Mestiço - do desvio

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Mestiço - do desvio
Contra a Arrogância Anglo-Saxónica: Alguns Parágrafos de
Esperança Mestiça
1 – Assistimos hoje, no discurso político que domina a grande
coligação anglo-saxónica belicista, ao triunfo total da modernidade.
Enquanto Blair assume a imagem da razão progressista abstracta,
Howard é a imagem falsificada do homem comum que trabalha e
acredita no progresso prático de quem é empreendedor. Já Bush
subsume tudo isto dentro de uma imagem belicista e conquistadora:
qual súmula evolutiva do darwinismo social, ele é o triunfo do mais
forte, do mais apto; um verdadeiro Daniel Boone de fato e gravata.
Eu queria contrapor a esta modernidade abstracta, elitista,
progressista, teleológica e bélica uma pós-modernidade: mas uma
pós-modernidade política de esquerda, fazendo minhas as palavras
de Boaventura Sousa Santos: uma pós-modernidade que seja “um
humanismo (…) construído contra as abstracções iluministas, a
partir da resistência concreta ao sofrimento humano”. Vejo esta pósmodernidade no discurso de posse do novo presidente brasileiro, o
amigo Luís Inácio Lula da Silva. Ela é um discurso que parte da
casuística. Assume a existência a partir da interacção e não a partir
de conceitos impostos como “guarda-chuvas” teóricos desde palácios
nos quais a fome nunca entrou. Ela é fluida, insistentemente
contraditória, incompleta, errante, “misturada” e humana,
exactamente porque diversa e “outra”. Para a explicar melhor,
preciso de a contrapor ao habitual discurso da esquerda moderna,
também ela habitualmente situada dentro do mito progressista. E,
para perceber a esquerda moderna, é necessário ver ainda onde se
situa o seu ponto de conflitualidade com a direita moderna.
2 – Tanto a direita moderna como a esquerda moderna são
essencialmente paternalistas, usando muitas vezes mecanismos de
opressão construídos na base de imagens que vêm de “baixo”, ou
seja, da sua reprodução como mecanismos de poder dentro da
própria estrutura da sociedade, por exemplo, na família, na igreja,
na fábrica, na escola, etc. Usam para isso o mito salvífico do
messianismo que, na cultura portuguesa, se traduziu na psique
sebastianista. É em torno do “político pai”, que salvará o mundo do
caos, que se joga a grande narrativa da razão: o político surge como
um profeta do “melhor dos mundos possíveis” – à maneira de
Leibniz – cuja chegada passa pelo assumir da modernidade contra o
arcaísmo, isto é, pelo discurso do progresso como mecânica da
divisão social e racionalizada do trabalho, pela produção em série,
pela construção da corporação em forma de organigrama ou, como
outro exemplo, mediante a planificação e o rigor metodológicos. Estes
1
processos assumem sempre a forma de um elitismo teleológico: é o
“político pai” quem conhece os fins; é ele que guia a massa em
direcção ao reino da felicidade e é ele quem conhece melhor (quando
muitas vezes não se apresenta até como seu criador) a estratégia para
lá chegar. Contudo, a esquerda e a direita modernas optam por
diferentes tácticas: uma pensa realizar o “reino kantiano dos fins”
mediante a flexibilização e a diminuição do estado; é esta a
perspectiva do neo-liberalismo. A outra sonha com o alcance da
“igualdade ilustrada” mediante o uso racional do progresso
estatizado. Na sua teleologia, ambas seguem o mito da razão com
resultados diferentes: a imagem do progresso oculta à direita a
exclusão (mediante a venda corporativa do espaço público) e à
esquerda a burocratização (através da criação de uma máquina
estatal pesada, “politburesca” e macrocéfala). Onde coincidem? Na
produção sistemática (isto é, feita pelo sistema) de alienação. Esta
degrada a própria ideia de política (surgindo esta divorciada do
pensamento e da ética) uma vez que o poder não é visto de forma
atributiva nem é disseminado como consciência (que seriam
características de uma esquerda pós-moderna). A acompanhar a
alienação surge, tanto na direita como na esquerda modernas, a
estetização mediática: a reprodução massiva do signo como
espectáculo, normalmente através da produção de binómios
modernos simplistas – tal como o próprio binómio entre esquerda e
direita com o qual se pensa esta diferença particular à falta de
melhor
–
(bom/mau,
segurança/medo,
exterior/interior,
outro/mesmo, claro/escuro, etc.), cria indiferença e manobra as
expectativas em direcção à previsibilidade e ao anteceder “seguro” e
arrogante das consequências (é o que acontece com a presente
Guerra: o “script” já estava escrito antes). Essa criação da
indiferença faz, por sua vez, com que a política deixe de ser política:
uma vez que se cria a ilusão da transparência, produz-se nas pessoas
o desejo de delegar a sua vontade democrática no “político-pai”; este,
por sua vez, deixa de ter um estatuto representativo ou participativo
(o que seria próprio de uma esquerda pós-moderna) para passar a
ser um holograma construído com base no espelhar televisivo dos
desejos e aspirações de uma maioria passiva, comodificada,
espectacularizada. Sendo – de facto – uma maioria nesse “primeiro”
mundo consumidor de imagens e bens materiais, é minoria no resto
do globo (contando já aqui os excluídos que residem no “primeiro”
mundo), o qual é sugado para as necessidades do primeiro no qual os
seus “políticos-pais” fazem crer que o único caminho para a
felicidade é aquele que sai dos seus valores tidos como universais.
Assim, uma vez que se “manufactura o consenso” (a expressão é de
2
Chomsky), faz-se crer, através da visão uniformizada (segundo a
qual certos valores do ocidente são os melhores e têm que ser
impostos ao “outro”, nem que para isso se use a força), que a razão é
a única forma de produzir felicidade (esta, obviamente, confundida
com o progresso e a evolução). Assim, os políticos são substituíveis
em função do “anjo da razão” que é o sistema (produtor de um
simbolismo abstracto, divorciado do real, unívoco, unidimensional,
isto é, uma máscara sem rosto). Este, produto de uma estratégia de
poder como panóptico, isto é, como controlo e vigilância, surge
envolto num discurso que dilui a diferença entre o verdadeiro e o
falso, através da racionalidade da retórica. Ora é esta mesma que
produz o desencantamento da democracia (talvez uma das razões,
para além de outras, pelas quais 50% dos americanos não votam e
25% dos australianos votam “nulo”) e a sua consequente
transformação – na modernidade – em ditadura de uma censura não
facilmente decifrável (uma vez que esta veste a roupagem do sonho
comercializado sob a forma de comodidade, sedução e imagem).
3 – Neste sentido, uma pós-modernidade de esquerda (para além de
outras características que fui apontando) é uma pós-modernidade
que apropria o conceito de “desobediência civil” como vontade de
poder (inspirada no dionisíaco de Nietzsche e no panteísmo de –
ninguém melhor, neste caso, que um pensador americano –
Thoreau): contra uma produção da lei como violência, a revolução da
não-violência, da manifestação pública do rosto, da procura da
verdade como autenticidade (o que é também um acto nietzscheano).
Buscar a transmutação axiológica contra a escravatura passa por
resistir ao estado quando ele é corrupto, isto é, quando olha o outro
sem o ver como igual na humanidade, tornando-o, por isso, objecto: é
por isso que uma sociedade alienada é constituída por indivíduos
passivos, tornados objectos que projectam no outro – que ainda não é
objecto – o desejo de o tornar igual. Esses indivíduos egoístas
desinteressam-se do bem comum da humanidade porque a julgam
universal, ou seja, confundem a sua passividade com uma
passividade globalizada. Indiferentes à barbárie, deslocam essa
mesma carnificina para fora de si: ela só existe enquanto projecção
televisiva, exactamente como o holograma que os governa. Fora de si
(voltamos à dicotomia exterior/interior) a barbárie é cómoda porque
está deslocada, uma vez que o poder da imagem apenas a reconfigura
como uma “barbárie outra”, que está além, que está fora e é culpada
de não querer ser mesma, isto é, de não querer partilhar dessa
mesma comodificação. Assim, o “civilizado”, o “evoluído” e o
“progressista” (que são o “mesmo”) atira(m) para fora o “outro” (o
“bárbaro”, o “arcaico” e a “besta”). O bárbaro é aquele que não
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aceita a civilização conforme “nós” a vemos, ou seja, como a
globalização de um modo único de ver o mundo.
4 – Como resistência a este modo de ver as coisas, urge, por isso, uma
pós-modernidade de esquerda. Ela é, já o dissemos, necessariamente
incompleta e consciente dessa incompletude; ela é contraditória e
consciente das suas contradições, uma vez que vive do conflito, isto é,
assume o conflito: é, por isso, fluida porque procura, errante porque
conceptualmente nómada, misturada porque intelectualmente
mestiça, alimentando-se da diversidade, abraçando o humano e – ao
não estar “de fora” – perspectivando-se como “outra” e
perspectivando o outro (não o engolindo) como “outro”. Ela é, por
isso, participativa porque não delegatória, atributiva porque
responsabilizante, consciente porque não egoísta, não passiva e
comunitária. Anti-paternalista, concebe-se como distributiva de
poder; não-salvífica, parte de uma cidadania reflexiva, isto é, de uma
cidadania cosmopolita que sabe que não existem sociedades perfeitas
nem culturas completas (ao “multiculturalismo” ela prefere o
“interculturalismo” como processo em direcção à possibilidade de se
trabalhar um “transculturalismo”). Não-teleológica, não vê o
progresso como um ideal abstracto ou um reino dos fins,
substituindo-o por uma noção de justiça não como ideal, mas como
prática quotidiana do bem comum e da comunidade (perfil ético da
política). Nesse sentido, ela não é estratégica, nem metódica, nem
vigilante (ou panóptica). Substitui tais conceitos, produzidos pelo
falso universalismo da arrogância branca ocidental, pela necessidade
de uma atenção permanente ao contexto, à pluralidade. No entanto e para finalizar – contra a direita pós-moderna, ela não é cínica, nem
indiferente, nem vazia, nem sonâmbula, nem amnésica. Parte da
denúncia permanente das formas de opressão que impedem o
humano de se concretizar nas várias e diversas (portanto, plurais)
formas que este assume.
5 – Ao analisarmos o cumprimento da modernidade pelos “senhores
da Guerra”, talvez seja útil começar respondendo às suas marcas
distintivas: porque são eles paternalistas? Exactamente no sentido
em que o seu poder se exibe (com várias nuances) sob a forma de um
discurso fálico. Nesse contexto, trata-se de assumir a nível do
discurso político uma das narrativas dominantes do ocidente, que se
ergueu sob a forma do patriarcado. Essa tutela subconsciente
ultrapassa diversas divisões sociais, para se erguer desde a família (o
“chefe”) até à escola (o “mestre” e o “reitor”), passando ainda pela
instituição militar (até a internet se hierarquizou em função do
“Phalo” corporativo, de uma forma que faz lembrar o filme “In the
Company of Men”). Mesmo quando ocupada por uma figura
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feminina, a tendência normal (ou normalizada) da chefia ocidental
(não quer dizer que não exista, por exemplo, no oriente: isso já está
assumido) é o seu carácter eminentemente intrusivo, isto é,
penetrante, violador da intimidade. Nesse sentido, o patriarcado
ocidental é visivelmente fálico no sentido da vigilância, isto é, no
aspecto freudiano de uma construção bloqueada da repressão. Nos
casos presentes, ele assume características diversas: enquanto Blair
toma normalmente a forma do “pai conselheiro” (informador,
apaziguador, construtor – dentro da mentalidade do “filho
prevaricador” – de uma interiorização da norma da lei), já Bush
assume o discurso do “pai tirano” (aquele que proíbe, que pune, que
extorque, imagem muito própria da extensão do braço em direcção à
arma – como no filme “Winchester 73” – cuja espiritualidade se sente
castrada no caso da ausência desse mesmo fuzil). Já Howard, por seu
lado, tem a figura do “pai companheiro” pseudo-igualitário
(preocupado com o bem estar da “família”, simples, amante de
desporto na nostálgica companhia de um filho cuja prevaricação está
desejoso de trazer de volta para os “carris da normalidade”, nos
quais “deve” cumprir a missão de um respeito universal pelas
instituições e pelo direito criados pelo pai). Onde se cruzam, então, as
características deste patriarcado? Na mitologia da salvação.
6 – Tudo isto, porque se trata de convencer os rebeldes que “nós”, os
“pais”, sabemos o que é melhor para “eles”. Afinal, nós somos a
civilização desenvolvida, porque nós é que criámos a “riqueza” com
que eles se alimentaram tanto tempo e que agora pretendem rejeitar!
Não esquecer, apesar de tantos anos de sanções, que o Iraque de
Saddam era, apesar do “estalinismo” dominante, o estado mais
secular da região. Esquecer tudo isto, é esquecer que para os
iraquianos também Saddam desempenhou a figura do “pai”, do
condutor austero, do tirano laico. É esquecer também que, em
séculos de dominação, nunca ninguém perguntou, de facto, ao povo
do Iraque o que este desejava. É esquecer que o Iraque é um produto
do fim do colonialismo inglês e, com ele, da divisão das suas várias
etnias, entre as quais as mais oprimidas (os Curdos e os Xiitas) pelas
armas ocidentais dos sucessivos governos de Bagdade. Neste sentido,
o mito da legitimidade do salvador, na sua crença de superioridade,
produziu miséria e desolação. Dividiu (por exemplo, o Curdistão em
quatro) em vez de unir. Aniquilou em vez de alimentar. O salvador, o
pai salvador, é assim o produtor da miséria do filho, de um filho
negado ao qual nunca foi perguntado se, enquanto outro, aceitava
essa filiação judaico-cristã. Visto como arcaico, esse filho é negado
dentro do mito da razão associada ao progresso e é visto, enquanto
tal, como inferior, dentro de uma concepção de sobrevivência da
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cultura mais forte, eivada de elitismo teleológico (crença de que os
valores de um têm que ser os valores de todos, isto é, universais). Tal
concepção tem profundas raízes no mundo anglo-saxónico,
nomeadamente através da associação do puritanismo religioso com o
evolucionismo. Esta não surge tanto no plano do evolucionismo
darwinista (embora o darwinismo possa ser visto como uma
teodiceia), uma vez que a noção de evolução por adaptação, em
Darwin, dava uma maior ênfase ao contexto (alias, falar em evolução
no plano darwinista e, mais tarde, no plano da genética das
populações, não corresponde totalmente a falar numa evolução ontoteo-teleológica, como se existisse apenas um plano pré-estabelecido
dentro de uma qualquer noção de “natureza”). Nos discursos
políticos de Blair, Howard e Bush, sobretudo no que se refere à
habitual tese do “choque de civilizações” (reportada a Huntington) e
à superioridade do ocidente (cujo grande arauto é David Landes), a
versão evolucionista mais frequente é a do darwinismo social. Esta
corresponde a uma marca fundamental da modernidade dominante
anglo-saxónica e da sua concretização no discurso globalizado neoliberal.
7 – De facto, enquanto Darwin concebia a diferença com relativa a
factores geográficos, que entravam no jogo da selecção como
momentos decisivos de “escolha” por adaptação (por isso diferiu de
Lamarck, muito mais determinista), hoje temos tendência – no plano
dos discursos culturalistas que se tornam inconscientemente
discriminatórios – para pensar a diferença apenas a partir da cultura
e para reinvestir a biologia a partir dela, com uma quase que geral
tendência para universalizar. De facto, este é um dos frutos perversos
do marxismo na ideologia neo-liberal. Enquanto que algumas das
ideias fundamentais da crítica social marxista (como a alienação, o
humanismo genérico e a análise da divisão do trabalho) foram
relegadas para o “caixote de lixo” da história (sobretudo porque
abaladas pelo estalinismo, que as silenciou), aquelas que se
mantiveram foram curiosamente adaptadas pelo discurso neo-liberal,
numa curiosa união – profundamente moderna – entre a oficialização
burocrática e propagandista do “pai” Joseph e os arautos da “livre”
iniciativa. Entre estas ideias está – obviamente – a ideia de que a
história tem um sentido – um “fim” (enquanto finalidade hegeliana)
– aliás muito bem aproveitada pelos pensadores da democracia
liberal no seu contentamento com esta enquanto estado acabado e
perfeito do “espírito”. É neste sentido que se inscreve – enquanto
tipicamente marxista – a descrição que David Landes faz da
“inevitabilidade” da subida ao poder da burguesia europeia. É
também no plano do reinvestimento cultural de uma noção
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“ambígua” (e também ela produzida culturalmente) de “natureza”
que surge a forçada versão que Herbert Spencer deu de Darwin. Na
senda do cientismo próprio da época (bem descrito por Comte no
sentido de que “ou as ciências humanas se tornavam … científicas (!)
ou não eram ciências” … Dilthey reagiria com a diferenciação entre
explicação e compreensão) Spencer acreditava que os europeus
brancos e protestantes tinham evoluído (ou progredido) mais que o
“resto” e que a versão correcta do mais adaptado era aquele que
dominava através do poder económico contra os pobres (ou seja, o
grupo dos “não dotados” de capacidade competitiva). Para Spencer,
uma sociedade ilustrada seria aquela em que os inadaptados fossem
“autorizados” a morrer. Por outro lado, associada ao “contrato”
calvinista, esta teoria transformou – nos países anglo-saxónicos – o
estado previdência no contrário dessa “autorização para a morte”
através da psicologia da vítima. Por outras palavras: aos “incapazes”
(definidos como incapazes a partir “de cima”) não deve ser dada
educação (algo que eles “obviamente” não alcançam) mas, sim,
auxílio no sentido do “coitado” que não consegue e por isso deve ser
ajudado. Quem se passeia, hoje, pelas ruas de Londres, Sydney (na
Austrália basta ir ao chamado “Centrelink”) ou São Francisco
encontra isto bem marcado na face dos mendigos e dos
negligenciados (muitos deles Aborígenes ou Navajos, mas não só): a
produção social da indigência, da ignomínia e do parasitismo. Não
custa ainda a perceber como é que tal teoria se transformou na
ideologia da superioridade do ocidente (base teórica do liberalismo):
o homem europeu – ou ocidental – na sua ganância industrial e
individualista é o cume da evolução. A literatura americana – no seu
ímpeto lírico e crítico de denúncia – está cheia de desmontagens deste
modelo social. Uma boa leitura de Theodore Dreiser, Sherwood
Anderson ou Bret Easton Ellis demonstra bem essa capacidade de
acusação.
8 – Para se perceber melhor o modo como a versão de Spencer se
transformou – nos Estados Unidos – numa ideologia de estado é
preciso, no entanto, regressar à enigmática e tenebrosa figura do
pensador William Graham Sumner, em certo sentido o pai da ética
neo-liberal. Para Sumner a existência humana tem como traço
distintivo a competição (um executivo norte-americano, que conheci
de férias no Laos, dizia-me que a motivação principal para o seu
trabalho era competir com o colega do lado para que ele perdesse o
emprego primeiro; quando questionado sobre as pessoas que se
cruzavam na rua – nesse país do “terceiro mundo” onde se
encontrava “de férias” – apenas respondeu: “estão condenados à
extinção e não há nada a fazer!”). Sumner pensava que a competição
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é a essência da razão pela qual os mais inteligentes se tornam ricos e
os incapazes pobres (segundo o turista americano é a competição que
produz o domínio dos Estados Unidos, “the greatest country in the
world!”). Qualquer intervenção pública (Sumner era contra a ideia
de “estado previdência”) para minimizar o curso da natureza apenas
cria uma sociedade “artificial”, onde os pobres são sustentados, em
vez de se deixar a “natureza” seguir o seu curso, que é a eliminação
destes. Poderíamos perguntar, então, se não serão todas as sociedades
estruturas artificiais (no sentido de que são convenções simbólicas)!
De facto, o que acontece com os socio-darwinistas é que, ao
“naturalizarem” a sua ideologia, esquecem que as sociedades
humanas não têm apenas componentes naturais (cabendo desde logo
perguntar “que conceito de natureza?”): elas são também, como
disse, produtos de convenções culturais. Há um absoluto
esquecimento, por parte da ideologia socio-darwinista, de que se está
a reificar a linguagem (um bom exemplo disso é a célebre frase do
senso comum: “não se pode mudar a natureza humana!” Apetece
logo perguntar: que natureza humana? De acordo com quais
critérios culturais, valores, crenças, ideias, etc.?). Assim, na
sequência deste baixar de braços perante a injustiça, Segundo o
darwinismo social de Sumner a responsabilidade do estado reside
apenas na manutenção “da ordem e da paz” (contra ataques
exteriores e insurreições interiores) e na “garantia dos direitos de
propriedade”. Para o darwinismo social o sucesso material é uma
característica insuperável da virtude: ele é um sintoma de progresso
e de capacidade estratégica (isto é, de método, de controlo). Sumner
alia aqui a pré-determinação biológica (por exemplo, a existência de
culturas “mais inteligentes”, como é tão do gosto do elitismo de David
Landes) à crença calvinista e puritana na predestinação do
“contrato” com Deus: os mais inteligentes e ricos são aqueles que
possuem o dom da “graça”. Por outro lado, é a riqueza – o sinal mais
forte deste elitismo teleológico – que assegura o futuro biológico dos
“melhores traços”. Esse processo dá-se através da acumulação
privada de capitais que podem, então, ser reinvestidos na educação
privada e na saúde, também privada, tudo com a “graça de Deus”
(por aqui se vê como a distinção anglo-saxónica – e sobretudo norteamericana – entre evolucionismo e criacionismo é, na prática, uma
falácia: os teóricos que mais se popularizaram no inconsciente
colectivo WASP, foram aqueles que conseguiram as melhores
“sínteses hegelianas” entre as duas ideologias). Ainda, para o
darwinismo social, associado à ética puritana, os “explorados” (e isto
tanto serve para os pobres do “primeiro mundo” como para a divisão
“Norte-Sul”) devem culpar-se a si próprios por o serem (é comum
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hoje em dia ver discursos arrogantes que dizem que a América
Latina é pobre por causa da corrupção e da desorganização dos seus
autóctones!). O que se passa com os pobres – segundo o sociodarwinismo – é que estes não se concentram no trabalho: segundo
Sumner, eles envolvem-se em “prazeres vulgares” (mais uma
afirmação elitista) como por exemplo a “promiscuidade” (é comum,
nos países anglo-saxónicos, a referência ao Brasil como pátria do
“desejo incontido”: essa referência ou é vista no plano da
descriminação positiva – “it’s so exotic!” – ou no plano da
descriminação negativa – “they’re disgusting and sleazy!”). Assim,
para Sumner, o poder deve estar bem distante das massas (no caso
actual, ele pertence ao “Norte civilizador”): estas devem ser
adestradas no sentido de o saberem delegar, sob pena de caírem na
anarquia (um bom exemplo para isto foi dado pelo comportamento
paternalista e arrogante das “Nações Unidas” em Timor, bem como
da ex-potência colonial – Portugal – e da pretendente a potência
colonial – a Austrália).
9 – O resultado de tudo isto está à vista de todos: uma enorme
arrogância bélica, globalizada sob a forma de legitimação universal e
produtora de alienação espiritual, uma vez que associada a formas
massificadas de desinformação. Sendo com base neste elitismo que se
justifica a desigualdade, é também com base nele que se justifica o
direito de agressão (“nós somos melhores que eles … temos que os
civilizar!”). O resultado traduz-se numa negação absoluta de
qualquer forma de humanismo e num silenciamento racista da
diferença (uma vez que se parte de uma ideia quase platónica – e
portanto metafísica – de imutabilidade da lei natural: trata-se por
isso de uma visão conservadora do globo que se quer estender
“revolucionariamente”). Esta crença na superioridade ilustrada
esquece que as sociedades são mutáveis e que essa mutabilidade não
obedece a nenhum plano pré-estabelecido (ou essência). Incapaz de
abraçar o caos e a incerteza – e justificando por isso a versão unívoca
de uma (e UNA) ideia de ordem – a modernidade imperialista anglosaxónica (associada ao poder de uma informação eminentemente
hierárquica) produz uma versão uniformizada do mundo que vende
sob a forma de imagem (há quem fale hoje de “cêéneénização” –
CNN – do mundo … eu acrescentaria “aolização” – AOL - … salve a
“Al Jazeera”!). É este sistema de vigilância panóptica do “outro”
(seja ele o pobre negro de L.A. que está – segundo o sistema de
controlo disseminado – sempre na iminência de assaltar um banco ou
o “governo pária” de um qualquer país do Médio Oriente) que se
vende como retórica da dominação dualista [(“nós e os “outros”, o
“mal” e o “bem”, o “civilizado” e o “arcaico”, o “interior” (a
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comunidade das nações bem comportadas) e o “exterior” (os estados
párias, armadinhos até “aos dentes” com químicos de destruição
massiva)]. É contra isto que surge uma desobediência civil sob a
forma de uma pós-modernidade de esquerda e de questionamento.
10 – Em que sentido poderemos, então, contrapor Luís Inácio Lula
da Silva à arrogância da modernidade anglo-saxónica? Em primeiro
lugar, Lula sobe ao poder com um discurso baseado na denúncia:
denúncia da fome, denúncia da corrupção e denúncia da cedência de
interesses que negam a autonomia do povo brasileiro. Para Lula, o
estado portou-se de modo corrupto porque, na sua ganância, tratou o
povo brasileiro como um objecto e não como um sujeito autónomo
(herança machista e patriarcal, bem presente na expressão brasileira
que caracteriza a exploração feminina como “mulher objecto”). Para
ser ainda mais óbvio – e usar uma linguagem “pêtista” militante – o
estado “trepou com o povo”. Ao fazê-lo, transformou o Brasil num
país alienado, vendido ao mercado anglo-saxónico (terminada a
exploração colonial portuguesa, o grande sugador da América Latina
foi o Império Inglês; mais tarde o “testemunho” foi entregue aos
Estados Unidos), isto é, um país de indivíduos que se foram tornando
egoístas (ainda hoje, grande parte das maiores fortunas do Brasil
coincidem com os limites das feitorias coloniais que o capital
estrangeiro reinante foi mantendo), passivos (dependentes de
multinacionais que criavam emprego mas não deixavam a riqueza no
país) e indiferentes perante a violência (mais uma vez, a literatura é
uma boa fonte de denúncia a isto: desde Graciliano Ramos até André
Sant’Anna, passando por Patrícia Melo ou Ruben Fonseca). Lula não
deixou de mencionar no seu discurso de posse que um país justo não
pode aceitar indiferentemente um estado de permanente guerrilha
civil, povoado de insegurança e de “crimes horrorosos e hediondos”.
A justiça social passa pelo acabar com a fome: só acabando com a
fome o brasileiro poderá ajudar comunitariamente no combate à
violência e à corrupção. Só num país onde se conclui, eticamente, que
o crime não é a via se poderá então combater a imagem do
“corrupto” como modelo social. É neste sentido, de uma reforma da
cidadania, que Lula estabelece um “compromisso” com o Brasil. Ele
sabe que esse é um projecto incompleto, criticável, errante e, talvez,
contraditório. No entanto, abraçando a diversidade riquíssima do
país que governa (onde o estrangeiro não é forçado a assimilar-se,
como na Austrália, mas onde é o próprio brasileiro que se vai
“assimilando” ao que vem de fora, numa acalorada e erótica
afirmação de mestiçagem) Lula quer que o brasileiro coma as três
refeições do dia a que tem direito (partindo assim da concretude).
Sabe que, se o conseguir, terá cumprido “a missão” da sua vida. O
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assumir do carácter imperfeito do seu projecto permite a Lula
resolver outro problema: retirar ao seu discurso qualquer ilusão
messiânica. Ele não é o salvador da Pátria. Usando o imaginário
televisivo, de carácter messiânico e sebastianista, ele não é nenhum
“Roque Santeiro”. Ele é um facilitador da democracia, um
incentivador do diálogo entre secções de uma sociedade
tremendamente inequalitária e injusta. Se conseguir colocar os
brasileiros em diálogo (e isso é apenas um projecto) Lula terá
contribuído “para o reencontro do Brasil consigo próprio”. Esse é,
por isso, um momento de optimismo resistente: um momento de
participação democrática mas também de atribuição de
responsabilidade. Esse é o momento em que o Brasil não pode
“baixar os braços”, o momento de uma cidadania consciente, que
sabe reclamar direitos mas que também assume deveres. Essa
cidadania é o lugar do mestiço: sem divisões, sem separações, ela é o
lugar da mistura, do diálogo, da fluidez anti-paternalista como fonte
de uma ética da política, de um abraço inclusivista à pluralidade de
cores de uma nação que sabe sonhar (sempre soube!) mas que quer,
hoje, ser o sonho do concreto. Por isso tudo, Lula é uma bofetada na
arrogância. O ex-operário de nove dedos é hoje o presidente de um
país ainda injusto mas não racista (esse racismo, que existe, não é o
dogma do discurso oficial nem a névoa surda da prática social, muito
mais marcada pela discriminação económica; aliás o racismo no
Brasil tem o seu quê de ridículo: quem pode clamar, numa nação
miscigenada, não ter sangue negro?): porque dialogante, porque
empreendedor, porque misturado. Contra o elitismo segregacionista
(que divide para reinar, que “guetoiza” para emudecer, que
uniformiza – exactamente no sentido do uniforme que as crianças
anglo-saxónicas usam para a escola – para reprimir) é minha a
esperança do Brasil. Eu sou, no que me constitui, na minha história,
afro-luso-brasileiro. Possa o Brasil de Lula, se não afirmar-se
plenamente, pelo menos denunciar o estado de “apartheid global”
(para homenagear um amigo que criou a expressão) a que a
arrogância anglo-saxónica nos tem condenado.
Francisco Nazareth
Sydney, Abril de 2003
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