARCIA HERRERO, Gregório. El reino visigodo en la concepción de Julian de Toledo. Antigüedad y
Cristianismo, Murcia, nº 12, p. 385-422, 1995.
36
dos godos: totalmente identificados com o populus christianus, os godos seriam os
sucessores naturais do populus iudaicus - e não tanto da romanidade pagã - na
preferência e favorecimento divinos.
Um traço que identificamos comumente na historiografia relacionada à Historia
Wambae é a existência de poucos estudos voltados ao estabelecimento de vínculos ou
relações entre elementos contidos nesta narrativa e questões que se apresentam em
outros textos além daqueles dos quais ela recebe uma influência mais direta. A
referência a textos anteriores se restringe à identificação de eventuais influências
sofridas pelo autor, sem a preocupação, por exemplo, com uma reflexão comparativa
mais simétrica, isto é, uma análise em que a Historia seja estudada junto a outro(s)
texto(s), e em que todos os documentos recebem a mesma ênfase. Tal análise permitiria,
em nossa perspectiva, ampliar as possibilidades de leitura e análise do documento.
A leitura da Historia Wambae mais comum entre os historiadores do período
também apresenta a característica que identificamos anteriormente em relação à Vita
Desiderii: sendo praticamente o único documento contemporâneo que apresenta um
relato dos acontecimentos envolvendo revolta de Paulo, ele é referência quase única
para os manuais e artigos acadêmicos voltados a descrição factual, sem maiores
preocupações com a questão das motivações ideológicas que levaram à produção do
texto, entendendo-o, portanto, como um mero registro de eventos tratados como
verídicos em sua quase totalidade.51 Os trabalhos supracitados, de Gregorio Garcia
Herrero e Suzanne Teillet, são relevantes em nossa percepção por, dentre outros
aspectos, valorizarem justamente a construção do discurso político-ideológico presente
nessa narrativa, preocupação que também norteia nossa pesquisa.
Em linhas gerais, a historiografia analisada neste capítulo nos fornece
contribuições relevantes tanto no que concerne às concepções em torno do exercício do
poder no político na Idade Média – com destaque para os seus primeiros séculos –
quanto sobre a construção da Vita Desiderii e da Historia Wambae. O que aqui se
propõe é uma reflexão que busque problematizar a relação entre esses dois documentos,
e as questões específicas que perpassam ambos, e as discussões voltadas à compreensão
das relações e concepções de poder no período medieval.
51
Podemos encontrar exemplos desse tipo de abordagem em MURPHY, Francis X. Julian of Toledo and
the Fall of Visigothic Kingdom in Spain. Speculum, Cambridge, v. 27, n. 1, p. 01-27, 1952.;
THOMPSON, E. A. Los godos en España. Madrid: Alianza, 1971. p. 295-299. e MIRANDA CALVO,
José. San Julian, cronista de guerra. Anales Toledanos, Toledo. v. 03, p. 159-170, 1971. p. 164-170.
37
CAPÍTULO 3: As relações de poder no reino visigodo do século VII e a
construção da Vita Desiderii e da Historia Wambae
1. As relações de poder no reino visigodo dos séculos VI e VII: aspectos das
associações e conflitos entre reis, aristocracia e episcopado ibérico
1.1. Aspectos do processo de institucionalização da monarquia visigoda toledana
Consideramos que os objetivos que o rei Sisebuto e o bispo Julian de Toledo
visavam atingir com a elaboração de suas obras, bem como a existência de um ambiente
que permitisse a adoção de estratégias dessa natureza, possuem estreita relação com a
teia de disputas e alianças políticas construída no reino visigodo a partir da segunda
metade do século VI.
Santiago Castellanos assume que a ascensão plena de Leovigildo ao trono, em
572, marca uma nova etapa do processo de transferência do eixo político do reino
visigodo da Gália para a Hispania iniciado em 507, ano da derrota dos visigodos para os
francos na Batalha de Vouillé, em que os primeiros são obrigados a abandonar a cidade
de Toulouse, que até então tinham como sua capital.1 À derrota, segue-se um período de
instabilidade e de tutela ostrogoda que se estende até a ascensão de Agila e, após este,
Atanagildo (552-565).2
Com a morte de Atanagildo, ascende ao trono Liuva (568-572), que divide o
governo com seu irmão Leovigildo, que se torna o único soberano após a sua morte.
Liuva é proclamado rei em Narbonne, cidade localizada na pequena porção da Gália que
os visigodos conseguiram manter sob seu domínio. O fato de o sucessor de Atanagildo
ter sido escolhido entre os aristocratas dessa região demonstra o peso que ela ainda
possuía na dinâmica política visigoda. Enquanto Liuva optava por permanecer na Gália,
coube a Leovigildo o governo dos territórios localizados na Península Ibérica.
Embora a historiografia tradicional tendesse a acentuar a conversão de Recaredo
(587-601) ao cristianismo niceno como um marco inicial da aliança entre os visigodos e
a elite hispano-romana,3 estudos atuais destacam que o monarca em questão foi um
continuador da política de seu pai, Leovigildo (572-586), em um grande número de
aspectos. Catherine Navarro Cordero considera que é Leovigildo o responsável pelo
rompimento, por parte da realeza visigoda, com o conceito germânico de monarquia, em
1
CASTELLANOS, Santiago. Los godos y la cruz: Recaredo y la unidad de Spania. Madrid: Alianza,
2007. p. 69-108.
2
VALVERDE CASTRO, M.ª R. Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía
visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 2000. p. 128-132.
3
Citemos como exemplo o trabalho de José Orlandis que tende ainda a pôr a política de Recaredo em
oposição a de Leovigildo. Cf.: ORLANDIS, José. Historia del Reino Visigodo Español. Madri: Rialp,
1968.; Idem. Sobre las relaciones entre la Iglesia Católica y el poder real visigodo. In: ___. Hispania y
Zaragoza en la Antigüedad tardía. Zaragoza, 1984, 37-50. p. 44-48.; e Idem. La doble conversión
religiosa de los pueblos germánicos (siglos IV a VIII). AHIg, Pamplona, n.09. p. 69-84, 2000.
que o rei era antes de tudo um chefe militar eleito entre seus pares por seu valor como
guerreiro e pertencimento a uma estirpe ilustre. Em outras palavras, o reinado deste
monarca marca o início a estruturação da monarquia visigoda toledana como
instituição.4
Um primeiro elemento que deve ser apresentado em relação ao reinado de
Leovigildo é a busca de reconhecimento por parte da sociedade hispana, por meio da
adoção de práticas imperiais romanas. Ela permitiria aos reis visigodos descolar de si, a
partir daí e em definitivo, o rótulo de “bárbaros”, garantindo o reconhecimento de sua
autoridade por parte da elite altamente romanizada da península.5 Seu irmão Liuva
fizera uso desse recurso ao associá-lo ao trono em 568. Tão logo o poder político foi
reunido em suas mãos, em 572, ele repetiu a prática entregando aos seus dois filhos,
Hermenegildo e Recaredo, a administração da Bética e da Narbonense/Septimania,
respectivamente.6
Essa não seria a única prática imperial que Leovigildo adotaria. Isidoro de
Sevilha narra que Leovigildo começou a aparecer diante da corte usando vestes
assemelhadas às roupagens imperiais,7 embora haja exagero na afirmação de Isidoro de
Sevilha de que ele foi o primeiro rei visigodo a fazê-lo.8 Mas, de fato, ele foi o primeiro
rei visigodo a cunhar moedas com a sua própria efígie, ao invés da do imperador
bizantino, além de ter fundado ao menos duas cidades. O passo seguinte foi a realização
de uma recopilação das leis visigodas, cujo fruto foi o chamado Codex revisus,
mimetizando obras de recopilação efetuadas por imperadores como Teodósio II e
Justiniano.9
O casamento com Gosvinta, viúva de seu antecessor, por ocasião de sua
ascensão ao trono, consistiu numa tentativa de atrair para si as antigas bases de apoio de
4
NAVARRO CORDERO, Catherine. El Giro Recarediano y sus implicaciones políticas: el catolicismo
como signo de identidad del Reino Visigodo de Toledo. Ilu. Revista de Ciencias de las Religiones,
Madrid, n.05. p. 97-118, 2000.
5
Ibidem. p. 101.
6
FRIGHETTO, Renan. Aspectos Teóricos e Prácticos da Legitimidade do Poder Régio na Hispania
Visigoda: o Exemplo da Adoptio. Cuadernos de Historia de España. Buenos Aires, v.79, 2005.
Disponível em: http://www.scielo.org.ar/. Acesso em: 08/09/2008.
7
ISIDORO DE SEVILLA. Historia de los godos, vândalos y suevos. Trad. Cristóbal Rodríguez Alonso.
León: Caja de Ahorros y Monte Piedad de León y El Archivo Histórico Diocesano de León, 1975. p. 259.
8
Pablo C. Díaz e M.ª R. Valverde indicam que o processo de adoção de práticas imperializantes pelos reis
visigodos teria iniciado-se ainda durante a ocupação na Gália, em fins do século V. Cf. DIAZ, Pablo C.
Rey y poder en la monarquía visigoda. Iberia, Logroño, n. 1, p. 175-195, 1998. p. 183.; VALVERDE
CASTRO. M.ª R. Ideología, simbolismo...op. cit. p. 69-113.
9
CASTELLANOS, Santiago. Los godos y la cruz…, op. cit.. p. 100-103.
40
Atanagildo entre a elite da região ao sul da Península Ibérica, e entre a aristocracia
visigoda hispana de uma forma geral.10
Além dos significativos sucessos militares que estenderam consideravelmente o
território sob domínio da monarquia, já centralizada na cidade de Toledo – incluindo
aqui a conquista do reino suevo, em 585 – partem de Leovigildo as primeiras iniciativas
efetivas no sentido de reduzir as fronteiras entre as elites goda e hispano-romana ou de
dar aval jurídico às interações que já ocorriam, como no caso dos casamentos mistos,11
embora a diferenciação tenha sido mantida no que se refere à possibilidade de acesso ao
poder político.12 O fisco foi outro meio de que o monarca lançou mão para conseguir o
apoio das aristocracias locais, e ampliar a presença da monarquia visigoda junto à
sociedade.13
A próxima questão que Leovigildo visaria solucionar era a da separação
religiosa que dividia as elites da Hispania: o principal elemento de diferenciação entre
godos e hispano-romanos residia no fato de aqueles serem adeptos do arianismo e estes
da ortodoxia nicena. Para Luis A. García Moreno, a abertura do episcopado ariano à
interferência da monarquia fez com que o rei considerasse conveniente uma unificação
religiosa da sociedade hispano-visigoda sob a égide do arianismo,14 nem que para tal
fossem necessárias mudanças no dogma ariano.15 Navarro Cordero defende, no entanto,
que Leovigildo não visava unir o reino sob o arianismo, e sim dar condições para que a
10
Ibidem. p. 92.
Leovigildo aboliu uma antiga disposição da legislação, promulgada por Alarico II, que mantinha
proibidos os casamentos entre romanos e germanos, como determinara um decreto romano da época dos
imperadores valentinianos. Mais do que abrir a possibilidade de união entre godos e hispano-romanos, a
decisão de Leovigildo converteu em lei o que se tornou uma regra na prática: já não eram tão grandes as
barreiras entre os dois grupos, e os casamentos mistos eram comuns. Cf.: VALVERDE, Maria R. El reino
visigodo de Toledo y los matrimonios mixtos entre godos y romanos. Gérion, Madrid, v.20, n.01. p. 511527, 2002.
12
NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 112. Tivemos oportunidade de observar que a Lex Visigothorum
também dá tratamento diferenciado aos dois grupos no que se refere à propriedade de terras. Cf.: SOUSA,
Adriana C. de; COSTA, Edilaine V. Leovigildo e a revisão do Código de Eurico. In: SEMANA DE
INTEGRAÇÃO ACADÊMICA DO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS, 1, 2006.
Atas... Rio de Janeiro: CFCH/UFRJ, 2007. (CD-Rom)
13
CASTELLANOS, S. The political nature of taxation in Visigothic Spain. Early Medieval Europe,
New York, v.12, n. 03. p. 201-228, 2003. p. 211-212.
14
Tal abertura, no entendimento do autor, era devida à falta de recursos da Igreja ariana, se comparada à
riqueza do episcopado niceno, o que a tornava mais dependente do favorecimento do poder político. Cf.:
GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Barcelona: Crítica, 1989. p. 126.
15
Leovigildo convoca um concílio de bispos arianos em 580, durante a rebelião de seu filho
Hermenegildo. Neste concílio, propõe-se uma forma mitigada do arianismo, que aceitava a divindade do
filho, mas negava a do Espírito Santo, como fizera o chamado “macedonianismo”, heresia condenada
pelo I Concílio de Constantinopla. Para facilitar a adoção desse novo dogma pelos cristãos ortodoxos, o
concílio determina que para o “rebatizado” bastaria a imposição de mãos do bispo e a citação do credo
ariano. Cf.: ORLANDIS, José. La doble conversion…, op. cit.. p. 81.
11
41
Igreja ariana fizesse frente ao poder e à influência do episcopado niceno, e se
mantivesse como elemento distintivo da fides gothica.16
Isidoro de Sevilha apresentou Leovigildo como um perseguidor de católicos.17
Mas essa questão teve uma natureza mais complexa do que os cronistas da época
quiseram fazer parecer. Em fins da década de 570, Hermenegildo, filho mais velho de
Leovigildo e recém-convertido ao cristianismo niceno por influência do bispo Leandro
de Sevilha, rebelou-se contra a autoridade paterna e, apoiado por parcela bastante
representativa da elite, incluindo a rica aristocracia da Bética, reivindicou o trono para
si, autorizando-se inclusive a cunhar moedas com a sua efígie. Sufocada a rebelião, em
584, Leovigildo, de acordo com os referidos autores, teria iniciado uma política de
perseguição ao clero niceísta. Castellanos, entretanto observa que as prisões e exílios
que o monarca empreendeu contra membros do episcopado provavelmente não tiveram
motivos religiosos. Bispos como João de Biclaro e Masona de Mérida teriam sido
perseguidos em função de seu envolvimento político com a rebelião de Hermenegildo.18
Tanto o caráter católico da rebelião de Hermenegildo, como as iniciativas de
Leovigildo contra a parcela do episcopado que o apoiou, acabaram ofuscadas pela
guinada política protagonizada por Recaredo, que com a morte do irmão, passa a ser o
único candidato à sucessão dinástica de Leovigildo, morto em 586. Apenas alguns
meses após subir ao trono, Recaredo se converte ao cristianismo niceno. Depois de um
período de sufocamento de revoltas e negociações com o restante da elite goda, o
monarca convoca o III Concílio de Toledo, em 589, que deveria reunir os principais
representantes da aristocracia visigoda e os bispos do reino, niceístas e arianos.
A conversão de Recaredo representa o reconhecimento do poder e da influência
institucional da Igreja e da hierarquia eclesiástica nicenas, em que os próprios visigodos
se faziam cada vez mais presentes. Nesse sentido, o III Concílio de Toledo teria na
16
NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 110.
“Denique Arianae perfidiae furore repletus, in catholicos persecutione commota, plurimos
episcoporum exsilio relegavit.” Cf.: ISIDORO DE SEVILLA. op. cit., 50.
18
CASTELLANOS, Santiago. La Hagiografia visigoda. Domínio Social y proyección cultural.
Logroño: Fundacion San Millan de la Cogolla, 2004.p. 187. Catherine Navarro Cordero, por outro lado,
afirma, em artigo publicado em 2000 – antes, portanto, do trabalho de Castellanos, que a perseguição se
dirigiu a visigodos convertidos à fé nicena. Ela também acredita, opostamente ao que viria a defender
aquele autor, que a rebelião de Hermenegildo foi supervalorizada pela historiografia do período apenas
por se tratar de uma guerra entre pai e filho, e sem ter tido qualquer implicação de maior alcance. Cf:
NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 108. Optamos pela tese de Castellanos porque consideramos que o
trabalho de Navarro Cordero, embora traga muitas contribuições relevantes em relação a outras questões,
neste caso em particular possui uma leitura mais restrita dos textos da época em relação ao supracitado
historiador.
17
42
verdade sancionado uma situação de fato: era crescente, desde antes de 589, o
movimento de conversão de visigodos à ortodoxia cristã.19
A importância do III Concílio no que se refere à institucionalização da
monarquia é que ela demonstra que Recaredo, em consonância com a política de seu
pai, buscava uma monarquia territorial, e não uma monarquia étnica. A idéia da
monarquia visigoda como a legítima herdeira do Império cristão não deixa de ser
evocada. João de Biclaro compara Recaredo a Constantino e Marciano, imperadores que
presidiram, respectivamente, Nicéia e Calcedônia.20
É Recaredo, portanto, que acaba transformado no emblema de uma nova
monarquia visigoda, protegida por Deus e apoiada pela Igreja. Isidoro de Sevilha afirma
que Recaredo reúne em si as qualidades ideais do príncipe cristão: pax, pietas e
justitia.21 A adoção do cristianismo niceno como religião oficial leva à cristianização
das relações e concepções de poder no reino visigodo. O rei é rex, rector ecclesiae – o
que não impediu facções aristocráticas dissidentes de se colocarem contra o monarca.
As revoltas que ocorrem após a ascensão de Recaredo ao trono, antes e depois da
conversão, têm uma característica em comum: representam a reação de bispos arianos
descontentes com a perda de espaço para o episcopado niceno, e de grupos
aristocráticos contrários à política centralizadora e ao fortalecimento do poder da
monarquia toledana.22
A sacralização da autoridade régia, e a conseqüente atribuição à monarquia do
papel de defensora da ortodoxia cristã, permite que o rei se apresente como
representante do conjunto da sociedade frente a opositores internos (facções da nobreza)
e também a adversários externos; desse modo, a heterodoxia religiosa se torna
definitivamente um rótulo político. Com o catolicismo substituindo a antiga fides
gothica como fator de coesão da população hispano-visigoda, heterodoxos religiosos –
categoria em que são incluídos pagãos, judeus e hereges – se tornam inimigos do poder
político: ao não aderir à fé oficial que define a autoridade régia, esses grupos seriam
considerados mais propensos a não reconhecê-lo.23 Renan Frighetto, por exemplo,
aponta para uma transformação no conceito de barbárie na Hispania visigoda, em que
19
NAVARRO CORDERO. Ibidem. p. 113-114.
DIAZ, Pablo C. op. cit.. p. 185-186.
21
Isidoro afirma na sua História dos Godos que Recaredo restaurou as propriedades dos alvos da
perseguição empreendida por seu pai, garantiu a paz do reino e das províncias além de, em dadas
ocasiões, ter isentado os súditos de tributos mesmo quando estes eram legítimos. ISIDORO DE
SEVILLA. op. cit. 55-56
22
NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 115-116.
23
Ibidem. p. 98-99; 118.
20
43
barbárie, ferocitas (oposta a ciuilitas), heresia, paganismo, traição e tirania passam a
estar estreitamente associados nas fontes do século VII.24
A importância das alianças políticas para a manutenção do trono no reino
visigodo é evidenciada pela deposição do filho de Recaredo, Liuva II (601-603).
Segundo Isidoro de Sevilha, o jovem rei era filho de uma mulher não-nobre,25 e,
portanto, carecia de bases político-dinásticas junto à aristocracia goda.
O golpe é liderado por Witerico (603-610) que, em 587, havia traído um
movimento liderado pelo bispo ariano Sunna, em Mérida, contra Recaredo.26
Provavelmente, ele ainda possuía ligações com grupos políticos adversários deste rei,27
e conseguiu finalmente ascender ao trono, diante da falta de apoio de que sofria Liuva
II. Isidoro o descreve como um grande guerreiro, mas que na vida cometeu muitos atos
ilícitos, e acabou perdendo o poder da mesma forma como o conquistou: pela
violência.28 Choques com a aristocracia e sua política centralizadora descontenta setores
que o haviam apoiado na obtenção do trono, e o monarca acaba assassinado.29
Gundemaro (610-612) o sucede e, possivelmente a fim de evitar os choques com
grupos aristocráticos locais que resultaram na morte de seu antecessor, publica um
decreto em que limita os poderes do soberano, proibindo-se de nomear bispos na
Cartaginense – província em que se localizava Toledo – evitando contrariar os
interesses da Igreja e do metropolitano.30 É no reinado de Gundemaro também que a
Burgúndia franca e o reino visigodo ficam à beira de uma guerra, em função de
episódios envolvendo a prisão de embaixadores e ocupação visigoda, em represália, de
terras que Recaredo havia cedido àquele reino.31 Tendo realizado algumas campanhas
24
FRIGHETTO, Renan. Infidelidade e barbárie na Hispania visigoda. Gérion, Madrid, v.20, n.01, p.
491-510, 2002. p. 509.
25
Nas palavras de Isidoro, Liuva II seria “ignobili quidem matre progenitus”. Cf.: ISIDORO DE
SEVILHA. Historia..., op. cit., 57.
26
NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 114.
27
Não há evidências, entretanto, de que este monarca empreendeu uma política pró-ariana. GARCIA
MORENO, L. A. op. cit.. p. 145.
28
“Vir quidem strenuus in armorum arte, sed tamen expers victoriae. [...]Hic in vita plurima illicita fecit,
in morte autem, quia gladio operatus fuerat, gladio periit.”. Cf.: ISIDORO DE SEVILHA. Historia…,
op. cit., 58.
29
GARCIA MORENO, L. A. Ibidem.
30
Antonino Gonzalez Blanco levanta a possibilidade de este decreto ser fruto de uma falsificação da
época do rei Ervígio, ou seja, da década de 680, em que efetivamente se verifica um aumento da
influência política da sede de Toledo, ocupada ao longo dessa década por ninguém menos que o bispo
Julian. Cf. GONZALEZ BLANCO, Antonino. El decreto de Gundemaro y la historia del siglo VII.
Antigüedad y cristianismo, Murcia. n. 03, p. 159-169, 1986. p. 162-166.
31
GARCIA MORENO, L. op.cit. p. 146-147.
44
militares contra os bascos e os bizantinos, morre em Toledo após dois anos de reinado,32
passando o trono a Sisebuto, cuja obra é objeto de nosso trabalho.
Entendemos que é em meio ao processo de institucionalização e sacralização do
poder régio anteriormente descrito, que podemos compreender a obra e a política do
monarca Sisebuto, de que trataremos no item a seguir.
1.2. Sisebuto e a teorização política de Isidoro de Sevilha (570-636)
Sisebuto ascende ao trono visigodo em 612, com a morte do rei Gundemaro, e
governa até a sua própria morte em 621. Seu reinado foi marcado por campanhas
militares e vários acordos políticos, inclusive junto ao reino franco e aos representantes
do Império Bizantino, que na ocasião ainda dominava uma pequena faixa territorial ao
sul da Península Ibérica. É tido pela historiografia como um dos mais eruditos reis
visigodos, tendo mantido um estreito contato político e intelectual com o bispo Isidoro
de Sevilha (570-636).33 Dentre outras iniciativas, a política de Sisebuto de combate ao
judaísmo é uma das mais contundentes da história do reino visigodo, mesmo levando-se
em conta a recorrência das ações persecutórias da parte de reis visigóticos contra a
comunidade judaica ibérica.34 O rei também escreveu cartas em que censura o mau
comportamento de bispos,35 além de ter enviado à corte lombarda, que prosseguia
ariana, uma longa admoestação contra a heresia, em que as idéias de humanitas e
32
ISIDORO...op.cit.. p. 59.
José Orlandis discorre sobre o monarca: “Sisebuto – escribió Isidoro – ‘fue brillante em sua palabra,
docto en sus pensamientos y bastante instruído en conocimientos literários’. Se trata – como puede
advertirse – de rasgos típicos de un hombre culto, que, para la época que le toco vivir, parecen más
propios de un eclesiástico cultivado que de un laico, que fue además el más ilustrado de los reyes
visigodos.” Isidoro de Sevilha teria dirigido a Sisebuto, dentre outros textos, a primeira redação de sua
principal obra, as Etimologias. Estes e outros aspectos da biografia e da trajetória política de Sisebuto
podem ser encontrados em ORLANDIS, José. Sisebuto, um rey clemente, sensible y erudito. In: ______.
Semblanzas visigodas. Madri: Rialp, 1992, pp. 105-127. O grau de refinamento intelectual do monarca,
ainda que relativamente incomum, não chegava a ser inédito tendo em vista que, desde o início do
processo de aproximação entre romanos e germanos, registram-se exemplos de “bárbaros”
intelectualizados, bastante versados principalmente em matéria religiosa. Cf.: MATHISEN, Ralph W. Les
barbares intelectuels dans l’Antiquité Tardive. Dialogues d’histoire ancienne, Besançon. v. 23, n. 02, p.
139-148, 1997. p. 144-146.
34
Catherine Cordero Navarro aponta para o alto grau de violência da política de Sisebuto para com os
judeus, em comparação com os demais reis visigodos, cf. CORDERO NAVARRO, Catherine. El
problema judio como visión del “otro” en el reino visigodo de Toledo. Revisiones historiográficas. En la
España Medieval. v.23. p. 09-40, 2000. p.20. Para uma discussão sobre as possíveis motivações do
monarca, cf. BACHRACH, Bernard S. A Reassessment of Visigothic Jewish Policy, 589-711. The
American Historical Review, Bloomington, v.78, n.01, p. 11-34, 1973. p. 16-19.
35
SISEBUTO. Epístola VI. apud JIMENEZ SANCHEZ, J. A. Un testimonio tardío de ludi theatrales em
Hispania. Gérion, Madrid, v.21, n.1. p. 371-377, 2003. p. 372.
33
45
christianitas praticamente se fundem.36 Embora este não tenha convocado nenhum
concílio de caráter geral, seu governo e sua obra epistolar e literária evidenciam a
preocupação, por um lado, com o apoio e o reconhecimento da elite episcopal, e, por
outro, em colocar a si mesmo como o defensor da fé cristã e da disciplina eclesiástica,
segundo o ideal de monarca encarnado em Recaredo a partir do III Concílio de Toledo,
ou para além dele.37
Deve-se destacar também neste contexto a atuação do bispo Isidoro de Sevilha
(570-636), e o papel político de sua produção intelectual, que conhece seu auge durante
o reinado de Sisebuto e na década seguinte. Hen aponta que apesar de pouco numerosas,
seriam claras as evidências de mútua colaboração intelectual entre Sisebuto e Isidoro de
Sevilha, a ponto de o autor designar a relação entre o rei e o bispo como uma espécie de
“mecenato”.38
Rachel Stocking, por outro lado, tende a destacar as divergências entre o rei e o
bispo de Sevilha, principalmente no que concerne ao tratamento da comunidade judaica
– o texto das atas do IV Concílio de Toledo, realizado 12 anos após a morte de Sisebuto
e presidido pelo hispalense, demonstra contrariedade em relação a decisão do monarca
de converter os judeus do reino visigodo à força. Stocking atribui a decisão de Sisebuto
a uma formação intelectual incompleta,39 o que duvidamos que seja o caso. Bachrach
aponta para as tentativas de Sisebuto de enfraquecer economicamente a comunidade
judaica, e que a falha delas teria impulsionado o monarca em direção à opção pelas
conversões forçadas e pelos exílios.40 Tais ações pouco se distinguem daquelas que, em
décadas posteriores, os sucessores do monarca empregaram contra facções
nobiliárquicas rivais, o que nos leva a crer que o conflito de Sisebuto com os judeus
fosse possivelmente da mesma natureza.
P. Cazier indica que nos textos contemporâneos ao reinado de Sisebuto, Isidoro
não só não se opõe como até se felicita com a política de Sisebuto, considerando que ele
36
FRIGHETTO, Renan. Da antigüidade clássica à idade média: a idéia da Humanitas na antigüidade
tardia ocidental. Temas medievales. Buenos Aires, v.12, n. 1, jan/dez, 2004. Disponível em:
http://www.scielo.org.ar/. Acesso em: 08/09/2008.
37
Rachel Stocking aponta para o dado de que Sisebuto teria ido além de Recaredo no que concerne a
extensão de sua atuação político-religiosa, a ponto de caracterizá-lo como sendo de uma “piedade
extravagante”, no que concorda com ela Yitzhak Hen. Cf. STOCKING, Rachel L. Bishops, Councils and
Consensus in the Visigothic Kingdom, 589-633. Ann Arbor: Univ. of Michigan Press, 2000. p. 122,
127-128. e HEN, Yitzhak. Roman barbarians: the Royal court and the culture in the Early Medieval
West. New York: Palgrave Macmillan, 2007. p. 137.
38
HEN, Yitzhak. Ibidem. p. 150-151.
39
STOCKING, Rachel. op.cit., p. 135.
40
BACHRACH, Bernard S. op.cit. p. 19.
46
teria lidado com os judeus do mesmo modo como Recaredo lidara com os arianos,
fazendo ressalvas apenas após a morte do monarca.41 Em outras palavras, pode-se
considerar que, se houveram divergências entre os dois no que tange à ação política, ela
não interferiu nas trocas intelectuais que o rei e o bispo mantiveram.
No entendimento de J. Fontaine,42 o bispo Isidoro de Sevilha foi um autor que
buscou incessantemente conciliar em suas obras o resgate da tradição intelectual
clássica com a ação pastoral exigida por seu papel como eminente membro do
episcopado. Seus escritos estariam voltados, primeiramente, a um projeto de reforma da
Igreja hispana, projeto que tinha a sua dinâmica pautada por uma “busca das origens”, a
qual viria a orientar também a construção de seu ideário político. Sua teologia moral e
espiritual, exposta sobretudo nos livros II e III das Sententiae, teria sido bastante
influenciada pela leitura de textos escritos pelo papa Gregório Magno (540-604), os
quais haviam sido dedicados a Leandro, bispo de Sevilha e irmão mais velho de Isidoro.
Assim, Isidoro buscaria estabelecer, por meio de seus textos, uma mediação entre os
saberes antigos e as demandas culturais, políticas e intelectuais de uma sociedade latina
em transformação.43
Seu ideário político, por sua vez, esteve bastante marcado pela filiação para com
o pensamento clássico construído sobre os valores caros a civitas Romana. Nutrido por
esse pensamento, Isidoro esboçou algo que se poderia chamar de um “projeto global de
sociedade” para a Hispania romano-visigoda.44 Para Isidoro, o fundamento do poder
régio é a retidão, baseada nas virtudes cristãs, tal com se entende a partir da citação do
provérbio de Horácio, nas Etimologias isidorianas: “rex eris si recte facias, si non facias
non eris”45. Na visão de Fontaine, o livro III das Sententiae deve ser lido como um
“programa de responsabilização” para todas as hierarquias da sociedade, tanto as
clericais quanto as leigas.46 Desde os seus primeiros escritos até o IV Concílio de
Toledo, presidido pelo hispalense em 633 - três anos antes de sua morte - Isidoro
demonstra uma grande preocupação em assegurar, ideologicamente, o equilíbrio de
poderes entre Igreja e reino, equilíbrio em que o rei teria a função de fazer cumprir por
41
CAZIER, Pierre. Isidore de Séville et la naissance de l’Espagne Catholique. Paris: Bouchesne, 1994.
p.52
42
FONTAINE, Jacques. Isidoro de Sevilla, padre de la cultura europea. In: CANDAU, J. M., GASCÓ, F.,
RAMÍREZ DE VERGER, A. (eds.). La Conversión de Roma. Cristianismo y Paganismo. Madrid:
Clásicas, 1990, p. 259-286.
43
Ibidem, p. 260-267.
44
Ibidem, p. 271-272.
45
“És rei se age retamente, se não age, não o é.”
46
Ibidem, p. 274.
47
força os mandamentos que os sacerdotes não eram capazes de defender por meio de
palavras.
Abílio Barbero de Aguilera,47 tratando do conceito isidoriano de tirania, aponta
que Isidoro de Sevilha, filiando-se aos posicionamentos de Cícero e Agostinho,
apresenta a justiça e a piedade como as principais virtudes do bom rei, por oposição ao
tirano que oprime o seu povo.48 O autor discorda de estudiosos, como por exemplo José
Orlandis, que defendem que a acepção de Isidoro possui da tirania se restringe a reis que
ascendem ao trono por vias ilegítimas, sem que seja incorporado ao conceito qualquer
tipo de juízo de valor negativo em relação à atuação do governante.
Barbero de Aguilera destaca ainda que Isidoro, bem como outros bispos no IV
Concílio de Toledo, atua não só como representante da alta hierarquia eclesiástica, mas
também como representante da elite hispano-goda e que, portanto, não haveria uma
verdadeira dualidade de interesses entre episcopado e aristocracia.49 Desse modo,
entende-se que o discurso isidoriano tanto sobre a inalienabilidade do poder dos
monarcas, quanto sobre os deveres dos mesmos para com os seus súditos, refletem os
anseios de um episcopado preocupado com a estabilidade política do reino, mas também
de uma aristocracia interessada em inibir a adoção de posturas “pouco convenientes”
por parte dos próximos monarcas.
“Reger retamente”, nesse sentido, significaria
fundamentalmente agir levando em consideração os interesses da alta nobreza do reino e
dos grandes eclesiásticos – que, do ponto de vista social, lembremos, integravam um
mesmo conjunto.50
As Sententiae de Isidoro de Sevilha, escritas entre os anos de 604/614,51 têm um
importante papel na construção do ideal de realeza cristã no reino visigodo,52
47
BARBERO DE AGUILERA, A. La sociedad visigoda y su entorno histórico. Madrid: Siglo XXI,
1992, p. 16-56.
48
Ibidem, p. 21.
49
Ibidem, p. 27.
50
Barbero de Aguilera cita diversos exemplos envolvendo reis visigodos derrubados ao longo do século
VII (desde Suintila a Wamba), e cuja deposição foi justificada sob o pretexto de encerrar com políticas
que prejudicavam pessoas e bens da alta nobreza e dos bispos mais influentes do reino. Cf. BARBERO
DE AGUILERA, A. Ibidem, p. 43.
51
Segundo datação proposta por José Carlos Martín. Cf.: MARTIN, José Carlos. Une nouvelle édition
critique de la « Vita Desiderii » de Sisebut, accompagnée de quelques réflexions concernant la date des
« Sententiae » et du « De uiris illustribus » d’Isidore de Seville. Hagiographica. v.07, p. 127-180, 2000.
Embora o autor discorra sobre os deveres dos reis também em outras obras, como, por exemplo, as
Etymologiarum ou as atas do IV Concílio de Toledo, de 633, por ele presidido, privilegiaremos as
Sententiae em nossa análise porque ela foi elaborada durante o reinado de Sisebuto, e, ainda de acordo
este estudo de José Carlos Martín, foi a principal referência do monarca na redação de sua Vita Desiderii,
dado corroborado por observações feitas também por outros estudiosos. Cf.: GARCIA MORENO, L. A.
Historia de España Visigoda..., op. cit.. p. 148. e CASTELLANOS, S. La Hagiografia visigoda..., op.
cit.. p. 251-252.
48
principalmente o livro III. Marc Reydellet aponta para a particular influência da idéia
isidoriana que apresenta o exercício do governo como uma “vaste enterprise de salut
collectif, le roi guidant son peuple vers la possession des biens éternels, et agissant par
son example”.53
Pierre Cazier, por sua vez, aponta para a afirmação de Isidoro de que na Bíblia,
eram chamados reis os santos homens que sabiam governar os próprios sentidos com
calma e discernimento, o que indica a adoção pelo bispo de princípios do estoicismo
romano.54 Além disso, destaca a preocupação do bispo em delimitar o espaço de atuação
do rei no interior da Igreja, que seria a função de resolver problemas perante os quais as
autoridades eclesiásticas se viam impotentes.55
No livro III,56 encontramos dos capítulos 33 a 57 (de um total de 62),
recomendações dirigidas aos mais variados setores da sociedade e da própria Igreja. No
capítulo 48, dirigido aos prelados, encontram-se recomendações também aos monarcas,
o que, em nosso entendimento, indica uma concepção que dotava das mesmas
responsabilidades indivíduos em quaisquer posições de poder. Tal concepção, como
observaremos adiante, exerceu profunda influência no discurso eclesiástico dirigido
tanto aos bispos quanto aos reis ao longo do século VII.
1.3. Rebeliões nobiliárquicas no reino visigodo após a morte de Sisebuto (621-693)
Se o reinado de Sisebuto (612-621) transcorre, aparentemente,57 sem maiores
problemas internos a não ser aqueles decorrentes de sua controversa política
antijudaica,58 ou de sua interferência em questões eclesiásticas, o mesmo não podemos
dizer sobre seu sucessor Suintila (621-630). No 75º cânone do IV Concílio de Toledo,
52
O conceito de “realeza cristã” de que aqui nos utilizamos é tomado da obra de Marcelo Cândido da
Silva, que assim o define: “Essa última pode ser definida, de maneira preliminar, como uma forma de
governo na qual a realização de um objetivo exterior ao mundo, isto é, o bem da coletividade entendido
como sua salvação, é associada ao exercício do poder político supremo, a ponto de se tornar seu principal
fundamento.”. Cf.: SILVA, Marcelo Cândido da. A Realeza Cristã na Alta Idade Média. São Paulo:
Alameda, 2008, p. 40.
53
REYDELLET, Marc. La conception du souverain chez Isidore de Seville. Isidoriana, León, p. 457466, 1961.
54
CAZIER, Pierre. op.cit. p. 240.
55
Ibidem. p. 261-262.
56
Utilizamos como referência, nas citações que serão feitas deste ponto em diante, a tradução contida em
ISIDORO DE SEVILLA. El libro 2º y 3º de las Sentencias. Sevilla: Apostolado Mariano, 1991.
57
Embora as fontes do período não sejam precisas a respeito, Garcia Moreno levanta a hipótese de que
Sisebuto teria sido assassinado e que o mesmo teria ocorrido com seu filho Recaredo II, associado por ele
previamente ao trono, e morto pouquíssimo tempo depois do pai. Cf.: GARCIA MORENO, Luis A.
História de España...op.cit. p. 153.
58
CORDERO NAVARRO, Catherine. op. cit. p. 23
49
de 633, que ratifica a deposição deste monarca em favor de Sisenando (630-636), são
listados numerosos crimes que teriam sido cometidos por Suintila contra seus súditos,
tais como julgamentos arbitrários e confiscos contra elementos da nobreza e em favor
de seu próprio segmento político e dinástico.59 A associação ao trono do filho de
Suintila, Ricimiro, teria tornado claras as pretensões “imperializantes” do monarca o
que gerou oposição de segmentos da nobreza desfavorecidos pela política
excessivamente centralizadora dos monarcas toledanos, como as aristocracias da
Septimania ou da Galiza.60
Tais descontentamentos resultaram no golpe que depôs Suintila em 630 e pôs em
seu lugar Sisenando. Aqui novamente se registra a participação de representantes do
reino franco, então governado por Dagoberto (623-639), que teria justificado a
interferência na política visigoda em função da perseguição que Suintila naquele
momento empreendia contra seus próceres.61 Um outro aspecto que a ação do grupo
liderado por Sisenando tinha em comum com movimentos anteriores é a sua ligação
com a região da Gália visigoda.62 Santiago Castellanos indica que a rebelião desse
grupo é um exemplo significativo de que o domínio e a estabilidade do reinado de um
monarca visigodo era diretamente proporcional à sua capacidade – ou não – de garantir
o suporte e a colaboração dos diversos pólos regionais de poder, que “alimentariam” a
autoridade central.63
Suintila teria provavelmente falhado em atender os interesses da parte da
aristocracia envolvida na rebelião de Sisenando. O movimento deste, por outro lado,
não contou com apoio unânime, dado que explicaria o surgimento de um obscuro
59
GARCIA MORENO, Luis A. La oposición de Suintila: Iglesia, monarquía y nobleza en el reino
visigodo. Polis, Valladolid, n. 3, p. 193-208, 1991. p. 195, 202. (Estudios de Historia Medieval Homenaje a Luis Suarez)
60
Idem. p. 203.
61
Idem. p. 204.
62
Como acentuado por Santiago Castellanos em CASTELLANOS, Santiago. La hagiografia
visigoda...op.cit. p. 266.
63
CASTELLANOS, Santiago. Ibidem. p. 270. O professor Mário Jorge da Motta Bastos também
concorda que “a própria configuração do poder central, com freqüência referida como singularidade,
supõe, no mínimo, a materialização do poder cambiante de facções (ou frações) da aristocracia. [...] A
relação com o poder central trouxe benefícios econômicos, políticos, prestígio e posição social superior à
aristocracia, assim como desgraça, perseguição, expropriação e morte de vários de seus representantes.
Por outro lado, destas mesmas relações decorriam as possibilidades de expressão do poder central no
plano local, inclusive o acesso às diversas localidades que constituíam o território – o que concorre para
explicar a sobrevivência daquele.” Cf.: BASTOS, Mário Jorge da Motta. Os “Reinos Bárbaros”: Estados
Segmentários na Alta Idade Média Ocidental. Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre (online). Numéro Hors Série. n. 02, 2008. Disponível em : http://cem.revues.org/index10012.html.
Consultado em: 13/02/2010.
50
personagem identificado apenas como Iudila,64 que teria sido reconhecido como rei, em
algum período entre 630 e 633, pela nobreza ligada a regiões no centro-sul da Península
Ibérica, base política do próprio Suintila.65
Não se sabe qual teria sido o fim de Iudila e de seu movimento. Entretanto, o
conteúdo do último cânone do IV Concílio e de vários cânones do V e VI Concílios de
Toledo, estes celebrados durante o reinado de Chintila (636-639), seus anátemas contra
os usurpadores e aqueles que atentavam contra a vida ou a propriedade dos reis e de sua
família,66 podem ser considerados indicativos de que a posição dos reis de Toledo, de
Sisenando a Tulga (639-642), estava extremamente fragilizada e se via em estado de
contestação constante por parte de aristocratas rivais.
Em 642, um grupo nobiliárquico oriundo provavelmente da região setentrional
da Península depõe e tonsura Tulga – medida que evitava a sua morte e ao mesmo
tempo qualquer pretensão futura de retorno ao trono – e entroniza a Chindasvinto
(642-653).
O reinado de Chindasvinto é reconhecido como um ponto de inflexão pelos
estudiosos. Isto porque podemos reconhecer nele uma mudança na maneira como até
então a monarquia visigoda estabelecia seu acordo com o conjunto da aristocracia. Se a
historiografia atribui aos reinados de Leovigildo e Recaredo, bem como aos governos
que lhes sucederam imediatamente, um esforço no sentido de demarcar o caráter
institucional da monarquia visigoda, por meio da acentuação não apenas do seu vínculo
com a tradição imperial,67 mas também da construção de uma autoridade fundada no
consenso entre as diferentes forças políticas do reino,68 os reinados de Chindasvinto e
de seu filho Recesvinto (649-672), são identificados com uma política visando o reforço
do caráter centralizador da autoridade monárquica, em detrimento de poderes
paralelos.69
64
THOMPSON, E. A. Los godos en España. Madrid: Alianza, 1971. p. 202-203.
GARCIA MORENO, Luis A. La oposición de Suintila…. op. cit. p. 203.
66
No V Concílio, vemos referência à questão nos cânones II-VIII (de um total de nove cânones). No VI
Concílio, os cânones que se referem à ameaças à família ou aos direitos régios são os XII-XIV e XVIXVIII (de um total de 19). Cf.: VIVES, José (ed.). Concílios Visigóticos y Hispano-romanos. Madrid:
CSIC. Inst. Enrique Florez, 1963. p. 226-248. Thompson indica ainda que as atas do V Concílio não
registram a presença de bispos da Narbonense e que, como apenas Chintila e Wamba não cunharam
moedas naquela região, tal dado pode ser um indício de que as relações entre Toledo e a Gália visigoda
nesse período prosseguiam tensas. THOMPSON, E. A. op. cit. p. 209.
67
CASTELLANOS, Santiago. Los godos y la cruz...op.cit.. p. 99-23.
68
Idem. La hagiografia visigoda... op. cit. p. 188, 190, 192.
69
GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda… op. cit. p. 161-162.
65
51
Uma das primeiras medidas tomadas pelo monarca ao ocupar o trono foi
condenar à morte centenas de aristocratas, inclusive alguns membros do episcopado,
que teriam participado de rebeliões nobiliárquicas anteriores e determinar o confisco de
seus bens e a distribuição deles, bem como de suas esposas e filhas, aos seus fideles
pessoais.70 Escravos régios passaram a deter privilégios e ocupar postos no officium
palatinum; bispos foram encarregados de poderes judiciais e do dever de fiscalizar a
conduta de funcionários laicos.71 Medidas muito bem-sucedidas em curto prazo, já que
o monarca conseguiu fazer aumentar o volume do tesouro régio, reduzir o ânimo dos
levantes, e seu poder só foi sofrer o primeiro revés em 648, quando, por meio de carta, o
bispo Bráulio de Zaragoza e o dux Celso da Tarraconense, em nome da população da
diocese, recomendam ao rei que associe ao trono seu filho, Recesvinto, que teria mais
condições de suportar as fadigas da guerra. Recesvinto passa então a governar junto
com o pai de 649 até 653, ano da morte deste.72 Apesar do motivo alegado na carta, a
política agressiva de Chindasvinto contra parcelas expressivas do episcopado e da
aristocracia produziu descontentamento o suficiente para nos fazer acreditar que a
motivação real da correspondência seria a de reduzir a influência do monarca na
condução do reino, pela associação ao trono de um sucessor de tendências claramente
mais moderadas.73
Logo após a morte de Chindasvinto, uma rebelião é deflagrada por um duque
chamado Froya que, com a ajuda dos bascos e de um grupo de nobres anteriormente
perseguidos pelo rei, chega a sitiar a cidade de Zaragoza. A julgar pelo uso do termo
tyrannus associado ao referido duque na carta de Tajón de Zaragoza,74 podemos
acreditar que a revolta visava a deposição de Recesvinto. A rebelião é devidamente
sufocada pelo rei que, um dia depois, convoca o VIII Concílio de Toledo, no qual as
penas atribuídas aos crimes de conjura e traição ao monarca são atenuadas.75 Garcia
70
THOMPSON, E. A. op.cit.. p. 218-228.
GARCIA MORENO, Luis A. História de España...op.cit.. p. 163-164.
72
Thompson entende que a carta servia mais ao interesse da aristocracia que propriamente aos do
episcopado, que já havia se posicionado contrariamente à prática da associação de sucessores ao trono e
em favor da eleição no IV Concílio de Toledo e reafirma tal posição, após a morte de Chindasvinto, no
VIII Concílio. Neste concílio os bispos também vêm expressar toda a sua contrariedade com a política de
Chindasvinto, a qual possivelmente motivou a “concessão” de Bráulio no episódio da carta.
THOMPSON, E. A. Ibidem. p. 226-228.
73
Como também considera Renan Frighetto em FRIGHETTO, Renan. O Rei e a Lei na Hispania
visigoda: os limites da autoridade régia segundo a Lex Wisigothorum, II, 1-8 de Recesvinto (652-670). In:
____; GUIMARÃES, Marcella Lopes (coords.). Instituições, poderes e jurisdições. I Seminário
Argentina – Brasil – Chile de História Antiga e Medieval. Curitiba: Juruá, 2007. p. 123.
74
Ibidem. p. 124.
75
Concílio de Toledo VIII. In: VIVES, José (ed.). op.cit.. p. 268-277.
71
52
Moreno considera que a rebelião de Froya e o apoio da aristocracia ao monarca no
episódio foram entendidos por Recesvinto como sinais de que ele não poderia, como fez
o pai, subestimar o valor do apoio de uma ampla parcela dos nobres em situações de
crise.76
As determinações e, principalmente, as concessões feitas no VIII Concílio de
Toledo à nobreza hispano-visigoda poderiam ser entendidas como uma tentativa de
estabelecer um “novo pacto” entre rei e aristocracia. E a promulgação de uma nova
edição da Lex Wisigothorum, em 654, visaria reforçar o caráter unitário do regnum e as
obrigações entre rei e súditos.77 Tais medidas, entretanto, não foram suficientes para
assegurar a posição do monarca e deter o processo de progressiva regionalização do
poder político na Península.78
Logo após a ascensão do sucessor de Recesvinto, Wamba (672-680), eclode na
região da Septimania uma nova rebelião que, já contando com o suporte de aristocratas
francos, ganharia também a adesão do dux Paulo, que havia sido enviado pelo monarca
para combater os rebeldes, mas acaba sendo coroado rei por eles, acontecimentos que
são narrado por Julian de Toledo na Historia Wambae.
As dificuldades que o monarca havia enfrentado por ocasião da repressão à
rebelião teriam motivado a promulgação de uma lei, em 673, que impunha duras penas a
nobres e até a clérigos que não demonstrassem interesse em defender o rei e o reino
contra rebeldes e invasores externos.79 Esta medida, bem como outras identificadas
como ingerência excessiva em assuntos eclesiásticos por parte dos bispos,80 gerou
grande descontentamento. Em 680, um complô palaciano depõe Wamba, substituindo-o
por Ervígio (680-687), que ao longo de seu reinado veio atenuar, mas não abolir,
diversas determinações legais de Recesvinto e Wamba contrárias aos interesses de
aristocratas e bispos – reconhecendo assim a incapacidade da monarquia toledana de se
sobrepor à fragmentação cada vez maior do poder no reino.81
A última rebelião registrada no reino visigodo do século VII teria ocorrido em
693, durante o reinado de Egica (687-702), e foi protagonizada pelo bispo Siseberto de
Toledo. Os rebeldes chegaram a controlar Toledo durante algum tempo, cunhando
76
GARCIA MORENO, Luis A. História de España...op.cit.. p. 166.
FRIGHETTO, Renan. O rei e a lei... op.cit.. p. 127, 129.
78
Ibidem. p. 132.
79
THOMPSON, E. A. op.cit. p. 298-299.
80
Ibidem. p. 261-262.
81
FRIGHETTO, Renan. O problema da legitimidade e a limitação do poder régio na Hispania visigoda: o
reinado de Ervígio (680-687). Gérion. v. 22, n. 01, p. 421-435, 2004. p. 427-434.
77
53
moedas em nome de um rei chamado Suniefredo.82 Não conseguiram assassinar Egica e
sua família como pretendiam, e o bispo Siseberto foi condenado à excomunhão durante
o XVI Concílio de Toledo, realizado no mesmo ano.83 No concílio em questão, teriam
sido revogadas determinações do XIII Concílio de Toledo, realizado ainda sob o
governo de Ervígio, as quais protegeriam funcionários do palácio contra destituição e
prisão e que haviam favorecido Siseberto e seus cúmplices.84
Outro aspecto relevante para que compreendamos as principais questões que
perpassaram o processo de produção da Historia Wambae de Julian de Toledo diz
respeito às relações entre a atividade conciliar no reino visigodo e os conflitos políticos
envolvendo a monarquia que lhe foram contemporâneos.
1.4. Disputas de poder em torno da monarquia, atividade conciliar e o papel de
Julian de Toledo
A conversão de Recaredo (586-601), em 589, pode ser entendida então como
parte do processo de afirmação de soberania dos reis godos, que buscavam então
sobrepor-se tanto às pretensões de aristocratas rivais quanto aos expansionismos franco
e bizantino. Além disso, o III Concílio de Toledo também formalizou o estabelecimento
de uma aliança entre a monarquia e a alta hierarquia eclesiástica niceísta, tendo em vista
mútuo benefício: ao longo do século VII, os reis visigodos lançaram mão amplamente
do suporte conciliar com a finalidade de, por meio da rede de poder eclesiástica,
construir ou, na maior parte dos casos, impor consensos políticos que lhes
favorecessem.85
O episcopado niceísta, por outro lado, fez uso constante tanto das determinações
conciliares, quanto de uma produção intelectual distribuída em textos de natureza
diversa, para propor e, se possível, difundir na sociedade as suas expectativas quanto à
atuação dos monarcas em favor da Igreja e da fé cristã no reino. O exemplo mais
significativo é o trabalho teórico de Isidoro de Sevilha (570-636) que, como apontamos
82
THOMPSON, E. A. op.cit. p. 278.
Cânone IX. XVI Concílio de Toledo (693). In: VIVES, José. op.cit.. p. 507-509.
84
THOMPSON, E. A. op.cit. p. 279-280.
85
Rachel Stocking aponta para o cuidado necessário em se observar o conceito que as sociedades da Alta
Idade Média tinham do “consenso”, que, anacronicamente, poderia ser entendido como uma solução para
os conflitos decorrentes de diferenças sociais ou culturais. O que a autora aponta é que, principalmente no
caso visigodo, o consenso tinha quase sempre um sentido fortemente coercitivo, que terminava por
realçar divergências, reforçando sistemas de exclusão, ao invés do contrário. Tratava-se de produzir
convergência pela eliminação, física ou simbólica, dos elementos dissonantes. STOCKING, Rachel.
op.cit.. p. 12, 24-25.
83
54
previamente, em escritos como as Etimologias e as Sentenças, sintetizou um conjunto
geral de princípios que seriam a referência base para os autores que, posteriormente,
dedicar-se-iam a escrever sobre o exercício do poder político segundo valores cristãos –
entre os quais podemos mencionar o próprio Julian de Toledo.86
Ao endossar o discurso episcopal, investindo-se da missão de proteger a moral
cristã no reino, e reconhecendo as implicações de ordem sobrenatural que poderiam
advir de suas ações,87 os monarcas adquiririam uma vantagem simbólica a mais, além
daquela proporcionada pelos signos e pelas prerrogativas imperializantes, em seu
constante confronto físico e ideológico com concorrentes nobiliárquicos, dos quais
muitas vezes pouco se diferenciavam do ponto de vista socioeconômico.
Ao longo do século VII foi freqüente a convocação de reuniões conciliares em
que se discutiram temas que pouca ou nenhuma relação possuíam com as questões de
organização e disciplina da alta hierarquia da Igreja hispana. O conteúdo do último
cânone do IV (633) e de vários cânones do V e VI Concílios de Toledo, estes dois
últimos celebrados durante o reinado de Chintila (636-639), são anátemas contra os
usurpadores e aqueles que atentavam contra a vida ou a propriedade dos reis e de sua
família,88 podem ser considerados indicativos de que a posição dos reis de Toledo, de
Sisenando a Tulga (639-642), estava extremamente fragilizada e se via em estado de
contestação constante por parte de aristocratas rivais.
De acordo com a legislação civil e conciliar, a única via legítima de ascensão ao
trono para um aristocrata godo era a eleição por parte dos bispos e da nobreza palatina.
Daí que, embora alguns reis toledanos tenham tido êxito em ser imediatamente
sucedidos por seus próprios filhos ou parentes próximos nos séculos VI e VII,89 o que se
verificava era uma alternância de famílias reinantes rivais no poder, a qual por vezes foi
86
Para uma breve síntese dos elementos da chamada “teoria política isidoriana”, suas eventuais
inconsistências e sua relação com o envolvimento do bispo hispalense nas disputas políticas entre os reis
e aristocracia hispano-goda, cf. BARBERO DE AGUILERA, Abilio. La sociedad visigoda y su entorno
histórico. Madrid: Siglo XXI, 1992. p. 19-29.
87
Ibidem. p. 123-128. A elaboração de textos como a hagiografia Vita Desiderii, escrita pelo monarca
Sisebuto (612-621), indica possivelmente que os próprios reis viam na incorporação da perspectiva
eclesiástica a possibilidade de fortalecer-se politicamente. Yitzhak Hen atenta para o fato de que a
compreensão da iniciativa literária de Sisebuto não pode restringir-se à “ideologia política” e à autopromoção, tendo em vista que isto não exclui outros interesses de ordem religiosa ou intelectual. HEN,
Yitzhak. op.cit. p. 136-139.
88
No V Concílio, vemos referência à questão nos cânones II-VIII (de um total de nove cânones). No VI
Concílio, os cânones que se referem a ameaças à família ou aos direitos régios são os XII-XIV e XVIXVIII (de um total de 19). Cf.: VIVES, José (ed.). op.cit.. p. 226-248. Thompson indica ainda que as atas
do V Concílio não registram a presença de bispos da Narbonense e que, como apenas Chintila e Wamba
não cunharam moedas naquela região, tal dado pode ser um indício de que as relações entre Toledo e a
Gália visigoda nesse período já seriam tensas. THOMPSON, E. A. op.cit. p. 209.
89
Como teria sido o caso de Leovigildo, Recaredo, Sisebuto, Chintila, Chindasvinto, Ervigio e Egica.
55
assegurada pela aristocracia por via de deposições violentas. Tal dado explica a
preocupação dos monarcas e de seus aliados não apenas com investidas golpistas de
aristocratas contra os detentores do poder régio, como também com o status dos
familiares destes após a sua morte, os quais poderiam ser alvos de iniciativas
persecutórias oriundas do grupo nobiliárquico que estivesse ocupando o trono na
ocasião.
O reinado de Chindasvinto (642-653), lembremos, foi marcado pelo reforço do
poder dos reis toledanos, embora com um alto custo para a aristocracia. Anos antes de
falecer, o monarca foi convencido pelo bispo Bráulio de Saragoça a associar ao trono
seu filho,90 Recesvinto, de tendência mais moderada, dividindo com ele as tarefas de
condução do reino.
Pouco tempo depois de passar a governar sozinho (a partir de 653), e após
sufocar uma rebelião nobiliárquica, Recesvinto convocou o VIII Concílio de Toledo, no
qual, dentre outras determinações, são abrandadas as punições previstas por leis
promulgadas por Chindasvinto contra rebeldes e usurpadores.91 Ressaltemos que o IV
Concílio de Toledo, presidido por Isidoro de Sevilha, convertera os atos de conjura
nobiliárquica contra o monarca em anátemas; o VIII Concílio, por sua vez, distinguiu-se
por ter dispensado uma atenção maior à questão dos abusos que poderiam ser cometidos
por reis contra seus súditos a partir de leis e juramentos iníquos feitos em nome de
Deus. Em outras palavras, os bispos e o monarca chegaram a um acordo quanto ao fato
de que o exercício do direito régio sagrado de julgar e punir só seria válido na medida
em que não excluísse a possibilidade da misericórdia.
É neste contexto que podemos inserir a Historia Wambae e a ação política de
seu autor, o bispo Julian de Toledo (642-690). Na época de redação da narrativa
Historia rebellionis Pauli adversus Wambam, o último quarto do século VII, os reis
toledanos prosseguiam enfrentando dificuldades cada vez mais acentuadas em fazer
valer a sua autoridade perante as autonomias aristocráticas. Lembramos que o rei
Wamba (672-680) viu-se obrigado a promulgar uma lei prevendo punição aos nobres e
bispos que não auxiliassem militarmente o monarca contra invasões estrangeiras ou
rebeldes usurpadores. O monarca seguinte, Ervigio (680-687), atenuou os efeitos da
90
Desde o reinado de Liuva, os monarcas visigodos com freqüência adotaram esta antiga prática imperial
por meio da qual o governo era compartilhado entre o monarca e um ou mais indivíduos de sua escolha.
91
Cânone II. Concílio de Toledo VIII. In: VIVES, José (ed.). Op. cit.. p. 268-277.
56
lei,92 alegando que os processos judiciais no reino não podiam mais ser concluídos
porque praticamente já não havia súditos aptos a prestar testemunho – tamanha a
quantidade de indivíduos punidos pela lei do seu antecessor.93
Julian de Toledo ascendeu ao cargo de bispo em 680, no final do reinado de
Wamba. Descendente de judeus convertidos, foi discípulo dos bispos Eugenio II de
Toledo (646-657) e Ildefonso de Toledo (657-667), ambos autores de uma produção
intelectual bastante significativa. O biógrafo de Julian, Félix, contabilizou um total de
17 obras produzidas pelo bispo, sendo que destas sobreviveram cópias reconhecíveis de
apenas cinco: o Prognosticum futuri saeculi, o Apologeticum de tribus capitulis, o De
sextae aetatis comprobatione,94 o Antikheimenon e a Historia Wambae regis.95 À
exceção da Historia Wambae, os textos de Julian são dedicados à síntese de debates
teológicos e à exegese bíblica, sendo o Prognosticum futuri saeculi a sua obra mais
difundida, influenciando inclusive na construção, em época posterior da Idade Média,
do imaginário sobre o purgatório.96
No que se refere à sua atuação política, Julian é apontado como um dos
articuladores do movimento que resultou na deposição de Wamba, em 680,97
confirmada no XII Concílio de Toledo (681),98 presidido pelo bispo toledano, e que
também determinou que todas as nomeações de bispos realizadas dali em diante teriam
de passar pelo crivo do arcebispo da capital visigoda e do rei. Tal determinação foi o
culminar de um processo, em curso desde princípios do século VII, de centralização da
autoridade episcopal hispana em torno de Toledo – processo favorecido pela
92
FRIGHETTO, Renan. O problema da legitimidade...op.cit.. p. 427.
XII Concílio de Toledo. In: VIVES, José. op. cit. p. 383.
94
Para uma discussão sobre as tensões escatológicas relacionadas à produção desta obra por Julian de
Toledo para o rei Ervigio, cf. GARCIA MORENO, Luis A. Expectativas milenaristas y escatológicas en
la España Tardoantigua (ss. V-VII). Arqueologia, paleontologia y etnografia, Madrid, n.04, p. 249-258,
1998. p.251-254.
95
HILLGARTH, J. N. St. Julian of Toledo in the Middle Ages. Journal of Warburg and Courtauld
Institutes, London, v.21, n.01/02, p. 7-26, 1958. p. 7-9.
96
Para um comentário sobre indícios da influência do texto de Julian de Toledo sobre autores da Idade
Média Central, cf. GARCIA HERRERO, Gregório. Notas sobre el papel del Prognosticum Futuri Saeculi
de Julian de Toledo en la evolución de la idea medieval del Purgatorio. Antiguedad y Cristianismo,
Murcia, n.23, p.503-513, 2006. p. 510-512
97
A informação provém de fontes produzidas muito tempo depois dos eventos, no reino das Astúrias, e há
dúvidas quanto à sua credibilidade, cf. MURPHY, Francis X. Julian of Toledo and the Fall of the
Visigothic Kingdom in Spain. Speculum, Cambridge, v.27, n.01, p. 01-27, 1952. p. 17-19.
98
Julian de Toledo preside um total de quatro concílios toledanos: XII, XIII, XIV e XV. O XIII Concílio,
como assinalamos previamente, determina o perdão aos envolvidos na rebelião de Paulo contra Wamba.
No XIV e no XV, verificam-se cânones em que o episcopado peninsular decide tomar posição a respeito
de debates cristológicos que opunham naquele momento o clero ocidental à Igreja bizantina. Cf. VIVES,
José (ed.). op.cit. p. 380-474.
93
57
proximidade com o centro político da monarquia visigoda.99 No que se refere ao
suposto envolvimento do prelado na deposição de Wamba, ainda que a veracidade da
versão que acusa Julian pela derrocada do monarca seja discutível, pode-se considerar
que, ao presidir o XII Concílio, redigir e assinar a sua ata, ele se alinhava com o teor
crítico contido nas referências desse concílio à atuação de Wamba quanto aos assuntos
eclesiásticos.
Ao fazer um relato estilizado dos acontecimentos que envolveram a ascensão de
Wamba ao trono e a repressão da rebelião liderada pelo duque Paulo na Gália visigoda
em sua Historia Wambae, o que Julian de Toledo nos apresentou foi uma contraposição
idealizada entre um soberano cristão legítimo e um tirano traidor, isto é, a história de
um nobre “piedoso” submetido às leis de seu reino, e preocupado em assegurar tanto a
paz quanto a justiça como rei, mesmo enfrentando dificuldades com súditos soberbos e
perjuros.
2. Análise documental
A Vita Desiderii possui 22 parágrafos,100 ao longo dos quais são narrados a
juventude de Desidério (2); sua atuação frente à sede de Vienne (3); as primeiras
perseguições de aristocratas e reis ao santo (4); os milagres realizados durante o exílio a
que foi condenado (5-7); o castigo divino aos dois aristocratas envolvidos na
condenação conciliar do santo (8-9); o arrependimento e o pedido de perdão dos reis
(10); a volta de Desidério a Vienne, pondo fim ao sofrimento da população (11); novos
milagres (12-14); o derradeiro conflito entre o santo e os monarcas (15); a condenação e
execução do bispo a mando dos reis, aos quais a população de Vienne se opõe
veementemente (16-18); a morte de Teuderico, vítima de disenteria (19); a derrota
militar e morte de Brunequilda (20-21); a narração se encerra no parágrafo 22 com
referências a notícias de milagres que ocorriam junto ao túmulo do santo.
99
RIVAS GARCIA, Olga. La santa, el rey y el obispo: divinas dependencias en Toledo durante la
Antiguedad Tardia. Arys: Antiguedad: religiones y sociedades, Huelva, n.04, p. 275-304, 2001. p. 293295.
100
Reiteramos que a tradução que utilizamos como referência é a que consta de DIAZ Y DIAZ, Pedro
Rafael. Tres biografías latino medievales de San Desiderio de Viena (traducción y notas). Fortunatae:
Revista canaria de filología, cultura y humanidades clásicas, La Laguna. n. 05, p. 215-252, 1993. p.
223-236.
58
A Historia Wambae possui um total de 30 parágrafos,101 ao longo dos quais são
narrados a eleição de Wamba após a morte de Recesvinto (2-3) e o seu ritual de
entronização em Toledo (4); as primeiras conjuras da aristocracia da Gália contra ele (56), a ordem dada a Paulo para lutar contra os rebeldes e a decisão dele de se juntar aos
eles, sendo intitulado rei (7-8); a movimentação de Wamba e seu exército na direção da
região-base da revolta (9-10); os ataques de Paulo a cidades e bispos que recusavam
unir-se a rebelião (11); as primeiras vitórias de Wamba e a atitude de Paulo em
subestimar as forças leais ao soberano (12-16); Paulo perdendo o controle sobre seus
aliados e se despojando de suas insígnias reais (17-20); a conclusão da batalha com a
tomada dos últimos bastiões da revolta, a prisão de Paulo e seus aliados (21-25), após o
que Wamba inicia o reparo das cidades atacadas (26, 28) além de expulsar alguns
francos que teriam vindo auxiliar os revoltosos (27); e, por fim, a volta a Toledo, onde
Paulo e seus comparsas são submetidos à humilhação pública (29-30).
Com o fim de facilitar o procedimento de aproximação e comparação entre os
textos, estruturamos a exposição da análise a partir de quatro temas/contraposições
presentes em ambos os textos, a saber: 1) a oposição entre humildade, associada ao
compromisso com a Verdade, e falsidade, associada a Soberba; 2) a responsabilidade do
santo e do rei legítimo para com a conduta dos seus fiéis/súditos, contraposta a
disposição dos tiranos em corromper os seus, e associada a virtudes como clemência e
misericórdia; 3) as referências a eventos miraculosos associados a presença de
Desidério e de Wamba; e, por fim, 4) o modo como estes aspectos confluem na
afirmação da associação entre os bispos e os legítimos reis cristãos e a manutenção da
ordem e da paz na sociedade, a despeito da ameaça representada pelos tiranos.
2.1. Humildade e Verdade contra Soberba e Falsidade
A referência mais explícita a demonstração de humildade por parte de Desidério
se localiza no parágrafo 3. Segundo ele, o santo, embora mostrasse claras evidências de
perfeição moral e capacidade intelectual desde a mais tenra juventude (par. 02), ao ser
101
Reiteramos que a edição e tradução da Historia Wambae Regis que aqui utilizamos é um corpus
constituído de quatro textos: a Historia rebellionis Pauli adversus Wambam – na qual esta análise se
deterá – a Epistola Pauli Perfidi, carta que Paulo teria endereçado a Wamba ainda durante o curso da
rebelião, além da Insultatio vilis provinciae Galliae e do Iudicum in tyrannorum perfídia promulgatum.
Os motivos que nos levaram a centrar nosso estudo no primeiro dos textos estão relacionados não apenas
ao conteúdo como também a dúvidas levantadas pela historiografia com relação à autoria dos dois
últimos, que não teriam sido escritos por Julian de Toledo. A tradução aqui utilizada foi extraída de DIAZ
Y DIAZ, Pedro Rafael. Julian de Toledo: “Historia Del Rey Wamba” (Traducción y Notas). Florentina
Iliberritana, Granada, n. 01, p. 89-114, 1990.
59
convidado para ocupar o cargo de bispo por várias cidades, “tal como se leva a
comportar a humildade, assegurava pertinazmente que uma pessoa indigna como ele
não iria estar a altura de tão importante ministério”102. Logo após, o santo aceita tornarse bispo de Vienne, que “conseguiu merecer-lhe por bispo, não tanto por seu desejo
quando obrigado por numerosas instâncias”103.
Mais do que a reprodução de um topos, estas passagens chamam a atenção por
uma lacuna: não há qualquer referência a cargos eclesiásticos que Desidério houvesse
exercido antes de a sua “fama” atrair convites para ocupar sedes episcopais. Embora
não haja evidência a respeito do caso específico de Desidério de Vienne, Raymond Vam
Dam aponta para o fato de que desde o século IV membros da antiga aristocracia
senatorial romana viam na carreira eclesiástica uma alternativa de poder e status
semelhante a que constituíra outrora o exército ou o serviço público local.104 Assim, é
possível que Desidério tenha sido alçado ao cargo por influência familiar, já que
Sisebuto ressaltara previamente seu pertencimento a uma nobre linhagem romana (par.
2).
No segundo parágrafo da Historia Wambae,105 Julian de Toledo descreve uma
cerimônia de aclamação que teria ocorrido durante o funeral de Recesvinto, na qual
Wamba vem a ser escolhido pelos aristocratas presentes para suceder o rei morto e, após
hesitação, é coagido a aceitar o cargo. O ritual, de acordo com Suzanne Teillet, evoca a
tradição imperial, e a recusa seria condição fundamental para a legitimidade.106
Entretanto, tendo em vista a existência de uma cena semelhante na Vita
Desiderii, não se pode desconsiderar que o ritual pudesse ser revestido de um sentido
cristão, que permitisse ao público da obra pressupor a humildade como primeira virtude
do então futuro soberano visigodo. De fato, Leila Rodrigues identificara a humildade
entre as principais virtudes que o bispo Martinho de Braga recomendara ao monarca
suevo Miro (s. VI), apontando para o dado de que esta virtude, diferentemente da justiça
102
VD, 3: “qui reluctans tanti ministerii, ut se habet humilitas, imparem fore indignumque se fatebatur”.
VD, 3. Na edição latina de que dispomos, faz-se referência também a pedidos da população local:
“Tandem no tam voluntarium, quam impulsum, multis praecibus exoptatum pontificem ecclesia Bienensis
promeruit.”
104
VAN DAM, Raymond. Bishops and society. In: CASIDAY, Augustine; NORRIS, Frederick W. (ed.).
The Cambridge History of Christianity. Volume 02: Constantine to c.600. Cambridge: Cambridge
Univ., 2007. p. 344-350.
105
HW, 2. Para simplificar a redação, nos referiremos ao documento como Historia Wambae ou HW,
ainda que a análise esteja centrada no relato da rebelião de Paulo (historia Excellentissimi Wambae Regis
de expeditione et victoria, qua revelatem contra se provinciam Galliae celebri triumpho perdomuit), que
é apenas uma parte do conjunto que o corpus conhecido como Historia Wambae agrega.
106
TEILLET, Suzanne. Des Goths a la nation gothique: les origines de l’idée de nation en Occident
du Ve au VIIe siècle. Paris: Les Belles Lettres, 1984. p. 588.
103
60
ou da prudência, não fazer parte do conjunto das virtudes denominadas cardeais,
valorizadas pela elite romana desde tempos anteriores à expansão do cristianismo. A
autora indica que o foco do discurso do bispo de Braga se voltava contra a influência
dos aduladores sobre a atuação do rei, apresentando o apoio dos bispos como alternativa
que evitaria que o monarca se afastasse do caminho da verdade.107 Podemos considerar
que interpretação semelhante é válida tanto para a Vita Desiderii quanto para a Historia
Wambae, ainda que a relação entre a postura humilde do bispo de Vienne, ou a do
legítimo rei dos visigodos, e a Verdade não seja, em princípio, explicitamente declarada.
Esta relação fica evidenciada não nas intenções atribuídas a estas personagens, mas por
meio das ações atribuídas aos seus adversários: em ambos os casos, os tiranos recorrem
à mentira e à falsidade para atingir seus objetivos.
Embora recebam menção em apenas um parágrafo (par. 04), dois episódios
associados, ambos de falso testemunho, têm particular relevo no desenvolvimento da
narrativa Vita Desiderii: a mentira vem a ser a primeira via por meio da qual adversários
do santo, sob influência do demônio e/ou dos maus monarcas, tentam e conseguem
atingi-lo. Primeiramente, um pestiferae mentis hominem desata a difamar o santo e, logo
em seguida, uma mulher chamada Justa, em associação com os monarcas Teuderico e
Brunequilda, acusa Desidério, perante um concílio, de tê-la estuprado. Sisebuto afirma
que, embora ninguém desse crédito às acusações, as autoridades eclesiásticas que
presidiam o concílio, obedecendo um esquema prévio, decidiram exilar o bispo.
Há que se considerar a caracterização que é feita de cada um dos personagens
envolvidos na situação: ao homem-difamador são associados termos como víbora
(vipereo) e venenoso (venenata); Teuderico é apresentado como estúpido (stultitiae
dignum); Brunequilda como “aliada mais fiel do mal, feitora das piores artes”
(fautricem pessimarum artium, malis amicissimam); e Justa por fim é descrita como
“Justa de nome e de ações iníqua...”, “de estirpe nobre e natureza disforme”
(...prosapiae nobilis, sed mente deformis [...] Iusta ocábulo, turpis in acto...) etc.
Observa-se que a caracterização precede as ações protagonizadas pelas personagens, e
assim, as desqualifica e deslegitima por antecipação, a partir da condenação prévia
daqueles que as realizaram.
107
ROEDEL, Leila Rodrigues. Prudência, justiça e humildade: elementos marcantes no modelo de
monarca presente nas obras dedicadas ao rei suevo. Revista de História, São Paulo, n.137, p. 9-24, 1997.
p. 19-20.
61
Na Historia Wambae, cenas descritas parágrafos 7, 8, 16 e 17 expõem a
principal estratégia de Paulo para angariar apoio à sua rebelião: novamente aqui, a
mentira. Aproveitando-se de uma circunstância em que a população já se encontrava em
situação de levante, o duque começa a difamar o soberano. Posteriormente, durante o
choque entre os seus aliados e os dele, mente novamente, acusando Wamba e a parcela
da aristocracia a ele aliada de não representar o valor guerreiro associado
tradicionalmente a estirpe gótica, informação que vêm a ser desmentida pelo êxito
posterior do exército a serviço do rei toledano em batalha.
É possível que Julian de Toledo que, lembremos, escreve a Historia Wambae
vários anos depois da deposição e do fim do reinado de Wamba, ocorridos em 680,
estivesse atribuindo a Paulo a difusão de questionamentos reais em relação ao valor
militar do já falecido monarca, questionamentos que a sua historia tinha, entre outros
propósitos, o de desmentir.
Outro aspecto que podemos ressaltar é que a acusação feita a Paulo neste ponto
corresponde a parte da argumentação que apresentava a ascensão de Wamba ao trono
como produto da vontade divina: apenas mentiras poderiam desqualificar alguém que
havia sido aprovado pela própria divindade.
Nos dois casos, o de Teuderico/Brunequilda e o de Paulo, a mentira dos tiranos
reforça o contraponto representado pelo santo e pelo rei legítimo, o caminho da Virtude
e da Legitimidade.
Por outro lado, a referência ao ritual romano associada à valorização da
humildade, representada como hesitação perante a possibilidade do poder, e que aparece
em ambos os documentos, aponta também para a preocupação atribuída a Desidério e a
Wamba de que a sua autoridade fosse fruto de merecimento e não de favorecimentos
pessoais. O que é particularmente claro no caso do monarca que, como indicaremos
adiante, dedica particular atenção à exigência de que sua ascensão ao trono fosse
afirmada pelo bispo de Toledo.
Olga Rivas Garcia demonstra como os bispos e monarcas toledanos, ao longo do
século VII, estiveram associados na promoção do culto da santa “patrona” da cidade, a
santa Leocádia, e o modo como essa devoção e o incremento de poder e prestígio que
ela acarretaria, favorecia interesses de uns e outros – ambos buscando supremacia frente
a pólos de poder rivais na Península.108 Que Julian atribua a Wamba o desejo de ser
108
RIVAS GARCIA, Olga. op. cit. p. 286-295. A autora aponta que a identificação entre a monarquia e o
episcopado toledano, no que concerne ao empenho conjunto na promoção do culto à santa Leocádia, teria
62
reconhecido e coroado pelo bispo de Toledo, apresentando esse aval como condição de
legitimidade, é dado que aponta para o avançado estágio em que se encontra a
associação entre monarquia e episcopado na urbs regia.
A identificação que passa a ser estabelecida, principalmente a partir do reinado
de Leovigildo, no século VI, entre a monarquia visigoda e a cidade Toledo, mais que
apresentar-se como mais uma das tentativas de filiar a autoridade régia visigótica à
tradição imperial romana,109 teve uma significativa repercussão na relação entre a
mesma monarquia e a sede episcopal toledana ao longo do século VII. Para os bispos de
Toledo, dos quais, lembremos, Julian foi o último dos representantes mais eminentes, o
fortalecimento da autoridade dos reis era fundamental para que a sua própria
preponderância sobre as demais sedes episcopais hispânicas se sustentasse. Para os reis,
associar-se a essa sede episcopal e fortalecê-la poderia ser uma forma de adquirir
controle sobre os bispos e respectivos centros urbanos que a ela se vinculassem
politicamente.
Daí não resultar casual nem a preocupação de Sisebuto em defender, na sua Vita
Desiderii, a tutela moral do episcopado sobre toda a comunidade dos fiéis, que era
subordinada aos reis, mas também os incluía, nem que Julian de Toledo, em sua
Historia Wambae, apresente o reconhecimento da ascensão de Wamba ao trono pelo
bispo toledano como um dos principais elementos que o distinguiam do tirano Paulo. A
similitude que encontramos entre as qualidades atribuídas ao santo bispo e ao
“religiosíssimo” príncipe nas duas narrativas tampouco são casuais, já que resultariam
não apenas do reconhecimento da existência de responsabilidades compartilhadas no
que concerne à salvação dos súditos, como demonstraremos adiante, mas também da
mútua dependência que, no reino visigodo, se estabeleceu entre a manutenção do poder
dos reis e do mesmo poder dos bispos em Toledo.
se iniciado justamente durante o reinado de Sisebuto, para desembocar, no XII Concílio de Toledo,
realizado durante o episcopado de Julian, em que se registra a atribuição ao bispo da urbs regia do
controle sobre as eleições episcopais que fossem na realizadas na Hispania a partir dali.
109
C. Brühl aponta que Toledo, em comparação com as residências régias francas ou com a capital
lombarda, Pavia, era a que mais se assemelhava ao modelo de capital legado pelo Baixo Império Romano,
dado evidenciado pela relação de prevalência, que se institucionaliza ao longo do século VII, de Toledo
para com as demais sedes episcopais da Península Ibérica. Cf. BRÜHL, Carlrichard. Remarques sur les
notions de « capitale » et de « résidence » pendant le haut Moyen Âge. Journal des savants, Paris, n. 4.
p. 193-215, 1967. p. 201-207.
63
2.2. Responsabilidade em corrigir os pecados e o dever da misericórdia
Na Vita Desiderii, os parágrafos em que há menção a atuação do bispo no
sentido de corrigir a conduta dos fiéis são o 3 e o 15. No primeiro é descrita a atuação
do santo junto à população de Vienne: “afastou da ira o litigioso, da mentira o
embusteiro, da rapacidade o usurário, da dissolução o luxurioso”110.
Se a descrição neste caso parece vaga, no segundo, o alvo da ação do bispo são
os próprios monarcas, e a energia que se atribui a atuação de Desidério só não é maior
que a hostilidade com que os governantes reagem às críticas:
“o mártir de Deus, pontífice e custódio de suas iniqüidades, fezse ouvir ao estilo dos profetas com o bramido da trombeta e se
endereçou pessoalmente a corrigir seus extravios, a fim de fazer
próprios de Deus a quem o Diabo havia tornado alheios”111
Em outras palavras, evidencia-se na pena de Sisebuto a associação à função
episcopal a tutela sobre a sociedade, inclusive o topo dela, representado pelos monarcas.
A estes últimos caberia a incumbência de favorecer a atuação dos bispos e, na medida
em que isso fosse necessário, assegurar eles mesmos a disciplina cristã no reino,
protegendo a Igreja até mesmo contra seus próprios membros, e usando a força para
obter o que os bispos não tinham como conseguir por meio das palavras.112
À atuação de Desidério é contraposta a postura tomada pelos dois monarcas
francos à frente do reino da Burgúndia: pecar ao invés de servir de exemplo, corromper
ao invés de corrigir.
A questão do incentivo ao pecado é bastante clara na passagem que descreve a
possessão da personagem Justa, que acusa Brunequilda de ter “com seu momentâneo
feitiço, arrastado-a à perdição, com seu odioso poder à morte e com suas ilusórias
promessas à condenação”113. Mas também aparece, ainda que de forma não tão
explícita, em passagens como aquela em que Teuderico é apresentado como “protetor”
do difamador de Desidério, um homem “ escravo de numerosos vícios e crimes”114.
110
VD, 3: “removit ab ira letigiosum, a mendositate fallacem, a rapacitate cupidum, a flagitiis
libidinosum”
111
VD, 15: “Dei martyr malis inspector et pontifex more nempe prophetico elangore tubae personuit
seseque totum pro depellendis erroribus eorum invexit, quatenus Deo faceret proprios quos fecerat
diabulus alienos”
112
Princípio que também aparece exposto nas Sententiae de Isidoro. Cf. ISIDORO DE SEVILHA. Sent.
III. 51.3-5.
113
VD, 9: “cuius persuasio me ad interitum fumea traxit; munus execrandurm ad mortem, promissio ad
nullam peritura salutem.”
114
VD, 8: “multis vitiis criminibusque tenebatur obnoxia”
64
Como já mencionamos, estudiosos apontam que o aristocrata que, juntamente à
personagem Justa na Vita Desiderii, aparece difamando Desidério e induzindo bispos
reunidos em um concílio a exilá-lo teve sua caracterização inspirada em duas pessoas
verídicas: o nobre franco Protadius, e o bispo Aridius de Lyon, que seria um inimigo
político de Desidério e provavelmente o verdadeiro responsável pelo seu assassinato.115
Fontaine suspeita que Sisebuto, ao não mencionar Aridius, pretendia evitar um malestar na corte franca, onde o prelado possuía ainda considerável influência.116 Não
descartamos tal tese. Entretanto, consideramos ser fundamental observar também que
responsabilizar Teodorico e Brunequilda pela morte do bispo poderia não tratar-se
necessariamente de uma “deturpação dos fatos” por parte de Sisebuto, isto é, uma
tentativa de acusá-los deliberadamente por erros que não houvessem cometido. Na
realidade, receamos que a precisa origem das iniciativas persecutórias e da própria
ordem de execução contra Desidério não seria o aspecto mais relevante para o autor da
narrativa.
Defendemos esta hipótese tomando em consideração a argumentação contida nas
Sentenças de Isidoro de Sevilha, lembremos, um dos principais suportes teóricos de
Sisebuto para a redação de sua hagiografia,117 que apresenta como dever do soberano
não apenas a retidão moral pessoal, mas também a obrigação de assegurar a disciplina
de seus súditos.118 Desse modo, o rei teria de prestar contas a Deus não apenas dos seus
próprios pecados, mas também dos daqueles a quem governa.
Posto isto, é possível que fosse de menor importância para Sisebuto, ou para a
parcela do seu público que compartilhasse dos pressupostos isidorianos, se Brunequilda
e o neto teriam ou não ordenado diretamente o exílio e a posterior execução de
Desidério: eles seriam responsáveis por todos os pecados e sacrilégios que fossem
cometidos em seu reino, por iniciativa deles ou não. Mais ainda se eles, como a versão
de Sisebuto afirma, ao invés de punir os delitos, incentivavam ou protegiam os
pecadores. No entendimento de Sisebuto, sendo governantes, Brunequilda e Teodorico
115
MARTIN, José Carlos. Qvendam pestiferae mentis hominem, un personaje sin nombre de la Vita
Desiderii. In: PEREZ GONZALEZ, Maurilio (org). Actas del I Congreso Nacional de Latin Medieval.
Leon: Universidad de Leon, 1993, p. 307-313. p. 310.
116
FONTAINE, Jacques. King Sisebut’s Vita Desiderii and the political function of Visigothic
Hagiography. In: JAMES, Edward (ed.). Visigothic Spain: new approaches. Oxford: Claredon, 1980, p.
93-129. p. 112, 116.
117
MARTIN, José Carlos. Une nouvelle édition critique de la « Vita Desiderii » de Sisebut, accompagnée
de quelques réflexions concernant la date des « Sententiae » e du « De uiris illustribus » d’Isidore de
Séville. Hagiographica, Firenze, n. 7, p. 127-80, 2000. p. 134-139.
118
ISIDORO DE SEVILHA. Sententiae. III.50.6
65
não deixariam de receber a punição divina mesmo que não tivessem de fato relação
direta com os eventos que culminaram na morte de Desidério, porque mesmo que não
tivessem pecado por ação, pecariam por omissão.119 Acusá-los de atuar diretamente no
assassinato do santo poderia ser menos uma tentativa de falsear a real natureza dos
eventos do que uma forma de reforçar a responsabilidade dos reis sobre os pecados e
crimes que eles incitam ou deixam de punir, com vistas a tornar mais evidente a relação
de causa e efeito entre a morte do bispo de Vienne e a derrota final de Brunequilda
perante Clotário II em 613.
Além da preocupação de corrigir, Desidério também se destaca pela capacidade
de perdoar. A atitude misericordiosa da parte do bispo de Vienne é narrada no parágrafo
10, quando Brunequilda e Teuderico se arrependem de ter tramado contra Desidério,
após seus cúmplices terem sido mortos pela justiça divina. Os monarcas o convocam e
suplicam pelo perdão e o santo, “comovido com seu sincero arrependimento”, os perdoa
sem maiores ressalvas.
Há que se considerar que outra das narrativas sobre a vida de Desidério,
anônima e produzida em Vienne já no século VIII, afirma que o exílio do bispo foi
revogado por decisão conciliar,120 não fazendo menção, portanto, a qualquer episódio
como o narrado por Sisebuto.
Podemos levantar hipóteses sobre os motivos que levaram o rei visigodo a
incluir esta cena, fosse ela verídica ou não, em sua hagiografia. Entendemos que a
intenção era reforçar o contraste entre a atitude generosa de Desidério em relação à
ofensa que os reis lhe fizeram, e a atitude desses reis quando o próprio Desidério lhes
ofende, com o propósito de corrigi-los (par. 15).
É preciso considerar as referências em que Teuderico e Brunequilda agem
nutridos por medo e arrependimento, juntos no parágrafo 10, e a rainha sozinha nutrindo
esses sentimentos no par. 20 – Teuderico já havia falecido a esta altura da narração. O
primeiro dos referidos parágrafos trata-se justamente daquele em que os dois se
aterrorizam após as mortes dos seus cúmplices, por obra da justiça divina e,
arrependidos, decidem solicitar o perdão do bispo.
No último, após a morte de Teuderico, Brunequilda “perdeu o sossego e inquieta
se atormentava interiormente por causa dos remorsos de consciência”121.
119
ISIDORO DE SEVILHA. Sententiae. III.45.3.
DIAZ Y DIAZ, Pedro Rafael. Três biografias latinas... op. cit. p. 241.
121
VD, 20: “Amissit perdita Brunigildis peritura solatia atque formidans torquebatur indice conscientia”
120
66
Na primeira situação, o arrependimento foi fruto do temor em relação à justiça
divina, que já havia punido Justa e o homem difamador. Tal temor não impede que os
monarcas prossigam pecando até o momento em que condenam Desidério à morte após
terem seus pecados expostos publicamente pelo bispo.122 Na segunda situação, o
arrependimento não é suficiente para suscitar a misericórdia divina, e a rainha termina
brutalmente assassinada por um exército inimigo.
Assim, as referências ao medo e ao arrependimento dos monarcas não se
tratariam de atenuantes para as faltas que lhe foram atribuídas e sim uma evidência de
que sua escolha pelo caminho do pecado e do Vício havia sido consciente e deliberada,
a ponto de eles cometerem o mesmo erro – perseguir o santo – duas vezes.
Anteriormente, fizemos referência a passagem das Sententiae em que Isidoro de
Sevilha atenta para a responsabilidade do soberano pela conduta cristã e pelo rigor
moral dos súditos. Há que se destacar também o valor atribuído à misericórdia pelo
hispalense e, conforme já ressaltamos, pelas lideranças episcopais presentes nos
concílios visigóticos do século VII. Para eles, a misericórdia era uma virtude
fundamental ao exercício da Justiça, na medida em que evitasse que a severidade desta
se degenerasse em crueldade. Atribuir a Desidério o papel de perdoar os pecados
cometidos pelos monarcas também indica a adoção por Sisebuto da premissa que
atribuía ao bispo a tutela sobre a alma dos fiéis, fossem eles reis ou súditos. Entretanto,
a decisão dos reis de prosseguir pecando lhes trouxe como conseqüência a punição
divina, indicando para o público da hagiografia que a misericórdia, de Deus ou dos
santos, poderia ser conquistada com arrependimento sincero, mas a salvação só poderia
ser alcançada se ao arrependimento se seguisse uma mudança de hábitos em direção ao
caminho da Virtude.
Em episódio semelhante narrado por Gregório de Tours, e comentado por Kevin
Uhalde,123 o bispo Nicetius de Trier confronta um rei franco a respeito de seus próprios
pecados e dos de seus companheiros durante uma missa, tendo êxito em expor
publicamente a conduta do monarca por meio de denúncias proferidas por um homem
possuído pelo demônio. Lembremos que a personagem Justa da Vita Desiderii, fictícia
de acordo com investigações dos estudiosos, desempenha um papel muito semelhante,
acusando a rainha Brunequilda durante uma possessão, mas tendo tanto seu corpo
122
VD, 15.
UHALDE, Kevin. Proof and reproof: the judicial component of episcopal confrontation. Early
Medieval Europe, Oxford, v.08, n.01, p. 01-11, 1999.
123
67
quanto sua alma levados para o inferno pelo Diabo.124 Neste caso, como no de
Desidério, o poder de que o bispo carecia no domínio mundano era sobreposto por sua
autoridade moral e pela sua proximidade com a divindade, colocando-o acima dos
monarcas no domínio do sagrado e da salvação. Nenhum pecado escapa ao
conhecimento e ao juízo de Deus, logo, tampouco escaparia ao conhecimento e à
intervenção de um dos seus santos homens.
Estes princípios também aparecem expostos na Historia Wambae nos
parágrafos: 10, 22, 25, 26 e 28. No primeiro deles, o que tem destaque é a correção
moral, quando Wamba castiga membros do seu exército que estariam agredindo a
população no caminho para a batalha:
“Se eu não castigo esta depravação, me vou daqui preso.
Chegarei até ser recebido no justo juízo de Deus, se, vendo a
perversidade do povo, não a reprimo. De exemplo deve servirme aquele sacerdote Eli, mencionado nas Sagradas Escrituras,
quem, por não querer encrespar com seus filhos pela
monstruosidade de seus atos, viu que morreram em combate e
ele mesmo expirou depois de seus filhos, com o pescoço
quebrado. Assim, pois, estas coisas devemos levar a sério e,
portanto, se seguimos limpos de pecado, não haja dúvida de que
obteremos o triunfo sobre o inimigo.”125
Em outras palavras, de acordo com Julian de Toledo, o rei demonstraria aqui a
consciência de sua própria subordinação a uma justiça superior, a divina, perante a qual
ele deveria se responsabilizar pela conduta dos seus súditos, caso ambicionasse a vitória
na guerra e, logo, sua própria manutenção no poder.
Nos parágrafos 22 e 25, justiça e misericórdia aparecem associados. No
primeiro, Wamba aparece comovido com as súplicas por misericórdia feitas pelos bispo
Argebado de Narbonne (parágrafo 21) e decide poupar a vida dos rebeldes. Mas é
preciso que se atente para a ressalva – que o rei aparece reiterando no parágrafo 25, já
perante os próprios rebeldes:
124
Cf. VD, 9. Gregório de Tours, segundo Uhalde, afirma que após ser libertado do demônio, o possuído
de Trier desaparece da cidade. Cf. UHALDE, Kevin. Ibidem. p. 10. Pode-se considerar que, também neste
caso, o “desaparecimento” tenha sido uma saída encontrada pelo autor para tornar crível a fala de uma
personagem cuja existência não poderia ser comprovada pelos seus contemporâneos.
125
HW, 10: “Nam ego, si isto no vindico, iam ligatus hine vado. Ad hoc ergo vadam, ut iusto Dei iudicio
capiar, si iniquitatem populi videns ise non puniam. Exemplum mihi praebere debet Eli sacerdos ille in
divinis litteris agnitus, qui pro immanitate scelerum filios, quos increpare noluit, in bello concidisse
audivit, ipse quoque filios sequens fractis cerbicibus expiravit. Haec igitur nobis timenda sunt, et ideo, si
purgati maneamus a crimine, non dubium erit, quod triumphum eapiamus ex hoste.”
68
“Não as destruirei [as almas que solicitou] com a espada da
justiça, não derramarei hoje sangue de ninguém, nem tampouco
tolherei a vida de ninguém, ainda que a ofensa destes tais não vá
ficar impune” [grifo nosso]126
Pode-se observar que a passagem pressupõe uma espécie de debate entre os
adeptos de não uma, mas duas virtudes distintas: a misericórdia e a clemência.
Misericórdia, nas palavras de Isidoro de Sevilha, poderia ser definida simplesmente
como “compadecer-se da miséria alheia”,127 e que “aquele que julga com retidão leva na
mão uma balança, e em cada prato leva justiça e misericórdia”.128 Mas deve-se
considerar que o eminente autor clássico romano Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.) distinguia
veementemente a misericórdia da clemência,129 defendendo que apenas esta última
poderia ser considerada uma verdadeira virtude para os governantes, fundamental ao
exercício da justiça. Para Sêneca, misericórdia era sinônimo de clemência sem critério,
já que era movida pela sensibilidade e não pela razão, ao ter em vista o sofrimento do
criminoso, não a gravidade do crime.130
No parágrafo 22, portanto, o que vemos é Wamba demonstrar clemência muito
mais do que a misericórdia a qual Julian chega a afirmar que o monarca seria
propenso.131 Mais do que a solidariedade humana evocada por Isidoro nas Sententiae, a
postura de Wamba se distinguiria pela preocupação com as faltas cometidas, ao invés de
focar apenas na atenuação da severidade das penas que seriam impostas aos rebeldes.
Por outro lado, em pelo menos 3 parágrafos (11, 12 e 17) Paulo e seus cúmplices
se vêem associados a demonstrações de medo e covardia e em dois deles (19 e 20),
quando as mentiras já não são suficientes para negar o valor de Wamba e seu exército, a
surpresa com a dificuldade dos combates dá lugar ao arrependimento. Termos como
126
HW, 22: “No illas ultore gládio perdam; non hodie cuiusquam sanguinem fundam nec quandoque
vitam extingua, quam-quam talium offensa impunita non trauseat.”
127
ISIDORO DE SEVILHA.Sententiae.III.60.5.
128
Sententiae.III.52.4.
129
J. N. Hillgarth não menciona Sêneca entre as citações feitas por Julian de Toledo em suas obras, mas
há que se considerar o peso que os autores clássicos greco-latinos possuíam na formação intelectual das
elites romano-germânicas às quais a Igreja devia a maior parte dos seus altos quadros. Sêneca em
particular exerceu profunda influência na literatura latina voltada ao tema da importância da clemência na
atuação dos bons governantes. Para uma listagem das citações identificadas na obra de Julian de Toledo.
Cf. HILLGARTH, J. N. Las fuentes de San Julian de Toledo. In: Anales Toledanos III – Estudios sobre
la España visigoda. Toledo: Disputación Provincial, 1971. p. 113-118.
130
SÊNECA. De Clementia. Lib.II.Cap.4-7. A tradução utilizada como referência é a que consta de
SÊNECA. A Clemência. São Paulo: Escala, 2007. p. 97-104.
131
HW, 21: “erat misericordiae visceribus affluens”
69
“ilusão” (ludibrium) e “confusão” (confusioni) passam a ser utilizados pelos próprios
rebeldes para descrever sua iniciativa.132
Como no caso dos elementos associados à mentira, o objetivo de Julian de
Toledo seria apresentar a revolta como sendo uma iniciativa vã desde o princípio, uma
guerra que já teria começado perdida. A humildade do soberano legítimo, sua
submissão aos mandamentos divinos e às normas da Igreja, o mantiveram no caminho
da retidão e da Verdade, assegurando-lhe a vitória e o poder. A soberba e a deslealdade
dos seus súditos, por sua vez, conduziu-lhes apenas a um caminho de desatino e derrota.
Cabe destacar ainda que a acusação de traição é dirigida não apenas a Paulo, mas
ao conjunto da aristocracia da Gália, que se levanta contra o monarca antes mesmo de o
duque cogitá-lo. Os parágrafos 5 e 6 se voltam ao conjunto daquela facção nobiliárquica
e no 7º tem-se a iniciativa de Paulo de se unir ao movimento, estendendo-o até a
Tarraconense. Note-se que os termos dirigidos à grupo aristocrático galo-visigótico são
mais agressivos até do que os dirigidos, em princípio, àquele que se tornaria a principal
liderança do movimento de separação:
“Assim, pois, nos gloriosos tempos deste a terra das Gálias,
ama da traição, se assinala pela infamante nota de engolir os
membros perjuros por ela engendrados, corrompida por uma
incomensurável febre de perjúrio. Pois que não era nela
inumano e canalhesco, ali onde tinha sua sede um conselho de
conjurados, o signo da traição, a obscenidade, a usura, a
venalidade nos juízos e, o que é pior que tudo isso, um
prostíbulo de judeus blasfemos contra nosso mesmíssimo
Senhor e Salvador?”133
“Então Paulo transfigurado mentalmente em Saulo, com sua
negativa em atuar em prol da lealdade, começou a obra contra a
lealdade. Tentado pela ambição de poder, se despoja de repente
de sua fidelidade, mancha a promessa de respeito feita ao
religioso soberano, se esquece de seu dever para com a
pátria”134
132
HW, 20.
HW, 5: “Huius igitur gloriosis temporibus Galliarum terra, sitrix perfidiae, infami denotatur elogio,
quae utique inextimabili infidelitatis febre vexata genita a se infidelium depasceret membra. Quid enin no
in illa erudele vel lubricum, ubi coniuratorum conciliabulum, perfidiae signum, obscenitas operum, fraus
negotiorum, venale iudicium et quod peius his omnibus est, contra ipsum salvatorem nostrum et dominum
Iudaerum blasfemantium prostibulum habebatur?”
134
HW, 7: “Sieque Paulus in Sauli mente conversus, dum pro fide noluit proficere, officere conatus est
contra fidem. Regni ambitione illectus, spoliatur subito fide primssam religiosi principis masculat
caritatem, praestationis oblibiscitur patriae”
133
70
Podemos observar que, se no caso de Paulo, Julian apresenta suas motivações
como sendo puramente circunstanciais – ele “de repente” (subito) se despojou da sua
fidelidade – no caso da Gália, faz-se referência a outros conflitos entre monarquia e
aristocracia ocorridos ao longo do século VII, e nos quais a população dessa região se
via envolvida.
Que Julian tenha feito questão de destacar que a rebelião da Gália antecede a
participação do duque Paulo no processo é um dado que nos permite ver o discurso
presente na Historia Wambae como disposto a desqualificar não aquele indivíduo em
particular, mas todo um segmento nobiliárquico ao qual ele se viu associado durante
aqueles acontecimentos. Frighetto destaca o procedimento retórico ao qual o bispo
toledano se viu levado a recorrer para que a autoridade de Wamba permanecesse
representando o fruto de um consenso da estirpe gótica, a despeito do apoio aristocrático
maciço recebido por Paulo na Gália e na Tarraconense: dividir a gens gótica em duas,
uma gens hispana, valorosa e leal ao seu rei, e uma gens gala, traidora e perjura.135
Nos capítulos 26 e 28 da Historia Wambae, vemos Wamba, após o fim das
batalhas, ocupado com a restauração das cidades de Nîmes e Narbonne, que teriam sido
destruídas tanto pelos revoltosos e como pela repressão à revolta. Tais referências
também apontam para a associação da imagem do rei à clemência/misericórdia, já que
parte da população destas cidades se envolveu ativamente na revolta, mas indicam outro
aspecto da construção da imagem do monarca ideal: a idéia de que a monarquia seria o
centro e a base da ordem social, condição para a manutenção da segurança e da paz,
como discutiremos adiante.
Na preocupação de Julian em acentuar o dever da clemência, podemos distinguir
relações envolvendo as disputas políticas entre monarquia e grupos nobiliárquicos. A
reação aristocrática contra políticas coercitivas perpetradas por monarcas como
Chindasvinto ou o próprio Wamba podem ter induzido os ideólogos do reino, como
Julian e, antes dele, Isidoro de Sevilha,136 a pôr particular relevo à recomendação aos
monarcas de que seus súditos deveriam vê-los como protetores generosos, e não como
saqueadores ou algozes. Em outras palavras, ao apresentar como exemplar o perdão de
Wamba às cidades envolvidas na rebelião galo-visigoda, Julian provavelmente pretendia
135
FRIGHETTO, Renan. Memória, história e identidades: considerações a partir da Historia Wambae de
Juliano de Toledo (século VII). Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v.05, n.02, p. 50-73,
2011. p. 63.
136
Sobre as proximidades entre o discurso isidoriano e a obra de Julian, cf. GARCIA HERRERO,
Gregorio. Julian de Toledo y la realeza visigoda. Antiguedad y cristianismo, Murcia, n. 08, p. 201-255,
1991. p 215.
71
indicar, em consonância com disposições conciliares presentes no VIII, no XII e no XIII
Concílios de Toledo,137 que o exercício da justiça contra traidores podia ser sacrificado
ou ter seu peso atenuado nos casos em que sua prática intransigente pudesse resultar em
ameaça à paz e à harmonia entre reis e súditos.
O isolamento político progressivo, em fase adiantada nos tempos de Wamba,
tornaria ainda mais urgente a necessidade de os reis de Toledo procurarem preservar
tanto quanto possível a saúde de suas relações com a elite aristocrática.
Comparando as construções presentes nos dois textos, observamos que ao bispo
e ao rei cristão estão associados valores e competências semelhantes em relação à
sociedade ou à comunidade a eles subordinadas. Tanto Desidério quanto Wamba vêemse imbuídos de responsabilidade sobre a salvação de seus fiéis/súditos, e do dever de
atuar com justiça e clemência. Mas é preciso que se tenha em vista também as
diferenças.
No que concerne às responsabilidades sobre a salvação, o que se destaca na
hagiografia é a diluição das hierarquias mundanas que subordinavam os bispos ao poder
temporal dos reis quando fé e conduta cristã estivessem em questão. Na historia, o rei
assume a incumbência de dirigir os súditos no caminho da retidão, atento à relação de
subordinação existente entre a dignidade régia, recebida pelas mãos do bispo, e a
vontade divina.
Quanto a virtude e o exercício da justiça também percebemos distinções
significativas. Desidério tende à misericórdia: perdoa os reis, apesar da gravidade dos
pecados que cometeram. Wamba, por sua vez, poupa a vida dos rebeldes, mas não os
isenta de punição.
Há que se considerar aqui a possibilidade de a misericórdia precisar ser uma
virtude condicionada apenas no caso do rei, encarregado ele próprio da justiça terrena.
O santo opta pelo perdão irrestrito – ao que os monarcas retribuem pecando novamente
– deixando a justiça e a punição a cargo de Deus. Portanto, em que pesem a
aproximação entre a imagem do bispo e a imagem do rei na Vita Desiderii e na Historia
Wambae, as distintas competências atribuídas a ambos, neste caso em particular, se
fazem presentes.
137
Os dois últimos realizados no reinado imediatamente posterior ao de Wamba, sendo que no XIII
Concílio, nobres que haviam se aliado a Paulo em sua rebelião foram anistiados.
72
2.3. Manifestações divinas em favor do santo e do rei
O principal elemento que distingue os homens santos na literatura hagiográfica é
a capacidade de produzir milagres em seu entorno. Ao longo da narrativa de Sisebuto,
Desidério produz ou desencadeia ao menos seis eventos miraculosos,138 a maioria de
cura. O próprio autor comenta no texto sobre quão fundamentais os milagres seriam
para determinar a credibilidade do santo quando, logo após narrar o primeiro
acontecimento miraculoso,139 afirma:
“Suficientemente, creio eu, evidenciou meu corrente estilo sobre
suas milagrosas curas. Entretanto, para que um estilo elaborado
não abra ao crítico a porta para a observância de uma excessiva
concisão, me esforcei por resenhar nesta obra alguns episódios
concretos com todo o esmero de que fui capaz.”140
Outro aspecto digno de nota consiste no fato de Desidério ter começado a
realizar milagres apenas após ser exilado. Consideramos provável que, diferentemente
do que defendera Eleonora Dell’Elicine em artigo recente,141 Sisebuto e Isidoro não
discordassem quanto ao princípio agostiniano segundo o qual milagres não só de nada
serviam para induzir uma fé que já estava provada, como vangloriar-se deles poderia ser
sinal de soberba. Desidério de Vienne, de acordo com o rei visigodo, passou a realizar
milagres durante e depois de cumprir punição por um crime que não teria cometido, isto
é, quando a sua fé e a sua idoneidade se viam contestadas.
A citação anterior também aponta para a intenção de Sisebuto de utilizar a
exposição dos milagres como recurso legitimador: de acordo com a narrativa, Desidério
destacou-se pelo seu confronto com governantes francos e antes disso sofrera sanções
conciliares. Conforme mencionamos anteriormente, estudiosos já demonstraram ser
pouco verossímil a procedência das acusações que o rei-hagiógrafo lança contra
Brunequilda e Teuderico de envolvimento nos conflitos e na morte de Desidério, mas há
outros relatos fazendo menção a problemas com outros membros do episcopado e às
críticas do bispo a Teuderico. Em outras palavras, é possível que, no momento em que
138
Narrados em VD, 5-7, 12-17.
Ao qual teriam se seguido outros, que são mencionados, mas não chegam a ser descritos.
140
VD, 6: “Sufficienter, ut opinor, de gratia sanitatum sermo generalis emieuit; sed ne concinnis oratio
de nima brevitate ianuam praescurtandi obserando reeludat, specialiter quaedam quacumque potui
continuation huic operi praenotandum studui.”
141
DELL’ELICINE, Eleonora. “Signum vel res”: la ponderación del milagro en la sociedad visigoda
(589-711). Bulletin du centre d’études médiévales d’Auxerre (En ligne). Auxerre, Hors série n. 02,
2008. Disponível em : http://cem.revues.org/index8932.html . Consultado em: 13/01/2009. par. 14-16.
139
73
foi produzida a Vita Desiderii, o recém-falecido bispo de Vienne fosse uma personagem
muito mais controvertida no reino franco que os próprios Teuderico e Brunequilda,142
daí a necessidade de recorrer à menção de fatores de legitimação, como a realização de
milagres pelo santo ainda em vida.
No parágrafo 18 é descrita a execução de Desidério. Destacamos neste parágrafo
o trecho que evidencia a significação da morte em termos positivos, que se trata
justamente do comentário que encerra a cena:
“Deste modo, abandonando sua alma a matéria carnal e
liberando-se de suas ataduras corporais, seu uniu vitoriosa à
companhia dos astros siderais.”143
Os termos utilizados por Sisebuto denotam uma clara tentativa, recorrente no
textos hagiográficos voltados a descrição da passio dos mártires, de representar a vitória
dos santo sobre a morte: o corpo pode ser ferido, quebrado, dilacerado, mas a alma
permanece íntegra.144 Não se pode esquecer que os primeiros indivíduos reconhecidos e
venerados como santos no cristianismo vinham a ser os mártires, que se destacavam
dentre os demais fiéis justamente pelo mérito de, como Cristo, vencer a morte em nome
da fé, prodígio ao qual seus restos mortais deviam o poder de realizar milagres em torno
de si. Apresentar a morte de Desidério como martírio foi, portanto, outro modo
encontrado por Sisebuto de afirmar a santidade do bispo de Vienne e, logo, a
perversidade de seus algozes, rebaixados ao nível dos perseguidores dos primeiros
séculos da Igreja, numa época em que os defensores da fé cristã se viam triunfantes.
No caso da obra de Julian, outra via de valorização da virtude e da legitimidade a
que o bispo de Toledo recorreu na Historia Wambae foi a menção a eventos
miraculosos, sempre associados a pessoa de Wamba.
142
Janet Nelson inclusive indica a referência, em outros documentos, à existência de oposição popular ao
bispo de Vienne, cf. NELSON, Janet L. Queens as Jezebels: Brunhild and Balthild in Merovingian
History. In: ___. Politics and Ritual in Early Medieval Europe. London: Hambledon, 1986. p. 28.
143
VD, 18: “Qui cum animam exhalaret, idem arrepto viri beata fusto colla confregit. Sic carneam
materiem anima deserns seseque a vinelis corporlibus exueos, victrix in astrigeris comitem comuiscuit
auris.”
144
BROWN, Peter. The Cult of the Saints: its rise and function in Latin Christianity. Chicago: Univ.
of Chicago, 1981. p. 83.
74
As referências escolhidas para a análise são duas.145 A primeira diz respeito a um
prodígio que teria se dado durante a cerimônia em que se realizou a unção de Wamba,
em Toledo:
“Com efeito, em seguida, desde o alto da cabeça, de onde o óleo havia
sido vertido, alçou-se em forma de coluna um vapor semelhante a
fumaça e do mesmo sítio da cabeça viu-se voar uma abelha, sinal que
constituía um presságio da felicidade que se aventurava.”146
A segunda se registra já no momento em que o exército a serviço de Wamba está
prestes a derrotar completamente seus adversários:
“Foi então quando se manifestou a divina proteção, mostrando-se com
signos inequívocos, pois, segundo se conta, pareceu a um homem de
país estrangeiro que o exército do piedoso soberano se achava
protegido pelos anjos da guarda e que os próprios anjos levavam sobre
o acampamento do mesmo exército os símbolos de sua proteção em
seu vôo.”147
As duas referências citadas, apesar de breves, merecem contextualização. S.
Teillet já indicara que as duas cenas seriam inspiradas em passagens do Êxodo, na
Bíblia – o que reforçaria a leitura segundo a qual Julian de Toledo estaria apresentando
um paralelismo entre os reis de Toledo e os reis de Israel.148 Entretanto, sendo muitos os
milagres e prodígios bíblicos que poderiam ser mencionados, entendemos que é
necessário problematizar o sentido da escolha destes em particular.
O primeiro dos eventos, dentro de uma tipologia de eventos miraculosos, poderia
ser qualificado facilmente como “presságio/sinal”. Isso pode indicar a influência da
concepção de Gregório Magno (540-604) a respeito da função do milagre, “que é ser
145
Garcia Herrero apresenta as “coincidências” cronológicas apontadas por Julian entre, por exemplo, a
data de coroação de Wamba e a data da derrota definitiva de Paulo, bem como as vitórias que se
verificam após as ações virtuosas do monarca como um exemplo de manifestação do sobrenatural na
narrativa. Cf. GARCIA HERRERO, Gregório. Julian de Toledo y la realeza...op. cit. p. 210.
146
147
HW, 4
HW, 23: “Ubi divina protectio evidentia signi ostentione monstrata est. visum est enim, ut fertur,
cuidam externae gentis homini angelorum excubiis protectus religiosi principis exercitus esse angelosque
iposos super castra ipsius exercitus volitatioue suae protectionis signa portendere”
148
TEILLET, Suzanne. op. cit. p. 602. Convém apontar que Julian de Toledo não é o primeiro intelectual
eclesiástico a tecer esse paralelo: algumas décadas antes, na própria Península Ibérica, Isidoro de Sevilha,
por exemplo, em suas Sententiae, exortava os monarcas a imitar o exemplo de humildade do rei Davi. Cf.
ISIDORO DE SEVILHA.Sententiae.III.49. A caracterização de Wamba por Julian teria sido inspirada em
Saul, o primeiro rei a ser ungido na Bíblia, mas que perde o poder em virtude de seus pecados. Para
Garcia Herrero, esta seria uma evidência da distância temporal entre a Historia Wambae e os eventos que
narra, já que denotaria um julgamento a posteriori voltado à figura de Wamba, o qual tomou algumas
medidas contrárias aos interesses do bispo de Toledo durante seu reinado, além de ter perdido o trono por
meio de uma deposição que ainda hoje é objeto de controvérsia historiográfica. Cf. GARCIA HERRERO,
Gregório. Sobre la autoria de la Insultatio...op. cit. p. 190, 192.
75
um sinal (signum), quer dizer, para Deus a ocasião de uma teofania e para o homem
uma lição ou um aviso”149. Na Historia Wambae, o sentido desta referência parece ser o
de reforçar a idéia de que a própria divindade referendava, no momento da unção do
novo monarca, todo o processo que o conduzira ao poder. A preocupação, manifesta por
Julian de Toledo nas passagens imediatamente anteriores do documento,150 de descrever
um processo de aclamação e coroação rigidamente regulamentar, também indicam a
intenção de desqualificar possíveis questionamentos quanto ao rigor dos procedimentos
políticos e formais que alçaram Wamba ao trono toledano. O que, lembremos, não pode
ser considerado indício, por si só, de que contestações à legitimidade de Wamba fossem
infundadas. Pois, como nos lembra Bernard Guenée, não era raro autores de crônicas e
histórias medievais transmitirem à posteridade, ao invés dos acontecimentos em si,
somente a lembrança do que eles deveriam ter sido.151
Sendo um presságio, a manifestação de Deus na cerimônia da unção de Wamba
referendava não apenas os atos políticos que a antecederam, mas também os que
estariam por vir. A descrição das ações de Wamba no combate a rebelião da Gália, da
sua atenção ao exercício das virtudes cristãs, paralelamente ao combate dos vícios de
seu próprio exército, e os sucessos militares que se seguem, visam demonstrar a
confirmação do “sinal” manifesto no momento da coroação.
A segunda das duas referências, em que anjos aparecem misturados ao exército
do rei, escoltando-o em direção aos inimigos, também tem um sentido particular.
Dionísio Perez Sanchez comenta que alusões a anjos eram presentes em muitos textos
produzidos no reino visigodo, o que sugeria uma metáfora que atrelava as hierarquias da
sociedade terrena às da sociedade celeste, com claros propósitos legitimadores.152 No
caso da HW em especial, é significativo que Julian apresente Wamba recebendo suporte
não apenas da sua própria corte, como também da corte celestial.
Dentro da própria Historia Wambae podemos encontrar alguns elementos que
podem nos ajudar a oferecer mais explicações para essa imagem. Assim que Wamba
aparece recebendo as primeiras informações sobre a movimentação de Paulo e seus
149
VAUCHEZ, André. Milagre. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, Jean Claude (coord.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Imprensa Oficial; Bauru: Edusc, 2002. 2v. v2. p. 200.
150
HW, 2-3
151
GUENÉE, Bernard. História. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, Jean Claude. op. cit. v1. p. 531.
152
PEREZ SANCHEZ, Dionisio. Poder político y dominación social: la función justificativa de los
ángeles en el mundo visigodo. Studia historica. Historia Antigua, Salamanca, n.26, p. 187-217, 2008.
p. 195, 209, 216-217.
76
cúmplices na Gália,153 Julian o apresenta tendo que lidar com o fato de contar com um
reduzido contingente militar para combater a revolta. O bispo toledano afirma que a
decisão de Wamba de marchar em direção à Gália com poucos homens teria sido uma
opção do próprio rei, interessado em, desse modo, demonstrar aos rebeldes e aos francos
que lhes apoiavam o valor guerreiro de seus leais súditos.
Porém, deve-se levar em consideração o dado de que Wamba, algum tempo
depois de sufocada a rebelião de Paulo, viu necessidade de instituir uma lei que
estabelecia pesadas punições a aristocratas que recusassem auxílio militar ao rei, fosse
no combate a revoltas internas ou incursões estrangeiras.154 A lei falha em cumprir com
seus objetivos, ao que tudo indica, já que o sucessor de Wamba, Ervigio (680-686), no
XII Concilio de Toledo, se sente obrigado a atenuar as punições atribuídas pela
legislação tendo em vista que os processos judiciais não progrediam no reino, tamanha a
quantidade de indivíduos impedidos de testemunhar em juízo.155
Assim, podemos compreender a escolha de Julian em mencionar, do modo como
o fez, o suporte divino ao exército do rei toledano como parte de uma estratégia
discursiva que convertia o dado negativo que era a provável inferioridade numérica do
exército que apoiava Wamba em dado positivo. Primeiramente, apresentando a decisão
do rei de avançar contra o inimigo com os homens que tinha a disposição como uma
demonstração de coragem, ao invés de falta de alternativas; posteriormente, indicando
que um soberano devidamente eleito por Deus estava sempre em posição de vantagem:
se a lógica natural das coisas anunciava a derrota, a vontade divina e a assistência da
corte celestial assegurariam que a razão e a vitória mantivessem-se sempre do lado
certo. 156
Mais que isso: Julian de Toledo oferece um argumento que se pretendia capaz de
invalidar as pretensões de setores nobiliárquicos que contestassem a autoridade do
153
HW, 9
Cf.: GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Cátedra, 1989. p. 172-173.
e COLLINS, Roger. op. cit. p. 101-102.
155
XII Concílio de Toledo. In: VIVES, José (ed.). op.cit.. p. 383. Algum tempo depois, no XIII Concílio
toledano, indivíduos que participaram da rebelião de Paulo foram até mesmo perdoados e realocados em
suas posições, em posse de suas antigas propriedades. Para uma avaliação das implicações de tais medida
durante o reinado de Ervigio, cf. FRIGHETTO, Renan. O problema da legitimidade...op.cit.
156
Lembrando que a leitura de Gregório Garcia Herrero também identifica lógica semelhante no texto,
que para ele estaria associada à época de redação do texto, o reinado de Egica, marcado por conflitos
militares intensos, inclusive com os francos, acusados de apoiar Paulo na Historia Wambae. O estudioso
considera que o objetivo de Julian de Toledo seria incentivar a nobreza que estaria lutando ao lado de
Egica contra seus inimigos. GARCIA HERRERO, Gregório. Sobre la autoria de la Insultatio y la fecha de
composición de la Historia Wambae de Julian de Toledo. Arqueologia, paleontologia y etnografia,
Madrid, n.04, p. 187-213, 1998. p. 199-200.
154
77
monarca no plano econômico ou militar. Atribuindo à autoridade dos reis toledanos
suportes e implicações que transcendiam os vínculos e disputas que perpassavam a
sociedade hispanovisigoda, o autor pretende demonstrar que a centralidade e
prevalência do poder dos reis e a unidade do regnum a eles subordinado dependia de
fatores alheios às forças políticas os quais, concreta e presentemente, colocavam sua
existência em xeque a todo momento.
2.4. Manutenção da ordem, da paz e da legalidade contra a violência e a
desagregação
Os temas e oposições figurativas presentes nos textos analisados até aqui se
encontram intimamente relacionados: humildade, correção moral e ligação com o divino
– contrapostos à mentira, ao pecado e à infidelidade, esta descrita como sacrilégio.
Todos estes aspectos confluem para a afirmação de um princípio maior, agregado a
presença e atuação de um santo bispo e de um rei legítimo e piedoso: o princípio da
ordem, da lei e da paz, finalidade última da existência dos poderes seculares. À ação
tirânica que contesta a existência dessas instâncias – a da virtude do bispo ou a da
lealdade ao rei – associam-se imagens opostas: desagregação, caos e violência.
No texto da Vita Desiderii, há três passagens em que atitudes consideradas
abusivas ou pecaminosas da parte de indivíduos em posição de poder (monarcas,
aristocrata) levam à reação de subordinados contra ou em prejuízo deles.
Na primeira, no parágrafo 8, o homem-difamador do santo é assassinado por
uma turba de burgúndios indignados com seus crimes, maldade, calúnias e ambição.157
Na segunda passagem, tendo em vista que Teuderico e Brunequilda:
“não pareciam emendar-se e sim piorar, e mais punham a perder
que governavam, tomados por vícios e voltando a reincidir no
pecado do perjúrio e, fazendo caso omisso dos propósitos do
sacramento, não procuravam com sacrílega intenção cessar em
sua perfídia nem deixar de persistir em seus crimes e ações”158
Desidério se coloca veementemente contra a postura dos monarcas, o que gera
da parte de ambos uma reação agressiva e uma condenação à morte.
157
VD, 8: “proprium illi tamen tinter nefanda scelera cupiditas opum et criminatio fuit”
VD, 15: “Cum nos prodesse, sed obesse, et magie perdere quam regere Theudericus pariter et
Brunigildis vitiis cernerentur infestis, atque labem periurii reserati et foedera sacramenti deserti, mente
sacrílega perfidi ad non esse pertenderente, nec quippiam de flagitiis vel facinus remaneret”
158
78
Na terceira e última passagem, no par. 20, quando Brunequilda decide entrar em
guerra com um povo vizinho, os guerreiros a seu serviço são tomados por “temor a
Deus”159 e fogem do campo de batalha covardemente, levando a rainha a terminar
capturada pelo inimigo.
Dois aspectos devem ser considerados quanto às cenas acima citadas.
Novamente podemos recorrer às Sententiae de Isidoro, e afirmar que Sisebuto
reconhecia, então, o princípio segundo o qual “rex eris si recte facias, si non facias non
eris”160, em outras palavras, que um exercício incorreto do poder político poderia, em
última instância, acarretar na perda deste poder. Note-se que, nos três casos assinalados,
os atos de rebelião ou de deserção dos súditos são atribuídos não ao seu próprio
interesse, mas à vontade divina ou o temor à Deus. Em outras palavras, o autor da
hagiografia ainda endossa o pensamento isidoriano, contrário à sublevação de súditos
contra soberanos,161 já que a referência à ação divina evidencia que o suporte póstumo
que Sisebuto oferece a Desidério em seu conflito com os governantes da Burgúndia
franca não implicaria necessariamente em um endosso do rei visigodo à rebelião
política, ainda que esta fosse revestida de uma orientação moralizante.
Já nos parágrafos 6, 8, 12 e 19 da Historia Wambae, vemos a rebelião ser
associada a abusos (ex.: mentiras e agressões que Paulo comete contra aqueles que se
opõem à sua tirania no par. 08) e ao desencadear da desordem, da violência generalizada
e da destruição das províncias e dos grupos e indivíduos envolvidos.
Tais referências vêem a reforçar o contraste entre legitimidade e ilegitimidade, já
que, como veremos posteriormente, a presença e atuação de Wamba são associados aos
efeitos opostos, na medida em que o rei se destaca pela capacidade de trazer ordem,
coesão e pelo seu interesse na manutenção da paz.
Os parágrafos em que se narram as vitórias do lado de Wamba correspondem
naturalmente a derrota do lado adversário. Os parágrafos a que nos referimos neste item
da análise (18-20, 27 e 30) se diferenciam pelo foco no enfraquecimento, na
desorganização e na humilhação dos revoltosos, com destaque particular para a
cerimônia triunfal que tem lugar em Toledo, em que a pompa do monarca legítimo
Wamba é contraposta aos signos de ridicularização que ornam o tirano Paulo e os
demais rebeldes sobreviventes.
159
VD, 20: “divinae siquidem terror partem pessimae mulieris invasit”
ISIDORO DE SEVILHA. Sententiae. III.48.7.
161
ISIDORO DE SEVILHA. Sent.III. 48.11.
160
79
As associações a atuação do bispo de Vienne, na Vita Desiderii, e do rei
toledano, na Historia Wambae, são opostas a estas.
Dois parágrafos da Vita denotam uma relação de dependência estabelecida entre
o bispo e os fiéis de sua diocese. No primeiro deles, o par. 11, narra-se o retorno de
Desidério a Vienne após a revogação de sua pena de exílio, e as conseqüências dele:
“ao compadecer-se o Senhor pela simples presença do seu santo
varão, pôs fim às penúris por desastres naturais, às frequentes
epidemias de peste e às turbulentas revoltas de toda a cidade, que
sem dúvidas, enquanto o pastor foi apartado de seu rebanho,
foram ocasionados por sua ausência.”162
O segundo por sua vez descreve uma cena imediatamente posterior à
condenação de Desidério à morte, e anterior à sua execução, quando os fiéis de Vienne
se mostram desesperados perante a perspectiva de perder o seu bispo, dizendo:
“Não nos jogues, por Deus, às bocas dos lobos; não permitas
que nós, tuas ovelhas alimentadas até agora como o delicioso
néctar das flores, nos desgarremos entre abrolhos afiados nem
espinhosos cardos só porque o pastor descuidou de sua
vigilância”163.
Observamos dois elementos que marcavam a relação entre comunidade e
homem santo no discurso hagiográfico: na primeira passagem, a presença do santo
representa um fator de manutenção e afirmação da ordem, uma ordem que é ao mesmo
tempo natural e sobrenatural, porque subordinada à vontade divina; na segunda,
podemos identificar elementos da relação que Santiago Castellanos denomina
patronatus caelestis,164 e que, neste caso, antecede a própria morte do santo.
Também nos parágrafos 2, 9, 12-15, 17, 24, 26 e 28 da Historia Wambae, o rei
Wamba é representado como um fator de coesão e ordem, seja para o seu exército, seja
para o reino como um todo.
162
VD, 11: “nam calamitatum penurias et erebras pestiletiae clades insolentesque totius urbis procellae
sancti viri praesentia, Domino miserante suspendit, quas indubie, remoto pastore, causa eius absentiae
praessit.”
163
VD, 17: “Ne, quaesumus, luporum nos in faucibus mittas; ne oves tuae hactenus nectareis floribus
suabitate refectae mordacibus tribulis vepribusque falcatis laniemur, minus procurante pontifice!”
164
CASTELLANOS, Santiago. Conflitos entre la autoridad y el hombre santo. Hacia el control oficial del
Patronatus Caelestis en la Hispania visigoda. Brocar, Logroño, n. 20, p. 77-89, 1996. p. 83.
80
Podemos fazer uma subdivisão nesta categoria de referências a fim de distinguir
as que se referem ao exército em batalha (9, 13-15, 17 e 24) e aquelas que podem se
voltar a um conjunto social mais amplo (2, 12, 26 e 28).
Uma primeira consideração a respeito destas passagens pode atentar para o
direcionamento mais claro da obra: a condenação de uma iniciativa separatista
protagonizada por certo segmento da aristocracia visigótica. Este aspecto nos permite
explicar a ênfase de Julian de Toledo nas habilidades de ordem e comando do monarca,
que teria o fim de reforçar a imputabilidade dos rebeldes tanto por sua iniciativa quanto
pela sua derrota: diferentemente do que Paulo alegara,165 Wamba seria um exímio
comandante militar,166 os guerreiros ao seu serviço seriam bravos e corajosos e tornarse-iam mais ainda em função da atuação de seu líder,167 e por fim, o monarca devia o
seu poder a uma escolha consensual da elite visigótica,168 e à própria aprovação
divina.169 Assim, apenas o desatino170 e os vícios171 dos revoltosos poderiam tê-los
motivado a dar início e patrocínio à sua empreitada.
Mas outro dado importante ressaltado por Julian é que o monarca não apenas é
apresentado como aquele capaz de unir os seus súditos, mas também zelar pela paz e
pela solução não-violenta dos conflitos. Mencionamos anteriormente a atuação
misericordiosa/clemente do monarca com relação aos rebeldes e às populações das
cidades envolvidas na revolta. A misericórdia era considerada pelos autores
eclesiásticos um elemento do bom exercício da justiça, mas principalmente uma
condição para a manutenção da paz, já que pressupunha o direito do soberano de usar de
violência contra os súditos, mas nunca mais que o necessário para corrigi-los, e sempre
menos que o suficiente para ameaçar todos os súditos.172
Podemos notar a influência das diretrizes episcopais no que se refere à conduta
dos reis e ao dever da clemência e distinguir relações envolvendo as disputas políticas
entre monarquia e grupos nobiliárquicos. A reação aristocrática contra políticas
coercitivas perpetradas por monarcas como Chindasvinto ou o próprio Wamba podem
165
HW, 16.
HW, 10, 15, 24.
167
HW, 9, 10, 13-14, 17.
168
HW, 2.
169
HW, 4, 23.
170
HW, 17, 19-20, 25.
171
HW, 5-7.
172
Cf. ISIDORO DE SEVILHA. Sententiae. III. 50.1, 52.4, 53.1. e, antes dele, SÊNECA. De Clementia.
Lib.I. Cap.2, 5.
166
81
ter induzido os ideólogos do reino, como Julian e, antes dele, Isidoro de Sevilha,173 a
pôr particular relevo à recomendação aos monarcas de que seus súditos deveriam vê-los
como protetores generosos, e não como saqueadores ou algozes. Em outras palavras, ao
apresentar como exemplar o perdão de Wamba às cidades envolvidas na rebelião galovisigoda, Julian provavelmente pretendia indicar, em consonância com disposições
conciliares presentes no VIII, no XII e no XIII Concílios de Toledo,174 que o exercício
da justiça contra traidores podia ser sacrificado ou ter seu peso atenuado nos casos em
que sua prática intransigente pudesse resultar em ameaça à paz e à harmonia entre reis e
súditos.
Há que se destacar ainda, na Historia Wambae, o acento conferido pelo autor à
questão da legalidade. Novamente, temos aqui o registro do modo como a redação da
Historia Wambae estava intimamente relacionada a um contexto de contestação da
autoridade política da monarquia toledana. A dimensão da legalidade não se encontra
ausente da Vita Desiderii, como bem lembrou Rachel Stocking, mas na hagiografia essa
dimensão é representada em seu viés negativo, que é o do abuso do poder sobre a
atividade conciliar, judicial e legislativa.175 Mas tal como o autor da Historia Wambae,
Sisebuto parte do pressuposto de que o que define e distingue a legítima autoridade
régia cristã não é a dimensão dos seus poderes, mas como e em prol de que causa eles
são utilizados.176 O autor da Vita Desiderii, como ressaltamos anteriormente, teve um
reinado marcado pelas suas interferências na organização episcopal, interferências do
mesmo gênero que aquelas responsáveis pelas divergências entre Wamba e o
episcopado ibérico, expostas no XII Concílio de Toledo, realizado após a deposição do
monarca e presidido por Julian.
Avaliando o teor da Vita Desiderii e da Historia Wambae, pode-se concluir que
Sisebuto e Julian de Toledo se aproximavam no que diz respeito à idéia de que um
“abuso de poder” ou o “exercício correto do poder” da parte dos monarcas se definiam
de acordo com o nível de adesão ou de afastamento desses em relação aos princípios
cristãos. Mas analisando a atuação política de cada um a frente de reino ou do
arcebispado de Toledo, respectivamente, podemos perceber que o rei-hagiógrafo e o
173
Sobre as proximidades entre o discurso isidoriano e a obra de Julian, cf. GARCIA HERRERO,
Gregorio. Julian de Toledo y la realeza...op.cit. p 215.
174
Lembrando que os dois últimos foram realizados no reinado imediatamente posterior ao de Wamba,
sendo que no XIII Concílio, nobres que haviam se aliado a Paulo em sua rebelião foram anistiados.
175
STOCKING, Rachel L. op. cit. p. 127.
176
“Sisebut, however, criticized those evil rulers not for their meddling but for their motives, and
particularly for their methods.” Cf., Ibidem. p.128.
82
bispo-historiador se distinguiam sobre em que medida consideravam, ou não, a extensão
dos poderes dos monarcas um aspecto capaz de tornar sua atuação abusiva. Este dado
permite que concordemos com a tese de que a construção do personagem Wamba na
Historia Wambae está menos relacionada com ações e qualidades que Julian de Toledo
efetivamente atribuísse ao monarca Wamba, do que com a tentativa de concretizar um
ideal de rei cristão, personificando-o na forma de um ator histórico conhecido e, por
isso, capaz de conferir àquela representação um maior grau de verossimilhança.
O foco de Julian na Historia Wambae é definir o rei legítimo em função do
cumprimento estrito da legislação civil e conciliar e dos acordos políticos tecidos pela
monarquia. Os pontos do texto em que Julian ressalta a preocupação de Wamba com o
estrito cumprimento da legislação aparecem nos parágrafos 3 e 27. No primeiro deles,
após a aclamação pela aristocracia durante o funeral de Recesvinto, Wamba faz questão
de ser oficialmente entronizado como rei em Toledo, pelas mãos do bispo da cidade,
“para que não se pensasse que, cego por uma repentina ambição de poder, havia
usurpado ou roubado, e sim que havia recebido do Senhor o signo de tamanha
honra”177. No segundo parágrafo mencionado, Wamba cita um pacto entre godos e
francos como razão para evitar maiores hostilidades contra o povo vizinho, ainda que
este, de acordo com a narrativa, contasse com súditos sendo presos junto aos
participantes da revolta.
A primeira das referências nos parece claramente um recurso que visava tanto
rebater eventuais questionamentos a respeito do processo que conduzira Wamba ao
poder após a morte de Recesvinto, quanto tornar ainda mais patente o caráter ilegítimo
da rebelião liderada pela aristocracia galo-visigótica, por meio do contraste entre a
postura de Wamba e aquela do duque Paulo que, “tentado por ambição de poder, se
despoja de repente de sua fidelidade, mancha promessa de respeito feita ao poderoso
soberano, se esquece de seu dever para com a pátria...”178.
Além disto, há que se considerar o discurso atribuído a Wamba com relação à
importância de o novo rei ser coroado em Toledo, pelo bispo de Toledo. Trata-se de
uma clara afirmação da supremacia do segmento palaciano da elite aristocrática e
episcopal no que tange aos processos sucessórios e decisórios no regnum. Supremacia
contra a qual movimentos como o liderado por Paulo constituíam um sério desafio.
177
HW, 3: “scilicet ne, citata regni ambitione permotus, usurpasse potius vel furasse quam percepisse a
Domino signum tantae gloriae putaretur.”
178
HW, 7: “Regni ambitione illectus, spoliator subito fide. Promissam religiosi principis maculat
caritatem, praestationis oblibiscitur patriae…”
83
No que tange a referência ao pacto de paz entre francos e godos, Gregório Garcia
Herrero defende que a Historia Wambae teria sido produzida em um momento de
animosidade entre as duas elites romano-bárbaras. Considerando remota possibilidade
de os francos terem efetivamente auxiliado Paulo e seus cúmplices e a menção a
existência de um acordo de paz entre os dois povos em vigor nos tempos de Wamba, a
única explicação para que os francos tenham sido inseridos nos acontecimentos por
Julian, e sempre de forma a ressaltar sua inferioridade em relação aos godos, seria a
existência de uma animosidade atual, isto é, no momento de composição da narrativa.179
Já Renan Frighetto, defendendo uma datação anterior para a obra (que, para ele, teria
sido escrita entre 673 e 683), lembra que, pouco antes do período em que Wamba e
Paulo se enfrentaram, ocorrera no reino franco uma rebelião nobiliárquica contra o rei
Clotário III da Nêustria e seu prefeito Ebroin, protagonizada por ninguém menos que o
duque Lupo mencionado por Julian de Toledo como um apoiador da rebelião da Gália
visigoda.180
Endossamos a hipótese de Garcia Herrero, bem como a datação que o autor
propõe para a obra. Entretanto, não desconsideramos o valor da menção de Julian a
Lupo e a coincidência apontada por Frighetto. Em nosso entendimento ela mais
favorece a tese do espanhol do que a contradiz. Isto porque, havendo um pacto de nãoagressão entre visigodos e francos vigorando durante o reinado de Wamba, mas
havendo também o interesse da parte do bispo toledano em reforçar a vinculação da
rebelião de Paulo a grupos e interesses externos ao regnum visigótico,181 faria sentido
que Julian de Toledo visse como solução associar os rebeldes da Gália visigoda a
francos que estivessem em situação de insubordinação para com o rei dos francos. Neste
caso, o envolvimento destes aristocratas estrangeiros não implicaria na existência de um
conflito entre os reinos.
No mais, ao mencionar a postura prudente do monarca visigodo, em honrar o
acordo de paz apesar da presença de francos na revolta, o bispo toledano acentuaria
ainda o compromisso de Wamba com a manutenção da paz no reino.
Observamos, no caso da Vita Desiderii, que o bispo de Vienne aparece
questionando os monarcas, mas que este ato não poderia ser revestido do mesmo
179
GARCIA HERRERO, Gregório. Sobre la autoria de la Insultatio...op. cit. p. 197-198
FRIGHETTO, Renan. Memória, história…op. cit. p. 61.
181
Sobre a dimensão simbólica das referências às fronteiras do reino visigodo e aos contatos entre
membros da elite nobiliárquica com povos estrangeiros, cf. MARTIN, Céline. “In Confinio Externis
Gentibus”: La percepción de la frontera en el reino visigodo. Studia Historica. Historia Antigua,
Salamanca, n. 16, p. 267-280, 1998. p. 279.
180
84
sentido que o da rebelião de Paulo na Historia Wambae, já que o bispo se levanta não
na qualidade de mero súdito, ainda que ele seja julgado pelos monarcas como tal, mas
de representante de uma instância superior, a do Juízo Divino. Logo, dentro dessa
lógica, é o bispo quem representa a ordem, não os reis, que perdem a posição capital
que lhes foi atribuída na comunidade dos fiéis com a dignidade régia ao adotar uma
postura pecaminosa.
No caso da Historia Wambae, cabe atentar para a relação excludente que o autor
da historia estabelece entre atos de contestação nobiliárquica e o regnum. Em outras
palavras, tratar-se-ia de apresentar a submissão à autoridade do rei toledano como
condição não apenas para a manutenção da integridade daquela sociedade, entendida
como um todo, mas também para preservar a própria identificação do indivíduo com a
gens gothorum, aí referida restritamente como gens spana.
Em ambos os textos, por outro lado, pode-se identificar o atrelamento entre
dimensões políticas e religiosas do exercício do poder régio e do poder eclesiástico.
Virtude e Legalidade são apresentados como sustentáculos indissociáveis de uma única
ordem, dentro da ideologia que permeia os discursos produzidos pela monarquia ou em
prol dela, discursos dos quais os elementos selecionados da Vita Desiderii e da Historia
Wambae aqui analisados constituem-se em exemplos muito peculiares.
Em suma, iniciamos este capítulo com uma exposição de aspectos concernentes
às relações de poder no reino visigodo, a qual foi dividida em três eixos. No primeiro,
analisamos o processo de institucionalização da monarquia visigoda toledana em fins do
século VI – que culmina na conversão do rei Recaredo em 589 e a cristianização dos
princípios de autoridade régia que daí se segue. Em seguida, tratamos da obra de Isidoro
de Sevilha e da sua relação política e intelectual com o monarca Sisebuto, autor de um
dos nossos documentos. Por fim, apresentamos as rebeliões nobiliárquicas registradas
no reino ao longo do século VII, bem como a reação dos reis associados ao episcopado
toledano contra esses movimentos e as contradições que eventualmente se revelaram na
relação entre monarquia e hierarquia eclesiástica naquele processo. Observamos que,
mais que propriamente eliminar as contestações da aristocracia contra a centralização
política e a preeminência dos reis toledanos e suas famílias em detrimento de seus pares
nobiliárquicos, a cristianização dos princípios de autoridade régia no reino visigodo
vem re-elaborar o sentido que monarquia e Igreja buscam atribuir a essas associações,
conflitos e dissidências.
85
Este ponto é corroborado pelos dados obtidos em nossa análise da Vita Desiderii
e da Historia Wambae. A afirmação da humildade associa-se a preocupação em
assegurar os critérios de ascensão de bispos e monarcas ao poder. Manifestações divinas
em favor de santo e rei, descritas na hagiografia e na historia respectivamente,
aparecem para reforçar o vínculo desse santo e desse rei àquele considerado, no
pensamento cristão, como a fonte de toda forma de poder legítimo: Deus e sua graça. A
consciência manifesta pelos personagens a respeito de sua responsabilidade tanto pela
salvação de seus fiéis e súditos, conforme o caso, quanto pela manutenção da paz e da
ordem social, coroam os discursos em que o pecado e a dissidência política, avaliada
como uma forma de dissidência religiosa, têm lugar apenas como fatores de
desagregação, instabilidade, violência e caos.
86
CAPÍTULO 4: Conclusões
Nos propusemos neste trabalho a analisar o modo como as relações de poder e as
ideologias que tratavam da associação entre monarquia e episcopado no reino visigodo
interferem na construção das narrativas Vita Desiderii e Historia Wambae. Teve
particular importância entre os nossos pressupostos o de que as ideologias, bem os
discursos por meio dos quais elas são veiculadas, servem a estratégias visando
racionalização e a atribuição de sentido a ações de grupos, instituições e indivíduos,
bem como aos acontecimentos e fenômenos que se entendem associados a essas ações.
Explicitamos que duas das formas narrativas mais difundidas durante a chamada
Antiguidade Tardia ou Primeira Idade Média, as historiae e os relatos hagiográficos
trazem em si como traço comum a inserção dos acontecimentos que narram em uma
linearidade demarcada e definida de acordo com parâmetros prévios, estabelecidos pela
divina providência. Assim, serviam a ideologias e agentes interessados em dotar
acontecimentos considerados extraordinários, ou irregulares em relação a uma ordem
estabelecida, de um sentido consoante com teorias prévias que conferiam explicação ou
conformação unívocas e “naturais” ao mundo, a sociedade e à própria história.
Dialogamos com uma profícua historiografia que tem se dedicado ao estudo das
relações de poder envolvendo a monarquia e as autoridades eclesiásticas nos reinos
germânicos, propondo uma contribuição à luz dos pressupostos da história comparada,
que nos permitiria, a partir do confronto entre os textos selecionados, reavaliar
interpretações e modelos explicativos comumente dirigidos aos textos produzidos
naqueles reinos. Em nossa análise, contamos com o suporte de estudos, produzidos
desde as últimas décadas do século XX, voltados de forma específica à Vita Desiderii e
à Historia Wambae mas que, apesar de trazer contribuições importantes ao
entendimento de questões envolvendo o entorno político e literário dos textos, de um
modo geral, principalmente no caso da VD, ainda subestimam a importância da análise
de aspectos da construção e do teor das narrativas para a compreensão de elementos das
relações e concepções de poder em voga nas sociedades que as produziram.
No que concerne ao contexto político visigodo no século VII, consideramos
necessário ter em vista três processos concomitantes e intimamente relacionados. Um
primeiro foi o da institucionalização da autoridade régia visigoda na Península Ibérica
que envolveu tanto a adoção de práticas e signos de poder associados à tradição
romano-bizantina, ainda no século VI, quanto, num segundo momento, a conversão do
rei e da aristocracia e sua associação com uma instituição eclesiástica que contava entre
88
os seus quadros com membros de tradicionais famílias hispano-romanas. A este
processo seguem-se dois que são o do estreitamento dos vínculos entre a monarquia e a
Igreja toledana ao longo do século VII, expresso no conteúdo das atas dos concílios
gerais realizados na capital visigoda, e o das dificuldades enfrentadas pelos reis de
Toledo para assegurar a centralização do poder em meio aos anseios autonomistas da
aristocracia provinciana. A solução encontrada, expressa no teor das atas conciliares e
na legislação, foi a associação entre regnum e Igreja, na qual conflitos e dissidências
tinham o seu peso e impacto nas relações de poder e instituições reduzido, no plano
ideológico, em favor da exaltação da centralidade e preeminência da monarquia
toledana como representação da unidade da fé cristã e da Igreja e, por extensão, da gens
gothorum que se via nela incluída desde 589.
Os três processos acima citados condicionam de diferentes formas a produção da
Vita Desiderii e da Historia Wambae. A primeira, escrita em princípios do século VII,
vincula-se às questões relacionadas à associação entre monarquia e Igreja que sucede à
conversão dos visigodos em 589. O rei Sisebuto, seu autor, demonstra particular
preocupação com as implicações da missão de que se via imbuído como rei cristão e
católico, preocupação manifesta tanto no teor de sua hagiografia, como demonstramos,
quanto na sua atuação como monarca, não hesitando em tomar a frente de iniciativas
voltadas à homogeneização religiosa do reino e o controle da conduta dos bispos.
A segunda, escrita em fins da década de 680, por sua vez, traz em si as marcas
dos conflitos envolvendo monarquia, aristocracia e episcopado ao longo do século VII.
Tais conflitos não apenas trazem entre os seus produtos choques e dissidências como as
narradas pela Historia Wambae, como também uma maior preocupação com o uso que
os soberanos fazem dos poderes que lhes são atribuídos. Medidas consideradas
autoritárias tomadas durante os reinados de Chindasvinto e do próprio Wamba fizeram
com que o sentido teocrático e salvacionista atribuído a autoridade régia visigótica se
revelasse uma faca de dois gumes: mais que conferir legitimidade e estabilidade a
autoridade régia e contribuir para a pacificação dos processos sucessórios, a
cristianização do poder dos monarcas serviu de pretexto para alguns deles atuarem em
detrimento dos interesses do episcopado e mesmo de amplos setores da aristocracia,
como indicam os cânones de algumas das atas conciliares toledanas. Ainda assim, tendo
em vista a forte vinculação construída entre a manutenção da monarquia e os projetos
políticos da sede episcopal toledana em relação ao conjunto da elite eclesiástica
peninsular, fez-se necessário, para Julian de Toledo, enfatizar a importância da
89
existência de um rei forte e comprometido com a unidade do reino e da fé para a
salvaguarda da ordem social e mesmo da salvação da gens gothorum.
Em que pesem essas diferenças, determinadas pelo próprio distanciamento
temporal entre as duas narrativas e pelas conseqüências dos acontecimentos registrados
ao longo desse período, podemos observar, a partir da análise e da comparação entre os
documentos, que as duas narrativas expõem acontecimentos e conflitos distintos – o
choque entre dois monarcas e um bispo na Gália franca, e um choque entre um rei e um
usurpador do trono na Gália visigoda, respectivamente – como se fossem um mesmo
conflito. Em outras palavras, tanto na Vita Desiderii quanto na Historia Wambae
conflitos políticos são narrados sob a forma de um conflito entre duas categorias de
valores: a Virtude, representada na figura do bispo-santo e do rei legítimo, e o Vício,
representado nos tiranos de diferentes espécies que antagonizam os protagonistas de
cada narrativa.
Nas duas narrativas, os valores associados à Virtude se expressam pela
submissão a Deus e pela salvaguarda da ordem, da lei e da moral cristã. Os milagres,
associados tanto a figura do santo quanto à do rei, aparecem como elementos capazes de
atestar a legitimidade dos atos de um e de outro frente a seus adversários. No outro lado,
em que figuram os dois monarcas ímpios e o súdito infiel que se converte em tirano, um
espelho invertido mostra imagens em que imperam o mal uso do poder, o pecado, a
violência, a desagregação, a mentira, a irracionalidade e, por fim, a derrota, apresentada
como conseqüência providencial da opção dos derrotados pelo caminho do Diabo e da
infidelidade, aqui entendida como sacrilégio.
Em ambos os casos, o cristianismo aparece como critério distintivo do domínio
da ordem, da legitimidade e da justiça. Um homem santo e um rei são dotados das
mesmas funções no que diz respeito à garantia da salvação, da manutenção de suas
comunidades religiosa e política, respectivamente, no caminho pré-definido por Deus.
Pode-se considerar que, nos dois textos, manifesta-se uma concepção segundo a qual,
sendo todo poder oriundo da divindade, todo poder, seja ele político ou eclesiástico,
deve voltar-se a ela. Ou seja, santo e rei, na Vita Desiderii e na Historia Wambae,
apresentam-se como personificações de um único poder, incumbido por Deus de
conduzir a sociedade cristã no caminho da retidão e do Paraíso.
Esses princípios, desenvolvidos e difundidos por meio de diversa e numerosa
produção intelectual eclesiástica no reino visigodo e fora dele, ao serem expostos em
forma narrativa e histórica adquirem a materialidade necessária para torná-los não
90
apenas críveis, mas visíveis no tempo. Desse modo, na visão de seus autores,
contribuiriam para que os grupos e indivíduos que os textos tinham como alvo tivessem
acesso tanto a uma memória sistematizada e ordenada do passado quanto a esquemas
que lhes permitiriam dotar de sentido suas experiências e relações no presente, e de
forma consonante com a ideologia da elite produtora daqueles discursos.
91
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