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Domingo, 8 de abril de 2001
jornal da tarde
Cantando, ela reza pela paz mundial
Fotos: Maurício de Souza/AE
Um expoente do cântico
oriental, a freira maronita
libanesa Marie Keyrouz
esteve pela primeira vez
no Brasil. E disse que,
com sua música, quer
reunir todas as religiões.
Entrevista a Marc Tawil
lhoso sobre a beleza da alma. A
beleza física, neste caso, vem
realmente em último lugar. O
Cristo que eu sigo é um que deixa a alma mais bela. E é isso o
que me interessa.
Háalgumassemanas,oPrêmio Nobel da Paz de 1986, Elie
Wiesel, foi entrevistado pelo
‘JT’edissequepreferia apalavra “respeito” à palavra
“tolerância”. É justa esta distinção?
Ele tem razão. Mas precisamos de tolerância também.Tolerânciacomrespeito.Quandorespeitamos, com abertura para outras realidades, é maravilhoso.
Foioquetenteifazernomeuúltimo CD, Psaumes. É um respeito,
porque a tradição está lá. Você
pode ouvir a música sacra judaica, cristã, muçulmana, melquita e bizantina, sempre abrindo
as portas para os outros. São coisas importantes. Na vida é
igual... O respeito pelo outro, a
aceitação do outro... Somos todos formados de espíritos bons e
maus. Somos humanos. Porém,
se eu o respeito como é...ah...este
é o verdadeiro amor!
Diasatrás,oVaticanoadmitiu, pela primeira vez, o estuprodefreirascometidoporsacerdotes. Como a senhora recebeu esta notícia?
A mídia, muitas vezes, fala demais quando não deve. Acho
que existem coisas mais importantes que isso. Neste caso, penso que se trata claramente de
um ataque à Igreja. Isso eu não
posso suportar. É preciso condenar os religiosos que praticam
estes atos. Sustentar as freiras
que se submetem a isso. Os religiosos são seres humanos também. Mesmo se a pessoa que violenta não for religiosa, eu também a condeno de todo coração.
Mas presto atenção. Eu me pergunto: aqueles que escrevem
tanto sobre o que acontece entre os padres, na vida dos religiosos, querem realmente o bem
dessas pessoas ou apenas hostilizar a Igreja?
Então é um problema interno? Não deveria ser exposto
ao público?
Não me intriga que ele seja levado a público, mas é preciso enxergar o essencial. Por que este
problema é levado à mídia? Para
condenar quem? Por que eles
gostam dos religiosos e religiosas? Não penso que seja isso.
Éuma espéciede preconceito, então?
É o ato de denunciar algo para
fazer o mal. Vou dar um exemplo: na França, tivemos problemascompadrespedófilos.Noentanto, não é porque eles são padres que se tornaram pedófilos.
São pessoas doentes. Não me importaque prendam um padre pedófilo. Mas que não aproveitem
paramassacrar tudo oque é referente à religião. O mundo precisa muito dos religiosos, sejam
eles cristãos, judeus ou muçulmanos. Precisamos de referên-
Marie Keyrouz tinha sete
anos quando recebeu o primeiro
“chamado”de Deusparaser freira.Naqueletempo,claro,amenina de Deir-El-Ahmar, vilarejo
próximo à antiga cidade de Baalbeck, no Líbano, nem poderia
imaginar que, anos depois, seria
reputada como a mais conhecida figura no segmento do cântico cristão oriental contemporâneo. Aos 18 anos, Marie entrou
para a Congregação das Irmãs
Basilianas Chueritas. Aos 20,
tornou-sefreira ededicou-se adiversosestudosmusicais,concretizadosemumdiplomaem Musicologia e Canto Ocidental e
Oriental, pela Holy Spirit University, em Kaslik.
Trazendo à tona as semelhanças existentes nas diferentes religiões da região do Mediterrâneo, suas gravações obtiveram
um surpreendente sucesso e
lhe garantiram convites para IRMÃ MARIE KEYROUZ: “A palavra de Deus é a reza, algo muito bonito. E, para bem rezar, é preciso bem cantar. Cantar é rezar e fazer rezar”
cantar em vários lugares do
Divulgação
BBC/Red Vision
Celso Junior/AE
mundo. Em 1984, ainda sob as
bombas que arrasavam o Líbano na guerra contra o Estado de
Israel, irmã Marie decidiu fundar seu grupo musical, Ensemble de la Paix (Conjunto da Paz),
para o qual reuniu 40 musicistas de diferentes credos, demonstrando, já na época, o espírito ecumênico que prega até
hoje. Após a guerra, mudou-se
para a França, onde seguiu cantando para platéias cada vez
mais numerosas. Em 1991, defendeu tese de doutorado em
Musicologia e Antropologia Religiosa na Sorbonne.
Na semana passada, horas anCristo cibernético: “É diferente
tesdesubiraopalcodoSescPom- Vaidade: “A beleza da voz, das
da imagem que conhecemos.
péia,emSãoPaulo,noeventoRo- pessoas e da natureza reflete a
Mas o Cristo que eu sigo é um
ta de Abraão – Sob o Signo da To- beleza de Deus. Ele foi generoso
que deixa a alma mais bela”
“A MÚSICA SACRA deve ser muito bem trabalhada. Não é pop ou rock”
lerância – que reuniu artistas de comigo e quero lhe retribuir tudo”
Líbano, Israel, Egito, Turquia,
Iraque, Irã e Síria –, irmã Marie
deixá-las profundamente toca- Não sou rica. Então, trabalho e soa que esteja no poder, lanço
recebeu a reportagem do JT e fa- lias das vítimas?
Certamente. Hoje há muitas das e com o coração elevado. Na- dôo o que ganho para ajudar es- um apelo: não esqueçam que a
lou sobre música sacra, vaidade
e violência. Divertiu-se ao ver, guerras, muito ódio, muita vio- quela época, quem escrevia as sas pessoas. Neste ano, estou terra sobre a qual vocês vivem,
pela primeira vez, a feição de Je- lência. E somos os responsáveis letras eram os melhores poetas. ajudando as escolas do Líbano e pela qual vocês brigam, pela
qual vocês derramam tanto sansus Cristo criada por computa- por isso. E aqueles que recebe- Até hoje, se você perguntar ao do mundo todo.
A senhora nasceu no Líba- gue, é uma terra santa. Foi nela
dor. Não fugiu de temas polêmi- ram algo de bom, um dom de melhor compositor o que ele fez
cos como o estupro de freiras e a Deus, um talento, como a voz, a de bom, certamente ele respon- no e vivenciou a guerra con- que viveram os profetas. É o que
prisão de padres pedófilos na música? O que fazem? Por que derá que foi a música sacra. tra Israel. Como este conflito eles precisam saber.
O evento do qual a senhora
França. E explicou a frase de São nós não utilizamos outras ar- Penso que, se respeitarmos, se influenciou sua vida e obra?
Influenciou muito. A guerra participa chama-se ‘Rota de
Basílio, retomada por Santo mas, em vez de pesquisar bom- fizermos as pessoas virem reAgostinho, que prega que basatômicas?Porque não explo- zar com nossa música, não sere- entre Israel e o Líbano durou 17 Abraão’. Os conflitos nas reramos nossos talentos para ven- mos criticados. Entretanto, se anose vivi boaparte delaemBei- giões por onde Abraão passou
“cantar é rezar duas vezes”.
D o q u e t r a t a s e u C D ceromal com abeleza?Nóspode- dançarmos, como em um show rute. Eu estava na linha de de- têm solução?
Haverá uma solução sim, temos vencer o mal com o bem, de rock, algo histérico, está er- marcação. Vi pessoas morre‘Psaumes para o 3.º Milênio’?
Psaumes é um poema lírico, mas o bem é aleatório – para rado. Isso não é feito para o cân- rem. Vi muitas bombas caírem, nho certeza. Estou muito otimismuita tristeza, muita dor, ódio... ta. Mas espero que isso ocorra
de inspiração religiosa e é o úni- mim, algo pode ser bom; para vo- tico religioso.
Pense na seguinte situação: Vi de tudo. E acho que, por isso, com o menor número de pessoas
co cântico religioso que pode- cê, não. Mas o belo, este só pode
mos encontrar dentro da tradi- unir. Moro na Europa há 15 anos em um show litúrgico, as pes- essa guerra me ajudou a com- mortaspossível. Ainda há crianção judaica, cristã e muçulma- – sou oriental, libanesa –, e desde soas cantam, dançam e são le- preender que não era uma guer- ças que se matam nas ruas,
na. Com minha voz, com o Psau- então tento cantar o Oriente e o vadas ao êxtase. Mas as rimas ra santa. As pessoas diziam que crianças que são privadas de
são pobres e o estilo das músi- era uma guerra motivada pela suas famílias e da sociedade. As
mes, quis reunir Oriente e Ocicas é pop. A senhora é a favor? religião. Não é verdade! Diziam pessoas usam o pretexto de que
dente, todas a religiões, numa só
Sou completamente contra. que era uma guerra de poder, de estas guerras são religiosas,
canção, numa só reza.
Para mim, a música sacra mere- potência,de dinheiro,de interes- mas elas não são – é apenas para
A elaboração do repertório
ce o melhor texto. Queremos, se. Eu me lixava para tudo isso. arrebanharem mais gente para
exige uma pesquisa apurada?
com ela, influenciar profunda- Dizia a mim mesma: “Se eles aguerra.EsperoqueosorganizaSim, pesquiso bastante. Fiz
mente a alma – boa música, boa acham que com essa guerra eles dores deste festival queiram viamuitosestudosparachegaràmipalavra, boa interpretação, que podem matar o Líbano, esmagar jaro mundopara levaressamennhatesededoutoradodeMusicoleve ao êxtase, à meditação. Isso o Líbano, eles se enganam. O Lí- sagem. Meu sonho é que algum
logia e Antropologia Religiosa.
bano não morrerá. O Líbano é dia possamos nos apresentar
é música sacra.
TodasascançõesdemeurepertóMesmo que uma apresenta- um país que não sabe morrer”. juntos em Jerusalém.
rio são resultado de uma pesquiPor que a senhora decidiu
ção dessas reúna dois milhões Quando as bombas ainda caíam,
sa muito profunda sobre estas
as pessoas voltaram a sair de ca- virar freira?
de fiéis?
tradições religiosas. Tenho uma
Ahhh...Éumdom, umchamaNão importa. As pessoas vêm sa e a se encontrar. E, naquele
dezena de discos e,quando canto
às vezes só para ver o que vão lhe momento,quis fazeralgode mui- do. E eu recebi este chamado
a música bizantina, procuro o
oferecer. Mas cuidado: esses to especial e fundei o Conjunto quando tinha sete anos. Claro
cancioneiro tradicional, à custa
dois milhões de pessoas têm de da Paz, que me acompanha até que não decidi ser freira aos sete
de muito trabalho, estudo e pessair com algo dentro do coração. hoje. Era 1984, sob as bombas, e anos. Decidi mesmo aos 18. Foi
quisa. Quando se trata do canto
Devemos nos questionar se os os projéteis partiam de tanques então que entrei para o convenmaronita, é a mesma coisa. É o
cantores lhes darão alguma coi- católicos, de tanques muçulma- to como noviça e fiz
resultado de uma
sa.Énecessáriosaberqualéo po- nos... Eu me disse: “Meu Deus, meus votos dois “Vivi boa parte da guerra entre Israel e
longa pesquisa, que “Uma religiosa que canta não é uma
voaquemnos dirigimos.Nãopo- preciso fazer alguma coisa com anos depois.
gosto de dividir religiosa que faz um show. É uma
Líbano em Beirute. Dizia para mim: se
A senhora é
demos ir às ruas cantar ópera, a minha voz”. Então, juntei ao
com as pessoas.
religiosa
que
promove
um
encontro
acham que com essa guerra podem
não é possível. Devemos falar a meu redor umas quatro dezenas muito bonita. CoA senhora afircom
outras
pessoas
por
meio
da
língua do povo. Se este precisa demúsicos,detodas asreligiões. mo é cantar em matar o Líbano, eles se enganam. O
ma que, “quando
A senhora deve se lembrar um palco e ser ad- Líbano é um país que não sabe morrer”
de música pop, cantemos, não é
cantamos, reza- oração, por meio da boa palavra”
tão grave... Mas o essencial é di- bem do massacre de Sabra e mirada não só por
mos duas vezes”.
Ocidente. Mesmo as pessoas que zer belas palavras, que cons- Shatila. Ariel Sharon, o ho- seus dotes vocais? É difícil li- cias. Existe gente que não gosta
O que quer dizer com isso?
de nós e aproveitam os escândaDigo isso por duas razões. Pri- não entendem minha língua, só truama alma.E,quandoumcan- mem que ordenou a ação con- dar com a vaidade?
Seja a beleza física, seja a bele- losparaafastaraspessoasdos remeiramente, para fazer com- pela beleza da minha música, tor busca isso, não pode fazer traestebairro–diretaou indiretamente –, que resultou na za da voz, das pessoas, da nature- ligiosos. Ajude-nos a fazer o
preender aos outros que uma re- captam esta mensagem. Por que música ruim.
O que a senhora faz com o morte de milhares de pessoas, za, eu as vejo como uma refle- bem! O homem está cansado das
ligiosa que canta não é uma reli- não reunir nossos esforços para
dinheiro que ganha com a hoje é o primeiro-ministro de xão. Elas refletem a beleza de guerras. Não é revelando coisas
giosaque fazum show. É uma re- vencer o mal com a beleza?
No Brasil, há padres que lo- venda dos discos e a renda dos Israel. Qual sua opinião sobre Deus. E ele foi generoso comigo. de uma maneira tão atroz que
ligiosa que promove um enconPor isso, quero lhe retribuir tu- prestaremos serviço. Se um pasua eleição?
tro com outras pessoas por meio tam estádios promovendo shows?
Nãogostode falar sobrepolíti- do, colocando o que ele me deu a drefazisto,é precisoque oaceiteA religiosa é alguém que escoda oração, por meio da boa pala- shows. Alguns foram criticamos e que o curemos.
vra. Em segundo lugar, é para dospor isso. Alguém já tentou lhe entregar sua vida a Deus e à ca porque os que falam são mui- seu serviço.
O ser humano está perto do
Em suas canções, a senhora
humanidade. E eu escolhi dar tos. Tudo o que posso dizer é que,
tornar acessível a palavra de impedi-la de cantar?
Nunca...Éverdade quenãopo- minha vida aos homens por sejao Líbano,seja Israel,deve vi- costuma cantar a vida e a bon- fim?
Deus. Porque, para mim, a palaExistem muitas coisas que se
vra de Deus é a reza, algo muito demos fazer tudo. A música é al- meio dos votos – castidade, po- ver em paz. O Oriente é uma ter- dade de Jesus Cristo. Como a
bonito, e não temos o direito de go muito perigoso também. Não breza, obediência – ao homem, ra santa. Faço um apelo, com senhora recebeu esta imagem passam e que mostram que o housá-la de qualquer maneira. É se pode promover um show as- que é a imagem de Deus. Para es- meu canto, a todo o povo do (abrindo o jornal) criada por mem está perto do fim. O hopreciso trabalhá-la e, para bem sim. A música sacra não pode te homem, converto toda a ren- Oriente,a todo o povo do mundo: computadordeum Cristodife- memécompostoporcorpoeespírezar,é precisobem cantar.Can- ser tratada como música pop ou da de meus CDs e concertos pa- esqueçamos um poucoo ódio,es- rente: barbudo, moreno e de rito. E muitos querem que ele seja somente corpo. Não dá. É pretar é rezar e fazer rezar. Há mi- rock. Temos o direito de bater ra a ajudá-lo a combater a igno- queçamos um pouco o poder; es- cabelo carapinha?
(Risadas) É a primeira vez ciso não ceder à tentação e não
lhares de pessoas que vão à apre- palmas, de dançar, de passar a rância e a pobreza. Este ano é de- queçamos um pouco as guerras:
sentação e saem rezando ou, pe- mensagem de Deus, mas não es- dicado à luta pela escolarização esqueçamos um pouco o dinhei- que a vejo... É bem diferente da aceitar tudo o que nos propõem.
lo menos, com alguma coisa boa queçamos que a música religio- das crianças nas escolas do ro e voltemo-nos um pouco para imagem que conhecemos de Muitos tentam matar nossas alno coração – um pouco de fé, de sa nasceu para a reflexão. Hoje, mundo. A pobreza e a ignorân- o essencial. Temos sorte. A vida Cristo, que para nós é a beleza fí- mas. Mas, se o homem é diferenexistem músicas étnicas, acom- cia são as bases das guerras, das no Oriente não pode ser reserva- sica também. Não gostei muito te do animal, é porque possui
serenidade, de calma, de paz.
Vivemosemummundoaba- panhadas de certos movimen- rupturas sociais. Quando há po- da a uma classe, a uma religião. desta imagem “real”, mas penso uma alma. Quando utilizamos a
lado pela violência. A música tos... Mas tudo isso por quê? Nas breza, devemos esperar qual- Foi lá que conhecemos Deus. Foi que o que ele nos deu é muito ciência para tudo, é preciso aceisacra tem o poder de comba- primeiras eras do Cristianismo, quer coisa. Se não olharmos pa- lá que ele criou o homem. É a ter- mais importante do que uma tarmuita coisa. Porém, cuidado:
ter esta violência ou ao menos amúsica sacraera usadaparale- ra essas crianças, destruiremos ra do reencontro. Seja a Sharon, imagem criada por computador. muitas vezes, eles nos fazem enaliviar o sofrimento das famí- var as pessoas ao êxtase – isto é, a sociedade. Não faço política. sejaa Arafat,sejaa qualquerpes- Cristo nos deu algo de maravi- golir coisas que podem matar.