O princípio Misericórdia
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O princípio Misericórdia
CENTRO UNIVERSITÁRIO SÃO CAMILO O PRINCÍPIO MISERICÓRDIA: um estudo sobre a contribuição teológica de Jon Sobrino para a Bioética na América Latina ROGÉRIO JOLINS MARTINS SÃO PAULO, 2008 1 ROGÉRIO JOLINS MARTINS O PRINCÍPIO MISERICÓRDIA: um estudo sobre a contribuição teológica de Jon Sobrino para a Bioética na América Latina Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Bioética do Centro Universitário São Camilo, orientada pelo prof. Dr. Márcio Fabri dos Anjos, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre. SÃO PAULO, 2008 2 ROGÉRIO JOLINS MARTINS O PRINCÍPIO MISERICÓRDIA: um estudo sobre a contribuição teológica de Jon Sobrino para a Bioética na América Latina Orientador: ____________________________ Co-orientador: _________________________ 3 La misericordia no es suficiente, pero es absolutamente necesaria en un mundo que hace todo lo posible por ocultar el sufrimiento y evitar que lo humano se defina desde la reacción a ese sufrimiento. La respuesta al dolor de los pobres es una exigencia ética, pero es además una práctica salvífica para quienes se solidarizan con los pobres. Quienes hacen eso recobran con frecuencia el sentido profundo de su propia vida, que lo creían perdido; recobran la dignidad de ser hombres integrándose de alguna forma en el dolor y sufrimiento de los pobres; reciben de los pobres, de forma insospechada, ojos nuevos para ver la verdad última de las cosas, e nuevos ánimos para recorrer caminos desconocidos e peligrosos... La raíz, entonces, de la solidariedad está en aquello que desencadena corresponsabilidad humana, que hace de esa corresponsabilidad una exigencia ética ineludible, y del ejercicio de esa corresponsabilidad algo bueno, plenificante y salvífico. Jon Sobrino 4 Dedicatória A Jon Sobrino que através do seu testemunho humilde de fidelidade e comprometimento com os pobres situa o seguimento de Jesus de Nazaré, o Cristo, no cenário atual da América Latina, caracterizado pela extrema pobreza, gritante desigualdade social e embrutecimento nas relações. Seu imperativo é a necessidade de transformação em todos os níveis, os quais precisam ser repensados, constantemente, a partir da misericórdia que deve ser historizada de acordo com quem é o ferido no caminho. A atualidade do seu pensamento, com a originalidade do princípio misericórdia, mostra o horizonte que dá possibilidade de intercâmbios com outros saberes. Sobrino ajuda a redescobrir a face humana de Jesus, cheia de ternura para com os pobres, ao mostrar que extra pauperes nulla salus, ou seja, que as relações saudáveis passam, necessariamente, por inserir as motivações do pobre como critério nas tomadas de decisões. Aos pequenos, desse modo, Sobrino devolveu vida e esperança, e através dele os pobres encontram voz. 5 Agradecimento Ao Deus de Jesus de Nazaré que me inspira no comprometimento em meio aos meus irmãos crucificados na América Latina. Ao prof. Dr. Pe. Márcio Fabri dos Anjos pela paciência, dedicação, estímulo e competência na orientação deste estudo. Ao prof. Dr. Pe. Léo Pessini pela co-orientação deste trabalho em suas apreciações. Aos membros das bancas de qualificação e defesa por aceitar o convite de colaboração crítica e empenho para o enriquecimento deste estudo. Ao Centro Universitário São Camilo, na pessoa de seu reitor Prof. Pe. Christian de Paul de Barchifontaine, aos religiosos camilianos, professores, funcionários e colegas de estudos por possibilitar as reflexões sobre o tema. À Diocese de Colatina, na pessoa de Dom Décio, pelo financiamento e apoio dispensados na realização deste estudo. À paróquia Sagrado Coração de Jesus por disponibilizar tempo para leituras e reflexões. À minha família por saber que está tão longe e tão próxima que somente o afeto filial pode perceber. À todos que empreenderem na leitura deste trabalho... 6 Índice Introdução................................................................................................................... 11 I – Bioética e princípios .............................................................................................. 14 1.1 – Sobre o termo princípio ........................................................................ 15 1.2 - Princípios e Fundamentos...................................................................... 18 1.3 - A relevância dos princípios no surgimento da Bioética ................................ 23 1.4 – O paradigma principialista na Bioética........................................................ 28 1.5 – Alguns limites do principialismo ................................................................ 30 1.6 - A contribuição de outras tendências na Bioética .......................................... 37 1.7 - O paradigma latino americano na Bioética................................................... 41 II – O princípio misericórdia ...................................................................................... 47 2.1 - Biografia e Pensamento de Jon Sobrino........................................................... 48 2.2 - América Latina: um continente de realidades vulneráveis e povos crucificados56 2.2.1 - A opressão como fenômeno histórico ....................................................... 60 2.2.2 - Pretensões colonizadoras no presente da América Latina.......................... 65 2.2.3 - Em busca das causas da opressão ............................................................. 69 2.2.3.1 - O mercado............................................................................................. 70 2.2.3.2 - Mercado e idolatria................................................................................ 72 2.2.3.3 - O ídolo e as vítimas ............................................................................... 72 2.2.3.4 - As vítimas e a lei ................................................................................... 73 2.3 - O princípio misericórdia: uma experiência fundante ....................................... 76 2.3.1 - Análise semântica do termo misericórdia ................................................. 81 2.3.2 - Aspectos da fundamentação teológica do princípio misericórdia .............. 84 2.3.3 - A efetividade do princípio misericórdia ................................................... 89 2.3.3.1 - A misericórdia na vida pessoal .............................................................. 92 2.3.3.2 - A misericórdia na vida social................................................................. 93 III – Contribuição do princípio misericórdia à bioética latino-americana .................... 96 3.1 - Bioética e novas perspectivas .......................................................................... 97 3.2 - Bioética e Teologia: reflexões, conflitos e contribuições ............................... 102 7 3.3 – Algumas expressões básicas do princípio misericórdia ................................. 109 3.3.1 - Responsabilidade.................................................................................... 110 3.3.1.1 - A co-responsabilidade das Igrejas na ação misericordiosa.................... 115 3.3.2 - Solidariedade.......................................................................................... 118 3.3.3 - Perdão .................................................................................................... 123 3.3.4 - Cooperação ............................................................................................ 127 3.3.4.1 - A cooperação acadêmica ..................................................................... 131 3.3.4.2 - A cooperação na tecnologia ................................................................. 134 3.3.5 - Esperança............................................................................................... 139 Reflexões finais ........................................................................................................ 149 Referência Bibliográfica ........................................................................................... 156 Livros de Jon Sobrino: ...................................................................................... 156 Artigos, capítulos de livro e outros escritos de Sobrino:..................................... 156 Artigos sobre Jon Sobrino: ................................................................................ 157 Bibliografia de apoio:........................................................................................ 158 Jornal: ............................................................................................................... 164 Pesquisa/Internet ............................................................................................... 164 8 Resumo Com o presente estudo quer-se verificar em que o substrato do pensamento teológico de Jon Sobrino, em torno do princípio misericórdia, pode contribuir para a Bioética em contexto latino americano. A importância de princípios para bioética é uma moldura em que se desenha este estudo; e a experiência de vida soma à densidade de reflexão teológica em chave de libertação deste autor, justificam o investimento desta pesquisa conceitual bibliográfica. Em um primeiro momento se considera a questão dos princípios em bioética, suas funções e limites, onde se insere o tema em questão. Em um segundo passo se recolhem pontos relevantes da experiência de vida deste autor e especificamente os aportes teóricos que constroem seus conceitos e propostas em termos de princípio misericórdia. Entre os elementos-chave de seu pensamento estão a análise de realidade social por ele assumida, capaz de evidenciar estruturas sociais injustas que geram sofrimento e morte para grandes segmentos da população; a misericórdia entendida como capacidade de perceber as inequidades, de interagir com suas vítimas e de reagir em vista de transformação. Os resultados deste estudo mostram como o princípio misericórdia parte de uma espiritualidade que reforça atitudes pessoais com efetiva incidência nas relações sociais, e sugere iniciativas de solidariedade e corresponsabilidade nos diversos âmbitos das organizações, incluindo os espaços acadêmicos e da pesquisa científica. Embora proveniente de um pensamento cristão, para os diversos grupos teóricos ou práticos, crentes ou ateus, o princípio misericórdia reforça, no mínimo, uma grande convocatória à responsabilidade ética. E certamente representa a proposta de um dinamismo espiritual para a bioética, especialmente quando em nossos dias cresce o consenso de que esta não pode prescindir de uma vigorosa espiritualidade. Palavras-chave: bioética, princípio misericórdia, pobres e bioética, inequidade. 9 Abstract In the present study one wants to verify in which substrate of the theological thought of Jon Sobrino, concerning the principle of mercy, can contribute to the Bioethics in the Latin American context. The importance of principles for bioethics is a frame in which one designs this study; and life experience adds up to the density of theological reflection on a key-type author’s liberation, which justify the investment of this conceptual literature research . At first it considers the question of bioethic principles, their functions and limits, where the current theme is inserted. gathers relevant points of the life experience In a second step one of this author and specifically the theoretical contributions that build up his concepts and proposals with respect to the principle of mercy. Among the key elements of his thinking are the analysis of social reality that he assumed, which is able to highlight unfair social structures that generate suffering and death for large segments of the population; mercy is understood as the capacity to perceive the inequities, to interact with their victims and to react with respect to transformation. The results of this study show how the principle of mercy initiates out of spirituality that reinforces personal attitudes with effective impact on social relations, and suggests initiatives of solidarity and co-responsibility in various areas of the organizations, which include the areas of academic and scientific research. Although from a Christian thought, for the various theoretical or practical groups, believers or non-believers, the principle of mercy strengthens, at least, a summons to the great ethical responsibility. And certainly the proposal represents a spiritual dynamism for bioethics, especially in our days when a consensus that this cannot be divorced from a robust spirituality is growing. Keywords: bioethics, principle mercy, poor and bioethics, inequity. 10 Introdução A abordagem do tema “O PRINCÍPIO MISERICÓRDIA: um estudo sobre a contribuição teológica de Jon Sobrino para a Bioética na América Latina” é instigante por levar a uma abertura de horizonte na relação entre Teologia e Bioética. Com o tema quer-se verificar em que o substrato do pensamento teológico de Jon Sobrino, em torno do princípio misericórdia, pode contribuir para a Bioética em contexto latino americano. No decorrer da reflexão será possível notar os intercâmbios, as relações e pontes, de caminhos convergentes e também distintos onde se poderá detectar a chave de contribuição que pretende o tema. A motivação para discorrer sobre o assunto parte da convergência existente entre os dilemas de uma bioética inserida nas situações da população que vive na América Latina e uma teologia com o caráter de libertação ao se deixarem interpelar por uma realidade de opressão que compromete os anseios e a vida não somente de indivíduos, mas de povos inteiros submersos sob o peso da violência original do empobrecimento e suas razões. Um estudo sobre o princípio misericórdia na reflexão Bioética evoca naturalmente a bioética principialista norte americana. Isso se deve à grande evidência que assume o paradigma principialista no contexto da Bioética. Seguramente esta não foi a pretensão de Jon Sobrino como se poderá verificar no desenvolvimento da reflexão. Entende-se, até mesmo pelas criticas já feitas à bioética principialista, que estipular quantidades de princípios na linguagem revela-se hoje uma modalidade inadequada para tratar a temática da bioética. Deve-se pensar também que o excesso de princípios pode levar a um esvaziamento de sentido do termo. Ao contrário, o estudo sobre o princípio misericórdia pode servir para superar uma visão reducionista que se critica na proposta do principialismo. Muitas obras de Jon Sobrino foram consultadas para ajudar na compreensão do princípio sobriniano e seu possível diálogo com a bioética na América Latina. Contudo, a estrutura deste trabalho se inspirou fundamentalmente na obra El principiomisericordia. Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. Este livro de Sobrino, publicado em 1992, é composto de dez capítulos inter-dependentes e um epílogo, em que aborda a necessidade de se reagir com misericórdia em meio a tantos sofrimentos 11 provocados. Procura enfatizar a responsabilidade de fazer descer da cruz uma multidão de povos crucificados e não somente de um indivíduo, por meio do serviço, do perdão, da esperança, da solidariedade, do amor, da cooperação, da graça. Sobrino fala da libertação dos pobres a partir do discurso epistemológico de uma teologia conhecida por discernir o clamor da grande massa silenciada, da qual ele é membro co-fundador. Com a proposta da misericórdia ele enfatiza não somente a necessidade de curar os feridos, mas também salvá-los e libertá-los que é o que corresponde à meta do ser humano, ou seja, dignificar a vida humana para mostrar o que é o ser humano. A linguagem teológica cristã, de onde se situa o princípio misericórdia, pode revelar um limite para um diálogo com a pluralidade de morais modernas no contexto da bioética, mas pode também, atenta a esta percepção, surpreender e trazer sua grande contribuição, dado que o espaço bioético é interdisciplinar. O principio misericórdia impulsiona não somente para a reflexão, mas para a responsabilidade de agir ao se descobrir o verdadeiro sentido do que significa “ser humano”. Dentro deste quadro, assumimos como objetivos nesta pesquisa analisar possíveis contribuições do pensamento de Jon Sobrino para a Bioética latino-americana e em que medida o princípio misericórdia pode se tornar referência para a Bioética na América Latina em vista de uma maior compreensão ética sobre o modo de viver de expressiva parte da população no Continente. A reflexão de Jon Sobrino, particularmente em torno do princípio misericórdia, mostra que é indispensável fazer escolhas humanitárias que presidam a própria análise dos fatos. Sem estas, a interpretação e análise ficam comprometidas e as situações de injustiça se tornam facilmente persistentes. Desta forma, o pensamento de Jon Sobrino pode ser transformado em contribuição substancial para a Bioética, particularmente em tempos de individualismo e diante da histórica realidade latino-americana de situações estruturais de injustiça. Tal pesquisa requer naturalmente um método analítico-conceitual, com suas exigências no que se refere ao princípio misericórdia, formulado pela teologia de Jon Sobrino e à sua aplicabilidade em bioética. O procedimento metodológico aparece na estrutura dos capítulos que compõem esta dissertação. O primeiro capítulo procura fazer uma revisão do conceito princípio como categoria ética e desenvolver tal conceito elucidando sua inserção na epistemologia da bioética, ao mesmo tempo em que se consideram algumas opiniões críticas que cercam este tema. 12 O segundo capítulo procura apontar a misericórdia como princípio e força estruturante a se exercer em meio à multidão crucificada na América Latina. O princípio misericórdia, na concepção sobriniana, significa a atitude básica de Jesus em meio aos caídos, feridos, maltratados, subjugados e sofridos. Este capítulo inicia mostrando a experiência de vida de Jon Sobrino, que padeceu e ainda participa das durezas do viver, em meio a essa grande multidão de povos dizimados no Continente. Em seguida analisa as estruturas que provocam as iniqüidades e indignidades às quais denunciam o princípio misericórdia. Tal condição de sofrimento, o autor a atribui ao peso de uma estrutura político-econômica maléfica e antimisericordiosa que exige sangue das vítimas para continuar se perpetuando. Por fim, num terceiro momento procura apontar o ser humano como razão ou fundamento de reativação para exercício do princípio misericórdia. Situado o modus vivendi do Continente como preocupação fundamental do princípio misericórdia, o terceiro capítulo aborda a contribuição que este quer oferecer à bioética latino americana. Sua contribuição visa ampliar os horizontes em vista de superar o mysterium iniquitatis, como realidade provocada e fenômeno historicamente persistente, que deve ser feita com a mediação de um diálogo multi-disciplinar em vista da sobrevivência e do respeito à condição do ser humano. Após um breve intercâmbio de conceitos, preocupações e análises entre o saber teológico e científico, o estudo propõe algumas expressões básicas como valores que devem internalizar o indivíduo e às estruturas sociais como possibilidade de curar as feridas e efetivar a misericórdia fazendo descer da cruz os povos. As expressões básicas vinculadas ao princípio misericórdia contemplam a justiça enriquecida pela solidariedade, que pretende ser ainda mais abrangente indo à busca da “santidade primordial” para se opor à iniqüidade e à crueldade aí imposta. Esta é uma relação profícua que o princípio misericórdia quer estabelecer com a bioética de rosto latino americano. Deve-se por fim reconhecer nesta introdução que o tema em estudo é bem mais amplo seja pela paradoxalidade e complexidade dos temas sociais que o envolvem seja pela amplitude e limites que configuram o diálogo entre-saberes a seu respeito. Contudo, mesmo que esta pesquisa não tenha podido alcançar tal abrangência, parece poder trazer para este quadro uma contribuição específica: um princípio capaz de potencializar a bioética no contexto da América Latina a considerar mais adequadamente as vítimas, os pobres e sofredores, estigmatizados pela pobreza, indiferença, hipocrisia, exploração, violência. 13 I – Bioética e princípios A categoria princípio assume uma função básica neste estudo, como fundamento e guia de orientação para reflexão acerca do tema que se quer estudar. Trata-se do contexto de sofrimento devido às indignidades vividas no continente latino americano, a ser eticamente enfrentado. A interrogação sobre fundamentos éticos é extremamente importante para se poder definir com precisão o lugar e o objeto sobre os quais se querem refletir. Princípio é o ponto de partida ou alicerce a partir de onde se procura efetivar e deter no processo de conhecimento de uma realidade singular. É como o substrato a partir de onde a reflexão se tece. Jon Sobrino ao propor o princípio misericórdia o faz no intuito de garantir essa base fundante donde o conhecimento deve partir para efetivar a superação das situações persistentes e seus traumas. O primeiro capítulo procura de início, apontar a etimologia do termo princípio, sua inserção e sua compreensão no percurso histórico da reflexão filosófica. Dada à relevância do termo para a compreensão deste estudo procurou-se abordar o seu fundamento e clarear o seu sentido. A categoria dos princípios tem forte relação com a bioética, por serem adotados por esta, e constituir um eixo de análise desde o seu surgimento, sendo consideradas inicialmente como análogas. O principialismo, como ficou conhecido, por suas posições intransigentes diante da resolução de problemas diversos, começou a sofrer críticas de pensadores aos redores do mundo pelos limites de análise contextual. Assim, o paradigma que elucidou os princípios, levava em consideração um contexto, uma época e uma situação específica: a realidade clínica e a pesquisa em seres humanos. Uma crítica que se faz, com mais ou com menos contundência, parte do pensamento elaborado a partir da realidade latino americana, por entender que os 14 princípios a serem evidenciados no Continente deverão levar em conta os seus reais problemas, como as indignidades e situações de morte e miséria alarmantes vividas por sua população. 1.1 – Sobre o termo princípio Talvez seja oportuno estar recordando, para aprofundamento e clareza desse estudo, a etimologia do termo princípio e melhor situar a reflexão que se propõe. É um atributo muito usado para caracterizar ou evidenciar alguma realidade, e por isso carece mais precisão. Semanticamente o termo princípio corresponde ao termo grego αρχη − arkhé, para significar origem, início, começo, ato de principiar, razão fundamental, base, teoria, preceito, opinião, modo de ver, elemento predominante na composição de um corpo orgânico, regras fundamentais gerais, momento ou local em que algo tem origem e assim por diante. No plural, princípios significam proposições diretoras de uma ciência, às quais todo o desenvolvimento posterior dessa ciência deve estar subordinado. No latim diz-se, principium, no plural, principia para designar a mesma realidade1. Na literatura filosófica o seu uso remonta ao início da sistematização da filosofia grega, com Anaximandro, afirmam Giovanni Reale e Dario Antiseri, quando acreditava que tudo tem princípio numa coisa chamada a-peiron, que é algo infinito em sentido quantitativo no tempo e no espaço e no sentido qualitativo ao entender as dimensões internas. Sustentava que o “princípio” (arché) é o infinito e o indefinido do qual provêm todas as coisas que existem. O a-peiron - aquilo que é privado de limites pode ser compreendido como algo que não surgiu nunca, embora seja algo que exista. Para ele todos os ciclos da criação, evolução e destruição eram fenômenos naturais que ocorriam a partir do ponto em que a matéria abandonava e se separava do a-peiron. O a-peiron era essa realidade primordial e final de todas as coisas, que continha toda a natureza do divino em si próprio2. Cabe sinalizar, antes de prosseguir, que algumas outras culturas primitivas também usavam o sentido que tem o termo princípio com terminologias diferentes. É o caso da cultura semita que, com toda amplitude de significado, em muito parece com o sentido dado à compreensão grega. Falava-se da “gênese” para significar principio: “... 1 CABRALII, Emmanuelis Pinni et RAMALII, Joseph Antonii. Magnum Lexicon Novissimum Latinum et Lusitanum. Parisiis: s/editora, 1873. Cf. também ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 2 REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990, p. 31-34, vol. 1. 15 no princípio Deus criou...” (Gn 1,1). Referia-se à ação primeira que pudesse ser vislumbrada ou imaginada pelo homem, um nascimento, uma origem ou algum tempo antes que o universo passasse a existir. Não vamos nos deter em assunto da antropologia cultural, mas isso pode sugerir que estabelecer critérios de vivência no tempo e no espaço parece ser uma necessidade humana. Assim buscam-se as causas primárias, elegem-se critérios orientadores de parâmetros e decisões que dão caráter de última razão para objetivar “verdades” que fazem ou não parte exclusiva do mundo do ser. O conceito princípio inserido na reflexão filosófica foi usado por Platão no sentido de fundamentar um raciocínio que representasse uma premissa maior de uma demonstração. Para ele o “princípio supremo” se caracterizava como o “Bem”, o “Uno” ou o “Belo”. Tudo está fundado nesse princípio original donde procede a totalidade da Idéia. Dá a impressão de um princípio que é certo em si mesmo, ainda que indemonstrável. Esse princípio não é suscetível de absolutamente nenhuma prova e não pode ser remetido a nenhuma proposição superior. Ele é a fundação de toda certeza. Todas as outras proposições terão apenas uma certeza mediata e derivada dela; ela tem de ser imediatamente certa3. Num salto histórico, para Kant a afirmação de que o princípio é um conhecimento universal serve de premissa para o raciocínio de caráter meramente abstrato, com seu imperativo, “Procede como se a máxima de tua ação devesse ser erigida, por tua vontade, em lei universal da natureza”4. Esse imperativo moral denota uma abstração e um formalismo vazio, que visa obrigação por obrigação, pouco se importando com as realidades concretas, podendo gerar problemas e dificuldades ao desenvolver uma doutrina imanente dos deveres. Um princípio que não possui especificidade suficiente deve ser considerado vazio e ineficaz. O sistema kantiano influenciou fortemente o pensamento Ocidental, com resquícios até nossos dias. O filósofo alemão Hans Jonas ao perceber a necessidade de situar o discurso moral na vida concreta dos cidadãos atuais propõe a reformulação do imperativo kantiano do seguinte modo: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra” ou em sua forma negativa 3 PLATÃO. A República. Tradução de CORVISIERI, Enrico. São Paulo: Nova Cultural, 1997, Coleção Os Pensadores. Cf. também REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990, p. 134-145, vol. 1. 4 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964, p. 83. 16 “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”5. O que Jonas está propondo é um paradigma ético responsável, na condição de princípio, que reflita as reais condições do homem e do cosmos diante das ameaças do presente. Frente às concepções diversas de pensamentos no mundo plural a corrente filosófica positivista no século XX elevou alguns princípios à categoria de lei positiva, promulgando alguns como substratos estratificados de algumas carta magnas, no qual se assentam os alicerces que sustentam os ordenamentos jurídicos destes novos sistemas constituídos nesse tempo. Ao identificar nos anos 70 os princípios orientadores da pesquisa biomédica, acabaram sendo inseridos na reflexão bioética que hora o admite como necessidade e em alguns momentos o questiona por mais flexibilidade. Percebe-se, no tempo presente, a necessidade dos princípios na reflexão ética e bioética ao fundar e estipular valor moral para viver como indivíduo e comunidade de forma setorizada, e não mais com o caráter de universalidade, mesmo diante da realidade cultural globalizada e homogeneizadora que se apresenta. Os professores Franklin, Segre e Selli notam que “a situação específica na qual a opção da ética aplicada surge como alternativa à ética universalista se define como a impossibilidade histórica desta última”6. Com a perda da universalidade religiosa, numa sociedade pluricultural, nos quais convivem simultaneamente valores agnósticos, crentes e ateus todos amparados sobre a liberdade de consciência e convivendo sob diferentes códigos morais. É nessa direção que a ética quer pensar e refletir os valores estreitando-os com os fatos concretos da vida. Diante da exigência de estabelecer regras de condutas em contextos particulares Franklin et alli afirma ser “uma característica marcante da bioética: a relação humana vivida no regime da singularidade é o eixo em torno do qual gira a conduta”7. Para esses autores, “nas situações de fato, os princípios se mostram abstratos e as regras, imprecisas. Isso porque a dignidade, humanidade, subjetividade, liberdade não são princípios nem regras, são modos indefinidamente abertos de viver a relação humana”8. 5 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Tradução de LISBOA, Marijane e MONTEZ, Luiz Barros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO, 2006, p. 47. 6 SILVA, Franklin Leopoldo e et alli. Da ética profissional para a bioética. In: ANJOS, Márcio Fabri dos e SIQUEIRA, José Eduardo de (Orgs.). Bioética no Brasil: tendências e perspectivas. Aparecida-SP: Idéias e Letras/Sociedade Brasileira de Bioética, 2007, p. 59. 7 Ibidem p. 63. 8 Ibidem p. 63. 17 Neste caso, quando se pensa em princípios para caracterizar o ponto de partida de uma reflexão na bioética, deve-se levar em consideração a situação específica para definir o procedimento e o valor a aplicá-lo. Conforme Franklin o recurso ético a ser aplicado ai “deverá seguir o caminho de instituição de regras estritamente vinculadas à consideração objetiva da atividade a ser eticamente normatizada”9, com cuidado de não cair no risco de estabelecer regras tão objetivas quanto as condutas que elas deveriam regular. Nota-se, portanto, o caráter abstrato dos princípios com intuito de viabilizar acontecimentos concretos. Na vida concreta, diferentemente da teórica, estabelecer as fronteiras entre princípios e regras não parecem muito fáceis por não serem muito definidas e se mesclarem como base de conduta. Neste caso, convém ter clara a distinção entre eles para a reflexão bioética e sua função. Isso ajuda para uma melhor compreensão e o espaço determinado para cada um. 1.2 - Princípios e Fundamentos Possui muita relevância neste estudo verificar o fundamento do conceito princípio, sua função, diferenciação existente entre princípios e regras, bem como a construção de paradigmas éticos que se formalizam a partir de princípios. Essa breve análise ajudará visualizar melhor o que se pretende com o termo peculiar. Os princípios, em si mesmos, pretendem uma validade universal, sobre os quais se constroem acordos e consensos que devem guiar e estabelecer parâmetros de convivência. O princípio é, por essência, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico10. Os princípios expressam um valor ou uma diretriz, sem descrever uma situação jurídica, nem se reportar a um fato particular, exigindo, porém, a realização de algo, da melhor maneira possível, observadas as possibilidades mesmo jurídicas. Conforme Diniz E Guilhem, “Na história da filosofia moral, os princípios assumiram o papel de guias para a ação, resumindo e circunscrevendo o campo de atuação de uma determinada teoria que, por sua vez, orientaria o agente moral no processo de tomada de 9 Ibidem p. 59. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Ed. RT, 1980, p. 230. 10 18 decisões”11. Seu fundamento não tem validade deôntica, mas expressa um imperativo ou um dever moral baseado nos valores comuns. São teorias morais que derivam dos princípios originários e fundantes e são defendidas por eles. A função para qual são extraídos e empregados os princípios é aparentemente a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso12. Possuem, entretanto, um maior grau de abstração que as regras e irradia-se por diferentes partes, dando unidade e harmonia ao sistema normativo. Tereza Rodrigues Vieira esclarece a dificuldade em relacionar normas com o discurso da bioética, ao se indagar: é possível conciliar, por meio de normas, os diferentes pensamentos originados nas reflexões bioéticas? Elaborar leis resolve o problema da pluralidade de opiniões? O que fazer quando as leis existentes são insuficientes? (...) Tudo o que é ético é legal e vice-versa? A aplicação da norma pode produzir resultado injusto?13. No entender de José Renato Nalini, apud Tereza Rodrigues Vieira, “a ética é uma disciplina normativa, não por criar normas, mas por descobri-las e elucidá-las. Mostrando às pessoas os valores e princípios que devam nortear sua existência, a ética aprimora e desenvolve seu sentido moral e influencia a conduta”14. A ética não se revela por um código formal, mas é o ponto de partida para a criação de normas. E qual seria a diferença entre regras e princípios? Há uma hierarquia que se possa conceber entre eles? A resposta para essas questões não é simples. Assim se poderiam elucidar algumas distinções apontadas por Ronald Dworkin15: 1) enquanto o princípio apresenta uma razão que aponta para uma direção, ao mesmo tempo, porém, não exige uma decisão específica naquele mesmo sentido apontado; 2) os princípios têm uma dimensão de peso ou importância. Se duas regras estão em conflito, uma não poderá ser válida; já os princípios, serão aplicados aqueles que tiverem maior peso ou importância naquela circunstância; 3) os princípios possuem nitidamente um elevado grau de abstração, possibilitando assim uma abrangência maior do que a regra; ao passo que quanto ao grau de 11 DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 37. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Unb, 1996, p. 159. 13 VIEIRA, Tereza Rodrigues et alli. Bioética e construção da normatividade. In: ANJOS, Márcio Fabri dos e SIQUEIRA, José Eduardo de (Orgs.). Bioética no Brasil: tendências e Perspectivas. Aparecida-SP: Idéias e Letras, 2007, p. 71. 14 Ibidem p. 72. 15 DWORKIN, Ronald. Is Law a system of rules?. In: DWORKIN, Ronald (Org.). The philosophy of law. Oxford-UK: Oxford University Press, 1977, p. 45. 12 19 determinação, as regras ao contrário dos princípios são as que possuem maior determinação e logo, são restritivas na sua abrangência; 4) os princípios são axiomas que derivam do juízo de justiça, equidade e de direito, são expressão dos anseios da sociedade e possuem indiscutivelmente uma posição proeminente, por sua importância estruturante. Já as regras ou ações legais são conteúdos de execução e funcionalidade; 5) os princípios consistem em verdadeiros fundamentos, com base na função argumentativa que faz até vislumbrar a ratio legis no intuito de ajudar a ordenar ou normatizar. As regras em muito são impostas com a legitimidade daqueles cujos valores transparecem nos princípios; 6) Reitera-se, no entanto, que os princípios têm convivência conflitual, ao passo que as regras têm convivência antinômica. Os conflitos de princípios perduram enquanto durar o processo. As soluções dos conflitos são, portanto, diferentes. Enquanto para as normas e regras a solução se dá no plano da validade, no conflito de princípios conjugam-se validade e peso, ou seja, a solução dos princípios se dá por meio de juízo de validade, mas de concordância prática e de ponderação. Considerando que os princípios envolvem valores, deverá o intérprete-aplicador, no caso concreto, optar pelo que melhor tratamento der ao caso. A atenção que Tom L. Beauchamp e James F. Childress dão aos princípios é relevante. São colaboradores reconhecidos no desenvolvimento da bioética, autores da obra clássica Principles of biomedical ethics, e mostram essa relação de regras e princípios num gráfico com diferentes níveis de experiências, passando da mais concreta para a mais teórica – indutiva - ou passando da mais teórica para a mais particular – dedutiva. As setas indicam a justificação de casos mais particulares em direção às justificações mais teóricas16: 4 – Teoria ética ↑ 3 – Princípios ↑ 2 – Regras ↑ 1 – Julgamentos particulares 16 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 31. 20 O discurso ético construído a partir dos princípios deve-se muito do ponto que se parte. A partir de um gráfico como esse, vários modelos éticos podem ser construídos. Numa ordem decrescente poder-se-ia dizer que um discurso que prioriza mais a teoria ética tende enfatizar as normas mais gerais, com julgamentos morais feitos por dedução, a partir de um esquema teórico e preceitos normativos. “Esse tipo de argumento é ocasionalmente usado na ética, e os dedutivistas sustentam que ele é o melhor modelo de justificação”17. O julgamento moral se dá como aplicação de uma regra, de um princípio, um ideal, um direito, uma norma, etc. “Diz-se, portanto, que a forma dedutiva á uma aplicação ‘de cima para baixo’ de preceitos gerais – uma expressão que motivou o uso da expressão ‘ética aplicada’”18. Esse modelo de raciocínio não funciona para justificar os casos morais mais complexos. Numa análise que se faz ‘a partir de baixo para cima’, e, portanto, indutiva tomase os casos individuais ou particulares como ponto de partida, para se chegar às generalizações e obter a deliberação e os julgamentos. “O indutivismo sustenta que devemos usar, como pontos de partida para a generalização até as normas (como os princípios e as regras), os consensos e as práticas sociais existentes, e enfatiza o papel dos julgamentos particulares e contextuais como uma parte da evolução de nossa vida moral”19. Nesse impasse Beauchamp e Childress propõem o coerentismo como alternativa de diálogo e intercâmbio, que “não funciona nem de baixo para cima nem de cima para baixo; ele se move em ambas as direções”20. Assim eles sugerem que “todos os sistemas morais apresentam algum grau de indeterminabilidade e incoerência, revelando que eles não têm o poder de eliminar vários conflitos contingentes entre princípios e regras”21. O “equilíbrio reflexivo”, terminologia empregada por John Rawls, para dizer que uma teoria na ética começa propriamente com os nossos juízos ponderados, “ocorre quando 17 Ibidem p. 30. Ibidem p. 30. FERRER diz que as “normas gerais deixam uma ampla magem de indeterminação. Para serem úteis para a vida moral, é necessário que se possa descer do plano do geral ao específico”. Os princípios gerais precisam ser traduzidos em normas particulares concretas e dotados de conteúdo concreto. Ressalta que esse “processo de concretizar o princípio recebe o nome de ‘especificação’. Especificação é o processo pelo qual reduzimos a indeterminação das normas abstratas e as dotamos de conteúdos aptos para guiar as ações concretas”. FERRER, Jorge José e ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. Teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. Tradução de MOREIRA, Orlando Soares. São Paulo: Loyola, 2005, p. 142. 19 Ibidem p. 33. 20 Ibidem p. 36. 21 Ibidem p. 38. 18 21 se avaliam as qualidades e as fraquezas de todos os princípios e juízos morais plausíveis e das teorias de fundo relevantes”22. Desse modo, afirma Beauchamp e Childress que “o único modelo relevante para a teoria moral é aquele que mais se aproxime da plena coerência”23. “A melhor explicação em face da coerência inabalável é que o sistema capturou o que há de correto, virtuoso etc. se esse resultado é aquilo em que consiste a verdade moral, então a rede de coerência capturou a verdade”24. Para esses autores a fórmula da justificação da abordagem ética correta se encontra na coerência. A coerência adquire em seu conceito prima facie (à primeira vista) uma hierarquia ordenada e não-absoluta entre os princípios, regras e direitos. Especificam que algumas normas são praticamente absolutas, nem necessitando de ponderação, como no caso de proibições a crueldades, torturas, o ato de causar dor e sofrimento, regras contra o assassinato e outras que são absolutas em virtudes da objetividade do fato e da falta de sentido delas. Mas a relevância desses conceitos não é tão fácil quando inseridos na realidade, pois só podemos atingir uma coerência frágil, usando relatos mais ou menos confiáveis. Trata-se de um “processo de ponderação”, e melhor equilíbrio diante da obscuridade, da dúvida, de uma situação que comprime entre o certo e o errado25. Em síntese, a eleição de princípios, que podem se transformar em regras ou não, são necessários para o mínimo ordenamento comum. Ambos estão inseridos em contextos sociais, fazendo parte do senso moral de um grupo26. Poder-se-ia concordar com Ronald Dworkin que ambos, princípios e normas, apontam para decisões particulares sobre obrigações éticas ou jurídicas numa particular circunstância. Mas se diferenciam no caráter da direção que apontam. As regras são aplicáveis na forma do tudo ou nada. Por sua vez, os princípios, embora muito se pareçam com as regras, não indicam uma conseqüência legal27. Tom Beauchamp e James Childress afirmam que “Essa limitação não é um defeito nos princípios; ela é, antes parte da vida moral na qual 22 Ibidem p. 38 Ibidem p. 38 24 Ibidem p. 48. 25 Ibidem p. 50. 26 ENGELHARDT Jr., H. Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução de CESCHIN, José A. São Paulo: Loyola, 2004. 27 DWORKIN, Ronald. Is Law a system of rules?. In DWORKIN, Ronald (Org.). The philosophy of law. Oxford-UK: Oxford University Press, 1977, p. 45. Para Beauchamp e Childress “É preciso distinguir também os princípios e as regras do corpo de normas coerente e sistemático que inclui as teorias”. BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 55. 23 22 se espera que assumamos a responsabilidade pela forma como empregamos os princípios para auxiliar em nossos julgamentos sobre casos particulares”28. 1.3 - A relevância dos princípios no surgimento da Bioética Poder-se-ia perguntar a partir de agora pela relevância em estabelecer princípios na bioética, sendo que eles “nos orientam para certas formas de comportamento; porém, por si mesmos, eles não resolvem conflitos de princípios”29. Aqui se entra na complexidade dos juízos ponderados para se estabelecer uma moralidade comum, um tema muito bem trabalhado por Engelhardt em, sua obra clássica, Fundamentos da Bioética. Os princípios morais adquirem relevância e centralidade no discurso da bioética somente sendo feitos por juízos ponderados e por coerência com posições de defesa argumentada30. A simultaneidade do aparecimento do neologismo Bioética, de Potter, em 197031, e os acontecimentos em pesquisas envolvendo seres humanos nas décadas de 60 e 70, levaram, consequentemente, a estabelecer princípios que, a priori, deveriam apenas nortear as pesquisas biomédicas, a se inserirem na reflexão bioética, e às vezes até se confundindo com toda a Bioética32. De certo, os princípios, em primeiro momento, não foram identificados para a bioética e sim para a ética referente às pesquisas biomédicas, e acabaram encontrando rápida adesão dos pesquisadores da bioética diante dos problemas morais situados que brotaram das atrocidades e crueldades praticadas no campo biomédico referente à pesquisa em seres humanos. A inserção dos princípios na bioética ressalta Franklin et alli, se deve ao desmoronamento dos valores universais da vida ética que levou à necessidade premente de estabelecer princípios norteadores da conduta e parâmetros que contribuíssem para assegurar à dignidade humana como valor 28 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 55. 29 Ibidem; p. 49. 30 ENGELHARDT Jr., H. Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução de CESCHIN, José A. São Paulo: Loyola, 2004. 31 POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs-New Jersey: Carl P. Swanson editor, 1971, p. 02. 32 HOSSNE, William Saad. Bioética – princípios ou referenciais?. Revista O Mundo da Saúde. out/dez 2006, p. 673-676. Os bioetcistas de modo geral reconhecem que ter havido uma identificação entre o principialismo e toda a Bioética no período do seu surgimento, dada à quase simultaneidade de origem de ambas. 23 e ações33. Nesse caso a deontologia apareceu como opção natural de vinculação entre regras e condutas que se dão aparentemente em termos objetivos34. Conforme Franklin a bioética é a princípio “uma tentativa de restauração de valores, que viessem deter o processo de barbárie, por meio de normatização da conduta”35 diante do desenvolvimento científico no século XX, mais notadamente a partir da Segunda Grande Guerra Mundial, quando se viu a necessidade de elaborar documentos de amparo à pesquisa, mas, sobretudo no sentido de evitar abusos cometidos por essa contra a dignidade da pessoa, sujeito de pesquisa. Nos experimentos dos campos de concentração da Segunda Guerra e na instalação, bem como na formulação do Código de Nuremberg, em 1946-1947; na Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948; na Declaração de Helsinque em suas cinco edições, sendo a primeira em 1964; na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do Homem e, mais precisamente, no Relatório Belmont, publicado em 1974, que alguns bioeticistas dizem estar fundamentalmente um documento principialista, onde o paradigma principialista da Bioética encontra sua raiz36. Pessini e Barchifontaine, em seu livro Problemas Atuais de Bioética, aproveitando ponderações de Albert Jonsen, apontam como determinantes alguns acontecimentos históricos para a evidência dos princípios na Bioética37. O primeiro acontecimento foi a questão de decidir o dilema em torno da diálise logo durante o início de suas experiências, conforme artigo da jornalista Shana Alexander, publicado pela revista Life intitulado “Eles decidem quem vive e quem morre”, de 09 de novembro de 1962. Um segundo impulso está vinculado à denúncia feita pelo professor anestesista da Escola Médica de Harvard, Henry Beecher, ao publicar seu artigo no New England Journal of Medicine, em 1966, com o título Ethics and clinical research (Ética e pesquisa clínica), procedimentos antiéticos usados na experimentação em seres humanos. Tais pesquisas eram “realizadas com recursos provenientes de instituições 33 SILVA, Franklin Leopoldo e et alli. Da ética profissional para a bioética. In: ANJOS, Márcio Fabri dos e SIQUEIRA, José Eduardo de (Orgs.). Bioética no Brasil: tendências e perspectivas. Aparecida-SP: Idéias e Letras/Sociedade Brasileira de Bioética, 2007, p. 58. 34 Ibidem p. 60. 35 Ibidem p. 58. 36 ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos bioéticos. Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p. 12-23. Cf. Também SILVA, Franklin Leopoldo e et alli. Da ética profissional para a bioética. In: ANJOS, Márcio Fabri dos e SIQUEIRA, José Eduardo de (Orgs.). Bioética no Brasil: tendências e perspectivas. Aparecida-SP: Idéias e Letras/Sociedade Brasileira de Bioética, 2007, p. 86. 37 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo, 2000, p. 19-24, 5ª ed. 24 governamentais e companhias de medicamentos em que os alvos de pesquisa eram os chamados ‘cidadãos de segunda classe’”38, ou seja, “internos em hospitais de caridade, adultos com deficiências mentais, crianças com retardos mentais, idosos, pacientes psiquiátricos, recém-nascidos, presidiários e todas as pessoas incapazes de assumir uma postura moralmente ativa diante do pesquisador e do experimento”39. Os casos mais conhecidos na literatura são: o de inoculação intencional do vírus da hepatite em crianças retardadas mentais, em pesquisa realizada entre 1950 e 1970, no hospital estatal de Willowbrook – NY; o de injeção de células cancerosas vivas em 22 idosos doentes, sem comunicá-los que as células eram cancerígenas, realizada no Hospital Israelita de doenças crônicas de Nova York, em 1963; e ao estudo para avaliar a história natural da sífilis iniciado em 1932 na cidade de Tukesgee, no Alabama, com 408 indivíduos negros sifilítico de baixo poder econômico mantidos sem tratamento. O terceiro impulso para a reflexão bioética está vinculado ao avanço da pesquisa em transplantes. “Em 1967, Christian Barnard transplantou um coração humano de uma pessoa morta ou moribunda para um paciente com doença terminal de coração. O mundo ficou maravilhado, mas alguns se perguntaram a respeito da origem do órgão”40. O primeiro transplante cardíaco trouxe o questionamento ético: estaria o doador morto ou não; o coração havia sido retirado respeitando ou não os desejos do doador quando vivo. Somente em 1968 houve a definição de morte encefálica pelo grupo da Harvard. Devido a essas situações nas pesquisas em seres humanos e na relação médicopaciente alguns autores, como William Saad Hossne41 e outros, notificam as razões fundamentais que motivaram à eleição dos princípios na Bioética. A partir dessa ebulição de acontecimentos uma nova ótica, com uma visão mais crítica, começa a se formar. O livro, Problemas Morais na Medicina, organizado pelo filósofo Samuel Gorovitz, apud Diniz e Guilhem, traz em sua introdução referências à ruptura com o tradicionalismo da ética médica, ou seja, a falência da ética à beira do leito hospitalar. Conforme Diniz e Guilhem, Gorovitz propunha que “o postulado comumente aceito pelo senso comum de que o ‘especialista em decisões médicas é também especialista em 38 BEECHER, Henry. Ethics and Clinical research. The New England Journal of Medicine. v. 274, nº 24, june, 16, 1996, p. 1354-1360. In DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 15. 39 Ibidem. 40 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo, 2000, p. 23, 5ª ed. 41 HOSSNE, William Saad; Bioética – princípios ou referenciais?. Revista O Mundo da Saúde, out/dez 2006, p. 673-676. 25 decisões éticas’ deveria ser questionado, tornando possível que outros atores sociais participassem do processo de decisão ética”42. A idéia, no entanto, de estabelecer critérios para elaboração de pesquisas já era perceptível no Código de Nuremberg, decretado devido às experimentações em seres humanos realizadas por médicos nazistas nos campos de concentração, quando definia clara e objetivamente princípios para experimentação com seres humanos: “O consentimento voluntário do sujeito humano é absolutamente essencial, lê-se já no primeiro artigo”43. No artigo número nove “ele supõe que a pessoa entenda a natureza da experimentação, seus objetivos e os riscos eventuais e que tenha a capacidade de decidir livremente sobre sua participação”44. Desde então, o Código tornou-se ponto focal de primeira relevância para a questão do consentimento esclarecido. “Tal consentimento representava a manifestação clara em favor do respeito e da dignidade da pessoa humana”45. Nota-se, posteriormente, no Relatório Belmont, a manifestação do princípio da autonomia inspirado no conceito consentimento esclarecido. Há nos artigos 1º e 2º do Relatório Belmont indício de preocupação com o princípio da beneficência, segundo o qual a pesquisa deve visar o bem do paciente e do sujeito da pesquisa e de todos os membros da sociedade, numa relação com o velho Juramento de Hipócrates “Aplicarei os regimes para o bem dos doentes, segundo o meu saber e a minha razão...”46. Pode-se, definitivamente dizer que, no Relatório Belmont, elaborado pela Comissão Nacional Para a Proteção dos Seres Humanos da Pesquisa Biomédica e Comportamental, em 1978, os princípios se destacaram como normas morais a partir dos evidentes fatos comprovados de abusos em pesquisas realizadas nos USA, mesmo com a orientação de uma série de documentos de nível internacionais anteriormente publicados47. 42 DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 24. CÓDIGO DE NUREMBERG. Tribunal Internacional de Nuremberg. 1947, Art. 1º. 44 ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos bioéticos. Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p. 12-23. 45 Ibidem. 46 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo, 2000, p. 437, 5ª ed. 47 ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos bioéticos. Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p. 12-23. Conforme Pessini e Barchifontaine “O relatório Belmont foi o documento fundamental que respondeu à necessidade dos responsáveis da elaboração de normas públicas, de uma declaração simples e clara, de bases éticas para regulamentar a pesquisa” PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo, 2000, p. 48, 5ª ed. 43 26 Todo o processo inescrupuloso de pesquisa exposto acima e o efervescente emergir de documentos com o objetivo de regulamentação se deu num curto espaço de tempo, ou seja, entre as décadas de 60 e 70, período de surgimento da Bioética. Foi em reação a tantos escândalos implicando diretamente aos EUA, que o governo americano, via Congresso, constituiu em 1974 a referida Comissão Nacional Para a Proteção dos Seres Humanos da Pesquisa Biomédica e Comportamental, com o objetivo de “que identificassem os princípios éticos básicos que deveriam nortear a experimentação em seres humanos nas ciências do comportamento e na biomedicina”48. Essa Comissão priorizou inicialmente a pesquisa envolvendo fetos humanos, questão considerada mais urgente, e deixaram a tarefa de definir os princípios éticos para mais tarde, quando já trabalhando sobre eles e à medida que as questões específicas avançavam solicitaram também a participação de filósofos e teólogos para contribuir na identificação dos princípios éticos básicos49. A Comissão, encarregada de elaborar o documento com os princípios éticos fundamentais que deviam sustentar as pesquisas biomédicas e dar diretrizes para a solução de problemas éticos provenientes de pesquisas envolvendo seres humanos, durou quatro anos quando, em 1978, publicou o Relatório Belmont. Essa Comissão dispunha dos documentos publicados anteriormente como Nuremberg, a Declaração Universal de Direitos Humanos e Helsinque entre outros, mas os considerou de difícil operacionalização, isto é, “suas regras são com freqüência inadequadas em casos de situações complexas”50. A principal contribuição dessa Comissão foi, sem dúvida, explicitar de modo claro e sucinto os princípios fundamentais de ética que serviriam de base para as recomendações e orientações de conduta nas pesquisas. Esses princípios se tornaram a principal fonte de orientação para as avaliações críticas da pesquisa científica envolvendo sujeitos humanos. Contudo, esses princípios, conforme Zuben, não podem sempre ser aplicados de modo incontestável para resolver problemas particulares de ética. O objetivo, segundo ele, visa fornecer uma estrutura analítica tendo como 48 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 44, 5ª ed. 49 Ibidem p. 45. 50 Ibidem. 27 finalidade orientar a resolução de problemas de ética resultantes de pesquisas que envolvem seres humanos51. Os três princípios fundamentais identificados pelo Relatório Belmont foram: o “respeito à pessoa”, “beneficência” e “justiça”. A Comissão propôs o método baseado na aceitação dos três princípios morais que deveriam prover as bases sobre as quais formular, criticar e interpretar regras específicas. A razão para a escolha dos três princípios deve-se ao fato de estarem “profundamente enraizados nas tradições morais da civilização ocidental, implicados em muitos códigos e normas a respeito de experimentação humana que tinham sido publicados anteriormente”52. 1.4 – O paradigma principialista na Bioética Falar sobre princípios na Bioética requer alguns comentários acerca do paradigma principialista, devido à forte influência do mesmo, sendo que alguns ainda costumam relacioná-las como análogas. A teoria principialista, termo genérico pelo qual ficou conhecida, constituiu-se numa teoria dominante para a disciplina que estava apenas começando, tornando-se por duas décadas quase uma fusão do paradigma com a disciplina53. As discussões principialistas da Bioética, com fundamento no Relatório Belmont, tomou impulso com a publicação da obra de Tom Beauchamp e James Childress, Principles of Biomedical Ethics, em que sugerem a aplicação do sistema de princípios na clínica-assistencial, livrando os princípios do velho enfoque próprio dos códigos e juramentos. Este livro consolida o principialismo porque oferece uma análise sistemática dos princípios morais que devem ser aplicados aos conflitos biomédicos. Os dois autores defendiam a idéia de que os conflitos morais poderiam ser mediados pela referência a algumas ferramentas morais, os chamados princípios éticos. Pessini considera que “Essa obra transformou-se na principal fundamentação teórica do novo campo da ética biomédica”54. Foi uma obra publicada em 1979, um ano após a 51 ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos bioéticos. Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p. 12-23. 52 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 45, 5ª ed. 53 HOSSNE, William Saad. Bioética – princípios ou referenciais?. Revista O Mundo da Saúde, out/dez 2006, p. 673-676. 54 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 47, 5ª ed. 28 publicação do Relatório Belmont, por Childress e Beauchamp, sendo este último um dos colaboradores na Comissão e pode se beneficiar das discussões que surgiram nela. Dos três princípios o “respeito à pessoa”, “beneficência” e “justiça”, pode-se dizer que “por pessoa autônoma, o Relatório entendia o indivíduo capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e agir sob a orientação dessa deliberação”55. Zuben notifica que o conceito de autonomia usado pela Comissão não é o kantiano, o homem como ser autolegislador, mas outra muito mais empírica, segundo o qual uma ação se torna autônoma quando passou pelo trâmite do consentimento informado. Desse princípio derivam procedimentos práticos que são a exigência do consentimento informado e o outro é o de como tomar decisões de substituição, quando uma pessoa é incompetente ou incapacitada56. O princípio da beneficência usado no Relatório rejeita a idéia clássica de beneficência como caridade e diz considerá-la de forma mais radical, como uma obrigação no sentido de não causar dano e maximizar os benefícios minimizando os riscos. Surge outra indagação que se lê expressa no Relatório Belmont: “Quem deve colher as vantagens da pesquisa e quem deve arcar com os riscos?”57. Entra em cena o princípio da justiça. O conceito de justiça segundo Zuben quer proporcionar uma reflexão acerca da equidade distributiva. Por justiça entende-se “a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios”58. A imparcialidade na distribuição é, para Pessini, incoerente, uma vez que os indivíduos não são tratados igualmente. Dos três princípios básicos identificados pelo Relatório Belmont, Beauchamp e Childress os retrabalharam transformando-os em quatro, propondo que o princípio beneficência tinha implícito nele um outro princípio, a “não-maleficência”, primum non nocere, já contemplada no juramento hipocrático quando o médico haveria de jurar nunca predicar ou fazer mal a quem quer que seja. Os quatro princípios que posteriormente passaram a orientar o paradigma principialista consistem em59: 55 Ibidem p. 46. ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos bioéticos. Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p. 12-23. 57 Ibidem. 58 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 46, 5ª ed. 59 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 55. 56 29 1) O respeito pela autonomia (uma norma sobre o respeito pela capacidade de tomar decisões de pessoas autônomas); 2) A não-maleficência (uma norma que previne que se provoquem danos); 3) A beneficência (um grupo de normas para proporcionar benefícios e para ponderar benefícios contra riscos e os custos); 4) A justiça (um grupo de normas para distribuir os benefícios, os riscos e os custos de forma justa). Além dos quatro princípios Childress e Beauchamp sugerem também vários tipos de regras para especificar os princípios e orientar a ação. Assim dizem Childress e Beauchamp: A conclusão de que quatro grupos de ‘princípios’ morais (num outro esquema eles poderiam ser desenvolvidos como ‘direitos’, ‘virtudes’ ou ‘valores’) são centrais à ética biomédica é uma conclusão à qual chegamos por meio de nossa busca de juízos ponderados e por coerência, e não uma posição que possui uma defesa argumentada60. Desse modo pode-se ver: chamam de regras substantivas – as regras de veracidade, sigilo, privacidade, fidelidade e várias regras referentes à distribuição e ao racionamento da assistência à saúde, à omissão de socorro, ao suicídio assistido e ao consentimento informado. Defendem também regras sobre autoridade, ou seja, regras sobre quem pode e deve executar ações. Por fim, as regras de procedimentos que definem os procedimentos a serem seguidos. Para eles “Os direitos, as virtudes e as respostas emocionais têm, em alguns contextos, uma importância moral maior que os princípios e as regras”61. Para exemplificar dizem “uma ética da virtude nos ajuda a ver porque as escolhas nos permite também avaliar o caráter moral de uma pessoa de uma forma mais rica do que pode nos permitir uma ética de princípios e regras”62. 1.5 – Alguns limites do principialismo Sem nenhuma pretensão ufanista e com respeito ao esforço pela relevante contribuição do principialismo, quer-se agora apontar alguns limites deste paradigma contidos em algumas literaturas da bioética. A “teoria dos princípios” não obstante sua importância e sua utilidade se tornou insuficiente à medida que a bioética, ao contemplar e aprofundar mais a realidade, percebeu a necessidade de ampliar a sua discussão inserindo algumas problemáticas, até então não pensadas no campo 60 Ibidem. Ibidem p. 57. 62 Ibidem. 61 30 biomédico, como as situações sócio-ambientais. À medida que surgem novas questões e ou situações, buscam-se novos mecanismos de compreensão63. Verifica-se com isso que o professor William Saad Hossne sugere até mesmo a substituição do termo princípio por “referenciais” ao entender que após a evolução ou amadurecimento da Bioética, novos conflitos e assuntos pertinentes emergiram de diversos contextos. Ele justifica que não se trata de uma mera substituição de termos, mas da superação do “núcleo duro” da bioética principialista64. A insuficiência da teoria dos “quatro princípios” em Bioética fica patente quando aplicada a outros campos da Bioética como, por exemplo, no campo das ciências da vida, do meio ambiente e dos fenômenos sociais como vulnerabilidade, dignidade humana, precaução, responsabilidade, solidariedade e tantos outros em tempos atuais65. Para William Saad Hossne mesmo sendo relevantes, a teoria dos princípios não é mais “suficiente para o equacionamento de todas as questões e problemáticas que surgem no campo da ética biomédica, enquanto componente da Bioética”66. Também não se pode taxar a teoria principialista de reducionista sem mais. Há de se verificar sempre o lugar, o contexto e o “para que” ela surgiu. Reducionista pode ser caracterizada a pretensão daqueles que, hoje, desejam tomar a parte pelo todo, ou seja, o paradigma como a disciplina67. A incoerência dessa pretensão é a mesma, quando num mundo pluricultural, sugere universalizar um paradigma que na sua origem cultural valoriza a ética individual. Sabe-se que a teoria dos quatro princípios acentua o princípio da autonomia em detrimento dos demais. Esse princípio aponta na verdade dois valores de cunho fundamental para a cultura liberal anglo-saxã: a liberdade individual e a competência. 63 FERRER faz um apanhado das tendências presentes na bioética contemporânea propondo uma avaliação crítica a cada uma delas. Sobre o principialismo Cf. FERRER, Jorge José e ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. Teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. Tradução de MOREIRA, Orlando Soares. São Paulo, Loyola, 2005, p. 119-158. 64 HOSSNE, William Saad. Bioética – princípios ou referenciais?. Revista O Mundo da Saúde, out/dez 2006, p. 673-676. 65 Ibidem. 66 Ibidem. 67 HOSSNE, William Saad. Bioética – princípios ou referenciais?. Revista O Mundo da Saúde, out/dez 2006, p. 673-676. Cf. também DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 34. LEONE, Salvino e PRIVITERA, Salvatore. Bioética. In: LEONE, Salvino et alli (Orgs.). Dicionário de Bioética. Tradução de ROCHA, A. Maia da. Aparecida-SP: Santuário, 2001, p. 8796. O Dicionário de Bioética aponta que em uma forma de saber essencialmente interdisciplinar e dialógica, como a Bioética, a atitude integralista – de defesa apologética – nega a possibilidade de abertura, de comparação e de revisão das suas posições, não necessariamente para ‘as abandonar’ ou para ‘mudar de idéias’, mas, frequentemente, para as encontrar a um nível superior, enriquecidas pelos contributos de uma sã e serena dialética”. 31 Uma das críticas filosóficas da teoria principialista encontra-se no idealismo, que propiciou na sua rápida aceitação e difusão entre os pesquisadores da bioética, mas que determinou também sua fragilidade. O indivíduo idealizado por princípios da ética biomédica é um ser humano sem contrapartida no mundo real. Em nome da construção de um modelo teórico passível de universalização, a teoria principialista pressupôs um indivíduo livre dos constrangimentos sociais, esquecendo que em contexto de desigualdade social não é possível o exercício pleno da liberdade. O idealismo universalizante da teoria principialista tornou-se sinônimo de uma técnica ética. A chamada fórmula mágica “dos quatro princípios éticos” converteu-se numa espécie de “receita” ou “mantra” capaz de encaixar ou mediar grandes partes dos conflitos morais. Seu suposto espírito transcultural imperialista fazia seus seguidores defenderem que os valores éticos serviam para toda humanidade. E foi exatamente essa concepção que levou o paradigma principialista à falência de modelo único68. Detalhando, brevemente, o pressuposto básico do princípio da autonomia se funda numa sociedade democrática e em igualdade de condições entre os indivíduos, para que assim os diferentes morais possam coexistir. Desse modo, Diniz e Guilhem critica dizendo que aqui se encontra “o nó da discussão imposto pelas teorias críticas na bioética como pressuposto de que não é possível falar de autonomia como princípio mediador para os conflitos morais em contextos de profunda desigualdade social”69. Essas autoras ressaltam que, antes de apelar para princípios éticos sublimes, “a tarefa da bioética deveria ser a análise, a discussão e o desenvolvimento de mecanismo éticos de intervenção perante todos os tipos de desigualdade social”70. Tratando-se de uma construção ideal de sociedade, vários entraves morais poderiam colocar em cheque o princípio da autonomia, como por exemplo, o comportamento de se dar conta até que ponto um indivíduo poderia exercer autonomia plena numa sociedade? Como seria o 68 DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 32-33. O Congresso de Bioética Estados Unidos-Japão, realizado em 1994, na cidade de Tóquio, foi marcado por um importante debate, registrado no livro Bioética Japonesa e Ocidental: estudos de diversidade moral, organizado pelo filósofo japonês Kazumasa Hoshino. Discutiu-se sobre a inadequação do termo consentimento livre e esclarecido, nos moldes ocidentais à realidade japonesa. No Congresso explorou-se o tema do conflito entre moralidades que a aplicação acrítica da teoria principialista provocava ao redor do mundo. “Foi de posse da constatação dessas diferenças morais entre a humanidade que Kazumasa lançou uma de suas idéias críticas em relação à bioética que, ainda hoje, é a marca de seu pensamento: ‘...há muitas diferenças raciais, nacionais, sociais, culturais e religiosas, sutis ou não, entre o Japão e os Estados Unidos. Tais diferenças podem explicar as dificuldades que os japoneses e outras culturas têm em aceitar muitos dos princípios ocidentais da bioética. Na verdade pode-se até mesmo considerar antiética a imposição da bioética ocidental às mais diferentes sociedades...” Ibidem p. 42-43. 69 Ibidem p. 59. 70 Ibidem p. 59. 32 nível de tolerância de seus convivas? A existência da noção moral de respeito à autonomia significa que a autodeterminação do agente moral não deve causar danos ou sofrimentos a outras pessoas: sobretudo àquelas consideradas vulneráveis. A dificuldade, portanto, se apresenta na fronteira tênue entre a proteção e a autoridade, pois em nome da proteção dos vulneráveis, poder-se-ia justificar, por exemplo, o silenciamento de certas opções discordantes. Não é sem razão que o conceito de paternalismo, sobretudo no campo médico, é fortemente debatido. Entra-se nesse caso a idéia do consentimento livre esclarecido, que Lepargneur tenta rebatê-lo71. O próprio Beauchamp e Childress reconheciam que a validez de um consentimento livre e esclarecido estava condicionada à competência do indivíduo em decidir, o domínio das informações necessárias, as diferentes possibilidades terapêuticas e assim por diante. Diante de uma situação de vulnerabilidade os pré-requisitos que atestam a validez de um consentimento livre e esclarecido não são para todos, apenas contempla uma minoria de indivíduos privilegiados socialmente72. Relacionado aos limites mal-definidos dos princípios, a beneficência e a nãomaleficência estão em torno da fronteira entre os próprios deveres de um e outro: como o caso da suspensão de tratamentos extraordinários para pacientes com morte física iminente, o tratamento de recém-nascidos com sérias limitações físicas, o aborto de crianças com anomalias fetais grave, o processo de decisão de pessoas incompetentes, etc. Pode-se dizer que a fragilidade dos princípios não é derivada da insuficiência de sua própria teoria, mas decorre da impossibilidade de se encontrar saídas ideais e universais para situações concretas, situadas. É bom atentar para a complexidade dos fatos que pode exigir mais do que uma abordagem para sua melhor compreensão. A Bioética como reflexão ética aplicada deve se dar conta das diferentes circunstâncias, mesmo com relação aos diversos casos clínicos para os quais o paradigma principialista pretende ser referência. Ao dialogar com as diferentes percepções sobre determinado caso ajuda a ampliar os horizontes, o que pode servir para maior credibilidade da abordagem, tirando assim a reflexão de seu aspecto simplista e reducionista. Sendo assim não é de estranhar que os próprios autores de Princípios de ética biomédica, Beauchamp e Childress, reconhecem os limites que pode haver em suas 71 LEPARGNEUR, Hubert. Força e Fraqueza dos Princípios da Bioética. Revista Bioética (Conselho Federal de Medicina), vol. 4, nº 2, 1996, p. 131-143. 72 Sua teoria sobre o individualismo liberal. BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 88-97. 33 propostas73. Na referida obra cuidaram de, antes mesmo de desenvolver a especificidade de cada princípio relatar um pouco sobre os diversos tipos de teoria ética, dedicando o segundo capítulo a essa abordagem. O capítulo oito aponta também uma abertura para possibilidade de outras contribuições, advindas, sobretudo das vertentes casuísticas e virtudes. Esses limites são, portanto, notáveis e os próprios autores, como bons cientistas, fizeram o que muitos críticos posteriormente viriam a fazer. Assim mencionam na conclusão da obra: Neste capítulo final fomos além dos princípios, regras, obrigações e direitos. Virtudes, ideais e aspirações por excelência moral apóiam e enriquecem o esquema moral desenvolvido nos capítulos anteriores. Os ideais transcendem as obrigações e os direitos e muitas virtudes levam as pessoas a agir de acordo com princípios e normas bem como de acordo com seus ideais. (...) Ao concluir este livro, devemos ressaltar que diversas concepções da ética do caráter exibem um padrão de convergência similar e que os apelos aos princípios são muitas vezes intercalados com apelos às virtudes. (...) Quase todas as grandes teorias éticas convergem para a conclusão de que o mais importante elemento da vida moral de uma pessoa é um caráter desenvolvido que proporcione a motivação e a força interiores para fazer o que é certo e bom74. Pessini e Barchifontaine afirmam, no entanto, que outros pensadores chegaram a sugerir o principialismo como norma ética mundial para pesquisa em seres humanos. Mas esta não reflete hoje uma opinião unânime, apesar de estar presente na cabeça e nos escritos de pessoas até mesmo que vivem fora dos EUA, considerado o berço deste paradigma75. Isso se deve à segurança moral e as certezas que os princípios oferecem num ambiente de incertezas, mediante a necessidade de uma tomada de decisão seja em caso clínico, em comitês de reflexão ou em outras circunstâncias exigentes. “A fonte de abusos do principialismo está na necessidade humana de segurança moral e de certezas num mundo de incertezas”76. A clareza e definição objetiva dos princípios diante das adversidades deram aceitabilidade, bem como credibilidade, a este paradigma no campo da investigação médica, ainda no início da Bioética. Um excesso de confiança no principialismo acabou 73 Esforço de auto-crítica dos autores sobre sua teoria principialista pode ser encontrado no debate com ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioethics in a Liberationist Key. In: E.R.DuBose; R.Hamel; L.J.O’Connell (Orgs.). A Matter of Principles? Ferment in U.S.Bioethics. Valley Forge-PA: Trinity Press International, 1994, p.130-147 74 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 541-542. Cf. também PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo, 2000, p. 49, 5ª ed. 75 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 51, 5ª ed. 76 Ibidem p. 48. 34 dominando por bastante tempo a reflexão à cerca da bioética. Segundo Léo Pessini, o principialismo chegou a se tornar “abusivo” diante da segurança moral que oferecia77. Torna-se uma atitude absolutista quando se toma uma alternativa como único caminho. “Abusos de princípios ocorrem quando se modelam as circunstâncias para aplicar um princípio preferido e acaba-se caindo no ‘ismo’, e não mais percebendo que existem limites no procedimento principialista considerado infalível na resolução dos conflitos éticos”78. Outra crítica mais detalhada ao principialismo pode-se notar no que diz Hubert Lepargneur: “Estes princípios não cobrem a solução de toda pendência que se apresenta no quadro da bioética”79. Assim ele dá um exemplo: O princípio da autonomia do doente pode tornar-se terrível arma contra seu próprio bem, porque a decisão, geralmente, vale conforme o grau de esclarecimento e informação do sujeito que decide. A maioria dos pacientes comuns não pode nem sequer decidir, se houver qualquer alternativa de peso, o que seja uma dúvida até mesmo para o médico. Neste caso um princípio pode ser uma causa suficiente, raramente para viver. Não se trata de endeusar a autonomia individual nem de desvalorizar sua necessidade. Cabe ao médico ou à sua equipe avaliar o que convém recolher da manifestação da autonomia atual do paciente80. É visando algumas complexidades que Lepargneur recomenda, para além de uma avaliação restrita, a necessidade de ampliar o diálogo e enxergar a contribuição de outros paradigmas, que no seu artigo “Força e Fraqueza dos Princípios da Bioética” sugere a “prudência” como referencial que pertence a outro paradigma, o das virtudes, proposto por Edmund Pellegrino na Bioética. Na esteira dessa concepção crítica, que apresenta a necessidade de ampliar a reflexão, uma determinada cultura tende a abordar seus problemas sempre a partir do víeis que lhes são próprios. É assim que podemos considerar a crítica feita pelo bioeticista espanhol, Diego Grácia, apud Pessini & Barchifontaine, ao dizer que “não é possível resolver os problemas de consentimento sem abordar as questões de fundamentação”81. Continuando, diz que os “fundamentos e procedimentos são na verdade duas faces da mesma moeda, inseparáveis. Pobre procedimento que não está bem fundamentado e pobre fundamento que não tem como resultado um procedimento 77 Ibidem p. 48. Ibidem p. 50. 79 LEPARGNEUR, Hubert. Força e Fraqueza dos Princípios da Bioética. Revista Bioética (Conselho Federal de Medicina), vol. 4, nº 2, 1996, p. 131-143. 80 Ibidem. 81 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 51, 5ª ed. 78 35 ágil e correto”82. Neste caso, nada é mais útil que uma boa fundamentação dos princípios e nada mais fundamental do que um bom procedimento. Não sendo assim, os princípios se tornam meramente instrumentos. Conforme Pessini e Barchifontaine há também no principialismo uma forte influência do pragmatismo como corrente predominante no pensamento norte americano que tende a priorizar os procedimentos em detrimento dos fundamentos. Isso porque existe nos EUA uma forte influência do pensamento de John Dewey, considerado o pai do pragmatismo, que viveu da segunda metade do século XIX à primeira metade do século XX. O pragmatismo se desenvolveu como corolário do empirismo de Francis Bacon e Hume, do utilitarismo de Jeremy Bentham, Stuart Mill e Dewey, e que posteriormente avançou para o positivismo lógico. Na concepção de Dewey a ética e as outras disciplinas humanistas progrediam muito pouco porque empregavam metodologias ultrapassadas. Assim empreendeu em aplicar os métodos da ciência na resolução de problemas éticos. Dewey elaborou uma ética objetiva, utilizando o método científico na filosofia. Dessa visão polarizada Diego Grácia, sem desmerecer a colaboração e a contribuição do paradigma norte-americano, sobretudo a sua viabilidade e capacidade em desempenhar normas éticas dentro de uma cultura pluralista com enfoque individualista, apresenta a percepção da visão européia na forma de abordar os dilemas éticos83. Uma crítica apontada ao principialismo a partir do pensamento bioético europeu é uma percepção também do norte-americano James Drane ao dizer que a ética européia é mais teórica ao se preocupar com questões voltadas para fundamentação, de consistência filosófica que privilegia a dimensão social do ser humano, com prioridade para o sentido de justiça e equidade, ao passo que a perspectiva anglo-saxã é mais individualista e privilegia os direitos individuais e a autonomia da pessoa. A bioética européia prioriza o fundamento do agir humano e a norte americana desenvolve normas de ação, como conjunto de regras, para caracterizar uma moral84. Uma crítica que despontou a partir dos países periféricos na última década do século XX está relacionada à insuficiência do modelo norte americano, em analisar adequadamente e enfrentar os macro-problemas éticos que estes sofrem. Pesquisa 82 Ibidem p. 51 Ibidem p. 52. 84 Ibidem p. 53. 83 36 organizada pelo Instituto LatinPanel85 aponta que o processo de globalização econômica, longe de reduzir, aprofundou ainda mais as desigualdades verificadas entre as nações ricas, do norte, e as nações pobres, do sul. Essa percepção crítica social na Bioética teve colaboração efetiva, sobretudo a partir do Sexto Congresso Mundial de Bioética, em 2002, quando se procurou mostrar à agenda da bioética internacional os reais e mais evidentes problemas vividos pelos países pobres. Com essas críticas, abre-se para a bioética a possibilidade de vozes discordantes com relação à universalidade dos princípios difundidos desde o Kennedy Institut of ethics at Georgetown University. Apesar de sua reconhecida praticidade e utilidade para o estudo de situações clínicas e em investigações, é sabidamente insuficiente para a análise contextualizada de conflitos advindos de adequações culturais que exigem também outros critérios de avaliação. 1.6 - A contribuição de outras tendências na Bioética No decurso de amadurecimento da Bioética algumas outras tendências, para além da principialista, foram tomando corpo e se tornando claras, até mesmo pela necessidade de considerar a diversidade como um pilar que caracteriza o estatuto epistemológico da disciplina. As correntes que expomos a seguir pretendem mostrar o alargamento que se faz necessário na reflexão bioética, numa tentativa de contemplar com mais amplitude a complexidade à qual representa a realidade. Uma breve abordagem de outras tendências ajudará, inclusive, a estar situando, a problemática dos princípios sem pretensões absolutistas ou fechadas. Cada tendência, mesmo com os limites e as fragilidades que conferem cada uma, procura acrescentar ou mesmo clarear um enfoque não trabalhado pelo paradigma dos princípios. Seguem-se algumas características fundamentais de apenas alguns paradigmas mais conhecidos: O Paradigma das Virtudes foi inserido na Bioética por Edmund Pellegrino e David Thomasman na obra For the patient’s good por força do caráter próprio do pensamento europeu. Como fundamento para esse paradigma seus autores procuram embasar-se na ética das virtudes aristotélica. Este modelo dá “ênfase às atitudes que presidem eticamente a ação, e ao mesmo tempo tendo como pano de fundo um ethos social 85 INSTITUTO LATINPANEL. Ricos estão mais ricos. JORNAL O ESTADO DE S. PAULO, 9-112007. É o que aponta também o RELATÓRIO da ONU. Globalização não reduz desigualdade e pobreza no mundo. http://www1.folha.uol.com.br/ folha/mundo/ult94u104540.shtml; acessado em 10-02-2007. Cf. também a entrevista com CATTANI, Antônio. Desigualdades e direitos hoje. http://www.unisinos.br; acessado dia 08-11-07. 37 pragmatista e utilitarista, propõe-se a boa formação do caráter e da personalidade ética”86, particularmente dos profissionais da saúde, sem, contudo, deixar de integrar o paciente ao seu processo de decisão. A Casuística é outro paradigma, com um método muito usado pelos jesuítas, que “tende a acentuar a importância dos casos e suas particularidades de onde podem ser tiradas as características paradigmáticas para se fazerem analogias com outros casos”87. Pessini e Barchifontaine afirmam que este é um modelo apresentado na Bioética por Albert Jonsen e Stephen Toulmin no livro The abuse of casuistry, no qual preconiza uma análise de caso a caso, num plano analógico. Este modelo propõe que cada caso deve ser examinado em suas características paradigmáticas, estabelecendo comparações e analogias com outros casos. Segundo Toulmin, “a expressão ‘casuística’ refere-se à análise direta de casos particulares em medicina clínica. A atenção a esses casos particulares constitui-se no coração da ética clínica”88. Há o modelo chamado Liberal que enfatiza como valor central a autonomia do indivíduo. Pessini e Barchifontaine afirmam que esse paradigma encontra sua origem em Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith; e um forte expoente dessa corrente na Bioética é Tristam Engelhardt com sua obra Fundamentos da Bioética89. Seu pensamento é inspirado na tradição político-filosófica do liberalismo anglo-saxão e está baseado na busca pelos direitos humanos e a afirmação do indivíduo sobre seu próprio corpo e sobre todas as decisões que envolvam a vida. Valoriza a consciência de si como forte constitutivo da pessoa e em seu argumento nada impede que o indivíduo possa eticamente negociar seus próprios órgãos e seu sangue90. A vertente Contratualista, conforme Pessini e Barchifontaine, apresentada por Robert Veatch em A theory of medical ethics, considera a complexidade das relações sociais de hoje e evidencia como ponto de partida as insuficiências de fundo da ética hipocrática. “Defende um triplo contato: entre o médico e os pacientes, entre os médicos e a sociedade, e um contato mais amplo com os princípios orientadores da 86 ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: Abrangência e Dinamismo. Revista Espaços, 04 de fevereiro de 1996, p. 131-143. 87 Ibidem. 88 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 36, 5ª ed. 89 Ibidem p. 35. 90 ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: Abrangência e Dinamismo. Revista Espaços, 04 de fevereiro de 1996, p. 131-143. 38 relação médico-paciente”91. E para regular essas relações propõem obedecer a princípios fundamentais como o da beneficência, a proibição de matar, o de dizer a verdade e outros. O Paradigma do Direito Natural, ou naturalista, descrito por John Finnis em Natural law and natural rights, com recurso à lei natural, procura estabelecer bens fundamentais em si mesmos: o conhecimento, a vida, a vida estética, a racionalidade prática, e outros bens que constituam a dignidade do ser pessoa. Este modelo de análise leva em conta o ser humano em sua integralidade bem como o integra na sociedade92. O Paradigma Hermenêutico ou Fenomenológico dá ênfase à condição interpretativa do ser humano, ou seja, enfatiza a necessidade de reconhecer que toda experiência está sujeita à interpretação. Acentua a necessidade de se perguntar e responder sobre o sentido das realidades implicadas na vida, na saúde, na relação médico-paciente como diferentes sujeitos de interpretação, o papel que têm as religiões na hermenêutica e outros93. Para Pessini o modelo hermenêutico não valoriza muito o caráter bipolar da experiência humana ao sublinhar a necessidade de aceitação da alteridade que deve ser assimilada num diálogo respeitoso. Já a fenomenologia coloca a subjetividade entre parênteses numa tentativa de penetrar na situação em si mesma. Ambas apontam para a superficialidade do modelo principialista, pois a experiência humana não pode ser facilmente capturada e dirigida por uma moral baseada na simples imposição de regras e princípios abstratos94. O Paradigma Narrativo “lembra que as pessoas adquirem identidade e intimidade ao contar e seguir histórias, assim como culturas inteiras define seus valores e seu sentido de pertença por meio do mito e do épico”. O eticista encontra uma dimensão narrativa em cada situação que depara. A narrativa torna-se uma parte inseparável da vida. A capacidade de fazer história e elaborar sentidos que vão para além dos meros fatos, tornam o modelo narrativo um antídoto ao abstracionismo principialista95. O Paradigma Feminista ou de gênero é decorrente da crescente tomada de consciência de toda a sociedade com relação à necessidade de mudança de um posicionamento de ações concretas visando acabar com a perniciosa discriminação de gênero. As análises partem de polêmicas em que mulheres são representantes de grupos 91 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 37, 5ª ed. 92 Ibidem p. 37. 93 Ibidem p. 36. 94 Ibidem p. 36. 95 Ibidem p. 36. 39 em visível desvantagem no acesso aos bens da vida; portanto, muitas vezes, se encontram em condições de vulnerabilidade. Como a bioética é um novo saber, permeado de muitas discussões de vanguarda, não poderia se furtar a refletir questões raciais e de gênero, tão importantes à contemporaneidade96. O Paradigma do Cuidado. Beauchamp e Childress destacam duas pioneiras nessa reflexão: a psicóloga Carol Gilligan e a filósofa Annette Baier. Gilligan, “identificou dois tipos de relacionamentos e dois tipos de pensamento moral: uma ética do cuidar em contraste com uma ética dos direitos e da justiça”97. A partir do século XVIII, a teoria ética pendeu para uma tendência cognitivista. A ética do cuidar tenta corrigir essa propensão cognitivista em demasia dando às emoções um papel a desempenhar. “A ênfase na dimensão emocional da vida moral não reduz a reação moral a uma reação emocional. O cuidar possui, claramente, uma dimensão cognitiva, pois envolve um discernimento e uma compreensão da situação, das necessidades e dos sentimentos do outro”98. Sobre o paradigma Personalista, pode-se dizer com Maria do Céu Patrão Neves que é um paradigma “profundamente enraizado na filosofia européia contemporânea, em particular na sua tradição fenomenológica e no desenvolvimento que esta conhece no existencialismo e, sobretudo na hermenêutica”99. Entre os vários autores convictos da inserção dessa discussão na Bioética pode-se mencionar S. Leone, J. F. Malherbe, C. Viafora. E. Sgreccia, D. Tettamanzi, S. Spinsanti100. Segundo Márcio Fabri dos Anjos, esta corrente implica em uma “ampla visão antropológica que incide na ética valorizando, entre outras, a dignidade humana como centro da elaboração ética, por sua capacidade e vocação a dar sentido às coisas e ao próprio rumo de sua vida”101. Não assume uma natureza descritiva, nem procura estabelecer normas de ação. Antes desenvolve uma racionalidade teleológica dos juízos e de normas éticas. Toma o homem na sua dignidade universal, como valor supremo do 96 DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 56-65. Cf. também PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 37, 5ª ed. 97 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 107. 98 Ibidem p. 111. 99 NEVES, Maria do Céu Patrão. A Fundamentação Antropológica da Bioética. http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v4/fundament.html; acessado em 06-08-2006. 100 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 37, 5ª ed. 101 ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: Abrangência e Dinamismo. Revista Espaços, 04 de fevereiro de 1996, p. 131-143. 40 agir. Segundo o mesmo autor, este modelo assume os processos biológicos espontâneos, encontrados na natureza, como um valor, mas não necessariamente impositivos à razão humana dentro da atividade bioética. O modelo personalista tem como ponto de partida o reconhecimento da pessoa, sua identidade e sua essência, pois só reconhecendo-a podemos então saber como respeitá-la. O reconhecimento tem como desdobramento o respeito à dignidade humana. A pessoa colocada como centro é vista na singularidade da sua realidade concreta e na universalidade da sua humanidade, como: a unicidade da subjetividade, o caráter relacional na intersubjetividade e a solidariedade em sociedade. A unicidade da subjetividade refere-se ao caráter singular e irrepetível do indivíduo, ao ser único e original em que a pessoa se constitui. O caráter relacional e intersubjetivo do humano refere-se à inviabilidade de um processo individual de personalização, já que a pessoa é, por natureza e condição, um ser aberto aos outros e ao mundo. O ser humano toma consciência de si no seu relacionamento com os outros, de modo que a intersubjetividade constitui uma dimensão relacional. Neste sentido se pode lembrar Hans Jonas e mesmo K. O. Apel ao procurar relacionar a consciência, na sua formação ética, com uma responsabilidade solidária pela sociedade102. A conexão e a solidariedade entre pares referem-se à integração efetiva do homem numa sociedade concreta, na qual é chamado a intervir pela dimensão social do seu ser e do seu existir. Há um apelo à responsabilidade social de cada pessoa na construção do verdadeiro humanismo que toma todos os homens como homens numa perspectiva de justiça eqüitativa. 1.7 - O paradigma latino americano na Bioética Na América Latina, a bioética passou a ser interpelada por outras realidades que propõem dilemas para além daqueles criados pelo desenvolvimento biomédico e que fizeram suscitar, no início, tais reflexões. A última década do século XX se caracterizou como um período de definição para o rosto que deveria assumir a bioética no continente latino americano. Em meio às discussões em torno da relação médico-paciente, dos princípios normativos, da pesquisa com seres humanos, o uso humano pela tecnologia, o uso de tecnologia no processo do morrer, estudos ligados à tecnologia de reprodução e outros, passam a fazer parte da discussão temas voltados à exclusão, discriminação, 102 MANCINI, Roberto. Karl-Otto Apel: o desafio neo-iluminista à teologia. In: GIBELLINI, Rosino e PENZO, Giorgio (Orgs.). Deus na Filosofia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998, p. 495-505. 41 alocação de recursos, saúde pública, tráfico de drogas e de pessoas humanas, situações ligadas ao meio ambiente e tantas outras. A bioética tem como característica o inacabamento de suas reflexões. O seu amadurecimento, em curto espaço de tempo, lhe permite avaliar que houve e, ainda há muitas contestações exigindo uma ampliação de temas a serem abordados, como próprios de um espaço plural de debates e de culturas diversificadas. Há na América Latina unanimidade em concordar que a bioética em sua reflexão deva levar em consideração os reais problemas vividos pela população em contexto. Léo Pessini afirma que, “em alguns países da América Latina, a simples existência de alta tecnologia e centros de cuidado médico avançados levanta questões sobre a discriminação e a injustiça na assistência médica. As interrogações mais difíceis nesse campo giram em torno não de como se usa a tecnologia médica, mas de quem tem acesso a ela”103. Numa comparação com o principialismo, a bioética latino-americana exige para sua reflexão conceitos culturalmente fortes como justiça, equidade e solidariedade como o de autonomia assume na América do Norte, mas evitando, porém, os exageros de privilegiá-los em extremo em detrimento de tantas outras necessidades, até mesmo aquelas não contempladas pelo principialismo. Pessini e Barchifontaine afirmam que essa é a contribuição que a América Latina pode oferecer, ou seja, “uma perspectiva bioética distinta da norte-americana por causa de sua tradição médica humanista e pelas condições sociais de seus países periféricos”104. Na América Latina elaborar uma bioética somente em nível micro de estudos de casos de caráter deontológico, sem levar em conta a realidade, não responderia aos anseios mais evidentes e clamorosos por vida digna. Como resposta à indústria do desenvolvimento da medicina numa era tecnológica, a bioética, sobretudo latino americana, deve exercer sua criticidade em relação a tal progresso, sendo capaz de colocar os verdadeiros problemas. “Não podemos esquecer que na América Latina a bioética tem o encontro obrigatório com a pobreza e a exclusão social”105. A preocupação da bioética latino americana não está primeiramente no nível “microssocial”, ou seja, da ética clínica, individualizada, comum da realidade do Norte. A realidade latino americana com seus problemas estruturais de precarização da saúde, 103 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 54, 5ª ed. 104 Ibidem p. 55. 105 Ibidem. 42 educação, segurança, crimes, corrupção, a escandalosa desigualdade social e outros exigem um programa alternativo “macrossocial” que seja capaz de efetivar suas próprias demandas. Não há dúvida que a maior necessidade dos países que compõe o Continente está voltada para a questão da equidade e distribuição de recursos. Os dilemas do paradigma latino americano diferem em muitos pontos de paradigmas europeus e Anglo-Saxões. Pessini e Barchifontaine ressaltam que “Os latinos sentem-se profundamente desconfortáveis com direitos e princípios. Eles acostumaram-se a julgar as coisas e os atos como bons ou ruins em vez de como certos ou errados. Eles preferem a benevolência à justiça, a amizade ao respeito, a excelência ao direito”106. Segundo eles o que os latinos buscam é a virtude e a excelência, mesmo sem rejeitar ou desprezar os princípios, pois a abordagem principialista pode ajudar na superação de alguns defeitos que se arrastam na vida moral tradicional como o paternalismo, a tolerância e outros. Entre os muitos temas morais a serem debatidos na América Latina não há dúvida que dos mais é o restabelecimento da dignidade da pessoa humana infringida pela criminosa desigualdade social e perpetuação da exploração dos pobres para manutenção do status quo de poucos. Não são poucas as ideologias que tentam discursivamente ofuscar esse fato contundente e escandaloso no Continente. Sensível às reais condições de vida das pessoas que vivem no hemisfério Sul do mundo, a Teologia da Libertação, através do princípio misericórdia, quer estabelecer com a bioética latino americana um diálogo que pretende uma contribuição a partir de uma reflexão de conceitos como justiça, equidade, solidariedade e humanismo. Neste diálogo o contributo acontece numa perspectiva inter-multi-pluridisciplinar, respeitando a laicidade da epistemologia científica e refletindo uma preocupação comum, acerca da pessoa e sua circunstância. Trata-se de uma transcendência horizontal, ou seja, uma abordagem transcendente a partir do imanente, do homem, que Fermin Schramm, agnóstico, ao abordar o tema da espiritualidade e bioética, afirma ser passível de discussão e consenso mesmo no âmbito científico com as diversas intersubjeitvidades crentes, agnósticos, humanistas e ateus. Na verdade o falar de Deus a partir das reais necessidades humanas é fazer teologia e é o que propõe a Teologia da Libertação na América Latina. De fato, é perfeitamente legítimo defender ‘uma ética sem Deus’ e, ao mesmo tempo, aceitar uma forma de espiritualidade entendida como a dimensão que 106 Ibidem p. 56. 43 abre a existência ao infinito da transcendência ou, se quisermos, ao Infinito que transcende a Totalidade e que é introduzido pela alteridade representada pelo outro107. É da preocupação com o humano e suas reais circunstâncias sociais, econômicas histórico-culturais e religiosas que a Teologia da Libertação nasceu e se desenvolveu na América Latina, sob a inspiração da experiência de libertação dos israelitas contida no relato bíblico. A Escola da Teologia da Libertação, como é chamada por Wilton Barroso108, percebe a América Latina como um desafio para sua atuação e colaboração, devido às inegáveis desigualdades sociais nesses países que vulnerabiliza uma enorme parcela da sociedade mantendo-a na pobreza. Com isso se justifica ainda hoje a sua capacidade de elaborar ou sistematizar uma linguagem sobre Deus num momento em que a pobreza atinge mais de um terço da humanidade. Essa Teologia comunga fortemente com a bioética latino americana em quesitos que dizem respeito à inclusão social e a oposição à exclusão, à emancipação do sujeito e contra sua exploração, à denúncia das escandalosas desigualdades econômicas, sociais, culturais e propondo a justiça ou a equidade como critérios de avaliação, libertação, solidariedade e esperança criativas. A reflexão de caráter libertador tem estreita relação com a vertente personalista ao defender a integridade e a vida da pessoa. Ambas propõem a “dignidade humana” como fundamento para orientar a natureza, a identidade e a relação na busca de humanidade, o enveredar pelo sentido que conduz às pessoas à categoria ética na mais plena realização de si. Para Dietmar Mieth “Falar da identidade do homem significa perguntar-se: o que torna o homem tão inconfundível e tão pessoal?”109. Ele mesmo responde dizendo que “Existem correntes a respeito, nas quais essa identidade individual do homem é, no fundo, relativizada ou sacrificada em favor de um sistema complexivo do gênero humano”110. Tais correntes contrastam nitidamente com o que propõe a ética cristã. O princípio sobriniano da misericórdia procura responder essa desvalorização da pessoa deixando se orientar pela percepção do respeito incondicional ao ser humano. Essa crise da noção de pessoa é abordada por Lepargneur ao relatar que a dignidade no 107 SCHRAMM, Firmin Roland. Espiritualidade e bioética: o lugar da transcendência horizontal do ponto de vista de um bioeticista laico e agnóstico. Revista O Mundo da Saúde. São Paulo: São Camilo, ano 31, vol. 31, nº 2, abril/junho de 2007, p 161-166. 108 BARROSO, Wilton et alli. Perspectivas Epistemológicas da Bioética Brasileira a partir da teoria de Thomas Kuhn. Revista Brasileira de Bioética, Vol. 1, nº 4, 2005, p. 374. 109 MIETH, Dietmar. Imagem do homem e dignidade humana, a perspectiva cristã da bioética. In: GIBELLINI, Rosino (Org). Perspectivas teológicas para o século XXI. Aparecida-SP: Santuário, 2005, p. 200. 110 Ibidem p. 200. 44 decorrer da evolução cultural passou da eminência da reflexão ontológica para um crescente enfoque sociológico da realidade humana. Tal autor diz que “O bastião humanista do conceito da dignidade está sacudido pelas incertezas a respeito do início e do fim da pessoa, intocável porque digna”111. O que se nota é que a dignidade passou da esfera metafísica-religiosa para a esfera comportamental das trocas sociais e dos reconhecimentos culturais. Discutir as condições de vida submersa às situações inumanas, como se vê na América Latina, traz a dificuldade de entendimento em torno do termo “vida” usado sem mais. Basta lembrar os argumentos oportunos propostos em, A questão ética e a saúde humana, do professor Marco Segre, bem como, O que é vida?, de Lyann Margulis e Dorion Sagan, e toda a ciência em torno da genética e da física quântica112. Em torno da expressão “dignidade humana” as opiniões também divergem, como se pode notar em artigo escrito pela professora de ética médica e bioeticista, Ruth Macklin, com título: “Dignity is a useless concept”113. Diante de tantas críticas, dada à diversidade de opiniões sobre o assunto, o referido artigo obteve uma avalanche de reações relativamente fundamentadas. Há de se considerar que além de levar em consideração os limites intersubjetivos de compreensão do termo deve-se estar atento para sua ocidentalidade, bem como a crítica que se faz por considerá-lo amplo em demasia e, portanto, inútil. Em conformidade com Márcio Fabri dos Anjos114, ao pensar na utilidade de um termo é preciso notar, de início, que nem tudo é útil para tudo. Assim, não é de se estranhar que haja limitações no uso do conceito de dignidade humana. O fato de um conceito ser amplo não o torna simplesmente inútil. Conceitos amplos, embora vagos, são, portanto, úteis e necessários para a linguagem. Mas o que nos interessa ressaltar aqui é que o discurso racional e argumentativo próprio da expressão propicia, antes de tudo, uma atitude fundamental e uma convocação para uma entrada qualitativa nas relações humanas concretas. Essa exigência traz consigo o senso do dever de optar ou de dar prioridade às pessoas vulneráveis e limitadas física e psiquicamente. Chama a atenção para uma 111 LEPARGNEUR, Hubert. Dignidade... Alma Secreta da Bioética?. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 482. 112 SEGRE, Marco. A questão ética e a saúde humana. Rio de Jeneiro; Ateneu, 2006. MARGULIS, Lyann e SAGAN, Dorion. O que é vida?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 113 MACKLIN, Ruth. Dignity is a useless concept. http://www.bmj.com/cgi/content/full/327/7429/1419; acessado em 19 – 10 – 2007. 114 ANJOS, Márcio Fabri dos. Dignidade Humana em debate. BIOÉTICA (Conselho Federal de Medicina, Brasília-DF). Vol. 12, n.1, Ano 2004, p. 109-114. 45 preocupação preferencial pelos pobres seja pela moralidade secular, cristã e outras. Diznos Dietmar que “Em torno daqueles que não estão em condição de representar a si mesmos paira sempre também uma aura de vulnerabilidade”115. Desse modo, há a necessidade de um vetor para assegurar ao homem a vida como último status que antecede sua finitude. Por isso a idéia de dignidade humana se coloca mais na percepção de um “princípio fundante”. A sublime avaliação da pessoa humana a partir da razão, da vontade livre e da linguagem comunicacional vira-se em seu contrário a partir do momento em que se constata que algumas pessoas são desprovidas ou perderam essas eminentes qualidades, como é o caso de idosos, doentes graves, miseráveis e tantos que têm sua autonomia comprometida. Valadier referindo-se ao pensamento kantiano diz que esses impasses, no entanto, “não obrigam a liquidar pura e simplesmente uma tradição filosófica à qual tanto devemos” 116. Desse modo interroga: Afinal, o que respeitamos no ser humano, o que devemos respeitar nele? Seriam essencialmente aqueles atributos que são razão, vontade livre e comunicação, a tal ponto que, se estes desaparecessem ou fossem extintos, o nosso comportamento deveria mudar? Ou seria outra coisa, por exemplo, tratar-se-ia de respeitar em cada um nossa comum humanidade, mesmo quando esta não tivesse mais os traços honráveis que o racionalismo moral lhe atribui? [E continua dizer que] tanto as grandes tradições morais quanto a tradição evangélica convergem num ponto central sobre o respeito da dignidade humana. O ser humano não é respeitável, antes de tudo, por suas qualidades eminentes, por seus traços nobres e elevados, mas justamente naquele estado em que ele perdeu os traços da sublimidade. Quando ele, tendo perdido a forma humana, está inteiramente entregue à solicitude de seus irmãos/irmãs em humanidade117. Percebe-se, portanto, que o princípio misericórdia ao realçar o horizonte de significado da vida humana direciona-se para a compreensão mais elevada do que significa ser humano, trazendo à reflexão a preocupação com a vida que se encontra ameaçada. Ao falar do homem sob o critério ético abordado não se pode exprimir de outro modo a não ser através do conceito de não instrumentalidade. A instrumentalidade humana não é, portanto, “um atributo próprio à pessoa em sua singularidade; ela é uma relação, ou melhor, ela se manifesta no gesto pelo qual nós nos referimos ao outro por considerá-lo ser humano, igualmente ser humano, mesmo se sua aparência denuncia uma não-humanidade ou mesmo uma desumanidade”118. 115 Ibidem; p. 193. VALADIER, Paul. A pessoa em sua dignidade. Revista Concilium, Nº 39, 2003/02, p. 45-53. 117 Ibidem. 118 Ibidem. 116 46 Concluindo o primeiro passo do presente estudo, pode-se ver que o princípio misericórdia encontra na bioética um amplo espaço, em que a questão dos princípios, embora matizada por diferentes conceituações e empregos, se reveste de grande importância. O surgimento da própria bioética se dá com a busca de fundamentos humanitários que possam sustentar posicionamentos éticos, bem como é devedora ao principialismo que lança as bases para a ética em pesquisas e procedimentos clínicos. Uma vez estudado o alcance de suas variantes conceituais, pode-se situar melhor também os diferentes paradigmas de bioética dentro dos quais o termo se insere. A reflexão latino-americana especificamente se vê necessitada de princípios, referenciais e fundamentos que subsidiem um enfrentamento aos graves desafios éticos de sua realidade. Preparou-se, desta forma, uma exposição do contexto em que, a seguir, se busca analisar a possível contribuição da reflexão teológica de Jon Sobrino em torno do princípio misericórdia. Em vista disso o próximo passo é sistematizar alguns dados essenciais da biografia e do pensamento do autor, o que permitirá analisar sua contribuição para a bioética. II – O princípio misericórdia O princípio misericórdia, enunciado por Jon Sobrino, tem raízes profundas em sua experiência de vida e na construção do seu pensamento teológico de cunho libertador. Para se compreender o alcance da contribuição deste princípio à bioética, torna-se necessário fazer uma aproximação de alguns pontos básicos de sua experiência de vida e de sua metodologia teológica. Desta forma, a construção desse capítulo está metodologicamente dividida em três sub-capítulos apresentando primeiro alguns traços básicos da vida e do pensamento do autor. Num segundo momento propõe-se expor as estruturas que, na percepção de Sobrino, causam ou provocam as feridas e indignidades denunciadas pelo princípio 47 misericórdia. Um terceiro sub-item procura mostrar a atitude de quem age movido pelo princípio misericórdia. São passos interdependentes que constroem a compreensão única do Princípio proposto por Sobrino. 2.1 - Biografia e Pensamento de Jon Sobrino Jon Sobrino é de família basca, nasceu em Barcelona, Espanha, no dia 27 de dezembro de 1938; entrou na Companhia de Jesus no ano de 1956. Um ano após, outubro de 1957, foi enviado para El Salvador, tendo, posteriormente, recebido a cidadania salvadorenha. Interrompeu por duas vezes sua estada em El Salvador para dar continuidade a seus estudos de filosofia e engenharia na St. Louis University, nos Estados Unidos, concluídos em 1965. Seus estudos teológicos foram realizados na Hochschule Sankt Georgen de Frankfurt, Alemanha, onde, em 1975, doutourou-se, com um inédito estudo acerca do “Significado de la cruz y resurrección de Jesús em las cristologías sistemáticas de W. Pannenberg y J. Moltmann”. Os temas da cruz e ressurreição do Senhor são transparentes no seu fazer teológico. Sobrino, tendo nascido na Europa e realizado seus estudos na Alemanha e Estados Unidos, estando em contato com o mundo dos pobres de El Salvador, conheceu o mundo desenvolvido e da abundância e, também, o mundo da pobreza e da morte. Segundo seu testemunho pessoal119 considera vital em sua vida de teólogo o pensar e fazer teologia a partir da realidade concreta em que vive. Jon Sobrino dedica-se à formação teológica na Universidade Centroamericana; é responsável pelo Centro de Pastoral Oscar Romero; é diretor da Revista Latinoamericana de Teologia, é membro do comitê da prestigiosa revista internacional de teologia Concilium e dirige o Informativo Cartas a las Iglesias. Vale destacar que, além de seus ofícios de docente na Universidade já referida, dedica-se a tarefas pastorais, atende a inúmeras solicitações para palestras e encontros em muitos países, dentro e fora da América Latina. Para maior detalhe sobre sua biografia consultar a obra de Vera Ivanise Bombonatto, Seguimento de Jesus: uma abordagem segundo a cristologia de Jon Sobrino120. 119 SOBRINO, J. O Princípio Misericórdia: descer da cruz os povos crucificados. Tradução de CLASEN, Jaime A. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 12. 120 BOMBONATTO, Vera Ivanise. Seguimento de Jesus: Uma abordagem segundo a cristologia de Jon Sobrino. São Paulo: Paulinas, 2002. 48 Suas obras e artigos são publicados e traduzidos em vários idiomas. Destaca-se como um dos mais importantes expoentes da Teologia da Libertação121, da qual é membro co-fundador, com significativas publicações nas áreas de cristologia, eclesiologia e espiritualidade. De todas as suas produções teológicas, a que interessa conhecer nesta pesquisa é a obra: El Principio Misericordia. Bajar de la cruz a los pueblos crucificados, Maliaño-España: Editorial Sal Terrae; 1992. Além dessa obra, recorre-se a outras, de sua autoria e a seus artigos publicados em vários periódicos. A teologia da qual Sobrino comunga nasceu no bojo da realidade pobre e oprimida da América Latina, a qual enfrenta oposição sistemática do poder político-econômico neoliberal, de membros cúria romana, bem como de líderes da Igreja vinculados à ortodoxia da fé e críticos intelectuais como o professor da PUC-SP, Luiz Felipe Pondé, ao dizer “Em poucas palavras: aqueles que vêem a face de Cristo nos pobres se sentem como que liberados do fato de serem maus porque o mal está na exploração pela elite”122. Por sua maneira de compreender a realidade e sistematizá-la a partir da fé cristã, Jon Sobrino foi notificado, e não condenado, pelo Vaticano, em 14 de março de 2007, data de publicação do documento. A Nota Explicativa encontrou nas obras Jesus, o libertador – a história de Jesus de Nazaré e A fé em Jesus Cristo – ensaio a partir das vítimas “diversas proposições errôneas ou perigosas que podem causar dano aos fiéis”123. Segundo a notificação essas obras de Sobrino evidenciam a dimensão humana de Jesus em detrimento de sua dimensão divina e exigiu que adaptasse os seus escritos aos dogmas da Igreja Católica. O P. Sobrino tende a diminuir o valor normativo das afirmações do Novo Testamento e dos grandes Concílios da Igreja antiga. Tais erros de índole metodológica levam a conclusões não conformes com a fé da Igreja em pontos centrais da mesma: a divindade de Jesus Cristo, a encarnação do Filho 121 A cerca da Teologia da Libertação ver: SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p.49. FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 18. ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo. Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 460. 122 PONDÉ, Luiz Felipe. A Teologia da Libertação não é uma caduca inútil. http://www.unisinos.br/ihu_online/index.php?option=com_destaques_semana&Itemid=24&task=detalhes &idnot=309&idedit=11; acessado dia 31/03/2007. 123 CONGREGAÇÃO para DOUTRINA da FÉ. Nota explicativa notificação sobre as obras do P. Jon Sobrino. http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20061126_notasobrino_po.html; acessado em 15-04-2007. 49 de Deus, a relação de Jesus com o Reino de Deus, a sua auto-consciência, o valor salvífico da sua morte124. Com a notificação, muitas foram as manifestações de solidariedade. Além das manifestações isoladas publicadas em artigos de jornais escritos ou eletrônicos, a Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo publicou o livro Descer da Cruz os Pobres: cristologia da libertação125, com 357 páginas, contendo artigos de 40 teólogos em desagravo ao teólogo Jon Sobrino. Levou também um grupo de 135 teólogos alemães e austríacos, liderados por Huenermann, professor emérito da cátedra de teologia dogmática na Universidade de Tübingen, na Alemanha, a lançar nota de repúdio e propor a reforma da Congregação para a Doutrina da Fé, responsável pela censura126. O teólogo Andrés Torres Queiruga afirma que “Resulta incompreensível que se julgue e interprete mal um homem que dedica sua inteligência ao esclarecimento teológico e sua vida ao serviço da proclamação mais nuclear do Evangelho: ‘bemaventurados os pobres”127. Com isso, deve-se então perguntar, como falar de Jesus de Nazaré a partir do sofrimento dos pobres da Palestina ou da América Latina ou da África? Como Jon Sobrino poderá fazer memória a Inácio Ellacuría e seus co-irmãos como faz todos os anos na data em que foram chacinados? Em 2007 ele escreveu sua carta mais recente endereçada ao seu amigo mártir intitulada: “El padre Arrupe. un empujón de humanización’”128. Essas manifestações de solidariedade ao teólogo salvadorenho foram amplamente divulgadas na imprensa, vindos de todas as partes do mundo, tanto de teólogos intelectuais, povo simples, organizações, grupos de outras igrejas, de confrades jesuítas e, sobretudo, do povo salvadorenho onde vive e é conhecido, lugar em que Sobrino 124 Ibidem. A repercussão da notificação feita a Jon Sobrino pode ser encontrada nos comentários de renomados teólogos latino-americanos e europeus em REVISTA DE TEOLOGIA & CULTURA (Ciberteologia). Dossiê Jon Sobrino. Edição Nº 10 - Ano II - Março/Abril 2007 - ISSN: 1809-2888, http://ciberteologia.paulinas.org.br/10200703/DossiêJonSobrino/tabid/852/Default.aspx; acessado em 2701-2008. 125 VIGIL, José Maria (Org.). Descer da cruz os pobres: cristologia da libertação. São Paulo: Paulinas, 2007. 126 CHADE, Jamil. Manifesto reivindica ‘reforma’ da Congregação para a Doutrina da Fé. JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO, 26-05-2007. 127 QUEIRUGA, Andrés-Torres. El caso Jon sobrino como sintoma. http://ciberteologia.paulinas.org.br/ Portals/13/ElcasoJonSobrinocomosintoma.pdf; acessado em 02-05-07. 128 SOBRINO, Jon. El Padre Arrupe. Un empujón de humanización. Carta a Ignacio Ellacuría. http://www.redescristianas.net/2007/10/26/el-padre-arrupe-un-empujon-de humanizacion-carta-a-ignacioellacuriajon-sobrino/; acessado em 25-10-07. 50 pôde presenciar e ainda presencia o descalabro e as dores de povos inteiros sendo dizimados. O pensamento sobriniano tem estreita relação com a trajetória de vida dele em El Salvador. Por isto torna-se necessário conhecer o lugar do qual ele fala. Na década de 70, El Salvador estava sob os escombros da miséria, sob insatisfação de movimentos populares, que se intensificaram a partir de 1979. Medidas repressivas foram tomadas pelo exército, com o regime militar, patrocinadas pela ultra-direita do País e pelos EUA, em que se violava todo tipo de direitos humanos. Em 24 de março de 1980 assassinaram o arcebispo Dom Romero, do qual Sobrino era assessor, um legítimo defensor dos direitos humanos, enquanto celebrava missa. É oportuno colocar aqui um trecho de sua última homilia, ao celebrar missa de corpo presente de uma das vítimas da repressão Doña Sarita de Pinto, o qual dizia: ignoramos el tiempo en que hará la consumación de la tierra de la humanidad. Tampoco conocemos de qué manera se transformará el universo. La figura de este mundo, afeada por el pecado, pasa, pero Dios nos enseña que nos prepara una nueva morada y una nueva tierra donde habita la justicia, y cuya bienaventuranza es capaz de saciar y rebasar todos los anhelos de paz que surgen en el corazón humano... Que este Cuerpo inmolado y esta Sangre Sacrificada por los hombres nos alimente también para dar nuestro cuerpo y nuestra sangre al sufrimiento y al dolor, como Cristo, no para si, sino para dar conceptos de justicia y paz a nuestro pueblo. Unámonos pues, intimamente en fe y esperanza a este momento de oración por Doña Sarita y por nosotros. (neste momento houve o disparo)129. Depois de Romero, em 1990 foram assassinados também os seis jesuitas, mais a cozinheira Júlia Elba e Celina sua filha de 15 anos, depois de várias ameaças e bombas explodidas em diversos lugares de suas propriedades: na casa, na UCA, etc. Foram, durante este tempo, num pequeno país, de 70 a 75 mil mortes de pessoas anônimas: pais de famílias, camponeses, operários, universitários, professores, religiosos, catequistas, mulheres, crianças e etc. Aconteceu durante este tempo uma verdadeira guerra civil patrocinada pelo governo militar, até que em 1992 costurou-se, friamente, numa mesa de escritório um acordo com a ONU no intuito de restabelecer ao que se chama de paz, sem resolver verdadeiramente os problemas de miséria e opressão. Durante este tempo muitos foram refugiados130. 129 ROMERO, Oscar A. Homilia del primer aniversario de la Sra. Sara de Pinto. San Salvador, 24 de marzo de 1980. Cf. também SERVIÇOS KOINONIA. A lãs 17 horas, em la Capilla del Hospital de la Divina Providencia. www.servocioskoinonia.org/romero/homilias; acessado em 18 -08-07. 130 SOBRINO, Jon. Os seis Jesuítas Mártires de El Salvador. São Paulo: Loyola, 1990, p. 12. Cf. também FIORI, José Luís. A virada à esquerda na América do Sul, Ano VI, Nº 01, 26-01-06, http://www.cnmcut.org.br/sgc_data/publicacao/pdf/pub52.pdf; acessado em 28-06-07. 51 Ao relatar um pouco deste fato nos faz situar, mesmo parcialmente, o local a partir de onde Sobrino falou e continua a falar. E este fato vivido em El Salvador é o mesmo vivido por quase todas as nações da América Latina, ou seja, de tortura e repressão e que hoje vive sob o peso da miséria, de pessoas desaparecidas, que se ontem morreram matados por revólver, hoje morrem pela fome, pelo tráfico, assaltos, etc. como fruto da falta de um plano estrutural. Percebe-se que quando Sobrino fala de Rutílio Grande, Segundo Montes, Inácio Martín Baró, Amando Lopes, João Ramón Moreno, Joaquim Lopes y Lopes, de Monsenhor Romero e do padre Ellacuría, seus irmãos chacinados, com a empregada e sua filha não o faz simplesmente por falar a uma pessoa considerada virtuosa131. O faz, antes de tudo, para confirmar o impacto profundo que lhe causaram em sua vida. Estes mártires impressionam Sobrino pela fé vivida de quem busca encontrar a vontade de Deus na vida cotidiana e nas coisas últimas e profundas de suas vidas. Impacta profundamente a Sobrino, a coerência de Monsenhor Romero com a opção pelos pobres, sua percepção da verdade na vida do oprimido, sua misericórdia com as vítimas de seu país, sua capacidade para aprender dos pobres, sua fidelidade em meio dos ataques, a difamação e as ameaças. Já de Ellacuría, Sobrino diz o que pensa ser fundamental: na escola do mestre o discípulo aprende que o exercício da misericórdia ante um povo crucificado é a necessidade urgente em descê-los da cruz132. Gera um sentimento de compaixão impactante quando se lê o depoimento que Sobrino relata sobre a morte de seus seis companheiros jesuítas, no livro assim intitulado: Os seis jesuítas mártires de El Salvador133. A estampa da capa fala por si, ao trazer a figura dos mártires estirados pelo chão, e contar que durante à noite levaram três deles para fora onde foram assassinados e os outros assassinados dentro de casa juntamente com a empregada e a filha. É um momento do qual Sobrino escapou, pois, fazendo parte dessa comunidade de co-irmãos que juntos viviam, trabalhavam, sofriam e se alegravam durante muitos anos, se encontrava em “Hua Hin, a uns 200 quilômetros de Bangkok, Tailândia, dando um breve curso de cristologia”134, sua especialidade. Uma cristologia que se faz a partir da situação do pobre e sua ressurreição significam a esperança cotidiana. Foi nesse lugar, distante de seus amigos, que à noite, já dormindo, Sobrino recebeu um telefonema de 131 SOBRINO, Jon. Os seis Jesuítas Mártires de El Salvador. São Paulo: Loyola, 1990, p. 08. SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 28. 133 SOBRINO, Jon. Os seis Jesuítas Mártires de El Salvador. São Paulo: Loyola, 1990. 134 Ibidem p. 06. 132 52 Londres, de outros colegas, informando o massacre em meio à repressão das forças armadas em El Salvador, que dizia: “Aconteceu algo terrível. Ainda não tenho certeza, mas parece que assassinaram algum jesuíta da UCA, não sei se é o reitor”135. Saindo de sua cama ele foi ligar, e confirmou: toda a comunidade fora assassinada, mais a empregada e sua filha. Relata que esta realidade foi mais doída do que tantas outras em que ele ia apenas para celebrar o funeral e acalentar esperanças de dias melhores, pois ali se tratava de seus próprios co-irmãos, com quem partilhava sofrimentos e alegrias. Esta foi e é a realidade mais real de El Salvador e de toda a América Latina: a vida e a morte dos pobres. Assim dizia Sobrino: Não é exagero. Os meus longos anos em El Salvador, os meus trabalhos até com riscos e conflitos, situações difíceis, mais ainda, minha própria vida religiosa e sacerdotal pareciam-me muito menos decisivas que a morte dos meus irmãos e pouco reais comparadas com essas mortes. Experimentei um corte real na minha vida e um vazio que nada poderia preencher136. A história de Sobrino se identifica com a dos pobres da América Latina, pois a eles, ele se mistura e têm o respeito. Sentem-no como um defensor seu. Mistura-se com a morte dos mártires latino-americanos e dos que lutam em defesa dos direitos humanos e promoção da vida. Citando o testemunho dos mártires, junto aos quais ele deveria estar inserido, assim o diz: Nunca negaram qualquer pedido do povo, desde que fosse possível atende-lo. Nunca buscaram subterfúgios no trabalho acadêmico para se esquivar, como se o saber universitário não estivesse também submetido à exigência ética e prática primária de responder ao clamor das maiorias populares. Por isso, a fonte, exigente e inspiradora, de todo o seu trabalho e de todo o seu serviço foi essa compaixão e misericórdia que se converteu para eles em algo verdadeiramente primeiro e último. A linguagem que usavam como universitários era a da ‘justiça’, ‘transformação das estruturas’, ‘libertação’, inclusive num certo sentido a da ‘revolução’; mas não era uma linguagem fria, puramente ideológica ou política, pois atrás dela estava a linguagem do verdadeiro amor pelo povo salvadorenho, a linguagem da misericórdia”137. Sua vida confunde-se ainda com a Teologia da Libertação a qual sistematiza teoricamente o sofrimento do pobre dando a esse campo do saber a riqueza e a credibilidade da Teologia para o diálogo com o mundo moderno. Sobrino é um pensador profundamente moderno, inserido nas problemáticas muito atuais e presentes que se constituem como desafio para o mundo, que nem a democracia, o capitalismo e o socialismo foram capazes de responder. Na sua vivência 135 Ibidem p. 07. Ibidem p. 09. 137 Ibidem p. 17 136 53 traz como princípio fundamental a luta misericordiosa, a compaixão, a responsabilidade, a esperança e a cooperação como fator estruturante de superação ao fenômeno da pobreza. A iminência é fazer descer da cruz os povos crucificados que leva também à crucificação, ao martírio, à morte. O martírio é a síntese mais cabal da sintonia entre a fé e o amor á justiça, a lealdade com a verdade que se faz presente no rosto do empobre-cido. Daí brota a experiência mística, não da especulação ou do ascetismo, mas a experiência envolvente daquele/a que se comove com o outro e não lhe é indiferente. Ao que Sobrino nos diz: “Não há fé nem evangelização sem encarnação. E num povo crucificado não há encarnação sem cruz”138. Neste sentido o teólogo espanhol Juan José Tamayo diz que é função do teólogo tirar “a espiritualidade do mundo da ascética. A espiritualidade não é uma atividade autônoma do sujeito. Ela é constitutiva do ser humano e se converte numa dimensão necessária à libertação”139. E continua destacando “a conexão entre espírito e prática, libertação e seguimento de Jesus. A santidade não pode ficar na esfera privada, mas deve influir na mudança das estruturas”140. No encontro entre espiritualidade e libertação deve haver a santidade política, ou seja, a política como forma de exercer a caridade e praticar o bem comum. Essa deveria ser a mística da política a ser buscada e exercida com toda força. Viver desse modo é lançar luz sobre a realidade. O martírio tem luz própria. Diante da pergunta do por que se mata?, a resposta torna-se absolutamente simples: “mata-se aquele que estorva”141, dizia Dom Romero. Ao dizer a verdade sobre a realidade, ao analisar suas causas e propor melhores condições confronta-se com os poderes deste mundo. A busca da verdade e o empenho-amor pela justiça geram ultimidade ou sentido último para a vida, como salvação que possibilita uma esperança concreta e por isso, verdadeira. Sobrino nos recorda que é urgente reter o fundamental: libertação é correlativo de opressão, e a opressão e a injustiça persistem e aumentam na forma de crescente empobrecimento do terceiro mundo, na forma de um distanciamento maior e sempre mais inumano entre países ricos e pobres, na forma de conflitos bélicos (...) na forma de desculturalização através da imposição de culturas comerciais estrangeiras... A opressão não é moda. Os clamores dos oprimidos continuam chegando ao céu, cada vez com 138 Ibidem p. 67. TAMAYO, Juan José. Entre o martírio e a libertação. JORNAL EL PAÍS, 13-03-2007. 140 Ibidem. 141 SOBRINO, Jon. Os seis Jesuítas Mártires de El Salvador. São Paulo: Loyola, 1990, p. 27. 139 54 mais força. E Deus hoje continua recolhendo os clamores, continua condenando a opressão e animando a libertação142. O traço característico da cristologia de Sobrino, muito presente na teologia da libertação, é a ênfase no Jesus histórico, no Jesus que vem narrado nos evangelhos. Trata-se de alguém marcado pelo princípio misericórdia, pela dinâmica da hospitalidade e da acolhida. Em Jesus transparece a face de um Deus amoroso, com entranhas de ternura e misericórdia, que se compadece dos mais pobres e excluídos. Para Sobrino, o Jesus histórico é o ponto de partida da cristologia. A preocupação central de Sobrino é, sem dúvida, com a vida dos pobres que estão crucificados na América Latina. A retomada do Jesus histórico seria, a seu ver, um poderoso antídoto contra os séculos de exercício de uma fé no Cristo que foi incapaz de enfrentar a miséria da realidade. Para compreender a cristologia de Sobrino, diz a carta de solidariedade, publicada pelo 2º Fórum Mundial de Teologia e Libertação, realizado em Nairóbi, no janeiro de 2007, às vésperas da notificação de Sobrino: “é necessário não somente ler o conjunto de seus escritos ou escutar suas conferências, suas reflexões, suas palavras de cabeça iluminada pelo coração e pela fé. É necessário percorrer o mesmo caminho, chegar ao mesmo lugar e ler honestamente os escritos desde os profetas e, sobretudo, o evangelho de Jesus”143. E continua “Sobrino é o mestre que está ajudando mais de uma geração a dar o salto do dogma abstrato, do sonho dogmático, ao encontro do Cristo vivo em seu contexto, em seu lugar teológico que é o povo pobre”144. Nessa perspectiva afirma-se que, se a cristologia de Jon Sobrino causa alguma perturbação, isso tem menos a ver com doutrinas dogmáticas do que com atitudes práticas. De fato seu ensino cristológico recupera a autoridade evangélica dos pobres, a preferência de Deus por revelar-se aos pobres. Esta insistência é sempre escandalosa, mas é de Deus, de Jesus, antes de ser de Sobrino145. Para falar, com credibilidade, em Deus na América Latina e seu discurso ser relevante necessita que a teologia – ciência cujo objeto de investigação é Deus – faça corajosamente a pergunta que lhe é fundamental: onde está Deus? O que posso saber sobre ele? Tendo ele o rosto de Jesus de Nazaré, qual é a veracidade de sua experiência fundante? 142 Ibidem p. 62. Carta do 2º Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Homenagem a Jon Sobrino e François Houtart. Nairóbi, em janeiro de 2007, http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=26715; acessado em 07 – 03 – 2007. 144 Ibidem. 145 Ibidem. 143 55 Nisso não resta dúvida que os escritos de Sobrino são contemporâneos, como têm uma grande contribuição a oferecer para a compreensão desse tempo; não para escamotear ou falsificar a busca da verdade como se comumente faz em elucubrações abstratas que pouco falam à nossa situação, mas deter na problemática buscada. O esforço e a tentativa de Sobrino é claramente elaborar uma teologia a partir do lugar que se fala – do pobre - e ao tentar sistematizar, encontra a vida circunstante e existencial mais clamorosa. O seu intuito é levar a teologia cristã in locus a estar “consciente da necessidade de se comprometer com o mundo, e por isso procura determinar qual é a realidade deste mundo no qual se realiza a atividade teológica”146. Caracterizar as realidades deste mundo é partir do mundo sofredor. 2.2 - América Latina: um continente de realidades vulneráveis e povos crucificados Há no mundo diferentes realidades e situações que exigem uma resposta concreta. O contexto latino-americano apresenta uma realidade peculiar a ser contemplada: são “as vítimas deste mundo” ou “os povos crucificados”, clamando por compaixão e misericórdia. Essa situação concreta de sofrimento e de morte constitui o lugar a partir do qual Sobrino procura desenvolver sua teologia. É uma teologia situada no contexto histórico do continente latino-americano, marcado pela pobreza causada pela injustiça e pela opressão dos poderosos e dominadores deste mundo. Essa situação concreta e definida, como “vítimas deste mundo”, exige uma resposta também definida que, na compreensão sobriniana, se dá pela misericórdia e compaixão como resposta eficaz. Para entender o “por que” Sobrino desenvolve a categoria misericórdia como base e princípio estruturante, faz-se oportuno verificar as estruturas que mantém, historicamente, a maioria da população em situação de pobreza como forma de violência mais duradoura e também de violência cometida com ignomínia profunda, que a Teologia chama de pecado social, a Sociologia chama de desigualdade social, o Direito chama de impunidade e assim por diante, em relação aos 30 milhões147 pessoas humanas que anualmente morrem de fome ou de doenças relacionadas com a fome. 146 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 47. SELLES, Christian. A fome: as cifras de uma vergonha mundial. http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=1778; acessado em 06-12-07. Cf. também o Relatório revelado pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) durante a apresentação do informe anual, em 16 de outubro de 2002. 147 56 A compreensão do princípio misericórdia requer neste sentido uma análise que, em muito, as ciências sociais podem oferecer sua contribuição. A percepção de Sobrino acerca da realidade de em-pobre-cimento no Continente está vinculada a um fenômeno de causa e feito, sobretudo em contexto de neoliberalismo e globalização que agrava as injustiças em países periféricos com sistemas ainda não-estruturados. É a percepção de que a injustiça que produz a pobreza é encoberta e camuflada, a dimensão ética pervertida, a mentira e a corrupção são institucionalizas. A reflexão das ciências sociais é uma mediação importante para o entendimento das realidades pobres nos chamados “países periféricos”. Refletir acerca dessa realidade perversa de morte é o princípio sobre o qual assenta a preocupação comum do saber científico da bioética, composta pela inter-disciplinaridade. Nelas caracterizam o confronto moral e o conflito ético, os quais afetam e determinam a força, o ânimo e a vitalidade do indivíduo e, consequentemente, de uma coletividade. Segundo Garrafa, nesse meio, é indispensável à dignidade e sobrevivência humanas a obrigatoriedade na “pauta dos pesquisadores uma bioética transformadora, comprometida e identificada com a realidade dos chamados países em desenvolvimento”148. Tal comprometimento toma a sério os problemas da pessoa e da vida para quem a ciência deve estar voltada. Levar em consideração a pessoa que vive em contexto periférico e os conflitos daí resultantes devem ser responsavelmente analisados com teorias éticas que emergem de suas circunstâncias, para não acorrer em atitudes que pode provocar um esvaziamento de conteúdo e crescente despolitização de conflitos morais. Isso seria agravante pelo fato do distanciamento da reflexão sobre a realidade. Neste sentido a ciência deve estar livre para investigação e comprometida com as realidades circunstanciais donde ela se realiza. A liberdade que têm as ciências deve dálas a percepção da realidade mais flagrante de nosso mundo e sobre a reação mais necessária a ela. No caso da América Latina, cabe perguntar o que teria a ciência para investigar? Ao nível da “dignidade humana”, para Sobrino, “se poderia dizer que as coisas vão melhor, pois o mundo moderno, a Constituição dos Estados Unidos, a Carta dos Direitos Humanos das Nações Unidas, etc., proclamaram a igualdade de dignidade e de direitos de todos os seres humanos. Mas a realidade não é assim”149. 148 GARRAFA, Volnei e PORTO, Dora. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In GARRAFA, Volnei; PESSINI, Léo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 35. 149 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 21. 57 Na verdade, verifica-se no continente latino americano, bem como, em quase todo o hemisfério Sul do mundo, uma realidade de iniqüidade. Os pobres que vivem aqui são na terminologia de Gustavo Gutierrez, “aqueles que morrem antes do tempo”150. Tratase da morte indireta, mas eficaz. Na terminologia de Márcio Fabri dos Anjos, uma situação de mistanásia151. Para expressar a pobreza em estado absoluto vivida no Continente o conceito de pobre torna-se insuficiente, necessitando enfatizá-la como extrema-pobreza. O pobre em extremo é aquele que não tem terra, não possui trabalho estável, vive na indigência, com alimentação insuficiente para não dizer fome crônica, não tem acesso aos serviços de saúde e assistência, com níveis mínimos de educação e vive em ambiente totalmente contaminado. “A sobrevivência de quem vive em extrema pobreza é quase inexplicável. São cadáveres vivos, que vivem, quotidianamente, com a morte no meio deles”152. Aí há um mínimo físico e material, abaixo do qual a vida humana é impossível. Um imperativo que se coloca é que ninguém pode ser excluído da satisfação 150 SOBRINO, Jon. Opção pelos pobres. In: SAMANES, Cassiano Floristán e TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. Tradução de FERREIRA, Isabel Fontes Leal e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p. 528-540. 151 ANJOS, Márcio Fabri dos. Eutanásia em chave de Libertação. Boletim ICAPS, Ano 7, Nº 57, 1989, p. 06. “Ao entender a eutanásia como ‘morte suave, feliz’, a primeira situação que nos ocorre para contextualizá-la é o seu contrário. Parece importante falar, então, da morte infeliz, dolorosa, que chamaríamos de mistanásia. Isto nos remete, dentro da área da biomedicina, aos pacientes terminais e sofredores, seja pela convicta recusa em não se interferir no processo de morte, seja pelo mau atendimento médico-hospitalar. Mas nos remete também muito além da área hospitalar. E nos faz pensar na morte provocada de formas lentas e sutis por sistemas e estruturas. A mistanásia nos faz pensar os que morrem de fome, cujo número apontado em estatísticas é de estarrecer. Faz lembrar, de modo geral, a morte do empobrecido, amargado pelo abandono e pela falta de recursos os mais primários. Mas também nos remete aos mortos nas torturas de regimes políticos fortes e que os deixam por fim como desaparecidos. Nesses casos, a mistanásia (do grego mis = infeliz + do grego mys = rato), é uma verdadeira ‘mustanásia’, morte de rato de esgoto”. Cf também MARTIN, Leonard M. A ética médica diante do paciente terminal. Aparecida-SP: Santuário, 1993, p. 248. Este autor ressalta que “Este termo designa a tentativa de pensar a bioética a partir do sofrimento dos pobres. Márcio Fabri dos Anjos é um dos primeiros a abrir caminho neste sentido quando nos aponta para algumas das conseqüências de começar a reflexão bioética a partir dos pobres”. Isso se verifica com a publicação do artigo “Bioética a partir do Terceiro Mundo”, de Márcio Fabri dos Anjos, contido no livro Temas Latino-Americanos de Ética. Aparecida-SP: Santuário, 1988. Cf. também PESSINI, Leocir. Eutanásia e América Latina. questões ético-teológicas. Aparecida-SP: Santuário, 1990, p. 127. Uma análise que deve ser feita neste contexto é quanto à morte precoce e injusta não de apenas alguns indivíduos, mas de uma verdadeira multidão. A morte nesse ambiente não é caso de eutanásia, mas de indignidade porque acontece antes do tempo. Estamos falando aqui de vidas abreviadas não somente de algumas pessoas a nível médico-hospitalar, mas de uma verdadeira multidão a nível social. Situamo-nos aqui frente às situações das gritantes desigualdades sociais. Na América Latina urge ampliar o horizonte da questão de saúde médico-hospitalar (eutanásia e distanásia), passando do nível individual para a dimensão social da prevenção e proteção dos indivíduos. 152 ELLACURÍA, Ignácio e RICHARD, Pablo. Pobreza/Pobres. In: SAMANES, Cassiano Floristán e TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. Tradução de FERREIRA, Isabel Fontes Leal e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p. 619-635. 58 de suas necessidades básicas. Ninguém tem o direito de excluir o outro de suas necessidades. Tal realidade foi, em linguagem poética, assim captada por Manuel Bandeira: Vi ontem um bicho; Na imundície do pátio; Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem153. Nas palavras de Sobrino, Esta pobreza-muerte, globalizante y en aumento, es lo que en sí misma se constituye en interpelación – “irrumpe” – para el ser humano. Es interpelación ética, pues la pobreza-muerte expresa en sí misma el mayor de los males morales, el pecado fundamental objetivo como aquello que da muerte, y desenmascara el pecado fundamental subjetivo, el egoísmo estructural o la estructuración de los egoísmos que la producen. Es interpelación a uma práxis, pues clama objetivamente por su erradicación y exige la movilización de todas las fuerzas del espíritu humano para llevarla a cabo, para reorientar, transformar y revolucionar la realidad de este mundo en la dirección de la vida. Es interpelación al sentido de la vida, personal y colectivo; exige tomar postura ante la pergunta de si la historia tiene o no solución, de si es más sabia la esperanza o la resignación, de si la supremacia la tiene el amor o el egoísmo. Religiosamente, plantea la pregunta por la verdadera divinidad y por lo último, por el Dios de la vida o los ídolos de muerte154. Nas palavras de Inácio Ellacuría, apud Ferraro, o sinal mais evidente dos indivíduos no continente é a existência de um “povo crucificado”, e a exigência mais primigênia é a de “descê-lo da cruz” 155. A linguagem da “cruz” é útil e necessária em nível histórico-ético por poder exprimir um tipo de morte ativamente provocada. “Morrer crucificado não significa simplesmente morrer, mas ser morto; significa que há vítimas e que há verdugos; significa que existe um gravíssimo pecado”156. Nesse lugar social, marcado pelo grito silencioso das massas, que o teólogo Jon Sobrino chama de “vítimas deste mundo”, “faz-se urgente a experiência da libertação 153 BANDEIRA, Manuel. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador: Sal Terrae, 1992, p. 54. 155 FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 23. “Entende-se aqui por povo crucificado aquela coletividade que, sendo a maioria da humanidade, deve sua situação de crucificação a uma ordem social promovida e sustentada por uma minoria que exerce seu domínio em função de um conjunto de fatores que, como conjunto e dada sua concreta afetividade histórica, devem ser considerados como pecado”. 156 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 85. 154 59 diante da opressão, do sofrimento, da perseguição e morte a que estão submetidos em suas vidas cotidianas”157. Nesse ambiente, próprio de um espírito capitalista excludente, os pobres são massas sobrantes que clama por uma “ação de amor estruturante” ao qual Sobrino denomina “misericórdia”. Trata-se do “amor práxico que surge perante o sofrimento alheio injustamente infligido para erradicá-lo”158. Para tanto, faz-se necessário deter nos fundamentos das estruturas que provocam as “iniqüidades” ou as “feridas” que estamos abordando, o que será feito em linguagem teológica, ou seja, do lugar da perspectiva sobriniana. Sua exposição torna-se viável para a compreensão do princípio misericórdia e a contribuição deste para a bioética de cunho latino americano. A pobreza em suas estruturas, na compreensão da Teologia da Libertação, é o efeito de uma violência e de um pecado primordial – el mysterium iniquitatis - que deve ser cuidadosamente analisado. 2.2.1 - A opressão como fenômeno histórico Na América Latina a constatação mais evidente é a presença dos sinais de morte. Sobre essa constatação, de nível estrutural, Antônio Moser sugere que uma concepção meramente individual, intimista e atomizada do pecado já não respondem mais a realidade dos fatos. “O mal que nos afeta parece localizar-se num nível bem mais profundo do que aquele das relações pessoais e interpessoais”159. “É diante destas insuficiências... que a teologia latino-americana se vê forçada a duas coisas: a colocar o pecado como tema teológico central e a buscar uma compreensão que repouse sobre outras coordenadas”160. Aqui surge a compreensão do pecado como “pecado social”. Essa compreensão não é fruto de especulações mais ou menos articuladas e iluminadas, mas resultante de uma experiência vivida no contexto do mal desagregador das pessoas e da sociedade. 157 O sistema não tem interesse nesta população supérflua e, por isso, não investe nela para a satisfação de suas necessidades básicas: trabalho, saúde, habitação, educação, etc. Começa um processo de empobrecimento cujo limite é a morte. O deterioramento é total: econômico, social, cultural, corporal, humano, familiar, religioso, ético... O sistema considera como lixo, como ratos, como algo que é preciso eliminar”. Ibidem p. 99. 158 Ibidem p. 35. Esse amor é típico daquele caracterizado por um pensamento mais amplo de “amor mundi”. “Nem liberal, nem marxista, nem conservador, o traço característico do pensamento arendtiano pode ser definido como o amor mundi, o ‘amor do mundo’, em que o genitivo tem o sentido de ‘por amor ao mundo’ ou ‘amor pelo mundo’ em que a principal contribuição desse modelo para os nossos dias é essa capacidade única de unir mística e ação, política e contemplação, compaixão e senso de justiça, experiência e práxis. Ou seja, um pensamento habitado pelo extremamente humano, que possa dar mais credibilidade ao próprio pensamento e, consequentemente, ao próprio fato de ser humano. 159 MOSER, Antônio. O Pecado Social em chave Latino-Americana. In: ANJOS, Márcio Fabri dos. Temas Latino-Americanos de Ética. Aparecida-SP: Santuário, 1988, p. 68. 160 Ibidem p 68. 60 Não basta apenas saber e reconhecer as genéricas situações de violência contra as maiorias pobres, situações de dependências dos esquemas de dominação, violação dos direitos humanos; a evidência do império e domínio do dinheiro sobre a lei e a justiça. É bom estar atento aos qualificativos “estruturas de pecado”, “pecado estrutural” e “estruturas pecaminosas” que são expressões típicas do pensamento teológico. Contudo, todas essas expressões designativas da configuração do pecado, embora situadas em níveis diferentes de análise, querem ressaltar as condições subumanas em que vivem mais da metade dos seres humanos. “O olhar da fé percebe aqui um verdadeiro pecado. Essas condições conduzem à morte e ao desespero, em todos os sentidos. Se o pecado é o que desumaniza, no sentido forte do termo, então aqui se encontram manifestações de pecado que não remetem aos que são vítimas dele, mas a outros agentes”161. Aqui Antônio Moser quer pontuar acenando para a compreensão do “pecado social”. O “pecado social” consiste nas violações de direitos humanos, violências institucionalizadas, condições subumanas para a maioria de uma população, as condições históricas da fome, analfabetismo, doenças endêmicas, condições habitacionais inadequadas, miséria, etc. que parecem ter sempre existido. Mas é uma situação que nunca existiu em nível de consciência e de condições históricas para percebê-los e nem para removê-los como nos tempos modernos e pós-modernos. Historicamente, existia sim uma consciência e anseio da necessidade de que alguma coisa devesse ser feita acerca dessa dilapidação, no qual se poderiam nomear dois pensadores do início da era cristã que caracterizavam essa desordem reinante na sociedade como “usurpação”. Basílio é um deles que não usa meios termos para investir contra os que se apropriam dos bens de todos: “Tu és semelhante ao homem que, reservando uma vaga no teatro, queria impedir os outros de entrarem, e desejaria gozar sozinho do espetáculo ao qual todos têm direito. Assim são os ricos: dos bens comuns que se apoderam, eles se decretam os únicos donos, por terem sido seus primeiros ocupantes”162. E continua: Aquele que despoja um homem de suas vestes será chamado de ladrão. E o que não veste a nudez do mendigo, merecerá outro nome?... Tornaste-te um explorador ao apropriar-te dos bens que recebeste para administrá-los. O pão que te reservas pertence ao faminto; ao nu, os vestidos que conservas em teu armário; ao descalço, o calçado que apodrece em tua casa; ao necessitado, o dinheiro que escondes em tua arca. Assim, pois, cometes tantas injustiças, quantos são os homens aos quais poderias socorrer163. 161 Ibidem p 71. Ibidem p 87 163 Ibidem. 162 61 Num outro texto Basílio, inflamado, assim interroga os ricos: Que responderás ao Juiz, tu revestes e adornas as paredes e recuas a cobrir o corpo do necessitado? Tu que atavias os cavalos e olhas com indiferença os farrapos e o aspecto repugnante de teu irmão? Tu que deixas apodrecer o trigo, enquanto contemplas, passivamente, os estragos que a fome produz em teu redor? Tu que enterras o ouro e desdenhas o que geme sob o peso do trabalho?164. Poder-se-ia também citar Ambrósio ao dizer que, quando o rico socorre o pobre, não faz mais que sua obrigação: “Não é teu o bem que distribuís ao pobre, apenas restituís o que é dele. Por que te és o único a usurpar o que é dado a todos para o uso de todos? A terra pertence a todos, e não somente aos ricos”165. Assim poderia citar vários outros, mas dá para perceber o anseio e a necessidade que existia de se fazer alguma coisa, bem como o alto senso de justiça por parte, sobretudo, de alguns homens. Assim Antônio Moser procura chamar a atenção numa equiparação dessa situação no passado com a situação histórica vivida hoje: A alimentação insuficiente remetia mais para fatores climáticos; o analfabetismo para a falta de instrumentos adequados; as doenças endêmicas para o relativo atraso da medicina; e assim por diante. Hoje, contudo, o mundo produz, efetivamente, mais alimentos do que o necessário; as leis do comércio é que impedem que todos tenham o que comer. Existem condições reais para acabar com o analfabetismo num curto espaço de tempo. Existem condições reais para se implantar um saneamento básico, preventivo, que eliminaria a maioria das doenças dos empobrecidos... Para tanto, bastaria que os recursos disponíveis fossem devidamente encaminhados: não para alimentar o consumismo e a corrida armamentística, mas para suprir as reais necessidades de todos. Se isso não ocorre é porque convém que haja famintos, analfabetos, desabrigados, doentes crônicos. É toda uma estrutura econômica, social, política, que vive disso166. Por aí se percebe que essas situações históricas sempre existiram, e a diferença hoje é que sabemos situar, com clarividência, os mecanismos repressores que são responsáveis pelo seu entravamento. E pode-se perguntar, por que a denominação de pecado estrutural ou pecado social? Na percepção de Moser “estas condições só aparecem com o advento das ciências do social, que sofreram muitas resistências para serem incorporadas pela Teologia”167. Um outro problema ao tratar do tema do pecado estrutural está na questão de identificar a “raiz” ou a “causa” deste tipo de pecado. Assim Jung Mo Sung pergunta: “Onde se encontra a raiz do pecado social? É na pessoa ou na sociedade?... são os 164 Ibidem p. 88. Ibidem. 166 Ibidem p. 72. 167 Ibidem p. 73. 165 62 egoísmos individuais ou os coletivos que geram estruturas de pecado?”168. Antônio Moser responde dizendo que “desde Durkheim fica claro que o social é uma coisa de relações até certo ponto autônoma, ou que ao menos ultrapassa o plano pessoal; o social, de alguma forma e também externo, mas atua poderosamente sobre as pessoas”169. Ele tem claro que, as estruturas sociais foram criadas por seres humanos e são seres humanos concretos que as alimentam. Entretanto as estruturas possuem uma lógica própria. A pessoa não faz exatamente o que quer mas exerce sua liberdade dentro dos limites de suas condições pessoais e sociais. Cada pessoa faz sua história, mas não a faz sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defronta diretamente, legadas pelo passado170. Com isso Moser quer afirmar dois pólos que se inter-relacionam dialeticamente como mão dupla numa interdependência entre pessoa e a sociedade, ou seja, “das pessoas para a sociedade e da sociedade para as pessoas. Ao mesmo tempo que a sociedade é trabalhada pelas pessoas, essas também são trabalhadas pela sociedade”171. Para ele não há dúvida de que o núcleo central desse círculo de pecado social é a pessoa, que a fé diz nascer no coração humano. O círculo, que é o social, é constituído pelo núcleo como sendo a pessoa. Nessa relação o círculo também possui sua relativa autonomia presente nas estruturas, nas instituições onde estão presentes esses pecados sociais. Os três instrumentos que Moser aponta para aprofundar essas estruturas e estão a seu serviço podem ser assim descritos: o primeiro representado pelos meios de comunicação social. “Aqui as vítimas aparecem sempre como figuras ridículas, submissas, pouco confiáveis”172. Um segundo instrumento “é representado pela legislação. No contexto da América Latina as leis não são feitas nem com a participação do povo, nem em favor dele. São feitas pelos que detém o poder econômico e em favor deles”173. E, por fim, “as estruturas econômicas são tais que, tanto a nível de pessoas, quanto de nações, dificilmente alguém escapa da sua categoria: pobre vai continuar sempre pobre; subdesenvolvido vai continuar sempre subdesenvolvido; negro vai continuar sempre negro...”174. 168 SUNG, Jung Mo. Sujeito e Sociedades complexas. Para repensar os horizontes utópicos. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002, p. 143. 169 MOSER, Antônio. O Pecado Social em chave Latino-Americana. In: ANJOS, Márcio Fabri dos. Temas Latino-Americanos de Ética. Aparecida-SP: Santuário, 1988, p. 74. 170 Ibidem p. 74. 171 Ibidem p. 75. 172 Ibidem p. 76. 173 Ibidem. 174 Ibidem. 63 Esses autores convergem para a mesma concepção de pecado social ou estrutural e aponta para a pergunta sobre a responsabilidade do pecado estrutural. Antônio Moser se pergunta onde afinal se encontra a raiz última do pecado social? Qual é a responsabilidade das pessoas concretas, ou eventuais grupos menores, no pecado social? Em J.G. Faus e Marciano Vidal encontram-se um esclarecimento: Não é correto falar de ‘pecado estrutural’ sem relacioná-lo com a pessoa. Cortando-se esta sua vinculação com o mundo pessoal, o ‘pecado estrutural’ não pertence mais à categoria da culpa, que exige a responsabilidade pessoal; é, ao contrário, uma concreção da fé no determinismo histórico ou no estruturalismo materialista. A culpabilidade das estruturas consiste no fruto, na acumulação e concentração de muitos pecados pessoais175. Moser vai dizer que “normalmente se coloca como raiz desta configuração de pecado o egoísmo”. Que “ora se acentuam mais os egoísmos individuais, ora os coletivos. Como negação do amor, o egoísmo impede as relações e as estruturas de justiça”176. Mesmo assim, sempre sobra a questão da responsabilidade primeira: são os egoísmos individuais ou os coletivos que geram as estruturas de pecado?”177. Esta é uma questão que Moser afirma ser séria, pois é determinante para uma práxis diferente. E “a resposta a esta questão possivelmente não esteja numa alternativa ‘ou/ou’, mas numa conjuntiva ‘e/e’”178. Respondendo assim, numa compreensão dialética, não se deixa de perceber o peso das estruturas, mas também não se esvaziam eventuais responsabilidades de pessoas. Numa relação de impasse Mo Sung179 diz ser preciso distinguir a noção de culpa e responsabilidade. A culpa deriva da idéia de que erramos moralmente, seja por ignorância, fraqueza ou intenção de fazer o mal. Por isso, a relação do sujeito com a culpa é um correlato da degradação ou perda do sentido de dignidade ética. Já a responsabilidade está ligada a culpa quando somos agentes de infração ou omissão e de nós depende a seqüência dos efeitos reprovados. Como pertencentes de uma natureza consciente tornamo-nos co-responsáveis por problemas sociais que não são resultados direto de nossos atos. 175 FAUS, José Gonzáles e VIDAL, Marciano. Pecado estrutural. In: VIDAL, Marciano (Org.). Ética teológica: conceitos fundamentais. Petrópolis-RJ: Vozes, 1999, p. 366. 176 MOSER, Antônio. O Pecado Social em chave Latino-Americana. In: ANJOS, Márcio Fabri dos. Temas Latino-Americanos de Ética. Aparecida-SP: Santuário, 1988, p. 77. 177 Ibidem p. 77. 178 Ibidem. 179 SUNG, Jung Mo. Sujeito e Sociedades complexas. Para repensar os horizontes utópicos. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002, p. 139-154. 64 Daí, porém, a pergunta ética fundamental não deve ser qual é a ação econômica mais de acordo com os valores éticos, mas sim qual é a minha ou a nossa postura ética frente ao sistema econômico vigente. É dentro dessa dinâmica de estrutura econômica concreta que se encontra, segundo Mo Sung, as possibilidades e as tendências de ação dos agentes e produz os efeitos não intencionais e que devem ocupar um dos lugares centrais na reflexão ética. Assim diz que a “reflexão ética dos sistemas econômicos é fundamental para criticarmos a tentativa de naturalizar o sistema de mercado”180. Essa análise acerca do pecado estrutural ajuda compreender as cadeias produtivas de fenômenos persistentes e de anti-misericórdia no continente latino americano que perpetua por mais de cinco séculos, nada mudando substancialmente em suas formas de relações concretas: uma relação que se faz com a espoliação que ainda persiste. Trata-se do fenômeno que, historicamente, a América Latina convive, quando com a pretensão de descobrir novos mercados e colônias, países europeus puseram a descoberto a realidade na qual vivem submergidos e tentando, com os mesmos mecanismos de maneira mais elaborada, convencer até hoje. Agindo assim puseram em descoberto e desnudaram as pretensões do Primeiro Mundo as quais quiseram e tentam de toda maneira encobrir. Acerca disso Sobrino afirma que “na realidade é o Terceiro Mundo que descobre o Primeiro Mundo em seus aspectos negativos e em seus aspectos mais reais”181. Mas, hoje ainda, eles querem encobrir a realidade e seus interesses com relação ao Terceiro Mundo. Nas transações feitas, a maioria das vezes eles saem favorecidos, mas não mais encobertas. Essa relação evidencia, sempre mais, o verdadeiro interesse dos ricos e dos países de Primeiro Mundo, bem como o processo que se dá a construção histórica. Agindo assim estão privando do meio eficaz de “se conhecer em sua verdade mais profunda: a realidade do Sul, com toda sua pobreza, injustiça e morte..., como num espelho invertido pelo que produz”182. 2.2.2 - Pretensões colonizadoras no presente da América Latina Visto como acontecimento que contribuiu para nova visão de mundo no século XVI, a chegada dos portugueses e espanhóis em novas terras pode ser considerada como 180 Ibidem p. 153. SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 114. 182 Ibidem p. 115. 181 65 fato fundante para as relações assimétricas entre a Europa e América Latina, centro e periferia, num processo de destruição e saqueamento dos bens, violência e mortes dos povos primitivos praticadas por uma sede insaciável de riqueza e poder a todo custo dos verdugos183. Uma competição desleal, até hoje não superada. A participação comum nos bens deste mundo se faz cada vez mais distante, quando se vê aumentando o abismo entre as rendas produzidas. Fala-se que atualmente está havendo uma melhor distribuição de renda na América Latina, mas não é novidade que a capacidade de produção também aumentou significativamente engordando ainda mais àqueles que já possuíam. Para Jon Sobrino as razões fundamentais desse escândalo que já duram séculos estão em que “os países pobres só interessam pelo que podem oferecer: matérias-primas e mão-de-obra barata”184. Mas alerta para algumas mudanças ainda mais grave nessa relação do passado e a situação no presente: 1) la acumulación del capital depende cada vez menos de la intensidad de los recursos naturales y del trabajo, y cada vez más de los conocimientos tecnológicos, con la siguiente consecuencia: el Tercer Mundo sigue siendo importante por sus materias primas (aunque ya no tanto), pero no lo es ya su población. Lo que ya no se necesita es la mayor parte de la población del Tercer Mundo. Esta población sobrante ya no interesa, simplemente; 2) en el reparto geopolítico, se sigue necesitando del Tercer Mundo, sus mares, sua aire, su naturaleza, aunque sea únicamente como vertedero para los residuos venenosos; 3) El Tercer Mundo sigue teniendo una relativa importancia, pero lo que ya no se necesita es la mayor parte de la población del Tercer Mundo...185. Essa relação díspar está evidenciando, a partir do século XXI, uma nova configuração: a bipolarização do Norte contra o Sul, sendo este último o lugar regionalizado do sub-desenvolvimento permanente, caracterizado pela dependência e pela extrema pobreza. “Os conquistadores da América Latina deixaram-na como um Cristo”186, sem atração nenhuma. E agora, depois de espoliada e saqueada, vive-se um total desinteresse por ela, numa indiferença que parece estratégia de imunização contra àqueles que sobram. Isso é evidente nas políticas de imigração dos EUA e Europa em nossos dias, num processo de seleção e eugenia o qual todos sabem. 183 Ibidem p. 125. Antônio Montesinos diante da crueldade praticada contra os povos primitivos da América Latina, dizia: “estes, não são homens? Não têm almas racionais? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis isto? Não sentis isto? Como estais dormindo em tanta profundidade de sono tão letárgico?”. 184 Ibidem p. 119. 185 SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador: Sal Terrae, 1992, p. 119-120. 186 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 121. 66 Há um mistério que deve ser explicado: se os investimentos empresariais, a ajuda estrangeira e os empréstimos internacionais aumentaram de forma espetacular na última metade do século passado, como é possível que a pobreza também tenha aumentado? Na segunda metade do século XX, os bancos e as indústrias do primeiro mundo investiram muito nas regiões pobres da Ásia, África e América Latina. As multinacionais são atraídas pelos abundantes recursos naturais e alto rendimento devido aos baixos salários, e a quase total ausência de impostos sem contar os incentivos para suas instalações, sem regulamentos ambientais, direitos trabalhistas e custos de segurança nesta área187. A arrecadação obtida com a força de trabalho barata no estrangeiro não se transforma em preços baixos para seus consumidores de outros lugares. Contratam-na para aumentar a margem de lucro. Essa perversidade pode ser exemplificada pelo relato de Michael Parenti, “Mistério: como a riqueza causa a pobreza no mundo”, ao mencionar que em 1990, os calçados feitos por crianças indonésias que trabalhavam 12 horas diárias por 13 centavos a hora, custava somente 2,60 dólares, mas era vendido por 100 dólares ou mais nos EUA188. Jon Sobrino refere-se a Melquisedek Sikuli que reconhece entre os povos africanos imensos problemas como a miséria, injustiça, crianças desprezadas, mulheres violadas e aldeias saqueadas que expressam no fundo, o pecado do colonialismo. Não se dissimula os males próprios, o que ilustra com o drama de crianças soldados: “Cuando no se tiene a nadie en el mundo, ni padre, ni madre, ni hermana, y se es todavía un niño, en un país arruinado y bárbaro, en donde todos se matan” se pergunta, o que fazer? “Se empieza a ser niño soldado para comer y matar: es todo lo que nos queda”189. A colaboração feita pelos EUA aos países estrangeiros normalmente ocorre junto com o investimento multinacional que subvenciona a construção da infra-estrutura necessária às empresas do terceiro mundo: portos, estradas e refinarias. É uma ajuda condicionada. Concomitantemente deve ser gasta em produtos dos EUA, e se pede à nação receptora que dê preferência de investimentos às companhias americanas, substituindo o consumo de mercadorias e alimentos domésticos por outros importados, criando maior dependência, fome e dívida. A ajuda procede também de outras fontes 187 PARENTI, Michael. Mistério: como a riqueza causa a pobreza no mundo. http://textosavozdopovo.blogspot.com/2007/03/mistrio-como-riqueza-causa-pobreza-no.html; acessado em 06-12-07. 188 Ibidem. 189 SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 102-103. 67 que os países latino americanos bem conhecem. As Nações Unidas, “preocupada” com o desenvolvimento dos países pobres, criaram o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. É estabelecido que a presidência do FMI esteja sob a permanente tutela dos EUA, e do Banco Mundial sob a tutela da União Européia. O poder de voto de ambas as organizações está estabelecido segundo a contribuição financeira de cada país. Como maior doador os EUA têm a voz principal. O FMI opera em segredo com um grupo seleto de banqueiros e altos funcionários dos ministérios da economia, selecionados em sua maioria entre os paises ricos190. A finalidade do Banco Mundial e do FMI que seria de prestar assistência às nações pobres para o seu desenvolvimento acarreta na realidade outra coisa, como se vê: um país pobre ao solicitar um empréstimo no Banco Mundial para o fortalecimento de alguns aspectos de sua economia, se não puder pagar os elevados juros porque as exportações diminuíram ou por qualquer outra razão, ele será forçado a pedir um novo empréstimo, mas desta vez ao FMI, que impõe um “programa de ajuste estrutural”. Pressiona-se às nações devedoras para que privatizem suas economias e vendam a preços muito baixos suas minas, transportes ferroviários e serviços públicos às empresas privadas191. Essa é uma situação muito conhecida pelos países da América Latina. Os governos devem cortar os subsídios para a saúde, a educação, o transporte e os alimentos, a fim de gastar menos com seus habitantes para honrar com os pagamentos da dívida. Desse modo, estes países tornam-se cada vez menos capazes de alimentar a sua própria população e o “mistério” a cerca da pobreza passa a ser desvendado e já não existe mais, se é que existiu algum dia. Hoje nos encontramos em confronto de interesses: “a simples existência dos pobres do Terceiro Mundo pode não só fazer superar a ‘ignorância’ no Primeiro Mundo, mas também desmascarar a mentira”192, que Paulo, escrevendo à comunidade cristã de Roma, menciona como pecado fundamental que vicia a realidade humana, ou seja, “os 190 PARENTI, Michael. Mistério: como a riqueza causa a pobreza no mundo. http://textosavozdopovo.blogspot.com/2007/03/mistrio-como-riqueza-causa-pobreza-no.html; acessado em 06-12-07. 191 Ibidem. 192 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 128. Em pesquisa divulgada pelo Jornal Clarín, 40% da população latino-americana é pobre e 15,4% é indigente. A população pobre da América Latina corresponde a 209 milhões de pessoas, sendo 81 milhões de indigentes. REDAÇÃO. 40% da População latino-americana é pobre e 15% indigente, constatam bispos latino-americanos. JORNAL CLARÍN, 1605-2007. 68 homens mantêm a verdade prisioneira da injustiça”193. Essa realidade expõe as “verdadeiras soluções” que os países ricos oferecem: soluções que são meias verdades e não podem ser universalizáveis. Numa síntese do imperativo kantiano o que não pode ser universalizado não pode ser eticamente bom. Nem se pudesse ser universalizado todo o consumo dos países ricos, hoje é comprovado que a terra nem subsistiria. Vivendo em meio à pujança, em detrimento da distribuição com o faminto, constroem um gueto de pseudo verdades, um mundo sem sentido. É uma situação difícil de reverter ou de conversão. Isto porque existe em nossos tempos uma dificuldade de se reconhecer essa realidade fundamental: o pecado. Dentro do cristianismo o pecado é caracterizado como o mau uso da liberdade humana, e que por isso, desumaniza o humano. A liberdade assume um aspecto de centralidade dentro da cultura cristã. A cultura cristã acredita na compreensão evolutiva do pecado, sendo que alguns pecados não modificam a sua essência. Uma ação contra a vida é tida como violação, mau uso da liberdade que gera inquietudes e perturbações. Um assassinato é visto, por exemplo, como uma violação e atentado contra a vida, dom de Deus. Assim o pecado manifesta-se contra a dignidade, indo contra o próprio transgressor e o agredido. Mas sendo o fator liberdade um distintivo humano, creditado por Deus, conforme o cristianismo, a mesma violação que causou perturbação em alguma pessoa poderia não causar em outra. Isso mostra a complexidade da abordagem dentro de uma concepção atual caracterizada pelo subjetivismo e diante do pluralismo cultural e religioso. 2.2.3 - Em busca das causas da opressão Após se perguntar sobre a verdade da pobreza real é oportuno à nossa reflexão avançar analisando os reais interesses de manutenção dessa pobreza como fenômeno estrutural que a reflexão teológica denomina pecado social. Ela aparece como fenômeno que Eduardo Galeano aponta como as grandes veias abertas na América Latina194. Um questionamento que emerge é sobre a razão da persistência dessas vítimas e de manutenção da pobreza. Existe um interesse para que elas permaneçam? Em benefício de quem elas continuam persistindo? 193 Rm 1,18-19. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Tradução de FREITAS, Galeano de. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 194 69 Durante muito tempo de nossa história, a pobreza foi concebida como fruto da ignorância e da preguiça dos pobres ou do lucro e do egoísmo dos ricos, quando não do destino dos assim nascidos; colocou-se a ênfase somente nas causas morais e naturais, em detrimento das causas reais. Hoje sabemos que os pobres constituem fenômeno socialmente produzido. São reduzidos à pobreza (em-pobre-cidos) ou mantidos nela por uma organização econômica excludente, como é o caso do capitalismo do terceiro mundo. Os pobres emergem de classes oprimidas por opressores195. Benedito Ferraro afirma que “há os responsáveis mais diretos pela manutenção deste sistema de morte”196. Falar de responsabilidade humana de modo abstrato e geral corre-se o risco de responsabilizar diretamente o pobre, praticamente excluído dos poderes de decisões econômicas, políticas e estruturais de modo geral. Apesar da responsabilidade pessoal na perpetuação no fenômeno da iniqüidade, como foi analisada anteriormente, a quem se poderia atribuir diretamente, como fenômeno social, sua parcela de responsabilidade? 2.2.3.1 - O mercado Um dos mecanismos de opressão, exclusão e eliminação dos pobres hoje, na América Latina, é nitidamente o mercado. Não há dúvida que estamos diante de um sistema de morte que cobra caro para se manter vivo. Em nome do mercado e sua manutenção, sangra-se vidas inteiras, tirando, inclusive o necessário para satisfazer as necessidades básicas do indivíduo e de toda uma população. Vigora em nossos dias, e sempre ocorreu, uma disputa na Organização Mundial de Comércio por subsídios na tentativa de favorecer os que já são favorecidos pela “ordem” econômica. São os países do centro que se arvoram o direito de excluir os pobres do Terceiro Mundo, por não poderem produzir em nome do discurso falacioso da competência. Nesse espaço de disputas, que precisa do sangue dos pobres para sobreviver, há um automatismo que se apresenta como processo natural. É uma tendência automática ao desequilíbrio e à irracionalidade, que se manifesta não como um produto intencional de alguém, mas como efeito da própria estrutura de mercado. Tal automatismo se apresenta como natural. Porém, há os responsáveis pela manutenção dessa dinâmica. Os pobres dos países de Terceiro Mundo, e de modo geral, não têm rosto. São despersonalizados. Não tendo acesso aos bens de consumo eles não servem para o 195 BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. In: COMPAGNONI, Francisco et alli (Orgs.). Dicionário de Teologia Moral. Tradução de COSTA, Lourenço et alli. São Paulo: Paulus, 1997, p. 879. 196 FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 81. 70 mercado. Seus rostos variam de acordo com o que podem consumir. Ferraro ressalta que, O problema é criar necessidades para poder produzir mais e mais. O anúncio de produtos que podem ser produzidos é tal que gera uma competição sem precedentes na história. Ganha quem produzir primeiro o produto mais adiantado. A empresa que chega atrasada na corrida está perdida197. Nesta dinâmica de marginalização e opressão, a lógica do mercado e da exclusão tende unificar as diferenças, sobrepondo à autonomia do sujeito tão cara ao indivíduo moderno: uma situação que não diferencia cor, etnia, sexo. O que vale é tão somente o poder de consumo, creditado pela propaganda apelativa de sedução mostrando que “ser humano” é poder consumir, numa atitude de comportamento induzido e naturalizado. Que dizer, neste caso, dos pobres como vítimas da injustiça social e da pobreza que não podem consumir e são entraves para os sistemas ideológicos? Se os pobres não podem consumir no mercado ditatorial são vistos como estorvo, como peça descartável, como sobrantes. Excluídos do mercado ou pelo menos da economia formal, sobrevivem da e na economia informal. Pelo mercado já estariam mortos! Não contam! Quando os pobres se propõem a lutar pela vida, o mercado vê em tal atitude uma irracionalidade, quando não subversiva que exige atenção e repressão. Uma façanha do todo poderoso mercado é o progresso infinito, e quem não vê-lo assim é taxado de se opor ao bem. A crueldade é ainda maior quando o consumo é feito pela cooptação de elementos religiosos como símbolos e linguagem, lançando estratégias de marketing apelativas como mecanismo de salvação198. Assim, somente se salva quem pode consumir. Para isso, estipulam-se seus dogmas e seus rituais. Os pobres não contam, pois não podem pagar o “dízimo”, sendo este o critério fundamental para se tornar um inserido. É a face de um capital neoliberal que se assume como o todo-poderoso, em que abençoados são os que detêm economias. Uma religião que 197 Ibidem p. 98. Ibidem p. 89. Para explicitar a lógica do mercado, como boa nova e único caminho de salvação: as mercadorias vão para onde há maior número de dólares. Esse modelo é apresentado como a única salvação para os nossos problemas sociais. Um sistema econômico que é incapaz de ouvir o pobre e atender às suas necessidades. Incapaz não por causa de algumas falhas de funcionamento, mas porque pela sua própria lógica só se vê e ouve os consumidores, os que têm dinheiro para ‘votar’. F. Hinkelammert afirma que, com o mercado, a burguesia crê ter solucionado o problema de toda a humanidade: a burguesia crê ter agora um método calculável para solucionar os problemas dos homens e o crê ter encontrado excluindo a ética das relações sociais, substituindo-as pela instituição do mercado. O mercado é o amor. Na mesma linha de raciocínio no uso do mercado liberal competitivo David Friedman nomeia o recurso mais adequado a essa lógica: a “máquina da liberdade”. SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 88. Jon Sobrino referindo-se aos pobres diz que eles “não são estimados, mas desprezados. E o desprezo se consuma quando a ideologia se disfarça de religião para condená-los em nome de Deus”. 198 71 possui também sua teologia implícita, a qual precisa ser desmascarada. Neste processo os pobres automaticamente são vistos como estorvo e atrapalham o progresso. 2.2.3.2 - Mercado e idolatria Numa situação de pobreza e, sobretudo, de extrema pobreza e exclusão total manifesta visivelmente o pecado estrutural de uma sociedade, como expressão visível da rejeição da vida e de Deus. “A pobreza não só torna visível o pecado social, mas também a raiz desse pecado que é a idolatria do mercado, tornando-se um sistema opressor. A idolatria torna possível o pecado social: tanto a idolatria por perversão do sentido de Deus, como a idolatria pela substituição de Deus por outros deuses199. Neste caso, a opção que Deus faz é pela justiça e pela verdade, que se contrapõe à opressão e à mentira, revestidas do sistema sacrifical presente na América Latina. Na idolatria, os que causam o pecado social não conhecem nenhum limite: não sofrem nem são atingidos quando se multiplica o pecado social, e o pior é que agem quase sempre com boa intenção. Os grupos dominantes geram pobreza e extrema miséria, excluem grandes maiorias da vida, oprimem, reprimem, matam... e nada os atinge. O que explica esta multiplicação sem limites do pecado social e sua aparente inocência ética é a idolatria. Quando o sujeito dominante age (oprime, reprime e mata) em nome de Deus, por um lado perverte profundamente o sentido de Deus, mas, por outro lado, essa identificação perversa com Deus permite continuar oprimindo ilimitadamente e com boa intenção. A idolatria apresenta, simultaneamente, portanto, uma perversão teológica e uma perversão social200. Por essa razão a idolatria é extremamente perigosa espiritual e socialmente, pois perverte o sentido de Deus, multiplica o pecado social e tranqüiliza a consciência do opressor. Este não se sente responsável. No pecado social a pobreza não só se torna visível, como também torna visível a idolatria geradora da perversão desses sinais de anti-vida. A idolatria é a manifestação do mistério iníquo que dá força e vida ao pecado social. Enquanto isso, o pecado social visibiliza a idolatria. 2.2.3.3 - O ídolo e as vítimas Para Benedito Ferraro “podemos afirmar, com toda clareza, que um sistema econômico que exige o sacrifício de inocentes para poder funcionar não só é intolerável, 199 ELLACURÍA, Ignácio e RICHARD, Pablo. Pobreza/Pobres. In: SAMANES, Cassiano Floristán e TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. Tradução de FERREIRA, Isabel Fontes Leal e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p. 619-635. 200 Ibidem. 72 mas idolátrico”201. Aceitar a necessidade de sacrifícios humanos é negar a vida com a qual uma proposta de bio-ética latino americana deve questionar. No cerne da idolatria está o mercado: o Dólar, o Euro, o Yene, o Real... O que conta é a lógica do mercado. Ele é o determinante supremo que decide a vida ou a morte. Dele todos são submissos e ele sabe muito bem disso. O deus-capital “suga o sangue dos trabalhadores e trabalhadoras para se imortalizar e, em nome do automatismo do mercado, devora seus próprios filhos e filhas”202. Fazendo-se de vítima há sempre seus sacerdotes que lhe antropomorfizam, dando-lhe características ora sentimentais ou racionais, e para se safar da irresponsabilidade o irracionaliza. Na América Latina, o processo de exclusão dos pobres é identificado com a proposta do neoliberalismo econômico que se implantou aqui e acaba transformando o pobre em perdedor. Quem não tem condições de competir no mercado é simplesmente ignorado. Quem perde no mercado total, perde tudo e já não pode mais sonhar com direitos humanos. Os pobres tornam-se ‘sobrantes’, verdadeiro lixo que não serve mais ao sistema. Peça descartável!203. Para se manter o ídolo Capital necessita de vítimas. Ídolos e vítimas neste caso são correlatos. Nesse ambiente social, além da fome, falta de atendimento à saúde, educação, sistema penitenciário degradante, relação de poder assimétrica, as pessoas estão expostas ainda a outras situações de extrema vulnerabilidade como pesquisas diante de leis tolerantes e permissivas; preconceitos, ausência de liberdades e de direito às minorias e outros. 2.2.3.4 - As vítimas e a lei As vítimas contam com a misericórdia das leis para o controle de direitos e deveres da pessoa. Aqui se entra no problema estrutural-social que, nem sequer, o pobre sabe de seus direitos e não os reivindica. Quando os conhece são dificultados a ele, o que gera desânimo na maioria das vezes. Também não há vontade para que eles o saibam. Precisa-se ter claro que o modelo macro econômico-social é regido por tantas 201 FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 72. Ibidem. “A tendência do sistema financeiro é assumir vida própria. Ele surgiu para auxiliar o funcionamento do sistema produtivo e terminou por dominá-lo. É notável, também, sua capacidade de criar sacerdotes que estabelecem a religiosa "ideologia dominante", ou seja a crença na inutilidade e prejudicialidade de qualquer tentativa de controle dos ‘mercados’”. NETO, Antônio Delfim. O sistema financeiro e os seus sacerdotes. http://www.unisinos.br/ihu/; acessado em 29/1/2008. 203 Ibidem p. 73. 202 73 leis ofuscando uma compreensão nítida sobre elas. Sabe-se, porém, que são leis que tendem favorecer ao acúmulo, gerando com isso supra-poderes à custa de muita submissão. As leis são ditadas legalmente ou através de preceitos oficiosos determinantes para o funcionamento repressor da maioria. Antônio Moser diz que “no contexto da América Latina as leis não são feitas nem com a participação do povo, nem em favor dele. São feitas pelos que detém o poder econômico e em favor deles”204. Para atingir seus objetivos o mercado possui leis próprias, assegurando-lhe assim a fidelidade de seus devedores. Agir pelo princípio misericórdia torna-se temeroso porque traz uma reação contra essas leis formuladas pelos verdugos. Encontramo-nos diante do enfrentamento com o poder do mal. A perseguição é vista como um embate entre os deuses terrenos, defensores dos ídolos da morte com o Deus da vida. Os perseguidores tentam impedir que as vítimas falem, quando não eliminadas fria e cruelmente. Até o martírio da fome incomoda, e haja vista, que são queimados, dilapidados e mortos à noite nas grandes cidades onde eles se concentram. A lei hostil que garante o funcionamento do sistema também se defende na voz de seus tuteladores e seus “sacerdotes”. Para justificar a continuidade de sua opressão apresenta casos de “rebeldes”, não admitindo que a violência anterior é a falta de condições dignas de vida. Assim o sistema, garantido pela lei, vitima alguns “bodes expiatórios”, em sua grande maioria de pessoas pobres. Defendê-los é ser mal visto pelo próprio sistema, geralmente desencorajando quem o faz. Defender a causa dos pobres é também aceitar tornar-se vítima. Esta é a causa dos mártires na América Latina. “A vítima nos mostram qual é o conteúdo fundamental mínimo da utopia: a vida digna e justa em fraternidade”205. Todos os mártires foram humanos, misericordiosos, verazes, justos, amorosos e crentes e por isso nos deixaram humanidade, misericórdia, verdade, justiça, amor e fé. No dizer de Vera Bombonatto “a causa do martírio não é o odium fidei, pois os que matam são também cristãos, mas o odium justitiae, no qual, na visão do nosso autor, está implícito o odium fidei”206. Para Sobrino a realidade perversa de morte dos mártires na América Latina ilumina a morte de Jesus e a morte de Jesus ilumina a morte dos mártires. Por este contexto sabemos, sem escamoteamento nem mentiras, a causa ou 204 MOSER, Antônio. O Pecado Social em chave Latino-Americana. In: ANJOS, Márcio Fabri dos. Temas Latino-Americanos de Ética. Aparecida-SP: Santuário, 1988, p. 76. 205 SOBRINO, Jon. A eterna tentação de negar a realidade. http://www.adistaonline.it/index.php; acessado em 26-02-2007. 206 BOMBONATTO, Vera Ivanise. Seguimento de Jesus. Uma abordagem segundo a cristologia de Jon Sobrino. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 441. 74 a razão da morte de Jesus. Semelhantemente, a cruz de Jesus remete às cruzes existentes, mas estas, também, remetem à de Jesus..., teologicamente, expressam em si mesmas a irrecusável pergunta sobre o mistério do para quê morre Jesus207. Daí se compreende bem a expressão “povos crucificados” para designar a “grande massa” sobrante dos países periféricos, que são por sua vez, também sobrantes. A vida dos “povos crucificados”, no terceiro mundo, é, hoje, o grande lugar teológico para compreender a cruz de Jesus. Ao falar da “morte-assassínio dos mártires e morteassassínio de Jesus, queremos apontar para causas históricas e políticas desta morte. Não há dúvida que se olhando a morte de Jesus a partir dos movimentos populares do seu tempo, tal morte significou claramente a eliminação de um líder”208. Os mártires são aqueles que fazem opção de viver no mundo mais real possível, o mundo da pobreza e da injustiça. Vivem com os últimos e como os últimos. Vivem assim também porque são quantitativamente pobres, mas qualitativamente vive uma profunda dimensão metafísica. A primeira lição que nos deixam é que são tão reais e humanos que não suportam a inumanidade. Em linguagem cristã, eles encarnaram e encarnam como Jesus, na realidade do mundo para humanizá-lo. Em devidas proporções percebe-se que os mártires da América Latina são perseguidos por causa de seu compromisso com a causa dos pobres, dos marginalizados, excluídos. Assumem a bandeira dos movimentos sociais e populares: terra, dignidade para os pobres, direito à vida, direito ao trabalho, defesa da ecologia, direito à moradia e lutam por sua prática, deslegitimam os interesses dos detentores do poder e do capital. Estes também reagem e os eliminam. Como Jesus, os mártires não buscam a morte. Ao contrário, são vítimas da ação dos sacerdotes do sistema: tanto a morte de Jesus como a morte dos mártires e, analogamente, a morte dos pobres, são consideradas como exigência da lei do sistema sacrifical. Os que matam são apenas instrumentos da vontade divina, que legitima a continuidade do sistema, que elimina os que se opõem ao sacrifício. Neste sentido, é importante lembrar que tanto Jesus como os mártires são eliminados por não aceitarem a lógica sacrifical do sistema de morte, que por exigência da lei cobra as dívidas dos pobres (no caso da Palestina os impostos ao Estado romano e ao templo; na América Latina, a dívida externa) e os condena à morte209. O martírio de Jesus e dos mártires, bem como a morte-exclusão dos pobres, indicam a destrutividade do sistema sacrifical que, para se manter, continua exigindo 207 SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996, p. 63. FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 62. 209 Ibidem; p. 65. 208 75 sacrifícios humanos. O mysterium iniquitatis é desvelado ao proclamar o mysterium salutis210. Ao apontar a origem da pobreza cruel e injusta na América Latina, fica evidente que a perversidade deste “fato maior” é também interpelada por uma ética e um sentido da vida, que exige para além da justiça, a ser realizada pessoal e coletivamente, uma ação de amor estruturante. O princípio misericórdia conta com a colaboração das leis, mas está também para além delas. A caridade-reativa é espontânea. Reclama além do dever legal, a força de vontade. Ninguém obriga a cuidar ou a assumir a dor e o sofrimento alheio, a não ser um princípio moral que reclama pela vida e vida em plenitude. 2.3 - O Princípio Misericórdia: uma experiência fundante O descobrimento dessa verdade perversa de injustiça mostra consequentemente a necessidade de uma re-ação. Essa re-ação é a experiência fundante que Sobrino propõe como princípio e fundamento, a partir do qual se reflete a responsabilidade com o outro que clama por uma ação de amor estruturante. Do princípio misericórdia deriva essa percepção de sobrevivência que clama por solidariedade em meio aos feridos pela violência primordial que gera fome, nudez, tráfico, desestrutura familiar, desânimos e assim por diante. Dessa experiência básica da misericórdia, como princípio, dependem as atitudes, individuais e coletivas, que se realizam em favor das pessoas excluídas, miseráveis ou os mais dependentes. Neste caso, o princípio misericórdia mostra-se como o “primeiro motor movente” que impulsiona reagir diante de tanto sofrimento. Sobrino insistentemente diz que não se trata de uma comoção sentimentalista, de compaixão passiva, mas de uma experiência lúcida movida como princípio. Desse modo, misericórdia é o “primeiro e o último”; não é simplesmente o exercício categorial das chamadas obras de misericórdia. Do lugar de sofrimento onde falta o básico para sobrevivência, poder-se-ia perguntar qual sentido de vida encontra as pessoas que vivem tal experiência? Que sentido ou motivação elas encontram para continuar vivendo? O que elas esperam? Nessa situação de espantosa miséria Gustavo Gutierrez propõe pertinentes perguntas: Como falar de Deus a partir da condição de pobreza e sofrimento? Como encontrar uma linguagem sobre Deus a partir do sofrimento do inocente? Na América Latina, como 210 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 157. 76 anunciar o Reino de amor e de justiça a pessoas que vivem, sem explicação, numa situação que os nega? Essa é também a pergunta que devemos fazer nesta terra de penúrias e de esperanças, onde os pobres padecem uma situação desumana, claramente imerecida211. E continua, Nada pode justificar que um ser humano careça do necessário para viver com dignidade e que seus direitos mais elementares não sejam respeitados. A dor e a destruição que isto produz nas pessoas vai além do que possa parecer num primeiro contato...212 A conclusão de A. Camus, apud Gutierrez, é que não há lugar para Deus num mundo tomado pelo sofrimento do inocente213. “Só poderemos falar a partir de sua esperança, se soubermos calar e comprometer-nos com o sofrimento dos pobres. Só levando a sério a dor humana, o sofrimento do inocente, e vivendo sob a luz pascal o mistério da cruz no meio dessa realidade”214. O lugar de atuação aqui é o lugar do outro, da alteridade mais radical do sofrimento alheio, sobretudo quando se trata daquela massa, cruel e injustamente ferida. Os sofrimentos humanos sejam quais forem as suas causas – sociais ou pessoais – devem ser de suma importância para a multi-disciplinaridade do discurso científico elaborado na América Latina, tanto da teologia, da bioética, da psicologia, da sociologia, da medicina e todas as ciências, que não podem ignorar sem mais essa realidade. Quando políticas públicas do governo, igrejas, forças militares, empresas, ciências, ONGs, etc. saem de si mesmas para ir ao caminho onde encontram os feridos, então elas se descentralizam, “vivem” o martírio e se assemelham à ultimidade humana, para os cristãos encontrado em Jesus de Nazaré, perito em humanidade, com seu testemunho fundante, capaz de acolher o ferido à beira do caminho, curar suas feridas sem que isso lhe traga ônus algum. Nisso constitui o que Sobrino caracteriza como misericórdia: a capacidade de sair de si para socorrer o ferido des-conhecido. A misericórdia constitui não só “a única coisa que Jesus exercita, mas é o que está em sua origem e o que configura toda a sua vida, sua missão e seu destino. Assim também o princípio misericórdia deve atuar na 211 GUTIERREZ, Gustavo. Falar de Deus a partir do sofrimento do inocente. Petrópolis-RJ: Vozes, 1987, p. 41-42, 163-164. 212 Ibidem p. 42. Escreve Metz, apud Gutierrez: para experimentar e compreender o que significa ser cristão é de todo necessário levar em consideração cada situação histórica concreta. A situação concreta, sem cujo reconhecimento a teologia não sabe de que fala, tem, entre nós, um nome: “depois de Auschwitz”. O autor chama a atenção para a responsabilidade histórica dos cristãos no fato de Auschwitz. Essa responsabilidade tampouco está ausente na situação de que se vive na América Latina. Ibidem p. 163. 213 Ibidem p. 42. 214 Ibidem p. 166. 77 Igreja de Jesus”215. É importante frisar que tanto a Igreja como as outras instituições cristãs ou não, radicadas na América Latina, se não estiverem impregnadas da misericórdia da parábola, numa atitude de descentramento e alteridade, sua voz torna-se irrelevante e seu serviço, um desserviço, a favor unicamente do lucro individual e narcisista que mata e gera o vazio de humanidade que em última circunstância é o que dá sentido. Dizia Sobrino que a re-ação misericordiosa é o critério para saber em que medida a Igreja, e podemos dizer em nosso estudo, em que medida qualquer instituição radicada em meio à pobreza e qualquer ciência se descentrou. Quanto maior a ferida, maior deve ser o comprometimento, maior presença, maior re-ação da igreja local, dos sindicatos, dos governos, da universidade, dos militares, dos partidos e toda a sociedade. A ferida requer a co-responsabilidade de todos para sua cura. A la Iglesia, como a toda institución, le cuesta re-accionar con misericordia, y le cuesta mucho más mantener ésta... En este mundo se aplauden o se toleran “obras de misericórdia”, pero no se tolera a una Iglesia configurada por el “principio-misericordia”, el cual la lleve a denunciar a los salteadores que producen víctimas, a desenmascarar la mentira con que cubren la opresión y a animar a las víctimas a liberarse de ellos. En otras palabras: los salteadores del mundo anti-misericordioso toleran que se curen heridas, pero no que se sane de verdad al herido ni que se luche para que éste no vuelva a caer en sus manos 216. Esta ação na concepção de Sobrino constitui “uma re-ação diante do sofrimento alheio interiorizado, que chegou até as entranhas e ao próprio coração; e que esta ação é motivada só por este sofrimento”217. Neste sentido, portanto, o sofrimento alheio interiorizado é tido como a reação misericordiosa. Esse comportamento de “misereor super turbas, comportamento de grande compaixão perturbadora, não é só uma atitude ‘regional’ de Jesus, mas é o que está na sua origem e o que configura toda a sua vida. É também o que configura sua visão de Deus e do ser humano”218. Cuando Jesús quire hacer ver lo que es un ser humano cabal, cuenta la parábola del buen samaritano. Es un momento solemne en los evangelios que va más allá de la curiosidad por saber cuál es el mayor de los mandamientos. Se trata, en dicha parábola, de decirnos en una palabra lo que es el ser humano. Pues bien, ese ser humano cabal es aquel que vio a un herido en el camino, re-accionó y le ayudó todo lo que pudo... Lo único que se nos dice es 215 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 37. SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador: Sal Terrae, 1992, p. 42. A misericórdia que se trata aqui é muito mais do que puro sentimento subjetivo ou puro ativismo. É o princípio que configura em dar a vida àquele/a que está ameaçada. 217 Ibidem p. 33. 218 Ibidem p. 34. 216 78 que lo hizo “movido a misericórdia”... El ser humano cabal es, pues, el que interioriza en sus entrañas el sufrimiento ajeno – en el caso de la parábola, el sufrimiento injustamente infligido – de tal modo que ese sufrimiento interiorizado se hace parte de él y se convierte en principio interno, primero y último, de su actuación. La misericordia – como re-acción – se torna la acción fundamental del hombre cabal... Quien vive según el “principio-misericordia” realiza lo más hondo del ser humano, se hace afín a Jesús – el “homo verus” del dogma – y al Padre celestial219. Ora, viver realmente a América Latina é encontrar-se com esse ferido no caminho, não somente com um indivíduo, mas com uma multidão de povos crucificados: negros, índios, mulheres, crianças, homossexuais, desempregados, catadores de papel, pobres e minorias em geral. “Aqui os pobres são, antes de tudo, pobres no plural, não pobres somente individuais, mas uma realidade coletiva e massiva”220. A evidência desses crucificados se torna relevante ao relacioná-los com a cruz de um Deus crucificado. É nesse encontro que está o critério de humanidade, ou seja, a tomada de decisão: ou passa adiante ou cura as feridas, numa atitude de suscitar-lhes a dignidade. As feridas são perceptíveis na informalidade que vive milhões de habitantes na América Latina, à beira do caos e morrendo de fome. Resistem silenciosamente nesse contexto, oprimidos pelas forças armadas e estruturas de morte que os sufocam para manter a economia. É decisivo saber por que se decide curar o ferido. A resposta mais satisfatória e fundamental é dizer que o sofrimento internalizou àquele que cuida, que deu condição para reagir. Nisso o exemplo mais cabal está na vida do mártir que tomado de compaixão e misericórdia reage com amor eficaz à situação do povo crucificado, numa atitude de ultimidade primeira e ultimidade última. O mártir trabalha em prol do povo crucificado porque seu intuito é fazê-lo descer da cruz. Fazer o povo descer da cruz é o sentido profundo do princípio misericórdia. Não se faz, no entanto, com uma misericórdia no sentido favor, de doação ou caridade passiva, mas uma caridade-reativa de quem age com intuito de fazer justiça e promover o direito de quem foi lesado. Neste sentido, a misericórdia como princípio, é também utópica: “Ele promoverá fielmente o direito; não desanimará, nem se abaterá, até implantar o direito na terra”221. Sobrino diz que “a misericórdia foi para nossos mártires mais que um sentimento ou a disposição de aliviar sofrimentos. Foi um princípio que guiou toda a sua vida e 219 SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador: Sal Terrae, 1992, p. 34 e 37. 220 SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996, p. 366. 221 Is, 42,1-6. 79 todo o seu trabalho. Foi a misericórdia que esteve na origem e o que permaneceu durante todo o processo”222. Viver a misericórdia na América Latina é querer conhecer a realidade, analisar e descobrir aí a verdade profunda da mentira que persuade para matar. A verdade que os mártires desvendam é sua paixão, não em último termo de um puro desejo de fazer avançar o conhecimento de si mesmo, mas antes de tudo, do desejo de defender os pobres, os quais têm a verdade a seu favor, e às vezes é a única coisa que têm a seu favor223. Sua capacidade de analisar a verdade provém certamente de sua própria inteligência, mas sua paixão pela verdade tem raízes na misericórdia. Com isso Sobrino ressalta que “O sofrimento precede ao pensamento”224. Conhecer o sofrimento a partir da dor significa mais do que conhecer. O sofrimento externo, por sua própria natureza, não é algo a ser constatado e registrado na consciência, analisado, inclusive explicado, mas algo diante do que é preciso tomar posição... O conhecimento a partir da dor é sempre conhecimento comprometido, de diversas formas, por ação ou por omissão, mas completamente comprometido225. O ferido que o mártir latino-americano encontra à sua frente é um povo crucificado. Diante dele historizam a misericórdia como estrutura de libertação. Não reduz a misericórdia a sentimento benevolente e ajudas ocasionais. O mártir sabe que o povo crucificado precisa de mais libertação. Por isso historizam a justiça, que é a forma mais concreta para se pensar no princípio misericórdia, como sinal do amor maior frente às injustiças. Referindo-se a Inácio Ellacuría, Sobrino diz que “os mártires na América Latina, durante o tempo da ditadura militar, nas décadas de sessenta, setenta e oitenta, não só quiseram curar as feridas das vítimas, mas também erradicar suas causas e propor melhores soluções”226. Por isso propiciaram às universidades não somente uma teologia da libertação, mas uma engenharia, uma psicologia, uma economia e agora uma bioética da libertação. Sua visão estrutural da realidade se passa pela investigação de suas causas, caminhos e soluções, guiada pelo paradigma da misericórdia, tendo como meta a libertação do pobre e a superação da pobreza. A esperança do mártir é a esperança de Jesus. O que o martírio acrescenta às suas vidas é a credibilidade e um grande grito de que é isso que humaniza, de que isso se trata de ser humano. Para ser humano, precisa-se re-agir por uma estrutura mais digna 222 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 255. Ibidem p. 257. 224 SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996, p. 361. 225 Ibidem. 226 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 258. 223 80 de vida. Nesta re-ação, paradoxalmente, vem a morte no intuito de gestar a vida. Assim, dizia, incansavelmente, o mártir padre francês Gabriel Félix Roger Maire, assassinado em Cariacica, no Estado do Espírito Santo ao lutar em favor dos direitos humanos: “prefiro morrer pela vida do que viver pela morte”227. A esperança de Jesus é a esperança dos pobres que não têm esperança, e para os quais anuncia o Reino. Sua práxis é a favor dos pequenos e oprimidos: curas, acolhida dos pecadores, expulsão dos espíritos impuros e tantos outros sinais. Sua “teoria social” ou “projeto social” é guiado pelo princípio da necessidade de erradicar o sofrimento em massa e injusto. Sua alegria se dá ao ser entendido pelos pequenos, e sua celebração é sentar-se com os marginalizados. 2.3.1 - Análise semântica do termo misericórdia O conceito misericórdia tem relevância de fundamento neste estudo que, conjugado com o termo princípio, forma a base substancial para a compreensão da teologia sobriniana. Desse modo, o termo participa da discussão ético-teológica num lugar de centralidade, e sem o qual ficaria uma lacuna ao refletir a realidade entre os povos vulnerados. O termo já se encontra nas antigas civilizações como egípcia, hebraica, chinesa e hindu. Seu sentido não parece sofrer muita alteração de uma cultura para outra, a não ser em intensidade e precisão. Na cultura hebraica o termo “hesed” designa a atitude de compaixão e misericórdia divina como a bondade ou amor de Deus demonstrado para com os que se acham na miséria ou na desgraça. Expressa uma atitude fundamental na religião e na moral hebraicas. Necessita, porém, cuidado por não haver uma coerência perfeita, podendo estar associado a outros termos como “emet”, que significa fé, firmeza, resolução; “mishpat”, que significa justiça; “yeshua” que significa salvação e tantos outros228. Hesed foi traduzido para o grego “eleos”, com o mesmo sentido hebraico, podendo traduzir também em outros casos por justiça, “dikaiosúne”229. Na língua latina230 o termo misericórdia pode ser entendido como derivado do verbo “misereor” (no infinitivo “misereri”) – compadecer-se, lastimar, internecer, ter 227 CAVALCANTI, Tereza M. P. Por onde andam as comunidades eclesiais de base? Revista das Comunidades Eclesiais de Base. Brasília: Ed. Universa, nº 07, dezembro de 2004, p. 28-47. 228 MACKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1983. 229 GINGRICH, F. W. e DANKER, F. W. Léxico do N.T. grego/português. Tradução de ZABATIERO, J. P. T. São Paulo: Vida Nova, 1993. 230 CABRALII, Emmanuelis Pinii et RAMALII, Joseph Antonii. Magnum Lexicon Latinum Novissimum et Lusitanum. Parisiis: s/editora, 1873. 81 dó; e do substantivo “cor”, (“cordia” no plural), que significa “coração”. Significaria deste modo ter um coração compadecido ou um coração doído diante da desgraça ou da infelicidade deplorável do outro. O seu sentido é de ter com-paixão, de sentir com, padecer com, de chegar à situação do outro sem compactuar com o estado dele. Um sentido preciso a esta palavra foi dado por Sobrino para expressar a atitude básica de Jesus ao ver uma grande multidão desorientada como ovelhas sem pastor: “misereor super turbas”, ou seja, “tenho dó da multidão”231. O termo misericórdia quer expressar esse sentimento de ultimidade básica: “Um samaritano, que estava viajando, chegou perto dele, viu, e teve compaixão”232. A solidariedade efetivada pelo samaritano não deve ser confundida com assistencialismo; aliás, dizia Sobrino que abarca esta e vai além. Trata-se da “razão que move” o samaritano a erguer o caído, da sua compreensão acerca do humano e da dignidade humana em estado deplorável por causa da violência. O samaritano entende o ser humano como alguém de direito e esse direito deve ser retomado, que é o direito fundamental: a vida. Portanto, sua solidariedade aponta para a prática da justiça. Com o termo “princípio,” aliado ao termo “misericórdia”, Sobrino quer evitar as limitações do conceito misericórdia e os mal-entendidos a que se presta. Não é simplesmente o exercício das obras de misericórdia, mas uma atitude fundamental ante o sofrimento em virtude de uma re-ação para erradicá-lo. Não existe nada anterior à essa misericórdia, nem existe nada para relativizá-la ou substituí-la. No princípio misericórdia está a re-ação que se converte em princípio interno e originário. Não há percepção nenhuma anterior a essa experiência. O seu sentido preciso revela um exercício primeiro e último de atuação. A misericórdia pode ser até acompanhada de sentimentos, mas é mais que sentimento. A ultimidade da misericórdia supõe a disponibilidade a ser chamado samaritano. A compaixão deve tomar forma de ajuda, justiça, libertação, redenção. A compaixão é a reação primária e fundamental de Jesus à repetida solicitação na boca dos pobres: “Senhor, tenha compaixão de mim”233. Concentramo-nos aqui sobre a compaixão como ponto central da mística cristã. A compaixão assume fisionomia do amor. O que dá coerência última à vida de Jesus é sua fidelidade, sua esperança, seu serviço. Nenhuma destas realidades excluem as outras, 231 Mc 6, 34. Lc 10, 33. 233 Mc 10, 48. 232 82 mas são todas complementares entre si. A proposta do princípio mais estruturante na vida de Jesus é a misericórdia. El término “misericordia” hay que entenderlo bien, porque puede connotar cosas verdaderas y buenas, pero también cosas insuficientes y hasta peligrosas: sentimiento de compasión (con el peligro de que no vaya acompañado de uma praxis), “obras de misericordia” (con el peligro de que no se analicen las causas del sufrimiento), alivio de necesidades individuales (con el peligro de abandonar la transformación de las estructuras), actitudes paternales (con el peligro del paternalismo)...234. Na concepção de Sobrino, na América Latina pode-se redescobrir a reação fundamental perante um mundo de vítimas como exercício conseqüente da misericórdia, de um amor estruturante, tal como aparece na parábola do bom samaritano com a qual Jesus descreve o homem cabal. O que precisa ser acentuado é que aqui não se trata de “obras de misericórdia” e sim de uma atitude fundamental de reação perante as vítimas deste mundo. Esta atitude consiste em dizer que o sofrimento alheio internalizou em alguém, e esse sofrimento interiorizado leva a uma re-ação. A reação de libertar do sofrimento assegura uma radicalidade e uma definitividade teologal à compaixão, que parafraseando a afirmação de santo Irineu: “Gloria Dei vivens homo”, quatro dias antes de seu assassinato Oscar Romero a formulou do seguinte modo: “Gloria Dei, vivens pauper”235. O interesse é que o pobre viva, fazendo-lhe justiça, dando-lhe dignidade e lhe devolvendo a vida. Este princípio no dizer de Sobrino nos aponta algumas coisas importantes: • La primera es que hay que historizar la misericordia según sea el herido en el camino. En nuestro mundo sabemos muy bien que no sólo hay individuos heridos, sino pueblos enteros crucificados. Reaccionar con misericordia significa, entonces, desvivirse por “bajarlos de la cruz”, en palabras de Ignacio Ellacuría. En palabras sistemáticas, significa trabajar por la justicia, pues ése es el nombre del amor hacia las mayorías injustamente oprimidas; • La segunda es que una misericordia que se torna en justicia es automáticamente perseguida por los poderosos; • La tercera es que hay que anteponer la misericordia a cualquier cosa, lo cual, por decirlo irónicamente, no es nada fácil para ninguna institución civil, religiosa y eclesial; • La cuarta es que el ejercicio de la misericordia da la medida de la libertad, tan proclamada como ideal del ser humano en el mundo occidental. Por ser misericordioso, no por ser un liberal, Jesús transgredió las leyes de su 234 SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador: Sal Terrae, 1992, p. 32. 235 ROMERO, Oscar Arnulfo. Homilia 16 de março de 1980. Cf. também SOBRINO, Jon. Epílogo. In VIGIL, José Maria (Org.). Descer da cruz os pobres: cristologia da libertação. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 348. Ou ainda SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópicoproféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 99. 83 tiempo e curó en sábado. Jesús comprendió la libertad desde la misericordia, y no a la inversa236. A misericórdia, como princípio, não é ascética. Vê o ferido e reage ao seu sofrimento. Mas, uma pergunta fundamental do princípio misericórdia é, na compreensão sobriniana, saber por que se decide curar o ferido. O que o samaritano viu no caído, sendo que o enfermo não era de sua comunidade religiosa, do seu grupo e aparentemente nada o obrigaria a cuidar dele? A resposta mais satisfatória deve ser que o sofrimento internalizou àquele que cuida e lhe deu condições de reagir. Tudo induz a pensar que a solidariedade primária movida pelo samaritano não advém da obrigação, mas, pura e simplesmente porque, reduzido a nada, aquele desconhecido “sem qualidades” estava entregue à própria sorte, à compaixão humana. Ele cuidou dele exatamente a título de uma humanidade desfigurada, abandonada em sua mão, tendo perdido toda forma humana. As feridas despertaram no peregrino o respeito diante de uma humanidade desfigurada, fraca e degradada diante da qual ele mesmo se viu. Nesta concepção a misericórdia assume nitidamente uma dimensão profética; ganha credibilidade e tonalidade universal. Aquele que socorre o caído à beira do caminho pode ser grego, judeu, samaritano, negro, índio, pobre, mulato... enfim, àquele que precisa ser ajudado. Para Jesus, próximo não é aquele que eu encontro simplesmente no caminho (10,27), mas aquele em cujo caminho se coloca, a fim de concretizar o amor e a misericórdia. O samaritano optou por tornar-se próximo, porque foi movido pelo amor operativo. Fechados em suas concepções morais o sacerdote e o levita não conseguem viver uma alteridade mais profunda, e reconhecer a humanidade no humano e o amor horizontável. Na liberdade para a ação o samaritano traz à tona a concepção que quanto mais se é solidário, mais se torna livre e digno. A parábola revela que, primeiramente, é o samaritano que dá prova de sua dignidade, pois as feridas despertaram nele o respeito que se tem pelo limite da existência e da humanidade. 2.3.2 - Aspectos da fundamentação teológica do princípio misericórdia O princípio misericórdia é uma abordagem originada dentro da Teologia da Libertação, hoje com seu estatuto epistemológico próprio, que sistematizou com bastante precisão acerca da realidade latino americana, e possibilita estar fazendo a 236 SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador: Sal Terrae, 1992, p. 26-27. 84 ponte, estudando de comum interesse com a Bioética, o mesmo objeto. Nesse ambiente a colaboração da bioética, da teologia e outras devem mostrar o interesse pela imperiosa e urgente necessidade de fazer um povo crucificado despertar e reagir. A epistemologia de aprofundamento se dá aqui a partir do pobre237 e seu sofrimento. A vítima, o pobre, torna-se, em ambiente de pobreza, o critério de verdade de qualquer teoria238. Esta convicção parte do lugar da vítima como lugar de inteligibilidade da totalidade. É sempre a partir dos últimos, dos pobres, das vítimas, que se pode ter uma visão da totalidade. É a partir da vítima que se nota a ausência de vida, de pão, de liberdade, de Deus. A experiência da exclusão é a chave de compreensão da totalidade. Brota daí uma fé no Deus dos feridos no caminho, no Deus das vítimas. Sua liturgia torna-se a vida dos sem-vida; e sua celebração, a ressurreição de um crucificado; “sua teologia será intellectus misericordiae - justitiae, liberationis”239. Conforme Ignácio Ellacuría e Pablo Richard “A primeira e fundamental reflexão teológica sobre a pobreza é a verdade da pobreza”240. A partir dela se conhece o conteúdo na sua extensão e profundidade: “a pobreza, a extrema pobreza, a opressão, as vítimas, a exclusão, com suas seqüelas de violência e desagregação. Conhece também o que poderíamos chamar de mistério da pobreza”241. O lugar da vítima é o lugar da verdade, pois revela a maldade do mundo. Dizia Benedito Ferraro que “a lógica parte dos últimos: quando o último da sociedade é respeitado, todos nesta sociedade o serão. Neste sentido é que os elementos e as projeções do projeto dos pobres dão razão de que, a partir dos pobres, pode-se construir um projeto para todos”242. Entende-se, a partir disso, que “o projeto do pobre é universal, pois não é excludente. O projeto dos ricos é particularizado e, portanto, excludente. No projeto dos pobres há lugar para todos. No projeto dos ricos não há lugar 237 Tomamos aqui “pobres” na sua relação com a injustiça como expressão globalizante da opressão que nega a vida às miorias: mulheres, índios, negros, crianças... Com Gustavo Gutierrez, poderíamos falar do mundo do pobre: ‘Povos dominados, classes sociais exploradas, raças desprezadas e culturas marginalizadas. 238 FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 26. “Uma teoria é cientificamente válida, se suas realizações não produzirem vítimas em sua atuação na história. A vítima deve ser o critério de verdade de qualquer teoria”. 239 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 44. 240 ELLACURÍA, Ignácio e RICHARD, Pablo. Pobreza/Pobres. In: SAMANES, Cassiano Floristán e TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999, p. 619-635. 241 Ibidem. Quando submergimos no mundo da pobreza, suburbana ou rural, nem tudo é explicável ou descritível. Encontramos a cultura da pobreza; os valores vividos pelos pobres: capacidade de resistência, de solidariedade, de esperança e de celebração. 242 FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 19. 85 para os pobres”243. Na mesa dos ricos os pobres ficam de fora ou, no máximo, com as migalhas244. Jon Sobrino diz que nos pobres está a salvação: “Captar a salvação que o povo crucificado traz não é só nem principalmente coisa de especulação ou de interpretação de textos. Trata-se de captar a realidade”245. Parafraseando um antigo axioma católico “extra ecclesiam nulla salus” e o axioma de E. Schillebeeckx “extra mundum nulla salus”, Sobrino propõe que “extra pauperes nulla salus” – fora dos pobres não há salvação246. Neste sentido a vida do pobre se torna o critério fundamental, pois quando o último estiver bem, vivendo com dignidade, todos estarão. O pobre é o critério de salvação. O livro de Isaías consta esta realidade profética dizendo que Deus estabelecerá o servo como “luz das nações”247. “Aprisionar essa verdade com a injustiça é a pecaminosidade fundante”248. A perspectiva teológica latino americana recorda essa centralidade na negatividade da existência humana, quando “essa negatividade é apresentada sob diversas formas: pecado, culpa, condenação eterna, morte, enfermidade, escravidão, falta de sentido, pobreza, injustiça, etc”249, em confronto com a mensagem positiva de “salvação, redenção, libertação, boa notícia, reino de Deus, etc. como fatores essenciais para determinar que Deus salva”250. A análise dessa negatividade torna-se fundamental no discurso da teologia latino-americana para que sua mensagem positiva tenha sentido. A negatividade parte do “fato empírico” de conteúdo, material, da corporalidade, da negatividade da produção e reprodução da vida do sujeito humano. Mas aprende-se que o sistema estabelecido ou o projeto de “vida boa”, vivida pelos poderosos, é a negação ou a má vida para os pobres. A verdade do sistema é agora negada a partir da impossibilidade de viver das vítimas. É neste sentido que Enrique Dussel diz poder vislumbrar a especificidade de um princípio ético-crítico da libertação, como critério de mediação para discernir o que não permite a vítima viver, negando-lhe ao mesmo tempo sua dignidade de sujeito e excluindo-a do discurso251. 243 Ibidem. Lc 16, 19-31. 245 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 90. 246 SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 98-105. 247 Is, 42,6. 248 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 91. 249 Ibidem p. 51. 250 Ibidem. 251 DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 376. 244 86 Essa negatividade fundamental, na qual a filosofia da libertação, a teologia da libertação, ou uma bioética de intervenção se detêm se junta à percepção do como outras ciências concebem essa realidade de pobreza, num confronto do seu objeto de estudo com essas negatividades. Assim, a psicologia, a sociologia, a biologia, a medicina, etc. se juntam num esforço de esclarecê-las e apresentá-las em sua relação mútua. Uma coisa se apresenta como óbvio: neste lugar se dá um sofrimento massivo, cruel, injusto e duradouro que é produzido e não natural. E é deste lugar social, marcado pelo grito silencioso das massas, as vítimas deste mundo, que o teólogo Inácio Ellacuría, apud Ferraro, chamava de “povos crucificados”252, que se faz urgente a experiência da libertação diante da opressão, do sofrimento, da perseguição e morte a que estão submetidos em suas vidas cotidianas253. Nesse ambiente, próprio de um espírito capitalista excludente, os pobres são massas sobrantes que clama por uma ação de amor estruturante. Trata-se do “amor práxico que surge perante o sofrimento alheio injustamente infligido para erradicá-lo”.254. O princípio misericórdia da experiência de Jesus é também àquele que socorre fazendo gerar uma atitude de esperança diante de uma vida reduzida à miséria. É uma compaixão que brota das profundezas das entranhas de Jesus que se converte em critério de ação e mediação da vontade de Deus, pois Jesus age segundo os ditames dessa compaixão. Se a realidade do pobre e as situações que o leva à pobreza assumem o centro da reflexão, juntamente com ela deve assumir a capacidade re-ativa, a misericórdia sobriniana, numa tentativa de inversão. Desse modo, o pobre não se torna o referencial e o centro convergente sem perspectivas, mas uma responsabilidade que deve comprometer a razão de ser, a espiritualidade da bioética latino americana de proteção, intervenção ou libertação. Distanciar-se dessa realidade – o pobre – é afastar do principal objeto de estudo, no qual constitui o laboratório de reflexão e pesquisa que tende levar a interpelações. A teologia, a bioética, a biologia, a psicologia, a economia, 252 FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 23. “Entende-se aqui por povo crucificado aquela coletividade que, sendo a maioria da humanidade, deve sua situação de crucificação a uma ordem social promovida e sustentada por uma minoria que exerce seu domínio em função de um conjunto de fatores que, como conjunto e dada sua concreta afetividade histórica, devem ser considerados como pecado”. 253 Ibidem p. 99. O sistema não tem interesse nesta população supérflua e, por isso, não investe nela para a satisfação de suas necessidades básicas: trabalho, saúde, habitação, educação, etc. Começa um processo de empobrecimento cujo limite é a morte. O deterioramento é total: econômico, social, cultural, corporal, humano, familiar, religioso, ético... O sistema considera como lixo, como ratos, como algo que é preciso eliminar. 254 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 35. 87 a sociologia... realizadas no continente devem levar em conta, em sua racionalidade, este “fato maior” como categoria de investigação e estudo. Trata-se da irrupção dos pobres, dos povos oprimidos, marginalizados e crucificados. A opção pelos pobres255, expressão cunhada em Medellín e aprofundada em Puebla, é cara à espiritualidade da libertação. É uma clara dimensão teologal que se articula com o clamor dos oprimidos. Escutar os pobres é escutar Deus, negá-lo é negar a Deus256. O clamor dos pobres é expressão de um não-dever-ser, que denuncia uma situação injusta, de anti-vida e contra a morte. Na multidão pobre há um grito silencioso de desespero que clama por justiça para se manterem vivos. A urgência em dizer que esse povo vive na América Latina leva Sobrino a equiparar a vida do povo crucificado com a crucificação de Jesus e o servo sofredor de Javé257. O que dizem os cantos do servo sofredor? Antes de tudo que é homem de dores, padecente, acostumados ao sofrimento. Essa é se verificarmos bem, a condição normal do povo crucificado: fome, enfermidade, moradia precária, frustração por falta de educação, de saúde, de segurança, de emprego... “Nele não havia figura nem beleza. Vimo-lo sem rosto atraente.”258. Desfigurado que estava “muitos se espantaram com ele, porque, desfigurado, não parecia homem nem tinha aspecto humano”259. Realmente, o que o mundo pode aprender com eles ou receber deles? Como o servo, também o povo é crucificado ao ser desprezado pelos homens. A teologia fundamental na América Latina considera esse povo crucificado como os pobres de que falam nos profetas, anaw, e em Jesus. É uma atualização de Cristo crucificado, o verdadeiro servo de Javé. Hoje, os massacres das vítimas, a corrupção que sangra os pobres são o novo Gólgota onde Jesus ou o servo morre cotidianamente. Em linguagem atual esses pobres se definem como os despossuidos sócioeconomicamente e, ironicamente não se diz fome, mas insuficiência alimentar. Tenta-se evitar a palavra pobre, substituindo-a por pessoas de baixa renda. Juntamente a essa pobreza vivida materialmente, existe também a sociocultural e a opressão da discriminação racial, étnica, religiosa, sexual... Mas pobreza socioeconômica é a que 255 DOCUMENTO de Aparecida. Texto Conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado LatinoAmericano e do Caribe. São Paulo: Paulinas/Paulus e Brasília: Ed. CNBB, 2007, p. 177-180. 256 Ex 3, 7-10; Mt 25, 40. 257 SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996, p. 368. 258 Is 53, 2. 259 Is 53,3. 88 mais evidencia a pobreza no mundo de hoje, agravada pela opressão proveniente das diversas discriminações. 2.3.3 - A efetividade do princípio misericórdia Ao fazer uma leitura aprofundada do princípio misericórdia nota-se que dentro dele existem alguns passos a serem seguidos no intuito de curar ou salvar o ferido, ou seja, de efetivar a misericórdia. Para efetivar a misericórdia ou restabelecer a dignidade do ferido é necessário considerar o processo de re-ativação básica, desde a intuição impactante causada ao ver o sofrimento, até a cicatrização dos ferimentos com atitudes de organização e promoção da vida. Neste método há que se “mostrar a estrutura da reativação básica perante o mundo sofredor, sua primariedade e ultimidade260”. A misericórdia assume em primeiro plano uma criticidade que encara com veracidade os verdadeiros problemas do Continente sem escamoteá-los. Essa misericórdia nos aponta a re-ação primária ante o mundo sofredor. É o Amor primário, ao qual se dá o nome de misericórdia. Essa atitude, de se deixar reger pela misericórdia, é assumida livremente diante de um mundo sofredor, mas uma vez realizada, dizia Sobrino, ela redescobre algo central na revelação, ou seja, no rosto de Jesus de Nazaré desvela como é descrito quem é movido por misericórdia261. A misericórdia como re-ação engloba três passos, propostos por Sobrino em três verbos, que ele cita como metodologia para dar a tonalidade de uma ação eficaz e, portanto, permanente. 1º) Em primeiro momento num impacto profundo e sensibilizador em ver diante de si a situação deplorável do oprimido; 2º) Em segundo momento o impacto que gera um processo de internalização ou assimilação para si daquela realidade, numa atitude daquele que assimila e assume o lugar do outro em sua totalidade de vítima; 3º) E, por fim, uma atitude de organização e ações que visam efetivar a misericórdia, semelhante à ação do samaritano, de não desejar somente um paliativo ao ferido, mas a sua cicatrização ou o seu restabelecimento à verdadeira condição de ser humano. Este é um método que se pode dizer derivado do método ver – julgar – agir, de inspiração da Ação Católica, aprofundado na teologia da libertação pela dialética teoria260 261 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 66. Ibidem p. 66. 89 e-prática; método que tem se verificado muito válido na pedagogia de base vivida na América Latina como processo de re-ativação diante de tanto sofrimento. Ele se propõe antropologicamente à compreensão, reflexão e ação da pessoa numa circunstância e contexto sócio-cultural, que deve ser aprofundado para chegar à real dimensão de gestação e promoção da vida. Desse modo, dizia Sobrino, Se trata, en dicha parábola, de decirnos en numa palabra lo que es el ser humano. Pues bien, ese ser humano cabal es aquel que vio a un herido en nel camino, re-accionó y le ayudó todo lo que pudo... El ser humano cabal es, pues, el que interioriza en sus entrañas el sufrimiento ajeno – en el caso de la parábola, el sufrimiento injustamente infligido – de tal modo que ese sufrimiento interiorizado se hace parte de él y se convierte en principio interno, primero e último, de su actuación. La misericordia – como re-acción – se torna la acción fundamental del hombre cabal (grifo nosso)262. Esse método procura primeiro compreender a realidade, e para isso recorre a sua intuição, mas também a reflexões científicas diversas no intuito de aproximar ao máximo da “verdade” sobre os fatos e então ter maiores condições de análise e conclusão. Serve-se da colaboração científica dos meios sociológicos, psicológicos, políticos e, conhecendo bem a realidade, procura saber que perguntas ou interpelações ela faz à fé. Trata de um auscultar a realidade, compreender a pobreza e as minorias fixando o olhar nos rostos dos novos excluídos: os migrantes, os sem-teto e os refugiados, as vítimas do tráfico de pessoas e de seqüestros, os desaparecidos, os doentes de HIV e de enfermidades endêmicas, os toxicodependentes, os idosos, os meninos e meninas que são vítimas de prostituição, pornografia e/ou de trabalho infantil, as mulheres maltratadas, as vítimas da violência, da exclusão e do tráfico para a exploração sexual, as pessoas debilitadas, os grandes grupos de desempregados/as, os excluídos pelo analfabetismo tecnológico, os idosos pobres, as pessoas que vivem na rua das grandes cidades, os indígenas e afrodescendentes, os camponeses sem terras e os mineiros. Sem levantar essas causas sócio-político-econômicas a Teologia da Libertação tem dificuldade em prosseguir com qualquer palavra de fé. Este é um modo de fazer teologia a partir de baixo, que parte primeiro da compreensão do homem e do seu contexto. Segundo Faustino Teixeira “a recuperação do novo rosto de Cristo libertador funciona, 262 SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador: Sal Terrae, 1992, p. 34. 90 na prática, como um desmascaramento do que há de acristão e anticristão nas imagens desfiguradas do rosto humano”263. Para tanto em sua cristologia, Sobrino fala igualmente da “despacificação de Cristo” e de sua “desidolatrização”, ou seja, da afirmação de uma imagem de Cristo que não permita a isenção dos sujeitos face aos apelos do real, e a utilização de seu nome para a continuidade da opressão. A preocupação com o Jesus histórico na América Latina é marcada por uma hermenêutica da práxis. Trata-se de confrontar a realidade a partir do paradigma da fé cristã: a vivência de Jesus de Nazaré. A interpelação provocada pela realidade assume um lugar fundamental na atitude do samaritano, daquele que ama o seu irmão. No horizonte da reflexão de Sobrino o compadecer-se do caído à beira do caminho, provoca a teologia para que ela não se limite a ser uma inteligência fria da fé que passa ao largo do sofrimento dos seres humanos. No assumir as dores do miserável, daquele/a que está sem alternativas, sem perspectivas e provocado pelo desânimo, restando-lhe apenas sua vitalidade, Sobrino propõe como alternativa, uma atitude capaz de gerar desfecho, completude ou ultimidade. O princípio misericórdia trata de uma re-ação completa, assim como aconteceu ao samaritano. Para a compreensão desse princípio não vale apenas a intuição ou o questionamento ou ainda as medidas de ação separadamente. Um deve estar interconectado com o outro, caso contrário, nada acontece. Desse modo, para que haja uma relação efetiva como do samaritano para com o ferido é necessário que se relacione adequadamente com ele, mediante a práxis do seguimento. O próprio Sobrino assinala que o mais histórico de Jesus é a sua prática, e acrescentemos o espírito com que a realizou e com o qual a imbuiu: honradez para com a realidade, parcialidade para com o pequeno, misericórdia fundante, fidelidade ao mistério de Deus. É essa mesma prática e espírito que foram transmitidos por Jesus que se tornam convocação para os cristãos no prosseguimento de sua causa na história. Por esse seguimento acontece a misericórdia, a libertação, o amor, a vivência da totalidade do Jesus histórico aberto para o Cristo da fé, ou seja, “o Cristo total”. Partindo da compreensão de baixo, do princípio encarnatório, acontece uma ruptura epistemológica no modo de como até então se compreendia a fé. Descobre a partir desse “lugar teológico” a feição dos pobres, até então encoberta. Dá-se a assunção 263 TEIXEIRA, Faustino. Uma cristologia que incomoda: a notificação das obras de Jon Sobrino. www.gritodosexcluidos.com.br/artigosSemanais/artSem157/ - 22k; acessado dia 15-03-07. 91 e a redenção da realidade e das culturas, uma assunção evangélica porque nasce de uma experiência, de um lugar próprio e específico. Ao fazer o seguimento faz-se pela identificação com os crucificados, de um Deus crucificado e ressuscitado, que fez o ser humano à sua imagem e se deu por todos e para todos. Neste caso diz Sobrino: “O que a fé exige diretamente é a libertação do pecado da realidade e a humanização dos ofendidos e, derivadamente, a reabilitação do pecador e a humanização do ofensor”264. Uma pergunta que se pode fazer é: como sublinhar esse aspecto de doação e de existência para os outros? O princípio evangélico da misericórdia dirá: pelo reconhecimento e transfiguração do outro, pela gratuidade da presença, pela diaconia através da opção de vida, na criatividade em refletir e propor ações para acudir o mundo industrializado e globalizado pelo consumo, pela rentabilidade, pela visibilidade, pela velocidade e contabilidade, pela centralização narcísica escamoteada, pela tonalidade positiva de buscar identidade que exige resposta kenótica de cada pessoa, de cada comunidade, grupos e sociedades como um todo. Neste método se dá a percepção de totalidade da conversão básica ou de mudança radical, misericordiosa, que leva à transformação pessoal e social de ambos. 2.3.3.1 - A misericórdia na vida pessoal A misericórdia na vida pessoal brota de uma motivação impulsionada por fatores internos e externos, numa vontade que nasce de dentro. Tem seu método e tempo próprio. Enquanto motivação interna é um sentimento mais íntimo que começa na percepção do outro enquanto diferente, mas semelhante. Manifesta, sobretudo, ao perceber que se trata de si mesmo no rosto de um necessitado, de uma pessoa com existencialidade finita e contingente e que, pelo simples fato de ser pessoa é, por natureza, vulnerável e frágil. “A nudez do rosto é um despojamento sem nenhum ornamento cultural”265. Aqui a pessoa não faz resistência, mas vai ao encontro. Não vai com interesses outros a não ser ajudar, conviver para apreender. Aquele que na perspectiva da vontade sai ao encontro, no momento em que observa o diferente, o vulnerável, o faminto ou necessitado de modo geral, começa nele/a o processo de conversão pessoal e também uma mudança de paradigma na estrutura interna. Na observação e encantamento pela condição do outro, que no fundo é a de si mesmo, gera a possibilidade para sua revisão de vida, mesmo que inconsciente, 264 265 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 101. LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993, p. 51. 92 para a convergência que o transforma. A partir daqui são ações em conjunto, que elaboradas vão se construindo como um processo normal. Também serve para transformar a estrutura interna a percepção de fatores externos, vindos de necessidades que geram coerção ou pressão. É a percepção da circunstância, da vida externa, de um clamor que se faz ouvir. A conversão passa mais pela perspectiva da necessidade, de uma assimilação, em que o fazer não é espontâneo, mas uma obrigação. Trata-se de uma mudança mais coercitiva. Contudo, ambos têm a sua relevância: a percepção do outro-no-mundo que se realiza pelo cuidado fundamental de ambos. É a percepção de que o “eu” não existe sozinho, mas co-existe. Nesta percepção a pessoa se coloca junto dos outros numa relação de semelhança e de comunhão. É uma comunhão que começa existir ainda a partir do momento do “ver” o outro: em sua necessidade, vontade, querer, encantamento e outros. É uma convivência iniciada no processo epifânico que gerou o encantamento, de um amor apaixonado pelo seu semelhante. Este é um amor capaz de salvar a vida do interpelador, em que ambos sentem-se atraídos pela mesma busca: a dignidade da vida que deve ser preservada. Aqui, portanto, o outro se torna manifestação, epifania. As interpelações que o outro gera traz o risco da saída de si mesmo. O rosto do outro desconcerta e questiona a fragilidade humana que impulsiona à busca da textura transcendente incompatível com o rosto desfigurado. Nesse re-erguimento, atitude misericordiosa de um “amor relacional”266, o qual se referia Emmanuel Mounier, revela-se como a substância do laço profundo da responsabilidade na relação caritativa. Não se trata do “eu” se tornar o “outro” num anular-se por causa do outro, numa simbiose totalitária, mas de uma alteridade e busca de uma comunidade de pessoa de pessoas. Isso pode conduzir a níveis mais profundos, em que precisa estar pronto para encarar a experiência do outro e dialogar com ela, desdobrando-se se for preciso. 2.3.3.2 - A misericórdia na vida social A mudança social passa pela misericórdia em nível pessoal, pela inter-relação e troca de experiências mútuas, que leva à prática do exercício entre pessoas, instituições, ongs, meio acadêmico-científico e comunidades afins na orientação de novas relações que devem existir para responder a novas demandas, e no caso dos países periféricos, de problemas persistentes, que devem ser modificados. 266 MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. São Paulo: Martins Fontes, 1976. 93 A mudança social acontece por uma motivação e re-ação interna/pessoal e grupal, pressionada pela coerção da situação social. Aqui poderíamos como já fizemos, nomear outras várias situações que emergem e exigem uma mudança radical de mentalidade como defesa da vida e da dignidade humana, do meio ambiente, a calamidade do HIV na África bem como o seu saqueamento pelos países ricos, a crescente pobreza dos países da América Latina, a situação da palestina e do Haiti e o desrespeito aos direitos humanos de modo geral. Tudo isso exige de nós uma mudança de mentalidade, no que Maurício Abdalla propõe como uma “nova racionalidade”267, na tentativa de responder aos problemas atuais e conviver com suas demandas. Segundo Abdalla essa mudança da racionalidade humana está em processo. Ele discorre dizendo que todo processo que envolve uma transformação mais global é demorada, mas contínua; e acredita que estamos vivendo essa situação, a começar pelas duas grandes guerras do século XX, de Hiroshima e Auschwitz e agora do aquecimento global devido às emissões de gases, prejudicando a vida humana e todo seu habitat, o meio ambiente. Essa concepção está fazendo surgir uma nova racionalidade que deve passar pela integração do homem com todo o universo e a sua interação com este grande outro268. Nesse intenso conflito surgido a partir de debates, fóruns, estudos... e que acaba fomentando mais discussões, faz-se perceber nitidamente a queda de braços entre a ciência que tem seus argumentos fundados em sua epistemologia experimental; e o poder econômico, representado sobretudo pelos EUA, com suas grandes empresas e organizações financeiras. Alguns dados nos chamam atenção para isso: segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), ligado às Nações Unidas, o cenário é o mais sombrio já apresentado em quase vinte anos de estudo. “As populações mais pobres, estejam na África ou na Europa, são as mais vulneráveis. Milhares de pessoas já estão expostas à escassez de água e o número vai se converter em bilhão à medida que o aquecimento se agrave”269. Os números impressionam. O IPCC analisou dados coletados em cerca de 80 mil séries de estatísticas, componentes de 577 estudos realizados entre 1970 e 2004, e consta que “hum bilhão de pessoas está exposta à severa escassez de água e 600 milhões 267 ABDALLA, Maurício. O princípio da cooperação: em busca de uma nova racionalidade. São Paulo: Paulus, 2002. 268 Ibidem p. 30. 269 CANÔNICO, Marco Aurélio. Os pobres já pagam a conta do clima. FOLHA DE SÃO PAULO, 0704-2007. 94 sujeitas à fome em razão de secas, à degradação dos ambientes e à salinização do solo”270. Algumas conclusões graves nesse sentido estão expostas no relatório e exige uma mudança de racionalidade, uma atitude misericordiosa no sentido exposto por Sobrino: uma re-ação. É uma reação que se faz sentir por pressões vindas de diversas nações e organismos, fundados nos argumentos de pesquisadores da eco-logia. Resiste-se à depredação do meio ambiente o foro interno humano com mediadas de coerção e coação para não prejudicar ainda mais o habitat humano, viabilizando medidas mais cautelosas e menos violentas. Esse conflito tende em si mesmo, com as forças contrárias, provocar mudança nas estruturas internas. Desse modo, dentro do método sobriniano essa ebulição de acontecimentos provoca uma ruminação, internalização e assimilação, ou seja, um espírito crítico de reconfiguração da racionalidade que os humanos conhecem através de uma interação que avança na história. Para isso produz-se todo tipo de encontros entre nações, organismos, universidades, igrejas, empresas... com intuito de mudar a ordem desigual do mundo. Surgem desses encontros algumas idéias produtivas, mas sempre falta algo que é a capacidade de concretização, ou seja, o passo fundamental para se efetivar o princípio misericórdia. O princípio misericórdia, eixo central do pensamento sobriniano, fio condutor deste estudo, o foi também para este capítulo. Sua proposta impacta, pois assegura que para o samaritano estar convicto de sua dignidade precisou encontrar o ferido. Sobrino diz que temos que deixar-nos orientar pelo povo oprimido271. A transformação desejada é, portanto, “uma ação histórica e não imediata”272. Em diferentes lugares vão surgindo muitas experiências alternativas, de revisão de valores e novas propostas de economia, de relação. São ações cooperativadas que renunciam à acumulação desmedida e à exploração que causa a violência estrutural: as feridas humanas e o embrutecimento nas relações sociais. Efetivar a misericórdia requer garantir a sobrevivência, ou melhor, a vida da pessoa, possibilitando o reencontro do ser humano com a sua essência273. 270 Ibidem. SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007. Cf. também SOBRINO, Jon. Extra pauperes nula salus. Revista Latinoamericana de Teologia, Nº. 69, setembro/dezembro de 2006, p. 219 – 261. 272 ABDALLA, Maurício. O princípio da cooperação: em busca de uma nova racionalidade. São Paulo: Paulus, 2002, p. 98. 273 Ibidem p. 102. 271 95 A análise do pensamento sobriniano aqui apresentada, acerca do princípio misericórdia, procurou mostrar a centralidade do pobre como categoria a ser refletida na América Latina animando à possibilidade de uma reação. Com essa idéia, em perspectiva, dá-se início ao próximo capítulo que propõe, dentre outras reflexões, algumas expressões básicas como escolha para efetivar a misericórdia que é também o indicativo da contribuição que o princípio quer dar à bioética latino americana. III – Contribuição do princípio misericórdia à bioética latinoamericana Refletir acerca do princípio misericórdia na Bioética não se trata simplesmente de acrescentar-lhe mais um princípio, mas chamar atenção para um cenário que poderá se tornar relevante na Bioética, ao considerar o lugar do seu surgimento e de onde se propõe estabelecer sua interação e contribuição. Com a categoria princípio não se pretende, como foi questionado no primeiro capítulo, que o princípio misericórdia assuma caráter de universalidade. O que se deseja, porém, é enfatizar o modo de ver os fenômenos comuns na América Latina, que são as realidades estruturais e a pobreza impactante que vive a maioria de sua população. Neste contexto Jon Sobrino fala da necessidade urgente de uma re-ação que deve ocorrer em vista da valorização da pessoa humana, que passa pela superação dos sofrimentos evitáveis porque são provocados. O princípio misericórdia contempla essa situação trazendo em si mesmo questionamentos e alternativas como contributo para mudança. Sabe-se que quanto mais profunda é a ferida, mais significativa deve ser a intervenção ou a ajuda como libertação. Esse fenômeno de caráter historicamente persistente deveria assumir um cunho de preocupação fundamental no Continente, que exija independentemente de crenças religiosas e científicas, uma tomada de decisão eficaz, dada a urgência em fazer descer 96 da cruz os povos crucificados. A linguagem da cruz torna-se necessária por identificar com o sofrimento massivo dos povos que lhe abatem os ânimos em sua maneira de pensar, de agir, suas motivações, expectativas e interesses... e também suas crenças. No dizer de Sobrino, “a vida espiritual não é outra coisa senão vida com espírito e, mais concretamente – na América Latina – vida com o espírito de Jesus”274. Neste sentido, o princípio misericórdia se propõe contribuir a partir da teologia, de víeis latino americano, com a bioética também latino americana, sendo ambas interpeladas pela mesma realidade. A colaboração para o diálogo parte do lugar que o princípio misericórdia evidencia como preocupações suas. O intento deste terceiro capítulo é mostrar em que o princípio misericórdia pode contribuir com a bioética latino americana. Sua contribuição aponta para alternativas que serão refletidas daqui para frente. O capítulo está subdividido em itens. Inicia situando a origem da bioética e a responsabilidade diante de novos conflitos morais acoplados às situações persistentes que emergiram no discurso da bioética. Em seguida verificar-se-á, como necessidade, uma aproximação do discurso teológico, donde emana o princípio misericórdia, com a bioética. Por fim, são sugeridas algumas expressões básicas a partir das quais se compreende a capacidade de efetivar a misericórdia. São elas: a responsabilidade, a solidariedade, o perdão, a cooperação e a esperança abordados com freqüência na literatura sobriniana. 3.1 - Bioética e novas perspectivas Os capítulos antecedentes cuidaram de verificar o fundamento do princípio misericórdia que, a partir de agora pretende mostrar sua relevância para o discurso da bioética latino americana. A contribuição deste princípio tem amparo nos pressupostos que Miguel Kottow sugere para uma epistemologia da bioética latino americana, como a necessidade de se submeter aos rigores do debate analítico, o abrir-se para o conhecimento empírico e o incorporar à medida que o requer para avaliar as realidades, as projeções, os dilemas e as situações problemáticas que ocorrem no âmbito da reflexão, como se vê: “O discurso da bioética se submete a critérios de racionalidade, razoabilidade, prudência, coerência interna dos pronunciamentos e coerência externa do que é asseverado em relação aos antecedentes históricos e à realidade social 274 SOBRINO, J. Espiritualidade da Libertação. São Paulo: Loyola, 1992, p. 10. 97 contemporânea”275. O princípio proposto tem coerência interna entre a teoria normativa da ética e as exigências práticas. Reconhece a complexidade dos conflitos morais, mas encontra-se aberto para mediação de dilemas e problemas que são gerados no âmago das práticas sociais. A preocupação do princípio misericórdia é o modus vivendi no Continente, enraizado nas estruturas iníquas de miséria, de opressão e de injustiça donde brota a exigência ética de libertação e de solidariedade, senão de responsabilidade. A misericórdia para efetivar sua meta leva em consideração a abrangência da compreensão da vida, do ser da pessoa e de todo meio ambiente. Nota-se que uma nova racionalidade está em processo, sob um olhar crítico que contempla a pessoa humana e suas circunstâncias, com a percepção e a colaboração da Bioética276. Essa preocupação que motiva tantas pessoas comuns e cientistas era a mesma do professor oncologista da Universidade de Wiscosin, em Madison – EUA, Van Rensselaer Potter ao cunhar o neologismo Bioética: I take the position that the science of survival must be built on the science of biology and enlarged beyond the traditional boundaries to include the most essential elements of the social sciences and the humanities with emphasis on philosophy in the strict sense, meaning ‘love of wisdom’. A science of survival must be more than science alone, and I therefore propose the term Bioethics in order to emphasize the two most important ingredients in achieving the new wisdom that is so desperately needed: biological Knowledge and human values277. Potter ao publicar seu livro, Bioethics: bridge to the future, baseado numa coletânea de artigos sob sua autoria, divulgados entre os anos 1950 e 1960, tornou-se uma importante referência histórica para o pensamento. Em suas reflexões e nas definições propostas por ele à Bioética se nota a preocupação de uma nova guinada teórica, inclusive àquela do campo biomédico à qual a Bioética estava enveredando. As motivações das reflexões bioéticas dos primeiros tempos terem se centrado no campo biomédico, se deve também, segundo alguns, ao fato dela ter se originado a partir de outro pesquisador, André Hellegers, do Instituto Kennedy de Bioética em Washington, que no mesmo ano de 1971 ambos os pesquisadores utilizaram o mesmo termo. A concepção de Andre Hellegers pode, no entanto, ser reducionista se for encaixada somente na preocupação do campo biomédico. 275 KOTTOW, Miguel. Bioética prescritiva. A falácia naturalista. O conceito de princípio na bioética. In: GARRAFA, Volnei et alli (Orgs.). Bases conceituais da Bioética: enfoque latino-americano. Tradução de PUDENZI, Luciana Moreira e CAMPANÁRIO, Nicolas Nyimi. São Paulo: Gaia, 2006, p. 35. 276 POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs-New Jersey: Carl P. Swanson editor, 1971. 277 Ibidem p. 1-2. 98 A visão de Potter é mais audaz, ao definir a Bioética como uma “ciência da sobrevivência”, por ser mais abrangente e por contemplar a realidade, além da perspectiva micro, as situações de qualidade de vida e dignidade humana, abarcando inclusive uma perspectiva cósmica e ecológica, como se pode ver no prefácio e no primeiro artigo de seu livro Bioethics, The Science of Survival: What we must now face up to is the fact that human ethics cannot be separated from a realistic understanding of ecology in the broadest sense. Ethics values cannot be separated from biological facts… As individuals we cannot afford to leave our destiny in the hands of scientists, engineers, technologists, and politicians who have forgotten or who never knew these simple truths. In our modern world we have botanists who study plants and zoologists who study animals, but most of them are specialists who do not deal with the ramifications of their limited knowledge278. Essas citações evidenciam o intuito de Potter em criar uma bridge entre ciências biológicas, sociais e humanas que garanta a sobrevivência da espécie humana. Sua preocupação inclui implicitamente uma “ética de responsabilidade”, sobre a qual Hans Jonas pensa que “uma nova teoria ética deve ser pensada”279, considerando a vulnerabilidade da natureza e da pessoa humana. Para Jonas, a vida é tida “como bem supremo que deve caracterizar a teoria da responsabilidade, ou seja, o dever”280. “Eu defendo a tese de que a simples existência de um Ser ôntico contém intrinsecamente, e de forma evidente, um dever para os outros”281. A vida humana está sobre a do Homo faber. Ela consiste no bem supremo à qual a ciência e a técnica devem prover responsavelmente para lhe garantir o futuro. “Enquanto não existirem projeções seguras (...), a prudência será a melhor parte da coragem e certamente um imperativo da responsabilidade”282. A responsabilidade, embora evocada pelos filósofos desde a antiguidade até o existencialismo283, assume novas perspectivas a partir do pensamento de Jonas. Com H. Jonas a responsabilidade recebe uma ênfase particular em sua relação com o futuro da sobrevivência humana e ambiental. Jonas não está preocupado com a eternidade platônica, mas com o tempo vindouro, compatível com a era da ciência e da tecnologia, cuja responsabilidade deve ser o alicerce, o princípio orientador para as diferentes decisões a se estabelecer referentes à vida no presente. 278 Ibidem p. vii e 2. JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Tradução de LISBOA, Marijane e MONTEZ, Luiz Barros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO, 2006, p. 39. 280 Ibidem p. 149. 281 Ibidem p. 220. 282 Ibidem p. 307. 283 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 279 99 Para Hans Jonas “não é bom nem correto, e sim prejudicial do ponto de vista moral e contemplativo, encarar que a natureza, genitora do homem, cerceou seu direito de nascença, sendo a ordem natural sua inimiga invejosa, que o priva da verdadeira existência humana”284. Na sua concepção é justamente “tal atitude que poderia nos fazer perder de vista aquilo que seria ‘o verdadeiro’”285. Ao propor a idéia de liberdade como fator de vitalidade humana, Jonas cita Marx dizendo que, o “reino da liberdade começa efetivamente ali onde cessar o trabalho determinado pela miséria e pela finalidade externa; ou seja, onde o trabalho esteja, por natureza, além da esfera da produção material propriamente dita”286. Indo mais além diz que “essa libertação é a primeira de todas as liberdades, com a qual se iniciam as demais liberdades do ‘reino’, e cujo o único objetivo (...) é o desenvolvimento da natureza humana”287. A natureza humana fica, no entanto, comprometida ao ser submetida aos interesses da estrutura econômica. Os efeitos da exploração econômica são os provocadores de perda da dignidade humana: a distribuição injusta dos bens (ou seja, não conforme ao trabalho despendido), que pode conduzir um grande número de despossuidos à degradação da sobrevivência mais elementar, que não deixa espaço para mais nada. É óbvio que tal situação amesquinha o homem como tal: a pobreza conduz ao empobrecimento também do ponto de vista moral. O que se obtém no despotismo, por meio da violência e do medo, obtém-se aqui pela miséria material e a necessidade bruta288. A partir de certo patamar não há dúvida de que a exploração destrói a liberdade interior de suas vítimas, e a privação do trato corporal estiola também o espírito e a atividade intelecutal: “Junto com o corpo, também o espírito é desempregado”289. Hans Jonas vê na utopia de Ernst Bloch a fonte para resgatar o sentido da dignidade, onde a pessoa realiza suas atividades não como obrigação, mas impulsionada pelo prazer, vocação. “Em toda relação humana é preciso que haja outra coisa além do gozo entre as mesmas pessoas. É preciso que haja um objeto de prazer que não venha apenas do mero ‘ser eu mesmo’ (...), mas provenha da relação do outro com o mundo”290. Compreendese que a dignidade humana para Jonas é aquela que deseja valorizar um tipo de 284 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Tradução de LISBOA, Marijane e MONTEZ, Luiz Barros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO, 2006, p. 309. 285 Ibidem p. 310. 286 Ibidem p. 311. 287 Ibidem. 288 Ibidem p. 275-276. 289 Ibidem p. 317. 290 Ibidem p. 332. 100 satisfação conforme a necessidade e não apenas por mero divertimento ou satisfação egoísta. Esta é uma responsabilidade com a natureza e com os outros indivíduos. É nesta perspectiva também que Jon Sobrino relaciona, em linguagem teológica latino americana, o respeito incondicional do ser humano. Com o seu princípio misericórdia aponta para a necessidade do restabelecimento real do agir e do sentido para aqueles que vivem na América Latina. A proposta do princípio misericórdia é nitidamente levar à consciência da necessidade de libertar a realidade da miséria, sendo esta a centralidade e expressão marcante na vida cultural, religiosa, política e econômica das vítimas que vivem neste mundo. “As vítimas deste mundo são o lugar de onde brota a cristologia sobriniana e, ao mesmo tempo, os seus destinatários privilegiados”291. As “vítimas deste mundo” ou “os povos crucificados”, expressões sinônimas das palavras pobres e miseráveis “são os ‘sinal dos tempos’, a realidade cruel, diante da qual precisamos ter ‘olhos novos para ver a verdade da realidade’; a verdade dos seres humanos; a verdade de Deus; e reagir com coração cheio de misericórdia”292. Neste sentido, o professor Volnei Garrafa afirma que “a bioética dos países periféricos deve preocupar com as situações persistentes, com aqueles problemas que continuam acontecendo e que não deveriam mais acontecer. Os conflitos resultantes daí não podem ser analisados exclusivamente com teorias éticas vindas de países centrais”293, onde a discussão bioética gira mais em torno das questões biomédicas, com o qual o mundo biomédico brasileiro tem muito laços. Contudo, o princípio misericórdia vinculado à teologia precisa ser adequadamente compreendido na bioética latino americana, que apesar das preocupações comuns, como no caso de uma “ética da libertação”, este é um diálogo que, segundo Márcio Fabri, não é tranqüilo e precisa ser serenamente considerado. Para ele algumas dificuldades se interpõem ao se incluir a teologia no diálogo interdisciplinar da bioética294. Por isso, convém deter brevemente nessa questão, com o intuito de alargar a compreensão, perguntando quais seriam essas dificuldades? Sobre isso veremos a seguir. 291 BOMBONATTO, Vera Ivanise. Seguimento de Jesus: uma abordagem segundo a cristologia de Jon Sobrino. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 193 e 195. “Por conseguinte, o ‘lugar’ da teologia não é um ubi categorial, um lugar concreto geográfico-espacial – universidade, seminário, comunidade de base, cúria episcopal... -, ainda que seja preciso estar presente nesses lugares. Por ‘lugar’ teológico se entende aqui um quid, uma realidade substancial na qual a cristologia se deixa ‘contaminar, questionar e iluminar”. 292 Ibidem. 293 GARRAFA, Volnei e PORTO, Dora. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In: GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 35. 294 ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465. 101 3.2 - Bioética e Teologia: reflexões, conflitos e contribuições A aceitação do princípio sobriniano para uma contribuição com a Bioética pode causar resistências em alguns pensadores no âmbito científico, por não concordarem com os métodos epistemológicos vindos teologia e por desacreditar que ela possa oferecer algum contributo relevante para o pensamento sistemático experimental. Essas são dificuldades a que vamos brevemente nos deter a fim de clarificar o lugar donde fala o princípio misericórdia. As dificuldades vêm dos preconceitos históricos de ambas, e dos quais elas precisam se libertar para compreender o princípio misericórdia, e impulsionadas por ele, ampliar os horizontes em perspectiva de um novo contexto e nova realidade. Deve-se considerar que “De fato, o discurso religioso veiculado pela teologia na bioética é recebido de forma variável, entre a simpatia e a antipatia, a indiferença, a desconfiança, a integração e a total separação”295. Mas “cresce a consciência de que as realidades são por demais complexas para serem compreendidas por uma só forma de saber isoladamente. Por isso, “o diálogo será possível e proveitoso se a teologia e as ciências se libertarem de alguns preconceitos”296. As dificuldades entre a teologia e a bioética nem sempre são claras, o que dificulta examiná-las detalhadamente, mas cônscias do lugar de suas contribuições podem estabelecer um intercâmbio mais respeitoso com propostas comuns. João Batista Libânio diz que “as ciências e a teologia devem ter consciência da identidade e da diferença de suas abordagens da realidade. É a dialética da identidade e da diferença, sem a qual qualquer diálogo é impossível”297. Um discurso intransigente de ambas as partes impõem alguns limites para um diálogo e ajuda mútua. O fenômeno da secularização nas sociedades atuais tem sua evidência nas características multiculturais e multiconfessionais consideradas como valor. Esta concepção, de cunho laico, como uma espécie de “ateísmo metodológico”, quer reforçar a laicidade do discurso científico, do poder público e outros, como se a todo o momento tivesse de protegê-los de um mal, como se credita ser a reflexão teológica, ao partir do pressuposto de que a reflexão da teologia é sempre dogmática298. 295 Ibidem. Ibidem. 297 LIBÂNIO, João Batista. Teologia e interdisciplinaridade: problemas epistemológicos, questões metodológicas no diálogo com as ciências. In: SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Mysterium creationis. Um olhar interdisciplinar sobre o Universo. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 11- 43. 298 ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465. 296 102 A resistência de alguns pensadores da bioética, neste sentido, está em assimilar para sua reflexão os dogmatismos da reflexão teológica. No dizer de Jorge José Ferrer e Juan Carlos Álvares “a marginalização da religião e da linguagem religiosa em bioética é fato inegável”299. Afirma também Alastair Campbell: “Existem colegas que pensam que, se abrirmos a Bioética à religião, estaremos escancarando também as portas ao dogmatismo. Penso diferente: não é possível trabalhar sem religião, aquilo que move a compaixão. Não como elemento central”300, mas como uma parceira em benefício da justiça e talvez nos ajude a compreender ao nosso próximo. Entretanto, Márcio Fabri dos Anjos pontua que a ciência também não é neutra e nem desprovida de interesses em seus discursos, ao passo que “a teologia tem uma importante contribuição diante dos fundamentalismos religiosos”301, na compreensão de determinadas culturas. Algumas autocríticas da teologia são apontadas por este autor numa tentativa de aprofundar o debate com a bioética. A primeira enfatiza que com a modernidade “o simples recurso à autoridade divina já não mais garante a certeza e a inquestionabilidade das afirmações e normas éticas. Cresceu a consciência sobre o lugar do indivíduo humano no mundo e sobre a sua capacidade de interpretar e elaborar a ‘verdade’”302. Uma segunda autocrítica é feita pelo pensamento de R. McCormick, apud Anjos, que observa “certa presunção da teologia em se entender no singular e de forma unívoca de tal modo a poder oferecer alimento, bases, correções e perspectivas para a bioética, de forma acabada”303, sendo que temos razões para estar conscientes da pluralidade das afirmações teológicas, dada às diferentes correntes, experiências e paradigmas. A partir da modernidade, com a valorização do sujeito e sua individualidade, “os teólogos reconhecem a autonomia da razão em pesquisar, argumentar e propor, sem que isto seja uma contradição da fé, mas ao contrário vêem nisto um subsídio à própria fé 299 FERRER, Jorge José e ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. Teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. Tradução de MOREIRA, Orlando Soares. São Paulo: Loyola, 2005, p. 79. 300 CAMPBELL, Alastair. Deus e a Bioética. Centro de Bioética do CREMESP. http://www.bioetica.org.br/?siteAcao=Entrevista&exibir=integra&id=16; acessado em 02-02-2007. Ao ser perguntado “Qual o papel de Deus na Bioética Contemporânea?”, Campbell diz ser essa uma questão complicada, mas vivemos numa sociedade pluralista, onde todas as coisas parecem relacionadas à bioética. “Mas, para mim, a bioética pode nos ajudar a concluir que Deus ama a todas as pessoas e é um apaixonado por justiça. Há princípios cristãos, similares em quase todas as religiões que, de certa forma parecem estar ‘embutidos’ naqueles que dão sustentação à Bioética”, como no caso da Beneficência: ame seu próximo como a si mesmo; o da não-maleficência... 301 ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465. 302 ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: Abrangência e Dinamismo. Revista Espaços, 1996, p. 131-143. 303 Ibidem. 103 religiosa”304. Com essa abertura a teologia se mostra modesta e disponível para o diálogo com a realidade por demais complexa para dá-la como acabada. “Na verdade, a reflexão teológica em bioética não é possível sem um mínimo de informações de dados que os teólogos tem que buscar em outras áreas não teológicas”305. Com essa postura a teologia se mostra madura na sua potencialidade, de poder contribuir ainda muito mais, como instância capaz de ouvir para desenvolver uma crítica e alimentar uma razoabilidade frente às situações que pedem respostas mais convicta que brotam da abertura e da solidez que vem do consenso. Nesta compreensão pode-se entender que no intercâmbio há o crescimento da teologia e da bioética. A reciprocidade, dentro da pluralidade, tem na vida ética, e na reflexão bioética, a possibilidade de aprofundar e amadurecer as particularidades, numa colaboração mútua e contínua que ajuda ou eleva ao crescimento. Assim elas não se separam, mas se juntam; não se dividem, mas crescem com a mesma finalidade: na América Latina, reagir com misericórdia ajudando o homem que vive neste contexto sócio-econômico, político, cultural e religioso determinados. Precisa-se, entretanto, ter cuidado para algumas distinções próprias de ambas as ciências envolvidas no diálogo, como a questão da linguagem, de distinção conceitual, para não sofrerem nenhum prejuízo em suas reflexões e não sofrerem também por isso, de retrocessos. Márcio Fabri pontua, por exemplo, a diferença na percepção do conceito de “salvação”, quando as grandes e rápidas mudanças desafiam a responsabilidade humana em projetar o futuro. “A questão de fundo pode ser formulada em termos de salvação. Este é um conceito mais usado em teologia do que em bioética. Entretanto, também a bioética se pergunta: como construir um futuro que garanta no mínimo a sobrevivência da vida, um futuro de crescimento integral e paz?”306. O conceito de ‘salvação’, importante na compreensão do princípio misericórdia, não coincide em bioética e em teologia, mas, apesar da complexidade, mostra algumas aproximações: “Transcendência e escatologia marcam o horizonte da visão teológica; enquanto que a bioética, de modo geral, cultiva um âmbito intra histórico da sobrevivência e realização humana”307. A aproximação acontece quando teologia política e a teologia da libertação, 304 Ibidem. Ibidem. 306 ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética e Teologia: janelas e interpelações. Revista Perspectiva teológica. Nº 89, janeiro/abril de 2001, p. 13-31. 307 Ibidem. Assim diz Márcio Fabri que “Este ponto de encontro de bioética e teologia é, com certa facilidade, identificável por parte dos teólogos/as que lidam com a bioética, ao deparar e mesmo se surpreender com um grande senso de justiça, solidariedade e humanismo que preside em grande parte a 305 104 por exemplo, se propõem discutir a importância da transformação histórica. “Na coerência desta postura, a teologia se vê hoje diante do desafio comum em salvar a humanidade, seu meio ambiente e toda forma de vida”308. Com isso “a teologia encontra então, na bioética e na ecologia, grandes aliadas para repensar este braço imanente da salvação”309. Além dessa importante purificação conceitual, João Batista Libânio chama a atenção dizendo que, “tanto as ciências quanto a teologia devem prestar atenção aos interesses, muitas vezes corporativos que decidem sobre seus procedimentos teóricos e afetam suas conclusões”310. As ciências não estão isentas de sujeitos concretos, que trazem consigo interesses para a interpretação de seus dados. “A teologia da libertação, em diferentes momentos, tem identificado uma base de cunho religioso subjacente a teorias e a ciências aparentemente leigas”311. Essa percepção denota que, subjacentemente, há em cada discurso seja científico, religioso ou alhures a revelação ou o desvelar de uma crença. Edgar Morin diz que a própria ética tem como verdadeiro problema, saber fundamentar uma auto-ética, uma ética fundada sobre si mesma, no nível da autonomia do pensamento e da liberdade pessoal. Mas, ao mesmo tempo, se essa ética não pode ter fundamento, ela precisa ser explicada ou iluminada por uma fé. Não uma fé religiosa no sentido tradicional, mas uma fé na fraternidade, no amor e na comunidade, que não seria o fundamento da ética, mas sua fonte de energia312. Nesse artigo Morin diz não acreditar que exista uma ética sem fé, mas que também isso não elimina os problemas de auto-ética que ele percebe em três ordens: “1) O bioética. Mas também da parte de instâncias da bioética se mostra uma confiança na parceria com a teologia. Um exemplo claro está nas Normas para pesquisa envolvendo seres humanos, do Conselho Nacional de Saúde. Ali se promulga a participação de teólogos na composição dos CEPs (Comitês de Ética em Pesquisa) e no CNEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa)”. Ibidem. 308 Ibidem. 309 Ibidem. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa aponta a etimologia do termo salvação para a mesma realidade que designa saúde que é pôr a salvo, defender, conservar, guardar, preservar, salvaguardar, desculpar, justificar; do latim, salute - salvus como conservação da vida, estado do indivíduo cujas funções orgânicas, físicas e mentais se acham em situação normal; estado do que é sadio ou são; força, robustez, vigor. Cf. também FRANCISCO, Alvarez. Salvação. In: VENDRAME, Calisto e PESSINI, Leocir (Orgs.). Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde. São Paulo: Paulus/Centro Universitário São Camilo, 1999, p. 1149-1158. A mais recente definição de saúde da OMS (Organização Mundial de Saúde) é “um estado de bem-estar total, corporal, espiritual e social e não apenas a inexistência de doença e fraqueza”. BOFF, Leonardo. Cuidar da vida e da criação. In: BEOZZO, José Oscar et alli. Saúde. cuidar da vida e da integridade da criação. São Paulo: Paulus, 2002, p. 89-108. 310 LIBÂNIO, João Batista. Teologia e interdisciplinaridade: problemas epistemológicos, questões metodológicas no diálogo com as ciências. In: SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Mysterium creationis. Um olhar interdisciplinar sobre o Universo. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 11- 43. 311 ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465. 312 MORIN, Edgar. Ética e sociedade. In: PENA-VEJA, Alfredo et alli (Orgs.). Edgar Morin: Ética, cultura e educação. São Paulo: Cortez, 2001, p. 39-45. 105 primeiro jaz nas contradições éticas, ou seja, no confronto de imperativos categóricos antagônico; 2) O segundo se situa no nível das incertezas éticas; 3) O terceiro é a problemática do ‘eu’ em relação a si mesmo”313. Com isso, pode-se dizer que não existe o não-acreditar, mas sim, modos diferentes de crer, o qual é possível ser verificado até mesmo dentro da bioética314. Anjos refere que Manfredo Araújo de Oliveira “demonstra como seria pretensão insustentável monopolizar a racionalidade humana no âmbito do saber empírico, quando de fato temos a necessidade de lidar com dimensões que não são fenômenos empíricos, mas estruturas não-temporais”315. Neste ponto “se situa a teologia como um tipo de saber. A racionalidade própria da teologia, enquanto ciência humana é de tipo hermenêutico, e traz uma contribuição específica ao buscar a interpretação da vida nas dimensões espirituais do ser humano e ao considerar a vida para além do tempo”316. Atenta a essa abertura pode-se dizer que, ao menos em termos gerais, a teologia tem uma grande contribuição a oferecer à bioética. Anjos acena também como exemplo as contribuições dos escritos de J. Mo Sung ao analisar o conteúdo filosófico, antropológico, mas, sobretudo, religioso e teológico subjacentes ao capital e a toda a racionalidade econômica. E conclui que parece, com isso, necessário admitir que a confessionalidade não ocorre apenas em âmbitos religiosos. Estamos habituados a assistir à formação de ‘escolas’, ‘tendências’ e ‘correntes’ em uma ciência. Estas são resultados de uma aceitação comum de pressupostos, de métodos, de opções na interpretação. A formação de grupos em torno de um assim chamado ‘credo’ mais ou menos fundamentado é condição constante do ser humano, que soma convicções, mas é sempre tateante na busca da certeza. Dessa forma, comunidades em torno de convicções são inevitáveis e mesmo necessárias317. 313 Ibidem. ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: Abrangência e Dinamismo. Revista Espaços, 1996, p. 131-143. 315 ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465. 316 Ibidem. Segundo ANJOS, “Espiritualidade e mística são dois termos com raízes etimológicas diferentes que, entretanto, visam colocar em pauta uma pergunta fundamental em que se encontram bioética e teologia: o dinamismo e as motivações escondidas que presidem a condução consciente da vida e de seus processos. A formulação deste conceito é teológica. Mas a constância de sua presença na bioética é uma realidade que a teologia tem ajudado a evidenciar. Há mais tempo a teologia vem chamando a atenção sobre a luta dos ‘deuses’ que preside as escolhas humanas, e as formas religiosas subjacentes às relações econômicas e de mercado. Mesmo superando a demonização do mercado, persiste a identificação de opções de fundo que presidem e dinamizam a atividade humana. (...) De forma mais ampla e fundamentada, Tristam Engelhardt, em sua obra The foundations of Christian bioethics afirma com todas as letras a importante contribuição da mística cristã para a bioética.” ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética e Teologia: janelas e interpelações. Revista Perspectiva teológica. Nº 89, janeiro/abril de 2001, p. 13-31. 317 Ibidem. 314 106 Segundo Márcio Fabri dos Anjos “o que de fato incomoda, tanto em grupos religiosos como em comunidades científicas e semelhantes, é a convicção transformada em pretensão de monopólio da verdade. Esta corta as possibilidades de diálogo, torna as posições rígidas e confere um perfil sectário às convicções”318. Este pode ser “o principal fato responsável pela suspeita que tem pesado sobre confessionalidades religiosas, mas que atinge também outros tipos de grupo”319. Para o grupo que não se abre ao diálogo há uma forte tendência de isolamento, de modo a não perceber a complexidade das realidades. Agindo assim, isoladamente de outros saberes, uma reflexão torna-se reducionista e merecendo pouco crédito. Nas extremidades das convicções K. Popper nos interpela para um mundo de propensões em vivermos sem certezas, mergulhados apenas em pequenas verdades transitórias320. Esta citação é típica da abertura, hoje, necessária e fundamental para a compreensão do conhecimento que se caracteriza interdisciplinarmente. A solução perpassa pela colaboração de diferentes “comunidades”, que na inter-relação constroem o saber a partir da troca, das discussões, de encontros, de discordâncias num diálogo que Márcio Fabri ousa chamar de “negociação de saberes”321, característico para a relação entre os saberes ora abordado. Para tanto isso exige a libertação do absolutismo, dos dogmatismos e das certezas atávicas. Sobre essa relação Carlos Selleti diz, num mundo plural, não existem absolutos. Em tempos de pluralização, a moralidade perde a sua força. A superficialidade se revela, como uma faca de dois gumes, com uma outra face desta pluralidade. Com a crescente possibilidade de alternativas, nenhuma delas se torna absoluta e profunda. Tudo passa a ser relativo e a conseqüência desta pluralidade poderá ser uma sociedade com raízes superficiais, frágeis à menor turbulência, sem elementos 318 Ibidem. Ibidem. 320 POPPER, K. Um mundo de propensões. Lisboa: Fragmentos, 1991. Sobre isso diz o físico norteamericano Marcelo Gleiser que “Jamais poderemos ter uma descrição completa da realidade, pelo simples fato que jamais poderemos ‘vê-la’ por inteiro. Estamos condenados a uma visão míope do real. Conseqüentemente, nossa ciência, enquanto descrição da realidade que podemos perceber é necessariamente incompleta. Isso pode ser um choque para aqueles que acham que a ciência é dona da verdade absoluta ou que os cientistas sabem tudo. Grande ilusão. Sabemos aquilo que podemos averiguar sobre o mundo. O mundo, ou melhor, o Universo, seja ele macro ou micro, é bem mais amplo do que o que podemos medir. Mas é justamente essa limitação que torna a pesquisa em ciência emocionante. Sabemos que um pouco além reside o desconhecido. E que esse além estará sempre lá. Estamos sempre descobrindo algo de novo, muitas vezes inesperado, sobre o mundo. Ou, se nada de novo aparece, estamos sempre aprimorando as teorias e modelos que já tínhamos, baseados em medidas melhores e mais precisas...” GLEISER, Marcelo. A emoção do não-saber. JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO, 2406-2007, Caderno Ciência. 321 ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465. 319 107 reguladores ou integradores das consciências. Nesta ordem de idéias, todas as pessoas deverão ser adestradas no mundo das opções322. Nessa ebulição de confrontos de idéias, inovações e comportamentos de individualidades, em que cada pessoa e grupos reiteram suas convicções, somos todos uma espécie de “estranhos morais”323 em que as ciências e a teologia não podem perder o seu foco ou o seu interesse fundamental de investigação e buscas: a vida da pessoa, sobretudo, a mais vulnerável, como último fenômeno da exigência ética. A exigência da América Latina, contudo, não se trata apenas de elaborar reflexões, discussões e debates. Claro que isso conta e é fundamental. Mas a exigência da realidade de pobreza é maior e reclama por atitudes e comprometimentos. Uma ética somente de discurso experimenta o que Henrique C. de Lima Vaz chamava de “vazio ético” ou “niilismo ético”, dentro de suas infinidades de refutações mútuas, discursos e brigas ideológicas que podem acorrer num indiferentismo324. Nesse sentido é oportuno se dar conta de que a fome não tem ideologias. Sobrino concorda quando Casaldáliga afirma que “Tudo é relativo, menos Deus e a fome”325. O faminto tem pressa e essa realidade cruel deve interpelar para o que é verdadeiro e não se pode desmentir ou disfarçar. Essa interpelação, para Lévinas, coloca a descoberto a compreensão do outro a partir de sua totalidade concreta como interlocutor, no qual se expõe “um nu mais nu que o da pele que, forma e beleza, inspiram as artes plásticas; nu de uma pele exposta ao contato, à carícia que sempre, e mesmo na voluptuosidade equivocadamente, é sofrimento pelo sofrimento do outro”326. “Despojado de sua própria forma, o rosto é transido em sua nudez. Ele é uma miséria. A nudez do rosto é indigência e já súplica na retidão que me visa. Mas esta súplica é uma exigência”327. Na visão levinasiana, diante do rosto do outro, o sujeito se descobre responsável e lhe vem a idéia de infinito. 322 SELLETI, Carlos Jean e GARRAFA, Volnei. As Raízes Cristãs da Autonomia. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 88. 323 ENGELHARDT, H. Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução de CESCHIN, José A. São Paulo: Loyola, 1998, p. 116. 324 VAZ, Henrique C. de Lima. Ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1993, p. 16-21. Cf. também VAZ, Henrique C. de Lima. Introdução à ética filosófica. São Paulo: Loyola, 1999. Marcelo Perine, estudioso da vasta obra de Pe. Vaz, diz estar convencido de que uma preocupação ocupou o horizonte intelectual do Pe. Vaz nos últimos vinte anos da sua reflexão: a crise ética como crise de sentido, cuja expressão mais aguda é o niilismo. PERINE, Marcelo. A ética e a crise da modernidade: uma leitura a partir da obra de Henrique Lima Vaz. http://www.unisinos.br/ihu/; acessado em 23-04-07. 325 SOBRINO, Jon. Epílogo. In: VIGIL, José Maria (Org.). Descer da cruz os pobres: cristologia da libertação. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 345-357. 326 LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993, p. 99. 327 Ibidem. 108 Mostrar a um indivíduo tal orientação é identificá-lo com a ética, em que o eu perante o outro se torna infinitamente responsável328. O princípio misericórdia se compreende também a partir dessa responsabilidade concreta com o outro ao enfatizar, a partir do discurso teológico, a necessidade premente de libertação e a importância de criar consciência de cidadania para efetivação dos direitos. Um aporte anterior à concepção de direito é o senso da dignidade humana como finalidade, e que socorre o pobre e o vulnerável como exigência ética prioritária diante do esfacelamento da sua condição de pessoa. Nela “existe o dever ético de preservar em mim e nos outros a possibilidade de conferir um sentido à existência”329. O fato de simplesmente ser “humano” confere o traço de inerência e paridade à pessoa como sujeito à sua condição corporal e psíquica que exige respeito, defesa e promoção entre as condições de vida. 3.3 – Algumas expressões básicas do princípio misericórdia A elaboração do princípio misericórdia sobriniano tem na dignidade humana o seu referencial e critério para saber quando é necessário agir movido com misericórdia. A todo instante a população latino americana tem seus direitos fundamentais e sua dignidade humana ameaçados. Poder-se-ia perguntar qual o pressuposto base para justificar o agir movido por este princípio? A resposta mais imediata na compreensão de Sobrino é aquela que vê o ser do ser humano que, estando fragilizado por situações inumanas, precisa ser restabelecido. Neste sentido faz-se necessário agir reativamente para restabelecer sua vitalidade e suas condições dignas de sobrevivência. Para isso, algumas expressões básicas são empenhadas na busca de alternativas que favoreçam essa condição. Propomos, no entanto, daqui em diante, aquelas que assumem uma correlação e proximidade com o princípio misericórdia que são a responsabilidade, a solidariedade, o perdão, a cooperação e a esperança. Além de orientar a reflexão que se seguem as expressões propostas ajudarão apontando alternativas para efetivação do princípio misericórdia. 328 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Tradução de RIBEIRO, José Pinto. Lisboa: Editora 70, 1988, p. 70. 329 JUNGES, José Roque. Bioética. Hermenêutica e casuística. São Paulo: Loyola, 2006, p. 132. 109 3.3.1 - Responsabilidade A responsabilidade não nasce somente de uma boa vontade, de um eu que quer se comprometer com o outro. A responsabilidade nasce como resposta. Ela caracteriza e identifica o sujeito ético como único e imediatamente para-o-outro. A responsabilidade é a expressão básica, considerada o existencial primeiro, de uma estrutura da racionalidade humana, que caracteriza o universo verdadeiramente humano. Lévinas330, ao descrever a estrutura ética da racionalidade, coloca como fundamento primeiro e essencial, a responsabilidade. A ética não aparece como suplemento de uma base existencial prévia, mas como responsabilidade que brota da subjetividade humana. A responsabilidade pelo outro prescinde da representação conceitual ou da mediação de um mandamento ético. Ela é obediência a uma vocação, a uma eleição pelo bem além do ser. A responsabilidade determina a liberdade do eu. A liberdade não consegue se justificar por ela mesma. A infinitude não está no livre-arbítrio, mas na responsabilidade pelo outro homem. Para Lévinas “justificar a liberdade não é demonstrá-la, mas torná-la justa”331. Neste caso a moralidade não se funda sobre a autonomia da vontade racional, mas sobre uma outra base que orienta e precede o sujeito, ordenando-lhe ao bem. Isso não parece significar que a partir da autonomia da vontade o eu seja incapaz de realizar ações de cunho ético porque, uma ética que tem como base a consciência que coincide consigo mesma não assegura o respeito pelo outro ser. Não se trata, porém, de negar a identidade, mas de afirmar a individualidade do eu, ou seja, do sujeito. Nesta compreensão se entende que o eu é, na medida em que é responsável por outrem. Somos todos responsáveis por tudo e todos responsáveis perante todos, e ao tomar consciência, a responsabilidade do eu é maior que a dos outros. A responsabilidade neste caso é assumida não somente pelos atos que se comete, mas também por aqueles que não são de sua autoria. A partir disso se compreende que o humano emerge, quando o eu, ao invés de procurar satisfazer seus interesses, estende a mão a outrem. O caráter humano de um sujeito não se dissocia da responsabilidade por outrem. Isso significa que a responsabilidade não se mede pelos compromissos livres de uma mentalidade egoísta. 330 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Tradução de RIBEIRO, José Pinto, Lisboa: Editora 70, 1988. 331 Ibidem p. 70. 110 Essa compreensão parece contrastar com a visão tradicional da responsabilidade, vista como decorrente de uma interpretação da liberdade, baseada numa escolha livre, em que a responsabilidade consiste em responder por atos praticados. A responsabilidade como princípio, tal como em Jonas, é preventiva, como que sem responsabilidade não há liberdade. A liberdade depende da responsabilidade que se lhe impõe e também dá sentido. Sem responsabilidade a liberdade se desvanece, vira libertinagem. Do ponto de vista ético o sujeito é responsável quando é capaz de se autodeterminar, com consciência. Neste sentido, ser responsável é ser capaz de prever os efeitos do próprio comportamento e quando for equivocado saber-se corrigir com previsão. Parafraseando o imperativo kantiano a responsabilidade como princípio ético leva a crer que a ética exige que cada um deva agir de acordo com as suas convicções pessoais, mas esta deve estar de acordo com o que é válido para os demais. Para Hans Jonas a responsabilidade não está centrada nem no passado nem no presente. Sua preocupação é com o futuro e com as gerações futuras e a sobrevivência das mesmas. É neste sentido que se devem refletir as situações histórico-persistentes na América Latina. À pergunta que o autor formula em seu livro O princípio responsabilidade: “O que poderia satisfazer mais uma busca consciente da verdade?”332. Ele mesmo “recorda as palavras de Oppenheimer que, após anos trabalhando em um laboratório na busca da fissão nuclear e observando sua aplicação em Hiroshima, teria assinalado que, naquele momento, o cientista puro tomou conhecimento do pecado”333. A partir desse momento, ele diz, a paz de consciência foi abalada em todos os campos de investigação. É a mesma consciência exigida ao elaborar uma teoria científica a partir da América Latina. Por essas e outras razões Jonas, no seu livro, defende a criação de uma teoria da responsabilidade. A responsabilidade que Jonas nos quer chamar a atenção vai em direção ao princípio misericórdia sobriniano, numa atitude de re-ação misericordiosa com aquele que é menos favorecido e mais vulnerável. A ética da responsabilidade de Jonas tem “como característica o defeito de favorecer o lado menos beneficiado pelas circunstâncias. Tal ética estará sempre ao lado dos fracos contra os fortes e dos que aspiram contra os que já possuem”334. Ainda segundo ele, “só uma ética que nos responsabilize a todos pode cumprir seu papel de apontar os valores e os fins a serem 332 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Tradução de LISBOA, Marijane e MONTEZ, Luiz Barros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO, 2006, p. 18. 333 Ibidem p. 19. 334 Ibidem p. 18. 111 perseguidos”. Sobrino diz que é necessário “Vincular el futuro de la humanidad al destino de los pobres se há hecho uma necesidad histórica (...) solamente lãs víctimas pueden redimirlo”335. O discurso da responsabilidade é situado no humanismo cristão em vista do respeito à vida que lhe é inerente. Qualquer tentativa de degradação humana coloca em cheque os princípios para os quais o torna humano. A “dignidade do ser humano exige que possa agir de acordo com uma opção consciente e livre, isto é, movido e levado por convicção pessoal, e não por força de um impulso interno ou debaixo de mera coação externa”336. Em vista dessa responsabilidade, o magistério eclesiástico latino americano, reunido em Puebla cunhou a célebre expressão “opção pelos pobres”, no intuito de chamar para uma reflexão profunda e o comprometimento com aqueles que Gustavo Gutierrez diz “que morrem antes do tempo”337. A opção pelos pobres é um reagir terminantemente contra a miséria e reagir por uma única razão: “confrontar todo ser humano pelo simples fato de sê-lo. Esta é a forma de ver a realidade, de reagir diante dela, encarnar-se nela e viver como ser humano: salvo”338. O princípio misericórdia na sua reflexão leva em consideração a pobreza real em que vivem os pobres históricos. Viver uma pobreza espiritual à margem da pobreza real, dicotomiza o sentido que se propõe aqui, transformando-se numa mera espiritualidade sapiencial, ascética e estética, de caráter individualista, espiritualista e aristocrática, que acaba pervertendo a compreensão da espiritualidade, além de contribuir para a ideologia de dominação que neste estudo se propõe superar. Um exemplo, mediado pela responsabilidade, são as pesquisas em seres humanos realizadas em países pobres do hemisfério Sul. O bioeticista, professor William Saad Hossne, propõe em seus estudos que os princípios do principialismo, elaborados por Tom Beauchamp e James Childress, nos apontam um acometimento de injustiça em que diante de um sujeito de pesquisa, não raramente fragilizado, dependente direta ou 335 SOBRINO, Jon Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 96. 336 COMPÊNDIO Vaticano II. Constituição Pastoral GS. Nº 17, Petrópolis-RJ: Vozes, 1998, 27ª ed. 337 SOBRINO, Jon. Opção pelos pobres. In: SAMANES, Cassiano Floristán e TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. Tradução de FERREIRA, Isabel Fontes Leal e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p. 528-540. Aqueles que se aproximam da morte lentamente, devido a estruturas injustas que privam de vida, em si mesma “violência institucionalizada” e aqueles submetidos à morte rápida e violenta quando tentam libertar-se de sua injusta pobreza. Pobreza relaciona-se, então, com morte. 338 Ibidem. 112 indiretamente do pesquisador e ou da instituição que o assiste, acaba cedendo sua autodeterminação, concordando com o que lhe é proposto. Abre mão de sua autonomia (isso seria autonomia?), referencial caro à bioética, pelo receio de ser prejudicado em seu atendimento e outras razões. O mais grave, dizia William, está em propiciar, “de modo sub-reptício, a ‘legalização’ de eventuais injustiças já contidas na proposta” 339. Esse mesmo caso diante de outro referencial, a vulnerabilidade, cabe perguntar “se eticamente o pesquisador pode propor ao sujeito de pesquisa algo que é eticamente insustentável e que passaria a ser aceitável porque o sujeito concordou com a proposta inaceitável”340. “Tem o pesquisador, eticamente, o direito de propor algo que sabidamente é inaceitável?”341. “Desse modo, em nome de um referencial caro à bioética comete-se uma injustiça dupla: injustiça de um ato não-justo, imposto ao sujeito, de um lado, e injustiça da validação da injustiça por parte do sujeito da pesquisa (assinando o termo de consentimento)”342. Cabe então a pergunta: o que aponta para a expressão básica da justiça ou injustiça? Onde se encontra em nós a percepção do que é justo ou injusto? Ainda mais: o que motiva a agir com justiça ou injustiça? Nesse contexto de povos vulnerados uma experiência física da dor só se justificará quando ela for livremente consentida, quando senti-la significar uma escolha que reflita a autonomia, mas também a responsabilidade e não a sujeição decorrente da vulnerabilidade343. Caso uma pessoa, debilitada fisicamente e vulnerável economicamente, por ignorância ou qualquer estado de vulnerabilidade, não tenha possibilidade de optar livremente, logo não é permitido, primeiro pela ética e, depois por resolução bioética, que seja violado os direitos de um sujeito em tal situação. No intuito de proteger os sujeitos em procedimentos de pesquisas, e diga-se da grande defesa aos mais vulneráveis, foi aprovada no Brasil a Resolução 196/1996, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). É uma iniciativa já consolidada no Brasil pela quantidade de CEPs (Comitês de Ética em Pesquisa), apesar que se nota, 339 HOSSNE, William Saad. Poder e injustiça na pesquisa com seres humanos. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 279. 340 Ibidem. 341 Ibidem. 342 Ibidem. 343 GARRAFA, Volnei e PORTO, Dora. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 35. 113 “senão abertamente pelo menos de modo velado, essa posição de resistência de muitos pesquisadores”344. No encontro com os pobres, os mais sofredores e vulneráveis, a experiência da solidariedade, no sentir a dor do outro, na indignação frente às injustiças e nas diversas formas de luta para defender a dignidade de todos os seres humanos, muitos de nós percebemos claramente que este caminho é o lugar privilegiado para uma verdadeira experiência espiritual de libertação, de ação, do sentir-se responsável. É preciso perguntar sempre e, antes de tudo, onde estão os feridos do caminho? Em cada local há feridas e sofrimentos específicos que é missão fundamental pessoal, institucional, comunitária e científica estarem presentes e reagir com misericórdia. A misericórdia regida como princípio desperta em muitos pesquisadores, instituições e entidades a agirem responsavelmente em vista das pessoas espoliadas, mas é uma atitude que, antes mesmo de projetada, sofre perseguição e ameaças por parte daqueles que querem perpetuar seus interesses egoístas. Quando elas agem assim o dinheiro com finalidade de investigação e pesquisa é limitado, quando não cortado; as instituições sofrem retaliação; as pessoas individuais são reprimidas e caladas. Por outro lado, a ausência de ameaças, ataques e perseguições revelam em princípio outra coisa: restringiram-se em agir com misericórdia-assistencial e deixou de reger pelo princípio misericórdia. Para Sobrino estes dois tipos de atitudes são muito comuns na América Latina, que diríamos já estar impregnada na formação cultural do povo, ou seja, uma ação voltada para as obras de misericórdia, mas que não aceita ser regida pelo princípio misericórdia; e outra configurada pelo princípio misericórdia, que aceita as obras de misericórdia, sem, contudo, contentar-se com elas. Assim podemos lembrar que o samaritano não somente assiste a vítima, mas vai além; aquele que mostra compaixão e se preocupa com a vida e não somente com a ferida. De qualquer forma “a ultimidade da misericórdia supõe a disponibilidade a ser chamado samaritano. Os que praticam essa misericórdia não desejada pelos salteadores são chamados de tudo” 345 . “Em los médios de comunicación se habla de los pobres siempre de forma negativa, como los que no tienen cultura, los que no tienen para 344 ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos bioéticos. Revista Bioethikos, Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p. 12-23. 345 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 43. 114 comer. Visto desde fuera, el mundo de los pobres es todo negatividad”346. Na América Latina são chamados, sobretudo, pela impressa, que geralmente está à serviço dos verdugos, de subversivos, comunistas, guerrilheiros, terroristas, traficantes, agitadores, bandidos, mafiosos, marginais e outros. Sufocados no silêncio opressor, não raro notam-se manifestações (de libertação) de fenômenos chamando atenção da população acomodada e absorvida pelas injustiças, através de tiroteios, mortes, queimas de ônibus, invasão dos alunos em universidades e nas ruas como efeito dessa violência primordial: a injustiça, fruto de desajuste social. Os que reclamam - se não são interessados ou hipócritas - deviam atentar para o óbvio: todos esses atos não passam de gestos destinados a chamar a atenção da sociedade para o drama que vive as populações. Logo, a verdadeira violência é anterior a esses efeitos que de toda forma se tenta encobrir. Por isso as instituições que estiverem dispostas a se deixarem reger pela misericórdia devem também estar dispostas a buscar alternativas de “um outro mundo possível” e não temer “perder” poder e fama diante deste mundo que se coloca contrário à verdadeira misericórdia. É um mundo anti-misericordioso. Mas, Sobrino afirma que, sem dúvida, visto de dentro o mundo dos pobres tem vitalidade: lutam para sobreviver, inventam trabalhos informais e constroem uma civilização distinta de solidariedade, de pessoas que se reconhecem iguais, com formas de expressão próprias, incluindo a arte e a poesia. Encontram-se elementos importantes no mundo dos pobres como a alegria, a criatividade, a paciência. É uma experiência salvífica que gera esperança347. 3.3.1.1 - A co-responsabilidade das Igrejas na ação misericordiosa Não se pode passar adiante sem chamar atenção para a co-responsabilização das Igrejas sobre esta realidade, sabendo que estamos falando de um Continente em que a população é predominantemente cristã. Nele está embutida uma formação e um espírito que, paralelamente à racionalidade vigente, deve co-responsabilizar os seus pares. O princípio misericórdia é o elo, inspirador do exemplo de seu Mestre e por isso, não pode deixar de responsabilizá-las. Mesmo em meio às complexidades, aqui já 346 SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 78. 347 Ibidem. 115 exposta, tem as igrejas o dever de fazer valer aquilo que ensinam. Isso seria abrir caminhos. Como seguidoras do espírito do Mestre de Nazaré, não podem temer o desafio colocado, pois o seu Deus é, de fato, um Deus transcendente; mas não um Deus distante, separado348. É um Deus próximo e cuja proximidade lhe dá condição de possibilidade e permanência entre seus discípulos: não abandona, mas dá segurança. A realidade fundante dessa segurança está na própria encarnação, ao aproximar-se dos homens, como centralidade de uma experiência que reanima os de espírito abatidos, faz os caídos levantarem e os mortos reviverem. Essa experiência fundante encontra-se também nas bem-aventuranças: “bem aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia; bem-aventurados os que promovem a paz... bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça...”349. Nesta experiência fundante, do agir com misericórdia, está o indicativo para a espiritualidade que deve impregnar as igrejas para a formação de uma espiritualidade comprometida, séria e atenta às realidades do continente. O aproximar-se de Deus significa o romper da assimetria e o distanciamento entre o homem e a salvação. Essa aproximação faz gerar vida e a história fica impregnada por ele gerando esperança, verdade, justiça, curando, humanizando, potenciando e comunicando de si mesmo aos homens. Mesmo que o homem o ignore, mas ele é presente. O aproximar Deus do homem e da sociedade requer uma atitude de curá-los, humanizá-los e potenciá-los. A aproximação salvadora acontece em âmbito pessoal, histórico-social e total. Daí surge o serviço “sacerdotal” e comum, de encontro entre batizados e não batizados, como lugar da misericórdia. Um serviço que nasce de uma espiritualidade concreta e gera comprometimento com quem tem fé e com àqueles que são afastados ou agnósticos. No dizer de Felix Wilfred esse serviço brota de um Jesus “tão fascinantemente humano que não se pode deixar de amá-lo. Ele pertence a toda humanidade. Ele não é monopólio de algum grupo, comunidade e religião. Nele 348 Dizia o paraguaio Fernando Lugo: “Eu creio que a Igreja é política, pois Jesus de Nazaré foi condenado por um tribunal político e por um religioso. Mas há um temor de que a Igreja se politize, que a Igreja se confunda com um projeto histórico determinado, que a Igreja aposte num programa temporal. A Igreja quer salvaguardar sua história. Em seus discursos ela sempre criticou os totalitarismos. Ela foi crítica do capitalismo e também do socialismo em suas encíclicas desde Leão XIII e isso é mantido”. LUGO, Fernando. Uma reforma agrária integral é ineludível. www.institutohumanitas.com.br/; acessado em 18-06-2006. 349 Mt 5. 116 aprendemos a gramática do que é ser humano”350. Uma experiência que nasce de uma atividade do espírito, de uma motivação e um impulsionamento que só pode ser santo, porque mostra o caminho e faz a vida acontecer, mesmo que para isso seja “preciso perdê-la”351. Tal atividade de Jesus está guiada pelo serviço e pela aproximação de Deus. Uma experiência que deseja somente o bem, e por isso se preocupa em socorrer a vítima que não pode decidir por si e está em estado de vulnerabilidade completa. A primeira experiência se faz na acolhida do ferido, machucado, àquele/a que está à margem. Não lhe tira a condição de direito, sua autonomia; antes respeita, pois isso é condição de libertação. Sobrino diz que é evidente no serviço de aproximação histórica de Deus um serviço sacrificante. O sacrifício que Cristo acentua é a verdade do amor e a credibilidade de Deus. “Pelo menos uma coisa fica clara: é verdade que Deus se aproximou dos homens até o fim e sem condições. O sacrifício não é outra coisa que a conseqüência de uma existência sacerdotal verdadeiramente vivida em favor dos homens.”352. A América Latina oferece um lugar por excelência para o exercício desse serviço ou “sacerdócio comum”, não querendo com isso instrumentalizar a realidade de miséria. A miséria coletiva, a injustiça e a opressão, a aniquilação de povos indígenas e pobres, a repressão e as torturas, os desaparecidos e os assassinados, os massacres e os refugiados, os desempregados... mostram a urgência que têm no processo de salvação. É importante lembrar que a vontade de Deus para esse homem não é que ele morra, mas que ele viva; “E todas as vezes que fizerem a um desses pequeninos, a mim estarão fazendo”353. Aqui Jesus se iguala aos últimos e quando os matamos, crucificamos novamente a Jesus, pois neste caso, os pobres são Deus com eles e neles. É o próprio Deus crucificado. Agir com responsabilidade e misericórdia requer mudança de atitude, conversão, de quem precisa deixar se transformar para transformar. A primeira reação é interna: o compadecer da dor humana. Essa é uma atitude fundamental, sobretudo para os ricos. “Não se pode viver com sentido construindo o futuro sobre os cadáveres de famílias humanas” 354. Para isso precisam ser tocados pela realidade e criatividade humanizante 350 WILFRED, Felix. Cristianismo e cosmopolitismo. Para uma universalidade inversa. Revista Concilium, Fasc. Nº 319, 2007/01, p. 120-131. 351 Mt 16,25. 352 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 203. 353 Mt 25, 40. 354 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 129. 117 dos pobres que oferecem o perdão, não como uma conquista do verdugo, mas dom da vítima. 3.3.2 - Solidariedade O princípio misericórdia deve fazer despertar um profundo sentimento de solidariedade diante das pessoas vulneradas e sofridas: o mesmo gesto do samaritano. Há na América Latina, e nos pobres em geral, o espírito de solidariedade e gratuidade nas relações que perpassam sua convivência dando salvação a esse povo crucificado. Para Sobrino o que está acontecendo na América Latina é um verdadeiro avanço em humanidades, o que não se consegue ver no primeiro mundo355. Trata-se de um lugar que se descobre e desenvolve uma “teologia da solidariedade”. Essa solidariedade, como resposta ética às necessidades, leva a um profundo comprometimento ou cumplicidade com a vida do outro. Poder-se-ia pensar que a solidariedade se converte em ‘aliança’ entre pessoas, igrejas, partidos políticos, universidades num intercâmbio com o mesmo objetivo. São os pobres que desencadeiam a solidariedade. “Solidariedad significa llevarse mutuamente los pobres y los no-pobres, dando unos a otros y recibiendo unos o otros lo mejor que tenemos para llegar estar unos con otros”356. Na concepção do autor “lo que reciben los no-pobres puede ser, como realidad humanizante, superior a lo que dan. Este tipo de solidariedad va más allá de la mera ayuda, en uma direción, com la tendência intrínseca a la imposición y la dominación”. O importante é que a origem da solidariedade, assim entendida, não está em qualquer lugar, senão nos pobres. O outro, na perspectiva da solidariedade, torna-se o referencial tanto para dar quanto para receber. Para Sobrino a solidariedade é descoberta por “Aqueles que se viram afetados por estes questionamentos no mais profundo de seu ser homem”357. Lévinas358 diz que a epifania do outro é visitação de si mesmo. Daí brota a solidariedade profunda, do reconhecer um-com-o-outro. “A epifania do absolutamente outro é rosto 355 Ibidem p. 216. “Chamamos ‘solidariedade’ a esta nova forma de se relacionarem – de fato e de direito – os cristãos e as igrejas entre si, originada pela solidariedade fundamental, de uma igreja com seus pobres e oprimidos, mantida como processo de mútuo dar e receber, elevada até o nível da fé. É a forma de os cristãos e as igrejas se relacionarem segundo a conhecida frase paulina: suportai-vos uns aos outros”. 356 SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 91. 357 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 221. 358 LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993, p. 51. 118 em que o Outro me interpela e me significa uma ordem, por sua nudez, por sua indigência. Sua presença é uma intimação para responder”359. O outro provoca este movimento ético na consciência que, enquanto fenômeno é a nossa possibilidade de nos identificar a nós mesmos. Um outro que nos é estranho e mesmo assim nos atrai. O rosto é aquele, e não aquilo, que é capaz de proximidade e afeto, sofrimento, ternura e carícia, compreensão e respeito, justiça e solidariedade. A gravidade manifesta-se na concepção instrumental da pessoa que a converte de sujeito em objeto, de alguém em coisa. Sobre isto Martin Buber360 lembra que o corpo foi transformado em coisa. E agora se quer coisificar sua alma que é sua dimensão de pessoa. E neste caso, os mais vulneráveis são as presas mais fáceis e primeiras. Como pessoa a realidade da pobreza nos priva da mais elementar interpretação existencial que temos de nós mesmos como homens, ou como seres que preservam a imagem de nós mesmos e tem consciência dessa dignidade. Neste caso a falta de solidariedade destrói o nosso centro de gravidade ética. É a extinção da categoria mais fundamental que compõe o ser da pessoa. A experiência de motivar para agir movido pela expressão básica da solidariedade somente acontece ao se colocar no lugar do outro. Ao se dar conta de ter estado no lugar do outro, ou seja, de quando se era escravo e obteve a liberdade. “A alteridade das vítimas descobre como ilegítimo e perverso o sistema material de valores, a cultura responsável pela dor injustamente sofrida pelos oprimidos”361. Para a verdadeira libertação a expressão básica da solidariedade deve estar intimamente integrada ao princípio misericórdia, sendo esta a experiência de origem e fundante. São realidades importantes, pois geram completude ao processo de salvação. Trata-se da gratuidade. Sobrino diz que nos pobres estão, por direito, o descobrimento da realidade e “a origem da solidariedade, porque essa verdade é uma apelação primária ao humano de qualquer homem, um questionamento ao homem como ser social a toda a humanidade, uma exigência de mudança e conversão para que o homem recupere sua identidade deturpada”362. A solidariedade traz salvação também às organizações, às igrejas, à ciência. Ela questiona, interpela e desvela os desequilíbrios aí existentes. Questiona a co359 Ibidem; p. 53. BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução de ZUBEN, Newton Aquiles Von. São Paulo: Centauro, 2004, Introdução. 361 DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 315. 362 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 219. 360 119 responsabilidade entre os homens no intuito de poderem ser simplesmente mais humanos, ou seja, gerar humanidade. Questiona os crentes e não-crentes para redelinear e reformular a atenção dos discursos, pesquisas e tarefas para o que é, de fato, fundamental e importante. Serve para fazer das realidades primárias a mediação da pergunta por Deus e o mistério, bem como o nível da resposta que deve ser dada. A solidariedade, se bem compreendida, tem o intuito de ser resposta de fé ao humano, onde verdadeiramente se encontra Deus. Pois também, “Quem diz que ama Deus e odeia o seu irmão é mentiroso”363. Essa resposta poderá ser realizada de diversas formas como em ajuda material, apoio moral e espiritual. Mas, nos diz Sobrino que “o que dá sentido a essas diversas formas de ajuda não é considerá-las como obras regionais, mas como a urgência de propiciar a vida dos pobres. Ser homem hoje tem que significar ser co-responsável” 364 com os pobres. “Essa resposta à dor dos pobres é uma exigência ética, mas é, além disso, uma prática salvífica para os que se solidarizam com os pobres. Os que fazem isso recobram o sentido profundo da própria vida”365 e “recobram a dignidade de ser homens integrando-se de alguma forma na dor e no sofrimento dos pobres; recebem os pobres de forma insuspeita, olhos novos para ver a verdade última das coisas, e novo ânimo para percorrer caminhos desconhecidos e perigosos”366. Assim como esses pobres são realmente um outro para seu interlocutor, os que com eles se solidarizam fazem também a experiência de sentido, de se sentirem remetidos a outros para sua própria verdade, de terem de responder com a palavra “agradecido” por algo novo e melhor que lhes foi dado. O pobre como outro e que interpela por solidariedade torna-se mediação de Deus, onde se encontra desinteresse egoísta, despojamento, ânimo, gratuidade, salvação. Essa solidariedade é a experiência que se faz na gratuidade, que está para além da exigência ética. “Não é difícil considerar a doação que procede dos pobres enquanto ‘outros’, como mediação da gratuidade de Deus”367. “A raiz, então, da solidariedade está naquilo que desencadeia corresponsabilidade humana, que faz dessa corresponsabilidade uma exigência ética 363 1Jo 4, 20. SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 222. 365 Ibidem. 366 Ibidem. 367 Ibidem. 364 120 inevitável, e do exercício dessa corresponsabilidade algo bom, plenificante e salvífico”368. No intuito de mostrar o estupendo gesto de solidariedade e co-responsabilidade de quem ama Sobrino assume a expressão de D. Bonhoeffer: “Os homens em sua dor chegam a Deus, Imploram ajuda, felicidade, pão, Que salva os seus da enfermidade, da culpa e da morte. Isso fazem todos, todos: cristãos e pagãos. Os homens se aproximam de Deus na dor de Deus, E o encontram pobre, insultado, sem abrigo, sem pão, Vêem-no vencido e morto por nosso pecado. Ó Senhor! Os cristãos permanecem com Deus na paixão”.369 Aqui se apresenta um exemplo: a suprema solidariedade de Deus com seu povo, pois exprime que o silêncio de Deus na cruz, revela que também ele está na paixão junto aos crucificados. Para os cristãos na América Latina esse é o fato maior, que faz despertar a fé. Ele é solidário aos crucificados e, por isso, dá-lhes a vida. Mas Sobrino pergunta: “O que pode significar que o sofrimento afeta a Deus?”, ou “Como o sofrimento da cruz afeta Deus, o Pai, a origem e futuro último de tudo, quem parece estar para além de tudo?”370. Para responder essas perguntas precisa estar ciente de que “o sofrimento continua sendo o enigma por excelência para a razão humana. Esta pode compreender o fato e até certo ponto o significado de um mal e uma dor que são necessários para o crescimento”371; bem como, que há um mal referente às limitações e catástrofes naturais, necessários por pertencer à própria natureza. Mas “existe um mal histórico, o infligido voluntária e injustamente a alguns seres humanos por outros, que não tem sentido em si mesmo”372. Por exemplo, que sentido tem o assassinato de tantos homens anônimos, camponeses e operários, que lutam e lutaram por uma vida mais digna e mais humana para si e para os outros e foram exterminados? Também para a fé, diz Sobrino, “o sofrimento continua sendo enigma, e diante dele o homem religioso e cristão se põe diante de Deus na cruz de Jesus, no máximo momento simbólico de sofrimento”373. E se pergunta: “O que Deus faz com o 368 Ibidem. SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 362. 370 Ibidem p. 351. 371 Ibidem p. 349. 372 Ibidem. 373 Ibidem p. 350. 369 121 sofrimento da cruz?”. Aqui não deparamos com a racionalidade, mas com o “escândalo” vertiginoso que só uma estupenda solidariedade de um Deus que ama pode ter. Na cruz, não se trata de pôr meramente diante de Deus a presença do sofrimento para buscar seu possível sentido, mas, sobretudo, de ver Deus tal qual é. “Diante do sofrimento Deus ‘não faz nada’ assim como os seres humanos esperaríamos que ele fizesse. O inesperado e novo para nós é, antes, que ele também participa do sofrimento”374. No silêncio de Deus, diante da cruz de Jesus e dos crucificados, para a teologia sobriniana, o importante “é a afirmação de que Deus estava na cruz de Jesus. Esse ‘estar em’ não pode ser separado da cruz em que Deus estava, pois pertence à estrutura histórica da revelação o fato de a realidade do lugar que Deus se manifesta ser mediação de sua própria realidade”375. Desse modo, “nada saberíamos de um Deus bom, se ele não tivesse estado nas obras bondosas de Jesus. Nada saberíamos de um Deus que perdoa, se não tivesse estado na acolhida de Jesus aos pecadores”376. Deus se acerca da pessoa perdoando o pecador, não o pecado, mudando o seu coração de pedra em coração de carne. Para Sobrino é aí que Deus se aproxima da realidade histórica social, libertando um povo, mudando suas estruturas de opressão por outras de liberdade. Dito de outra maneira: se povos inteiros crucificados não têm a força para mudar o coração de pedra em coração de carne, se pode perguntar o que o fará. E se nada o faz, é possível perguntar que futuro espera os ricos que mantêm suas vidas construídas sobre cadáveres de família humana. Vivendo dessa maneira, não pode haver sentido verdadeiro, que brota da transparência, da tranqüilidade e gera paz. Isso propicia valores espirituais que impregnam a realidade toda da pessoa e da sua cultura como fraternidade, reconciliação, liberdade... Esse modo de viver gera conflitividade, porque a “boa nova” não pode ser dita e feita sem a denúncia da realidade má e suas estruturas. Deve ter um cunho testemunhal, que faz gerar serviço concreto a partir da expressão básica da misericórdia. Para tanto necessita de disponibilidade, de “perder” tempo e grandeza de coração377. 374 Ibidem p. 351. Ibidem p. 353. 376 Ibidem. 377 Ibidem. 375 122 3.3.3 - Perdão O termo perdão, como salvação, está mais fortemente ligado à epistemologia teológica, mas também vinculado à antropologia, à psicologia e outros campos de investigação. A idéia de perdão na teologia está ligada à concepção de pecado como falha, transgressão, impiedade, perversidade e ação conscientemente contrária à norma. O pecado emana da liberdade falível do homem perante a exigência de ação e à imperiosidade do bem para a consciência378. Sempre que o homem se afasta da fixação sobre si mesmo e assim da esterilidade, sempre que se compromete realmente em favor dos outros, individual ou socialmente, na política ou na ciência demonstra uma atitude de perdão379. Dionísio Borobio afirma que há muitas formas de expressar, realizar e viver o perdão. “Mas, pode-se afirmar que, assim como a humanidade descobre a sua falta de sentido na história do pecado, da mesma forma, encontra sentido na história do perdão”380. Borobio trabalha a perspectiva psico-antropológica do perdão que supõe resposta à dor que o indivíduo sofre, por causa da ação que lhe é infligida, o qual consideramos responsável de nossa desgraça pessoal e ao qual nos sentimos ligado por vínculos familiar, social ou de convivência. Diz que para perdoar o outro é necessário ter intenção e se decidir a perdoá-lo, convencidos das vantagens e desvantagens do não perdoar. Nesta perspectiva, o perdão se caracteriza como benefício não só para quem o recebe, mas também para quem o concede. Numa perspectiva sociopolítica o assunto ganha grandes repercussões. O perdão ou a falta dele influi decisivamente nas relações familiares, sociais e políticas. “Assim como o pecado, a injustiça, a desordem, têm dimensão social, porque concernem e comovem, negativamente, à vida comunitária e social em todos os seus aspectos, a reconciliação e o perdão têm dimensão social que repercutem, positivamente, na sociedade em todos os níveis”381. Na linguagem bíblica perdão é o lugar comum onde YHVH ( )יהוהfala ao seu povo por meio dos profetas382. 378 BASILIO, Petrà. Pecado. In: VENDRAME Calisto e PESSINI, Leocir (Orgs.). Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde. São Paulo: Paulus/São Camilo, 1999, p. 946-951. 379 VORGRIMLER, Herbert. Penitência /Perdão. In: EICHER, Peter (Org.). Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. Tradução de COSTA, João Rezende. São Paulo: Paulus, 1993, p. 668-676. 380 BOROBIO, Dionísio. Perdão. In: SAMANES, Cassiano Floristán e JUAN-JOSÉ, Tamayo-Acosta (Orgs.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. Tradução de FERREIRA, Isabel F. Leal e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p. 612-618. 381 Ibidem. 382 MACKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. Tradução de CUNHA, Álvaro et alli. São Paulo: Paulinas, 1983. 123 Na perspectiva cristã a expressão básica do perdão assume um caráter fundamental vinculada a experiência fundante de seu Mestre. A efetivação do princípio misericórdia passa necessariamente pelo perdão. O perdão assume condição de centralidade e finalidade na compreensão da misericórdia, por ser ele libertador e expressão de superação da indignidade, que devolve a dignidade salvífica anteriormente perdida. No perdão, ou seja, na experiência de encontro e reconciliação, na paz como o shalom hebraico, o princípio misericórdia tem o seu amparo e fundamento. A teologia constata no modus vivendi latino americano, como já abordado, uma complexa situação de pecado onde povos inteiros vivem crucificados. A concepção intimista do pecado assume forte correlação com sua conotação mais abrangente e circunstancial. Para se ter uma idéia, se o “pecado maior” na experiência do hemisfério Norte é resultante de uma sociedade que caminha para o consumismo e a autosuficiência secularista, no hemisfério Sul este “fato maior” pode ser caracterizado pela ausência de mudanças palpáveis nas relações humanas, onde crescem as injustiças, a opressão, a discriminação, a marginalização, a violação sistemática dos direitos humanos e daí por diante. Esta é uma situação que a civilização ocidental, democrática e cristã não foi capaz de mudar. Nem o humanismo, o renascimento e a ilustração como movimentos da racionalidade moderna foram capazes de superar o fenômeno da grande pobreza. Com isso devem-se questionar tais movimentos, que cooperaram no avanço de um tipo de racionalidade, sem responder a uma situação concreta e urgente, que são as desigualdades da vida cotidiana e outros fatores. Diante de tal evidência cabe perguntar se não foram esses movimentos cooptados para atender aos interesses de uma elite, quando não elaborados por ela? Uma coisa é fato: mesmo durante tanto tempo não foram capazes de humanizar e trazer uma relação sadia entre pessoas, países, continentes. A partir desse fato uma pergunta que a teologia sobriniana coloca com toda a seriedade é se há possibilidade de perdão àqueles que são ofensores, e caso houver, em que medida ele acontece? Como brota a capacidade do perdão entre as vítimas? A isso Sobrino diz “que na América Latina existe o perdão desse tipo de ofensas como resposta cristã ao pecador. Por ser perdão de ofensas tão graves, a realidade desse perdão ilumina sua essência muito melhor do que qualquer análise conceitual”383. 383 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 104. 124 O perdão oferecido pela pessoa é acima de tudo a manifestação de um grande amor que sai ao encontro do pecador e, por isso, tem um único intuito: salvá-lo. Essa é a típica manifestação do amor em que seu interesse está simplesmente em transformar o mal em bem lá onde aquele se faz presente. Parafraseando Berdiaev, Sobrino diz que “o pecado é um mal físico para o ofendido, mas é um mau moral para o ofensor. É preciso libertá-lo, e é isso que o perdão procura: a conversão, a re-criação do pecador”384. “Querer converter o pecador com amor supõe crer que o amor é eficaz para transformar o pecado e o pecador”385. Esta é “uma convicção utópica, porém mantida apesar dos fracassos. Não é uma convicção idealista”386. Acreditar nesse amor alimenta a perspectiva de curar o pecador pela raiz. Em nenhum outro mecanismo podemos encontrar o poder específico para oferecer o perdão, e a partir dele abrir-se ao diálogo e à convivência A finalidade de todo perdão é chegar à comunhão. Perdoar o pecador, diz Sobrino, es um poderoso acto del espíritu, un profundo acto de amor, pero con características específicas, que exigen y propician uma determinada espiritualidad... No se perdona por ningún interés personal o grupal, aun legítimos, sino simplemente por amor; no se presenta el amor como argumento convincente, sino que simplemente se ofrece387. Sobrino distingue o perdão da seguinte maneira: o perdão à realidade e o perdão ao pecador, que são tidas como “duas formas de um único amor. Cada uma delas exige e propicia uma determinada espiritualidade”388. Ainda ele menciona a disponibilidade ao perdão na vida cotidiana como complemento para que a espiritualidade do perdão, complexa por si só, seja total, e leve a “integrar vários aspectos, os quais historicamente estão em tensão: 1) no nível estrutural - a relação entre a erradicação do pecado e o perdão ao pecador; 2) na vida cotidiana - o perdão das ofensas e sua relação com o grande perdão estrutural”389. Assim, “a espiritualidade do perdão deve ter em conta 384 Ibidem. Ibidem p. 105. 386 Ibidem. 387 SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador: Sal Terrae, 1992, p. 106. 388 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 107. 389 Ibidem p. 107. A espiritualidade do perdão tem de se exercitar no nível estrutural descrito, mas também na vida cotidiana, onde a ofensa é mais imediata e o perdão mais ardoroso. A opressão estrutural ajudou a descobrir as opressões típicas dentro das comunidades: o machismo, o autoritarismo de seus líderes, o desinteresse pelas responsabilidades, o egoísmo e a ânsia de dominação. O estrutural ajudou-os a compreender o comunitário, mas o comunitário ajudou-os a entender o estrutural. As comunidades que procuram a reconciliação interna são as mais dispostas à reconciliação social, as que mais trabalham pelo diálogo, as que mais se alegram com os pequenos gestos de reconciliação. O perdão ao outro se vê isento da possibilidade de se tornar gesto prometéico de superioridade última. A espiritualidade total do perdão é uma manifestação da espiritualidade da libertação, dos homens e das mulheres espirituais descritos por G. Gutierrez como ‘os livres para amar’. Perdoar é libertar, amar os oprimidos por uma realidade 385 125 todos estes aspectos e, sobretudo, integrá-los unificadamente, o que é coisa do espírito, para que a ênfase dada a um aspecto não faça desaparecer o outro”390. Este modelo de espiritualidade encontra síntese na proposta de Jesus, que ama a todos e está disposto a perdoar a todos, indistintamente: ama os oprimidos, estando no meio deles; e ama os opressores estando contra eles. Desse modo Jesus é para todos. Ao amar os oprimidos “Jesus diz cruamente sua verdade aos opressores, denuncia-os, desmascara, anatematiza e ameaça com a última desumanização. Por isso Jesus está também, paradoxalmente, a favor dos opressores. É uma forma paradoxal de oferecer salvação”391. A América Latina é lugar de pecado, mas também é lugar de perdão, lugar onde abunda o pecado, mas onde a graça de Deus é maior. Tratar de salvação aqui é recorrer à pessoa no seu todo, sendo que a raiz do termo salvação é a mesma para designar a saúde. Salvar a pessoa é salvá-la no seu todo. Fragmentá-la é detê-la na doença da compartimentarização que clama pela unidade do seu ser. Assim quando Jesus propõe o perdão quer trazer à tona a vida integral da pessoa. Quando desmascara a “verdade do pecado”, tem em vista a libertação da pessoa. Sobrino diz com linguagem transcendente o que os evangelhos dizem de forma extremamente simples é “que Deus se aproximou deste mundo de pecadores para salvar, não para condenar”392. Referindo-se a Rahner diz: “’só o perdoado sabe que é pecador’. É a acolhida do perdão que descobre cabalmente o fato de ser pecador, o que dá força para reconhecer como tal e para mudar radicalmente”393. Trata-se de uma conversão radical da morte para a vida, na acolhida eficaz que gera perdão. Para o cristianismo essa é uma experiência vivida de quem se percebe amada por Deus, com o perdão e o amor precedidos por Deus. No dizer de Gustavo Gutierrez, apud Sobrino, “amados para amar” e “libertados para libertar”394. É preciso perguntar se a libertação pessoal do pecado ajuda na libertação histórica? Se o perdão pessoal traz a erradicação do pecado histórico? Substancialmente, traz a possibilidade de uma melhor práxis libertadora, em sua direção, em sua pecaminosa e, por isso, liberta-la; amar os opressores e, por isso, estar dispostos a acolhê-los e a destruílos enquanto opressores. Libertar a outros exige homens libertados. O perdão, enquanto amor eficaz e gratuito, expressa essa espiritualidade. Dizia Monsenhor Romero: “É preciso defender os oprimidos e perdoar a realidade. É necessário ir à base das transformações sociais de nossa sociedade. Se quisermos que cesse a violência e cesse todo mal-estar, precisamos ir à raiz. E a raiz está aqui: na justiça social”. 390 Ibidem p. 109. 391 Ibidem. 392 Ibidem p. 144. 393 Ibidem p. 143. 394 Ibidem p. 149. 126 intensidade e em seus valores. Sendo apenas subjetivista cai no individualismo excessivo, o que pode desembocar numa atitude escapista. Sendo objetivista cai no reducionaismo de não considerar a proveniência dessa realidade que é o pecado. Sobrino diz que “qualquer verdade, por central que seja não pode ser elevada a verdade única o que seria outra manifestação da concupiscência humana, mas também acreditamos que as verdades plurais em que se manifesta a única verdade de Deus convergem”395. Por isso é possível acreditar haver uma relação positiva e mutuamente complementar entre perdão pessoal e erradicação do pecado histórico. “No perdão o ser humano torna-se sabedor de sua mentira e do seu conteúdo de sua mentira: abrem-se os olhos para saber o que é e o que faz, a suma maldade de sua hybris e do produto histórico dela”396. Portanto, há na realidade latino americana um “mysterium iniquitatis” que exige e clama pela proclamação de um “misterium salutis”397. No perdão, o pecado que assume formas diversas como hybris - opressão, mentira, assassinato, violências deve fazer a experiência de superação e libertação. Somente a partir do perdão, capaz de gerar a libertação, se pode ir em direção ao outro e se sentir curado e livre. 3.3.4 - Cooperação Há cooperação se houver perdão, descentramento, proximidade. A cooperação é uma expressão básica que, bem concretizada, pode ser uma resposta de misericórdia para a hybris na América Latina. Como o próprio termo sugere, trata-se de uma operação conjunta, co-operar, operar com, operacionalidade feita com o outro, contar 395 Ibidem p. 149. Ibidem p. 150. Para Sobrino a Hybris é arrogância radical que, tendo aparecido, escraviza o ser humano e, portanto, necessita formalmente de uma libertação. Ibidem p. 147. 397 SOBRINO, Jon. A eterna tentação de negar a realidade. http://www.adistaonline.it/index.php; acessado em 26-02-2007. “O mistério existe como enigma terrível sob forma de mysterium iniquitatis, naquilo que vimos anteriormente: seres humanos que causam a morte, injusta e cruelmente, desumanizando-se a si próprios. Mas, também no mundo das vítimas se manifesta o mistério da iniqüidade. O mysterium salutis se faz real nos sucessos, pequenos ou grandes, dos pobres, na solidariedade que eles geram em muitos e na fraternidade que vai nascendo entre pessoas, grupos e povos. Também nos estudos e nas análises teóricas com finalidade de propor modelos de salvação, bem como estratégias práticas para concretizá-los. Exprime-se na identidade, nas culturas, nas religiões, sobretudo dos povos ancestrais, muitos dos quais empobrecidos e que resistiram através dos séculos também entre muitas dificuldades. É sempre mais evidente que se arriscam todos. Mas, também nos momentos de sofrimento, nas vítimas e nos pobres pode surgir, e surge, um anelo de sobrevivência e convivência com os outros, trabalhando com criatividade, dignidade, resistência e força sem limites, desafiando imensos obstáculos. Não tenho palavras para descrevê-lo. Chamei-o de santidade primordial. Não se pode dizer o que haja nela de liberdade ou de necessidade, de virtude ou de obrigação, de graça ou de mérito: ela não deve ser necessariamente acompanhada de virtudes heróicas, mas ela se expressa numa vida totalmente heróica. Esta santidade primordial convida uns a dar aos outros, uns a receber dos outros, a celebrar uns com os outros a alegria de serem humanos. Podemos dizer que destes pobres provém salvação”. 396 127 com o outro nas decisões, atitudes e meios de produção. Este conceito, embora aberto a inúmeros tipos de relações, se aplica aqui, sobretudo ao ajudar àqueles que mais necessitam, pois o sentido da misericórdia converge para resgatá-los, erguê-los, trazer de volta, dar a vida. A cooperação acontece entre pessoas individuais, organizações, entidades, governos, igrejas, religiões, universidades, empresas, associações, etc. Há uma experiência muito rica de cooperativas e associações em países latino americanos como Brasil, Chile, Bolívia, Equador e outros que se podem notar tanto no espaço urbano quanto em meio rural, mas sendo perceptíveis sobretudo nesse último como forma de agricultores se organizarem por sobrevivência e melhores condições de vida398. São atitudes assim que vão configurando e mostrando por onde perpassam as iniciativas e atitudes de misericórdia. Este é o eixo fundador de uma possível nova racionalidade que 398 LINERA, Álvaro García. Há múltiplos modelos para a esquerda. http://www.juonline.com.br/editorias_capa.asp?q_CodEditoria=43; acessado em 15-06-2007. Vale ressaltar um pequeno trecho da entrevista de Álvaro Garcia Linera na qual testemunha a experiência que está sendo realizada na Bolívia: As buscas plurais de modelos alternativos de desenvolvimento econômico, redistribuição da riqueza e ampliação de direitos no marco da construção de uma modernidade satisfatória. Mas, a partir de nossas próprias forças: já não há um texto ao qual obedecer, um país ao qual imitar, um politburo ao qual seguir ou uma Internacional a respeitar. Isto não implica cair num radicalismo pós-moderno. A verdade é que depois de tantos anos em que nos disseram que não havia mais história, ou que a história nos conduzia a um lugar determinado, agora vemos que há muitas histórias, que é possível encontrar certa unidade em busca da ampliação de direitos, da redistribuição, dentro de uma grande pluralidade quanto às formas: quem conduz, como, a que velocidade e com que tipo de liderança. São as características endógenas de cada processo que nos dão a explicação, mais que os modelos morais do bem e do mal. O importante é que todos buscamos o mesmo, ainda que cada qual do seu jeito. FENOCIN. Economia Solidária é prioridade em goveno equatoriano. http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=26294; acessado em 07-02-2007. No Equador, na abertura da oficina sobre economia solidária, organizada pela Confederação Nacional de Organizações Camponesas, Indígenas e Negras (FENOCIN), o ministro da Economia e Finanças, Ricado Patino, anunciou a criação da subsecretaria de economia solidária. Ali o ministro disse que “um dos componentes de trabalho da Subsecretaria de Economia Solidária será o desenvolvimento local e o apoio à atividade associativa; além disso, se trabalhará nas propostas de fortalecimento da micro-finanças, de apoio à capacitação, melhoramento tecnológico e da comercialização. Esta Subsecretaria definirá as linhas e coordenará com as instituições como o Banco Nacional de Fomento, a Coorporação Financeira Nacional, os organismos de apoio financeiro, a Rede Financeira Rural, Federação de Cooperativas de Economia e Crédito do País, para que respaldem à pequena produção, especialmente a produção associativa, comunitária e cooperativa que permitam desenvolver valores, não só ter um melhor nível econômicoe sim os valores morais de solidariedade coletiva”. GASNIER, Annie. Sem-terra brasileiros, decepcionados com Lula, buscam nova estratégia. http://www.juonline.com.br/editorias_capa.asp?q_CodEditoria=43; acessado em 16-06-2007. No Brasil, João Pedro Stedile, coordenador nacional do MST (Movimento dos trabalhadores Sem Terra), denuncia que pode testemunhar no 5º Congresso do MST, de 11 a 15 de junho, acampados no eixo monumental de Brasília: "Depois de termos agüentado o imperialismo comercial que herdamos da colonização, e o imperialismo industrial, estamos agora diante do agrobusiness, que nasceu do casamento entre o capital estrangeiro e os grandes proprietários de terras". Segundo ele, “os investimentos recentes da multinacional Cargill ou do homem de negócios George Soros nos setores da soja e da cana-de-açúcar destinados à produção do etanol estariam provocando uma volta do país rumo à monocultura, a qual esgota os solos e os recursos naturais, para produzir "agrocombustíveis" destinados à exportação”. "A reforma agrária, com a qual o MST sonhou durante mais de vinte anos, não tem mais sentido dentro deste novo contexto". 128 Maurício Abdalla defende e que “deve tornar possível a manifestação da nova essência humana: o princípio da cooperação”399. Não se pode negar, contudo, que há experiências infelizes, fraudes e tantos desvios que surgem em cooperativas, como se podem ver testemunhos em nota de rodapé400. Acontecem também em torno do narcotráfico e de organizações criminosas várias experiências de solidariedade e cooperação entre os pobres que moram em favelas, etc. Evidentemente, não se trata desse tipo de cooperação que estamos abordando aqui, mas de experiências que querem proporcionar vida e não de aprofundamento no sistema de morte. Trata-se de cooperação fraterna com o intuito de sobrevivência. Sobrino401 diz que os pobres oferecem modelos às vezes pequenos, às vezes notáveis de economia popular, de organização comunitária, de saúde, de vivência, de direitos humanos, educação, cultura, religião, política, arte, esporte. Os pobres, dependendo dos lugares e conjunturas, se organizam em movimentos populares para defender seus direitos e também os direitos de outros pobres e oprimidos, e às vezes os direitos de todos os pobres. Em contraposição a essa solidariedade e ao cooperativismo as grandes corporações, grandes empresas de agro-negócio com seus enormes interesses, em detrimento da exploração e do sucateamento das terras em países, geralmente subdesenvolvidos devido às leis mais permissivas, com isso gerando a perda da soberania nacional pelas compras ou arrendamentos de terras por preços ínfimos; injustiça social e bolsões de pobreza, o envenenamento do ambiente local; a monocultura e dependência nacional de um só produto; a privatização da semente 399 ABDALLA, Maurício. O princípio da cooperação: em busca de uma nova racionalidade. São Paulo: Paulus, 2002, p. 100. 400 ROSA, Roberto. Cooperativas de Trabalho. Fraudes. http://www.juonline.com.br/editorias_capa.asp?q_CodEditoria=43; acessado em 11-06-2007. Com 26 anos, a Cooperativa Paulista de Teatro reúne atualmente 3.500 profissionais. "A iniciativa aumenta o volume de oportunidades", afirma o diretor da entidade Roberto Rosa. No início de 2004, o professor universitário José Renato de Campos Araújo, 37, enviou seu currículo para faculdades. Queria preencher melhor seu horário dando mais aulas. Recebeu resposta da Fiap (Faculdade de Informática e Administração) e, ao fechar o contrato, foi informado de que a escola superior contratava seus docentes via cooperativa. "O valor pago por aula era maior do que a média [de mercado]. Achei que seria bom." Ao tentar conhecer melhor o sistema, no entanto, afirma ter sido afastado da cooperativa. "Enviei e-mail perguntando quem era o presidente, quando realizavam assembléias e de quanto tempo era o mandato da diretoria. Não tive resposta." Araújo fez parte de uma das 767 cooperativas investigadas pela Procuradoria Regional do Trabalho de São Paulo. A Educação, conta Schramm, é uma das áreas que mais concentram irregularidades. Ao lado dos setores de transportes, alimentação e médico, representa 60% dos casos avaliados pelo Ministério Público. As cooperativas de trabalho tiveram um "boom" entre 2001 e 2002. 401 SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 90. 129 providas por uma só empresa; o monocultivo que substitui a diversidade de cultivos de subsistência das famílias camponesas; etc. Os dados são grandiosos. O semanário Brecha, de Montevidéu, denuncia que a Monsanto, companhia norteamericana, “está ligada a 60 por cento dos cultivos transgênicos do mundo. A área de plantio na Argentina passou, desde meados de 1990, de 5 milhões de hectares a 16 milhões, em apenas 10 anos, o que fez com que o país alcançasse o segundo lugar mundial na produção de grãos transgênicos”402. “Para alcançar este lugar, a Argentina teve que hipotecar seu território como campo de prova da biotecnologia desenvolvida pela Monsanto e outras transnacionais como Syngenta, Nidera, Cargill, Bayer y Basf”403. Segundo o Grupo de Reflexão Rural (GRR) daquele país, “uma catástrofe sanitária de envergadura tal, que nos motiva a imaginar um genocídio impulsionado pelas grandes corporações e que só os enormes interesses em jogo e a ignorância cúmplice da classe política logram manter invisível e impune”404. O problema sanitário é somente um dos problemas. Este grupo, na Argentina, menciona também o desmatamento, a degradação de solos e a destruição da biodiversidade, além dos deslocamentos territoriais e desemprego de pessoas indo para cidade. Um sintoma dessa realidade pode ser vista também no Brasil, onde a produção de soja transgênica atinge 08 milhões de hectares plantadas e é “o principal vetor da devastação da Amazônia” até o momento. E, para se ter uma noção, várias tentativas estão sendo realizadas por essas empresas, no esforço de aprovação pela CTNBio de poder plantar mais espécies de sementes transgênicas. De qualquer forma diz a análise do Anuário Exame, de junho de 2007 sobre o agronegócio, que “Depois da grave crise nos últimos anos, o setor se recupera com velocidade impressionante no Brasil, bate recorde de produtividade e desponta para liderar o mercado mundial dos negócios do campo no século 21”405. É um cenário desolador que não é diferente no Uruguai, onde 300 mil hectares são cultivados, tornando “hoje o principal cultivo agrícola do país”406. Vale estar atento para a distinção que há entre a cooperatividade e o corporativismo, com razão, muito criticado que invés de gerar a operatividade e 402 SEMANÁRIO BRECHA. O perigo transgênico: expansão da cultura da soja no Mercosul. http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=26325; acessado em 09-02-2007. 403 Ibidem. 404 Ibidem. 405 ANUÁRIO EXAME. Ninguém 'segura' o agronegócio. Uma análise empresarial. http://www.juonline.com.br/editorias_capa.asp?q_CodEditoria=43; acessado em 20-06-2007. 406 Ibidem. 130 transparência, emperra grupos e sociedades inteiras numa atitude de anti-misericórdia. Sobrino relata algumas experiências realizadas ou vividas por ele e seus colegas através do cooperativismo e parcerias no meio acadêmico, que pode ser realizadas no meio técnico, nos governos, empresas e alhures. Aqui nos propomos em apresentar somente duas experiências para nortear o espírito da cooperação do qual estamos falando. 3.3.4.1 - A cooperação acadêmica O espaço acadêmico possibilita um ambiente propício à misericórdia por ser um lugar de des-cobertas e criatividades. Mas poder-se-ia perguntar: em que e como a universidade pode cooperar para empreender a misericórdia na formação de pessoas novas e novas estruturas? O que Sobrino faz é tentar oferecer o critério de discernimento para viver universitariamente, o saber ali oferecido, o espírito a ser encarnado e os intelectuais que devem emergir. Uma atitude dessas seria fazer gerar o princípio da cooperação, impulsionado pela misericórdia que deve gerar a vida individual e coletiva. Aliás, a verdadeira saúde individual depende do bem-estar da sociedade, onde se vive. Ignácio Ellacuría era reitor da UCA – Universidade CentroAmericana, quando foi assassinado, instituição de ensino jesuíta, encravada em meio à pobreza de El Salvador. Em meio às divindades da morte, da absolutização do capital na América Latina, “os jesuítas da UCA tocaram no ídolo, ao dizer a verdade da realidade, ao analisar suas causas e propor as melhores soluções. E isso que parece uma coisa tão boa, tão benéfica, que deveria ser louvada e apoiada por todos, é perseguido pelos ídolos”407. Diziam a verdade do país em escritos e declarações, como o fez Ellacuría ao publicar no editorial da revista ECA, em 1976, com o seguinte título: “A suas ordens, meu capital”408. No dizer de Sobrino seus colegas mártires carregavam consigo uma única coisa: a verdade para comunicá-la universitariamente ou pastoralmente, que como dizia Oscar Romero: “Sempre foi muito perigoso, porque os ídolos buscam ocultar sua verdadeira realidade de morte e, por necessidade, engendram mentiras para ocultar-se”409. A verdade sobre a pobreza, o desemprego, a espantosa falta de moradias, de educação e saúde, a verdade sobre a repressão, o desaparecimento de pessoas, a degradação da terra 407 SOBRINO, Jon. Os seis Jesuítas Mártires de El Salvador. São Paulo: Loyola, 1990, p. 32. Ibidem p. 33. 409 Ibidem p. 34. 408 131 que vitimam especialmente os pobres, nos seus direitos, a verdade sobre o andamento da guerra, a verdade da dependência colonialista dos poderes econômicos. Dizer a verdade nessas circunstâncias não é só dissipar a ignorância, mas combater a mentira, o que é essencial para uma universidade e é central em nossa fé... Esses jesuítas quiseram libertar a verdade da escravidão imposta pelos opressores, lançar luz em meio da mentira, lançar justiça em meio da opressão, lançar esperança em meio do desconsolo e lançar amor em meio da indiferença, da repressão e do ódio. Por isso os mataram410. A pergunta que orientava toda a pesquisa era a de descobrir a fundo a realidade oprimida e suas causas e oferecer positivamente as melhores soluções. Este era um grande ideal para a universidade: “oferecer modelos, com possibilidades reais de uma economia, uma política, uma tecnologia para a habitação, a saúde, a educação, uma criatividade artística e cultural, uma religiosidade cristã e libertadora que tornasse possível a vida”411. A UCA no dizer de Sobrino se abria direta e imediatamente às maiorias populares, através de suas publicações, de suas tomadas de posição, valentes, numerosas e públicas. Desse modo, queriam ajudar a criar uma consciência coletiva em El Salvador, crítica e construtiva, que ajudasse os pobres. Procurava de maneira teórica e prática exporem “a necessidade, a justiça, a identidade dos movimentos populares. Tudo isso podia ser visto em todos os recintos da universidade, que nunca fechou suas portas a sindicalistas, marginalizados, mães de desaparecidos, grupos de direitos humanos, agentes de Pastoral Popular, etc” 412. Uma universidade que leva luz, em meio à opressão, aos ídolos não é tolerada, não consegue sobreviver. Esta é uma verdade profunda e questionante: são os ídolos, os poderes deste mundo que não querem e não aceitam a verdade e, automaticamente, não aceitam mudanças a não ser, forçados pela situação, alguns retoques desde que não lhes prejudique. Sobrino diz que os ídolos toleram algumas coisas, como as eleições, algumas leis de reformas mais suavizadas, toleram pressões dos EUA no controle militar e nos dólares que são mandados para assegurar a falsa segurança da democracia e do capitalismo selvagem. Confrontando com esta realidade que levou seus colegas ao martírio, Sobrino se pergunta: “Que universidade nos deixam?”413. Uma nova idéia de universidade cristã para nosso tempo tem como ponto de partida uma dupla consideração: 410 Ibidem p. 35. Ibidem p. 36. 412 Ibidem p. 37. 413 Ibidem p. 47. 411 132 A primeira e mais evidente é que a universidade tem a ver com a cultura, com o saber, com um determinado exercício da racionalidade intelectual. A segunda, já não tão evidente e comum, é que a universidade é uma realidade social e uma força social historicamente marcada pelo que é a sociedade na qual vive, está destinada a iluminar e transformar, como força social que é, essa realidade em que vive e para a qual deve viver...414. Para Sobrino o saber deve interpelar a realidade social a qual se vive, e no caso da América Latina, a realidade da maior parte do seu mundo, “a realidade histórica mais universal, caracteriza-se fundamentalmente pelo predomínio efetivo da falsidade sobre a verdade, da injustiça sobre a justiça, da opressão sobre a liberdade, da indigência sobre a abundância, enfim do mal sobre o bem...”415. Imersos nessa realidade e possuídos por ela, pergunta-se: o que se deve fazer universitariamente? Sobrino responde a partir de uma posição ética: “transformá-la, fazer o possível para que o bem domine sobre o mal, a liberdade sobre a opressão, a justiça sobre a injustiça, a verdade sobre a falsidade e o amor sobre o ódio”416. Sem esse comprometimento não se entende a finalidade da universidade. A universidade deve encarnar-se intelectualmente entre os pobres para ser a ciência dos que não têm ciência, a voz esclarecida dos que não têm voz, o apoio intelectual dos que em sua própria realidade têm a verdade e a razão, ainda que algumas vezes seja de alguma forma empobrecida, mas que não contam com razões acadêmicas que justifiquem e legitimem sua verdade e sua razão...417. Sobrino diz que a UCA tentou viver modestamente nesta linha difícil e conflitiva e por este trabalho foram duramente perseguidos. “Se nossa Universidade nada houvesse sofrido nesses anos de paixão e de morte do povo salvadorenho, não teria cumprido sua missão universitária e, menos ainda, sua inspiração cristã”418. A universidade deve colocar toda a sua estrutura, instrumentos específicos, o saber racional à serviço e ser antes de tudo, uma universidade constantemente convertida. “E a conversão fundamental consistia em pôr todo o seu peso social, através de seu instrumento específico, o saber racional, a favor das maiorias populares”419. Desse modo, Sobrino deixa cinco conclusões fundamentais para a vida universitária: 1) afirmar que é possível uma universidade cristã no Terceiro Mundo, não uma universidade isolada em torre de marfim e com o coração de pedra ante o sofrimento 414 Ibidem p. 47. Ibidem p. 48. 416 Ibidem. 417 Ibidem. 418 Ibidem p. 49. 419 Ibidem p. 50. 415 133 dos pobres, mas universidade encarnada em seus sofrimentos e esperanças e com coração de carne; 2) afirmar que não importa superar meramente a ignorância, mas combater e encetar luta à morte contra a mentira; 3) afirmar e analisar a verdade é defender os pobres e por isso enfrentar-se com seus opressores; 4) afirmar a lição mais importante de que a universidade pode ser a voz dos pobres, mesmo dando a vida como fizeram seus colegas, para manter a esperança e ajudar seus alunos pobres no caminho da libertação; 5) e, por fim, afirmar a lição de amor maior: os que anunciam e fomentam o Reino de Deus têm de se enfrentar com o anti-reino. 3.3.4.2 - A cooperação na tecnologia A reflexão e a ação significativa voltada para os últimos da sociedade querem fazer despertar um modelo mais abrangente em conformidade com a nova racionalidade e exigência em nossos tempos. Não se pode conceber que em meio à evolução científica e tecnológica de que dispomos haja ainda esse grau miserável e situação degradante que se presenciam todos os dias a olho nu, quando não pelas amostragens da imprensa de situações alarmantes vividas ao redor do mundo. É um cenário que aponta para um gesto de misericórdia, e vale repetir, não uma misericórdia paternalista, mas re-ativa, na percepção do outro como sujeito de direito. Essas situações não devem culpabilizar o desenvolvimento técnico-científico sem mais, mas fazem parte de toda uma estrutura que depende, em primeiro lugar, do poder econômico, de políticas públicas, da corrupção desmedida e tantas outras pendências420. Não se pode conceber, de fato, que os investimentos de um país pobre ou em desenvolvimento estejam mais voltados para a indústria de armamentos e desenvolvimentos tecnológicos do que para a área de saúde, a educação, ou o meio ambiente como se pode notar no orçamento de aplicação de recursos feito pelo governo brasileiro em 2007, ou seja, ficando a “pasta do meio ambiente com 438,5 milhões de 420 REDAÇÃO. Corrupção tira até R$236 por ano de cada brasileiro. JORNAL A GAZETA, 01-07-2007, p. 21. Conforme a estimativa do próprio ministério da justiça brasileira que apontam os desvios da ordem de 40 bilhões de reais dos cofres públicos, formando um cartel entre empresas que participam de licitações públicas. São 13,3% dos 300 bilhões de reais que a administração pública gasta anualmente para comprar insumos e fazer obras acabam indo para o bolso de empresas que se organizam para cobrar preços mais altos dos governo por seus serviços. Nesta conta cada brasileiro tem que pagar 236 de custo pela corrupção no país. 134 reais e o Ministério da Defesa com 5,82 bilhões de reais. O que explica essa diferença?”421, pergunta Leonardo Boff. A tecnologia direcionada para servir o homem como tal não é um mal, e inclusive deve ser estimulada. Assim nos diz Abdalla “o problema da exclusão social e do desemprego não pode jamais ser atribuído diretamente à tecnologia ou ao rumo ‘natural’ do desenvolvimento das capacidades humanas, como se tem apregoado reiteradas vezes nos dias atuais”422. Pode-se, porém, afirmar que “a aplicação dos conhecimentos científicos nas técnicas de produção só é um mal no modo de produção hoje dominante. A verdadeira causa do desemprego é a organização de uma economia que serve única e exclusivamente à acumulação”423. A tecnologia , ao contrário do que se tem repetidamente enunciado, não gera desemprego, como se ela dispensasse o ser humano do processo produtivo. Essa visão faz com que muitos vejam na tecnologia um mal intrínseco. Mas o que a tecnologia faz é reduzir a necessidade de horas de trabalho demandadas para produzir-se algo e força humana, e não o número de pessoas. Esse é só um exemplo que causa a miséria da população, não por causa da técnica, mas do lucro. A tecnologia está sim latente e a serviço dos objetivos do lucro, mas não é ela um malefício de primeira ordem. Um ambiente fortemente marcado pela presença da tecnologia é a área da saúde. Este é um tema complexo e, por si só, seria objeto para aprofundamentos de extensos trabalhos como bem tem sido estudado por Léo Pessini e outros. Contudo, não podemos deixar de dizer que esse é um lugar onde há muita cooperação, solidariedade e “espírito de misericórdia”, assim como há atitudes de anti-misericórdia. Vivendo na contingência da vida o homem não pode negar a contribuição e a cooperação da técnica hospitalar como mecanismo ou instrumento de ajuda em momentos de fragilidade da saúde. Diz-nos Léo Pessini que “hoje, com os conhecimentos adquiridos e instrumental tecnológico à disposição do homem, pode-se 421 BOFF, Leonardo. Olhar longe para a frente. http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=27936; acessado em 06-06-07. Sobrino afirma que “Los gastos en armamento se sitúan en los 2.680 millones de dólares al dia los subsídios agrícolas en los Estados Unidos y la Unión Europea en 1.000 millones diários. El mercado de armas es uno de los más rentables de todos los gobiernos de la comunidad internacional. Los países del G-8, junto con China, son responsables del 90% de lãs exportaciones de armas. Al menos médio millón de personas son asesinadas anualmente con armas ligeras”. SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 63. 422 ABDALLA, Maurício. O princípio da cooperação: em busca de uma nova racionalidade. São Paulo: Paulus, 2002, p. 113. 423 Ibidem. 135 perfeitamente escolher o dia para nascer e também determinar o dia da morte”424. Começa-se a ter uma interferência profunda no início e no fim da vida humana. Essas transformações trazidas pelo progresso da medicina e da tecnologia nos fascinam e ao mesmo tempo nos preocupam, pois geram misericórdia e antimisericórdia. “Passamos da fase de uma medicina mais humana e menos científica para uma medicina mais científica e menos humana”425. Quando a medicina se afirmava impotente em face de um agonizante, este e seus parentes ficavam sós frente a uma morte contra a qual nada podiam: a “boa morte” era então aquela para a qual o doente poderia preparar-se em casa e enfrentá-la com os socorros efetivos e religiosos dos parentes. Hoje a medicina se apodera do agonizante, o retira física e psicologicamente do meio dos parentes de maneira mais ou menos radical, e chega mesmo a tirá-lo de si mesmo. Segundo Léo Pessini, “No início dos anos 50, Jean-Robert Debray introduziu na linguagem médica francesa a expressão ‘obstinação terapêutica’, designando com isso o comportamento médico que consiste em utilizar processos terapêuticos cujo efeito é mais nocivo do que os efeitos do mal a curar, ou inútil, porque a cura é impossível e o benefício esperado é menor que os inconvenientes previsíveis”426. Hoje, após mais de cinqüenta anos nota-se que as condições médicas “tendem a tirar do doente e dos seus parentes toda a iniciativa e responsabilidade para transferi-la ao médico fazem com que se levante o problema dos direitos e deveres do paciente terminal, familiares e do próprio médico”427. Emergiram a partir da intervenção técnica hospitalar feita no homem uma nova concepção da morte nas sociedades ocidentais. Outra concepção que surge no meio hospitalar como “espírito de misericórdia”, numa tentativa de resgate ao antigo modo de terminalidade, é denominada de ortotanásia, que consiste, etimologicamente, na morte correta: orto: certo, thanatos: morte. Significa o não prolongamento artificial do processo de morte, além do que seria o processo natural. Tratando-se de um momento decisivo, o homem tem de viver a morte o mais humanamente possível. Consiste num despertar para a sensibilidade que caracteriza o homem em sua existência. Humanizar a morte, tornando-a um ato de liberdade para o agonizante e seus parentes. Morrer bem, tendo com a morte uma relação de consciência e voluntária... dentro desta perspectiva é prioritário fazer tudo para que o doente possa viver a aproximação da sua morte de maneira consciente e livre, 424 PESSINI, Leocir. Eutanásia e América Latina: questões ético-teológicas. Aparecida-SP: Santuário, 1990, p. 48. 425 Ibidem. 426 Ibidem p. 50. 427 Ibidem. 136 e o dever da medicina seria mais de ajudar neste processo do que prolongar a vida a qualquer custo428. A maneira como o homem lida com sua contingência é completamente nova. “Constata-se que os avanços médicos nos diagnóstico e tratamento salvaram muitas vidas e reduziram o sofrimento por um lado; por outro, trouxeram problemas e sérias conseqüências”429. Léo Pessini diz que para muitos pacientes, o sofrimento e a agonia são causadas por prolongamentos técnicos denominados “heróicos”, mas em muitas outras circunstâncias salvam vidas. Um exemplo são os antibióticos e cirurgias tecnicamente avançadas que aumentaram nossa expectativa de vida430. Agora o que precisamos é lidar com as implicações destas novas descobertas. Sabe-se que a hiper-utilização da técnica leva a uma atitude de anti-misericórdia quando em meio à insegurança do paciente, às vezes ainda muito apegado à vida, são abandonados na frieza de tantos aparelhos de UTI, no qual a pessoa perde o contato com calor humano. Mas isso não se deve, objetivamente, à técnica, senão a intencionalidade humana que veio se estruturando, configurando e acirrando cada vez mais. Há, sim, indícios de mudanças com o desabrochar da sensibilidade, estudos, conferências para uma nova mentalidade, hoje chamada de “cuidados paliativos” dando ênfase ao cuidado do paciente terminal. É importante observar que os sistemas e técnicas de sustentação de vida são benéficos, mas frequentemente alimentam idéias de que a morte pode ser enganada indefinidamente. A morte foi definida ultimamente e confinada a um ponto de vista estritamente biológico. Confiar na tecnologia para definir o estado de vida e morte é negar aspectos do homem que dão subsistência à sua própria vida. Assim, a medicina não é somente uma profissão técnica e o médico não é somente um manipulador de monitores. A responsabilidade social do médico é preservar a vida e aliviar o sofrimento. Onde a atuação de um dever conflita com o outro, a escolha do paciente deve prevalecer se este tiver em condições de decidir, exercendo assim sua autonomia de pessoa. Caso não tenha condições para decidir, então sua família ou representante legal assumem a responsabilidade em seu favor. Somente na ausência de escolha do paciente ou um procurador autorizado, o médico deve agir em favor do melhor interesse do paciente. 428 Ibidem p. 51. Ibidem p. 52. 430 Ibidem. 429 137 Médicos e hospitais devem estar sempre conscientes de seus limites, pois travarem lutas contra a morte é justo e necessário, mas chega um momento em que a luta termina. Em muitos casos o médico e também o enfermeiro podem determinar com clareza que a terapia está terminada. Então já não deve haver nenhuma simulação de terapia, de forma alguma e o motivo principal é o respeito pela pessoa do moribundo. Quanto à determinação desse momento definitivo, belamente, descreve Lepargneur: Enquanto houver esperança de devolvermos a vida normal a uma pessoa que perdeu a consciência, façamos todos os esforços no sentido de reanimá-la. Esse é o papel dos médicos e eles têm o direito e o dever de cumpri-lo. No entanto, se a consciência está irremediavelmente perdida, e se a pessoa é dada como clinicamente morta, o caso precisa ser tratado diferentemente. (...) Quando comprovadamente inexistir vida cerebral, pode-se e deve-se desligar o aparelho que mantém uma pessoa em estado vegetativo431. A cooperação como misericórdia em meio a essa tecnologia hospitalar perpassa pelo direito do paciente, caso queira saber do seu estado de saúde; trata-se do direito à verdade, mencionado código de ética médica: No código de 1988, o paciente crônico ou terminal tem o mesmo direito que qualquer outro paciente à informação e à verdade em relação à sua situação, um direito restringido por um paternalismo limitado que, dentro da perspectiva da benignidade humanitária, deixa ao juízo do médico a conveniência ou não de comunicar certos dados ao paciente432. Devem-se mencionar aqui outros direitos do paciente de decidir sobre seu tratamento e sobre sua vida; o direito a não ser abandonado pelo médico; o direito a não ter seu tratamento complicado; o direito ao alívio da dor e o direito a não ser morto. O princípio fundamental que formula esta última convicção é o artigo 6º/1988: O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permiti e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade433. Não se pode deixar de mencionar o direito da pessoa, em caso de pesquisa com seres humanos, sobretudo, quando se trata de alguém em algum estado de vulnerabilidade: Em toda pesquisa biomédica realizada em seres humanos, o pesquisador deve obter o consentimento informado voluntário do sujeito potencial ou, no caso de um indivíduo incapaz de dar seu consentimento informado, a autorização de um representante legalmente qualificado de acordo com o ordenamento jurídico aplicável. A omissão do consentimento informado deve ser 431 Ibidem p. 56. MARTIN, Leonard M. A ética médica diante do paciente terminal. Aparecida-SP: Santuário, 1993, p. 208. 433 Ibidem p. 208-215. Cf. também Código de Ética Médica do CFM. 432 138 considerada incomum e excepcional e, em todos os casos, deve ser objeto da aprovação de um comitê de avaliação ética434. Em meio a esse aparato de relações no envolvimento de pessoas, tecnologias e legislações não podem deixar de considerar a crítica do próprio excesso de sofisticação na medicina, hoje, para uma minoria, que deve nos chamar a atenção ao que ela revela: uma atitude de anti-misericórdia em meio à tanto sofrimento padecido por uma flagrante multidão de empobrecidos do hemisfério Sul. Um lugar social que se morre antes da hora. “Na América Latina, de modo geral, a forma mais comum de mistanásia é a omissão de socorro estrutural que atinge milhões de doentes durante sua vida inteira e não apenas nas fases avançadas e terminais das suas enfermidades”435. No Continente uma grande massa que luta para se manter ou sobreviver com o básico e implorando para não adoecer, pois sabem que dificilmente serão atendidos. Isso se conseguirem atendimento. 3.3.5 - Esperança Semanticamente o termo esperança vem do latim, spes, e significa o ato de esperar o que se deseja436. Poder-se-ia perguntar em que consiste a esperança? A esperança é uma motivação que se abre como horizonte da existência humana no momento presente. De modo semelhante o presente tem sentido enquanto tem futuro aberto. O normal e primário é, portanto, o sentido. A esperança na concepção cristã vai além do sentimento de dissolução pessoal ante algo contingente. “É mais intensa porque intui, não só a permanência da natureza, mas a permanência da pessoa, com a rede de relações que esta teceu em sua pequena ou grande história, tanto com seu ser quanto com seu próprio estar”437. A esperança tem forte evidência na experiência de sofrimento. Segundo Cinà Giuseppe o “sentimento que caracteriza de forma maior a pessoa enferma é o sentimento da esperança. Se, por um lado, a enfermidade atinge este dinamismo, 434 DIRETRIZES ÉTICAS Internacionais para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos. Tradução de GONÇALVES, Maria Stela e SOBRAL, Adail Ubirajara. São Paulo: Loyola, 2004, p. 51. 435 MARTIN, Leonard M. Eutanásia – Mistanásia – Distanásia – Ortotanásia. In: VENDRAME, Calisto e PESSINI, Leocir (Orgs.). Dicionário interdisciplinar da Pastoral da Saúde. São Paulo: Paulus/São Camilo; 1999; p. 467-482. 436 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, 2ª edição. 437 BELLOSO, Josep Maria Rovira. Esperança. In: SAMANES, Cassiano Floristán e JUAN-JOSÉ, Tamayo-Acosta (Orgs.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. Tradução de FERREIRA, Isabel F. Leal e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p. 227-233. 139 obstaculizando o seu movimento, por outro lado, é justamente este comportamento que exprime a reação típica da pessoa enferma”438. Para o momento é também sugestiva, na perspectiva cristã, a encíclica Spe Salvi439, de Bento XVI, cujo tema e abordagem é inspirada na carta que Paulo de Tarso escreve à comunidade cristã de Roma (Rm 8, 1827), colocando a esperança como expressão básica para a salvação, lembrando que salvação tem seu aspecto imanente e a mesma raiz para designar saúde, bem-estar. Sobrino pergunta: “Qué me está permitido esperar”440. Para ele os pobres fazem renascer a utopia: “no se trata de ou-topia, lo que no há lugar, sino de eu-topia, aquello – bueno – para lo que tiene que haber lugar. Lo que llamamos buen viver, cualidad de vida, estado de bienestar”. Correlativamente, é dos pobres que provém a esperança, e a verdadeira esperança, é dizer, como esperar. La raiz de la esperança no está em calculo objetivo, ni en el optimismo subjetivo. Está en nel amor, que carga con todo. La esperanza de los pobres pasa por crisis, épocas de desencanto inmediatista, pues no aprecen salidas y victorias inmediatas y contables. Pero hay uma fé que vence la oscuridad y uma esperanza que triunfa sobre el desencanto, como muestra sua paciência histórica y su determinación de vivir441. A abordagem da esperança na América Latina surge do contraste da abundância e pobreza. Neste contexto ela assume uma relação próxima com a experiência da fé cristã, numa condição de expressão básica, que ao identificar-se com a cruz, também aprende dizer não ao sacrifício humano. Significa aprender a se manifestar contra toda e qualquer forma de manifestação de morte. Olhar para a cruz significa procurar compreender o sentido do ato salvífico de Cristo e o seu significado para a nossa vida. A inspiração de libertar o pobre da cruz se situa em perspectiva de uma espiritualidade que capta o clamor e os grandes “sinais dos tempos”442 como força e alternativa de reflexão à vida vivida sob a miséria. Salta os olhos à resistência dos pobres. Na América Latina sentem Deus como um aliado. Não se pergunta, portanto, se Deus existe, mas onde está Deus? Essa indagação interna os motiva profundamente. 438 GIUSEPPE, Cinà. Esperança. In: VENDRAME Calisto e PESSINI, Leocir (Orgs.). Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde. São Paulo: Paulus/São Camilo, 1999, p. 399-409. 439 BENTO XVI. Spe Salvi. São Paulo: Loyola/Paulus, 2007. 440 SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 88. 441 Ibidem p. 88-89. 442 Evidenciar as vítimas como o ‘sinal dos tempos’ serve para focar a atenção para situação mais clamorosa na América Latina. A expressão está ligada ao texto evangélico de Mt 16, 1-4 e à grande intuição do papa João XXIII, em alocução no dia 25 de janeiro de 1959, ao convocar toda a Igreja para um segundo concílio Vaticano. Na medida em que "estamos entrando numa época que se poderia chamar de missão universal ...", é preciso acolher a recomendação de Jesus de saber distinguir os 'sinais dos tempos' (...) e descobrir, no meio de tantas trevas, indícios de esperança ...". JOÃO XXIII. Alocução Gaudet Mater Ecclesia. AAS 54, 1962, pp. 786-795. 140 Mesmo considerados sub-humanos pelo mercado total, os pobres continuam a lutar por justiça e pela vida. Eles acreditam num Deus de todos e para todos e por isto resistem. O que os une é a luta pela sobrevivência. Excluídos do mercado, ou pelo menos da economia formal, sobrevivem da e na economia informal. Na capacidade de resistência os pobres, apesar de desarticulados, se revelam como força histórica. Para Sobrino, deste contexto emerge claramente uma convicção de esperança: há de se continuar a lutar pela sobrevivência dos pobres: que são os índios, os negros, as mulheres, os camponeses, os idosos, as crianças, os operários, os desempregados, os miseráveis, porque a opressão continua sua ação maléfica, destruindo o corpo, a cultura e a alegria da vida de uma imensa maioria no Continente443. Através de lutas e programas de intervenção populares os pobres criam alternativas questionando o projeto político e econômico: “Concretamente vão percebendo que o terreno da periferia é mais caro do que o terreno nos bairros de elite, se se computarem todos os gastos para se obter água, luz, asfalto, telefone público, etc. descobrem que pagam muito mais impostos do que os ricos”444. Constatam aos poucos que na América Latina os poderes constituídos estão a serviço do grande capital, e com suas experiências podem também elaborar e propor um projeto político orientados por ações e metas transformadoras. No dizer de Ernst Bloch “O apetite da vítima pelo projeto alternativo e novo de libertação é a ‘esperança’ como pulsão transontológica”445. Dizia isso falando que os impulsos se exprimem em primeiro lugar como aspiração. “Se a aspiração é sentida, transforma-se em anseio”446. Não devemos, também, com isso, ser ingênuos em querer idealizar os projetos populares. Mas podemos “afirmar que toda e qualquer possibilidade de construção de uma sociedade alternativa e viável para todos só pode ser gerada a partir do movimento popular” 447, ou seja, dos últimos. Pode-se até aproximar a categoria “pobre” e seu correlato “movimento popular” como um “novo sujeito histórico”, entendido como um novo conceito transcendental, de 443 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 93. FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 86. 445 DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 460. 446 Ibidem. 447 Ibidem. Citando E. Tamez, Ferraro diz que “Deus escolhe os excluídos para que não haja mais exclusão. E mais adiante explica: ...em uma sociedade dividida, para que o desígnio de Deus se cumpra em plenitude (isto é, para que ninguém fique fora do plano salvífico de Deus), Deus tem de preferir os excluídos da sociedade... os excluídos sempre serão os escolhidos de Deus. Esta é a garantia de que a misericórdia de Deus atinja a todos e se cumpra seu desígnio salvífico”. FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 26. 444 141 utopia não irrealizável, mas perfeitamente possível que anima o tecido social em perspectiva dinâmica de renovação contínua. E. Bloch propõe na segunda parte do seu livro O princípio esperança ao abordar a função utópica e seus conteúdos, com análises de ideologias, ideais, símbolos, o novo e o “nada”, como categoria utópica, porém, contra o niilismo insípido e imóvel. É o nada utópico positivo, a pátria onde tudo existe como possibilidade objetiva, pois “onde nada mais se possa e nada mais seja possível, a vida terá cessado”448. Bloch coloca a esperança como o cerne dos sonhos humanos. Dizia que nenhum ser humano jamais viveu sem sonhos diurnos” 449 e o que importa é saber sempre mais sobre eles. “Os sonhos são o âmbito da antecipação contrafáctica da satisfação dos desejos”450. Assim, “O impulso básico da fome precisa ser analisado aqui da maneira como ele avança para a privação negada e, portanto, para o principal afeto espectante: a esperança”451. Nessa perspectiva os sonhos das vítimas são consciente, conhecidos, abertos e racionais. Exemplificando isso Bloch, apud Dussel, diz que “ao que é escravo (ou assalariado) se impede o poder fundamentar um ‘dever-ser’ livre. O escravo sonha ‘ser-já-livre’ (antecipação que mobiliza a práxis na esperança), que se origina negativamente no ‘não-poder-viver’ do escravo”452. “El lugar em que convergen como por necesidad profetismo y utopía es el Tercer Mundo, donde la injusticia y la muerte son intolerables, y donde la esperanza es como la quintaesencia de la vida”453. Para a realização dos sonhos Bloch estimula à pulsão, ao entusiasmo, à espera e à esperança da conquista da liberdade para o novum ultimum, que se abre à mística e motiva para o esforço de construção da nova sociedade. Sem esta motivação, dizia que não se dá transformação e a ética crítica presente nas vítimas, nos oprimidos e nos movimentos sociais de libertação sabem disso muito bem454. Assim ele afirma que “O que importa é aprender a esperar. O ato de esperar não resígna: ele é apaixonado pelo 448 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução de SCHNEIDER, Nélio. Rio de janeiro: EdUERJContraponto, 2005, p. 22. 449 Ibidem; p 20. 450 DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 460. 451 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução de SCHNEIDER, Nélio. Rio de janeiro: EdUERJContraponto, 2005, p. 21. 452 DUSSEL, Enrique; Ética da Libertação; Petrópolis-RJ: Vozes 2000; p. 460. 453 SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 38. 454 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução de SCHNEIDER, Nélio. Rio de janeiro: EdUERJContraponto, 2005, p. 79-114. 142 êxito em lugar do fracasso. O afeto da espera sai de si mesmo, ampliando as pessoas, em vez de estreitá-las”455. A partir desse movimento, cuja referência limite é a vida, sobretudo a defesa efetiva dos mais pobres, a utopia oferece-se como possibilidade de articulação universal em um único e plural mundo humano a partir de todos e para todos, diríamos a partir dos pobres para todos. Para o pensamento sobriniano, a “utopia” do rico está na acumulação, no querer ter sempre mais. A solução que os ricos e o Primeiro Mundo oferecem para os problemas de hoje é ruim porque é irreal, ou seja, não é universalizável. E ruim eticamente porque é desumanizante para todos. Os povos pobres do mundo subdesenvolvido, também nem todos, oferecem luz para o que historicamente deve ser hoje a utopia. Logo, La utopia, en el mundo de hoy, no puede ser outra cosa que la civilización de la pobreza, el compartir todos austeramente los recursos de la tierra para que alcancen a todos. Y en esse compartir se logra lo que no ofrece el Primer Mundo: fraternidad y, con ella, el sentido de la vida. Y el camino para llegar a esa utopia lo propuso como la civilización del trabajo versus la actaula civilización del capital, en todas sus formas capitalistas y socialistas. Ésta es la luz que ofrecen los pueblos crucificados456. Esses são valores vividos e oferecidos pelos pobres que não se encontram em outros lugares: “os valores evangélicos de solidariedade, serviço, simplicidade e disponibilidade”457, que são como meios de salvação. Referindo-se a isso Sobrino diz que “em linguagem histórica, os pobres têm um potencial humanizador porque oferecem comunidade contra o individualismo, serviçalidade contra o egoísmo, simplicidade contra a opulência e abertura à transcendência contra o positivismo cretino, do qual a civilização ocidental está toda imbuída”458. É claro que nem todos os pobres oferecem isto, ressalta ele. As lutas populares e os movimentos de libertação que nascem dos pobres “apontam para o enfrentamento com a espiritualidade perversa do capitalismo. A espiritualidade capitalista faz do ser humano um sujeito constituído a partir do e no mercado, ser humano que terá, consequentemente, um deus que é um fetiche- 455 Ibidem. Prefácio. SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador: Sal Terrae, 1992, p. 92. 457 DOCUMENTO de Puebla. Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. PetrópolisRJ: Vozes, 1987, Nº. 1147. 458 SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 93. 456 143 mercantil”459. Aqui se dá um embate decisivo do deus fetichizado e o Deus da vida. Segundo Ferraro, desta luta teológica nasce uma oposição: “Aceitar o ídolo é subscrever à morte. Aceitar o Deus da Vida é ter chance de futuro. Trava-se aí o destino da América Latina”460, que tem a imensa parte de sua população composta de pessoas crentes e religiosas. Apesar da opressão a grande maioria continua a acreditar na vida, subsidiada pela espiritualidade cristã, tendo na bíblia a sua inspiração. “É bem verdade que muitos a lêem a partir da ótica dos dominantes, mas há muitos bebendo de sua vertente libertária, com sua leitura a partir da visão das vítimas, dos excluídos”461. O Deus da vida se revela aqui no esforço de elaboração de uma teologia dos pobres, dos indígenas, dos negros, dos gays, no Deus Pai-Mãe da mulher marginalizada e de tantas outras minorias e diversidades existentes na América Latina. Em tudo isso se pode afirmar: Há aqui um anúncio de esperança. Os pobres estão ressuscitando nas periferias do mundo. Eles são, enquanto atores e sujeitos históricos do movimento popular, a única força capaz de recriar, reinventar o humano e reelaborar os valores que direcionam a história. A construção de uma sociedade viável depende dos pobres e seus projetos. O pobre é visto aqui como valor universal. É a partir dele que se constrói a sociedade para todos. A sua presença nas lutas econômica, inserção e participação na política, projetos alternativos questionadores da cultura e reação a modelos espirituais revelam a criação de um novo poder a partir da base, como situação que lhe é de direito. Emerge aqui uma espiritualidade popular com o intuito de re-significar o sentido religioso dado pela elite dominante. Há um emergir de um enraizamento de espiritualidades do pobre caracterizada pelo confronto com as realidades vividas na América Latina. A esperança cristã libertadora, embutida na espiritualidade do pobre, dá-lhe condições de esperar contra todas as desesperanças. Daí nasce a solidariedade e a partilha como fenômeno de uma 459 Ibidem p. 86. O capitalismo propõe salvar a vida de alguns e aceita a morte de muitos. “É comum ouvirmos dizer que tal plano econômico vai salvar o país da miséria, que tal projeto político é a redenção da nação. Articulada com tais expressões, aparece a exigência de sacrifícios”. FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 70. Isso é uma opção pela morte. A alternativa legítima é unicamente a vida de todos, do contrário estaríamos aceitando a morte de muitos. 460 Ibidem. A parábola do samaritano procura também mostrar como a realidade histórica está impregnada da falta de misericórdia. Ser um ser humano é, para Jesus, reagir com misericórdia; do contrário, fica viciada na raiz a essência do humano, como aconteceu com o sacerdote e o levita, que passaram adiante. Os evangelistas mostram que a realidade histórica está configurada pela anti-misericórdia ativa, que fere e causa morte aos seres humanos e ameaça e causa morte também aos que se regem pelo “princípio misericórdia”. Ibidem p. 36. 461 Ibidem p. 87. 144 expectativa que se alimenta e cultiva na vida. A partir da esperança o pobre pode se reorganizar. Este é o lugar a partir de onde surgem as propostas para um novo projeto social alternativo. O lugar dos pobres é, pois, a única força capaz de refazer o tecido social e reconstruir a sociedade solidária, capaz de gerar além do necessário para sobreviver, também a fraternidade e a celebração. Não é uma esperança ingênua. É uma esperança em trabalhos e lutas por libertação, embora se saiba que os países e os homens ricos têm medo e procuram sempre sufocá-la, apesar de desejar para si essa esperança vivida pelo pobre. Numa perspectiva sobriniana os países pobres passam essa corrente esperançosa da humanidade que, sempre de novo, tenta tornar a vida possível. Precisamente porque os pobres não dão a vida como suposta, são eles que esperam sempre esse mínimo que é dom de Deus: a vida. Numa citação aos mártires latino americanos Sobrino diz que “Todo sangue martirial derramado em El Salvador e em toda a América Latina, longe de levar ao desânimo e ao desespero, infunde novo espírito de luta e nova esperança em nosso povo. Neste sentido somos um continente de esperança”462. E faz uma alerta para o fato de que é preciso estar atento que nem todos do Terceiro Mundo são assim. De fato, são somente umas minorias que oferecem ativamente os valores da comunidade contra o individualismo; da singeleza contra a opressão; serviçalidade contra o egoísmo; criatividade contra o mimetismo imposto; celebração contra a mera diversão; abertura à transcendência contra o pragmatismo...463. A esperança que o pobre oferece é, paradoxalmente, vista como absurda ou insensata para aqueles que vivem na pujança. Sim, mas esta é a única coisa que lhe resta. Esta esperança desperta o fenômeno da alegria vivida pelo pobre. É “uma esperança contra esperança; mas também é uma esperança ativa que se mostrou em trabalhos de lutas e libertação”464. O seu êxito está vinculado também à força sufocante impregnada pelos valores de antivida. Mas em todo caso, o próprio fato de surgir e ressurgir a esperança na história mostra que há nela uma corrente cheia de esperança que é oferecida a todos. “Os povos crucificados oferecem também um grande amor... estão abertos ao perdão de seus opressores. Desta maneira introduzem no mundo 462 Ibidem p. 131. Ibidem p. 130. 464 Ibidem. 463 145 ocidental esta realidade tão humanizadora e tão ausente que é a gratuidade. É paradoxal, mas é verdade: os povos crucificados oferecem luz e salvação”465. Assim entendida, a religião nos introduz num paradoxo que nos move invariavelmente a lutar pela libertação, mas sem garantir o sucesso como o entendemos. O que garante é a dedicação total e a esperança que não morre. Para dizer como Pedro Casaldáliga, somos os vencidos de uma causa invencível466. Essa é uma atitude de quem se compromete porque acredita no “retorno do amor no mundo”, na busca da santidade porque acredita na capacidade de alguém abrir mão da sua própria vida para que o outro viva. A esperança que nasce ou que brota das vítimas foi exposta por Sobrino no 2º Fórum Mundial Teologia e Libertação, realizado em Nairóbi, África, de 16 a 19 de janeiro de 2007, às vésperas da VII edição do Fórum Social Mundial que propunha a discussão de uma nova ordem mundial com a temática: “O outro mundo possível”. A palestra de Jon Sobrino é assim intitulada: “A eterna tentação de negar a realidade”467, na qual situa a esperança que as vítimas deste mundo oferecem e que aqui expomos o resumo na íntegra: a) As vitimas e, em definitivo, somente as vítimas abrem os nossos olhos para a realidade. A religião insiste no fato de que este milagre de abrir os olhos é necessário e possível. O que aparece nas vítimas é pobreza, crueldade, morte. Coisa que exprime a desumanidade do mundo em que vivemos. Esta realidade é oculta e calada. As vítimas nem sequer têm um nome. O 11 de setembro é conhecido, mas o 7 de outubro não. No 7 de outubro, um mês após o atentado contra as torres gêmeas de Nova York, uma ampla coalizão de países democráticos bombardeou o Afeganistão. Mas, o Afeganistão, pobre, vítima, não tem calendário, não tem nome, não existe. As vítimas podem fazer-nos despertar do sono dogmático no qual se encontra imerso o mundo da abundância, democrático ou não. Recordemos as palavras dirigidas em 1511 por Antonio Montesinos aos encomendeiros , diante da sua crueldade em confronto com os indígenas de Espanhola: “Estes não são homens? Não têm almas racionais? Como é que caístes num sono tão letárgico?” Como estão as coisas, parece mais difícil 465 Ibidem p. 94. CASALDÁLIGA, Pedro. Reportagem Igreja da Libertação na América Central. O fermento libertador e revolucionário da Igreja centro-americana. http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=11234; acessado em 09-07-07. 467 SOBRINO, Jon. A eterna tentação de negar a realidade. http://www.adistaonline.it/index.php; acessado em 26-02-2007. 466 146 despertar deste sono de cruel desumanidade, do que do sono dogmático de que falava Kant. b) As vítimas podem ser hoje os antigos “mestres da suspeita” que, não só denunciam o que é claramente um mal, mas suscitam também a suspeita sobre o mal que pode esconder-se por detrás do bem ou aquele que é aparentemente um bem. Alguns exemplos. Desmascaram a globalização como ideologia, porque ela quer oferecer um mundo em forma de “globo” (aquilo que para Platão simbolizava a perfeição), um mundo homogêneo que, se ainda não é tal, em breve o será. As vítimas deixam claro que na globalização há vencedores e vencidos. Desmascaram também as democracias que se apresentam como realidades boas, além das quais parece que não se possa andar. As vítimas revelam que, na realidade, as democracias reais se alimentam de vítimas reais. E, também em teoria, fazem suspeitar que o “demos” [povo] da democracia não inclui as maiorias pobres e certamente não as põe no centro da sociedade como acontece na tradição religiosa dos profetas e de Jesus. c) As vítimas demonstram a existência dos ídolos e esclarecem sua verdadeira essência. O fato de que sejam veneradas expressões de vida, como os rios, o sol, a lua, nada tem a ver com a idolatria, mas com disposições antropológicas. Ao invés disso, é símbolo de idolatria o deus Moloc , que exige vítimas para subsistir. Ídolos são hoje aquelas realidades históricas existentes que exigem vítimas para subsistir. Mons. Romero mencionava em seu tempo a idolatria do capital absolutizado e da segurança nacional. A sua linguagem não era metafórica, mas precisa: são ídolos porque exigem vítimas. E, enquanto defendia e apoiava as organizações populares, ele as punha em guarda sobre o perigo de se transformarem em ídolos, absolutizando-se a si próprias e causando outras vítimas. Ironicamente, não são os assim ditos povos primitivos os que prestam culto aos ídolos, mas as sociedades baseadas no capitalismo, seja o ocidental, agora globalizado, seja, no passado, o socialista. d) As vítimas exigem retornar a um conceito há tempo esquecido: aquele de império. Com a queda do muro de Berlim, permanece uma única superpotência, os Estados Unidos, que se autocompreendem e agem como império, concebido como “destino manifesto”. E recordemos o que dizia Agostinho : imperium est magnum latrocinium. e) As vítimas podem fazer-nos superar o docetismo (heresia que negava a carne real de Jesus Cristo), que hoje significa viver naquela irrealidade de ilhas, exceções ou anedotas, que é o mundo da abundância. E, viver na irrealidade é princípio de desumanização. As vítimas nos dirigem um convite, indefeso, a sermos realistas e nisto 147 encontrarmos a salvação. Dizia Mons. Romero: “Alegro-me, irmãos, com as perseguições da nossa Igreja. Seria triste se, num país onde há tantos assassinatos, não houvesse sacerdotes assassinados. É a prova de que a nossa Igreja é cristã e salvadora”. São palavras extremas, mas, se não transformarmos em realidade algo do que exprimem, continuaremos a viver docilmente num mundo irreal, seja ele capitalista ou socialista, cristão ou muçulmano... f) As vítimas nos mostram qual é o conteúdo fundamental mínimo da utopia: a vida digna e justa em fraternidade. Não se trata da utopia de Platão em A República ou daquela de Tomás Morus. E ademais, não é preciso compreender esta utopia dos pobres existencialmente como ou-topia, como aquele ambiente perfeito para o qual não há lugar (o qual visaria o mundo da abundância), mas como eu-topia, como aquele ambiente bom e necessário para o qual deve haver lugar. Poder-se-ia dizer que, teoricamente, tudo isto pode ser desvelado sem tomar em consideração as vítimas. Realmente não sucede assim. Por isso, uma tradição religiosa que faça das vítimas a realidade central é uma grande contribuição à verdade, à justiça e à libertação. Por fim, o intuito deste terceiro capítulo foi apresentar a importante colaboração que o princípio misericórdia pode dar à bioética latino americana ao contemplar os conflitos morais mais explícitos da América Latina, propondo-os a partir da reflexão teológica. Conforme vimos, o princípio misericórdia traz em si, dialeticamente, uma síntese de questionamentos e alternativas que se propõem para superar o fenômeno estrutural que mantém o povo crucificado, conclamando à bioética latino americana para a eminente responsabilidade comum de fazê-los descer da cruz. Além de ver a necessidade do ferido, o princípio misericórdia aponta para a reação que deve haver para isso, o qual sugere a construção de uma nova racionalidade, intercâmbios e ajudas mútuas, no campo da reflexão e no gesto, que procuramos apontar com as expressões básicas consonantes ao princípio sobriniano. Enfim, efetivar a misericórdia é estar aberto para as significativas sugestões e propostas de diálogo, e aprofundá-los a partir das novas contribuições que emergem, com ensejo de construir uma nova realidade no Continente em que a valorização da pessoa humana seja considerada no seu todo. 148 Reflexões finais As considerações finais deste estudo consistem em alguns realces sobre a contribuição teológica de Jon Sobrino para a bioética latino americana, expressa com o princípio misericórdia. O princípio sobriniano da misericórdia tem dois contextos nítidos neste estudo, a saber, o contexto social de desigualdade e sofrimento na América Latina; e o contexto específico da construção teórica da bioética, que a reflexão latino-americana muito bem entrelaça com seu contexto social. De fato, tal entrelaçamento deu à bioética latino americana um rosto epistemológico específico ao levar em consideração os seus próprios problemas, denominados persistentes, por se tratar de situações morais de desequilíbrios que se perpetuam historicamente e que, na América Latina, são explícitas nas relações sociais de profundas desigualdades e de estruturas opressoras que mantêm na pobreza uma multidão de pessoas vivendo em condições subumanas. Esse conflito moral evidenciado como “fato maior” em contexto latino americano é a realidade a partir da qual Jon Sobrino elabora o princípio misericórdia, como “lugar teológico” ou como “princípio hermenêutico” para os filósofos, que busca discernir e encontrar alternativas para sua superação. É sabido que Sobrino não é um bioeticista, e portanto com o princípio misericórdia não quis acrescentar mais um princípio à corrente principialista norte americana. Mas provoca uma melhor compreensão social dos povos que vivem maciçamente crucificados sob uma relação injusta de poder, que faz perpetuar as escandalosas desigualdades, gerando miséria e marginalização. Sob este viés o princípio misericórdia tenderia alargar os horizontes para uma abrangência na compreensão dos fatos. Com o princípio misericórdia, Jon Sobrino traz para a reflexão a séria interpretação que se deve fazer da perversidade intrínseca numa relação social que é imposta pelo sistema, que tende sugar o sangue das vítimas para se manter vivo. A construção do pensamento sobriniano parte de um lugar hermenêutico próprio, El Salvador, na América Central, lugar de sofrimento, onde conheceu além da opressão econômica das castas, o intenso massacre e morte de pessoas sob o regime de ditadura militar, em que se infringiam os direitos e violavam as condições humanas de 149 sobrevivência. Desse lugar nasce a intuição de Sobrino, movido com entranhas de misericórdia, como protesto, solidariedade, iluminação e esperança em meio ao desespero daqueles que vivem calados pela dor e pelo sofrimento provocado. Sobrino sabiamente sistematizou sua cristologia da libertação, auscultando o sofrimento do povo sem voz e, portanto, crucificado devolvendo-os em forma de resistência, esperança, libertação e recuperação da vida numa linguagem que os coloca como os mais privilegiados pelo Deus de Jesus. Desenvolve com essa compreensão teológica uma nova abordagem acerca da inter-relação humana e da relação humana com Deus. Brota, em meio ao povo simples, a percepção da dignidade humana diminuída pela crueldade da injustiça e da mentira alienadora envernizada com linguagem de democracia, modernidade, sistemas de governo os mais diversos, as reais preocupações dos governos ricos com os países pobres, os reais destinatários dos benefícios tecnocientíficos e assim por diante. Surge uma libertação redentora de ideologias presentes em discursos religiosos, políticos, econômicos e científicos; bem como um des-cobrimento das incoerências da corrupção e também dos discursos fatalistas como mecanismos de manipulação e opressão. Para tal, a misericórdia assume em primeiro plano uma criticidade que encara com veracidade os verdadeiros problemas do Continente sem escamoteá-los; aponta-nos a re-ação primária ante uma realidade de povo crucificados por cadeias injustas que precisam ser curados. Mas para Sobrino é fundamental saber o porquê se decide curar o ferido. A resposta mais satisfatória deve ser que o sofrimento internalizou àquele que cuida e lhe deu condições para reagir. Tudo induz a pensar que a solidariedade primária movida pelo samaritano não advém da obrigação, mas, pura e simplesmente porque, reduzido a nada, aquele desconhecido “sem qualidades” estava entregue à própria sorte, à compaixão humana. A contribuição que o princípio misericórdia pode oferecer, em meio aos povos vulnerados e crucificados da América Latina, advém dessa simultaneidade de estabelecer uma relação crítica da realidade e propor caminhos de superação para a principal violência que são as grandes desigualdades proporcionadas pelas estruturas de morte. Revela-se como um princípio dialético ao reagir acolhendo, sem paternalismos, o oprimido para dar-lhes condições dignas de sobrevivência; e colocando-se contra o opressor, para que ele enxergue a partir na humanidade existente no outro sua própria humanidade e possa também se libertar. 150 Um dos pontos de convergência do princípio misericórdia é curar o ferido, seja ele o oprimido ou o opressor. Não é um princípio fechado que, embora fazendo opção pelos mais vulnerados e reconhecendo que fora dos pobres não há salvação, se dá conta também que nem todos os pobres oferecem luz; e muito menos um princípio ultrapassado, dada à sua relevância em tempos de neoliberalismo que exclui os que não podem consumir. O consumo desmedido de poucos e seus interesses é a percepção mais notável da falta de universalidade de seus valores que exigem uma nova racionalidade. O princípio misericórdia tem certa processualidade: não se reduz à troca de favores, à obras assistenciais para descarga de consciências, mas vai além numa perspectiva de restabelecer os direitos lesados e em prol de uma justiça enriquecida pela solidariedade. A perspectiva da misericórdia é superar o mysterium iniquitatis, mistério iníquo de morte, pelo mysterium salutis, mistério salvífico. Consiste em salvar do desrespeito, das indignidades, da morte e da não-existência a maioria em-pobre-cida no Continente, como resposta de intellectus misericordiae, iustitiae e amoris, entende-se misericórdia, justiça e amor . Em busca de uma melhor percepção da realidade, compreensão da sua pobreza e da dor humanas em vista de sua superação, o princípio misericórdia se dá conta do desafio de lançar luz em meio à arraigada cultura de morte, que não aceita ser iluminada pela luz que move este princípio, resultando em perseguição e morte por parte dos verdugos. É uma realidade que não tolera luz ao mostrar a verdade da pobreza. Quando uma pessoa, ongs, universidades, igrejas, instituições ou governos se propõem agir movido pelo princípio misericórdia é retaliada, perseguida ou executada. As ameaças e execuções ocorrem sempre acompanhadas de intimidações, que não suportam serem atingidos em suas benesses construídas sobre as desumanidades. Por isso é uma decisão que precisa discernimento. O comprometimento leva necessariamente à perseguição. Ou decide-se curar o ferido ou passa-se adiante. O princípio sobriniano pode sofrer de uma incompreensão acerca de sua proposta, bem como na falta de abertura a ele, ao querer reduzi-lo apenas ao lugar do seu surgimento sob a carapuça de uma única epistemologia, sobretudo se pensar que seu conteúdo é estritamente relacionado ao campo das ciências sociais como a sociologia. O princípio misericórdia elaborado, análise-conceitualmente, no campo teológico com a percepção das situações concretas, tais como sociais, econômicas, morais e religiosas demandam critérios de discernimento ao inseri-lo em outro campo de investigação, mas está longe de se deixar deter por uma abordagem única. Sua relevância está exatamente vinculada a essas considerações. 151 Desse modo, partindo do lugar epistemológico de sua reflexão e do contexto em que foi elaborado o princípio misericórdia parece ser capaz de potenciar a bioética latino americana oferecendo ai sua contribuição numa perspectiva multi-disciplinar. A compreensão de Deus em Sobrino leva em conta a bipolaridade da existência humana, na qual coexistem a história e a transcendência, numa cristologia elaborada de baixo para cima, ou seja, construída a partir de uma análise do homem e sua circunstância. Com isto ele afasta definitivamente a possibilidade de reducionismo por parte de uma abstração e toda forma de entender a espiritualidade como uma ascese descomprometida, e da percepção humana descaracterizada de sentido, esperança e finalidades. Estabelece com isso uma correlação de profunda convergência na maneira de conceber o todo da realidade humana, na qual a espiritualidade é uma dimensão fundamental e inerente ao homem, assim como a corporalidade, a sociabilidade e a praxidade. A misericórdia, desse modo, se torna um princípio unificador, buscando conhecer a realidade e alertando para sua possível manipulação e encobrimento de sua verdade, que se sabe um dos males que corroem as relações sociais. A lealdade de Sobrino em analisar a realidade dá ao princípio misericórdia autoridade de denunciar as relações injustas e corrompidas, acompanhada simultaneamente de algumas expressões básicas com intuito de efetivar a cura. Sobrino procura estabelecer com seu princípio uma cadeia de relações com essas expressões básicas que também sugerem suas contribuições. Vincula-se com a responsabilidade, cooperação, solidariedade, esperança, serviço, liberdade, perdão e tantas outras expressões que caracterizam as relações culturais em meio aos pobres. Descer da cruz é apontado por Sobrino como a necessidade mais primigênia daqueles que estão crucificados, e clamam por ações que lhes tragam vida. No seu dizer a misericórdia só se efetiva caso houver conexão entre a atitude de ver o ferido, reagir ou internalizar a sua situação e viabilizar alternativas de ajuda para sanar a ferida ou salvá-lo. Qualquer atitude isoladamente não passa de gestos paliativos que não serve para levar ao termo a proposta do princípio. Nota-se que o princípio misericórdia quer, sobretudo, chamar a atenção para a qualidade de vida que vive os pobres inseridos na miséria. Ao mesmo tempo, porém, ele se dá conta da fragilidade em considerar tal situação, mesmo porque, os critérios para o viver qualitativamente não são estanques ao se dar conta da contingência e a provisoriedade da existência humana. Poder-se-ia imaginar com isso a clareza que se tem de uma meta a atingir, mas uma metodologia frágil ao considerar as contradições da 152 natureza humana. Desse modo o princípio se reconhece humilde, propondo-se somente como mais uma ferramenta, ao considerar a grande complexidade que são as relações humanas e os interesses ai presentes. Podem-se apontar outras questões remanescentes como a complexidade da realidade em discussão, a abrangência da teologia sobriniana e o diálogo que se propõe com a bioética. Outras limitações vinculam ao perguntar como a contribuição do princípio misericórdia, de caráter eminentemente cristão, pode ser atuante diante das “pluralidades morais” modernas? Outra questão importante aparece na diferença fundamental que se pode estabelecer entre a “ética do discurso” e a “ética da libertação”: a diferença essencial nesta questão está precisamente no seu ponto de partida. A primeira parte da própria comunidade de comunicação; a segunda, dos afetados e excluídos dessa comunidade: as vítimas da não comunicação. Assim se pergunta: como evitar que o princípio misericórdia se torne apenas uma ética do discurso e sem comprometimento com os crucificados, que no fundo é o que lhe dá legitimidade? É importante dar conta que a condição de marginalidade e injustiça social presentes na América Latina deve-se a causas distintas. É importante estar atento a essa diversidade e não reduzir a situação a uma única causa. Enfocamos mais opressão provinda da situação econômica por considerá-la chave para o desenvolvimento humano. Um mérito do princípio misericórdia é trazer com seriedade para a reflexão, sem temer retaliações ou julgamentos, a busca da verdade sobre o sofrimento dos pobres que vivem no hemisfério Sul e precisam ser descidos da cruz. A responsabilidade da éticateológica e da bioética, para além do discurso, é contribuir para salvar os pobres. É do mundo dos pobres e das vítimas que podem vir a sanação ou a recuperação das feridas como sugestão para uma civilização gravemente enferma. Para os cristãos o princípio misericórdia se caracteriza como uma atitude concreta de seguimento a Jesus de Nazaré, o Cristo, como Mestre. A consciência do seguimento exige uma responsabilidade pessoal e contextualização na história, levando em conta fatores determinantes como o desafio fundamental de transformar a realidade, inspirados pelo Espírito de Jesus, sobretudo quando se sabe que a exploração e opressão de cristãos acontecem pelos próprios cristãos. Por isso, procura-se situar o Espírito de Jesus numa estreita relação com a práxis, sem empobrecimento do espírito da compreensão de Deus. Nessa lógica de comprometimento com a realidade se entende a atualidade do princípio misericórdia, sua opção pelos pobres e não pela pobreza. 153 Revela-se como princípio básico de um diálogo mais abrangente, sem pretensão de universalidade, mas coerente com a realidade maior em nosso mundo. A cristologia numa perspectiva de seguimento, como a de Sobrino, não se dá por acabada, mas se vê constantemente interpelada e desafiada a contribuir a partir de seus conceitos e suas análises. A reflexão cristológica que nasce daí é potencialmente aberta ao diálogo, donde se vê perspectiva para sua continuidade. Na América Latina em seus homens e mulheres podemos encontrar Deus em meio à hybris da arrogância, da corrupção, dos encobrimentos e das estruturas opressoras que provocam as penúrias, as debilidades, as injustiças. Mas, podemos encontrá-lo também na firmeza, na resistência, na busca da dignidade e na esperança de viver que cerca o povo oprimido. Encontram-se aí crianças que vão à escola, com afã de aprender um pouco mais, de pais e mães que resistem à opressão por acreditar no futuro dos filhos, na resistência dos movimentos sociais. Existe vivo no seu meio um princípio de vida que faz acreditar na vida. Enfim, o princípio misericórdia é um princípio teológico, mas nitidamente ético implicado nas condições humanas de sobrevivência, pois acredita que é a partir do homem que Deus fala. Mesmo nas contradições da vida cotidiana o silêncio de Deus revela ao oprimido que Deus lhe é solidário e está crucificado com ele. A linguagem da cruz nos ajudou a compreender a relação assimétrica de poder e injustiça que se vive na América Latina e a necessidade de sistematizar estudos e somar esforços para sua superação. Neste caso, o princípio misericórdia se firma dizendo que a cruz é a morte e a crueldade de uma multidão de pobres. O seu mérito consiste em colocar como problemática atual a centralidade dos pobres, e ao chamar os pobres deste mundo de povos crucificados, nós os tiramos do anonimato e conferimos-lhes a máxima dignidade. Estabelecer uma relação mais profunda com este fato torna-se uma exigência para evitar os superficialismos e as neutralidades de uma realidade que não é meramente uma metáfora. Por isso, o princípio misericórdia põe-se em comum com a análise científica da moralidade secular objetiva ou intersubjetiva, os desafios como o crescimento explosivo das favelas nas novas e grandes megalópoles, sobretudo do hemisfério Sul, nos sistemas prisionais, nas guerras silenciosas do mercado, nos conflitos explícitos, e semelhantes. Para os diversos grupos teóricos ou práticos, crentes ou ateus, o princípio misericórdia reforça, no mínimo, uma grande convocatória à responsabilidade ética. E sem dúvida representa a proposta de um dinamismo espiritual 154 para a bioética, especialmente quando em nossos dias cresce o consenso de que esta não pode prescindir de uma vigorosa espiritualidade. 155 Referência Bibliográfica Livros de Jon Sobrino: SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópicoproféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007. _____________. A fé em Jesus Cristo: ensaio a partir das vítimas. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, Coleção Teologia e Libertação. _____________. Jesus, o libertador. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996, Coleção Teologia e Libertação. _____________. O princípio misericórdia: descer da cruz os povos crucificados. Tradução de CLASEN, Jaime A. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994. _____________. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. 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