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Título: Jovens Mártires – Maria Goretti, Antonia Mesina Título original: Maria Goretti – Teenage Martyr © 1997 The Incorporated Catholic Truth Society – Londres Tradução: Alexandra Ferreira Introdução: «I “Martiri” del secolo XX», in Testimoni dello Spirito © Figlie di San Paolo – Milão Tradução: Maria do Rosário Pernas Texto de Antonia Mesina: Departamento Redacção Paulinas Capa: Departamento Gráfico Paulinas Imagem da capa: Maria Goretti de D. Brovelli, gentileza do Santuário de Santa Maria Goretti, Nettuno, Itália Concepção gráfica e paginação: Paulinas Editora – Prior Velho Impressão e acabamentos: Artipol – Artes Tipográficas, Lda. – Águeda Data: Julho 2007 Depósito legal n.º 262 031/07 ISBN 978-972-751-853-1 (Edição original: 1860820255) © Fundação Ajuda à Igreja que Sofre Rua Prof. Orlando Ribeiro, 5D – 1600-796 LISBOA Tel.: 217 544 000 - Fax: 217 544 001 [email protected] www.fundacao-ais.pt © Inst. Miss. Filhas de São Paulo Rua Francisco Salgado Zenha, n.º 11 – 2685-332 Prior Velho Tel. 219 405 640 - Fax 219 405 649 e-mail: [email protected] www.paulinas.pt OS «MÁRTIRES» DO SÉCULO XX Introdução de Andrea Riccardi 1 1 Docente ordinário de História Contemporânea na Terza Università de Roma. Estudioso da Igreja da Idade Moderna e Contemporânea, publicou numerosas obras, retomando os temas da difícil relação entre Cristianismo, cultura e modernidade no século XX. Demonstrou, além disso, um interesse particular pelas relações entre os mundos religiosos da área mediterrânica. Além da sua vasta actividade científica, também é conhecido, no âmbito internacional, por ter fundado, em 1968, a Comunidade de Santo Egídio. O martírio do século XX, uma «revelação» O martírio cristão do século XX é uma realidade da qual, por motivos diversos, só muito tarde se tomou consciência: devido à longa duração do Comunismo na União Soviética e nos países de Leste; devido à parca importância dada aos países do Hemisfério sul (tanto africanos como asiáticos). Por estas razões, foi difícil reunir os inúmeros fragmentos dessa experiência de dor e, assim, apercebermo-nos das suas verdadeiras dimensões. Só nos últimos anos do século XX se começou a tomar consciência dessa realidade, tendo João Paulo II desempenhado um papel significativo nesse processo de consciencialização. Karol Wojtyla, com efeito, conheceu pessoalmente a tragédia da guerra e da perseguição. A Polónia, que a historiografia do século XIX considerou uma «nação mártir», no século XX sofreu a ocupação nazi, que tentou reduzir à escravidão o seu povo, tendo eliminado uma parte dele, viveu a Shoah, que devorou muitos Judeus polacos e europeus, e, finalmente, conheceu o controlo soviético e o regime comunista com a perseguição anti-religiosa. João Paulo II recordou assim a sua juventude: «…O meu sacerdócio, desde o início, inscreveu-se no 6 Jovens Mártires grande sacrifício de muitos homens e mulheres da minha geração. A mim, a Providência poupou-me as experiências mais pesadas...» O Papa tinha a impressão de ter vivido uma parte «desta espécie de “apocalipse” do nosso século» 2. Efectivamente, o martírio não é para ele uma história antiga, mas uma realidade contemporânea. Ele próprio sofreu um violento atentado, que podia muito bem tê-lo levado à morte. Nunca se chegou a saber ao certo qual a origem desse acontecimento. Sabe-se que foi amadurecido no ambiente obscuro de Istambul, com uma mistura de nacionalismo e islamismo, provavelmente aproveitada pelas estratégias de Leste, com o objectivo de ocorrer durante a visita do Papa ao patriarca ortodoxo Dimitrios. Contudo, seria adiado. Sobre esse facto escreveu Olivier Clément: «Foi este o preço da visita a Constantinopla, o sacrifício que conferiu a essa visita uma dimensão mística, cuja importância irá sendo revelada pouco a pouco» 3. Da sua experiência do século XX, João Paulo II saiu convicto de que o martírio é uma realidade contem2 JOÃO PAULO II, Dom e Mistério, Cidade do Vaticano, LEV, 1996, p. 43. 3 O. CLÉMENT, Roma altrimenti, Milão, Jaca Book, 1998, p. 92. Os «Mártires» do século XX 7 porânea do Cristianismo. Daí a sua iniciativa de recuperar a memória dos mártires contemporâneos. No documento programático do Ano Santo, a Tertio millennio adveniente, que revela claramente o cunho do Papa, pode ler-se o seguinte: «No nosso século regressaram os mártires, muitas vezes desconhecidos, quase militi ignoti da grande causa de Deus. Na medida do possível, não devem deixar perder na Igreja os seus testemunhos...» Por isso o Papa lançou um convite: «É necessário que as Igrejas locais façam todos os possíveis por não deixar perecer a memória de quantos sofreram o martírio, recolhendo toda a documentação necessária» 4. Os novos mártires A própria expressão «novos mártires» tem o cunho de Wojtyla, embora a Igreja greco-ortodoxa fale há muito tempo de novos mártires, para indicar os mártires da luta do povo grego e ortodoxo contra os turcos. Trata-se, portanto, de uma nova acepção do JOÃO PAULO II, Tertio millennio adveniente, Citade do Vaticano, LEV, 1994, p. 43. 4 8 Jovens Mártires ter mo. Também a Igreja ortodoxa russa começou a definir como novos mártires os perseguidos do poder soviético. Parece-me que o termo «novos mártires» se refere ao facto de a Igreja do século XX ter voltado a ser uma Igreja de mártires. Não há dúvida que, segundo a visão de João Paulo II, o conceito de martírio é ampliado em relação ao conceito clássico de mártir por ódio à fé, ou, pelo menos, reinterpretado: mártir – escreve o teólogo Karl Rahner – «também é aquele que sucumbe na luta activa para que se afir mem as exigências das suas convicções cristãs...» 5. Este martírio enquadra-se naquele que foi o século dos massacres, da morte em massa, da indústria da morte e do terror. No fundo, o século XX, apesar das suas novas oportunidades, dos seus progressos e dos seus aspectos positivos, foi um século muito sombrio, um século de longas sombras, terrível pelas suas violências e pelos seus massacres. As novidades da ciência e da técnica foram, muitas vezes, colocadas ao serviço da destruição do homem e de povos inteiros. Em certos momentos trágicos, dissipou-se toda a memória do amor, do Evangelho e do próprio Deus. K. RAHNER, Sulla teologia della morte. Con una digressione sul martirio, Bréscia, Morcelliana, 1965, p. 106. 5 Os «Mártires» do século XX 9 Pensemos no primeiro holocausto do século: mais de um milhão de mortos, de Arménios e de Siríacos, durante a Primeira Guerra Mundial, massacrados simplesmente por serem cristãos. Pensemos nas vítimas da ditadura comunista na ex-União Soviética e no terror estaliniano. Na China ocorreram os vários massacres de Nanquim, em 1937, quando os Japoneses aniquilaram duzentos mil chineses, usando-os inclusivamente como alvos nos seus treinos militares. As duas terríveis guerras mundiais e, no coração da segunda, a Shoah, precisamente na Europa, na qual morreram seis milhões de Judeus (mas também Polacos, Ciganos, Russos...). Na segunda destas guerras, não podemos esquecer o bombardeamento atómico (a primeira vez que se usou esta arma, que ainda hoje continua a ser uma ameaça) sobre Hiroshima e Nagasaki que vitimou cerca de cento e cinquenta mil pessoas. Os quase trinta milhões de mortos nas carestias chinesas entre 1958 e 1962. A violência dos regimes autoritários na América Latina e as guerras de África. O massacre de um terço da população do Camboja. A limpeza étnica na ex-Julgoslávia. Os massacres no Ruanda. Um milhão de mortos na guerra civil de Moçambique. Os assassínios na Argélia... Trata-se de uma lista incompleta que, no entanto, mostra cla10 Jovens Mártires ramente como o século XX foi, para milhões de seres humanos, um século muito sombrio. Perdeu-se a memória do amor, do respeito pelo homem e pela mulher. No fim deste século, no qual se afirmou a democracia, confrontamo-nos ironicamente com um século de terror. Não se tratou de um «século breve», como o definiram. Foi um século longo, pelas suas muitas dores. Consta que o próprio patriarca de Moscovo e de todas as Rússias, Tichon, que a Igreja ortodoxa canonizou em data recente, terá proferido as seguintes palavras: «A noite será muito longa e muito escura» 6. Referia-se ele às perseguições estalinianas contra a sua Igreja. Frente a perdas tão profundas e trágicas (as citadas são apenas alguns exemplos, mas poderíamos recordar muitas outras), um povo de crentes, por vezes débil, não desistiu de celebrar a memória da paixão e da ressurreição do seu Senhor. Nunca a escuridão foi tão profunda que não se acendesse a pequena luz do círio pascal. Os cristãos nunca deixaram de recordar que o Senhor foi tratado como o pior dos homens e das mulheres, mesmo sendo inocente; foi tratado 6 N. STRUVE, Les Chrétiens en U.R.S.S., Paris, Seuil, 1963, p. 36. Os «Mártires» do século XX 11 como muitas dezenas de milhar de seres inocentes que foram violentados, torturados e condenados à morte. O pastor alemão Paulo Schneider foi levado para o campo alemão de Buchenwald, em 1937, dado que, sendo cristão, manifestava a sua oposição ao nazismo. No campo sofreu maus tratos e torturas especiais porque se recusava a prestar homenagem à cruz suástica e a Hitler, à idolatria do homem, do Estado e da raça germânica. A partir de Abril de 1938, foi colocado em isolamento no bunker do campo, onde passaria os últimos catorze meses da sua vida. Do bunker, porém, através de uma pequena fresta, nunca deixou de fazer ouvir a sua voz para recordar aos seus companheiros a presença do Senhor. Um seu companheiro recordou: «Ao amanhecer recitava para nós, os outros prisioneiros, uma oração da manhã e, por isso, recebia diariamente novas bastonadas ou torturas». Um dos detidos, que decidira lançar-se contra o arame farpado electrificado para acabar com a vida, contou que tinha desistido dessa ideia graças às palavras do pastor Schneider, que chamava todos a recordar o amor de Deus durante a chamada no terreiro do campo: «... naquele lugar de horror e desespero, ouviu-se ressoar uma voz forte e clara no terreiro em que 12 Jovens Mártires se encontravam alinhados vinte mil prisioneiros. Essa voz provinha da fresta de uma cela situada no bunker: “Diz Jesus Cristo: Eu sou a luz do mundo; quem me segue não caminhará nas trevas”... Com aquele grito, ele salvou-me. De facto, a partir daquele momento, fiquei a saber que está Alguém a meu lado!» 7. Leonhard Steinwender, também ele internado em Buchenwald, recordou o seguinte: «No domingo de Páscoa, por exemplo, ouvimos subitamente cantar estas poderosas palavras. “Assim diz o Senhor: eu sou a ressurreição e a vida!”. As longas filas de prisioneiros em sentido ficaram profundamente perturbadas frente à coragem e à energia daquela vontade indómita... Nunca conseguia pronunciar mais do que poucas frases. Logo em seguida ouvíamos abater-se sobre ele as bastonadas dos guardas...» 8. A experiência da perseguição nazi, a que fiz referência, é apenas um capítulo da história do martírio no século XX. Há muitos outros: o da perseguição comunista soviética, na Europa de Leste, na Albânia Cf. M. D. SCHNEIDER, Il martirio del pastore Paul Schneider (1897-1939), edição italiana a cargo de T. Franzosi, Turim, Claudiana, 1996, p. 194. 8 Ibidem, pp. 195-106. 7 Os «Mártires» do século XX 13 (de forma muito dramática), mas também a do comunismo asiático. Na Ásia, precisamente no início do século, os missionários e os cristãos autóctones foram mor tos, por serem identificados com o Ocidente e com o Cristianismo, durante a revolta dos Boxers, no Verão de 1900. Durante a Segunda Guerra Mundial, por obra das tropas de ocupação japonesas, o mesmo virá a acontecer. Contudo, houve vítimas exclusivamente por perseguição religiosa: os Cristãos mortos por Muçulmanos, mas também os Budistas, budistas lamaístas ou tailandeses, ou as vítimas do fundamentalismo hindu. Finalmente, deve ser notada outra grande categoria de vítimas: os cristãos mártires do amor, da caridade e da justiça, e estes são inúmeros. O ecumenismo dos mártires Os cristãos mártires não são apenas católicos, mas evangélicos, anglicanos e ortodoxos. A iniciativa anglicana de colocar as figuras dos cristãos mártires nos nichos da abadia de Westminster salienta o martírio do século XX como uma realidade profundamente ecuménica. Verificou-se uma comunhão no sofrimen14 Jovens Mártires to. A este propósito, os testemunhos são muitíssimo numerosos. Recordo o do intelectual romeno Nicu Steinhardt, de origem hebraica, que se converteu ao Cristianismo ortodoxo. Baptizado na prisão, sob o regime de Ceaucescu, por um sacerdote ortodoxo, quis que outros dois prisioneiros estivessem presentes: dois sacerdotes greco-católicos. Escrevia ele, no seu Diário da felicidade: «Os dois sacerdotes greco-católicos assistirão ao Baptismo e eu proclamarei o Credo diante dos sacerdotes católicos, quer como homenagem à sua fé, quer como testemunho de que pretendemos dar vida ao ecumenismo durante o pontificado de João XXIII. Os três pedem-me que me considere baptizado em nome do ecumenismo e que prometa lutar sempre – se um dia vier a sair da prisão – pela causa do ecumenismo. Prometo-o do fundo do coração» 9. Há uma multidão de mártires de todas as nações e de todas as confissões. Tentemos ouvir a sua língua. Falam russo, como acontecia no «reino dos infelizes» – assim o definia uma deportada –, que foi o lager das ilhas Solovki, na Rússia. Um detido recorda uma imaN. STEINHARDT, Diario della felicità, Bolonha, Il Mulino, 1995, p. 116. 9 Os «Mártires» do século XX 15 gem de amor naquele inferno de frio, de maus tratos e de trabalho sem sentido: «Unindo-se no mesmo esforço, trabalham juntos um bispo católico, ainda jovem, e um ancião macilento e descarnado, com a barba branca, um bispo ortodoxo, antigo de dias mas forte de espírito, que desempenhava as suas tarefas com energia... Quem dentre nós tiver um dia a ventura de regressar ao mundo, deverá testemunhar aquilo que estamos a ver aqui. E o que vemos é o renascer da fé pura e autêntica dos primeiros cristãos, a união das Igrejas na pessoa dos bispos católicos e ortodoxos, que participam, unânimes, no trabalho, uma união no amor e na humildade» 10. As testemunhas da fé de todas as confissões sofreram juntas: há um valor ecuménico da solidariedade no martírio. Penso que haja uma herança comum, que os cristãos do século XXI poderão receber. O testamento dos mártires não foi aberto: estamos ainda no início da leitura deste grande documento histórico, humano e cristão que é o martírio. Esse testamento fala de homens, de mulheres – muitas mulheres – que J. BRODSKJI, Solovki. Le isole del martirio. Da monastero a primo lager sovietico, Milão, La Casa di Matriona, 1998, p. 17. 10 16 Jovens Mártires não renunciaram à sua fé, ao amor, à justiça, a um comportamento humano, só para salvar a própria vida. E nisso está a chave do martírio do século XX. Quem é o mártir? O mártir é aquele que não tenta salvar a própria vida a todo o custo; o mártir, porém, não é um kamikaze, o mártir não é um suicida, não é o sahid de que se fala no Médio Oriente actual. Também não é um homem desejoso de arriscar, provocando a própria morte. O mártir é um homem ou uma mulher que crê, que espera, que – muitas vezes – trabalha para os pobres, pela paz, que anuncia o Evangelho, que ama a Igreja e que, frente à ameaça da morte, mesmo sentido medo, opta por prosseguir com o seu trabalho e com o seu testemunho, não se deixando intimidar. Repito que, para mim, as novas dimensões e características do martírio cristão do século XX foram, em parte, uma revelação. Não é que eu pessoalmente ignorasse a história da Igreja do século XX, ou não soubesse dos seus sofrimentos e perseguições: aliás, eu conhecia grande parte de tudo isso. O conhecimento da documentação da Comissão «Novos MártiOs «Mártires» do século XX 17 res», instituída no âmbito das actividades preparatórias do Jubileu de 2000, por ocasião da realização do meu volume sobre o século do martírio, foi para mim como descer às catacumbas do século XX e contactar com uma parte submersa da história 11. Essa experiência tocou-me profundamente. É como que uma pregação viva do Evangelho. Na sua maior parte, são experiências de homens, mulheres, irmãs, sacerdotes, pessoas simples, pessoas pobres e pessoas humildes, que aguentaram firmemente, inamovíveis e que, mesmo na sua debilidade, revelaram uma força incrível. Recordo a história de uma camponesa de Abruzzo, Anita Santamarroni, de setenta e dois anos. Foi presa pelos Alemães e fuzilada, durante a Segunda Guerra Mundial, por ter hospedado dois aviadores ingleses e por lhes ter dado de comer. Antes de morrer, limitou-se a dizer: «Não os ajudei por serem Ingleses, mas porque sou cristã e eles também são cristãos.» De igual modo, o pastor de Abruzzo, Michele del Greco, antes de ser fuzilado por motivos análogos, disse: «Morro por ter posto em prática aquilo que me foi ensinado na Igreja, quando era pequeno: dar de comer a A. RICCARDI, Il secolo del martirio. I cristiani nel Novecento, Milão, Mondadori, 2000. 11 18 Jovens Mártires quem tem fome.» «Dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede...» 12. Dos novos mártires, homens e mulheres simples e débeis, emerge aquilo a que, com S. Paulo, poderemos chamar a «força débil», a força débil do Cristianismo, que é o seu grande segredo. Não se trata de poder, nem de aliança com os poderosos, mas da força de um povo crente que não renuncia a crer, a viver de forma humana, e a viver o amor, nem sequer quando deflagra um conflito, nem frente à ameaça da morte. Franz Jägerstätter, nascido numa povoação rural na Áustria, casado, pai de três filhas, no ano de 1943, quando contava trinta e seis anos de idade, é chamado a servir no exército da Wehrmacht: Recusa-se a usar a sua insígnia, pois considera a fé cristã inconciliável com o nazismo: «Quem pode ser soldado de Cristo e, ao mesmo tempo, soldado do nacional-socialismo?», interrogava-se ele. «[Hoje] – escreveu ele numa carta 12 As duas citações foram extraídas de G. Vecchio, Il laicato cattolico italiano di fronte alla guerra e alla resistenza: scelte personali e apartenenza ecclesiale, em AA.VV., Cattolici, Chiesa, Resistenza, recompilado por G. De Rosa, Bologna, Il Mulino, 1997, pp. 260-266. Os «Mártires» do século XX 19 – é necessário ver cristãos que possam continuar a resistir nestes tempos sombrios, com uma lucidez reflexiva, na calma e na segurança, que vivam em perfeita paz e alegria ali onde não há paz nem alegria, mas onde apenas dominam o tédio e o egoísmo, que não sejam como uma cana agitada pelo vento. Que não estejam sempre a ver o que fazem os seus companheiros ou amigos, mas que se interroguem sobre o que ensina Cristo e a Igreja, ou o que lhes dita a própria consciência» 13. Escrevia o padre Antonio Canduglia, missionário de S. Vicente de Paulo na China, morto em Ta-ho-ly, no ano de 1907, durante os anos perturbados que se seguiram às revoltas xenófobas e anticristãs de finais do século XIX e início do século XX: «A minha vida pouco importa: antes de mais, devo proteger os meus cristãos. Já esquecestes que um pastor deve dar a vida pelas suas ovelhas? Não somos dignos do martírio; mas que graça nos concede Deus, permitindo-nos fazer em tudo a sua santa vontade!» 14. A história deste martírio não poderá ser escrita 13 Arquivo da Comissão «Novos Mártires» (daqui em diante designado como ACNM) II/1, 348. 14 ACNM III, 149. 20 Jovens Mártires como tantas histórias de santos. Há experiências maravilhosas. Mas há uma história maciça, de centenas de milhar ou de milhões de pessoas, humildes, desconhecidas, das quais se perderam os nomes e os rostos. Recordemos os cristãos arménios e siríacos do Império Otomano, massacrados durante a Primeira Guerra Mundial. Muitos deles teriam podido salvar a vida se tivessem renunciado à sua fé. Não o fizeram, contudo. Trata-se, portanto, de uma história de martírio de um povo, e também de martírio ecuménico 15. As histórias são muitas e diversas. Lembro o comissário da polícia italiano, Giovanni Palatucci 16. É significativa como testemunho de solidariedade cristã para com os Judeus. Educado numa família de tradição católica, em 1937 foi nomeado para a sede da polícia de Fiume, onde o incumbiram do gabinete de estrangeiros. Aí começou imediatamente a prodigalizar-se em favor dos Judeus que acorriam em grande número à cidade, procurando escapar aos nazis. Quando o caminho da expatriação deixou de ser praticável, enviou-os 15 Sobre a experiência dos Arménios, veja-se, entre outros, Y. TERNON, Les Armeniens. Histoire d’un genocide, Paris, Seuil, 1977. 16 Cf. G. RAIMO, A Dachau per amore: Giovanni Palatucci, Montella, Fiumane, 1992. Os «Mártires» do século XX 21 para as proximidades de Salerno, colocando-os sob a protecção do seu tio bispo, mons. Palatucci. Após o armistício entre o Governo Italiano e os Aliados, em Setembro de 1943, quando Fiume foi ocupada pelas tropas alemãs, sob o controlo directo das SS, Giovanni Palatucci decidiu manter-se no seu lugar. Procedeu à destruição sistemática de todo o material relativo aos Judeus contido nos arquivos da sede da polícia, a fim de tornar vãs as tentativas das SS de fazerem listas para as deportações. A 13 de Setembro de 1944 foi preso pelos nazis. Conduzido para a prisão de Trieste, viria a ser condenado à morte. Porém, em vez disso, acabou por ser deportado para Dachau, onde morreu de fome e exaustão a 10 de Fevereiro de 1945. Consta que, durante os sete anos em que permaneceu em Fiume, Palatucci conseguiu resgatar, directa ou indirectamente, cerca de cinco mil pessoas. O martírio da caridade No século XX, há um aspecto importante do martírio, ao qual eu não chamaria novo – porque a caridade não é nova na história da Igreja – mas que merece ser realçado: é, precisamente, o martírio da caridade. Um 22 Jovens Mártires sacerdote milanês, Pe. Isidoro Meschi, um pároco normal, que tinha um contacto próximo e atento com os jovens, em especial com os que o procuravam quando tinham problemas de droga, foi morto por um jovem toxicodependente 17; um sacerdote comasco, Pe. Renzo Beretta, em 1999, contando setenta e seis anos de idade, foi morto por um estrangeiro que acolhera em sua casa (tinha escrito: «Quem ou que lei nos poderá impedir de “ajudar” esta gente votada ao abandono?») 18. Muitas irmãs foram mortas em África; tornaram-se silenciosas protagonistas dos dramas daquele continente. Um exemplo, entre muitos, poderá ser o de Mercede Stefani, irmã Irene, uma das primeiras «mártires» europeias em África, no século XX 19. A irmã Irene tinha ingressado na congregação das Irmãs Missionárias da Consolata em 1911 e, em 1914, partira para o Quénia. Em Akikuyu anunciava o Evangelho, ensinava, tratava os doentes, visitava as famílias e dava testemunho do amor pelos estrangeiros, em lugares onde a desconfiança era grande. As pessoas chamavam-lhe, com afecto, «Nyaatha» (Mãe misericórdia). 17 ACNM II/1, 471. Cf. A. RICCARDI, Op. cit, pp. 396-397. 19 Ibidem, pp. 220-221. 18 Os «Mártires» do século XX 23 A 31 de Outubro de 1930 morreu em Gikondi, depois de ter sido contagiada de peste por um doente, que assistiu até ao fim. O seu testemunho recorda de perto o das Irmãs dos Pobres do Instituto Palazzolo de Bérgamo, mortas na Primavera de 1995, no Congo, durante a epidemia do vírus Ébola. A irmã Vitarosa Zorza, entre outras, tinha partido para aquele país em 1982, ocupando-se aí da assistência às crianças desnutridas, mas, ao saber que se tinha desencadeado a epidemia, pediu se podia dar uma mão às suas irmãs. «Por que hei-de ter medo? – dizia ela – As outras estão lá; por que não posso ir também eu? Neste momento elas precisam de mim» 20. São homens e mulheres, como nós, muitas vezes da nossa própria geração, que não procuraram a morte nem se lançaram em aventuras insensatas e atrevidas, arriscando a própria vida de maneira absurda. Pelo contrário, seguiram o caminho da caridade, o caminho da humanidade, o caminho da amizade. Fizeram o seu trabalho e, depois, a dado momento, confrontaram-se com a doença, com a intimidação, com o 20 24 Ibidem, p. 394. Jovens Mártires espectro da morte, com a ameaça ou com o perigo. Tiveram medo, mas decidiram ficar, continuar a amar. O padre Pino Puglisi, pároco de Palermo, lutava para que os jovens do bairro Brancaccio, onde se encontrava a sua paróquia, se libertassem da mentalidade mafiosa, inclusivamente envolvendo-os num processo educativo e religioso. Teve conhecimento das ameaças dirigidas contra a sua pessoa, mas manteve-se firme na sua missão. Quando a máfia se apresentou à porta de sua casa para o matar, a 15 de Setembro de 1993, segundo o testemunho de um dos próprios assassinos, Puglisi exclamou: «Eu já estava à espera.» Foi mais um dos que se manteve no seu lugar 21. Citei alguns casos italianos, mas também nos Estados Unidos, desde o início do século, houve casos de religiosos mortos pela caridade. Encontram-se ainda outros na América Latina: são cristãos mortos pela justiça, pela defesa das crianças, pela luta contra as máfias. Recordo, entre muitos, o cardeal arcebispo de Guadalajara, no México 22. Muitas vezes as próprias 21 Cf. F. DELIZIOSI, 3P Padre Pino Puglisi. La vita e la pastorale del prete ucciso dalla mafia, Milão, Paulinas, 1994. 22 A. RICCARDI, Op. cit, p. 410. Os «Mártires» do século XX 25 máfias identificam os religiosos ou os cristãos como seus inimigos, porque, com a sua acção, mesmo não lutando em termos políticos, tentam que a sua cultura não seja transmitida às novas gerações nem se difunda, procurando criar, assim, uma resistência moral. É também emblemático o caso de Mons. Oscar Arnulfo Romero, martirizado em 1980 enquanto celebrava a Eucaristia 23. No V Domingo da Quaresma, um dia antes de ser assassinado, na capela do pequeno hospital onde vivia, tinha pregado: «Assim como Cristo florescerá numa Páscoa de ressurreição imperecível, também é necessário acompanhá-lo numa Quaresma, numa Semana Santa que é cruz, sacrifício e martírio... A Quaresma é, portanto, um convite a celebrar a nossa redenção nesta difícil mistura de cruz e vitória.» Romero era um verdadeiro pastor, não uma figura política, como, por vezes, foi indevidamente considerado. Também era um sacerdote tradicional, um verdadeiro amigo dos pobres, que se viu confrontado 23 Cf. J. DELGADO, Monseñor. Vita di Oscar Arnulfo Romero, Milão, Paulinas, 1986; O. A. ROMERO, Diario, Molfetta, 1990; O. A. ROMERO, ... y lo mataron. Scritti e discorsi, Roma, AVE, 1980; R. MOROZZO DELLA ROCCA, Oscar Romero. Un vescovo centroamericano tra guerra fredda e rivoluzione, Cinisello, Balsamo, San Paolo, 2003. 26 Jovens Mártires com uma situação política impossível, num clima de polarização extrema, e que, portanto, tentou ajudar os mais débeis, defender os seus sacerdotes, proteger os mais indefesos. Em suma, salvar vidas humanas. Colocou a sua autoridade ao serviço dessa causa, mas, acima de tudo, permaneceu fiel à sua Igreja, ao seu povo e à sua gente. Teve medo, mas nunca deixou de falar, e morreu junto ao altar enquanto celebrava a Eucaristia. Uma conspiração, associada ao poder político, eliminou-o de forma brutal. A eliminação de uma reserva de humanidade Há que ter presente que, no século XX, todo o mundo religioso foi tocado pela violência a todos os níveis. O caso do atentado ao Papa é sintoma disso mesmo. Foram atingidos também cristãos de destaque, embora a autoridade das suas funções parecesse protegê-los da violência. Os bispos voltam a morrer no século XX, como acontecia nos primeiros séculos da história cristã. Entre os ortodoxos russos, calcula-se que tenham sido assassinados cerca de trezentos bispos. Outros primazes de Igrejas (não só católicos) também foram atingidos, entre os quais o patriarca Os «Mártires» do século XX 27 etíope morto pelo regime de Mengisto, o católico arménio morto nas ilhas Solovki, o arcebispo anglicano do Uganda assassinado por Idi Amin. Em África foram mortos muitos bispos: desde o prelado italiano abatido perto da sua catedral de Mogadíscio, na Somália, aos bispos ruandeses mortos durante as guerras étnicas, até ao cardeal do Congo Brazaville, assassinado na sequência de um golpe de Estado. Com estes bispos, também muitos católicos africanos simples conheceram a morte, como aqueles jovens seminaristas burundeses, aos quais, em 1996, os guerrilheiros hutu pediram que se identificassem como hutus ou tutsi, para depois assassinarem estes últimos; recusando-se a estabelecer tal distinção, todos acabaram por ser assassinados. A história do Cristianismo em África é marcada pelas experiências do martírio, a começar pela história missionária até às guerras étnicas, que ainda não terminaram, passando pela descolonização. Ainda hoje, sobretudo em África, os missionários continuam a não ser protegidos pelo estatuto de estrangeiros, ou seja, na situação de insegurança de inúmeros países africanos, os missionários arriscam a própria vida. Os chefes das Igrejas voltam a morrer, tal como os humildes fiéis. Porquê? Eis uma pergunta a que a His28 Jovens Mártires tória não se pode esquivar, porque, quando se fala de testemunho cristão até ao derramamento de sangue, não se pode olhar apenas para os mártires, é necessário ter também em conta os que os martirizam e as suas motivações. Neste «par» assassino-mártir apreende-se talvez o dado último e elucidativo para a interpretação histórica e para a compreensão espiritual do martírio: muitas vezes, criou-se uma relação pela qual o mártir se tornou um «não-homem», e, como tal, pode ser assassinado. E quanto ao motivo, as circunstâncias da morte podem ser casuais. O gesto assassino pode ser dirigido ao acaso, não por ódio pessoal, mas tendo com frequência uma raiz comum na grande violência contra os cristãos. Não se trata de um único desígnio destrutivo, mas deve ser tida em conta a raiz comum: a eliminação do Cristianismo como reserva de humanidade, como reserva de fé e como espaço de liberdade. Isto acontecia na Alemanha nazi, na Rússia soviética, em África e em tantos outros lugares. O padre Cesare Mencattini (missionário do PIME na China), pouco antes de ser morto, em 1941, tinha escrito ao seu irmão: «É maravilhoso o padre isolado no meio de perigos constantes, único conforto de tantos atribulados, só e indefeso entre tanta gente armada, amigo de todos, entre tantos inimigos!» A preOs «Mártires» do século XX 29 sença pacífica de tantos missionários, laboriosa e solícita frente aos débeis, tanto na China como noutros lugares, tornava-se alvo fácil em tempos de violência e de conflito. Mas, em certo sentido, pretendeu-se, precisamente, atingir o «amigo de todos», aquele que vivia sem inimigos 24. Quando, a 26 de Setembro de 1999, o contingente da ONU começa a dirigir-se para Timor-Leste, a fim de pôr termo às sangrentas desordens verificadas na ilha, tem lugar um novo massacre: o de duas missionárias canossianas, irmã Erminia Cazzaniga e irmã Celeste de Carvalho Pinto, que levavam mantimentos aos refugiados escondidos nas montanhas. Com elas foram mortos um sacerdote, dois seminaristas, um estudante de teologia e o motorista que colaboravam na operação. A irmã Erminia tinha sessenta e nove anos, e estava em Timor-Leste há trinta e cinco. Fora convidada pelos superiores a deixar a missão por causa das revoltas. «Não se preocupem comigo – dissera ela – já sou velha, e também sou capaz de morrer sem medo.» Na última carta que dirigiu ao pároco da sua terra, na província de Lecco, de onde provinha, tinha escrito: «... estamos em plena guerra. É uma guerra trai24 30 ACNM III, 184. Jovens Mártires çoeira, que mantém as pessoas sempre no medo e na insegurança. Começou o vandalismo difuso, com grupos formados e apoiados pelos militares que infestam e destroem o país, matando, saqueando e queimando... Quantas pessoas ficaram sem casa, e quantas crianças sem pais. A nossa missão, hoje, é não só ajudar, mas, como diz S. Paulo, chorar com os que choram, partilhar com quem tem necessidade e dar muita esperança e confiança em Deus pai, que não abandona os seus filhos... E o senhor, caro pároco, abençoe a sua ovelha que está no meio de lobos ávidos» 25. O padre Giuseppe Girotti, um biblista dominicano italiano, deportado para Dachau – onde seria morto – por ter escondido alguns Judeus, subtraindo-os à caça dos nazis, tinha pregado assim, no segredo do barracão do campo: «A Igreja foi, é e será sempre o único refúgio do sentido de humanidade, de amor e de misericórdia; refúgio da verdade, dos princípios da recta razão, da civilidade e da cultura...» 26. Este refúgio, esta ACNM III, 508. Ver também A. RICCARDI, Op. cit, pp. 298-299. Ibidem, p. 75. Ver também A. CAUVIN, G. GRASSO, Nacht und nebel (Noite e nevoeiro). Uomini da non dimenticare (1943-1945), Turim, Marietti, 1981. 25 26 Os «Mártires» do século XX 31 arca de humanidade, de amor e de verdade, foi muitas vezes atacado ao longo do século passado, precisamente na vida dos seus fiéis. Entre os cristãos libaneses houve muitos mortos, nos longos anos da guerra civil, explicitamente por motivos de fé. Alguns até enquanto estavam empenhados em acções de socorro, muitas vezes sem olhar à religião nem à qualidade daqueles a quem prestavam assistência. Em Dezembro de 1984, um seminarista, Ghasibé Kayrouz, é morto enquanto regressa à sua aldeia Nabaa, na planície de Bekaa, onde Muçulmanos e Cristãos vivem juntos. Outros três amigos do seminarista, que tinham participado com ele num retiro, foram assassinados. O rapaz, sentindo-se já ameaçado, pouco antes da sua morte, havia escrito um testamento que ainda hoje é fonte de luz pelo seu testemunho de amor, inclusivamente para com os Muçulmanos: «Tenho apenas um pedido a fazer-vos: perdoai àqueles que me mataram. Fazei-o de todo o coração e pedi comigo que o meu sangue, mesmo sendo o sangue de um pecador, seja resgate pelo pecado do Líbano, seja hóstia misturada com o sangue daquelas vítimas caídas por toda a parte e de todas as religiões, e preço pago pela paz, pelo amor e pelo entendimento 32 Jovens Mártires que se perderam tanto nesta nossa pátria como no mundo inteiro. Mostrai às pessoas o amor da minha morte, e Deus consolar-vos-á, proverá as vossas necessidades e ajudar-vos-á nesta vida. Não tenhais medo... Orai, orai, orai, e amai os vossos inimigos» 27. Estas palavras fazem lembrar o testemunho dos mártires da Argélia. A história da Igreja na Argélia conheceu a luta da libertação nacional, o êxodo de grande parte dos cristãos que eram europeus, o governo militar, a guerra civil, que ensanguentou o país a partir de 1992. Mons. Pierre Claverie, bispo de Orano, um pied noir, ou seja, um europeu nascido na Argélia, morto como mártir em 1995, numa situação que nunca foi esclarecida, disse o seguinte: «Os períodos de crise são, na maior parte das vezes, simultaneamente dolorosos e fecundos. Não podem ser atravessados sem temor. Colocando-nos em situação de fronteira ou de divisão, corremos o risco de ser mortos, entre a violência destruidora e o assombro frente ao poder obstinado da vida. Fragilidade e força, medo e segurança, desânimo e esperança, egocentrismo e impulso solidário, desconfiança e compaixão: somos continuamente projectados de 27 ACNM III, 569. Os «Mártires» do século XX 33 uma vertente para a outra por acontecimentos ambíguos, imprevisíveis, dificilmente analisáveis e que mal podemos controlar. Na Argélia, como em muitos outros países, a Igreja está mergulhada numa crise que ultrapassa a sua presença e que a atinge por causa das suas relações profundas com o povo que a acolhe» 28. A vida dos monges trapistas do mosteiro de Notre Dame de l’Atlas decorria em franco diálogo com o mundo muçulmano. Tratava-se de uma comunidade empenhada, com grande vigor, em manter viva a coabitação com os Muçulmanos. O mosteiro encontrava-se numa zona de grandes recontros. Apesar disso, os monges tinham recusado a protecção do exército. Tinham evitado também colaborar com os homens armados do GIA, embora frei Luc, mesmo com os seus oitenta anos, não hesitasse em prestar cuidados médicos a todos. Os monges tinham-se interrogado se deveriam permanecer no mosteiro apesar da situação de perigo. Frei Paul Favre Miville, que regressara ao mosteiro poucas horas antes da última «visita» dos homens armados do GIA, escrevera: «Até onde ir, para salvar a minha pele, sem correr o risco A. RICCARDI, Op. cit, pp. 311-314. Ver também P. CLAVERIE, Lettere dall’Algeria, Milão, Paulinas, 1998, pp. 291 e ss. 28 34 Jovens Mártires de perder a vida? Só um conhece o dia e a hora da nossa libertação nele» 29. É a problemática do martírio, que não é risco aventureiro, mas a escolha laboriosa de não largar o próprio serviço. Frei Michel Fleury, que fazia cinquenta e dois anos no dia em que foi assassinado, observara: «Mártir é um termo tão ambíguo, aqui... Se acontecer alguma coisa, o que eu não desejo, nós queremos vivê-lo aqui, em solidariedade com todos estes Argelinos e Argelinas que já pagaram com a própria vida, solidários apenas com todos estes desconhecidos inocentes. Parece-me que quem nos ajuda e nos dá forças, hoje, é aquele que nos chamou» 30. Durante a detenção – depreende-se da documentação produzida pela GIA –, frère Christian nunca deixou de lutar por explicar a particularidade da sua posição junto do emir do GIA 31. Na perspectiva de poder vir a ocorrer uma tragédia, frère Christian tinha deixado um testamento: «Se me acontecesse, um dia (poderia ser hoje), 29 ACNM I/1, 3911. Ver também B. OLIVERA, Martiri in Algeria. La vicenda dei sette monaci trappisti, Milão, Tertium Millennium, 1997, pp. 20-21. 30 ACNM I/1, 3908. 31 Cf. M. DUTEIL, Les Martyrs de Tibhrine, Paris, Brepols, 1996. Os «Mártires» do século XX 35 cair vítima do terrorismo que parece querer envolver todos os estrangeiros que vivem na Argélia, gostaria que a minha comunidade, a minha Igreja e a minha família recordassem que a minha vida foi entregue a Deus e àquele país. Gostaria que eles aceitassem que o dono único de toda a vida não pode estar alheio a esta partida brutal. Gostaria que rezassem por mim. Como poderei ser considerado digno de tal oferta? Gostaria que soubessem associar esta morte a tantas outras igualmente violentas, deixadas na indiferença do anonimato. A minha vida não tem um preço mais alto do que qualquer outra. Não vale menos nem mais do que as outras. De qualquer modo, também não tem a inocência da infância. Vivi bastante para me considerar cúmplice do mal que infelizmente parece prevalecer no mundo, e também daquele mal que poderá vir a atingir-me às cegas...» Frère Christian continua assim esta sua reflexão que ainda hoje lança muita luz sobre o martírio do século XX: «Gostaria, se chegasse esse momento, de ter aquele espaço de lucidez que me permitisse pedir perdão a Deus e aos meus irmãos em humanidade, e, ao mesmo tempo, perdoar com todo o coração quem me tivesse ferido. Não posso desejar uma morte assim. Parece-me importante declará-lo. Com efeito, não vejo 36 Jovens Mártires como poderei alegrar-me com o facto de um povo que eu amo ser indistintamente acusado do meu assassínio. Seria um preço demasiado alto para aquela que talvez venham a denominar como a “graça do martírio”, devê-la a um argelino qualquer, sobretudo se este diz que agiu por fidelidade àquilo que julga ser o Islão. Eu bem sei o desprezo de que têm sido alvo os Argelinos, de um modo geral. Também conheço as caricaturas do Islão que um certo islamismo encoraja. É demasiado fácil ficar com a consciência em paz identificando esta religião com os integrismos dos seus extremistas. A Argélia e o Islão, para mim, são outra coisa, são um corpo e uma alma... Como é evidente, a minha morte parecerá dar razão àqueles que me consideraram, de forma precipitada, um ingénuo ou um idealista: “Diga-nos agora aquilo que pensa!” Mas essas pessoas devem saber que a minha curiosidade mais lancinante será finalmente satisfeita. Eis que então poderei, se Deus quiser, mergulhar o meu olhar no do Pai, a fim de contemplar com Ele os seus filhos do Islão tal como Ele os vê...» No testamento do prior da trapa de Notre Dame de l’Atlas encontramos uma conclusão que realça o perdão. O mártir não morre em clima de ódio. O ódio, pelo menos, não provém dele, porque ele perdoa, como faz Cristo frente aos seus assassinos. Com efeiOs «Mártires» do século XX 37 to, o mártir não pede para ser vingado. A sua figura e os seus sofrimentos não podem ser utilizados para pedir vingança ou exigir medidas destinadas a punir os culpados pela sua morte. O mártir perdoa. As suas últimas palavras são de perdão, como se vê no testamento de frère Christian: «E também [para] ti, amigo do último minuto, que não sabias o que estavas a fazer. Sim, também para ti quero deixar este “obrigado” e este “adeus”. E que nos seja concedido reencontrarmo-nos, como bons ladrões, no Paraíso, se for essa a vontade de Deus, nosso Pai comum. Ámen! Insciallah» 32. Os sete monges de Notre Dame de l’Atlas foram sequestrados a 27 de Março de 1996 durante a noite. A 21 de Maio foram encontrados os seus corpos decapitados. O testemunho dos mártires Qual é então o testemunho destes homens e destas mulheres frente ao século ainda há pouco iniciado? 32 CHRISTIAN-MARIE DE CHERGÉ, prior de Notre Dame de l’Atlas, Testamento, Argélia, 1 de Dezembro de 1993, Tibhirine, 1 de Janeiro de 1994. 38 Jovens Mártires Em primeiro lugar, o testemunho da força. Muitas vezes temos um Cristianismo sem força. Paulo, porém, no fim da primeira carta aos Coríntios, diz o seguinte: «Estai vigilantes, permanecei firmes na fé, sede corajosos e fortes» 33. O Cristianismo não é uma fraca debilidade; é a religião dos humildes, é a comunidade dos débeis e dos pobres, mas nisso há uma força. E parece-me que nisso também há uma herança de força, força de amor, força humana, precisamente no testemunho dos mártires. O rosto do martírio forma-se com outros rostos da história da Igreja no nosso século, mais conhecidos e certamente mais estudados. Como já disse, o estudo dos testemunhos dos mártires e das perseguições produziu uma reconstrução impressionante: a de um rosto oculto do Cristianismo do nosso século, inédito inclusivamente para o estudioso atento e para o investigador experiente. Estas diferentes histórias, pessoais, de dor, ocorridas em países diferentes e em diversos momentos do século, confluem – em meu entender – na construção de um único grande fresco: o do sofrimento e da perseguição ao longo dos anos do século XX. Este fresco não obscurece outras tragédias deste 33 1Cor 16,13. Os «Mártires» do século XX 39 século terrível. A experiência da Shoah é muito diferente da perseguição dos cristãos, dado o seu carácter particular e o único desígnio de destruição que esteve na sua origem, para além do elevado número de Judeus mortos. Mas a experiência da perseguição contra os cristãos também mostra o rosto desumano, violento, intolerante e terrível do século XX. O quadro do martírio, neste século, revela uma humanidade mansa e não violenta, embora forte, como já disse... Muitos fizeram aquela experiência interior que Martin Luther King descrevia em 1960, falando da sua Peregrinação até à não-violência: «No meio dos perigos que me cercam, senti a paz interior e conheci recursos de força que só Deus pode dar. Em muitos casos senti a força de Deus a transformar o cansaço do desespero na alegria da esperança» 34. O estudo do Cristianismo contemporâneo não poderá deixar de ter em conta este «mundo de mártires». Mas também não poderá deixar de tê-lo em conta a Igreja católica do século XXI, bem como as Igrejas cristãs no seu conjunto. O «mundo dos mártires», com uma dinâmica própria, volta a pôr em movimento o mundo das Igrejas, nem que seja apenas através da 34 40 M. L. KING, Io ho un sogno, SEI, Turim, 1993, p. 61. Jovens Mártires memória. Na prisão, nos anos Trinta, enquanto lia o Evangelho, o grande poeta chinês, Ai Quing, ia escrevendo em pobres folhas de papel as suas poesias: «E quem poderá nos estratos terrestres encontrar as lágrimas dos sacrificados que sofreram todas as penas? Aquelas lágrimas estão encerradas entre milhares de barras de ferro, mas há uma única chave que pode abrir essas grades e os inúmeros corajosos que quiseram apoderar-se dela morreram, todos, sob as armas dos guardiães. Se fosse possível recolher uma dessas lágrimas...» 35. Será possível encontrar e recolher «as lágrimas dos sacrificados que sofreram todas as penas»? A Igreja tentou, pelo menos, «recolher uma dessas lágrimas». A memória é a única chave para abrir aquelas «grades» 35 AI QUING, Morte di un Nazareno, Novara, Interlinea, 1999, p. 61. Os «Mártires» do século XX 41 que ocultam as vivências dos perseguidos e dos assassinados. Trata-se das «grades» das prisões, dos campos de concentração organizados e dos lugares de deportação. Nestes lugares atrozes foram derramadas «as lágrimas dos sacrificados», derramadas por vezes ao longo de marchas extenuantes ou de caminhos que não conduziam a lado nenhum, com o único objectivo da destruição física e moral, como as marchas dos Arménios em direcção ao deserto da Síria, ou as marchas dos monges da trapa de Nossa Senhora da Consolação, em Yangjiaping, no gelo e no calor do noroeste da China 36. Contudo, as grades que aprisionaram e esconderam tantas experiências de dor não são apenas as grades concretas, senão também o esquecimento das gerações seguintes e o olvido do tempo. Todavia, em certos casos, as perseguições foram disfarçadas de justiça e defendidas com a calúnia, com a supressão da memória e a falsificação das acusações e da história. Karl Rahner, o grande teólogo alemão, tinha-o in36 Sobre a experiência dos monges da abadia trapista de Nossa Senhora da Consolação, ver A. RICCARDI, Op. cit, pp. 249 e ss.; TH. MERTON, Le acque di Siloe, Milão, Garzanti, 1992; P. B. QUATTROCCHI, Monaci nella tormenta, Citeaux, Revue Citeaux, 1991. 42 Jovens Mártires tuído, ao escrever sobre a grande diferença que existe «entre o desejo titânico de morte de um Inácio de Antioquia e o apagar-se quase sem rosto e sem olhos em qualquer martírio do século XX» 37. No século dos direitos humanos e da liberdade, o martírio e a perseguição são ocultos, mas assim se esconde também a dor dos caídos e dos perseguidos. Estudei muitas e diversas situações da vida da Igreja, com a ajuda de fascículos, recolhidos e catalogados num trabalho precioso da Comissão «Novos Mártires». Apercebi-me do sensus de muitas comunidades cristãs no reconhecimento dos próprios mártires. Mas serão mesmo mártires? É verdade que em relação à maior parte deles não existem estudos aprofundados e, sobretudo, não se seguiu aquele processo que, para os católicos, a Igreja costuma seguir, antes de elevar aos altares os seus beatos e os seus santos. Alguns – e são uma minoria – foram canonizados e beatificados. João Paulo II, no seu pontificado, iniciado em 1978, procedeu à beatificação e canonização de mais de quatrocentos mártires e de muitos santos do século XX. Contudo, a maior parte dos martirizados não foram objecto (e talvez nunca venham a sê-lo) de um proces37 K. RAHNER, Sulla teologia della morte, p. 106. Os «Mártires» do século XX 43 so de canonização. No entanto, foram mortos precisamente por serem cristãos. Em meu entender, ainda há que abrir um testamento vivido pelos cristãos do século XX. Pode fazê-lo a cultura. Devem fazê-lo as comunidades cristãs, meditando sobre esta «débil força» do Cristianismo. 44 Jovens Mártires