O princípio Misericórdia

Transcrição

O princípio Misericórdia
CENTRO UNIVERSITÁRIO SÃO CAMILO
O PRINCÍPIO MISERICÓRDIA:
um estudo sobre a contribuição teológica de
Jon Sobrino para a Bioética na América Latina
ROGÉRIO JOLINS MARTINS
SÃO PAULO, 2008
1
ROGÉRIO JOLINS MARTINS
O PRINCÍPIO MISERICÓRDIA:
um estudo sobre a contribuição teológica de Jon Sobrino para a
Bioética na América Latina
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em
Bioética
do
Centro
Universitário
São
Camilo,
orientada pelo prof. Dr. Márcio Fabri dos Anjos, como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre.
SÃO PAULO, 2008
2
ROGÉRIO JOLINS MARTINS
O PRINCÍPIO MISERICÓRDIA:
um estudo sobre a contribuição teológica de Jon Sobrino para a
Bioética na América Latina
Orientador: ____________________________
Co-orientador: _________________________
3
La misericordia no es suficiente, pero es absolutamente necesaria en un mundo
que hace todo lo posible por ocultar el sufrimiento y evitar que lo humano se defina
desde la reacción a ese sufrimiento.
La respuesta al dolor de los pobres es una exigencia ética,
pero es además una práctica salvífica para quienes se solidarizan con los pobres.
Quienes hacen eso recobran con frecuencia el sentido profundo de su propia vida, que lo
creían perdido;
recobran la dignidad de ser hombres integrándose de alguna forma en el dolor y
sufrimiento de los pobres;
reciben de los pobres, de forma insospechada, ojos nuevos para ver la verdad última de
las cosas, e nuevos ánimos para recorrer caminos desconocidos e peligrosos...
La raíz, entonces, de la solidariedad está en aquello que desencadena corresponsabilidad
humana, que hace de esa corresponsabilidad una exigencia ética ineludible, y del
ejercicio de esa corresponsabilidad algo bueno, plenificante y salvífico.
Jon Sobrino
4
Dedicatória
A Jon Sobrino que através do seu testemunho humilde de fidelidade e
comprometimento com os pobres situa o seguimento de Jesus de Nazaré, o Cristo, no
cenário atual da América Latina, caracterizado pela extrema pobreza, gritante
desigualdade social e embrutecimento nas relações. Seu imperativo é a necessidade de
transformação em todos os níveis, os quais precisam ser repensados, constantemente, a
partir da misericórdia que deve ser historizada de acordo com quem é o ferido no
caminho. A atualidade do seu pensamento, com a originalidade do princípio
misericórdia, mostra o horizonte que dá possibilidade de intercâmbios com outros
saberes. Sobrino ajuda a redescobrir a face humana de Jesus,
cheia de ternura para com os pobres,
ao mostrar que extra pauperes nulla salus, ou seja, que as relações saudáveis
passam, necessariamente,
por inserir as motivações do pobre como critério nas tomadas de decisões.
Aos pequenos, desse modo, Sobrino devolveu vida e esperança,
e através dele os pobres encontram voz.
5
Agradecimento
Ao Deus de Jesus de Nazaré que me inspira no comprometimento em meio aos
meus irmãos crucificados na América Latina.
Ao prof. Dr. Pe. Márcio Fabri dos Anjos pela paciência, dedicação, estímulo e
competência na orientação deste estudo.
Ao prof. Dr. Pe. Léo Pessini pela co-orientação deste trabalho em suas
apreciações.
Aos membros das bancas de qualificação e defesa por aceitar o convite de
colaboração crítica e empenho para o enriquecimento deste estudo.
Ao Centro Universitário São Camilo, na pessoa de seu reitor Prof. Pe. Christian de
Paul de Barchifontaine, aos religiosos camilianos, professores, funcionários e colegas de
estudos por possibilitar as reflexões sobre o tema.
À Diocese de Colatina, na pessoa de Dom Décio, pelo financiamento e apoio
dispensados na realização deste estudo.
À paróquia Sagrado Coração de Jesus por disponibilizar tempo para leituras e
reflexões.
À minha família por saber que está tão longe e tão próxima que somente o afeto
filial pode perceber.
À todos que empreenderem na leitura deste trabalho...
6
Índice
Introdução................................................................................................................... 11
I – Bioética e princípios .............................................................................................. 14
1.1
– Sobre o termo princípio ........................................................................ 15
1.2
- Princípios e Fundamentos...................................................................... 18
1.3 - A relevância dos princípios no surgimento da Bioética ................................ 23
1.4 – O paradigma principialista na Bioética........................................................ 28
1.5 – Alguns limites do principialismo ................................................................ 30
1.6 - A contribuição de outras tendências na Bioética .......................................... 37
1.7 - O paradigma latino americano na Bioética................................................... 41
II – O princípio misericórdia ...................................................................................... 47
2.1 - Biografia e Pensamento de Jon Sobrino........................................................... 48
2.2 - América Latina: um continente de realidades vulneráveis e povos crucificados56
2.2.1 - A opressão como fenômeno histórico ....................................................... 60
2.2.2 - Pretensões colonizadoras no presente da América Latina.......................... 65
2.2.3 - Em busca das causas da opressão ............................................................. 69
2.2.3.1 - O mercado............................................................................................. 70
2.2.3.2 - Mercado e idolatria................................................................................ 72
2.2.3.3 - O ídolo e as vítimas ............................................................................... 72
2.2.3.4 - As vítimas e a lei ................................................................................... 73
2.3 - O princípio misericórdia: uma experiência fundante ....................................... 76
2.3.1 - Análise semântica do termo misericórdia ................................................. 81
2.3.2 - Aspectos da fundamentação teológica do princípio misericórdia .............. 84
2.3.3 - A efetividade do princípio misericórdia ................................................... 89
2.3.3.1 - A misericórdia na vida pessoal .............................................................. 92
2.3.3.2 - A misericórdia na vida social................................................................. 93
III – Contribuição do princípio misericórdia à bioética latino-americana .................... 96
3.1 - Bioética e novas perspectivas .......................................................................... 97
3.2 - Bioética e Teologia: reflexões, conflitos e contribuições ............................... 102
7
3.3 – Algumas expressões básicas do princípio misericórdia ................................. 109
3.3.1 - Responsabilidade.................................................................................... 110
3.3.1.1 - A co-responsabilidade das Igrejas na ação misericordiosa.................... 115
3.3.2 - Solidariedade.......................................................................................... 118
3.3.3 - Perdão .................................................................................................... 123
3.3.4 - Cooperação ............................................................................................ 127
3.3.4.1 - A cooperação acadêmica ..................................................................... 131
3.3.4.2 - A cooperação na tecnologia ................................................................. 134
3.3.5 - Esperança............................................................................................... 139
Reflexões finais ........................................................................................................ 149
Referência Bibliográfica ........................................................................................... 156
Livros de Jon Sobrino: ...................................................................................... 156
Artigos, capítulos de livro e outros escritos de Sobrino:..................................... 156
Artigos sobre Jon Sobrino: ................................................................................ 157
Bibliografia de apoio:........................................................................................ 158
Jornal: ............................................................................................................... 164
Pesquisa/Internet ............................................................................................... 164
8
Resumo
Com o presente estudo quer-se verificar em que o substrato do pensamento
teológico de Jon Sobrino, em torno do princípio misericórdia, pode contribuir para a
Bioética em contexto latino americano. A importância de princípios para bioética é uma
moldura em que se desenha este estudo; e a experiência de vida soma à densidade de
reflexão teológica em chave de libertação deste autor, justificam o investimento desta
pesquisa conceitual bibliográfica. Em um primeiro momento se considera a questão dos
princípios em bioética, suas funções e limites, onde se insere o tema em questão. Em
um segundo passo se recolhem pontos relevantes da experiência de vida deste autor e
especificamente os aportes teóricos que constroem seus conceitos e propostas em
termos de princípio misericórdia. Entre os elementos-chave de seu pensamento estão a
análise de realidade social por ele assumida, capaz de evidenciar estruturas sociais
injustas que geram sofrimento e morte para grandes segmentos da população; a
misericórdia entendida como capacidade de perceber as inequidades, de interagir com
suas vítimas e de reagir em vista de transformação. Os resultados deste estudo mostram
como o princípio misericórdia parte de uma espiritualidade que reforça atitudes
pessoais com efetiva incidência nas relações sociais, e sugere iniciativas de
solidariedade e corresponsabilidade nos diversos âmbitos das organizações, incluindo os
espaços acadêmicos e da pesquisa científica. Embora proveniente de um pensamento
cristão, para os diversos grupos teóricos ou práticos, crentes ou ateus, o princípio
misericórdia reforça, no mínimo, uma grande convocatória à responsabilidade ética. E
certamente representa a proposta de um dinamismo espiritual para a bioética,
especialmente quando em nossos dias cresce o consenso de que esta não pode prescindir
de uma vigorosa espiritualidade.
Palavras-chave: bioética, princípio misericórdia, pobres e bioética, inequidade.
9
Abstract
In the present study one wants to verify in which substrate of the theological thought of
Jon Sobrino, concerning the principle of mercy, can contribute to the Bioethics in the
Latin American context. The importance of principles for bioethics is a frame in which
one designs this study; and life experience adds up to the density of theological
reflection on a key-type author’s liberation, which justify the investment of this
conceptual literature research . At first it considers the question of bioethic principles,
their functions and limits, where the current theme is inserted.
gathers relevant points of the life experience
In a second step one
of this author and specifically the
theoretical contributions that build up his concepts and proposals with respect to the
principle of mercy.
Among the key elements of his thinking are the analysis of social
reality that he assumed, which is able to highlight unfair social structures that generate
suffering and death for large segments of the population; mercy is understood as the
capacity to perceive the inequities, to interact with their victims and to react with
respect to transformation. The results of this study show how the principle of mercy
initiates out of spirituality that reinforces personal attitudes with effective impact on
social relations, and suggests initiatives of solidarity and co-responsibility in various
areas of the organizations, which include the areas of academic and scientific research.
Although from a Christian thought, for the various theoretical or practical groups,
believers or non-believers, the principle of mercy strengthens, at least, a summons to
the great ethical responsibility.
And certainly the proposal represents a spiritual
dynamism for bioethics, especially in our days when a consensus that this cannot be
divorced from a robust spirituality is growing.
Keywords: bioethics, principle mercy, poor and bioethics, inequity.
10
Introdução
A abordagem do tema “O PRINCÍPIO MISERICÓRDIA: um estudo sobre a
contribuição teológica de Jon Sobrino para a Bioética na América Latina” é instigante
por levar a uma abertura de horizonte na relação entre Teologia e Bioética. Com o tema
quer-se verificar em que o substrato do pensamento teológico de Jon Sobrino, em torno
do princípio misericórdia, pode contribuir para a Bioética em contexto latino
americano. No decorrer da reflexão será possível notar os intercâmbios, as relações e
pontes, de caminhos convergentes e também distintos onde se poderá detectar a chave
de contribuição que pretende o tema.
A motivação para discorrer sobre o assunto parte da convergência existente entre
os dilemas de uma bioética inserida nas situações da população que vive na América
Latina e uma teologia com o caráter de libertação ao se deixarem interpelar por uma
realidade de opressão que compromete os anseios e a vida não somente de indivíduos,
mas de povos inteiros submersos sob o peso da violência original do empobrecimento e
suas razões.
Um estudo sobre o princípio misericórdia na reflexão Bioética evoca naturalmente
a bioética principialista norte americana. Isso se deve à grande evidência que assume o
paradigma principialista no contexto da Bioética. Seguramente esta não foi a pretensão
de Jon Sobrino como se poderá verificar no desenvolvimento da reflexão. Entende-se,
até mesmo pelas criticas já feitas à bioética principialista, que estipular quantidades de
princípios na linguagem revela-se hoje uma modalidade inadequada para tratar a
temática da bioética. Deve-se pensar também que o excesso de princípios pode levar a
um esvaziamento de sentido do termo. Ao contrário, o estudo sobre o princípio
misericórdia pode servir para superar uma visão reducionista que se critica na proposta
do principialismo.
Muitas obras de Jon Sobrino foram consultadas para ajudar na compreensão do
princípio sobriniano e seu possível diálogo com a bioética na América Latina. Contudo,
a estrutura deste trabalho se inspirou fundamentalmente na obra El principiomisericordia. Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. Este livro de Sobrino,
publicado em 1992, é composto de dez capítulos inter-dependentes e um epílogo, em
que aborda a necessidade de se reagir com misericórdia em meio a tantos sofrimentos
11
provocados. Procura enfatizar a responsabilidade de fazer descer da cruz uma multidão
de povos crucificados e não somente de um indivíduo, por meio do serviço, do perdão,
da esperança, da solidariedade, do amor, da cooperação, da graça.
Sobrino fala da libertação dos pobres a partir do discurso epistemológico de uma
teologia conhecida por discernir o clamor da grande massa silenciada, da qual ele é
membro co-fundador. Com a proposta da misericórdia ele enfatiza não somente a
necessidade de curar os feridos, mas também salvá-los e libertá-los que é o que
corresponde à meta do ser humano, ou seja, dignificar a vida humana para mostrar o que
é o ser humano.
A linguagem teológica cristã, de onde se situa o princípio misericórdia, pode
revelar um limite para um diálogo com a pluralidade de morais modernas no contexto
da bioética, mas pode também, atenta a esta percepção, surpreender e trazer sua grande
contribuição, dado que o espaço bioético é interdisciplinar. O principio misericórdia
impulsiona não somente para a reflexão, mas para a responsabilidade de agir ao se
descobrir o verdadeiro sentido do que significa “ser humano”.
Dentro deste quadro, assumimos como objetivos nesta pesquisa analisar possíveis
contribuições do pensamento de Jon Sobrino para a Bioética latino-americana e em que
medida o princípio misericórdia pode se tornar referência para a Bioética na América
Latina em vista de uma maior compreensão ética sobre o modo de viver de expressiva
parte da população no Continente. A reflexão de Jon Sobrino, particularmente em torno
do princípio misericórdia, mostra que é indispensável fazer escolhas humanitárias que
presidam a própria análise dos fatos. Sem estas, a interpretação e análise ficam
comprometidas e as situações de injustiça se tornam facilmente persistentes. Desta
forma, o pensamento de Jon Sobrino pode ser transformado em contribuição substancial
para a Bioética, particularmente em tempos de individualismo e diante da histórica
realidade latino-americana de situações estruturais de injustiça.
Tal pesquisa requer naturalmente um método analítico-conceitual, com suas
exigências no que se refere ao princípio misericórdia, formulado pela teologia de Jon
Sobrino e à sua aplicabilidade em bioética. O procedimento metodológico aparece na
estrutura dos capítulos que compõem esta dissertação.
O primeiro capítulo procura fazer uma revisão do conceito princípio como
categoria ética e desenvolver tal conceito elucidando sua inserção na epistemologia da
bioética, ao mesmo tempo em que se consideram algumas opiniões críticas que cercam
este tema.
12
O segundo capítulo procura apontar a misericórdia como princípio e força
estruturante a se exercer em meio à multidão crucificada na América Latina. O princípio
misericórdia, na concepção sobriniana, significa a atitude básica de Jesus em meio aos
caídos, feridos, maltratados, subjugados e sofridos. Este capítulo inicia mostrando a
experiência de vida de Jon Sobrino, que padeceu e ainda participa das durezas do viver,
em meio a essa grande multidão de povos dizimados no Continente. Em seguida analisa
as estruturas que provocam as iniqüidades e indignidades às quais denunciam o
princípio misericórdia. Tal condição de sofrimento, o autor a atribui ao peso de uma
estrutura político-econômica maléfica e antimisericordiosa que exige sangue das vítimas
para continuar se perpetuando. Por fim, num terceiro momento procura apontar o ser
humano como razão ou fundamento de reativação para exercício do princípio
misericórdia.
Situado o modus vivendi do Continente como preocupação fundamental do
princípio misericórdia, o terceiro capítulo aborda a contribuição que este quer oferecer
à bioética latino americana. Sua contribuição visa ampliar os horizontes em vista de
superar o mysterium iniquitatis, como realidade provocada e fenômeno historicamente
persistente, que deve ser feita com a mediação de um diálogo multi-disciplinar em vista
da sobrevivência e do respeito à condição do ser humano. Após um breve intercâmbio
de conceitos, preocupações e análises entre o saber teológico e científico, o estudo
propõe algumas expressões básicas como valores que devem internalizar o indivíduo e
às estruturas sociais como possibilidade de curar as feridas e efetivar a misericórdia
fazendo descer da cruz os povos.
As expressões básicas vinculadas ao princípio
misericórdia contemplam a justiça enriquecida pela solidariedade, que pretende ser
ainda mais abrangente indo à busca da “santidade primordial” para se opor à iniqüidade
e à crueldade aí imposta. Esta é uma relação profícua que o princípio misericórdia quer
estabelecer com a bioética de rosto latino americano.
Deve-se por fim reconhecer nesta introdução que o tema em estudo é bem mais
amplo seja pela paradoxalidade e complexidade dos temas sociais que o envolvem seja
pela amplitude e limites que configuram o diálogo entre-saberes a seu respeito.
Contudo, mesmo que esta pesquisa não tenha podido alcançar tal abrangência, parece
poder trazer para este quadro uma contribuição específica: um princípio capaz de
potencializar a bioética no contexto da América Latina a considerar mais
adequadamente as vítimas, os pobres e sofredores, estigmatizados pela pobreza,
indiferença, hipocrisia, exploração, violência.
13
I – Bioética e princípios
A categoria princípio assume uma função básica neste estudo, como fundamento e
guia de orientação para reflexão acerca do tema que se quer estudar. Trata-se do
contexto de sofrimento devido às indignidades vividas no continente latino americano, a
ser eticamente enfrentado. A interrogação sobre fundamentos éticos é extremamente
importante para se poder definir com precisão o lugar e o objeto sobre os quais se
querem refletir. Princípio é o ponto de partida ou alicerce a partir de onde se procura
efetivar e deter no processo de conhecimento de uma realidade singular. É como o
substrato a partir de onde a reflexão se tece. Jon Sobrino ao propor o princípio
misericórdia o faz no intuito de garantir essa base fundante donde o conhecimento deve
partir para efetivar a superação das situações persistentes e seus traumas.
O primeiro capítulo procura de início, apontar a etimologia do termo princípio, sua
inserção e sua compreensão no percurso histórico da reflexão filosófica. Dada à
relevância do termo para a compreensão deste estudo procurou-se abordar o seu
fundamento e clarear o seu sentido. A categoria dos princípios tem forte relação com a
bioética, por serem adotados por esta, e constituir um eixo de análise desde o seu
surgimento, sendo consideradas inicialmente como análogas. O principialismo, como
ficou conhecido, por suas posições intransigentes diante da resolução de problemas
diversos, começou a sofrer críticas de pensadores aos redores do mundo pelos limites de
análise contextual. Assim, o paradigma que elucidou os princípios, levava em
consideração um contexto, uma época e uma situação específica: a realidade clínica e a
pesquisa em seres humanos.
Uma crítica que se faz, com mais ou com menos contundência, parte do
pensamento elaborado a partir da realidade latino americana, por entender que os
14
princípios a serem evidenciados no Continente deverão levar em conta os seus reais
problemas, como as indignidades e situações de morte e miséria alarmantes vividas por
sua população.
1.1 – Sobre o termo princípio
Talvez seja oportuno estar recordando, para aprofundamento e clareza desse
estudo, a etimologia do termo princípio e melhor situar a reflexão que se propõe. É um
atributo muito usado para caracterizar ou evidenciar alguma realidade, e por isso carece
mais precisão.
Semanticamente o termo princípio corresponde ao termo grego αρχη − arkhé, para
significar origem, início, começo, ato de principiar, razão fundamental, base, teoria,
preceito, opinião, modo de ver, elemento predominante na composição de um corpo
orgânico, regras fundamentais gerais, momento ou local em que algo tem origem e
assim por diante. No plural, princípios significam proposições diretoras de uma ciência,
às quais todo o desenvolvimento posterior dessa ciência deve estar subordinado. No
latim diz-se, principium, no plural, principia para designar a mesma realidade1.
Na literatura filosófica o seu uso remonta ao início da sistematização da filosofia
grega, com Anaximandro, afirmam Giovanni Reale e Dario Antiseri, quando acreditava
que tudo tem princípio numa coisa chamada a-peiron, que é algo infinito em sentido
quantitativo no tempo e no espaço e no sentido qualitativo ao entender as dimensões
internas. Sustentava que o “princípio” (arché) é o infinito e o indefinido do qual provêm
todas as coisas que existem. O a-peiron - aquilo que é privado de limites pode ser
compreendido como algo que não surgiu nunca, embora seja algo que exista. Para ele
todos os ciclos da criação, evolução e destruição eram fenômenos naturais que ocorriam
a partir do ponto em que a matéria abandonava e se separava do a-peiron. O a-peiron
era essa realidade primordial e final de todas as coisas, que continha toda a natureza do
divino em si próprio2.
Cabe sinalizar, antes de prosseguir, que algumas outras culturas primitivas
também usavam o sentido que tem o termo princípio com terminologias diferentes. É o
caso da cultura semita que, com toda amplitude de significado, em muito parece com o
sentido dado à compreensão grega. Falava-se da “gênese” para significar principio: “...
1
CABRALII, Emmanuelis Pinni et RAMALII, Joseph Antonii. Magnum Lexicon Novissimum Latinum et
Lusitanum. Parisiis: s/editora, 1873. Cf. também ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
2
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990, p. 31-34, vol. 1.
15
no princípio Deus criou...” (Gn 1,1). Referia-se à ação primeira que pudesse ser
vislumbrada ou imaginada pelo homem, um nascimento, uma origem ou algum tempo
antes que o universo passasse a existir.
Não vamos nos deter em assunto da antropologia cultural, mas isso pode sugerir
que estabelecer critérios de vivência no tempo e no espaço parece ser uma necessidade
humana. Assim buscam-se as causas primárias, elegem-se critérios orientadores de
parâmetros e decisões que dão caráter de última razão para objetivar “verdades” que
fazem ou não parte exclusiva do mundo do ser.
O conceito princípio inserido na reflexão filosófica foi usado por Platão no sentido
de fundamentar um raciocínio que representasse uma premissa maior de uma
demonstração. Para ele o “princípio supremo” se caracterizava como o “Bem”, o “Uno”
ou o “Belo”. Tudo está fundado nesse princípio original donde procede a totalidade da
Idéia. Dá a impressão de um princípio que é certo em si mesmo, ainda que
indemonstrável. Esse princípio não é suscetível de absolutamente nenhuma prova e não
pode ser remetido a nenhuma proposição superior. Ele é a fundação de toda certeza.
Todas as outras proposições terão apenas uma certeza mediata e derivada dela; ela tem
de ser imediatamente certa3.
Num salto histórico, para Kant a afirmação de que o princípio é um conhecimento
universal serve de premissa para o raciocínio de caráter meramente abstrato, com seu
imperativo, “Procede como se a máxima de tua ação devesse ser erigida, por tua
vontade, em lei universal da natureza”4. Esse imperativo moral denota uma abstração e
um formalismo vazio, que visa obrigação por obrigação, pouco se importando com as
realidades concretas, podendo gerar problemas e dificuldades ao desenvolver uma
doutrina imanente dos deveres. Um princípio que não possui especificidade suficiente
deve ser considerado vazio e ineficaz. O sistema kantiano influenciou fortemente o
pensamento Ocidental, com resquícios até nossos dias.
O filósofo alemão Hans Jonas ao perceber a necessidade de situar o discurso moral
na vida concreta dos cidadãos atuais propõe a reformulação do imperativo kantiano do
seguinte modo: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a
permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra” ou em sua forma negativa
3
PLATÃO. A República. Tradução de CORVISIERI, Enrico. São Paulo: Nova Cultural, 1997, Coleção
Os Pensadores. Cf. também REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo:
Paulus, 1990, p. 134-145, vol. 1.
4
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1964, p. 83.
16
“Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade
futura de uma tal vida”5. O que Jonas está propondo é um paradigma ético responsável,
na condição de princípio, que reflita as reais condições do homem e do cosmos diante
das ameaças do presente.
Frente às concepções diversas de pensamentos no mundo plural a corrente
filosófica positivista no século XX elevou alguns princípios à categoria de lei positiva,
promulgando alguns como substratos estratificados de algumas carta magnas, no qual se
assentam os alicerces que sustentam os ordenamentos jurídicos destes novos sistemas
constituídos nesse tempo. Ao identificar nos anos 70 os princípios orientadores da
pesquisa biomédica, acabaram sendo inseridos na reflexão bioética que hora o admite
como necessidade e em alguns momentos o questiona por mais flexibilidade.
Percebe-se, no tempo presente, a necessidade dos princípios na reflexão ética e
bioética ao fundar e estipular valor moral para viver como indivíduo e comunidade de
forma setorizada, e não mais com o caráter de universalidade, mesmo diante da
realidade cultural globalizada e homogeneizadora que se apresenta. Os professores
Franklin, Segre e Selli notam que “a situação específica na qual a opção da ética
aplicada surge como alternativa à ética universalista se define como a impossibilidade
histórica desta última”6. Com a perda da universalidade religiosa, numa sociedade
pluricultural, nos quais convivem simultaneamente valores agnósticos, crentes e ateus
todos amparados sobre a liberdade de consciência e convivendo sob diferentes códigos
morais.
É nessa direção que a ética quer pensar e refletir os valores estreitando-os com os
fatos concretos da vida. Diante da exigência de estabelecer regras de condutas em
contextos particulares Franklin et alli afirma ser “uma característica marcante da
bioética: a relação humana vivida no regime da singularidade é o eixo em torno do qual
gira a conduta”7. Para esses autores, “nas situações de fato, os princípios se mostram
abstratos e as regras, imprecisas. Isso porque a dignidade, humanidade, subjetividade,
liberdade não são princípios nem regras, são modos indefinidamente abertos de viver a
relação humana”8.
5
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Tradução de LISBOA, Marijane e MONTEZ, Luiz
Barros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO, 2006, p. 47.
6
SILVA, Franklin Leopoldo e et alli. Da ética profissional para a bioética. In: ANJOS, Márcio Fabri dos
e SIQUEIRA, José Eduardo de (Orgs.). Bioética no Brasil: tendências e perspectivas. Aparecida-SP:
Idéias e Letras/Sociedade Brasileira de Bioética, 2007, p. 59.
7
Ibidem p. 63.
8
Ibidem p. 63.
17
Neste caso, quando se pensa em princípios para caracterizar o ponto de partida de
uma reflexão na bioética, deve-se levar em consideração a situação específica para
definir o procedimento e o valor a aplicá-lo. Conforme Franklin o recurso ético a ser
aplicado ai “deverá seguir o caminho de instituição de regras estritamente vinculadas à
consideração objetiva da atividade a ser eticamente normatizada”9, com cuidado de não
cair no risco de estabelecer regras tão objetivas quanto as condutas que elas deveriam
regular.
Nota-se, portanto, o caráter abstrato dos princípios com intuito de viabilizar
acontecimentos concretos. Na vida concreta, diferentemente da teórica, estabelecer as
fronteiras entre princípios e regras não parecem muito fáceis por não serem muito
definidas e se mesclarem como base de conduta. Neste caso, convém ter clara a
distinção entre eles para a reflexão bioética e sua função. Isso ajuda para uma melhor
compreensão e o espaço determinado para cada um.
1.2 - Princípios e Fundamentos
Possui muita relevância neste estudo verificar o fundamento do conceito princípio,
sua função, diferenciação existente entre princípios e regras, bem como a construção de
paradigmas éticos que se formalizam a partir de princípios. Essa breve análise ajudará
visualizar melhor o que se pretende com o termo peculiar.
Os princípios, em si mesmos, pretendem uma validade universal, sobre os quais se
constroem acordos e consensos que devem guiar e estabelecer parâmetros de
convivência. O princípio é, por essência,
mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito
e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente
por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe
confere a tônica e lhe dá sentido harmônico10.
Os princípios expressam um valor ou uma diretriz, sem descrever uma situação
jurídica, nem se reportar a um fato particular, exigindo, porém, a realização de algo, da
melhor maneira possível, observadas as possibilidades mesmo jurídicas. Conforme
Diniz E Guilhem, “Na história da filosofia moral, os princípios assumiram o papel de
guias para a ação, resumindo e circunscrevendo o campo de atuação de uma
determinada teoria que, por sua vez, orientaria o agente moral no processo de tomada de
9
Ibidem p. 59.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Ed. RT, 1980,
p. 230.
10
18
decisões”11. Seu fundamento não tem validade deôntica, mas expressa um imperativo ou
um dever moral baseado nos valores comuns. São teorias morais que derivam dos
princípios originários e fundantes e são defendidas por eles.
A função para qual são extraídos e empregados os princípios é aparentemente a
mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso12. Possuem,
entretanto, um maior grau de abstração que as regras e irradia-se por diferentes partes,
dando unidade e harmonia ao sistema normativo. Tereza Rodrigues Vieira esclarece a
dificuldade em relacionar normas com o discurso da bioética, ao se indagar:
é possível conciliar, por meio de normas, os diferentes pensamentos
originados nas reflexões bioéticas? Elaborar leis resolve o problema da
pluralidade de opiniões? O que fazer quando as leis existentes são
insuficientes? (...) Tudo o que é ético é legal e vice-versa? A aplicação da
norma pode produzir resultado injusto?13.
No entender de José Renato Nalini, apud Tereza Rodrigues Vieira, “a ética é uma
disciplina normativa, não por criar normas, mas por descobri-las e elucidá-las.
Mostrando às pessoas os valores e princípios que devam nortear sua existência, a ética
aprimora e desenvolve seu sentido moral e influencia a conduta”14. A ética não se revela
por um código formal, mas é o ponto de partida para a criação de normas.
E qual seria a diferença entre regras e princípios? Há uma hierarquia que se possa
conceber entre eles? A resposta para essas questões não é simples. Assim se poderiam
elucidar algumas distinções apontadas por Ronald Dworkin15:
1) enquanto o princípio apresenta uma razão que aponta para uma direção, ao
mesmo tempo, porém, não exige uma decisão específica naquele mesmo sentido
apontado;
2) os princípios têm uma dimensão de peso ou importância. Se duas regras estão
em conflito, uma não poderá ser válida; já os princípios, serão aplicados aqueles que
tiverem maior peso ou importância naquela circunstância;
3) os princípios possuem nitidamente um elevado grau de abstração, possibilitando
assim uma abrangência maior do que a regra; ao passo que quanto ao grau de
11
DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 37.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Unb, 1996, p. 159.
13
VIEIRA, Tereza Rodrigues et alli. Bioética e construção da normatividade. In: ANJOS, Márcio Fabri
dos e SIQUEIRA, José Eduardo de (Orgs.). Bioética no Brasil: tendências e Perspectivas. Aparecida-SP:
Idéias e Letras, 2007, p. 71.
14
Ibidem p. 72.
15
DWORKIN, Ronald. Is Law a system of rules?. In: DWORKIN, Ronald (Org.). The philosophy of law.
Oxford-UK: Oxford University Press, 1977, p. 45.
12
19
determinação, as regras ao contrário dos princípios são as que possuem maior
determinação e logo, são restritivas na sua abrangência;
4) os princípios são axiomas que derivam do juízo de justiça, equidade e de
direito, são expressão dos anseios da sociedade e possuem indiscutivelmente uma
posição proeminente, por sua importância estruturante. Já as regras ou ações legais são
conteúdos de execução e funcionalidade;
5) os princípios consistem em verdadeiros fundamentos, com base na função
argumentativa que faz até vislumbrar a ratio legis no intuito de ajudar a ordenar ou
normatizar. As regras em muito são impostas com a legitimidade daqueles cujos valores
transparecem nos princípios;
6) Reitera-se, no entanto, que os princípios têm convivência conflitual, ao passo
que as regras têm convivência antinômica. Os conflitos de princípios perduram
enquanto durar o processo. As soluções dos conflitos são, portanto, diferentes. Enquanto
para as normas e regras a solução se dá no plano da validade, no conflito de princípios
conjugam-se validade e peso, ou seja, a solução dos princípios se dá por meio de juízo
de validade, mas de concordância prática e de ponderação. Considerando que os
princípios envolvem valores, deverá o intérprete-aplicador, no caso concreto, optar pelo
que melhor tratamento der ao caso.
A atenção que Tom L. Beauchamp e James F. Childress dão aos princípios é
relevante. São colaboradores reconhecidos no desenvolvimento da bioética, autores da
obra clássica Principles of biomedical ethics, e mostram essa relação de regras e
princípios num gráfico com diferentes níveis de experiências, passando da mais
concreta para a mais teórica – indutiva - ou passando da mais teórica para a mais
particular – dedutiva. As setas indicam a justificação de casos mais particulares em
direção às justificações mais teóricas16:
4 – Teoria ética
↑
3 – Princípios
↑
2 – Regras
↑
1 – Julgamentos particulares
16
BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de
PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 31.
20
O discurso ético construído a partir dos princípios deve-se muito do ponto que se
parte. A partir de um gráfico como esse, vários modelos éticos podem ser construídos.
Numa ordem decrescente poder-se-ia dizer que um discurso que prioriza mais a teoria
ética tende enfatizar as normas mais gerais, com julgamentos morais feitos por dedução,
a partir de um esquema teórico e preceitos normativos. “Esse tipo de argumento é
ocasionalmente usado na ética, e os dedutivistas sustentam que ele é o melhor modelo
de justificação”17. O julgamento moral se dá como aplicação de uma regra, de um
princípio, um ideal, um direito, uma norma, etc. “Diz-se, portanto, que a forma dedutiva
á uma aplicação ‘de cima para baixo’ de preceitos gerais – uma expressão que motivou
o uso da expressão ‘ética aplicada’”18. Esse modelo de raciocínio não funciona para
justificar os casos morais mais complexos.
Numa análise que se faz ‘a partir de baixo para cima’, e, portanto, indutiva tomase os casos individuais ou particulares como ponto de partida, para se chegar às
generalizações e obter a deliberação e os julgamentos. “O indutivismo sustenta que
devemos usar, como pontos de partida para a generalização até as normas (como os
princípios e as regras), os consensos e as práticas sociais existentes, e enfatiza o papel
dos julgamentos particulares e contextuais como uma parte da evolução de nossa vida
moral”19.
Nesse impasse Beauchamp e Childress propõem o coerentismo como alternativa
de diálogo e intercâmbio, que “não funciona nem de baixo para cima nem de cima para
baixo; ele se move em ambas as direções”20. Assim eles sugerem que “todos os sistemas
morais apresentam algum grau de indeterminabilidade e incoerência, revelando que eles
não têm o poder de eliminar vários conflitos contingentes entre princípios e regras”21. O
“equilíbrio reflexivo”, terminologia empregada por John Rawls, para dizer que uma
teoria na ética começa propriamente com os nossos juízos ponderados, “ocorre quando
17
Ibidem p. 30.
Ibidem p. 30. FERRER diz que as “normas gerais deixam uma ampla magem de indeterminação. Para
serem úteis para a vida moral, é necessário que se possa descer do plano do geral ao específico”. Os
princípios gerais precisam ser traduzidos em normas particulares concretas e dotados de conteúdo
concreto. Ressalta que esse “processo de concretizar o princípio recebe o nome de ‘especificação’.
Especificação é o processo pelo qual reduzimos a indeterminação das normas abstratas e as dotamos de
conteúdos aptos para guiar as ações concretas”. FERRER, Jorge José e ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para
fundamentar a bioética. Teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. Tradução de
MOREIRA, Orlando Soares. São Paulo: Loyola, 2005, p. 142.
19
Ibidem p. 33.
20
Ibidem p. 36.
21
Ibidem p. 38.
18
21
se avaliam as qualidades e as fraquezas de todos os princípios e juízos morais plausíveis
e das teorias de fundo relevantes”22. Desse modo, afirma Beauchamp e Childress que “o
único modelo relevante para a teoria moral é aquele que mais se aproxime da plena
coerência”23. “A melhor explicação em face da coerência inabalável é que o sistema
capturou o que há de correto, virtuoso etc. se esse resultado é aquilo em que consiste a
verdade moral, então a rede de coerência capturou a verdade”24. Para esses autores a
fórmula da justificação da abordagem ética correta se encontra na coerência.
A coerência adquire em seu conceito prima facie (à primeira vista) uma hierarquia
ordenada e não-absoluta entre os princípios, regras e direitos. Especificam que algumas
normas são praticamente absolutas, nem necessitando de ponderação, como no caso de
proibições a crueldades, torturas, o ato de causar dor e sofrimento, regras contra o
assassinato e outras que são absolutas em virtudes da objetividade do fato e da falta de
sentido delas. Mas a relevância desses conceitos não é tão fácil quando inseridos na
realidade, pois só podemos atingir uma coerência frágil, usando relatos mais ou menos
confiáveis. Trata-se de um “processo de ponderação”, e melhor equilíbrio diante da
obscuridade, da dúvida, de uma situação que comprime entre o certo e o errado25.
Em síntese, a eleição de princípios, que podem se transformar em regras ou não,
são necessários para o mínimo ordenamento comum. Ambos estão inseridos em
contextos sociais, fazendo parte do senso moral de um grupo26. Poder-se-ia concordar
com Ronald Dworkin que ambos, princípios e normas, apontam para decisões
particulares sobre obrigações éticas ou jurídicas numa particular circunstância. Mas se
diferenciam no caráter da direção que apontam. As regras são aplicáveis na forma do
tudo ou nada. Por sua vez, os princípios, embora muito se pareçam com as regras, não
indicam uma conseqüência legal27. Tom Beauchamp e James Childress afirmam que
“Essa limitação não é um defeito nos princípios; ela é, antes parte da vida moral na qual
22
Ibidem p. 38
Ibidem p. 38
24
Ibidem p. 48.
25
Ibidem p. 50.
26
ENGELHARDT Jr., H. Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução de CESCHIN, José A. São
Paulo: Loyola, 2004.
27
DWORKIN, Ronald. Is Law a system of rules?. In DWORKIN, Ronald (Org.). The philosophy of law.
Oxford-UK: Oxford University Press, 1977, p. 45. Para Beauchamp e Childress “É preciso distinguir
também os princípios e as regras do corpo de normas coerente e sistemático que inclui as teorias”.
BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de
PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 55.
23
22
se espera que assumamos a responsabilidade pela forma como empregamos os
princípios para auxiliar em nossos julgamentos sobre casos particulares”28.
1.3 - A relevância dos princípios no surgimento da Bioética
Poder-se-ia perguntar a partir de agora pela relevância em estabelecer princípios
na bioética, sendo que eles “nos orientam para certas formas de comportamento; porém,
por si mesmos, eles não resolvem conflitos de princípios”29. Aqui se entra na
complexidade dos juízos ponderados para se estabelecer uma moralidade comum, um
tema muito bem trabalhado por Engelhardt em, sua obra clássica, Fundamentos da
Bioética. Os princípios morais adquirem relevância e centralidade no discurso da
bioética somente sendo feitos por juízos ponderados e por coerência com posições de
defesa argumentada30.
A simultaneidade do aparecimento do neologismo Bioética, de Potter, em 197031,
e os acontecimentos em pesquisas envolvendo seres humanos nas décadas de 60 e 70,
levaram, consequentemente, a estabelecer princípios que, a priori, deveriam apenas
nortear as pesquisas biomédicas, a se inserirem na reflexão bioética, e às vezes até se
confundindo com toda a Bioética32. De certo, os princípios, em primeiro momento, não
foram identificados para a bioética e sim para a ética referente às pesquisas biomédicas,
e acabaram encontrando rápida adesão dos pesquisadores da bioética diante dos
problemas morais situados que brotaram das atrocidades e crueldades praticadas no
campo biomédico referente à pesquisa em seres humanos. A inserção dos princípios na
bioética ressalta Franklin et alli, se deve ao desmoronamento dos valores universais da
vida ética que levou à necessidade premente de estabelecer princípios norteadores da
conduta e parâmetros que contribuíssem para assegurar à dignidade humana como valor
28
BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de
PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 55.
29
Ibidem; p. 49.
30
ENGELHARDT Jr., H. Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução de CESCHIN, José A. São
Paulo: Loyola, 2004.
31
POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs-New Jersey: Carl P.
Swanson editor, 1971, p. 02.
32
HOSSNE, William Saad. Bioética – princípios ou referenciais?. Revista O Mundo da Saúde. out/dez
2006, p. 673-676. Os bioetcistas de modo geral reconhecem que ter havido uma identificação entre o
principialismo e toda a Bioética no período do seu surgimento, dada à quase simultaneidade de origem de
ambas.
23
e ações33. Nesse caso a deontologia apareceu como opção natural de vinculação entre
regras e condutas que se dão aparentemente em termos objetivos34.
Conforme Franklin a bioética é a princípio “uma tentativa de restauração de
valores, que viessem deter o processo de barbárie, por meio de normatização da
conduta”35 diante do desenvolvimento científico no século XX, mais notadamente a
partir da Segunda Grande Guerra Mundial, quando se viu a necessidade de elaborar
documentos de amparo à pesquisa, mas, sobretudo no sentido de evitar abusos
cometidos por essa contra a dignidade da pessoa, sujeito de pesquisa. Nos experimentos
dos campos de concentração da Segunda Guerra e na instalação, bem como na
formulação do Código de Nuremberg, em 1946-1947; na Declaração Universal de
Direitos Humanos, em 1948; na Declaração de Helsinque em suas cinco edições, sendo
a primeira em 1964; na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do
Homem e, mais precisamente, no Relatório Belmont, publicado em 1974, que alguns
bioeticistas dizem estar fundamentalmente um documento principialista, onde o
paradigma principialista da Bioética encontra sua raiz36.
Pessini e Barchifontaine, em seu livro Problemas Atuais de Bioética, aproveitando
ponderações de Albert Jonsen, apontam como determinantes alguns acontecimentos
históricos para a evidência dos princípios na Bioética37. O primeiro acontecimento foi a
questão de decidir o dilema em torno da diálise logo durante o início de suas
experiências, conforme artigo da jornalista Shana Alexander, publicado pela revista Life
intitulado “Eles decidem quem vive e quem morre”, de 09 de novembro de 1962.
Um segundo impulso está vinculado à denúncia feita pelo professor anestesista da
Escola Médica de Harvard, Henry Beecher, ao publicar seu artigo no New England
Journal of Medicine, em 1966, com o título Ethics and clinical research (Ética e
pesquisa clínica), procedimentos antiéticos usados na experimentação em seres
humanos. Tais pesquisas eram “realizadas com recursos provenientes de instituições
33
SILVA, Franklin Leopoldo e et alli. Da ética profissional para a bioética. In: ANJOS, Márcio Fabri dos
e SIQUEIRA, José Eduardo de (Orgs.). Bioética no Brasil: tendências e perspectivas. Aparecida-SP:
Idéias e Letras/Sociedade Brasileira de Bioética, 2007, p. 58.
34
Ibidem p. 60.
35
Ibidem p. 58.
36
ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos
bioéticos. Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p.
12-23. Cf. Também SILVA, Franklin Leopoldo e et alli. Da ética profissional para a bioética. In: ANJOS,
Márcio Fabri dos e SIQUEIRA, José Eduardo de (Orgs.). Bioética no Brasil: tendências e perspectivas.
Aparecida-SP: Idéias e Letras/Sociedade Brasileira de Bioética, 2007, p. 86.
37
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo, 2000, p. 19-24, 5ª ed.
24
governamentais e companhias de medicamentos em que os alvos de pesquisa eram os
chamados ‘cidadãos de segunda classe’”38, ou seja, “internos em hospitais de caridade,
adultos com deficiências mentais, crianças com retardos mentais, idosos, pacientes
psiquiátricos, recém-nascidos, presidiários e todas as pessoas incapazes de assumir uma
postura moralmente ativa diante do pesquisador e do experimento”39. Os casos mais
conhecidos na literatura são: o de inoculação intencional do vírus da hepatite em
crianças retardadas mentais, em pesquisa realizada entre 1950 e 1970, no hospital estatal
de Willowbrook – NY; o de injeção de células cancerosas vivas em 22 idosos doentes,
sem comunicá-los que as células eram cancerígenas, realizada no Hospital Israelita de
doenças crônicas de Nova York, em 1963; e ao estudo para avaliar a história natural da
sífilis iniciado em 1932 na cidade de Tukesgee, no Alabama, com 408 indivíduos
negros sifilítico de baixo poder econômico mantidos sem tratamento.
O terceiro impulso para a reflexão bioética está vinculado ao avanço da pesquisa
em transplantes. “Em 1967, Christian Barnard transplantou um coração humano de uma
pessoa morta ou moribunda para um paciente com doença terminal de coração. O
mundo ficou maravilhado, mas alguns se perguntaram a respeito da origem do órgão”40.
O primeiro transplante cardíaco trouxe o questionamento ético: estaria o doador morto
ou não; o coração havia sido retirado respeitando ou não os desejos do doador quando
vivo. Somente em 1968 houve a definição de morte encefálica pelo grupo da Harvard.
Devido a essas situações nas pesquisas em seres humanos e na relação médicopaciente alguns autores, como William Saad Hossne41 e outros, notificam as razões
fundamentais que motivaram à eleição dos princípios na Bioética. A partir dessa
ebulição de acontecimentos uma nova ótica, com uma visão mais crítica, começa a se
formar. O livro, Problemas Morais na Medicina, organizado pelo filósofo Samuel
Gorovitz, apud Diniz e Guilhem, traz em sua introdução referências à ruptura com o
tradicionalismo da ética médica, ou seja, a falência da ética à beira do leito hospitalar.
Conforme Diniz e Guilhem, Gorovitz propunha que “o postulado comumente aceito
pelo senso comum de que o ‘especialista em decisões médicas é também especialista em
38
BEECHER, Henry. Ethics and Clinical research. The New England Journal of Medicine. v. 274, nº 24,
june, 16, 1996, p. 1354-1360. In DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo:
Brasiliense, 2002, p. 15.
39
Ibidem.
40
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo, 2000, p. 23, 5ª ed.
41
HOSSNE, William Saad; Bioética – princípios ou referenciais?. Revista O Mundo da Saúde, out/dez
2006, p. 673-676.
25
decisões éticas’ deveria ser questionado, tornando possível que outros atores sociais
participassem do processo de decisão ética”42.
A idéia, no entanto, de estabelecer critérios para elaboração de pesquisas já era
perceptível no Código de Nuremberg, decretado devido às experimentações em seres
humanos realizadas por médicos nazistas nos campos de concentração, quando definia
clara e objetivamente princípios para experimentação com seres humanos: “O
consentimento voluntário do sujeito humano é absolutamente essencial, lê-se já no
primeiro artigo”43. No artigo número nove “ele supõe que a pessoa entenda a natureza
da experimentação, seus objetivos e os riscos eventuais e que tenha a capacidade de
decidir livremente sobre sua participação”44. Desde então, o Código tornou-se ponto
focal de primeira relevância para a questão do consentimento esclarecido. “Tal
consentimento representava a manifestação clara em favor do respeito e da dignidade da
pessoa humana”45.
Nota-se, posteriormente, no Relatório Belmont, a manifestação do princípio da
autonomia inspirado no conceito consentimento esclarecido. Há nos artigos 1º e 2º do
Relatório Belmont indício de preocupação com o princípio da beneficência, segundo o
qual a pesquisa deve visar o bem do paciente e do sujeito da pesquisa e de todos os
membros da sociedade, numa relação com o velho Juramento de Hipócrates “Aplicarei
os regimes para o bem dos doentes, segundo o meu saber e a minha razão...”46.
Pode-se, definitivamente dizer que, no Relatório Belmont, elaborado pela
Comissão Nacional Para a Proteção dos Seres Humanos da Pesquisa Biomédica e
Comportamental, em 1978, os princípios se destacaram como normas morais a partir
dos evidentes fatos comprovados de abusos em pesquisas realizadas nos USA, mesmo
com a orientação de uma série de documentos de nível internacionais anteriormente
publicados47.
42
DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 24.
CÓDIGO DE NUREMBERG. Tribunal Internacional de Nuremberg. 1947, Art. 1º.
44
ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos
bioéticos. Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p.
12-23.
45
Ibidem.
46
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo, 2000, p. 437, 5ª ed.
47
ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos
bioéticos. Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p.
12-23. Conforme Pessini e Barchifontaine “O relatório Belmont foi o documento fundamental que
respondeu à necessidade dos responsáveis da elaboração de normas públicas, de uma declaração simples e
clara, de bases éticas para regulamentar a pesquisa” PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo, 2000, p. 48, 5ª ed.
43
26
Todo o processo inescrupuloso de pesquisa exposto acima e o efervescente
emergir de documentos com o objetivo de regulamentação se deu num curto espaço de
tempo, ou seja, entre as décadas de 60 e 70, período de surgimento da Bioética. Foi em
reação a tantos escândalos implicando diretamente aos EUA, que o governo americano,
via Congresso, constituiu em 1974 a referida Comissão Nacional Para a Proteção dos
Seres Humanos da Pesquisa Biomédica e Comportamental, com o objetivo de “que
identificassem os princípios éticos básicos que deveriam nortear a experimentação em
seres humanos nas ciências do comportamento e na biomedicina”48. Essa Comissão
priorizou inicialmente a pesquisa envolvendo fetos humanos, questão considerada mais
urgente, e deixaram a tarefa de definir os princípios éticos para mais tarde, quando já
trabalhando sobre eles e à medida que as questões específicas avançavam solicitaram
também a participação de filósofos e teólogos para contribuir na identificação dos
princípios éticos básicos49.
A Comissão, encarregada de elaborar o documento com os princípios éticos
fundamentais que deviam sustentar as pesquisas biomédicas e dar diretrizes para a
solução de problemas éticos provenientes de pesquisas envolvendo seres humanos,
durou quatro anos quando, em 1978, publicou o Relatório Belmont. Essa Comissão
dispunha dos documentos publicados anteriormente como Nuremberg, a Declaração
Universal de Direitos Humanos e Helsinque entre outros, mas os considerou de difícil
operacionalização, isto é, “suas regras são com freqüência inadequadas em casos de
situações complexas”50.
A principal contribuição dessa Comissão foi, sem dúvida, explicitar de modo claro
e sucinto os princípios fundamentais de ética que serviriam de base para as
recomendações e orientações de conduta nas pesquisas. Esses princípios se tornaram a
principal fonte de orientação para as avaliações críticas da pesquisa científica
envolvendo sujeitos humanos. Contudo, esses princípios, conforme Zuben, não podem
sempre ser aplicados de modo incontestável para resolver problemas particulares de
ética. O objetivo, segundo ele, visa fornecer uma estrutura analítica tendo como
48
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo. 2000, p. 44, 5ª ed.
49
Ibidem p. 45.
50
Ibidem.
27
finalidade orientar a resolução de problemas de ética resultantes de pesquisas que
envolvem seres humanos51.
Os três princípios fundamentais identificados pelo Relatório Belmont foram: o
“respeito à pessoa”, “beneficência” e “justiça”. A Comissão propôs o método baseado
na aceitação dos três princípios morais que deveriam prover as bases sobre as quais
formular, criticar e interpretar regras específicas. A razão para a escolha dos três
princípios deve-se ao fato de estarem “profundamente enraizados nas tradições morais
da civilização ocidental, implicados em muitos códigos e normas a respeito de
experimentação humana que tinham sido publicados anteriormente”52.
1.4 – O paradigma principialista na Bioética
Falar sobre princípios na Bioética requer alguns comentários acerca do paradigma
principialista, devido à forte influência do mesmo, sendo que alguns ainda costumam
relacioná-las como análogas. A teoria principialista, termo genérico pelo qual ficou
conhecida, constituiu-se numa teoria dominante para a disciplina que estava apenas
começando, tornando-se por duas décadas quase uma fusão do paradigma com a
disciplina53.
As discussões principialistas da Bioética, com fundamento no Relatório Belmont,
tomou impulso com a publicação da obra de Tom Beauchamp e James Childress,
Principles of Biomedical Ethics, em que sugerem a aplicação do sistema de princípios
na clínica-assistencial, livrando os princípios do velho enfoque próprio dos códigos e
juramentos. Este livro consolida o principialismo porque oferece uma análise
sistemática dos princípios morais que devem ser aplicados aos conflitos biomédicos. Os
dois autores defendiam a idéia de que os conflitos morais poderiam ser mediados pela
referência a algumas ferramentas morais, os chamados princípios éticos. Pessini
considera que “Essa obra transformou-se na principal fundamentação teórica do novo
campo da ética biomédica”54. Foi uma obra publicada em 1979, um ano após a
51
ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos
bioéticos. Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p.
12-23.
52
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo. 2000, p. 45, 5ª ed.
53
HOSSNE, William Saad. Bioética – princípios ou referenciais?. Revista O Mundo da Saúde, out/dez
2006, p. 673-676.
54
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo. 2000, p. 47, 5ª ed.
28
publicação do Relatório Belmont, por Childress e Beauchamp, sendo este último um
dos colaboradores na Comissão e pode se beneficiar das discussões que surgiram nela.
Dos três princípios o “respeito à pessoa”, “beneficência” e “justiça”, pode-se dizer
que “por pessoa autônoma, o Relatório entendia o indivíduo capaz de deliberar sobre
seus objetivos pessoais e agir sob a orientação dessa deliberação”55. Zuben notifica que
o conceito de autonomia usado pela Comissão não é o kantiano, o homem como ser
autolegislador, mas outra muito mais empírica, segundo o qual uma ação se torna
autônoma quando passou pelo trâmite do consentimento informado. Desse princípio
derivam procedimentos práticos que são a exigência do consentimento informado e o
outro é o de como tomar decisões de substituição, quando uma pessoa é incompetente
ou incapacitada56.
O princípio da beneficência usado no Relatório rejeita a idéia clássica de
beneficência como caridade e diz considerá-la de forma mais radical, como uma
obrigação no sentido de não causar dano e maximizar os benefícios minimizando os
riscos.
Surge outra indagação que se lê expressa no Relatório Belmont: “Quem deve
colher as vantagens da pesquisa e quem deve arcar com os riscos?”57. Entra em cena o
princípio da justiça. O conceito de justiça segundo Zuben quer proporcionar uma
reflexão acerca da equidade distributiva. Por justiça entende-se “a imparcialidade na
distribuição dos riscos e benefícios”58. A imparcialidade na distribuição é, para Pessini,
incoerente, uma vez que os indivíduos não são tratados igualmente.
Dos três princípios básicos identificados pelo Relatório Belmont, Beauchamp e
Childress os retrabalharam transformando-os em quatro, propondo que o princípio
beneficência tinha implícito nele um outro princípio, a “não-maleficência”, primum non
nocere, já contemplada no juramento hipocrático quando o médico haveria de jurar
nunca predicar ou fazer
mal a quem quer que seja. Os quatro princípios que
posteriormente passaram a orientar o paradigma principialista consistem em59:
55
Ibidem p. 46.
ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos
bioéticos. Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p.
12-23.
57
Ibidem.
58
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo. 2000, p. 46, 5ª ed.
59
BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de
PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 55.
56
29
1)
O respeito pela autonomia (uma norma sobre o respeito pela capacidade
de tomar decisões de pessoas autônomas);
2)
A não-maleficência (uma norma que previne que se provoquem danos);
3)
A beneficência (um grupo de normas para proporcionar benefícios e para
ponderar benefícios contra riscos e os custos);
4)
A justiça (um grupo de normas para distribuir os benefícios, os riscos e os
custos de forma justa).
Além dos quatro princípios Childress e Beauchamp sugerem também vários tipos
de regras para especificar os princípios e orientar a ação. Assim dizem Childress e
Beauchamp:
A conclusão de que quatro grupos de ‘princípios’ morais (num outro esquema
eles poderiam ser desenvolvidos como ‘direitos’, ‘virtudes’ ou ‘valores’) são
centrais à ética biomédica é uma conclusão à qual chegamos por meio de
nossa busca de juízos ponderados e por coerência, e não uma posição que
possui uma defesa argumentada60.
Desse modo pode-se ver: chamam de regras substantivas – as regras de
veracidade, sigilo, privacidade, fidelidade e várias regras referentes à distribuição e ao
racionamento da assistência à saúde, à omissão de socorro, ao suicídio assistido e ao
consentimento informado. Defendem também regras sobre autoridade, ou seja, regras
sobre quem pode e deve executar ações. Por fim, as regras de procedimentos que
definem os procedimentos a serem seguidos. Para eles “Os direitos, as virtudes e as
respostas emocionais têm, em alguns contextos, uma importância moral maior que os
princípios e as regras”61. Para exemplificar dizem “uma ética da virtude nos ajuda a ver
porque as escolhas nos permite também avaliar o caráter moral de uma pessoa de uma
forma mais rica do que pode nos permitir uma ética de princípios e regras”62.
1.5 – Alguns limites do principialismo
Sem nenhuma pretensão ufanista e com respeito ao esforço pela relevante
contribuição do principialismo, quer-se agora apontar alguns limites deste paradigma
contidos em algumas literaturas da bioética. A “teoria dos princípios” não obstante sua
importância e sua utilidade se tornou insuficiente à medida que a bioética, ao
contemplar e aprofundar mais a realidade, percebeu a necessidade de ampliar a sua
discussão inserindo algumas problemáticas, até então não pensadas no campo
60
Ibidem.
Ibidem p. 57.
62
Ibidem.
61
30
biomédico, como as situações sócio-ambientais. À medida que surgem novas questões e
ou situações, buscam-se novos mecanismos de compreensão63. Verifica-se com isso que
o professor William Saad Hossne sugere até mesmo a substituição do termo princípio
por “referenciais” ao entender que após a evolução ou amadurecimento da Bioética,
novos conflitos e assuntos pertinentes emergiram de diversos contextos. Ele justifica
que não se trata de uma mera substituição de termos, mas da superação do “núcleo
duro” da bioética principialista64.
A insuficiência da teoria dos “quatro princípios” em Bioética fica patente quando
aplicada a outros campos da Bioética como, por exemplo, no campo das ciências da
vida, do meio ambiente e dos fenômenos sociais como vulnerabilidade, dignidade
humana, precaução, responsabilidade, solidariedade e tantos outros em tempos atuais65.
Para William Saad Hossne mesmo sendo relevantes, a teoria dos princípios não é mais
“suficiente para o equacionamento de todas as questões e problemáticas que surgem no
campo da ética biomédica, enquanto componente da Bioética”66.
Também não se pode taxar a teoria principialista de reducionista sem mais. Há de
se verificar sempre o lugar, o contexto e o “para que” ela surgiu. Reducionista pode ser
caracterizada a pretensão daqueles que, hoje, desejam tomar a parte pelo todo, ou seja, o
paradigma como a disciplina67. A incoerência dessa pretensão é a mesma, quando num
mundo pluricultural, sugere universalizar um paradigma que na sua origem cultural
valoriza a ética individual. Sabe-se que a teoria dos quatro princípios acentua o
princípio da autonomia em detrimento dos demais. Esse princípio aponta na verdade
dois valores de cunho fundamental para a cultura liberal anglo-saxã: a liberdade
individual e a competência.
63
FERRER faz um apanhado das tendências presentes na bioética contemporânea propondo uma
avaliação crítica a cada uma delas. Sobre o principialismo Cf. FERRER, Jorge José e ÁLVAREZ, Juan
Carlos. Para fundamentar a bioética. Teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. Tradução
de MOREIRA, Orlando Soares. São Paulo, Loyola, 2005, p. 119-158.
64
HOSSNE, William Saad. Bioética – princípios ou referenciais?. Revista O Mundo da Saúde, out/dez
2006, p. 673-676.
65
Ibidem.
66
Ibidem.
67
HOSSNE, William Saad. Bioética – princípios ou referenciais?. Revista O Mundo da Saúde, out/dez
2006, p. 673-676. Cf. também DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo:
Brasiliense, 2002, p. 34. LEONE, Salvino e PRIVITERA, Salvatore. Bioética. In: LEONE, Salvino et alli
(Orgs.). Dicionário de Bioética. Tradução de ROCHA, A. Maia da. Aparecida-SP: Santuário, 2001, p. 8796. O Dicionário de Bioética aponta que em uma forma de saber essencialmente interdisciplinar e
dialógica, como a Bioética, a atitude integralista – de defesa apologética – nega a possibilidade de
abertura, de comparação e de revisão das suas posições, não necessariamente para ‘as abandonar’ ou para
‘mudar de idéias’, mas, frequentemente, para as encontrar a um nível superior, enriquecidas pelos
contributos de uma sã e serena dialética”.
31
Uma das críticas filosóficas da teoria principialista encontra-se no idealismo, que
propiciou na sua rápida aceitação e difusão entre os pesquisadores da bioética, mas que
determinou também sua fragilidade. O indivíduo idealizado por princípios da ética
biomédica é um ser humano sem contrapartida no mundo real. Em nome da construção
de um modelo teórico passível de universalização, a teoria principialista pressupôs um
indivíduo livre dos constrangimentos sociais, esquecendo que em contexto de
desigualdade social não é possível o exercício pleno da liberdade. O idealismo
universalizante da teoria principialista tornou-se sinônimo de uma técnica ética. A
chamada fórmula mágica “dos quatro princípios éticos” converteu-se numa espécie de
“receita” ou “mantra” capaz de encaixar ou mediar grandes partes dos conflitos morais.
Seu suposto espírito transcultural imperialista fazia seus seguidores defenderem que os
valores éticos serviam para toda humanidade. E foi exatamente essa concepção que
levou o paradigma principialista à falência de modelo único68.
Detalhando, brevemente, o pressuposto básico do princípio da autonomia se funda
numa sociedade democrática e em igualdade de condições entre os indivíduos, para que
assim os diferentes morais possam coexistir. Desse modo, Diniz e Guilhem critica
dizendo que aqui se encontra “o nó da discussão imposto pelas teorias críticas na
bioética como pressuposto de que não é possível falar de autonomia como princípio
mediador para os conflitos morais em contextos de profunda desigualdade social”69.
Essas autoras ressaltam que, antes de apelar para princípios éticos sublimes, “a tarefa da
bioética deveria ser a análise, a discussão e o desenvolvimento de mecanismo éticos de
intervenção perante todos os tipos de desigualdade social”70. Tratando-se de uma
construção ideal de sociedade, vários entraves morais poderiam colocar em cheque o
princípio da autonomia, como por exemplo, o comportamento de se dar conta até que
ponto um indivíduo poderia exercer autonomia plena numa sociedade? Como seria o
68
DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 32-33. O
Congresso de Bioética Estados Unidos-Japão, realizado em 1994, na cidade de Tóquio, foi marcado por
um importante debate, registrado no livro Bioética Japonesa e Ocidental: estudos de diversidade moral,
organizado pelo filósofo japonês Kazumasa Hoshino. Discutiu-se sobre a inadequação do termo
consentimento livre e esclarecido, nos moldes ocidentais à realidade japonesa. No Congresso explorou-se
o tema do conflito entre moralidades que a aplicação acrítica da teoria principialista provocava ao redor
do mundo. “Foi de posse da constatação dessas diferenças morais entre a humanidade que Kazumasa
lançou uma de suas idéias críticas em relação à bioética que, ainda hoje, é a marca de seu pensamento:
‘...há muitas diferenças raciais, nacionais, sociais, culturais e religiosas, sutis ou não, entre o Japão e os
Estados Unidos. Tais diferenças podem explicar as dificuldades que os japoneses e outras culturas têm em
aceitar muitos dos princípios ocidentais da bioética. Na verdade pode-se até mesmo considerar antiética a
imposição da bioética ocidental às mais diferentes sociedades...” Ibidem p. 42-43.
69
Ibidem p. 59.
70
Ibidem p. 59.
32
nível de tolerância de seus convivas? A existência da noção moral de respeito à
autonomia significa que a autodeterminação do agente moral não deve causar danos ou
sofrimentos a outras pessoas: sobretudo àquelas consideradas vulneráveis.
A dificuldade, portanto, se apresenta na fronteira tênue entre a proteção e a
autoridade, pois em nome da proteção dos vulneráveis, poder-se-ia justificar, por
exemplo, o silenciamento de certas opções discordantes. Não é sem razão que o
conceito de paternalismo, sobretudo no campo médico, é fortemente debatido. Entra-se
nesse caso a idéia do consentimento livre esclarecido, que Lepargneur tenta rebatê-lo71.
O próprio Beauchamp e Childress reconheciam que a validez de um consentimento livre
e esclarecido estava condicionada à competência do indivíduo em decidir, o domínio
das informações necessárias, as diferentes possibilidades terapêuticas e assim por
diante. Diante de uma situação de vulnerabilidade os pré-requisitos que atestam a
validez de um consentimento livre e esclarecido não são para todos, apenas contempla
uma minoria de indivíduos privilegiados socialmente72.
Relacionado aos limites mal-definidos dos princípios, a beneficência e a nãomaleficência estão em torno da fronteira entre os próprios deveres de um e outro: como
o caso da suspensão de tratamentos extraordinários para pacientes com morte física
iminente, o tratamento de recém-nascidos com sérias limitações físicas, o aborto de
crianças com anomalias fetais grave, o processo de decisão de pessoas incompetentes,
etc. Pode-se dizer que a fragilidade dos princípios não é derivada da insuficiência de sua
própria teoria, mas decorre da impossibilidade de se encontrar saídas ideais e universais
para situações concretas, situadas.
É bom atentar para a complexidade dos fatos que pode exigir mais do que uma
abordagem para sua melhor compreensão. A Bioética como reflexão ética aplicada deve
se dar conta das diferentes circunstâncias, mesmo com relação aos diversos casos
clínicos para os quais o paradigma principialista pretende ser referência. Ao dialogar
com as diferentes percepções sobre determinado caso ajuda a ampliar os horizontes, o
que pode servir para maior credibilidade da abordagem, tirando assim a reflexão de seu
aspecto simplista e reducionista.
Sendo assim não é de estranhar que os próprios autores de Princípios de ética
biomédica, Beauchamp e Childress, reconhecem os limites que pode haver em suas
71
LEPARGNEUR, Hubert. Força e Fraqueza dos Princípios da Bioética. Revista Bioética (Conselho
Federal de Medicina), vol. 4, nº 2, 1996, p. 131-143.
72
Sua teoria sobre o individualismo liberal. BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios
de ética biomédica. Tradução de PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 88-97.
33
propostas73. Na referida obra cuidaram de, antes mesmo de desenvolver a especificidade
de cada princípio relatar um pouco sobre os diversos tipos de teoria ética, dedicando o
segundo capítulo a essa abordagem. O capítulo oito aponta também uma abertura para
possibilidade de outras contribuições, advindas, sobretudo das vertentes casuísticas e
virtudes. Esses limites são, portanto, notáveis e os próprios autores, como bons
cientistas, fizeram o que muitos críticos posteriormente viriam a fazer. Assim
mencionam na conclusão da obra:
Neste capítulo final fomos além dos princípios, regras, obrigações e direitos.
Virtudes, ideais e aspirações por excelência moral apóiam e enriquecem o
esquema moral desenvolvido nos capítulos anteriores. Os ideais transcendem
as obrigações e os direitos e muitas virtudes levam as pessoas a agir de
acordo com princípios e normas bem como de acordo com seus ideais. (...)
Ao concluir este livro, devemos ressaltar que diversas concepções da ética do
caráter exibem um padrão de convergência similar e que os apelos aos
princípios são muitas vezes intercalados com apelos às virtudes. (...) Quase
todas as grandes teorias éticas convergem para a conclusão de que o mais
importante elemento da vida moral de uma pessoa é um caráter desenvolvido
que proporcione a motivação e a força interiores para fazer o que é certo e
bom74.
Pessini e Barchifontaine afirmam, no entanto, que outros pensadores chegaram a
sugerir o principialismo como norma ética mundial para pesquisa em seres humanos.
Mas esta não reflete hoje uma opinião unânime, apesar de estar presente na cabeça e nos
escritos de pessoas até mesmo que vivem fora dos EUA, considerado o berço deste
paradigma75. Isso se deve à segurança moral e as certezas que os princípios oferecem
num ambiente de incertezas, mediante a necessidade de uma tomada de decisão seja em
caso clínico, em comitês de reflexão ou em outras circunstâncias exigentes. “A fonte de
abusos do principialismo está na necessidade humana de segurança moral e de certezas
num mundo de incertezas”76.
A clareza e definição objetiva dos princípios diante das adversidades deram
aceitabilidade, bem como credibilidade, a este paradigma no campo da investigação
médica, ainda no início da Bioética. Um excesso de confiança no principialismo acabou
73
Esforço de auto-crítica dos autores sobre sua teoria principialista pode ser encontrado no debate com
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioethics in a Liberationist Key. In: E.R.DuBose; R.Hamel; L.J.O’Connell
(Orgs.). A Matter of Principles? Ferment in U.S.Bioethics. Valley Forge-PA: Trinity Press International,
1994, p.130-147
74
BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de
PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 541-542. Cf. também PESSINI, Leo e
BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Ed. São Camilo,
2000, p. 49, 5ª ed.
75
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo. 2000, p. 51, 5ª ed.
76
Ibidem p. 48.
34
dominando por bastante tempo a reflexão à cerca da bioética. Segundo Léo Pessini, o
principialismo chegou a se tornar “abusivo” diante da segurança moral que oferecia77.
Torna-se uma atitude absolutista quando se toma uma alternativa como único caminho.
“Abusos de princípios ocorrem quando se modelam as circunstâncias para aplicar um
princípio preferido e acaba-se caindo no ‘ismo’, e não mais percebendo que existem
limites no procedimento principialista considerado infalível na resolução dos conflitos
éticos”78.
Outra crítica mais detalhada ao principialismo pode-se notar no que diz Hubert
Lepargneur: “Estes princípios não cobrem a solução de toda pendência que se apresenta
no quadro da bioética”79. Assim ele dá um exemplo:
O princípio da autonomia do doente pode tornar-se terrível arma contra seu
próprio bem, porque a decisão, geralmente, vale conforme o grau de
esclarecimento e informação do sujeito que decide. A maioria dos pacientes
comuns não pode nem sequer decidir, se houver qualquer alternativa de peso,
o que seja uma dúvida até mesmo para o médico. Neste caso um princípio
pode ser uma causa suficiente, raramente para viver. Não se trata de endeusar
a autonomia individual nem de desvalorizar sua necessidade. Cabe ao médico
ou à sua equipe avaliar o que convém recolher da manifestação da autonomia
atual do paciente80.
É visando algumas complexidades que Lepargneur recomenda, para além de uma
avaliação restrita, a necessidade de ampliar o diálogo e enxergar a contribuição de
outros paradigmas, que no seu artigo “Força e Fraqueza dos Princípios da Bioética”
sugere a “prudência” como referencial que pertence a outro paradigma, o das virtudes,
proposto por Edmund Pellegrino na Bioética.
Na esteira dessa concepção crítica, que apresenta a necessidade de ampliar a
reflexão, uma determinada cultura tende a abordar seus problemas sempre a partir do
víeis que lhes são próprios. É assim que podemos considerar a crítica feita pelo
bioeticista espanhol, Diego Grácia, apud Pessini & Barchifontaine, ao dizer que “não é
possível resolver os problemas de consentimento sem abordar as questões de
fundamentação”81. Continuando, diz que os “fundamentos e procedimentos são na
verdade duas faces da mesma moeda, inseparáveis. Pobre procedimento que não está
bem fundamentado e pobre fundamento que não tem como resultado um procedimento
77
Ibidem p. 48.
Ibidem p. 50.
79
LEPARGNEUR, Hubert. Força e Fraqueza dos Princípios da Bioética. Revista Bioética (Conselho
Federal de Medicina), vol. 4, nº 2, 1996, p. 131-143.
80
Ibidem.
81
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo. 2000, p. 51, 5ª ed.
78
35
ágil e correto”82. Neste caso, nada é mais útil que uma boa fundamentação dos
princípios e nada mais fundamental do que um bom procedimento. Não sendo assim, os
princípios se tornam meramente instrumentos.
Conforme Pessini e Barchifontaine há também no principialismo uma forte
influência do pragmatismo como corrente predominante no pensamento norte
americano que tende a priorizar os procedimentos em detrimento dos fundamentos. Isso
porque existe nos EUA uma forte influência do pensamento de John Dewey,
considerado o pai do pragmatismo, que viveu da segunda metade do século XIX à
primeira metade do século XX. O pragmatismo se desenvolveu como corolário do
empirismo de Francis Bacon e Hume, do utilitarismo de Jeremy Bentham, Stuart Mill e
Dewey, e que posteriormente avançou para o positivismo lógico. Na concepção de
Dewey a ética e as outras disciplinas humanistas progrediam muito pouco porque
empregavam metodologias ultrapassadas. Assim empreendeu em aplicar os métodos da
ciência na resolução de problemas éticos. Dewey elaborou uma ética objetiva,
utilizando o método científico na filosofia. Dessa visão polarizada Diego Grácia, sem
desmerecer a colaboração e a contribuição do paradigma norte-americano, sobretudo a
sua viabilidade e capacidade em desempenhar normas éticas dentro de uma cultura
pluralista com enfoque individualista, apresenta a percepção da visão européia na forma
de abordar os dilemas éticos83.
Uma crítica apontada ao principialismo a partir do pensamento bioético europeu é
uma percepção também do norte-americano James Drane ao dizer que a ética européia é
mais teórica ao se preocupar com questões voltadas para fundamentação, de
consistência filosófica que privilegia a dimensão social do ser humano, com prioridade
para o sentido de justiça e equidade, ao passo que a perspectiva anglo-saxã é mais
individualista e privilegia os direitos individuais e a autonomia da pessoa. A bioética
européia prioriza o fundamento do agir humano e a norte americana desenvolve normas
de ação, como conjunto de regras, para caracterizar uma moral84.
Uma crítica que despontou a partir dos países periféricos na última década do
século XX está relacionada à insuficiência do modelo norte americano, em analisar
adequadamente e enfrentar os macro-problemas éticos que estes sofrem. Pesquisa
82
Ibidem p. 51
Ibidem p. 52.
84
Ibidem p. 53.
83
36
organizada pelo Instituto LatinPanel85 aponta que o processo de globalização
econômica, longe de reduzir, aprofundou ainda mais as desigualdades verificadas entre
as nações ricas, do norte, e as nações pobres, do sul. Essa percepção crítica social na
Bioética teve colaboração efetiva, sobretudo a partir do Sexto Congresso Mundial de
Bioética, em 2002, quando se procurou mostrar à agenda da bioética internacional os
reais e mais evidentes problemas vividos pelos países pobres.
Com essas críticas, abre-se para a bioética a possibilidade de vozes discordantes
com relação à universalidade dos princípios difundidos desde o Kennedy Institut of
ethics at Georgetown University. Apesar de sua reconhecida praticidade e utilidade para
o estudo de situações clínicas e em investigações, é sabidamente insuficiente para a
análise contextualizada de conflitos advindos de adequações culturais que exigem
também outros critérios de avaliação.
1.6 - A contribuição de outras tendências na Bioética
No decurso de amadurecimento da Bioética algumas outras tendências, para além
da principialista, foram tomando corpo e se tornando claras, até mesmo pela
necessidade de considerar a diversidade como um pilar que caracteriza o estatuto
epistemológico da disciplina. As correntes que expomos a seguir pretendem mostrar o
alargamento que se faz necessário na reflexão bioética, numa tentativa de contemplar
com mais amplitude a complexidade à qual representa a realidade. Uma breve
abordagem de outras tendências ajudará, inclusive, a estar situando, a problemática dos
princípios sem pretensões absolutistas ou fechadas. Cada tendência, mesmo com os
limites e as fragilidades que conferem cada uma, procura acrescentar ou mesmo clarear
um enfoque não trabalhado pelo paradigma dos princípios. Seguem-se algumas
características fundamentais de apenas alguns paradigmas mais conhecidos:
O Paradigma das Virtudes foi inserido na Bioética por Edmund Pellegrino e David
Thomasman na obra For the patient’s good por força do caráter próprio do pensamento
europeu. Como fundamento para esse paradigma seus autores procuram embasar-se na
ética das virtudes aristotélica. Este modelo dá “ênfase às atitudes que presidem
eticamente a ação, e ao mesmo tempo tendo como pano de fundo um ethos social
85
INSTITUTO LATINPANEL. Ricos estão mais ricos. JORNAL O ESTADO DE S. PAULO, 9-112007. É o que aponta também o RELATÓRIO da ONU. Globalização não reduz desigualdade e pobreza
no mundo. http://www1.folha.uol.com.br/ folha/mundo/ult94u104540.shtml; acessado em 10-02-2007. Cf.
também a entrevista com CATTANI, Antônio. Desigualdades e direitos hoje. http://www.unisinos.br;
acessado dia 08-11-07.
37
pragmatista e utilitarista, propõe-se a boa formação do caráter e da personalidade
ética”86, particularmente dos profissionais da saúde, sem, contudo, deixar de integrar o
paciente ao seu processo de decisão.
A Casuística é outro paradigma, com um método muito usado pelos jesuítas, que
“tende a acentuar a importância dos casos e suas particularidades de onde podem ser
tiradas as características paradigmáticas para se fazerem analogias com outros casos”87.
Pessini e Barchifontaine afirmam que este é um modelo apresentado na Bioética por
Albert Jonsen e Stephen Toulmin no livro The abuse of casuistry, no qual preconiza
uma análise de caso a caso, num plano analógico. Este modelo propõe que cada caso
deve ser examinado em suas características paradigmáticas, estabelecendo comparações
e analogias com outros casos. Segundo Toulmin, “a expressão ‘casuística’ refere-se à
análise direta de casos particulares em medicina clínica. A atenção a esses casos
particulares constitui-se no coração da ética clínica”88.
Há o modelo chamado Liberal que enfatiza como valor central a autonomia do
indivíduo. Pessini e Barchifontaine afirmam que esse paradigma encontra sua origem
em Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith; e um forte expoente dessa corrente na
Bioética é Tristam Engelhardt com sua obra Fundamentos da Bioética89. Seu
pensamento é inspirado na tradição político-filosófica do liberalismo anglo-saxão e está
baseado na busca pelos direitos humanos e a afirmação do indivíduo sobre seu próprio
corpo e sobre todas as decisões que envolvam a vida. Valoriza a consciência de si como
forte constitutivo da pessoa e em seu argumento nada impede que o indivíduo possa
eticamente negociar seus próprios órgãos e seu sangue90.
A vertente Contratualista, conforme Pessini e Barchifontaine, apresentada por
Robert Veatch em A theory of medical ethics, considera a complexidade das relações
sociais de hoje e evidencia como ponto de partida as insuficiências de fundo da ética
hipocrática.
“Defende um triplo contato: entre o médico e os pacientes, entre os
médicos e a sociedade, e um contato mais amplo com os princípios orientadores da
86
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: Abrangência e Dinamismo. Revista Espaços, 04 de fevereiro de
1996, p. 131-143.
87
Ibidem.
88
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo. 2000, p. 36, 5ª ed.
89
Ibidem p. 35.
90
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: Abrangência e Dinamismo. Revista Espaços, 04 de fevereiro de
1996, p. 131-143.
38
relação médico-paciente”91. E para regular essas relações propõem obedecer a
princípios fundamentais como o da beneficência, a proibição de matar, o de dizer a
verdade e outros.
O Paradigma do Direito Natural, ou naturalista, descrito por John Finnis em
Natural law and natural rights, com recurso à lei natural, procura estabelecer bens
fundamentais em si mesmos: o conhecimento, a vida, a vida estética, a racionalidade
prática, e outros bens que constituam a dignidade do ser pessoa. Este modelo de análise
leva em conta o ser humano em sua integralidade bem como o integra na sociedade92.
O Paradigma Hermenêutico ou Fenomenológico dá ênfase à condição
interpretativa do ser humano, ou seja, enfatiza a necessidade de reconhecer que toda
experiência está sujeita à interpretação. Acentua a necessidade de se perguntar e
responder sobre o sentido das realidades implicadas na vida, na saúde, na relação
médico-paciente como diferentes sujeitos de interpretação, o papel que têm as religiões
na hermenêutica e outros93. Para Pessini o modelo hermenêutico não valoriza muito o
caráter bipolar da experiência humana ao sublinhar a necessidade de aceitação da
alteridade que deve ser assimilada num diálogo respeitoso. Já a fenomenologia coloca a
subjetividade entre parênteses numa tentativa de penetrar na situação em si mesma.
Ambas apontam para a superficialidade do modelo principialista, pois a experiência
humana não pode ser facilmente capturada e dirigida por uma moral baseada na simples
imposição de regras e princípios abstratos94.
O Paradigma Narrativo “lembra que as pessoas adquirem identidade e intimidade
ao contar e seguir histórias, assim como culturas inteiras define seus valores e seu
sentido de pertença por meio do mito e do épico”. O eticista encontra uma dimensão
narrativa em cada situação que depara. A narrativa torna-se uma parte inseparável da
vida. A capacidade de fazer história e elaborar sentidos que vão para além dos meros
fatos, tornam o modelo narrativo um antídoto ao abstracionismo principialista95.
O Paradigma Feminista ou de gênero é decorrente da crescente tomada de
consciência de toda a sociedade com relação à necessidade de mudança de um
posicionamento de ações concretas visando acabar com a perniciosa discriminação de
gênero. As análises partem de polêmicas em que mulheres são representantes de grupos
91
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo. 2000, p. 37, 5ª ed.
92
Ibidem p. 37.
93
Ibidem p. 36.
94
Ibidem p. 36.
95
Ibidem p. 36.
39
em visível desvantagem no acesso aos bens da vida; portanto, muitas vezes, se
encontram em condições de vulnerabilidade. Como a bioética é um novo saber,
permeado de muitas discussões de vanguarda, não poderia se furtar a refletir questões
raciais e de gênero, tão importantes à contemporaneidade96.
O Paradigma do Cuidado. Beauchamp e Childress destacam duas pioneiras nessa
reflexão: a psicóloga Carol Gilligan e a filósofa Annette Baier. Gilligan, “identificou
dois tipos de relacionamentos e dois tipos de pensamento moral: uma ética do cuidar em
contraste com uma ética dos direitos e da justiça”97. A partir do século XVIII, a teoria
ética pendeu para uma tendência cognitivista. A ética do cuidar tenta corrigir essa
propensão cognitivista em demasia dando às emoções um papel a desempenhar. “A
ênfase na dimensão emocional da vida moral não reduz a reação moral a uma reação
emocional. O cuidar possui, claramente, uma dimensão cognitiva, pois envolve um
discernimento e uma compreensão da situação, das necessidades e dos sentimentos do
outro”98.
Sobre o paradigma Personalista, pode-se dizer com Maria do Céu Patrão Neves
que é um paradigma “profundamente enraizado na filosofia européia contemporânea,
em particular na sua tradição fenomenológica e no desenvolvimento que esta conhece
no existencialismo e, sobretudo na hermenêutica”99. Entre os vários autores convictos
da inserção dessa discussão na Bioética pode-se mencionar S. Leone, J. F. Malherbe, C.
Viafora. E. Sgreccia, D. Tettamanzi, S. Spinsanti100.
Segundo Márcio Fabri dos Anjos, esta corrente implica em uma “ampla visão
antropológica que incide na ética valorizando, entre outras, a dignidade humana como
centro da elaboração ética, por sua capacidade e vocação a dar sentido às coisas e ao
próprio rumo de sua vida”101. Não assume uma natureza descritiva, nem procura
estabelecer normas de ação. Antes desenvolve uma racionalidade teleológica dos juízos
e de normas éticas. Toma o homem na sua dignidade universal, como valor supremo do
96
DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 56-65. Cf.
também PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São
Paulo: Ed. São Camilo. 2000, p. 37, 5ª ed.
97
BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de
PUDENZI, Luciana. São Paulo: Loyola, 2002, p. 107.
98
Ibidem p. 111.
99
NEVES, Maria do Céu Patrão. A Fundamentação Antropológica da Bioética.
http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v4/fundament.html; acessado em 06-08-2006.
100
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo. 2000, p. 37, 5ª ed.
101
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: Abrangência e Dinamismo. Revista Espaços, 04 de fevereiro de
1996, p. 131-143.
40
agir. Segundo o mesmo autor, este modelo assume os processos biológicos espontâneos,
encontrados na natureza, como um valor, mas não necessariamente impositivos à razão
humana dentro da atividade bioética.
O modelo personalista tem como ponto de partida o reconhecimento da pessoa,
sua identidade e sua essência, pois só reconhecendo-a podemos então saber como
respeitá-la. O reconhecimento tem como desdobramento o respeito à dignidade humana.
A pessoa colocada como centro é vista na singularidade da sua realidade concreta e na
universalidade da sua humanidade, como: a unicidade da subjetividade, o caráter
relacional na intersubjetividade e a solidariedade em sociedade.
A unicidade da subjetividade refere-se ao caráter singular e irrepetível do
indivíduo, ao ser único e original em que a pessoa se constitui. O caráter relacional e
intersubjetivo do humano refere-se à inviabilidade de um processo individual de
personalização, já que a pessoa é, por natureza e condição, um ser aberto aos outros e ao
mundo. O ser humano toma consciência de si no seu relacionamento com os outros, de
modo que a intersubjetividade constitui uma dimensão relacional. Neste sentido se pode
lembrar Hans Jonas e mesmo K. O. Apel ao procurar relacionar a consciência, na sua
formação ética, com uma responsabilidade solidária pela sociedade102.
A conexão e a solidariedade entre pares referem-se à integração efetiva do homem
numa sociedade concreta, na qual é chamado a intervir pela dimensão social do seu ser e
do seu existir. Há um apelo à responsabilidade social de cada pessoa na construção do
verdadeiro humanismo que toma todos os homens como homens numa perspectiva de
justiça eqüitativa.
1.7 - O paradigma latino americano na Bioética
Na América Latina, a bioética passou a ser interpelada por outras realidades que
propõem dilemas para além daqueles criados pelo desenvolvimento biomédico e que
fizeram suscitar, no início, tais reflexões. A última década do século XX se caracterizou
como um período de definição para o rosto que deveria assumir a bioética no continente
latino americano. Em meio às discussões em torno da relação médico-paciente, dos
princípios normativos, da pesquisa com seres humanos, o uso humano pela tecnologia, o
uso de tecnologia no processo do morrer, estudos ligados à tecnologia de reprodução e
outros, passam a fazer parte da discussão temas voltados à exclusão, discriminação,
102
MANCINI, Roberto. Karl-Otto Apel: o desafio neo-iluminista à teologia. In: GIBELLINI, Rosino e
PENZO, Giorgio (Orgs.). Deus na Filosofia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998, p. 495-505.
41
alocação de recursos, saúde pública, tráfico de drogas e de pessoas humanas, situações
ligadas ao meio ambiente e tantas outras.
A bioética tem como característica o inacabamento de suas reflexões. O seu
amadurecimento, em curto espaço de tempo, lhe permite avaliar que houve e, ainda há
muitas contestações exigindo uma ampliação de temas a serem abordados, como
próprios de um espaço plural de debates e de culturas diversificadas. Há na América
Latina unanimidade em concordar que a bioética em sua reflexão deva levar em
consideração os reais problemas vividos pela população em contexto. Léo Pessini
afirma que, “em alguns países da América Latina, a simples existência de alta
tecnologia e centros de cuidado médico avançados levanta questões sobre a
discriminação e a injustiça na assistência médica. As interrogações mais difíceis nesse
campo giram em torno não de como se usa a tecnologia médica, mas de quem tem
acesso a ela”103.
Numa comparação com o principialismo, a bioética latino-americana exige para
sua reflexão conceitos culturalmente fortes como justiça, equidade e solidariedade como
o de autonomia assume na América do Norte, mas evitando, porém, os exageros de
privilegiá-los em extremo em detrimento de tantas outras necessidades, até mesmo
aquelas não contempladas pelo principialismo. Pessini e Barchifontaine afirmam que
essa é a contribuição que a América Latina pode oferecer, ou seja, “uma perspectiva
bioética distinta da norte-americana por causa de sua tradição médica humanista e pelas
condições sociais de seus países periféricos”104.
Na América Latina elaborar uma bioética somente em nível micro de estudos de
casos de caráter deontológico, sem levar em conta a realidade, não responderia aos
anseios mais evidentes e clamorosos por vida digna. Como resposta à indústria do
desenvolvimento da medicina numa era tecnológica, a bioética, sobretudo latino
americana, deve exercer sua criticidade em relação a tal progresso, sendo capaz de
colocar os verdadeiros problemas. “Não podemos esquecer que na América Latina a
bioética tem o encontro obrigatório com a pobreza e a exclusão social”105. A
preocupação da bioética latino americana não está primeiramente no nível
“microssocial”, ou seja, da ética clínica, individualizada, comum da realidade do Norte.
A realidade latino americana com seus problemas estruturais de precarização da saúde,
103
PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Ed. São Camilo. 2000, p. 54, 5ª ed.
104
Ibidem p. 55.
105
Ibidem.
42
educação, segurança, crimes, corrupção, a escandalosa desigualdade social e outros
exigem um programa alternativo “macrossocial” que seja capaz de efetivar suas
próprias demandas. Não há dúvida que a maior necessidade dos países que compõe o
Continente está voltada para a questão da equidade e distribuição de recursos.
Os dilemas do paradigma latino americano diferem em muitos pontos de
paradigmas europeus e Anglo-Saxões. Pessini e Barchifontaine ressaltam que “Os
latinos sentem-se profundamente desconfortáveis com direitos e princípios. Eles
acostumaram-se a julgar as coisas e os atos como bons ou ruins em vez de como certos
ou errados. Eles preferem a benevolência à justiça, a amizade ao respeito, a excelência
ao direito”106. Segundo eles o que os latinos buscam é a virtude e a excelência, mesmo
sem rejeitar ou desprezar os princípios, pois a abordagem principialista pode ajudar na
superação de alguns defeitos que se arrastam na vida moral tradicional como o
paternalismo, a tolerância e outros.
Entre os muitos temas morais a serem debatidos na América Latina não há dúvida
que dos mais é o restabelecimento da dignidade da pessoa humana infringida pela
criminosa desigualdade social e perpetuação da exploração dos pobres para manutenção
do status quo de poucos. Não são poucas as ideologias que tentam discursivamente
ofuscar esse fato contundente e escandaloso no Continente.
Sensível às reais condições de vida das pessoas que vivem no hemisfério Sul do
mundo, a Teologia da Libertação, através do princípio misericórdia, quer estabelecer
com a bioética latino americana um diálogo que pretende uma contribuição a partir de
uma reflexão de conceitos como justiça, equidade, solidariedade e humanismo.
Neste diálogo o contributo acontece numa perspectiva inter-multi-pluridisciplinar,
respeitando a laicidade da epistemologia científica e refletindo uma preocupação
comum, acerca da pessoa e sua circunstância. Trata-se de uma transcendência
horizontal, ou seja, uma abordagem transcendente a partir do imanente, do homem, que
Fermin Schramm, agnóstico, ao abordar o tema da espiritualidade e bioética, afirma ser
passível de discussão e consenso mesmo no âmbito científico com as diversas
intersubjeitvidades crentes, agnósticos, humanistas e ateus. Na verdade o falar de Deus
a partir das reais necessidades humanas é fazer teologia e é o que propõe a Teologia da
Libertação na América Latina.
De fato, é perfeitamente legítimo defender ‘uma ética sem Deus’ e, ao mesmo
tempo, aceitar uma forma de espiritualidade entendida como a dimensão que
106
Ibidem p. 56.
43
abre a existência ao infinito da transcendência ou, se quisermos, ao Infinito
que transcende a Totalidade e que é introduzido pela alteridade representada
pelo outro107.
É da preocupação com o humano e suas reais circunstâncias sociais, econômicas
histórico-culturais e religiosas que a Teologia da Libertação nasceu e se desenvolveu na
América Latina, sob a inspiração da experiência de libertação dos israelitas contida no
relato bíblico. A Escola da Teologia da Libertação, como é chamada por Wilton
Barroso108, percebe a América Latina como um desafio para sua atuação e colaboração,
devido às inegáveis desigualdades sociais nesses países que vulnerabiliza uma enorme
parcela da sociedade mantendo-a na pobreza. Com isso se justifica ainda hoje a sua
capacidade de elaborar ou sistematizar uma linguagem sobre Deus num momento em
que a pobreza atinge mais de um terço da humanidade.
Essa Teologia comunga fortemente com a bioética latino americana em quesitos
que dizem respeito à inclusão social e a oposição à exclusão, à emancipação do sujeito e
contra sua exploração, à denúncia das escandalosas desigualdades econômicas, sociais,
culturais e propondo a justiça ou a equidade como critérios de avaliação, libertação,
solidariedade e esperança criativas.
A reflexão de caráter libertador tem estreita relação com a vertente personalista ao
defender a integridade e a vida da pessoa. Ambas propõem a “dignidade humana” como
fundamento para orientar a natureza, a identidade e a relação na busca de humanidade, o
enveredar pelo sentido que conduz às pessoas à categoria ética na mais plena realização
de si. Para Dietmar Mieth “Falar da identidade do homem significa perguntar-se: o que
torna o homem tão inconfundível e tão pessoal?”109. Ele mesmo responde dizendo que
“Existem correntes a respeito, nas quais essa identidade individual do homem é, no
fundo, relativizada ou sacrificada em favor de um sistema complexivo do gênero
humano”110. Tais correntes contrastam nitidamente com o que propõe a ética cristã.
O princípio sobriniano da misericórdia procura responder essa desvalorização da
pessoa deixando se orientar pela percepção do respeito incondicional ao ser humano.
Essa crise da noção de pessoa é abordada por Lepargneur ao relatar que a dignidade no
107
SCHRAMM, Firmin Roland. Espiritualidade e bioética: o lugar da transcendência horizontal do ponto
de vista de um bioeticista laico e agnóstico. Revista O Mundo da Saúde. São Paulo: São Camilo, ano 31,
vol. 31, nº 2, abril/junho de 2007, p 161-166.
108
BARROSO, Wilton et alli. Perspectivas Epistemológicas da Bioética Brasileira a partir da teoria de
Thomas Kuhn. Revista Brasileira de Bioética, Vol. 1, nº 4, 2005, p. 374.
109
MIETH, Dietmar. Imagem do homem e dignidade humana, a perspectiva cristã da bioética. In:
GIBELLINI, Rosino (Org). Perspectivas teológicas para o século XXI. Aparecida-SP: Santuário, 2005, p.
200.
110
Ibidem p. 200.
44
decorrer da evolução cultural passou da eminência da reflexão ontológica para um
crescente enfoque sociológico da realidade humana. Tal autor diz que “O bastião
humanista do conceito da dignidade está sacudido pelas incertezas a respeito do início e
do fim da pessoa, intocável porque digna”111. O que se nota é que a dignidade passou da
esfera metafísica-religiosa para a esfera comportamental das trocas sociais e dos
reconhecimentos culturais.
Discutir as condições de vida submersa às situações inumanas, como se vê na
América Latina, traz a dificuldade de entendimento em torno do termo “vida” usado
sem mais. Basta lembrar os argumentos oportunos propostos em, A questão ética e a
saúde humana, do professor Marco Segre, bem como, O que é vida?,
de Lyann
Margulis e Dorion Sagan, e toda a ciência em torno da genética e da física quântica112.
Em torno da expressão “dignidade humana” as opiniões também divergem, como se
pode notar em artigo escrito pela professora de ética médica e bioeticista, Ruth Macklin,
com título: “Dignity is a useless concept”113. Diante de tantas críticas, dada à
diversidade de opiniões sobre o assunto, o referido artigo obteve uma avalanche de
reações relativamente fundamentadas.
Há de se considerar que além de levar em consideração os limites intersubjetivos
de compreensão do termo deve-se estar atento para sua ocidentalidade, bem como a
crítica que se faz por considerá-lo amplo em demasia e, portanto, inútil. Em
conformidade com Márcio Fabri dos Anjos114, ao pensar na utilidade de um termo é
preciso notar, de início, que nem tudo é útil para tudo. Assim, não é de se estranhar que
haja limitações no uso do conceito de dignidade humana. O fato de um conceito ser
amplo não o torna simplesmente inútil. Conceitos amplos, embora vagos, são, portanto,
úteis e necessários para a linguagem. Mas o que nos interessa ressaltar aqui é que o
discurso racional e argumentativo próprio da expressão propicia, antes de tudo, uma
atitude fundamental e uma convocação para uma entrada qualitativa nas relações
humanas concretas.
Essa exigência traz consigo o senso do dever de optar ou de dar prioridade às
pessoas vulneráveis e limitadas física e psiquicamente. Chama a atenção para uma
111
LEPARGNEUR, Hubert. Dignidade... Alma Secreta da Bioética?. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI,
Léo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 482.
112
SEGRE, Marco. A questão ética e a saúde humana. Rio de Jeneiro; Ateneu, 2006. MARGULIS,
Lyann e SAGAN, Dorion. O que é vida?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
113
MACKLIN, Ruth. Dignity is a useless concept. http://www.bmj.com/cgi/content/full/327/7429/1419;
acessado em 19 – 10 – 2007.
114
ANJOS, Márcio Fabri dos. Dignidade Humana em debate. BIOÉTICA (Conselho Federal de Medicina,
Brasília-DF). Vol. 12, n.1, Ano 2004, p. 109-114.
45
preocupação preferencial pelos pobres seja pela moralidade secular, cristã e outras. Diznos Dietmar que “Em torno daqueles que não estão em condição de representar a si
mesmos paira sempre também uma aura de vulnerabilidade”115. Desse modo, há a
necessidade de um vetor para assegurar ao homem a vida como último status que
antecede sua finitude. Por isso a idéia de dignidade humana se coloca mais na percepção
de um “princípio fundante”.
A sublime avaliação da pessoa humana a partir da razão, da vontade livre e da
linguagem comunicacional vira-se em seu contrário a partir do momento em que se
constata que algumas pessoas são desprovidas ou perderam essas eminentes qualidades,
como é o caso de idosos, doentes graves, miseráveis e tantos que têm sua autonomia
comprometida. Valadier referindo-se ao pensamento kantiano diz que esses impasses,
no entanto, “não obrigam a liquidar pura e simplesmente uma tradição filosófica à qual
tanto devemos” 116. Desse modo interroga:
Afinal, o que respeitamos no ser humano, o que devemos respeitar nele?
Seriam essencialmente aqueles atributos que são razão, vontade livre e
comunicação, a tal ponto que, se estes desaparecessem ou fossem extintos, o
nosso comportamento deveria mudar? Ou seria outra coisa, por exemplo,
tratar-se-ia de respeitar em cada um nossa comum humanidade, mesmo
quando esta não tivesse mais os traços honráveis que o racionalismo moral
lhe atribui? [E continua dizer que] tanto as grandes tradições morais quanto a
tradição evangélica convergem num ponto central sobre o respeito da
dignidade humana. O ser humano não é respeitável, antes de tudo, por suas
qualidades eminentes, por seus traços nobres e elevados, mas justamente
naquele estado em que ele perdeu os traços da sublimidade. Quando ele,
tendo perdido a forma humana, está inteiramente entregue à solicitude de seus
irmãos/irmãs em humanidade117.
Percebe-se, portanto, que o princípio misericórdia ao realçar o horizonte de
significado da vida humana direciona-se para a compreensão mais elevada do que
significa ser humano, trazendo à reflexão a preocupação com a vida que se encontra
ameaçada. Ao falar do homem sob o critério ético abordado não se pode exprimir de
outro modo a não ser através do conceito de não instrumentalidade. A instrumentalidade
humana não é, portanto, “um atributo próprio à pessoa em sua singularidade; ela é uma
relação, ou melhor, ela se manifesta no gesto pelo qual nós nos referimos ao outro por
considerá-lo ser humano, igualmente ser humano, mesmo se sua aparência denuncia
uma não-humanidade ou mesmo uma desumanidade”118.
115
Ibidem; p. 193.
VALADIER, Paul. A pessoa em sua dignidade. Revista Concilium, Nº 39, 2003/02, p. 45-53.
117
Ibidem.
118
Ibidem.
116
46
Concluindo o primeiro passo do presente estudo, pode-se ver que o princípio
misericórdia encontra na bioética um amplo espaço, em que a questão dos princípios,
embora matizada por diferentes conceituações e empregos, se reveste de grande
importância. O surgimento da própria bioética se dá com a busca de fundamentos
humanitários que possam sustentar posicionamentos éticos, bem como é devedora ao
principialismo que lança as bases para a ética em pesquisas e procedimentos clínicos.
Uma vez estudado o alcance de suas variantes conceituais, pode-se situar melhor
também os diferentes paradigmas de bioética dentro dos quais o termo se insere. A
reflexão latino-americana especificamente se vê necessitada de princípios, referenciais e
fundamentos que subsidiem um enfrentamento aos graves desafios éticos de sua
realidade.
Preparou-se, desta forma, uma exposição do contexto em que, a seguir, se busca
analisar a possível contribuição da reflexão teológica de Jon Sobrino em torno do
princípio misericórdia. Em vista disso o próximo passo é sistematizar alguns dados
essenciais da biografia e do pensamento do autor, o que permitirá analisar sua
contribuição para a bioética.
II – O princípio misericórdia
O princípio misericórdia, enunciado por Jon Sobrino, tem raízes profundas em sua
experiência de vida e na construção do seu pensamento teológico de cunho libertador.
Para se compreender o alcance da contribuição deste princípio à bioética, torna-se
necessário fazer uma aproximação de alguns pontos básicos de sua experiência de vida
e de sua metodologia teológica.
Desta forma, a construção desse capítulo está metodologicamente dividida em três
sub-capítulos apresentando primeiro alguns traços básicos da vida e do pensamento do
autor. Num segundo momento propõe-se expor as estruturas que, na percepção de
Sobrino, causam ou provocam as feridas e indignidades denunciadas pelo princípio
47
misericórdia. Um terceiro sub-item procura mostrar a atitude de quem age movido pelo
princípio misericórdia. São passos interdependentes que constroem a compreensão
única do Princípio proposto por Sobrino.
2.1 - Biografia e Pensamento de Jon Sobrino
Jon Sobrino é de família basca, nasceu em Barcelona, Espanha, no dia 27 de
dezembro de 1938; entrou na Companhia de Jesus no ano de 1956. Um ano após,
outubro de 1957, foi enviado para El Salvador, tendo, posteriormente, recebido a
cidadania salvadorenha. Interrompeu por duas vezes sua estada em El Salvador para dar
continuidade a seus estudos de filosofia e engenharia na St. Louis University, nos
Estados Unidos, concluídos em 1965. Seus estudos teológicos foram realizados na
Hochschule Sankt Georgen de Frankfurt, Alemanha, onde, em 1975, doutourou-se, com
um inédito estudo acerca do “Significado de la cruz y resurrección de Jesús em las
cristologías sistemáticas de W. Pannenberg y J. Moltmann”. Os temas da cruz e
ressurreição do Senhor são transparentes no seu fazer teológico.
Sobrino, tendo nascido na Europa e realizado seus estudos na Alemanha e Estados
Unidos, estando em contato com o mundo dos pobres de El Salvador, conheceu o
mundo desenvolvido e da abundância e, também, o mundo da pobreza e da morte.
Segundo seu testemunho pessoal119 considera vital em sua vida de teólogo o pensar e
fazer teologia a partir da realidade concreta em que vive. Jon Sobrino dedica-se à
formação teológica na Universidade Centroamericana; é responsável pelo Centro de
Pastoral Oscar Romero; é diretor da Revista Latinoamericana de Teologia, é membro do
comitê da prestigiosa revista internacional de teologia Concilium e dirige o Informativo
Cartas a las Iglesias. Vale destacar que, além de seus ofícios de docente na Universidade
já referida, dedica-se a tarefas pastorais, atende a inúmeras solicitações para palestras e
encontros em muitos países, dentro e fora da América Latina. Para maior detalhe sobre
sua biografia consultar a obra de Vera Ivanise Bombonatto, Seguimento de Jesus: uma
abordagem segundo a cristologia de Jon Sobrino120.
119
SOBRINO, J. O Princípio Misericórdia: descer da cruz os povos crucificados. Tradução de CLASEN,
Jaime A. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 12.
120
BOMBONATTO, Vera Ivanise. Seguimento de Jesus: Uma abordagem segundo a cristologia de Jon
Sobrino. São Paulo: Paulinas, 2002.
48
Suas obras e artigos são publicados e traduzidos em vários idiomas. Destaca-se
como um dos mais importantes expoentes da Teologia da Libertação121, da qual é
membro co-fundador, com significativas publicações nas áreas de cristologia,
eclesiologia e espiritualidade. De todas as suas produções teológicas, a que interessa
conhecer nesta pesquisa é a obra: El Principio Misericordia. Bajar de la cruz a los
pueblos crucificados, Maliaño-España: Editorial Sal Terrae; 1992. Além dessa obra,
recorre-se a outras, de sua autoria e a seus artigos publicados em vários periódicos.
A teologia da qual Sobrino comunga nasceu no bojo da realidade pobre e oprimida
da América Latina, a qual enfrenta oposição sistemática do poder político-econômico
neoliberal, de membros cúria romana, bem como de líderes da Igreja vinculados à
ortodoxia da fé e críticos intelectuais como o professor da PUC-SP, Luiz Felipe Pondé,
ao dizer “Em poucas palavras: aqueles que vêem a face de Cristo nos pobres se sentem
como que liberados do fato de serem maus porque o mal está na exploração pela
elite”122.
Por sua maneira de compreender a realidade e sistematizá-la a partir da fé cristã,
Jon Sobrino foi notificado, e não condenado, pelo Vaticano, em 14 de março de 2007,
data de publicação do documento. A Nota Explicativa encontrou nas obras Jesus, o
libertador – a história de Jesus de Nazaré e A fé em Jesus Cristo – ensaio a partir das
vítimas “diversas proposições errôneas ou perigosas que podem causar dano aos
fiéis”123. Segundo a notificação essas obras de Sobrino evidenciam a dimensão humana
de Jesus em detrimento de sua dimensão divina e exigiu que adaptasse os seus escritos
aos dogmas da Igreja Católica.
O P. Sobrino tende a diminuir o valor normativo das afirmações do Novo
Testamento e dos grandes Concílios da Igreja antiga. Tais erros de índole
metodológica levam a conclusões não conformes com a fé da Igreja em
pontos centrais da mesma: a divindade de Jesus Cristo, a encarnação do Filho
121
A cerca da Teologia da Libertação ver: SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p.49.
FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 18.
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI,
Léo. Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 460.
122
PONDÉ, Luiz Felipe. A Teologia da Libertação não é uma caduca inútil.
http://www.unisinos.br/ihu_online/index.php?option=com_destaques_semana&Itemid=24&task=detalhes
&idnot=309&idedit=11; acessado dia 31/03/2007.
123
CONGREGAÇÃO para DOUTRINA da FÉ. Nota explicativa notificação sobre as obras do P. Jon
Sobrino.
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20061126_notasobrino_po.html; acessado em 15-04-2007.
49
de Deus, a relação de Jesus com o Reino de Deus, a sua auto-consciência, o
valor salvífico da sua morte124.
Com a notificação, muitas foram as manifestações de solidariedade. Além das
manifestações isoladas publicadas em artigos de jornais escritos ou eletrônicos, a
Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo publicou o livro Descer da
Cruz os Pobres: cristologia da libertação125, com 357 páginas, contendo artigos de 40
teólogos em desagravo ao teólogo Jon Sobrino. Levou também um grupo de 135
teólogos alemães e austríacos, liderados por Huenermann, professor emérito da cátedra
de teologia dogmática na Universidade de Tübingen, na Alemanha, a lançar nota de
repúdio e propor a reforma da Congregação para a Doutrina da Fé, responsável pela
censura126.
O teólogo Andrés Torres Queiruga afirma que “Resulta incompreensível que se
julgue e interprete mal um homem que dedica sua inteligência ao esclarecimento
teológico e sua vida ao serviço da proclamação mais nuclear do Evangelho: ‘bemaventurados os pobres”127. Com isso, deve-se então perguntar, como falar de Jesus de
Nazaré a partir do sofrimento dos pobres da Palestina ou da América Latina ou da
África? Como Jon Sobrino poderá fazer memória a Inácio Ellacuría e seus co-irmãos
como faz todos os anos na data em que foram chacinados? Em 2007 ele escreveu sua
carta mais recente endereçada ao seu amigo mártir intitulada: “El padre Arrupe. un
empujón de humanización’”128.
Essas manifestações de solidariedade ao teólogo salvadorenho foram amplamente
divulgadas na imprensa, vindos de todas as partes do mundo, tanto de teólogos
intelectuais, povo simples, organizações, grupos de outras igrejas, de confrades jesuítas
e, sobretudo, do povo salvadorenho onde vive e é conhecido, lugar em que Sobrino
124
Ibidem. A repercussão da notificação feita a Jon Sobrino pode ser encontrada nos comentários de
renomados teólogos latino-americanos e europeus em REVISTA DE TEOLOGIA & CULTURA
(Ciberteologia). Dossiê Jon Sobrino. Edição Nº 10 - Ano II - Março/Abril 2007 - ISSN: 1809-2888,
http://ciberteologia.paulinas.org.br/10200703/DossiêJonSobrino/tabid/852/Default.aspx; acessado em 2701-2008.
125
VIGIL, José Maria (Org.). Descer da cruz os pobres: cristologia da libertação. São Paulo: Paulinas,
2007.
126
CHADE, Jamil. Manifesto reivindica ‘reforma’ da Congregação para a Doutrina da Fé. JORNAL O
ESTADO DE SÃO PAULO, 26-05-2007.
127
QUEIRUGA, Andrés-Torres. El caso Jon sobrino como sintoma. http://ciberteologia.paulinas.org.br/
Portals/13/ElcasoJonSobrinocomosintoma.pdf; acessado em 02-05-07.
128
SOBRINO, Jon. El Padre Arrupe. Un empujón de humanización. Carta a Ignacio Ellacuría.
http://www.redescristianas.net/2007/10/26/el-padre-arrupe-un-empujon-de humanizacion-carta-a-ignacioellacuriajon-sobrino/; acessado em 25-10-07.
50
pôde presenciar e ainda presencia o descalabro e as dores de povos inteiros sendo
dizimados.
O pensamento sobriniano tem estreita relação com a trajetória de vida dele em El
Salvador. Por isto torna-se necessário conhecer o lugar do qual ele fala. Na década de
70, El Salvador estava sob os escombros da miséria, sob insatisfação de movimentos
populares, que se intensificaram a partir de 1979. Medidas repressivas foram tomadas
pelo exército, com o regime militar, patrocinadas pela ultra-direita do País e pelos EUA,
em que se violava todo tipo de direitos humanos. Em 24 de março de 1980 assassinaram
o arcebispo Dom Romero, do qual Sobrino era assessor, um legítimo defensor dos
direitos humanos, enquanto celebrava missa. É oportuno colocar aqui um trecho de sua
última homilia, ao celebrar missa de corpo presente de uma das vítimas da repressão
Doña Sarita de Pinto, o qual dizia:
ignoramos el tiempo en que hará la consumación de la tierra de la humanidad.
Tampoco conocemos de qué manera se transformará el universo. La figura de
este mundo, afeada por el pecado, pasa, pero Dios nos enseña que nos prepara
una nueva morada y una nueva tierra donde habita la justicia, y cuya
bienaventuranza es capaz de saciar y rebasar todos los anhelos de paz que
surgen en el corazón humano... Que este Cuerpo inmolado y esta Sangre
Sacrificada por los hombres nos alimente también para dar nuestro cuerpo y
nuestra sangre al sufrimiento y al dolor, como Cristo, no para si, sino para dar
conceptos de justicia y paz a nuestro pueblo. Unámonos pues, intimamente en
fe y esperanza a este momento de oración por Doña Sarita y por nosotros.
(neste momento houve o disparo)129.
Depois de Romero, em 1990 foram assassinados também os seis jesuitas, mais a
cozinheira Júlia Elba e Celina sua filha de 15 anos, depois de várias ameaças e bombas
explodidas em diversos lugares de suas propriedades: na casa, na UCA, etc. Foram,
durante este tempo, num pequeno país, de 70 a 75 mil mortes de pessoas anônimas: pais
de famílias, camponeses, operários, universitários, professores, religiosos, catequistas,
mulheres, crianças e etc. Aconteceu durante este tempo uma verdadeira guerra civil
patrocinada pelo governo militar, até que em 1992 costurou-se, friamente, numa mesa
de escritório um acordo com a ONU no intuito de restabelecer ao que se chama de paz,
sem resolver verdadeiramente os problemas de miséria e opressão. Durante este tempo
muitos foram refugiados130.
129
ROMERO, Oscar A. Homilia del primer aniversario de la Sra. Sara de Pinto. San Salvador, 24 de
marzo de 1980. Cf. também SERVIÇOS KOINONIA. A lãs 17 horas, em la Capilla del Hospital de la
Divina Providencia. www.servocioskoinonia.org/romero/homilias; acessado em 18 -08-07.
130
SOBRINO, Jon. Os seis Jesuítas Mártires de El Salvador. São Paulo: Loyola, 1990, p. 12. Cf. também
FIORI, José Luís. A virada à esquerda na América do Sul, Ano VI, Nº 01, 26-01-06,
http://www.cnmcut.org.br/sgc_data/publicacao/pdf/pub52.pdf; acessado em 28-06-07.
51
Ao relatar um pouco deste fato nos faz situar, mesmo parcialmente, o local a partir
de onde Sobrino falou e continua a falar. E este fato vivido em El Salvador é o mesmo
vivido por quase todas as nações da América Latina, ou seja, de tortura e repressão e
que hoje vive sob o peso da miséria, de pessoas desaparecidas, que se ontem morreram
matados por revólver, hoje morrem pela fome, pelo tráfico, assaltos, etc. como fruto da
falta de um plano estrutural.
Percebe-se que quando Sobrino fala de Rutílio Grande, Segundo Montes, Inácio
Martín Baró, Amando Lopes, João Ramón Moreno, Joaquim Lopes y Lopes, de
Monsenhor Romero e do padre Ellacuría, seus irmãos chacinados, com a empregada e
sua filha não o faz simplesmente por falar a uma pessoa considerada virtuosa131. O faz,
antes de tudo, para confirmar o impacto profundo que lhe causaram em sua vida. Estes
mártires impressionam Sobrino pela fé vivida de quem busca encontrar a vontade de
Deus na vida cotidiana e nas coisas últimas e profundas de suas vidas.
Impacta profundamente a Sobrino, a coerência de Monsenhor Romero com a
opção pelos pobres, sua percepção da verdade na vida do oprimido, sua misericórdia
com as vítimas de seu país, sua capacidade para aprender dos pobres, sua fidelidade em
meio dos ataques, a difamação e as ameaças. Já de Ellacuría, Sobrino diz o que pensa
ser fundamental: na escola do mestre o discípulo aprende que o exercício da
misericórdia ante um povo crucificado é a necessidade urgente em descê-los da cruz132.
Gera um sentimento de compaixão impactante quando se lê o depoimento que
Sobrino relata sobre a morte de seus seis companheiros jesuítas, no livro assim
intitulado: Os seis jesuítas mártires de El Salvador133. A estampa da capa fala por si, ao
trazer a figura dos mártires estirados pelo chão, e contar que durante à noite levaram três
deles para fora onde foram assassinados e os outros assassinados dentro de casa
juntamente com a empregada e a filha.
É um momento do qual Sobrino escapou, pois, fazendo parte dessa comunidade de
co-irmãos que juntos viviam, trabalhavam, sofriam e se alegravam durante muitos anos,
se encontrava em “Hua Hin, a uns 200 quilômetros de Bangkok, Tailândia, dando um
breve curso de cristologia”134, sua especialidade. Uma cristologia que se faz a partir da
situação do pobre e sua ressurreição significam a esperança cotidiana. Foi nesse lugar,
distante de seus amigos, que à noite, já dormindo, Sobrino recebeu um telefonema de
131
SOBRINO, Jon. Os seis Jesuítas Mártires de El Salvador. São Paulo: Loyola, 1990, p. 08.
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 28.
133
SOBRINO, Jon. Os seis Jesuítas Mártires de El Salvador. São Paulo: Loyola, 1990.
134
Ibidem p. 06.
132
52
Londres, de outros colegas, informando o massacre em meio à repressão das forças
armadas em El Salvador, que dizia: “Aconteceu algo terrível. Ainda não tenho certeza,
mas parece que assassinaram algum jesuíta da UCA, não sei se é o reitor”135. Saindo de
sua cama ele foi ligar, e confirmou: toda a comunidade fora assassinada, mais a
empregada e sua filha.
Relata que esta realidade foi mais doída do que tantas outras em que ele ia apenas
para celebrar o funeral e acalentar esperanças de dias melhores, pois ali se tratava de
seus próprios co-irmãos, com quem partilhava sofrimentos e alegrias. Esta foi e é a
realidade mais real de El Salvador e de toda a América Latina: a vida e a morte dos
pobres. Assim dizia Sobrino:
Não é exagero. Os meus longos anos em El Salvador, os meus trabalhos até
com riscos e conflitos, situações difíceis, mais ainda, minha própria vida
religiosa e sacerdotal pareciam-me muito menos decisivas que a morte dos
meus irmãos e pouco reais comparadas com essas mortes. Experimentei um
corte real na minha vida e um vazio que nada poderia preencher136.
A história de Sobrino se identifica com a dos pobres da América Latina, pois a
eles, ele se mistura e têm o respeito. Sentem-no como um defensor seu. Mistura-se com
a morte dos mártires latino-americanos e dos que lutam em defesa dos direitos humanos
e promoção da vida. Citando o testemunho dos mártires, junto aos quais ele deveria
estar inserido, assim o diz:
Nunca negaram qualquer pedido do povo, desde que fosse possível atende-lo.
Nunca buscaram subterfúgios no trabalho acadêmico para se esquivar, como
se o saber universitário não estivesse também submetido à exigência ética e
prática primária de responder ao clamor das maiorias populares. Por isso, a
fonte, exigente e inspiradora, de todo o seu trabalho e de todo o seu serviço
foi essa compaixão e misericórdia que se converteu para eles em algo
verdadeiramente primeiro e último. A linguagem que usavam como
universitários era a da ‘justiça’, ‘transformação das estruturas’, ‘libertação’,
inclusive num certo sentido a da ‘revolução’; mas não era uma linguagem
fria, puramente ideológica ou política, pois atrás dela estava a linguagem do
verdadeiro amor pelo povo salvadorenho, a linguagem da misericórdia”137.
Sua vida confunde-se ainda com a Teologia da Libertação a qual sistematiza
teoricamente o sofrimento do pobre dando a esse campo do saber a riqueza e a
credibilidade da Teologia para o diálogo com o mundo moderno.
Sobrino é um pensador profundamente moderno, inserido nas problemáticas muito
atuais e presentes que se constituem como desafio para o mundo, que nem a
democracia, o capitalismo e o socialismo foram capazes de responder. Na sua vivência
135
Ibidem p. 07.
Ibidem p. 09.
137
Ibidem p. 17
136
53
traz como princípio fundamental a luta misericordiosa, a compaixão, a responsabilidade,
a esperança e a cooperação como fator estruturante de superação ao fenômeno da
pobreza.
A iminência é fazer descer da cruz os povos crucificados que leva também à
crucificação, ao martírio, à morte. O martírio é a síntese mais cabal da sintonia entre a
fé e o amor á justiça, a lealdade com a verdade que se faz presente no rosto do empobre-cido. Daí brota a experiência mística, não da especulação ou do ascetismo, mas a
experiência envolvente daquele/a que se comove com o outro e não lhe é indiferente.
Ao que Sobrino nos diz: “Não há fé nem evangelização sem encarnação. E num
povo crucificado não há encarnação sem cruz”138. Neste sentido o teólogo espanhol
Juan José Tamayo diz que é função do teólogo tirar “a espiritualidade do mundo da
ascética. A espiritualidade não é uma atividade autônoma do sujeito. Ela é constitutiva
do ser humano e se converte numa dimensão necessária à libertação”139. E continua
destacando “a conexão entre espírito e prática, libertação e seguimento de Jesus. A
santidade não pode ficar na esfera privada, mas deve influir na mudança das
estruturas”140. No encontro entre espiritualidade e libertação deve haver a santidade
política, ou seja, a política como forma de exercer a caridade e praticar o bem comum.
Essa deveria ser a mística da política a ser buscada e exercida com toda força.
Viver desse modo é lançar luz sobre a realidade. O martírio tem luz própria.
Diante da pergunta do por que se mata?, a resposta torna-se absolutamente simples:
“mata-se aquele que estorva”141, dizia Dom Romero. Ao dizer a verdade sobre a
realidade, ao analisar suas causas e propor melhores condições confronta-se com os
poderes deste mundo. A busca da verdade e o empenho-amor pela justiça geram
ultimidade ou sentido último para a vida, como salvação que possibilita uma esperança
concreta e por isso, verdadeira.
Sobrino nos recorda que é urgente reter o fundamental:
libertação é correlativo de opressão, e a opressão e a injustiça persistem e
aumentam na forma de crescente empobrecimento do terceiro mundo, na
forma de um distanciamento maior e sempre mais inumano entre países ricos
e pobres, na forma de conflitos bélicos (...) na forma de desculturalização
através da imposição de culturas comerciais estrangeiras... A opressão não é
moda. Os clamores dos oprimidos continuam chegando ao céu, cada vez com
138
Ibidem p. 67.
TAMAYO, Juan José. Entre o martírio e a libertação. JORNAL EL PAÍS, 13-03-2007.
140
Ibidem.
141
SOBRINO, Jon. Os seis Jesuítas Mártires de El Salvador. São Paulo: Loyola, 1990, p. 27.
139
54
mais força. E Deus hoje continua recolhendo os clamores, continua
condenando a opressão e animando a libertação142.
O traço característico da cristologia de Sobrino, muito presente na teologia da
libertação, é a ênfase no Jesus histórico, no Jesus que vem narrado nos evangelhos.
Trata-se de alguém marcado pelo princípio misericórdia, pela dinâmica da hospitalidade
e da acolhida. Em Jesus transparece a face de um Deus amoroso, com entranhas de
ternura e misericórdia, que se compadece dos mais pobres e excluídos. Para Sobrino, o
Jesus histórico é o ponto de partida da cristologia. A preocupação central de Sobrino é,
sem dúvida, com a vida dos pobres que estão crucificados na América Latina. A
retomada do Jesus histórico seria, a seu ver, um poderoso antídoto contra os séculos de
exercício de uma fé no Cristo que foi incapaz de enfrentar a miséria da realidade.
Para compreender a cristologia de Sobrino, diz a carta de solidariedade, publicada
pelo 2º Fórum Mundial de Teologia e Libertação, realizado em Nairóbi, no janeiro de
2007, às vésperas da notificação de Sobrino: “é necessário não somente ler o conjunto
de seus escritos ou escutar suas conferências, suas reflexões, suas palavras de cabeça
iluminada pelo coração e pela fé. É necessário percorrer o mesmo caminho, chegar ao
mesmo lugar e ler honestamente os escritos desde os profetas e, sobretudo, o evangelho
de Jesus”143. E continua “Sobrino é o mestre que está ajudando mais de uma geração a
dar o salto do dogma abstrato, do sonho dogmático, ao encontro do Cristo vivo em seu
contexto, em seu lugar teológico que é o povo pobre”144. Nessa perspectiva afirma-se
que,
se a cristologia de Jon Sobrino causa alguma perturbação, isso tem menos a
ver com doutrinas dogmáticas do que com atitudes práticas. De fato seu
ensino cristológico recupera a autoridade evangélica dos pobres, a preferência
de Deus por revelar-se aos pobres. Esta insistência é sempre escandalosa, mas
é de Deus, de Jesus, antes de ser de Sobrino145.
Para falar, com credibilidade, em Deus na América Latina e seu discurso ser
relevante necessita que a teologia – ciência cujo objeto de investigação é Deus – faça
corajosamente a pergunta que lhe é fundamental: onde está Deus? O que posso saber
sobre ele? Tendo ele o rosto de Jesus de Nazaré, qual é a veracidade de sua experiência
fundante?
142
Ibidem p. 62.
Carta do 2º Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Homenagem a Jon Sobrino e François Houtart.
Nairóbi, em janeiro de 2007, http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=26715; acessado
em 07 – 03 – 2007.
144
Ibidem.
145
Ibidem.
143
55
Nisso não resta dúvida que os escritos de Sobrino são contemporâneos, como têm
uma grande contribuição a oferecer para a compreensão desse tempo; não para
escamotear ou falsificar a busca da verdade como se comumente faz em elucubrações
abstratas que pouco falam à nossa situação, mas deter na problemática buscada.
O esforço e a tentativa de Sobrino é claramente elaborar uma teologia a partir do
lugar que se fala – do pobre - e ao tentar sistematizar, encontra a vida circunstante e
existencial mais clamorosa. O seu intuito é levar a teologia cristã in locus a estar
“consciente da necessidade de se comprometer com o mundo, e por isso procura
determinar qual é a realidade deste mundo no qual se realiza a atividade teológica”146.
Caracterizar as realidades deste mundo é partir do mundo sofredor.
2.2 - América Latina: um continente de realidades vulneráveis e povos
crucificados
Há no mundo diferentes realidades e situações que exigem uma resposta concreta.
O contexto latino-americano apresenta uma realidade peculiar a ser contemplada: são
“as vítimas deste mundo” ou “os povos crucificados”, clamando por compaixão e
misericórdia. Essa situação concreta de sofrimento e de morte constitui o lugar a partir
do qual Sobrino procura desenvolver sua teologia. É uma teologia situada no contexto
histórico do continente latino-americano, marcado pela pobreza causada pela injustiça e
pela opressão dos poderosos e dominadores deste mundo. Essa situação concreta e
definida, como “vítimas deste mundo”, exige uma resposta também definida que, na
compreensão sobriniana, se dá pela misericórdia e compaixão como resposta eficaz.
Para entender o “por que” Sobrino desenvolve a categoria misericórdia como base
e princípio estruturante, faz-se oportuno verificar as estruturas que mantém,
historicamente, a maioria da população em situação de pobreza como forma de
violência mais duradoura e também de violência cometida com ignomínia profunda, que
a Teologia chama de pecado social, a Sociologia chama de desigualdade social, o
Direito chama de impunidade e assim por diante, em relação aos 30 milhões147 pessoas
humanas que anualmente morrem de fome ou de doenças relacionadas com a fome.
146
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 47.
SELLES,
Christian.
A
fome:
as
cifras
de
uma
vergonha
mundial.
http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=1778; acessado em 06-12-07. Cf. também o Relatório revelado
pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) durante a apresentação do
informe anual, em 16 de outubro de 2002.
147
56
A compreensão do princípio misericórdia requer neste sentido uma análise que,
em muito, as ciências sociais podem oferecer sua contribuição. A percepção de Sobrino
acerca da realidade de em-pobre-cimento no Continente está vinculada a um fenômeno
de causa e feito, sobretudo em contexto de neoliberalismo e globalização que agrava as
injustiças em países periféricos com sistemas ainda não-estruturados. É a percepção de
que a injustiça que produz a pobreza é encoberta e camuflada, a dimensão ética
pervertida, a mentira e a corrupção são institucionalizas.
A reflexão das ciências sociais é uma mediação importante para o entendimento
das realidades pobres nos chamados “países periféricos”. Refletir acerca dessa realidade
perversa de morte é o princípio sobre o qual assenta a preocupação comum do saber
científico da bioética, composta pela inter-disciplinaridade. Nelas caracterizam o
confronto moral e o conflito ético, os quais afetam e determinam a força, o ânimo e a
vitalidade do indivíduo e, consequentemente, de uma coletividade. Segundo Garrafa,
nesse meio, é indispensável à dignidade e sobrevivência humanas a obrigatoriedade na
“pauta dos pesquisadores uma bioética transformadora, comprometida e identificada
com a realidade dos chamados países em desenvolvimento”148.
Tal comprometimento toma a sério os problemas da pessoa e da vida para quem a
ciência deve estar voltada. Levar em consideração a pessoa que vive em contexto
periférico e os conflitos daí resultantes devem ser responsavelmente analisados com
teorias éticas que emergem de suas circunstâncias, para não acorrer em atitudes que
pode provocar um esvaziamento de conteúdo e crescente despolitização de conflitos
morais. Isso seria agravante pelo fato do distanciamento da reflexão sobre a realidade.
Neste sentido a ciência deve estar livre para investigação e comprometida com as
realidades circunstanciais donde ela se realiza. A liberdade que têm as ciências deve dálas a percepção da realidade mais flagrante de nosso mundo e sobre a reação mais
necessária a ela.
No caso da América Latina, cabe perguntar o que teria a ciência para investigar?
Ao nível da “dignidade humana”, para Sobrino, “se poderia dizer que as coisas vão
melhor, pois o mundo moderno, a Constituição dos Estados Unidos, a Carta dos
Direitos Humanos das Nações Unidas, etc., proclamaram a igualdade de dignidade e de
direitos de todos os seres humanos. Mas a realidade não é assim”149.
148
GARRAFA, Volnei e PORTO, Dora. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In
GARRAFA, Volnei; PESSINI, Léo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 35.
149
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 21.
57
Na verdade, verifica-se no continente latino americano, bem como, em quase todo
o hemisfério Sul do mundo, uma realidade de iniqüidade. Os pobres que vivem aqui são
na terminologia de Gustavo Gutierrez, “aqueles que morrem antes do tempo”150. Tratase da morte indireta, mas eficaz. Na terminologia de Márcio Fabri dos Anjos, uma
situação de mistanásia151. Para expressar a pobreza em estado absoluto vivida no
Continente o conceito de pobre torna-se insuficiente, necessitando enfatizá-la como
extrema-pobreza.
O pobre em extremo é aquele que não tem terra, não possui trabalho estável, vive
na indigência, com alimentação insuficiente para não dizer fome crônica, não tem
acesso aos serviços de saúde e assistência, com níveis mínimos de educação e vive em
ambiente totalmente contaminado. “A sobrevivência de quem vive em extrema pobreza
é quase inexplicável. São cadáveres vivos, que vivem, quotidianamente, com a morte no
meio deles”152. Aí há um mínimo físico e material, abaixo do qual a vida humana é
impossível. Um imperativo que se coloca é que ninguém pode ser excluído da satisfação
150
SOBRINO, Jon. Opção pelos pobres. In: SAMANES, Cassiano Floristán e TAMAYO-ACOSTA,
Juan-José (Orgs.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. Tradução de FERREIRA,
Isabel Fontes Leal e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p. 528-540.
151
ANJOS, Márcio Fabri dos. Eutanásia em chave de Libertação. Boletim ICAPS, Ano 7, Nº 57, 1989, p.
06. “Ao entender a eutanásia como ‘morte suave, feliz’, a primeira situação que nos ocorre para
contextualizá-la é o seu contrário. Parece importante falar, então, da morte infeliz, dolorosa, que
chamaríamos de mistanásia. Isto nos remete, dentro da área da biomedicina, aos pacientes terminais e
sofredores, seja pela convicta recusa em não se interferir no processo de morte, seja pelo mau
atendimento médico-hospitalar. Mas nos remete também muito além da área hospitalar. E nos faz pensar
na morte provocada de formas lentas e sutis por sistemas e estruturas. A mistanásia nos faz pensar os que
morrem de fome, cujo número apontado em estatísticas é de estarrecer. Faz lembrar, de modo geral, a
morte do empobrecido, amargado pelo abandono e pela falta de recursos os mais primários. Mas também
nos remete aos mortos nas torturas de regimes políticos fortes e que os deixam por fim como
desaparecidos. Nesses casos, a mistanásia (do grego mis = infeliz + do grego mys = rato), é uma
verdadeira ‘mustanásia’, morte de rato de esgoto”. Cf também MARTIN, Leonard M. A ética médica
diante do paciente terminal. Aparecida-SP: Santuário, 1993, p. 248. Este autor ressalta que “Este termo
designa a tentativa de pensar a bioética a partir do sofrimento dos pobres. Márcio Fabri dos Anjos é um
dos primeiros a abrir caminho neste sentido quando nos aponta para algumas das conseqüências de
começar a reflexão bioética a partir dos pobres”. Isso se verifica com a publicação do artigo “Bioética a
partir do Terceiro Mundo”, de Márcio Fabri dos Anjos, contido no livro Temas Latino-Americanos de
Ética. Aparecida-SP: Santuário, 1988. Cf. também PESSINI, Leocir. Eutanásia e América Latina.
questões ético-teológicas. Aparecida-SP: Santuário, 1990, p. 127. Uma análise que deve ser feita
neste contexto é quanto à morte precoce e injusta não de apenas alguns indivíduos, mas de uma
verdadeira multidão. A morte nesse ambiente não é caso de eutanásia, mas de indignidade porque
acontece antes do tempo. Estamos falando aqui de vidas abreviadas não somente de algumas pessoas a
nível médico-hospitalar, mas de uma verdadeira multidão a nível social. Situamo-nos aqui frente às
situações das gritantes desigualdades sociais. Na América Latina urge ampliar o horizonte da questão de
saúde médico-hospitalar (eutanásia e distanásia), passando do nível individual para a dimensão social da
prevenção e proteção dos indivíduos.
152
ELLACURÍA, Ignácio e RICHARD, Pablo. Pobreza/Pobres. In: SAMANES, Cassiano Floristán e
TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo.
Tradução de FERREIRA, Isabel Fontes Leal e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p.
619-635.
58
de suas necessidades básicas. Ninguém tem o direito de excluir o outro de suas
necessidades. Tal realidade foi, em linguagem poética, assim captada por Manuel
Bandeira:
Vi ontem um bicho;
Na imundície do pátio;
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem153.
Nas palavras de Sobrino,
Esta pobreza-muerte, globalizante y en aumento, es lo que en sí misma se
constituye en interpelación – “irrumpe” – para el ser humano. Es
interpelación ética, pues la pobreza-muerte expresa en sí misma el mayor de
los males morales, el pecado fundamental objetivo como aquello que da
muerte, y desenmascara el pecado fundamental subjetivo, el egoísmo
estructural o la estructuración de los egoísmos que la producen. Es
interpelación a uma práxis, pues clama objetivamente por su erradicación y
exige la movilización de todas las fuerzas del espíritu humano para llevarla a
cabo, para reorientar, transformar y revolucionar la realidad de este mundo en
la dirección de la vida. Es interpelación al sentido de la vida, personal y
colectivo; exige tomar postura ante la pergunta de si la historia tiene o no
solución, de si es más sabia la esperanza o la resignación, de si la supremacia
la tiene el amor o el egoísmo. Religiosamente, plantea la pregunta por la
verdadera divinidad y por lo último, por el Dios de la vida o los ídolos de
muerte154.
Nas palavras de Inácio Ellacuría, apud Ferraro, o sinal mais evidente dos
indivíduos no continente é a existência de um “povo crucificado”, e a exigência mais
primigênia é a de “descê-lo da cruz” 155. A linguagem da “cruz” é útil e necessária em
nível histórico-ético por poder exprimir um tipo de morte ativamente provocada.
“Morrer crucificado não significa simplesmente morrer, mas ser morto; significa que há
vítimas e que há verdugos; significa que existe um gravíssimo pecado”156.
Nesse lugar social, marcado pelo grito silencioso das massas, que o teólogo Jon
Sobrino chama de “vítimas deste mundo”, “faz-se urgente a experiência da libertação
153
BANDEIRA, Manuel. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador:
Sal Terrae, 1992, p. 54.
155
FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 23.
“Entende-se aqui por povo crucificado aquela coletividade que, sendo a maioria da humanidade, deve sua
situação de crucificação a uma ordem social promovida e sustentada por uma minoria que exerce seu
domínio em função de um conjunto de fatores que, como conjunto e dada sua concreta afetividade
histórica, devem ser considerados como pecado”.
156
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 85.
154
59
diante da opressão, do sofrimento, da perseguição e morte a que estão submetidos em
suas vidas cotidianas”157. Nesse ambiente, próprio de um espírito capitalista excludente,
os pobres são massas sobrantes que clama por uma “ação de amor estruturante” ao qual
Sobrino denomina “misericórdia”. Trata-se do “amor práxico que surge perante o
sofrimento alheio injustamente infligido para erradicá-lo”158.
Para tanto, faz-se necessário deter nos fundamentos das estruturas que provocam
as “iniqüidades” ou as “feridas” que estamos abordando, o que será feito em linguagem
teológica, ou seja, do lugar da perspectiva sobriniana. Sua exposição torna-se viável
para a compreensão do princípio misericórdia e a contribuição deste para a bioética de
cunho latino americano. A pobreza em suas estruturas, na compreensão da Teologia da
Libertação, é o efeito de uma violência e de um pecado primordial – el mysterium
iniquitatis - que deve ser cuidadosamente analisado.
2.2.1 - A opressão como fenômeno histórico
Na América Latina a constatação mais evidente é a presença dos sinais de morte.
Sobre essa constatação, de nível estrutural, Antônio Moser sugere que uma concepção
meramente individual, intimista e atomizada do pecado já não respondem mais a
realidade dos fatos. “O mal que nos afeta parece localizar-se num nível bem mais
profundo do que aquele das relações pessoais e interpessoais”159. “É diante destas
insuficiências... que a teologia latino-americana se vê forçada a duas coisas: a colocar o
pecado como tema teológico central e a buscar uma compreensão que repouse sobre
outras coordenadas”160. Aqui surge a compreensão do pecado como “pecado social”.
Essa compreensão não é fruto de especulações mais ou menos articuladas e iluminadas,
mas resultante de uma experiência vivida no contexto do mal desagregador das pessoas
e da sociedade.
157
O sistema não tem interesse nesta população supérflua e, por isso, não investe nela para a satisfação de
suas necessidades básicas: trabalho, saúde, habitação, educação, etc. Começa um processo de
empobrecimento cujo limite é a morte. O deterioramento é total: econômico, social, cultural, corporal,
humano, familiar, religioso, ético... O sistema considera como lixo, como ratos, como algo que é preciso
eliminar”. Ibidem p. 99.
158
Ibidem p. 35. Esse amor é típico daquele caracterizado por um pensamento mais amplo de “amor
mundi”. “Nem liberal, nem marxista, nem conservador, o traço característico do pensamento arendtiano
pode ser definido como o amor mundi, o ‘amor do mundo’, em que o genitivo tem o sentido de ‘por amor
ao mundo’ ou ‘amor pelo mundo’ em que a principal contribuição desse modelo para os nossos dias é
essa capacidade única de unir mística e ação, política e contemplação, compaixão e senso de justiça,
experiência e práxis. Ou seja, um pensamento habitado pelo extremamente humano, que possa dar mais
credibilidade ao próprio pensamento e, consequentemente, ao próprio fato de ser humano.
159
MOSER, Antônio. O Pecado Social em chave Latino-Americana. In: ANJOS, Márcio Fabri dos.
Temas Latino-Americanos de Ética. Aparecida-SP: Santuário, 1988, p. 68.
160
Ibidem p 68.
60
Não basta apenas saber e reconhecer as genéricas situações de violência contra as
maiorias pobres, situações de dependências dos esquemas de dominação, violação dos
direitos humanos; a evidência do império e domínio do dinheiro sobre a lei e a justiça.
É bom estar atento aos qualificativos “estruturas de pecado”, “pecado estrutural” e
“estruturas pecaminosas” que são expressões típicas do pensamento teológico. Contudo,
todas essas expressões designativas da configuração do pecado, embora situadas em
níveis diferentes de análise, querem ressaltar as condições subumanas em que vivem
mais da metade dos seres humanos. “O olhar da fé percebe aqui um verdadeiro pecado.
Essas condições conduzem à morte e ao desespero, em todos os sentidos. Se o pecado é
o que desumaniza, no sentido forte do termo, então aqui se encontram manifestações de
pecado que não remetem aos que são vítimas dele, mas a outros agentes”161. Aqui
Antônio Moser quer pontuar acenando para a compreensão do “pecado social”.
O “pecado social” consiste nas violações de direitos humanos, violências
institucionalizadas, condições subumanas para a maioria de uma população, as
condições históricas da fome, analfabetismo, doenças endêmicas, condições
habitacionais inadequadas, miséria, etc. que parecem ter sempre existido. Mas é uma
situação que nunca existiu em nível de consciência e de condições históricas para
percebê-los e nem para removê-los como nos tempos modernos e pós-modernos.
Historicamente, existia sim uma consciência e anseio da necessidade de que
alguma coisa devesse ser feita acerca dessa dilapidação, no qual se poderiam nomear
dois pensadores do início da era cristã que caracterizavam essa desordem reinante na
sociedade como “usurpação”. Basílio é um deles que não usa meios termos para investir
contra os que se apropriam dos bens de todos: “Tu és semelhante ao homem que,
reservando uma vaga no teatro, queria impedir os outros de entrarem, e desejaria gozar
sozinho do espetáculo ao qual todos têm direito. Assim são os ricos: dos bens comuns
que se apoderam, eles se decretam os únicos donos, por terem sido seus primeiros
ocupantes”162. E continua:
Aquele que despoja um homem de suas vestes será chamado de ladrão. E o
que não veste a nudez do mendigo, merecerá outro nome?... Tornaste-te um
explorador ao apropriar-te dos bens que recebeste para administrá-los. O pão
que te reservas pertence ao faminto; ao nu, os vestidos que conservas em teu
armário; ao descalço, o calçado que apodrece em tua casa; ao necessitado, o
dinheiro que escondes em tua arca. Assim, pois, cometes tantas injustiças,
quantos são os homens aos quais poderias socorrer163.
161
Ibidem p 71.
Ibidem p 87
163
Ibidem.
162
61
Num outro texto Basílio, inflamado, assim interroga os ricos:
Que responderás ao Juiz, tu revestes e adornas as paredes e recuas a cobrir o
corpo do necessitado? Tu que atavias os cavalos e olhas com indiferença os
farrapos e o aspecto repugnante de teu irmão? Tu que deixas apodrecer o
trigo, enquanto contemplas, passivamente, os estragos que a fome produz em
teu redor? Tu que enterras o ouro e desdenhas o que geme sob o peso do
trabalho?164.
Poder-se-ia também citar Ambrósio ao dizer que, quando o rico socorre o pobre,
não faz mais que sua obrigação: “Não é teu o bem que distribuís ao pobre, apenas
restituís o que é dele. Por que te és o único a usurpar o que é dado a todos para o uso de
todos? A terra pertence a todos, e não somente aos ricos”165. Assim poderia citar vários
outros, mas dá para perceber o anseio e a necessidade que existia de se fazer alguma
coisa, bem como o alto senso de justiça por parte, sobretudo, de alguns homens.
Assim Antônio Moser procura chamar a atenção numa equiparação dessa situação
no passado com a situação histórica vivida hoje:
A alimentação insuficiente remetia mais para fatores climáticos; o
analfabetismo para a falta de instrumentos adequados; as doenças endêmicas
para o relativo atraso da medicina; e assim por diante. Hoje, contudo, o
mundo produz, efetivamente, mais alimentos do que o necessário; as leis do
comércio é que impedem que todos tenham o que comer. Existem condições
reais para acabar com o analfabetismo num curto espaço de tempo. Existem
condições reais para se implantar um saneamento básico, preventivo, que
eliminaria a maioria das doenças dos empobrecidos... Para tanto, bastaria que
os recursos disponíveis fossem devidamente encaminhados: não para
alimentar o consumismo e a corrida armamentística, mas para suprir as reais
necessidades de todos. Se isso não ocorre é porque convém que haja
famintos, analfabetos, desabrigados, doentes crônicos. É toda uma estrutura
econômica, social, política, que vive disso166.
Por aí se percebe que essas situações históricas sempre existiram, e a diferença
hoje é que sabemos situar, com clarividência, os mecanismos repressores que são
responsáveis pelo seu entravamento. E pode-se perguntar, por que a denominação de
pecado estrutural ou pecado social? Na percepção de Moser “estas condições só
aparecem com o advento das ciências do social, que sofreram muitas resistências para
serem incorporadas pela Teologia”167.
Um outro problema ao tratar do tema do pecado estrutural está na questão de
identificar a “raiz” ou a “causa” deste tipo de pecado. Assim Jung Mo Sung pergunta:
“Onde se encontra a raiz do pecado social? É na pessoa ou na sociedade?... são os
164
Ibidem p. 88.
Ibidem.
166
Ibidem p. 72.
167
Ibidem p. 73.
165
62
egoísmos individuais ou os coletivos que geram estruturas de pecado?”168. Antônio
Moser responde dizendo que “desde Durkheim fica claro que o social é uma coisa de
relações até certo ponto autônoma, ou que ao menos ultrapassa o plano pessoal; o
social, de alguma forma e também externo, mas atua poderosamente sobre as
pessoas”169. Ele tem claro que,
as estruturas sociais foram criadas por seres humanos e são seres humanos
concretos que as alimentam. Entretanto as estruturas possuem uma lógica
própria. A pessoa não faz exatamente o que quer mas exerce sua liberdade
dentro dos limites de suas condições pessoais e sociais. Cada pessoa faz sua
história, mas não a faz sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas
com que se defronta diretamente, legadas pelo passado170.
Com isso Moser quer afirmar dois pólos que se inter-relacionam dialeticamente
como mão dupla numa interdependência entre pessoa e a sociedade, ou seja, “das
pessoas para a sociedade e da sociedade para as pessoas. Ao mesmo tempo que a
sociedade é trabalhada pelas pessoas, essas também são trabalhadas pela sociedade”171.
Para ele não há dúvida de que o núcleo central desse círculo de pecado social é a pessoa,
que a fé diz nascer no coração humano. O círculo, que é o social, é constituído pelo
núcleo como sendo a pessoa. Nessa relação o círculo também possui sua relativa
autonomia presente nas estruturas, nas instituições onde estão presentes esses pecados
sociais.
Os três instrumentos que Moser aponta para aprofundar essas estruturas e estão a
seu serviço podem ser assim descritos: o primeiro representado pelos meios de
comunicação social. “Aqui as vítimas aparecem sempre como figuras ridículas,
submissas, pouco confiáveis”172. Um segundo instrumento “é representado pela
legislação. No contexto da América Latina as leis não são feitas nem com a participação
do povo, nem em favor dele. São feitas pelos que detém o poder econômico e em favor
deles”173. E, por fim, “as estruturas econômicas são tais que, tanto a nível de pessoas,
quanto de nações, dificilmente alguém escapa da sua categoria: pobre vai continuar
sempre pobre; subdesenvolvido vai continuar sempre subdesenvolvido; negro vai
continuar sempre negro...”174.
168
SUNG, Jung Mo. Sujeito e Sociedades complexas. Para repensar os horizontes utópicos. Petrópolis-RJ:
Vozes, 2002, p. 143.
169
MOSER, Antônio. O Pecado Social em chave Latino-Americana. In: ANJOS, Márcio Fabri dos.
Temas Latino-Americanos de Ética. Aparecida-SP: Santuário, 1988, p. 74.
170
Ibidem p. 74.
171
Ibidem p. 75.
172
Ibidem p. 76.
173
Ibidem.
174
Ibidem.
63
Esses autores convergem para a mesma concepção de pecado social ou estrutural e
aponta para a pergunta sobre a responsabilidade do pecado estrutural. Antônio Moser se
pergunta onde afinal se encontra a raiz última do pecado social? Qual é a
responsabilidade das pessoas concretas, ou eventuais grupos menores, no pecado social?
Em J.G. Faus e Marciano Vidal encontram-se um esclarecimento:
Não é correto falar de ‘pecado estrutural’ sem relacioná-lo com a pessoa.
Cortando-se esta sua vinculação com o mundo pessoal, o ‘pecado estrutural’
não pertence mais à categoria da culpa, que exige a responsabilidade pessoal;
é, ao contrário, uma concreção da fé no determinismo histórico ou no
estruturalismo materialista. A culpabilidade das estruturas consiste no fruto,
na acumulação e concentração de muitos pecados pessoais175.
Moser vai dizer que “normalmente se coloca como raiz desta configuração de
pecado o egoísmo”. Que “ora se acentuam mais os egoísmos individuais, ora os
coletivos. Como negação do amor, o egoísmo impede as relações e as estruturas de
justiça”176. Mesmo assim, sempre sobra a questão da responsabilidade primeira: são os
egoísmos individuais ou os coletivos que geram as estruturas de pecado?”177. Esta é
uma questão que Moser afirma ser séria, pois é determinante para uma práxis diferente.
E “a resposta a esta questão possivelmente não esteja numa alternativa ‘ou/ou’, mas
numa conjuntiva ‘e/e’”178. Respondendo assim, numa compreensão dialética, não se
deixa de perceber o peso das estruturas, mas também não se esvaziam eventuais
responsabilidades de pessoas.
Numa relação de impasse Mo Sung179 diz ser preciso distinguir a noção de culpa e
responsabilidade. A culpa deriva da idéia de que erramos moralmente, seja por
ignorância, fraqueza ou intenção de fazer o mal. Por isso, a relação do sujeito com a
culpa é um correlato da degradação ou perda do sentido de dignidade ética. Já a
responsabilidade está ligada a culpa quando somos agentes de infração ou omissão e de
nós depende a seqüência dos efeitos reprovados. Como pertencentes de uma natureza
consciente tornamo-nos co-responsáveis por problemas sociais que não são resultados
direto de nossos atos.
175
FAUS, José Gonzáles e VIDAL, Marciano. Pecado estrutural. In: VIDAL, Marciano (Org.). Ética
teológica: conceitos fundamentais. Petrópolis-RJ: Vozes, 1999, p. 366.
176
MOSER, Antônio. O Pecado Social em chave Latino-Americana. In: ANJOS, Márcio Fabri dos.
Temas Latino-Americanos de Ética. Aparecida-SP: Santuário, 1988, p. 77.
177
Ibidem p. 77.
178
Ibidem.
179
SUNG, Jung Mo. Sujeito e Sociedades complexas. Para repensar os horizontes utópicos. Petrópolis-RJ:
Vozes, 2002, p. 139-154.
64
Daí, porém, a pergunta ética fundamental não deve ser qual é a ação econômica
mais de acordo com os valores éticos, mas sim qual é a minha ou a nossa postura ética
frente ao sistema econômico vigente.
É dentro dessa dinâmica de estrutura econômica concreta que se encontra,
segundo Mo Sung, as possibilidades e as tendências de ação dos agentes e produz os
efeitos não intencionais e que devem ocupar um dos lugares centrais na reflexão ética.
Assim diz que a “reflexão ética dos sistemas econômicos é fundamental para
criticarmos a tentativa de naturalizar o sistema de mercado”180.
Essa análise acerca do pecado estrutural ajuda compreender as cadeias produtivas
de fenômenos persistentes e de anti-misericórdia no continente latino americano que
perpetua por mais de cinco séculos, nada mudando substancialmente em suas formas de
relações concretas: uma relação que se faz com a espoliação que ainda persiste.
Trata-se do fenômeno que, historicamente, a América Latina convive, quando com
a pretensão de descobrir novos mercados e colônias, países europeus puseram a
descoberto a realidade na qual vivem submergidos e tentando, com os mesmos
mecanismos de maneira mais elaborada, convencer até hoje. Agindo assim puseram em
descoberto e desnudaram as pretensões do Primeiro Mundo as quais quiseram e tentam
de toda maneira encobrir.
Acerca disso Sobrino afirma que “na realidade é o Terceiro Mundo que descobre o
Primeiro Mundo em seus aspectos negativos e em seus aspectos mais reais”181. Mas,
hoje ainda, eles querem encobrir a realidade e seus interesses com relação ao Terceiro
Mundo. Nas transações feitas, a maioria das vezes eles saem favorecidos, mas não mais
encobertas. Essa relação evidencia, sempre mais, o verdadeiro interesse dos ricos e dos
países de Primeiro Mundo, bem como o processo que se dá a construção histórica.
Agindo assim estão privando do meio eficaz de “se conhecer em sua verdade mais
profunda: a realidade do Sul, com toda sua pobreza, injustiça e morte..., como num
espelho invertido pelo que produz”182.
2.2.2 - Pretensões colonizadoras no presente da América Latina
Visto como acontecimento que contribuiu para nova visão de mundo no século
XVI, a chegada dos portugueses e espanhóis em novas terras pode ser considerada como
180
Ibidem p. 153.
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 114.
182
Ibidem p. 115.
181
65
fato fundante para as relações assimétricas entre a Europa e América Latina, centro e
periferia, num processo de destruição e saqueamento dos bens, violência e mortes dos
povos primitivos praticadas por uma sede insaciável de riqueza e poder a todo custo dos
verdugos183. Uma competição desleal, até hoje não superada. A participação comum nos
bens deste mundo se faz cada vez mais distante, quando se vê aumentando o abismo
entre as rendas produzidas. Fala-se que atualmente está havendo uma melhor
distribuição de renda na América Latina, mas não é novidade que a capacidade de
produção também aumentou significativamente engordando ainda mais àqueles que já
possuíam.
Para Jon Sobrino as razões fundamentais desse escândalo que já duram séculos
estão em que “os países pobres só interessam pelo que podem oferecer: matérias-primas
e mão-de-obra barata”184. Mas alerta para algumas mudanças ainda mais grave nessa
relação do passado e a situação no presente:
1) la acumulación del capital depende cada vez menos de la intensidad de los
recursos naturales y del trabajo, y cada vez más de los conocimientos
tecnológicos, con la siguiente consecuencia: el Tercer Mundo sigue siendo
importante por sus materias primas (aunque ya no tanto), pero no lo es ya su
población. Lo que ya no se necesita es la mayor parte de la población del
Tercer Mundo. Esta población sobrante ya no interesa, simplemente; 2) en el
reparto geopolítico, se sigue necesitando del Tercer Mundo, sus mares, sua
aire, su naturaleza, aunque sea únicamente como vertedero para los residuos
venenosos; 3) El Tercer Mundo sigue teniendo una relativa importancia, pero
lo que ya no se necesita es la mayor parte de la población del Tercer
Mundo...185.
Essa relação díspar está evidenciando, a partir do século XXI, uma nova
configuração: a bipolarização do Norte contra o Sul, sendo este último o lugar
regionalizado do sub-desenvolvimento permanente, caracterizado pela dependência e
pela extrema pobreza. “Os conquistadores da América Latina deixaram-na como um
Cristo”186, sem atração nenhuma. E agora, depois de espoliada e saqueada, vive-se um
total desinteresse por ela, numa indiferença que parece estratégia de imunização contra
àqueles que sobram. Isso é evidente nas políticas de imigração dos EUA e Europa em
nossos dias, num processo de seleção e eugenia o qual todos sabem.
183
Ibidem p. 125. Antônio Montesinos diante da crueldade praticada contra os povos primitivos da
América Latina, dizia: “estes, não são homens? Não têm almas racionais? Não sois obrigados a amá-los
como a vós mesmos? Não entendeis isto? Não sentis isto? Como estais dormindo em tanta profundidade
de sono tão letárgico?”.
184
Ibidem p. 119.
185
SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador:
Sal Terrae, 1992, p. 119-120.
186
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 121.
66
Há um mistério que deve ser explicado: se os investimentos empresariais, a ajuda
estrangeira e os empréstimos internacionais aumentaram de forma espetacular na última
metade do século passado, como é possível que a pobreza também tenha aumentado?
Na segunda metade do século XX, os bancos e as indústrias do primeiro mundo
investiram muito nas regiões pobres da Ásia, África e América Latina. As
multinacionais são atraídas pelos abundantes recursos naturais e alto rendimento devido
aos baixos salários, e a quase total ausência de impostos sem contar os incentivos para
suas instalações, sem regulamentos ambientais, direitos trabalhistas e custos de
segurança nesta área187.
A arrecadação obtida com a força de trabalho barata no estrangeiro não se
transforma em preços baixos para seus consumidores de outros lugares. Contratam-na
para aumentar a margem de lucro. Essa perversidade pode ser exemplificada pelo relato
de Michael Parenti, “Mistério: como a riqueza causa a pobreza no mundo”, ao
mencionar que em 1990, os calçados feitos por crianças indonésias que trabalhavam 12
horas diárias por 13 centavos a hora, custava somente 2,60 dólares, mas era vendido por
100 dólares ou mais nos EUA188. Jon Sobrino refere-se a Melquisedek Sikuli que
reconhece entre os povos africanos imensos problemas como a miséria, injustiça,
crianças desprezadas, mulheres violadas e aldeias saqueadas que expressam no fundo, o
pecado do colonialismo. Não se dissimula os males próprios, o que ilustra com o drama
de crianças soldados: “Cuando no se tiene a nadie en el mundo, ni padre, ni madre, ni
hermana, y se es todavía un niño, en un país arruinado y bárbaro, en donde todos se
matan” se pergunta, o que fazer? “Se empieza a ser niño soldado para comer y matar: es
todo lo que nos queda”189.
A colaboração feita pelos EUA aos países estrangeiros normalmente ocorre junto
com o investimento multinacional que subvenciona a construção da infra-estrutura
necessária às empresas do terceiro mundo: portos, estradas e refinarias. É uma ajuda
condicionada. Concomitantemente deve ser gasta em produtos dos EUA, e se pede à
nação receptora que dê preferência de investimentos às companhias americanas,
substituindo o consumo de mercadorias e alimentos domésticos por outros importados,
criando maior dependência, fome e dívida. A ajuda procede também de outras fontes
187
PARENTI, Michael. Mistério: como a riqueza causa a pobreza no mundo.
http://textosavozdopovo.blogspot.com/2007/03/mistrio-como-riqueza-causa-pobreza-no.html; acessado
em 06-12-07.
188
Ibidem.
189
SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid:
Editorial Trotta, 2007, p. 102-103.
67
que os países latino americanos bem conhecem. As Nações Unidas, “preocupada” com
o desenvolvimento dos países pobres, criaram o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional. É estabelecido que a presidência do FMI esteja sob a permanente tutela
dos EUA, e do Banco Mundial sob a tutela da União Européia. O poder de voto de
ambas as organizações está estabelecido segundo a contribuição financeira de cada país.
Como maior doador os EUA têm a voz principal. O FMI opera em segredo com um
grupo seleto de banqueiros e altos funcionários dos ministérios da economia,
selecionados em sua maioria entre os paises ricos190.
A finalidade do Banco Mundial e do FMI que seria de prestar assistência às
nações pobres para o seu desenvolvimento acarreta na realidade outra coisa, como se vê:
um país pobre ao solicitar um empréstimo no Banco Mundial para o fortalecimento de
alguns aspectos de sua economia, se não puder pagar os elevados juros porque as
exportações diminuíram ou por qualquer outra razão, ele será forçado a pedir um novo
empréstimo, mas desta vez ao FMI, que impõe um “programa de ajuste estrutural”.
Pressiona-se às nações devedoras para que privatizem suas economias e vendam a
preços muito baixos suas minas, transportes ferroviários e serviços públicos às empresas
privadas191.
Essa é uma situação muito conhecida pelos países da América Latina. Os
governos devem cortar os subsídios para a saúde, a educação, o transporte e os
alimentos, a fim de gastar menos com seus habitantes para honrar com os pagamentos
da dívida. Desse modo, estes países tornam-se cada vez menos capazes de alimentar a
sua própria população e o “mistério” a cerca da pobreza passa a ser desvendado e já não
existe mais, se é que existiu algum dia.
Hoje nos encontramos em confronto de interesses: “a simples existência dos
pobres do Terceiro Mundo pode não só fazer superar a ‘ignorância’ no Primeiro Mundo,
mas também desmascarar a mentira”192, que Paulo, escrevendo à comunidade cristã de
Roma, menciona como pecado fundamental que vicia a realidade humana, ou seja, “os
190
PARENTI, Michael. Mistério: como a riqueza causa a pobreza no mundo.
http://textosavozdopovo.blogspot.com/2007/03/mistrio-como-riqueza-causa-pobreza-no.html; acessado
em 06-12-07.
191
Ibidem.
192
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 128. Em pesquisa divulgada pelo Jornal Clarín,
40% da população latino-americana é pobre e 15,4% é indigente. A população pobre da América Latina
corresponde a 209 milhões de pessoas, sendo 81 milhões de indigentes. REDAÇÃO. 40% da População
latino-americana é pobre e 15% indigente, constatam bispos latino-americanos. JORNAL CLARÍN, 1605-2007.
68
homens mantêm a verdade prisioneira da injustiça”193. Essa realidade expõe as
“verdadeiras soluções” que os países ricos oferecem: soluções que são meias verdades e
não podem ser universalizáveis. Numa síntese do imperativo kantiano o que não pode
ser universalizado não pode ser eticamente bom. Nem se pudesse ser universalizado
todo o consumo dos países ricos, hoje é comprovado que a terra nem subsistiria.
Vivendo em meio à pujança, em detrimento da distribuição com o faminto, constroem
um gueto de pseudo verdades, um mundo sem sentido.
É uma situação difícil de reverter ou de conversão. Isto porque existe em nossos
tempos uma dificuldade de se reconhecer essa realidade fundamental: o pecado. Dentro
do cristianismo o pecado é caracterizado como o mau uso da liberdade humana, e que
por isso, desumaniza o humano. A liberdade assume um aspecto de centralidade dentro
da cultura cristã. A cultura cristã acredita na compreensão evolutiva do pecado, sendo
que alguns pecados não modificam a sua essência. Uma ação contra a vida é tida como
violação, mau uso da liberdade que gera inquietudes e perturbações. Um assassinato é
visto, por exemplo, como uma violação e atentado contra a vida, dom de Deus.
Assim o pecado manifesta-se contra a dignidade, indo contra o próprio
transgressor e o agredido. Mas sendo o fator liberdade um distintivo humano, creditado
por Deus, conforme o cristianismo, a mesma violação que causou perturbação em
alguma pessoa poderia não causar em outra. Isso mostra a complexidade da abordagem
dentro de uma concepção atual caracterizada pelo subjetivismo e diante do pluralismo
cultural e religioso.
2.2.3 - Em busca das causas da opressão
Após se perguntar sobre a verdade da pobreza real é oportuno à nossa reflexão
avançar analisando os reais interesses de manutenção dessa pobreza como fenômeno
estrutural que a reflexão teológica denomina pecado social. Ela aparece como fenômeno
que Eduardo Galeano aponta como as grandes veias abertas na América Latina194.
Um questionamento que emerge é sobre a razão da persistência dessas vítimas e
de manutenção da pobreza.
Existe um interesse para que elas permaneçam? Em
benefício de quem elas continuam persistindo?
193
Rm 1,18-19.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Tradução de FREITAS, Galeano de. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
194
69
Durante muito tempo de nossa história, a pobreza foi concebida como fruto
da ignorância e da preguiça dos pobres ou do lucro e do egoísmo dos ricos,
quando não do destino dos assim nascidos; colocou-se a ênfase somente nas
causas morais e naturais, em detrimento das causas reais. Hoje sabemos que
os pobres constituem fenômeno socialmente produzido. São reduzidos à
pobreza (em-pobre-cidos) ou mantidos nela por uma organização econômica
excludente, como é o caso do capitalismo do terceiro mundo. Os pobres
emergem de classes oprimidas por opressores195.
Benedito Ferraro afirma que “há os responsáveis mais diretos pela manutenção
deste sistema de morte”196. Falar de responsabilidade humana de modo abstrato e geral
corre-se o risco de responsabilizar diretamente o pobre, praticamente excluído dos
poderes de decisões econômicas, políticas e estruturais de modo geral. Apesar da
responsabilidade pessoal na perpetuação no fenômeno da iniqüidade, como foi analisada
anteriormente, a quem se poderia atribuir diretamente, como fenômeno social, sua
parcela de responsabilidade?
2.2.3.1 - O mercado
Um dos mecanismos de opressão, exclusão e eliminação dos pobres hoje, na
América Latina, é nitidamente o mercado. Não há dúvida que estamos diante de um
sistema de morte que cobra caro para se manter vivo. Em nome do mercado e sua
manutenção, sangra-se vidas inteiras, tirando, inclusive o necessário para satisfazer as
necessidades básicas do indivíduo e de toda uma população. Vigora em nossos dias, e
sempre ocorreu, uma disputa na Organização Mundial de Comércio por subsídios na
tentativa de favorecer os que já são favorecidos pela “ordem” econômica. São os países
do centro que se arvoram o direito de excluir os pobres do Terceiro Mundo, por não
poderem produzir em nome do discurso falacioso da competência.
Nesse espaço de disputas, que precisa do sangue dos pobres para sobreviver, há
um automatismo que se apresenta como processo natural. É uma tendência automática
ao desequilíbrio e à irracionalidade, que se manifesta não como um produto intencional
de alguém, mas como efeito da própria estrutura de mercado. Tal automatismo se
apresenta como natural. Porém, há os responsáveis pela manutenção dessa dinâmica.
Os pobres dos países de Terceiro Mundo, e de modo geral, não têm rosto. São
despersonalizados. Não tendo acesso aos bens de consumo eles não servem para o
195
BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. In: COMPAGNONI, Francisco et alli (Orgs.). Dicionário de
Teologia Moral. Tradução de COSTA, Lourenço et alli. São Paulo: Paulus, 1997, p. 879.
196
FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 81.
70
mercado. Seus rostos variam de acordo com o que podem consumir. Ferraro ressalta
que,
O problema é criar necessidades para poder produzir mais e mais. O anúncio
de produtos que podem ser produzidos é tal que gera uma competição sem
precedentes na história. Ganha quem produzir primeiro o produto mais
adiantado. A empresa que chega atrasada na corrida está perdida197.
Nesta dinâmica de marginalização e opressão, a lógica do mercado e da exclusão
tende unificar as diferenças, sobrepondo à autonomia do sujeito tão cara ao indivíduo
moderno: uma situação que não diferencia cor, etnia, sexo. O que vale é tão somente o
poder de consumo, creditado pela propaganda apelativa de sedução mostrando que “ser
humano” é poder consumir, numa atitude de comportamento induzido e naturalizado.
Que dizer, neste caso, dos pobres como vítimas da injustiça social e da pobreza que não
podem consumir e são entraves para os sistemas ideológicos?
Se os pobres não podem consumir no mercado ditatorial são vistos como estorvo,
como peça descartável, como sobrantes. Excluídos do mercado ou pelo menos da
economia formal, sobrevivem da e na economia informal. Pelo mercado já estariam
mortos! Não contam! Quando os pobres se propõem a lutar pela vida, o mercado vê em
tal atitude uma irracionalidade, quando não subversiva que exige atenção e repressão.
Uma façanha do todo poderoso mercado é o progresso infinito, e quem não vê-lo
assim é taxado de se opor ao bem. A crueldade é ainda maior quando o consumo é feito
pela cooptação de elementos religiosos como símbolos e linguagem, lançando
estratégias de marketing apelativas como mecanismo de salvação198. Assim, somente se
salva quem pode consumir. Para isso, estipulam-se seus dogmas e seus rituais. Os
pobres não contam, pois não podem pagar o “dízimo”, sendo este o critério fundamental
para se tornar um inserido. É a face de um capital neoliberal que se assume como o
todo-poderoso, em que abençoados são os que detêm economias. Uma religião que
197
Ibidem p. 98.
Ibidem p. 89. Para explicitar a lógica do mercado, como boa nova e único caminho de salvação: as
mercadorias vão para onde há maior número de dólares. Esse modelo é apresentado como a única
salvação para os nossos problemas sociais. Um sistema econômico que é incapaz de ouvir o pobre e
atender às suas necessidades. Incapaz não por causa de algumas falhas de funcionamento, mas porque
pela sua própria lógica só se vê e ouve os consumidores, os que têm dinheiro para ‘votar’. F.
Hinkelammert afirma que, com o mercado, a burguesia crê ter solucionado o problema de toda a
humanidade: a burguesia crê ter agora um método calculável para solucionar os problemas dos homens e
o crê ter encontrado excluindo a ética das relações sociais, substituindo-as pela instituição do mercado. O
mercado é o amor. Na mesma linha de raciocínio no uso do mercado liberal competitivo David Friedman
nomeia o recurso mais adequado a essa lógica: a “máquina da liberdade”. SOBRINO, Jon. O Princípio
Misericórdia. Op. cit, p. 88. Jon Sobrino referindo-se aos pobres diz que eles “não são estimados, mas
desprezados. E o desprezo se consuma quando a ideologia se disfarça de religião para condená-los em
nome de Deus”.
198
71
possui também sua teologia implícita, a qual precisa ser desmascarada. Neste processo
os pobres automaticamente são vistos como estorvo e atrapalham o progresso.
2.2.3.2 - Mercado e idolatria
Numa situação de pobreza e, sobretudo, de extrema pobreza e exclusão total
manifesta visivelmente o pecado estrutural de uma sociedade, como expressão visível
da rejeição da vida e de Deus. “A pobreza não só torna visível o pecado social, mas
também a raiz desse pecado que é a idolatria do mercado, tornando-se um sistema
opressor. A idolatria torna possível o pecado social: tanto a idolatria por perversão do
sentido de Deus, como a idolatria pela substituição de Deus por outros deuses199. Neste
caso, a opção que Deus faz é pela justiça e pela verdade, que se contrapõe à opressão e à
mentira, revestidas do sistema sacrifical presente na América Latina. Na idolatria,
os que causam o pecado social não conhecem nenhum limite: não sofrem nem
são atingidos quando se multiplica o pecado social, e o pior é que agem
quase sempre com boa intenção. Os grupos dominantes geram pobreza e
extrema miséria, excluem grandes maiorias da vida, oprimem, reprimem,
matam... e nada os atinge. O que explica esta multiplicação sem limites do
pecado social e sua aparente inocência ética é a idolatria. Quando o sujeito
dominante age (oprime, reprime e mata) em nome de Deus, por um lado
perverte profundamente o sentido de Deus, mas, por outro lado, essa
identificação perversa com Deus permite continuar oprimindo ilimitadamente
e com boa intenção. A idolatria apresenta, simultaneamente, portanto, uma
perversão teológica e uma perversão social200.
Por essa razão a idolatria é extremamente perigosa espiritual e socialmente, pois
perverte o sentido de Deus, multiplica o pecado social e tranqüiliza a consciência do
opressor. Este não se sente responsável. No pecado social a pobreza não só se torna
visível, como também torna visível a idolatria geradora da perversão desses sinais de
anti-vida. A idolatria é a manifestação do mistério iníquo que dá força e vida ao pecado
social. Enquanto isso, o pecado social visibiliza a idolatria.
2.2.3.3 - O ídolo e as vítimas
Para Benedito Ferraro “podemos afirmar, com toda clareza, que um sistema
econômico que exige o sacrifício de inocentes para poder funcionar não só é intolerável,
199
ELLACURÍA, Ignácio e RICHARD, Pablo. Pobreza/Pobres. In: SAMANES, Cassiano Floristán e
TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo.
Tradução de FERREIRA, Isabel Fontes Leal e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p.
619-635.
200
Ibidem.
72
mas idolátrico”201. Aceitar a necessidade de sacrifícios humanos é negar a vida com a
qual uma proposta de bio-ética latino americana deve questionar. No cerne da idolatria
está o mercado: o Dólar, o Euro, o Yene, o Real... O que conta é a lógica do mercado.
Ele é o determinante supremo que decide a vida ou a morte. Dele todos são submissos e
ele sabe muito bem disso.
O deus-capital “suga o sangue dos trabalhadores e trabalhadoras para se
imortalizar e, em nome do automatismo do mercado, devora seus próprios filhos e
filhas”202. Fazendo-se de vítima há sempre seus sacerdotes que lhe antropomorfizam,
dando-lhe características ora sentimentais ou racionais, e para se safar da
irresponsabilidade o irracionaliza.
Na América Latina, o processo de exclusão dos pobres é identificado com a
proposta do neoliberalismo econômico que se implantou aqui e acaba transformando o
pobre em perdedor.
Quem não tem condições de competir no mercado é simplesmente ignorado.
Quem perde no mercado total, perde tudo e já não pode mais sonhar com
direitos humanos. Os pobres tornam-se ‘sobrantes’, verdadeiro lixo que não
serve mais ao sistema. Peça descartável!203.
Para se manter o ídolo Capital necessita de vítimas. Ídolos e vítimas neste caso são
correlatos. Nesse ambiente social, além da fome, falta de atendimento à saúde,
educação, sistema penitenciário degradante, relação de poder assimétrica, as pessoas
estão expostas ainda a outras situações de extrema vulnerabilidade como pesquisas
diante de leis tolerantes e permissivas; preconceitos, ausência de liberdades e de direito
às minorias e outros.
2.2.3.4 - As vítimas e a lei
As vítimas contam com a misericórdia das leis para o controle de direitos e
deveres da pessoa. Aqui se entra no problema estrutural-social que, nem sequer, o pobre
sabe de seus direitos e não os reivindica. Quando os conhece são dificultados a ele, o
que gera desânimo na maioria das vezes. Também não há vontade para que eles o
saibam. Precisa-se ter claro que o modelo macro econômico-social é regido por tantas
201
FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 72.
Ibidem. “A tendência do sistema financeiro é assumir vida própria. Ele surgiu para auxiliar o
funcionamento do sistema produtivo e terminou por dominá-lo. É notável, também, sua capacidade de
criar sacerdotes que estabelecem a religiosa "ideologia dominante", ou seja a crença na inutilidade e
prejudicialidade de qualquer tentativa de controle dos ‘mercados’”. NETO, Antônio Delfim. O sistema
financeiro e os seus sacerdotes. http://www.unisinos.br/ihu/; acessado em 29/1/2008.
203
Ibidem p. 73.
202
73
leis ofuscando uma compreensão nítida sobre elas. Sabe-se, porém, que são leis que
tendem favorecer ao acúmulo, gerando com isso supra-poderes à custa de muita
submissão. As leis são ditadas legalmente ou através de preceitos oficiosos
determinantes para o funcionamento repressor da maioria. Antônio Moser diz que “no
contexto da América Latina as leis não são feitas nem com a participação do povo, nem
em favor dele. São feitas pelos que detém o poder econômico e em favor deles”204.
Para atingir seus objetivos o mercado possui leis próprias, assegurando-lhe assim a
fidelidade de seus devedores. Agir pelo princípio misericórdia torna-se temeroso
porque traz uma reação contra essas leis formuladas pelos verdugos. Encontramo-nos
diante do enfrentamento com o poder do mal. A perseguição é vista como um embate
entre os deuses terrenos, defensores dos ídolos da morte com o Deus da vida. Os
perseguidores tentam impedir que as vítimas falem, quando não eliminadas fria e
cruelmente. Até o martírio da fome incomoda, e haja vista, que são queimados,
dilapidados e mortos à noite nas grandes cidades onde eles se concentram.
A lei hostil que garante o funcionamento do sistema também se defende na voz de
seus tuteladores e seus “sacerdotes”. Para justificar a continuidade de sua opressão
apresenta casos de “rebeldes”, não admitindo que a violência anterior é a falta de
condições dignas de vida. Assim o sistema, garantido pela lei, vitima alguns “bodes
expiatórios”, em sua grande maioria de pessoas pobres. Defendê-los é ser mal visto pelo
próprio sistema, geralmente desencorajando quem o faz. Defender a causa dos pobres é
também aceitar tornar-se vítima. Esta é a causa dos mártires na América Latina. “A
vítima nos mostram qual é o conteúdo fundamental mínimo da utopia: a vida digna e
justa em fraternidade”205. Todos os mártires foram humanos, misericordiosos, verazes,
justos, amorosos e crentes e por isso nos deixaram humanidade, misericórdia, verdade,
justiça, amor e fé.
No dizer de Vera Bombonatto “a causa do martírio não é o odium fidei, pois os
que matam são também cristãos, mas o odium justitiae, no qual, na visão do nosso
autor, está implícito o odium fidei”206. Para Sobrino a realidade perversa de morte dos
mártires na América Latina ilumina a morte de Jesus e a morte de Jesus ilumina a morte
dos mártires. Por este contexto sabemos, sem escamoteamento nem mentiras, a causa ou
204
MOSER, Antônio. O Pecado Social em chave Latino-Americana. In: ANJOS, Márcio Fabri dos.
Temas Latino-Americanos de Ética. Aparecida-SP: Santuário, 1988, p. 76.
205
SOBRINO, Jon. A eterna tentação de negar a realidade. http://www.adistaonline.it/index.php;
acessado em 26-02-2007.
206
BOMBONATTO, Vera Ivanise. Seguimento de Jesus. Uma abordagem segundo a cristologia de Jon
Sobrino. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 441.
74
a razão da morte de Jesus. Semelhantemente, a cruz de Jesus remete às cruzes
existentes, mas estas, também, remetem à de Jesus..., teologicamente, expressam em si
mesmas a irrecusável pergunta sobre o mistério do para quê morre Jesus207. Daí se
compreende bem a expressão “povos crucificados” para designar a “grande massa”
sobrante dos países periféricos, que são por sua vez, também sobrantes. A vida dos
“povos crucificados”, no terceiro mundo, é, hoje, o grande lugar teológico para
compreender a cruz de Jesus. Ao falar da “morte-assassínio dos mártires e morteassassínio de Jesus, queremos apontar para causas históricas e políticas desta morte.
Não há dúvida que se olhando a morte de Jesus a partir dos movimentos populares do
seu tempo, tal morte significou claramente a eliminação de um líder”208.
Os mártires são aqueles que fazem opção de viver no mundo mais real possível, o
mundo da pobreza e da injustiça. Vivem com os últimos e como os últimos. Vivem
assim também porque são quantitativamente pobres, mas qualitativamente vive uma
profunda dimensão metafísica. A primeira lição que nos deixam é que são tão reais e
humanos que não suportam a inumanidade. Em linguagem cristã, eles encarnaram e
encarnam como Jesus, na realidade do mundo para humanizá-lo.
Em devidas proporções percebe-se que os mártires da América Latina são
perseguidos por causa de seu compromisso com a causa dos pobres, dos
marginalizados, excluídos. Assumem a bandeira dos movimentos sociais e populares:
terra, dignidade para os pobres, direito à vida, direito ao trabalho, defesa da ecologia,
direito à moradia e lutam por sua prática, deslegitimam os interesses dos detentores do
poder e do capital. Estes também reagem e os eliminam. Como Jesus, os mártires não
buscam a morte. Ao contrário, são vítimas da ação dos sacerdotes do sistema:
tanto a morte de Jesus como a morte dos mártires e, analogamente, a morte
dos pobres, são consideradas como exigência da lei do sistema sacrifical. Os
que matam são apenas instrumentos da vontade divina, que legitima a
continuidade do sistema, que elimina os que se opõem ao sacrifício. Neste
sentido, é importante lembrar que tanto Jesus como os mártires são
eliminados por não aceitarem a lógica sacrifical do sistema de morte, que por
exigência da lei cobra as dívidas dos pobres (no caso da Palestina os impostos
ao Estado romano e ao templo; na América Latina, a dívida externa) e os
condena à morte209.
O martírio de Jesus e dos mártires, bem como a morte-exclusão dos pobres,
indicam a destrutividade do sistema sacrifical que, para se manter, continua exigindo
207
SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996, p. 63.
FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 62.
209
Ibidem; p. 65.
208
75
sacrifícios humanos. O mysterium iniquitatis é desvelado ao proclamar o mysterium
salutis210. Ao apontar a origem da pobreza cruel e injusta na América Latina, fica
evidente que a perversidade deste “fato maior” é também interpelada por uma ética e
um sentido da vida, que exige para além da justiça, a ser realizada pessoal e
coletivamente, uma ação de amor estruturante. O princípio misericórdia conta com a
colaboração das leis, mas está também para além delas. A caridade-reativa é
espontânea. Reclama além do dever legal, a força de vontade. Ninguém obriga a cuidar
ou a assumir a dor e o sofrimento alheio, a não ser um princípio moral que reclama pela
vida e vida em plenitude.
2.3 - O Princípio Misericórdia: uma experiência fundante
O descobrimento dessa verdade perversa de injustiça mostra consequentemente a
necessidade de uma re-ação. Essa re-ação é a experiência fundante que Sobrino propõe
como princípio e fundamento, a partir do qual se reflete a responsabilidade com o outro
que clama por uma ação de amor estruturante. Do princípio misericórdia deriva essa
percepção de sobrevivência que clama por solidariedade em meio aos feridos pela
violência primordial que gera fome, nudez, tráfico, desestrutura familiar, desânimos e
assim por diante.
Dessa experiência básica da misericórdia, como princípio, dependem as atitudes,
individuais e coletivas, que se realizam em favor das pessoas excluídas, miseráveis ou
os mais dependentes. Neste caso, o princípio misericórdia mostra-se como o “primeiro
motor movente” que impulsiona reagir diante de tanto sofrimento. Sobrino
insistentemente diz que não se trata de uma comoção sentimentalista, de compaixão
passiva, mas de uma experiência lúcida movida como princípio. Desse modo,
misericórdia é o “primeiro e o último”; não é simplesmente o exercício categorial das
chamadas obras de misericórdia.
Do lugar de sofrimento onde falta o básico para sobrevivência, poder-se-ia
perguntar qual sentido de vida encontra as pessoas que vivem tal experiência? Que
sentido ou motivação elas encontram para continuar vivendo? O que elas esperam?
Nessa situação de espantosa miséria Gustavo Gutierrez propõe pertinentes perguntas:
Como falar de Deus a partir da condição de pobreza e sofrimento? Como encontrar uma
linguagem sobre Deus a partir do sofrimento do inocente? Na América Latina, como
210
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 157.
76
anunciar o Reino de amor e de justiça a pessoas que vivem, sem explicação, numa
situação que os nega? Essa é também a pergunta que devemos fazer nesta terra de
penúrias e de esperanças, onde os pobres padecem uma situação desumana, claramente
imerecida211. E continua,
Nada pode justificar que um ser humano careça do necessário para viver com
dignidade e que seus direitos mais elementares não sejam respeitados. A dor e
a destruição que isto produz nas pessoas vai além do que possa parecer num
primeiro contato...212
A conclusão de A. Camus, apud Gutierrez, é que não há lugar para Deus num
mundo tomado pelo sofrimento do inocente213. “Só poderemos falar a partir de sua
esperança, se soubermos calar e comprometer-nos com o sofrimento dos pobres. Só
levando a sério a dor humana, o sofrimento do inocente, e vivendo sob a luz pascal o
mistério da cruz no meio dessa realidade”214.
O lugar de atuação aqui é o lugar do outro, da alteridade mais radical do
sofrimento alheio, sobretudo quando se trata daquela massa, cruel e injustamente ferida.
Os sofrimentos humanos sejam quais forem as suas causas – sociais ou pessoais –
devem ser de suma importância para a multi-disciplinaridade do discurso científico
elaborado na América Latina, tanto da teologia, da bioética, da psicologia, da
sociologia, da medicina e todas as ciências, que não podem ignorar sem mais essa
realidade. Quando políticas públicas do governo, igrejas, forças militares, empresas,
ciências, ONGs, etc. saem de si mesmas para ir ao caminho onde encontram os feridos,
então elas se descentralizam, “vivem” o martírio e se assemelham à ultimidade humana,
para os cristãos encontrado em Jesus de Nazaré, perito em humanidade, com seu
testemunho fundante, capaz de acolher o ferido à beira do caminho, curar suas feridas
sem que isso lhe traga ônus algum.
Nisso constitui o que Sobrino caracteriza como misericórdia: a capacidade de sair
de si para socorrer o ferido des-conhecido. A misericórdia constitui não só “a única
coisa que Jesus exercita, mas é o que está em sua origem e o que configura toda a sua
vida, sua missão e seu destino. Assim também o princípio misericórdia deve atuar na
211
GUTIERREZ, Gustavo. Falar de Deus a partir do sofrimento do inocente. Petrópolis-RJ: Vozes,
1987, p. 41-42, 163-164.
212
Ibidem p. 42. Escreve Metz, apud Gutierrez: para experimentar e compreender o que significa ser
cristão é de todo necessário levar em consideração cada situação histórica concreta. A situação concreta,
sem cujo reconhecimento a teologia não sabe de que fala, tem, entre nós, um nome: “depois de
Auschwitz”. O autor chama a atenção para a responsabilidade histórica dos cristãos no fato de Auschwitz.
Essa responsabilidade tampouco está ausente na situação de que se vive na América Latina. Ibidem p.
163.
213
Ibidem p. 42.
214
Ibidem p. 166.
77
Igreja de Jesus”215. É importante frisar que tanto a Igreja como as outras instituições
cristãs ou não, radicadas na América Latina, se não estiverem impregnadas da
misericórdia da parábola, numa atitude de descentramento e alteridade, sua voz torna-se
irrelevante e seu serviço, um desserviço, a favor unicamente do lucro individual e
narcisista que mata e gera o vazio de humanidade que em última circunstância é o que
dá sentido.
Dizia Sobrino que a re-ação misericordiosa é o critério para saber em que medida
a Igreja, e podemos dizer em nosso estudo, em que medida qualquer instituição radicada
em meio à pobreza e qualquer ciência se descentrou. Quanto maior a ferida, maior deve
ser o comprometimento, maior presença, maior re-ação da igreja local, dos sindicatos,
dos governos, da universidade, dos militares, dos partidos e toda a sociedade. A ferida
requer a co-responsabilidade de todos para sua cura.
A la Iglesia, como a toda institución, le cuesta re-accionar con misericordia, y
le cuesta mucho más mantener ésta... En este mundo se aplauden o se toleran
“obras de misericórdia”, pero no se tolera a una Iglesia configurada por el
“principio-misericordia”, el cual la lleve a denunciar a los salteadores que
producen víctimas, a desenmascarar la mentira con que cubren la opresión y a
animar a las víctimas a liberarse de ellos. En otras palabras: los salteadores
del mundo anti-misericordioso toleran que se curen heridas, pero no que se
sane de verdad al herido ni que se luche para que éste no vuelva a caer en sus
manos 216.
Esta ação na concepção de Sobrino constitui “uma re-ação diante do sofrimento
alheio interiorizado, que chegou até as entranhas e ao próprio coração; e que esta ação é
motivada só por este sofrimento”217. Neste sentido, portanto, o sofrimento alheio
interiorizado é tido como a reação misericordiosa.
Esse comportamento de “misereor super turbas, comportamento de grande
compaixão perturbadora, não é só uma atitude ‘regional’ de Jesus, mas é o que está na
sua origem e o que configura toda a sua vida. É também o que configura sua visão de
Deus e do ser humano”218.
Cuando Jesús quire hacer ver lo que es un ser humano cabal, cuenta la
parábola del buen samaritano. Es un momento solemne en los evangelios que
va más allá de la curiosidad por saber cuál es el mayor de los mandamientos.
Se trata, en dicha parábola, de decirnos en una palabra lo que es el ser
humano. Pues bien, ese ser humano cabal es aquel que vio a un herido en el
camino, re-accionó y le ayudó todo lo que pudo... Lo único que se nos dice es
215
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 37.
SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador:
Sal Terrae, 1992, p. 42. A misericórdia que se trata aqui é muito mais do que puro sentimento subjetivo
ou puro ativismo. É o princípio que configura em dar a vida àquele/a que está ameaçada.
217
Ibidem p. 33.
218
Ibidem p. 34.
216
78
que lo hizo “movido a misericórdia”... El ser humano cabal es, pues, el que
interioriza en sus entrañas el sufrimiento ajeno – en el caso de la parábola, el
sufrimiento injustamente infligido – de tal modo que ese sufrimiento
interiorizado se hace parte de él y se convierte en principio interno, primero y
último, de su actuación. La misericordia – como re-acción – se torna la acción
fundamental del hombre cabal... Quien vive según el “principio-misericordia”
realiza lo más hondo del ser humano, se hace afín a Jesús – el “homo verus”
del dogma – y al Padre celestial219.
Ora, viver realmente a América Latina é encontrar-se com esse ferido no caminho,
não somente com um indivíduo, mas com uma multidão de povos crucificados: negros,
índios, mulheres, crianças, homossexuais, desempregados, catadores de papel, pobres e
minorias em geral. “Aqui os pobres são, antes de tudo, pobres no plural, não pobres
somente individuais, mas uma realidade coletiva e massiva”220. A evidência desses
crucificados se torna relevante ao relacioná-los com a cruz de um Deus crucificado. É
nesse encontro que está o critério de humanidade, ou seja, a tomada de decisão: ou
passa adiante ou cura as feridas, numa atitude de suscitar-lhes a dignidade.
As feridas são perceptíveis na informalidade que vive milhões de habitantes na
América Latina, à beira do caos e morrendo de fome. Resistem silenciosamente nesse
contexto, oprimidos pelas forças armadas e estruturas de morte que os sufocam para
manter a economia.
É decisivo saber por que se decide curar o ferido. A resposta mais satisfatória e
fundamental é dizer que o sofrimento internalizou àquele que cuida, que deu condição
para reagir. Nisso o exemplo mais cabal está na vida do mártir que tomado de
compaixão e misericórdia reage com amor eficaz à situação do povo crucificado, numa
atitude de ultimidade primeira e ultimidade última. O mártir trabalha em prol do povo
crucificado porque seu intuito é fazê-lo descer da cruz.
Fazer o povo descer da cruz é o sentido profundo do princípio misericórdia. Não
se faz, no entanto, com uma misericórdia no sentido favor, de doação ou caridade
passiva, mas uma caridade-reativa de quem age com intuito de fazer justiça e promover
o direito de quem foi lesado. Neste sentido, a misericórdia como princípio, é também
utópica: “Ele promoverá fielmente o direito; não desanimará, nem se abaterá, até
implantar o direito na terra”221.
Sobrino diz que “a misericórdia foi para nossos mártires mais que um sentimento
ou a disposição de aliviar sofrimentos. Foi um princípio que guiou toda a sua vida e
219
SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador:
Sal Terrae, 1992, p. 34 e 37.
220
SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996, p. 366.
221
Is, 42,1-6.
79
todo o seu trabalho. Foi a misericórdia que esteve na origem e o que permaneceu
durante todo o processo”222. Viver a misericórdia na América Latina é querer conhecer a
realidade, analisar e descobrir aí a verdade profunda da mentira que persuade para
matar. A verdade que os mártires desvendam é sua paixão, não em último termo de um
puro desejo de fazer avançar o conhecimento de si mesmo, mas antes de tudo, do desejo
de defender os pobres, os quais têm a verdade a seu favor, e às vezes é a única coisa que
têm a seu favor223. Sua capacidade de analisar a verdade provém certamente de sua
própria inteligência, mas sua paixão pela verdade tem raízes na misericórdia.
Com isso Sobrino ressalta que “O sofrimento precede ao pensamento”224.
Conhecer o sofrimento a partir da dor significa mais do que conhecer.
O sofrimento externo, por sua própria natureza, não é algo a ser constatado e
registrado na consciência, analisado, inclusive explicado, mas algo diante do
que é preciso tomar posição... O conhecimento a partir da dor é sempre
conhecimento comprometido, de diversas formas, por ação ou por omissão,
mas completamente comprometido225.
O ferido que o mártir latino-americano encontra à sua frente é um povo
crucificado. Diante dele historizam a misericórdia como estrutura de libertação. Não
reduz a misericórdia a sentimento benevolente e ajudas ocasionais. O mártir sabe que o
povo crucificado precisa de mais libertação. Por isso historizam a justiça, que é a forma
mais concreta para se pensar no princípio misericórdia, como sinal do amor maior
frente às injustiças.
Referindo-se a Inácio Ellacuría, Sobrino diz que “os mártires na América Latina,
durante o tempo da ditadura militar, nas décadas de sessenta, setenta e oitenta, não só
quiseram curar as feridas das vítimas, mas também erradicar suas causas e propor
melhores soluções”226. Por isso propiciaram às universidades não somente uma teologia
da libertação, mas uma engenharia, uma psicologia, uma economia e agora uma bioética
da libertação. Sua visão estrutural da realidade se passa pela investigação de suas
causas, caminhos e soluções, guiada pelo paradigma da misericórdia, tendo como meta
a libertação do pobre e a superação da pobreza.
A esperança do mártir é a esperança de Jesus. O que o martírio acrescenta às suas
vidas é a credibilidade e um grande grito de que é isso que humaniza, de que isso se
trata de ser humano. Para ser humano, precisa-se re-agir por uma estrutura mais digna
222
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 255.
Ibidem p. 257.
224
SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996, p. 361.
225
Ibidem.
226
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 258.
223
80
de vida. Nesta re-ação, paradoxalmente, vem a morte no intuito de gestar a vida. Assim,
dizia, incansavelmente, o mártir padre francês Gabriel Félix Roger Maire, assassinado
em Cariacica, no Estado do Espírito Santo ao lutar em favor dos direitos humanos:
“prefiro morrer pela vida do que viver pela morte”227.
A esperança de Jesus é a esperança dos pobres que não têm esperança, e para os
quais anuncia o Reino. Sua práxis é a favor dos pequenos e oprimidos: curas, acolhida
dos pecadores, expulsão dos espíritos impuros e tantos outros sinais. Sua “teoria social”
ou “projeto social” é guiado pelo princípio da necessidade de erradicar o sofrimento em
massa e injusto. Sua alegria se dá ao ser entendido pelos pequenos, e sua celebração é
sentar-se com os marginalizados.
2.3.1 - Análise semântica do termo misericórdia
O conceito misericórdia tem relevância de fundamento neste estudo que,
conjugado com o termo princípio, forma a base substancial para a compreensão da
teologia sobriniana. Desse modo, o termo participa da discussão ético-teológica num
lugar de centralidade, e sem o qual ficaria uma lacuna ao refletir a realidade entre os
povos vulnerados.
O termo já se encontra nas antigas civilizações como egípcia, hebraica, chinesa e
hindu. Seu sentido não parece sofrer muita alteração de uma cultura para outra, a não
ser em intensidade e precisão. Na cultura hebraica o termo “hesed” designa a atitude de
compaixão e misericórdia divina como a bondade ou amor de Deus demonstrado para
com os que se acham na miséria ou na desgraça. Expressa uma atitude fundamental na
religião e na moral hebraicas. Necessita, porém, cuidado por não haver uma coerência
perfeita, podendo estar associado a outros termos como “emet”, que significa fé,
firmeza, resolução; “mishpat”, que significa justiça; “yeshua” que significa salvação e
tantos outros228. Hesed foi traduzido para o grego “eleos”, com o mesmo sentido
hebraico, podendo traduzir também em outros casos por justiça, “dikaiosúne”229.
Na língua latina230 o termo misericórdia pode ser entendido como derivado do
verbo “misereor” (no infinitivo “misereri”) – compadecer-se, lastimar, internecer, ter
227
CAVALCANTI, Tereza M. P. Por onde andam as comunidades eclesiais de base? Revista das
Comunidades Eclesiais de Base. Brasília: Ed. Universa, nº 07, dezembro de 2004, p. 28-47.
228
MACKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1983.
229
GINGRICH, F. W. e DANKER, F. W. Léxico do N.T. grego/português. Tradução de ZABATIERO, J.
P. T. São Paulo: Vida Nova, 1993.
230
CABRALII, Emmanuelis Pinii et RAMALII, Joseph Antonii. Magnum Lexicon Latinum Novissimum
et Lusitanum. Parisiis: s/editora, 1873.
81
dó; e do substantivo “cor”, (“cordia” no plural), que significa “coração”. Significaria
deste modo ter um coração compadecido ou um coração doído diante da desgraça ou da
infelicidade deplorável do outro. O seu sentido é de ter com-paixão, de sentir com,
padecer com, de chegar à situação do outro sem compactuar com o estado dele. Um
sentido preciso a esta palavra foi dado por Sobrino para expressar a atitude básica de
Jesus ao ver uma grande multidão desorientada como ovelhas sem pastor: “misereor
super turbas”, ou seja, “tenho dó da multidão”231.
O termo misericórdia quer expressar esse sentimento de ultimidade básica: “Um
samaritano, que estava viajando, chegou perto dele, viu, e teve compaixão”232. A
solidariedade efetivada pelo samaritano não deve ser confundida com assistencialismo;
aliás, dizia Sobrino que abarca esta e vai além. Trata-se da “razão que move” o
samaritano a erguer o caído, da sua compreensão acerca do humano e da dignidade
humana em estado deplorável por causa da violência. O samaritano entende o ser
humano como alguém de direito e esse direito deve ser retomado, que é o direito
fundamental: a vida. Portanto, sua solidariedade aponta para a prática da justiça.
Com o termo “princípio,” aliado ao termo “misericórdia”, Sobrino quer evitar as
limitações do conceito misericórdia e os mal-entendidos a que se presta. Não é
simplesmente o exercício das obras de misericórdia, mas uma atitude fundamental ante
o sofrimento em virtude de uma re-ação para erradicá-lo. Não existe nada anterior à essa
misericórdia, nem existe nada para relativizá-la ou substituí-la. No princípio
misericórdia está a re-ação que se converte em princípio interno e originário. Não há
percepção nenhuma anterior a essa experiência. O seu sentido preciso revela um
exercício primeiro e último de atuação. A misericórdia pode ser até acompanhada de
sentimentos, mas é mais que sentimento. A ultimidade da misericórdia supõe a
disponibilidade a ser chamado samaritano. A compaixão deve tomar forma de ajuda,
justiça, libertação, redenção. A compaixão é a reação primária e fundamental de Jesus à
repetida solicitação na boca dos pobres: “Senhor, tenha compaixão de mim”233.
Concentramo-nos aqui sobre a compaixão como ponto central da mística cristã. A
compaixão assume fisionomia do amor. O que dá coerência última à vida de Jesus é sua
fidelidade, sua esperança, seu serviço. Nenhuma destas realidades excluem as outras,
231
Mc 6, 34.
Lc 10, 33.
233
Mc 10, 48.
232
82
mas são todas complementares entre si. A proposta do princípio mais estruturante na
vida de Jesus é a misericórdia.
El término “misericordia” hay que entenderlo bien, porque puede connotar
cosas verdaderas y buenas, pero también cosas insuficientes y hasta
peligrosas: sentimiento de compasión (con el peligro de que no vaya
acompañado de uma praxis), “obras de misericordia” (con el peligro de que
no se analicen las causas del sufrimiento), alivio de necesidades individuales
(con el peligro de abandonar la transformación de las estructuras), actitudes
paternales (con el peligro del paternalismo)...234.
Na concepção de Sobrino, na América Latina pode-se redescobrir a reação
fundamental perante um mundo de vítimas como exercício conseqüente da misericórdia,
de um amor estruturante, tal como aparece na parábola do bom samaritano com a qual
Jesus descreve o homem cabal. O que precisa ser acentuado é que aqui não se trata de
“obras de misericórdia” e sim de uma atitude fundamental de reação perante as vítimas
deste mundo. Esta atitude consiste em dizer que o sofrimento alheio internalizou em
alguém, e esse sofrimento interiorizado leva a uma re-ação.
A reação de libertar do sofrimento assegura uma radicalidade e uma
definitividade teologal à compaixão, que parafraseando a afirmação de santo Irineu:
“Gloria Dei vivens homo”, quatro dias antes de seu assassinato Oscar Romero a
formulou do seguinte modo: “Gloria Dei, vivens pauper”235. O interesse é que o pobre
viva, fazendo-lhe justiça, dando-lhe dignidade e lhe devolvendo a vida. Este princípio
no dizer de Sobrino nos aponta algumas coisas importantes:
•
La primera es que hay que historizar la misericordia según sea el herido
en el camino. En nuestro mundo sabemos muy bien que no sólo hay
individuos heridos, sino pueblos enteros crucificados. Reaccionar con
misericordia significa, entonces, desvivirse por “bajarlos de la cruz”, en
palabras de Ignacio Ellacuría. En palabras sistemáticas, significa trabajar por
la justicia, pues ése es el nombre del amor hacia las mayorías injustamente
oprimidas;
•
La segunda es que una misericordia que se torna en justicia es
automáticamente perseguida por los poderosos;
•
La tercera es que hay que anteponer la misericordia a cualquier cosa, lo
cual, por decirlo irónicamente, no es nada fácil para ninguna institución civil,
religiosa y eclesial;
•
La cuarta es que el ejercicio de la misericordia da la medida de la
libertad, tan proclamada como ideal del ser humano en el mundo occidental.
Por ser misericordioso, no por ser un liberal, Jesús transgredió las leyes de su
234
SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador:
Sal Terrae, 1992, p. 32.
235
ROMERO, Oscar Arnulfo. Homilia 16 de março de 1980. Cf. também SOBRINO, Jon. Epílogo. In
VIGIL, José Maria (Org.). Descer da cruz os pobres: cristologia da libertação. São Paulo: Paulinas, 2007,
p. 348. Ou ainda SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópicoproféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 99.
83
tiempo e curó en sábado. Jesús comprendió la libertad desde la misericordia,
y no a la inversa236.
A misericórdia, como princípio, não é ascética. Vê o ferido e reage ao seu
sofrimento. Mas, uma pergunta fundamental do princípio misericórdia é, na
compreensão sobriniana, saber por que se decide curar o ferido. O que o samaritano viu
no caído, sendo que o enfermo não era de sua comunidade religiosa, do seu grupo e
aparentemente nada o obrigaria a cuidar dele? A resposta mais satisfatória deve ser que
o sofrimento internalizou àquele que cuida e lhe deu condições de reagir. Tudo induz a
pensar que a solidariedade primária movida pelo samaritano não advém da obrigação,
mas, pura e simplesmente porque, reduzido a nada, aquele desconhecido “sem
qualidades” estava entregue à própria sorte, à compaixão humana. Ele cuidou dele
exatamente a título de uma humanidade desfigurada, abandonada em sua mão, tendo
perdido toda forma humana. As feridas despertaram no peregrino o respeito diante de
uma humanidade desfigurada, fraca e degradada diante da qual ele mesmo se viu.
Nesta concepção a misericórdia assume nitidamente uma dimensão profética;
ganha credibilidade e tonalidade universal. Aquele que socorre o caído à beira do
caminho pode ser grego, judeu, samaritano, negro, índio, pobre, mulato... enfim, àquele
que precisa ser ajudado. Para Jesus, próximo não é aquele que eu encontro
simplesmente no caminho (10,27), mas aquele em cujo caminho se coloca, a fim de
concretizar o amor e a misericórdia.
O samaritano optou por tornar-se próximo, porque foi movido pelo amor
operativo. Fechados em suas concepções morais o sacerdote e o levita não conseguem
viver uma alteridade mais profunda, e reconhecer a humanidade no humano e o amor
horizontável. Na liberdade para a ação o samaritano traz à tona a concepção que quanto
mais se é solidário, mais se torna livre e digno. A parábola revela que, primeiramente, é
o samaritano que dá prova de sua dignidade, pois as feridas despertaram nele o respeito
que se tem pelo limite da existência e da humanidade.
2.3.2 - Aspectos da fundamentação teológica do princípio misericórdia
O princípio misericórdia é uma abordagem originada dentro da Teologia da
Libertação, hoje com seu estatuto epistemológico próprio, que sistematizou com
bastante precisão acerca da realidade latino americana, e possibilita estar fazendo a
236
SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador:
Sal Terrae, 1992, p. 26-27.
84
ponte, estudando de comum interesse com a Bioética, o mesmo objeto. Nesse ambiente
a colaboração da bioética, da teologia e outras devem mostrar o interesse pela imperiosa
e urgente necessidade de fazer um povo crucificado despertar e reagir.
A epistemologia de aprofundamento se dá aqui a partir do pobre237 e seu
sofrimento. A vítima, o pobre, torna-se, em ambiente de pobreza, o critério de verdade
de qualquer teoria238. Esta convicção parte do lugar da vítima como lugar de
inteligibilidade da totalidade. É sempre a partir dos últimos, dos pobres, das vítimas,
que se pode ter uma visão da totalidade. É a partir da vítima que se nota a ausência de
vida, de pão, de liberdade, de Deus. A experiência da exclusão é a chave de
compreensão da totalidade. Brota daí uma fé no Deus dos feridos no caminho, no Deus
das vítimas. Sua liturgia torna-se a vida dos sem-vida; e sua celebração, a ressurreição
de um crucificado; “sua teologia será intellectus misericordiae - justitiae,
liberationis”239.
Conforme Ignácio Ellacuría e Pablo Richard “A primeira e fundamental reflexão
teológica sobre a pobreza é a verdade da pobreza”240. A partir dela se conhece o
conteúdo na sua extensão e profundidade: “a pobreza, a extrema pobreza, a opressão, as
vítimas, a exclusão, com suas seqüelas de violência e desagregação. Conhece também o
que poderíamos chamar de mistério da pobreza”241.
O lugar da vítima é o lugar da verdade, pois revela a maldade do mundo. Dizia
Benedito Ferraro que “a lógica parte dos últimos: quando o último da sociedade é
respeitado, todos nesta sociedade o serão. Neste sentido é que os elementos e as
projeções do projeto dos pobres dão razão de que, a partir dos pobres, pode-se construir
um projeto para todos”242. Entende-se, a partir disso, que “o projeto do pobre é
universal, pois não é excludente. O projeto dos ricos é particularizado e, portanto,
excludente. No projeto dos pobres há lugar para todos. No projeto dos ricos não há lugar
237
Tomamos aqui “pobres” na sua relação com a injustiça como expressão globalizante da opressão que
nega a vida às miorias: mulheres, índios, negros, crianças... Com Gustavo Gutierrez, poderíamos falar do
mundo do pobre: ‘Povos dominados, classes sociais exploradas, raças desprezadas e culturas
marginalizadas.
238
FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 26.
“Uma teoria é cientificamente válida, se suas realizações não produzirem vítimas em sua atuação na
história. A vítima deve ser o critério de verdade de qualquer teoria”.
239
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 44.
240
ELLACURÍA, Ignácio e RICHARD, Pablo. Pobreza/Pobres. In: SAMANES, Cassiano Floristán e
TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. São
Paulo: Paulus, 1999, p. 619-635.
241
Ibidem. Quando submergimos no mundo da pobreza, suburbana ou rural, nem tudo é explicável ou
descritível. Encontramos a cultura da pobreza; os valores vividos pelos pobres: capacidade de resistência,
de solidariedade, de esperança e de celebração.
242
FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 19.
85
para os pobres”243. Na mesa dos ricos os pobres ficam de fora ou, no máximo, com as
migalhas244.
Jon Sobrino diz que nos pobres está a salvação: “Captar a salvação que o povo
crucificado traz não é só nem principalmente coisa de especulação ou de interpretação
de textos. Trata-se de captar a realidade”245. Parafraseando um antigo axioma católico
“extra ecclesiam nulla salus” e o axioma de E. Schillebeeckx “extra mundum nulla
salus”, Sobrino propõe que “extra pauperes nulla salus” – fora dos pobres não há
salvação246. Neste sentido a vida do pobre se torna o critério fundamental, pois quando
o último estiver bem, vivendo com dignidade, todos estarão. O pobre é o critério de
salvação. O livro de Isaías consta esta realidade profética dizendo que Deus estabelecerá
o servo como “luz das nações”247. “Aprisionar essa verdade com a injustiça é a
pecaminosidade fundante”248.
A perspectiva teológica latino americana recorda essa centralidade na negatividade
da existência humana, quando “essa negatividade é apresentada sob diversas formas:
pecado, culpa, condenação eterna, morte, enfermidade, escravidão, falta de sentido,
pobreza, injustiça, etc”249, em confronto com a mensagem positiva de “salvação,
redenção, libertação, boa notícia, reino de Deus, etc. como fatores essenciais para
determinar que Deus salva”250. A análise dessa negatividade torna-se fundamental no
discurso da teologia latino-americana para que sua mensagem positiva tenha sentido.
A negatividade parte do “fato empírico” de conteúdo, material, da corporalidade,
da negatividade da produção e reprodução da vida do sujeito humano. Mas aprende-se
que o sistema estabelecido ou o projeto de “vida boa”, vivida pelos poderosos, é a
negação ou a má vida para os pobres. A verdade do sistema é agora negada a partir da
impossibilidade de viver das vítimas. É neste sentido que Enrique Dussel diz poder
vislumbrar a especificidade de um princípio ético-crítico da libertação, como critério de
mediação para discernir o que não permite a vítima viver, negando-lhe ao mesmo tempo
sua dignidade de sujeito e excluindo-a do discurso251.
243
Ibidem.
Lc 16, 19-31.
245
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 90.
246
SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid:
Editorial Trotta, 2007, p. 98-105.
247
Is, 42,6.
248
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 91.
249
Ibidem p. 51.
250
Ibidem.
251
DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 376.
244
86
Essa negatividade fundamental, na qual a filosofia da libertação, a teologia da
libertação, ou uma bioética de intervenção se detêm se junta à percepção do como
outras ciências concebem essa realidade de pobreza, num confronto do seu objeto de
estudo com essas negatividades. Assim, a psicologia, a sociologia, a biologia, a
medicina, etc. se juntam num esforço de esclarecê-las e apresentá-las em sua relação
mútua. Uma coisa se apresenta como óbvio: neste lugar se dá um sofrimento massivo,
cruel, injusto e duradouro que é produzido e não natural.
E é deste lugar social, marcado pelo grito silencioso das massas, as vítimas deste
mundo, que o teólogo Inácio Ellacuría, apud Ferraro, chamava de “povos
crucificados”252, que se faz urgente a experiência da libertação diante da opressão, do
sofrimento, da perseguição e morte a que estão submetidos em suas vidas cotidianas253.
Nesse ambiente, próprio de um espírito capitalista excludente, os pobres são massas
sobrantes que clama por uma ação de amor estruturante. Trata-se do “amor práxico que
surge perante o sofrimento alheio injustamente infligido para erradicá-lo”.254.
O princípio misericórdia da experiência de Jesus é também àquele que socorre
fazendo gerar uma atitude de esperança diante de uma vida reduzida à miséria. É uma
compaixão que brota das profundezas das entranhas de Jesus que se converte em critério
de ação e mediação da vontade de Deus, pois Jesus age segundo os ditames dessa
compaixão.
Se a realidade do pobre e as situações que o leva à pobreza assumem o centro da
reflexão, juntamente com ela deve assumir a capacidade re-ativa, a misericórdia
sobriniana, numa tentativa de inversão. Desse modo, o pobre não se torna o referencial e
o centro convergente sem perspectivas, mas uma responsabilidade que deve
comprometer a razão de ser, a espiritualidade da bioética latino americana de proteção,
intervenção ou libertação. Distanciar-se dessa realidade – o pobre – é afastar do
principal objeto de estudo, no qual constitui o laboratório de reflexão e pesquisa que
tende levar a interpelações. A teologia, a bioética, a biologia, a psicologia, a economia,
252
FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 23.
“Entende-se aqui por povo crucificado aquela coletividade que, sendo a maioria da humanidade, deve sua
situação de crucificação a uma ordem social promovida e sustentada por uma minoria que exerce seu
domínio em função de um conjunto de fatores que, como conjunto e dada sua concreta afetividade
histórica, devem ser considerados como pecado”.
253
Ibidem p. 99. O sistema não tem interesse nesta população supérflua e, por isso, não investe nela para
a satisfação de suas necessidades básicas: trabalho, saúde, habitação, educação, etc. Começa um processo
de empobrecimento cujo limite é a morte. O deterioramento é total: econômico, social, cultural, corporal,
humano, familiar, religioso, ético... O sistema considera como lixo, como ratos, como algo que é preciso
eliminar.
254
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 35.
87
a sociologia... realizadas no continente devem levar em conta, em sua racionalidade,
este “fato maior” como categoria de investigação e estudo. Trata-se da irrupção dos
pobres, dos povos oprimidos, marginalizados e crucificados.
A opção pelos pobres255, expressão cunhada em Medellín e aprofundada em
Puebla, é cara à espiritualidade da libertação. É uma clara dimensão teologal que se
articula com o clamor dos oprimidos. Escutar os pobres é escutar Deus, negá-lo é negar
a Deus256. O clamor dos pobres é expressão de um não-dever-ser, que denuncia uma
situação injusta, de anti-vida e contra a morte.
Na multidão pobre há um grito silencioso de desespero que clama por justiça para
se manterem vivos. A urgência em dizer que esse povo vive na América Latina leva
Sobrino a equiparar a vida do povo crucificado com a crucificação de Jesus e o servo
sofredor de Javé257. O que dizem os cantos do servo sofredor?
Antes de tudo que é homem de dores, padecente, acostumados ao sofrimento. Essa
é se verificarmos bem, a condição normal do povo crucificado: fome, enfermidade,
moradia precária, frustração por falta de educação, de saúde, de segurança, de
emprego... “Nele não havia figura nem beleza. Vimo-lo sem rosto atraente.”258.
Desfigurado que estava “muitos se espantaram com ele, porque, desfigurado, não
parecia homem nem tinha aspecto humano”259.
Realmente, o que o mundo pode aprender com eles ou receber deles? Como o
servo, também o povo é crucificado ao ser desprezado pelos homens. A teologia
fundamental na América Latina considera esse povo crucificado como os pobres de que
falam nos profetas, anaw, e em Jesus. É uma atualização de Cristo crucificado, o
verdadeiro servo de Javé. Hoje, os massacres das vítimas, a corrupção que sangra os
pobres são o novo Gólgota onde Jesus ou o servo morre cotidianamente.
Em linguagem atual esses pobres se definem como os despossuidos sócioeconomicamente e, ironicamente não se diz fome, mas insuficiência alimentar. Tenta-se
evitar a palavra pobre, substituindo-a por pessoas de baixa renda. Juntamente a essa
pobreza vivida materialmente, existe também a sociocultural e a opressão da
discriminação racial, étnica, religiosa, sexual... Mas pobreza socioeconômica é a que
255
DOCUMENTO de Aparecida. Texto Conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado LatinoAmericano e do Caribe. São Paulo: Paulinas/Paulus e Brasília: Ed. CNBB, 2007, p. 177-180.
256
Ex 3, 7-10; Mt 25, 40.
257
SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996, p. 368.
258
Is 53, 2.
259
Is 53,3.
88
mais evidencia a pobreza no mundo de hoje, agravada pela opressão proveniente das
diversas discriminações.
2.3.3 - A efetividade do princípio misericórdia
Ao fazer uma leitura aprofundada do princípio misericórdia nota-se que dentro
dele existem alguns passos a serem seguidos no intuito de curar ou salvar o ferido, ou
seja, de efetivar a misericórdia. Para efetivar a misericórdia ou restabelecer a dignidade
do ferido é necessário considerar o processo de re-ativação básica, desde a intuição
impactante causada ao ver o sofrimento, até a cicatrização dos ferimentos com atitudes
de organização e promoção da vida. Neste método há que se “mostrar a estrutura da
reativação básica perante o mundo sofredor, sua primariedade e ultimidade260”.
A misericórdia assume em primeiro plano uma criticidade que encara com
veracidade os verdadeiros problemas do Continente sem escamoteá-los. Essa
misericórdia nos aponta a re-ação primária ante o mundo sofredor. É o Amor primário,
ao qual se dá o nome de misericórdia. Essa atitude, de se deixar reger pela misericórdia,
é assumida livremente diante de um mundo sofredor, mas uma vez realizada, dizia
Sobrino, ela redescobre algo central na revelação, ou seja, no rosto de Jesus de Nazaré
desvela como é descrito quem é movido por misericórdia261.
A misericórdia como re-ação engloba três passos, propostos por Sobrino em três
verbos, que ele cita como metodologia para dar a tonalidade de uma ação eficaz e,
portanto, permanente.
1º) Em primeiro momento num impacto profundo e sensibilizador em ver diante
de si a situação deplorável do oprimido;
2º) Em segundo momento o impacto que gera um processo de internalização ou
assimilação para si daquela realidade, numa atitude daquele que assimila e assume o
lugar do outro em sua totalidade de vítima;
3º) E, por fim, uma atitude de organização e ações que visam efetivar a
misericórdia, semelhante à ação do samaritano, de não desejar somente um paliativo ao
ferido, mas a sua cicatrização ou o seu restabelecimento à verdadeira condição de ser
humano.
Este é um método que se pode dizer derivado do método ver – julgar – agir, de
inspiração da Ação Católica, aprofundado na teologia da libertação pela dialética teoria260
261
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 66.
Ibidem p. 66.
89
e-prática; método que tem se verificado muito válido na pedagogia de base vivida na
América Latina como processo de re-ativação diante de tanto sofrimento. Ele se propõe
antropologicamente à compreensão, reflexão e ação da pessoa numa circunstância e
contexto sócio-cultural, que deve ser aprofundado para chegar à real dimensão de
gestação e promoção da vida. Desse modo, dizia Sobrino,
Se trata, en dicha parábola, de decirnos en numa palabra lo que es el ser
humano. Pues bien, ese ser humano cabal es aquel que vio a un herido en nel
camino, re-accionó y le ayudó todo lo que pudo... El ser humano cabal es,
pues, el que interioriza en sus entrañas el sufrimiento ajeno – en el caso de la
parábola, el sufrimiento injustamente infligido – de tal modo que ese
sufrimiento interiorizado se hace parte de él y se convierte en principio
interno, primero e último, de su actuación. La misericordia – como re-acción
– se torna la acción fundamental del hombre cabal (grifo nosso)262.
Esse método procura primeiro compreender a realidade, e para isso recorre a sua
intuição, mas também a reflexões científicas diversas no intuito de aproximar ao
máximo da “verdade” sobre os fatos e então ter maiores condições de análise e
conclusão. Serve-se da colaboração científica dos meios sociológicos, psicológicos,
políticos e, conhecendo bem a realidade, procura saber que perguntas ou interpelações
ela faz à fé.
Trata de um auscultar a realidade, compreender a pobreza e as minorias fixando o
olhar nos rostos dos novos excluídos: os migrantes, os sem-teto e os refugiados, as
vítimas do tráfico de pessoas e de seqüestros, os desaparecidos, os doentes de HIV e de
enfermidades endêmicas, os toxicodependentes, os idosos, os meninos e meninas que
são vítimas de prostituição, pornografia e/ou de trabalho infantil, as mulheres
maltratadas, as vítimas da violência, da exclusão e do tráfico para a exploração sexual,
as pessoas debilitadas, os grandes grupos de desempregados/as, os excluídos pelo
analfabetismo tecnológico, os idosos pobres, as pessoas que vivem na rua das grandes
cidades, os indígenas e afrodescendentes, os camponeses sem terras e os mineiros.
Sem levantar essas causas sócio-político-econômicas a Teologia da Libertação tem
dificuldade em prosseguir com qualquer palavra de fé. Este é um modo de fazer teologia
a partir de baixo, que parte primeiro da compreensão do homem e do seu contexto.
Segundo Faustino Teixeira “a recuperação do novo rosto de Cristo libertador funciona,
262
SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador:
Sal Terrae, 1992, p. 34.
90
na prática, como um desmascaramento do que há de acristão e anticristão nas imagens
desfiguradas do rosto humano”263.
Para tanto em sua cristologia, Sobrino fala igualmente da “despacificação de
Cristo” e de sua “desidolatrização”, ou seja, da afirmação de uma imagem de Cristo que
não permita a isenção dos sujeitos face aos apelos do real, e a utilização de seu nome
para a continuidade da opressão. A preocupação com o Jesus histórico na América
Latina é marcada por uma hermenêutica da práxis. Trata-se de confrontar a realidade a
partir do paradigma da fé cristã: a vivência de Jesus de Nazaré.
A interpelação provocada pela realidade assume um lugar fundamental na atitude
do samaritano, daquele que ama o seu irmão. No horizonte da reflexão de Sobrino o
compadecer-se do caído à beira do caminho, provoca a teologia para que ela não se
limite a ser uma inteligência fria da fé que passa ao largo do sofrimento dos seres
humanos.
No assumir as dores do miserável, daquele/a que está sem alternativas, sem
perspectivas e provocado pelo desânimo, restando-lhe apenas sua vitalidade, Sobrino
propõe como alternativa, uma atitude capaz de gerar desfecho, completude ou
ultimidade. O princípio misericórdia trata de uma re-ação completa, assim como
aconteceu ao samaritano. Para a compreensão desse princípio não vale apenas a intuição
ou o questionamento ou ainda as medidas de ação separadamente. Um deve estar
interconectado com o outro, caso contrário, nada acontece. Desse modo, para que haja
uma relação efetiva como do samaritano para com o ferido é necessário que se relacione
adequadamente com ele, mediante a práxis do seguimento.
O próprio Sobrino assinala que o mais histórico de Jesus é a sua prática, e
acrescentemos o espírito com que a realizou e com o qual a imbuiu: honradez para com
a realidade, parcialidade para com o pequeno, misericórdia fundante, fidelidade ao
mistério de Deus. É essa mesma prática e espírito que foram transmitidos por Jesus que
se tornam convocação para os cristãos no prosseguimento de sua causa na história. Por
esse seguimento acontece a misericórdia, a libertação, o amor, a vivência da totalidade
do Jesus histórico aberto para o Cristo da fé, ou seja, “o Cristo total”.
Partindo da compreensão de baixo, do princípio encarnatório, acontece uma
ruptura epistemológica no modo de como até então se compreendia a fé. Descobre a
partir desse “lugar teológico” a feição dos pobres, até então encoberta. Dá-se a assunção
263
TEIXEIRA, Faustino. Uma cristologia que incomoda: a notificação das obras de Jon Sobrino.
www.gritodosexcluidos.com.br/artigosSemanais/artSem157/ - 22k; acessado dia 15-03-07.
91
e a redenção da realidade e das culturas, uma assunção evangélica porque nasce de uma
experiência, de um lugar próprio e específico. Ao fazer o seguimento faz-se pela
identificação com os crucificados, de um Deus crucificado e ressuscitado, que fez o ser
humano à sua imagem e se deu por todos e para todos. Neste caso diz Sobrino: “O que a
fé exige diretamente é a libertação do pecado da realidade e a humanização dos
ofendidos e, derivadamente, a reabilitação do pecador e a humanização do ofensor”264.
Uma pergunta que se pode fazer é: como sublinhar esse aspecto de doação e de
existência para os outros? O princípio evangélico da misericórdia dirá: pelo
reconhecimento e transfiguração do outro, pela gratuidade da presença, pela diaconia
através da opção de vida, na criatividade em refletir e propor ações para acudir o mundo
industrializado e globalizado pelo consumo, pela rentabilidade, pela visibilidade, pela
velocidade e contabilidade, pela centralização narcísica escamoteada, pela tonalidade
positiva de buscar identidade que exige resposta kenótica de cada pessoa, de cada
comunidade, grupos e sociedades como um todo. Neste método se dá a percepção de
totalidade da conversão básica ou de mudança radical, misericordiosa, que leva à
transformação pessoal e social de ambos.
2.3.3.1 - A misericórdia na vida pessoal
A misericórdia na vida pessoal brota de uma motivação impulsionada por fatores
internos e externos, numa vontade que nasce de dentro. Tem seu método e tempo
próprio. Enquanto motivação interna é um sentimento mais íntimo que começa na
percepção do outro enquanto diferente, mas semelhante. Manifesta, sobretudo, ao
perceber que se trata de si mesmo no rosto de um necessitado, de uma pessoa com
existencialidade finita e contingente e que, pelo simples fato de ser pessoa é, por
natureza, vulnerável e frágil. “A nudez do rosto é um despojamento sem nenhum
ornamento cultural”265. Aqui a pessoa não faz resistência, mas vai ao encontro. Não vai
com interesses outros a não ser ajudar, conviver para apreender.
Aquele que na perspectiva da vontade sai ao encontro, no momento em que
observa o diferente, o vulnerável, o faminto ou necessitado de modo geral, começa
nele/a o processo de conversão pessoal e também uma mudança de paradigma na
estrutura interna. Na observação e encantamento pela condição do outro, que no fundo é
a de si mesmo, gera a possibilidade para sua revisão de vida, mesmo que inconsciente,
264
265
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 101.
LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993, p. 51.
92
para a convergência que o transforma. A partir daqui são ações em conjunto, que
elaboradas vão se construindo como um processo normal.
Também serve para transformar a estrutura interna a percepção de fatores
externos, vindos de necessidades que geram coerção ou pressão. É a percepção da
circunstância, da vida externa, de um clamor que se faz ouvir. A conversão passa mais
pela perspectiva da necessidade, de uma assimilação, em que o fazer não é espontâneo,
mas uma obrigação. Trata-se de uma mudança mais coercitiva.
Contudo, ambos têm a sua relevância: a percepção do outro-no-mundo que se
realiza pelo cuidado fundamental de ambos. É a percepção de que o “eu” não existe
sozinho, mas co-existe. Nesta percepção a pessoa se coloca junto dos outros numa
relação de semelhança e de comunhão. É uma comunhão que começa existir ainda a
partir do momento do “ver” o outro: em sua necessidade, vontade, querer, encantamento
e outros. É uma convivência iniciada no processo epifânico que gerou o encantamento,
de um amor apaixonado pelo seu semelhante. Este é um amor capaz de salvar a vida do
interpelador, em que ambos sentem-se atraídos pela mesma busca: a dignidade da vida
que deve ser preservada. Aqui, portanto, o outro se torna manifestação, epifania.
As interpelações que o outro gera traz o risco da saída de si mesmo. O rosto do
outro desconcerta e questiona a fragilidade humana que impulsiona à busca da textura
transcendente incompatível com o rosto desfigurado. Nesse re-erguimento, atitude
misericordiosa de um “amor relacional”266, o qual se referia Emmanuel Mounier,
revela-se como a substância do laço profundo da responsabilidade na relação caritativa.
Não se trata do “eu” se tornar o “outro” num anular-se por causa do outro, numa
simbiose totalitária, mas de uma alteridade e busca de uma comunidade de pessoa de
pessoas. Isso pode conduzir a níveis mais profundos, em que precisa estar pronto para
encarar a experiência do outro e dialogar com ela, desdobrando-se se for preciso.
2.3.3.2 - A misericórdia na vida social
A mudança social passa pela misericórdia em nível pessoal, pela inter-relação e
troca de experiências mútuas, que leva à prática do exercício entre pessoas, instituições,
ongs, meio acadêmico-científico e comunidades afins na orientação de novas relações
que devem existir para responder a novas demandas, e no caso dos países periféricos, de
problemas persistentes, que devem ser modificados.
266
MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. São Paulo: Martins Fontes, 1976.
93
A mudança social acontece por uma motivação e re-ação interna/pessoal e grupal,
pressionada pela coerção da situação social. Aqui poderíamos como já fizemos, nomear
outras várias situações que emergem e exigem uma mudança radical de mentalidade
como defesa da vida e da dignidade humana, do meio ambiente, a calamidade do HIV
na África bem como o seu saqueamento pelos países ricos, a crescente pobreza dos
países da América Latina, a situação da palestina e do Haiti e o desrespeito aos direitos
humanos de modo geral. Tudo isso exige de nós uma mudança de mentalidade, no que
Maurício Abdalla propõe como uma “nova racionalidade”267, na tentativa de responder
aos problemas atuais e conviver com suas demandas.
Segundo Abdalla essa mudança da racionalidade humana está em processo. Ele
discorre dizendo que todo processo que envolve uma transformação mais global é
demorada, mas contínua; e acredita que estamos vivendo essa situação, a começar pelas
duas grandes guerras do século XX, de Hiroshima e Auschwitz e agora do aquecimento
global devido às emissões de gases, prejudicando a vida humana e todo seu habitat, o
meio ambiente. Essa concepção está fazendo surgir uma nova racionalidade que deve
passar pela integração do homem com todo o universo e a sua interação com este grande
outro268.
Nesse intenso conflito surgido a partir de debates, fóruns, estudos... e que acaba
fomentando mais discussões, faz-se perceber nitidamente a queda de braços entre a
ciência que tem seus argumentos fundados em sua epistemologia experimental; e o
poder econômico, representado sobretudo pelos EUA, com suas grandes empresas e
organizações financeiras. Alguns dados nos chamam atenção para isso: segundo o
Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), ligado às Nações Unidas, o
cenário é o mais sombrio já apresentado em quase vinte anos de estudo. “As populações
mais pobres, estejam na África ou na Europa, são as mais vulneráveis. Milhares de
pessoas já estão expostas à escassez de água e o número vai se converter em bilhão à
medida que o aquecimento se agrave”269.
Os números impressionam. O IPCC analisou dados coletados em cerca de 80 mil
séries de estatísticas, componentes de 577 estudos realizados entre 1970 e 2004, e
consta que “hum bilhão de pessoas está exposta à severa escassez de água e 600 milhões
267
ABDALLA, Maurício. O princípio da cooperação: em busca de uma nova racionalidade. São Paulo:
Paulus, 2002.
268
Ibidem p. 30.
269
CANÔNICO, Marco Aurélio. Os pobres já pagam a conta do clima. FOLHA DE SÃO PAULO, 0704-2007.
94
sujeitas à fome em razão de secas, à degradação dos ambientes e à salinização do
solo”270. Algumas conclusões graves nesse sentido estão expostas no relatório e exige
uma mudança de racionalidade, uma atitude misericordiosa no sentido exposto por
Sobrino: uma re-ação.
É uma reação que se faz sentir por pressões vindas de diversas nações e
organismos, fundados nos argumentos de pesquisadores da eco-logia. Resiste-se à
depredação do meio ambiente o foro interno humano com mediadas de coerção e
coação para não prejudicar ainda mais o habitat humano, viabilizando medidas mais
cautelosas e menos violentas. Esse conflito tende em si mesmo, com as forças
contrárias, provocar mudança nas estruturas internas.
Desse modo, dentro do método sobriniano essa ebulição de acontecimentos
provoca uma ruminação, internalização e assimilação, ou seja, um espírito crítico de
reconfiguração da racionalidade que os humanos conhecem através de uma interação
que avança na história. Para isso produz-se todo tipo de encontros entre nações,
organismos, universidades, igrejas, empresas... com intuito de mudar a ordem desigual
do mundo. Surgem desses encontros algumas idéias produtivas, mas sempre falta algo
que é a capacidade de concretização, ou seja, o passo fundamental para se efetivar o
princípio misericórdia.
O princípio misericórdia, eixo central do pensamento sobriniano, fio condutor
deste estudo, o foi também para este capítulo. Sua proposta impacta, pois assegura que
para o samaritano estar convicto de sua dignidade precisou encontrar o ferido. Sobrino
diz que temos que deixar-nos orientar pelo povo oprimido271. A transformação desejada
é, portanto, “uma ação histórica e não imediata”272.
Em diferentes lugares vão surgindo muitas experiências alternativas, de revisão de
valores e novas propostas de economia, de relação. São ações cooperativadas que
renunciam à acumulação desmedida e à exploração que causa a violência estrutural: as
feridas humanas e o embrutecimento nas relações sociais. Efetivar a misericórdia requer
garantir a sobrevivência, ou melhor, a vida da pessoa, possibilitando o reencontro do ser
humano com a sua essência273.
270
Ibidem.
SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid:
Editorial Trotta, 2007. Cf. também SOBRINO, Jon. Extra pauperes nula salus. Revista Latinoamericana
de Teologia, Nº. 69, setembro/dezembro de 2006, p. 219 – 261.
272
ABDALLA, Maurício. O princípio da cooperação: em busca de uma nova racionalidade. São Paulo:
Paulus, 2002, p. 98.
273
Ibidem p. 102.
271
95
A análise do pensamento sobriniano aqui apresentada, acerca do princípio
misericórdia, procurou mostrar a centralidade do pobre como categoria a ser refletida na
América Latina animando à possibilidade de uma reação. Com essa idéia, em
perspectiva, dá-se início ao próximo capítulo que propõe, dentre outras reflexões,
algumas expressões básicas como escolha para efetivar a misericórdia que é também o
indicativo da contribuição que o princípio quer dar à bioética latino americana.
III – Contribuição do princípio misericórdia à bioética latinoamericana
Refletir acerca do princípio misericórdia na Bioética não se trata simplesmente de
acrescentar-lhe mais um princípio, mas chamar atenção para um cenário que poderá se
tornar relevante na Bioética, ao considerar o lugar do seu surgimento e de onde se
propõe estabelecer sua interação e contribuição. Com a categoria princípio não se
pretende, como foi questionado no primeiro capítulo, que o princípio misericórdia
assuma caráter de universalidade. O que se deseja, porém, é enfatizar o modo de ver os
fenômenos comuns na América Latina, que são as realidades estruturais e a pobreza
impactante que vive a maioria de sua população.
Neste contexto Jon Sobrino fala da necessidade urgente de uma re-ação que deve
ocorrer em vista da valorização da pessoa humana, que passa pela superação dos
sofrimentos evitáveis porque são provocados. O princípio misericórdia contempla essa
situação trazendo em si mesmo questionamentos e alternativas como contributo para
mudança. Sabe-se que quanto mais profunda é a ferida, mais significativa deve ser a
intervenção ou a ajuda como libertação.
Esse fenômeno de caráter historicamente persistente deveria assumir um cunho de
preocupação fundamental no Continente, que exija independentemente de crenças
religiosas e científicas, uma tomada de decisão eficaz, dada a urgência em fazer descer
96
da cruz os povos crucificados. A linguagem da cruz torna-se necessária por identificar
com o sofrimento massivo dos povos que lhe abatem os ânimos em sua maneira de
pensar, de agir, suas motivações, expectativas e interesses... e também suas crenças. No
dizer de Sobrino, “a vida espiritual não é outra coisa senão vida com espírito e, mais
concretamente – na América Latina – vida com o espírito de Jesus”274. Neste sentido, o
princípio misericórdia se propõe contribuir a partir da teologia, de víeis latino
americano, com a bioética também latino americana, sendo ambas interpeladas pela
mesma realidade. A colaboração para o diálogo parte do lugar que o princípio
misericórdia evidencia como preocupações suas.
O intento deste terceiro capítulo é mostrar em que o princípio misericórdia pode
contribuir com a bioética latino americana. Sua contribuição aponta para alternativas
que serão refletidas daqui para frente. O capítulo está subdividido em itens. Inicia
situando a origem da bioética e a responsabilidade diante de novos conflitos morais
acoplados às situações persistentes que emergiram no discurso da bioética. Em seguida
verificar-se-á, como necessidade, uma aproximação do discurso teológico, donde emana
o princípio misericórdia, com a bioética. Por fim, são sugeridas algumas expressões
básicas a partir das quais se compreende a capacidade de efetivar a misericórdia. São
elas: a responsabilidade, a solidariedade, o perdão, a cooperação e a esperança
abordados com freqüência na literatura sobriniana.
3.1 - Bioética e novas perspectivas
Os capítulos antecedentes cuidaram de verificar o fundamento do princípio
misericórdia que, a partir de agora pretende mostrar sua relevância para o discurso da
bioética latino americana. A contribuição deste princípio tem amparo nos pressupostos
que Miguel Kottow sugere para uma epistemologia da bioética latino americana, como a
necessidade de se submeter aos rigores do debate analítico, o abrir-se para o
conhecimento empírico e o incorporar à medida que o requer para avaliar as realidades,
as projeções, os dilemas e as situações problemáticas que ocorrem no âmbito da
reflexão, como se vê: “O discurso da bioética se submete a critérios de racionalidade,
razoabilidade, prudência, coerência interna dos pronunciamentos e coerência externa do
que é asseverado em relação aos antecedentes históricos e à realidade social
274
SOBRINO, J. Espiritualidade da Libertação. São Paulo: Loyola, 1992, p. 10.
97
contemporânea”275. O princípio proposto tem coerência interna entre a teoria normativa
da ética e as exigências práticas. Reconhece a complexidade dos conflitos morais, mas
encontra-se aberto para mediação de dilemas e problemas que são gerados no âmago
das práticas sociais.
A preocupação do princípio misericórdia é o modus vivendi no Continente,
enraizado nas estruturas iníquas de miséria, de opressão e de injustiça donde brota a
exigência ética de libertação e de solidariedade, senão de responsabilidade. A
misericórdia para efetivar sua meta leva em consideração a abrangência da compreensão
da vida, do ser da pessoa e de todo meio ambiente. Nota-se que uma nova racionalidade
está em processo, sob um olhar crítico que contempla a pessoa humana e suas
circunstâncias, com a percepção e a colaboração da Bioética276. Essa preocupação que
motiva tantas pessoas comuns e cientistas era a mesma do professor oncologista da
Universidade de Wiscosin, em Madison – EUA, Van Rensselaer Potter ao cunhar o
neologismo Bioética:
I take the position that the science of survival must be built on the science of
biology and enlarged beyond the traditional boundaries to include the most
essential elements of the social sciences and the humanities with emphasis on
philosophy in the strict sense, meaning ‘love of wisdom’. A science of
survival must be more than science alone, and I therefore propose the term
Bioethics in order to emphasize the two most important ingredients in
achieving the new wisdom that is so desperately needed: biological
Knowledge and human values277.
Potter ao publicar seu livro, Bioethics: bridge to the future, baseado numa
coletânea de artigos sob sua autoria, divulgados entre os anos 1950 e 1960, tornou-se
uma importante referência histórica para o pensamento. Em suas reflexões e nas
definições propostas por ele à Bioética se nota a preocupação de uma nova guinada
teórica, inclusive àquela do campo biomédico à qual a Bioética estava enveredando. As
motivações das reflexões bioéticas dos primeiros tempos terem se centrado no campo
biomédico, se deve também, segundo alguns, ao fato dela ter se originado a partir de
outro pesquisador, André Hellegers, do Instituto Kennedy de Bioética em Washington,
que no mesmo ano de 1971 ambos os pesquisadores utilizaram o mesmo termo. A
concepção de Andre Hellegers pode, no entanto, ser reducionista se for encaixada
somente na preocupação do campo biomédico.
275
KOTTOW, Miguel. Bioética prescritiva. A falácia naturalista. O conceito de princípio na bioética. In:
GARRAFA, Volnei et alli (Orgs.). Bases conceituais da Bioética: enfoque latino-americano. Tradução de
PUDENZI, Luciana Moreira e CAMPANÁRIO, Nicolas Nyimi. São Paulo: Gaia, 2006, p. 35.
276
POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs-New Jersey: Carl P.
Swanson editor, 1971.
277
Ibidem p. 1-2.
98
A visão de Potter é mais audaz, ao definir a Bioética como uma “ciência da
sobrevivência”, por ser mais abrangente e por contemplar a realidade, além da
perspectiva micro, as situações de qualidade de vida e dignidade humana, abarcando
inclusive uma perspectiva cósmica e ecológica, como se pode ver no prefácio e no
primeiro artigo de seu livro Bioethics, The Science of Survival:
What we must now face up to is the fact that human ethics cannot be
separated from a realistic understanding of ecology in the broadest sense.
Ethics values cannot be separated from biological facts… As individuals we
cannot afford to leave our destiny in the hands of scientists, engineers,
technologists, and politicians who have forgotten or who never knew these
simple truths. In our modern world we have botanists who study plants and
zoologists who study animals, but most of them are specialists who do not
deal with the ramifications of their limited knowledge278.
Essas citações evidenciam o intuito de Potter em criar uma bridge entre ciências
biológicas, sociais e humanas que garanta a sobrevivência da espécie humana. Sua
preocupação inclui implicitamente uma “ética de responsabilidade”, sobre a qual Hans
Jonas pensa que “uma nova teoria ética deve ser pensada”279, considerando a
vulnerabilidade da natureza e da pessoa humana. Para Jonas, a vida é tida “como bem
supremo que deve caracterizar a teoria da responsabilidade, ou seja, o dever”280. “Eu
defendo a tese de que a simples existência de um Ser ôntico contém intrinsecamente, e
de forma evidente, um dever para os outros”281. A vida humana está sobre a do Homo
faber. Ela consiste no bem supremo à qual a ciência e a técnica devem prover
responsavelmente para lhe garantir o futuro. “Enquanto não existirem projeções seguras
(...), a prudência será a melhor parte da coragem e certamente um imperativo da
responsabilidade”282.
A responsabilidade, embora evocada pelos filósofos desde a antiguidade até o
existencialismo283, assume novas perspectivas a partir do pensamento de Jonas. Com H.
Jonas a responsabilidade recebe uma ênfase particular em sua relação com o futuro da
sobrevivência humana e ambiental. Jonas não está preocupado com a eternidade
platônica, mas com o tempo vindouro, compatível com a era da ciência e da tecnologia,
cuja responsabilidade deve ser o alicerce, o princípio orientador para as diferentes
decisões a se estabelecer referentes à vida no presente.
278
Ibidem p. vii e 2.
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Tradução de LISBOA, Marijane e MONTEZ, Luiz
Barros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO, 2006, p. 39.
280
Ibidem p. 149.
281
Ibidem p. 220.
282
Ibidem p. 307.
283
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
279
99
Para Hans Jonas “não é bom nem correto, e sim prejudicial do ponto de vista
moral e contemplativo, encarar que a natureza, genitora do homem, cerceou seu direito
de nascença, sendo a ordem natural sua inimiga invejosa, que o priva da verdadeira
existência humana”284. Na sua concepção é justamente “tal atitude que poderia nos fazer
perder de vista aquilo que seria ‘o verdadeiro’”285. Ao propor a idéia de liberdade como
fator de vitalidade humana, Jonas cita Marx dizendo que, o “reino da liberdade começa
efetivamente ali onde cessar o trabalho determinado pela miséria e pela finalidade
externa; ou seja, onde o trabalho esteja, por natureza, além da esfera da produção
material propriamente dita”286. Indo mais além diz que “essa libertação é a primeira de
todas as liberdades, com a qual se iniciam as demais liberdades do ‘reino’, e cujo o
único objetivo (...) é o desenvolvimento da natureza humana”287. A natureza humana
fica, no entanto, comprometida ao ser submetida aos interesses da estrutura econômica.
Os efeitos da exploração econômica são os provocadores de perda da dignidade
humana:
a distribuição injusta dos bens (ou seja, não conforme ao trabalho
despendido), que pode conduzir um grande número de despossuidos à
degradação da sobrevivência mais elementar, que não deixa espaço para mais
nada. É óbvio que tal situação amesquinha o homem como tal: a pobreza
conduz ao empobrecimento também do ponto de vista moral. O que se obtém
no despotismo, por meio da violência e do medo, obtém-se aqui pela miséria
material e a necessidade bruta288.
A partir de certo patamar não há dúvida de que a exploração destrói a liberdade
interior de suas vítimas, e a privação do trato corporal estiola também o espírito e a
atividade intelecutal: “Junto com o corpo, também o espírito é desempregado”289. Hans
Jonas vê na utopia de Ernst Bloch a fonte para resgatar o sentido da dignidade, onde a
pessoa realiza suas atividades não como obrigação, mas impulsionada pelo prazer,
vocação. “Em toda relação humana é preciso que haja outra coisa além do gozo entre as
mesmas pessoas. É preciso que haja um objeto de prazer que não venha apenas do mero
‘ser eu mesmo’ (...), mas provenha da relação do outro com o mundo”290. Compreendese que a dignidade humana para Jonas é aquela que deseja valorizar um tipo de
284
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Tradução de LISBOA, Marijane e MONTEZ, Luiz
Barros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO, 2006, p. 309.
285
Ibidem p. 310.
286
Ibidem p. 311.
287
Ibidem.
288
Ibidem p. 275-276.
289
Ibidem p. 317.
290
Ibidem p. 332.
100
satisfação conforme a necessidade e não apenas por mero divertimento ou satisfação
egoísta. Esta é uma responsabilidade com a natureza e com os outros indivíduos.
É nesta perspectiva também que Jon Sobrino relaciona, em linguagem teológica
latino americana, o respeito incondicional do ser humano. Com o seu princípio
misericórdia aponta para a necessidade do restabelecimento real do agir e do sentido
para aqueles que vivem na América Latina. A proposta do princípio misericórdia é
nitidamente levar à consciência da necessidade de libertar a realidade da miséria, sendo
esta a centralidade e expressão marcante na vida cultural, religiosa, política e econômica
das vítimas que vivem neste mundo. “As vítimas deste mundo são o lugar de onde brota
a cristologia sobriniana e, ao mesmo tempo, os seus destinatários privilegiados”291. As
“vítimas deste mundo” ou “os povos crucificados”, expressões sinônimas das palavras
pobres e miseráveis “são os ‘sinal dos tempos’, a realidade cruel, diante da qual
precisamos ter ‘olhos novos para ver a verdade da realidade’; a verdade dos seres
humanos; a verdade de Deus; e reagir com coração cheio de misericórdia”292. Neste
sentido, o professor Volnei Garrafa afirma que “a bioética dos países periféricos deve
preocupar com as situações persistentes, com aqueles problemas que continuam
acontecendo e que não deveriam mais acontecer. Os conflitos resultantes daí não podem
ser analisados exclusivamente com teorias éticas vindas de países centrais”293, onde a
discussão bioética gira mais em torno das questões biomédicas, com o qual o mundo
biomédico brasileiro tem muito laços.
Contudo, o princípio misericórdia vinculado à teologia precisa ser adequadamente
compreendido na bioética latino americana, que apesar das preocupações comuns, como
no caso de uma “ética da libertação”, este é um diálogo que, segundo Márcio Fabri, não
é tranqüilo e precisa ser serenamente considerado. Para ele algumas dificuldades se
interpõem ao se incluir a teologia no diálogo interdisciplinar da bioética294. Por isso,
convém deter brevemente nessa questão, com o intuito de alargar a compreensão,
perguntando quais seriam essas dificuldades? Sobre isso veremos a seguir.
291
BOMBONATTO, Vera Ivanise. Seguimento de Jesus: uma abordagem segundo a cristologia de Jon
Sobrino. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 193 e 195. “Por conseguinte, o ‘lugar’ da teologia não é um ubi
categorial, um lugar concreto geográfico-espacial – universidade, seminário, comunidade de base, cúria
episcopal... -, ainda que seja preciso estar presente nesses lugares. Por ‘lugar’ teológico se entende aqui
um quid, uma realidade substancial na qual a cristologia se deixa ‘contaminar, questionar e iluminar”.
292
Ibidem.
293
GARRAFA, Volnei e PORTO, Dora. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In:
GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 35.
294
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI,
Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465.
101
3.2 - Bioética e Teologia: reflexões, conflitos e contribuições
A aceitação do princípio sobriniano para uma contribuição com a Bioética pode
causar resistências em alguns pensadores no âmbito científico, por não concordarem
com os métodos epistemológicos vindos teologia e por desacreditar que ela possa
oferecer algum contributo relevante para o pensamento sistemático experimental. Essas
são dificuldades a que vamos brevemente nos deter a fim de clarificar o lugar donde fala
o princípio misericórdia. As dificuldades vêm dos preconceitos históricos de ambas, e
dos quais elas precisam se libertar para compreender o princípio misericórdia, e
impulsionadas por ele, ampliar os horizontes em perspectiva de um novo contexto e
nova realidade. Deve-se considerar que “De fato, o discurso religioso veiculado pela
teologia na bioética é recebido de forma variável, entre a simpatia e a antipatia, a
indiferença, a desconfiança, a integração e a total separação”295. Mas “cresce a
consciência de que as realidades são por demais complexas para serem compreendidas
por uma só forma de saber isoladamente. Por isso, “o diálogo será possível e proveitoso
se a teologia e as ciências se libertarem de alguns preconceitos”296.
As dificuldades entre a teologia e a bioética nem sempre são claras, o que dificulta
examiná-las detalhadamente, mas cônscias do lugar de suas contribuições podem
estabelecer um intercâmbio mais respeitoso com propostas comuns. João Batista
Libânio diz que “as ciências e a teologia devem ter consciência da identidade e da
diferença de suas abordagens da realidade. É a dialética da identidade e da diferença,
sem a qual qualquer diálogo é impossível”297. Um discurso intransigente de ambas as
partes impõem alguns limites para um diálogo e ajuda mútua. O fenômeno da
secularização nas sociedades atuais tem sua evidência nas características multiculturais
e multiconfessionais consideradas como valor. Esta concepção, de cunho laico, como
uma espécie de “ateísmo metodológico”, quer reforçar a laicidade do discurso
científico, do poder público e outros, como se a todo o momento tivesse de protegê-los
de um mal, como se credita ser a reflexão teológica, ao partir do pressuposto de que a
reflexão da teologia é sempre dogmática298.
295
Ibidem.
Ibidem.
297
LIBÂNIO, João Batista. Teologia e interdisciplinaridade: problemas epistemológicos, questões
metodológicas no diálogo com as ciências. In: SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Mysterium creationis. Um
olhar interdisciplinar sobre o Universo. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 11- 43.
298
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI,
Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465.
296
102
A resistência de alguns pensadores da bioética, neste sentido, está em assimilar
para sua reflexão os dogmatismos da reflexão teológica. No dizer de Jorge José Ferrer e
Juan Carlos Álvares “a marginalização da religião e da linguagem religiosa em bioética
é fato inegável”299. Afirma também Alastair Campbell: “Existem colegas que pensam
que, se abrirmos a Bioética à religião, estaremos escancarando também as portas ao
dogmatismo. Penso diferente: não é possível trabalhar sem religião, aquilo que move a
compaixão. Não como elemento central”300, mas como uma parceira em benefício da
justiça e talvez nos ajude a compreender ao nosso próximo.
Entretanto, Márcio Fabri dos Anjos pontua que a ciência também não é neutra e
nem desprovida de interesses em seus discursos, ao passo que “a teologia tem uma
importante contribuição diante dos fundamentalismos religiosos”301, na compreensão de
determinadas culturas. Algumas autocríticas da teologia são apontadas por este autor
numa tentativa de aprofundar o debate com a bioética. A primeira enfatiza que com a
modernidade “o simples recurso à autoridade divina já não mais garante a certeza e a
inquestionabilidade das afirmações e normas éticas. Cresceu a consciência sobre o lugar
do indivíduo humano no mundo e sobre a sua capacidade de interpretar e elaborar a
‘verdade’”302. Uma segunda autocrítica é feita pelo pensamento de R. McCormick,
apud Anjos, que observa “certa presunção da teologia em se entender no singular e de
forma unívoca de tal modo a poder oferecer alimento, bases, correções e perspectivas
para a bioética, de forma acabada”303, sendo que temos razões para estar conscientes da
pluralidade das afirmações teológicas, dada às diferentes correntes, experiências e
paradigmas.
A partir da modernidade, com a valorização do sujeito e sua individualidade, “os
teólogos reconhecem a autonomia da razão em pesquisar, argumentar e propor, sem que
isto seja uma contradição da fé, mas ao contrário vêem nisto um subsídio à própria fé
299
FERRER, Jorge José e ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. Teorias e paradigmas
teóricos na bioética contemporânea. Tradução de MOREIRA, Orlando Soares. São Paulo: Loyola, 2005,
p. 79.
300
CAMPBELL, Alastair. Deus e a Bioética. Centro de Bioética do CREMESP.
http://www.bioetica.org.br/?siteAcao=Entrevista&exibir=integra&id=16; acessado em 02-02-2007. Ao
ser perguntado “Qual o papel de Deus na Bioética Contemporânea?”, Campbell diz ser essa uma questão
complicada, mas vivemos numa sociedade pluralista, onde todas as coisas parecem relacionadas à
bioética. “Mas, para mim, a bioética pode nos ajudar a concluir que Deus ama a todas as pessoas e é um
apaixonado por justiça. Há princípios cristãos, similares em quase todas as religiões que, de certa forma
parecem estar ‘embutidos’ naqueles que dão sustentação à Bioética”, como no caso da Beneficência: ame
seu próximo como a si mesmo; o da não-maleficência...
301
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI,
Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465.
302
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: Abrangência e Dinamismo. Revista Espaços, 1996, p. 131-143.
303
Ibidem.
103
religiosa”304. Com essa abertura a teologia se mostra modesta e disponível para o
diálogo com a realidade por demais complexa para dá-la como acabada. “Na verdade, a
reflexão teológica em bioética não é possível sem um mínimo de informações de dados
que os teólogos tem que buscar em outras áreas não teológicas”305. Com essa postura a
teologia se mostra madura na sua potencialidade, de poder contribuir ainda muito mais,
como instância capaz de ouvir para desenvolver uma crítica e alimentar uma
razoabilidade frente às situações que pedem respostas mais convicta que brotam da
abertura e da solidez que vem do consenso.
Nesta compreensão pode-se entender que no intercâmbio há o crescimento da
teologia e da bioética. A reciprocidade, dentro da pluralidade, tem na vida ética, e na
reflexão bioética, a possibilidade de aprofundar e amadurecer as particularidades, numa
colaboração mútua e contínua que ajuda ou eleva ao crescimento. Assim elas não se
separam, mas se juntam; não se dividem, mas crescem com a mesma finalidade: na
América Latina, reagir com misericórdia ajudando o homem que vive neste contexto
sócio-econômico, político, cultural e religioso determinados.
Precisa-se, entretanto, ter cuidado para algumas distinções próprias de ambas as
ciências envolvidas no diálogo, como a questão da linguagem, de distinção conceitual,
para não sofrerem nenhum prejuízo em suas reflexões e não sofrerem também por isso,
de retrocessos. Márcio Fabri pontua, por exemplo, a diferença na percepção do conceito
de “salvação”, quando as grandes e rápidas mudanças desafiam a responsabilidade
humana em projetar o futuro. “A questão de fundo pode ser formulada em termos de
salvação. Este é um conceito mais usado em teologia do que em bioética. Entretanto,
também a bioética se pergunta: como construir um futuro que garanta no mínimo a
sobrevivência da vida, um futuro de crescimento integral e paz?”306. O conceito de
‘salvação’, importante na compreensão do princípio misericórdia, não coincide em
bioética e em teologia, mas, apesar da complexidade, mostra algumas aproximações:
“Transcendência e escatologia marcam o horizonte da visão teológica; enquanto que a
bioética, de modo geral, cultiva um âmbito intra histórico da sobrevivência e realização
humana”307. A aproximação acontece quando teologia política e a teologia da libertação,
304
Ibidem.
Ibidem.
306
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética e Teologia: janelas e interpelações. Revista Perspectiva teológica.
Nº 89, janeiro/abril de 2001, p. 13-31.
307
Ibidem. Assim diz Márcio Fabri que “Este ponto de encontro de bioética e teologia é, com certa
facilidade, identificável por parte dos teólogos/as que lidam com a bioética, ao deparar e mesmo se
surpreender com um grande senso de justiça, solidariedade e humanismo que preside em grande parte a
305
104
por exemplo, se propõem discutir a importância da transformação histórica. “Na
coerência desta postura, a teologia se vê hoje diante do desafio comum em salvar a
humanidade, seu meio ambiente e toda forma de vida”308. Com isso “a teologia encontra
então, na bioética e na ecologia, grandes aliadas para repensar este braço imanente da
salvação”309.
Além dessa importante purificação conceitual, João Batista Libânio chama a
atenção dizendo que, “tanto as ciências quanto a teologia devem prestar atenção aos
interesses, muitas vezes corporativos que decidem sobre seus procedimentos teóricos e
afetam suas conclusões”310. As ciências não estão isentas de sujeitos concretos, que
trazem consigo interesses para a interpretação de seus dados. “A teologia da libertação,
em diferentes momentos, tem identificado uma base de cunho religioso subjacente a
teorias e a ciências aparentemente leigas”311. Essa percepção denota que,
subjacentemente, há em cada discurso seja científico, religioso ou alhures a revelação
ou o desvelar de uma crença. Edgar Morin diz que a própria ética tem como verdadeiro
problema,
saber fundamentar uma auto-ética, uma ética fundada sobre si mesma, no
nível da autonomia do pensamento e da liberdade pessoal. Mas, ao mesmo
tempo, se essa ética não pode ter fundamento, ela precisa ser explicada ou
iluminada por uma fé. Não uma fé religiosa no sentido tradicional, mas uma
fé na fraternidade, no amor e na comunidade, que não seria o fundamento da
ética, mas sua fonte de energia312.
Nesse artigo Morin diz não acreditar que exista uma ética sem fé, mas que também
isso não elimina os problemas de auto-ética que ele percebe em três ordens: “1) O
bioética. Mas também da parte de instâncias da bioética se mostra uma confiança na parceria com a
teologia. Um exemplo claro está nas Normas para pesquisa envolvendo seres humanos, do Conselho
Nacional de Saúde. Ali se promulga a participação de teólogos na composição dos CEPs (Comitês de
Ética em Pesquisa) e no CNEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa)”. Ibidem.
308
Ibidem.
309
Ibidem. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa aponta a etimologia do termo salvação
para a mesma realidade que designa saúde que é pôr a salvo, defender, conservar, guardar, preservar,
salvaguardar, desculpar, justificar; do latim, salute - salvus como conservação da vida, estado do
indivíduo cujas funções orgânicas, físicas e mentais se acham em situação normal; estado do que é sadio
ou são; força, robustez, vigor. Cf. também FRANCISCO, Alvarez. Salvação. In: VENDRAME, Calisto e
PESSINI, Leocir (Orgs.). Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde. São Paulo: Paulus/Centro
Universitário São Camilo, 1999, p. 1149-1158. A mais recente definição de saúde da OMS (Organização
Mundial de Saúde) é “um estado de bem-estar total, corporal, espiritual e social e não apenas a
inexistência de doença e fraqueza”. BOFF, Leonardo. Cuidar da vida e da criação. In: BEOZZO, José
Oscar et alli. Saúde. cuidar da vida e da integridade da criação. São Paulo: Paulus, 2002, p. 89-108.
310
LIBÂNIO, João Batista. Teologia e interdisciplinaridade: problemas epistemológicos, questões
metodológicas no diálogo com as ciências. In: SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Mysterium creationis. Um
olhar interdisciplinar sobre o Universo. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 11- 43.
311
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI,
Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465.
312
MORIN, Edgar. Ética e sociedade. In: PENA-VEJA, Alfredo et alli (Orgs.). Edgar Morin: Ética,
cultura e educação. São Paulo: Cortez, 2001, p. 39-45.
105
primeiro jaz nas contradições éticas, ou seja, no confronto de imperativos categóricos
antagônico; 2) O segundo se situa no nível das incertezas éticas; 3) O terceiro é a
problemática do ‘eu’ em relação a si mesmo”313. Com isso, pode-se dizer que não existe
o não-acreditar, mas sim, modos diferentes de crer, o qual é possível ser verificado até
mesmo dentro da bioética314.
Anjos refere que Manfredo Araújo de Oliveira “demonstra como seria pretensão
insustentável monopolizar a racionalidade humana no âmbito do saber empírico, quando
de fato temos a necessidade de lidar com dimensões que não são fenômenos empíricos,
mas estruturas não-temporais”315. Neste ponto “se situa a teologia como um tipo de
saber. A racionalidade própria da teologia, enquanto ciência humana é de tipo
hermenêutico, e traz uma contribuição específica ao buscar a interpretação da vida nas
dimensões espirituais do ser humano e ao considerar a vida para além do tempo”316.
Atenta a essa abertura pode-se dizer que, ao menos em termos gerais, a teologia tem
uma grande contribuição a oferecer à bioética. Anjos acena também como exemplo as
contribuições dos escritos de J. Mo Sung ao analisar o conteúdo filosófico,
antropológico, mas, sobretudo, religioso e teológico subjacentes ao capital e a toda a
racionalidade econômica.
E conclui que parece, com isso,
necessário admitir que a confessionalidade não ocorre apenas em âmbitos
religiosos. Estamos habituados a assistir à formação de ‘escolas’, ‘tendências’
e ‘correntes’ em uma ciência. Estas são resultados de uma aceitação comum
de pressupostos, de métodos, de opções na interpretação. A formação de
grupos em torno de um assim chamado ‘credo’ mais ou menos fundamentado
é condição constante do ser humano, que soma convicções, mas é sempre
tateante na busca da certeza. Dessa forma, comunidades em torno de
convicções são inevitáveis e mesmo necessárias317.
313
Ibidem.
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: Abrangência e Dinamismo. Revista Espaços, 1996, p. 131-143.
315
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI,
Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465.
316
Ibidem. Segundo ANJOS, “Espiritualidade e mística são dois termos com raízes etimológicas
diferentes que, entretanto, visam colocar em pauta uma pergunta fundamental em que se encontram
bioética e teologia: o dinamismo e as motivações escondidas que presidem a condução consciente da vida
e de seus processos. A formulação deste conceito é teológica. Mas a constância de sua presença na
bioética é uma realidade que a teologia tem ajudado a evidenciar. Há mais tempo a teologia vem
chamando a atenção sobre a luta dos ‘deuses’ que preside as escolhas humanas, e as formas religiosas
subjacentes às relações econômicas e de mercado. Mesmo superando a demonização do mercado, persiste
a identificação de opções de fundo que presidem e dinamizam a atividade humana. (...) De forma mais
ampla e fundamentada, Tristam Engelhardt, em sua obra The foundations of Christian bioethics afirma
com todas as letras a importante contribuição da mística cristã para a bioética.” ANJOS, Márcio Fabri
dos. Bioética e Teologia: janelas e interpelações. Revista Perspectiva teológica. Nº 89, janeiro/abril de
2001, p. 13-31.
317
Ibidem.
314
106
Segundo Márcio Fabri dos Anjos “o que de fato incomoda, tanto em grupos
religiosos como em comunidades científicas e semelhantes, é a convicção transformada
em pretensão de monopólio da verdade. Esta corta as possibilidades de diálogo, torna as
posições rígidas e confere um perfil sectário às convicções”318. Este pode ser “o
principal fato responsável pela suspeita que tem pesado sobre confessionalidades
religiosas, mas que atinge também outros tipos de grupo”319. Para o grupo que não se
abre ao diálogo há uma forte tendência de isolamento, de modo a não perceber a
complexidade das realidades. Agindo assim, isoladamente de outros saberes, uma
reflexão torna-se reducionista e merecendo pouco crédito.
Nas extremidades das convicções K. Popper nos interpela para um mundo de
propensões em vivermos sem certezas, mergulhados apenas em pequenas verdades
transitórias320. Esta citação é típica da abertura, hoje, necessária e fundamental para a
compreensão do conhecimento que se caracteriza interdisciplinarmente. A solução
perpassa pela colaboração de diferentes “comunidades”, que na inter-relação constroem
o saber a partir da troca, das discussões, de encontros, de discordâncias num diálogo que
Márcio Fabri ousa chamar de “negociação de saberes”321, característico para a relação
entre os saberes ora abordado. Para tanto isso exige a libertação do absolutismo, dos
dogmatismos e das certezas atávicas. Sobre essa relação Carlos Selleti diz,
num mundo plural, não existem absolutos. Em tempos de pluralização, a
moralidade perde a sua força. A superficialidade se revela, como uma faca de
dois gumes, com uma outra face desta pluralidade. Com a crescente
possibilidade de alternativas, nenhuma delas se torna absoluta e profunda.
Tudo passa a ser relativo e a conseqüência desta pluralidade poderá ser uma
sociedade com raízes superficiais, frágeis à menor turbulência, sem elementos
318
Ibidem.
Ibidem.
320
POPPER, K. Um mundo de propensões. Lisboa: Fragmentos, 1991. Sobre isso diz o físico norteamericano Marcelo Gleiser que “Jamais poderemos ter uma descrição completa da realidade, pelo simples
fato que jamais poderemos ‘vê-la’ por inteiro. Estamos condenados a uma visão míope do real.
Conseqüentemente, nossa ciência, enquanto descrição da realidade que podemos perceber é
necessariamente incompleta. Isso pode ser um choque para aqueles que acham que a ciência é dona da
verdade absoluta ou que os cientistas sabem tudo. Grande ilusão. Sabemos aquilo que podemos averiguar
sobre o mundo. O mundo, ou melhor, o Universo, seja ele macro ou micro, é bem mais amplo do que o
que podemos medir. Mas é justamente essa limitação que torna a pesquisa em ciência emocionante.
Sabemos que um pouco além reside o desconhecido. E que esse além estará sempre lá. Estamos sempre
descobrindo algo de novo, muitas vezes inesperado, sobre o mundo. Ou, se nada de novo aparece,
estamos sempre aprimorando as teorias e modelos que já tínhamos, baseados em medidas melhores e
mais precisas...” GLEISER, Marcelo. A emoção do não-saber. JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO, 2406-2007, Caderno Ciência.
321
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética em perspectiva de libertação. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI,
Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 455-465.
319
107
reguladores ou integradores das consciências. Nesta ordem de idéias, todas as
pessoas deverão ser adestradas no mundo das opções322.
Nessa ebulição de confrontos de idéias, inovações e comportamentos de
individualidades, em que cada pessoa e grupos reiteram suas convicções, somos todos
uma espécie de “estranhos morais”323 em que as ciências e a teologia não podem perder
o seu foco ou o seu interesse fundamental de investigação e buscas: a vida da pessoa,
sobretudo, a mais vulnerável, como último fenômeno da exigência ética.
A exigência da América Latina, contudo, não se trata apenas de elaborar reflexões,
discussões e debates. Claro que isso conta e é fundamental. Mas a exigência da
realidade de pobreza é maior e reclama por atitudes e comprometimentos. Uma ética
somente de discurso experimenta o que Henrique C. de Lima Vaz chamava de “vazio
ético” ou “niilismo ético”, dentro de suas infinidades de refutações mútuas, discursos e
brigas ideológicas que podem acorrer num indiferentismo324. Nesse sentido é oportuno
se dar conta de que a fome não tem ideologias. Sobrino concorda quando Casaldáliga
afirma que “Tudo é relativo, menos Deus e a fome”325. O faminto tem pressa e essa
realidade cruel deve interpelar para o que é verdadeiro e não se pode desmentir ou
disfarçar.
Essa interpelação, para Lévinas, coloca a descoberto a compreensão do outro a
partir de sua totalidade concreta como interlocutor, no qual se expõe “um nu mais nu
que o da pele que, forma e beleza, inspiram as artes plásticas; nu de uma pele exposta ao
contato, à carícia que sempre, e mesmo na voluptuosidade equivocadamente, é
sofrimento pelo sofrimento do outro”326. “Despojado de sua própria forma, o rosto é
transido em sua nudez. Ele é uma miséria. A nudez do rosto é indigência e já súplica na
retidão que me visa. Mas esta súplica é uma exigência”327. Na visão levinasiana, diante
do rosto do outro, o sujeito se descobre responsável e lhe vem a idéia de infinito.
322
SELLETI, Carlos Jean e GARRAFA, Volnei. As Raízes Cristãs da Autonomia. Petrópolis: Vozes,
2005, p. 88.
323
ENGELHARDT, H. Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução de CESCHIN, José A. São Paulo:
Loyola, 1998, p. 116.
324
VAZ, Henrique C. de Lima. Ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1993, p. 16-21. Cf. também VAZ,
Henrique C. de Lima. Introdução à ética filosófica. São Paulo: Loyola, 1999. Marcelo Perine, estudioso
da vasta obra de Pe. Vaz, diz estar convencido de que uma preocupação ocupou o horizonte intelectual do
Pe. Vaz nos últimos vinte anos da sua reflexão: a crise ética como crise de sentido, cuja expressão mais
aguda é o niilismo. PERINE, Marcelo. A ética e a crise da modernidade: uma leitura a partir da obra de
Henrique Lima Vaz. http://www.unisinos.br/ihu/; acessado em 23-04-07.
325
SOBRINO, Jon. Epílogo. In: VIGIL, José Maria (Org.). Descer da cruz os pobres: cristologia da
libertação. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 345-357.
326
LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993, p. 99.
327
Ibidem.
108
Mostrar a um indivíduo tal orientação é identificá-lo com a ética, em que o eu perante o
outro se torna infinitamente responsável328.
O princípio misericórdia se compreende também a partir dessa responsabilidade
concreta com o outro ao enfatizar, a partir do discurso teológico, a necessidade
premente de libertação e a importância de criar consciência de cidadania para efetivação
dos direitos. Um aporte anterior à concepção de direito é o senso da dignidade humana
como finalidade, e que socorre o pobre e o vulnerável como exigência ética prioritária
diante do esfacelamento da sua condição de pessoa. Nela “existe o dever ético de
preservar em mim e nos outros a possibilidade de conferir um sentido à existência”329.
O fato de simplesmente ser “humano” confere o traço de inerência e paridade à pessoa
como sujeito à sua condição corporal e psíquica que exige respeito, defesa e promoção
entre as condições de vida.
3.3 – Algumas expressões básicas do princípio misericórdia
A elaboração do princípio misericórdia sobriniano tem na dignidade humana o seu
referencial e critério para saber quando é necessário agir movido com misericórdia. A
todo instante a população latino americana tem seus direitos fundamentais e sua
dignidade humana ameaçados. Poder-se-ia perguntar qual o pressuposto base para
justificar o agir movido por este princípio? A resposta mais imediata na compreensão de
Sobrino é aquela que vê o ser do ser humano que, estando fragilizado por situações
inumanas, precisa ser restabelecido.
Neste sentido faz-se necessário agir reativamente para restabelecer sua vitalidade e
suas condições dignas de sobrevivência. Para isso, algumas expressões básicas são
empenhadas na busca de alternativas que favoreçam essa condição. Propomos, no
entanto, daqui em diante, aquelas que assumem uma correlação e proximidade com o
princípio misericórdia que são a responsabilidade, a solidariedade, o perdão, a
cooperação e a esperança. Além de orientar a reflexão que se seguem as expressões
propostas ajudarão apontando alternativas para efetivação do princípio misericórdia.
328
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Tradução de RIBEIRO, José Pinto. Lisboa: Editora 70,
1988, p. 70.
329
JUNGES, José Roque. Bioética. Hermenêutica e casuística. São Paulo: Loyola, 2006, p. 132.
109
3.3.1 - Responsabilidade
A responsabilidade não nasce somente de uma boa vontade, de um eu que quer se
comprometer com o outro. A responsabilidade nasce como resposta. Ela caracteriza e
identifica o sujeito ético como único e imediatamente para-o-outro. A responsabilidade
é a expressão básica, considerada o existencial primeiro, de uma estrutura da
racionalidade humana, que caracteriza o universo verdadeiramente humano. Lévinas330,
ao descrever a estrutura ética da racionalidade, coloca como fundamento primeiro e
essencial, a responsabilidade. A ética não aparece como suplemento de uma base
existencial prévia, mas como responsabilidade que brota da subjetividade humana. A
responsabilidade pelo outro prescinde da representação conceitual ou da mediação de
um mandamento ético. Ela é obediência a uma vocação, a uma eleição pelo bem além
do ser. A responsabilidade determina a liberdade do eu. A liberdade não consegue se
justificar por ela mesma. A infinitude não está no livre-arbítrio, mas na responsabilidade
pelo outro homem. Para Lévinas “justificar a liberdade não é demonstrá-la, mas torná-la
justa”331.
Neste caso a moralidade não se funda sobre a autonomia da vontade racional, mas
sobre uma outra base que orienta e precede o sujeito, ordenando-lhe ao bem. Isso não
parece significar que a partir da autonomia da vontade o eu seja incapaz de realizar
ações de cunho ético porque, uma ética que tem como base a consciência que coincide
consigo mesma não assegura o respeito pelo outro ser. Não se trata, porém, de negar a
identidade, mas de afirmar a individualidade do eu, ou seja, do sujeito. Nesta
compreensão se entende que o eu é, na medida em que é responsável por outrem. Somos
todos responsáveis por tudo e todos responsáveis perante todos, e ao tomar consciência,
a responsabilidade do eu é maior que a dos outros. A responsabilidade neste caso é
assumida não somente pelos atos que se comete, mas também por aqueles que não são
de sua autoria.
A partir disso se compreende que o humano emerge, quando o eu, ao invés de
procurar satisfazer seus interesses, estende a mão a outrem. O caráter humano de um
sujeito não se dissocia da responsabilidade por outrem. Isso significa que a
responsabilidade não se mede pelos compromissos livres de uma mentalidade egoísta.
330
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Tradução de RIBEIRO, José Pinto, Lisboa: Editora 70,
1988.
331
Ibidem p. 70.
110
Essa compreensão parece contrastar com a visão tradicional da responsabilidade,
vista como decorrente de uma interpretação da liberdade, baseada numa escolha livre,
em que a responsabilidade consiste em responder por atos praticados. A
responsabilidade como princípio, tal como em Jonas, é preventiva, como que sem
responsabilidade não há liberdade. A liberdade depende da responsabilidade que se lhe
impõe e também dá sentido. Sem responsabilidade a liberdade se desvanece, vira
libertinagem. Do ponto de vista ético o sujeito é responsável quando é capaz de se
autodeterminar, com consciência. Neste sentido, ser responsável é ser capaz de prever
os efeitos do próprio comportamento e quando for equivocado saber-se corrigir com
previsão. Parafraseando o imperativo kantiano a responsabilidade como princípio ético
leva a crer que a ética exige que cada um deva agir de acordo com as suas convicções
pessoais, mas esta deve estar de acordo com o que é válido para os demais.
Para Hans Jonas a responsabilidade não está centrada nem no passado nem no
presente. Sua preocupação é com o futuro e com as gerações futuras e a sobrevivência
das mesmas. É neste sentido que se devem refletir as situações histórico-persistentes na
América Latina. À pergunta que o autor formula em seu livro O princípio
responsabilidade: “O que poderia satisfazer mais uma busca consciente da verdade?”332.
Ele mesmo “recorda as palavras de Oppenheimer que, após anos trabalhando em um
laboratório na busca da fissão nuclear e observando sua aplicação em Hiroshima, teria
assinalado que, naquele momento, o cientista puro tomou conhecimento do pecado”333.
A partir desse momento, ele diz, a paz de consciência foi abalada em todos os campos
de investigação. É a mesma consciência exigida ao elaborar uma teoria científica a
partir da América Latina.
Por essas e outras razões Jonas, no seu livro, defende a criação de uma teoria da
responsabilidade. A responsabilidade que Jonas nos quer chamar a atenção vai em
direção ao princípio misericórdia sobriniano, numa atitude de re-ação misericordiosa
com aquele que é menos favorecido e mais vulnerável. A ética da responsabilidade de
Jonas tem “como característica o defeito de favorecer o lado menos beneficiado pelas
circunstâncias. Tal ética estará sempre ao lado dos fracos contra os fortes e dos que
aspiram contra os que já possuem”334. Ainda segundo ele, “só uma ética que nos
responsabilize a todos pode cumprir seu papel de apontar os valores e os fins a serem
332
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Tradução de LISBOA, Marijane e MONTEZ, Luiz
Barros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO, 2006, p. 18.
333
Ibidem p. 19.
334
Ibidem p. 18.
111
perseguidos”. Sobrino diz que é necessário “Vincular el futuro de la humanidad al
destino de los pobres se há hecho uma necesidad histórica (...) solamente lãs víctimas
pueden redimirlo”335.
O discurso da responsabilidade é situado no humanismo cristão em vista do
respeito à vida que lhe é inerente. Qualquer tentativa de degradação humana coloca em
cheque os princípios para os quais o torna humano. A “dignidade do ser humano exige
que possa agir de acordo com uma opção consciente e livre, isto é, movido e levado por
convicção pessoal, e não por força de um impulso interno ou debaixo de mera coação
externa”336.
Em vista dessa responsabilidade, o magistério eclesiástico latino americano,
reunido em Puebla cunhou a célebre expressão “opção pelos pobres”, no intuito de
chamar para uma reflexão profunda e o comprometimento com aqueles que Gustavo
Gutierrez diz “que morrem antes do tempo”337. A opção pelos pobres é um reagir
terminantemente contra a miséria e reagir por uma única razão: “confrontar todo ser
humano pelo simples fato de sê-lo. Esta é a forma de ver a realidade, de reagir diante
dela, encarnar-se nela e viver como ser humano: salvo”338.
O princípio misericórdia na sua reflexão leva em consideração a pobreza real em
que vivem os pobres históricos. Viver uma pobreza espiritual à margem da pobreza real,
dicotomiza o sentido que se propõe aqui, transformando-se numa mera espiritualidade
sapiencial, ascética e estética, de caráter individualista, espiritualista e aristocrática, que
acaba pervertendo a compreensão da espiritualidade, além de contribuir para a ideologia
de dominação que neste estudo se propõe superar.
Um exemplo, mediado pela responsabilidade, são as pesquisas em seres humanos
realizadas em países pobres do hemisfério Sul. O bioeticista, professor William Saad
Hossne, propõe em seus estudos que os princípios do principialismo, elaborados por
Tom Beauchamp e James Childress, nos apontam um acometimento de injustiça em que
diante de um sujeito de pesquisa, não raramente fragilizado, dependente direta ou
335
SOBRINO, Jon Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid:
Editorial Trotta, 2007, p. 96.
336
COMPÊNDIO Vaticano II. Constituição Pastoral GS. Nº 17, Petrópolis-RJ: Vozes, 1998, 27ª ed.
337
SOBRINO, Jon. Opção pelos pobres. In: SAMANES, Cassiano Floristán e TAMAYO-ACOSTA,
Juan-José (Orgs.). Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. Tradução de FERREIRA,
Isabel Fontes Leal e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p. 528-540. Aqueles que se
aproximam da morte lentamente, devido a estruturas injustas que privam de vida, em si mesma “violência
institucionalizada” e aqueles submetidos à morte rápida e violenta quando tentam libertar-se de sua
injusta pobreza. Pobreza relaciona-se, então, com morte.
338
Ibidem.
112
indiretamente do pesquisador e ou da instituição que o assiste, acaba cedendo sua
autodeterminação, concordando com o que lhe é proposto. Abre mão de sua autonomia
(isso seria autonomia?), referencial caro à bioética, pelo receio de ser prejudicado em
seu atendimento e outras razões. O mais grave, dizia William, está em propiciar, “de
modo sub-reptício, a ‘legalização’ de eventuais injustiças já contidas na proposta” 339.
Esse mesmo caso diante de outro referencial, a vulnerabilidade, cabe perguntar “se
eticamente o pesquisador pode propor ao sujeito de pesquisa algo que é eticamente
insustentável e que passaria a ser aceitável porque o sujeito concordou com a proposta
inaceitável”340. “Tem o pesquisador, eticamente, o direito de propor algo que
sabidamente é inaceitável?”341. “Desse modo, em nome de um referencial caro à
bioética comete-se uma injustiça dupla: injustiça de um ato não-justo, imposto ao
sujeito, de um lado, e injustiça da validação da injustiça por parte do sujeito da pesquisa
(assinando o termo de consentimento)”342. Cabe então a pergunta: o que aponta para a
expressão básica da justiça ou injustiça? Onde se encontra em nós a percepção do que é
justo ou injusto? Ainda mais: o que motiva a agir com justiça ou injustiça?
Nesse contexto de povos vulnerados uma experiência física da dor só se justificará
quando ela for livremente consentida, quando senti-la significar uma escolha que reflita
a autonomia, mas também a responsabilidade e não a sujeição decorrente da
vulnerabilidade343.
Caso
uma
pessoa,
debilitada
fisicamente
e
vulnerável
economicamente, por ignorância ou qualquer estado de vulnerabilidade, não tenha
possibilidade de optar livremente, logo não é permitido, primeiro pela ética e, depois
por resolução bioética, que seja violado os direitos de um sujeito em tal situação.
No intuito de proteger os sujeitos em procedimentos de pesquisas, e diga-se da
grande defesa aos mais vulneráveis, foi aprovada no Brasil a Resolução 196/1996, pela
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). É uma iniciativa já consolidada no
Brasil pela quantidade de CEPs (Comitês de Ética em Pesquisa), apesar que se nota,
339
HOSSNE, William Saad. Poder e injustiça na pesquisa com seres humanos. In: GARRAFA, Volnei e
PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 279.
340
Ibidem.
341
Ibidem.
342
Ibidem.
343
GARRAFA, Volnei e PORTO, Dora. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In:
GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 35.
113
“senão abertamente pelo menos de modo velado, essa posição de resistência de muitos
pesquisadores”344.
No encontro com os pobres, os mais sofredores e vulneráveis, a experiência da
solidariedade, no sentir a dor do outro, na indignação frente às injustiças e nas diversas
formas de luta para defender a dignidade de todos os seres humanos, muitos de nós
percebemos claramente que este caminho é o lugar privilegiado para uma verdadeira
experiência espiritual de libertação, de ação, do sentir-se responsável. É preciso
perguntar sempre e, antes de tudo, onde estão os feridos do caminho? Em cada local há
feridas e sofrimentos específicos que é missão fundamental pessoal, institucional,
comunitária e científica estarem presentes e reagir com misericórdia.
A misericórdia regida como princípio desperta em muitos pesquisadores,
instituições e entidades a agirem responsavelmente em vista das pessoas espoliadas,
mas é uma atitude que, antes mesmo de projetada, sofre perseguição e ameaças por
parte daqueles que querem perpetuar seus interesses egoístas. Quando elas agem assim
o dinheiro com finalidade de investigação e pesquisa é limitado, quando não cortado; as
instituições sofrem retaliação; as pessoas individuais são reprimidas e caladas. Por outro
lado, a ausência de ameaças, ataques e perseguições revelam em princípio outra coisa:
restringiram-se em agir com misericórdia-assistencial e deixou de reger pelo princípio
misericórdia.
Para Sobrino estes dois tipos de atitudes são muito comuns na América Latina,
que diríamos já estar impregnada na formação cultural do povo, ou seja, uma ação
voltada para as obras de misericórdia, mas que não aceita ser regida pelo princípio
misericórdia; e outra configurada pelo princípio misericórdia, que aceita as obras de
misericórdia, sem, contudo, contentar-se com elas. Assim podemos lembrar que o
samaritano não somente assiste a vítima, mas vai além; aquele que mostra compaixão e
se preocupa com a vida e não somente com a ferida.
De qualquer forma “a ultimidade da misericórdia supõe a disponibilidade a ser
chamado samaritano. Os que praticam essa misericórdia não desejada pelos salteadores
são chamados de tudo”
345
. “Em los médios de comunicación se habla de los pobres
siempre de forma negativa, como los que no tienen cultura, los que no tienen para
344
ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos
bioéticos. Revista Bioethikos, Centro Universitário São Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, Nº 1, p.
12-23.
345
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 43.
114
comer. Visto desde fuera, el mundo de los pobres es todo negatividad”346. Na América
Latina são chamados, sobretudo, pela impressa, que geralmente está à serviço dos
verdugos, de subversivos, comunistas, guerrilheiros, terroristas, traficantes, agitadores,
bandidos, mafiosos, marginais e outros.
Sufocados no silêncio opressor, não raro notam-se manifestações (de libertação)
de fenômenos chamando atenção da população acomodada e absorvida pelas injustiças,
através de tiroteios, mortes, queimas de ônibus, invasão dos alunos em universidades e
nas ruas como efeito dessa violência primordial: a injustiça, fruto de desajuste social. Os
que reclamam - se não são interessados ou hipócritas - deviam atentar para o óbvio:
todos esses atos não passam de gestos destinados a chamar a atenção da sociedade para
o drama que vive as populações. Logo, a verdadeira violência é anterior a esses efeitos
que de toda forma se tenta encobrir.
Por isso as instituições que estiverem dispostas a se deixarem reger pela
misericórdia devem também estar dispostas a buscar alternativas de “um outro mundo
possível” e não temer “perder” poder e fama diante deste mundo que se coloca contrário
à verdadeira misericórdia. É um mundo anti-misericordioso.
Mas, Sobrino afirma que, sem dúvida, visto de dentro o mundo dos pobres tem
vitalidade: lutam para sobreviver, inventam trabalhos informais e constroem uma
civilização distinta de solidariedade, de pessoas que se reconhecem iguais, com formas
de expressão próprias, incluindo a arte e a poesia. Encontram-se elementos importantes
no mundo dos pobres como a alegria, a criatividade, a paciência. É uma experiência
salvífica que gera esperança347.
3.3.1.1 - A co-responsabilidade das Igrejas na ação misericordiosa
Não se pode passar adiante sem chamar atenção para a co-responsabilização das
Igrejas sobre esta realidade, sabendo que estamos falando de um Continente em que a
população é predominantemente cristã. Nele está embutida uma formação e um espírito
que, paralelamente à racionalidade vigente, deve co-responsabilizar os seus pares.
O princípio misericórdia é o elo, inspirador do exemplo de seu Mestre e por isso,
não pode deixar de responsabilizá-las. Mesmo em meio às complexidades, aqui já
346
SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid:
Editorial Trotta, 2007, p. 78.
347
Ibidem.
115
exposta, tem as igrejas o dever de fazer valer aquilo que ensinam. Isso seria abrir
caminhos. Como seguidoras do espírito do Mestre de Nazaré, não podem temer o
desafio colocado, pois o seu Deus é, de fato, um Deus transcendente; mas não um Deus
distante, separado348. É um Deus próximo e cuja proximidade lhe dá condição de
possibilidade e permanência entre seus discípulos: não abandona, mas dá segurança.
A realidade fundante dessa segurança está na própria encarnação, ao aproximar-se
dos homens, como centralidade de uma experiência que reanima os de espírito abatidos,
faz os caídos levantarem e os mortos reviverem. Essa experiência fundante encontra-se
também nas bem-aventuranças: “bem aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia; bem-aventurados os que promovem a paz... bem-aventurados
os que são perseguidos por causa da justiça...”349. Nesta experiência fundante, do agir
com misericórdia, está o indicativo para a espiritualidade que deve impregnar as igrejas
para a formação de uma espiritualidade comprometida, séria e atenta às realidades do
continente.
O aproximar-se de Deus significa o romper da assimetria e o distanciamento entre
o homem e a salvação. Essa aproximação faz gerar vida e a história fica impregnada por
ele gerando esperança, verdade, justiça, curando, humanizando, potenciando e
comunicando de si mesmo aos homens. Mesmo que o homem o ignore, mas ele é
presente. O aproximar Deus do homem e da sociedade requer uma atitude de curá-los,
humanizá-los e potenciá-los. A aproximação salvadora acontece em âmbito pessoal,
histórico-social e total.
Daí surge o serviço “sacerdotal” e comum, de encontro entre batizados e não
batizados, como lugar da misericórdia. Um serviço que nasce de uma espiritualidade
concreta e gera comprometimento com quem tem fé e com àqueles que são afastados ou
agnósticos. No dizer de Felix Wilfred esse serviço brota de um Jesus “tão
fascinantemente humano que não se pode deixar de amá-lo. Ele pertence a toda
humanidade. Ele não é monopólio de algum grupo, comunidade e religião. Nele
348
Dizia o paraguaio Fernando Lugo: “Eu creio que a Igreja é política, pois Jesus de Nazaré foi
condenado por um tribunal político e por um religioso. Mas há um temor de que a Igreja se politize, que a
Igreja se confunda com um projeto histórico determinado, que a Igreja aposte num programa temporal. A
Igreja quer salvaguardar sua história. Em seus discursos ela sempre criticou os totalitarismos. Ela foi
crítica do capitalismo e também do socialismo em suas encíclicas desde Leão XIII e isso é mantido”.
LUGO, Fernando. Uma reforma agrária integral é ineludível. www.institutohumanitas.com.br/; acessado
em 18-06-2006.
349
Mt 5.
116
aprendemos a gramática do que é ser humano”350. Uma experiência que nasce de uma
atividade do espírito, de uma motivação e um impulsionamento que só pode ser santo,
porque mostra o caminho e faz a vida acontecer, mesmo que para isso seja “preciso
perdê-la”351. Tal atividade de Jesus está guiada pelo serviço e pela aproximação de
Deus. Uma experiência que deseja somente o bem, e por isso se preocupa em socorrer a
vítima que não pode decidir por si e está em estado de vulnerabilidade completa. A
primeira experiência se faz na acolhida do ferido, machucado, àquele/a que está à
margem. Não lhe tira a condição de direito, sua autonomia; antes respeita, pois isso é
condição de libertação.
Sobrino diz que é evidente no serviço de aproximação histórica de Deus um
serviço sacrificante. O sacrifício que Cristo acentua é a verdade do amor e a
credibilidade de Deus. “Pelo menos uma coisa fica clara: é verdade que Deus se
aproximou dos homens até o fim e sem condições. O sacrifício não é outra coisa que a
conseqüência de uma existência sacerdotal verdadeiramente vivida em favor dos
homens.”352. A América Latina oferece um lugar por excelência para o exercício desse
serviço ou “sacerdócio comum”, não querendo com isso instrumentalizar a realidade de
miséria. A miséria coletiva, a injustiça e a opressão, a aniquilação de povos indígenas e
pobres, a repressão e as torturas, os desaparecidos e os assassinados, os massacres e os
refugiados, os desempregados... mostram a urgência que têm no processo de salvação. É
importante lembrar que a vontade de Deus para esse homem não é que ele morra, mas
que ele viva; “E todas as vezes que fizerem a um desses pequeninos, a mim estarão
fazendo”353. Aqui Jesus se iguala aos últimos e quando os matamos, crucificamos
novamente a Jesus, pois neste caso, os pobres são Deus com eles e neles. É o próprio
Deus crucificado.
Agir com responsabilidade e misericórdia requer mudança de atitude, conversão,
de quem precisa deixar se transformar para transformar. A primeira reação é interna: o
compadecer da dor humana. Essa é uma atitude fundamental, sobretudo para os ricos.
“Não se pode viver com sentido construindo o futuro sobre os cadáveres de famílias
humanas” 354. Para isso precisam ser tocados pela realidade e criatividade humanizante
350
WILFRED, Felix. Cristianismo e cosmopolitismo. Para uma universalidade inversa. Revista
Concilium, Fasc. Nº 319, 2007/01, p. 120-131.
351
Mt 16,25.
352
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 203.
353
Mt 25, 40.
354
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 129.
117
dos pobres que oferecem o perdão, não como uma conquista do verdugo, mas dom da
vítima.
3.3.2 - Solidariedade
O princípio misericórdia deve fazer despertar um profundo sentimento de
solidariedade diante das pessoas vulneradas e sofridas: o mesmo gesto do samaritano.
Há na América Latina, e nos pobres em geral, o espírito de solidariedade e gratuidade
nas relações que perpassam sua convivência dando salvação a esse povo crucificado.
Para Sobrino o que está acontecendo na América Latina é um verdadeiro avanço em
humanidades, o que não se consegue ver no primeiro mundo355.
Trata-se de um lugar que se descobre e desenvolve uma “teologia da
solidariedade”. Essa solidariedade, como resposta ética às necessidades, leva a um
profundo comprometimento ou cumplicidade com a vida do outro. Poder-se-ia pensar
que a solidariedade se converte em ‘aliança’ entre pessoas, igrejas, partidos políticos,
universidades num intercâmbio com o mesmo objetivo.
São os pobres que desencadeiam a solidariedade. “Solidariedad significa llevarse
mutuamente los pobres y los no-pobres, dando unos a otros y recibiendo unos o otros lo
mejor que tenemos para llegar estar unos con otros”356. Na concepção do autor “lo que
reciben los no-pobres puede ser, como realidad humanizante, superior a lo que dan. Este
tipo de solidariedad va más allá de la mera ayuda, en uma direción, com la tendência
intrínseca a la imposición y la dominación”. O importante é que a origem da
solidariedade, assim entendida, não está em qualquer lugar, senão nos pobres.
O outro, na perspectiva da solidariedade, torna-se o referencial tanto para dar
quanto para receber. Para Sobrino a solidariedade é descoberta por “Aqueles que se
viram afetados por estes questionamentos no mais profundo de seu ser homem”357.
Lévinas358 diz que a epifania do outro é visitação de si mesmo. Daí brota a solidariedade
profunda, do reconhecer um-com-o-outro. “A epifania do absolutamente outro é rosto
355
Ibidem p. 216. “Chamamos ‘solidariedade’ a esta nova forma de se relacionarem – de fato e de direito
– os cristãos e as igrejas entre si, originada pela solidariedade fundamental, de uma igreja com seus
pobres e oprimidos, mantida como processo de mútuo dar e receber, elevada até o nível da fé. É a forma
de os cristãos e as igrejas se relacionarem segundo a conhecida frase paulina: suportai-vos uns aos
outros”.
356
SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid:
Editorial Trotta, 2007, p. 91.
357
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 221.
358
LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993, p. 51.
118
em que o Outro me interpela e me significa uma ordem, por sua nudez, por sua
indigência. Sua presença é uma intimação para responder”359. O outro provoca este
movimento ético na consciência que, enquanto fenômeno é a nossa possibilidade de nos
identificar a nós mesmos. Um outro que nos é estranho e mesmo assim nos atrai. O
rosto é aquele, e não aquilo, que é capaz de proximidade e afeto, sofrimento, ternura e
carícia, compreensão e respeito, justiça e solidariedade.
A gravidade manifesta-se na concepção instrumental da pessoa que a converte de
sujeito em objeto, de alguém em coisa. Sobre isto Martin Buber360 lembra que o corpo
foi transformado em coisa. E agora se quer coisificar sua alma que é sua dimensão de
pessoa. E neste caso, os mais vulneráveis são as presas mais fáceis e primeiras. Como
pessoa a realidade da pobreza nos priva da mais elementar interpretação existencial que
temos de nós mesmos como homens, ou como seres que preservam a imagem de nós
mesmos e tem consciência dessa dignidade. Neste caso a falta de solidariedade destrói o
nosso centro de gravidade ética. É a extinção da categoria mais fundamental que
compõe o ser da pessoa. A experiência de motivar para agir movido pela expressão
básica da solidariedade somente acontece ao se colocar no lugar do outro. Ao se dar
conta de ter estado no lugar do outro, ou seja, de quando se era escravo e obteve a
liberdade. “A alteridade das vítimas descobre como ilegítimo e perverso o sistema
material de valores, a cultura responsável pela dor injustamente sofrida pelos
oprimidos”361.
Para a verdadeira libertação a expressão básica da solidariedade deve estar
intimamente integrada ao princípio misericórdia, sendo esta a experiência de origem e
fundante. São realidades importantes, pois geram completude ao processo de salvação.
Trata-se da gratuidade. Sobrino diz que nos pobres estão, por direito, o descobrimento
da realidade e “a origem da solidariedade, porque essa verdade é uma apelação primária
ao humano de qualquer homem, um questionamento ao homem como ser social a toda a
humanidade, uma exigência de mudança e conversão para que o homem recupere sua
identidade deturpada”362.
A solidariedade traz salvação também às organizações, às igrejas, à ciência. Ela
questiona, interpela e desvela os desequilíbrios aí existentes. Questiona a co359
Ibidem; p. 53.
BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução de ZUBEN, Newton Aquiles Von. São Paulo: Centauro, 2004,
Introdução.
361
DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 315.
362
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 219.
360
119
responsabilidade entre os homens no intuito de poderem ser simplesmente mais
humanos, ou seja, gerar humanidade. Questiona os crentes e não-crentes para redelinear
e reformular a atenção dos discursos, pesquisas e tarefas para o que é, de fato,
fundamental e importante. Serve para fazer das realidades primárias a mediação da
pergunta por Deus e o mistério, bem como o nível da resposta que deve ser dada.
A solidariedade, se bem compreendida, tem o intuito de ser resposta de fé ao
humano, onde verdadeiramente se encontra Deus. Pois também, “Quem diz que ama
Deus e odeia o seu irmão é mentiroso”363. Essa resposta poderá ser realizada de diversas
formas como em ajuda material, apoio moral e espiritual. Mas, nos diz Sobrino que “o
que dá sentido a essas diversas formas de ajuda não é considerá-las como obras
regionais, mas como a urgência de propiciar a vida dos pobres. Ser homem hoje tem que
significar ser co-responsável” 364 com os pobres.
“Essa resposta à dor dos pobres é uma exigência ética, mas é, além disso, uma
prática salvífica para os que se solidarizam com os pobres. Os que fazem isso recobram
o sentido profundo da própria vida”365 e “recobram a dignidade de ser homens
integrando-se de alguma forma na dor e no sofrimento dos pobres; recebem os pobres
de forma insuspeita, olhos novos para ver a verdade última das coisas, e novo ânimo
para percorrer caminhos desconhecidos e perigosos”366.
Assim como esses pobres são realmente um outro para seu interlocutor, os que
com eles se solidarizam fazem também a experiência de sentido, de se sentirem
remetidos a outros para sua própria verdade, de terem de responder com a palavra
“agradecido” por algo novo e melhor que lhes foi dado. O pobre como outro e que
interpela por solidariedade torna-se mediação de Deus, onde se encontra desinteresse
egoísta, despojamento, ânimo, gratuidade, salvação. Essa solidariedade é a experiência
que se faz na gratuidade, que está para além da exigência ética. “Não é difícil considerar
a doação que procede dos pobres enquanto ‘outros’, como mediação da gratuidade de
Deus”367.
“A
raiz,
então,
da
solidariedade
está
naquilo
que
desencadeia
corresponsabilidade humana, que faz dessa corresponsabilidade uma exigência ética
363
1Jo 4, 20.
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 222.
365
Ibidem.
366
Ibidem.
367
Ibidem.
364
120
inevitável, e do exercício dessa corresponsabilidade algo bom, plenificante e
salvífico”368.
No intuito de mostrar o estupendo gesto de solidariedade e co-responsabilidade de
quem ama Sobrino assume a expressão de D. Bonhoeffer:
“Os homens em sua dor chegam a Deus,
Imploram ajuda, felicidade, pão,
Que salva os seus da enfermidade, da culpa e da morte.
Isso fazem todos, todos: cristãos e pagãos.
Os homens se aproximam de Deus na dor de Deus,
E o encontram pobre, insultado, sem abrigo, sem pão,
Vêem-no vencido e morto por nosso pecado. Ó Senhor!
Os cristãos permanecem com Deus na paixão”.369
Aqui se apresenta um exemplo: a suprema solidariedade de Deus com seu povo,
pois exprime que o silêncio de Deus na cruz, revela que também ele está na paixão junto
aos crucificados. Para os cristãos na América Latina esse é o fato maior, que faz
despertar a fé. Ele é solidário aos crucificados e, por isso, dá-lhes a vida. Mas Sobrino
pergunta: “O que pode significar que o sofrimento afeta a Deus?”, ou “Como o
sofrimento da cruz afeta Deus, o Pai, a origem e futuro último de tudo, quem parece
estar para além de tudo?”370.
Para responder essas perguntas precisa estar ciente de que “o sofrimento continua
sendo o enigma por excelência para a razão humana. Esta pode compreender o fato e até
certo ponto o significado de um mal e uma dor que são necessários para o
crescimento”371; bem como, que há um mal referente às limitações e catástrofes
naturais, necessários por pertencer à própria natureza. Mas “existe um mal histórico, o
infligido voluntária e injustamente a alguns seres humanos por outros, que não tem
sentido em si mesmo”372. Por exemplo, que sentido tem o assassinato de tantos homens
anônimos, camponeses e operários, que lutam e lutaram por uma vida mais digna e mais
humana para si e para os outros e foram exterminados?
Também para a fé, diz Sobrino, “o sofrimento continua sendo enigma, e diante
dele o homem religioso e cristão se põe diante de Deus na cruz de Jesus, no máximo
momento simbólico de sofrimento”373. E se pergunta: “O que Deus faz com o
368
Ibidem.
SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 362.
370
Ibidem p. 351.
371
Ibidem p. 349.
372
Ibidem.
373
Ibidem p. 350.
369
121
sofrimento da cruz?”. Aqui não deparamos com a racionalidade, mas com o “escândalo”
vertiginoso que só uma estupenda solidariedade de um Deus que ama pode ter.
Na cruz, não se trata de pôr meramente diante de Deus a presença do sofrimento
para buscar seu possível sentido, mas, sobretudo, de ver Deus tal qual é. “Diante do
sofrimento Deus ‘não faz nada’ assim como os seres humanos esperaríamos que ele
fizesse. O inesperado e novo para nós é, antes, que ele também participa do
sofrimento”374. No silêncio de Deus, diante da cruz de Jesus e dos crucificados, para a
teologia sobriniana, o importante “é a afirmação de que Deus estava na cruz de Jesus.
Esse ‘estar em’ não pode ser separado da cruz em que Deus estava, pois pertence à
estrutura histórica da revelação o fato de a realidade do lugar que Deus se manifesta ser
mediação de sua própria realidade”375. Desse modo, “nada saberíamos de um Deus bom,
se ele não tivesse estado nas obras bondosas de Jesus. Nada saberíamos de um Deus que
perdoa, se não tivesse estado na acolhida de Jesus aos pecadores”376.
Deus se acerca da pessoa perdoando o pecador, não o pecado, mudando o seu
coração de pedra em coração de carne. Para Sobrino é aí que Deus se aproxima da
realidade histórica social, libertando um povo, mudando suas estruturas de opressão por
outras de liberdade. Dito de outra maneira: se povos inteiros crucificados não têm a
força para mudar o coração de pedra em coração de carne, se pode perguntar o que o
fará. E se nada o faz, é possível perguntar que futuro espera os ricos que mantêm suas
vidas construídas sobre cadáveres de família humana. Vivendo dessa maneira, não pode
haver sentido verdadeiro, que brota da transparência, da tranqüilidade e gera paz. Isso
propicia valores espirituais que impregnam a realidade toda da pessoa e da sua cultura
como fraternidade, reconciliação, liberdade... Esse modo de viver gera conflitividade,
porque a “boa nova” não pode ser dita e feita sem a denúncia da realidade má e suas
estruturas. Deve ter um cunho testemunhal, que faz gerar serviço concreto a partir da
expressão básica da misericórdia. Para tanto necessita de disponibilidade, de “perder”
tempo e grandeza de coração377.
374
Ibidem p. 351.
Ibidem p. 353.
376
Ibidem.
377
Ibidem.
375
122
3.3.3 - Perdão
O termo perdão, como salvação, está mais fortemente ligado à epistemologia
teológica, mas também vinculado à antropologia, à psicologia e outros campos de
investigação. A idéia de perdão na teologia está ligada à concepção de pecado como
falha, transgressão, impiedade, perversidade e ação conscientemente contrária à norma.
O pecado emana da liberdade falível do homem perante a exigência de ação e à
imperiosidade do bem para a consciência378. Sempre que o homem se afasta da fixação
sobre si mesmo e assim da esterilidade, sempre que se compromete realmente em favor
dos outros, individual ou socialmente, na política ou na ciência demonstra uma atitude
de perdão379. Dionísio Borobio afirma que há muitas formas de expressar, realizar e
viver o perdão. “Mas, pode-se afirmar que, assim como a humanidade descobre a sua
falta de sentido na história do pecado, da mesma forma, encontra sentido na história do
perdão”380.
Borobio trabalha a perspectiva psico-antropológica do perdão que supõe resposta à
dor que o indivíduo sofre, por causa da ação que lhe é infligida, o qual consideramos
responsável de nossa desgraça pessoal e ao qual nos sentimos ligado por vínculos
familiar, social ou de convivência. Diz que para perdoar o outro é necessário ter
intenção e se decidir a perdoá-lo, convencidos das vantagens e desvantagens do não
perdoar. Nesta perspectiva, o perdão se caracteriza como benefício não só para quem o
recebe, mas também para quem o concede. Numa perspectiva sociopolítica o assunto
ganha grandes repercussões. O perdão ou a falta dele influi decisivamente nas relações
familiares, sociais e políticas. “Assim como o pecado, a injustiça, a desordem, têm
dimensão social, porque concernem e comovem, negativamente, à vida comunitária e
social em todos os seus aspectos, a reconciliação e o perdão têm dimensão social que
repercutem, positivamente, na sociedade em todos os níveis”381. Na linguagem bíblica
perdão é o lugar comum onde YHVH (‫ )יהוה‬fala ao seu povo por meio dos profetas382.
378
BASILIO, Petrà. Pecado. In: VENDRAME Calisto e PESSINI, Leocir (Orgs.). Dicionário
Interdisciplinar da Pastoral da Saúde. São Paulo: Paulus/São Camilo, 1999, p. 946-951.
379
VORGRIMLER, Herbert. Penitência /Perdão. In: EICHER, Peter (Org.). Dicionário de conceitos
fundamentais de teologia. Tradução de COSTA, João Rezende. São Paulo: Paulus, 1993, p. 668-676.
380
BOROBIO, Dionísio. Perdão. In: SAMANES, Cassiano Floristán e JUAN-JOSÉ, Tamayo-Acosta
(Orgs.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. Tradução de FERREIRA, Isabel F. Leal
e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p. 612-618.
381
Ibidem.
382
MACKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. Tradução de CUNHA, Álvaro et alli. São Paulo: Paulinas,
1983.
123
Na perspectiva cristã a expressão básica do perdão assume um caráter fundamental
vinculada a experiência fundante de seu Mestre. A efetivação do princípio misericórdia
passa necessariamente pelo perdão. O perdão assume condição de centralidade e
finalidade na compreensão da misericórdia, por ser ele libertador e expressão de
superação da indignidade, que devolve a dignidade salvífica anteriormente perdida. No
perdão, ou seja, na experiência de encontro e reconciliação, na paz como o shalom
hebraico, o princípio misericórdia tem o seu amparo e fundamento.
A teologia constata no modus vivendi latino americano, como já abordado, uma
complexa situação de pecado onde povos inteiros vivem crucificados. A concepção
intimista do pecado assume forte correlação com sua conotação mais abrangente e
circunstancial. Para se ter uma idéia, se o “pecado maior” na experiência do hemisfério
Norte é resultante de uma sociedade que caminha para o consumismo e a autosuficiência secularista, no hemisfério Sul este “fato maior” pode ser caracterizado pela
ausência de mudanças palpáveis nas relações humanas, onde crescem as injustiças, a
opressão, a discriminação, a marginalização, a violação sistemática dos direitos
humanos e daí por diante.
Esta é uma situação que a civilização ocidental, democrática e cristã não foi capaz
de mudar. Nem o humanismo, o renascimento e a ilustração como movimentos da
racionalidade moderna foram capazes de superar o fenômeno da grande pobreza. Com
isso devem-se questionar tais movimentos, que cooperaram no avanço de um tipo de
racionalidade, sem responder a uma situação concreta e urgente, que são as
desigualdades da vida cotidiana e outros fatores. Diante de tal evidência cabe perguntar
se não foram esses movimentos cooptados para atender aos interesses de uma elite,
quando não elaborados por ela? Uma coisa é fato: mesmo durante tanto tempo não
foram capazes de humanizar e trazer uma relação sadia entre pessoas, países,
continentes.
A partir desse fato uma pergunta que a teologia sobriniana coloca com toda a
seriedade é se há possibilidade de perdão àqueles que são ofensores, e caso houver, em
que medida ele acontece? Como brota a capacidade do perdão entre as vítimas? A isso
Sobrino diz “que na América Latina existe o perdão desse tipo de ofensas como resposta
cristã ao pecador. Por ser perdão de ofensas tão graves, a realidade desse perdão ilumina
sua essência muito melhor do que qualquer análise conceitual”383.
383
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 104.
124
O perdão oferecido pela pessoa é acima de tudo a manifestação de um grande
amor que sai ao encontro do pecador e, por isso, tem um único intuito: salvá-lo. Essa é a
típica manifestação do amor em que seu interesse está simplesmente em transformar o
mal em bem lá onde aquele se faz presente. Parafraseando Berdiaev, Sobrino diz que “o
pecado é um mal físico para o ofendido, mas é um mau moral para o ofensor. É preciso
libertá-lo, e é isso que o perdão procura: a conversão, a re-criação do pecador”384.
“Querer converter o pecador com amor supõe crer que o amor é eficaz para
transformar o pecado e o pecador”385. Esta é “uma convicção utópica, porém mantida
apesar dos fracassos. Não é uma convicção idealista”386. Acreditar nesse amor alimenta
a perspectiva de curar o pecador pela raiz. Em nenhum outro mecanismo podemos
encontrar o poder específico para oferecer o perdão, e a partir dele abrir-se ao diálogo e
à convivência A finalidade de todo perdão é chegar à comunhão. Perdoar o pecador, diz
Sobrino,
es um poderoso acto del espíritu, un profundo acto de amor, pero con
características específicas, que exigen y propician uma determinada
espiritualidad... No se perdona por ningún interés personal o grupal, aun
legítimos, sino simplemente por amor; no se presenta el amor como
argumento convincente, sino que simplemente se ofrece387.
Sobrino distingue o perdão da seguinte maneira: o perdão à realidade e o perdão
ao pecador, que são tidas como “duas formas de um único amor. Cada uma delas exige
e propicia uma determinada espiritualidade”388. Ainda ele menciona a disponibilidade
ao perdão na vida cotidiana como complemento para que a espiritualidade do perdão,
complexa por si só, seja total, e leve a “integrar vários aspectos, os quais historicamente
estão em tensão: 1) no nível estrutural - a relação entre a erradicação do pecado e o
perdão ao pecador; 2) na vida cotidiana - o perdão das ofensas e sua relação com o
grande perdão estrutural”389. Assim, “a espiritualidade do perdão deve ter em conta
384
Ibidem.
Ibidem p. 105.
386
Ibidem.
387
SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador:
Sal Terrae, 1992, p. 106.
388
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 107.
389
Ibidem p. 107. A espiritualidade do perdão tem de se exercitar no nível estrutural descrito, mas
também na vida cotidiana, onde a ofensa é mais imediata e o perdão mais ardoroso. A opressão estrutural
ajudou a descobrir as opressões típicas dentro das comunidades: o machismo, o autoritarismo de seus
líderes, o desinteresse pelas responsabilidades, o egoísmo e a ânsia de dominação. O estrutural ajudou-os
a compreender o comunitário, mas o comunitário ajudou-os a entender o estrutural. As comunidades que
procuram a reconciliação interna são as mais dispostas à reconciliação social, as que mais trabalham pelo
diálogo, as que mais se alegram com os pequenos gestos de reconciliação. O perdão ao outro se vê isento
da possibilidade de se tornar gesto prometéico de superioridade última. A espiritualidade total do perdão é
uma manifestação da espiritualidade da libertação, dos homens e das mulheres espirituais descritos por G.
Gutierrez como ‘os livres para amar’. Perdoar é libertar, amar os oprimidos por uma realidade
385
125
todos estes aspectos e, sobretudo, integrá-los unificadamente, o que é coisa do espírito,
para que a ênfase dada a um aspecto não faça desaparecer o outro”390.
Este modelo de espiritualidade encontra síntese na proposta de Jesus, que ama a
todos e está disposto a perdoar a todos, indistintamente: ama os oprimidos, estando no
meio deles; e ama os opressores estando contra eles. Desse modo Jesus é para todos. Ao
amar os oprimidos “Jesus diz cruamente sua verdade aos opressores, denuncia-os,
desmascara, anatematiza e ameaça com a última desumanização. Por isso Jesus está
também, paradoxalmente, a favor dos opressores. É uma forma paradoxal de oferecer
salvação”391. A América Latina é lugar de pecado, mas também é lugar de perdão, lugar
onde abunda o pecado, mas onde a graça de Deus é maior.
Tratar de salvação aqui é recorrer à pessoa no seu todo, sendo que a raiz do termo
salvação é a mesma para designar a saúde. Salvar a pessoa é salvá-la no seu todo.
Fragmentá-la é detê-la na doença da compartimentarização que clama pela unidade do
seu ser. Assim quando Jesus propõe o perdão quer trazer à tona a vida integral da
pessoa. Quando desmascara a “verdade do pecado”, tem em vista a libertação da pessoa.
Sobrino diz com linguagem transcendente o que os evangelhos dizem de forma
extremamente simples é “que Deus se aproximou deste mundo de pecadores para salvar,
não para condenar”392. Referindo-se a Rahner diz: “’só o perdoado sabe que é pecador’.
É a acolhida do perdão que descobre cabalmente o fato de ser pecador, o que dá força
para reconhecer como tal e para mudar radicalmente”393. Trata-se de uma conversão
radical da morte para a vida, na acolhida eficaz que gera perdão. Para o cristianismo
essa é uma experiência vivida de quem se percebe amada por Deus, com o perdão e o
amor precedidos por Deus. No dizer de Gustavo Gutierrez, apud Sobrino, “amados para
amar” e “libertados para libertar”394.
É preciso perguntar se a libertação pessoal do pecado ajuda na libertação
histórica? Se o perdão pessoal traz a erradicação do pecado histórico? Substancialmente,
traz a possibilidade de uma melhor práxis libertadora, em sua direção, em sua
pecaminosa e, por isso, liberta-la; amar os opressores e, por isso, estar dispostos a acolhê-los e a destruílos enquanto opressores. Libertar a outros exige homens libertados. O perdão, enquanto amor eficaz e
gratuito, expressa essa espiritualidade. Dizia Monsenhor Romero: “É preciso defender os oprimidos e
perdoar a realidade. É necessário ir à base das transformações sociais de nossa sociedade. Se quisermos
que cesse a violência e cesse todo mal-estar, precisamos ir à raiz. E a raiz está aqui: na justiça social”.
390
Ibidem p. 109.
391
Ibidem.
392
Ibidem p. 144.
393
Ibidem p. 143.
394
Ibidem p. 149.
126
intensidade e em seus valores. Sendo apenas subjetivista cai no individualismo
excessivo, o que pode desembocar numa atitude escapista. Sendo objetivista cai no
reducionaismo de não considerar a proveniência dessa realidade que é o pecado.
Sobrino diz que “qualquer verdade, por central que seja não pode ser elevada a verdade
única o que seria outra manifestação da concupiscência humana, mas também
acreditamos que as verdades plurais em que se manifesta a única verdade de Deus
convergem”395. Por isso é possível acreditar haver uma relação positiva e mutuamente
complementar entre perdão pessoal e erradicação do pecado histórico. “No perdão o ser
humano torna-se sabedor de sua mentira e do seu conteúdo de sua mentira: abrem-se os
olhos para saber o que é e o que faz, a suma maldade de sua hybris e do produto
histórico dela”396. Portanto, há na realidade latino americana um “mysterium iniquitatis”
que exige e clama pela proclamação de um “misterium salutis”397. No perdão, o pecado
que assume formas diversas como hybris - opressão, mentira, assassinato, violências deve fazer a experiência de superação e libertação. Somente a partir do perdão, capaz de
gerar a libertação, se pode ir em direção ao outro e se sentir curado e livre.
3.3.4 - Cooperação
Há cooperação se houver perdão, descentramento, proximidade. A cooperação é
uma expressão básica que, bem concretizada, pode ser uma resposta de misericórdia
para a hybris na América Latina. Como o próprio termo sugere, trata-se de uma
operação conjunta, co-operar, operar com, operacionalidade feita com o outro, contar
395
Ibidem p. 149.
Ibidem p. 150. Para Sobrino a Hybris é arrogância radical que, tendo aparecido, escraviza o ser
humano e, portanto, necessita formalmente de uma libertação. Ibidem p. 147.
397
SOBRINO, Jon. A eterna tentação de negar a realidade. http://www.adistaonline.it/index.php;
acessado em 26-02-2007. “O mistério existe como enigma terrível sob forma de mysterium iniquitatis,
naquilo que vimos anteriormente: seres humanos que causam a morte, injusta e cruelmente,
desumanizando-se a si próprios. Mas, também no mundo das vítimas se manifesta o mistério da
iniqüidade. O mysterium salutis se faz real nos sucessos, pequenos ou grandes, dos pobres, na
solidariedade que eles geram em muitos e na fraternidade que vai nascendo entre pessoas, grupos e povos.
Também nos estudos e nas análises teóricas com finalidade de propor modelos de salvação, bem como
estratégias práticas para concretizá-los. Exprime-se na identidade, nas culturas, nas religiões, sobretudo
dos povos ancestrais, muitos dos quais empobrecidos e que resistiram através dos séculos também entre
muitas dificuldades. É sempre mais evidente que se arriscam todos. Mas, também nos momentos de
sofrimento, nas vítimas e nos pobres pode surgir, e surge, um anelo de sobrevivência e convivência com
os outros, trabalhando com criatividade, dignidade, resistência e força sem limites, desafiando imensos
obstáculos. Não tenho palavras para descrevê-lo. Chamei-o de santidade primordial. Não se pode dizer o
que haja nela de liberdade ou de necessidade, de virtude ou de obrigação, de graça ou de mérito: ela não
deve ser necessariamente acompanhada de virtudes heróicas, mas ela se expressa numa vida totalmente
heróica. Esta santidade primordial convida uns a dar aos outros, uns a receber dos outros, a celebrar uns
com os outros a alegria de serem humanos. Podemos dizer que destes pobres provém salvação”.
396
127
com o outro nas decisões, atitudes e meios de produção. Este conceito, embora aberto a
inúmeros tipos de relações, se aplica aqui, sobretudo ao ajudar àqueles que mais
necessitam, pois o sentido da misericórdia converge para resgatá-los, erguê-los, trazer
de volta, dar a vida.
A cooperação acontece entre pessoas individuais, organizações, entidades,
governos, igrejas, religiões, universidades, empresas, associações, etc. Há uma
experiência muito rica de cooperativas e associações em países latino americanos como
Brasil, Chile, Bolívia, Equador e outros que se podem notar tanto no espaço urbano
quanto em meio rural, mas sendo perceptíveis sobretudo nesse último como forma de
agricultores se organizarem por sobrevivência e melhores condições de vida398. São
atitudes assim que vão configurando e mostrando por onde perpassam as iniciativas e
atitudes de misericórdia. Este é o eixo fundador de uma possível nova racionalidade que
398
LINERA,
Álvaro
García.
Há
múltiplos
modelos
para
a
esquerda.
http://www.juonline.com.br/editorias_capa.asp?q_CodEditoria=43; acessado em 15-06-2007. Vale
ressaltar um pequeno trecho da entrevista de Álvaro Garcia Linera na qual testemunha a experiência que
está sendo realizada na Bolívia: As buscas plurais de modelos alternativos de desenvolvimento
econômico, redistribuição da riqueza e ampliação de direitos no marco da construção de uma
modernidade satisfatória. Mas, a partir de nossas próprias forças: já não há um texto ao qual obedecer, um
país ao qual imitar, um politburo ao qual seguir ou uma Internacional a respeitar. Isto não implica cair
num radicalismo pós-moderno. A verdade é que depois de tantos anos em que nos disseram que não havia
mais história, ou que a história nos conduzia a um lugar determinado, agora vemos que há muitas
histórias, que é possível encontrar certa unidade em busca da ampliação de direitos, da redistribuição,
dentro de uma grande pluralidade quanto às formas: quem conduz, como, a que velocidade e com que tipo
de liderança. São as características endógenas de cada processo que nos dão a explicação, mais que os
modelos morais do bem e do mal. O importante é que todos buscamos o mesmo, ainda que cada qual do
seu jeito. FENOCIN. Economia Solidária é prioridade em goveno equatoriano.
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=26294; acessado em 07-02-2007. No Equador,
na abertura da oficina sobre economia solidária, organizada pela Confederação Nacional de Organizações
Camponesas, Indígenas e Negras (FENOCIN), o ministro da Economia e Finanças, Ricado Patino,
anunciou a criação da subsecretaria de economia solidária. Ali o ministro disse que “um dos componentes
de trabalho da Subsecretaria de Economia Solidária será o desenvolvimento local e o apoio à atividade
associativa; além disso, se trabalhará nas propostas de fortalecimento da micro-finanças, de apoio à
capacitação, melhoramento tecnológico e da comercialização. Esta Subsecretaria definirá as linhas e
coordenará com as instituições como o Banco Nacional de Fomento, a Coorporação Financeira Nacional,
os organismos de apoio financeiro, a Rede Financeira Rural, Federação de Cooperativas de Economia e
Crédito do País, para que respaldem à pequena produção, especialmente a produção associativa,
comunitária e cooperativa que permitam desenvolver valores, não só ter um melhor nível econômicoe sim
os valores morais de solidariedade coletiva”. GASNIER, Annie. Sem-terra brasileiros, decepcionados
com Lula, buscam nova estratégia. http://www.juonline.com.br/editorias_capa.asp?q_CodEditoria=43;
acessado em 16-06-2007. No Brasil, João Pedro Stedile, coordenador nacional do MST (Movimento dos
trabalhadores Sem Terra), denuncia que pode testemunhar no 5º Congresso do MST, de 11 a 15 de junho,
acampados no eixo monumental de Brasília: "Depois de termos agüentado o imperialismo comercial que
herdamos da colonização, e o imperialismo industrial, estamos agora diante do agrobusiness, que nasceu
do casamento entre o capital estrangeiro e os grandes proprietários de terras". Segundo ele, “os
investimentos recentes da multinacional Cargill ou do homem de negócios George Soros nos setores da
soja e da cana-de-açúcar destinados à produção do etanol estariam provocando uma volta do país rumo à
monocultura, a qual esgota os solos e os recursos naturais, para produzir "agrocombustíveis" destinados à
exportação”. "A reforma agrária, com a qual o MST sonhou durante mais de vinte anos, não tem mais
sentido dentro deste novo contexto".
128
Maurício Abdalla defende e que “deve tornar possível a manifestação da nova essência
humana: o princípio da cooperação”399. Não se pode negar, contudo, que há
experiências infelizes, fraudes e tantos desvios que surgem em cooperativas, como se
podem ver testemunhos em nota de rodapé400. Acontecem também em torno do
narcotráfico e de organizações criminosas várias experiências de solidariedade e
cooperação entre os pobres que moram em favelas, etc. Evidentemente, não se trata
desse tipo de cooperação que estamos abordando aqui, mas de experiências que querem
proporcionar vida e não de aprofundamento no sistema de morte. Trata-se de
cooperação fraterna com o intuito de sobrevivência.
Sobrino401 diz que os pobres oferecem modelos às vezes pequenos, às vezes
notáveis de economia popular, de organização comunitária, de saúde, de vivência, de
direitos humanos, educação, cultura, religião, política, arte, esporte. Os pobres,
dependendo dos lugares e conjunturas, se organizam em movimentos populares para
defender seus direitos e também os direitos de outros pobres e oprimidos, e às vezes os
direitos de todos os pobres.
Em contraposição a essa solidariedade e ao cooperativismo as grandes
corporações, grandes empresas de agro-negócio com seus enormes interesses, em
detrimento da exploração e do sucateamento das terras em países, geralmente
subdesenvolvidos devido às leis mais permissivas, com isso gerando a perda da
soberania nacional pelas compras ou arrendamentos de terras por preços ínfimos;
injustiça social e bolsões de pobreza, o envenenamento do ambiente local; a
monocultura e dependência nacional de um só produto; a privatização da semente
399
ABDALLA, Maurício. O princípio da cooperação: em busca de uma nova racionalidade. São Paulo:
Paulus, 2002, p. 100.
400
ROSA,
Roberto.
Cooperativas
de
Trabalho.
Fraudes.
http://www.juonline.com.br/editorias_capa.asp?q_CodEditoria=43; acessado em 11-06-2007. Com 26
anos, a Cooperativa Paulista de Teatro reúne atualmente 3.500 profissionais. "A iniciativa aumenta o
volume de oportunidades", afirma o diretor da entidade Roberto Rosa. No início de 2004, o professor
universitário José Renato de Campos Araújo, 37, enviou seu currículo para faculdades. Queria preencher
melhor seu horário dando mais aulas. Recebeu resposta da Fiap (Faculdade de Informática e
Administração) e, ao fechar o contrato, foi informado de que a escola superior contratava seus docentes
via cooperativa. "O valor pago por aula era maior do que a média [de mercado]. Achei que seria bom."
Ao tentar conhecer melhor o sistema, no entanto, afirma ter sido afastado da cooperativa. "Enviei e-mail
perguntando quem era o presidente, quando realizavam assembléias e de quanto tempo era o mandato da
diretoria. Não tive resposta." Araújo fez parte de uma das 767 cooperativas investigadas pela
Procuradoria Regional do Trabalho de São Paulo. A Educação, conta Schramm, é uma das áreas que mais
concentram irregularidades. Ao lado dos setores de transportes, alimentação e médico, representa 60%
dos casos avaliados pelo Ministério Público. As cooperativas de trabalho tiveram um "boom" entre 2001
e 2002.
401
SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid:
Editorial Trotta, 2007, p. 90.
129
providas por uma só empresa; o monocultivo que substitui a diversidade de cultivos de
subsistência das famílias camponesas; etc. Os dados são grandiosos.
O semanário Brecha, de Montevidéu, denuncia que a Monsanto, companhia norteamericana, “está ligada a 60 por cento dos cultivos transgênicos do mundo. A área de
plantio na Argentina passou, desde meados de 1990, de 5 milhões de hectares a 16
milhões, em apenas 10 anos, o que fez com que o país alcançasse o segundo lugar
mundial na produção de grãos transgênicos”402. “Para alcançar este lugar, a Argentina
teve que hipotecar seu território como campo de prova da biotecnologia desenvolvida
pela Monsanto e outras transnacionais como Syngenta, Nidera, Cargill, Bayer y
Basf”403.
Segundo o Grupo de Reflexão Rural (GRR) daquele país, “uma catástrofe
sanitária de envergadura tal, que nos motiva a imaginar um genocídio impulsionado
pelas grandes corporações e que só os enormes interesses em jogo e a ignorância
cúmplice da classe política logram manter invisível e impune”404. O problema sanitário
é somente um dos problemas. Este grupo, na Argentina, menciona também o
desmatamento, a degradação de solos e a destruição da biodiversidade, além dos
deslocamentos territoriais e desemprego de pessoas indo para cidade.
Um sintoma dessa realidade pode ser vista também no Brasil, onde a produção de
soja transgênica atinge 08 milhões de hectares plantadas e é “o principal vetor da
devastação da Amazônia” até o momento. E, para se ter uma noção, várias tentativas
estão sendo realizadas por essas empresas, no esforço de aprovação pela CTNBio de
poder plantar mais espécies de sementes transgênicas. De qualquer forma diz a análise
do Anuário Exame, de junho de 2007 sobre o agronegócio, que “Depois da grave crise
nos últimos anos, o setor se recupera com velocidade impressionante no Brasil, bate
recorde de produtividade e desponta para liderar o mercado mundial dos negócios do
campo no século 21”405. É um cenário desolador que não é diferente no Uruguai, onde
300 mil hectares são cultivados, tornando “hoje o principal cultivo agrícola do país”406.
Vale estar atento para a distinção que há entre a cooperatividade e o
corporativismo, com razão, muito criticado que invés de gerar a operatividade e
402
SEMANÁRIO BRECHA. O perigo transgênico: expansão da cultura da soja no Mercosul.
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=26325; acessado em 09-02-2007.
403
Ibidem.
404
Ibidem.
405
ANUÁRIO EXAME. Ninguém 'segura' o agronegócio. Uma análise empresarial.
http://www.juonline.com.br/editorias_capa.asp?q_CodEditoria=43; acessado em 20-06-2007.
406
Ibidem.
130
transparência, emperra grupos e sociedades inteiras numa atitude de anti-misericórdia.
Sobrino relata algumas experiências realizadas ou vividas por ele e seus colegas através
do cooperativismo e parcerias no meio acadêmico, que pode ser realizadas no meio
técnico, nos governos, empresas e alhures. Aqui nos propomos em apresentar somente
duas experiências para nortear o espírito da cooperação do qual estamos falando.
3.3.4.1 - A cooperação acadêmica
O espaço acadêmico possibilita um ambiente propício à misericórdia por ser um
lugar de des-cobertas e criatividades. Mas poder-se-ia perguntar: em que e como a
universidade pode cooperar para empreender a misericórdia na formação de pessoas
novas e novas estruturas? O que Sobrino faz é tentar oferecer o critério de
discernimento para viver universitariamente, o saber ali oferecido, o espírito a ser
encarnado e os intelectuais que devem emergir. Uma atitude dessas seria fazer gerar o
princípio da cooperação, impulsionado pela misericórdia que deve gerar a vida
individual e coletiva. Aliás, a verdadeira saúde individual depende do bem-estar da
sociedade, onde se vive.
Ignácio Ellacuría era reitor da UCA – Universidade CentroAmericana, quando foi
assassinado, instituição de ensino jesuíta, encravada em meio à pobreza de El Salvador.
Em meio às divindades da morte, da absolutização do capital na América Latina, “os
jesuítas da UCA tocaram no ídolo, ao dizer a verdade da realidade, ao analisar suas
causas e propor as melhores soluções. E isso que parece uma coisa tão boa, tão benéfica,
que deveria ser louvada e apoiada por todos, é perseguido pelos ídolos”407. Diziam a
verdade do país em escritos e declarações, como o fez Ellacuría ao publicar no editorial
da revista ECA, em 1976, com o seguinte título: “A suas ordens, meu capital”408.
No dizer de Sobrino seus colegas mártires carregavam consigo uma única coisa: a
verdade para comunicá-la universitariamente ou pastoralmente, que como dizia Oscar
Romero: “Sempre foi muito perigoso, porque os ídolos buscam ocultar sua verdadeira
realidade de morte e, por necessidade, engendram mentiras para ocultar-se”409. A
verdade sobre a pobreza, o desemprego, a espantosa falta de moradias, de educação e
saúde, a verdade sobre a repressão, o desaparecimento de pessoas, a degradação da terra
407
SOBRINO, Jon. Os seis Jesuítas Mártires de El Salvador. São Paulo: Loyola, 1990, p. 32.
Ibidem p. 33.
409
Ibidem p. 34.
408
131
que vitimam especialmente os pobres, nos seus direitos, a verdade sobre o andamento
da guerra, a verdade da dependência colonialista dos poderes econômicos.
Dizer a verdade nessas circunstâncias não é só dissipar a ignorância, mas
combater a mentira, o que é essencial para uma universidade e é central em
nossa fé... Esses jesuítas quiseram libertar a verdade da escravidão imposta
pelos opressores, lançar luz em meio da mentira, lançar justiça em meio da
opressão, lançar esperança em meio do desconsolo e lançar amor em meio da
indiferença, da repressão e do ódio. Por isso os mataram410.
A pergunta que orientava toda a pesquisa era a de descobrir a fundo a realidade
oprimida e suas causas e oferecer positivamente as melhores soluções. Este era um
grande ideal para a universidade: “oferecer modelos, com possibilidades reais de uma
economia, uma política, uma tecnologia para a habitação, a saúde, a educação, uma
criatividade artística e cultural, uma religiosidade cristã e libertadora que tornasse
possível a vida”411.
A UCA no dizer de Sobrino se abria direta e imediatamente às maiorias populares,
através de suas publicações, de suas tomadas de posição, valentes, numerosas e
públicas. Desse modo, queriam ajudar a criar uma consciência coletiva em El Salvador,
crítica e construtiva, que ajudasse os pobres. Procurava de maneira teórica e prática
exporem “a necessidade, a justiça, a identidade dos movimentos populares. Tudo isso
podia ser visto em todos os recintos da universidade, que nunca fechou suas portas a
sindicalistas, marginalizados, mães de desaparecidos, grupos de direitos humanos,
agentes de Pastoral Popular, etc” 412.
Uma universidade que leva luz, em meio à opressão, aos ídolos não é tolerada, não
consegue sobreviver. Esta é uma verdade profunda e questionante: são os ídolos, os
poderes deste mundo que não querem e não aceitam a verdade e, automaticamente, não
aceitam mudanças a não ser, forçados pela situação, alguns retoques desde que não lhes
prejudique. Sobrino diz que os ídolos toleram algumas coisas, como as eleições,
algumas leis de reformas mais suavizadas, toleram pressões dos EUA no controle
militar e nos dólares que são mandados para assegurar a falsa segurança da democracia
e do capitalismo selvagem.
Confrontando com esta realidade que levou seus colegas ao martírio, Sobrino se
pergunta: “Que universidade nos deixam?”413. Uma nova idéia de universidade cristã
para nosso tempo tem como ponto de partida uma dupla consideração:
410
Ibidem p. 35.
Ibidem p. 36.
412
Ibidem p. 37.
413
Ibidem p. 47.
411
132
A primeira e mais evidente é que a universidade tem a ver com a cultura, com
o saber, com um determinado exercício da racionalidade intelectual. A
segunda, já não tão evidente e comum, é que a universidade é uma realidade
social e uma força social historicamente marcada pelo que é a sociedade na
qual vive, está destinada a iluminar e transformar, como força social que é,
essa realidade em que vive e para a qual deve viver...414.
Para Sobrino o saber deve interpelar a realidade social a qual se vive, e no caso da
América Latina, a realidade da maior parte do seu mundo, “a realidade histórica mais
universal, caracteriza-se fundamentalmente pelo predomínio efetivo da falsidade sobre a
verdade, da injustiça sobre a justiça, da opressão sobre a liberdade, da indigência sobre
a abundância, enfim do mal sobre o bem...”415. Imersos nessa realidade e possuídos por
ela, pergunta-se: o que se deve fazer universitariamente?
Sobrino responde a partir de uma posição ética: “transformá-la, fazer o possível
para que o bem domine sobre o mal, a liberdade sobre a opressão, a justiça sobre a
injustiça, a verdade sobre a falsidade e o amor sobre o ódio”416. Sem esse
comprometimento não se entende a finalidade da universidade.
A universidade deve encarnar-se intelectualmente entre os pobres para ser a
ciência dos que não têm ciência, a voz esclarecida dos que não têm voz, o
apoio intelectual dos que em sua própria realidade têm a verdade e a razão,
ainda que algumas vezes seja de alguma forma empobrecida, mas que não
contam com razões acadêmicas que justifiquem e legitimem sua verdade e
sua razão...417.
Sobrino diz que a UCA tentou viver modestamente nesta linha difícil e conflitiva e
por este trabalho foram duramente perseguidos. “Se nossa Universidade nada houvesse
sofrido nesses anos de paixão e de morte do povo salvadorenho, não teria cumprido sua
missão universitária e, menos ainda, sua inspiração cristã”418. A universidade deve
colocar toda a sua estrutura, instrumentos específicos, o saber racional à serviço e ser
antes de tudo, uma universidade constantemente convertida. “E a conversão
fundamental consistia em pôr todo o seu peso social, através de seu instrumento
específico, o saber racional, a favor das maiorias populares”419. Desse modo, Sobrino
deixa cinco conclusões fundamentais para a vida universitária:
1) afirmar que é possível uma universidade cristã no Terceiro Mundo, não uma
universidade isolada em torre de marfim e com o coração de pedra ante o sofrimento
414
Ibidem p. 47.
Ibidem p. 48.
416
Ibidem.
417
Ibidem.
418
Ibidem p. 49.
419
Ibidem p. 50.
415
133
dos pobres, mas universidade encarnada em seus sofrimentos e esperanças e com
coração de carne;
2) afirmar que não importa superar meramente a ignorância, mas combater e
encetar luta à morte contra a mentira;
3) afirmar e analisar a verdade é defender os pobres e por isso enfrentar-se com
seus opressores;
4) afirmar a lição mais importante de que a universidade pode ser a voz dos
pobres, mesmo dando a vida como fizeram seus colegas, para manter a esperança e
ajudar seus alunos pobres no caminho da libertação;
5) e, por fim, afirmar a lição de amor maior: os que anunciam e fomentam o Reino
de Deus têm de se enfrentar com o anti-reino.
3.3.4.2 - A cooperação na tecnologia
A reflexão e a ação significativa voltada para os últimos da sociedade querem
fazer despertar um modelo mais abrangente em conformidade com a nova racionalidade
e exigência em nossos tempos. Não se pode conceber que em meio à evolução científica
e tecnológica de que dispomos haja ainda esse grau miserável e situação degradante que
se presenciam todos os dias a olho nu, quando não pelas amostragens da imprensa de
situações alarmantes vividas ao redor do mundo.
É um cenário que aponta para um gesto de misericórdia, e vale repetir, não uma
misericórdia paternalista, mas re-ativa, na percepção do outro como sujeito de direito.
Essas situações não devem culpabilizar o desenvolvimento técnico-científico sem mais,
mas fazem parte de toda uma estrutura que depende, em primeiro lugar, do poder
econômico, de políticas públicas, da corrupção desmedida e tantas outras pendências420.
Não se pode conceber, de fato, que os investimentos de um país pobre ou em
desenvolvimento estejam mais voltados para a indústria de armamentos e
desenvolvimentos tecnológicos do que para a área de saúde, a educação, ou o meio
ambiente como se pode notar no orçamento de aplicação de recursos feito pelo governo
brasileiro em 2007, ou seja, ficando a “pasta do meio ambiente com 438,5 milhões de
420
REDAÇÃO. Corrupção tira até R$236 por ano de cada brasileiro. JORNAL A GAZETA, 01-07-2007,
p. 21. Conforme a estimativa do próprio ministério da justiça brasileira que apontam os desvios da ordem
de 40 bilhões de reais dos cofres públicos, formando um cartel entre empresas que participam de
licitações públicas. São 13,3% dos 300 bilhões de reais que a administração pública gasta anualmente
para comprar insumos e fazer obras acabam indo para o bolso de empresas que se organizam para cobrar
preços mais altos dos governo por seus serviços. Nesta conta cada brasileiro tem que pagar 236 de custo
pela corrupção no país.
134
reais e o Ministério da Defesa com 5,82 bilhões de reais. O que explica essa
diferença?”421, pergunta Leonardo Boff.
A tecnologia direcionada para servir o homem como tal não é um mal, e inclusive
deve ser estimulada. Assim nos diz Abdalla “o problema da exclusão social e do
desemprego não pode jamais ser atribuído diretamente à tecnologia ou ao rumo ‘natural’
do desenvolvimento das capacidades humanas, como se tem apregoado reiteradas vezes
nos dias atuais”422.
Pode-se, porém, afirmar que “a aplicação dos conhecimentos científicos nas
técnicas de produção só é um mal no modo de produção hoje dominante. A verdadeira
causa do desemprego é a organização de uma economia que serve única e
exclusivamente à acumulação”423. A tecnologia , ao contrário do que se tem
repetidamente enunciado, não gera desemprego, como se ela dispensasse o ser humano
do processo produtivo. Essa visão faz com que muitos vejam na tecnologia um mal
intrínseco. Mas o que a tecnologia faz é reduzir a necessidade de horas de trabalho
demandadas para produzir-se algo e força humana, e não o número de pessoas. Esse é
só um exemplo que causa a miséria da população, não por causa da técnica, mas do
lucro. A tecnologia está sim latente e a serviço dos objetivos do lucro, mas não é ela um
malefício de primeira ordem.
Um ambiente fortemente marcado pela presença da tecnologia é a área da saúde.
Este é um tema complexo e, por si só, seria objeto para aprofundamentos de extensos
trabalhos como bem tem sido estudado por Léo Pessini e outros. Contudo, não podemos
deixar de dizer que esse é um lugar onde há muita cooperação, solidariedade e “espírito
de misericórdia”, assim como há atitudes de anti-misericórdia.
Vivendo na contingência da vida o homem não pode negar a contribuição e a
cooperação da técnica hospitalar como mecanismo ou instrumento de ajuda em
momentos de fragilidade da saúde. Diz-nos Léo Pessini que “hoje, com os
conhecimentos adquiridos e instrumental tecnológico à disposição do homem, pode-se
421
BOFF,
Leonardo.
Olhar
longe
para
a
frente.
http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=27936; acessado em 06-06-07. Sobrino afirma
que “Los gastos en armamento se sitúan en los 2.680 millones de dólares al dia los subsídios agrícolas en
los Estados Unidos y la Unión Europea en 1.000 millones diários. El mercado de armas es uno de los más
rentables de todos los gobiernos de la comunidad internacional. Los países del G-8, junto con China, son
responsables del 90% de lãs exportaciones de armas. Al menos médio millón de personas son asesinadas
anualmente con armas ligeras”. SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos
utópico-proféticos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 63.
422
ABDALLA, Maurício. O princípio da cooperação: em busca de uma nova racionalidade. São Paulo:
Paulus, 2002, p. 113.
423
Ibidem.
135
perfeitamente escolher o dia para nascer e também determinar o dia da morte”424.
Começa-se a ter uma interferência profunda no início e no fim da vida humana.
Essas transformações trazidas pelo progresso da medicina e da tecnologia nos
fascinam e ao mesmo tempo nos preocupam, pois geram misericórdia e antimisericórdia. “Passamos da fase de uma medicina mais humana e menos científica para
uma medicina mais científica e menos humana”425. Quando a medicina se afirmava
impotente em face de um agonizante, este e seus parentes ficavam sós frente a uma
morte contra a qual nada podiam: a “boa morte” era então aquela para a qual o doente
poderia preparar-se em casa e enfrentá-la com os socorros efetivos e religiosos dos
parentes. Hoje a medicina se apodera do agonizante, o retira física e psicologicamente
do meio dos parentes de maneira mais ou menos radical, e chega mesmo a tirá-lo de si
mesmo. Segundo Léo Pessini,
“No início dos anos 50, Jean-Robert Debray introduziu na linguagem médica
francesa a expressão ‘obstinação terapêutica’, designando com isso o
comportamento médico que consiste em utilizar processos terapêuticos cujo
efeito é mais nocivo do que os efeitos do mal a curar, ou inútil, porque a cura
é impossível e o benefício esperado é menor que os inconvenientes
previsíveis”426.
Hoje, após mais de cinqüenta anos nota-se que as condições médicas “tendem a
tirar do doente e dos seus parentes toda a iniciativa e responsabilidade para transferi-la
ao médico fazem com que se levante o problema dos direitos e deveres do paciente
terminal, familiares e do próprio médico”427. Emergiram a partir da intervenção técnica
hospitalar feita no homem uma nova concepção da morte nas sociedades ocidentais.
Outra concepção que surge no meio hospitalar como “espírito de misericórdia”,
numa tentativa de resgate ao antigo modo de terminalidade, é denominada de
ortotanásia, que consiste, etimologicamente, na morte correta: orto: certo, thanatos:
morte. Significa o não prolongamento artificial do processo de morte, além do que seria
o processo natural. Tratando-se de um momento decisivo, o homem tem de viver a
morte o mais humanamente possível. Consiste num despertar para a sensibilidade que
caracteriza o homem em sua existência.
Humanizar a morte, tornando-a um ato de liberdade para o agonizante e seus
parentes. Morrer bem, tendo com a morte uma relação de consciência e
voluntária... dentro desta perspectiva é prioritário fazer tudo para que o
doente possa viver a aproximação da sua morte de maneira consciente e livre,
424
PESSINI, Leocir. Eutanásia e América Latina: questões ético-teológicas. Aparecida-SP: Santuário,
1990, p. 48.
425
Ibidem.
426
Ibidem p. 50.
427
Ibidem.
136
e o dever da medicina seria mais de ajudar neste processo do que prolongar a
vida a qualquer custo428.
A maneira como o homem lida com sua contingência é completamente nova.
“Constata-se que os avanços médicos nos diagnóstico e tratamento salvaram muitas
vidas e reduziram o sofrimento por um lado; por outro, trouxeram problemas e sérias
conseqüências”429. Léo Pessini diz que para muitos pacientes, o sofrimento e a agonia
são causadas por prolongamentos técnicos denominados “heróicos”, mas em muitas
outras circunstâncias salvam vidas. Um exemplo são os antibióticos e cirurgias
tecnicamente avançadas que aumentaram nossa expectativa de vida430. Agora o que
precisamos é lidar com as implicações destas novas descobertas.
Sabe-se que a hiper-utilização da técnica leva a uma atitude de anti-misericórdia
quando em meio à insegurança do paciente, às vezes ainda muito apegado à vida, são
abandonados na frieza de tantos aparelhos de UTI, no qual a pessoa perde o contato com
calor humano. Mas isso não se deve, objetivamente, à técnica, senão a intencionalidade
humana que veio se estruturando, configurando e acirrando cada vez mais. Há, sim,
indícios de mudanças com o desabrochar da sensibilidade, estudos, conferências para
uma nova mentalidade, hoje chamada de “cuidados paliativos” dando ênfase ao cuidado
do paciente terminal.
É importante observar que os sistemas e técnicas de sustentação de vida são
benéficos, mas frequentemente alimentam idéias de que a morte pode ser enganada
indefinidamente. A morte foi definida ultimamente e confinada a um ponto de vista
estritamente biológico. Confiar na tecnologia para definir o estado de vida e morte é
negar aspectos do homem que dão subsistência à sua própria vida. Assim, a medicina
não é somente uma profissão técnica e o médico não é somente um manipulador de
monitores. A responsabilidade social do médico é preservar a vida e aliviar o
sofrimento. Onde a atuação de um dever conflita com o outro, a escolha do paciente
deve prevalecer se este tiver em condições de decidir, exercendo assim sua autonomia
de pessoa. Caso não tenha condições para decidir, então sua família ou representante
legal assumem a responsabilidade em seu favor. Somente na ausência de escolha do
paciente ou um procurador autorizado, o médico deve agir em favor do melhor interesse
do paciente.
428
Ibidem p. 51.
Ibidem p. 52.
430
Ibidem.
429
137
Médicos e hospitais devem estar sempre conscientes de seus limites, pois travarem
lutas contra a morte é justo e necessário, mas chega um momento em que a luta termina.
Em muitos casos o médico e também o enfermeiro podem determinar com clareza que a
terapia está terminada. Então já não deve haver nenhuma simulação de terapia, de forma
alguma e o motivo principal é o respeito pela pessoa do moribundo. Quanto à
determinação desse momento definitivo, belamente, descreve Lepargneur:
Enquanto houver esperança de devolvermos a vida normal a uma pessoa que
perdeu a consciência, façamos todos os esforços no sentido de reanimá-la.
Esse é o papel dos médicos e eles têm o direito e o dever de cumpri-lo. No
entanto, se a consciência está irremediavelmente perdida, e se a pessoa é dada
como clinicamente morta, o caso precisa ser tratado diferentemente. (...)
Quando comprovadamente inexistir vida cerebral, pode-se e deve-se desligar
o aparelho que mantém uma pessoa em estado vegetativo431.
A cooperação como misericórdia em meio a essa tecnologia hospitalar perpassa
pelo direito do paciente, caso queira saber do seu estado de saúde; trata-se do direito à
verdade, mencionado código de ética médica:
No código de 1988, o paciente crônico ou terminal tem o mesmo direito que
qualquer outro paciente à informação e à verdade em relação à sua situação,
um direito restringido por um paternalismo limitado que, dentro da
perspectiva da benignidade humanitária, deixa ao juízo do médico a
conveniência ou não de comunicar certos dados ao paciente432.
Devem-se mencionar aqui outros direitos do paciente de decidir sobre seu
tratamento e sobre sua vida; o direito a não ser abandonado pelo médico; o direito a não
ter seu tratamento complicado; o direito ao alívio da dor e o direito a não ser morto. O
princípio fundamental que formula esta última convicção é o artigo 6º/1988:
O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre
em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar
sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permiti
e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade433.
Não se pode deixar de mencionar o direito da pessoa, em caso de pesquisa com
seres humanos, sobretudo, quando se trata de alguém em algum estado de
vulnerabilidade:
Em toda pesquisa biomédica realizada em seres humanos, o pesquisador deve
obter o consentimento informado voluntário do sujeito potencial ou, no caso
de um indivíduo incapaz de dar seu consentimento informado, a autorização
de um representante legalmente qualificado de acordo com o ordenamento
jurídico aplicável. A omissão do consentimento informado deve ser
431
Ibidem p. 56.
MARTIN, Leonard M. A ética médica diante do paciente terminal. Aparecida-SP: Santuário, 1993, p.
208.
433
Ibidem p. 208-215. Cf. também Código de Ética Médica do CFM.
432
138
considerada incomum e excepcional e, em todos os casos, deve ser objeto da
aprovação de um comitê de avaliação ética434.
Em meio a esse aparato de relações no envolvimento de pessoas, tecnologias e
legislações não podem deixar de considerar a crítica do próprio excesso de sofisticação
na medicina, hoje, para uma minoria, que deve nos chamar a atenção ao que ela revela:
uma atitude de anti-misericórdia em meio à tanto sofrimento padecido por uma flagrante
multidão de empobrecidos do hemisfério Sul. Um lugar social que se morre antes da
hora. “Na América Latina, de modo geral, a forma mais comum de mistanásia é a
omissão de socorro estrutural que atinge milhões de doentes durante sua vida inteira e
não apenas nas fases avançadas e terminais das suas enfermidades”435. No Continente
uma grande massa que luta para se manter ou sobreviver com o básico e implorando
para não adoecer, pois sabem que dificilmente serão atendidos. Isso se conseguirem
atendimento.
3.3.5 - Esperança
Semanticamente o termo esperança vem do latim, spes, e significa o ato de esperar
o que se deseja436. Poder-se-ia perguntar em que consiste a esperança? A esperança é
uma motivação que se abre como horizonte da existência humana no momento presente.
De modo semelhante o presente tem sentido enquanto tem futuro aberto. O normal e
primário é, portanto, o sentido. A esperança na concepção cristã vai além do sentimento
de dissolução pessoal ante algo contingente. “É mais intensa porque intui, não só a
permanência da natureza, mas a permanência da pessoa, com a rede de relações que
esta teceu em sua pequena ou grande história, tanto com seu ser quanto com seu próprio
estar”437.
A esperança tem forte evidência na experiência de sofrimento. Segundo Cinà
Giuseppe o “sentimento que caracteriza de forma maior a pessoa enferma é o
sentimento da esperança. Se, por um lado, a enfermidade atinge este dinamismo,
434
DIRETRIZES ÉTICAS Internacionais para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos. Tradução de
GONÇALVES, Maria Stela e SOBRAL, Adail Ubirajara. São Paulo: Loyola, 2004, p. 51.
435
MARTIN, Leonard M. Eutanásia – Mistanásia – Distanásia – Ortotanásia. In: VENDRAME, Calisto e
PESSINI, Leocir (Orgs.). Dicionário interdisciplinar da Pastoral da Saúde. São Paulo: Paulus/São
Camilo; 1999; p. 467-482.
436
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986, 2ª edição.
437
BELLOSO, Josep Maria Rovira. Esperança. In: SAMANES, Cassiano Floristán e JUAN-JOSÉ,
Tamayo-Acosta (Orgs.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. Tradução de FERREIRA,
Isabel F. Leal e BARRETO, Ivone de Jesus. São Paulo: Paulus, 1999, p. 227-233.
139
obstaculizando o seu movimento, por outro lado, é justamente este comportamento que
exprime a reação típica da pessoa enferma”438. Para o momento é também sugestiva, na
perspectiva cristã, a encíclica Spe Salvi439, de Bento XVI, cujo tema e abordagem é
inspirada na carta que Paulo de Tarso escreve à comunidade cristã de Roma (Rm 8, 1827), colocando a esperança como expressão básica para a salvação, lembrando que
salvação tem seu aspecto imanente e a mesma raiz para designar saúde, bem-estar.
Sobrino pergunta: “Qué me está permitido esperar”440. Para ele os pobres fazem
renascer a utopia: “no se trata de ou-topia, lo que no há lugar, sino de eu-topia, aquello –
bueno – para lo que tiene que haber lugar. Lo que llamamos buen viver, cualidad de
vida, estado de bienestar”. Correlativamente, é dos pobres que provém a esperança, e a
verdadeira esperança, é dizer, como esperar.
La raiz de la esperança no está em calculo objetivo, ni en el optimismo
subjetivo. Está en nel amor, que carga con todo. La esperanza de los pobres
pasa por crisis, épocas de desencanto inmediatista, pues no aprecen salidas y
victorias inmediatas y contables. Pero hay uma fé que vence la oscuridad y
uma esperanza que triunfa sobre el desencanto, como muestra sua paciência
histórica y su determinación de vivir441.
A abordagem da esperança na América Latina surge do contraste da abundância e
pobreza. Neste contexto ela assume uma relação próxima com a experiência da fé cristã,
numa condição de expressão básica, que ao identificar-se com a cruz, também aprende
dizer não ao sacrifício humano. Significa aprender a se manifestar contra toda e
qualquer forma de manifestação de morte. Olhar para a cruz significa procurar
compreender o sentido do ato salvífico de Cristo e o seu significado para a nossa vida.
A inspiração de libertar o pobre da cruz se situa em perspectiva de uma
espiritualidade que capta o clamor e os grandes “sinais dos tempos”442 como força e
alternativa de reflexão à vida vivida sob a miséria. Salta os olhos à resistência dos
pobres. Na América Latina sentem Deus como um aliado. Não se pergunta, portanto, se
Deus existe, mas onde está Deus? Essa indagação interna os motiva profundamente.
438
GIUSEPPE, Cinà. Esperança. In: VENDRAME Calisto e PESSINI, Leocir (Orgs.). Dicionário
Interdisciplinar da Pastoral da Saúde. São Paulo: Paulus/São Camilo, 1999, p. 399-409.
439
BENTO XVI. Spe Salvi. São Paulo: Loyola/Paulus, 2007.
440
SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid:
Editorial Trotta, 2007, p. 88.
441
Ibidem p. 88-89.
442
Evidenciar as vítimas como o ‘sinal dos tempos’ serve para focar a atenção para situação mais
clamorosa na América Latina. A expressão está ligada ao texto evangélico de Mt 16, 1-4 e à grande
intuição do papa João XXIII, em alocução no dia 25 de janeiro de 1959, ao convocar toda a Igreja para
um segundo concílio Vaticano. Na medida em que "estamos entrando numa época que se poderia chamar
de missão universal ...", é preciso acolher a recomendação de Jesus de saber distinguir os 'sinais dos
tempos' (...) e descobrir, no meio de tantas trevas, indícios de esperança ...". JOÃO XXIII. Alocução
Gaudet Mater Ecclesia. AAS 54, 1962, pp. 786-795.
140
Mesmo considerados sub-humanos pelo mercado total, os pobres continuam a lutar por
justiça e pela vida. Eles acreditam num Deus de todos e para todos e por isto resistem. O
que os une é a luta pela sobrevivência. Excluídos do mercado, ou pelo menos da
economia formal, sobrevivem da e na economia informal. Na capacidade de resistência
os pobres, apesar de desarticulados, se revelam como força histórica.
Para Sobrino, deste contexto emerge claramente uma convicção de esperança: há
de se continuar a lutar pela sobrevivência dos pobres: que são os índios, os negros, as
mulheres, os camponeses, os idosos, as crianças, os operários, os desempregados, os
miseráveis, porque a opressão continua sua ação maléfica, destruindo o corpo, a cultura
e a alegria da vida de uma imensa maioria no Continente443.
Através de lutas e programas de intervenção populares os pobres criam
alternativas questionando o projeto político e econômico: “Concretamente vão
percebendo que o terreno da periferia é mais caro do que o terreno nos bairros de elite,
se se computarem todos os gastos para se obter água, luz, asfalto, telefone público, etc.
descobrem que pagam muito mais impostos do que os ricos”444. Constatam aos poucos
que na América Latina os poderes constituídos estão a serviço do grande capital, e com
suas experiências podem também elaborar e propor um projeto político orientados por
ações e metas transformadoras. No dizer de Ernst Bloch “O apetite da vítima pelo
projeto alternativo e novo de libertação é a ‘esperança’ como pulsão transontológica”445. Dizia isso falando que os impulsos se exprimem em primeiro lugar como
aspiração. “Se a aspiração é sentida, transforma-se em anseio”446.
Não devemos, também, com isso, ser ingênuos em querer idealizar os projetos
populares. Mas podemos “afirmar que toda e qualquer possibilidade de construção de
uma sociedade alternativa e viável para todos só pode ser gerada a partir do movimento
popular” 447, ou seja, dos últimos.
Pode-se até aproximar a categoria “pobre” e seu correlato “movimento popular”
como um “novo sujeito histórico”, entendido como um novo conceito transcendental, de
443
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 93.
FERRARO, Benedito. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 86.
445
DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 460.
446
Ibidem.
447
Ibidem. Citando E. Tamez, Ferraro diz que “Deus escolhe os excluídos para que não haja mais
exclusão. E mais adiante explica: ...em uma sociedade dividida, para que o desígnio de Deus se cumpra
em plenitude (isto é, para que ninguém fique fora do plano salvífico de Deus), Deus tem de preferir os
excluídos da sociedade... os excluídos sempre serão os escolhidos de Deus. Esta é a garantia de que a
misericórdia de Deus atinja a todos e se cumpra seu desígnio salvífico”. FERRARO, Benedito.
Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 26.
444
141
utopia não irrealizável, mas perfeitamente possível que anima o tecido social em
perspectiva dinâmica de renovação contínua. E. Bloch propõe na segunda parte do seu
livro O princípio esperança ao abordar a função utópica e seus conteúdos, com análises
de ideologias, ideais, símbolos, o novo e o “nada”, como categoria utópica, porém,
contra o niilismo insípido e imóvel. É o nada utópico positivo, a pátria onde tudo existe
como possibilidade objetiva, pois “onde nada mais se possa e nada mais seja possível, a
vida terá cessado”448.
Bloch coloca a esperança como o cerne dos sonhos humanos. Dizia que nenhum
ser humano jamais viveu sem sonhos diurnos” 449 e o que importa é saber sempre mais
sobre eles. “Os sonhos são o âmbito da antecipação contrafáctica da satisfação dos
desejos”450. Assim, “O impulso básico da fome precisa ser analisado aqui da maneira
como ele avança para a privação negada e, portanto, para o principal afeto espectante: a
esperança”451. Nessa perspectiva os sonhos das vítimas são consciente, conhecidos,
abertos e racionais. Exemplificando isso Bloch, apud Dussel, diz que “ao que é escravo
(ou assalariado) se impede o poder fundamentar um ‘dever-ser’ livre. O escravo sonha
‘ser-já-livre’ (antecipação que mobiliza a práxis na esperança), que se origina
negativamente no ‘não-poder-viver’ do escravo”452. “El lugar em que convergen como
por necesidad profetismo y utopía es el Tercer Mundo, donde la injusticia y la muerte
son intolerables, y donde la esperanza es como la quintaesencia de la vida”453.
Para a realização dos sonhos Bloch estimula à pulsão, ao entusiasmo, à espera e à
esperança da conquista da liberdade para o novum ultimum, que se abre à mística e
motiva para o esforço de construção da nova sociedade. Sem esta motivação, dizia que
não se dá transformação e a ética crítica presente nas vítimas, nos oprimidos e nos
movimentos sociais de libertação sabem disso muito bem454. Assim ele afirma que “O
que importa é aprender a esperar. O ato de esperar não resígna: ele é apaixonado pelo
448
BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução de SCHNEIDER, Nélio. Rio de janeiro: EdUERJContraponto, 2005, p. 22.
449
Ibidem; p 20.
450
DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 460.
451
BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução de SCHNEIDER, Nélio. Rio de janeiro: EdUERJContraponto, 2005, p. 21.
452
DUSSEL, Enrique; Ética da Libertação; Petrópolis-RJ: Vozes 2000; p. 460.
453
SOBRINO, Jon. Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid:
Editorial Trotta, 2007, p. 38.
454
BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução de SCHNEIDER, Nélio. Rio de janeiro: EdUERJContraponto, 2005, p. 79-114.
142
êxito em lugar do fracasso. O afeto da espera sai de si mesmo, ampliando as pessoas,
em vez de estreitá-las”455.
A partir desse movimento, cuja referência limite é a vida, sobretudo a defesa
efetiva dos mais pobres, a utopia oferece-se como possibilidade de articulação universal
em um único e plural mundo humano a partir de todos e para todos, diríamos a partir
dos pobres para todos.
Para o pensamento sobriniano, a “utopia” do rico está na acumulação, no querer
ter sempre mais. A solução que os ricos e o Primeiro Mundo oferecem para os
problemas de hoje é ruim porque é irreal, ou seja, não é universalizável. E ruim
eticamente porque é desumanizante para todos. Os povos pobres do mundo
subdesenvolvido, também nem todos, oferecem luz para o que historicamente deve ser
hoje a utopia. Logo,
La utopia, en el mundo de hoy, no puede ser outra cosa que la civilización de
la pobreza, el compartir todos austeramente los recursos de la tierra para que
alcancen a todos. Y en esse compartir se logra lo que no ofrece el Primer
Mundo: fraternidad y, con ella, el sentido de la vida. Y el camino para llegar a
esa utopia lo propuso como la civilización del trabajo versus la actaula
civilización del capital, en todas sus formas capitalistas y socialistas. Ésta es
la luz que ofrecen los pueblos crucificados456.
Esses são valores vividos e oferecidos pelos pobres que não se encontram em
outros lugares: “os valores evangélicos de solidariedade, serviço, simplicidade e
disponibilidade”457, que são como meios de salvação. Referindo-se a isso Sobrino diz
que “em linguagem histórica, os pobres têm um potencial humanizador porque
oferecem comunidade contra o individualismo, serviçalidade contra o egoísmo,
simplicidade contra a opulência e abertura à transcendência contra o positivismo
cretino, do qual a civilização ocidental está toda imbuída”458. É claro que nem todos os
pobres oferecem isto, ressalta ele.
As lutas populares e os movimentos de libertação que nascem dos pobres
“apontam para o enfrentamento com a espiritualidade perversa do capitalismo. A
espiritualidade capitalista faz do ser humano um sujeito constituído a partir do e no
mercado, ser humano que terá, consequentemente, um deus que é um fetiche-
455
Ibidem. Prefácio.
SOBRINO, Jon. El principio-misericordia: Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. San Salvador:
Sal Terrae, 1992, p. 92.
457
DOCUMENTO de Puebla. Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. PetrópolisRJ: Vozes, 1987, Nº. 1147.
458
SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Op. cit, p. 93.
456
143
mercantil”459. Aqui se dá um embate decisivo do deus fetichizado e o Deus da vida.
Segundo Ferraro, desta luta teológica nasce uma oposição: “Aceitar o ídolo é subscrever
à morte. Aceitar o Deus da Vida é ter chance de futuro. Trava-se aí o destino da
América Latina”460, que tem a imensa parte de sua população composta de pessoas
crentes e religiosas. Apesar da opressão a grande maioria continua a acreditar na vida,
subsidiada pela espiritualidade cristã, tendo na bíblia a sua inspiração. “É bem verdade
que muitos a lêem a partir da ótica dos dominantes, mas há muitos bebendo de sua
vertente libertária, com sua leitura a partir da visão das vítimas, dos excluídos”461.
O Deus da vida se revela aqui no esforço de elaboração de uma teologia dos
pobres, dos indígenas, dos negros, dos gays, no Deus Pai-Mãe da mulher marginalizada
e de tantas outras minorias e diversidades existentes na América Latina. Em tudo isso se
pode afirmar: Há aqui um anúncio de esperança. Os pobres estão ressuscitando nas
periferias do mundo. Eles são, enquanto atores e sujeitos históricos do movimento
popular, a única força capaz de recriar, reinventar o humano e reelaborar os valores que
direcionam a história. A construção de uma sociedade viável depende dos pobres e seus
projetos. O pobre é visto aqui como valor universal. É a partir dele que se constrói a
sociedade para todos.
A sua presença nas lutas econômica, inserção e participação na política, projetos
alternativos questionadores da cultura e reação a modelos espirituais revelam a criação
de um novo poder a partir da base, como situação que lhe é de direito. Emerge aqui uma
espiritualidade popular com o intuito de re-significar o sentido religioso dado pela elite
dominante.
Há um emergir de um enraizamento de espiritualidades do pobre caracterizada
pelo confronto com as realidades vividas na América Latina. A esperança cristã
libertadora, embutida na espiritualidade do pobre, dá-lhe condições de esperar contra
todas as desesperanças. Daí nasce a solidariedade e a partilha como fenômeno de uma
459
Ibidem p. 86. O capitalismo propõe salvar a vida de alguns e aceita a morte de muitos. “É comum
ouvirmos dizer que tal plano econômico vai salvar o país da miséria, que tal projeto político é a redenção
da nação. Articulada com tais expressões, aparece a exigência de sacrifícios”. FERRARO, Benedito.
Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 70. Isso é uma opção pela
morte. A alternativa legítima é unicamente a vida de todos, do contrário estaríamos aceitando a morte de
muitos.
460
Ibidem. A parábola do samaritano procura também mostrar como a realidade histórica está impregnada
da falta de misericórdia. Ser um ser humano é, para Jesus, reagir com misericórdia; do contrário, fica
viciada na raiz a essência do humano, como aconteceu com o sacerdote e o levita, que passaram adiante.
Os evangelistas mostram que a realidade histórica está configurada pela anti-misericórdia ativa, que fere e
causa morte aos seres humanos e ameaça e causa morte também aos que se regem pelo “princípio
misericórdia”. Ibidem p. 36.
461
Ibidem p. 87.
144
expectativa que se alimenta e cultiva na vida. A partir da esperança o pobre pode se
reorganizar. Este é o lugar a partir de onde surgem as propostas para um novo projeto
social alternativo. O lugar dos pobres é, pois, a única força capaz de refazer o tecido
social e reconstruir a sociedade solidária, capaz de gerar além do necessário para
sobreviver, também a fraternidade e a celebração.
Não é uma esperança ingênua. É uma esperança em trabalhos e lutas por
libertação, embora se saiba que os países e os homens ricos têm medo e procuram
sempre sufocá-la, apesar de desejar para si essa esperança vivida pelo pobre. Numa
perspectiva sobriniana os países pobres passam essa corrente esperançosa da
humanidade que, sempre de novo, tenta tornar a vida possível. Precisamente porque os
pobres não dão a vida como suposta, são eles que esperam sempre esse mínimo que é
dom de Deus: a vida.
Numa citação aos mártires latino americanos Sobrino diz que “Todo sangue
martirial derramado em El Salvador e em toda a América Latina, longe de levar ao
desânimo e ao desespero, infunde novo espírito de luta e nova esperança em nosso
povo. Neste sentido somos um continente de esperança”462. E faz uma alerta para o fato
de que é preciso estar atento que nem todos do Terceiro Mundo são assim. De fato, são
somente umas minorias que oferecem ativamente os valores da comunidade contra o
individualismo; da singeleza contra a opressão; serviçalidade contra o egoísmo;
criatividade contra o mimetismo imposto; celebração contra a mera diversão; abertura à
transcendência contra o pragmatismo...463.
A esperança que o pobre oferece é, paradoxalmente, vista como absurda ou
insensata para aqueles que vivem na pujança. Sim, mas esta é a única coisa que lhe
resta. Esta esperança desperta o fenômeno da alegria vivida pelo pobre. É “uma
esperança contra esperança; mas também é uma esperança ativa que se mostrou em
trabalhos de lutas e libertação”464. O seu êxito está vinculado também à força sufocante
impregnada pelos valores de antivida. Mas em todo caso, o próprio fato de surgir e
ressurgir a esperança na história mostra que há nela uma corrente cheia de esperança
que é oferecida a todos. “Os povos crucificados oferecem também um grande amor...
estão abertos ao perdão de seus opressores. Desta maneira introduzem no mundo
462
Ibidem p. 131.
Ibidem p. 130.
464
Ibidem.
463
145
ocidental esta realidade tão humanizadora e tão ausente que é a gratuidade. É paradoxal,
mas é verdade: os povos crucificados oferecem luz e salvação”465.
Assim entendida, a religião nos introduz num paradoxo que nos move
invariavelmente a lutar pela libertação, mas sem garantir o sucesso como o entendemos.
O que garante é a dedicação total e a esperança que não morre. Para dizer como Pedro
Casaldáliga, somos os vencidos de uma causa invencível466. Essa é uma atitude de quem
se compromete porque acredita no “retorno do amor no mundo”, na busca da santidade
porque acredita na capacidade de alguém abrir mão da sua própria vida para que o outro
viva.
A esperança que nasce ou que brota das vítimas foi exposta por Sobrino no 2º
Fórum Mundial Teologia e Libertação, realizado em Nairóbi, África, de 16 a 19 de
janeiro de 2007, às vésperas da VII edição do Fórum Social Mundial que propunha a
discussão de uma nova ordem mundial com a temática: “O outro mundo possível”.
A palestra de Jon Sobrino é assim intitulada: “A eterna tentação de negar a
realidade”467, na qual situa a esperança que as vítimas deste mundo oferecem e que aqui
expomos o resumo na íntegra:
a) As vitimas e, em definitivo, somente as vítimas abrem os nossos olhos para a
realidade. A religião insiste no fato de que este milagre de abrir os olhos é necessário e
possível. O que aparece nas vítimas é pobreza, crueldade, morte. Coisa que exprime a
desumanidade do mundo em que vivemos.
Esta realidade é oculta e calada. As vítimas nem sequer têm um nome. O 11 de
setembro é conhecido, mas o 7 de outubro não. No 7 de outubro, um mês após o
atentado contra as torres gêmeas de Nova York, uma ampla coalizão de países
democráticos bombardeou o Afeganistão. Mas, o Afeganistão, pobre, vítima, não tem
calendário, não tem nome, não existe.
As vítimas podem fazer-nos despertar do sono dogmático no qual se encontra imerso o
mundo da abundância, democrático ou não. Recordemos as palavras dirigidas em 1511
por Antonio Montesinos aos encomendeiros , diante da sua crueldade em confronto
com os indígenas de Espanhola: “Estes não são homens? Não têm almas racionais?
Como é que caístes num sono tão letárgico?” Como estão as coisas, parece mais difícil
465
Ibidem p. 94.
CASALDÁLIGA, Pedro. Reportagem Igreja da Libertação na América Central. O fermento libertador
e
revolucionário
da
Igreja
centro-americana.
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=11234; acessado em 09-07-07.
467
SOBRINO, Jon. A eterna tentação de negar a realidade. http://www.adistaonline.it/index.php;
acessado em 26-02-2007.
466
146
despertar deste sono de cruel desumanidade, do que do sono dogmático de que falava
Kant.
b) As vítimas podem ser hoje os antigos “mestres da suspeita” que, não só denunciam o
que é claramente um mal, mas suscitam também a suspeita sobre o mal que pode
esconder-se por detrás do bem ou aquele que é aparentemente um bem. Alguns
exemplos. Desmascaram a globalização como ideologia, porque ela quer oferecer um
mundo em forma de “globo” (aquilo que para Platão simbolizava a perfeição), um
mundo homogêneo que, se ainda não é tal, em breve o será. As vítimas deixam claro
que na globalização há vencedores e vencidos. Desmascaram também as democracias
que se apresentam como realidades boas, além das quais parece que não se possa andar.
As vítimas revelam que, na realidade, as democracias reais se alimentam de vítimas
reais. E, também em teoria, fazem suspeitar que o “demos” [povo] da democracia não
inclui as maiorias pobres e certamente não as põe no centro da sociedade como acontece
na tradição religiosa dos profetas e de Jesus.
c) As vítimas demonstram a existência dos ídolos e esclarecem sua verdadeira essência.
O fato de que sejam veneradas expressões de vida, como os rios, o sol, a lua, nada tem a
ver com a idolatria, mas com disposições antropológicas. Ao invés disso, é símbolo de
idolatria o deus Moloc , que exige vítimas para subsistir. Ídolos são hoje aquelas
realidades históricas existentes que exigem vítimas para subsistir. Mons. Romero
mencionava em seu tempo a idolatria do capital absolutizado e da segurança nacional. A
sua linguagem não era metafórica, mas precisa: são ídolos porque exigem vítimas. E,
enquanto defendia e apoiava as organizações populares, ele as punha em guarda sobre o
perigo de se transformarem em ídolos, absolutizando-se a si próprias e causando outras
vítimas. Ironicamente, não são os assim ditos povos primitivos os que prestam culto aos
ídolos, mas as sociedades baseadas no capitalismo, seja o ocidental, agora globalizado,
seja, no passado, o socialista.
d) As vítimas exigem retornar a um conceito há tempo esquecido: aquele de império.
Com a queda do muro de Berlim, permanece uma única superpotência, os Estados
Unidos, que se autocompreendem e agem como império, concebido como “destino
manifesto”. E recordemos o que dizia Agostinho : imperium est magnum latrocinium.
e) As vítimas podem fazer-nos superar o docetismo (heresia que negava a carne real de
Jesus Cristo), que hoje significa viver naquela irrealidade de ilhas, exceções ou
anedotas, que é o mundo da abundância. E, viver na irrealidade é princípio de
desumanização. As vítimas nos dirigem um convite, indefeso, a sermos realistas e nisto
147
encontrarmos a salvação. Dizia Mons. Romero: “Alegro-me, irmãos, com as
perseguições da nossa Igreja. Seria triste se, num país onde há tantos assassinatos, não
houvesse sacerdotes assassinados. É a prova de que a nossa Igreja é cristã e salvadora”.
São palavras extremas, mas, se não transformarmos em realidade algo do que
exprimem, continuaremos a viver docilmente num mundo irreal, seja ele capitalista ou
socialista, cristão ou muçulmano...
f) As vítimas nos mostram qual é o conteúdo fundamental mínimo da utopia: a vida
digna e justa em fraternidade. Não se trata da utopia de Platão em A República ou
daquela de Tomás Morus. E ademais, não é preciso compreender esta utopia dos pobres
existencialmente como ou-topia, como aquele ambiente perfeito para o qual não há
lugar (o qual visaria o mundo da abundância), mas como eu-topia, como aquele
ambiente bom e necessário para o qual deve haver lugar.
Poder-se-ia dizer que, teoricamente, tudo isto pode ser desvelado sem tomar em
consideração as vítimas. Realmente não sucede assim. Por isso, uma tradição religiosa
que faça das vítimas a realidade central é uma grande contribuição à verdade, à justiça e
à libertação.
Por fim, o intuito deste terceiro capítulo foi apresentar a importante colaboração
que o princípio misericórdia pode dar à bioética latino americana ao contemplar os
conflitos morais mais explícitos da América Latina, propondo-os a partir da reflexão
teológica. Conforme vimos, o princípio misericórdia traz em si, dialeticamente, uma
síntese de questionamentos e alternativas que se propõem para superar o fenômeno
estrutural que mantém o povo crucificado, conclamando à bioética latino americana
para a eminente responsabilidade comum de fazê-los descer da cruz. Além de ver a
necessidade do ferido, o princípio misericórdia aponta para a reação que deve haver
para isso, o qual sugere a construção de uma nova racionalidade, intercâmbios e ajudas
mútuas, no campo da reflexão e no gesto, que procuramos apontar com as expressões
básicas consonantes ao princípio sobriniano.
Enfim, efetivar a misericórdia é estar aberto para as significativas sugestões e
propostas de diálogo, e aprofundá-los a partir das novas contribuições que emergem,
com ensejo de construir uma nova realidade no Continente em que a valorização da
pessoa humana seja considerada no seu todo.
148
Reflexões finais
As considerações finais deste estudo consistem em alguns realces sobre a
contribuição teológica de Jon Sobrino para a bioética latino americana, expressa com o
princípio misericórdia.
O princípio sobriniano da misericórdia tem dois contextos nítidos neste estudo, a
saber, o contexto social de desigualdade e sofrimento na América Latina; e o contexto
específico da construção teórica da bioética, que a reflexão latino-americana muito bem
entrelaça com seu contexto social. De fato, tal entrelaçamento deu à bioética latino
americana um rosto epistemológico específico ao levar em consideração os seus
próprios problemas, denominados persistentes, por se tratar de situações morais de
desequilíbrios que se perpetuam historicamente e que, na América Latina, são explícitas
nas relações sociais de profundas desigualdades e de estruturas opressoras que mantêm
na pobreza uma multidão de pessoas vivendo em condições subumanas.
Esse conflito moral evidenciado como “fato maior” em contexto latino americano
é a realidade a partir da qual Jon Sobrino elabora o princípio misericórdia, como “lugar
teológico” ou como “princípio hermenêutico” para os filósofos, que busca discernir e
encontrar alternativas para sua superação. É sabido que Sobrino não é um bioeticista, e
portanto com o princípio misericórdia não quis acrescentar mais um princípio à
corrente principialista norte americana. Mas provoca uma melhor compreensão social
dos povos que vivem maciçamente crucificados sob uma relação injusta de poder, que
faz perpetuar as escandalosas desigualdades, gerando miséria e marginalização. Sob este
viés o princípio misericórdia tenderia alargar os horizontes para uma abrangência na
compreensão dos fatos. Com o princípio misericórdia, Jon Sobrino traz para a reflexão
a séria interpretação que se deve fazer da perversidade intrínseca numa relação social
que é imposta pelo sistema, que tende sugar o sangue das vítimas para se manter vivo.
A construção do pensamento sobriniano parte de um lugar hermenêutico próprio,
El Salvador, na América Central, lugar de sofrimento, onde conheceu além da opressão
econômica das castas, o intenso massacre e morte de pessoas sob o regime de ditadura
militar, em que se infringiam os direitos e violavam as condições humanas de
149
sobrevivência. Desse lugar nasce a intuição de Sobrino, movido com entranhas de
misericórdia, como protesto, solidariedade, iluminação e esperança em meio ao
desespero daqueles que vivem calados pela dor e pelo sofrimento provocado.
Sobrino sabiamente sistematizou sua cristologia da libertação, auscultando o
sofrimento do povo sem voz e, portanto, crucificado devolvendo-os em forma de
resistência, esperança, libertação e recuperação da vida numa linguagem que os coloca
como os mais privilegiados pelo Deus de Jesus. Desenvolve com essa compreensão
teológica uma nova abordagem acerca da inter-relação humana e da relação humana
com Deus. Brota, em meio ao povo simples, a percepção da dignidade humana
diminuída pela crueldade da injustiça e da mentira alienadora envernizada com
linguagem de democracia, modernidade, sistemas de governo os mais diversos, as reais
preocupações dos governos ricos com os países pobres, os reais destinatários dos
benefícios tecnocientíficos e assim por diante. Surge uma libertação redentora de
ideologias presentes em discursos religiosos, políticos, econômicos e científicos; bem
como um des-cobrimento das incoerências da corrupção e também dos discursos
fatalistas como mecanismos de manipulação e opressão. Para tal, a misericórdia assume
em primeiro plano uma criticidade que encara com veracidade os verdadeiros problemas
do Continente sem escamoteá-los; aponta-nos a re-ação primária ante uma realidade de
povo crucificados por cadeias injustas que precisam ser curados.
Mas para Sobrino é fundamental saber o porquê se decide curar o ferido. A
resposta mais satisfatória deve ser que o sofrimento internalizou àquele que cuida e lhe
deu condições para reagir. Tudo induz a pensar que a solidariedade primária movida
pelo samaritano não advém da obrigação, mas, pura e simplesmente porque, reduzido a
nada, aquele desconhecido “sem qualidades” estava entregue à própria sorte, à
compaixão humana.
A contribuição que o princípio misericórdia pode oferecer, em meio aos povos
vulnerados e crucificados da América Latina, advém dessa simultaneidade de
estabelecer uma relação crítica da realidade e propor caminhos de superação para a
principal violência que são as grandes desigualdades proporcionadas pelas estruturas de
morte. Revela-se como um princípio dialético ao reagir acolhendo, sem paternalismos, o
oprimido para dar-lhes condições dignas de sobrevivência; e colocando-se contra o
opressor, para que ele enxergue a partir na humanidade existente no outro sua própria
humanidade e possa também se libertar.
150
Um dos pontos de convergência do princípio misericórdia é curar o ferido, seja
ele o oprimido ou o opressor. Não é um princípio fechado que, embora fazendo opção
pelos mais vulnerados e reconhecendo que fora dos pobres não há salvação, se dá conta
também que nem todos os pobres oferecem luz; e muito menos um princípio
ultrapassado, dada à sua relevância em tempos de neoliberalismo que exclui os que não
podem consumir. O consumo desmedido de poucos e seus interesses é a percepção mais
notável da falta de universalidade de seus valores que exigem uma nova racionalidade.
O princípio misericórdia tem certa processualidade: não se reduz à troca de favores, à
obras assistenciais para descarga de consciências, mas vai além numa perspectiva de
restabelecer os direitos lesados e em prol de uma justiça enriquecida pela solidariedade.
A perspectiva da misericórdia é superar o mysterium iniquitatis, mistério iníquo de
morte, pelo mysterium salutis, mistério salvífico. Consiste em salvar do desrespeito, das
indignidades, da morte e da não-existência a maioria em-pobre-cida no Continente,
como resposta de intellectus misericordiae, iustitiae e amoris, entende-se misericórdia,
justiça e amor . Em busca de uma melhor percepção da realidade, compreensão da sua
pobreza e da dor humanas em vista de sua superação, o princípio misericórdia se dá
conta do desafio de lançar luz em meio à arraigada cultura de morte, que não aceita ser
iluminada pela luz que move este princípio, resultando em perseguição e morte por
parte dos verdugos. É uma realidade que não tolera luz ao mostrar a verdade da pobreza.
Quando uma pessoa, ongs, universidades, igrejas, instituições ou governos se propõem
agir movido pelo princípio misericórdia é retaliada, perseguida ou executada. As
ameaças e execuções ocorrem sempre acompanhadas de intimidações, que não
suportam serem atingidos em suas benesses construídas sobre as desumanidades. Por
isso é uma decisão que precisa discernimento. O comprometimento leva
necessariamente à perseguição. Ou decide-se curar o ferido ou passa-se adiante.
O princípio sobriniano pode sofrer de uma incompreensão acerca de sua proposta,
bem como na falta de abertura a ele, ao querer reduzi-lo apenas ao lugar do seu
surgimento sob a carapuça de uma única epistemologia, sobretudo se pensar que seu
conteúdo é estritamente relacionado ao campo das ciências sociais como a sociologia. O
princípio misericórdia elaborado, análise-conceitualmente, no campo teológico com a
percepção das situações concretas, tais como sociais, econômicas, morais e religiosas
demandam critérios de discernimento ao inseri-lo em outro campo de investigação, mas
está longe de se deixar deter por uma abordagem única. Sua relevância está exatamente
vinculada a essas considerações.
151
Desse modo, partindo do lugar epistemológico de sua reflexão e do contexto em
que foi elaborado o princípio misericórdia parece ser capaz de potenciar a bioética
latino americana oferecendo ai sua contribuição numa perspectiva multi-disciplinar. A
compreensão de Deus em Sobrino leva em conta a bipolaridade da existência humana,
na qual coexistem a história e a transcendência, numa cristologia elaborada de baixo
para cima, ou seja, construída a partir de uma análise do homem e sua circunstância.
Com isto ele afasta definitivamente a possibilidade de reducionismo por parte de uma
abstração e toda forma
de entender a espiritualidade como uma ascese
descomprometida, e da percepção humana descaracterizada de sentido, esperança e
finalidades. Estabelece com isso uma correlação de profunda convergência na maneira
de conceber o todo da realidade humana, na qual a espiritualidade é uma dimensão
fundamental e inerente ao homem, assim como a corporalidade, a sociabilidade e a
praxidade. A misericórdia, desse modo, se torna um princípio unificador, buscando
conhecer a realidade e alertando para sua possível manipulação e encobrimento de sua
verdade, que se sabe um dos males que corroem as relações sociais.
A lealdade de Sobrino em analisar a realidade dá ao princípio misericórdia
autoridade
de
denunciar as
relações injustas e corrompidas, acompanhada
simultaneamente de algumas expressões básicas com intuito de efetivar a cura. Sobrino
procura estabelecer com seu princípio uma cadeia de relações com essas expressões
básicas que também sugerem suas contribuições. Vincula-se com a responsabilidade,
cooperação, solidariedade, esperança, serviço, liberdade, perdão e tantas outras
expressões que caracterizam as relações culturais em meio aos pobres.
Descer da cruz é apontado por Sobrino como a necessidade mais primigênia
daqueles que estão crucificados, e clamam por ações que lhes tragam vida. No seu dizer
a misericórdia só se efetiva caso houver conexão entre a atitude de ver o ferido, reagir
ou internalizar a sua situação e viabilizar alternativas de ajuda para sanar a ferida ou
salvá-lo. Qualquer atitude isoladamente não passa de gestos paliativos que não serve
para levar ao termo a proposta do princípio.
Nota-se que o princípio misericórdia quer, sobretudo, chamar a atenção para a
qualidade de vida que vive os pobres inseridos na miséria. Ao mesmo tempo, porém,
ele se dá conta da fragilidade em considerar tal situação, mesmo porque, os critérios
para o viver qualitativamente não são estanques ao se dar conta da contingência e a
provisoriedade da existência humana. Poder-se-ia imaginar com isso a clareza que se
tem de uma meta a atingir, mas uma metodologia frágil ao considerar as contradições da
152
natureza humana. Desse modo o princípio se reconhece humilde, propondo-se somente
como mais uma ferramenta, ao considerar a grande complexidade que são as relações
humanas e os interesses ai presentes.
Podem-se apontar outras questões remanescentes como a complexidade da realidade
em discussão, a abrangência da teologia sobriniana e o diálogo que se propõe com a
bioética. Outras limitações vinculam ao perguntar como a contribuição do princípio
misericórdia, de caráter eminentemente cristão, pode ser atuante diante das
“pluralidades morais” modernas? Outra questão importante aparece na diferença
fundamental que se pode estabelecer entre a “ética do discurso” e a “ética da
libertação”: a diferença essencial nesta questão está precisamente no seu ponto de
partida. A primeira parte da própria comunidade de comunicação; a segunda, dos
afetados e excluídos dessa comunidade: as vítimas da não comunicação. Assim se
pergunta: como evitar que o princípio misericórdia se torne apenas uma ética do
discurso e sem comprometimento com os crucificados, que no fundo é o que lhe dá
legitimidade? É importante dar conta que a condição de marginalidade e injustiça social
presentes na América Latina deve-se a causas distintas. É importante estar atento a essa
diversidade e não reduzir a situação a uma única causa. Enfocamos mais opressão
provinda da situação econômica por considerá-la chave para o desenvolvimento
humano.
Um mérito do princípio misericórdia é trazer com seriedade para a reflexão, sem
temer retaliações ou julgamentos, a busca da verdade sobre o sofrimento dos pobres que
vivem no hemisfério Sul e precisam ser descidos da cruz. A responsabilidade da éticateológica e da bioética, para além do discurso, é contribuir para salvar os pobres. É do
mundo dos pobres e das vítimas que podem vir a sanação ou a recuperação das feridas
como sugestão para uma civilização gravemente enferma.
Para os cristãos o princípio misericórdia se caracteriza como uma atitude concreta
de seguimento a Jesus de Nazaré, o Cristo, como Mestre. A consciência do seguimento
exige uma responsabilidade pessoal e contextualização na história, levando em conta
fatores determinantes como o desafio fundamental de transformar a realidade,
inspirados pelo Espírito de Jesus, sobretudo quando se sabe que a exploração e opressão
de cristãos acontecem pelos próprios cristãos. Por isso, procura-se situar o Espírito de
Jesus numa estreita relação com a práxis, sem empobrecimento do espírito da
compreensão de Deus. Nessa lógica de comprometimento com a realidade se entende a
atualidade do princípio misericórdia, sua opção pelos pobres e não pela pobreza.
153
Revela-se como princípio básico de um diálogo mais abrangente, sem pretensão de
universalidade, mas coerente com a realidade maior em nosso mundo.
A cristologia numa perspectiva de seguimento, como a de Sobrino, não se dá por
acabada, mas se vê constantemente interpelada e desafiada a contribuir a partir de seus
conceitos e suas análises. A reflexão cristológica que nasce daí é potencialmente aberta
ao diálogo, donde se vê perspectiva para sua continuidade.
Na América Latina em seus homens e mulheres podemos encontrar Deus em meio à
hybris da arrogância, da corrupção, dos encobrimentos e das estruturas opressoras que
provocam as penúrias, as debilidades, as injustiças. Mas, podemos encontrá-lo também
na firmeza, na resistência, na busca da dignidade e na esperança de viver que cerca o
povo oprimido. Encontram-se aí crianças que vão à escola, com afã de aprender um
pouco mais, de pais e mães que resistem à opressão por acreditar no futuro dos filhos,
na resistência dos movimentos sociais. Existe vivo no seu meio um princípio de vida
que faz acreditar na vida.
Enfim, o princípio misericórdia é um princípio teológico, mas nitidamente ético
implicado nas condições humanas de sobrevivência, pois acredita que é a partir do
homem que Deus fala. Mesmo nas contradições da vida cotidiana o silêncio de Deus
revela ao oprimido que Deus lhe é solidário e está crucificado com ele. A linguagem da
cruz nos ajudou a compreender a relação assimétrica de poder e injustiça que se vive na
América Latina e a necessidade de sistematizar estudos e somar esforços para sua
superação. Neste caso, o princípio misericórdia se firma dizendo que a cruz é a morte e
a crueldade de uma multidão de pobres. O seu mérito consiste em colocar como
problemática atual a centralidade dos pobres, e ao chamar os pobres deste mundo de
povos crucificados, nós os tiramos do anonimato e conferimos-lhes a máxima
dignidade. Estabelecer uma relação mais profunda com este fato torna-se uma exigência
para evitar os superficialismos e as neutralidades de uma realidade que não é meramente
uma metáfora. Por isso, o princípio misericórdia põe-se em comum com a análise
científica da moralidade secular objetiva ou intersubjetiva, os desafios como o
crescimento explosivo das favelas nas novas e grandes megalópoles, sobretudo do
hemisfério Sul, nos sistemas prisionais, nas guerras silenciosas do mercado, nos
conflitos explícitos, e semelhantes. Para os diversos grupos teóricos ou práticos, crentes
ou ateus, o princípio misericórdia reforça, no mínimo, uma grande convocatória à
responsabilidade ética. E sem dúvida representa a proposta de um dinamismo espiritual
154
para a bioética, especialmente quando em nossos dias cresce o consenso de que esta não
pode prescindir de uma vigorosa espiritualidade.
155
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