iv colóquio internacional de políticas e práticas curriculares

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iv colóquio internacional de políticas e práticas curriculares
VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
ARQUITETURA ESCOLAR: MUROS QUE EDUCAM E
ENSINAM
Bianca Cristina Alves Albino – UFCG
[email protected]
Ângela Cristina Alves Albino – UFPB
[email protected]
Resumo
O presente estudo tem como objetivo analisar a estruturação do sistema de construção das
escolas brasileiras a partir de uma perspectiva histórica e filosófica dos contextos que formam
o modelo difundido atualmente de escola pública. No decorrer da análise apontamos a
influência estética do ambiente escolar na prática e na construção curricular e questionamos
sua influência na estruturação arquitetônica vigente, que segue uma normatização nem
sempre eficiente e que vai de encontro, em diversas ocasiões, à perspectiva Freiriana da
liberdade na educação. Por fim, destacamos a possibilidade concreta de uma mudança de
paradigma e reforçamos o papel das artes e da ação colaborativa no ofício do espaço escolar.
Palavras-chave: Arquitetura - Escola - Educação - Estrutura
O espaço escolar é compreendido na análise interdisciplinar: Arquitetura e Educação
como locus importante de formação de personalidade pedagógica e de currículo. Neste
estudo, partimos da compreensão de que, o espaço possui um efeito psicológico que interfere
na formação ética e estética do sujeito e, portanto, educa e ensina indissociavelmente.
O histórico construtivo brasileiro tem agregado valores emergenciais de uso do
espaço. Por várias décadas as políticas governamentais fazem o país progredir em níveis de
improviso, e o caso das escolas no Brasil retratam bem essa tradição construtiva da
necessidade e a manutenção desse padrão quando já se conseguiu o essencial para o
funcionamento dessas estruturas.
A arquitetura é um tipo de arte que sempre reflete um contexto ou um ideal de
futuro, mesmo que esse ideal seja traçado dentro de ideais de nostalgia ou que se dê de
maneira mais isolada e menos representativa. Então existem exemplos de escolas públicas de
construção tradicional barroca, eclética ou neoclássica que datam dos séculos dezessete e
dezoito. É o caso de várias escolas paulistas do período da república e da expansão cafeeira,
quando havia uma disposição monetária para a tentativa de criar uma aparência européia num
território tupiniquim.
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Escola Estadual Rodrigues Alves, fundada em São Paulo em 1907. Fonte: (esq) upload.wikimedia.org, (dir) farm4.staticflickr.com
O período no qual o país passava por uma definição da identidade de sua arquitetura
foi o modernismo, e o contexto da época era o de uma construção civil muito intensa e
singular sob a idealização de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Esse estilo produziu exemplares
bons de arquitetura escolar, como o Colégio Estadual Maria Constança de Barros Machado,
que reforçava os conceitos de modulação de estrutura como facilitadora na construção das
instituições brasileiras.
A escola entendida como espaço de reflexos filosóficos, políticos sociais e a
particularização dos saberes ao longo da história nos levam a crer que o currículo opera
conforme Veiga Neto (2002, p.65) “na distribuição dos saberes – pondo-os e dispondo-os,
hierarquizando-os, matizando-os e classificando-os, atribuindo-lhes valores – ele estabelece o
fundo para que tudo o mais (no mundo) seja entendido geometricamente."
Escola Estadual Maria Constança de Barros Machado, Oscar Niemeyer, Campo Grande - 1954. Fonte: campograndenews.com.br
A produção arquitetônica escolar dos anos 50 aos 70 tem que ser vista também por um ângulo
Freireano. A fundação desses grupos escolares acontece numa época de intersecção com o
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pensamento de uma educação que liberta e que se integra, esse conceito pode ser traduzido e
observado nessa relação da estrutura da escola não ser dissociada da cidade onde está
inserida.
Paulo Freire (2007) compreende os espaços escolares como lugares de promover a
conscientização e a libertação dos oprimidos, propugnar um novo tipo de educação dialógica
crítica, participativa. Assim, na sua perspectiva humanista entende:
que a escola é lugar de gente, Lugar onde se faz amigos, [...] gente que trabalha,
que estuda, que se alegra, se conhece, se estima. [...] cada vez melhor na
medida
em que cada um se comporte como colega, amigo, irmão. [..] nada
de ser como ao tijolo que forma a parede, indiferente, frio, só. [...] numa escola
assim vai ser fácil estudar, trabalhar, crescer, fazer amigos, educar-se, ser feliz
(p.92)
Nas décadas de setenta e oitenta, o investimento governamental para instituições
escolares era direcionado, em várias ocasiões, às estruturas flexíveis e transponíveis, salas de
aula sem paredes divisórias ou divisórias móveis, numa proposta pedagógica inovativa com
manifestação física. É o que Gonçalves (2011) discute em sua tese Arquitetura Flexível e
Psicologia Ativa.
O desencontro mencionado no título é o da efemeridade da manutenção desses
tipos pedagógicos e arquitetônicos. Mesmo tendo sido adotado em vários outros países Argentina e Portugal, na mesma época - os prédios sofreram um processo de recessão à
configuração convencional. Conforme Gonçalves (2011):
A Polivalente, como era conhecida a escola que nasceu com espaços abertos, é
hoje, na expressão dos que lá trabalham, uma "escola comum como as outras".
As paredes que se abriam unificando salas para trabalhos conjuntos entre
professores foram enrijecidas com tijolos e as salas-ambiente e os laboratórios
foram adaptados ou usados para outras finalidades
O destino das escolas flexíveis exprime uma truculência do sistema pedagógico
brasileiro, que raramente sai de uma linha convencional do professor como centro. A escola
polivalente é um caminho de difícil feitura e manutenção, além do frequente descaso na
alocação de recursos para a educação no país.
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O principal benefício de salas multiatividade seria então um conjunto heterogêneo
de convivência, a consciência do outro é muito mais baseada em afinidade e personalidade do
que numa condição comum de posição inferior ao professor. O aprendizado passa a ser
múltiplo. Qual seria então a intenção pedagógica de enrijecer as paredes e padronizar um tipo
de ensino?
Uma outra expressão da inventividade que já adentrava o período dos anos noventa
foi a contratação de João Filgueiras Lima (Lelé) para a idealização dos Centros Integrados de
Atenção à Criança (CIAC). Lelé é um arquiteto de aspiração modernista que procurou utilizar a
tecnologia a favor de suas obras.
O ofício arquitetônico de Lelé era baseado em formas que se encaixavam numa
estrutura modular eficiente, uma série de peças que podiam ser repetidas afim de compor a
demanda de mais de dois mil CIACs que o Brasil tinha na época. Entretando, mais uma vez,
uma iniciativa de concepção de melhores espaços não foi agraciada pelo sistema do governo
que acabou por direcionar Lelé para sua resignação e de seus funcionários.
As primeiras unidades foram concluídas mas os outros Centros sofreram
modificações e descaracterizações, a normatização da construção civil acabou por prejudicar a
replicação de um modelo promissor em todo o país.
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João Filgueiras Lima (Lelé) - CIAC Professor Anisio Teixeira, Ceilândia DF, Brazil Fonte: leonardofinotti.blogspot.com.br
Essa possibilidade de reprodução do modelo de Lelé é um dos melhores
aspectos dessa abordagem arquitetônica, pois contempla cidades de menor porte com um
modelo adequado. O histórico de construções de unidades de educação básica e pública se
resume muito aos estados do sul e às grandes capitais, as novas alocações de recursos
deveriam amenizar essas disparidades em cidades próximas que possuem alunos para atender.
A repetição de modelos construtivos passa a ser o ponto de partida de nossa
postura atual da construção da escola, iniciada em 2004 com a criação do Fundo de
Fortalecimento da Escola (Fundescola, Relatório de atividades do FNDE, 2004), que assumiu
uma postura similar da Fundação para o Desenvolvimento da Escola em São Paulo (FDE).
Ambos os programas, dentro do âmbito da construção civil, traçam uma série de requisições e
normas para que os projetos das escolas sejam realizados.
Considerando a histórica falta de critério no fazer institucional do Brasil, a
normatização do planejamento do espaço escolar é um avanço, os manuais disponibilizados
traçam os limites do mínimo que esse tipo de construção precisa ter, essa percepção do
mínimo não existia antes.
Por outro lado, esse modelo que funciona no âmbito de gestão escolar não
favorece o desenvolvimento formal, e portanto, psicológico do espaço na criança que o
frequenta. As escolas são fabricadas em série e geralmente dispõem de muros que as cercam e
isolam aquele lugar que originalmente intencionava uma liberdade do ambiente plural e
heterogêneo da cidade.
A contratação de arquitetos para as licitações de arquitetura escolar dá vazão
para o desenvolvimento de um modelo inovativo, econômico e formalmente mais condizente
com o que foi intencionado pela proposta curricular daquele grupo específico. Um trabalho
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compartilhado de percepções sobre os objetivos da escola é fundamental para que existam
bons resultados. E existem.
Ângelo Bucci (2006) e sua equipe do SPBR arquitetos realizou uma obra de
escola pública dentro dos padrões do FDE, e sem perder esse diálogo tão importante do
ambiente de ensino com a cidade que o envolve.
ESCOLA FDE JARDIM ATALIBA LEONEL, São Paulo - SP, 2006. Fonte: www.spbr.arq.br
E porque não, a inserção para a continuidade do sonho de Paulo Freire, "O sonho de
mudar a cara da escola. O sonho de democratizá-la, de superar o seu elitismo autoritário”
(1991, p. 74). O sonho que “tem que ver com uma sociedade menos injusta, menos malvada,
mais democrática, menos discriminatória, menos racista, menos sexista (1991, p. 118). A
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escola precisa sair da lógica observada por Mayume de Souza Lima quando refere-se às áreas
destinadas às escolas nas cidades contemporâneas do Terceiro Mundo:
As construções podiam se destinar tanto a crianças, a sacos de feijão ou a
carros, pois são apenas áreas cobertas, com fechamento e piso. (...) os seres
humanos perderam não apenas a sua capacidade única de dar sentido às coisas,
mas também perderam o instinto primário de todos os animais adultos de
buscar o ambiente mais favorável para o desenvolvimento dos seres jovens de
sua espécie (Lima, 1989, p.11).
Considerações pontuais:
Diante do exposto podemos compreender que os “desenhos” dos espaços escolares
contém nuances que (de)anunciam a filosofia, a política educacional e a próprio tipo de
formação de sujeito. Isso aparece as vezes de forma explícita quando observamos no desenho
curricular a separação das entradas por gênero nas escolas do período da República, a
comunicação do ambiente escolar com a cidade no modernismo e o arranjo aberto das salas
mutiuso das escolas polivalentes.
Por fim, entendemos que, no campo curricular esses lugares constituem o sujeito e
se a educação se dá numa perspectiva estética consideramos importante que os projetos
escolares sejam pensados também numa perspectiva formal e arquitetônica condizente com
os prospectos do Projeto Político Pedagógico local.
Referências
FREIRE, P. & HORTON, Myles. O caminho se faz caminhando: conversas sobre educação e
mudança social. 4 ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 35 ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2007.
________. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez; 1991.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: Uma trajetória filosófica : para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Rabinow, Paul e Dreyfus, Hubert. Tradução Vera Porto
Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1995.
GONÇALVES, Rita. Arquitetura Flexível e Pedagogia Ativa: Um (des)encontro nas escolas de
espaços abertos. Lisboa, 2011.
LIMA, Mayume S. A cidade e a criança. São Paulo: Nobel, 1989.
VEIGA-NETO, Alfredo. De geometrias, currículo e diferenças. Educação e sociedade:formação
de profissionais da educação, São Paulo, n. 79, p. 163-186, ago. 2002.
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REBELLO, Yopanan & LEITE, Maria Amélia. Architekton Lelé: o mestre da arte de construir,
ed.175, Revista AU, out. 2008.
OLIVEIRA, J., FONSECA, M. & TOSCHI, M. O Programa Fundescola: Objetivos, Componentes e
Abrangência. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 90, p. 127-147, Jan./Abr. 2005 127. Disponível
em http://www.cedes.unicamp.br
Relatório
de
atividades
do
FNDE
- 2004.
2009.
www.fnde.gov.br/fnde/institucional>. Acesso em 25 set. 2013.
Disponível
em
<
BUCCI, Ângelo. Escola FDE Jardim Ataliba Leonel. 2006. Disponível em < www.spbr.arq.br>.
Acesso em 25 set. 2013.
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CRIANÇAS E LINGUAGEM NA ESCOLA: A CULTURA E O
CORPO INFANTIL
Juliana Carla da Paz Alves – UFAL
[email protected]
Lúcia de Mendonça Ribeiro – SEMED
[email protected]
Resumo
Pensamos ser a cultura o tempo e o espaço no qual se dá as relações sociais. É nesse espaço
que ocorre a apropriação dos símbolos e signos pelas crianças. Observamos como esse
processo se dá em diferentes momentos das experiências infantis e atravessa de maneira
extraordinária seus corpos. Fizemos isso utilizando a interação da criança com a linguagem na
escola, tanto no contato com adultos quanto com seus pares. Para nos auxiliar nessa
interpretação traremos Ariès, Gouveia, Kramer e outros para falarmos sobre infância. Nas
análises de Bakhtin, Vygotsky, Benjamim, Pimentel e Souza, encontraremos base para
discutirmos linguagem. Autores como Silva e Tiriba que vão discutir sob vários aspectos o
desenvolvimento do processo ensino aprendizagem da criança e a importância de enxergar o
corpo como espaço de concretização de linguagens e aprendizagens das formas de
representação cultural de um grupo social. Suas aprendizagens ocorrem na interação com o
outro e por meio da linguagem verbal e extra verbal (falada, escrita, gestual, imagética etc.).
Vista desta forma a separação mente e corpo como tem sido feita, perde muito do sentido,
por isso esse trabalho propôs a interação entre o corpo e as linguagens e a necessidade de um
repensar sobre a criança que produz cultura, mas que também recebe e se modifica pelos
processos culturais.
Palavras-chave: infância, cultura, linguagem, corpo, escola.
CHILDREN IN SCHOOL AND LANGUAGE: CULTURE AND CHILD BODY
Abstract
We think the culture like time and space in which happens social relations. It is in this space that the
appropriation of symbols and signs by children happen. We observed how this process occurs at
different times of childhood experiences and through their bodies in extraordinary ways. We used
children's interaction with the language in school, both in contact with adults and other children. To
assist us in this interpretation will bring Ariès, Gouveia, Kramer and others to talk about childhood. In
analyzes of Bakhtin, Vygotsky, Benjamin, Pimentel and Souza, find a basis for discussing language.
Authors like Silva and Tiriba that will discuss various aspects in the development of the learning process
of children and the importance of seeing the body as a place of realization of learning languages and
forms of cultural representation of a social group. Their learning occurs in the interaction with others
and through verbal and non verbal (spoken, written, gestural, imagery etc…). Viewed in this way the
severance of mind and body as it has been done loses the sense, so this paper proposed the interaction
between body and languages and the necessity to rethink about children producing culture, but also is
produced within the culture.
Keywords: childhood, culture, language, body, school.
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CRIANÇAS E LINGUAGEM: A CULTURA E O CORPO INFANTIL
CULTURA COMO ESPAÇO DA INFÂNCIA
Apoiando-se principalmente em Geertz (1989), esse trabalho analisa o significado de
cultura, no diálogo denso entre autores que consideram a cultura como uma rede de
significados, na qual os sujeitos constroem interpretações sobre símbolos, identidades e
discursos, como também, as dimensões psicológica, biológica e cultural, agindo de maneira
simultânea a construção de símbolos e significados culturais pelos sujeitos.
Dentro desse cenário maior destacamos a noção de infância que nos acompanha.
Datada historicamente, e construída no agora, no presente, mesmo recebendo os resquícios
do passado e a projeções e expectativas do futuro, pois vemos que “Em relação dialógica,
passado, presente e futuro podem ser compreendidos como interligados. Na aparente
descontinuidade, há uma continuidade subterrânea. O passado pode ser ativado numa citação
atual.” (PIMENTEL, 2011, p. 61).
Áries (1981) afirma que até os séculos XIV e XV a palavra efant servia para designar
tanto crianças quanto adolescentes ou rapazes. A partir do século XVII, o autor já consegue
identificar que a palavra infância começa a ter uso delimitado às pessoas que estavam no
estágio que vai até a puberdade. O termo estava mais vinculado à situação de dependência
dos sujeitos – como no caso dos vassalos e servos – que a uma delimitação de idade, ou
período da vida. O discurso a respeito da infância e o trato diferenciado com as pessoas que
estão nessa fase da vida, surgem apenas na Idade Moderna.
Com a separação do mundo infantil do mundo adulto, na modernidade, a escola
tornou-se um dos principais lugares da infância. De acordo com Ariès (1981), na Idade
moderna, “A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer que a
criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do
contato com eles” (p.11). Com isso o autor afirma que naquele período – meados do século
XVII – surgiu um novo discurso sobre infância tornando-se bastante difundido no ocidente,
ganhando mais força que outras visões de criança ao longo da modernidade.
A infância se refere à fase da vida em que as pessoas são consideradas crianças. Uma
fase em que, segundo Áries (1981), a partir da modernidade, vem sendo dispensado aos
sujeitos maior cuidado com seu desenvolvimento psicológico, cognitivo e social. Essa
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preocupação decorre do fato de serem considerados ainda inaptos, incapazes de aprender as
formas sociais de convivência sozinhos.
Segundo Pagni (2010) a “origem etimológica da palavra infância é proveniente do
latim infantia: do verbo fari, falar – especificamente de seu particípio presente fan, falante – e
de sua negação in”. De acordo com o autor, o prefixo in, na palavra infância, vem denominar a
incapacidade de se expressar ordenadamente, de se comunicar com o mundo. Infantes seriam
pessoas necessitadas de desenvolver tal habilidade. Depois de determinado tempo passou a
significar também, e prioritariamente, a fase da vida na qual ainda não se obteve tal
capacidade, ou seja, o período em que se é criança.
De acordo com Gouveia, (2007):
Se várias produções contemporâneas, ao tematizar a cultura infantil, tomam
como objeto o estudo de suas manifestações, cabe analisar a estrutura
simbólica que organiza as práticas da criança. Ou seja, é fundamental está
atento para como a criança significa o mundo, expressando-o nessas
práticas. (p.114)
Entendemos, entretanto, que a despeito da enorme contribuição que traz o trabalho
de Ariès, o discurso moderno sobre a infância não foi o primeiro a se constituir historicamente
para definir as formas de tratar crianças. Isso pode ser evidenciado em textos como os de,
Wong (2008), quando discutem outras formas de ver e distinguir a infância das outras fases da
vida, em períodos pré-modernos no mundo ocidental.
Há ainda outra crítica sobre o clássico, que de acordo com Nascimento (2009),
Outras concepções e conceitos foram elaborados em relação à temática na
História da Infância e são aqui considerados, como aquelas formuladas por
Jacques Gelis (1991). O autor se contrapõe a Ariès ao salientar que o novo
sentimento de infância não ocorreu de forma linear, nem está ligado a um
novo sentimento, o que mudou foi a visão do ser humano ao se
compreender como um ser único, insubstituível, resultando, nesse
momento, em um maior cuidado dos adultos em relação à vida da criança.
Destacam-se ainda as formulações sobre a distinção histórica. (p.14)
O sentido de infância, atualmente, na cultura ocidental, parece denotar tanto o
período de vida em que se encontram as crianças, como a dependência em que essas são
colocadas perante os adultos, nas variadas situações nos modos de vida modernos, inclusive
na escola e no meio midiático. (PAGNI, 2010).
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Há as crianças que vivenciam experiências de abandono em instituições de cuidado à
infância, ou as que passam sua meninice nas ruas, ou ainda as que têm acesso a instituições,
crescendo nos ambientes familiares, porém, pertencem a diferentes classes sociais. Por isso, a
infância não poderia ser estudada de maneira unilateral, ou generalizada, pois os contextos
históricos nos quais se originam diferentes situações de análise em diferentes espaços, são
produtos e produtores das subjetividades humanas. Existem muitas formas de caracterizar a
infância representada pelos diferentes contatos com a linguagem presentes no percurso de
seu desenvolvimento (FROTA, 2007).
Nesse texto o foco será discutir e compreender os variados contextos e discursos
sobre a infância que atravessam o corpo infantil, observar esse atravessamento da cultura em
seus aspectos afetivos, psicológicos, físicos, estéticos, etc.
LIGUAGEM E INFÂNCIA
Utilizaremos aqui os autores já citados para falar sobre a linguagem enquanto
intermediadora entre cultura e crianças. Bakhtin, Benjamim e Vygotsky são trazidos para a
discussão, considerando a concepção ampliada dos estudiosos sobre linguagem como produto
e produção social e cultural, que ora se assemelha, ora se complementa entre si. (SOUZA,
2008).
Walter Benjamin conceitua experiência e vivência demonstrando como as vivências,
quando resgatadas através da linguagem, da narração, podem se transformar em experiência
histórica, renovada e reativada nos sujeitos que se apropriam desse universo simbólico para
fazerem-se e estarem socialmente.
Estudamos a distinção que Benjamin estabelece entre vivência (reação a
choques) e experiência (vivido que é pensado, narrado): na vivência, a ação
se esgota no momento de sua realização (por isso é finita); na experiência, a
ação é contada ao outro, compartilhada, tornando-se infinita. Esse caráter
histórico, de permanência, de ir além do tempo vivido e de ser coletiva
constitui a experiência (KRAMER, 2009, p.33).
A infância que vivencia os diferentes tipos de linguagens socialmente produzidas,
como a mídia, as tradições, as linguagens escolares e a literatura, está constantemente
exposta à narração do outro sobre si e suas experiências. Essa relação com o outro lhe diz
formas de conduzir-se nas teias da cultura que introjeta.
Para Benjamim
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A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram
todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que
menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros
narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se
interpenetram de múltiplas maneiras. (BENJAMIN, 1994, p. 198).
Para o autor é na narração que se celebra o diálogo, pois o outro ouvinte se encontra
na experiência e a incorpora, a experimenta como experiência estética, faz parte da
experiência do narrador no momento em que interpreta sua exposição e que bebe em sua
sabedoria sobre a tradição e a cultura. Para ele, na modernidade, a “arte de narrar está
definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.” (BENJAMIN,
1994, p. 199-200).
Em uma passagem de um de seus textos, Benjamin elucida, com licença poética, o
que, a partir dele, conseguimos entender como experiência estética da linguagem e da cultura.
Era preciso abrir caminho até os cantos mais recônditos; então deparava
minhas meias que ali jaziam amontoadas, enroladas e dobradas da maneira
tradicional, de sorte que cada par tinha o aspecto de uma bolsa. Nada
superava o prazer de mergulhar a mão em seu interior tão profundamente
quanto possível. E não apenas o calor da lã. Era “tradição” enrolada naquele
interior que eu senti em minha mão e que, desse modo, me atraía para
aquela profundeza. Quando encerrava no punho e confirmava, tanto quanto
possível, a posse daquela massa suave lanosa, começava então a segunda
etapa da brincadeira que trazia a empolgante revelação. Pois agora me
punha a desembrulhar a “tradição de sua bolsa de lã. (BENJAMIN, 1987,
p.122)
Nesse trecho de Mão Única (1987), Benjamin deixa claro que não apenas escreve
sobre as formas de captar a cultura, mas expõe sua forma de experimentá-la, sua maneira de
expressá-la, em um texto que é uma narrativa sobre como a tradição, retomada e reativada
em simples ações, são traços históricos, datados, que produzem subjetividades, atravessando
corpos, falas, sentimentos e desejos clandestinamente vivenciados.
Nessas águas cabe trazer a lógica do diálogo proposta por Bakhtin, uma visão
ampliada da linguagem que entre narrador e ouvinte não existe passividade em nenhum dos
lados, uma vez que o narrador, quando reaviva história e expõe sabedoria sobre seu folclore e
cultura, também reaprende. Por outro lado, o ouvinte, utilizando seu repertório reinterpreta a
fala do narrador reunindo, reproduzindo e produzindo saberes.
No que diz respeito a Bakhtin, o que nos interessa é observar como os sujeitos
organizados socialmente fazem surgir os signos e como a partir deles e de todo o sistema de
linguagem, organizam sua vida prática, sua cultura, seu grupo social e sua história.
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Por mais diferentes que sejam, os signos só podem se constituir como um
sistema a partir de alguma organização social. O social, portanto, precede o
individual. A própria complexidade do mundo interior dos indivíduos
depende da complexidade da organização social no interior da qual eles
existem. Por isso, para Bakhtin, a questão da ideologia consiste em saber
como o signo reflete e refrata a realidade em transformação. Assim como
Benjamin, Bakhtin trava uma luta contra a coisificação do homem e da
história, considerando que a linguagem é mediadora e que o homem se
constitui nela. (PIMENTEL, 2011, p.63)
Nos interessa, principalmente, o processo desse fenômeno social que ocorre numa
relação dialógica entre sujeitos, tomando uma proporção de imediatismo na vida das pessoas.
Fazendo a linguagem acontecer na prática cotidiana, moldando-a, surgindo constantemente
na correnteza do seu uso e na potencialidade de seu inacabamento permanente.
Muito atrativo também o fato de as crianças, imersas que estão no mundo social
estarem sempre se apropriando desse renovar, correr sem fim dos sujeitos com a linguagem,
com as formas de dar sentido às coisas e fenômenos, dentro de um modo infantil de desejar,
construir e experienciar a vida, pois “[…] Aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e
dinâmico, faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser” (BAKHTIN, 2004,
p.47).Que tem a ver com o inacabado, com submergir nas águas mornas e turbulentas do
processo de utilização da linguagem, de sua renovação e da tensão social vivenciada nesse
processo. Isso tudo é evidenciado quando Bakhtin diz que “O signo e a situação social em que
se insere estão indissoluvelmente ligados. O signo não pode ser separado da situação social
sem ver alterada sua natureza semiótica”. (IDEM, p.62)
Para Vygotsky a linguagem tem a mesma condição de importância no
desenvolvimento da consciência dos sujeitos. Para ele é na interação social através da
linguagem que ocorre a interiorização das formas culturais de existência do grupo social no
qual se está inserido.
Ainda sobre isso Pimentel (2011), nos esclarece que
O processo de internalização da linguagem é primeiro interpsíquico e depois
intrapsíquico. Dessa forma, o significado da palavra é a chave da
compreensão da unidade dialética entre pensamento e linguagem. A
palavras são plurivalentes, pois toda frase tem um subtexto que traduz
desejos, sentimentos, interesses. Logo a compreensão do que o outro diz
depende da interação do ouvinte com a base afetivovolitiva do locutor.
Entre o verbal e o extraverbal existe a possibilidade de múltiplos sentidos.
(p, 65)
Em Vygostsky, quando a criança, sujeito do processo, se inicia em um processo de
apropriação da linguagem que ocorre em etapas. É na relação pensamento palavra que, para o
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autor, a consciência (ou as estruturas psicológicas superiores) se desenvolve, pois para ele, “o
pensamento não é simplesmente expresso em palavras, é por meio delas que ele passa a
existir” (VIGOTSKY, 1987, p. 108). Socialmente as crianças se apropriam dos instrumentos
culturais e isso acontece num sentido múltiplo, atingindo os aspectos fisiológicos, psicológicos
e culturais delas nas diferentes fases de suas vidas. Por se interessar por esse processo de
desenvolvimento como o entende, Vygotsky diz:
Esse fluxo de pensamento ocorre como um movimento interior através de
uma série de plano. Uma análise da interação do pensamento e da palavra
deve começar com uma investigação das fases e dos planos diferentes que
um pensamento percorre antes de ser expresso em palavras (VIGOTSKY,
p.108)
Embora o caráter de interiorização da cultura pelos sujeitos seja o que mais nos
interessa, nesse texto, trazemos esse aspecto da teoria Vygotskyana, por ser um ponto que se
destaca em relação aos outros autores que trouxemos junto com ele na construção da visão de
linguagem nesse trabalho. Dentre os três, ele certamente é o que mais se preocupa com as
fases de desenvolvimento do ser social, considerando-o em etapas específicas.
Benjamin, Bakhtin e Vygotsky trazem a perspectiva histórica, dialética e
humana da linguagem. Afirmando a linguagem como expressão, dão ênfase
ao riso, ao extraverbal, e à possibilidade humana de criação e de
transformação. Suas interpretações negam a linguagem instrumental,
cristalizada, monovalente.(…). Também contribuem para considerarmos o
homem como sujeito social, ativo, produtor de sentido, valorizando a
estética, a ética e a afetividade, formas de conhecimento além de lógico e
do racional (KRAMER, 1993 p.46).
É a capacidade de enxergar a cultura como algo que se torna parte da natureza de
cada pessoa, e que isso acorre na interação com o outro, dando às formas de utilização da
palavra e do extra verbal múltiplas possibilidades de sentidos, que nos remete tanto a
Vygotsky, quanto a Bakhtin e Benjamin.
A LINGUAGEM DO (NO) CORPO
Que lugar o CORPO ocupa no processo ensino-aprendizagem?
Um local em que habitam muitas linguagens, expressões, singularidades plurais, eixo
fundamental de percepção do ser CRIANÇA. Confirmação de algo existente, concreto,
construído nas relações sociais e ao mesmo tempo, por muitas vezes, desconhecido e/ou
ignorado.
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A dimensão corpo se faz presente em todos os processos formativos, mas é
incrivelmente desconsiderado quando iniciamos uma reflexão acerca de um conceito que
possa definir o que é corpo. Somos incapazes de formular uma ideia imediata de corpo quando
nos é questionado, assim, como somos muitas vezes incapazes de entender que falar de corpo
tão somente é falar do meio mais imediato de contato do ser humano com o mundo físico,
social e cultural e falar de ser humano é falar de possibilidades e potencialidades.
[...] os corpos podem traduzir, revelar e evidenciar formas bem precisas de
educação, modos bastante sutis de inserção de indivíduos e grupos em cada
sociedade, por meio de formas múltiplas de socialização. Pressuponho,
então, que o corpo é um dos locais onde se revela o que há de mais íntimo,
mais profundo no humano, trata-se da possibilidade física de estarmos no
mundo. (SILVA, 2012, p.19).
Compreender as dimensões que se inter-relacionam nas múltiplas formas de
organização e socialização culturais em cada sociedade. E neste contexto entender que o
corpo, enquanto representação deste ser, se expressa em diversas formas de linguagens
importantíssimas para repensar ações que envolvem práticas educativas no espaço da escola
pública. Podemos ainda compreender o corpo enquanto local e instrumento de aprendizagem,
capaz de interagir em todas as dimensões da vida sejam elas, física, intelectual, psicológica,
ética, moral, social, estética e cultural! Como deixar de reconhecer o movimento e as
sensações a que o corpo está submetido diariamente? Como desconsiderar as manifestações
deste corpo e a forma como estas interações se revelam na sala de aula? E como estas
interações podem fazer parte das práticas pedagógicas na escola?
O corpo reconhecido neste texto como instrumento de aprendizagem e
possibilidades pedagógicas se depara com um sistema educacional e social fragmentado e
excludente, objetivo e racional que desconsidera a expressividade de sua interação no
cotidiano, questão fundamental para rever práticas e saberes deste espaço de formação.
Espaço este que continua a priorizar os saberes racionais em detrimento das interações e
saberes subjetivos e que ainda considera o aluno como um expectador do processo ensinoaprendizagem. Um corpo separado da mente, interpretado pelas delimitações e pelo previsível
planejado pelos professores. Idealizado e organizado a partir dos saberes e das práticas
desprovidos de significados que continuam presentes nas propostas pedagógicas, nos espaços
de formação de professores e nas rotinas das escolas.
São corpos paralisados, idealizados e manipuláveis pela educação, mas, sensíveis às
adversidades que se dão no ambiente em que convivem com iguais e diferentes. Em que a
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diversidade se expressa através dos corpos perpassados pelas múltiplas linguagens no
momento em que as experiências e a partilha “.tornar-se signo entre signos, transcendendo a
natureza, ultrapassando o espaço imediato e o tempo presente” (GOUVEIA, 2011, p.02)
Diante desta problemática surgem hipóteses que geram inquietações para
percebermos como o corpo da criança, que se move, que corre, que cai, que sente dor, que
tem necessidades, vontades e desejos, e que não são os mesmos para todos e nem tão pouco
acontecem na mesma hora ou da mesma forma e que precisam ser respeitados, continuam
desconsiderados nos planejamentos disciplinadores das práticas educativas na sala de aula.
Um corpo produtor de cultura e produzido por ela, sujeito ativo deste processo de formação e
dono de uma singularidade particular, que por ser singular é plural e presente em uma
sociedade que o observa de longe, em uma perspectiva determinada pela produtividade, ou
seja, pelo lucro. Portanto, tornar práticas educativas significativas para as crianças é
ultrapassar as proposições ordenadoras do trabalho docente na escola.
Nesta relação a criança ainda é considerada improdutiva e sem potencial, sobretudo
a criança da escola pública, filha de uma classe social marginalizada e excluída dos processos
de aprendizagem satisfatórios definidos por políticas e práticas educacionais distantes do chão
da escola. Uma pluralidade cultural que produz e que se apresenta no dia-a-dia das crianças
junto as suas famílias, nas brincadeiras, nas expressões, nos dialetos que rapidamente ganham
domínio público, mas, que não são considerados saberes formativos para “muitas escolas”. A
experimentação das possibilidades de narração de um mundo construído pelas crianças
permite que “as aprendizagens se efetivem e os processos de subjetivação se colocam como
movimentos individuaiscoletivos” (SILVESTRI, 2010, p.09).
A narrativa da criança se desloca, subvertendo a ordem encontrando alternativas. As
crianças “habitam, dão cor e vida, pela imaginação e criatividade, movimentando e
modificando a estética do espaço [...].O ato estético não é neutro, não é condição natural dos
sujeitos, é criado “nas” relações que são estabelecidas socialmente” (KRAMER, 2011, p.100).
Vemos um horizonte de possibilidades e uma discussão bastante complexa e ampla
se considerarmos que o corpo durante a história evolutiva do mundo passou por diversas
formas de conceituação e formas de controle. Nos diversos momentos históricos tivemos
nossos corpos idealizados, moldados, disciplinados, controlados, vigiados, normalizados e
conduzidos para a organização de sociedades que atendam a demanda de cada época.
[...] a lógica mecânica do século XVII, a lógica energética do século XIX e a
lógica informacional do século XX foram usadas como abordagens de
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estudos que tiveram o corpo como objeto ao longo da sua história. Para
muitos pensadores, no final do século XIX, o corpo era um pedaço de
matéria, um feixe de mecanismos. O século XX resgatou e aprofundou a
questão da carne, do corpo animado, corpo vivo, que age, reage e interage,
estabelecendo relações corpóreas. [...] O século XXI apresenta um corpo que
é objetivo e subjetivo; espiritual e corpóreo; que representa e é
representado; que carrega consigo sua cultura, sua história, que sofre
processos identitários e de inclusão/exclusão no campo individual e coletivo.
(SILVA, 2012, p.60).
Enfim, ressignificar saberes e práticas tornam-se necessários à medida que em
muitas de nossas atitudes estes, são contraditórias. Acreditamos porque vivenciamos no nosso
dia-a-dia enquanto professores, que alguns projetos e programas institucionais chegam aos
espaços de formação sem nenhuma avaliação mais criteriosa, ou muito menos sugerem uma
reflexão mais crítica por parte dos envolvidos. Há uma adaptação do corpo às circunstâncias
do momento, em que pouca ou nenhuma alteração acontece em consideração às
manifestações ou desejos expressos, mas que “interconectadas”, influenciam-se na forma
como se organiza a condução dos processos formativos. Sem uma releitura dos processos
formativos que desconsideram o corpo e sua expressividade, sejam das crianças, ou dos
professores, não conseguiremos repensar processos de formação educativos de qualidade, em
que as relações e interações humanas e subjetivas não sejam reconhecidas nos espaços. É
nesta releitura que entenderemos que são manifestações dos desejos que em acordo com
Silvestri, “subvertem regras e atribuem sentidos, significados e formas de enfrentamento aos
valores dominantes” (SILVESTRI, 2010, p.01).
A ausência de ações que demonstrem o sentimento de pertencimento e
reconhecimento nas ações formativas se esvazia nos processos educativos que dizem buscar a
igualdade, a liberdade e o respeito à diversidade como formas de expressão de uma atividade
que deveria ser democrática, consequentemente, igualitária em oportunidades a todos.
A LINGUAGEM DO CORPO NA ESCOLA
Contextualizando o espaço da escola pública, a dimensão infância e as diversas
linguagens, identificamos na contemporaneidade um paradoxo no pensar sobre a infância, a
criança e a escola. Dispomos de um leque de dispositivos de aprendizagem avançados,
conhecimento cientifico amplamente divulgado, programas e políticas de governo que
começam a reconhecer a criança enquanto sujeito de direitos historicamente constituídos.
Entretanto, observamos que o trabalho desenvolvido no espaço escolar mostra-se distante das
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ações de pertencimento significativo da organização pedagógica dos processos educativos. E
para pensarmos sobre esta relação de pertencimento trazemos Walter Benjamim em Canteiro
de obra,
As crianças (grifo das autoras)... [...] sentem-se irresistivelmente atraídas
pelos destroços que surgem da construção, do trabalho no jardim ou em
casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Em produtos residuais
reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e
para elas unicamente. Neles, elas menos imitam as obras dos adultos do que
põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que com eles
aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. Com isso, as
crianças formam para si seu mundo de coisas, um pequeno no grande, elas
mesmas. (BENJAMIM, 1995, p.18-19).
Mais preocupados com os processos de escolarização da criança pequena do que
com a compreensão do que seja corpo e sua presença e reconhecimento enquanto
instrumento de aprendizagem, práticas tradicionais vêm determinando e naturalizando na
escola conceitos desconectados da realidade. Esta concepção vem uniformizando a
aprendizagem das crianças levando-as a não se identificarem com o espaço da escola em sua
totalidade. Bem como, impedindo que as mesmas construam suas próprias lógicas e seus
próprios conceitos a partir de aspectos que surgem do sono a brincadeira. Neste espaço a
atividade da brincadeira não está preocupada com estruturas sofisticadas e nem muito menos
com brinquedos educativos regrados que acabam por inibir a imaginação das crianças. As
crianças já têm em sua natureza as habilidades necessárias para criar e recriar. Habilidades
estas que se organizam a partir da experiência que as crianças vivenciam em sua comunidade,
com sua família e, com seus pares.
[...] a imaginação adquire uma função muito importante no comportamento
e no desenvolvimento humanos. Ela transforma-se em meio de ampliação
da experiência de um individuo porque, tendo por base a narração ou a
descrição de outrem, ele pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou
diretamente em sua experiência pessoal. (VIGOTSKI, 2009, p.25)
Esta mudança de atitude diante da criança se faz necessária para que não se esgotem
as possibilidades de um refletir sobre o processo de ação-reflexão-ação na sala de aula, e
assim, poder redimensionar saberes com vistas a atingir uma dimensão maior de exploração
da aprendizagem e da curiosidade das crianças. Tornando o espaço da escola um lugar de
descobertas significativas que vão além do conhecimento fantástico que as crianças já trazem
e produzem. Envolvidas e permeadas pela cultura que faz parte de seu cotidiano, a criança
produz e se faz produzir em novas relações,
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
As brincadeiras, as artes e as práticas corporais observadas emergem como
conhecimentos contextualizados na cultura contemporânea; tanto trazem
marcas da institucionalização das relações como abrem brechas para a
mediação das experiências sociais, revelando-se como dimensão ética e
estética do humano, tempo-espaço de ampliação das possibilidades de ler o
mundo e escrever uma história coletiva (KRAMER, 2012, p.12).
Nosso desafio está em repensar nossas práticas educativas e reconhecer os saberes
culturais do cotidiano de nossas crianças, como saberes formativos no espaço escolar e para
além deste espaço. Desafiadores de currículos sem flexibilidade que negam e silenciam
culturas. Inverter esta ótica cruel e desumana que incutem nos espaços de formação
“legitimados”, que crianças de famílias com baixo poder aquisitivo, de pouco acesso aos bens
culturais, filhos de pais com pouca ou nenhuma escolaridade continuem apresentando o pior
desempenho escolar.
O espaço da escola precisa reconhecer que crianças “emparedadas” termo utilizado
por Tiriba (2010), distanciadas da natureza e, portanto sem relação com o mundo lá fora,
acabam por fazer parte de uma prática pedagógica que cada vez mais divorcia corpo e mente.
Crianças sentadas, enfileiradas, controladas, não terão seu aprendizado garantido, mas, irão
aprender a separar o pensar e o sentir presentes na relações que permeiam o processo de
aprendizagem ao qual fazem parte. São crianças “[...] aprisionadas, [...] despotencializadas,
adormecidas em sua curiosidade, em sua exuberância humana” (TIRIBA, 2005, p.2).
Se este espaço foi legitimado como espaço de ensino e de aprendizagem, de viver o
que é bom, de se aprender no dia-a-dia com o outro, com o diferente, de reinventar e de ser
capaz de potencializar na criança, novas formas de sociabilidade e de subjetividades vão estar
presentes nesta (re)construção e (re)organização de práticas pedagógicas da escola em que a
criança é sujeito deste processo.
Só uma pedagogia que respeite as vontades do corpo poderá manter viva a
potência infantil, pois o livre movimento dos corpos está na sua origem, e
possibilita o encantamento, o questionamento, a indagação e o
conhecimento das crianças em relação ao mundo físico e social, ao tempo e
à natureza (TIRIBA, 2010, p.5)
Reinventar o tempo, os espaços, as rotinas, ou seja, reinventar a escola, não é algo
que possa ficar a critério de um só corpo que decide o que é prioridade ou não. Esta situação é
real, precisa ser superada, para que estes espaços de convivência voltem a ser um lugar de
pertencimento e reconhecimento por este sujeito criança. Se como diz Tiriba, 2010, se a
criança é sujeito deste processo, partícipe de uma construção que a longo prazo tem nos
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apresentado diversas hipóteses, para problemáticas ativas e presentes na escola, não
podemos aceitar que estas questões fiquem à margem das discussões reflexivas.
É relevante entender que o processo de democratização e universalização da
educação básica vem possibilitar o acesso das crianças à escola, mas deve também, possibilitar
a permanência destas neste espaço. Que sejam consideradas as limitações das políticas
públicas para a educação, quanto à execução, implementação, manutenção e qualidade deste
processo, acesso e permanência, tanto para alunos como para professores, mas, que pese
junto a todas as reivindicações o compromisso de todos, sujeitos singulares e, portanto, plurais
com uma educação pública, gratuita e de qualidade.
CONSIDERAÇÕES
Trouxemos para a discussão deste texto uma concepção de corpo enquanto
instrumento de ensino e aprendizagem a partir de sua relação direta com as múltiplas
linguagens que constituem o imaginário infantil e suas práticas sociais.
Identificamos a linguagem do corpo e como esta, tem sido negligenciado na
organização das práticas e saberes para a formação da criança na escola, na formação do
professor e ainda, através do trabalho pedagógico planejado e organizado pelos professores
em detrimento do sujeito criança.
Este sujeito criança que se origina em distintas concepções de infância durante os
diversos períodos históricos em que o contexto social, político e econômico define que criança
será idealizada. Propôs a interação entre o corpo e as linguagens e a necessidade de um
repensar sobre a criança que produz cultura, mas que também recebe e se modifica pelos
processos culturais em que se encontra envolvida.
Conhecer a infância e as crianças favorece que o humano continue sendo
sujeito crítico da história que ele produz (e que o produz). Sendo humano,
esse processo é marcado por contradições: podemos aprender com as
crianças a crítica, a brincadeira, a virar as coisas do mundo pelo avesso. Ao
mesmo tempo, precisamos considerar o contexto, as condições concretas
em que as crianças estão inseridas e onde se dão suas práticas e interações.
Precisamos considerar os valores e princípios éticos que queremos
transmitir na ação educativa (KRAMER, 2006, p.17).
Notadamente os processos formativos voltados à criança começam a ter seus
direitos garantidos e efetivados pelas políticas públicas para a educação infantil e o discurso
traz a necessidade de se repensar as práticas em relação ao trabalho pedagógico com as
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múltiplas linguagens, a fim de que, possamos construir uma relação de pertencimento entre as
crianças e o espaço escolar.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
PRÁTICAS CURRICULARES: O QUE A SALA DE AULA
REVELA SOBRE A EDUCAÇÃO, O ENSINO E A
FORMAÇÃO?
Kátia Aparecida de Souza e Silva – PUCMINAS
[email protected]
Marco Aurélio Ferreira Alves – PUCMINAS
[email protected]
Resumo
O presente trabalho é o resultado de duas pesquisas realizadas no período de 2009 a 2011 que
inserem-se na linha de investigação currículo e sala de aula a fim de compreender a
materialização do currículo como espaço de formação. A metodologia utilizada foi a
Hermenêutica Objetiva desenvolvida pelo sociólogo Ulrich Oevermann, que permitiu
compreender a escola a partir da reconstituição da aula. A primeira pesquisa denominada
Limites e possibilidades de formação do empreendedor-cidadão: o que revela a sala de aula de
duas disciplinas de caráter técnico em uma escola de formação de empreendedores, em Belo
Horizonte. A investigação procurou elucidar se as disciplinas do currículo técnico formam o
empreendedor-cidadão. Observou-se que a proposta curricular de formar o sujeito
empreendedor não se realiza. A segunda investigação intitulada Currículo e processo
pedagógico: a proposição educar, ensinar e formar no currículo materializado na sala de aula
objetivou compreender o processo pedagógico sustentado pela tríade educação, ensino e
formação nas aulas de História, Língua Portuguesa e Matemática do 9º ano do Ensino
Fundamental. Os estudos ampararam-se na Teoria pedagógica, teoria crítica de currículo e
Teoria Crítica de Adorno. A investigação evidenciou uma semiformação.
Palavras chave: Currículo - Sala de aula - Teoria Crítica.
Abstract
This work is the result of two surveys conducted in the period 2009-2011 that fall into the line of
inquiry curriculum and the classroom in order to understand the materialization of the curriculum
as a training space. The methodology used was the Objective Hermeneutics developed by
sociologist Ulrich Oevermann who could understand the school from the reconstitution of class.
The first research called Limits and possibilities of formation of citizen - entrepreneur: revealing the
classroom two disciplines of technical training in a school of entrepreneurs, in Belo Horizonte. The
research sought to elucidate whether the disciplines of technical curriculum form the citizen entrepreneur. It was observed that the proposed curriculum form the entrepreneurial subject is
not realized. The second research entitled Curriculum and pedagogical process: the proposition
educating, teaching and training in the curriculum embodied in the classroom aimed at
understanding the educational process supported by the triad education, teaching and training in
the lessons of history, Portuguese and Mathematics of the 9 Th grade key. Studies bolstered up in
pedagogical theory, critical theory curriculum and Critical Theory of Adorno. The investigation
revealed a erudition.
Keywords: Curriculum - Classroom - Critical Theory.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
Introdução
Este trabalho objetiva apresentar o resultado de duas pesquisas fundamentadas na Teoria
Crítica, Teoria do campo do currículo e na Teoria Pedagógica. A primeira pesquisa denominada
Limites e possibilidades de formação do empreendedor-cidadão: o que revela a sala de aula de
duas disciplinas de caráter técnico em uma escola de formação de empreendedores, em Belo
Horizonte procurou elucidar se as disciplinas do currículo técnico para formar o
empreendedor-cidadão, ao se materializarem na sala de aula deixavam em evidência a
formação desse sujeito. Já a segunda pesquisa intitulada Currículo e processo pedagógico: a
proposição educar, ensinar e formar no currículo materializado na sala de aula objetivou
compreender o processo pedagógico sustentado pela tríade educação, ensino e formação nas
aulas de História, Língua Portuguesa e Matemática do 9º ano do Ensino Fundamental.
Nas pesquisas, teoria crítica de currículo colaborou na compreensão de uma visão de um
currículo historicamente construído, na seleção dos conhecimentos considerados legítimos
pela sociedade para fazer parte do currículo. E, além disso, questionar o papel do currículo,
compreendendo o que o mesmo se propõe a realizar; que tipo de sujeito o currículo pretende
formar e para qual sociedade o sujeito está sendo preparado, ou seja, qual é a função social da
escola dentro de um determinado contexto histórico (APPLE, 2006).
Já a teoria pedagógica permitiu discutir a formação do homem tendo como ênfase a razão,
manifestada não somente pelo conhecimento técnico e científico, mas pela capacidade de
fazer uso pleno da sua autonomia intelectual, pela formação moral e ética. Ser, de fato, no
conceito moderno, um cidadão emancipado. Ao pensar em formar um determinado sujeito, a
teoria educacional perpassa pelo formato de um currículo com determinadas disciplinas,
seleção de conteúdos, tempos de aula, geografia da sala de aula. Nesse sentido, o currículo
deixa de ser um mero instrumento técnico, este já possui algum tempo uma tradição crítica
dentro do campo educacional, tornando-se um objeto contínuo de análise e problematização.
A Teoria Crítica possibilitou através dos conceitos de esquematismo kantiano (Theodor
Adorno) e de Indústria Cultural (Horkheimer- Adorno) referências centrais para discutir a
escola revelada na sala de aula. Salienta-se aqui que Horkheimer e Adorno reconfiguram o
conceito de cultura de massas para Indústria Cultural, concebendo o processo de dominação
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VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
do pensamento através da cultura produzida e difundida segundo uma ordem estabelecida
que transforma as relações sociais em relações de heteronomia e incapacita o sujeito para o
exercício pleno de autonomia de pensar e de agir.
Como orientação teórico metodológica foi utilizada nas pesquisas, a análise sociológica
Hermenêutica Objetiva, que possibilitou conhecer a escola para além de suas aparências com
a reconstrução do processo pedagógico que se materializa na sala de aula. Essa metodologia
de análise consiste em um método desenvolvido pelo sociólogo Ulrich Overmann da
Universidade de de Frankfurt, seguindo a tradição chamada Escola de Frankfurt, embasado no
trabalho de pesquisa de Adorno, um dos fundadores da Teoria Crítica Social. A Hermenêutica
Objetiva é uma inovação dentro do campo da pesquisa qualitativa possuindo particularidades
que diferenciam das demais formas de pesquisas.
É um método que visa à interpretação e análise de textos produzidos a partir de dados
empíricos, registrados, de forma fidedigna, coletados a partir de gravação em áudio. O texto,
denominado protocolo é a condição chave para que o método seja aplicado. A análise do
protocolo segue um procedimento rigoroso e complexo. Cada detalhe da aula analisado
procura enfatizar os pormenores com indagação sistemática e pormenorizada dos fatos. O
protocolo é analisado por uma equipe de profissionais de diferentes áreas do conhecimento
que levantam as possibilidades de explicação das falas que compõem a aula. Após um
conjunto de aulas, o pesquisador analisa as regularidades que regem a estrutura das aulas e as
evidências que se apresentam na investigação.
Desenvolvimento
As evidências das duas pesquisas
Segundo Adorno (1995), o papel da educação é promover a capacidade do sujeito de libertarse da condição de ser tutelado (Mundel), aquele que precisa de tutela de outrem, para torná-lo
(Mündig), aquele que é capaz de agir, decidir e pensar por conta própria (VILELA, 2006). O que
evidenciam as pesquisas?
O início da aula e o seu desenvolvimento
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
A entrada do professor na sala constitui um importante momento para efetivação da aula.
Nesse momento, existe uma futura promessa para a constituição do que será a aula (VILELA,
2010). Assim, segundo estudiosos, ele é primordial para o exercício do efetivo trabalho
educativo. Nas aulas analisadas, pode-se observar um relativo estabelecimento de vínculos
entre professor e alunos por meio do cumprimento, que é pessoal e com cortesia. Pode-se
dizer que a entrada do professor na sala de aula constituiu o início de uma possível
interlocução deste com os alunos. Nesse momento, em todas as aulas, foi observado que os
alunos encontravam-se fora de seus lugares, ou seja, fora de suas cadeiras, conversando e até
mesmo gritando. Isso definiu o tom da aula, pois os professores começaram a aula sempre
exercendo papel disciplinador, pois precisavam estabelecer a ordem necessária para o início
da aula.
Nas aulas de História Matemática e Marketing, evidenciou-se relativa tensão na sala de aula
devido à falta de organização para o início da aula. Esse início foi protelado por mais de cinco
minutos pelos alunos. O tempo ocupado para a organização da turma para que a aula de fato
se instaurasse é uma situação que chamou atenção. Nela, o professor cumpre seu papel
educativo tentando organizar a turma de modo a constituir o trabalho pedagógico. Comenius
(2002), Kant (1996) e Hegel (1994) pontuam que o professor não deve começar uma aula sem
que antes os alunos estejam atentos e organizados.
Observa-se, nessas aulas, que os alunos demonstram uma dificuldade de organização para
iniciarem o trabalho, conversando entre si, mantendo-se localizados no fundo da sala e ainda
com um aluno pedindo constantemente para se ausentar da turma. A situação presenciada,
registrada no caderno de campo e analisada pelo grupo de intérpretes evidencia que os alunos
não compreenderam as regras necessárias para o início da aula, ou ainda não a consideraram
importantes. Em relação a essa situação, Comenius afirma que as regras somente poderiam
constituir parte dos sujeitos à medida que o processo educativo fosse alicerçado no
entendimento das regras e estas fossem reconhecidas pelos sujeitos como importantes, o que
possibilitaria sua internalização com autonomia. Este constituiria para o autor as reais
possibilidades para que a educação acontecesse de fato. Nessa aula, internalização não estava
estabelecida. Desse modo, no lugar de educação para autonomia impõe a condição
disciplinadora.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
O disciplinamento é algo importante na dinâmica da aula para criar as condições favoráveis
para o desenvolvimento da aula e ajudar os discentes a entenderem o seu papel de aluno. No
entanto, a aula não pode ficar somente no disciplinamento, pois, se o professor, o tempo todo,
fica apenas nos comandos da aula, isto não contribui para o desenvolvimento da autonomia do
aluno. Além do mais o disciplinamento favorável ao desenvolvimento social do aluno não é
aquele se aplica com imposições e controle, mas o que permite desenvolvimento de
discernimento e decisão com autonomia.
Lembrando que a escola deve ser um espaço em que a juventude tenha condições de vivenciar
práticas pedagógicas que colabore para a formação de um sujeito autônomo, a dinâmica da
aula deve favorecer o crescimento do aluno em uma das suas dimensões formativas
(educação/ensino). Ficar sujeito a imposições, rituais e atividades de reprodução de
informações sem discuti-las, sem refleti-las, é o contrário do que deveria ser a experiência de
sala de aula, segundo o que salienta Adorno (1995).
Tarefa educativa da professora: nenhum a menos na sala de aula
Conhecer os alunos é uma tarefa que envolve o trabalho educativo do professor. Comenius
(2002) e Hegel (1994) salientaram com clareza essa necessidade para o desenvolvimento de
uma educação e de um ensino relevante e de significado para os alunos. Na aula de
Matemática, destaca-se uma preocupação por parte da professora em relação às faltas
esporádicas e à ausência prolongada dos alunos na escola, um sinal que ela valoriza o trabalho
educativo da escola.
Nas aulas observadas a forma como os professores se dirigem a seus alunos deixa claro que
eles os conhecem. Além disso, reconhecem que a falta deles faz diferença no processo de
aprendizado. No início da aula de Matemática, a professora demonstra preocupação com o
lugar em que o aluno está, reconhecendo que é preciso controlar o melhor lugar para
aproveitar a aula e assim ela pontua:
PROFESSORA: Você pode sentar aqui, Aluno masculino 2, por favor. Onde você está não é bom
para você. Nós já conversamos sobre isso.
Aluno masculino 2: Ah, não.... (O aluno ri e diz) Mas, você pediu. Pra mim ta tudo bem.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
Em várias passagens das aulas observa-se que a professora tem controle sobre a classe e que
valoriza situações que regulam as condutas dos alunos que podem favorecer sua participação
e aproveitamento da aula. Há uma manifestação clara que sabe e quer educar os alunos para
seu papel de aluno. Estar na sala de aula envolvido com o processo educativo é a primeira
condição para o aprendizado.
De forma geral, foi observada uma preocupação em relação à frequência dos alunos. A
chamada é realizada em todas as aulas para observar a ausência dos alunos na escola e na sala
de aula. Esta é uma forma de controle da instituição que diante da infrequência do aluno faz
cumprir a legislação. Em uma das redes de ensino pesquisa existe uma regulamentação: o
aluno com cinco faltas consecutivas ou dez alternadas, o professor deverá fazer o comunicado
à direção para que seja acionada a família para que esta possa justificar as faltas. Este contato
é feito através de visita à casa da família, telegrama e carta registrada. Se a família não
conseguir ser localizada, é preciso fazer o BH escola1. Este BH escola é um comunicado que se
faz ao Conselho tutelar informando a ausência do aluno na escola. A legislação e a ação da
escola contribuem de certa forma para se evitar a evasão dos alunos. Pode-se dizer que essa
ação entre Estado, escola e família constitui uma tentativa de se evitar ausência do aluno à
escola conforme defendido por pelos teóricos da educação, principalmente Comenius (2002) e
Hegel (1994).
Síndrome da aula expositiva/ perguntas retóricas
Outro aspecto constatado nas análises é a “síndrome” da aula expositiva. Nas aulas os
professores ficam preocupados em dar todas as respostas, de passar a sua visão sobre os
assuntos que estão sendo estudados. O aluno acaba ocupando o lugar da passividade, uma vez
que não possibilita a participação efetiva destes na aula. O conhecimento que circula na sala
de aula ocorre em forma de um monólogo, um diálogo solitário, centrado apenas na figura do
professor. Esse modelo de aula centrado apenas no professor contraria os princípios da
pedagogia moderna, que coloca o aluno no centro do processo de aprendizagem. Esse modelo
impede o aluno de elaborar melhor as dúvidas, de compreender de fato o conteúdo que está
sendo ensinado. Nas aulas analisadas, pude observar, em vários momentos, o interesse dos
1
Trata-se de um controle implementado pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. A escola tem um bloco de formulário
denominado “Registro de Freqüência Escolar- BH na escola” onde é feito o registro da situação do aluno com cópia encaminhada
ao Conselho Tutelar, a Promotoria da Infância e da Juventude e Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte.
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alunos em aprender através das perguntas feitas e elas não são percebidas pelos professores,
resultando na “síndrome” da aula expositiva.
O professor, preocupado em demonstrar que domina o assunto, nem percebe de fato as
perguntas feitas pelos alunos e responde em alguns momentos de forma irrefletida, não
devolvendo a pergunta, não questiona a própria pergunta feita pelo aluno, não cria uma
situação pedagógica para que, de fato, o processo de aprendizagem aconteça.
Outro aspecto constatado é a fuga do tema da aula. Nas duas aulas os conteúdos foram sendo
pulverizados ao longo das aulas. O professor, sem refletir as perguntas dos alunos e na ânsia
de responder, acabava fugindo do tema e do objetivo da aula e criando situações de
aprendizagem na sala de aula de puro senso comum. A própria ânsia do professor em querer
responder de imediato às perguntas dos alunos, sem nenhuma reflexão, o induz ao erro.
Outra questão observada é um contingente de informações erradas que circulam na sala de
aula. Por exemplo, nas aulas de História, o professor diz que o Brasil possui a arrecadação
tributária mais cara do mundo e que esta corresponde a sete meses de trabalho de um
funcionário. Conforme dados divulgados pela OCDE (Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico), em 15/12/2010, sobre a arrecadação tributária de 2009, no
ranking mundial, o Brasil ocupa o décimo quarto lugar, atrás da Noruega, que ocupa o oitavo
lugar e a Suécia que ocupa o segundo lugar. Além disso, o brasileiro teria de trabalhar o
equivalente a 5 meses para pagar a cobrança de impostos por parte do governo. Os dados
confirmam que as informações ditas pelo professor na aula estão incorretas.
Na mesma aula, o professor, ao elaborar uma comparação entre o número de desempregados
no período da crise de 1929, que chegava a 15 milhões de pessoas, afirma que este número
corresponderia a sete ou oito vezes a população da cidade de Belo Horizonte. Essa informação
também não procede, tendo-se em vista que, segundo censo realizado pelo IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística), no ano de 2009, a população da cidade de Belo Horizonte
estava estimada em 2.452.617 habitantes.
A linguagem
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
A linguagem utilizada em sala de aula, na maioria das vezes, é informal, sendo que em
determinados momentos da aula chega a ser uma banalização do conhecimento. É importante
lembrar que a sala de aula é um dos lugares constituído e legitimado pela sociedade para a
produção do conhecimento de caráter mais científico e acadêmico. Cuidar da linguagem é
cuidar, também, da formação do aluno, de educá-lo no sentido de que a linguagem formal é
mais adequada para ser utilizada em sala de aula. Além disso, devemos sempre usar na sala de
aula os conceitos corretos, a linguagem técnica de acordo com a disciplina. Estas são práticas
pedagógicas que contribuem de fato na circulação e construção do conhecimento na sala de
aula.
A linguagem favorece o aluno a decodificar melhor aqueles conteúdos que estão sendo
ensinados na aula e desenvolve junto a ele uma compreensão mais sofisticada dos objetos que
estão em discussão em sala de aula. Além disso, em situações de sua vida, o aluno fará uso da
norma padrão e articulará com conceitos científicos. Se o professor não favorece na sala de
aula o desenvolvimento dessa competência restringe o espaço de formação educativo ao
senso comum, o que contradiz o motivo pelo qual segundo Comenius (2002), a escola foi
edificada como lócus de educação, ensino e formação.
A expropriação do pensamento
Os dados revelam que a educação e o ensino, em grande parte, não possibilitam ao aluno um
avanço significativo para além do ponto em que se encontra. Nessa ótica, a educação e o
ensino não edificariam a formação pensada por Adorno. O que decorreria é uma
semiformação, que, segundo o estudioso, expropria o sujeito da capacidade de pensar e de
refletir. Esse processo de expropriação é operado pela Indústria Cultural2 e é sua finalidade
última.
Desse modo, a Indústria Cultural impediria a formação plena do homem, ou seja, daquele que
possui autonomia, liberdade, capaz de julgar e decidir conscientemente. A forma com que os
2
A Indústria Cultural oferece um aparato que controla a consciência das pessoas e utiliza-se de técnicas para reificar o mundo
aparente, dispensando a necessidade de reflexão. Isso é possível através da distribuição e reprodução mecânica de seus produtos
que permanecem, ao mesmo tempo, submetidos à ideologia para sustentar a Indústria Cultural. Esta empobrece a cultura,
quando, por exemplo, transforma grandes romances em folhetins e propaga o fácil acesso a uma mera disponibilidade
mercadológica da obra (ADORNO, 1972).
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
professores efetivam as aulas parece evidenciar uma falta de consciência sobre instauração do
processo de semiformação na sala de aula. Adorno ensina a refletir sobre até que
[...] ponto tais reações subjetivas dos indivíduos são, na realidade, tão
espontâneas e imediatas como dão a entender os sujeitos; até que ponto,
por trás daquelas, escondem-se não só os mecanismos de propaganda e a
força de sugestão do aparato, senão e também as condições objetivas dos
meios e o material com que são confrontados os ouvintes e, por fim, as
estruturas sociais mais amplas, até chegar à sociedade como um todo
(ADORNO, 1995, p. 144).
Os dados indicam que o professor, muitas vezes, na tentativa de facilitar o processo ensino
aprendizagem elabora e indica para seus alunos o caminho a ser trilhado na compreensão dos
conteúdos. Nessa perspectiva, os professores funcionariam como mediadores, operando o
processo de esquematismo kantiano3, o qual deveria ser realizado pelos alunos. Desse modo,
os docentes não apenas impossibilitam como retiram dos discentes a capacidade de pensar, na
medida em que realizam essa importante atividade no lugar de seus alunos. Assim, os
professores oferecem uma massa pronta de conhecimentos bastando que os alunos absorvam
a lógica que é de outrem.
Pode-se dizer que a tríade pensada teoricamente pelos estudiosos da educação e por Adorno
não se realiza. Isto porque na maior parte das práticas curriculares efetuadas na sala de aula
não se observou educação para a autonomia, um conhecimento consistente para sustentar a
argumentação lógica do pensamento possibilitando o uso da razão e da reflexão, o que
ocasiona a semiformação.
O mundo, que permanece irracional, seria reconstruído como
racionalização, num esquematismo planejado que substitui o que seria a
experiência do consumidor, antecipando-a sob os desígnios do capital,
resultando na ilusão de que o mundo exterior seria o prolongamento da
produção nos termos da indústria cultural. No mundo reconstruído o sujeito
semiformado toma-se como sujeito do mundo que meramente reproduz.
Para ele a construção parece “natural”, mas é uma “segunda” natureza. No
verbete “Para uma crítica da filosofia da história”, a questão retorna: “[...] a
dominação conseqüente da natureza se impõe de uma maneira cada vez
mais decidida e passa a integrar toda a interioridade humana” (ADORNO,
2003, p. 463).
Para ele [o homem semiformado] todas as palavras se convertem num
sistema alucinatório, na tentativa de tomar posse pelo espírito de tudo
3
A função do esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos
fundamentais, é tomada ao sujeito pela Indústria Cultural. O esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente. Na
alma devia atuar um mecanismo secreto destinado a preparar os dados imediatos de modo a ajustarem ao sistema da razão pura
(HORKHEIMER, ADORNO, 1985, p. 103).
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
aquilo que sua experiência não alcança, de dar arbitrariamente um sentido
ao mundo que torna o homem sem sentido, mas ao mesmo tempo se
transformam também na tentativa de difamar o espírito e a experiência de
que está excluído, e de imputar-lhes a culpa, que, na verdade, é da
sociedade que o exclui do espírito e da experiência. Uma semicultura [ou
semiformação] que por oposição à simples incultura [ou ausência de
formação] hipostasia o saber limitado como verdade, não pode mais
suportar a ruptura entre o interior e o exterior, o destino individual e a lei
social, a manifestação e a essência. Essa dor encerra, é claro, um elemento
de verdade em comparação com a simples aceitação da realidade dada
(HORKHEIMER, ADORNO apud ADORNO, 1978, p. 463-464).
Nesta ótica pode-se dizer que as práticas curriculares dos professores estão estruturadas sob a
lógica da Indústria Cultural que através de um processo de dominação do pensamento
reproduzindo a cultura produzida e difundida segundo uma ordem estabelecida. Desse modo,
transforma as relações sociais em relações de heteronomia e incapacita os sujeitos para o
exercício pleno de autonomia de pensar e de agir. Assim, os professores em suas aulas
operando na lógica da Indústria Cultural estariam impossibilitados de romper com esse
processo. Isto porque não lhes foi possibilitado refletir e agir com o uso da razão para pensar
sobre seu exercício profissional. Desse modo, a sala de aula estaria alicerçada a serviço do
capital, massificando as relações sociais e impedindo a humanização do homem e o
desenvolvimento de sua autonomia.
Todas as aulas evidenciam a forma como o currículo é materializado na sala de aula. Assim,
pode-se dizer que
[...] a aula, concretizando o currículo, revela a unidade dialética entre
didática, aspirações educacionais relacionadas à formação de pessoas e de
sujeitos capazes de vida em sociedade, portanto, a unidade dialética entre
as aspirações da escola (objetivos revelados) e os seus resultados
(GRUSCHKA apud VILELA, 2010, p. 146).
Nas aulas analisadas, a tensão entre aspirações e a possibilidades da escola revela as
dificuldades dessa instituição em educar e instruir, perseguindo a formação plena dos alunos.
O currículo materializado na sala de aula não estaria possibilitando experiências formadoras
capazes de formar o sujeito pleno, esclarecido, com possibilidades de uso da razão e reflexão
para viver com seus semelhantes.
Considerações Finais
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
Nas duas pesquisas, as análises das aulas apontam o modo pelo qual a escola está lidando com
a questão da construção do conhecimento. Em vários momentos, predomina o senso comum,
impondo visões fragmentadas sobre um determinado objeto estudado. Os professores, muitas
vezes reforçam a sua visão de mundo a partir de suas percepções sem nenhuma evidência
científica. Além disso, as aulas indicam que os professores não criam momentos pedagógicos
que levam os alunos a desenvolverem de fato a sua autonomia intelectual em que os mesmos
se sintam capazes de produzir o próprio conhecimento. As aulas demonstram várias evidências
em que os alunos estavam com vontade de aprender, sendo registradas várias perguntas deles
que evidenciaram como estavam desafiados a compreenderem o tema apresentado. E, de
certo modo, faltou aos professores a capacidade de mediar essas perguntas no processo de
ensino-aprendizagem e oportunizar os mesmos o desenvolvimento da reflexão em sala de
aula.
Em relação à materialização do currículo, as aulas para a formação do cidadão-empreendedor
deixaram a desejar, uma vez que, enfatizaram essencialmente informações técnicas da gestão
do negócio. Em nenhum momento as aulas apresentaram preocupações relacionadas à
formação da cidadania dos alunos. Tanto na aula de Gestão Financeira quanto na aula de
Marketing ocorreram situações que poderiam ser aproveitadas pelos professores para discutir
aspectos relacionados à cidadania, como por exemplo: as características do consumidor
brasileiro, o papel do fetiche na economia capitalista, o papel da propaganda e seus aspectos
ideológicos, enfim, vários assuntos que poderiam contribuir para a formação política desses
jovens empreendedores que em breve estarão no mercado de trabalho.
Partindo da premissa de que na teoria pedagógica a tríade (educar, ensinar e formar) se
processa numa tensão entre elas e que a formação do sujeito seria o processo final em que a
plena capacidade de se situar no mundo estaria assentada na apropriação dos aspectos
educativos e de domínio de conhecimentos, a formação plena do sujeito não se concretizou.
Referências
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ISSN 18089097
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VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
A BUSCA DE IDENTIDADE DE “ANGÉLICA”: UMA
DISCUSSÃO SOBRE O CURRÍCULO NA LITERATURA
INFANTO-JUVENIL
Marlos José Lima Machado – FURNE
[email protected]
Rute Pereira Alves de Araújo – UFPB
[email protected]
Resumo
O trabalho, ora apresentado, é fruto de uma pesquisa bibliográfica em que se buscou refletir a
construção identitária da criança através de personagens da Literatura infanto-juvenil,
especialmente do personagem “Porto” da narrativa Angélica de Lygia Bojunga Nunes (1988). A
partir da análise do personagem Porto, enfaticamente focado na narrativa, o professor poderá
trabalhar aspectos da construção identitária das crianças, enaltecendo que as identidades se
constroem na dinâmica pessoal/social, em espaços nunca fixos (QUEIRÓS, 2012). O estudo nos
evidencia que a partir da leitura de texto literários o professor pode trabalhar temas
complexos amparados pela leveza estética da literatura. Muito embora esse estudo nos
evidencie a relevância da leitura literária realizada junto à crianças e jovens como contributo à
formação identitária do leitor, foi percebido, também, os ranços que permeiam essa prática e
por muitas vezes entravam os usos adequados das obras literárias nas salas de aula, dentre
esses entraves podemos destacar a compreensão de currículo e formação que se têm, na
maioria das vezes atrelada a linearidade de práticas que desconsideram a diversidade cultural
e a diferença como nuance importante à identidade infantil que está sendo construída.(SILVA,
2000).
Palavras-Chave: Identidade. Literatura Infanto-juvenil. Currículo.
THE SEARCH FOR IDENTITY "ANGELICA": A DISCUSSION ABOUT THE CURRICULUM IN CHILDREN'S
LITERATURE
ABSTRACT: The work presented here is the result of a literature in which it sought to reflect the child's
identity construction through characters of juvenile literature, especially the character "Porto" of the
narrative Angélica of Lygia Bojunga Nunes (1988). From the analysis of the character Port, strongly
focused on narrative, the teacher can work aspects of identity construction in children, highlighting that
identities are constructed in the dynamic personal / social spaces never fixed (QUEIRÓS, 2012). The
study shows that from the reading of literary text the teacher can work with complex issues supported
by the lightness aesthetic literature. Although in this study highlights the relevance of literary reading
held by the children and young people to contribute to the identity formation of the reader, was
perceived also the biases that permeate the practice and often hinder the proper uses of literary works
in rooms tuition, among these barriers can highlight the understanding of curriculum and training that
have most often linked to linearity practices that ignore cultural diversity and difference as important
nuance to the identity child being built. (SILVA, 2000).
Keywords: Identity. Children and Youth Literature. Curriculum.
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1. Introdução
Sabemos que a questão da identidade vem sendo uma das temáticas mais discutidas
na contemporaneidade. Identidade tornou-se alvo tanto das teorias educacionais críticas
quanto as pedagogias oficiais, e acompanhando essa “explosão discursiva”, a literatura infantil
vem através de seus autores, abordando em suas obras essa temática.
É sabido, também, que essa temática também é amplamente difundida nas teorias
que versam sobre Educação e Estudos Culturais, dentre os autores que tratam desse tema
nessas duas áreas podemos destacar Tomaz Tadeu da Silva e Stuart Hall, autores que também
fundamentam o estudo apresentado.
A literatura infantil quando envereda a tratar de problemas que afetam ou
interferem no indivíduo/sociedade, como questões relacionadas à identidade, torna-se um
instrumento, que além de ser arte, é capaz de contribuir para a formação de um indivíduo
necessário nos dias atuais.
Assim, no cenário nacional várias autoras consagradas desse gênero literário vêm se
esmerando em trabalhar a temática da diferença e da identidade em suas obras, podemos
destacar ligeiramente: Ana Maria Machado, Mirna Pinsky, Lygia Bojunga Nunes, etc.
É pertinente esclarecer que desde o final da década de 70 as autoras
supramencionadas vêm abordando em suas obras, essa temática, é assim em Bem do seu
tamanho (1979) e Bento que Bento é o frade (1983) de Ana Maria Machado e em Angélica
(1988) de Lygia Bojunga Nunes. Através dessas obras, a criança leitora pode se identificar com
as personagens nelas descritas, personagens infantis que partem em busca de explicações que
lhes possibilitem firmar sua identidade, enfim, tratam de questões identitárias.
Tentaremos, a partir desse trabalho, perceber a questão da identidade no contexto
literário infantil a partir da obra “Angélica” (1979) de Lygia Bojunga Nunes, e mais
precisamente da personagem “Porto” é que construiremos um diálogo com o que será dito,
relação literatura infantil - criança e identidade – obra, buscando as relações que se
estabelecem nesse diálogo com os currículos que construímos atualmente no contexto
escolar.
É importante salientar que a organização curricular na atualidade se preocupa mais
com a padronização mecânica de seus componentes e saberes, desconsiderando com isso a
diversidade cultural e identitária que compõe a escola, nessa perspectiva se vela a diversidade
em sua riqueza de saberes, considerando as pessoas como se elas fossem únicas, em outras
palavras se homogeneíza para facilitar as formas de controle social. (PEREIRA, 2010).
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Só para nos situar, iniciaremos falando da literatura infantil e o período quando esta
começa a ir além do pedagogismo moral, enfatizando a questão da formação identitária do
indivíduo a partir da infância, através de uma abordagem sucinta obra “Angélica”, em que
direcionamos as reflexões a questão identitária, trazendo alguns recortes das falas das
personagens que confirmam o conflito em relação à identidade “tida” e desejada, e
posteriormente para concluir, dialogamos com essas falas sobre identidade e literatura
infantil, na tentativa de confirmar a necessidade e importância da temática identidade como
parte significativa não apenas no contexto da literatura infantil, mas, sobretudo no espaço
escolar onde as identidade são construídas na tentativa de fixa-las, estabilizá-las, pois só assim
as relações de poder e controle social poderão ser exercidas mais avidamente. (HALL, 2005).
Pois “É também por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas
de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a
identidade.” (SILVA, 2000, p.91).
2. Iniciando Um Diálogo Entre Identidade E Literatura Infantil
Foi a partir principalmente da segunda metade do século XX, que a literatura infantil
se ampliou em relação ao seu público alvo. Com o aperfeiçoamento e maior facilidade de
divulgação das idéias inclusive em áreas como pedagogia e da psicologia infantil,
especialmente no que estava relacionado às etapas de desenvolvimento da criança; os
escritores, as editoras etc., começaram a produzir/exigir obras que atendessem as
necessidades desse público respeitando as propostas das novas ideias surgidas nesse período.
(SALEM, 1970)
O que podemos perceber, a partir desse contexto, é que a literatura infantil quando
passa a dialogar com a pedagogia e a psicologia inspirando-se em Freud, Piaget, Vygotsky,
dentre outros, e a própria quebra de paradigmas e de modelos tradicionais de ensino, acaba
ampliando seu diálogo. Outras áreas do conhecimento como a sociologia, antropologia,
filosofia contemporânea, psicolinguística, enfim, acabam entrando também na conversa,
contribuindo para que a fantasia tão comum nesse gênero literário ajudassem a criança a se
relacionar com o mundo exterior ampliando, inclusive, o seu “repertório cultural”.
Os escritores passaram a utilizar tanto as ciências que tratam do desenvolvimento
cognitivo, sensório e motor quanto às ciências que tratam das relações, do sentimento, do
sagrado, enfim da cultura, para enriquecer e ampliar as temáticas e as discussões nas obras no
gênero literário infantil. Dialogando com outras áreas do conhecimento, a literatura infantil
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passou a ser capaz, enquanto meio de comunicação, de abordar por meio de uma linguagem
simbólica, lúdica e prazerosa, questões sociais, culturais e econômicas as quais geralmente são
difíceis de serem apresentadas às crianças de forma realista, o que se tornou significativo para
o desenvolvimento da criança enquanto indivíduo social. (CARVALHO, 2004)
Se tratando de identidade e literatura infantil brasileira, sabe-se que o “ponta-pé”
inicial foi dado por Monteiro Lobato já na década de 20. A partir de suas histórias, começa a
“falar para” a criança, entretanto, como dito anteriormente, é só na segunda metade do
século XX, que o gênero passa, de maneira mais representativa, a abordar temáticas que se
referem, por exemplo, à busca de identidade o que acabará influenciando vários escritores,
todavia foi a partir da década de 70, que a literatura infantil:
[…] partiu, pois, para apresentar personagens que subvertiam as normas de
comportamento vigentes e propunham uma ordem mais satisfatória para
um maior número de pessoas. […] os heróis infantis passaram a ser
constestadores e detonadores do conflito, revolucionando a ordem com as
soluções propostas. (YUNE & PONDÉ, 1988, p. 79).
Os anos 70 foram importantes para o amadurecimento do movimento literário
infantil. Foi durante esse período que a literatura infantil brasileira através de um movimento
de renovação e alternativas para os modelos comportamentais pedagógicos e moralizantes tão
difundidos pela literatura de décadas anteriores, que fez surgir:
[…] dezenas de escritores e escritoras, obedecendo a uma nova palavra de
ordem: experimentalismo com a linguagem, com a estruturação narrativa e
com o visualismo do texto; substituição da literatura confiante/segura por
uma literatura inquietador/questionadora, que põe em causa as relações
convencionais existentes entre a criança e o mundo em que ela vive;
questionando também os valores sobre os quais nossa Sociedade está
assentada. (COELHO, 1985, p. 214)
E entre essa literatura inquietadora e questionadora, a identidade passa a fazer parte
do contexto literário infantil em busca de respostas para o sujeito social. Alguns autores como
Hall (2005), Roudinesco (2000), Silva (2000) entre outros, abordam em suas obras que a
contemporaneidade é marcada pela descentralização do sujeito. O sujeito não tem uma
identidade fixa, essencial ou permanente. Ela é transformada continuamente influenciada
pelos sistemas culturais aos quais estamos inseridos, o que acaba transformando o homem de
hoje em algo contrário de sujeito. “Quanto mais a sociedade apregoa a emancipação,
sublinhando a igualdade de todos perante a lei, mais ela acentua as diferenças.”
(ROUDINESCO, p.13).
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As identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa
marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de
representação quanto por meio de formas de exclusão social. A identidade,
pois, não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença.
(WOODWARD, 2000, p.39)
A identidade é simplesmente aquilo que se é. O indivíduo só é algo se existe o não
algo (o diferente). Sendo assim, toda a produção que influenciou e influenciam esses (as)
pesquisadores (as) em se tratando de identidade, também se fez e faz presente na produção
literária contemporânea, e é claro, na literatura infantil. O que vem acontecendo
representativamente desde a segunda metade do século XX.
Nos últimos anos percebemos uma produção significativa nesse gênero literário que
tratam das diferenças: o negro, a mulher, o homoafetivo, o idoso, entre outros, são temáticas
que surgem fundamentadas a partir das produções e estudos voltados para questões de
identidade e diferença muito percebidas nas obras destinadas à criança atualmente. Segundo
Silva (2000), diferença e identidade são dependentes entre si. A diferença é um produto
derivado da identidade. E ambas são indeterminadas e instáveis, são um processo de produção
simbólica e discursiva.
É nessa seara da diversidade que as políticas de currículo têm encontrado portas para
a reflexão, especialmente no que tange a formação dos professores que, na maioria das vezes,
não a concebem como processo contínuo, necessária à sua atuação em sala de aula. Roberto
Sidney Macedo (2011) aponta para a necessidade de quê esse professor construa a consciência
de suas necessidade de formação, que opera num movimento dialógico concretizado na
coletividade.
Através da formação contínua, perene, do educador ele será capaz de se indagar
sobre, se as práticas por ele desenvolvidas respeitam a diversidade presente no contexto da
sala de aula? Será capaz de se indagar sobre quais as perspectivas de currículo por ele
apregoada em sala de aula?
Prosseguindo a discussão sobre a discussão da temática “identidade” na literatura
infantil, acreditamos que não tem como marcar uma data específica de quando esse diálogo se
iniciou, porém, podemos perceber que a partir da quebra do sujeito iluminista, o início do
processo, tendência ou talvez a necessidade de se falar em identidade foi um representativo
começo. Vários fatores influenciaram para uma produção significativa sobre o tema
identidade, mas foi durante o período do “sujeito pós-moderno” que se inicia uma produção
significativa do tema nas obras infantis.
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Se o texto literário vai além da temática enquanto fornecimento de informação, ele,
além de tantas outras possibilidades, permite que o leitor vivencie situações existenciais. É
através da identificação com os temas tratados e com as personagens que o leitor pode:
afirmar sua personalidade, formular julgamentos éticos, e prolongar na leitura experiências
e/ou questionamentos pessoais. (FARIA, 2005).
O interessante de trabalhar a temática identidade na literatura infantil acontece
justamente porque esse tipo de leitura possibilita ao leitor a percepção de vários mundos,
várias culturas e subculturas e na interação texto/leitor e ficção/realidade em diferentes vozes
narrativas que a criança percebe a diversidade, o outro, o diferente, o eu, enfim, ela pode se
reconhecer no texto e traçar caminhos que as possibilitem reconhecer/formar sua própria
identidade.
É relevante a reflexão sobre a temática, pois conforme nos aponta Skliar (2010) a
mudança educativa nos olha e nesse olhar nos convoca a mudar o nosso prisma sobre os
currículos que temos e as múltiplas identidades que são formadas contemporaneamente. O
outro requisita o nosso olhar, o outro multicultural, “Ser diverso” e “diferente” que constitui a
minha identidade na simbiose dinâmica que constitui a vida, me convida a percebê-lo como
sujeito.
2.1. Criança e Identidade
Segundo Roudinesco (2000), a nossa sociedade é uma sociedade depressiva. O
indivíduo não reflete sobre a origem de sua infelicidade e não sabe lhe dar com a sua própria
liberdade conquistada, gerando um sentimento de individualismo o que não o ajuda para
afirmar sua “verdadeira” diferença ou sua (s) identidade (s), “[…] dando a si mesmo a ilusão de
uma liberdade irrestrita, de uma independência sem desejo e de uma historicidade sem
história.” (ROUDINESCO, p.14).
A sociedade democrática moderna vem banindo “[…] de seu horizonte a realidade do
infortúnio, da morte e da violência, ao mesmo tempo procurando integrar num sistema único
as diferenças e as resistências.” (Ibidem, p. 16).
O que pretendemos com esses parágrafos iniciais, é trazer a percepção de que toda
essa formação de um sujeito depressivo inicia-se a partir da infância, assim como, o
sentimento de democracia, ou melhor, de nacionalidade que é incutido no indivíduo desde a
mais tenra infância. A criança é desde pequena “induzida” a tornar-se um indivíduo perdido e
“enfraquecido de sua personalidade” inclusive covarde, como afirma Roudinesco. Mesmo
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quando entra no período de puberdade onde geralmente tende a ir de encontro às normas, as
regras dos pais, estas normas ficam no seu inconsciente, e talvez, em um futuro não muito
distante, venha florescer e fazer parte do seu mundo. Ou não é comum, depois de certa idade
ou vivência, ouvirmos frases como estas: “Bem que o meu pai/mãe falou!” ou “Se eu tivesse
ouvido a minha mãe/pai!”?
Sabemos que todo o ser humano quando nasce depende do outro, e essa
dependência pode ser considerada um processo de construção identitária, porque tudo vem
do outro e “[…] suas próprias identificações primárias vinculadas à formação de seu ego ideal,
instância e teórica, que adquire importância plena através da retroatividade4.” (SLAVUTZKY, p.
88).
Pensando na população brasileira onde a maioria que lê, são meros decodificadores
da língua escrita, isso sem se falar dos que não sabem nem decodificar. Estes grupos, na sua
maioria marginalizados, normalmente são frutos do sistema. Suas identidades são formadas e
fundamentadas a partir de instrumentos ou instituições de domesticação dominante, até a
língua contribui para esse processo. Identidade e diferença são produzidas. “Somos nós que
fabricamos, no contexto de relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são criações
sociais e culturais. […] elas são criadas por meio da linguagem” (SILVA, 2000, p. 76).
É mediante essa reflexão formulada por Silva, que avançamos na perspectiva
elencada pelo próprio autor ao constatar que: “A pedagogia e o currículo deveriam ser capazes
de oferecer oportunidades para que as crianças e os/ as jovens desenvolvessem capacidades
de crítica e questionamento dos sistemas e das formas dominantes de representação da
identidade e da diferença.” (SILVA, 2000, p. 91-92). Assim, entendemos que muito daquilo que
dizemos, de forma socialmente naturalizada, carrega consigo ranços negativos de um contexto
linguísticos mais amplos responsáveis por reforçar ou definir identidades.
Sendo assim, é uma questão cruciante que a leitura seja efetivamente democratizada
e que a criança tenha acesso as mais variadas obras, e dentre a vastidão de obras que a criança
terá acesso certamente a questão da identidade será abordada através de suas personagens.
Garantir à criança acesso a leitura literária, é consentir que ela passeie livremente entre os
territórios simbólicos das mais diversas identidades existentes, tanto em um mesmo indivíduo,
quanto na diversidade social. Garantir que a criança cresça tendo acesso a livros é permitir que
ela amplie seu repertório cultural, minimizado muitas vezes, pela própria família, comunidade,
etc.
4
Relações com o passado cultural de seu responsável. Por exemplo: o cuidar de uma criança vai depender de como este foi
cuidado ou como percebeu esse cuidar durante a sua trajetória histórica, cultural e social.
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Todavia no tocante a acessibilidade da criança aos textos literários em sua amplitude
artística de leitura fluida e prazerosa sem fins pedagogizantes e/ou moralizantes, como
historicamente ela foi se desvencilhando na escola moderna, é uma tarefa que requer audácia
e acima de tudo sensibilidade, pois a infância e seu universo imaginário há muito tempo vem
sendo relegada da escola, e essa questão precisa ser repensado, conforme constata Miguel
Arroyo (2011), há o predomínio de visões escolarizadoras e didatizantes que relegam a todo
tempo a infância em suas múltiplas capacidades de desenvolvimento, dentre essas
capacidades, a capacidade identitária de imaginar e ser outras pessoas na ludicidade que a
move.
Essa questão reverbera de modo contundente nas práticas curriculares que
movimentam a educação endereçada à crianças e jovens, Arroyo (2011) percebe que o
imaginário infantil tem sido trabalhado de modo reducionista ou até mesmo ignorado. Outra
questão que tem que ser superada, segundo o autor, é homogeneização do conceito de
infância, assim ele visualiza que quando a infância real for realmente considerada, os coletivos
serão, indubitavelmente, conduzidos a não ignorar a diversidade de formas de vivê-la e as
propostas pedagógicas serão obrigadas a perceber as diferentes infâncias existentes, em suas
variadas nuances identitárias, étnicas, raciais, sociais, de gênero, campo, cidade e periferias.
Essa percepção curricular escolar rompe com visões genéricas sobre a infância.
Todavia, sabemos que essas questões atualmente são discutidas na Literatura infantil
contemporânea, Ligia Cademartori (2012), nos fala que finalmente compreendemos que a
identidade não é fixa, mas se constitui na flexibilidade do terreno instável. Assim, as
identidades são construídas ao longo da vida e na literatura há abertura para a diversidade
cultural presente nos mais variados grupos sociais: “Na literatura [...] referências políticas,
sociais, culturais ganham multiplicidade e voltam-se à afirmação da diferença e do lugar do
outro.” (CADEMARTORI, 2012, p. 53).
3. Angélica: literatura infantil, identidade e currículo
Pretendemos valorizar aqui, a linguagem literária que, pela sua própria
natureza instigante e não-doutrinária, desperta no leitor a vontade de
pensar e debater sobre os conflitos por ela desenvolvidos. Esta é, pois, uma
função política, em que a literatura levaria à desalienação. (YUNES, 1988,
p.30)
3.1. A história
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Antes de adentrarmos na descrição da história, mais especificamente na reflexão
identitária do personagem “Porto”, é importante salientarmos que Angélica é a segunda
produção de Lygia Bojunga Nunes, publicada em 1975, sua estréia no cenário literário infantil
se dá com a obra Os colegas de 1972.
A obra de Lygia não se restringe unicamente ao público infantil, podendo ser lida
pelos mais variados públicos, tendo em vista a sua complexidade.
Os olhares dessa obra de ficção se dispersam, pois o narrador – em terceira pessoa –
mostra ao leitor as histórias da cegonha Angélica, do elefante Canarinho, do casal de sapos
Gonçalves e Mimi-das-Perucas, do casal de crocodilos Jota e Jandira e do porco Porto.
Notoriamente o narrador se demora no enfoque das alegrias e dilemas do porquinho
Porto. Bem, Porto é um porco que após a convivência com o outro social, passa a não gostar
de ter nascido porco. Discriminado na escola por ter nascido porco, troca o seu nome de porco
para Porto e esconde a sua identidade por trás de uma fantasia onde todos passam a admirálo. Depois de viver aventuras na narrativa, e ter conquistado amigos, ele volta a ser Porco,
mas com certeza não era aquele porco marginalizado, era um Porco que conseguiu a partir do
outro, do diferente se encontrar, assumir a sua identidade “indesejada” inicialmente. Porém,
sabemos que ele precisou viver outras identidades para afirmar pelo menos uma, a qual
determina, enquanto “indivíduo”, a sua identidade biológica. Vejamos alguns trechos da
narrativa.
Porto vivia bem. Feliz consigo mesmo.
– A água então ficava de espelho. O porco se debruçou na água e ficou no maior
entusiasmo. […] e entrou na água para se abraçar. (p. 10)
Até aqui, não havia o outro para colocar em questão a sua identidade. Vivia
praticamente “narcisicamente”. Ele demonstrava interesse e apreço a sua própria pessoa.
Gostava de ser porco. O que era um comportamento normal. Uma criança normalmente
desenvolve até certa idade um comportamento narcisista, entretanto, depois de algum tempo,
ela começa a interessar-se pelo o outro. “[…] o mesmo narcisismo existe não só na criança,
mas também no adulto comum; por outras palavras, que a ‘pessoa normal’ participa em
menor ou maior grau naquela atitude que, quando quantitativamente mais forte, constitui a
psicose.” (FROMM, 1979, p. 42)
A identificação é um processo psicológico […] a presença dos outros seres
humanos é fundamental. […] No processo de identificação, o sujeito assimila
uma propriedade, um atributo do outro, e se transforma. Esta idéia é
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fundamental para compreender como se forma a personalidade. A criança,
o sujeito, assimila e transforma, ou seja, não será mais como antes. […]
Através do processo de identificação o sujeito se transforma parcialmente,
tendo como modelo o outro (SLAVUTSKY, 1983, p.15)
Se essa relação com o outro acontece de maneira saudável, natural, por exemplo,
sem rotulações, este normalmente não encontrará muita dificuldade em se relacionar com o
outro, como também, de iniciar significativamente o seu processo de construção identitária.
Porém, no caso de Porto, que para mim é uma “pessoa normal”, ou melhor, “um animal
normal”, sente a necessidade – naturalmente – de relacionar-se com o outro – afinal ele não
era psicótico, mas no primeiro local onde começa realmente essa aproximação que é na
escola, ele não é bem aceito, como desejava, pelo outro. Vejamos:
– O colega do lado virou pra ele e disse:
– Porco! – E disse aquilo com força, com raiva. (p. 11)
– A turma de macacos lá no fim da sala desabou numa gargalhada.
– O porco parou logo de rir e ficou olhando assustado pro colega: era a
primeira vez que diziam o nome dele. E tinham dito de um jeito que parecia
até que o nome dele era nome feio. (p. 11)
– Tudo que aparecia sujo na classe diziam logo:
– Só pode ter sido o Porco. (p. 12)
– Estudar pra que, Porco? Você vai ser sempre porco, sua vida vai ser
sempre uma porcaria. (p.14)
Porto acreditava que na escola faria novas amizades aonde chega com o maior
entusiasmo. Porém, não é muito bem recebido e não consegue se enturmar com as outras
“crianças” causando-lhe uma sensação ruim. O mal-estar causado a Porto pela não
reciprocidade e indiferença das outras “crianças”, é tão marcante que quando volta ao lago
não vê mais aquele Porco que viu da primeira vez. Acompanhemos o trecho da narrativa:
– Ficou olhando a cara dele na água do jeito que a gente olha uma coisa que
não gosta; ficou olhando o nó cego que tinha no rabo e achando que nunca
– nunca mais – ia poder desmanchar. Depois botou força na primeira sílaba
e disse:
– Porco! – e foi embora, compreendendo pelo caminho afora que o maior
azar da vida dele tinha sido nascer porco. (p. 14)
Dependendo da forma como o outro nos vê, pode influenciar positiva ou
negativamente em relação à construção da nossa identidade. No caso de Porto, foi tão
significativo o olhar do outro naquele momento, que a solução encontrada por ele foi:
abandonar aquele ambiente hostil, trocar de nome e esconder suas características de porco
atrás de uma fantasia.
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Quando passa a se chamar Porto, e a esconder a sua verdadeira identidade
(biológica), ele consegue “superar” a sua tristeza. Como a própria história afirma começou a
viver vida nova.
– O porco então respirou sossegado: agora se chamava PORTO. (p. 16)
– Porto então começou vida nova. (p. 18)
Mas ele não podia apenas mudar o nome. Ele sabia que as suas características físicas
iriam afirmar que ele continuava sendo um porco. Ele apenas seria o porco Porto. As
características identitárias de um grupo as quais geralmente achamos que estamos as
descrevendo, na verdade contribuem para “[…] definir ou reforçar a identidade que
supostamente apenas estamos descrevendo.” (SILVA, 2000, p. 93)
Sendo assim, quando os personagens, inclusive ele, utilizam à palavra “porco”, não
estão fazendo uma descrição apenas de um “indivíduo”, estão, na verdade, contribuindo para
reforçar uma negatividade atribuída, enquanto ato linguístico, a sua identidade, a de “porco”.
O que justifica a sua necessidade de junto a mudança de seu nome esconder suas
características de porco.
Apesar da mudança de nome e de sua fantasia, havia o medo de que sua nova
identidade fosse desmascarada e ele voltasse a ser porco:
– e se todo mundo ficasse sabendo? E se ele tivesse que voltar a ser Porco?
Se assustou só de pensar; e pra ver se o susto ia embora começou a brincar
de fazedor de nome. (p. 20)
O medo de Porto não se dá pelo fato de estar mentindo. O problema é que se todos
soubessem que ele era um porco, não poderia ser mais Porto. Ser porco para ele era ser o
estranho, o indesejado, enfim, o que ele não queria ser mais, era ser algo que é marginalizado
naquela sociedade a qual estava inserido.
A partir das falas das personagens, podemos perceber que existe uma grande
diferença na forma como nos vemos quando o outro passa a compartilhar o seu olhar conosco
em relação a nós mesmos. “A fala é então, o indício de algo, é o que está para. É um signo a
ser decifrado ou, psicanaliticamente falando, um sintoma. […] isto é o sujeito representa-se
pela palavra.” (QUEIROZ, 2006, p.108). Porto, enquanto porco, antes do outro, era um porco
que não tinha problema em ser porco e gostava de sê-lo, mas, quando o outro entra na
história, e passa a marcá-lo socialmente através da fala/palavra, a sua vida é completamente
transformada. Muda-se de nome, de local, aparência, enfim, vai em busca de algo que lhe dê
uma identidade aceitável pela sociedade.
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Angélica é uma obra que trás para o universo infantil, discussões importantes em
relação ao olhar do outro e de nós mesmos sobre algo ou alguém. Porto é influenciado tanto
por uma cultura comum dominante marginalizadora, quanto uma contracultura. Porém, esse
choque entre cultura e contracultura será fundamental para que Porto tenha um final feliz na
construção de sua identidade ou identidades.
Não existe algo em particular que vai fazer de porco, Porto e de Porto Porco. Tanto
uma quanto a outra possibilidade acontecem devido a vários fatores: o outro, a cultura, a
família etc., são alguns desses fatores que podemos perceber na narrativa que influenciam
nessa formação identitária de Porto. A identidade ou a diferença acontecem a partir de toda
uma simbologia cultural, social e econômica a qual estamos inseridos. No caso de Porto, ele foi
feliz na sua forma de interpretar o outro, assim como, a sua mudança em busca de aceitação, o
que acabou sendo um momento fundamental para a sua construção identitária, mesmo não
sabendo que no final de tudo as suas decisões iriam influenciá-lo a querer voltar a ser Porco.
O que é interessante nessa obra é que tanto a busca de uma identidade e o conflito
que Porto vive no início da narrativa, quanto à auto-aceitação em ser Porco, só acontece por
causa do outro. O outro é fundamental para a formação identitária de Porto, inclusive de sua
personalidade. Mesmo sabendo que na primeira experiência com o outro não tenha sido
positiva, foi devido a essa relação “mal sucedida”, que o porco se torna Porto e vai em busca
de uma identidade a qual para ele foi muito positiva. É com o desenrolar da história e o
envolvimento com outros personagens, após a sua “mudança”, que acaba recebendo
influências diretas e indiretas para que ele se aceite enquanto porco, porém um Porco com “P”
maiúsculo.
Sabemos que para trabalhar uma narrativa como esta com o público infantil,
necessita-se que o proporcionador dessa leitura para a criança, tente fortalecer a disposição
crítica desta, levando-as a ir além do consumo de textos literários, até porque “A experiência
literária não só nos permite saber da vida por meio da experiência do outro, como também
vivenciar essa experiência. (COSSON, 2006, p. 17)
As questões levantadas na narrativa de Lygia Bojunga Nunes, são pertinentes para a
infância contemporânea e devem estar presentes nos diálogos das salas de aula onde a
infância circula. A narrativa de Lygia desestabiliza a linearidade pedagogizante de alguns títulos
destinados à crianças e jovens, pois põe em “Xeque” a fixidez pretendida, por isso
concordamos com Bartolomeu de Campos Queirós (2012, p. 91) quando o mesmo afirma que:
“Ter em mãos o livro literário é defrontar-se com o desiquilíbrio.”
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Considerações que inquietam
A narrativa proporciona a discussão em relação à identidade em vários aspectos
como, por exemplo, identidade herdada, negada, desejada, e reformulada. Em se tratando de
literatura infanto-juvenil se percebe que as identidades são abrangentemente trabalhadas na
narrativa, contribuindo para que a criança às perceba e pense sobre; consciente ou
inconscientemente.
Será através da ampliação dos horizontes de leitura das crianças e do seu repertório
cultural, que poderemos formar indivíduos críticos e capazes de compreender as diversas
identidades que assumimos na trajetória de nossa existência.
A criança normalmente vivencia e reproduz as representações negativas relacionadas
a identidades de grupos marginalizados, é a partir de obras como Angélica, que a criança pode
perceber que existem outras possibilidades e indivíduos, que o universo social é amplo, que as
culturas são muitas, que a diversidade existe e que é a diferença colore e ilumina o mundo em
que vivemos.
Pensar literatura infanto-juvenil e seus usos na escola, é pensar o desequilíbrio
inquietador que desestabiliza e põe em “xeque” àquilo que tínhamos cristalizado como
“verdades” estanques, presentes nas metodologias que empreendemos nas salas de aula,
onde o outro não é considerado em sua diversidade cultural, linguística, artística e social.
Cogitar o uso da leitura literária junto à crianças e jovens é contestar um currículo que há
muito vem sendo absorvido com absolutismo e que não valoriza o conhecimento advindo das
massas.
A literatura infantil, assim como outros gêneros literários, acompanha o processo de
desenvolvimento e mudança da sociedade em geral, sejam nos aspectos sociais, econômicos, e
culturais, sintonizada com o período em que está vivendo. O que não pode acontecer com a
literatura feita para crianças é que ela não se esqueça que independente do tema, ela é arte.
Angélica escrita no final da década de 70, apesar de trabalhar muito
interessantemente a identidade, ela não perde o seu encanto. O humor, a fantasia, os
personagens e suas características não deixam que a obra seja apenas temática, mas através
de sua trama complexamente construída é capaz de encantar e divertir.
A importância de abordar a realidade através da literatura infantil utilizando-se da
fantasia e ao mesmo tempo do hibridismo cultural, que tem início no final da década de 70,
demonstra que o gênero, independente de ser feito para criança, tem a importante função de
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fazer com que se discuta sobre os conflitos que vivenciamos sem perder o seu encanto, sem
que a sua vertente artística seja diluída.
O estudo nos inquieta a pensar a formação dos próprios professores, o currículo que
construímos e os espaços que são designados à arte dentro da escola, tornando evidente que
temas de grande envergadura e complexidade social podem ser trabalhado com a leveza
estética da arte literária.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
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A PROBLEMÁTICA DO BULLYING À LUZ DA EDUCAÇÃO
EM DIREITOS HUMANOS: O PAPEL DA MÍDIA
Laure Monique Silva Santos5
Elione Maria Nogueira Diógenes6
Jaciane Jéssica da Silva7
Resumo
Este artigo trata de uma experiência levada a termo por meio de um projeto de pesquisa-ação
sobre a temática da educação em direitos humanos, cujo público-alvo foi os alunos de uma
escola pública de Maceió em que se buscou trabalhar e discutir a questão da educação em
direitos humanos dentro e fora da escola. Para tal, optou-se por problematizar o bullying e a
forma como a mídia enfoca o mesmo e sua relação com os direitos humanos inserindo-os nos
aspectos do dia a dia dos alunos. Iniciou-se o trabalho através da desconstrução dos
estereótipos criados pela mídia e consideramos as experiências vivenciadas pelas crianças em
torno da problemática do bullying, levando os alunos a refletirem sobre suas práticas. Por fim,
as crianças construíram fanzines para expressar através da arte o que de fato entenderam a
respeito do que foi trabalhado em sala de aula durante a pesquisa-ação. Os fanzines ficaram
expostos nos corredores da escola para a apreciação.
Palavras-chave: Bullying; Mídia; Educação em Direitos Humanos;
ABSTRACT
This article discusses an experiment carried to term by an action research project on the
theme of human rights education, whose audience was students from a public school in
Maceió is sought work and discuss the issue of human rights education in and out of school. To
this end, we chose to discuss bullying and how the media focuses on the self and its relation to
human rights by placing them in aspects of the daily lives of students. Began working through
the deconstruction of stereotypes created by the media and consider the experiences of the
children around the issue of bullying, leading students to reflect on their practices. Finally, the
children built fanzines to express through art what really understood about what was working
in the classroom during the action research. The fanzines were exposed in school hallways for
enjoyment.
Keywords: Bullying, Media, Human Rights Education;
1. INTRODUÇÃO
Discutir e argumentar a respeito dos Direitos Humanos é uma tarefa complexa e
requer no mínimo alguma leitura e conhecimento. Mesmo estando todo tempo fazendo parte
5
Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Alagoas.
Doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.
7
Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Alagoas.
6
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de nossas vidas, os direitos humanos são camuflados e de certo modo acabamos não
enxergando como deveríamos.
Isso fica evidente na citação que segue retirada do preâmbulo da Declaração
Universal dos Direitos Humanos:
Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homem
conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e
que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar
e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta
inspiração do Homem. (BRASIL, 2006, p.1).
Em tal sentido, a Educação em Direitos Humanos tem um papel preponderante no
sentido de fomentar a discussão e a prática acerca da temática dos direitos humanos na
escola. O profissional da educação deve estar a par do Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos, pois é mais uma maneira de garantir uma formação que aborde a questão da
cidadania e dos direitos que temos perante a sociedade. A esse respeito, complementa a
citação abaixo:
De onde a importância da educação em direitos humanos, concebida não
como a simples introdução de um conteúdo temático sobre tais direitos nos
programas escolares ou universitários, mas essencialmente como um meio
capaz de proporcionar a construção de uma cidadania ativa em nosso país.
Este é o desafio que se impõe ao conjunto da sociedade brasileira,
principalmente aos mais jovens. (p. 8) o que são os direitos humanos.
Como citado anteriormente, nós não estamos acostumados a discutir a respeito de
nossos direitos, muitas vezes nem os conhecemos. Para tomar uma definição mais clara segue
a citação abaixo:
O que se convencionou chamar “direitos humanos” são exatamente os
direitos correspondentes à dignidade dos seres humanos. São direitos que
possuímos não porque o Estado assim decidiu, através de suas leis, ou
porque nós mesmos assim o fizemos, por intermédio dos nossos acordos.
Direitos humanos, por mais pleonástico que isso possa parecer, são direitos
que possuímos pelo simples fato de que somos humanos. (RABENHORST,
[21-?]. p.4).
Sendo assim, nós seres humanos não podemos aceitar determinadas práticas que
foram sendo realizadas ao longo dos anos, como a escravização dos negros e índios, a
desvalorização e privação sofrida pelas mulheres, as ditaduras implantadas em alguns países
sem contar com as terríveis guerras que destruíram milhares de vidas mundo a fora. Por esses
e outros tantos motivos se faz necessário problematizar as questões que envolvem os direitos
humanos, pois não podemos mais nos calar diante da injustiça e da barbárie.
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Na atualidade, passamos por situações bem complicadas, pois ao passo que
avançamos em alguns aspectos, retrocedemos em outros. Novas práticas são inseridas na
sociedade, como o casamento entre homossexuais por exemplo. Como consequência,
presenciamos o desenvolvimento de violências e intolerância. Com a globalização também
vem introduzida uma nova forma de agressão à dignidade humana. Muitas pessoas utilizam a
internet para difamar, prejudicar, extorquir e ameaçar outras pessoas. Enfim, torna-se muito
difícil discutir a questão dos direitos humanos num pais em que os mesmos são a todo tempo
desrespeitados.
Acredita-se que o profissional da educação deve estar preparado para discutir essas
questões em sala de aula, o mais importante é formar pessoas que sejam capazes de se
expressar e defender esse ponto de vista. O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
pode e deve nortear o trabalho do docente, contudo não vem sendo trabalhado na maioria
das instituições escolares.
Consta na apresentação do (PNEDH) que a sua construção se deu de uma maneira
democrática e contou com a participação no âmbito internacional, nacional, regional e
estadual (BRASIL, 2007, p.9). Infelizmente muitas pessoas não têm conhecimento da existência
desse plano e muito menos como o mesmo pode ser utilizado a seu favor. Desta forma, não
participaram da sua construção. Isso só reforça a questão de que a discussão dos direitos
humanos ainda permanece restrita a um determinado público, isso significa dizer que as
camadas mais necessitadas da sociedade são excluídas das discussões e das posteriores
decisões.
Diante das transformações ocorridas na sociedade ao longo dos anos temos que
considerar que questões que antes não perpassavam nossas discussões hoje são de suma
importância para a convivência e sobrevivência de nossa humanidade, como o bullying por
exemplo. A escola não pode se fechar e fingir que não tem nada a ver com isso. A vida humana
está passando por um processo de degradação e vemos cada vez mais, a fome, a
discriminação, os mais variados tipos de violência, a corrupção, a opressão das minorias, e o
descaso com o meio ambiente invadir nossos espaços.
2. A MÍDIA NO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos é dividido da seguinte maneira:
I. EDUCAÇÃO BÁSICA
II. EDUCAÇÃO SUPERIOR
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III. EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL
IV.
EDUCAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DOS SISTEMAS DE JUSTIÇA E
SEGURANÇA
V. EDUCAÇÃO E MÍDIA
Cada tópico destes é de suma importância, mas não podemos discuti-los em um
único exposto. Se assim fizéssemos, muitas questões seriam negligenciadas. Deste modo,
tratamos a respeito da educação e mídia.
A mídia está cada vez mais presente em nossas vidas, a todo o momento estamos
vendo televisão, acessando a internet, lendo jornal, entre outros. Concordamos com o
(PNEDH) quando coloca que a mídia tem a “capacidade de construir opinião pública, formar
consciências, influir nos comportamentos, valores, crenças e atitudes” (BRASIL, 2007, p.39).
“Assim, a mídia deve adotar uma postura favorável a não violência e ao respeito aos Direitos
Humanos, não só pela força da lei, mas também pelo seu engajamento na melhoria da
qualidade de vida da população.” (BRASIL, 2007, p.39). Infelizmente não é isso que
presenciamos. Durante a intervenção, buscamos discutir com os alunos que devemos buscar
diferentes fontes de informação para realmente saber se determinada notícia é verdadeira, ou
seja, não devemos acreditar pura e simplesmente no que é vinculado na mídia.
Em muitos casos é incentivada a valorização dos Direitos Humanos referente aos
bandidos, aos fora da lei. A população mais leiga passa a entender os Direitos Humanos como
sendo algo que não lhe diz respeito, algo que não faz parte de sua vida ou de suas
preocupações. É importante que o aluno encontre na escola um espaço em que ele possa tirar
dúvidas e fazer questionamentos sobre o que ele escuta na mídia e na rua e na sua casa de
maneira geral. Esse aluno tem o direito de ter uma segunda versão sobre os fatos de seu
cotidiano.
Acreditamos que se uma pessoa comete algum tipo de delito ela deve ser punida
conforme a lei. Contudo ninguém tem o direito de torturar ou tirar a vida de outra pessoa.
Voltando aos programas locais, podemos dizer que não há uma discussão a respeito da
dinâmica social (Capitalismo) que constrói as desigualdades sociais, a fome a exclusão, a
violência. Tem-se que as pessoas escolhem roubar ou matar quando na realidade em muitos
casos essas pessoas são empurradas para o crime mediante suas condições de sobrevivência.
O discurso vinculado é que o bandido pode fazer o que quer por conta dos direitos humanos e
que nós é que pagamos o “pato”. Enfatizamos com os alunos a questão do respeito ao outro,
questionando-os sobre suas práticas na escola. Percebemos que há ocorrência de violência
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verbal e física relacionada e em muitos casos ocasionadas pelo Bullying. Sendo assim,
buscamos trabalhar em cima dessas violências.
O educador deve incentivar os alunos a possuírem uma visão crítica a respeito do que
escutam ou veem. Para tal, deve-se apostar no debate a respeito dos Direitos Humanos nas
escolas. Não defendemos aqui a implantação de uma disciplina, mas sim a discussão dessas
questões de uma forma que possa perpassar por todas as disciplinas no decorrer do ano letivo.
Enfim, há tantas maneiras de trabalhar ludicamente com a questão dos Direitos Humanos que
cabe a cada instituição eleger a sua preferida. Ao trabalharmos com os alunos percebemos
claramente que essas questões devem ser trabalhadas continuamente. Não há como falar uma
única vez a respeito dos Direitos Humanos e os problemas serão resolvidos, isso deve
perpassar a prática diária e mais, deve estar presente no discurso e nos atos dos professores e
funcionários.
3. O BULLYING, A MÍDIA E OS DIREITOS HUMANOS NA ESCOLA
Desenvolvemos nosso projeto na Escola Estadual Profª Erotildes Rodrigues Saldanha,
situada na Av. Governador Lamenha Filho, no bairro do Feitosa. A diretora se mostrou
bastante interessada com a nossa proposta e disponibilizando todos os materiais que pedimos
para a realização do trabalho.
Deixamos a escolha da turma que iria participar da intervenção a cargo da diretora.
Quando estávamos na sala à espera dos alunos, nos surpreendemos ao ver crianças de todas
as idades e percebemos que a diretora escolheu os alunos por eles serem considerados como
os mais inquietos e briguentos.
Durante a intervenção (exposição dos conceitos de mídia, bullying e direitos
humanos) os alunos ficaram tranquilos e mostraram bastante interesse. Alguns já sabiam ou
tinham ouvido falar no conceito de mídia e de bullying, mas não no conceito de Direitos
Humanos. Cabe ressaltar que buscamos colocar esses conceitos de uma maneira um pouco
mais simples para que eles pudessem entender melhor. Quando passávamos os vídeos eles
ficavam comentando uns com os outros que já tinham visto o vídeo, ou que tinha passado no
jornal.
Apresentamos o conceito de bullying. O termo bullying tem origem na palavra inglesa
bully, que significa valentão, brigão. Mesmo sem uma denominação em português, é
entendido como ameaça, tirania, opressão, intimidação, humilhação e maltrato. Bullying é
uma situação que se caracteriza por agressões intencionais, verbais, físicas ou psicológicas,
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feitas de maneira repetitiva, por um ou mais alunos contra um ou mais colegas causando dor e
angústia, sendo executadas dentro de uma relação de desigualdade de poder.
O bullying pode ocorrer em qualquer contexto social, como escolas, universidades,
famílias, vizinhança e locais de trabalho. O que, à primeira vista, pode parecer um simples
apelido inofensivo pode afetar emocional e fisicamente o alvo da ofensa. É uma das formas de
violência que mais cresce no mundo.
Deve-se encorajar os alunos a participarem ativamente da supervisão e intervenção
dos atos de bullying, pois o enfrentamento da situação pelas testemunhas demonstra aos
autores do bullying que eles não terão o apoio do grupo. Outra estratégia é a formação de
grupos de apoio, que protegem os alvos e auxiliam na solução das situações de bullying.
Alunos que buscam ajuda têm maiores de reduzirem ou cessarem um caso de bullying. Os
professores devem lidar e resolver efetivamente os casos de bullying, enquanto as escolas
devem aperfeiçoar suas técnicas de intervenção e buscar a cooperação de outras instituições,
como os centros de saúde, conselhos tutelares e redes de apoio social.
No Brasil, a gravidade do ato pode levar os jovens infratores à aplicação de medidas
sócio-educativas. De acordo com o Código Penal Brasileiro, a negligência com um crime pode
ser tida como uma coautoria. Na área cívil, e os pais dos bullies podem, pois, ser obrigados a
pagar indenizações e pode haver processos por danos morais.
Os atos de assédio escolar configuram atos ilícitos, não porque não estão autorizados
pelo nosso ordenamento jurídico, mas por desrespeitarem princípios constitucionais (ex:
dignidade da pessoa humana) e o Código Civil, que determina que todo ato ilícito que cause
dano a outrem gera o dever de indenizar.
No estado brasileiro do Rio de Janeiro, uma lei estadual sancionada em 23 de
setembro de 2010 institui a obrigatoriedade de escolas públicas e particulares notificarem
casos de bullying à polícia. Em caso de descumprimento, a multa pode ser de três a 20 salários
mínimos (até R$ 10.200) para as instituições de ensino.
Outro tipo de opressão utilizada é o Cyberbullying, um tipo de bullying aperfeiçoado.
Uma prática que envolve o uso de tecnologias de informação e comunicação para dar apoio a
comportamentos deliberados, repetidos e hostis praticados por um indivíduo ou grupo com a
intenção de prejudicar outrem.
Continuamos a discussão da temática explicando que os Direitos Humanos são os
direitos de todos os seres humanos. Os Direitos Humanos têm sua origem nas diversas
revoluções democráticas. Temos direito à educação, saúde, segurança, liberdade etc., a partir
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
do conceito de Direitos Humanos, sistematizamos o conceito de Educação em Direitos
Humanos que defende a dignidade humana, o reconhecimento da nossa identidade como
seres históricos e culturais.O homem não é somente um ser livre, mas também um ser único
que deve ser respeitado na sua individualidade. (FLEINER, 2003, p.12)
A dignidade do homem não se encontra apenas na sua individualidade. Ela
existe também na coletividade e mediante a coletividade a que o homem
pertence. (FLEINER,2003, p.44)
A abordagem da questão do bullying na perspectiva dos Direitos Humanos foi
socializada de forma que os levasse a reflexão, salientamos que ao ridicularizar alguém pela
cor da pele, pelo sotaque, por ter uma religião ou uma característica “diferente”, eles estão
violando a dignidade do outro e os Direitos Humanos, articulamos a relação das temáticas
incluindo a desconstrução do estereótipo criado pela mídia em relação aos Direitos Humanos e
ao bullying, que muitas vezes é tratado de forma superficial pela mídia e a partir dessas
concepções construímos uma relação entre os conceitos.
Buscamos mostrar a eles a importância de respeitar o “outro”, primeiro ao se colocar
no lugar daqueles que sofrem com as agressões, de como se sentiriam sendo agredidos por ser
“diferente”, segundo mostrando a eles as conseqüências que a prática do bullying pode trazer
para a vida das vítimas e também tomando por base as experiências que alguns deles
vivenciaram tanto como agressor quanto como vítima do bullying. Qualquer medida coercitiva
que prejudique essencialmente a sua liberdade de decisão se constitui num ataque contra a
dignidade humana. (FLEINER, 2003, p.11)
Quando alguém é vítima do bullying através de humilhações desumanas, esta pessoa
está tendo sua dignidade atingida e essa prática pode acarretar diversos problemas
comportamentais e sociais na vítima.
Uma vida com respeito à dignidade humana supõe, tanto quanto a liberdade, um
meio ambiente saudável no qual as gerações futuras possam também sentir-se bem. (FLEINER,
2003, p.125)
Salientamos em meio à discussão, a importância de comunicar as agressões aos pais,
professores, amigos, para que eles possam tomar as providências cabíveis através do diálogo e
da conscientização que deve ser realizada cotidianamente nas práticas pedagógicas.
Para avaliarmos o que todos aprenderam, propomos a construção de um fanzine.
Este devia conter os conceitos que foram trabalhados durante a intervenção e foi levado
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exemplos prontos para nortear como seria feito. Formaram-se em grupos e começaram a
cortar, colar, desenhar e escrever.
Os resultados desta intervenção foram vários fanzines mostrando que não deve
haver preconceito racial, que se deve ter “amor, paz e vida”. Um com frases retiradas de
revista, onde se pode ler: “Faça diferente e conte a sua história”; “Às vezes sua única
esperança é alguém que já passou por isso”; “Nunca chamei muita atenção das meninas. Até
me chamariam de nerd” e frases do próprio aluno, Diga não ao ‘bulligins’ e ‘deiche’ sua vida
mais feliz” “Vocês sorriem de mim ‘pq’ sou diferente, eu sorrio de vocês ‘pq’ somos todos
‘enguais’” e um outro desenhou cenas de brigas com xingamentos e que depois veio a ser uma
amizade entre os que brigaram, mostrando que mesmo brigando, no fim somos todos seres
humanos passíveis a erro.
Notamos que, usando a criatividade eles colocaram no papel muito do que vivem no
cotidiano da escola e o apelo pelo fim da violência, do preconceito racial, das práticas de
bullying vividas por eles e os anseios por uma escola diferente, onde todos possam viver em
paz.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo diante de tantas dificuldades enfrentadas pela escola, esta pode sim permear
seu cotidiano com práticas que venham acrescentar coisas positivas com relação a perspectiva
de mundo de sociedade e de ser humano de seus alunos.
Acreditamos que se a escola se recusar em falar sobre os direitos humanos estará
contribuindo para a disseminação da violência e do desrespeito. Um dos primeiros passos para
que isso não ocorra é preparar o profissional da educação para lidar com isso no decorrer de
sua profissão. Os cursos devem fornecer debates e discussões a respeito do tema e incentivar
seus alunos para serem profissionais comprometidos. O curso de Pedagogia tem muito que
evoluir, mas já temos um passo dado, pois estamos discutindo direitos humanos. É uma
disciplina eletiva, mas percebemos que este tema interessa a muitas pessoas. Agora temos
que lutar para consolidar esta disciplina e fazer com que mais pessoas se interessem em cursála.
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ANEXOS
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A IGUALDADE E A DESIGUALDADE NA ESCOLA PÚBLICA:
PRESSUPOSTOS E DESAFIOS CURRICULARES
Marilde Queiroz Guedes – UNEB
[email protected]
Nilza da Silva Martins – UNEB
[email protected]
Resumo
Este texto traz uma reflexão sobre o sentido de igualdade e desigualdade na escola pública
tomando como referência alguns pressupostos e desafios curriculares. Para tal, partiremos do
entendimento de desigualdade empregado por Rousseau quando analisou a origem da
propriedade privada. Neste contexto, a escola pública está sendo entendida como uma
instituição social, capaz e responsável pela criação de oportunidades do acesso ao
conhecimento a todas as pessoas. Outra reflexão realizada abrange o processo de
desigualdade na escola que ocorre a partir do fortalecimento das atitudes meritocráticas e no
discurso dos dons. Quando essas questões são incentivadas no interior do trabalho das
instituições sociais, transfere-se para os sujeitos a responsabilidade do sucesso ou fracasso. A
escola então se isenta do seu papel de responsável pelos processos formativos e se “esconde”
no discurso do oferecimento de oportunidades iguais para todos. Discutiremos a possibilidade
da construção do currículo como instrumento materializador das ações da escola e, também,
carregado de contradições para enfrentar desafios na perspectiva de uma escola justa e
igualitária. O trabalho está atrelado ao grupo de pesquisa Formação de Professor e Currículo
da Universidade do Estado da Bahia - UNEB.
Palavras-chave: igualdade, desigualdade , currículo / equality, inequality, curriculum.
ABSTRACT
This paper presents a reflection on the meaning of equality and inequality in public school with
reference to some assumptions and challenges curriculum . To this end , we begin the
understanding of inequality employed by Rousseau when analyzing the origin of private
property . In this context , the public school is being understood as a social institution , capable
and responsible for creating opportunities of access to knowledge for all people. Another
reflection performed covers the process of inequality that occurs in school from the
strengthening of meritocratic attitudes and discourse of the gifts . When these issues are
encouraged within the work of social institutions , moved to the subjects the responsibility for
success or failure . The school will be exempted from its role as responsible for the formation
processes and " hide " in the discourse of offering equal opportunities for all . Discuss the
possibility of the construction of the curriculum as a means of materializing school's actions
and also full of contradictions to face challenges from the perspective of a school fair and
equitable . The work is related to the research group of Teacher Training and Curriculum at the
University of Bahia - UNEB .
Keywords: equality, inequality , curriculum
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
PALAVRAS INICIAIS
A discussão sobre igualdade e desigualdade é remota em nossa sociedade. Em
determinados períodos históricos era associada às questões divinas. Diferentemente desta
última perspectiva, reconhecemos a complexidade dessa questão e, ao mesmo tempo, sua
contemporaneidade, especialmente quando diz respeito às funções e práticas sociais que se
estabelecem entre as pessoas por meio das instituições socialmente constituídas.
Desse modo, torna-se relevante discutir as concepções de igualdade e desigualdade
tomando como contexto uma instituição que tem perdurado durante séculos e que vem
passando por mudanças diversas - a escola. Uma instituição social que tem entre suas tarefas
a formação do ser humano, através dos processos educativos. Na Grécia Antiga, era vista como
o “lugar do ócio”, ou seja, do prazer, do aprendizado livre. Na modernidade, começa a
construção de um modelo educacional que possa atender aos desafios que a sociedade
vivenciava. Rousseau, um dos precursores da educação moderna, em sua obra Emílio
exemplifica bem essa realidade. Parte da bondade natural do homem e dos desafios de
conviver em uma sociedade marcada pela corrupção. Projeta um homem ideal.
Na construção dessa reflexão sobre igualdade e desigualdade Rousseau (1983), foi
um dos autores que trouxe esta temática para o debate. Em seu livro “O Discurso sobre a
origem das desigualdades entre os homens”, afirma que a espécie humana possui duas
desigualdades: uma natural ou física e outra que é moral ou política, evidenciando o princípio
de que o homem é bom, porém a sociedade o corrompe. Nesse sentido, evidencia a
imprescindível ação do governo em minimizar as desigualdades naturais.
Para o autor, o processo de desigualdade da sociedade civil aconteceu a partir da
propriedade privada, na medida em que o homem cercou um pedaço de terra dizendo ser dele
e ninguém reclamou da ação. Admite, porém, que esta ideia de propriedade não foi concebida
de forma cômoda; ela foi construída em um processo histórico. Rousseau menciona que o ser
humano em seu estado natural é ingênuo, sendo o único animal capaz de se apropriar dos
alimentos diversos com mais facilidade. As dificuldades naturais fizeram com que adquirisse
formas de sobreviver diante das intempéries. Segundo o autor citado, na natureza existe
igualdade, a desigualdade surge do homem.
Ademais, Rousseau (1983) afirma que a origem da desigualdade está na divisão do
trabalho, no desenvolvimento da agricultura e na descoberta da metalurgia. Enquanto cada
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um produzia apenas o que consumia as pessoas eram iguais. Com a agricultura e o surgimento
do excedente, alguns vão tomar conta destas sobras e começa a desigualdade. Admite que a
agricultura e a metalurgia foram elementos fundantes desta desigualdade.
O homem quando se torna sociável, enfraquece, não tem mais coragem, torna-se
submisso e medroso. Segundo ele, a simplicidade original do homem está perdida. O homem
natural não tinha temor, enfrentava os desafios impostos pela natureza. Aprendeu viver e
conviver com as diversidades. O fogo, a comunicação e a agricultura foram importantes neste
período. Menciona o papel da linguagem na estruturação do pensamento.
Rousseau (1983) explicita, ainda, que a propriedade privada contribui não só para a
saída deste estado natural do homem, mas para o surgimento do chamado “estado de
guerra”, onde as pessoas são levadas a destruírem o outro para sobreviver. Nasce a
necessidade de estabelecimento de acordos, regras, para a convivência das pessoas.
O autor nos apresenta os grandes conflitos sofridos pela sociedade a partir da
propriedade privada. Não acredita em um retorno ao “homem natural”. Menciona que esta
decadência vivenciada pela sociedade está incrustada em alguns terem muito e outros não
terem nada. As pessoas não podem ser sacrificadas por não serem proprietárias. Termina o
seu discurso dizendo:
(...) da espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policiados,
pois é manifestamente contra a lei de natureza, de qualquer maneira que a
definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza
um homem sábio, ou que um punhado de pessoas nade no supérfluo,
enquanto à multidão esfomeada falta o necessário (ROUSSEAU, 1983,
p.55).
Nesse sentido, para Rousseau, a desigualdade é algo que contraria os princípios da
humanidade, pois confronta com as chamadas leis naturais, quando inverte as relações
estabelecidas na sociedade. Para ele, essa ordem natural necessita ser mantida para que não
ocorram as discrepâncias sociais. O propósito deste texto é discutir os conceitos de igualdade e
desigualdade na escola pública a partir de seus pressupostos e desafios curriculares.
IGUALDADE E DESIGUALDADE NA ESCOLA – O PAPEL DO CURRÍCULO
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
A discussão sobre igualdade e desigualdade nos processos formativos desenvolvidos
na escola aponta para a necessidade de pensarmos historicamente essa instituição e o papel
que tem exercido ao longo dos tempos, tendo o currículo como instrumento básico de seu
fazer. Fazendo um recorte e discutindo a partir do nascimento da escola pública, ou seja, pelos
séculos XVIII e XIX, notamos que a sua gênese esteve relacionada à possibilidade de diminuição
das desigualdades. Boto (2003) esclarece que por ocasião das discussões sobre a instrução
pública na França após sua Revolução, Condorcet8 através de seu plano educacional via que
pela escolarização era possível,
(...) obter progressivamente a minimização das desigualdades produzidas
pelo artifício humano, pela concomitante promoção da única desigualdade
natural e, portanto, legítima: a desigualdade de talentos – dos dons, das
aptidões, dos potenciais, enfim, das capacidades de cada um perante os
demais. A preparação cultural acentuaria a força meritória dos mais
capazes, o que era, por si, um elemento corretor dos próprios embaraços
de uma sociedade liberal, que tinha em mente assegurar, com firmeza, o
direito à propriedade, e, portanto, à herança. (BOTO, 2003, p.742)
Isso significa dizer que a escola já nasce com a tarefa de corrigir as desigualdades
consideradas naturais a partir da “força meritória” dos mais capazes. Neste contexto, a
diminuição destas diferenças estaria associada às capacidades individuais, aos chamados
“dons”. Portanto, durante muito tempo os processos formativos desenvolvidos pela escola
eram destinados a minimizar as disparidades produzidas pela sociedade.
A esse respeito, Dubet (2008) considera que:
A igualdade das oportunidades e a valorização do mérito são
consubstanciais às sociedades democráticas, porque permitem conciliar
dois princípios fundamentais: de um lado, o da igualdade entre os
indivíduos; do outro, o da divisão do trabalho necessário a todas as
sociedades modernas. Em outras palavras, enquanto as desigualdades
decorrentes do nascimento e da herança são injustas, a igualdade das
oportunidades estabelece desigualdades justas ao abrir a todos a
competição pelos diplomas e pelas posições sociais (...) (DUBET, 2008, p.19)
Da mesma forma, o currículo é considerado, desde a sua gênese, um instrumento de
controle social e eficiência social (MOREIRA & SILVA, 1994) e, como tal, assume um caráter
interessado na educação. Por ser um fenômeno social histórico, contextualizado, dinâmico e
imbricado em relações de poder, não pode ser ignorado nessa discussão.
Vislumbrar a escola justa sem discutir os interesses que perpassam e sustentam o
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Presidente do Comitê de Instrução da Assembléia Legislativa Francesa após o processo revolucionário.
Instrução Nacional.
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Redator do Plano de
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currículo, não deixa de ser uma ingenuidade. É oportuno e necessário se refletir sobre os
mecanismos discriminatórios cristalizados nas sociedades, bem como desenvolver ações
efetivas para combatê-los. O currículo também não é neutro. É um campo de lutas, conflitos,
tensões, ideologias que se renovam permanentemente.
Goodson (2008) tem afirmado, que as mudanças no formato do currículo oferecem
um primoroso indicativo das intenções e propósitos políticos e sociais, que se modificam à
medida que o equilíbrio das forças sociais e o contexto econômico que lhe sustenta passam
por mudanças cíclicas.
Por meio de seus processos formativos, a escola e o currículo têm proporcionado
elementos para se questionar o sentido da igualdade, em especial, quando se refere à lógica
capital atribuída ao significado do mercado pelo slogan das oportunidades. Sob essa premissa,
o entendimento de igualdade de oportunidade desenha um eixo da lógica capitalista no que se
refere à educação formal que é oferecer aos diplomados a possibilidade de galgarem postos de
serviços através da concorrência.
O discurso neoliberal que permeia essa situação embasa-se na ideia de que as
oportunidades são iguais e os mais competentes chegam a determinadas posições pelos seus
méritos individuais. Internamente se configura uma dinâmica social que se estabelece por
meio de uma severa e impiedosa competição, pois vencem aqueles que por seu merecimento
conseguem obter os diplomas.
Nessa tessitura social, existe um escamoteamento das questões sociais,
estabelecendo barreiras entre os fracassos e os sucessos obtidos como decorrências de
performances individual consequente concorrência entre as pessoas e não das condições
objetivas estabelecidas na sociedade. A escola, nesse sentido, vai aprofundando as
desigualdades na medida em que estabelece formalmente em seu currículo, a partir da ação
pedagógica situações de competitividade, de classificação, de nomeação daqueles que são
considerados vencedores.
A CONSTRUÇÃO DO PROCESSO DA DESIGUALDADE NA ESCOLA
Partindo da ideia de Rousseau (1983) de que a origem da desigualdade está na
propriedade privada, teoricamente essa afirmação está distante da escola pública que
conhecemos hoje, em função, sobretudo, de seus processos formativos. Entretanto,
efetivamente existe uma forte relação, pois a propriedade individual contribui para o
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
nascimento de um homem voltado para o atendimento de seus interesses pessoais,
preocupado em “vencer” na vida, ter os seus méritos reconhecidos publicamente. Nesse
contexto quem pode certificar a capacidade dos sujeitos, dando-lhes a diplomação é a escola,
Uma grande parte dos processos educativos desenvolvidos pela escola, ao longo de
sua história, tem contribuído para a construção de determinados valores que perpetuam as
desigualdades. Dubet (2008, p. 28) aponta que: “o fato de não haver mais seleção social fora
dos estudos não impede que haja, através da seleção escolar, uma seleção social durante os
estudos”.
Essa assertiva é confirmada quando os sucessos e fracassos escolares associam-se
diretamente às classes sociais nas quais estão os sujeitos reais que procuram a escola pública.
Estudos relacionados a esta temática educacional têm afirmado que os filhos das classes
trabalhadoras fracassam mais na escola, devido a uma série de fatores, dentre eles as
diferenças sociais, culturais que eles estão submetidos. (CALDART, 2012, ARROYO, 1999)
Segundo Dubet (2008):
(...) O sistema escolar funciona como um processo de destilação fracionado
durante o qual os alunos mais fracos, que são também os menos
favorecidos socialmente, são “evacuados” (grifo do autor) para as
habilitações relegadas, de baixo prestígio e pouca rentabilidade
(DUBET,2008, p.27-28).
Essa realidade apresentada pelo autor não é apenas da França, mas se adequa bem a
realidade brasileira, pois historicamente em nosso país as profissões consideradas de maior
prestígio social sempre foram ocupadas por pessoas oriundas dos extratos sociais mais
privilegiados. Essa também foi uma forma de construção da desigualdade escolar. Na verdade,
existe uma relação de reciprocidade, alunos com sucesso, oriundos de famílias com bom poder
aquisitivo, escolhem profissões mais rentáveis na sociedade.
Outro fator em destaque nessa discussão da desigualdade relaciona-se à localização
e estrutura dos edifícios escolares. As denominadas “melhores escolas” encontram-se
geograficamente em espaços territoriais mais privilegiados socialmente, com maior número de
equipamentos públicos e acesso a diferentes e diversificados processos formativos, tais como,
teatro, cinemas, museus, clubes.
Em contrapartida, as escolas localizadas em regiões periféricas carecem de estrutura
física adequada, estão isoladas de outras ações formativas e são obrigadas a vivenciar os
reflexos de uma sociedade estratificada pela política perversa do capital.
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Ademais, quando nos referimos às escolas rurais, a situação é bem mais crítica. Boa
parte não tem condições nenhuma de funcionalidade, salas que comportam estudantes de
classes multisseriadas, além de um projeto educacional urbanocêntrico que desrespeita a
historicidade dos povos campesinos.
Sob essa temática, Henriques, et all (2007) menciona que:
A desigualdade entre os níveis de escolaridade dos indivíduos que vivem no
campo e os que vivem nas cidades está claramente demonstrada nas
pesquisas populacionais e educacionais. Em todos os indicadores sociais e
educacionais as populações do campo estão em desvantagem, sejam eles
relativos à matrícula, ao desempenho educacional dos alunos, à formação
dos profissionais de educação ou à infra-estrutura física das escolas
(HENRIQUES, et all, 2007, p.28).
O discurso de que a escola é um espaço de oportunidades iguais vai aos poucos sendo
desmascarado pela própria contradição inerente à sociedade capitalista. Quanto mais
profunda a desigualdade entre as classes sociais, mais presentes são suas diferenciações. A
abordagem das escolas do campo consiste em um eminente exemplo desse processo.
Outro aspecto importante referente ao sentido da desigualdade na escola reflete na
formação dos professores. Existe um processo de diferenciação profissional entre os que
atuam em escolas onde o trabalho pedagógico é realizado com indivíduos oriundos das classes
privilegiadas e aqueles que pertencem à classe popular.
Tratando dessa questão, Dubet (2008) afirma que existe um processo de
desigualdade evidente porque nas escolas onde seu público majoritário é formado de pessoas
das classes menos favorecidas, os professores desses estabelecimentos são pouco experientes,
vivem mudanças constantes, ou seja, a rotatividade é muito grande, afirmando que “os bons
alunos, que são também os mais favorecidos do ponto de vista social, recebem um ensino
melhor e mais caro” (DUBET, 2008, p.35).
Novamente essa realidade acentua-se quando a relacionamos com o cotidiano das
escolas do campo. No caso brasileiro, ainda vivenciamos situações em que os professores são
“mandados” para as escolas rurais como forma de castigo, por não terem votado em
candidatos de determinados partidos políticos. Geralmente, são profissionais que pouco
conhecem a vida das crianças, jovens e adultos que moram no campo. Desse modo, não
participam da história desses sujeitos.
É pertinente e provocadora a afirmação de Arroyo (2007) ao alertar que:
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As conseqüências dessa inspiração no paradigma urbano são marcantes na
secundarização do campo e na falta de políticas para o campo em todas as
áreas públicas, saúde e educação de maneira particular. O campo é visto
como uma extensão, como um quintal da cidade. Conseqüentemente, os
profissionais urbanos, médicos, enfermeiras, professores estenderão seus
serviços ao campo. Serviços adaptados, precarizados, no posto médico ou
na escolinha pobres, com recursos pobres; profissionais urbanos levando
seus serviços ao campo, sobretudo nos anos iniciais, sem vínculos culturais
com o campo, sem permanência e residência junto aos povos do campo
(ARROYO, 2007, p.159)
Nesses termos, defendemos o pressuposto de que o discurso da igualdade de
oportunidades não tem fundamento quando as realidades são tomadas em sua totalidade.
Nessa lógica, os privilégios de classe acabam determinando os serviços públicos que chegam e
a forma que são oferecidos para a população. No caso específico da escola pública que
precisaria assumir-se como espaço democrático de garantia de acesso e igualdade de
condições para todos, existe uma forte afirmação de privilégios que se evidencia a partir de
uma concepção meritocrática de educação e escola.
A ESCOLA E O FORTALECIMENTO DOS DONS E MÉRITOS
A construção curricular, em sentido amplo, imbricada nas ações sistematizadas
desenvolvidos pela escola pública ao longo de sua história tem perpetuado determinados
valores. Se reconhecermos que essa dinâmica se configura em um processo de segregação
escolar, iremos vislumbrar a escola como instituição social, fortalecida pelos setores
privilegiados em função de sua posição hierárquica na sociedade, frequentada por pessoas que
pertenciam às classes favorecidas economicamente. Para os demais, ela não se configura
como lócus formativo interessante. Assim, permanece a concretização da democracia
burguesa.
Dubet (2008) nos relata que:
(...) Em todos os países, mas em graus diversos, os alunos originários das
categorias sociais mais privilegiadas, os mais bem munidos em capital cultural
e social, apresentam um rendimento melhor, cursam estudos mais longos,
mas prestigiosos e mais rentáveis que os outros. (...) (DUBET, 2008, p.27).
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Nessa conjuntura social demarcada pela lógica do capital, “vencem” aqueles que
conseguem por seus próprios méritos driblar esse jogo que foi instituído na consolidação da
democracia. A expansão da escolaridade não tem significado de forma efetiva se a lógica for a
igualdade de oportunidade para todos. Isso é possível de ser constatado pelo valor capital do
prestígio que algumas profissões possuem em detrimento de outras. Coincidentemente ou
não, elas são ocupadas por pessoas privilegiadas socialmente.
Um dos aspectos cruéis dessa “oportunidade igual” está relacionado ao ocultamento
de uma realidade que se apresenta de uma forma invertida, ou seja, apenas de forma
aparente. Delegar aos dons pessoais os sucessos e fracassos escolares significa naturalizar as
relações de classe que permeiam a sociedade capitalista. Não é justo que se diga a uma criança
que se ela estudar, se esforçar muito vai conseguir vencer, sem considerar os aspectos
históricos e condicionantes sociais que estão intrínsecos nas relações sociais.
Não obstante, entendemos que a perfomance de cada indivíduo é carregada de
historicidade. Segundo Miranda (1999):
Na sociedade em que vivemos, somos levados a pensar e agir como se
fôssemos, cada um de nós, pessoas únicas e isoladas, absolutamente
originais, desligadas e separadas do que convencionamos chamar de
"social", uma coisa tão abstrata que nem sabemos o que significa. Cada vez
mais, somos estimulados pela necessidade de demonstrar uma
originalidade, um brilho pessoal, um toque único, um charme especial e
sem concorrentes. Ao mesmo tempo, somos atraídos pelas promessas da
felicidade que estariam ocultas nessa possibilidade individual. Esse culto ao
individualismo constitui uma das manifestações de um processo histórico
que dá origem, mantém e fundamenta a sociedade capitalista e tem sua
base no fato de que o capitalismo necessita que os indivíduos sejam "livres"
e desembaraçados para produzir, consumir e concorrer entre si.
(MIRANDA, 1999, p.46)
A escola vai desenvolvendo ações que sustentam os prestígios individuais,
salientando que através dos desempenhos de cada sujeito é possível vencer, basta ter um
“brilho pessoal, um toque único”. Essa afirmação vai de encontro à realidade da escola, pois
os vencedores nesta instituição em sua grande parte são aqueles que pertencem às categorias
economicamente privilegiadas.
Dubet (2008,) ainda complementa dizendo que as crianças que pertencem às
categorias privilegiadas conseguem conviver com facilidade com a cultura escolar enquanto
outras classes menos favorecidas, necessitam de adaptar-se a esta cultura estranha. Por isso é
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injusto delegar aos pobres o fracasso escolar, fazendo com que se tornem responsáveis pela
sua falta de êxito.
Infelizmente, a nossa experiência profissional no trabalho docente em instituição
pública tem mostrado que a escola continua premiando os vencedores e deixando de lado os
vencidos, ou melhor, fazendo com que eles acreditem que não conseguem devido a sua
incapacidade, sua falta de zelo. Delegam a eles e a seus familiares a responsabilidade pelo
fracasso.
Desta forma, oculta as contradições que são inerentes a uma sociedade de classes.
Nesse processo de ocultamento, entrega aos indivíduos o sucesso e o fracasso, a vitória e a
derrota e deixa que as pessoas possam construir sozinhas suas histórias. Agindo assim, permite
que o discurso das igualdades de oportunidade continue perpetuando e valorizando as
performances individuais, identificando como “dom” o que é histórico.
A CONSTRUÇÃO DE UMA ESCOLA JUSTA É POSSÍVEL?
Não temos dúvida do papel social, histórico, político que a expansão da escolarização
proporcionou às sociedades democráticas. A possibilidade de acesso ao conhecimento, que
antes era privilégio apenas dos “bem-nascidos”, a ampliação e a divulgação das informações
tem proporcionado avanços incomensuráveis.
No entanto, todas essas transformações não têm oportunizado a igualdade de
condições para todos. Ainda convivemos com a mão da meritocracia apontando os caminhos a
serem seguidos, com escolas com estruturas diferenciadas por sua localização geográfica, com
estudantes que conseguem maior desempenho devido ao conhecimento cultural construído
fora da escola, com professores que dedicam mais tempo com os indivíduos que pertencem às
categorias mais privilegiadas, enfim, a existência da desigualdade.
Diante dessa realidade, vêm as indagações: é possível construir uma escola justa
desconsiderando a realidade histórica? A escola é justa só pelo fato de universalizar o acesso?
Como desenvolver oportunidades iguais desconsiderando as perfomances individuais como
fator essencial de igualdade? Na conjuntura educacional que vivenciamos é possível a
construção dessa escola justa, uma escola de igualdade, sem repensar o currículo?
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
Arroyo (2010) comenta que a discussão da desigualdade na escola deve levar em
consideração outras realidades e não somente as questões internas à escola. É necessária a
compreensão de outras determinações que interferem na realidade escolar, mas que são
produzidas em outros espaços. Segundo o autor:
As pesquisas e análises sérias que apontam outras causas mais determinantes,
inclusive intrassistema escolar, são ignoradas. Como não são levadas a sério
pesquisas que mostram o papel histórico do próprio sistema, a reprodução das
desigualdades, sobretudo, são ignoradas as análises e pesquisas que mostram o
peso determinante das desigualdades sociais, regionais, raciais, sobre as
desigualdades escolares na formulação de políticas, na sua gestão e avaliação. A
repolitização conservadora na sociedade, na política e na formulação e avaliação
de políticas fechou o foco no escolar, ignorando os determinantes sociais,
econômicos, ou as desigualdades tão abismais nesses campos como
determinantes das desigualdades educacionais (ARROYO, 2010, p.1384).
Deslocar a discussão das desigualdades das questões sociais, regionais, raciais,
políticas da escola, tem por objetivo tentar isentar esse espaço dos problemas sociais e ao
mesmo tempo justificar suas ações, pois não “sofrendo” interferência externa, acaba também
por não interferir na sociedade. Dessa forma, a construção de uma escola justa acaba sendo
tarefa da própria escola e não da coletividade.
É fundamental compreender que a escola justa para ser efetivada depende entre
outros fatores, de um envolvimento da sociedade, da construção de ações coletivas, pois não
podemos pensar uma tarefa dessa envergadura somente com os agentes escolares. Mas afinal,
o que é uma escola justa?
Para Dubet (2008),
(...) a escola justa supõe que as comunidades adultas se responsabilizem
pelas crianças e adolescentes a fim de ajudá-las a crescer. Isso significa que
o ofício de professor não se reduza unicamente à transmissão dos
conhecimentos “escolares” (grifos do autor), que se aprenda a medir um
bem educativo propriamente cívico e cultural, que a escola não humilhe
ninguém e que ela permita a todos ter valor (,,,) (DUBET, 2008, p.111)
Diante do exposto, é possível pensar em uma escola justa entrelaçada com a
coletividade, sendo que crianças, adolescentes, jovens e adultos possam compartilhar suas
experiências. Trata-se de um processo formativo que não se reduz à escolarização, mas
contemplem os conhecimentos extra-escolares. Outro fator essencial é o respeito ao ser
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
humano. Pensar nessa escola é considerar as múltiplas territorialidades: campo – cidade,
urbano-rural, centro- periferia.
PARA NÃO FINALIZAR, MAS CONTINUAR REFLETINDO...
A reflexão sobre igualdade e desigualdade na escola a partir de seus pressupostos e
desafios curriculares apresenta algumas discussões. Primeiro, compreender a escolarização a
partir dos processos formativos vivenciados e sua influência na vida dos indivíduos. Isso passa
pela questão curricular. A escola pública apesar de ser uma conquista das populações, ainda
está longe de tornar-se um espaço popular e justo. A herança de exclusão que ela carrega pelo
ideário de igualdade na diversidade demonstra que ainda existe um longo caminho de
obstáculos a ser superado.
A construção da escola pública passa por uma reestruturação curricular, pela
compreensão do seu papel social e político em uma sociedade que vive sob a lógica do capital,
pela concepção de homem, enquanto sujeito histórico, enfim, desafios que devem ser
vencidos pela coletividade, que precisa dizer qual escola deseja para seus filhos.
Concordamos com Silva (1999, p. 90) que se não houver uma mudança consistente no
currículo a ‘justiça curricular’ não acontecerá. E nessa mudança é necessário que se reflita “as
formas pelas quais a diferença, a desigualdade são produzidas por relações sociais de
assimetria”.
Gimeno (1995, p 83) amplia a questão ao compreender que não basta pequeno
arranjo na cultura escolar para atender uma minoria cultural, um pequeno grupo se a questão
maior da diversidade em geral não for tratada adequadamente. Daí a necessidade de
redimensionar o currículo numa perspectiva ampla, multicultural, dentro de um contexto
democrático de decisões a fim de que todos tenham seus interesses contemplados e a escola
possa ser “um projeto aberto, no qual caiba uma cultura que seja espaço de diálogo e de
comunicação entre grupos sociais diversos”.
Ainda assim, não podemos ignorar a importância da escola na socialização dos
saberes historicamente acumulados, bem como, na construção de novos conhecimentos a
partir dos processos educativos construídos dialeticamente. Entretanto, revelar suas
contradições poderá ser um dos caminhos possíveis para a superação da produção da
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
desigualdade que continua sendo cultivada nos dias atuais. Suplantar uma escola meritocrática
e incentivadora das conquistas individuais é o segundo passo a ser trilhado na edificação de
uma escola justa.
A escola justa deverá ser fruto das contradições da sociedade, pois sendo elaborada
por sujeitos históricos ela não será algo idealizado por mentes iluminadas, mas nascerá dos
conflitos, das relações que são entremeadas por múltiplas determinações.
A sociedade
consegue mudar a partir da intervenção dos seres humanos. Assim também nascerá a escola
justa.
REFERÊNCIAS.
ARROYO, Miguel Gonzalez. Ciclos de Desenvolvimento Humano e Formação de Educadores.
Revista Educação e Sociedade. Campinas, Ano XX, n.68, Dezembro de 1999.
ARROYO, Miguel Gonzalez. Políticas de Formação de Educadores (as) do Campo. Revista
Educação e Sociedade. Campinas, vol.27,n.72, p.157-176, maio/agosto de 2007. Disponível
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
TENSÕES E OBSERVASÕES DAS PRÁTICAS
CURRICULARES: PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO
CURSINO, Nivia.
FEBF/UERJ
[email protected]
RESUMO
Analiso o currículo como práticas produzidas na construção dos saberes levando em
consideração expressões culturais dos sujeitos na produção de suas identidades marcadas pela
diferença cultural. Considero a cultura, não apenas como reprodução de códigos, mas também
como produtora de discursos e articuladora de tradições e saberes. Pesquiso a Multieducação
(1996) e seu enfoque sobre o PPP como ferramenta de orientação e construção das práticas
educacionais como articuladora desses saberes.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo – Projeto – Cultura
TENSIONS AND OBSERVATIONS OF PRACTICAL COURSE: TEACHING POLITICAL PROJECT
ABSTRACT
Analyze curriculum and practices produced in the construction of knowledge taking into
account cultural expressions of the subjects in the production of their identities marked by
cultural difference. Consider the culture, not only as a reproduction of codes, but also as a
producer of speeches and articulator of traditions and knowledge. Researching the
Multieducation (1996) and its focus on the PPP as a tool for guidance and construction of
educational practices as articulating such knowledge.
KEYWORDS: Curriculum - Project - Culture
Introdução
Compreender o currículo para além de conteúdos disciplinares significa percebê-lo
como práticas construídas e produzidas no cotidiano das instituições educacionais a fim de
desenvolver o conhecimento. Sendo assim estas práticas são desempenhadas através das
relações sociais que tem por articuladora a linguagem, impregnada de símbolos e significados
expressos culturalmente.
O currículo é considerado um artefato social e cultural [...]. O currículo não é
neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo
está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais
particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e
sociais particulares [...] tem uma história, vinculada a formas específicas e
contingentes de organização da sociedade e educação. (Moreira, 1995, p.8)
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As expressões culturais são representadas por sujeitos múltiplos, possibilitando a
hibridização e a constituição de novas identidades marcadas pela diferença cultural que
redirecionam e reformulam e conduzem o ensino e a aprendizagem. Segundo Bhabha (2007)
tais diferenças culturais se dão por meio do surgimento de um campo em que ocorrem
processos de significações culturais.
Para tanto é necessário compreender que a cultura, para além de seu sentido
antropológico de reprodução de códigos representativos de um determinado grupo, se
apresenta como produtora de discursos (Freitas, 2007) e experiências que articula tradições e
saberes, proporcionando um espaço de conflito, diálogo e discussão. Sendo assim, a
Multieducação (1996) elaborada pela SME/RJ9 pretendeu reconhecer a complexidade social
reafirmando a escola municipal como lugar constituinte de valores.
Esta proposta curricular – Multieducação – Núcleo Curricular Básico de 1996 –
orientou as práticas educacionais da rede desde sua criação até o ano de 2009. Percebê-la
como “texto oficial” exige que se coloque em questão como as instituições de ensino articulam
as culturas e as diferenças, não naturalizando e por sua vez homogeneizando os
conhecimentos e comportamentos de suas práticas, mas como espaço de criador de sentidos.
E, como lugar de diálogo em que os sujeitos envolvidos, não apenas nos processos de
ensino-aprendizagem, mas como nas produções das relações sociais, cria tensões. O que
ocorre são constantes relações de disputas de poder, entendendo que se constitui um espaço
de singular e ao mesmo tempo plural.
Desta maneira, a Multieducação propõe a valorização da construção histórica na
produção do conhecimento a fim de suprimir uma visão fragmentada do conhecimento. É
neste sentido que a mesma aponta o Projeto Político Pedagógico10 como ferramenta de
orientação e construção das práticas educacionais, e ainda o considera como um meio de
produzir a identidade de cada escola, reconhecendo sua realidade sócio-cultural e lugar de
diferença (Multieducação, 1996).
A construção do PPP cria espaço para que o sujeito dê sentido ao contexto histórico e
cultural quando articula as diferentes culturas tornando as produções curriculares
significativas para os sujeitos envolvidos e suas práticas. Para além de um registro documental
legal da escola, o PPP é analisado como prática curricular ultrapassando o sentido de
conteúdos programáticos e também como lugar de resignificação das relações sociais e de
produção de identidades e culturas.
9
Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
A partir deste ponto utilizarei a sigla “PPP” para mencionar o Projeto Político Pedagógico.
10
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“Neste espaço, qualquer informação, conteúdo, valor a ser discutido,
implica em tantas formas de construção do conhecimento quantos forem os
sujeitos envolvidos, pois, para cada sujeito, a repercussão se fará de forma
diferenciada atingindo a rede de sentidos em que ele está enredado”.
(Multieducação, p. 68).
Compreender a construção do PPP como práticas curriculares, requer sua concepção como
espaço de disputa e poder, pois ele é a materialização dos intentos que reportam as
identidades dos sujeitos envolvidos em seu processo de elaboração. Tal processo é
representado pelas relações sociais representadas na/pela diferença e produzindo significados
a fim de entender como a sociedade vive seu tempo.
O PPP oportuniza aos sujeitos inserirem-se na agência de seus discursos, ou seja, é
como ele se constitui. Ao deslocar sua identidade, cruzando o passado, o presente e o futuro,
por meio das relações sociais representadas pela linguagem, o sujeito emerge no ato político
como enunciador das interações verbais.
“Somos diferentemente posicionados, em diferentes momentos e em
diferentes lugares, de acordo com os diferentes papéis sociais que estamos
exercendo (HALL, 1997, Apud, SILVA, 2009, p30). Diferentes contextos
sociais fazem com que nos envolvamos em diferentes significados sociais”.
(TADEU, p.30, 2009).
As agências são demarcadas pelas intenções que são postas em práticas e negociadas
em meio a tensões e disputas que se modificam ao longo do processo de realização do PPP. É
desta forma que se tem a possibilidade de novas realizações e produções curriculares que
fazem com que os saberes circulem dando novos sentidos por meio da recontextualização e
negociação. Por isso,
“... é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a
observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas
de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as
coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos
outros” (Hall, 1997, p.15).
O que são novos sentidos? Para compreender é preciso analisar sobre a construção
curricular orientada pela SME/RJ com o objetivo de conceber a construção e ressignificação
dos sentidos das práticas educativas representadas na/pela diferença. Por isso é pertinente
entender o processo de elaboração e prática dos PPPs das instituições de ensino da SME/RJ,
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visto que sua criação se deve à necessidade de atender aos sujeitos múltiplos inseridos no
contexto do cotidiano educacional.
A prática curriculares baseadas em PPPs propõem o aprendizado dos diferentes
conhecimentos de forma não-linear, através de múltiplas linguagens com fechamentos
provisórios (Barbosa, 2008). Por isso, para que se tenha a aprendizagem é necessária uma
organização curricular que tenha significado para os sujeitos envolvidos em suas práticas.
Por conseguinte quando há a nomeação de um currículo oficializado encontramos
alguns embates. Isso se deve pelo não reconhecimento das políticas curriculares das
diferenças culturais e de identidades nas/das relações sociais ao estabelecerem metas e
objetivos específicos a fim de promover a apropriação do conhecimento.
Entrando na Escola: visões e observações
Imaginar é construir simbolicamente algo (GLISSANT apud MIGNOLO, 2005), alguma
situação, e aqui mais especificamente imaginar a comunidade escolar. É estabelecer perguntas
e respostas para auto-descrever deslocando as identidades e lugares rompendo com fronteiras
territoriais e criando fronteiras culturais.
Neste contexto de imaginação, criação de perguntas e a tentativa de romper com
ideias previamente estabelecidas e naturais às relações sociais que realizei observações,
descrições e análises do documento que norteia as práticas educacionais – Multieducação.
Busquei refletir sobre os significados que estavam sendo construídos com os sujeitos
envolvidos compreendendo que as instituições educacionais precisam estar voltadas para o
desenvolvimento integral do sujeito, proporcionando a construção da identidade (Hall, 2005) e
a construção de outras/novas relações sociais. Além de permitir contato entre os sujeitos para
que estes possam identificar o outro e a si mesmo através da consolidação das relações
sociais, entendendo o espaço escolar com significados.
Minhas observações na escola se deram pela necessidade de construção e pesquisa do
trabalho de conclusão de curso da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, cuja temática foi à análise do currículo como lugar de criação, produção e
construção de culturas e identidades. Durante minhas observações averiguei como se davam
as trocas de experiências, e como se construía o currículo por meio das práticas educacionais e
nas relações entre professores e alunos, durante a construção e produção das práticas
curriculares.
Para além de uma compreensão de que o currículo é a organização de métodos
educativos, mas em uma perspectiva de currículo como produção social e cultural, implica em
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reconhecer que a escola é um espaço constante de conflito e negociações. Existe uma busca
pela ponderação das diferenças culturais e sua valorização, que reforçam a identidade através
da linguagem.
Para descobrir como se davam as práticas e as relações educacionais, precisei me
colocar na “exterioridade do interior” que segundo Mignolo:
“... não é necessariamente fora do Ocidente (o que significaria uma total
falta de contato), que no entanto é exterioridade exterior e exterioridade
interior (as formas de resistência e de oposição traçam a exterioridade
interior do sistema”. (Mignolo, 2005, p.38:39)
Cabe, aqui, indagar sobre em como se dá a construção dos PPPs educacionais? Se os
educadores ficam limitados à transmissão do conteúdo e/ou metodologias? Qual é o objetivo
final do PPP: atender às propostas pré-estabelecidas ou articular os diferentes contextos? De
que forma o PPP pode criar um campo de produção cultural, constituir identidades e
valorização das diferenças?
Mais do que entender a relação que se estabelece entre colonizador (o professor) e o
colonizado (o aluno), na qual as identidades são deslocadas e o reconhecimento da agência
destes sujeitos dentro de uma determinada cultura e lugar por meio de relações de poder, é
alcançar que as subjetivações produzidas neste espaço e as fronteiras culturais estabelecidas
estão para além de uma hierarquia. Não é categorizar os papéis sociais presentes nestas
relações, mas investigá-las. É compreender que as relações sociais produzidas no espaço
escolar pelas significações, num processo contínuo e fluído concebem outras formas de
produzir culturas e identidades.
Para tanto se torna importante examinar as produções do/no espaço educacional
fundada pelas relações sociais para a produção curricular e que pondera as diferenças como
campo de negociação, articulação e produtor de cultura.
Trata-se de uma dimensão
interpretativa, de não apenas entender as relações sociais, mas também seus códigos de
acordo com os textos.
São os códigos criados e construídos no processo de elaboração e prática do PPP
considerando as diferenças por meio das negociações, confrontadas pelas relações sociais
imersas no contexto de produção de significados.
É buscar compreender o porquê
determinadas ações e comportamentos culturais produzem significados e códigos, analisando
a realidade de cada escola, entendendo seu sentido plural e ao mesmo tempo singular
observando cada contexto e suas realidades culturais.
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Meus estudos e minhas indagações estão direcionados a entender em como se dá o
processo de construção e negociação do PPP dentro de uma rede municipal de ensino em que
somos múltiplos, reconhecendo as diferentes culturas e identidades na/das relações sociais. E
ainda, compreender “para quem é importante e necessário definir um lugar de pertencimento
e de diferença?” (Mignolo, 2005, p. 41).
O professor, como sujeito mediador e articulador no processo da aprendizagem
precisa repensar suas práticas a fim de estimular o desenvolvimento da aprendizagem e da
criatividade. Com este objetivo é necessário propor ao aluno a manifestação e a troca nas/das
relações culturais e não uma simples decodificação de símbolos e conteúdos. Entendendo
assim, o PPP enquanto códigos construídos e produzidos a fim de orientar a construção dos
saberes educacional e que articula as diferenças nestes espaços, o compreendendo também
como espaço constituinte de relações polifônicas.
Por ser um texto no qual diferentes atores sociais se pré-dispõe para sua elaboração,
exige do pesquisador/observador o olhar, o ouvir e o escrever (Oliveira, 2006) para que sejam
compreendidas as negociações e mediações das produções curriculares, visto que o PPP,
deveria, segundo a Multieducação (1996) ser a identidade de cada instituição de ensino da
SME/RJ. É ainda entender que, como a textualização de uma prática a ser realizada está sujeito
as diferentes interpretações de como e quando por em prática. É colocar em questão quais são
as identidades que serão produzidas e sua finalidade.
O momento de significação de minhas observações sobre as práticas propostas pelo
PPP se deu no momento em que observei/olhei para as relações produzidas durante as aulas.
Foram “... explicações fornecidas pelos próprios membros da comunidade investigada [...]
matéria-prima para o entendimento antropológico...” (Oliveira, 2006, p. 22) que compreendi o
andamento das atividades propostas e a ajuda entre alunos para realização das atividades a
fim de chegar ao objetivo proposto pelo professor.
Pelas relações dialógicas, que confrontaram minhas observações e anotações com as
ações do “nativo” (professores e alunos) que captei algumas dinâmicas estabelecidas pelo PPP.
Foi minha observação participante, pois em alguns momentos auxiliava na realização das
atividades, e isto em alguns momentos dificultou a meu “olhar” sobre o que já estava se
tornando “natural” aos meus olhos.
Quando percebi esta naturalização das minhas observações, percebi a necessidade de
outros questionamentos para além da construção e produção pura e simples do PPP. Por meio
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
disso cheguei a uma outra análise: que de fato ainda existia era a interrupção entre as
atividades das disciplinas curriculares oficiais e as atividades do PPP.
A grande questão do PPP é a superação de conteúdos pré- estabelecidos e enrijecidos
dentro de um entendimento de currículo com práticas conteudistas. E ainda ultrapassar a
noção de que é uma ferramenta de controle e de organização de atividades. Pensando em
Oliveira (2006), as relações propostas pelo PPP necessitariam ser pensadas no interior das
“representações coletivas”, pois a construção do PPP não exige uma linearidade. Ele deve
atender ás necessidades das múltiplas linguagens e reconstruir o que já foi aprendido.
A organização do PPP não deve estar acabada e fechada, mas ser um processo
contínuo de produção de sentidos por meio das práticas educacionais a fim de produzir
conhecimento e culturas. Seria então, a “textualização das culturas” (Oliveira, 2006, p.26)
produzidas e construídas por meio das práticas curriculares. É a interpretação dos discursos
presentes em tais práticas.
Apesar da proposta da Multieducação de uma ferramenta que permite a autonomia de
cada escola, o que verificamos é uma regulação curricular por meio do PPP. E, ainda, um
documento que já vem pré-estabelecido em algum momento e quem nem sempre é
reavaliado a fim de atender as verdadeiras necessidades de aprendizado. Como elaborar e
realizar um PPP que promova de fato a integração dos conhecimentos nas práticas
curriculares? Como interpretar as múltiplas linguagens encontradas neste espaço? Como
entender as negociações e produções de identidades e culturas pertinentes à instituição da
escola? São questões que permeiam minha pesquisa e que precisam ser “ouvidas e olhadas”.
De que lugar eu falo para realizar minha pesquisa? Para quem eu falo e a quem interessa
aquilo que vou produzir?
“O ponto de partida é este: nossas escolhas de pesquisa são éticas, são
sempre de algum modo políticas. Então, diante de uma folha em branco, de
um projeto que teima por vezes desesperadamente, em não ser escrito,
talvez um bom começo seja perguntar-nos: que perigos a Educação enfrenta
ou precisaria enfrenta, precisamente hoje, agora?” (Fischer, 2002, p. 52-53).
Parto do ponto de que há, em alguns momentos, o esvaziamento de sentidos e da
finalidade primeira do PPP quando este é concebido como “evento” a ser realizado em
determinadas épocas do ano letivo. Não pretendo naturalizar esta percepção, mas sim
questionar o meu posicionamento diante dela e ainda questionar os sentidos do PPP. É
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inclusive questionar o discurso de que o professor estimula seus alunos na realização das
atividades, que acaba por dar sentido permitindo a construção de sentidos e valores, por meio
da produção do PPP.
A continuação da minha pesquisa se dará através das análises dos PPPs elaborados
pelas escolas e das entrevistas realizadas, entendo ambos como discurso, pois como Fischer
(2002) menciona Foucalt: “... os discursos e todas as normas e regras institucionais nos mais
diferentes campos de poder e saber – são sempre, e por definição, “práticos”.” (p.50).
Para embasar e desenvolver reflexões analisarei as demandas individuais/coletivas da
produção curricular por meio de um processo metodológico dialógico. E ainda os registros das
observações das práticas educacionais permitirão a construção e a ressignificação das
produções curriculares como espaço de produção cultural e de conflito por meio das
diferenças.
Considero que o PPP interfere na produção do conhecimento quando há articulação
entre a pluralidade de saberes em que diferencio “eu” do “outro”. Esta diferenciação significa
permitir o confronto das singularidades criando assim um espaço de reflexão e interação
entendendo que as análises a serem realizadas pela pesquisa têm por relevância os objetivos
históricos e as condições de produção.
Tais relevâncias são compreendidas por meio da linguagem que dá mobilidade para os
significados produzidos pelas relações sociais. As relações entre os sujeitos se tornam capazes
de construir o conhecimento, resgatando os saberes por meio de produção de sentidos que
surgem através dos significados e de suas interpretações que pela linguagem e produção de
discursos se torna viável o diálogo entre os sujeitos.
As investigações a serem realizadas buscarão contribuir nas análises das práticas
curriculares e a construção do conhecimento nas relações sociais deparando-se com sujeitos
em diferentes contextos e ainda, ponderando e articulando os discursos que permitem a
produção de identidades culturais por meio da multiculturalidade (Bhabha, 2007) valorizando
os sentidos e os signos e símbolos criados através da linguagem e do discurso. Para tanto se
pretende verificar como os sujeitos se apropriam diferentemente dos sentidos produzidos,
reconfigurando a todo tempo seus valores por meio das múltiplas linguagens, dos múltiplos
contextos e discursos que se estabelecem nas relações sociais.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
HISTÓRIA ENSINADA E PRÁTICAS DE LETRAMENTO:
CURRÍCULO, CULTURA E PRODUÇÃO DE SENTIDO
Patrícia Bastos de Azevedo
11
UFRRJ
[email protected]
RESUMO
O presente artigo buscou conceituar a produção de sentido em práticas de letramento na
história ensinada, operando conceitualmente com o campo da linguagem a partir do Círculo de
Bakhtin como arcabouço teórico em interface com o currículo. O currículo, nesse sentido, é
compreendido como um signo ideológico que se constitui em seu tempo-espaço sóciohistórico, em uma composição híbrida, ambivalente, complexa e polissêmica. Assim, nesse
diálogo com os campos da linguagem e do currículo, o conhecimento é concebido como uma
produção social estruturada pelos signos ideológicos em sua historicidade social, e a sala de
aula, concebida como espaço complexo, múltiplo, híbrido, ambivalente e polissêmico,
desperta muitos questionamentos e possibilidades. Com isso, assevera-se que a história
ensinada é estruturada não só pelas questões disciplinares relacionadas à historiografia, ou,
em outras palavras, pela prática de letramento que permeia o exercício do ofício do
historiador; mas também compõe-se das dinâmicas de formação e significação do mundo da
vida, as quais se fazem presentes no espaço de ensino.
Palavras-chave: Ensino de história, práticas de letramento escolar, currículo, linguagem.
HISTORY TAUGHT AND LITERACY PRACTICES: CURRICULUM, CULTURE, THE PRODUCTION OF
MEANING
The present article investigates the production of meaning in literacy practices in History education and
it is shaped conceptually by the field of language drawn from the Bakhtin Circle (BAKHTIN-VOLOCHINOV,
2002; BAKHTIN, 1998, 2003) as its theoretical framework in interface with the curriculum itself. The
curriculum in this sense is understood as an ideological sign that constitutes its social-historical timespace, in a hybrid, ambivalent, complex and polysemic composition. Therefore, many questions and
possibilities stem from this conversation between the fields of language and the curriculum since
knowledge is defined as a socially constituted production, structured by ideological signs in its social
historicity and the classroom is conceived as a complex, multiple, hybrid and ambivalent space. By doing
so it is ensured that the teaching of History is not only structured by disciplinary issues related to
historiography, that is by the practice of literacy that pervades the exercise of the profession as a
historian, but it is also anchored on the development and significance of the life-world dynamics, which
is present in education.
Key-words: History teaching, school literacy practices, curriculum, language.
11
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Mestre em Educação UFF, Doutora em Educação UFRRJ, professora do curso de
História, membro do Grupo de Pesquisa Oficinas da História.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
Introdução
O desafio fundamental deste artigo/ensaio é conjugar dois campos discursivos –
currículo e linguagem – buscando compreender nosso foco de investigação – história ensinada
e sua interface com o letramento. O currículo, nos viés teórico que apresentamos, é pensado
como um signo ideológico12 que se constitui em seu tempo-espaço, em uma composição
híbrida, complexa e polissêmica, composição esta que transita por múltiplos campos
discursivos e espaços enunciativos.
Compreendemos história ensinada como o ato de ensinar história. Assim, na
perspectiva adotada, o ensinado é um ato permeado pela linguagem de um ou mais sujeitos. O
espaço do ensino não necessariamente precisa ser face a face; os livros didáticos, os filmes
históricos, as revistas dedicadas à história ou os artigos de história também carregam em si
uma história a ensinar que demanda outras inter-relações sociais distintas daquela existente
na sala de aula.
As práticas de letramento escolar estão reguladas, isto é, submetidas a regras
constituídas no tempo-espaço sócio-histórico em que a escola está situada. Dessa forma, as
práticas de oralidade, leitura e escrita estão circunstanciadas por alguns aspectos desse
letramento. Buscamos pensar as práticas de letramento escolar circunstanciadas pelas
relações de poder que constituem a identidade sócio-histórica da escola e de suas seleções
culturais que se desdobram no currículo. Dessa maneira, compreendemos práticas de
letramento como ações individuais ou coletivas marcadas pelo uso da leitura e da escrita.
Assim, as pessoas estão permeadas pelo situado de tais práticas e pela valoração e
compreensão que essas ações possuem em suas dinâmicas sociais e culturais. Em suma, as
práticas de letramento estão inseridas nas atividades cotidianas da vida, e não somente na
escola e no trabalho, sendo tratadas de formas múltiplas por seus vários usuários (BARTON,
2007) e ocorrendo de formas distintas de pensar e fazer a leitura e a escrita em diferentes
situações sócio-culturais (STREET, 2003, s/p).
Na perspectiva adotada, o letramento escolar se estrutura em diálogo com o tempoespaço que o situa e o constitui de sentido. Em vista disso, o currículo desdobra-se em práticas
pedagógicas e seleção letrada que estruturam a história ensinada impactada pelas questões
12
Já que nosso texto usa como principal arcabouço teórico o diálogo com o Círculo de Bakhtin, a palavra ideologia assume um
sentido próprio, o qual, neste artigo/ensaio, pode ser compreendido na explicação apresentada por Faraco (2009, p. 46): “Como
ideologia é uma palavra ‘maldita’ (pelas incontestáveis significações sociais que pode veicular), é importante – para evitar
costumeiros mal-entendidos [...] [A] palavra ideologia é usada, em geral, para designar o universo dos produtos do ‘espírito’
humano, aquilo que algumas vezes é chamado por outros autores de cultura imaterial ou produção espiritual (talvez como
herança de um pensamento idealista); e, igualmente, de forma da consciência social (num vocabulário de sabor materialista).
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
sócio-históricas, se estendendo em práticas de leitura e escrita materializadas no espaço da
sala de aula.
Prática de letramento escolar
Historicamente, a escola assumiu o papel de principal agência de promoção e difusão
de práticas de leitura e escrita, isto é, promotora primeira de modelos e práticas do como
deveríamos falar, ler e escrever na sociedade. O processo de “alfabetização” das massas se
constituiu em correlações de forças e tensões entre concepções de sociedade de direitos
sociais, marcando os debates do terceiro triênio do século XIX (GRAFF, 1994, p. 66-67). E a
escola, a esse espaço de disputa de visões e concepções sobre o papel e a função da leitura e
escrita, incorpora-se como um lugar estratégico de disseminação de uma cultura letrada
“específica” e “escolhida” por uma parcela da sociedade e por uma vertente teórica de caráter
liberal, marcada pela concepção moderna.
Historicamente, muitos logo perceberam a importância da imprensa e a
possibilidade de avanço individual e social adviria da realização da
alfabetização em massa, embora a discordância prevalecesse de modo
acirrado até quase o final do primeiro terço do século XIX [...] Esta tendência
reacionária, que temia a escolarização para os pobres e para as classes
trabalhadoras, sucumbiu ao triunfo da promoção da escala progressista
liberal na primeira metade do século XIX. Os conservadores foram calados e
vencidos pela grande maioria, bem como pelo fato e pelas forças da rápida
mudança social e também pelos problemas e pela necessidade urgente de
solução [...]. (GRAFF, 1994, p. 66-67)
Nesse sentido, salientamos que o texto de Graff e suas considerações acerca da
“alfabetização13” estão marcados historicamente pelos debates teóricos do tempo-espaço, isto
é, pela década de 1970 e 1980. Dessa forma, tanto a escola como o currículo são definidos
como um lugar de “inculcação” a serviço da sociedade urbana e industrial (GRAFF, 1994, p.
69). Nesse contexto, o referido autor apresenta uma questão de fundamental importância
para este artigo/ensaio “o mito do letramento”, isto é, a pretensão de que a competência de
ler e escrever elevaria a capacidade de cognição dos indivíduos, além de promover maior
igualdade social. Graff denuncia essa pretensão que, segundo ele, não se comprovou na
prática. Essa perspectiva se aproxima do que Sttret define como “letramento autônomo”:
13
Acreditamos ser fundamental neste ponto destacar o título original do livro de Graff “The labyrinths of literacy”, traduzido no
início da década de 90 como “Os labirintos da alfabetização”. Dessa forma, a escolha por alfabetização, e não por letramento, se
constitui no tempo-espaço sócio histórico, visto que o termo letramento, nesse momento histórico, ainda estava em suspensão e
com seus significados e sentidos sendo tecidos pela academia e sua validação em disputa por aceitação.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
[...] O modelo “autônomo” de letramento funciona com base na suposição
de que em si mesmo o letramento – de forma autônoma – terá efeitos sobre
outras práticas sociais e cognitivas. Entretanto, o modelo disfarça as
suposições culturais e ideológicas sobre as quais se baseia, que podem
então ser apresentadas como se fossem neutras e universais [...]. (2003, s/p)
O modelo de “letramento autônomo” constitui profundamente a concepção de
oralidade, leitura e escrita que estrutura tais práticas no espaço escolar. As práticas de
letramento na história ensinada, em sua maioria, têm essa concepção no alicerce das
atividades desenvolvidas em sala de aula e, ainda, têm, como pressuposto, que o aluno
“alfabetizado14” possui capacidade de ouvir a explicação e transformar a informação dada em
respostas corretas, isto é, em sínteses expressas na escrita de um texto. Nessa perspectiva,
compreende-se que o domínio da tecnologia da escrita por si só habilita o aluno a percorrer as
práticas sociais da língua escrita. Esta concepção está próxima ao que Sttret (2003) define
como modelo “autônomo de letramento”:
Embora correndo o risco de uma excessiva simplificação, pode-se dizer que
a inserção no mundo da escrita se dá por meio da aquisição de uma
tecnologia – a isso se chama alfabetização, e por meio do desenvolvimento
de competências (habilidades, conhecimentos, atividades) de uso efetivo
dessa tecnologia em práticas sócias que envolvem a língua escrita – a isso se
chama letramento. (SOARES, 2004a, p. 90)
Como alternativa ao “modelo autônomo de letramento,” Street (2003) propõe o
“modelo ideológico de letramento”:
[...] O modelo ideológico alternativo de letramento oferece uma visão com
maior sensibilidade cultural das práticas de letramento, na medida que elas
variam de um contexto para outro. Esse modelo parte de premissas
diferentes das adotadas pelo modelo autônomo – propondo por outro lado
que o letramento é uma prática de cunho social, e não meramente uma
habilidade técnica e neutra, e que aparece sempre envolto em princípios
epistemológicos socialmente construídos [...]. (s/p)
Por esse lado, as práticas de letramento são sócio-historicamente situadas, impactadas
pelo tempo-espaço que constitui a escola como lugar de ensino das técnicas de leitura e
escrita, isto é, não se pode compreender as práticas de letramento como algo exterior ao
currículo em seu sentido lato15. As práticas de letramento escolar se constituem no tempo-
14
[...] define-se alfabetização – tomando a palavra em seu sentido próprio – como o processo de aquisição da “tecnologia da
escrita”, isto é, do conjunto de técnicas – procedimentos, habilidades – necessárias para a prática da leitura e da escrita, as
habilidades de codificação de fonemas em grafemas e de decodificação de grafemas em fonemas, isto é, o domínio do sistema de
escrita (alfabético, ortográfico); as habilidades motoras de manipulação e decodificação se realizem [...] (SOARES, 2004a, p. 91)
15
Compreendemos que todas as ações, desde as mais simples às mais complexas, são parte integrante do processo educativo e,
dessa forma, integrantes do currículo em suas múltiplas dimensões sociais e políticas.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
espaço sócio-histórico em que os “modelos” de letramento estão sempre em disputa por
supremacia e legitimação.
O que a história da educação nos ensina é que esta herança é sempre objeto
de conflito e de negociação no decorrer do tempo. A cada geração,
corporações, grupos de interesses e de negociações, militantes e
especialistas discutem para fazer prevalecer seu ponto de vista, impor seus
objetivos ou seus saberes disciplinares. Outros querem manter seus
privilégios ou fazer reconhecer seus direitos [...]. (CHARTIER, 2005, p. 25)
São múltiplas as concepções de competência letrada. A escola, em sua matriz
homogênea, tende a indicar uma vertente de leitura e escrita, e esta é apresentada como
correta e apropriada – a norma padrão16 –, desqualificando e, muitas vezes, ignorando outras
práticas de letramento de caráter mais próximo ao cotidiano. Esse processo de legitimação e
constituição do currículo tanto incorpora novas formas de ler e escrever quanto incorpora
gêneros discursivos antes negados, os quais se tornam parte do espaço escolar e, assim, são
incorporados aos processos de ensino, em várias disciplinas, tomando de assalto as
tradicionais concepções do que é legítimo e importante ensinar.
As práticas de letramento estão nesse emaranhado de legitimação e significação,
sendo tecidos o sentido e a hierarquia do que se lê e escreve. Dessa maneira, tais práticas de
letramento estão imersas no tempo-espaço historicamente constituído e nas lutas sociais que
as constrói enquanto legítimas e validadas.
A escola − e a incursão no universo das práticas letradas, em uma concepção de cunho
moderno − ainda é vista como a grande panaceia da sociedade, como capaz de solucionar os
males do mundo.
[...] A educação formal, o único meio de divulgar a alfabetização às massas
de modo seguro, tenciona exaltar a população e assegurar a paz, a
prosperidade e a coesão social. Uma eficiente substituição à
condescendência e ao paternalismo (um conceito-chave), a educação
produziria disciplina e auxílio à inclusão dos valores e hábitos exigidos em
uma sociedade urbana industrial [...] (GRAFF, 1994, p. 69).
A concepção de “letramento” de cunho moderno, urbano e industrial ainda encontrase presente no processo de constituição do currículo em suas múltiplas dimensões, servindo
como elemento de estruturação e de concepção das práticas de letramento que constituem o
16
O que é considerado padrão está condicionado pela validez social imputada. Essa validez é condicionada sócio-historicamente,
estruturando o conceito de “bem falar” e normatizando o uso da língua, seja escrita ou falada. A normatização foi historicamente
elaborada pelas estruturas de poder vigentes e, assim, o que é considerado “certo” está permeado por uma prática letrada
socialmente determinada e difundida como de maior valor e legítima (CHARTIER, 2005, 2007; GRAFF, 1994; MOLLICA, 2007;
SOARES, 2005; STREET, 2003).
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
ensinado nas escolas brasileiras. A concepção de letramento, com base no “modelo
autônomo”, permeia de forma significativa os processos avaliativos17 implementados pelo
governo, fundamentando o estilo de múltiplas práticas de mensuração aplicadas na e pelas
escolas.
Desse modo, a escola, como um campo discursivo, está ligada ao uso da linguagem,
isto é, se compõe em enunciados orais ou escritos que refletem o tempo-espaço sóciohistórico dessa atividade humana. Esse processo de enunciação se constitui enquanto
conteúdo temático, estilo, recursos fraseológicos e construção composicional (BAKHTIN, 2003,
p. 261), e, dessa forma, estabelece práticas de letramento que constituem o currículo em suas
várias dimensões e possibilidades de práticas.
Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui
apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta
(concernente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política,
etc.). (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p. 126).
As práticas de letramento que se estruturam no ensinado são parte de uma corrente
de comunicação a qual, portanto, possui sentidos do tempo-espaço que
constitui o
historicamente situado. As práticas, nessa perspectiva, produzem conhecimentos de fala,
leitura e escrita que são significados no espaço escolar e social mais amplo. Vale então
ressaltar que todo sentido constituído traz em si um conhecimento que se estrutura no tempoespaço sócio-histórico que o constitui de sentido.
Ensino de história como prática de letramento
Compreendemos a cultura letrada escolar como um emaranhado de enunciados,
oriundos de diversos espaços constitutivos, o professor de história na sala de aula é desafiado
a conjugar e articular a história e o seu ensino, buscando construir sentidos permeados por
diferentes campos discursivos. Nesse ínterim, o aluno também traz consigo concepções
enunciativas formadas sócio-historicamente. O professor, diante disso, muitas vezes vê sua
desenvoltura tolhida18, constrangendo e limitando suas práticas de letramento na história
17
“[...] A construção dos itens de prova do SAEB baseia-se em uma matriz de descritores concebidos e formulados como uma
associação entre conteúdos curriculares e operações mentais desenvolvidas pelos alunos, que se traduzem em certas
competências e habilidades (MEC, INEP, 2001); o pressuposto que orienta a construção das provas é, pois, que elas devem avaliar
habilidades que resultem de uma articulação entre conteúdos curriculares na área de leitura e operações intelectuais. Decorre daí
que, como afirmam Boanmino, Coscarelli e Franco (2002:100), essa concepção (do SAEB) reflete uma visão muito escolar da
leitura, que utiliza como parâmetro o que o aluno consegue fazer com o texto e não exatamente uma concepção voltada para a
valorização dos usos sociais da linguagem [...]” (SOARES, 2004a, p. 103).
18
A produção de sentido na história ensinada tem como destino o “outro”. Logo, compreender o ambiente que cerca esse “outro”
– em nosso caso, o aluno – é importante para a construção arquitetônica da explicação. Quando o professor não compreende esse
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
ensinada, e lança mão do seu repertório cultural de elementos que o subsidiam para a difícil
tarefa de ensinar história.
Posto que as práticas de uso são dependentes da situação e da instituição,
diversos grupos profissionais desenvolvem diversos modos socialmente
sancionados de usar a escrita, que fazem parte de suas identidades
profissionais. Aprender a ler como um historiador lê e a valorizar os
documentos e fontes primárias que o historiador valoriza é competência do
professor de História: as macrorrelações que o historiador estabelece entre
períodos históricos, a análise causal de fenômenos contemporâneos que ele
constrói com base em grandes cadeias inferenciais são modos de ler que o
professor de história já aprendeu; daí ele poder modelá-los à medida,
através de perguntas e comentários, os textos de sua área [...]. (KLEIMAN e
MORAES, 1999, p. 99-100)
A tarefa de ensinar história, considerando as questões do letramento, é um desafio
para os professores – afinal, eles não foram formados para ensinar história e correlacionar
este conhecimento com o processo de letramento.
Durante a formação no bacharelado, alguns historiadores compreendem e apreendem
as formas como a escrita da história se realiza. Vivenciado pelos alunos na graduação de
história, esse processo de se tornar historiador perpassa seu período de formação, o que
tradicionalmente transcorre em quatro anos. Na licenciatura, as questões de leitura e escrita
em diferentes momentos da vida humana poderiam fazer parte da formação, ao se reconhecer
que ensinar história demanda ensinar a falar, a ler e a escrever textos historiográficos.
Maria de Lourdes Matencio (1994), discutindo a formação dos professores de língua
portuguesa, argumenta:
Se a formação do professor não chega, muitas vezes, a aprofundar-se em
questões polêmicas nos estudos sobre o ensino aprendizagem de uma
língua materna, ou nos confrontos entre diferentes abordagens de questões
cruciais que daí decorreriam, como esperamos que os alunos de primeiro e
segundo graus possuam um conhecimento amplo de sua língua e da
linguagem, o que certamente seria o objetivo de grande parte dos
educadores brasileiros? (MATENCIO, 1994, p. 82)
A reflexão da autora tem como referência a formação dos professores de língua
portuguesa, destacando o distanciamento entre os estudos desenvolvidos na academia e a
formação dos professores, e acaba por salientar as nossas afirmações nos parágrafos
anteriores. A formação dos professores de história, em sua grande maioria, não toca o ponto
fundamental que permeia a história ensinada e não estabelece a relação existente entre
ambiente situado, sua produção de sentido muitas vezes é tolhida, dificultando e às vezes impedindo o processo de apreensão de
sentido por parte do aluno.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
história/historiografia e as práticas de oralidade, leitura e escrita, quer sejam elas existentes
no ofício de historiador quer na ação do mesmo no ensino de história.
Diante do desafio de ensinar, os professores acabam por repetir práticas tradicionais
ou buscar solitariamente ações que possibilitem o processo de ensinar por tentativa e erro.
Não compreendemos a escola como o único lugar de letramento e muito menos de
conhecimento e apropriação de leitura e escrita que permeia a história. O que queremos
salientar é que a escola é um espaço privilegiado de difusão do conhecimento histórico a partir
da historiografia escolar. Muito embora a escola não seja a única agência de letramento em
nossa sociedade, é certo que ela tem sido a responsável por colocar crianças, jovens e adultos
em contato com a ciência de maneira sistematizada e intencional.
A construção de sentido histórico na história ensinada exige do professor um exercício
que transita entre história, oralidade, leitura e escrita. Nessa busca por dar sentido à história
ensinada, o professor faz um percurso didático que perpassa pela sua compreensão de história
e pelos subsídios que ele possui, pela cultura letrada que permeia a historiografia acadêmica e
escolar e pela compreensão situada do tempo-espaço em que a sua sala de aula está inserida.
Nesse sentido, quando afirmamos que a historiografia é uma prática de letramento,
estamos também destacando que o ensino de história é atravessado pelas questões de
oralidade, leitura e escrita presentes nesse constructo científico. Logo, ensinar história em
qualquer nível escolar é letrar o aluno em história, desafio que se amplia no 6º ano do ensino
fundamental, pois os alunos veem pela primeira vez essa prática de letramento: a
historiografia escolar.
A historiografia escolar se constitui em bases diferentes se comparada à escrita da
história no processo constituído pelo historiador. Entretanto, não estamos afirmando que o
texto do livro didático não é historiográfico, apenas estamos salientando que as bases que o
compõem possuem diferenças consideráveis em relação à historiografia acadêmica.
Pensar história ensinada e letramento demanda reflexão e diálogo com os campos da
linguagem e do currículo, permeados pelas questões inerentes à história, sua escrita e suas
práticas na história ensinada. Ensinar história requer de seus agentes promotores uma relação
com o mundo da vida e, logo, a construção de sentido se constitui como validade e valor no
espectro situado do ensinado.
Rüsen (2001) afirma que:
A experiência do passado representa, nesse momento, mais que a matériaprima bruta de histórias produzidas para fazer sentido, mas algo que já
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
possui, em si, a propriedade de estar dotado de sentido, de modo que a
constituição consciente de sentido da narrativa histórica se refere
diretamente a ela e lhe dá continuação (decerto com todos os demais
ingredientes que as operações conscientes do pensamento histórico
engendram). O passado precisaria poder ser articulado, como estado de
coisas, com as orientações de sentido, com as quais o agir humano organiza
suas intenções e expectativas no fluxo do tempo, precisam também elas
estar dadas como um fato da experiência. (p. 73)
Fazer sentido na história ensinada requer mais que um conhecimento da matéria a ser
ensinada; requer do professor uma imersão no tempo-espaço que constitui a sala de aula e as
nuances que o ineditismo em ato exige cotidianamente. Nesse viés, conhecer o mundo da vida
de seus alunos é fundamental na construção de suas explicações, pois possibilita que a escolha
discursiva venha impregnada de significados de partida e agregados, elementos fundamentais
na estruturação das práticas de letramento que se constituem no ensinado.
A construção das analogias típicas da narrativa/argumentativa histórica que marcam a
estética da historiografia na história ensinada solicita do professor um conhecimento situado
denso. O movimento de presente-passado-presente na construção de sentido histórico se
complexifica no ensinado, tendo em vista que cada sala e cada aula trazem consigo um grau de
ineditismo considerável.
[...] O historiador elabora sua argumentação por analogia com o presente e,
para relatar o passado, transfere modos de explicação comprovados pela
experiência social cotidiana do homem comum. É, aliás, uma das razões do
sucesso da história entre o grande público: nenhuma competência
específica é exigida do leitor para abordar um livro de história. (PROST,
2008, p. 145)
Para fazer sentido, a explicação deve ecoar no leitor e sua escrita deve ser
compreendida. Logo, não é qualquer construção analógica que servirá como explicação na
construção de sentido histórico, pois o leitor deve comungar de significados partilhados. É
importante ressaltar que a argumentação de Prost traz consigo o arcabouço social francês,
uma vez que, na França, a história goza de um prestígio que não ocorre no Brasil e no restante
do mundo ocidental.
Ao afirmar que “nenhuma competência específica é exigida”, Prost faz uma
generalização que cremos não ecoar na realidade brasileira, muito menos se a aproximarmos
do ensinado. Muitas vezes, o aluno/leitor, diante da historiografia presente em seu livro
didático, percebe-a como um texto cifrado e enigmático, ou seja, as analogias presentes nele
não fazem sentido. Esse fato, muitas vezes, é uma das razões do “fracasso” da história.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
O professor no processo de analogia e construção de sentido da história ensinada tem
um papel fundamental. Como um transeunte nos dois espaços – historiografia e realidade
situada –, ele vai construindo analogias e significações mais próximas do mundo da vida do
aluno, situando a explicação e, assim, ajudando na construção e compreensão dos alunos
acerca da história.
Retornemos à nossa afirmação anterior – fazer sentido na história ensinada requer
mais que um conhecimento da história. Na verdade, o professor de história necessita
compreender a realidade situada que cerca o ensinado e, assim como um historiador necessita
de um conhecimento de seu tempo-espaço para fazer sentido e ser compreendido, ao
professor também é necessário operar com essa premissa.
[...] esse raciocínio por analogia supõe, evidentemente, a continuidade do
tempo e, simultaneamente, sua objetivação. O movimento de vaivém entre
presente e passado [...] revela-se, aqui, fundamentalmente. Por outro lado,
ele baseia-se no postulado de uma continuidade profunda entre os homens
através dos séculos; por último, faz apelo a uma experiência prévia da ação
da vida dos homens em sociedade. Aspecto em que se encontra, de novo, o
vínculo entre compreensão e a experiência vivida. (PROST, 2008, p. 145)
Buscamos em Prost uma aproximação entre a construção estilística da história e o
processo que se desenvolve na história ensinada. As práticas de oralidade, leitura e escrita na
sala de aula estão imersas na produção de uma narrativa/argumentação sobre o passado que
o aluno deve aprender. Nesse processo, os professores, em sua maioria, buscam na
experiência prévia dos alunos elementos que possibilitem a produção de sentido no ensinado
e a compreensão da narrativa/argumentação proferida.
A aula apresenta regras e tradições que estão além do micro espaço que a compõe.
Essas tradições constituídas nas escolas estão imersas em um tempo-espaço sócio-histórico,
compostas pelo currículo em suas múltiplas dimensões.
[...] A relação do nosso dizer com as coisas (em sentido amplo do termo)
nunca é direta, mas se dá sempre obliquamente: nossas palavras não tocam
as coisas, mas penetram na camada de discursos sociais que recobrem as
coisas. Essa relação palavra/coisa, diz este autor, é complicada pela
interação dialógica das várias inteligibilidades socioverbais que
conceitualizam as coisas. (FARACO, 2009, p. 50)
Não há ensinado sem intenção e não há intenção que não esteja forjada no processo
discursivo semiótico que permeia e interpenetra nossa inteligibilidade. Dessa forma, “[...] todo
dizer não pode deixar de se orientar para o ‘já dito’. Neste sentido, todo enunciado é uma
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réplica, ou seja, não se constitui do nada, não se constrói fora daquilo que chamamos hoje de
memória discursiva [...]” (FARACO, 2009, p. 59). E ainda:
[...] todo dizer é orientado para a resposta. Nesse sentido, todo enunciado
espera uma réplica e – mais – não pode esquivar-se à influência profunda da
resposta antecipada. Neste sentido, possíveis réplicas de outrem, no
contexto da consciência socioaxiológica, têm papel constitutivo,
condicionante, do dizer, do enunciado. Assim, é intrínseco ao enunciado o
receptor presumido, qualquer que seja ele: o receptor empírico entendido
em sua heterogeneidade verboaxiológica, o “auditório social” [...] (FARACO,
2009, p. 59).
Podemos assim afirmar que todo ensinado está situado em um horizonte social e
busca em sua composição interagir com seu “auditório social”. O professor não constrói seu
enunciado em sala de aula – sua explicação – sem um procedimento avaliativo que
pressuponha uma resposta de seus alunos, e estes, “auditório social” que compõe a aula,
direcionam organização enunciativa do professor e sua potencialidade criadora e criativa.
Dessa forma, “[...] todo dizer é internamente dialogizado: é heterogeneamente, é uma
articulação de múltiplas vozes sociais (no sentido em que hoje dizemos ser todo discurso
heterogeneamente constituído) é o ponto de encontro e confronto destas múltiplas vozes [...]”
(FARACO, 2009, p.60).
A aula não se constitui isoladamente, pois ela está situada no mundo da vida e nas
múltiplas vozes que a permeiam e a interpenetram. A aula se compõe, nessa perspectiva,
como um gênero enunciativo carregado de tradições e “memórias discursivas” que
constrangem e delimitam sua organização, estética e estrutura. Ao mesmo tempo, possui em
si uma oferta de contra-palavra e de uma nova plasticidade possível, trazendo consigo
“significados de partida” (PONZIO, 2008, p. 99), que originarão novas práticas enunciativas.
A construção de sentido no processo da história ensinada é a ação que mais consome
os esforços dos professores e encaminha seus atos. Tendo essa afirmação como base, as
práticas de letramento na história ensinada são contingenciados por essa prerrogativa. Desse
modo, oralidade, leitura e escrita na disciplina escolar história são o meio pelo qual o professor
constrói sua narrativa/argumentativa, buscando estabelecer uma relação entre presentepassado-presente, tecendo suas explicações e construindo o sentido histórico no ensinado.
Ensinar história na perspectiva que pensamos é um processo de letramento que o
professor realiza transitando por práticas híbridas e construindo gêneros discursivos
autênticos do espaço da sala de aula. É importante a ressalva de que os gêneros são difíceis de
compreender e analisar, justamente porque habitam esse espaço cujo elemento fundamental
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de caracterização é o ineditismo em ato. Já que cada aula traz referências de outras aulas –
significados agregados –, efetiva-se de forma única.
Breves conclusões provisórias
As práticas de letramento escolares são interações sociais integradas pelo texto escrito
e constituídas pelas participações dos sujeitos nos processos interpretativos. A marca da
escrita esculpe a face dessas práticas, sendo assim a sociedade brasileira19, no recorte do
tempo-espaço que investigamos, compreendida como grafocêntrica, pois é estruturada pelos
elementos gráficos – fonemas e grafemas – que formam as palavras escritas em seu sentido
composto sócio-historicamente.
Por evento de letramento designam-se as situações em que a língua escrita
é parte integrante da natureza da interação entre os participantes e de seus
processos de interação (Hearth, 1982:93), seja uma interação face a face,
em que pessoas interagem oralmente com a mediação da leitura ou da
escrita (por exemplo: discutir uma notícia do jornal com alguém, construir
um texto com a colaboração de alguém), seja uma interação à distância,
autor-leitor ou leitor-autor (por exemplo: escrever uma carta, ler um
anúncio, um livro). (SOARES, 2004a, p. 105)
Nessa perspectiva, a sala de aula é historicamente um evento de letramento, de
caráter distinto e socialmente constituído de valor e validade que se estruturam mediante
condicionantes sociais situados nas práticas de letramento desenvolvidas no processo de
ensino. “É a pedagogização do letramento [...] processo pelo qual a leitura e escrita, no
contexto escolar, integram eventos e práticas sociais específicas, associadas à aprendizagem
[...]” (SOARES, 2004a, p. 107).
A especificidade das práticas de letramento que se efetuam nos ciclos finais do ensino
fundamental tem um marcador fundamental: os campos discursivos das disciplinas escolares
que compõem o currículo. Neste artigo, do mesmo modo, as práticas pedagogizadas de
letramento são compreendidas como circunstanciadas pelos campos discursivos que
constituem a disciplina escolar história.
19
Não estamos negando a existência de sociedades ágrafas no Brasil. Apenas destacamos que nosso tempo é o século XXI, ano de
2009, no espaço do Rio de Janeiro/Baixada Fluminense, e, dessa forma, nossa realidade é marcada pelas práticas letradas em seu
cotidiano.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
O letramento na história ensinada é eminentemente hibridizado, criando um novo texto, “[...]
uma nova síntese, a partir de práticas de ensino especializadas, que levam em conta questões
relacionadas às necessidades dos processos de aprendizagem20” (MONTEIRO, 2007a, p. 86).
As práticas de letramento possuem uma singularidade significativa do tempo-espaço
que as constitui de sentido e validade − o aqui e o agora que fomentam a capacidade
responsiva do enunciado −, porém não podemos esquecer que esses elementos do ato em si
estão posicionados historicamente. O reconhecimento do outro é fundamental para que a
resposta ocorra, pois o enunciado conclama o outro para uma resposta, mesmo que esta seja
o silêncio.
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20
Monteiro (2007a) operou com o conceito de transposição didática de o Chevallard (1995) articulando com Shulman.(1986).
Aprofundamos a referida questão, em diálogo com Monteiro (2001), mais adiante neste mesmo capítulo.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
A FALSA DICOTOMIS ESPAÇO ESCOLAR/NÃO ESCOLAR:
ALGUNS ELEMENTOS PARA CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE
Zacarias Marinho21
[email protected]
RESUMO
Este artigo tem por objetivo trazer uma contribuição em torno do debate sobre espaços
escolares/não-escolares. Fundamentado em Santos (2008) e Callai (1999) trazemos à discussão
a importância do espaço na sociedade e em Viñao Frago e Escolano (1998) sua importância na
educação. Vários são os autores, Graciolli e Toitio (2009); Congilio (2011); Coutinho (2005);
Trilla e Ghanem (2008), nos quais buscamos apoio para apreendermos a proliferação do
terceiro setor, enquanto espaços não-escolares, como um fenômeno da globalização. Por fim
traçamos um comparativo entre esses espaços apontando suas diferenças e semelhanças.
Concluímos considerando-os como híbridos culturais e lugares de disputa de significação.
PALAVRAS-CHAVE: Educação; Espaços Escolares; Espaços Não-Escolares.
THE FALSE DICHOTOMY BETWEEN SCHOOL/NON-SCHOOL SPACE: some elements to the
contribution of the discussion.
ABSTRACT: This paper has the objective to bring a contribution on the discussion about
school/non-school space. Based in Santos (2008) and Callai (1999) we bring to the discussion
the importance of the space in society and in Viñao Frago e Escolano (1998) your importance
on education. Some are the authors, Graciolli and Toitio (2009); Congilio (2011); Coutinho
(2005); Trilla and Ghanem (2008), in which we take support to apprehend the proliferation of
the third sector, like non-school space, a phenomenon of globalization. At the end we draw a
comparative between those spaces showing their differences and similarities. We finish
considering them as cultural hybrids and places of signification argument.
KEY-WORDS: Education; School Space; Non-school Space.
Introdução
Este artigo surgiu das discussões geradas a partir da pesquisa “As Condições Físicas e
Pedagógicas de Escolas de Mossoró: um diagnóstico sobre a organização do trabalho
desenvolvido em escolas do projeto Programa de Criança Petrobras”, desenvolvida pelo Grupo
de Estudos e Pesquisas em Currículo e Práticas Educativas, da Faculdade de Educação da
21
Doutorando do Programa de Pos-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - PROPED/UERJ.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN22. O lócus da pesquisa foram as
escolas que tinham alunos(as) inscritos no Programa de Criança Petrobras23. A necessidade
dessa discussão se apresentou ao Grupo por dois motivos: 1) devido a pesquisa ter como
requisito a presença de sujeitos comuns aos espaços escolar e não-escolar e 2) por termos
constatadas algumas confusões24, entre alunos(as) e professores(as), a respeito da atuação do
pedagogo(a) em espaços não-escolares, evidentes na indefinição sobre quais são esses
espaços e sobre alguns conceitos que estão, geralmente, relacionados a estes – Educação
Formal, Não-Formal e Informal. Essa demanda fez com que fossem organizados alguns
momentos de debates, entre os membros do Grupo, dedicados à temática dos espaços nãoescolares25.
O que entendemos então por espaço escolar e não-escolar? Espaço escolar é
compreendido aqui como uma instituição educativa, que em sua constituição formal é
reconhecida como pública ou privada (ou filantrópica), cuja dimensão pedagógica está
organizada em diferentes níveis e modalidades, a fim de propiciar uma formação geral e/ou
profissionalizante, para os quais se requer uma proposta curricular específica e sistematizada.
E, por sua natureza, está submetida ao sistema nacional de educação. Ou seja, as instituições
que são tradicionalmente conhecidas como escolas.
Por espaço não-escolar compreendemos toda instituição ou organização nãoinstitucional que, mesmo tendo por finalidade uma ação educativa, desenvolve suas atividades
de forma complementar às escolas: estudos em determinadas áreas;
cursos
profissionalizantes e/ou de outra natureza etc26. Em sua função educativa apresentam maior
autonomia em relação ao Estado por não estarem, necessariamente, submetidas ao sistema
nacional de educação e também não precisarem de uma proposta curricular sistematizada,
seja esta oficial ou alternativa.
Em sua organização, este texto constitui-se de três pontos: a importância do espaço
no processo educativo, no qual procuro mostrar que o espaço não pode ser negligenciado
nesse processo, devido influenciar o ato educativo, seja na escola, seja em outros espaços;
22
Esta pesquisa foi financiada pela FAPERN (Fundação de Apoio a Pesquisa do Rio Grande do Norte). Realizada em 2010 envolveu
professores e alunos do Curso de Pedagogia da Uern.
23
Este programa desenvolve atividades educativas com alunos de escolas públicas localizadas nos bairros mais próximos à base da
PETROBRAS na cidade de Mossoró-Rn.
24
Anterior as discussões no grupo de estudos, algumas dessas confusões foram constatadas por Vitorino (2011) em trabalho de
pesquisa, lato sensu, que teve como objeto a nova proposta curricular do Curso de Pedagogia do Campus Central da Uern.
25
Trabalharemos com os conceitos de espaço escolar e de espaço não-escolar, por entendermos que esclarecem e especificam
melhor o fenômeno da educação em diferentes espaços-tempos, que os conceitos de educação formal, não-formal e informal,
apesar das justificativas empreendidas por alguns estudiosos (GOHN, 2010), confundem mais que esclarecem sua complexidade.
26
Não incluímos aqui aquelas instituições que oferecem esses cursos, mas se constituem tipicamente em escolas, mesmo que não
sejam vinculadas ao Estado. Entre as quais podemos citar as instituições do sistema “S”, algumas ONGs e confessionais que se
mantêm como escolas.
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depois me detenho em discutir a proliferação dos espaços não-escolares no contexto da
globalização e, por fim, procuro traçar um comparativo entre espaços não-escolares e
escolares, considerando-os como espaços de hibridez cultural, portanto, com distanciamentos
e aproximações em suas configurações educativas.
A Importância do Espaço no Processo Educativo
Considerando que a sociedade humana é produtora de espaço, esta condição nos
remete à preocupação de como e por que determinados espaços são construídos
diferentemente de outros. Baseado em Santos (2008), podemos dizer de antemão que essa
diferenciação ocorre em virtude das funções sociais, políticas e econômicas, as quais estão na
base dos processos de construção dos espaços, bem como o tempo-espaço onde acontece
essa construção espacial.
Por sua vez, espaços construídos não são estáticos, construção e reconstrução se dão
permanentemente numa dialética espacial de conservação e mudança contínuas que
acompanham a dinâmica da própria sociedade. Como diz Santos (2008, p. 77), “o espaço
responde às alterações na sociedade por meio de sua própria alteração”.
Considerando que os espaços são construídos culturalmente, pois nem sempre
tiveram a configuração e a função que tem hoje, podemos afirmar que são passíveis de
mudanças, em curtos ou longos períodos, a depender das dinâmicas em curso, ou seja, são
contingentes. E ainda, o uso do espaço se dará de forma pública ou privada, conforme a
condição de cada um deles, público ou privado, a despeito de podermos identificar limitações
no primeiro e permissões no segundo.
De acordo com CALLAI (1999, p. 23),
1.1
O espaço é o palco onde acontecem os fatos, mas é também ao
mesmo tempo resultado da vida dos homens, das lutas sociais, dos
interesses econômicos e políticos. E assim ele se torna um dado a
mais na definição de como as coisas podem acontecer, interferindo
nas dinâmicas sociais, colocando limites, ou favorecendo situações.
Na verdade o espaço é ao mesmo tempo sustentáculo material do
que se sucede nos lugares e um dos elementos definidores ou
facilitadores do que pode acontecer ali.
Nesse sentido, a importância do espaço no processo educativo se constitui primeiro
pelo fato do ato educativo, como qualquer outra ação humana, não poder prescindir do
espaço. Contudo, o espaço não é apenas palco onde se desenvolve o ato educativo. Ele exerce
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influências nesse processo e é influenciado por este. Santos (op. cit.), por exemplo, considera
que o espaço contém e é contido por diferentes instâncias da sociedade. Podemos nos referir
à relação espaço-educação considerando a indissociabilidade de ambos, uma vez que estão
imbricados de tal forma que sua separação só é possível de modo arbitrário27.
A própria arquitetura dos ambientes espaços escolares se reveste de grande
importância no processo educativo28. Pois esta pode se constituir como educadora,
acolhedora, inclusiva ou repressiva. E isto vale tanto para os espaços escolares quanto para os
não-escolares, os quais, aos poucos, estamos conhecendo de forma mais sistemática.
Se pensarmos na estrutura do espaço das antigas aldeias indígenas, este revelava
uma sociedade pouco complexa, cujos membros tinham papeis bem definidos, contrastando
com o espaço social que comportava ao mesmo tempo diferentes funções. A aldeia era
moradia e escola, templo religioso e palco de festas. Essa configuração multifuncional do
espaço em nada devia, em termos educativos, as exigências do seu momento histórico, ao
tempo que atendia as exigências de aprendizagem desse momento e as necessidades do
grupo, o qual tinha o papel de educar as novas gerações pelo exemplo da tradição e pelas
oportunidades dadas aos poucos, de acordo com a idade de cada membro, até serem
reconhecidos como aptos àquilo que lhes cabiam.
À medida que as relações sociais vão tornando a sociedade humana cada vez mais
complexa, a organização espacial acompanha essa complexidade. Até um determinado
momento o espaço educativo permaneceu em casa, mas principalmente na casa do outro,
cujas crianças eram entregues para aprenderem uma profissão. Havia nesse momento a
compreensão de que a casa alheia seria mais disciplinadora que a da família e a função
educativa exercida com maior precisão.
Contudo, novas exigências sociais exigiram novos espaços, uma vez que requeriam
maior especialização. Em algumas sociedades, por exemplo, o espaço da moradia ficou
praticamente isolado em sua função doméstica, enquanto o espaço religioso e o educativo se
reencontraram, haja vista a preocupação com os ensinamentos religiosos ter um peso
significativo naquele contexto. Novamente vamos perceber que o espaço educativo se adéqua
e ao mesmo tempo influencia, revela e contribui com o momento histórico da sociedade,
mantendo a simbiose tempo-espaço. Ao contrário do que temos hoje, o processo educativo
27
Nessa perspectiva, seria melhor falarmos em espaços educativos escolares e não-escolares. Com isso descontruímos o caráter
essencialista presente em outros conceitos. Desenvolveremos essa questão em outra oportunidade, uma vez que agora queremos
apenas demarcar características diversas e comuns entre espaço escolar e não-escolar.
28
A respeito da importância da arquitetura dos espaços no processo educativo ver Viñao Frago e Escolano (1998) e Bencosta
(2005). Vale salientar que estas obras tratam especificamente do espaço escolar.
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não tinha um caráter laico. Assim, as escolas eram territórios da igreja católica e, dessa forma,
o espaço escolar revelava os interesses desta, sua doutrina e o seu papel na sociedade. Em
nossos dias, ainda percebemos a influência da religião em alguns espaços escolares, haja vista
existirem escolas pertencentes a diferentes denominações religiosas. Mesmo em escolas
públicas é possível se ver, ainda, a presença de imagens sacras e o uso de orações na rotina de
algumas delas, como permanências de um período de maior influência da igreja romana
nesses espaços29.
Na sociedade moderna, com a perda de hegemonia da igreja, o espaço escolar vai
aos poucos se desvencilhando da ingerência religiosa. A escola laica passa a ser o lócus
privilegiado do processo educativo e o seu espaço vai requerer características próprias para
exercer o papel para o qual foi pensado, em suas normas, funções e configurações. Por sua
vez, o grau de complexidade dessa nova sociedade requer também que o espaço escolar seja
organizado de modo mais complexo e assim atender necessidades cognitivas e também outras
apresentadas pela sociedade no atual contexto: questões de inclusão, étnica, gênero, sociais e
culturais demandadas dos sujeitos escolares ali presentes ou potencialmente presentes.
Apesar de considerar que a dimensão espacial da educação não era estudada nem
sistemática, nem profundamente, Viñao Frago (1998, p. 11) afirmavam:
...o uso e a distribuição do espaço escolar, sua transformação em lugar,
começa a estar na mira tanto daqueles que se preocupam com as questões
organizativas, curriculares e didáticas, quanto daqueles que, a partir das
ciências sociais, analisam os tipos de organização e distribuição espacial que
as instituições educacionais oferecem e as outras, fechadas ou demarcadas,
com as quais elas guardam certas semelhanças.
Percebemos, portanto, que a dimensão espacial tem uma grande importância, a ser
levada em consideração, no processo educativo, sem descuidarmos das intencionalidades
existentes nesta dimensão, pois sempre há relações de poder implicadas na organização do
espaço. Podemos dizer também que essas relações de poder acompanham os espaços
educativos de forma contínua, havendo mudanças contextuais, conforme as questões que são
demandadas, como é o caso do momento atual com a configuração das novas relações
internacionais ou globalização, como se tornou mais conhecido o fenômeno.
Isto vale tanto para os espaços escolares quanto para os não-escolares, daí a
importância de conhecermos melhor estes últimos, como já estamos fazendo, a fim de se ter
29
Da mesma forma, em outros espaços públicos, não-escolares, essa presença também é percebida, por exemplo, nos hospitais
públicos e presídios.
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uma melhor inserção em cada um deles, inserção esta que também não será neutra, mas
carregada de nossas subjetividades, preconceitos, visões de mundo e interesses próprios e do
grupo ao qual pertencemos. Ou seja, estes espaços, a exemplo dos espaços escolares, são
espaços de disputas de significação.
A Proliferação de Espaços Não-Escolares em Tempos de Globalização
Pretendemos nesta parte do artigo problematizar a proliferação dos espaços nãoescolares no contexto de tentativa de homogeneização econômica e cultural, fenômeno o qual
conhecemos como globalização. Ao mesmo tempo em que esse processo busca homogeneizar
o espaço, revela sua ambivalência pelo fato de fortalecer o local que reage a essa
homogeneização. Tal fortalecimento não inviabiliza a incorporação daquilo que vem de fora,
no entanto, a resistência local evidenciada pelas particularidades de cada lugar, faz com que
ocorra uma ressignificação da globalização e não uma homogeneização supostamente
pretendida.
Se considerarmos a globalização como um fenômeno antigo, podemos destacar, para
fins explicativos, três grandes momentos: o período das grandes navegações até a
independência das colônias europeias; da independência dessas colônias até a segunda guerra
mundial e desta até os dias atuais. Por outro lado, podemos considerar também a globalização
como um fenômeno muito recente, devido o grau de abrangência que tomou as relações de
interdependência entre as nações30. Saímos, assim, de um período em que tínhamos uma
globalização primitiva, passando a outras configurações nas relações entre os povos, até se
evidenciar, de forma mais explicita, um novo momento histórico das relações entre as diversas
partes do globo, da ciência, da econômica e da política.
Esta nova fase começou a se gestar, particularmente, no período pós segunda guerra
mundial e se caracterizou pela expansão de grandes empresas europeias e americanas por
todo o globo terrestre, as chamadas multinacionais, as quais foram beneficiadas pela política
econômica que ficou conhecida, no Brasil, como “substituição de importações”. Essas
empresas, uma vez instaladas passavam a influenciar política e economicamente as relações
internas dos países receptores. Contudo, se antes as riquezas exploradas eram remetidas
necessariamente aos países sedes, hoje circulam globalmente, em diferentes formas de
30
O aporte temporal que temos aqui não tem um caráter de precisão, mas tão somente a finalidade de termos uma ideia mais
geral de alguns contextos do processo de globalização.
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capital, uma vez que atualmente convém nos referirmos mais a grupos econômicos que
especificamente a empresas.
Essa circulação é potencializada por uma das coisas que mais caracteriza o atual
contexto: a sofisticação das comunicações. Utilizando-se da informática e da cibernética, as
diversas partes do nosso planeta estão em contato permanente, com transmissão de som e
imagem em tempo real, conexão de mercados e ajustes dos sistemas, à medida que assim
requer a economia.
Além disso, as tecnologias mais avançadas estão presentes em todos os âmbitos das
relações sociais, desde a produção extrativa aos serviços em geral; das atividades coletivas as
mais particulares; da pornografia à cultura mais elitista. Essa característica de generalização
não significa que a sociedade esteja preparada para absorver esta realidade em todos os
lugares, nem que as novas tecnologias estejam distribuídas igualitariamente, o que nos remete
a apreensão dos conflitos próprios desse momento histórico, incluindo-se aqui aqueles
relativos à educação.
Muitos diriam então que a escola não está preparada para atender a tais exigências.
Coincidência ou não, os organismos internacionais também tem essa compreensão e, nesse
sentido, procuram influenciar a educação dos países desenvolvidos e principalmente dos
países em desenvolvimento. O Banco Mundial, a Unesco e a Cepal, por exemplo, estendem
suas influências sobre as diretrizes educacionais em diversas partes do planeta31. Não
obstante, diríamos que não se trata de uma questão simplesmente de preparação ou não. Pois
ao se atribuir à escola o rótulo de não preparada, o que está por trás disto pode ser um
processo de deslegitimação do espaço escolar enquanto espaço mais consolidado para a
construção e disseminação do saber científico e autonomia do conhecimento, haja vista nesse
mesmo contexto se fortalecer o chamado terceiro setor32 como estratégia do capital.
Frente à reorganização do capital e da contra-reforma do Estado, o “terceiro
setor” se torna funcional ao projeto neoliberal de retirada paulatina do
Estado no que tange às ações e políticas sociais, levando à refilantropização
da questão social. O discurso dominante do “terceiro setor”, ao ampliar sua
influência, contribui para a desorganização e desmobilização dos
trabalhadores e para a despolitização do debate sobre as causas e
reprodução das desigualdades, sendo engendrada uma cultura do
possibilismo. (GRACIOLLI; TOITIO, 2009, p. 168)
31
32
A respeito dessas influências ver Castro e Lauande (2009).
Sobre o papel do terceiro setor na reforma do Estado ver Montaño (2002).
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A educação, por sua vez, é privilegiada enquanto setor de atuação das ONGs, seja no
sentido destas atuarem como instituições complementares aos direitos fundamentais das
pessoas; prevenção para evitar que crianças e jovens entrem no mundo das drogas ou na
ressocialização de dependentes destas; cuidados com a saúde e a preparação para o mercado
de trabalho, entre outras ações. Enfim, de forma direta ou indireta, atuam na educação de
crianças, jovens e adultos, constituindo-se, por essas ações, em espaços educativos nãoescolares.
Com isso o Estado se desreponsabiliza cada vez mais com a educação pública de
qualidade, abre programas de políticas compensatórias, financia o terceiro setor e instituições
de capital privado. No caso das ONGs, Congilio (2011, p. 41) mostra-nos como estas
instituições se beneficiaram com a política de descentralização das responsabilidades, por
parte da União, para com a educação:
Apresentada como descentralizadora, a municipalização transfere aos
municípios, deixando ao desígnio dos governantes locais – submetidos à Lei
de Responsabilidade Fiscal - gerir os recursos, estes centralizados e
redistribuídos pelo poder Central. Isto, em tempos de refluxo,
exaustivamente analisado, dos sindicatos e dos movimentos populares, tem
apenas servido a práticas clientelistas e proliferação de ONGs, num claro
movimento de repasse de recursos públicos para a iniciativa privada [... ].
Nesse sentido podemos afirmar que a disseminação de tais instituições educativas
cumpre um papel de legitimação dos espaços não-escolares em detrimento do espaço escolar,
uma vez que o Estado ao invés de ampliar seus investimentos para fortalecer a educação
pública, possibilita que recursos públicos sejam redirecionados para outros espaços. Outra
questão relativa à disseminação das ONGs, diz respeito ao vínculo que se estabelece entre a
instituição e os seus mantenedores, como nos chama a atenção Coutinho (2005, p. 64):
As ONGs que se imaginam no campo progressista acreditam na possibilidade
de conciliar pragmatismo com conscientização e, por isso, se diferenciariam
daquelas que colaboram com as políticas neoliberais. Mas a linha que as
separa é muito tênue. Muita ONG “progressista” sucumbe ao apelo do
assistencialismo/filantropia para se manter na ativa, mesmo porque é essa a
lógica de seus financiadores.
Esse apelo à filantropia ganha eco na grande mídia e faz com que cada vez mais se
fortaleçam a defesa de propostas de voluntariado, como amigos da escola, e de movimentos
sociais, como todos pela educação.
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Trilla e Ghanem (2008, p. 20) ao elencarem alguns fatores que justificam a
proliferação dos espaços não-escolares incluem a:
Crescente sensibilidade social para a necessidade de implementar ações
educativas em setores da população em conflito, socioeconomicamente
marginalizados, deficientes etc., seja como aspiração de avanço na justiça
social e no Estado de bem-estar, seja buscando a pura funcionalidade do
controle social. (grifos nossos)
Nesse sentido podemos indagar se a escola realmente não dá conta das exigências
desse novo contexto, ou se não dá conta de uma exigência específica deste? Qual seja, o
controle eficiente que se quer da escola. Nessa perspectiva, se já não se confia no controle da
escola, nada mais lógico que se fortalecer outras instituições a fim de que estas atendam a
uma das missões para a qual a escola de massas foi criada e já não responde suficientemente
bem. Noutra perspectiva, poderíamos indagar se a solução para os problemas atribuídos à
escola se daria nos espaços não-escolares, ou seja, se a questão não for o controle social, os
problemas de aprendizagem aos quais a escola não os responde com a eficiência que se supõe
querer, seriam resolvidos nesses novos espaços, particularmente nas ONGs?
Esta e outras indagações, para as quais não temos respostas definitivas, mas tão
somente representações diante do quadro que se evidencia no campo empírico, deverão
servir para pensarmos sobre a realidade educacional que temos em disputa, tomando a escola
e os espaços não-escolares como espaços de enunciação para além dos seus próprios espaços,
considerando influências e recontextualizações que ocorrem nesses espaços, o que os
constituem enquanto espaços híbridos.
Espaços Escolares e Não-Escolares: encontros e afastamentos
Neste terceiro momento vamos articular, de modo comparativo, os aspectos que
aproximam e distanciam os espaços escolares e não-escolares. Entendemos que a função de
educar é, ao mesmo tempo, condição sine qua non de semelhanças e diferenças que podemos
encontrar entre os dois espaços. Contudo, outros aspectos que se encontram incluídos no
primeiro, devem ser levados em consideração para uma comparação com mais elementos.
Compreender os espaços escolares e não-escolares implica em compreender como
estes espaços estão instituídos. Ou seja, é importante conhecermos normas e regras que
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permeiam esses espaços. Tão importante quanto isto é conhecermos também os sujeitos que
constroem e reconstroem permanentemente tais espaços.
Desses primeiros elementos compreensivos inferimos que tanto os espaços
escolares, quanto os não-escolares, trazem em si a condição de instituição, compostos por leis
e agentes que os conduzem33. Nesse sentido, afirmamos que a exemplo dos espaços escolares,
enquanto espaços educativos, os espaços não-escolares constroem e se pautam por um
currículo.
Isto significa que tanto os espaços escolares quanto os não-escolares, por estarem
sujeitos as múltiplas influências advindas dos seus agentes, do lugar onde estão situados e do
contexto temporal em que se encontram, são espaços de culturas hibridas, terão limites e
também possibilidades de leituras diversas, em suas respectivas ações. Assim, tomamos
ambos como texto e como discurso, no sentido empregado por Ball ao discutir as políticas
públicas (LOPES e MACEDO, 2011), o que significa que, como texto, estão abertos a diferentes
interpretações e como discurso não se permitem a qualquer interpretação. Certos discursos
nos fazem pensar e agir de forma diferente, limitando nossas respostas a mudanças e nossas
possibilidades de recriar os textos. (p. 248).
Entre os agentes, podemos considerar o Estado como o principal destes, tanto no
caso dos espaços escolares, quanto dos não-escolares. Este rege as escolas pública e privada,
normatizando seu funcionamento dentro de um sistema organizado hierarquicamente, que vai
do próprio Estado, passando pelo Ministério da Educação até o espaço escolar local, o qual se
constitui em um microssistema. Mas, também, normatiza os espaços não-escolares,
permitindo seu funcionamento nos locais requeridos; dando o aval para suas finalidades e
reconhecendo a função social destes. Ou seja, de uma forma ou de outra, espaços escolares e
não-escolares se encontram respaldados pelo Estado. Isto não significa que haja uma
determinação verticalizada entre macro e micro-espaços.
Outra semelhança entre esses espaços educativos, diz respeito à organização
hierárquica das funções. Em muitos casos os espaços não-escolares são organizados de forma
semelhante aos escolares. Geralmente são compostos de direção, coordenação e
professores/educadores, entre outras. Com papeis diferenciados na organização institucional,
estabelecem-se também relações de poder assimétricas entre esses agentes, a exemplo do
que ocorre nas instituições escolares. Além disso, o público alvo, seja alunos/estudantes em
diferentes situações de aprendizagem, está, num e noutro caso, no final dessa cadeia.
33
Os termos normas, regras e leis utilizados aqui, não têm necessariamente um sentido jurídico.
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Para não nos estendermos mais nas semelhanças, consideremos apenas mais uma
destas: o espaço físico propriamente dito. É comum uma organização espacial em que os
espaços são distribuídos de acordo com as funções que lhes são atribuídas. Por exemplo, com
algumas exceções, tanto nos espaços escolares quanto nos não-escolares, percebemos a
existência de ambientes próprios para aulas, secretaria, coordenação, direção etc. Isto mostra
a importância dessa dimensão para as instituições, independente do caráter que lhe é
imprimido: escolar ou não-escolar.
Quanto às diferenças, a exemplo das semelhanças, podemos dizer que também são
muitas. Deter-nos-emos, portanto, apenas em algumas delas uma vez que nosso propósito não
tem caráter exaustivo.
A primeira e talvez a mais importante seja o caráter complementar ou de
especialização dos espaços não-escolares em relação aos escolares. No primeiro caso, aqueles
buscam dá conta daquilo que foi considerado insuficiente por estes, tentando corrigir as
lacunas deixadas pela escola em algumas áreas, como por exemplo, na matemática ou na
língua portuguesa.
No segundo caso, dedicam-se a uma formação especializada ou
profissional, como são os casos das instituições que trabalham com teatro, música ou outras
especificidades no campo das artes.
Outra diferença importante pode ser encontrada na composição dos sujeitos
aprendentes, pois enquanto as instituições escolares estabelece formas de ingresso e
categorias mais definidas para esses sujeitos, por idade, por nível de seriação por exemplo, a
forma de ingresso e agrupamento feitos nos espaços não-escolares são menos rigorosos em
muitos casos34.
Por fim, como também apontamos semelhanças no que diz respeito ao espaço físico,
também percebemos diferenças neste entre as instituições escolares e não-escolares. De um
modo geral, os espaços escolares têm uma organização físico-espacial planejada para a função
educativa e de formação geral. Nisto são mobilizados os conhecimentos de engenharia e
arquitetura e os profissionais dessas áreas pensam e executam um projeto o qual deve levar
em consideração aspectos naturais como circulação do ar e luminosidade para um maior
conforto dos usuários desse espaço.
Já os espaços não-escolares, em muitos casos, são espaços adaptados, os quais
tinham originalmente outras funções que não aquela para a qual está sendo apropriada no
34
Isto não significa uma regra geral desses espaços. O que ressaltamos é o fato de haver uma variação maior nestes,
diferenciando-os das escolas onde tais regras são mais homogêneas.
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momento, ou seja, a função educativa, o que pode trazer desconforto aos sujeitos ali
presentes, pelo improviso da finalidade espacial.
Elencamos, assim, algumas semelhanças e diferenças, contudo, sem a intenção de
esgota-las, pois se perscrutarmos etnograficamente encontraremos outras semelhanças e
diferenças, uma vez que mesmo em espaços de natureza similar iremos encontrar aspectos
que aproximam e diferenciam as instituições, como afirma Tura (2000, p. 11): [...] cada escola
é uma unidade de vida e trabalho, que está inserida em um conjunto complexo de situações
concretas, repletas de estratégias pessoais de sobrevivência, contextos históricos e
especificidades regionais e locais [...], o que também é válido para os espaços não-escolares,
uma vez que estes em suas heterogeneidades comportam aspectos comuns entre si, mas
principalmente especificidades regionais e locais constituindo-se em unidades de vida e
trabalho. Portanto, portadores de relações de poder e de contingências contextuais, a
exemplo do que ocorre com os espaços escolares.
Considerações Finais
Procuramos aqui, até o momento, traçar uma análise comparativa que alimentasse o
debate espaço escolar/não-escolar. Nessa perspectiva, abordamos a importância do espaço
para o fenômeno educativo e, com isso, percebemos que essa dimensão influenciou e foi
influenciada pelas peculiaridades de cada momento histórico em suas contingencias
contextuais política e culturalmente.
Foi importante também mostrarmos que, apesar de não terem surgidos no atual
momento, os espaços não-escolares se expandiram quantitativa e qualitativamente no
contexto atual. Tal expansão ganhou maior expressão com o chamado terceiro setor através
das Ongs. Nesse sentido, passaram a atuar no fenômeno educativo desenvolvendo cursos
específicos e atividades complementares às instituições escolares. Contudo, tais ações não
passaram despercebidas a critica politica, uma vez que as instituições não-governamentais
também se constituíram como espaço de captação de recursos públicos, em detrimento das
aplicações desses recursos em instituições governamentais, como as escolas públicas.
Apesar de não se confundirem, pois, os espaços escolares e não-escolares, têm suas
especificidades, estes guardam aspectos comuns em sua diversidade. Atuam sob a
legitimidade do Estado; organizam seus espaços internos de acordo com a distribuição de suas
funções e aportam relações de poder e hierarquias semelhantes. Por outro lado, enquanto os
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espaços escolares, em sua tradição, mantem questões de acesso e permanência de forma mais
rigorosas, os espaços não-escolares se apresentam mais maleáveis nesses aspectos. No que diz
respeito as suas finalidades, nas escolas ocorre uma formação geral. Já nos espaços nãoescolares teremos uma formação mais especifica ou como complementar à escola.
Por fim, podemos concluir que cada um desses espaços é organizado de forma que
se aproximam e se distanciam. Compõem contextos contingentes e construções curriculares
próprias que precisam ser compreendidas como enunciação em suas particularidades e
decorrentes da hibridez cultural presentes nos espaços escolares e não-escolares.
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A LITERATURA DE CORDEL NO CURRÍCULO DA EJA:
DESAFIOS DA EDUCAÇÃO POPULAR
Dulcineide Guimarães da Mata- PPGE/UFPB
Eliane Guimarães da Silva Oliveira
RESUMO
Partindo do pressuposto de que a Educação de Jovens e Adultos deve estar pautada nos
conhecimentos prévios do educando, vislumbramos na literatura de cordel um valioso
instrumento curricular a ser utilizado nessa modalidade de ensino, abrindo inúmeras
possibilidades de tratar de forma lúdica o conhecimento de mundo dos sujeitos da EJA,
resgatando questões inerentes ao seu cotidiano que poderão ser abordadas em sala de aula e
proporcionar uma aprendizagem significativa para os envolvidos no processo educacional. O
referido estudo trata-se de uma análise bibliográfica respaldada em livros que tratam a cultura
popular, a Educação de Jovens e Adultos e a Educação Popular, buscando respaldo teórico
para a exploração do tema abordado. Buscaremos ainda, contextualizar a literatura de cordel
no espaço da sala de aula, possibilitando estabelecer as novas tendências metodológicas a
partir das orientações de estudiosos de como devem acontecer esses novos procedimentos
metodológicos. Objetivamos, enfim, apresentar uma forma de abordar os conteúdos da EJA
partindo da realidade dos educando, idealizando finalmente, a possibilidade de um currículo
vivo, dinâmico e facilitador de uma aprendizagem significativa para os alunos da EJA.
Palavras-chave: Cordel. Currículo. Educação de Jovens e Adultos.
Introdução
Observamos as diversas discussões sobre currículo nos variados espaços sociais e
com isso, nos debruçaremos sobre uma específica: o currículo da EJA. O objetivo desse texto é
contribuir, através de uma reflexão baseada em estudos do campo do currículo, sobre a
relevância da literatura de cordel na Educação de Jovens e Adultos. Pretendemos com esse
estudo abordar a importância do currículo vivo, significativo, e para tanto, nos remeteremos a
um importante instrumento de fomentação da identidade regional: o cordel.
Não pretendemos em momento algum, apresentar o cordel como uma solução
mágica para a aprendizagem do aluno da EJA. Pretendemos abordar a significância do cordel
para os alunos da EJA, as especificidades contidas no material, que estão instrísicamente
relacionadas aos fatos cotidianos da vida desse indivíduo, e que são de primordial importância
para a construção de uma aprendizagem significativa. O referido estudo trata-se de uma
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análise bibliográfica respaldada em livros que tratam a cultura popular, a Educação de Jovens e
Adultos e a Educação Popular, buscando embasamento teórico para a exploração do tema
abordado. Buscaremos ainda, contextualizar a literatura de cordel no espaço da sala de aula,
possibilitando estabelecer ás novas tendências metodológicas a partir das orientações de
estudiosos de como devem acontecer esses novos procedimentos
Na análise dos cordéis utilizados, a cultura regional aparece de forma clara e
convincente, os diversos aspectos de vida social e econômica do povo nordestino são
apresentados de forma fidedigna, retratando a realidade das lutas, vitórias, sucessos e
insucessos de um povo que, apesar das adversidades regionais e climáticas encontradas, vivem
e sobrevivem de forma natural. Objetivamos, enfim, apresentar uma forma de abordar os
conteúdos da EJA partindo da realidade dos educando, idealizando finalmente, a possibilidade
de um currículo vivo, dinâmico e facilitador de uma aprendizagem significativa para os alunos
da EJA.
Inicialmente, abordaremos um pouco da história da EJA, por percebê-la
imprescindível para nos situarmos no debate. Em seguida, discutiremos á partir de situações
reais, algumas das especificidades da literatura de cordel e as suas contribuições para o
cenário educacional como instrumento curricular. Finalmente, apresentaremos algumas das
principais concepções sobre currículo para chegarmos á proposição de uma discussão sobre as
possibilidades de novas proposituras curriculares que possam ser melhores adequadas aos
alunos da EJA.
Retomando a história da EJA
A Educação de Jovens e Adultos no Brasil tem sido um tema polêmico e
controvertido desde os seus primórdios. Inicialmente focada numa perspectiva excludente,
voltada prioritariamente para a alfabetização daqueles indivíduos a quem o acesso á
escolarização regular foi negado, a EJA trilhava um caminho sem horizontes, com uma visão
compensatória, na qual o objetivo de alfabetizar não trazia nenhuma reflexão crítica, sem um
reconhecimento da especificidade do alfabetizando. Tratava-se de um mero processo de
codificação e decodificação, um simples assinar o nome para votar.Os primeiros ensaios de
Educação de jovens e Adultos em nosso país foram pautados na mera utilização das classes
populares como instrumento ideológico, fator esse, que até os dias atuais, ainda macula essa
modalidade de ensino, apesar dos avanços nas políticas públicas para a EJA.
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O grande marco da Educação de Jovens e Adultos surgiu quando, o educador Paulo
Freire no estado do Pernambuco e o também educador Moacir Góes no Rio Grande do Norte,
iniciaram seus trabalhos de educação fundamentados em métodos e objetivos que buscavam
adequar o trabalho de alfabetização às especificidades do educando, emergindo então a
consciência de que alfabetizar adultos deferia em muito de alfabetizar crianças, se fazia
necessário propostas educacionais adequadas as realidades dos alunos.
Uma nova visão surgia na EJA por aqueles educadores: uma educação
problematizadora e crítica, onde a alfabetização e a escolarização eram definidas sob um olhar
político, dialógico e desafiador. Emerge um novo momento da EJA no país, novos desafios são
propostos e alcançados, graças ao empenho e as ideias do mestre Paulo Freire.
Enquanto ato de reconhecimento, a alfabetização deve ter como objeto
também desvelar as relações dos seres humanos com seu mundo. Dizer a
palavra é o direito de expressar o mundo, de criar e criar, de decidir, de
optar. (PAULO FREIRE, 1981, P.09)
Infelizmente esse glorioso momento da EJA durou pouco, apesar da grandeza dos
seus frutos, a educação de Paulo Freire foi podada com o golpe militar de 1964. Os
governantes não almejavam esse tipo de educação, principalmente para as classes populares e
trataram logo de elimina-la.Durante o período militar, sucessivos programas de alfabetização
de adultos foram propostos, no entanto, todos com caráter emergencial e assistencialista,
sem o menor cunho político, sem adequações curriculares ou metodológicas à faixa etária e ao
perfil socioeconômico e cultural dos educando, desconsiderando as múltiplas especificidades
regionais, levando mais uma vez aos alunos propostas vazias, sem teor problematizadora ou
crítica impedindo o indivíduo de refletir ou questionar.
Em 1990, a UNESCO institui o Ano Internacional da Alfabetização e o Brasil, como
resposta a essa iniciativa, omite-se do cenário de financiamento para a Educação de Jovens e
Adultos, acabando com os programas existentes de alfabetização. Com a promulgação da nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a Lei 9.394-96, a EJA é considerada uma modalidade da
Educação Básica nas etapas do Ensino Fundamental e Médio assumindo especificidade
própria. Surge então uma luz no fim do túnel, a EJA sai do cenário de exclusão e passa a fazer
parte efetivamente do cenário educacional brasileiro.
Na segunda metade da década de 90, evidencia-se uma articulação dos diversos
segmentos da sociedade em busca de debater e propor políticas públicas para a Educação de
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Jovens e Adultos em nível nacional. Desenha-se então um novo cenário para a EJA, onde
movimentos sociais, universidades, organizações empresariais, provocados pelas discussões da
V Conferência Internacional de Adultos (CONFITEA), articulam-se através de fóruns da EJA em
Encontros Nacionais de Educação de Jovens e Adultos (ENEJAs), levantam questionamentos e
proposituras acerca de alargar a visão sobre EJA.
Em 2000, com o processo de discussão e experiências em EJA construídos na década
anterior, foram promulgadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e
Adultos, elaborada pelo Conselho de Educação. O olhar preconceituoso do analfabeto é
superado e o aluno da EJA é visto em sua pluralidade e diversidade regional, portador de uma
vasta e importante cultura oral, que como tal deve ser valorizada e perpetuada.
Atualmente, a EJA assume uma nova roupagem, supera-se a visão da alfabetização
como ponto final do processo. Alfabetização agora é ponto de partida, o adulto que hoje busca
a EJA, anseia por uma inserção no mercado de trabalho, inserção essa que deve ser feita de
forma igualitária e justa, reconquistando então a sua autonomia. A educação é vista como um
instrumento de mudança, e como tal, se faz jus que seja permeada pela resignificação, pelo
ato de ler nas entrelinhas, de buscar sempre algo mais. As Políticas Públicas que inserem o
aluno da EJA no mundo da profissionalização já são uma realidade, os currículos estão atentos
para o sentido da EJA sob a ótica do trabalho e da realização pessoal e profissional,
subsidiando uma educação que oferece mudanças efetivas na vida do aluno da Educação de
Jovens e Adultos.
A literatura de cordel – breve ensaio
O cordel, esse gênero tão brasileiro e popular de poesia, não é uma invenção do
povo brasileiro. Essa literatura, que tem o nome de cordel porque os folhetos ficavam
pendurados em cordões nos locais de venda, foi trazida por portugueses e espanhóis. Sua
origem remonta à Idade Média quando nas praças, os trovadores divulgavam velhas histórias,
especialmente, os romances de cavalaria que contavam as epopeias do rei Carlos Magno e dos
Doze Pares de França ou de Amadis de Gaula. Narrativas de amor, guerra, heroísmo, viagens e
conquistas marítimas, além dos fatos mais recentes do dia-a-dia, eram os temas preferidos do
público. Por volta dos séculos XVI e XVII, trazidas para o Brasil, as histórias eram decoradas,
transmitidas de forma oral e enriquecidas pela memória do povo. Aqui, o cordel chegou junto
com os colonos e encontrou um solo fértil. Tanto que até hoje é uma tradição forte e viva,
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
principalmente no nordeste do país e continua sendo uma das formas de comunicação mais
autênticas nas pequenas cidades daquela região.
Quando não havia jornais, rádio ou televisão, a poesia popular ocupou esse espaço por
meio de cantorias e, mais tarde, também através da forma escrita, os folhetos eram impressos,
ilustrados em tipografias rústicas e vendidos nas feiras pendurados em cordões. Ficavam
prontos em poucas horas. Assim que um fato relevante acontece - como a vitória do Brasil em
uma Copa do Mundo, a morte de alguém famoso, secas, uma grande enchente ou mesmo um
caso de adultério-, os cordelistas produzem um relato extraoficial, popular e poético dos fatos.
Temas como a história do Brasil, de lutas, de assombrações, de fé são, também, comuns na
literatura de cordel.
Outro assunto muito divulgado nessa literatura são as dificuldades enfrentadas pelo
povo nordestino, a questão da seca que assola a região e que ocasiona a imigração daquele
povo para os grandes centros urbanos, causando dor e lamento para o sertanejo, que sem
alternativas de sobrevivência é obrigado a abandonar suas origens e buscar outros meios de
vida em terras distantes.
Após a incorporação e a difusão da Literatura de cordel nos meios de comunicação
de massa – rádio e TV-,a partir da década de 1970, esse gênero artístico despertou o interesse
de pesquisadores e educadores para a sua utilização em sala de aula como recurso didáticometodológico.No momento atual, diversas contribuições são ofertadas para a concretização
desse tema, pensadores, professores, artistas e intelectuais propõem uma verdadeira
revolução na educação de maneira que se possa contemplar as especificidades locais e
resgatar a cultura regional, a exemplo do cordelista MANOEL MONTEIRO (2007), naturalizado
em Campina Grande, defende a introdução do cordel nas escolas como instrumento
educacional de suma importância para a valorização da cultura da região
Esse gênero textual contempla diversos aspectos de importante relevância para o
processo de ensino-aprendizagem, existe um vasto conteúdo já publicado em cordel que pode
ser utilizado como recurso didático, temas de aulas e dinâmicas, viagens e descobertas,
atualidades, lendas, ficções e fenômenos naturais que tão bem representam a história e as
peculariedades da cultura do povo nordestino. Porque não associar uma leitura fácil e
prazerosa que é o cordel com as disciplinas do currículo. Além da socialização do
conhecimento, essa junção poderá perpetuar por gerações um estilo-artístico cultural que é
próprio de um povo, estar arraigado ao modo de ser e viver de uma comunidade, de uma
sociedade, e como tal, possui elementos fundamentais para a construção de um saber
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
significativo, que faz parte do cotidiano dos envolvidos no processo de ensino-aprendizado,
possibilitando um significado maior aos conhecimentos.
O currículo da EJA – perspectivas e desafios
Ao analisarmos a etimologia da palavra currículo observamos que a mesma deriva do
latim scurere, refere-se à corrida, curso a ser seguido. Logo nos remetemos a algo prédeterminado, que deve ser cumprido. No contexto educacional, visualizamos o currículo como
uma sequência estruturada, ou disciplina, o que nos leva a pensar em controle, terminologia
que até os dias atuais permeiam o sentido de currículo, isto na perspectiva aqui por nós
abordada, a escolaridade.
Com o processo de industrialização surgido nas primeiras décadas do século XX, o
currículo emerge como campo de estudo, voltado para uma abordagem tecnicista, onde a
abordagem eminente é: Qual conhecimento deve ser ensinado. Inúmeras definições do termo
currículo são propagadas, e nas teorias tradicionais refere-se basicamente aos critérios de
seleção do que se deve ensinar e os modos de ensinar. Existe uma parcialidade total nas
inferências ao currículo, é algo pronto e acabado. Nas teorias críticas o viés é diferente, ao
invés de se propor um currículo para ser executado a preocupação está em discutir e analisar o
que vem a ser realmente os conhecimentos transmitidos através do currículo.
É justamente nesse viés que focamos o currículo de EJA. A priori o situaremos nessa
perspectiva, de transmissor de conhecimentos. E para subsidiar essa teoria, utilizaremos os
ideais de Paulo Freire com relação ao currículo.
(“...) se não superarmos a prática de educação como pura transferência de
um conhecimento que somente observe a realidade, bloquearemos a
emergência da consciência crítica”. (FREIRE, 1981; 62).
Ainda que não desenvolva uma teoria específica sobre currículo, Freire em sua
genialidade demonstra uma preocupação em teorizar e buscar alternativas para questões
eminentemente curriculares. Ao criticar a “educação bancária”, Freire nos alerta para os
currículos aplicados nas escolas, onde os conteúdos são “selecionados e transmitidos” de
forma homogênea. Todos “necessitam” de receber os mesmos conhecimentos, independente
de qualquer coisa, devem ser “formados” para o mesmo fim. Todos são concebidos como seres
homogênios, passíveis de um saber único, pronto e acabado.
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
A expressão “grade curricular”, tão comumente utilizada nas escolas, nos remete a
esse sentimento de aprisionamento, o educando é aprisionado em um currículo estável,
imutável, inatingível. O potencial de criação do aluno é anulado, sufocado, cidade, esse
estimulando a sua ingenuidade e nunca o seu poder de criticidade De acordo com Freire
(1984), só existe saber na inovação, na reinvenção, na inquietação que os homens fazem no
mundo, com o mundo e com os outros. É nessa relação dialógica, de construção e
desconstrução que Paulo freire nos presenteia com a educação problematizadora, respaldada
na essência da consciência, onde o indivíduo é sujeito do seu próprio conhecimento. Assim,
esse estudioso nos define a educação libertadora.
A educação libertadora, problematizadora, (...) [ é ] um ato cognoscente
.Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser,
o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos
cognoscentes, educador de um lado, educando do outro, a educação
problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da
contradição educador-educandos.Sem esta, não é possível a relação
dialógica indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em
torno do mesmo objeto cognoscível. (FREIRE, 1984.78).
No sentido de educação problematizadora, os educando são críticos se mantêm em
constante diálogo com o educador, que proporciona ao educando a superação do
conhecimento. Para que essa superação ocorra, é viável e pertinente num currículo elaborado
e reelaborado, em parceria com os educando, levando em consideração os conhecimentos e
saberes que estes possuem, evidenciando a cultura popular como elemento básico da
construção do conhecimento significativo. Atualmente, o currículo é visto sob a ótica de
diferentes significados. Existe uma pluralidade de saberes que devem ser valorizados, e para
que ocorra essa valorização, faz jus a tomada de consciência de que não existe um som
método, único, eficaz e seguro.Existem vária facetas da construção do conhecimento que
devem ser vivenciadas.
Considerações finais
Compreender o currículo como reflexão é prática, pressupõe entender o cotidiano
como efetivo lugar de criação e recriação. Em se tratando de Educação de Jovens e Adultos,
essa compreensão abre um horizonte promissor no tocante á aprendizagem dos educando.
Um novo olhar direcionado ao currículo possibilita uma aproximação real do que deve ser
ensinado e do que deve ser apreendido, proporcionando uma maior elaboração no fazer
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
pedagógico, relevando o conhecimento de mundo do aluno da EJA em um saber cientifico,
propiciando uma aprendizagem significativa, que tão somente é um processo contínuo de
ressignificação dos saberes. A literatura de cordel possui elementos que permitem essa
aproximação entre o formal e o informal, referência uma cultura própria do educando que
deve ser valorizada e perpetuada. São fatos inerentes ao cotidiano que são apresentados de
forma lúdica e verdadeira. Cabe à escola, como palco de instituição formal, abrir suas portas
para acolher esse saber cultural primeiro que o educando traz em sua trajetória e transformálo, recria-lo. Isso se faz possível através de uma reflexão profunda acerca do currículo,
buscando transformá-lo em um currículo vivo e autêntico, integrando a cultura popular aos
conhecimentos formais, construindo as relações de aprendizagem significativa e
transformadora, passível de reflexão e de problematização, levando o sujeito a ser ator
principal do seu aprendizado não um mero coadjuvante.
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LITERATURA INFANTO JUVENIL E CURRÍCULO:
EDUCANDO PARA A SENSIBILIDADE
Rute Pereira Alves de Araújo35
Universidade Federal da Paraíba – UFPB
[email protected]
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo apresentar algumas discussões sobre literatura infantil e
currículo, percebendo, mediante a contextualização histórica de inserção da literatura infantil
no mundo o contributo desta arte à formação do homem. Nesse sentido, as discussões, que
ora se travam, acerca da política de currículo estão fortemente ligadas à questões de diversas
ordens, dentre elas podemos destacar: as de origem social e econômica; as discussões étnicoraciais e culturais; dentre tantos outros dilemas que também são tratados de maneira leve e
artisticamente produzida pelos textos literários infanto-juvenis. Diante das constatação, nos
baseamos em estudiosos da área de literatura infantil (CANDIDO, 2004/CADEMARTORI,
2012/LIMA, 2002) e currículo (ARROYO, 2011/LOPES E MACEDO 2011/PEREIRA, 2010), para
refletirmos algumas questões como: identidade, educação, ensino, currículo e literatura
infanto-juvenil.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura infanto-juvenil. Educação. Currículo.
ABSTRACT
This paper aims to present some discussion on children's literature and curriculum , perceiving
through the historical context of integration of children's literature in the world of this art
contribution to the formation of man . In this sense , the discussions , which sometimes are
waged , about politics curriculum are strongly linked to issues of various orders, among which
we highlight: the origin of social and economic ; discussions ethno- racial and cultural , among
many other dilemmas are also treated lightweight and artfully produced literary texts for
children and teenagers. Given the finding, we rely on scholars in the field of children's
literature (CANDIDO, 2004/CADEMARTORI, 2012/LIMA , 2002) and curriculum (ARROYO,
2011/LOPES And MACEDO 2011/PEREIRA, 2010) , to reflect such issues as : identity ,
education, teaching , curriculum and children's literature .
KEYWORDS : Children’s literature. Education . Curriculum.
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Aluna do doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com
pesquisa em andamento na linha de Políticas Educacionais.
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Palavras iniciais
A literatura infantil tem sua origem marcada pelo autoritarismo e função
pedagogizante, que no final do século XVIII e início do século XIX, foi responsável por “educar”
crianças e jovens dentro de um viés acrítico e submisso, de uma geração adulta que pretendia,
a partir desses textos, legar a geração mais nova seus valores e princípios. (ZILBERMAN, 1994).
É nessa época, no entanto, que surge na Europa os clássicos infantis, adaptados por
nomes consagrados e imortalizados a exemplo de Charles Perrault (1628-1703), na França; os
irmãos Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), na Alemanha; o dinamarquês
Hans Christian Andersen (1805-1875); Collodi (1826 – 1890), na Itália; Lewis Carrol (1832 1898), na Inglaterra; o americano Frank Baum (1856 – 1919); além do escocês James Barrie
(1860 – 1937). Esses e outros ícones da literatura clássica infantil são responsáveis por tornar
popular as histórias que embalaram e ainda encantam a infância de muitas pessoas no mundo,
a exemplo de: O Patinho Feio, Cinderela, Pele de Asno, Branca de Neve e os sete anões,
Chapeuzinho Vermelho, João e Maria, Pinóquio, Alice no País das Maravilhas O mágico de Oz,
Rapunzel, Peter Pan, dentre tantas outras histórias e contos que mexeram e ainda mexem com
o imaginário infantil e adulto na atualidade. (ABRAMOVICH, 1991).
É importante lembrar que, a literatura destinada a crianças e jovens, nesse período,
quando não eram escritas por pedagogos, com um intuito educativo e moralizante, eram
consideradas, refúgio de escritores fracassados, todavia, a escola dos séculos XVIII e XIX
começa a substituir as obras clássicas, até então utilizadas com objetivos de ensino da
linguagem e ensinamentos morais, por uma literatura produzida especialmente para as
crianças, mas que estava respaldada sobremaneira nos “vieses científicos” e “classistas” de
uma pedagogia e psicologia que não conseguiam compreender a infância em si mesma e
estavam arraigadas aos interesses da classe burguesa, funcionando com o intuito de
conservação e supremacia desta. (MAGNANI, 2001)
Nesse contexto, a literatura infantil assume um papel relevante na “formação” da
criança, pois como afirma Aguiar (2001, p. 17), ela “é uma forma literária escrita num léxico
especial, que procura estar de acordo com as características psíquicas da criança e responder
às suas exigências intelectuais e espirituais”. Ainda, segundo Aguiar (2001), só com o passar
dos anos é que a literatura infantil, aos poucos, abandona seu “pedagogismo” e “moralismo”
para assumir e ocupar um status artístico.
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Com o passar do tempo essas obras além de adquirirem um caráter mais artístico,
baseado numa linguagem estética que além de respeitar a faixa etária à ela destinada,
realizava através de seu conteúdo denúncias sociais, reflexões sobre identidades, gênero, etnia
e outros temas que foram ganhando espaço na produção contemporânea.
Nessa perspectiva, mediante a trajetória histórica de surgimento da Literatura infantil
e das temáticas nela abordadas, que nem sempre respeitavam os sujeitos em sua diversidade
humana, histórica e cultural, refletimos com Eduardo C. B. Bittar (2011) as possibilidades
inerentes à leitura literária como um todo, e aqui mais especificamente as leituras literárias
destinadas à crianças e jovens e sua potencialidade humanizadora e sensível, capaz de
despertar nas pessoas o sentido de solidariedade, alteridade, ética, e tantos outros valores
pouco valorizados ou escamoteados em nosso universo contemporâneo.
Assim, organizamos o presente artigo da seguinte forma: num primeiro momento
apresentamos um breve histórico do surgimento da literatura infantil no mundo afunilando ao
percurso nacional de introdução da literatura destinada às crianças no país, destacando os
ranços históricos de sua inserção social, bem como os avanços já conquistados em sua
trajetória. Defendemos aqui a leitura literária como importante instrumento de reflexão que
sensibiliza através de seus mais variados temas.
Num segundo momento, pensamos uma educação de envergadura mais humanística,
que sensibiliza. Uma educação sensível, que acontece via texto literário, percebendo o outro
em sua inteireza e diferença que se move com intuito de resistir a insensibilidade do cotidiano,
trilhando novos passos, na tentativa de construção de uma sociedade mais justa e solidária.
Em seguida buscamos, ainda que, de forma sumária e sintética, fazer uma breve
reflexão acerca de alguns títulos da produção nacional destinada a crianças e a jovens que, a
nosso ver, possibilitam momentos de interação, fruição e prazer. Temas que ainda geram
polêmica em nosso contexto social e por essa razão carecem de uma reflexão mais cuidadosa.
Acreditamos, assim, que através da força encantatória da leitura literária é possível romper
com alguns estereótipos negativos que legitimam determinados tipos de violência que
atingem alguns grupos, ferindo o direito que lhes constitui cidadãos.
Nessa perspectiva, vislumbramos no currículo espaço de luta e reflexão capaz de
alavancar processos reflexivos mais aprofundados e passíveis de mobilização entre os saberes
que vagueiam as histórias infantis e estão intrinsecamente relacionados a uma educação que
preza pela sensibilidade.
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Concluímos na esperança que as exposições aqui tecidas possam suscitar em alguns
educadores a necessidade de reflexões perenes sobre o tema, além de motivá-los na busca de
alternativas literárias/metodológicas mais dinâmicas e integradoras que respeitem os direitos
humanos, gerando um espírito mais sensível e acolhedor nas crianças e jovens, tornando-os
capazes de acolher com respeito e dignidade as diferenças e belezas que constituem o nosso
universo social.
Nos orientam na tessitura dessa produção as reflexões de Zilberman (1994), Magnani
(2001), Arroyo (2011) , Bittar (2011), dentre outros.
1 Literatura Infantil: Entre os ranços históricos e os desafios contemporâneos
Conforme vimos no início desse trabalho a Literatura Infantil surge na Europa no final
do século XVIII e início do século XIX, com objetivos pedagogizantes e moralizantes que
deixavam em segunda ordem os interesses das crianças e sua sensibilidade. Mediante esse
marco histórico a produção nacional brasileira de literatura infantil foi se consolidando
paulatinamente a partir da Proclamação da República, pois antes consumíamos apenas as
traduções e adaptações dos livros que faziam sucesso na Europa, a exemplo de As mil e uma
noites, Dom Quixote, Viagens de Guliver, dentre outros (ZILBERMAN, 1994/AGUIAR, 2001).
A partir do exposto vemos que a literatura infantil no Brasil esteve moldada nos
padrões portugueses e europeus no período entre a última década do século XIX e os anos
vinte do século XX. Desse modo, de 1921 até 1940 foi a época de auge do escritor Monteiro
Lobato e de suas obras, do final dos anos quarenta até quase 1970 ocorreu o período dos
textos infantis criados à luz do modelo lobatiano e, a partir dos anos setenta, a etapa de
reescritura dos contos de fadas e a produção de obras que polemizam a realidade social e o
cotidiano infantil, algumas destas caracterizadas pela profundidade psicológica de seus
personagens. (AGUIAR, 2001)
É importante lembrar que Monteiro Lobato, além de produzir obras destinadas as
crianças, em 1934 ele também se destacou nas traduções dos clássicos da literatura infantil,
como Grimm, Andersen e Perrault. (ARROYO, 2011).
Porém, antes de Monteiro Lobato, Zilberman (1994) aponta o aparecimento de alguns
livros com características didáticas, produzidos, sobretudo por educadores e religiosos, com
intuito puramente pedagógico e introdutores de valores e normas de conduta. Diante disso, a
autora observa a importância de Monteiro Lobato no quadro da produção literário infantil
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nacional, por começar a romper com o ideário dos padrões europeus até então propalados no
país.
Em síntese, a obra literária de Monteiro Lobato rompe com os estereótipos
sancionados na época, questiona a aceitação do que estava em vigor, além de permitir ao
leitor estímulo e formação de sua consciência crítica, relativizando o lugar ideológico em que o
leitor se situa (CADEMARTORI, 1986).
Nessa perspectiva de mudança de paradigma e relativização do lugar ideológico,
Eduardo C. B. Bittar (2011) nos elucida ainda, que através da literatura é possível desenvolver
em nós uma “quota” de humanidade, na proporção que nos permite abertura para às
questões que envolvem a natureza, a própria sociedade e por que não o semelhante, Assim:
Como seres que somos, carecemos delas, como pássaros carecem do ar para
voar. Por isso, mutilar as asas de um pássaro é cercear-lhe de um potencial
de liberdade que está contido em sua própria condição de animal dos ares.
Na mesma medida, para seres de palavras, ‘negar a fruição da literatura é
mutilar a nossa humanidade’, e, por isso, retirar-nos parte de nossa
liberdade. Se a luta pelos direitos humanos é uma luta pela liberdade
humana, fica claro que ‘a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um
estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da
cultura... (BITTAR, 2011, p. 72-73)
De acordo com o autor, para que uma sociedade assuma posturas mais justas e coesas,
se requer em primeira instância respeito aos direitos dos seres humanos e um desses direitos
é o direito à arte, e a fruição que emana da arte literária constitui um direito inalienável capaz
de abrir a perspectiva do educando/leitor à uma melhor compreensão de seu mundo interior e
o mundo que o circunda. É mediante as reflexões suscitadas no indivíduo, a partir das leituras
literárias que realiza, que ele é inevitavelmente conduzido a pensar o outro, refletindo a
condição humana através da linguagem artística, imaginação e fantasia. Nesse sentido, Bittar
(2011) assevera que uma das atribuições do educador em direitos humanos é a de sensibilizar
a provocar, valendo-se para isso de materiais artísticos os mais diversos.
No entanto, contrariando o que ora defendemos, vislumbramos em nossas escolas um
clima de hostilidade e aversão a arte, em sua concepção mais plena, bem como a própria
educação em direitos humanos fica relegada, pois ainda se faz contraditório o que é
proclamado na legislação sobre os direitos humanos e o que temos contemplado nas
experiências e dizeres do cotidiano escolar.
O atual clima de violência desenfreada que temos observado nos últimos anos no
interior das escolas é contraditório com o que se espera da educação em direitos humanos,
diante dessa constatação Vera Candau (2006) adverte que essas experiências têm conduzido
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muitas pessoas a afirmarem que os direitos humanos na atualidade constituem um discurso
vazio que têm servido mais para reforçar as situações de violência, que propriamente para
fazer refletir e servir de instrumento na promoção da paz, da justiça e da democracia.
Com base nessa constatação, que desola e desanima, a autora nos apresenta algumas
estratégias metodológicas que poderão ser utilizadas pelos educadores na promoção da
dignidade e solidariedade humana, através da educação em direitos humanos, que deverão
estar alicerçadas em metodologias ativas e participativas, utilizando para isso as diferentes
linguagens. É nesse campo de diálogos e metodologias participativas e interativas que a
literatura infanto-juvenil ganha sentido e se faz oportuna, pois através dos títulos escolhidos o
educador poderá fomentar junto aos educando fóruns de debates, círculos de palestras com
os autores dos livros lidos, recontextualização das histórias lidas fazendo link com a atualidade
e as próprias situações dinamicamente vivenciadas na comunidade escolar, dentre tantas
outras atividades que o cotidiano oportunizará.
No entanto, para que essa realidade se torne presente nos espaços escolares, urge que
a educação formal construa uma cultura escolar diferenciada, capaz de superar as estratégias
puramente frontais e expositivas, buscando produzir materiais adequados capazes de
promover uma maior interação entre o saber sistematizado acerca dos direitos humanos e os
saberes socialmente produzidos. (CANDAU, 2006).
Nesse sentido, Candau (2006) chama a atenção para que a cultura dos direitos
humanos permeie todo campo educativo, se fazendo presente no cotidianos escolar e tendo
como referência a própria realidade.
Sob esse prisma, acreditamos que por intermédio das artes de um modo geral, e de
forma mais especial a partir da própria literatura infantil o educador encontrará meios para
aprofundar reflexões acerca dos aspectos constitutivos do ser humano, sua natureza, direitos,
deveres, suas necessidades lutas e, sobretudo a ética e os valores constitutivos de cada ser
humano que deve ser respeitado em suas diferenças.
Todavia, reconhecemos que a atual estrutura curricular tem se preocupado mais na
doutrinação curricular que tenta à todo custo homogeneizar as massas, desconsiderando com
isso a diversidade cultural intrínseca a cada povo, comunidade e/ou grupo social. É com base
nessa constatação que refletimos a estruturação curricular de nossas escolas e questionamos
quais conhecimentos tem sido validados nesses contextos? Quais saberes são priorizados em
detrimentos dos demais? A quem serve determinado conhecimento? Que tipo de pessoa é
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formada com base nos currículos que dispomos? É possível se formar para a sensibilidade,
alteridade e respeito à diversidade com o atual currículo que temos?
Sabemos que esses questionamentos não serão respondidos a curto nem a médio
prazo, mas são questões que precisam ser cuidadosamente pensadas.
2 Educação Humanística e Literatura Infantil: resistindo a insensibilidade do cotidiano
Eduardo C. B. Bittar, nos evidencia que ao comunicar verdades que não poderiam ser
ditas em outras linguagens, a obra de arte se faz transgressora, e isso ocorre porque ela opera
num léxico de liberdade que contraria a lógica da realidade, ensinando que é possível galgar
novos caminhos além do circunscrito no cotidiano. Nesse sentido, a arte existe como uma
força de resistência, por falar o indizível de forma sedutora, sem imposições autoritárias.
(BITTAR, 2011)
Na visão de Bittar (2011) um dos maiores desafios da educação em direitos humanos
seria o de gerar sensibilização. Nesse sentido, seria oportuno questionar em que a educação
em direitos humanos tem se esforçado para alcançar esse objetivo? A partir de quais
elementos seria possível educar para a sensibilidade? Será possível a partir da arte e
compreensão estética ser mais sensível? A literatura pode contribuir nessa tarefa? De que
modo?
Essas e outras questões, possivelmente suscitados a partir do tema, não têm a
pretensão de serem respondidas, mediante respostas estanques que cristalizam determinados
modelos, mas refletidas, maturadas e analisadas no intento de tecer caminhos que conduzam
à uma nova metodologia de trabalho, a partir de uma educação para a sensibilidade, através
da estética, especialmente, as artes literárias. Assim, pensando com Marcel Proust,
defendemos que:
Se o gosto pelos livros cresce com a inteligência, seus perigos, como vimos,
diminuem com ela. Um espírito original sabe subordinar a leitura à sua
atividade pessoal. Ela não é para ele senão a mais nobre das
distrações,sobretudo a mais enobrecedora, pois, somente a leitura e o saber
dão as ‘belas maneiras’ do espírito. O poder de nossa sensibilidade e de
nossa inteligência, não podemos desenvolvê-lo senão em nós mesmos, nas
profundezas de nossa vida espiritual. (PROUST, 2011, p.52)
Nesse sentido, começar um trabalho de educação para a sensibilidade com crianças e
jovens seria de importante valia, uma vez que é a partir desses sujeitos que se constrói e se
pensa melhoria para a sociedade vindoura, através da formação para o espírito de
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
solidariedade, exercício da liberdade responsável, respeito à diversidade e conseguinte
construção de uma sociedade mais democrática, crítica e sensível.
Sendo assim, a leitura de obras literárias realizada com crianças e jovens pode
despertar a sensibilidade, abrir horizontes de humanidade e solidariedade junto aos seus
pares, mediante a identificação do leitor com as personagens e tramas das histórias lidas.
Assim, a leitura de obras literárias se constitui um recurso importante no exercício da
tarefa de sensibilização, pois é mediante a vastidão de temas tratados na literatura em suas
múltiplas criações, sejam elas poéticas, ficcionais e/ou dramáticas que a humanidade e sua
cultura é refletida. É diante dos textos literários que o homem pode se ver representado
perante a humanidade e perante si mesmo. Pois conforme assinala Michèle Petit (2009,
p.108), os textos literários lidos “abrem caminho em direção à interioridade, aos territórios
inexplorados da afetividade, das emoções, da sensibilidade; tristeza ou a dor começam a ser
denominadas.” Assim, ao dividir sentimentalidades com a voz da narrativa, o autor que
empresta a voz para dar vida ao enredo por ele narrado, poetizado, problematizado,
questionado e/ou descrito, abre passagem à intimidade do leitor e suas subjetividades. (PETIT,
2009)
As artes, especialmente a literária, também contribuem para que o homem conheça a
si mesmo e outras culturas mediante a linguagem nela utilizada que é capaz de ampliar o
vocabulário de seu leitor, sendo fator imprescindível à humanização, confirmando o homem
em sua humanidade, através do alcance do saber, exercício da reflexão, afinamento das
emoções, sentido de beleza, cultivo do amor, capacidade de adentrar nos problemas da vida
cotidiana, apresentando o microcosmo das relações, enfim o direito à literatura: “desenvolve
em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos
para a natureza, a sociedade e o semelhante”. (CÂNDIDO, 2004, p.180)
3. Literatura humana e Currículo
Em artigo sobre Direitos Humanos e currículo escolar, o educador chileno Abraham
Magendzo (2002), afirma que:
Intentando redefinir el sentido de la educación en derechos humanos, hay
que decir con mucha claridad que ésta debe constituirse en un factor de
democratización y modernización de nuestras sociedades. El respeto y
vigencia de los derechos humanos forma parte no sólo el área de la
democracia política, sino que también Del área de la democracia cultural y
educacional. Si se desea ‘ingresar’ y ‘transitar’ hacia una sociedad
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
democrática hay que reconocer que la dignidad humana es central y que
hay necesidad de potenciar el tejido intercultural de nuestra sociedad. Estos
rasgos son las condiciones necesarias para la apertura al mundo globalizado.
Sobre dicha base, es posible la construcción de una moderna ciudadanía, en
la cual ‘el sujeto, es ser productor y no solamente consumidor de su
experiencia y de su entorno social’ y en donde la modernidad, además de
progreso económico, tecnológico y social, será sobre todo ‘exigencia de
libertad y defensa contra todo lo que transforma al ser humano en
instrumento o en objeto’( MAGENDZO, 2002, p.05)
Tomando por base o que expõe Magendzo (2002), percebemos que o outro não se
configura mais como objeto de uma relação que outrora se fez na verticalidade autoritária,
mas o outro é também sujeito, e portanto, interlocutor em diálogo, construto de uma relação
em que ambos se dão a conhecer. Assim, “Na literatura de hoje, no entanto, referências
políticas, sociais, culturais ganham multiplicidade e voltam-se à afirmação da diferença e do
lugar do outro.” (CADEMARTORI, 2012, p. 53).
É com base nessa perspectiva mais atual acerca das relações estabelecidas entre o
texto e o leitor, elencadas por Lígia Cademartori, que visualizamos que a identidade do leitor é
reconfigurada, portanto não é fixa, mas instável; não inata, mas construída a cada dia no
decurso de nossa história que também se reconfigura e toma relevos e matizes plurais,
móveis, em perene processo construtivo.
Essa vertente da literatura infantil contemporânea, segundo Lígia Cademartori (2012)
está mais voltada ao reconhecimento das múltiplas identidades dos leitores, bem como da
consideração dos diferentes grupos sociais como sujeitos mensageiros de uma cultura em que
os olhares se misturam, numa dança mágica que não permite mais ideias cristalizadas e
imagens estereotipadas produzidas sobre o outro e repassadas como verdades inquestionáveis
e absolutizadas que desrespeitam a diferença, silenciando por vezes o discurso alheio.
Nessa dança múltipla de sentidos outras leituras ganham espaço, e não apenas as do
cânone, mas as nossas próprias histórias, os “causos” do cotidiano, do imaginário popular e do
folclore vão se reconfigurando e ganhando novas nuances, reconstruindo novos sentidos e
permitindo cada vez mais que outras janelas se abram para que novas e /ou velhas e repetidas
histórias entrem na roda e se abram à multiplicidade cultural, anteriormente velada; às vozes
antes silenciadas, em síntese à diferença, pois a “A obra literária deixa vazios por onde
podemos ingressar com nossa imaginação, nossa experiência, nossa capacidade para
completar e refazer o narrado.” (CADEMARTORI, 2012, p.50).
Na busca incessante de construirmos um currículo para a diferença que considere a
diversidade imanente dos sujeitos, se faz pertinente compreendermos a própria condição de
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
sujeitos que temos construído contemporaneamente, por essa razão refletimos com Lopes e
Macedo (2011), que a pré-condição para a ação política é considerarmos o sujeito não mais em
sua inteireza como antes se via, ou seja de identidades sólidas, cristalizadas em um tempo
histórico, onde não se cogita a dinâmica dos processos políticos, sociais, culturais e todas as
outras dimensões que nos identificam e nos constroem, mas um sujeito cindido, cuja falta se
constitui em condição lacunar que nos move na construção perene de novas dinâmicas
processuais da política escolar, que não destoa em momento algum dessa pré-condição do
sujeito, desse modo: “A ação de mudança é o horizonte da estrutura, o excesso de sentido que
não pode ser simbolizado a não ser como lugar vazio.” (LOPES e MACEDO, 2011, p. 253).
Com base nessa perspectiva, tomamos por base uma parte da estética da recepção
que considera relevante a interação entre o texto e o leitor na estrutura dos textos narrativos,
a partir das estruturas vazias que compõem a própria trama desses textos. Assim, é mediante
essas estruturas vazias contidas nos textos que o leitor é convidado a preencher no ato da
leitura com aspectos de sua experiência social, afetiva, política, enfim mediante aspectos de
sua conjuntura identitária que entrelaçadas à essas leituras dão sentido a obra, permitindo
que o leitor interaja com ela, recriando a própria obra de modo particular, livre, portanto
impossível de controlar, mas dinamicamente produzido (LIMA, 2002).
Nessa ótica Lopes e Macedo (2011, p. 253) alertam que:
[...] não havendo estruturas fixas e centradas, a ordem social só pode ser
criada por relações hegemônicas precárias. A sociedade como um todo
estruturado e fixo, pré-discursivo ou extradiscursivo, não existe, pois sempre
há um excesso de sentido a ser simbolizado, algo do que não se consegue
dar conta, jogos de linguagem que podem produzir novas significações
contingentes.
A leitura destinada a crianças e jovens, em sua multiplicidade de títulos e temas,
cumpre com essa tarefa de não fechar em ideias fixas as identidades dos sujeitos, mas
trabalhá-la com base no vazio que opera de forma criativa e permite ao leitor interagir de
modo particular com a obra, ressignificando e contextualizando os assuntos ali tratados
mediante aspectos intrínsecos a sua própria cultura e identidade. Por essa razão a obra
literária, nunca se dará no fechamento conclusivo das respostas prontas e previamente
elaboradas, mas dinamicamente produzidas, a partir do ato da leitura, as obras ganham novos
relevos e se renovam perenemente, graças ao leitor e seu contexto que a ela se entrecruza.
O escritor mineiro Bartolomeu de Campos Queirós, em memória às experiências de
leitura realizadas em sua infância, declara que:
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Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino
Eu abria o livro e soletrava, vagarosamente, cada palavra. Elas invadiam o
mais fundo de mim instalando novos anseios, diferentes obstáculos e tantas
paredes. Mas com o livro eu atravessava os muros, rompia com o caminho
dos fantasmas, penetrava no entendimento possível a mim. Todo livro era
uma parede que ao me revelar o escondido me propunha outros encontros.
A leitura me desequilibrava. Cada metáfora estreava mais ambiguidades e,
consequentemente, mais escolhas. (QUEIRÓS, 2012, p.45)
Nessa perspectiva, apontada pelo autor e através das variadas modalidades de leitura
e ficção como os mitos, os contos, as lendas, a poesias, as peças de teatro, os romances e
muitos outros é possível visualizar os pontos que unem a humanidade em seus mais variados
contextos, pois: “as paixões humanas, os desejos e os medos ensinam às crianças, aos
adolescentes, aos adultos também, não pelo raciocínio, mas por meio de uma decifração
inconsciente, que aquilo que os assusta pertence a todos” (PETIT, 2009, p.116).
A partir do exposto, podemos vislumbrar em algumas obras nacionais destinadas as
crianças e aos jovens, matizes dessas dores e amores que unem as pessoas através da leitura
de alguns títulos da produção nacional que rompem com os estereótipos que se criam. A guisa
de uma primeira reflexão podemos ver no título: “O Menino maluquinho” , do mineiro Ziraldo,
escrita em 1980, o rompimento com o estereótipo da criança comportada, mas que por outra
via recebe o nome de “Maluquinho” por não se adequar e/ou se enquadrar as estruturas
fechadas de uma sociedade, que reprime e tende a homogeneizar comportamentos e atitudes.
Nessa luta em busca do desbravamento e conquista de seu espaço o menino consegue romper
com alguns paradigmas, transgredindo, por muitas vezes normas e conceitos que tendem a
reprimir a criatividade nata da criança em fase de desenvolvimento.
Figura 1 – capa do livro “O menino Maluquinho” de Ziraldo, ver:
http://www.ziraldo.com/menino/mm7.htm
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Nessa produção o cartunista, escritor e jornalista Ziraldo, consegue transmitir via
imagem e texto escrito a figura de um menino esperto e criativo que resiste ao que está posto
socialmente como normalidade, e mostra através de sua presença forte, alegre, divertida, livre
e diferente de ser que o mundo é um lugar para todos. A história mostra, também o lado
sentimental desse menino que em meio a tantas peraltices, brincadeiras e estripulias, chora
escondido, escreve bilhetinhos e compõe canções para suas dez namoradas, e mesmo em
meio as travessuras e “maluquices” preserva seus segredos e intimidade.
A produção de Ziraldo, nos ajuda a refletir os direitos da criança e através da força
encantatória da palavra nos conclama a construção de um mundo mais humano e justo para
com a infância, que tem o direito de viver sua liberdade de forma criativa e dinâmica, enfim de
ser ela mesma, de ser feliz.
Já na narrativa infantil “Raul da ferrugem azul”, escrito em 1979, pela escritora Ana
Maria Machado – a insatisfação com injustiças e atitudes desumanas e agressivas, nos instiga a
mudarmos as nossas atitudes e retirarmos as ferrugens que nos impedem de tomarmos
atitudes diferenciadas; lutando contra a violência do cotidiano, não calando diante das
injustiças e dos maus tratos que a minoria social sofre.
Figura 2 – Capa do livro: “Raul da ferrugem azul” de Ana Maria Machado
Ver: http://www.leituracritica.com.br/apoioprof/aprecia/021anamachadoraul.asp
Diferente do “menino Maluquinho” de Ziraldo, Raul é um menino tímido e quieto que
começa a enfrentar um grande dilema quando começa a perceber que manchas azuis estão
tomando conta do seu corpo: ora essas manchas aparecem, nos braços, ora nas pernas, ora na
língua e até na garganta. Raul insatisfeito com isso e intrigado porque não sabe o que ocasiona
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essas manchas que ninguém parece ver, apenas ele, começa a procurar ajuda e nesse estágio
ele também começa a perceber que determinadas acontecimentos do cotidiano estão
fortemente imbricados a essas pintas azuis que se espalham em seu corpo.
Assim, num estágio de reflexão e intimidade com ele mesmo, o menino Raul atenta
para o fato de que apenas quando situações de injustiça, covardia e violência ocorrem em sua
presença e ele se cala, mesmo sentindo vontade de retrucar ou questionar o que ocorre, é que
as manchas então aparecem.
É nesse momento que Raul encontra a chave para a cura desse mal e descobre que
estas estranhas manchas tratam-se de ferrugens, ou seja, toda vez que ele se depara com
situações de injustiça, que, requerem dele, tomada de atitude e ele se cala e/ou não se
manifesta, as manchas aparecem, e ele enferruja. Enferruja sua capacidade de contestar e
questionar o que acontece, de tomar atitudes mais práticas em prol dos que a sua frente
sofrem algum tipo de injustiça. É nesse momento que Raul começa a fazer a diferença e não
sufoca mais a sua vontade de lutar pelo o que é justo, de falar pelos que estão em situação de
inferioridade e percebe com satisfação que as ferrugens começam a desaparecer.
Através dessa história carregada de imagens conflitantes e desafios sociais o leitor
mirim é convidado a reagir diante das dificuldades do cotidiano, a não se acovardar diante de
situações de conflito, preconceito e injustiça, pois através dessa tomada de atitudes é que
poderemos vencer as nossas inseguranças e medos e é justamente por essa razão que essa
história é um título recomendável à uma educação que se pretende sensibilizadora e
humanística, pois constitui uma narrativa sensível, bela, criativa e ao mesmo tempo instigante
e desafiadora.
Outra história, também da professora, jornalista e escritora Ana Maria Machado, que
merece o nosso olhar crítico e reconhecimento de seu contributo incontestável à literatura
infantil, é: “Menina Bonita do laço de fita”, que mediante uma linguagem simples e por vezes
poética, apresenta com singeleza ideias que rompem com o preconceito racial ao se
reconhecer a beleza negra.
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Figura 3 - Capa do livro: “Menina bonita do laço de fita” de Ana Maria Machado.
Ilustrações de Walter Ono.
Assim, através das palavras do coelho que se repetem ao longo da narrativa ao
questionar: “Menina bonita do laço de fita, qual o teu segredo para ser tão pretinha?” as
crianças enveredam em mão oposta, ao que se propala numa sociedade com fortes influências
ocidentais de branqueamento e preconceitos raciais, pelo insistente desejo do coelhinho de se
tornar negro.
É possível verificar logo no início dessa narrativa que a beleza da menina é enaltecida.
O texto inicia com a força encantadora do “era uma vez” e enfatiza a beleza da menina através
de afirmativas, como: “Era uma vez uma menina linda, linda.”, “Os olhos pareciam duas
azeitonas pretas brilhantes”, “os cabelos enroladinhos e bem negros.”, “A pele era escura e
lustrosa, que nem o pelo da pantera negra na chuva”, e para dar sentido ao título da história a
autora completa afirmando que “a mãe gostava de fazer trancinhas no cabelo dela e enfeitar
com laços de fita coloridas.”, complementa afirmando que “Ela ficava parecendo uma princesa
das terras da áfrica, ou uma fada do Reino do Luar.” (MACHADO, 1997)
Seguindo essa trilha de valorização da negritude está o livro “O menino Marrom” de
Ziraldo, que mesmo intitulado de marrom é perceptível, em todas as belíssimas ilustrações que
compõem a obra, a negritude do menino, que tendo a cor da pele igual ao mais puro chocolate
se acostumou em chamar-lhe de “preto”.
A beleza desse menino é retratada no teor da história, em que se enaltece os seus
olhos bem pretos e os dentes claros e certinhos que até parecem teclas de piano; a beleza,
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simpatia e inteligência do menino são descritas no decurso de toda narrativa através de
adjetivos afetuosos que valorizam a cor do menino.
Figura 4 – Capa do livro: “O menino marrom” de Ziraldo
Os livros “O menino marrom” e “Menina bonita do laço de fita”, são títulos que podem
ser trabalhados com as crianças pequenas com intuito de divertir, apreciar, brincar e ao
mesmo tempo desmitificar os estereótipos que foram se configurando ao longo de nossa
trágica história nacional de escravidão, bem como dos ranços que amargamos até os dias
atuais através de histórias de preconceito racial, que se propalam nos mais variados contextos.
É por essas e outras razões, aqui destacadas, que a leitura desses títulos se fazem
relevantes ao trabalho de sensibilização e reflexão política e por essa razão são importantes a
um modelo de educação mais sensível, se forem trabalhadas dinamicamente valorizando-se os
processos interativos que o leitor poderá estabelecer com o texto lido.
Outra narrativa dedicada a crianças e jovens que também rompe com alguns
estereótipos é “O gato que gostava de cenouras” de Rubem Alves, que numa linguagem
humana, encantadora e carregada de afetos trata da temática da homoafetividade, rompendo
com termos pejorativos, excludentes e preconceituosos que “normalmente” se veiculam aos
relacionamentos e identidades homossexuais nos mais variados contextos sociais.
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Figura 5 - Capa do livro: “O gato que gosta de cenouras” – Rubem Alves, ilustração André Ianni. Ver:
http://www.rubemalves.com.br/
Nessa história o gato Gulliver, também chamado de “Gulinho”, se mostrava diferente
dos outros gatos, que costumeiramente são apreciadores de peixes, ratos e passarinhos,
contrariando esse modelo tido como “normal”, o que “Gulinho” gosta mesmo é de comer
cenouras, o que numa terra de gatos é considerado aberração, motivos de chacotas e
gracinhas na escola e vergonha para os pais. Os pais de Gulinho não são conhecedores desse
seu gosto e comer cenoura se torna um ato secreto.
No entanto, os pais de Gulinho sofriam, pois não o viam se alimentado do que os
outros gatos se alimentavam e padeciam com isso, pois achavam seu filho diferente, e é
mediante essa percepção da diferença que eles o seguem e descobrem o seu “estranho” gosto
por cenouras. Diante dessa descoberta o pai de Gulinho vai procurar ajuda as mais diversas,
que em nada conseguem “sanar” esse “estranho” gosto, no entanto o professor de Gulinho ao
perceber o drama que ele enfrenta tem com ele uma longa conversa e o faz perceber que a
sua diferença está no DNA e ninguém tinha nada com isso.
Nesse fragmento resumido da história percebemos a dolorida trajetória do gato que
ao se perceber diferente e certamente tendo conhecimento do contexto de preconceito e
exclusão que enfrentaria, caso assumisse sua condição identitária, opta por velar seu desejo,
reprimindo e/ou ocultando seu desejo. No entanto seus pais o descobrem e procuram “sanar”
essa diferença como se ela fosse uma doença que tivesse que ser ocultada, porém com a ajuda
do professor esse gato compreende melhor sua diferença e consegue, aliviado, assumir sua
identidade.
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Outra história que corrobora com essa é da escritora Márcia Leite, intitulada: “Olívia
tem dois papais”. A narrativa trata com delicadeza, beleza e sentimento a história da menina
Olívia que é adotada por dois homens – Raul e Luís que mantém uma relação homoafetiva. A
história se desdobra na descrição de fatos do cotidiano de uma menina em fase de
desenvolvimento que tem dúvidas, anseios e sabe conseguir o que deseja de seus pais, com
um jeitinho inteligente e meigo que só ela sabe fazer.
No entanto, Olívia tem dúvidas e deseja ardentemente saber como aprenderá a se
maquiar, usar salto e outras coisas que as mulheres fazem, se não há em sua casa nenhuma
mulher para ensiná-la?
Figura 6 – Capa do livro: “Olívia tem dois papais” de Márcia Leite
Em “O menino que brincava de ser” de Georgina da Costa Martins, visualizamos
questões da diversidade humana, heterossexualidade e formação identitária infanto-juvenil,
que se prefiguram em contextualizações híbridas, de imanente busca de respeito à
diversidade, procura da liberdade e reivindicação do direito de livre expressão. A narrativa
também assegura que a escola e a família são lugares de afeto e apoio para as crianças.
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Figura 7 – Capa do livro: “O menino que brincava de ser” de Georgina da Costa Martins
O menino Dudu, personagem principal de: “O menino que brincava de ser”, junto com
seus amigos gostam de brincar e interpretar vários papéis, e no faz-de-conta, peculiar da
infância, eles descobrem a maravilha da diversidade e se desdobram nos mais variados papéis,
no entanto os pais e avós próximos das crianças começam a estranhar essa liberdade de
expressão de Dudu, pois o garoto em muito se identifica com os papéis femininos. A partir
desse olhar adulto e desconfiança dos mesmos em relação ao seu comportamento, Dudu,
passa a ser vítima de gozações e preconceitos, simplesmente por encarar a cor do mundo de
um jeito diferente e livre. Assim, como os pais de Gulinho, em “O gato que gostava de
cenouras”, os pais de Dudu o levam à psicólogos e endocrinologistas, na tentativa de “curar”
essa possível doença.
Nas questões aqui tratadas, especialmente, nas três últimas obras, brevemente
descritas, percebemos a possibilidade de se trabalhar na escola junto as crianças a temática da
homoafetividade, muito embora esse ainda seja um tema polêmico, pois:
Existe uma tendência de instituições e indivíduos negarem ou tentarem
esconder da sociedade, e principalmente da criança, a sexualidade,
sobretudo a homoafetividade. Percebemos que há certo receio em relação à
criação de obras infantis que abordem a homoafetividade, e talvez certo
temor, por parte de alguns autores, de que suas obras, quando analisadas,
sejam rotuladas de homoafetivas. (MACHADO, 2009, p.20)
Questões dessa envergadura desembocam no tipo de currículo que construímos e
concebemos, entendendo que as questões que envolvem currículo numa educação de cunho
mais humanítica, são caracterizadas pela complexidade, sendo assim uma zona de conflitos,
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tensão, e por essa razão problemática, pois: “Establecer una relación estrecha entre el
curriculum y la educación en derechos humanos, significa, entre otras cosas, incorporar en el
proceso de seleccionar, organizar transferir y evaluar el conocimiento curricula” (MAGENDZO,
2002, p.1-2), assim, os sentidos do currículo e seu estado de permanente construção
desembocam na compreensão do homem como sujeito de direitos, comprometido com a vida.
Pois o currículo pode ser entendido não apenas numa visão fragmentada, mas como
“... uma síntese de elementos culturais (conhecimento, valores, hábitos, crenças, etc.) que
formam uma proposta político-educacional, elaborada e sustentada por diversos setores
sociais, com interesses diferentes e também contraditórios.” (SOUTHWELL, 2008, p 126)
Considerações inconclusivas
Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente
como aqueles que pensamos ter deixado pasar sem vivê-los, aqueles que
passamos na companhia de um livro preferido.
(Marcel Proust, 2011, p.9)
Com base no que temos nos debruçado no percurso desse artigo é possível refletir
com Magendzo (2002) que a Pedagogia Crítica e a Educação em Direitos Humanos são capazes
de produzir mudanças significativas na educação, sem obrigatoriamente assumir uma posição
radical, mas procurando manter um posicionamento crítico, que contribuirá inevitavelmente à
uma mudança de cunho mais global, capaz de permear as esferas da educação e do currículo
com a justiça social, através da discussão e empoderamento dos que cultural, social e
politicamente sofrem descriminações que atentam a sua condição humana e cidadã à exemplo
da pobreza, os processos de discriminação e preconceito, a paz, conceituações de gênero e
etinia, racismo, homofobia, etc.
Nessa ótica, pensamos que uma educação de envergadura mais humana, não poderá
acontecer no ambiente escolar, no campo dos conhecimentos disciplinares, mas tomada como
parte integral de todo campo educacional que não se bitola única e exclusivamente a sala de
aula, mas se amplia as dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais, na democratização
social e no respeito e exercício efetivo dos direitos humanos como princípio norteador da
democracia. (MAGENDZO, 2012)
Corroborando com o autor acreditamos que as temáticas supracitadas são de uma
envergadura política social complexa, que carecem serem permanentemente discutidas e
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refletidas desde a mais tenra idade, por essa razão defendemos, nesse trabalho a leitura de
textos literários infanto-juvenis circunscritos nesse patamar de discussões que podem
contribuir à sensibilidade do leitor diante de temas polêmicos e atuais através de uma
linguagem artística, produzida num léxico de respeito à idade da criança e do jovem.
Defendemos uma literatura que não “pedagogiza”, mas sensibiliza através do poder
encantatório das palavras, conclamando o indivíduo a tomada de decisões mais respeitosas e
humanas em relação ao outro. É através da força imaginativa e criativa despertada nas leituras
literárias que a criança e o jovem realiza, que se pode adentrar num mundo mais humano e
sensível.
É por intermédio da majoritária produção literária infanto-juvenil e seus títulos que
convocam à solidariedade e humanidade, convidando o leitor a se ver na obra lida e através
dessa identificação – autopoiesis - resignificar suas antigas práticas. (BITTAR, 2011). Pois
conforme alerta Bartolomeu de Campos Queirós (2012, p.91): “Ter em mãos um livro literário
é defrontar-se com o desequilíbrio.” E é esse desequilíbrio que nos move na busca da
estabilidade, e é nessa busca que temos noção da nossa fragilidade, tão humana, tão presente,
enfim é no limiar de nossa frágil condição de ser que também nos abrimos aos afetos e a
sensibilidade imanentes da arte literária.
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SENTIDOS E SIGNIFICADOS DO ESTABELECIMENTO DE
UMA POLÍTICA CURRICULAR
Idelsuite de Sousa Lima36
Resumo
O presente trabalho resulta de uma pesquisa sobre o estabelecimento de uma política
curricular estadual. Tem como objetivo compreender sentidos constituintes e constituidores
do processo de efetivação de uma reforma educativa estadual a partir da qual a proposta
curricular foi estabelecida. Para a realização deste estudo foi utilizado como procedimento
metodológico uma pesquisa documental, cuja composição inclui os documentos oficiais e
documentos da ordem do dia de uma escola. O trabalho tem como base de sustentação
autores do campo da História e do campo da Educação. Para entender os desdobramentos de
uma política do conhecimento escolar, autores como Lopes (1995; 2011); Ball (1994; 2008);
Sacristàn (2000), entre outros referenciam o estudo. Os resultados indicam que a
materialidade das fontes expressa dimensões de uma política do conhecimento escolar na
institucionalização da política educacional estadual. Assim, as estratégias educativas
estabelecidas pelas políticas públicas da educação estadual que consolidaram a reforma
educativa expressam diferentes sentidos e significados na construção histórica da política
curricular.
Introdução
O presente trabalho resulta de uma pesquisa sobre o estabelecimento de uma política
curricular estadual realizada a partir de uma pesquisa documental. Investiga sentidos e
significados constituintes e constituidores do processo de efetivação de uma reforma
educativa estadual, seus entraves e possibilidades na consecução de uma política curricular.
O trabalho procura desvelar sentidos imanentes ao processo de consolidação de uma
política educacional e dos desdobramentos gerados a partir da efetivação da reforma
educativa, cuja culminância foi a deliberação de uma política do conhecimento escolar.
Nesse sentido, o trabalho busca entender a trajetória percorrida pela política
educacional, vislumbrando traçados e delineamentos da efetivação da proposta curricular.
Expressam-se sentidos e significados que envolvem os percalços de elaboração e divulgação da
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Professora da Universidade Federal de Campina Grande.
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reforma educativa, com destaque às formas de persuasão, de investimento ou de deslinde da
política curricular.
Faço, então, uma narrativa do processo de divulgação da proposta tentando
compreender, em uma primeira instância, os alinhavos que foram se constituindo na
similaridade discursiva da Secretaria Estadual de Educação, da Regional de Ensino e da Escola.
Assim, focalizo a trajetória da reforma educativa estadual, com suas percursos,
percalços e roteiros entrelaçados no mapa educacional, ao tempo em que tento situar a
organização administrativa do Estado naquele momento histórico, as modificações sociais,
políticas, econômicas e culturais e sua relação com a política do conhecimento escolar.
Sentidos constituidores de uma política educacional estadual
Para compreender o processo histórico de institucionalização de uma política do
conhecimento escolar apresento aspectos da política educacional que deram origem à
proposta curricular.
O êxito de uma proposta de mudança na educação depende de muitos fatores que
envolvem relações de poder, de finalidades éticas e políticas, mas também da adesão e
envolvimento dos educadores. Detentora de uma retórica inovadora, a proposta pautou-se
pela via da gestão, quer na condição de diretriz norteadora de uma política do conhecimento
escolar, quer na forma de divulgação e implementação do currículo, o que reforça a noção de
que ‘forma e conteúdo’ não se separam. O conteúdo está sempre envolto numa certa forma e
esta pode ser tão importante quanto os possíveis efeitos dos conteúdos.
A gestão, de acordo com Ball (2001) tem sido mecanismo chave tanto na reforma política
quanto na reengenharia cultural e representa a introdução de um novo modelo de poder no
setor público. No rol dos novos paradigmas dos processos de reforma, a gestão desempenha
uma nova cultura de desempenho como forma de gerar uma reconfiguração institucional.
Segundo Ball (2001:105) os processos de reforma não se prendem simplesmente à introdução
de novas estruturas e incentivos, mas também exigem e trazem consigo novas relações,
culturas e valores.
As condições nas quais aconteceu o estabelecimento da reforma curricular trazem na
sua configuração continuidades e descontinuidades, permanências e rupturas pelas quais foi
passando a história da educação ao longo dos anos. Tem como marco de sua construção um
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projeto administrativo estadual no qual, dentre outros aspectos, a educação ganhou
visibilidade.
Ainda que a referida política sinalize ou contemple outros pontos de destaque, a
proposta curricular constitui o eixo referencial da política do conhecimento escolar. A edição
de uma proposta curricular desseminando uma política cultural aconteceu quase que
paralelamente ao advento dos parâmetros nacionais às escolas, causando um certo
empanturramento de proposições.
O que poderia conferir à escola uma diversidade de propostas para discussão sobre o
currículo depara-se com a informação textual de que a proposta incorpora e ou adapta os
PCNs (Ceará, SEDUC, 1997:01), e com a deliberação de sua efetivação. Além disso, o fato de a
proposta estabelecer o formato de organização do ensino em ciclos, que, pela natureza da
mudança, altera a dinâmica da escola, rouba a cena da discussão sobre a reforma em si. A
reforma curricular passa a ser objeto de preocupação apenas no que se refere ao sistema de
organização do ensino.
O empenho dos idealizadores da proposta em persuadir os professores e diretores dando
destaque a aspectos sociais, políticos, pedagógicos e administrativos reforçam os princípios da
administração pública naquele período: sustentabilidade, visão de longo prazo, participação e
transparência.
Esses princípios destacados com ênfase pelos gestores, como parte do convencimento
para assegurar a implantação da proposta, traziam embutidos outros discursos de instâncias
nacionais e internacionais definidoras de políticas educacionais, revigorados pelo ‘discurso da
mudança’ estadual, tão em voga naquela gestão administrativa e, difundido também pelas
práticas educacionais locais. Associo as táticas da produção da política do conhecimento
escolar à interatividade a que se refere Lingard (2004), no sentido de que há confluência entre
as esferas de implementação das políticas mediadas pelas práticas locais.
Tais confluências ocorrem simultaneamente configurando sentidos diversos concorrendo
para o entendimento de que as políticas influenciam as práticas e estas contribuem para o
fortalecimento das políticas (Lopes, 2011), na inter-relação entre as políticas e as práticas
(Lima, 2012), em que há imbricamento de textos e discursos na configuração curricular tanto
do texto prescrito quanto do texto em ação.
A prescrição curricular
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Nesta parte do trabalho destaco aspectos relacionados com a prescrição a partir da
qual a política do conhecimento escolar foi estabelecida. Trata-se do Projeto Escola Viva: a
organização do ensino em ciclos levado a efeito na educação estadual.
A reforma curricular estabelecida, embora relacionada com acordos e negociações da
política educacional nacional e internacional, resulta também de uma perspectiva interna
fomentada pelo discurso de mudança, sintonizado também com a escola, confirmando a tese
de que os processos macro e micro se articulam formando interfaces com outras políticas
setoriais, conforme a abordagem do ciclo de políticas (Ball, 1994).
O lançamento de uma propositura curricular envolve textos, contextos e atores sociais
acarretando desdobramentos que relacionam-se a formas muito específicas em torno do
processo de escolarização. Para Sacristàn (2000:35): o condicionamento cultural das formas de
conceber o currículo tem importância determinante na concepção própria que se entende por
tal e nas formas de organizá-lo.
Não se pode esquecer que em torno de determinadas ações estão envolvidos projetos
sociais dirigidos, crenças coletivas e marcos institucionalizados, como afirma Sacristàn
(1999:30).
Para este autor o que acontece no mundo educativo tem muito a ver com os agentes
que dão vida, com suas ações, às práticas sociais que acontecem nos sistemas educacionais.
Tais ações deixam vestígios, geram expectativas, uma vez que, como diz Arendt (1993) agir é
condição do ser humano, o que potencializa a expressividade da pessoa que age.
De acordo com Sacristàn (2000:118) a ordenação e a prescrição de um determinado
currículo por parte da administração educativa é uma forma de propor o referencial para
realizar um controle sobre a qualidade do sistema educativo. Ainda que seja salutar a
diversidade de opiniões em torno de questões educativas, a variedade de discursos ressignifica
o debate de forma a atender às finalidades educacionais naquele momento.
A estranheza diante da inovação curricular é diluída em meio à concretude da política
educacional e ao fluxo de comunicação entre as instâncias educacionais contribuindo para a
mediação realizada em torno da implantação da reforma. Essa mediação em torno do currículo
torna-o, nas palavras de Sacristàn (2000:34), uma opção cultural, um projeto seletivo de
cultura, cultural, social, política e administrativamente condicionado, que preenche a atividade
escolar e que se torna realidade dentro das condições da escola tal como se acha configurada.
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VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
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