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Título: Jovens Mártires – Maria Goretti, Antonia Mesina
Título original: Maria Goretti – Teenage Martyr
© 1997 The Incorporated Catholic Truth Society –
Londres
Tradução: Alexandra Ferreira
Introdução: «I “Martiri” del secolo XX», in Testimoni dello Spirito
© Figlie di San Paolo – Milão
Tradução: Maria do Rosário Pernas
Texto de Antonia Mesina: Departamento Redacção Paulinas
Capa: Departamento Gráfico Paulinas
Imagem da capa: Maria Goretti de D. Brovelli, gentileza do Santuário de Santa Maria Goretti, Nettuno, Itália
Concepção gráfica e paginação: Paulinas Editora – Prior Velho
Impressão e acabamentos: Artipol – Artes Tipográficas, Lda. – Águeda
Data: Julho 2007
Depósito legal n.º 262 031/07
ISBN 978-972-751-853-1
(Edição original: 1860820255)
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OS «MÁRTIRES»
DO
SÉCULO XX
Introdução de
Andrea Riccardi 1
1
Docente ordinário de História Contemporânea na Terza Università de Roma. Estudioso da Igreja da Idade Moderna e Contemporânea, publicou numerosas obras, retomando os temas da difícil
relação entre Cristianismo, cultura e modernidade no século XX.
Demonstrou, além disso, um interesse particular pelas relações
entre os mundos religiosos da área mediterrânica. Além da sua vasta
actividade científica, também é conhecido, no âmbito internacional,
por ter fundado, em 1968, a Comunidade de Santo Egídio.
O martírio do século XX, uma «revelação»
O martírio cristão do século XX é uma realidade da
qual, por motivos diversos, só muito tarde se tomou
consciência: devido à longa duração do Comunismo
na União Soviética e nos países de Leste; devido à parca importância dada aos países do Hemisfério sul (tanto africanos como asiáticos). Por estas razões, foi difícil
reunir os inúmeros fragmentos dessa experiência de
dor e, assim, apercebermo-nos das suas verdadeiras
dimensões. Só nos últimos anos do século XX se começou a tomar consciência dessa realidade, tendo
João Paulo II desempenhado um papel significativo
nesse processo de consciencialização.
Karol Wojtyla, com efeito, conheceu pessoalmente
a tragédia da guerra e da perseguição. A Polónia, que a
historiografia do século XIX considerou uma «nação
mártir», no século XX sofreu a ocupação nazi, que
tentou reduzir à escravidão o seu povo, tendo eliminado uma parte dele, viveu a Shoah, que devorou muitos Judeus polacos e europeus, e, finalmente, conheceu o controlo soviético e o regime comunista com a
perseguição anti-religiosa.
João Paulo II recordou assim a sua juventude:
«…O meu sacerdócio, desde o início, inscreveu-se no
6
Jovens Mártires
grande sacrifício de muitos homens e mulheres da
minha geração. A mim, a Providência poupou-me as
experiências mais pesadas...» O Papa tinha a impressão de ter vivido uma parte «desta espécie de “apocalipse” do nosso século» 2.
Efectivamente, o martírio não é para ele uma história antiga, mas uma realidade contemporânea. Ele
próprio sofreu um violento atentado, que podia muito
bem tê-lo levado à morte. Nunca se chegou a saber ao
certo qual a origem desse acontecimento. Sabe-se que
foi amadurecido no ambiente obscuro de Istambul,
com uma mistura de nacionalismo e islamismo, provavelmente aproveitada pelas estratégias de Leste, com
o objectivo de ocorrer durante a visita do Papa ao patriarca ortodoxo Dimitrios. Contudo, seria adiado.
Sobre esse facto escreveu Olivier Clément: «Foi este o
preço da visita a Constantinopla, o sacrifício que conferiu a essa visita uma dimensão mística, cuja importância irá sendo revelada pouco a pouco» 3.
Da sua experiência do século XX, João Paulo II saiu
convicto de que o martírio é uma realidade contem2
JOÃO PAULO II, Dom e Mistério, Cidade do Vaticano, LEV, 1996,
p. 43.
3
O. CLÉMENT, Roma altrimenti, Milão, Jaca Book, 1998, p. 92.
Os «Mártires» do século XX
7
porânea do Cristianismo. Daí a sua iniciativa de recuperar a memória dos mártires contemporâneos. No
documento programático do Ano Santo, a Tertio millennio adveniente, que revela claramente o cunho do
Papa, pode ler-se o seguinte: «No nosso século regressaram os mártires, muitas vezes desconhecidos, quase
militi ignoti da grande causa de Deus. Na medida do
possível, não devem deixar perder na Igreja os seus
testemunhos...» Por isso o Papa lançou um convite:
«É necessário que as Igrejas locais façam todos os possíveis por não deixar perecer a memória de quantos
sofreram o martírio, recolhendo toda a documentação
necessária» 4.
Os novos mártires
A própria expressão «novos mártires» tem o cunho
de Wojtyla, embora a Igreja greco-ortodoxa fale há
muito tempo de novos mártires, para indicar os mártires da luta do povo grego e ortodoxo contra os
turcos. Trata-se, portanto, de uma nova acepção do
JOÃO PAULO II, Tertio millennio adveniente, Citade do Vaticano,
LEV, 1994, p. 43.
4
8
Jovens Mártires
ter mo. Também a Igreja ortodoxa russa começou a
definir como novos mártires os perseguidos do poder
soviético. Parece-me que o termo «novos mártires» se
refere ao facto de a Igreja do século XX ter voltado a
ser uma Igreja de mártires. Não há dúvida que, segundo a visão de João Paulo II, o conceito de martírio é
ampliado em relação ao conceito clássico de mártir
por ódio à fé, ou, pelo menos, reinterpretado: mártir –
escreve o teólogo Karl Rahner – «também é aquele
que sucumbe na luta activa para que se afir mem as
exigências das suas convicções cristãs...» 5.
Este martírio enquadra-se naquele que foi o século
dos massacres, da morte em massa, da indústria da
morte e do terror. No fundo, o século XX, apesar das
suas novas oportunidades, dos seus progressos e dos
seus aspectos positivos, foi um século muito sombrio,
um século de longas sombras, terrível pelas suas violências e pelos seus massacres. As novidades da ciência e da técnica foram, muitas vezes, colocadas ao serviço da destruição do homem e de povos inteiros. Em
certos momentos trágicos, dissipou-se toda a memória do amor, do Evangelho e do próprio Deus.
K. RAHNER, Sulla teologia della morte. Con una digressione
sul martirio, Bréscia, Morcelliana, 1965, p. 106.
5
Os «Mártires» do século XX
9
Pensemos no primeiro holocausto do século: mais
de um milhão de mortos, de Arménios e de Siríacos,
durante a Primeira Guerra Mundial, massacrados simplesmente por serem cristãos. Pensemos nas vítimas
da ditadura comunista na ex-União Soviética e no
terror estaliniano. Na China ocorreram os vários massacres de Nanquim, em 1937, quando os Japoneses
aniquilaram duzentos mil chineses, usando-os inclusivamente como alvos nos seus treinos militares. As
duas terríveis guerras mundiais e, no coração da segunda, a Shoah, precisamente na Europa, na qual
morreram seis milhões de Judeus (mas também Polacos, Ciganos, Russos...). Na segunda destas guerras,
não podemos esquecer o bombardeamento atómico
(a primeira vez que se usou esta arma, que ainda hoje
continua a ser uma ameaça) sobre Hiroshima e Nagasaki que vitimou cerca de cento e cinquenta mil pessoas. Os quase trinta milhões de mortos nas carestias
chinesas entre 1958 e 1962. A violência dos regimes
autoritários na América Latina e as guerras de África.
O massacre de um terço da população do Camboja.
A limpeza étnica na ex-Julgoslávia. Os massacres no
Ruanda. Um milhão de mortos na guerra civil de
Moçambique. Os assassínios na Argélia... Trata-se
de uma lista incompleta que, no entanto, mostra cla10
Jovens Mártires
ramente como o século XX foi, para milhões de seres
humanos, um século muito sombrio. Perdeu-se a
memória do amor, do respeito pelo homem e pela
mulher.
No fim deste século, no qual se afirmou a democracia, confrontamo-nos ironicamente com um século
de terror. Não se tratou de um «século breve», como o
definiram. Foi um século longo, pelas suas muitas
dores. Consta que o próprio patriarca de Moscovo e
de todas as Rússias, Tichon, que a Igreja ortodoxa canonizou em data recente, terá proferido as seguintes
palavras: «A noite será muito longa e muito escura» 6.
Referia-se ele às perseguições estalinianas contra a sua
Igreja.
Frente a perdas tão profundas e trágicas (as citadas
são apenas alguns exemplos, mas poderíamos recordar muitas outras), um povo de crentes, por vezes
débil, não desistiu de celebrar a memória da paixão e
da ressurreição do seu Senhor. Nunca a escuridão foi
tão profunda que não se acendesse a pequena luz do
círio pascal. Os cristãos nunca deixaram de recordar
que o Senhor foi tratado como o pior dos homens e
das mulheres, mesmo sendo inocente; foi tratado
6
N. STRUVE, Les Chrétiens en U.R.S.S., Paris, Seuil, 1963, p. 36.
Os «Mártires» do século XX
11
como muitas dezenas de milhar de seres inocentes
que foram violentados, torturados e condenados à
morte.
O pastor alemão Paulo Schneider foi levado para o
campo alemão de Buchenwald, em 1937, dado que,
sendo cristão, manifestava a sua oposição ao nazismo.
No campo sofreu maus tratos e torturas especiais porque se recusava a prestar homenagem à cruz suástica
e a Hitler, à idolatria do homem, do Estado e da raça
germânica. A partir de Abril de 1938, foi colocado em
isolamento no bunker do campo, onde passaria os últimos catorze meses da sua vida. Do bunker, porém,
através de uma pequena fresta, nunca deixou de fazer
ouvir a sua voz para recordar aos seus companheiros a
presença do Senhor. Um seu companheiro recordou:
«Ao amanhecer recitava para nós, os outros prisioneiros, uma oração da manhã e, por isso, recebia diariamente novas bastonadas ou torturas».
Um dos detidos, que decidira lançar-se contra o
arame farpado electrificado para acabar com a vida,
contou que tinha desistido dessa ideia graças às palavras do pastor Schneider, que chamava todos a recordar o amor de Deus durante a chamada no terreiro do
campo: «... naquele lugar de horror e desespero, ouviu-se ressoar uma voz forte e clara no terreiro em que
12
Jovens Mártires
se encontravam alinhados vinte mil prisioneiros. Essa
voz provinha da fresta de uma cela situada no bunker:
“Diz Jesus Cristo: Eu sou a luz do mundo; quem me
segue não caminhará nas trevas”... Com aquele grito,
ele salvou-me. De facto, a partir daquele momento,
fiquei a saber que está Alguém a meu lado!» 7. Leonhard Steinwender, também ele internado em Buchenwald, recordou o seguinte: «No domingo de Páscoa, por exemplo, ouvimos subitamente cantar estas
poderosas palavras. “Assim diz o Senhor: eu sou a ressurreição e a vida!”. As longas filas de prisioneiros em
sentido ficaram profundamente perturbadas frente à
coragem e à energia daquela vontade indómita... Nunca conseguia pronunciar mais do que poucas frases.
Logo em seguida ouvíamos abater-se sobre ele as bastonadas dos guardas...» 8.
A experiência da perseguição nazi, a que fiz referência, é apenas um capítulo da história do martírio
no século XX. Há muitos outros: o da perseguição
comunista soviética, na Europa de Leste, na Albânia
Cf. M. D. SCHNEIDER, Il martirio del pastore Paul Schneider
(1897-1939), edição italiana a cargo de T. Franzosi, Turim, Claudiana,
1996, p. 194.
8
Ibidem, pp. 195-106.
7
Os «Mártires» do século XX
13
(de forma muito dramática), mas também a do comunismo asiático. Na Ásia, precisamente no início do
século, os missionários e os cristãos autóctones foram
mor tos, por serem identificados com o Ocidente e
com o Cristianismo, durante a revolta dos Boxers, no
Verão de 1900. Durante a Segunda Guerra Mundial,
por obra das tropas de ocupação japonesas, o mesmo
virá a acontecer.
Contudo, houve vítimas exclusivamente por perseguição religiosa: os Cristãos mortos por Muçulmanos,
mas também os Budistas, budistas lamaístas ou tailandeses, ou as vítimas do fundamentalismo hindu. Finalmente, deve ser notada outra grande categoria de vítimas: os cristãos mártires do amor, da caridade e da
justiça, e estes são inúmeros.
O ecumenismo dos mártires
Os cristãos mártires não são apenas católicos, mas
evangélicos, anglicanos e ortodoxos. A iniciativa anglicana de colocar as figuras dos cristãos mártires nos
nichos da abadia de Westminster salienta o martírio
do século XX como uma realidade profundamente
ecuménica. Verificou-se uma comunhão no sofrimen14
Jovens Mártires
to. A este propósito, os testemunhos são muitíssimo
numerosos. Recordo o do intelectual romeno Nicu
Steinhardt, de origem hebraica, que se converteu ao
Cristianismo ortodoxo. Baptizado na prisão, sob o
regime de Ceaucescu, por um sacerdote ortodoxo,
quis que outros dois prisioneiros estivessem presentes: dois sacerdotes greco-católicos. Escrevia ele, no
seu Diário da felicidade:
«Os dois sacerdotes greco-católicos assistirão ao
Baptismo e eu proclamarei o Credo diante dos sacerdotes católicos, quer como homenagem à sua fé, quer
como testemunho de que pretendemos dar vida ao
ecumenismo durante o pontificado de João XXIII. Os
três pedem-me que me considere baptizado em nome
do ecumenismo e que prometa lutar sempre – se um
dia vier a sair da prisão – pela causa do ecumenismo.
Prometo-o do fundo do coração» 9.
Há uma multidão de mártires de todas as nações e
de todas as confissões. Tentemos ouvir a sua língua.
Falam russo, como acontecia no «reino dos infelizes»
– assim o definia uma deportada –, que foi o lager das
ilhas Solovki, na Rússia. Um detido recorda uma imaN. STEINHARDT, Diario della felicità, Bolonha, Il Mulino, 1995,
p. 116.
9
Os «Mártires» do século XX
15
gem de amor naquele inferno de frio, de maus tratos e
de trabalho sem sentido:
«Unindo-se no mesmo esforço, trabalham juntos
um bispo católico, ainda jovem, e um ancião macilento e descarnado, com a barba branca, um bispo ortodoxo, antigo de dias mas forte de espírito, que desempenhava as suas tarefas com energia... Quem
dentre nós tiver um dia a ventura de regressar ao
mundo, deverá testemunhar aquilo que estamos a ver
aqui. E o que vemos é o renascer da fé pura e autêntica dos primeiros cristãos, a união das Igrejas na
pessoa dos bispos católicos e ortodoxos, que participam, unânimes, no trabalho, uma união no amor e na
humildade» 10.
As testemunhas da fé de todas as confissões sofreram juntas: há um valor ecuménico da solidariedade
no martírio. Penso que haja uma herança comum, que
os cristãos do século XXI poderão receber. O testamento dos mártires não foi aberto: estamos ainda no
início da leitura deste grande documento histórico,
humano e cristão que é o martírio. Esse testamento
fala de homens, de mulheres – muitas mulheres – que
J. BRODSKJI, Solovki. Le isole del martirio. Da monastero a
primo lager sovietico, Milão, La Casa di Matriona, 1998, p. 17.
10
16
Jovens Mártires
não renunciaram à sua fé, ao amor, à justiça, a um
comportamento humano, só para salvar a própria
vida. E nisso está a chave do martírio do século XX.
Quem é o mártir?
O mártir é aquele que não tenta salvar a própria
vida a todo o custo; o mártir, porém, não é um kamikaze, o mártir não é um suicida, não é o sahid de que
se fala no Médio Oriente actual. Também não é um
homem desejoso de arriscar, provocando a própria
morte. O mártir é um homem ou uma mulher que
crê, que espera, que – muitas vezes – trabalha para os
pobres, pela paz, que anuncia o Evangelho, que ama a
Igreja e que, frente à ameaça da morte, mesmo sentido medo, opta por prosseguir com o seu trabalho
e com o seu testemunho, não se deixando intimidar.
Repito que, para mim, as novas dimensões e características do martírio cristão do século XX foram, em
parte, uma revelação. Não é que eu pessoalmente
ignorasse a história da Igreja do século XX, ou não
soubesse dos seus sofrimentos e perseguições: aliás,
eu conhecia grande parte de tudo isso. O conhecimento da documentação da Comissão «Novos MártiOs «Mártires» do século XX
17
res», instituída no âmbito das actividades preparatórias do Jubileu de 2000, por ocasião da realização do
meu volume sobre o século do martírio, foi para mim
como descer às catacumbas do século XX e contactar
com uma parte submersa da história 11. Essa experiência tocou-me profundamente. É como que uma pregação viva do Evangelho. Na sua maior parte, são experiências de homens, mulheres, irmãs, sacerdotes,
pessoas simples, pessoas pobres e pessoas humildes,
que aguentaram firmemente, inamovíveis e que, mesmo na sua debilidade, revelaram uma força incrível.
Recordo a história de uma camponesa de Abruzzo,
Anita Santamarroni, de setenta e dois anos. Foi presa
pelos Alemães e fuzilada, durante a Segunda Guerra
Mundial, por ter hospedado dois aviadores ingleses e
por lhes ter dado de comer. Antes de morrer, limitou-se a dizer: «Não os ajudei por serem Ingleses, mas
porque sou cristã e eles também são cristãos.» De
igual modo, o pastor de Abruzzo, Michele del Greco,
antes de ser fuzilado por motivos análogos, disse:
«Morro por ter posto em prática aquilo que me foi ensinado na Igreja, quando era pequeno: dar de comer a
A. RICCARDI, Il secolo del martirio. I cristiani nel Novecento,
Milão, Mondadori, 2000.
11
18
Jovens Mártires
quem tem fome.» «Dar de comer a quem tem fome,
dar de beber a quem tem sede...» 12.
Dos novos mártires, homens e mulheres simples
e débeis, emerge aquilo a que, com S. Paulo, poderemos chamar a «força débil», a força débil do Cristianismo, que é o seu grande segredo. Não se trata de
poder, nem de aliança com os poderosos, mas da força de um povo crente que não renuncia a crer, a viver
de forma humana, e a viver o amor, nem sequer quando deflagra um conflito, nem frente à ameaça da
morte.
Franz Jägerstätter, nascido numa povoação rural na
Áustria, casado, pai de três filhas, no ano de 1943,
quando contava trinta e seis anos de idade, é chamado
a servir no exército da Wehrmacht: Recusa-se a usar a
sua insígnia, pois considera a fé cristã inconciliável
com o nazismo: «Quem pode ser soldado de Cristo e,
ao mesmo tempo, soldado do nacional-socialismo?»,
interrogava-se ele. «[Hoje] – escreveu ele numa carta
12
As duas citações foram extraídas de G. Vecchio, Il laicato cattolico italiano di fronte alla guerra e alla resistenza: scelte personali e apartenenza ecclesiale, em AA.VV., Cattolici, Chiesa, Resistenza, recompilado por G. De Rosa, Bologna, Il Mulino, 1997,
pp. 260-266.
Os «Mártires» do século XX
19
– é necessário ver cristãos que possam continuar a resistir nestes tempos sombrios, com uma lucidez reflexiva, na calma e na segurança, que vivam em perfeita
paz e alegria ali onde não há paz nem alegria, mas
onde apenas dominam o tédio e o egoísmo, que não
sejam como uma cana agitada pelo vento. Que não estejam sempre a ver o que fazem os seus companheiros ou amigos, mas que se interroguem sobre o que
ensina Cristo e a Igreja, ou o que lhes dita a própria
consciência» 13.
Escrevia o padre Antonio Canduglia, missionário
de S. Vicente de Paulo na China, morto em Ta-ho-ly, no
ano de 1907, durante os anos perturbados que se seguiram às revoltas xenófobas e anticristãs de finais do
século XIX e início do século XX: «A minha vida pouco
importa: antes de mais, devo proteger os meus cristãos. Já esquecestes que um pastor deve dar a vida
pelas suas ovelhas? Não somos dignos do martírio;
mas que graça nos concede Deus, permitindo-nos
fazer em tudo a sua santa vontade!» 14.
A história deste martírio não poderá ser escrita
13
Arquivo da Comissão «Novos Mártires» (daqui em diante designado como ACNM) II/1, 348.
14
ACNM III, 149.
20
Jovens Mártires
como tantas histórias de santos. Há experiências maravilhosas. Mas há uma história maciça, de centenas
de milhar ou de milhões de pessoas, humildes, desconhecidas, das quais se perderam os nomes e os rostos. Recordemos os cristãos arménios e siríacos do
Império Otomano, massacrados durante a Primeira
Guerra Mundial. Muitos deles teriam podido salvar a
vida se tivessem renunciado à sua fé. Não o fizeram,
contudo. Trata-se, portanto, de uma história de martírio de um povo, e também de martírio ecuménico 15.
As histórias são muitas e diversas. Lembro o comissário da polícia italiano, Giovanni Palatucci 16. É significativa como testemunho de solidariedade cristã para
com os Judeus. Educado numa família de tradição católica, em 1937 foi nomeado para a sede da polícia de
Fiume, onde o incumbiram do gabinete de estrangeiros. Aí começou imediatamente a prodigalizar-se em
favor dos Judeus que acorriam em grande número à
cidade, procurando escapar aos nazis. Quando o caminho da expatriação deixou de ser praticável, enviou-os
15
Sobre a experiência dos Arménios, veja-se, entre outros,
Y. TERNON, Les Armeniens. Histoire d’un genocide, Paris, Seuil, 1977.
16
Cf. G. RAIMO, A Dachau per amore: Giovanni Palatucci,
Montella, Fiumane, 1992.
Os «Mártires» do século XX
21
para as proximidades de Salerno, colocando-os sob a
protecção do seu tio bispo, mons. Palatucci. Após o armistício entre o Governo Italiano e os Aliados, em Setembro de 1943, quando Fiume foi ocupada pelas
tropas alemãs, sob o controlo directo das SS, Giovanni
Palatucci decidiu manter-se no seu lugar. Procedeu à
destruição sistemática de todo o material relativo aos
Judeus contido nos arquivos da sede da polícia, a fim
de tornar vãs as tentativas das SS de fazerem listas
para as deportações. A 13 de Setembro de 1944 foi
preso pelos nazis. Conduzido para a prisão de Trieste,
viria a ser condenado à morte. Porém, em vez disso,
acabou por ser deportado para Dachau, onde morreu
de fome e exaustão a 10 de Fevereiro de 1945. Consta
que, durante os sete anos em que permaneceu em
Fiume, Palatucci conseguiu resgatar, directa ou indirectamente, cerca de cinco mil pessoas.
O martírio da caridade
No século XX, há um aspecto importante do martírio, ao qual eu não chamaria novo – porque a caridade
não é nova na história da Igreja – mas que merece ser
realçado: é, precisamente, o martírio da caridade. Um
22
Jovens Mártires
sacerdote milanês, Pe. Isidoro Meschi, um pároco normal, que tinha um contacto próximo e atento com os
jovens, em especial com os que o procuravam quando
tinham problemas de droga, foi morto por um jovem
toxicodependente 17; um sacerdote comasco, Pe. Renzo Beretta, em 1999, contando setenta e seis anos de
idade, foi morto por um estrangeiro que acolhera em
sua casa (tinha escrito: «Quem ou que lei nos poderá
impedir de “ajudar” esta gente votada ao abandono?») 18. Muitas irmãs foram mortas em África; tornaram-se silenciosas protagonistas dos dramas daquele
continente. Um exemplo, entre muitos, poderá ser o
de Mercede Stefani, irmã Irene, uma das primeiras
«mártires» europeias em África, no século XX 19.
A irmã Irene tinha ingressado na congregação das
Irmãs Missionárias da Consolata em 1911 e, em 1914,
partira para o Quénia. Em Akikuyu anunciava o Evangelho, ensinava, tratava os doentes, visitava as famílias
e dava testemunho do amor pelos estrangeiros, em lugares onde a desconfiança era grande. As pessoas chamavam-lhe, com afecto, «Nyaatha» (Mãe misericórdia).
17
ACNM II/1, 471.
Cf. A. RICCARDI, Op. cit, pp. 396-397.
19
Ibidem, pp. 220-221.
18
Os «Mártires» do século XX
23
A 31 de Outubro de 1930 morreu em Gikondi, depois
de ter sido contagiada de peste por um doente, que
assistiu até ao fim.
O seu testemunho recorda de perto o das Irmãs
dos Pobres do Instituto Palazzolo de Bérgamo, mortas
na Primavera de 1995, no Congo, durante a epidemia
do vírus Ébola. A irmã Vitarosa Zorza, entre outras,
tinha partido para aquele país em 1982, ocupando-se aí da assistência às crianças desnutridas, mas, ao
saber que se tinha desencadeado a epidemia, pediu
se podia dar uma mão às suas irmãs. «Por que hei-de
ter medo? – dizia ela – As outras estão lá; por que
não posso ir também eu? Neste momento elas precisam de mim» 20.
São homens e mulheres, como nós, muitas vezes
da nossa própria geração, que não procuraram a morte nem se lançaram em aventuras insensatas e atrevidas, arriscando a própria vida de maneira absurda.
Pelo contrário, seguiram o caminho da caridade, o caminho da humanidade, o caminho da amizade. Fizeram o seu trabalho e, depois, a dado momento, confrontaram-se com a doença, com a intimidação, com o
20
24
Ibidem, p. 394.
Jovens Mártires
espectro da morte, com a ameaça ou com o perigo.
Tiveram medo, mas decidiram ficar, continuar a amar.
O padre Pino Puglisi, pároco de Palermo, lutava
para que os jovens do bairro Brancaccio, onde se encontrava a sua paróquia, se libertassem da mentalidade mafiosa, inclusivamente envolvendo-os num
processo educativo e religioso. Teve conhecimento
das ameaças dirigidas contra a sua pessoa, mas manteve-se firme na sua missão. Quando a máfia se apresentou à porta de sua casa para o matar, a 15 de Setembro de 1993, segundo o testemunho de um dos
próprios assassinos, Puglisi exclamou: «Eu já estava à
espera.» Foi mais um dos que se manteve no seu
lugar 21.
Citei alguns casos italianos, mas também nos Estados Unidos, desde o início do século, houve casos de
religiosos mortos pela caridade. Encontram-se ainda
outros na América Latina: são cristãos mortos pela
justiça, pela defesa das crianças, pela luta contra as
máfias. Recordo, entre muitos, o cardeal arcebispo de
Guadalajara, no México 22. Muitas vezes as próprias
21
Cf. F. DELIZIOSI, 3P Padre Pino Puglisi. La vita e la pastorale
del prete ucciso dalla mafia, Milão, Paulinas, 1994.
22
A. RICCARDI, Op. cit, p. 410.
Os «Mártires» do século XX
25
máfias identificam os religiosos ou os cristãos como
seus inimigos, porque, com a sua acção, mesmo não
lutando em termos políticos, tentam que a sua cultura
não seja transmitida às novas gerações nem se difunda, procurando criar, assim, uma resistência moral.
É também emblemático o caso de Mons. Oscar Arnulfo Romero, martirizado em 1980 enquanto celebrava a Eucaristia 23. No V Domingo da Quaresma, um
dia antes de ser assassinado, na capela do pequeno
hospital onde vivia, tinha pregado: «Assim como
Cristo florescerá numa Páscoa de ressurreição imperecível, também é necessário acompanhá-lo numa Quaresma, numa Semana Santa que é cruz, sacrifício e
martírio... A Quaresma é, portanto, um convite a celebrar a nossa redenção nesta difícil mistura de cruz e
vitória.»
Romero era um verdadeiro pastor, não uma figura
política, como, por vezes, foi indevidamente considerado. Também era um sacerdote tradicional, um verdadeiro amigo dos pobres, que se viu confrontado
23
Cf. J. DELGADO, Monseñor. Vita di Oscar Arnulfo Romero, Milão,
Paulinas, 1986; O. A. ROMERO, Diario, Molfetta, 1990; O. A. ROMERO, ...
y lo mataron. Scritti e discorsi, Roma, AVE, 1980; R. MOROZZO DELLA
ROCCA, Oscar Romero. Un vescovo centroamericano tra guerra
fredda e rivoluzione, Cinisello, Balsamo, San Paolo, 2003.
26
Jovens Mártires
com uma situação política impossível, num clima de
polarização extrema, e que, portanto, tentou ajudar os
mais débeis, defender os seus sacerdotes, proteger os
mais indefesos. Em suma, salvar vidas humanas. Colocou a sua autoridade ao serviço dessa causa, mas,
acima de tudo, permaneceu fiel à sua Igreja, ao seu
povo e à sua gente. Teve medo, mas nunca deixou de
falar, e morreu junto ao altar enquanto celebrava a Eucaristia. Uma conspiração, associada ao poder político,
eliminou-o de forma brutal.
A eliminação de uma reserva de humanidade
Há que ter presente que, no século XX, todo o
mundo religioso foi tocado pela violência a todos os
níveis. O caso do atentado ao Papa é sintoma disso
mesmo. Foram atingidos também cristãos de destaque, embora a autoridade das suas funções parecesse
protegê-los da violência. Os bispos voltam a morrer
no século XX, como acontecia nos primeiros séculos
da história cristã. Entre os ortodoxos russos, calcula-se que tenham sido assassinados cerca de trezentos
bispos. Outros primazes de Igrejas (não só católicos)
também foram atingidos, entre os quais o patriarca
Os «Mártires» do século XX
27
etíope morto pelo regime de Mengisto, o católico arménio morto nas ilhas Solovki, o arcebispo anglicano
do Uganda assassinado por Idi Amin. Em África foram
mortos muitos bispos: desde o prelado italiano abatido perto da sua catedral de Mogadíscio, na Somália,
aos bispos ruandeses mortos durante as guerras étnicas, até ao cardeal do Congo Brazaville, assassinado na
sequência de um golpe de Estado. Com estes bispos,
também muitos católicos africanos simples conheceram a morte, como aqueles jovens seminaristas burundeses, aos quais, em 1996, os guerrilheiros hutu
pediram que se identificassem como hutus ou tutsi,
para depois assassinarem estes últimos; recusando-se
a estabelecer tal distinção, todos acabaram por ser
assassinados.
A história do Cristianismo em África é marcada
pelas experiências do martírio, a começar pela história
missionária até às guerras étnicas, que ainda não terminaram, passando pela descolonização. Ainda hoje,
sobretudo em África, os missionários continuam a não
ser protegidos pelo estatuto de estrangeiros, ou seja,
na situação de insegurança de inúmeros países africanos, os missionários arriscam a própria vida.
Os chefes das Igrejas voltam a morrer, tal como os
humildes fiéis. Porquê? Eis uma pergunta a que a His28
Jovens Mártires
tória não se pode esquivar, porque, quando se fala de
testemunho cristão até ao derramamento de sangue,
não se pode olhar apenas para os mártires, é necessário ter também em conta os que os martirizam e as
suas motivações. Neste «par» assassino-mártir apreende-se talvez o dado último e elucidativo para a interpretação histórica e para a compreensão espiritual do
martírio: muitas vezes, criou-se uma relação pela qual
o mártir se tornou um «não-homem», e, como tal,
pode ser assassinado. E quanto ao motivo, as circunstâncias da morte podem ser casuais. O gesto assassino
pode ser dirigido ao acaso, não por ódio pessoal, mas
tendo com frequência uma raiz comum na grande violência contra os cristãos. Não se trata de um único
desígnio destrutivo, mas deve ser tida em conta a raiz
comum: a eliminação do Cristianismo como reserva
de humanidade, como reserva de fé e como espaço
de liberdade. Isto acontecia na Alemanha nazi, na
Rússia soviética, em África e em tantos outros lugares.
O padre Cesare Mencattini (missionário do PIME
na China), pouco antes de ser morto, em 1941, tinha
escrito ao seu irmão: «É maravilhoso o padre isolado
no meio de perigos constantes, único conforto de
tantos atribulados, só e indefeso entre tanta gente armada, amigo de todos, entre tantos inimigos!» A preOs «Mártires» do século XX
29
sença pacífica de tantos missionários, laboriosa e solícita frente aos débeis, tanto na China como noutros
lugares, tornava-se alvo fácil em tempos de violência e
de conflito. Mas, em certo sentido, pretendeu-se, precisamente, atingir o «amigo de todos», aquele que
vivia sem inimigos 24.
Quando, a 26 de Setembro de 1999, o contingente
da ONU começa a dirigir-se para Timor-Leste, a fim de
pôr termo às sangrentas desordens verificadas na ilha,
tem lugar um novo massacre: o de duas missionárias
canossianas, irmã Erminia Cazzaniga e irmã Celeste de
Carvalho Pinto, que levavam mantimentos aos refugiados escondidos nas montanhas. Com elas foram mortos um sacerdote, dois seminaristas, um estudante de
teologia e o motorista que colaboravam na operação.
A irmã Erminia tinha sessenta e nove anos, e estava
em Timor-Leste há trinta e cinco. Fora convidada
pelos superiores a deixar a missão por causa das revoltas. «Não se preocupem comigo – dissera ela – já sou
velha, e também sou capaz de morrer sem medo.»
Na última carta que dirigiu ao pároco da sua terra,
na província de Lecco, de onde provinha, tinha escrito:
«... estamos em plena guerra. É uma guerra trai24
30
ACNM III, 184.
Jovens Mártires
çoeira, que mantém as pessoas sempre no medo e na
insegurança. Começou o vandalismo difuso, com grupos formados e apoiados pelos militares que infestam
e destroem o país, matando, saqueando e queimando... Quantas pessoas ficaram sem casa, e quantas
crianças sem pais. A nossa missão, hoje, é não só
ajudar, mas, como diz S. Paulo, chorar com os que
choram, partilhar com quem tem necessidade e dar
muita esperança e confiança em Deus pai, que não
abandona os seus filhos... E o senhor, caro pároco,
abençoe a sua ovelha que está no meio de lobos
ávidos» 25.
O padre Giuseppe Girotti, um biblista dominicano
italiano, deportado para Dachau – onde seria morto –
por ter escondido alguns Judeus, subtraindo-os à caça
dos nazis, tinha pregado assim, no segredo do barracão do campo: «A Igreja foi, é e será sempre o único
refúgio do sentido de humanidade, de amor e de misericórdia; refúgio da verdade, dos princípios da recta
razão, da civilidade e da cultura...» 26. Este refúgio, esta
ACNM III, 508. Ver também A. RICCARDI, Op. cit, pp. 298-299.
Ibidem, p. 75. Ver também A. CAUVIN, G. GRASSO, Nacht und
nebel (Noite e nevoeiro). Uomini da non dimenticare (1943-1945),
Turim, Marietti, 1981.
25
26
Os «Mártires» do século XX
31
arca de humanidade, de amor e de verdade, foi muitas
vezes atacado ao longo do século passado, precisamente na vida dos seus fiéis.
Entre os cristãos libaneses houve muitos mortos,
nos longos anos da guerra civil, explicitamente por
motivos de fé. Alguns até enquanto estavam empenhados em acções de socorro, muitas vezes sem olhar
à religião nem à qualidade daqueles a quem prestavam assistência. Em Dezembro de 1984, um seminarista, Ghasibé Kayrouz, é morto enquanto regressa à
sua aldeia Nabaa, na planície de Bekaa, onde Muçulmanos e Cristãos vivem juntos. Outros três amigos do
seminarista, que tinham participado com ele num
retiro, foram assassinados. O rapaz, sentindo-se já
ameaçado, pouco antes da sua morte, havia escrito
um testamento que ainda hoje é fonte de luz pelo seu
testemunho de amor, inclusivamente para com os
Muçulmanos:
«Tenho apenas um pedido a fazer-vos: perdoai
àqueles que me mataram. Fazei-o de todo o coração e
pedi comigo que o meu sangue, mesmo sendo o sangue de um pecador, seja resgate pelo pecado do Líbano, seja hóstia misturada com o sangue daquelas vítimas caídas por toda a parte e de todas as religiões, e
preço pago pela paz, pelo amor e pelo entendimento
32
Jovens Mártires
que se perderam tanto nesta nossa pátria como no
mundo inteiro. Mostrai às pessoas o amor da minha
morte, e Deus consolar-vos-á, proverá as vossas necessidades e ajudar-vos-á nesta vida. Não tenhais medo...
Orai, orai, orai, e amai os vossos inimigos» 27.
Estas palavras fazem lembrar o testemunho dos
mártires da Argélia. A história da Igreja na Argélia conheceu a luta da libertação nacional, o êxodo de grande
parte dos cristãos que eram europeus, o governo militar, a guerra civil, que ensanguentou o país a partir de
1992. Mons. Pierre Claverie, bispo de Orano, um pied
noir, ou seja, um europeu nascido na Argélia, morto
como mártir em 1995, numa situação que nunca foi
esclarecida, disse o seguinte:
«Os períodos de crise são, na maior parte das
vezes, simultaneamente dolorosos e fecundos. Não
podem ser atravessados sem temor. Colocando-nos
em situação de fronteira ou de divisão, corremos o
risco de ser mortos, entre a violência destruidora e o
assombro frente ao poder obstinado da vida. Fragilidade e força, medo e segurança, desânimo e esperança, egocentrismo e impulso solidário, desconfiança e
compaixão: somos continuamente projectados de
27
ACNM III, 569.
Os «Mártires» do século XX
33
uma vertente para a outra por acontecimentos ambíguos, imprevisíveis, dificilmente analisáveis e que mal
podemos controlar. Na Argélia, como em muitos outros países, a Igreja está mergulhada numa crise que
ultrapassa a sua presença e que a atinge por causa das
suas relações profundas com o povo que a acolhe» 28.
A vida dos monges trapistas do mosteiro de Notre
Dame de l’Atlas decorria em franco diálogo com o
mundo muçulmano. Tratava-se de uma comunidade
empenhada, com grande vigor, em manter viva a
coabitação com os Muçulmanos. O mosteiro encontrava-se numa zona de grandes recontros. Apesar
disso, os monges tinham recusado a protecção do
exército. Tinham evitado também colaborar com os
homens armados do GIA, embora frei Luc, mesmo
com os seus oitenta anos, não hesitasse em prestar
cuidados médicos a todos. Os monges tinham-se interrogado se deveriam permanecer no mosteiro apesar da situação de perigo. Frei Paul Favre Miville, que
regressara ao mosteiro poucas horas antes da última
«visita» dos homens armados do GIA, escrevera: «Até
onde ir, para salvar a minha pele, sem correr o risco
A. RICCARDI, Op. cit, pp. 311-314. Ver também P. CLAVERIE, Lettere dall’Algeria, Milão, Paulinas, 1998, pp. 291 e ss.
28
34
Jovens Mártires
de perder a vida? Só um conhece o dia e a hora da
nossa libertação nele» 29. É a problemática do martírio,
que não é risco aventureiro, mas a escolha laboriosa
de não largar o próprio serviço.
Frei Michel Fleury, que fazia cinquenta e dois anos
no dia em que foi assassinado, observara: «Mártir é um
termo tão ambíguo, aqui... Se acontecer alguma coisa,
o que eu não desejo, nós queremos vivê-lo aqui, em
solidariedade com todos estes Argelinos e Argelinas
que já pagaram com a própria vida, solidários apenas
com todos estes desconhecidos inocentes. Parece-me
que quem nos ajuda e nos dá forças, hoje, é aquele
que nos chamou» 30.
Durante a detenção – depreende-se da documentação produzida pela GIA –, frère Christian nunca
deixou de lutar por explicar a particularidade da sua
posição junto do emir do GIA 31. Na perspectiva de
poder vir a ocorrer uma tragédia, frère Christian tinha
deixado um testamento:
«Se me acontecesse, um dia (poderia ser hoje),
29
ACNM I/1, 3911. Ver também B. OLIVERA, Martiri in Algeria. La
vicenda dei sette monaci trappisti, Milão, Tertium Millennium,
1997, pp. 20-21.
30
ACNM I/1, 3908.
31
Cf. M. DUTEIL, Les Martyrs de Tibhrine, Paris, Brepols, 1996.
Os «Mártires» do século XX
35
cair vítima do terrorismo que parece querer envolver
todos os estrangeiros que vivem na Argélia, gostaria
que a minha comunidade, a minha Igreja e a minha família recordassem que a minha vida foi entregue a
Deus e àquele país. Gostaria que eles aceitassem que
o dono único de toda a vida não pode estar alheio a
esta partida brutal. Gostaria que rezassem por mim.
Como poderei ser considerado digno de tal oferta?
Gostaria que soubessem associar esta morte a tantas
outras igualmente violentas, deixadas na indiferença
do anonimato. A minha vida não tem um preço mais
alto do que qualquer outra. Não vale menos nem mais
do que as outras. De qualquer modo, também não
tem a inocência da infância. Vivi bastante para me considerar cúmplice do mal que infelizmente parece prevalecer no mundo, e também daquele mal que poderá
vir a atingir-me às cegas...»
Frère Christian continua assim esta sua reflexão
que ainda hoje lança muita luz sobre o martírio do século XX: «Gostaria, se chegasse esse momento, de ter
aquele espaço de lucidez que me permitisse pedir perdão a Deus e aos meus irmãos em humanidade, e, ao
mesmo tempo, perdoar com todo o coração quem me
tivesse ferido. Não posso desejar uma morte assim.
Parece-me importante declará-lo. Com efeito, não vejo
36
Jovens Mártires
como poderei alegrar-me com o facto de um povo que
eu amo ser indistintamente acusado do meu assassínio.
Seria um preço demasiado alto para aquela que talvez
venham a denominar como a “graça do martírio”, devê-la a um argelino qualquer, sobretudo se este diz que
agiu por fidelidade àquilo que julga ser o Islão. Eu bem
sei o desprezo de que têm sido alvo os Argelinos, de
um modo geral. Também conheço as caricaturas do
Islão que um certo islamismo encoraja. É demasiado
fácil ficar com a consciência em paz identificando esta
religião com os integrismos dos seus extremistas. A Argélia e o Islão, para mim, são outra coisa, são um corpo
e uma alma... Como é evidente, a minha morte parecerá dar razão àqueles que me consideraram, de forma
precipitada, um ingénuo ou um idealista: “Diga-nos
agora aquilo que pensa!” Mas essas pessoas devem
saber que a minha curiosidade mais lancinante será finalmente satisfeita. Eis que então poderei, se Deus quiser, mergulhar o meu olhar no do Pai, a fim de contemplar com Ele os seus filhos do Islão tal como Ele os vê...»
No testamento do prior da trapa de Notre Dame
de l’Atlas encontramos uma conclusão que realça o
perdão. O mártir não morre em clima de ódio. O ódio,
pelo menos, não provém dele, porque ele perdoa,
como faz Cristo frente aos seus assassinos. Com efeiOs «Mártires» do século XX
37
to, o mártir não pede para ser vingado. A sua figura e
os seus sofrimentos não podem ser utilizados para
pedir vingança ou exigir medidas destinadas a punir os
culpados pela sua morte. O mártir perdoa. As suas últimas palavras são de perdão, como se vê no testamento
de frère Christian: «E também [para] ti, amigo do último minuto, que não sabias o que estavas a fazer. Sim,
também para ti quero deixar este “obrigado” e este
“adeus”. E que nos seja concedido reencontrarmo-nos,
como bons ladrões, no Paraíso, se for essa a vontade
de Deus, nosso Pai comum. Ámen! Insciallah» 32.
Os sete monges de Notre Dame de l’Atlas foram
sequestrados a 27 de Março de 1996 durante a noite.
A 21 de Maio foram encontrados os seus corpos decapitados.
O testemunho dos mártires
Qual é então o testemunho destes homens e destas
mulheres frente ao século ainda há pouco iniciado?
32
CHRISTIAN-MARIE DE CHERGÉ, prior de Notre Dame de l’Atlas, Testamento, Argélia, 1 de Dezembro de 1993, Tibhirine, 1 de Janeiro de
1994.
38
Jovens Mártires
Em primeiro lugar, o testemunho da força. Muitas
vezes temos um Cristianismo sem força. Paulo, porém, no fim da primeira carta aos Coríntios, diz o seguinte: «Estai vigilantes, permanecei firmes na fé, sede
corajosos e fortes» 33. O Cristianismo não é uma fraca
debilidade; é a religião dos humildes, é a comunidade
dos débeis e dos pobres, mas nisso há uma força. E
parece-me que nisso também há uma herança de
força, força de amor, força humana, precisamente no
testemunho dos mártires.
O rosto do martírio forma-se com outros rostos da
história da Igreja no nosso século, mais conhecidos e
certamente mais estudados. Como já disse, o estudo
dos testemunhos dos mártires e das perseguições
produziu uma reconstrução impressionante: a de um
rosto oculto do Cristianismo do nosso século, inédito
inclusivamente para o estudioso atento e para o investigador experiente. Estas diferentes histórias, pessoais,
de dor, ocorridas em países diferentes e em diversos
momentos do século, confluem – em meu entender –
na construção de um único grande fresco: o do sofrimento e da perseguição ao longo dos anos do século
XX. Este fresco não obscurece outras tragédias deste
33
1Cor 16,13.
Os «Mártires» do século XX
39
século terrível. A experiência da Shoah é muito diferente da perseguição dos cristãos, dado o seu carácter
particular e o único desígnio de destruição que esteve
na sua origem, para além do elevado número de Judeus mortos. Mas a experiência da perseguição contra
os cristãos também mostra o rosto desumano, violento, intolerante e terrível do século XX.
O quadro do martírio, neste século, revela uma humanidade mansa e não violenta, embora forte, como
já disse... Muitos fizeram aquela experiência interior
que Martin Luther King descrevia em 1960, falando da
sua Peregrinação até à não-violência: «No meio dos
perigos que me cercam, senti a paz interior e conheci
recursos de força que só Deus pode dar. Em muitos
casos senti a força de Deus a transformar o cansaço do
desespero na alegria da esperança» 34. O estudo do
Cristianismo contemporâneo não poderá deixar de ter
em conta este «mundo de mártires».
Mas também não poderá deixar de tê-lo em conta
a Igreja católica do século XXI, bem como as Igrejas
cristãs no seu conjunto. O «mundo dos mártires», com
uma dinâmica própria, volta a pôr em movimento o
mundo das Igrejas, nem que seja apenas através da
34
40
M. L. KING, Io ho un sogno, SEI, Turim, 1993, p. 61.
Jovens Mártires
memória. Na prisão, nos anos Trinta, enquanto lia o
Evangelho, o grande poeta chinês, Ai Quing, ia escrevendo em pobres folhas de papel as suas poesias:
«E quem poderá nos estratos terrestres
encontrar
as lágrimas dos sacrificados
que sofreram todas as penas?
Aquelas lágrimas
estão encerradas entre milhares de barras de ferro,
mas há uma única chave
que pode abrir essas grades
e os inúmeros corajosos
que quiseram apoderar-se dela
morreram, todos,
sob as armas dos guardiães.
Se fosse possível recolher uma dessas lágrimas...» 35.
Será possível encontrar e recolher «as lágrimas dos
sacrificados que sofreram todas as penas»? A Igreja
tentou, pelo menos, «recolher uma dessas lágrimas».
A memória é a única chave para abrir aquelas «grades»
35
AI QUING, Morte di un Nazareno, Novara, Interlinea, 1999,
p. 61.
Os «Mártires» do século XX
41
que ocultam as vivências dos perseguidos e dos assassinados. Trata-se das «grades» das prisões, dos campos
de concentração organizados e dos lugares de deportação. Nestes lugares atrozes foram derramadas «as lágrimas dos sacrificados», derramadas por vezes ao
longo de marchas extenuantes ou de caminhos que
não conduziam a lado nenhum, com o único objectivo
da destruição física e moral, como as marchas dos
Arménios em direcção ao deserto da Síria, ou as marchas dos monges da trapa de Nossa Senhora da Consolação, em Yangjiaping, no gelo e no calor do noroeste da China 36.
Contudo, as grades que aprisionaram e esconderam tantas experiências de dor não são apenas as
grades concretas, senão também o esquecimento das
gerações seguintes e o olvido do tempo. Todavia, em
certos casos, as perseguições foram disfarçadas de
justiça e defendidas com a calúnia, com a supressão
da memória e a falsificação das acusações e da história. Karl Rahner, o grande teólogo alemão, tinha-o in36
Sobre a experiência dos monges da abadia trapista de Nossa
Senhora da Consolação, ver A. RICCARDI, Op. cit, pp. 249 e ss.; TH.
MERTON, Le acque di Siloe, Milão, Garzanti, 1992; P. B. QUATTROCCHI,
Monaci nella tormenta, Citeaux, Revue Citeaux, 1991.
42
Jovens Mártires
tuído, ao escrever sobre a grande diferença que existe
«entre o desejo titânico de morte de um Inácio de
Antioquia e o apagar-se quase sem rosto e sem olhos
em qualquer martírio do século XX» 37. No século dos
direitos humanos e da liberdade, o martírio e a perseguição são ocultos, mas assim se esconde também a
dor dos caídos e dos perseguidos.
Estudei muitas e diversas situações da vida da Igreja, com a ajuda de fascículos, recolhidos e catalogados
num trabalho precioso da Comissão «Novos Mártires».
Apercebi-me do sensus de muitas comunidades cristãs
no reconhecimento dos próprios mártires. Mas serão
mesmo mártires? É verdade que em relação à maior
parte deles não existem estudos aprofundados e, sobretudo, não se seguiu aquele processo que, para os
católicos, a Igreja costuma seguir, antes de elevar aos
altares os seus beatos e os seus santos. Alguns – e são
uma minoria – foram canonizados e beatificados. João
Paulo II, no seu pontificado, iniciado em 1978, procedeu à beatificação e canonização de mais de quatrocentos mártires e de muitos santos do século XX.
Contudo, a maior parte dos martirizados não foram
objecto (e talvez nunca venham a sê-lo) de um proces37
K. RAHNER, Sulla teologia della morte, p. 106.
Os «Mártires» do século XX
43
so de canonização. No entanto, foram mortos precisamente por serem cristãos. Em meu entender, ainda há
que abrir um testamento vivido pelos cristãos do século XX. Pode fazê-lo a cultura. Devem fazê-lo as
comunidades cristãs, meditando sobre esta «débil
força» do Cristianismo.
44
Jovens Mártires

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