Não digas nada!

Transcrição

Não digas nada!
Antologia
O Guardador de Rebanhos
(1911-1912)
Alberto Caeiro
I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr do Sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
É se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do Sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural –
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
08.03.1914
II
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...
08.03.1914
III
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...
IV
Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos...
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê – eu não tinha medo –
Pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...
Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquilamente, como o muro do quintal;
Tendo ideias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...
Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente e visível
Ou que julgará dela?)
(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós...
Ali, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)
E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega...
V
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
«Constituição íntima das cousas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
VI
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...
VII
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
VIII
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas...
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
«Se é que ele as criou, do que duvido» –
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
IX
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
X
«Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa ?»
«Que é, vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz ?»
«Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram.»
«Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.»
XI
Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
XII
Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras cousas
E cantavam de amor literariamente.
(Depois – eu nunca li Virgílio.
Para que o havia eu de ler?)
Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a Natureza é bela e antiga.
XIII
Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.
XIV
Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra,
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior.
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento...
XV
As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou...
Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente)
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira...
Devo ser todo doente – ideias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.
Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são a paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário...
XVI
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças – tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
XVII
No meu prato que mistura de Natureza!
As minhas irmãs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza...
E cortam-as e vêm à nossa mesa
E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tendo mantas
Pedem «Salada», descuidosos...,
Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela tem,
As primeiras cousas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde a pomba apareceu
O arco-íris se esbateu...
XVIII
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...
Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...
XIX
O luar quando bate na relva
Não sei que cousa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas...
Se eu já não posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?
XX
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
XXI
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...
XXII
Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...
Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?
Quando o Verão me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...
XXIII
O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo.
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol...
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço.
Para não parecer que penso nisso...)
XXIV
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir ?
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
XXV
As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.
13.03.1914
XXVI
Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Por que sequer atribuo eu
Beleza às cousas.
Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então por que digo eu das cousas: são belas?
Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as cousas,
Perante as cousas que simplesmente existem.
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!
13.03.1914
XXVII
Só a Natureza é divina, e ela não é divina...
Se falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às cousas,
E impõe nome às cousas.
Mas as cousas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande a terra larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...
Bendito seja eu por tudo quanto sei.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol.
XXVIII
Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.
XXIX
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De, que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés –
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...
XXX
Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.
O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.
Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.
XXXI
Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.
XXXII
Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu – não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos, uns com os outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.
(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com o florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa – existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.)
E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?
XXXIII
Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram para o Primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...
XXXIV
Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas...
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente...
Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.
XXXV
O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
E, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.
XXXVI
E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.
XXXVII
Como um grande borrão de fogo sujo
O sol posto demora-se nas nuvens que ficam.
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
Deve ser dum comboio longínquo.
Neste momento vem-me uma vaga saudade
E um vago desejo plácido
Que aparece e desaparece.
Também às vezes, à flor dos ribeiros,
Formam-se bolhas na água
Que nascem e se desmancham
E não têm sentido nenhum
Salvo serem bolhas de água
Que nascem e se desmancham.
XXXVIII
Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu,
E nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural – mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral...
XXXIX
O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: –
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
XL
Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
07.05.1914
XLI
No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...
Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão...
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos...
Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo
Porque a imperfeição é uma cousa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o Mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ver e ouvir...
07.05.1914
XLII
Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a acção humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias.
07.05.1914
XLIII
Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!
07.05.1914
XLIV
Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca
Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...
07.05.1914
XLV
Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes.
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de cousa a cousa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!
07.05.1914
XLVI
Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.
Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.
10.05.1914
XLVII
Num dia excessivamente nítido,
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas ideias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.
XLVIII
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.
XLIX
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986.
Antologia
Poemas Inconjuntos
Alberto Caeiro
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo
Passa um momento uma figura de homem.
Os seus passos vão com «ele» na mesma realidade,
Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas:
O «homem» vai andando com as suas ideias, falso e estrangeiro,
E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar,
Olho-o de longe sem opinião nenhuma.
Que perfeito que é nele o que ele é – o seu corpo,
A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças,
Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar.
20-4-1919
Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos,
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira ver que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.
O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão sujas.
Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta.
12-4-1919
Verdade, mentira, certeza, incerteza...
Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.
Estou sentado num degrau alto e tenho as mãos apertadas
Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.
Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?
O cego pára na estrada,
Desliguei as mãos de cima do joelho.
Verdade, mentira, certeza, incerteza são as mesmas?
Qualquer cousa mudou numa parte da realidade – os meus joelhos e as minhas mãos.
Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?
O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real é isto.
12-4-1919
Uma gargalhada de rapariga soa do ar da estrada.
Riu do que disse quem não vejo.
Lembro-me já que ouvi.
Mas se me falarem agora de uma gargalhada de rapariga da estrada,
Direi: não, os montes, as terras ao sol, o sol, a casa aqui,
E eu que só oiço o ruído calado do sangue que há na minha vida dos dois lados da
cabeça.
12-4-1919
Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.
12-4-1919
Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.
Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles,
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!
Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
Mil passos que desse para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.
Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais
Para qual fui injusto – eu, que as vou comer a ambas?
Tu, místico, vês uma significação em todas as cousas.
Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma cousa oculta em cada cousa que vês.
O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa.
Para mim, graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as cousas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada.
Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação.
12-4-9919
Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas –
Que felicidade é essa que pareces ter – a tua ou a minha?
A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te ?
Não, nem a ti nem a mim, pastor.
Pertence só à felicidade e à paz.
Nem tu a tens, porque não sabes que a tens.
Nem eu a tenho, porque sei que a tenho.
Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol,
Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas noutra cousa indiferentemente,
E me bate na cara e me ofusca, e eu só penso no sol.
12-4-1919
Dizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm ideias sobre o mundo?
Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.
Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.
Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.
Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.
Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,
Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, «é uma pedra»,
Digo da planta, «é uma planta»,
Digo de mim, «sou eu».
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?
A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.
Tenho escrito bastantes poemas.
Hei-de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.
Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada,
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Uma vez chamaram-me poeta. materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.
7-11-1915
Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo a flores tornam, ou as folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.
7-11-1915
Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.
Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.
Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva –
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão –
Porque não tinha que ser.
Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.
7-11-1915
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter pref erências.
O que for, quando for, é que será o que é.
7-11-1915
Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.
Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão urn acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.
Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da jenela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?
8-11-1915
Nunca sei como é que se pode achar um poente triste.
Só se é por um poente não ser uma madrugada.
Mas se ele é um poente, como é que ele havia de ser uma madrugada?
8-11-1915
Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem; cada um como é.
8-11-1915
Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja esse o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de «interpretar» a erva verde sobre a minha
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.
sepultura,
8-11-1915
Se o homem fosse, como deveria ser,
Não um animal doente, mas o mais perfeito dos animais,
Animal directo e não indirecto,
Devia ser outra a sua forma de encontrar um sentido às cousas,
Outra e verdadeira.
Devia haver adquirido um sentido do «conjunto»;
Um sentido como ver e ouvir do «total» das cousas
E não, como temos, um pensamento do «conjunto»;
E não, como temos, uma ideia, do «total» das cousas.
E assim – veríamos – não teríamos noção do «conjunto» ou do «total»,
Porque o sentido do «total» ou do «conjunto» não vem de, um total ou de um conjunto
Mas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes.
1-10-1917
O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as cousas – eis o erro, a dúvida.
O que existe transcende para mim o que julgo que existe
A Realidade é apenas real e não pensada.
1-10-1917
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
1-10-1917
Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade.
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada,
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos,
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.
1-10-1917
O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.
1-10-1917
Estas verdades não são perfeitas porque são ditas,
E antes de ditas pensadas.
Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias
Na negação oposta de afirmarem qualquer cousa.
A única afirmação é ser.
E ser o oposto é o que não queria de mim.
1-10-1917
A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em um ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.
1-10-1917
De longe vejo passar no rio um navio...
Vai Tejo abaixo indiferentemente.
Mas não é indiferentemente por não se importar comigo
E eu não exprimo desolação com isto.
É indiferentemente por não ter sentido nenhum
Externo ao facto [...] navio
De ir rio abaixo sem [...] de metafísica
Rio abaixo até à realidade do mar.
1-10-1917
Creio que irei morrer.
Mas o sentido de morrer não me move,
Lembro-me que morrer não deve ter sentido.
Isto de viver e morrer são classificações como as das plantas.
Que folhas ou que flores têm uma classificação?
Que vida tem a vida ou que morte a morte?
Tudo são termos onde se define.
(?) [Um verso ilegível e incompleto.]
1-10-1917
A noite desce, o calor soçobra um pouco.
Estou lúcido como se nunca tivesse pensado
E tivesse raiz, ligação directa com a terra
Não esta espécie de ligação de sentido secundário observado à noute.
À noite quando me separo das cousas,
E m'aproximo das estrelas ou constelações distantes
Erro: porque o distante não e o próximo,
E aproximá-lo é enganar-me.
1-10-1917
Estou doente. Meus pensamentos começam a estar confusos
Mas o meu corpo, tirado às cousas, entra nelas.
Sinto-me parte das cousas com........
E uma grande libertação começa a fazer-se em mim;
Uma grande alegria solene como a de eu estar vem
(?) [Um verso ilegível.]
1-10-1917
Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das cousas
O natural é o agradável só por ser natural.
Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno –
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no facto de aceitar –
No facto sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.
Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?
O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,
Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto do Verão
E o frio da terra no cimo do Inverno.
Aceito por personalidade.
Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência,
Nunca ao defeito de exigir do Mundo
Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo.
24-10-1917
Seja o que for que esteja no centro do Mundo,
Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,
E quando digo «isto é real», mesmo de um sentimento,
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,
Vejo-o, com uma visão qualquer fora e alheio a mim.
Ser real quer dizer não estar dentro de mim.
Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade.
Sei que o mundo existe, mas não sei se existo.
Estou mais certo da existência da minha casa branca
Do que da existência interior do dono da casa branca.
Creio mais no meu corpo do que na minha alma,
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade.
Podendo ser visto por outros,
Podendo tocar em outros,
Podendo sentar-se e estar de pé,
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.
Existe para mim – nos momentos em que julgo que efectivamente existe
Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo.
Se a alma é mais real
Que o mundo exterior, como tu, filósofo, dizes,
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade?
Se é mais certo eu sentir
Do que existir a cousa que sinto –
Para que sinto
E para que surge essa cousa independentemente de mim
Sem precisar de mim para existir,
E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível
Para que me movo com os outros
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo?
Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente.
E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas.
Cousa por cousa, o Mundo é mais certo.
Mas por que me interrogo, senão porque estou doente?
Nos dias certos, nos dias exteriores da minha vida,
Nos meus dias de perfeita lucidez natural,
Sinto sem sentir que sinto,
Vejo sem saber que vejo,
E nunca o Universo é tão real como então,
Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim,
Mas) tão sublimemente não-meu.
Quando digo «é evidente», quero acaso dizer «só eu é que o vejo»?
Quando digo «é verdade», quero acaso dizer «é minha opinião»?
Quando digo «ali está», quero acaso dizer «não está ali»?
E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia
Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos,
E o primeiro facto merece ao menos a precedência e o culto.
Sim, antes de sermos interior somos exterior.
Por isso somos exterior essencialmente.
Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo.
Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia,
Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, um filosofia minha,
E isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu?
24-10-1917
Pouco me importa.
Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa.
24-10-1917
A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.
Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer cousas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química directa da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as cousas pré-humanas, mesmo no homem
Paz à essência inteiramente exterior do Universo
24-10-1919
Todas as opiniões que há sobre a natureza
Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Toda a sabedoria a respeito das cousas
Nunca foi cousa em que pudesse pegar, como nas cousas;
Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?
Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito
Tem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem.
Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas.
29-5-1918
Navio que partes para longe,
Por que é que, ao contrário dos outros,
Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?
Porque quando te não vejo, deixaste de existir.
E se se tem saudades do que não existe,
Sinto-a em relação a cousa nenhuma;
Não é do navio, é de nós, que sentimos saudade.
29-5-1918
Pouco a pouco o campo se alarga e se doura.
A manhã extravia-se pelos irregulares da planície.
Sou alheio ao espectáculo que vejo: vejo-o,
É exterior a mim. Nenhum sentimento me liga a ele.
E é esse sentimento que me liga à manhã que aparece.
29-5-1918
Última estrela a desaparecer antes do dia,
Pouso no teu trémulo azular branco os meus olhos calmos,
E vejo-te independentemente de mim;
Alegre pelo critério que tenho em poder ver-te
Sem «estado de alma» nenhum, sonho ver-te.
A tua beleza para mim está em existires
A tua grandeza está em existires inteiramente fora de mim.
29-5-1918
A água chia no púcaro que elevo à boca.
«É um som fresco» diz-me quem não está a bebê-la.
Sorrio. O som é só de chiar.
Bebo a água sem ouvir nada com a minha garganta.
29-5-1918
O que ouviu os meus versos disse-me: Que tem isso de novo?
Todos sabem que uma flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi, nem todos, [...]
Porque todos amam as flores por serem belas, e eu sou diferente.
E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra, mas eu não.
Eu amo as flores por serem flores, directamente.
Eu amo as árvores por serem árvores, sem o meu pensamento.
29-5-1918
Ah! querem uma luz melhor que
a do Sol!
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas
que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores
contentam-me.
Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol
que o Sol,
O que quero é prados mais prados
que estes prados,
O que quero é flores mais estas flores
que estas flores –
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!
12-4-1919
Gozo os campos sem reparar para eles.
Perguntas-me por que os gozo.
Porque os gozo, respondo.
Gozar uma flor é estar ao pé dela inconscientemente
E ter uma noção do seu perfume nas nossas ideias mais apagadas.
Quando reparo, não gozo: vejo.
Fecho os olhos, e o meu corpo, que está entre a erva,
Pertence inteiramente ao exterior de quem fecha os olhos –
À dureza fresca da terra cheirosa e irregular;
E alguma cousa dos ruídos indistintos das cousas a existir,
E só uma sombra encarnada de luz me carrega levemente nas órbitas,
E só um resto de vida ouve.
20-4-1919
Vive, dizes, no presente;
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
19-7-1920
Hoje de manhã saí muito. cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...
Não sabia por [que] caminho tomar
Mas o vento soprava forte, varria para um lado,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.
Assim tem sido sempre a minha vida, e
assim quero que possa ser sempre –
Vou onde o vento me leva e não me
Sinto pensar.
13-6-1930
Primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã.
As primeiras nuvens, brancas, pairam baixas no céu mortiço,
Da trovoada de depois de amanhã?
Tenho a certeza, mas a certeza é mentira.
Ter certeza é não estar vendo.
Depois de amanhã não há.
O que há é isto:
Um céu de azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte,
Com um retoque de sujo embaixo como se viesse negro depois.
Isto é o que hoje é,
E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo.
Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?
Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovoada de depois de amanhã
Será outra trovoada do que seria se eu não tivesse morrido.
Bem sei que a trovoada não cai da minha vista,
Mas se eu não estiver no mundo,
O mundo será diferente –
Haverá eu a menos –
E a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada.
10-7-1930
Também sei fazer conjecturas.
Há em cada cousa aquilo que ela é que a anima.
Na planta está por fora e é uma ninfa pequena.
No animal é um ser interior longínquo.
No homem é a alma que vive com ele e é já ele.
Nos deuses tem o mesmo tamanho
E o mesmo espaço que o corpo
E é a mesma cousa que o corpo.
Por isso se diz que os deuses nunca morrem.
Por isso os deuses não têm corpo e alma
Mas só corpo e são perfeitos.
O corpo é que lhes é alma
E têm a consciência na própria carne divina.
*
A neve pôs uma toalha calada sobre tudo.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo de animal e vagamente penso,
E adormeço sem menos utilidade que todas as acções do mundo.
*
É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.
Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986.
Addiamento
(14-4-1928)
Álvaro de Campos
Depois de àmanhã, sim, só depois de àmanhã...
Levarei àmanhã a pensar em depois de àmanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O somno da minha vida real, intercalado,
O cansaço anticipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um electrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de àmanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar àmanhã no dia seguinte...
Elle é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-hei á secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de àmanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de àmanhã...
Quando era creança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha
infancia...
Depois de àmanhã serei outro,
A minha vida triunphar-se-ha,
Todas as minhas qualidades reaes de intelligente, lido e práctico
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de àmanhã...
Hoje quero dormir, redigirei àmanhã...
Por hoje, qual é o espectaculo que me repetiria a infancia?
Mesmo para eu comprar os bilhetes àmanhã,
Que depois de àmanhã é que está bem o espectaculo...
Antes, não...
Depois de àmanhã terei a pose publica que àmanhã estudarei.
Depois de àmanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de àmanhã...
Tenho somno como o frio de um cão vadio.
Tenho muito somno.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de àmanhã...
Sim, talvez só depois de àmanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
(Solução Editora, I, Lisboa, 1929)
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
Anniversario
(13-6-1930)*
Álvaro de Campos
No tempo em que festejavam o dia dos meus annos,
Eu era feliz e ninguem estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer annos era uma tradição de ha séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus annos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a familia,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de supposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-provincia,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui – ai meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distancia!...
(Nem o echo...)**
O tempo em que festejavam o dia dos meus annos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme atravez das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um phosphoro frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus annos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo physico da alma de se encontrar alli outra vez,
Por uma viagem metaphysica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que ha aqui...
A mesa posta com mais logares, com melhores desenhos na louça, com
mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, fructas, o resto na sombra
debaixo do alçado –,
As tias velhas, os primos differentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus annos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço annos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o fôr.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus annos!...
15 de Outubro de 1929
(Presença, 27, Lisboa, Junho-Julho, 1930)
*Data real do poema, a do aniversário de Pessoa (a fictícia, no fim, corresponde ao aniversário
de Campos), aposta no testemunho ms. 70-49 a 51)
**Na Presença, o que parece ser gralha: «acho»
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
Apontamento
Álvaro de Campos
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Cahiu pela escada excessivamente abaixo.
Cahiu das mãos da creada descuidada.
Cahiu, fêz-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossivel? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que ha debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a creada d'elles fêz de mim.
Não se zangam com ella. (1)
São tolerantes com ella.
O que eu era um vaso vasio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si-mesmos, não conscientes d'elles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à creada involuntária. (2)
Alastra a grande escadaria atapetada de estrêllas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou alli. (3)
(Presença, 20, Coimbra, Abril-Maio, 1929)
(1) Na Presença: «zanguem», que parece gralha.
(2) Na Presença: «a creada», sem acento.
(3) Na Presença: sem ponto final.
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
[Dact.]
Álvaro de Campos
Esta velha angustia,
Esta angustia que trago ha seculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lagrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estylo de pesadello sem terror,
Em grandes emoções subitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar-entre,
Este quasi,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicomio é, ao menos, alguem.
Eu sou um internado num manicomio sem manicomio.
Estou doido a frio,
Estou lucido e louco,
Estou alheio a tudo e egual a todos:
Estou dormindo disperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...
Pobre velha casa da minha infancia perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia socegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, a por aquelle manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de Africa.
Era feiissimo, era grotesco,
Mas havia nelle a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crêr num manipanso qualquer –
Jupiter, Jehovah, a Humanidade –
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!
16/6/1934
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
Insomnia
(27-3-1929)
Álvaro de Campos
Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insomnia da largura dos astros,
E um bocejo inutil do comprimento do mundo.
Não durmo; não posso ler quando accordo de noite,
Não posso escrever quando accordo de noite,
Não posso pensar quando accordo de noite –
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Ah, o opio de ser outra pessoa qualquer!
Não durmo, jazo, cadaver accordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me succederam
– Todas aquellas de que me arrependo e me culpo –;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não succederam
– Todas aquellas de que me arrependo e me culpo –;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até d'essas me arrependo, me culpo, e não durmo.
Não tenho força para ter energia para accender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fôsse o universo.
Lá fóra ha o silêncio d'essa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra occasião qualquer,
Noutra occasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Estou escrevendo versos realmente sympathicos –
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fóra d'elles e de mim!
Tenho somno, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciencia sem de quê,
Salvo o necessario para sentir consciencia,
Salvo – sei lá salvo o quê...
Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande somno em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande somno em tudo excepto no poder dormir!
Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia egual a este, a ser seguido por outra noite egual a
esta...
Vem trazer-me a alegria d'essa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doiam-me as costas de estar deitado de
lado.
Vem, madrugada, chega!
Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para extender uma mão para o relogio,
Não tenho energia para nada, nem para mais nada...
Só para estes versos, escriptos no dia seguinte.
Sim, escriptos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escriptos no dia seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fóra.
Paz em toda a Natureza.
A humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exactamente.
A humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A humanidade esquece, sim, a humanidade esquece,
Mas mesmo accordada a Humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
Lisbon Revisited
(1923)
Álvaro de Campos
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estheticas!
Não me fallem em moral!
Tirem-me d'aqui a methaphysica!
Não me apregoem systemas completos, não me enfileirem conquistas
Das sciencias (das sciencias, Deus meu, das sciencias!) –
Das sciencias, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se teem a verdade, guardem-a!
Sou um technico, mas tenho tecnnica só dentro da technica.
Fóra d'isso sou doido, com todo o direito a sel-o.
Com todo o direito a sel-o, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, futil, quotidiano e tributavel?
Queriam-me o contrario d'isto, o contrario de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciencia!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sòzinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sòzinho.
Já disse que sou só sòzinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
Ó céu azul – o mesmo da minha infancia –,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outr'ora de hoje!
Nada me daes, nada me tiraes, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abysmo e o Silencio quero estar sòzinho!
(Contemporânea, 8 de Fevereiro de 1923)
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
Lisbon Revisited
(1926)
Álvaro de Campos
Nada me prende a nada.
Quero cincoenta coisas ao mesmo tempo.
Anceio com uma angustia de fome de carne
O que não sei que seja –
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
Fecharam-me todas as portas abstratas e necessarias.
Correram cortinas por dentro de todas as hypotheses que eu poderia
ver da rua.
Não ha na travessa achada o numero de porta que me deram.
Accordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exercitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta – até essa vida...
Comprehendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tedio que é até do tedio arroja-me á praia.
Não sei que destino ou futuro compete á minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossivel aguardam-me naufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra cousa, nem cousa nenhuma...
E, no fundo do meu espirito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos ultimos da alma, onde memóro sem causa
(E o passado é uma nevoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longinquas
Onde supuz o meu ser,
Fogem desmantelados, ultimos restos
Da ilusão final,
Os meus exercitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas cohortes por existir, esfaceladas em Deus.
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infancia pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fóra de mim?
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –,
Transeunte inutil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruido dos ratos e das tabuas que rangem
No castello maldito de ter que viver...
Outra vez te revejo.
Sombra que passa atravez de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho magico em que me revia identico,
E em cada fragmento fatidico vejo só um bocado de mim –
Um bocado de ti e de mim!...
Não se seguiu o texto publicado em Contemporânea, em Junho de 1926, por excessivamente
defeituoso, mas o testemunho dactilografado que lhe parece ter servido de base.
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
Magnificat
Álvaro de Campos
Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que dispertarei de estar accordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossivel de fitar.
As estrellas pestanejam frio,
Impossiveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossivel de escutar.
Quando é que passará este drama sem theatro,
Ou este theatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida,
Quem tens lá no fundo?
É Esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu accordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma: será dia!
(07 de Novembro de 1933)
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
Ode Marítima
Álvaro de Campos
a Santa Rita Pintor
Sózinho, no cais deserto, a esta manhã de verão,
Ólho pró lado da barra, ólho pró Indefinido,
Ólho e contenta-me vêr,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com êle, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Ha uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque êle está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Ólho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos comsigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros portos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É – sinto-o em mim como o meu sangue –
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessôa
Que fôsse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
Real, visível como cais, cais realmente,
O Cais Absoluto por cujo modêlo inconscientemente imitado,
Insensívelmente evocado,
Nós os homens construímos
Os nossos cais nos nossos portos,
Os nossos cais de pedra actual sôbre ágoa verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Cousas-Reais, Espíritos-Cousas, Entidades em Pedra-Almas,
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso.
Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que ágoas? E porque penso eu isto?
Grande Cais como os outros cais, mas o Único.
Cheio como êles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias,
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fumo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha,
Como se fôsse a sombra duma nuvem que passasse sôbre água sombria.
Ah, que essencialidade de mistério e sentidos parados
Em divino extase revelador
Ás horas côr de silêncios e angústias
Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!
Cais negramente reflectido nas águas paradas,
Bulício a bordo dos navios,
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
Que quando o navio volta ao porto
Ha sempre qualquer alteração a bordo!
Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos reflectidos de vagar nas ágoas,
Quando o navio larga do porto!
Fluctuar como alma da vida, partir como voz,
Viver o momento trémulamente sôbre ágoas eternas.
Acordar para dias mais directos que os dias da Europa,
Vêr portos misteriosos sôbre a solidão do mar,
Virar cabos longínqùos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atónitas...
Ah, as praias longínqùas, os cais vistos de longe,
E depois as praias proximas, os cais vistos de perto.
O mistério de cada ida e de cada chegada,
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Dêste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramam
Sôbre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
Sôbre as ilhas longínqùas das costas deixadas passar,
Sôbre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,
Para o navio que se aproxima.
Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
E a palidez das manhãs em que se parte,
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um mêdo
– O mêdo ancestral de se afastar e partir,
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo –
Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fôsse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer cousa,
Uma perturbação de afeições a que vaga patria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento
E só fica um grande vácuo dentro de nós,
Uma ôca saciedade de minutos marítimos,
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dôr
Se soubesse como sê-lo...
A manhã de verão está, ainda assim, um pouco fresca.
Um leve torpôr de noite anda ainda no ar sacudido.
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.
Na minha imaginação êle está já perto e é visível
Em toda a extensão das linhas das suas vigias,
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíqùo.
Os navios que entram a barra,
Os navios que sáem dos portos,
Os navios que passam ao longe
(Supônho-me vendo-os duma praia deserta) –
Todos êstes navios abstractos quasi na sua ida,
Todos êstes navios assim comóvem-me como se fôssem outra cousa
E não apenas navios, navios indo e vindo.
E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar nêles,
Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,
Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das dispensas,
Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto,
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas,
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo –
Os navios vistos de perto são outra cousa e a mesma cousa,
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.
Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu scismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico
Em que não sei porque sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sôbre os nervos o facto de que aquêle é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabôr das cousas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, dôce, sem mistério nenhum, clássico, um mar pra bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baïas, todos os gôlfos,
Queria apertá-los ao peito, sentí-los bem e morrer!
E vós, ó cousas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas,
Caí por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
Sêde vós o tesouro da minha avareza febril,
Sêde vós os frutos da árvore da minha imaginação,
Têma de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
Fornecei-me metáforas, imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rêde a secar na praia!
Sôa no acaso do rio um apito, só um.
Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.
Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro
De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!
Ah, a glória de se saber que um homem que andava comnosco
Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!
Nós que andámos com êle vamos falar nisso a todos,
Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível
Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto
Que apenas o ter-se perdido o barco onde êle ia
E êle ter ido ao fundo por lhe ter entrado ágoa prós pulmões!
Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!
Vão rareando – ai de mim! – os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilisação moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilisado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Actual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Êsses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Êsses mares, misteriosos, porque se sabia menos dêles.
Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.
Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.
Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horisonte
São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,
Da época lenta e veleira das navegações perigosas,
Da época de madeira e lona das viagens que duravam mêses.
Toma-me pouco a pouco o delírio das cousas marítimas,
Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera,
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,
E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das ágoas,
Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma
E a aceleração do volante sacode-me nítidamente.
Chamam por mim as ágoas,
Chamam por mim os mares.
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, fôste tu
Que me ensinaste êsse grito antiqùíssimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das ágoas,
A voz inédita e implícita de todas as cousas do mar,
Dos naufrágios, das viagens longínqùas, das travessias perigosas.
Êsse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue,
Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz,
Esse grito tremendo que parece soar
De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu
E parece narrar todas as sinistras cousas
Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite...
(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas,
E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da bôca,
Fazendo porta-voz das grandes mãos cortidas e escuras:
Ahó ò-ò ò-ò-ò-ò-ò ò-ò ---- yyyy...
Schooner ahò-ò-ò ò-ò-ò-ò ò-ò-ò-ò-ò-ò---- yyyy...)
Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer cousa.
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O extase em mim levanta-se, cresce, avança,
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante.
Ó clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!...
Apêlo lançado ao meu sangue
Dum amôr passado, não sei onde, que volve
E ainda tem fôrça para me atraír e puxar,
Que ainda tem fôrça para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psiquica
Da gente real com que vivo!
Ah, seja como fôr, seja para onde fôr, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar,
Ir para Longe, ir para Fóra, para a Distância Abstrata,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!
Todo o meu sangue raiva por asas!
Todo o meu corpo atira-se prá frente!
Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!
Atropelo-me, rujo, precipito-me!...
Estoiram em espuma as minhas ânsias
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochêdos!
Pensando nisto – ó raiva! pensando nisto – ó fúria!
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,
Súbitamente, trémulamente, extraorbitadamente,
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação,
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.
Eh marinheiros, gageiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!
Homens que teem tombadilhos, que teem pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Eh manipuladores dos guindastes de carga!
Eh amainadores de velas, fogueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convez!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de bonet de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
Limpa de olhos de tanta imensidade diante dêles,
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eb!
Homens que vistes a Patagonia!
Homens que passastes pela Austrália!
Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!
Que fôstes a terra em terras onde nunca descerei!
Que comprastes artigos tôscos em colónias à prôa de sertões!
E fizestes tudo isso como se não fôsse nada,
Como se isso fôsse natural,
Como se a vida fôsse isso,
Como nem sequer cumprindo um destino!
Eh eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens do mar actual! homens do mar passado!
Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto!
Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!
Fenícios! Cartaginêses! Portuguêses atirados de Sagres
Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossivel!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh!
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranqùílas povoações africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prêmios de Novidade de quem, de cabeça baixa,
Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh-eh-eh!
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
A vós todos misturados, entrecruzados,
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Eh-eh-eh-eh eh! Eh eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh eh-eh-eh eh!
Eh-lahô-lahô-laHO- lahá-á-á-à à!
Quero ir comvôsco, quero ir comvôsco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr'onde fôstes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente,
Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossas,
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos,
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas,
Chegar como vós, errifim, a extraordinários portos!
Fugir comvôsco à civilisação!
Perder comvôsco a noção da moral!
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
Beber comvôsco em mares do sul
Novas selvagerias, novas balbúrdias da alma,
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!
Ir comvôsco, despir de mim – ah! põe-te daqui pra fora! –
O meu traje de civilisado, a minha brandura de acções,
Meu mêdo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, estática, regrada e revista!
No mar, no mar, no mar, no mar,
Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,
A minha vida!
Salgar de espuma arremessada pelos ventos
Meu paladar das grandes viagens.
Fustigar de ágoa chicoteante as carnes da minha aventura,
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de soes,
Meu ser ciclónico e atlântico,
Meus nervos postos como enxárcias,
Lira nas mãos dos ventos!
Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gosarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quizerdes de mim, logo que seja nos mares,
Sôbre convezes, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, firais!
O que quero é levar prá Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a caír das cousas marítimas,
Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,
Tanto das costas longínqùas como do ruído dos ventos,
Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios
Como dos tranqùílos comércios,
Tanto dos mastros como das vagas,
Levar prá Morte com dôr, voluptuosamente,
Um corpo cheio de sanguesugas, a sugar, a sugar,
De estranhas verdes absurdas sanguesugas marítimas!
Façam enxárcias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Arranquem-me a pele, préguem-a às quilhas.
E possa eu sentir a dôr dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra dos velhos navios!
Cálquem aos pés nos convezes meus olhos arrancados!
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
Fustíguem-me atado aos mastros, fustíguem-me!
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sôbre as ágoas arremessadas
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,
Nas vascas bravas das tormentas!
Ter a audácia ao vento dos panos das velas!
Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!
A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos,
Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!
Os marinheiros que se sublevaram
Enforcaram o capitão numa vêrga.
Desembarcaram um outro numa ilha deserta.
Marooned!
O sol dos trópicos poz a febre da pirataria antiga
Nas minhas veias intensivas.
Os ventos da Patagonia tatuaram a minha imaginação
De imagens trágicas e obscenas.
Fôgo, fôgo, fôgo, dentro de mim!
Sangue! sangue! sangue! sangue!
Explode todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!
Estoiram-me com o som de amarras as veias!
E estala em mim, feroz, voraz,
A canção do Grande Pirata,
A morte berrada do Grande Pirata a cantar
Até meter pavôr plas espinhas dos seus homens abaixo.
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:
Fifteen men on the Dead Man's Chest.
Yo-ho ho and a bottle of rum!
E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!
Darby M'Graw-aw-aw-aw aw-aw-aw-aw!
Fetch a-a-aft the ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby!
Eia, que vida essa! essa era a vida, eia!
Eh-eh-eh eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares!
Convezes cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sôbre amuradas!
Cabeças de creanças, aqui, acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Embrulho-me em tudo isto como numa capa no frio!
Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um touro louco sôbre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sôbre isto!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh-eh!
De repente estala-me sôbre os ouvidos
Como um clarim a meu lado,
O velho grito, mas agora irado, metálico,
Chamando a presa que se avista,
A escuna que vai ser tomada:
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó ---- yyyy...
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó ó-ó~ó-ó-ó---- yyyy...
O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!
Rujo na fúria da abordagem!
Pirata-mór! César-Pirata!
Pilho, mato, esfacelo, rasgo!
Só sinto o mar, a presa, o saque!
Só sinto em mim bater, baterem-me
As veias das minhas fontes!
Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Ah piratas, piratas, piratas!
Piratas, amai-me e odiai-me!
Misturai-me comvôsco, piratas!
Vossa fúria, vossa crueldade como falam ao sangue
Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive!
Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos,
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas,
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos convezes,
Trincasse velas, remos, cordâme e poleâme,
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes!
E ha uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas,
Ha uma orquestração no meu sangue de balbúrdias de crimes,
De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares,
Furibundamente, como um vendaval de calor pelo espírito,
Núvem de poeira quente anuviando a minha lucidez
E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!
Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,
Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas,
E o terror dos apresados foge prá loucura – essa hora,
No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, núvens,
Brisa, latitude, longitude, vozearia,
Queria eu que fôsse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo,
Que fôsse meu corpo e meu sangue, compozesse meu ser em vermelho,
Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!
Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
Ser quanto foi no lugar dos saques!
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
E a vítima-síntese, mas de carne e ôsso, de todos os piratas do mundo!
Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que fôram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser dêles!
E sentir tudo isso – todas estas cousas duma só vez – pela espinha!
Ó meus peludos e rudes heroes da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliqùídade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!
Porque ela teria comvôsco, mas só em espírito, raivado
Sôbre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!
Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica
Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos
Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladoras!
E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis,
Iria beber nos rugidos do vosso amôr todo o vasto,
Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias,
E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo!
A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo!
Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis,
Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,
A minha femininidade que vos acompanha é ser as vossas almas!
Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!
Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações
Quando tingíeis de sangue os mares altos,
Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões
Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das creanças
E leváveis as mãis às amuradas para vêrem o que lhes acontecia!
Estar comvôsco na carnágem, na pilhágem!
Estar orquestrado comvôsco na sinfonia dos saques!
Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!
Não era só sêr-vos a fêmea, sêr-vos as fêmeas, sêr-vos as vítimas,
Sêr-vos as vítimas – homens, mulheres, creanças, navios –,
Não era só ser a hora e os barcos e as ondas,
Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse,
Não era só ser concretamente vosso acto abstrato de orgia,
Não era só ser isto que eu queria ser – era mais que isto, o Deus-isto!
Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,
Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum pantheismo de sangue,
Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa,
Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade
Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias!
Ah, torturai-me para me curardes!
Minha carne – fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam
Antes de caírem sôbre as cabeças e os ombros!
Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam!
Minha imaginação o corpo das mulheres que violais!
Minha inteligência o convez onde estais de pé matando!
Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo,
O grande organismo de que cada acto de pirataria que se cometeu
Fôsse uma célula consciente – e todo eu turbilhonasse
Como uma imensa podridão ondeando, e fôsse aquilo tudo!
Com tal velocidade desmedida, pavorosa,
A máquina de febre das minhas visões transbordantes
Gira agora que a minha consciência, volante,
É apenas um nevoento círculo assobiando no ar.
Fifteen men on the Dead Man's Chest.
Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Eh-lahô-lahô-laHO---- lahá-á-ááá ---- ààà...
Ah! a selvageria desta selvageria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr'àqui engenheiro, prático à fôrça, sensível a tudo,
Pr'áqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Gloria,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Arre! por não poder agir d'acôrdo com o meu delírio!
Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilisação!
Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas!
Môços de esquina – todos nós o sômos – do humanitarismo moderno!
Estupôres de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,
Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
Ah, os piratas! os piratas!
A ânsia do ilegal unido ao feroz
A ância das cousas absolutamente crueis e abomináveis,
Que roe como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vasios!
Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
Humilhai-me e batei-me!
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa cousa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
Ó meus senhores! ó meus senhores!
Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!
Desabai sôbre mim, como grandes muros pesados,
Ó bárbaros do antigo mar!
Rasgai-me e feri-me!
De leste a oeste do meu corpo
Riscai de sangue a minha carne!
Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva
O meu alegre terror carnal de vos pertencer,
A minha ância masóquista em me dar à vossa fúria,
Em ser objecto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade,
Dominadores, senhores, imperadores, corcéis!
Ah, torturai-me,
Rasgai-me e abri-me!
Desfeito em pedaços conscientes
Entornai-me sôbre os convezes,
Espalhai-me nos mares, deixai-me
Nas praias ávidas das ilhas!
Cevai sobre mim todo o meu misticismo de vós!
Cinzelai a sangue a minh'alma!
Cortai, riscai!
Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!
Esfoladores amados da minha carnal submissão!
Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!
Fazei de mim o pôço para o vosso desprezo de domínio!
Fazei de mim as vossas vítimas todas!
Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer
Por todas as vossas vítimas às vossas mãos,
Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados
Nos assaltos bruscos de amuradas!
Fazei de mim qualquer cousa como se eu fôsse
Arrastado – ó prazer, ó beijada dôr! –
Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós...
Mas isto no mar, isto no ma-a-a~ar, isto no MA-A-A-AR!
Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!
Yeh-eh-eh-eh-eh eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos,
Mares, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!
Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh eh-eh! Tudo canta a gritar!
FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST.
YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!
Eh-eh-eh-eh eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh eh-eh eh-eh-eh-eh!
Hé-lahô-lahô-la HO-O-O-ôô-lahá-á-á---ààà!
AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó Ó-Ó-Ó Ó Ó --- yyy!...
SCHOONER AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó ---- yyyy!...
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw!
DARBY M'GRAW-AW-AW-AW-AW-AW-AW!
FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH-EH EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho anoiteceu.
Senti de mais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um éco dentro de mim.
Decresce sensívelmente a velocidade do volante.
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.
Dentro de mim ha só um vácuo, um deserto, um mar nocturno.
E logo que sinto que ha um mar nocturno dentro de mim,
Sobe dos longes dêle, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez, o vasto grito antiqùíssimo.
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,
Súbitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Húmido e sombrio marulho humano nocturno,
Voz de sereia longinqùa chorando, chamando,
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
E à tona dêle, como algas, boiam meus sonhos desfeitos...
Ahò ò-ò ò ò ò ò-ò ò ò ò---- yy...
Schooner ahò-ò-ò ò ò-ò-ò ò ò ò-ò-ò-ò---- yy .....
Ah, o orvalho sobre a minha excitação!
O frescôr nocturno no meu oceano interior!
Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
Cheia do enorme misterio humanissimo das ondas nocturnas.
A lua sobe no horizonte
E a minha infancia feliz acorda, como uma lágrima, em mim.
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
Fôsse um arôma, uma voz, o eco duma canção
Que fôsse chamar ao meu passado
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.
Era na velha casa socegada, ao pé do rio...
(As janelas do meu quarto, e as da casa de jantar tambem,
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio proximo,
Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo...
Se eu agora chegasse ás mesmas janelas não chegava ás mesmas janelas.
Aquêle tempo passou como o fumo dum vapôr no mar alto...
Uma inexplicavel ternura,
Um remorso comovido e lacrimoso,
Por todas aquélas victimas – principalmente as crianças –
Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo,
Emoção comovida, porque elas fôram minhas victimas;
Terna e suave, porque não o fôram realmente;
Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada,
Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.
Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas?
Que longe estou do que fui ha uns momentos!
Histeria das sensações – ora estas, ora as opostas!
Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe
As cousas de acôrdo com esta emoção – o marulho das ágoas,
O marulho leve das ágoas do rio de encontro ao cais...,
A vela passando perto do outro lado do rio,
Os montes longinquos, dum azul japonez,
As casas de Almada,
E o que ha de suavidade e de infancia na hora matutina!...
Uma gaivota que passa,
E a minha ternura é maior.
Mas todo este tempo não estive a reparar para nada.
Tudo isto foi uma impressão só da pele, como uma caricia.
Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longinquo,
Da minha casa ao pé do rio,
Da minha infancia ao pé do rio,
Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite,
E a paz do luar esparso nas ágoas!...
Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu...,
Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me
(Se bem que eu fôsse já crescido de mais para isso)...
Lembro-me e as lágrimas cáem sobre o meu coração e lavam-o da vida,
E ergue-se uma leve brisa maritima dentro de mim.
Ás vezes ela cantava a «Nau Catrinêta»:
Lá vai a Nau Catrinêta
Por sobre as ágoas do mar...
E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,
Era a «Bela Infanta»... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim
E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!
Como fui ingrato para ela – e afinal que fiz eu da vida?
Era a «Bela Infanta»... Eu fechava os olhos, e ela cantava:
Estando a Bela Infanta
No seu jardim assentada...
Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar
E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.
Estando a Bela Infanta
No seu jardim assentada,
Seu pente de ouro na mão,
Seus cabelos penteava...
Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!
Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,
E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!
Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha.
Pensar nisto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter.
Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.
Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!
Vertigem tenue de confusas cousas na alma!
Furias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,
Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,
Lágrimas, lágrimas inuteis,
Leves brisas de contradicção roçando pela face a alma...
Evoco, por um esforço voluntario, para sahir desta emoção,
Evoco, com um esforço desesperado, sêco, nulo,
A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:
Fifteen men on The Dead Man's Chest.
Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Mas a canção é uma linha recta mal traçada dentro de mim...
Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma,
Outra vez, mas atravez duma imaginação quasi literaria,
A furia da pirataria, da chacina, o apetite, quasi do paladar, do saque,
Da chacina inutil de mulheres e de crianças,
Da tortura futil, e só para nos distrainnos, dos passageiros pobres,
E a sensualidade de escangalhar e partir as cousas mais queridas dos outros,
Mas sonho isto tudo com um mêdo de qualquer cousa a respirar-me sobre a nuca.
Lembro-me de que seria interessante
Enforcar os filhos à vista das mães
(Mas sinto-me sem querer as mães dêles),
Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos
Levando os pais em barcos até lá para vêrem
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranquilo em casa).
Aguilhôo uma ansia fria dos crimes maritimos,
Duma inquisição sem a desculpa da Fé,
Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria,
Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal,
Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo,
Como quem faz paciencias a uma mesa de jantar de provincia com a toalha atirada pra o
outro lado da mesa depois de jantar,
Só pelo suave gosto de cometer crimes abominaveis e não os achar grande cousa,
De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dôr mas nunca deixar chegar lá...
Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me.
Um calafrio arrepia-me.
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo,
De repente – oh pavor por todas as minhas veias! –,
Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu dentro de mim e deixou entrar
uma corrente de ar!
Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente
A velha voz do marinheiro inglez Jim Bams, com quem eu falava,
Tornada voz das ternuras rí-ústeriosas dentro de mim, das pequenas cousas
De regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã,
Mas estupendamente vinda de além da aparência das cousas,
A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Bôca,
Vinda de sobre e de dentro da solidão nocturna dos mares,
Chama por mim, chama por mim, chama por mim...
Vem surdamente, como se fôsse suprimida e se ouvisse,
Longinquamente, como se estivesse soando noutro logar e aqui não se pudesse ouvir,
Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um halito silencioso,
De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,
O grito eterno e notumo, o sôpro fundo e confuso:
Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô –yyy ......
Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô – – yyy ......
Schooner ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô – – – yy .........
Tremo com um frio da alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
Ah, que alegria a de saír dos sonhos de vez!
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nêrvos!
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquêtes que chegam cêdo.
Já não me importa o paquête que entrava. Ainda está longe.
Só o que está perto agora me lava a alma.
A minha imaginação higienica, forte, prática,
Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e uteis,
Com os navios de carga, com os paquêtes e os passageiros,
Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras.
Abranda o seu giro dentro de mim o volante.
Maravilhosa vida maritima moderna,
Toda limpeza, maquinas e saúde!
Tudo tão bem arranjado, tão expontaneamente ajustado,
Todas as peças das maquinas, todos os navios pelos mares,
Todos os elementos da actividade comercial de exportação e importação
Tão maravilhosamente combinando-se
Que corre tudo como se fôsse por leis naturais,
Nenhuma cousa esbarrando com outra!
Nada perdeu a poesia. E agora ha a mais as maquinas
Com a sua poesia tambem, e todo o novo genero de vida
Comercial, mundana, intelectual, sentimental,
Que a era das maquinas veiu trazer para as almas.
As viagens agora são tão belas como eram dantes
E um navio será sempre belo, só porque é um navio.
Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve –
Em parte nenhuma, graças a Deus!
Os portos cheios de vapores de muitas especies!
Pequenos, grandes, de varias côres, com varias disposições de vigias,
De tão deliciosamente tantas companhias de navegação!
Vapôres nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos!
Tão prasenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar,
No velho mar sempre o homerico, ó Ulisses!
O olhar hamanitario dos faróis na distância da noite,
Ou o subito farol proximo na noite muito escura
(«Que perto da terra que estavamos passando!» E o som da agua canta-nos ao ouvido)!...
Tudo isto hoje é como sempre foi, mas ha o comercio;
E o destino comercial dos grandes vapôres
Envaidece-me da minha epoca!
A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros
Dá-me o orgulho moderno de viver numa epoca onde é tão facil
Misturarem-se as raças, transpôrem-se os espaços, vêr com facilidade todas as cousas,
E gosar a vida realisando um grande numero de sonhos.
Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em rêdes de arame
amarelo,
Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como gentlemen,
São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões,
Como gente perfeitamente consciente de como é higienico respirar o ar do mar.
O dia é perfeitamente já de horas de trabalho.
Começa tudo a movimentar-se, a regularisar-se.
Com um grande prazer natural e directo percorro com a alma
Todas as operações comerciaes necessarias a um embarque de mercadorias.
A minha época é o carimbo que levam todas as facturas,
E sinto que todas as cartas de todos os escritórios
Deviam ser endereçadas a mim.
Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade,
E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna!
Rigôr comercial do principio e do fim das cartas:
Dear Sirs – Messieurs – Amigos e Snrs,
Yours faithfully –... nos salutations empressées...
Tudo isto é não só humano e limpo, mas tambêm belo,
E tem ao fim um destino marítimo, um vapôr onde embarquem
As mercadorias de que as cartas e as facturas tratam.
Complexidade da vida! As facturas são feitas por gente
Que tem amores, odios, paixões politicas, ás vezes crimes –
E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso!
Ha quem olhe para uma factura e não sinta isto.
Com certeza que tu, Cesario Verde, o sentias.
Eu é até ás lagrimas que o sinto humanissimamente.
Venham dizer-me que não ha poesia no comercio, nos escritórios!
Ora, ela entra por todos os póros... Neste ar maritimo respiro-a,
Porque tudo isto vem a proposito dos vapôres, da navegação moderna,
Porque as facturas e as cartas comerciaes são o principio da historia
E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.
Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras,
As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros
Duma maneira especial, como se um misterio maritimo
Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento
Patriotas transitorios duma mesma patria incerta,
Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das ágoas!
Grandes hoteis do Infinito, oh transatlanticos meus!
Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto
E conterem todas as especies de trajes, de caras, de raças!
As viagens, os viajantes – tantas especies dêles!
Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!
Tanto destino diverso que se póde dar à vida,
Á vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.
A fraternidade afinal não é uma idéa revolucionaria.
É uma cousa que a gente aprende pela vida fóra, onde tem que tolerar tudo,
E passa a achar graça ao que tem que tolerar,
E acaba quasi a chorar de ternura sobre o que tolerou!
Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado
Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burguezes,
Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!
A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.
Pobre gente! pobre gente toda a gente!
Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio
Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês,
Muito sujo, como se fôsse um navio francês,
Com um ar simpatico de proletario dos mares,
E sem duvida anunciado ontem na última página das gazetas.
Enternece-me o pobre vapôr, tão humilde vai êle e tão natural.
Parece ter um certo escrupulo não sei em quê, ser pessoa honesta,
Cumpridora duma qualquer especie de deveres.
Lá vai êle deixando o lugar defronte do cais onde estou.
Lá vai êle tranquilamente, passando por onde as naus estiveram
Outrora, outrora...
Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importancia.
Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida!
Boa viagem! Boa viagem!
Boa viagem, meu pobre amigo causal, que me fizeste o favôr
De levar comtigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,
E restituir-me á vida para olhar para ti e te ver passar.
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto...
Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino
Na tua saída do porto de Lisboa, hoje!
Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso...
Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa...
Com um ligeiro estremecimento,
(T-t--t --- t ----t -----t ... )
O volante dentro de mim pára.
Passa, lento vapôr, passa e não fiques...
Passa de mim, passa da minha vista,
Vai-te de dentro do meu coração,
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe vêr-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,
Luzem os telhados dos edificios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha...
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nitido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angustia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte....
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que como um compasso que gira,
Traça um semicirculo de não sei que emoção
No silencio comovido da minh'alma...
ALVARO DE CAMPOS,
Engenheiro.
(Orpheu II, Julho de 1915)
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
Paragem. Zona
Álvaro de Campos
Tragam-me esquecimento em travessas!
Quero comer o abandono da vida!
Quero perder o habito de gritar para dentro.
Arre, já basta! Não sei o quê, mas já basta...
Então viver amanhã, hein?... E o que se faz de hoje?
Viver amanhã por ter adiado hoje?
Comprei por acaso um bilhete para esse espectaculo? (1)
Que gargalhadas daria quem pudesse rir!
E agora apparece o eletrico – o de que eu estou á espera –
Antes fosse outro... Ter de subir já!
Ninguem me obriga, mas deixal-o passar, porquê?
Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e á vida...
Que nausea no estomago real que é a alma consciente!
Que somno bom o ser outra pessoa qualquer...
Já comprehendo porque é que as creanças querem ser guarda-freios...
Não, não comprehendo nada...
Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida...
(1) Variante sobreposta a ««por acaso»: «sem reparar».
28/5/1930
[Ms.]
[s. atrib.1
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
Poema em Linha Recta
Álvaro de Campos
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondìvelmente parasita,
Indesculpàvelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapêtes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do sôco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do sôco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos êles príncipes – na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semi-deuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
(Ática)
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
Tabacaria
Álvaro de Campos
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para àquem do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
15.01.1928
Para este poema Pessoa encarou a hipótese de outro título: Marcha da Derrota, ainda foi
impresso nas provas da Presença
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3ª ed., 1997.
Todas as cartas de amor são rídiculas...
Álvaro de Campos
Todas as cartas de amor são
Ridiculas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridiculas.
Tambem escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridiculas.
As cartas de amor, se ha amor,
Têm de ser
Ridiculas.
Mas, afinal,
Só as creaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridiculas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridiculas.
A verdade é que hoje
As minhas memorias
D'essas cartas de amor
É que são
Ridiculas.
(Todas as palavras exdruxulas,
Como os sentimentos exdruxulos,
São naturalmente
Ridiculas.)
(21 de Outubro de 1935)
Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica). Lisboa, Editorial
Estampa, 3.ª ed., 1997.
O Livro do Desassossego
Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa
FRAGMENTOS
1
12
34
107
213
275
467
2
13
37
136
214
276
474
3
16
72
188
215
288
480
Prefácio
4
5
20
21
74
75
189
191
225
235
319
411
481
6
22
79
192
249
437
7
25
80
204
259
464
11
31
92
205
266
466
Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença,
estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me «compreenda»,
os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu
terei já morrido há muito. Serei compreendido só em éfígie, quando a afeição já não compense a
quem morreu a só desafeição que houve, quando vivo.
Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de
uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui
incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me
acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como
os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para
uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras
de viver.
(Fragmento 191)
Prefácio
Há em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou casas de pasto [em] que, sobre uma loja
com feitio de taberna decente, se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de
restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco frequentadas, é
frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida.
O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram-me, em um período da minha vida a
ser frequente em uma sobreloja dessas. Sucedia que, quando calhava jantar pelas sete horas,
quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspecto, não me interessando a princípio, pouco a
pouco passou a interessar-me.
Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado
exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não
inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não
acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava - parecia
indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém
de ter sofrido muito.
Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça. Reparava extraordinariamente para
as pessoas que estavam, não suspeitosamente, mas com um interesse especial; mas não as
observava como que perscrutando-as, mas como que interessando-se por elas sem querer fixarlhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio. Foi esse traço curioso que primeiro
me deu interesse por ele.
Passei a vê-lo melhor. Verifiquei que um certo ar de inteligência animava de certo modo incerto
as suas feições. Mas o abatimento, a estagnação da angústia fria, cobria tão regularmente o seu
aspecto que era difícil descortinar outro traço além desse.
Soube incidentalmente, por um criado do restaurante, que era empregado de comércio, numa
casa ali perto.
Um dia houve um acontecimento na rua, por baixo das janelas – uma cena de pugilato entre dois
indivíduos. Os que estavam na sobreloja correram às janelas, e eu também, e também o
indivíduo de quem falo. Troquei com ele uma frase casual, e ele respondeu no mesmo tom. A
sua voz era baça e trémula, como a das criaturas que não esperam nada, porque é
perfeitamente inútil esperar. Mas era porventura absurdo dar esse relevo ao meu colega
vespertino de restaurante.
Não sei porquê, passámos a cumprimentarmo-nos desde esse dia. Um dia qualquer, que nos
aproximara talvez a circunstância absurda de coincidir virmos ambos jantar às nove e meia,
entrámos em uma conversa casual. A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia. Respondi
que sim. Falei-lhe da revista Orpheu, que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a, elogiou-a
bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte
dos que escrevem em Orpheu sói ser para poucos. Ele disse-me que talvez fosse dos poucos.
De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente
observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse
em ler livros, soía gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também.
*
Ele mobilara – é impossível que não fosse à custa de algumas coisas essenciais – com um certo
e aproximado luxo os seus dois quartos. Cuidara especialmente das cadeiras – de braços,
fundas, moles – , dos reposteiros e dos tapetes. Dizia ele que assim se criara um interior «para
manter a dignidade do tédio». No quarto à moderna o tédio torna-se desconforto, mágoa física.
Nada o obrigara nunca a fazer nada. Em criança passara isoladamente. Aconteceu que nunca
passou por nenhum agrupamento. Nunca frequentara um curso. Não pertencera nunca a uma
multidão. Dera-se com ele o curioso fenómeno que com tantos – quem sabe, vendo bem, se com
todos? – se dá, de as circunstâncias ocasionais da sua vida se terem talhado à imagem e
semelhança da direcção dos seus instintos, de inércia todos, e de afastamento.
Nunca teve de se defrontar com as exigências do estado ou da sociedade. Às próprias
exigências dos seus instintos ele se furtou. Nada o aproximou nunca nem de amigos nem de
amantes. Fui o único que, de alguma maneira, estive na intimidade dele. Mas – apesar de ter
vivido sempre com uma falsa personalidade sua, e de suspeitar que nunca ele me teve
realmente por amigo – percebi sempre que ele alguém havia de chamar a si para lhe deixar o
livro que deixou. Agrada-me pensar que, ainda que ao princípio isto me doesse, quando o notei,
por fim vendo tudo através do único critério digno de um psicólogo, fiquei do mesmo modo amigo
dele e dedicado ao fim para que ele me aproximou de si – a publicação deste seu livro.
Até nisto – é curioso descobri-lo – as circunstâncias, pondo ante ele quem, do meu carácter, lhe
pudesse servir, lhe foram favoráveis.
Autobiografia sem factos
1
Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela
mesma razão que os seus maiores a haviam tido – sem saber porquê. E então, porque o espírito
humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses
jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de
homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de
que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão
amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo
improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma
mera ideia biológica, e não- significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna
de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com seus ritos
de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que
animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.
Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como
outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comummente se chama a
Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o
fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.
A quem, como eu, assim, vivendo não sabe ter vida, que resta senão, como a meus poucos
pares, a renúncia por modo e a contemplação por destino? Não sabendo o que é a vida
religiosa, nem podendo sabê-lo, porque se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na
abstracção do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós, ficava-nos, como
motivo de ter alma, a contemplação estética da vida. E, assim, alheios à solenidade de todos os
mundos, indiferentes ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos futilmente à
sensação sem propósito, cultivada num epicurismo subtilizado, como convém aos nossos nervos
cerebrais.
Retendo, da ciência, somente aquele seu preceito central, de que tudo é sujeito às leis fatais,
contra as quais se não reage independentemente, porque reagir é elas terem feito que
reagíssemos; e verificando como esse preceito se ajusta ao outro, mais antigo, da divina
fatalidade das coisas, abdicamos do esforço como os débeis do entre timento dos atletas, e
curvamo-nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida.
Não tomando nada a sério, nem considerando que nos fosse dada, por certa, outra realidade
que não as nossas sensações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a grandes
países desconhecidos. E, se nos empregamos assiduamente, não só na contemplação estética
mas também na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o verso que
escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a
alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objectividade ao
prazer subjectivo da leitura.
Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita, e que a menos segura das nossas
contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há poente
tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar-nos
um sono mais calmo ainda. E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas,
gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o converter na nossa íntima
substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas
alheias, que podemos gozar como se viessem na tarde.
Não é este o conceito dos pessimistas, como aquele de Vigny, para quem a vida é uma cadeia,
onde ele tecia palha para se distrair. Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa
atitude é um exagero e um incómodo. Não temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos
à obra que produzimos. Produzimo-la, é certo, para nos distrair, porém não como o preso que
tece a palha, para se distrair do Destino, senão da menina que borda almofadas, para se distrair,
sem mais nada.
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do
abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem
uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de
sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum.
Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem
sono; deixo ao ue fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes cegam
cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da
paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que
me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos
viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o
lerem, nem se entretiverem, será bem também.
2
Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção, que
a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém
nasceu.
Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei-de, em certa ocasião,
ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra.
3
Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego
que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua
da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da
Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos – tudo isso me conforta de tristeza, se
me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que
vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os
dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma
sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não
quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia
sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega,
salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que é a essência
das coisas. Há um destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas – uma
designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.
Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma
tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma
coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos
se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas para se me confessarem
seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o eléctrico que dá a volta na
curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de não sei que coisa, que se destaca,
toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer!
Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de
prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta reparam
em pouco os vadios parados que são donos das lojas. Lentos, fortes e fracos, os recrutas
sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez
em quando. Os automóveis ali a esta hora não são muito frequentes; esses são musicais. No
meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação.
Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu destino, alheio, até, ao
destino próprio – inconsciência, carambas ao despropósito quando o acaso deita pedras, ecos
de vozes incógnitas – salada colectiva da vida.
4
... e do alto da majestade de todos os sonhos, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.
Mas o contraste não me esmaga – liberta-me; e a ironia que há nele é sangue meu. O que
devera humilhar-me é a minha bandeira, que desfraldo; e o riso, com que deveria rir de mim, é
um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em que me faço.
A glória nocturna de ser grande não sendo nada! A majestade sombria de esplendor
desconhecido... E sinto, de repente, o sublime do monge no ermo, e do eremita no retiro,
inteirado da substância do Cristo nas pedras e nas cavernas do afastamento do mundo.
E na mesa do meu quarto absurdo, reles, empregado e anónimo, escrevo palavras como a
salvação da alma e douro-me do poente impossível de montes altos vastos e longínquos, da
minha estátua recebida por prazeres, e do anel de renúncia em meu dedo evangélico, jóia
parada do meu desdém extático.
5
Tenho diante de mim as duas páginas grandes do livro pesado; ergo da sua inclinação na
carteira velha, com os olhos cansados, uma alma mais cansada do que os olhos. Para além do
nada que isto representa, o armazém, até à Rua dos Douradores, enfileira as prateleiras
regulares, os empregados regulares, a ordem humana e o sossego do vulgar. Na vidraça há o
ruído do diverso, e o ruído diverso é vulgar, como o sossego que está ao pé das prateleiras.
Baixo olhos novos sobre as duas páginas brancas, em que os meus números cuidadosos
puseram resultados da sociedade. E, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida,
que tem estas páginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus
traços a régua e de letra, inclui também os grandes navegadores, os grandes santos, os poetas
de todas as eras, todos eles sem escrita, a vasta prole expulsa dos que fazem a valia do mundo.
No próprio registo de um tecido que não sei o que seja se me abrem as portas do Indo e de
Samarcanda, e a poesia da Pérsia, que não é de um lugar nem de outro, faz das suas quadras,
desrimadas no terceiro verso, um apoio longínquo para o meu desassossego. Mas não me
engano, escrevo, somo, e a escrita segue, feita normalmente por um empregado deste escritório.
6
Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um
campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que
existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado,
como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o
casaco.
Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre
serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de
milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas
submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios.
Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque
vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança
de clamor. Mas a reacção contra mim desce-me da inteligência... Vejo-me no quarto andar alto
da Rua dos Douradores, assisto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem
beleza e o cigarro barato que a expender estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste
quarto andar, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os génios
e os célebres! Aqui, eu, assim!...
7
Hoje, em um dos devaneios sem propósito nem dignidade que constituem grande parte da
substância espiritual da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da Rua dos Douradores, do
patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, dos empregados todos, do moço, do garoto e do gato.
Senti em sonho a minha libertação, como se mares do Sul me houvessem oferecido ilhas
maravilhosas por descobrir. Seria então o repouso, a arte conseguida, o cumprimento intelectual
do meu ser.
Mas de repente, e no próprio imaginar, que fazia num café no feriado modesto do meio-dia, uma
impressão de desagrado me assaltou o sonho: senti que teria pena. Sim, digo-o como se o
dissesse circunstanciadamente: teria pena. O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa
Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o moço de todos
os fretes, o gato meigo – tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso
sem chorar, sem compreender que, por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava
com eles todos, que o separar-me deles era uma metade e semelhança da morte.
Aliás, se amanhã me apartasse deles todos, e despisse este trajo da Rua dos Douradores, a que
outra coisa me chegaria – porque a outra me haveria de chegar?, de que outro trajo me vestiria porque de outro me haveria de vestir?
Todos temos o patrão Vasques, para uns visível, para outros invisível. Para mim chama-se
realmente Vasques, e é um homem sadio, agradável, de vez em quando brusco mas sem lado
de dentro, interesseiro mas no fundo justo, com uma justiça que falta a muitos grandes génios e
a muitas maravilhas humanas da civilização, direita e esquerda. Para outros será a vaidade, a
ânsia de maior riqueza, a glória, a imortalidade... Prefiro o Vasques homem meu patrão, que é
mais tratável, nas horas difíceis, que todos os patrões abstractos do mundo.
Considerando que eu ganhava pouco, disse-me o outro dia um amigo, sócio de uma firma que é
próspera por negócios com todo o Estado: «Você é explorado, Soares.» Recordou-me isso de
que o sou; mas como na vida temos todos que ser explorados, pergunto se valerá menos a pena
ser explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade, pela glória, pelo despeito, pela
inveja ou pelo impossível.
Há os que Deus mesmo explora, e são profetas e santos na vacuidade do mundo.
E recolho-me, como ao lar que os outros têm, à casa alheia, escritório amplo, da Rua dos
Douradores. Achego-me à minha secretária como a um baluarte contra a vida. Tenho ternura,
ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que
me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de
mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar - ou talvez, também,
porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo
ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas.
11
Litania
Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos – um poço fitando o Céu.
12
Invejo – mas não sei se invejo – aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que
podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro
indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas
Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.
Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a
gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o
que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois
nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações.
Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia
velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências
minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto,
porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada
multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se
passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe
compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço.
Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos
os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha
de marfim com bico reverso. Croché das coisas... Intervalo... Nada...
De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, é a
compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder
de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um
filho vivo... Sim, croché...
13
A miséria da minha condição não é estorvada por estas palavras conjugadas, com que formo,
pouco a pouco, o meu livro casual e meditado. Subsisto nulo no fundo de toda a expressão,
como um pó indissolúvel no fundo do copo de onde se bebeu só água. Escrevo a minha
literatura como escrevo os meus lançamentos – com cuidado e indiferença. Ante o vasto céu
estrelado e o enigma de muitas almas, a noite do abismo incógnito e o choro de nada se
compreender – ante tudo isto o que escrevo no caixa auxiliar e o que escrevo neste papel da
alma são coisas igualmente restritas à Rua dos Douradores, muito pouco aos grandes espaços
milionários do universo.
Tudo isto é sonho e fantasmagoria, e pouco vale que o sonho seja lançamentos como prosa de
bom porte. Que serve sonhar com princesas, mais que sonhar com a porta da entrada do
escritório? Tudo que sabemos é uma impressão nossa, e tudo que somos é uma impressão
alheia, melodrama de nós, que, sentindo-nos, nos constituímos nossos próprios espectadores
activos, nossos deuses por licença da Câmara.
16
Devaneio entre Cascais e Lisboa. Fui pagar a Cascais uma contribuição do patrão Vasques, de
uma casa que tem no Estoril. Gozei antecipadamente o prazer de ir, uma hora para lá, uma hora
para cá, vendo os aspectos sempre vários do grande rio e da sua foz atlântica. Na verdade, ao ir,
perdi-me em meditações abstractas, vendo sem ver as paisagens aquáticas que me alegrava ir
ver, e ao voltar perdi-me na fixação destas sensações. Não seria capaz de descrever o mais
pequeno pormenor da viagem, o mais pequeno trecho de visível. Lucrei estas páginas, por olvido
e contradição. Não sei se isso é melhor ou pior do que o contrário, que também não sei o que é.
O comboio abranda, é o Cais do Sodré. Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão.
20
Várias vezes, no decurso da minha vida opressa por circunstância, me tem sucedido, quando
quero libertar-me de qualquer grupo delas, ver-me subitamente cercado por outras da mesma
ordem, como se houvesse definidamente uma inimizade contra mim na teia incerta das coisas.
Arranco do pescoço uma mão que me sufoca. Vejo que na mão, com que a essa arranquei, me
veio preso um laço que me caiu no pescoço com o gesto de libertação. Afasto, com cuidado, o
laço, e é com as próprias mãos que me quase estrangulo.
21
Haja ou não deuses, deles somos servos.
22
A minha imagem, tal qual eu a via nos espelhos, anda sempre ao colo da minha alma. Eu não
podia ser senão curvo e débil como sou, mesmo nos meus pensamentos.
Tudo em mim é de um príncipe de cromo colado no álbum velho de uma criancinha que morreu
sempre há muito tempo.
Amar-me é ter pena de mim. Um dia, lá para o fim do futuro, alguém escreverá sobre mim um
poema, e talvez só então eu comece a reinar no meu Reino.
Deus é o existirmos e isto não ser tudo.
25
É uma oleografia sem remédio. Fito-a sem saber se vejo. Na montra há outras e aquela. Está ao
centro da montra do vão de escada.
Ela aperta a primavera contra o seio e os olhos com que me fita são tristes. Sorri com brilho do
papel e as cores da sua face são encarnado. O céu por trás dela é azul de fazenda clara. Tem
uma boca recortada e quase pequena por sobre cuja expressão postal os olhos me fitam sempre
com uma grande pena. O braço que segura as flores lembra-me o de alguém. O vestido ou blusa
é aberto num decote ladeado. Os olhos são realmente tristes: fitam-me do fundo da realidade
litográfica com uma verdade qualquer. Ela veio com a primavera. Os seus olhos tristes são
grandes, mas nem é por isso. Separo-me de defronte da montra com uma grande violência
sobre os pés. Atravesso a rua e volto-me com uma revolta impotente. Ela segura ainda a
primavera que lhe deram e os seus olhos são tristes como o que eu não tenho na vida. Vista à
distância, a oleografia tem afinal mais cores. A figura tem uma fita de cor de mais rosa
contornando o alto do cabelo; não tinha reparado. Há em olhos humanos, ainda que litográficos,
uma coisa terrível: o aviso inevitável da consciência, o grito clandestino de haver alma. Com um
grande esforço ergo-me do sono em que me molho e sacudo, como um cão, os húmidos da
treva de bruma. E por cima do meu desertar, numa despedida de outra coisa qualquer, os olhos
tristes da vida toda, desta oleografia metafísica que contemplamos à distância, fitam-me como se
eu soubesse de Deus. A gravura tem um calendário na base. É emoldurada em cima e em baixo
por duas réguas pretas de um convexo chato mal pintado. Entre o alto e o baixo do seu
definitivo, por sobre 1929 com vinheta obsoletamente caligráfica cobrindo o inevitável primeiro de
janeiro, os olhos tristes sorriem-me ironicamente.
É curioso de onde, afinal, eu conhecia a figura. No escritório há, no canto do fundo, um
calendário idêntico, que tenho visto muitas vezes. Mas, por um mistério, ou oleográfico ou meu,
a idêntica do escritório não tem olhos com pena. É só uma oleografia. (É de papel que brilha e
dorme por cima da cabeça do Alves canhoto o seu viver de esbatimento.)
Quero sorrir de tudo isto, mas sinto um grande mal-estar. Sinto um frio de doença súbita na
alma. Não tenho força para me revoltar contra esse absurdo. A que janela para que segredo de
Deus me abeiraria eu sem querer? Para onde dá a montra do vão de escada? Que olhos me
fitavam na oleografia? Estou quase a tremer. Ergo involuntariamente os olhos para o canto
distante do escritório onde a verdadeira oleografia está. Levo constantemente a erguer para lá os
olhos.
31
O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o
quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite. Não dormi ainda, nem espero dormir.
Sem que nada me detenha a atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não
sossegue, jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais
desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho. Nem sei pensar, do sono que
tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.
Tudo em meu torno é o universo nu, abstracto, feito de negações nocturnas. Divido-me em
cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafísico do
mistério das coisas. Por vezes amolece-se-me a alma, e então os pormenores sem forma da
vida quotidiana bóiam-se-me à superfície da consciência, e estou fazendo lançamentos à tona
de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em que estagnei, e imagens
vagas, de um colorido poético e involuntários deixam escorrer pela minha desatenção o 'seu
espectáculo sem ruídos. Não tenho os olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma
luz que vem de longe; são os candeeiros públicos acesos lá em baixo, nos confins abandonados
da rua.
Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas
em segredo ao que me desconhecesse!... Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de
um mar casto, em costas visíveis na noite em que verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser
incógnito e externo, movimento de ramos em áleas afastadas, ténue cair de folhas, conhecido no
som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na
noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos naturais da treva!... Cessar, acabar
finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeira de um
cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no
cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote
do carroceiro à beira matutina do caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento - tudo que
não fosse a vida...
E durmo, a meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa da suposição, e sob as
minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo
longínquo dos candeeiros mudos da rua.
Durmo e desdurmo.
Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Oiço cair o
tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração
físico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente
colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com a minha pele um
contacto de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me
matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som
pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a
minha respiração acontece - não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar
certo lá ao fundo das coisas, soa a meia hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é
tão negro e tão frio!
Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.
Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da noite. Posso dormir,
porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as pregas moles da
fronha que me prende o rosto. Posso deixar-me à vida, posso dormir, posso ignorar-me... E,
através do sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, de veras, que
canta segunda vez.
34
Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores. E isto escrito, então, parece-me a
eternidade.
Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade.
Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão é somente ser mudado de cela. A arte,
se nos liberta dos manipansos assentes e obsoletos, também nos liberta das ideias generosas e
das preocupações sociais – manipansos também.
Encontrar a personalidade na perda dela – a mesma fé abona esse sentido de destino.
37
INTERVALO DOLOROSO
Coisa arrojada a um canto, trapo caído na estrada, meu ser ignóbil ante a vida finge-se.
72
Disse Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de
sonhador débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma. Objectivar
é criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é
talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos
sonhar de ver.
De resto, de que servem estas especulações de psicologia verbal? Independentemente de mim,
cresce erva, chove na erva que cresce, e o sol doira a extensão da erva que cresceu ou vai
crescer; erguem-se os montes de muito antigamente, e o vento passa com o mesmo modo com
que Homero, ainda que não existisse, o ouviu. Mais certa era dizer que um estado da alma é
uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a mentira de uma teoria, mas tãosomente a verdade de uma metáfora.
Estas palavras casuais foram-me ditadas, pela grande extensão da cidade, vista à luz universal
do sol, desde o alto de São Pedro de Alcântara. Cada vez que assim contemplo uma extensão
larga, e me abandono do metro e setenta de altura, e sessenta e um quilos de peso, em que
fisicamente consisto, tenho um sorriso grandemente metafísico para os que sonham que o sonho
é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto com uma virtude nobre do entendimento.
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. Sai
um navio pequeno – vapor de carga preto – dos lados do Poço do Bispo para a barra que não
vejo. Que os Deuses todos me conservem, até à hora em que cesse este meu aspecto de mim,
a noção clara e solar da realidade externa, o instinto da minha inimportância, o conforto de ser
pequeno e de poder pensar em ser feliz.
74
TROVOADA
Este ar baixo e nuvens paradas. O azul do céu estava sujo de branco transparente.
O moço, ao fundo do escritório, suspende um minuto o cordel à roda do embrulho eterno...
«Como esta só me lembra de uma», comenta estatisticamente. Um silêncio frio. Os sons da rua
como que foram cortados à faca. Sentiu-se, prolongadamente, como um mal-estar de tudo, um
suspender cósmico da respiração. Parara o universo inteiro. Momentos, momentos, momentos.
A treva encarvoou-se de silêncio.
Súbito, aço vivo, []
Que humano era o toque metálico dos eléctricos! Que paisagem alegre a simples chuva na rua
ressuscitada do abismo!
Oh, Lisboa, meu lar!
75
Para sentir a delícia e o terror da velocidade não preciso de automóveis velozes nem de
comboios expressos. Basta-me um carro eléctrico e a espantosa faculdade de abstracção que
tenho e cultivo.
Num carro eléctrico em marcha eu sei, por uma atitude constante e instantânea de análise,
separar a ideia de carro da ideia de velocidade, separá-las de todo, até serem coisas-reais
diversas. Depois, posso sentir-me seguindo não dentro do carro mas dentro da Mera-Velocidade
dele. E, cansado, se acaso quero o delírio da velocidade enorme, posso transportar a ideia para
o Puro Imitar da Velocidade e a meu bom prazer aumentá-la ou diminuí-la, alargá-la para além
de todas as velocidades possíveis de veículos comboios.
Correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente –
perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me incomoda e me despersonaliza.
Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos. Um poente é um fenómeno
intelectual.
79
Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou de sobre o Tejo e espalhou-se
sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morno.
Senti a vida no estômago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas,
pousavam em nada nuvens ralas, rolos; num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A
atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar
somente.
Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas
nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava
intermitentemente.
Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora
e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para
acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em
mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro.
Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações
supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para
dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples
e ampla do Livro de Job, «Minha alma está cansada de minha vida!»
80
INTERVALO DOLOROSO
Tudo me cansa, mesmo o que me não cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel
rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos
sombrios da pouca água.
Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida,
eu não lhe posso tocar.
Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? e quem é triste não pode
esforçar-se.
Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é
um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.
Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem!
qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu
querê-la e se me penetra até de alheia!
Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me
esmagaria os ombros do pensamento.
Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.
Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e de actos.
Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de
angústia.
Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas
aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a
carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os
pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro.
A minha vida é como se me batessem com ela.
92
(a child hand's playing with cotton-reels, etc.)
Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive
outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha vida
esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim, pude esquecer-me na visão do
seu movimento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção.
Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu,
por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca
desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem
que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo. Nas
minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e
os aquedutos que se esfumavam – quase na distância das minhas paisagens sonhadas, tinham
uma doçura de sonho em relação às outras partes da paisagem - uma doçura que fazia com que
eu as pudesse amar.
A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me
abandonará. Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de linha e peões de xadrez – com um
bispo ou um cavalo acaso sobressaindo – mas tenho pena de o não fazer... e alinho na minha
imaginação, confortavelmente, como quem no inverno se aquece a uma lareira, figuras que
habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de
mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.
Alguns passam dificuldades, outros têm uma vida boémia, pitoresca e humilde. Há outros que
são caixeiros-viajantes. (Poder sonhar-me caixeiro-viajante foi sempre uma das minhas grandes
ambições – irrealizável infelizmente!) Outros moram em aldeias e vilas lá para as fronteiras de
um Portugal dentro de mim; vêm à cidade, onde por acaso os encontro e reconheço, abrindolhes os braços, numa atracção... E quando sonho isto, passeando no meu quarto, falando alto,
gesticulando... quando sonho isto, e me visiono encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo,
me pulo, brilham-me os olhos, abro os braços e tenho uma felicidade enorme, real.
Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu sinto
quando penso no passado que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida da
minha infância ida,... isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trémulo com que choro sobre
não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secundárias que me
recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha pseudovida, ao virar uma esquina da
minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri por esse sonho fora.
A raiva de a saudade não poder reavivar e reerguer nunca é tão lacrimosa contra Deus, que
criou impossibilidades, do que quando medito que os meus amigos de sonho, com quem passei
todos detalhes de uma vida suposta, com quem tantas conversas iluminadas, em cafés
imaginários, tenho tido, não pertenceram, afinal, a nenhum espaço onde pudessem ser,
realmente, independentes da minha consciência deles!
Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo! As flores do jardim da
pequena casa de campo e que não existiu senão em mim. As hortas, os pomares, o pinhal, da
quinta que foi só um meu sonho! As minhas vilegiaturas supostas, os meus passeios por um
campo que nunca existiu! As árvores de à beira da estrada, os atalhos, as pedras, os
camponeses que passam... tudo isto, que nunca passou de um sonho, está guardado em minha
memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los, passo horas depois a recordar tê-los
sonhado e é, na verdade, saudade que eu tenho, um passado que eu choro, uma vida-real morta
que fito, solene no seu caixão.
Há também as paisagens e as vidas que não foram inteiramente interiores. Certos quadros, sem
subido relevo artístico, certas oleogravuras que havia em paredes com que convivi muitas horas
- passam a realidade dentro de mim. Aqui a sensação era outra, mais pungente e triste. Ardiame não poder estar ali, quer eles fossem reais ou não. Não ser eu, ao menos, uma figura a mais
desenhada ao pé daquele bosque ao luar que havia numa pequena gravura dum quarto onde
dormi já não em pequeno! Não poder eu pensar que estava ali oculto, no bosque à beira do rio,
porque aquele luar eterno (embora mal desenhado), vendo o homem que passa num barco por
baixo do debruçar-se de um salgueiro! Aqui o não poder sonhar inteiramente doía-me. As feições
da minha saudade eram outras. Os gestos do meu desespero eram diferentes. A impossibilidade
que me torturava era de outra ordem de angústia. Ah, não ter tudo isto um sentido em Deus,
uma realização conforme o espírito de nossos desejos, não sei onde, por um tempo vertical,
consubstanciado com a direcção das minhas saudades e dos meus devaneios! Não haver, pelo
menos só para mim, um paraíso feito disto! Não poder eu encontrar os amigos que sonhei,
passear pelas ruas que criei, acordar, entre o ruído dos galos e das galinhas e o rumorejar
matutino da casa, na casa de campo em que eu me supus... e tudo isto mais perfeitamente
arranjado por Deus, posto naquela perfeita ordem para existir, na precisa forma para eu o ter que
nem os meus próprios sonhos atingem senão na falta de uma dimensão do espaço íntimo que
entretém essas pobres realidades...
Ergo a cabeça de sobre o papel em que escrevo... É cedo ainda. Mal passa o meio-dia e é
domingo. O mal da vida, a doença de ser consciente, entra com o meu próprio corpo e perturbame. Não haver ilhas para os inconfortáveis, alamedas vetustas, inencontráveis de antes, para os
isolados no sonhar! Ter de viver e, por pouco que seja, de agir; ter de roçar pelo facto de haver
outra gente, real também, na vida! Ter de estar aqui escrevendo isto, por me ser preciso à alma
fazê-lo, e, mesmo isto, não poder sonhá-lo apenas; exprimi-lo sem palavras, sem consciência
mesmo, por uma construção de mim próprio em música e esbatimento, de modo que me
subissem as lágrimas aos olhos só de me sentir expressar-me, e eu fluísse, como um rio
encantado, por lentos declives de mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e o Distante,
sem sentido nenhum excepto Deus.
107
Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e nunca reconhecem quando
encontram; daquelas que, se elas as reconhecessem, mesmo assim não as reconheceriam.
Sofro a delicadeza dos meus sentimentos com uma atenção desdenhosa. Tenho todas as
qualidades, pelas quais são admirados os poetas românticos, mesmo aquela falta dessas
qualidades, pela qual se é realmente poeta romântico. Encontro-me descrito (em parte) em
vários romances como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da
minha alma, é não ser nunca protagonista.
Não tenho uma ideia de mim próprio; nem aquela que consiste em uma falta de ideia de mim
próprio. Sou um nómada da consciência de mim. Tresmalharam-se à primeira guarda os
rebanhos da minha riqueza íntima.
A única tragédia é não nos podermos conceber trágicos. Vi sempre nitidamente a minha
coexistência com o mundo. Nunca senti nitidamente a minha falta de coexistir com ele; por isso
nunca fui um normal.
Agir é repousar.
Todos os problemas são insolúveis. A essência de haver um problema é não haver uma solução.
Procurar um facto significa não haver um facto. Pensar é não saber existir.
Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à beira do rio, meditando em vão. A minha
impaciência constantemente me quer arrancar desse sossego, e a minha inércia constantemente
me detém nele. Medito, então, em uma modorra de físico, que se parece com a volúpia apenas
como o sussurro de vento lembra vozes, na eterna insaciabilidade dos meus desejos vagos, na
perene instabilidade das minhas ânsias impossíveis. Sofro, principalmente, do mal de poder
sofrer. Falta-me qualquer coisa que não desejo e sofro por isso não ser propriamente sofrer.
O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição da minha angústia. As
flautas dos pastores impossíveis não são mais suaves que o não haver aqui flautas e isso
lembrar-mas. Os idílios longínquos, ao pé de riachos, doem-me esta hora análoga por dentro, []
136
O peso de sentir! O peso de ter que sentir!
188
O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a felicidade de a não pensar.
Viver a vida decorrentemente, exteriormente, como um gato ou um cão – assim fazem os
homens gerais, e assim se deve viver a vida para que possa contar a satisfação do gato e do
cão.
Pensar é destruir. O próprio processo do pensamento o indica para o mesmo pensamento,
porque pensar é decompor. Se os homens soubessem meditar no mistério da vida, se
soubessem sentir as mil complexidades que espiam a alma em cada pormenor da acção, não
agiriam nunca, não viveriam até. Matar-se-iam de assustados, como os que se suicidam para
não ser guilhotinados no dia seguinte.
189
DIA DE CHUVA
O ar é de um amarelo escondido, como um amarelo pálido visto através dum branco sujo. Mal há
amarelo no ar acinzentado. A palidez do cinzento, porém, tem um amarelo na sua tristeza.
191
Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença,
estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me «compreenda»,
os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu
terei já morrido há muito. Serei compreendido só em éfígie, quando a afeição já não compense a
quem morreu a só desafeição que houve, quando vivo.
Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de
uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui
incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me
acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como
os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para
uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras
de viver.
Na tarde em que escrevo, o dia de chuva parou. Uma alegria do ar é fresca de mais contra a
pele. O dia vai acabando não em cinzento, mas em azul-pálido. Um azul vago reflecte-se,
mesmo, nas pedras das ruas. Dói viver, mas é de longe. Sentir não importa. Acende-se uma ou
outra montra.
Em uma outra janela alta há gente que vê acabarem o trabalho. O mendigo que roça por mim
pasmaria, se me conhecesse.
No azul menos pálido e menos azul, que se espelha nos prédios, entardece um pouco mais a
hora indefinida.
Cai leve, fim do dia certo, em que os que crêem e erram se engrenam no trabalho do costume, e
têm, na sua própria dor, a felicidade da inconsciência. Cai leve, onda de luz que cessa,
melancolia da tarde inútil, bruma sem névoa que entra no meu coração. Cai leve, suave,
indefinida palidez lúcida e azul da tarde aquática - leve, suave, triste sobre a terra simples e fria.
Cai leve, cinza invisível, monotonia magoada, tédio sem torpor.
192
Três dias seguidos de calor sem calma, tempestade latente no mal-estar da quietude de tudo,
vieram trazer, porque a tempestade se escoasse para outro ponto, um leve fresco morno e grato
à superfície lúcida das coisas. Assim às vezes, neste decurso da vida, a alma, que sofreu porque
a vida lhe pesou, sente subitamente um alívio, sem que se desse nela o que o explicasse.
Concebo que sejamos climas, sobre que pairam ameaças de tormenta, noutro ponto realizadas.
A imensidade vazia das coisas, o grande esquecimento que há no céu e na terra...
204
Nuvens... Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que o não olho mas sinto, vivendo na
cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens... São elas hoje a principal realidade, e
preocupam-me como se o velar do céu fosse um dos grandes perigos do meu destino. Nuvens...
Passam da barra para o Castelo, de ocidente para oriente, num tumulto disperso e despido,
branco às vezes, se vão esfarrapadas na vanguarda de não sei quê; meio-negro outras, se, mais
lentas, tardam em ser varridas pelo vento audível; negras de um branco sujo, se, como se
quisessem ficar, enegrecem mais da vinda que da sombra o que as ruas abrem de falso espaço
entre as linhas fechadoras da casaria.
Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e
o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre
coisas que não são nada, sendo eu nada também. Nuvens... Que desassossego se sinto, que
desconforto se penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre, umas muito
grandes, parecendo, porque as casas não deixam ver se são menos grandes que parecem, que
vão a tomar todo o céu; outras de tamanho incerto, podendo ser duas juntas ou uma que se vai
partir em duas, sem sentido no ar alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas, parecendo
brinquedos de poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num
grande isolamento, frias.
Nuvens... Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem farei de justificável.
Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma, fazendo
versos em prosa às sensações intransmissíveis com que torno meu o universo incógnito. Estou
farto de mim, objectiva e subjectivamente. Estou farto de tudo, e do tudo de tudo. Nuvens... São
tudo, desmanchamentos do alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu que não
existe; farrapos indescritíveis do tédio que lhes imponho; névoa condensada em ameaças de cor
ausente; algodões de rama sujos de um hospital sem paredes. Nuvens... São como eu, uma
passagem desfeita entre o céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não
trovejando, alegrando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e do descaminho,
longe do ruído da terra e sem ter o silêncio do céu. Nuvens... Continuam passando, continuam
sempre passando, passarão sempre continuando, num enrolamento descontínuo de meadas
baças, num alongamento difuso de falso céu desfeito.
205
Fluido, o abandono do dia finda entre púrpuras exaustas. Ninguém me dirá quem sou, nem
saberá quem fui. Desci da montanha ignorada ao vale que ignoraria, e meus passos foram, na
tarde lenta, vestígios deixados nas clareiras da floresta. Todos quantos amei me esqueceram na
sombra. Ninguém soube do último barco. No correio não havia notícia da carta que ninguém
haveria de escrever.
Tudo, porém, era falso. Não contaram histórias que outros houvessem contado, nem se sabe ao
certo do que partiu outrora, na esperança do embarque falso, filho da bruma futura e da
indecisão por vir. Tenho nome entre os que tardam, e esse nome é sombra como tudo.
213
Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que
contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que
senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo
a que assisto sou eu.
Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há
dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho;
desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em
outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.
É frequente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito jovem - trechos dos
dezassete anos, trechos dos vinte anos. E alguns têm um poder de expressão que me não
lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há em certas frases, em vários períodos, de coisas
escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou
agora, educado por anos e por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E, tendo sentido
que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o
mesmo que hoje sou.
Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime.
Ainda há dias sofri uma impressão espantosa com um breve escerto do meu passado. Lembrome perfeitamente de que o meu escrúpulo, pelo menos relativo, pela linguagem data de há
poucos anos. Encontrei numa gaveta um escrito meu, muito mais antigo, em que esse mesmo
escrúpulo estava fortemente acentuado. Não me compreendi no passado positivamente. Como
avancei para o que já era? Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me
confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.
Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo já o escrevi. Recordo. E
pergunto ao que em mim presume de ser se não haverá no platonismo das sensações outra
anamnese mais inclinada, outra recordação de uma vida anterior que seja apenas desta vida...
Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há
entre mim e mim?
214
Outra vez encontrei um trecho meu, escrito em francês, sobre o qual haviam passado já quinze
anos. Nunca estive em França, nunca lidei de perto com franceses, nunca tive exercício,
portanto, daquela língua, de que me houvesse desabituado. Leio hoje tanto francês como
sempre li. Sou mais velho, sou mais prático de pensamento: deverei ter progredido. E esse
trecho do meu passado longínquo tem uma segurança no uso do francês que eu hoje não
possuo; o estilo é fluido, como hoje o não poderei ter naquele idioma; há trechos inteiros, frases
completas, formas e modos de expressão que acentuam um domínio daquela língua de que me
extraviei sem que me lembrasse que o tinha. Como se explica isto? A quem me substituí dentro
de mim?
Bem sei que é fácil formar uma teoria da fluidez das coisas e das almas, compreender que
somos um decurso interior de vida, imaginar que o que somos é uma quantidade grande, que
passamos por nós, que fomos muitos... Mas aqui há outra coisa que não o mero decurso da
personalidade entre as próprias margens: há o outro absoluto, um ser alheio que foi meu. Que
perdesse, com o acréscimo da idade, a imaginação, a emoção, um tipo de inteligência, um modo
de sentimento – tudo isso, fazendo-me pena, me não faria pasmo. Mas a que assisto quando me
leio como a um estranho? A que beira estou se me vejo no fundo?
Outras vezes encontro trechos que me não lembro de ter escrito – o que é pouco para pasmar –,
mas que nem me lembro de poder ter escrito – o que me apavora. Certas frases são de outra
mentalidade. É como se encontrasse um retrato antigo, sem dúvida meu, com uma estatura
diferente, com umas feições incógnitas – mas indiscutivelmente meu, pavorosamente eu.
215
Tenho as opiniões mais desencontradas, as crenças mais diversas. É que nunca penso, nem
falo, nem ajo... Pensa, fala, age por mim sempre um sonho qualquer meu, em que me encarno
de momento. Vou a falar e falo eu-outro. De meu, só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo
imenso, uma incompetência ante tudo quanto é a vida. Não sei os gestos a acto nenhum real, []
Nunca aprendi a existir.
Tudo que quero consigo, logo que seja dentro de mim.
Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de tédio continuado em pesadelo
voluptuoso.
O que antes era moral, é estético hoje para nós... O que era social é hoje individual...
Para quê olhar para os crepúsculos se tenho em mim milhares de crepúsculos diversos - alguns
dos quais que o não são - e se, além de os olhar dentro de mim, eu próprio os sou, por dentro?
225
Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, vagaroso e disperso, e, ao clarear-me o
Terreiro do Paço, vejo, nítido, o sem sol do céu ocidental. Esse céu é de um azul esverdeado
para cinzento branco, onde, do lado esquerdo, sobre os montes da outra margem, se agacha,
amontoada, uma névoa acastanhada de cor-de-rosa morto. Há uma grande paz que não tenho
dispersa friamente no ar outonal abstracto. Sofro de não ter o prazer vago de supor que ela
existe. Mas, na realidade, não há paz nem falta de paz: céu apenas, céu de todas as cores que
desmaiam - azul branco, verde ainda azulado, cinzento pálido entre verde e azul, vagos tons
remotos de cores de nuvens que o não são, amareladamente escurecidas de encarnado findo. E
tudo isto é uma visão que se extingue no mesmo momento em que é tida, um intervalo entre
nada e nada, alado, posto alto, em tonalidades de céu e mágoa, prolixo e indefinido.
Sinto e esqueço. Uma saudade, que é a de toda a gente por tudo, invade-me como um ópio do
ar frio. Há em mim um êxtase de ver, íntimo e postiço.
Para os lados da barra, onde o ter cessado o sol cada vez mais se acaba, a luz extingue-se em
branco lívido que se azula de esverdeado frio. Há no ar um torpor do que se não consegue
nunca. Cala alto a paisagem do céu.
Nesta hora, em que sinto até transbordar, quisera ter a malícia inteira de dizer, o capricho livre
de um estilo por destino. Mas não, só o céu alto é tudo, remoto, abolindo-se, e a moção que
tenho, e que é tantas, juntas e confusas, não é mais que o reflexo desse céu nulo num lago em
mim – lago recluso entre rochedos hirtos, calado, olhar de morto, em que a altura se contempla
esquecida.
Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que sinto – sentir como angústia só por
ser sentir, a inquietação de estar aqui, a saudade de outra coisa que se não conheceu, o poente
de todas as emoções, amarelecer-me esbatido para tristeza cinzenta na minha consciência
externa de mim.
Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que
brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer. É
todo o peso e toda a mágoa deste universo real e impossível, deste céu estandarte de um
exército incógnito, destes tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de onde o crescente
imaginário da lua emerge numa brancura eléctrica parada, recortado a longínquo e a insensível.
É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada.
Cárcere infinito- porque és infinito, não se pode fugir de ti!
235
Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-as sempre, e de todos. Nem ao mais
casual tem sido fácil ser grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para comigo. Algumas simpatias
tive que, com auxílio meu, poderia – pelo menos talvez – ter convertido em amor ou afecto.
Nunca tive paciência ou atenção do espírito para sequer desejar empregar esse esforço.
A princípio de observar isto em mim, julguei – tanto 'nos desconhecemos – que havia neste caso
da minha alma uma razão de timidez. Mas depois descobri que não havia; havia um tédio das
emoções, diferente do tédio da vida, uma impaciência de me ligar a qualquer sentimento
contínuo, sobretudo quando houvesse de se lhe atrelar um esforço prosseguido. Para quê?
pensava em mim o que não pensa. Tenho a subtileza bastante, o tacto psicológico suficiente
para saber o «como»; o «como do como» sempre me escapou. A minha fraqueza de vontade
começou sempre por ser uma fraqueza da vontade de ter vontade. Assim me sucedeu nas
emoções como me sucede na inteligência, e na vontade mesma, e em tudo quanto é vida.
Mas daquela vez em que uma malícia da oportunidade me fez julgar que amava, e verificar
deveras que era amado, fiquei, primeiro, estonteado e confuso, como se me saíra uma sorte
grande em moeda inconvertível. Fiquei, depois, porque ninguém é humano sem o ser, levemente
envaidecido; esta emoção, porém, que pareceria a mais natural, passou rapidamente. Sucedeuse um sentimento difícil de definir, mas em que se salientavam incomodamente as sensações de
tédio, de humilhação e de fadiga.
De tédio, como se o Destino me houvesse imposto uma tarefa em serões desconhecidos. De
tédio, como se um novo dever – o de uma horrorosa reciprocidade – me fosse dado com a ironia
de um privilégio, que eu me teria ainda que maçar, agradecendo-o ao Destino. De tédio, como se
me não bastasse a monotonia inconsistente da vida, para agora se lhe sobrepor a monotonia
obrigatória de um sentimento definido.
E de humilhação, sim, de humilhação. Tardei em perceber a que vinha um sentimento
aparentemente tão pouco justificado pela sua causa. O amor a ser amado deveria ter-me
aparecido. Deveria ter-me envaidecido de alguém reparar atentamente para a minha existência
como ser-amável. Mas, à parte o breve momento de real envaidecimento, em que todavia não
sei se o pasmo teve mais parte que a própria vaidade, a humilhação foi a sensação que recebi
de mim. Senti que me era dada uma espécie de prémio destinado a outrem – prémio, sim, de
valia para quem naturalmente o merecesse.
Mas fadiga, sobretudo fadiga – a fadiga que passa o tédio. Compreendi então uma frase de
Chateaubriand que sempre me enganara por falta de experiência de mim mesmo. Diz
Chateaubriand, figurando-se em Renê, «amarem-o cansava-o» – on le fatigait en Paimant.
Conheci, com pasmo, que isto representava uma experiencia idêntica à minha, e cuja verdade
portanto eu não tinha o direito de negar.
A fadiga de ser amado, de ser amado deveras! A fadiga de sermos o objecto do fardo das
emoções alheias! Converter quem quisera ver-se livre, sempre livre, no moço de fretes da
responsabilidade de corresponder, da decência de se não afastar, para que se não suponha que
se é príncipe nas emoções e se renega o máximo que uma alma humana pode dar. A fadiga [de]
se nos tornar a existência uma coisa dependente em absoluto de uma relação com um
sentimento de outrem! A fadiga de, em todo o caso, ter forçosamente que sentir, ter
forçosamente, ainda que sem reciprocidade, que amar um pouco também!
Passou de mim, como até mim veio, esse episódio na sombra. Hoje não resta dele nada, nem na
minha inteligência, nem na minha emoção. Não me trouxe experiência alguma que eu não
pudesse ter deduzido das leis da vida humana cujo conhecimento instintivo albergo em mim
porque sou humano. Não me deu nem prazer que eu recorde com tristeza, ou pesar que eu
lembre com tristeza também. Tenho a impressão de que foi uma coisa que li algures, um
incidente sucedido a outrem, novela de que li metade, e de que a outra metade faltou, sem que
me importasse que faltasse, pois até onde a li estava certa, e, embora não tivesse sentido, tal
era já que lhe não poderia dar sentido a parte faltante, qualquer que fosse o seu enredo.
Resta-me apenas uma gratidão a quem me amou. Mas e uma gratidão abstracta, pasmada, mais
da inteligência do que de qualquer emoção. Tenho pena que alguém tivesse tido pena por minha
causa; é disso que tenho pena, e não tenho pena de mais nada.
Não é natural que a vida me traga outro encontro com as emoções naturais. Quase desejo que
apareça para ver como sinto dessa segunda vez, depois de ter atravessado toda uma extensa
análise da primeira experiência. É possível que sinta menos; é também possível que sinta mais.
Se o Destino o der, que o dê. Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os factos, quaisquer
que venham a ser, não tenho curiosidade alguma.
249
Desde o meio do século dezoito que uma doença terrível baixou progressivamente sobre a
civilização. Dezassete séculos de aspiração cristã constantemente iludida, cinco séculos de
aspiração pagã perenemente postergada – o catolicismo que falira como cristismo, a renascença
que falira como paganismo, a reforma que falira como fenómeno universal. O desastre de tudo
quanto se sonhara, a vergonha, de tudo quanto se conseguira, a miséria de viver sem vida digna
que' os outros pudessem ter connosco, e sem vida dos outros que pudéssemos dignamente ter.
Isto caiu nas almas e envenenou-as. O horror à acção, por ter de ser vil numa sociedade vil,
inundou os espíritos. A actividade superior da alma adoeceu; só a actividade inferior, porque
mais vitalizada, não decaiu; inerte a outra, assumiu a regência do mundo.
Assim nasceu uma literatura e uma arte feitas dos elementos secundários do pensamento – o
romantismo; e uma vida social feita dos elementos secundários da actividade – a democracia
moderna. As almas nascidas para mandar só tinham o remédio de abster-se. As almas nascidas
para criar, numa sociedade onde as forças criadoras faliam, tinham por único mundo plástico à
sua vontade o mundo social dos seus sonhos, a esterilidade introspectiva da própria alma.
Chamamos «românticos», por igual, aos grandes que faliram e aos pequenos que se revelaram.
Mas não há semelhança senão na sentimentalidade evidente; mas em uns a sentimentalidade
mostra a impossibilidade do uso activo da inteligência; em outros mostra a ausência da própria
inteligência. São fruto da mesma época um Chateaubriand e um Hugo, um Vigny e um Michelet.
Mas um Chateaubriand é uma alma grande que diminui; um Hugo é uma alma pequena que se
distende com o vento do tempo; um Vigny é um génio que teve de fugir; um Michelet uma mulher
que teve de ser homem de génio. No pai de todos, Jean-Jacques Rousseau, as duas tendências
estão juntas. A inteligência nele era de criador, a sensibilidade de escravo. Afirma ambas por
igual. Mas a sensibilidade social, que tinha, envenenou as suas teorias, que a inteligência
apenas dispôs claramente. A inteligência que tinha só serviu para gemer a miséria de coexistir
com tal sensibilidade.
J.-J. Rousseau é o homem moderno, mas mais completo que qualquer homem moderno. Das
fraquezas que o fizeram falir tirou – ai dele e de nós! – as forças que o fizeram triunfar. O que
partiu dele venceu, mas nos lábaros da sua vitória, quando entrou na cidade, viu-se que estava
escrita, em baixo, a palavra «Derrota». No que dele ficou para trás, incapaz do esforço de
vencer, foram as coroas e os ceptros, a majestade de mandar e a glória de vencer por destino
interno.
II
O mundo, no qual nascemos, sofre de século e meio de renúncia ede violência – da renúncia
dos superiores e da violência dos inferiores, que é a sua vitória.
Nenhuma qualidade superior pode afirmar-se modernamente, tanto na acção, como no
pensamento, na esfera política, como na espéculativa.
A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera de brutalidade e de indiferença pelas
artes, onde uma sensibilidade fina não tem refúgio. Dói mais, cada vez mais, o contacto da alma
com a vida. O esforço é cada vez mais doloroso, porque são cada vez mais odiosas as
condições exteriores do esforço.
A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o
critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras – poucos podiam tentar
ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como
criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista,
porque todos têm sentimentos.
259
Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis,
sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para
mim interesse de nenhuma espécie – nem sequer mental ou de sonho –, transmudou-se-me o
desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem
bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em
todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo.
Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um
ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da
entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num
devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São
frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro
em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas.
Assim as idéias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de
sedas esbatidas, onde um lugar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me'têm feito
chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira
vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. «Fabricou Salomão um
palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como
nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele
movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras
inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são
cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei;
hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância de que não tenho
saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira
vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento
patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem
Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro,
com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não
quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a
sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que
me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da
transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.
266
Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de
piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi. Descubro hoje que,
por processos de infiltração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem
a porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e
fechada num lugar branco onde verdejam negros os ciprestes.
Eu era criança, e hoje não o sou; o som, porém, é igual na recordação ao que era na verdade, e
tem, perenemente presente, se se ergue de onde finge que dorme, a mesma lenta teclagem, a
mesma rítmica monotonia. Invade-me, de o considerar ou sentir, uma tristeza difusa, angustiosa,
minha.
Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha) infância, se perca. É a
fuga abstracta do tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu, que me dói no cérebro físico
pela recorrência repetida, involuntária, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anónimo e
longínquo. É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não
chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação.
Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta que nunca vi, onde a aprendiza que não
conheci está ainda hoje relatando, dedo a dedo cuidadosos, as escalas sempre iguais do que já
está morto. Vejo, vou vendo mais, reconstruo vendo. E todo o lar lá do andar de cima, saudoso
hoje mas não ontem, vem erguendo-se fictício da minha contemplação desentendida.
Suponho, porém, que nisto tudo sou translato, que a saudade que sinto não é bem minha, nem
bem abstracta, mas a emoção interceptada de não sei que terceiro, a quem estas emoções, que
em mim são literárias, fossem – di-lo-ia Vieira – literais. E na minha suposição de sentir que me
magoo e angustio, e as saudades, a cuja sensação se me mareiam os olhos próprios, e por
imaginação e outridade que as penso e sinto.
E sempre, com uma constancia que vem do fundo do mundo, com uma persistência que estuda
metafisicamente, soam, soam, soam, as escalas de quem aprende piano, pela espinha dorsal
física da minha recordação. São as ruas antigas com outra gente, hoje as mesmas ruas
diversas; são pessoas mortas que me estão falando, através da transparência da falta delas
hoje; são remorsos do que fiz ou não fiz, sons de regatos na noite, ruídos lá em baixo na casa
queda.
Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar, partir esse impossível disco
gramofónico que soa dentro de mim em casa alheia, torturador intangível. Quero mandar parar a
alma, para que ela, como veículo que me ocupassem, siga para diante só e me deixe. Endoideço
de ter que ouvir. E por fim sou eu, no meu cérebro odientamente sensível, na minha pele
pelicular, nos meus nervos postos à superfície, as teclas tecladas em escalas, ó piano horroroso
é pessoal da nossa recordação.
E sempre, sempre, como que numa parte do cérebro que se tornasse independente, soam,
soam, soam escalas lá em baixo, lá em cima, da primeira casa de Lisboa onde vim habitar.
275
O governo do mundo começa em nós mesmos. Não são os sinceros que governam o mundo,
mas também não são os insinceros. São os que fabricam em si uma sinceridade real por meios
artificiais e automáticos; essa sinceridade constitui a sua força, e é ela que irradia para a
sinceridade menos falsa dos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista. Só
aos poetas e aos filósofos compete a visão prática do mundo, porque só a esses é dado não ter
ilusões. Ver claro é não agir.
276
Uma opinião é uma grosseria, mesmo quando não é sincera.
Toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais.
288
Que tragédia não acreditar na perfectibilidade humana!...
- E que tragédia acreditar nela!
319
Reconheço hoje que falhei; só pasmo, às vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em
mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa
dos loucos... Era lúcido e triste como um dia frio.
As coisas nítidas confortam, e as coisas ao sol confortam. Ver passar a vida sob um dia azul
compensa-mede muito. Esqueço indefinidamente, esqueço mais do que podia lembrar. O meu
coração translúcido e aéreo penetra-se da suficiência das coisas, e olhar basta-me
carinhosamente. Nunca eu fui outra coisa que uma visão incorpórea, despida de toda a alma
salvo um vago ar que passou e que via.
Tenho elementos espirituais de boémio, desses que deixam a vida ir como uma coisa que se
escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas
não tive a compensação exterior do espírito boémio – o descuidado fácil das emoções imediatas
e abandonadas. Nunca fui mais que um boémio isolado, o que é um absurdo; ou um boémio
místico, o que e uma coisa impossível.
Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a Natureza, esculpidas na ternura do
isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus
propósitos de vida, todas as minhas direcções desejadas. Gozei não ser nada com uma
plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca,
talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo. Em todas as
minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha
consciência, em outros quintais; mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam
intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixava de ser, no
mistério confuso do meu ser, um lado de cá esbatido na minha sonolência de viver.
Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as
árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os
momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos
deles como um Narciso cego, que gozasse a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado
nela, por uma visão anterior e nocturna, segredada às emoções abstractas, vivida nos recantos
da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.
Os teus colares de pérolas fingidas amaram comigo as minhas horas melhores. Eram cravos as
flores preferidas, talvez porque não significavam requintes. Os teus lábios festejavam
sobriamente a ironia do seu próprio sorriso. Compreendias bem o teu destino? Era por o
conheceres sem que o compreendesses que o mistério escrito na tristeza dos teus olhos
sombreara tanto os teus lábios desistidos. A nossa Pátria estava demasiado longe para rosas.
Nas cascatas dos nossos jardins a água era pelúcida de silêncios. Nas pequenas cavidades
rugosas das pedras, por onde a água escolhia, havia segredos que tivéramos quando crianças,
sonhos do tamanho parado dos nossos soldados de chumbo, que podiam ser postos nas pedras
da cascata, na execução estática duma grande acção militar, sem que faltasse nada aos nossos
sonhos, nem nada tardasse às nossas suposições.
Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a
uma febre que o enclausura.
Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer porque eles me faltassem,
quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos. Vivi sempre isolado, e
cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim.
411
O orgulho é a certeza emotiva da grandeza própria. A vaidade é a certeza emotiva de que os
outros vêem em nós, ou nos atribuem, tal grandeza. Os dois sentimentos nem necessariamente
se conjugam, nem por natureza se opõem. São diferentes porém conjugáveis.
O orgulho, quando existe só, sem acrescentamento de vaidade, manifesta-se, no seu resultado,
como timidez: quem se sente grande, porém não confia em que os outros o reconheçam por tal,
receia confrontar a opinião que tem de si mesmo com a opinião que os outros possam ter dele.
A vaidade, quando existe só, sem acrescentamento de orgulho, o que é possível porém raro,
manifesta-se, no seu resultado, pela audácia. Quem tem a certcca de que os outros vêem nele
valor nada receia deles. Pode haver coragem física sem vaidade; pode haver coragem moral
sem vaidade; não pode haver audácia sem vaidade. E por audácia se entende a confiança na
iniciativa. A audácia pode ser desacompanhada de coragem, física ou moral, pois estas
disposições da índole são de ordem diferente, e com ela incomensuráveis.
437
Há sossegos do campo na cidade. Há momentos, sobretudo nos meios-dias de estio, em que,
nesta Lisboa luminosa, o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na Rua dos
Douradores, temos o bom sono.
Que bom à alma ver calar, sob um sol alto quieto, estas carroças com palha, estes caixotes por
fazer, estes transeuntes lentos, de aldeia transferida! Eu mesmo, olhando-os da janela do
escritório, onde estou só, me transmuto: estou numa vila quieta da província, estagno numa
aldeola incógnita, e porque me sinto outro sou feliz.
Bem sei: se ergo os olhos, está diante de mim a linha sórdida da casaria, as janelas por lavar de
todos os escritórios da Baixa, as janelas sem sentido dos andares mais altos onde ainda se
mora, e, ao alto, no angular das trapeiras, a roupa de sempre, ao sol entre vasos e plantas. Sei
isto, mas é tão suave a luz que doura tudo isto, tão sem sentido o ar calmo que me envolve, que
não tenho razão sequer visual para abdicar da minha aldeia postiça, da minha vila de província
onde o comércio é um sossego.
Bem sei, bem sei... Verdade seja que é a hora de almoço, ou de repouso, ou de intervalo.. Tudo
vai bem pela superfície da vida. Eu mesmo durmo, ainda que me debruce da varanda, como se
fosse a amurada de um barco sobre uma paisagem nova. Eu mesmo nem cismo, como se
estivesse na província. E, subitamente, outra coisa me surge, me envolve, me comanda: vejo por
detrás do meio-dia da vila toda a vida em tudo da vila; vejo a grande felicidade estúpida da vida
doméstica, a grande felicidade estúpida da vida nos campos, a grande felicidade estúpida do
sossego na sordidez. Vejo, porque vejo. Mas não vi e desperto. Olho em roda, sorrindo, e, antes
de mais nada, sacudo dos cotovelos do fato, infelizmente escuro, todo o pó do apoio da varanda,
que ninguém limpou, ignorando que teria um dia, um momento que fosse, que ser a amurada
sem pó possível de um barco singrando num turismo infinito.
464
Quem tenha lido as páginas deste livro, que estão antes desta, terá sem dúvida formado a ideia
de que sou um sonhador. Ter-se-ia enganado se a formou. Para ser sonhador falta-me o
dinheiro.
As grandes melancolias, as tristezas cheias de tédio, não podem existir senão com um ambiente
de conforto e de sóbrio luxo. Por isso o Egeus de Poe, concentrado horas e horas numa
absorção doentia, o faz num castelo antigo, ancestral, onde, para além das portas da grande
sala onde jaz a vida, mordomos invisíveis administram a casa e a comida.
O grande sonho requer certas circunstâncias sociais. Um dia que, embevecido por certo
movimento rítmico e dolente do que escrevera, me recordei de Chateaubriand, não tardou que
me lembrasse de que eu não era visconde, nem sequer bretão. Outra vez que julguei sentir, no
sentido do que dissera, uma semelhança com Rousseau, não tardou, também, que me
ocorresse que, não [tendo] tido o privilégio de ser fidalgo e castelão, também o não tivera de ser
suíço e vagabundo.
Mas, enfim, também há universo na Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não
falte o enigma de viver. E por isso, se são pobres, como a paisagem de carroças e caixotes, os
sonhos que consigo extrair de entre as rodas e as tábuas, ainda assim são para mim o que
tenho, e o que posso ter.
Alhures, sem dúvida, é que os poentes são. Mas até deste quarto andar sobre a cidade se pode
pensar no infinito. Um infinito com armazéns em baixo, é certo, mas com estrelas ao fim... É o
que me ocorre, neste acabar de tarde, à janela alta, na insatisfação do burguês que não sou e na
tristeza do poeta que nunca poderei ser.
466
O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza
deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.
Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de
tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver.
O criador do espelho envenenou a alma humana.
467
Ouvia-me lendo os meus versos – que nesse dia li bem, porque me distraí – e disse-me, com a
simplicidade de uma lei natural: «Você, assim, e com outra cara, seria um grande fascinador.» A
palavra «cara», mais que a referência que continha, ergueu-me de mim pela gola,do que me não
conheço. Vi o espelho do meu quarto, o meu pobre rosto de mendigo sem pobreza; e de repente
o espelho virou-se e o espectro da Rua dos Douradores abriu-se diante de mim como um
nirvana do carteiro.
A acuidade das minhas sensações chega a ser uma doença que me é alheia. Sofre-a outro de
quem eu sou a parte doente, porque verdadeiramente sinto como em dependência de uma maior
capacidade de sentir. Sou como um tecido especial, ou até uma célula, sobre a qual pesasse
toda a responsabilidade de um organismo.
Se penso, é porque divago; se sonho, é porque estou desperto. Tudo em mim se embrulha
comigo, e não tem forma de saber de ser.
474
UM DIA
Em vez de almoçar – necessidade que tenho de fazer acontecer-me todos os dias – fui ver o
Tejo; e voltei a vaguear pelas ruas sem mesmo supor que achei útil à alma vê-lo. Ainda assim...
Viver não vale a pena. Só olhar é que vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria a felicidade,
mas é impossível, como tudo quanto costuma ser o que sonhamos. O êxtase que não incluísse a
vida!...
Criar ao menos um pessimismo novo, uma nova negação, para que tivéssemos a ilusão que de
nós alguma coisa, ainda que para mal, ficava!
480
Alastra ante meus olhos a cidade incerta e silente. As casas desigualam-se num aglomerado
retido, e o luar, com manchas de incerteza, estagna de madrepérola os solavancos mortos da
profusão. Há telhados e sombras, janelas e idade média. Não há de que haver arredores. Pousa
no que se vê um vislumbre de longínquo. Por sobre de onde vejo há ramos negros de árvores, e
eu tenho o sono da cidade inteira no meu coração dissuadido. Lisboa ao luar e o meu cansaço
de amanhã!
Que noite! Prouvera a quem causou os pormenores do mundo que não houvesse para mim
melhor estado ou melodia que o momento lunar destacado em que me desconheço conhecido.
Nem brisa, nem gente interrompe o que não penso. Tenho sono do mesmo modo que tenho
vida. Só que sinto nas pálpebras como se houvesse o que fazer-mas pesar. Ouço a minha
respiração. Durmo ou desperto?
Custa-me um chumbo dos sentidos o mover-me com os pés para onde moro. A carícia do
apagamento, a flor dada do inútil, o meu nome nunca pronunciado, o meu desassossego entre
margens, o privilégio de deveres cedidos, e, na última curva do parque avoengo, o outro século
como um roseiral.
481
Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem
constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho
calma só onde já tenho estado.
Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia
colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e
com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de
perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e a lembrança. "Morreu ontem", respondeu sem
tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última
inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de
repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto
penso. Não disse nada.
Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma
doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais - se deixo de
vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.
O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia
da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do
charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que,
porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da
Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu - a alma
que sente e pensa, o universo que sou para mim - sim, amanhã eu também serei o que deixou
de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um "o que será dele?". E tudo
quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na
quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.
Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego, ed. Richard Zenith. Linda-a-Velha, Abril
Controljornal, 2000.
A Confissão de Lúcio, Mário de Sá-Carneiro
Fonte:
CARNEIRO, Mário de Sá. A confissão de Lúcio. Rio de Janeiro: Ediouro, 1991.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Mauro José da Silva – São Paulo/SP
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A CONFISSÃO DE LÚCIO
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
A
António Ponce de Leão
…assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo
bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria…
FERNANDO PESSOA
Na Floresta do Alheamento
Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca
me defendi, morto para a vida e para os sonhos… nada podendo já esperar e coisa alguma
desejando — eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a minha inocência.
Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas pouco importa. O meu
interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo de Loureiro é nulo. Não tenho família; não
preciso que me reabilitem. Mesmo, quem esteve dez anos preso, nunca se reabilita. A verdade
simples é esta.
E aqueles que, lendo o que fica exposto, me perguntarem: — "Mas por que não fez a
sua confissão quando era tempo? Por que não demonstrou a sua inocência ao tribunal?" — a esses
responderei: — A minha defesa era impossível. Ninguém me acreditaria. E fora inútil fazer-me
passar por um embusteiro ou por um doido… Demais, devo confessar, após os acontecimentos em
que me vira envolvido nessa época, ficara tão despedaçado que a prisão se me afigurava uma coisa
sorridente. Era o esquecimento, a tranqüilidade, o sono. Era um fim como qualquer outro — um
termo para a minha vida devastada. Toda a minha ânsia foi pois de ver o processo terminado e
começar cumprindo a minha sentença.
De resto, o meu processo foi rápido. Oh! o caso parecia bem claro… Eu nem negava
nem confessava. Mas quem cala consente… E todas as simpatias estavam do meu lado.
O crime era, como devem ter dito os jornais do tempo, um "crime passional". Cherchez
la femme. Depois, a vítima um poeta — um artista. A mulher romantizara-se desaparecendo. Eu era
um herói, no fim de contas. E um herói com seus laivos de mistério, o que mais me aureolava. Por
tudo isso, independentemente do belo discurso de defesa, o júri concedeu-me circunstâncias
atenuantes. E a minha pena foi curta.
Ah! foi bem curta — sobretudo para mim… Esses dez anos esvoaram-se-me como dez
meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter ação sobre aqueles que viveram um
instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas
as sensações máximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são
as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os
desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.
Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não
vivem, têm a paz — pode ser. Entretanto, não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento
luminoso. Logo, todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido.
Mas ponhamos termos aos devaneios. Não estou escrevendo uma novela. Apenas
desejo fazer uma exposição clara de fatos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau caminho —
parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará — estou certo — a
mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.
Uma coisa garanto porém: durante ela não deixarei escapar um pormenor, por mínimo
que seja, ou aparentemente incaracterístico. Em casos como o que tento explanar, a luz só pode
nascer de uma grande soma de fatos. E são apenas fatos que eu relatarei. Desses fatos, quem quiser,
tire as conclusões. Por mim, declaro que nunca experimentei. Endoideceria, seguramente.
Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é que só digo a verdade.
Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade — mesmo quando ela é inverossímil.
A minha confissão é um mero documento.
1
Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou
melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha
vida e de todos igualmente desistido — sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande
capital. Logo me embrenhei por meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova, que eu mal
conhecia de Lisboa, volveu-se-me o companheiro de todas as horas. Curiosa personalidade essa de
grande artista falido, ou antes, predestinado para a falência.
Perturbava o seu aspecto físico, macerado e esguio, e o seu corpo de unhas quebradas
tinha estilizações inquietantes de feminilismo histérico e opiado, umas vezes — outras,
contrariamente, de ascetismo amarelo. Os cabelos compridos, se lhe descobriam a testa ampla e
dura, terrível, evocavam cilícios, abstenções roxas; se lhes escondiam a fronte, ondeadamente, eram
só ternura, perturbadora ternura de espasmos dourados e beijos sutis. Trajava sempre de preto, fatos
largos, onde havia o seu quê de sacerdotal — nota mais frisantemente dada pelo colarinho direito,
baixo, fechado. Não era enigmático o seu rosto — muito pelo contrário — se lhe cobriam a testa os
cabelos ou o chapéu. Entanto, coisa bizarra, no seu corpo havia mistério — corpo de esfinge,
talvez, em noites de luar. Aquela criatura não se nos gravava na memória pelos seus traços
fisionômicos, mas sim pelo seu estranho perfil. Em todas as multidões ele se destacava, era olhado,
comentado — embora, em realidade, a sua silhueta à primeira vista parecesse não se dever salientar
notavelmente: pois o fato era negro — apenas de um talhe um pouco exagerado —, os cabelos não
escandalosos, ainda que longos; e o chapéu, um bonet de fazenda — esquisito, era certo —, mas
que em todo o caso muitos artistas usavam, quase idêntico.
Porém, a verdade é que em redor da sua figura havia uma auréola. Gervásio Vila-Nova
era aquele que nós olhamos na rua, dizendo: ali, deve ir alguém.
Todo ele encantava as mulheres. Tanta rapariguinha que o seguia de olhos fascinados
quando o artista, sobranceiro e esguio, investigava os cafés… Mas esse olhar, no fundo, era mais o
que as mulheres lançam a uma criatura do seu sexo, formosíssima e luxuosa, cheia de pedrarias…
— Sabe, meu caro Lúcio — dissera-me o escultor, muita vez —, não sou eu nunca que
possuo as minhas amantes; elas é que me possuem…
Ao falar-nos, brilhava ainda mais a sua chama. Era um conversador admirável, adorável
nos seus erros, nas suas ignorâncias, que sabia defender intensamente, sempre vitorioso; nas suas
opiniões revoltantes e belíssimas, nos seus paradoxos, nas suas blagues. Uma criatura superior —
ah! sem dúvida. Uma destas criaturas que se enclavinham na memória — e nos perturbam, nos
obcecam. Todo fogo! todo fogo!
Entretanto, se o examinávamos com a nossa inteligência, e não apenas com a nossa
vibratilidade, logo víamos que, infelizmente, tudo se cifrava nessa auréola, que o seu gênio —
talvez por demasiado luminoso — se consumiria a si próprio, incapaz de se condensar numa obra
— disperso, quebrado, ardido. E assim aconteceu, com efeito. Não foi um falhado porque teve a
coragem de se despedaçar.
A uma criatura como aquela não se podia ter afeto, embora no fundo ele fosse um
excelente rapaz: mas ainda hoje evoco com saudade as nossas palestras, as nossas noites de café —
e chego a convencer-me que, sim, realmente, o destino de Gervásio Vila-Nova foi o mais belo: e
ele um grande, um genial artista.
*
*
*
Tinha muitas relações no meio artístico o meu amigo. Literatos, pintores, músicos, de
todos os países. Uma manhã, entrando no meu quarto, desfechou-me:
— Sabe, meu caro Lúcio, apresentaram-me ontem uma americana muito interessante.
Calcule, é uma mulher riquíssima que vive num palácio que propositadamente fez construir no
local onde existiam dois grandes prédios que ela mandou deitar abaixo — isto, imagine você, em
plena Avenida do Bosque de Bolonha! Uma mulher linda. Nem calcula. Quem me apresentou foi
aquele pintor americano dos Óculos azuis. Recorda-se? Eu não sei como ele se chama… Podemo-la
encontrar todas as tardes no Pavilhão de Armenonville. Costuma ir lá tomar chá. Quero que você a
conheça. Vai ver. Interessantíssima!
No dia seguinte — uma esplêndida tarde de inverno, tépida, cheia de sol e céu azul —,
tomando um fiacre, lá nos dirigimos ao grande restaurante. Sentamo-nos; mandou-se vir chá… Dez
minutos não tinham decorrido, quando Gervásio me tocava no braço. Um grupo de oito pessoas
entrava no salão — três mulheres, cinco homens. Das mulheres, duas eram loiras, pequeninas, de
pele de rosas e leite; de corpos harmoniosos, sensuais — idênticas a tantas inglesas adoráveis. Mas
a outra, em verdade, era qualquer coisa de sonhadamente, de misteriosamente belo. Uma criatura
alta, magra, de um rosto esguio de pele dourada — e uns cabelos fantásticos, de um ruivo
incendiado, alucinante. A sua formosura era uma destas belezas que inspiram receio. Com efeito,
mal a vi, a minha impressão foi de medo — de um medo semelhante ao que experimentamos em
face do rosto de alguém que praticou uma ação enorme e monstruosa.
Ela sentou-se sem ruído; mas logo, vendo-nos, correu estendendo as mãos para o
escultor:
— Meu caro, muito prazer em o encontrar… Falaram-me ontem muito bem de si… Um
seu compatriota… um poeta… M. de Loureiro, julgo…
Foi difícil adivinhar o apelido português entre a pronúncia mesclada.
— Ah… Não o sabia em Paris — murmurou Gervásio.
E para mim, depois de me haver apresentado à estrangeira:
— Você conhece? Ricardo de Loureiro, o poeta das Brasas…
Que nunca lhe falara, que apenas o conhecia de vista e, sobretudo, que admirava
intensamente a sua obra.
— Sim… não discuto isso… você bem vê, para mim já essa arte passou. Não me pode
interessar… Leia-me os selvagens, homem, que diacho!…
Era uma das scies de Gervásio Vila-Nova: elogiar uma pseudo-escola literária da última
hora — o Selvagismo, cuja novidade residia em os seus livros serem impressos sobre diversos
papéis e com tintas de várias cores, numa estrambótica disposição tipográfica. Também — e eis o
que mais entusiasmava o meu amigo — os poetas e prosadores selvagens, abolindo a idéia, "esse
escarro", traduziam as suas emoções unicamente em jogo silábico, por onomatopéias rasgadas,
bizarras: criando mesmo novas palavras que coisa alguma significavam e cuja beleza, segundo eles,
residia justamente em não significarem coisa alguma… De resto, até aí, parece que apenas se
publicara um livro dessa escola. Certo poeta russo de nome arrevesado. Livro que Gervásio
seguramente não lera, mas que todavia se não cansava de exalçar, gritando-o assombroso, genial…
A mulher estranha chamou-nos para a sua mesa, e apresentou-nos os seus
companheiros, que ainda não conhecíamos: o jornalista Jean Lamy, do Fígaro, o pintor holandês
Van Derk e o escultor inglês Tomás Westwood. Os dois outros eram o pintor americano dos Óculos
azuis e o inquietante viscondezinho de Naudières, louro, diáfano, maquilado. Quanto às duas
raparigas, limitou-se apontando-nos:
— Jenny e Dora.
A conversa logo se entabulou ultracivilizada e banal. Falou-se de modas, discutiu-se
teatro e music-hall, com muita arte à mistura. E quem mais se distinguiu, quem em verdade até
exclusivamente falou, foi Gervásio. Nós limitávamo-nos — como acontecia com todos, perante ele,
perante a sua intensidade — a ouvir, ou, quando muito, a protestar. Isto é: a dar ensejo para que ele
brilhasse…
— Sabe, meu querido Lúcio — uma vez contara-me o escultor —, o Fonseca diz que é
um ofício acompanhar-me. E uma arte difícil, fatigante. É que eu falo sempre; não deixo o meu
interlocutor repousar. Obrigo-o a ser intenso, a responder-me… Sim, concordo que a minha
companhia seja fatigante. Vocês têm razão.
Vocês — note-se em parêntese — era todo o mundo, menos Gervásio… E o Fonseca,
de resto, um pobre pintorzinho da Madeira, "pensionista do Estado", de barbichas, lavallière,
cachimbo — sempre calado e oco, olhando nostalgicamente o espaço, à procura talvez da sua ilha
perdida… Um santo rapaz!
Depois de muito se conversar sobre teatro e de Gervásio ter proclamado que os atores
— ainda os maiores, como a Sara, o Novelli — não passavam de meros cabotinos, de meros
intelectuais que aprendiam os seus papéis, e de garantir — "creiam os meus amigos que é assim" —
que a verdadeira arte apenas existia entre os saltimbancos; esses saltimbancos que eram um dos
seus estribilhos e sobre os quais, na noite em que nos encontráramos em Paris, logo me narrara, em
confidência, uma história tétrica: o seu rapto por uma companhia de pelotiqueiros, quando tinha
dois anos e os pais o haviam mandado, barbaramente, para uma ama da serra da Estrela, mulher de
um oleiro, do qual, sem dúvida, ele herdara a sua tendência para a escultura e de quem, na verdade,
devido a uma troca de berços, era até muito possível que fosse filho — a conversa deslizou, não sei
como, para a voluptuosidade na arte.
E então a americana bizarra logo protestou:
— Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus
amigos, a voluptuosidade é uma arte — e, talvez, a mais bela de todas. Porém, até hoje, raros a
cultivaram nesse espírito. Venham cá, digam-me: fremir em espasmos de aurora, em êxtases de
chama, ruivos de ânsia — não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago
calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida,
acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los. E eis
o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a
luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos úmidos, em carícias repugnantes, viscosas.
Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade,
que obras irreais de admiráveis não altearia!… Tinha o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores,
os aromas, os narcóticos e as sedas — tantos sensualismos novos ainda não explorados… Como eu
me orgulharia de ser esse artista!… E sonho uma grande festa no meu palácio encantado, em que os
maravilhasse de volúpia… em que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos
fogos multicolores — e que a vossa carne, então, sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os
sons, penetrando-a a dimaná-los, a esvaí-los, a matá-los!… Pois nunca atentaram na estranha
voluptuosidade do fogo, na perversidade da água, nos requintes viciosos da luz?.. Eu confesso-lhes
que sinto uma verdadeira excitação sexual — mas de desejos espiritualizados de beleza — ao
mergulhar as minhas pernas todas nuas na água de um regato, ao contemplar um braseiro
incandescente, ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes elétricas, luminosas… Meus amigos,
creiam-me, não passam de uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que
presumam aparentar!
Gervásio insurgiu-se: "Não; a voluptuosidade não era uma arte. Falassem-lhe do
ascetismo, da renúncia. Isso sim!… A voluptuosidade ser uma arte? Banalidade… Toda a gente o
dizia ou, no fundo, mais ou menos o pensava…
E por aqui fora, adoravelmente dando a conhecer que só por se lhe afigurar essa a
opinião mais geral, ele a combatia.
Durante toda a conversa, apenas quem nunca arriscara uma palavra tinham sido as duas
inglesinhas, Jenny e Dora — sem também despregarem ainda de Gervásio, um só instante, os olhos
azuis e louros.
Entretanto as cadeiras haviam-se deslocado e, agora, o escultor sentava-se junto da
americana. Que belo grupo! Como os seus dois perfis se casavam bem na mesma sombra esbatidos
— duas feras de amor, singulares, perturbadoras, evocando mordoradamente perfumes esfíngicos,
luas amarelas, crepúsculos de roxidão. Beleza, perversidade, vício e doença…
Mas a noite descera. Um par de amorosos do grande mundo entrava a refugiar-se no
célebre estabelecimento, quase deserto pelo inverno.
A americana excêntrica deu o sinal de partida; e quando ela se ergueu eu notei,
duvidosamente notei, que calçava umas estranhas sandálias, nos pés nus… nos pés nus de unhas
douradas…
*
*
*
Na Porta Maillot, tomamos o tramway para Montparnasse, começando Gervásio:
— Então, Lúcio, que lhe pareceu a minha americana?
— Muito interessante.
— Sim? Mas você não deve gostar daquela gente. Eu compreendo bem. Você é uma
natureza simples, e por isso…
— Ao contrário — protestava eu em idiotice —, admiro muito essa gente. Acho-os
interessantíssimos. E quanto à minha simplicidade…
— Ah, pelo meu lado, confesso que os adoro… Sou todo ternura por eles. Sinto tantas
afinidades com essas criaturas… como também as sinto com os pederastas… com as prostitutas…
Oh! é terrível, meu amigo, terrível…
Eu sorria apenas. Estava já acostumado. Sabia bem o que significava tudo aquilo. Isto
só: Arte.
Pois Gervásio partia do princípio de que o artista não se revelava pelas suas obras, mas
sim, unicamente, pela sua personalidade. Queria dizer: ao escultor, no fundo, pouco importava a
obra de um artista. Exigia-lhe porém que fosse interessante, genial, no seu aspecto físico, na sua
maneira de ser — no seu modo exterior, numa palavra:
— Porque isto, meu amigo, de se chamar artista, de se chamar homem de gênio, a um
patusco obeso como o Balzac, corcovado, aborrecido, e que é vulgar na sua conversa, nas suas
opiniões — não está certo; não é justo nem admissível.
— Ora… — protestava eu, citando verdadeiros grandes artistas, bem inferiores no seu
aspecto físico.
E então Gervásio Vila-Nova tinha respostas impagáveis.
Se por exemplo — o que raro acontecia — o nome citado era o de um artista que ele já
alguma vez me elogiara
pelas suas obras, volvia-me:
— O meu amigo desculpe-me, mas é muito pouco lúcido. Esse de quem me fala,
embora aparentemente medíocre, era todo chama. Pois não sabe quando ele…
E inventava qualquer anedota interessante, bela, intensa, que atribuía ao seu homem…
E eu calava-me…
De resto, era outro traço característico em Gervásio: construir as individualidades como
lhe agradava que fossem, e não as ver como realmente eram. Se lhe apresentavam uma criatura com
a qual, por qualquer motivo, simpatizava — logo lhe atribuía opiniões, modos de ser do seu agrado;
embora, em verdade, a personagem fosse a antítese disso tudo.
É claro que um dia chegava a desilusão. Entretanto, longo
tempo ele tinha a força de sustentar o encanto…
Pelo caminho, não pude deixar de lhe observar:
— Você Reparou que ela trazia os pés descalços, em sandálias, e as unhas douradas?
— Você crê?… Não…
A desconhecida estranha impressionara-me vivamente
e, antes de adormecer, largo tempo a relembrei e à roda que a acompanhava.
Ah! como Gervásio tinha razão, como eu no fundo abominava essa gente — os artistas.
Isto é, os falsos artistas cuja obra se encerra nas suas atitudes; que falam petulantemente, que se
mostram complicados de sentidos e apetites, artificiais, irritantes, intoleráveis. Enfim, que são os
exploradores da arte apenas no que ela tem de falso e de exterior.
Mas, na minha incoerência de espírito, logo me vinha outra idéia: — Ora, se os odiava,
era só afinal por os invejar e não poder nem saber ser como eles…
Em todo o caso, mesmo abominando-os realmente, o certo é que me atraíam como um
vício pernicioso.
Durante uma semana — o que raro acontecia — estive sem ver Gervásio.
Ao fim dela, apareceu-me e contou-me:
— Sabe, tenho estreitado relações com a nossa americana. É na verdade uma criatura
interessantíssima. E muito artista… Aquelas duas pequenas são amantes dela. É uma grande sáfica.
— Não…
— Asseguro-lhe.
E não falamos mais da estrangeira.
*
*
*
Passou-se um mês. Eu já me esquecera da mulher fulva, quando uma noite o escultor
me participou de súbito:
— É verdade: aquela americana que eu lhe apresentei outro dia dá amanhã uma grande
soirée. Você está convidado.
— Eu!? ..
— Sim. Ela disse-me que levasse alguns amigos. E falou-me de si. Aprecia-o muito…
Aquilo deve ser curioso. Há uma representação no fim — umas apoteoses, uns bailados ou o quer
que é. Entanto se é maçador para você, não venha. Eu creio que estas coisas o aborrecem…
Protestei, idiotamente ainda, como era meu hábito; afirmei que, pelo contrário, tinha até
um grande empenho em o acompanhar, e marcamos rendez-vous para a noite seguinte, na Closerie,
às dez horas.
No dia da festa, arrependi-me de haver aceitado. Eu era tão avesso à vida mundana… E
depois, ter que envergar um smoking, perder uma noite…
Enfim… enfim…
Quando cheguei ao café — caso estranho! — já o meu amigo chegara. E disse-me:
Ah… sabe? Temos que esperar ainda pelo Ricardo de Loureiro. Também está
convidado. E ficou de se encontrar aqui comigo. Olhe, aí vem ele…
E apresentou-nos:
— O escritor Lúcio Vaz.
— O poeta Ricardo de Loureiro.
E nós, um ao outro:
— Muito gosto em o conhecer pessoalmente.
Pelo caminho a conversa foi-se entabulando e, ao primeiro contato, logo experimentei
uma viva simpatia por Ricardo de Loureiro. Adivinhava-se naquele rosto árabe de traços decisivos,
bem vincados, uma natureza franca, aberta — luminosa por uns olhos geniais, intensamente negros.
Falei-lhe da sua obra, que admirava, e ele contou-me que lera o meu volume de novelas
e que, sobretudo, lhe interessara o conto chamado João Tortura. Esta opinião não só me lisonjeou,
como mais me fez simpatizar com o poeta, adivinhando nele uma natureza que compreenderia um
pouco a minha alma. Efetivamente, essa novela era a que eu preferia, que de muito longe eu
preferia, e entretanto a única que nenhum crítico destacara — que os meus amigos mesmo, sem mo
dizerem, reputavam a mais inferior.
Brilhantíssima aliás a conversa do artista, além de insinuante, e pela vez primeira eu vi
Gervásio calar-se — ouvir, ele que em todos os grupos era o dominador.
Por fim o nosso coupé estacou em face de um magnífico palácio da Avenida do
Bosque, todo iluminado através de cortinas vermelhas, de seda, fantasticamente. Carruagens,
muitas, à porta — contudo uma mescla de fiacres mais ou menos avariados, e algumas soberbas
equipagens particulares.
Descemos.
À entrada, como no teatro, um lacaio recebeu os nossos cartões de convite, e outro
imediatamente nos empurrou para um ascensor que, rápido, nos ascendeu ao primeiro andar. Então,
deparou-se-nos um espetáculo assombroso:
Uma grande sala elíptica, cujo teto era uma elevadíssima cúpula rutilante, sustentada
por colunas multicolores em mágicas volutas. Ao fundo, um estranho palco erguido sobre esfinges
bronzeadas, do qual — por degraus de mármore rosa — se descia a uma larga piscina semicircular,
cheia de água translúcida. Três ordens de galerias — de forma que todo o aspecto da grande sala
era o de um opulento, fantástico teatro.
Em qualquer parte, ocultamente, uma orquestra moía valsas.
À nossa entrada — foi sabido — todos os olhares se fixaram em Gervásio Vila-Nova,
hierático, belíssimo, na sua casaca negra, bem cintada. E logo a estrangeira se nos precipitou a
perguntar a nossa opinião sobre a sala. Com efeito, os arquitetos apenas há duas semanas a tinham
dado por concluída. Aquela festa suntuosa era a sua inauguração.
Gritamos o nosso pasmo em face à maravilha, e ela, a encantadora, teve um sorriso de
mistério:
— Logo, é que eu desejo conhecer o vosso juízo… E, sobretudo, o que pensam das
luzes…
Um deslumbramento, o trajo da americana. Envolvia-a uma túnica de um tecido muito
singular, impossível de descrever. Era como que uma estreita malha de fios metálicos — mas dos
metais mais diversos — a fundirem-se numa cintilação esbraseada, onde todas as cores ora se
enclavinhavam ululantes, ora se dimanavam, silvando tumultos astrais de reflexos. Todas as cores
enlouqueciam na sua túnica.
Por entre as malhas do tecido, olhando bem, divisava-se a pele nua; e o bico de um seio
despontava numa agudeza áurea.
Os cabelos fulvos tinha-os enrolado desordenadamente e entretecido de pedrarias que
constelavam aquelas labaredas em raios de luz ultrapassada. Mordiam-se-lhe nos braços serpentes
de esmeraldas. Nem uma jóia sobre o decote profundo… A estátua inquietadora do desejo
contorcido, do vício platinado… E de toda a sua carne, em penumbra azul, emanava um aroma
denso a crime.
Rápida, após momentos, ela se afastou de nós a receber outros convidados.
A sala enchera-se entretanto de uma multidão bizarrada e esquisita. Eram estranhas
mulheres quase nuas nos seus trajos audaciosos de baile, e rostos suspeitos sobre as uníssonas e
negras vestes masculinas de cerimônia. Havia russos hirsutos e fulvos, escandinavos suavemente
louros, meridionais densos, crespos — e um chinês, um índio. Enfim, condensava-se ali bem o
Paris cosmopolita — rastaquouère e genial.
Até à meia-noite, dançou-se e conversou-se. Nas galerias jogava-se infernalmente. Mas
a essa hora foi anunciada a ceia; e todos passamos ao salão de jantar — outra maravilha.
Pouco antes chegara-se a nós a americana e, confidencialmente, nos dissera:
— Depois da ceia, é o espetáculo — o meu Triunfo! Quis condensar nele as minhas
idéias sobre a voluptuosidade-arte. Luzes, corpos, aromas, o fogo e a água — tudo se reunirá numa
orgia de carne espiritualizada em outro!
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Ao entrarmos novamente na grande sala — por mim, confesso, tive medo… recuei…
Todo o cenário mudara — era como se fosse outro o salão. Inundava-o um perfume
denso, arrepiante de êxtases, silvava-o uma brisa misteriosa, uma brisa cinzenta com laivos
amarelos — não sei por que, pareceu-me assim, bizarramente —, aragem que nos fustigava a carne
em novos arrepios. Entanto, o mais grandioso, o mais alucinador, era a iluminação. Declaro-me
impotente para a descrever. Apenas, num esforço, poderei esboçar onde residia a sua singularidade,
o seu quebranto:
Essa luz — evidentemente elétrica — provinha de uma infinidade de globos, de
estranhos globos de várias cores, vários desenhos, de transparências várias — mas, sobretudo, de
ondas que projetores ocultos nas galerias golfavam em esplendor. Ora essas torrentes luminosas,
todas orientadas para o mesmo ponto quimérico do espaço, convergiam nele em um turbilhão — e,
desse turbilhão meteórico, é que elas realmente, em ricochete enclavinhado, se projetavam sobre
paredes e colunas, se espalhavam no ambiente da sala, apoteotizando-a.
De forma que a luz total era uma projeção da própria luz — em outra luz, seguramente,
mas a verdade é que a maravilha que nos iluminava nos não parecia luz. Afigurava-se-nos qualquer
outra coisa — um fluido novo. Não divago; descrevo apenas uma sensação real: essa luz, nós
sentíamo-la mais do que a víamos, E não receio avançar muito afirmando que ela não
impressionava a nossa vista, mas sim o nosso tato. Se de súbito nos arrancassem os olhos, nem por
isso nós deixaríamos de ver. E depois — eis o mais bizarro, o mais esplêndido — nós respirávamos
o estranho fluido. Era certo, juntamente com o ar, com o perfume roxo do ar, sorvíamos essa luz
que, num êxtase iriado, numa vertigem de ascensão — se nos engolfava pelos pulmões, nos invadia
o sangue, nos volvia todo o corpo sonoro. Sim, essa luz mágica ressoava em nós, ampliando-nos os
sentidos, alastrando-nos em vibratilidade, dimanando-nos, aturdindo-nos… Debaixo dela, toda a
nossa carne era sensível aos espasmos, aos aromas, às melodias!…
E não foi só a nós, requintados de ultracivilização e arte, que o mistério rutilante
fustigou. Pois em breve todos os espectadores evidenciavam, em rostos confundidos e gestos
ansiosos, que um ruivo sortilégio os varara sob essa luz de além-Inferno, sob essa luz sexualizada.
Mas de súbito toda a iluminação se transformou divergindo num resvalamento
arqueado: e outro frêmito mais brando nos diluiu então, como beijos de esmeraldas sucedendo a
mordeduras.
Uma música penetrante tilintava nessa nova aurora, em ritmos desconhecidos — esguia
melopéia em que soçobravam gomos de cristal entrechocando-se, onde palmas de espadas
refrescavam o ar esbatidamente, onde listas úmidas de sons se vaporizavam sutis…
Enfim: prestes a esvairmo-nos num espasmo derradeiro da alma — tinham-nos sustido
para nos alastrarem o prazer.
E, ao fundo, o pano do teatro descerrou-se sobre um cenário aureolal… Extinguiu-se a
luz perturbadora, e jorros de eletricidade branca nos iluminaram apenas.
No palco surgiram três dançarinas. Vinham de tranças soltas — blusas vermelhas lhes
encerravam os troncos, deixando-lhes os seios livres, oscilantes. Tênues gazes rasgadas lhes
pendiam das cinturas. Nos ventres, entre as blusas e as gazes, havia um intervalo — um cinto de
carne nua onde se desenhavam flores simbólicas.
As bailadeiras começaram as suas danças. Tinham as pernas nuas. Volteavam,
saltavam, reuniam-se num grupo, embaralhavam os seus membros, mordiam-se nas bocas…
Os cabelos da primeira eram pretos, e a sua carne esplêndida de sol. As pernas, talhadas
em aurora loura, esgueiravam-se-lhe em luz radiosa a nimbar-se, junto do sexo, numa carne
mordorada que apetecia trincar.
Mas o que as fazia mais excitantes era a saudade límpida que lembravam de um grande
lago azul de água cristalina onde, uma noite de luar, elas se mergulhassem descalças e amorosas.
A segunda bailadeira tinha o tipo característico da adolescente pervertida. Magra —
porém de seios bem visíveis —, cabelos de um louro sujo, cara provocante, nariz arrebitado. As
suas pernas despertavam desejos brutais de as morder, escalavradas de músculos, de durezas —
masculinamente.
Enfim, a terceira, a mais perturbadora, era uma rapariga frígida, muito branca e
macerada, esguia, evocando misticismos, doença, nas suas pernas de morte — devastadas.Entanto o
baile prosseguia. Pouco a pouco os seus movimentos se tornavam mais rápidos até que por último,
num espasmo, as suas bocas se uniram e, rasgados todos os véus — seios, ventres e sexos
descobertos —, os corpos se lhes emaranharam, agonizando num arqueamento de vício.
E o pano cerrou-se na mesma placidez luminosa…
Houve depois outros quadros admiráveis: dançarinas nuas perseguindo-se na piscina, a
mimarem a atração sexual da água, estranhas bailadeiras que esparziam aromas que mais
entenebreciam, em quebranto, a atmosfera fantástica da sala, apoteoses de corpos nus, amontoados
— visões luxuriosas de cores intensas, rodopiantes de espasmos, sinfonias de sedas e veludos que
sobre corpos nus volteavam…
Mas todas estas maravilhas — incríveis de perversidade, era certo — nos não
excitavam fisicamente em desejos lúbricos e bestiais: antes numa ânsia de alma, esbraseada e, ao
mesmo tempo, suave: extraordinária, deliciosa.
Escoava-se por nós uma impressão de excesso.
Entanto os delírios que as almas nos fremiam, não os provocavam unicamente as visões
lascivas. De maneira alguma. O que oscilávamos, provinha-nos de uma sensação total idêntica à
que experimentamos ouvindo uma partitura sublime executada por uma orquestra de mestres. E os
quadros sensuais valiam apenas como um instrumento dessa orquestra. Os outros: as luzes, os
perfumes, as cores… Sim, todos esses elementos se fundiam num conjunto admirável que,
ampliando-a, nos penetrava a alma, e que só nossa alma sentia em febre de longe, em vibração de
abismos. Éramos todos alma. Desciam-nos só da alma os nossos desejos carnais.
Porém nada valeu em face da última visão:
Raiaram mais densas as luzes, mais agudas e penetrantes, caindo agora, em jorros, do
alto da cúpula — e o pano rasgou-se sobre um vago tempo asiático… Ao som de uma música
pesada, rouca, longínqua — ela surgiu, a mulher fulva…
E começou dançando…
Envolvia-a uma túnica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente. Jóias
fantásticas nas mãos; e os pés descalços, constelados…
Ai, como exprimir os seus passos silenciosos, úmidos, frios de cristal; o marulhar da
sua carne ondeando; o álcool dos seus lábios que, num requinte, ela dourara — toda a harmonia
esvaecida nos seus gestos; todo o horizonte difuso que o seu rodopiar suscitava,
nevoadamente…Entretanto, ao fundo, numa ara misteriosa, o fogo ateara-se…
Vício a vício a túnica lhe ia resvalando, até que, num êxtase abafado, soçobrou a seus
pés… Ah! nesse momento, em face à maravilha que nos varou, ninguém pôde conter um grito de
assombro…
Quimérico e nu, o seu corpo sutilizado, erguia-se litúrgico entre mil cintilações irreais.
Como os lábios, os bicos dos seios e o sexo estavam dourados — num ouro pálido, doentio. E toda
ela serpenteava em misticismo escarlate a querer-se dar ao fogo…Mas o fogo repelia-a…Então,
numa última perversidade, de novo tomou os véus e se ocultou, deixando apenas nu o sexo áureo
— terrível flor de carne a estrebuchar agonias magentas…
Vencedora, tudo foi lume sobre ela…
E, outra vez desvendada — esbraseada e feroz, saltava agora por entre labaredas,
rasgando-as: emaranhando, possuindo, todo o fogo bêbado que a cingia.
Mas finalmente, saciada após estranhas epilepsias, num salto prodigioso, como um
meteoro — ruivo meteoro — ela veio tombar no lago que mil lâmpadas ocultas esbatiam de azul
cendrado.
Então foi apoteose:
Toda a água azul, ao recebê-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada, ardida pela
sua carne que o fogo penetrara… E numa ânsia de se extinguir, possessa, a fera nua mergulhou…
Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao seu redor…
…Até que por fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo
flutuou heráldico sobre as águas douradas — tranqüilas, mortas também…. . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .
.A luz normal regressara. Era tempo. Mulheres debatiam-se em ataques de histerismo; homens, de
rostos congestionados, tinham gestos incoerentes…
As portas abriram-se e nós mesmos, perdidos, sem chapéus — encontramo-nos na rua,
afogueados, perplexos… O ar fresco da noite, vergastando-nos, fez-nos despertar, e como se
chegássemos de um sonho que os três houvéssemos sonhado — olhamo-nos inquietos, num espanto
mudo.Sim, a impressão fora tão forte, a maravilha tão alucinadora, que não tivemos ânimo para
dizer uma palavra.
Esmagados, aturdidos, cada um de nós voltou para sua casa…
Na tarde seguinte — ao acordar de um sono de onze horas — eu não acreditava já na
estranha orgia: A Orgia do Fogo, como Ricardo lhe chamou depois.
Saí. Jantei.
Quando entrava no Café Riche, alguém me bateu no ombro:
— Então como passa o meu amigo? Vamos, as suas impressões?
Era Ricardo de Loureiro.
Falamos largamente acerca das extraordinárias coisas que presenciáramos. E o poeta
concluiu que tudo aquilo mais lhe parecia hoje uma visão de onanista genial do que a simples
realidade.
*
*
*
Quanto à americana fulva, não a tornei a ver. O próprio Gervásio deixou de falar nela.
E, como se se tratasse de um mistério de Além a que valesse melhor não aludir — nunca mais nos
referimos à noite admirável.
Se a sua lembrança me ficou para sempre gravada, não foi por a ter vivido — mas sim
porque, dessa noite, se originava a minha amizade com Ricardo de Loureiro.
Assim sucede com efeito. Referimos certos acontecimentos da nossa vida a outros mais
fundamentais — e muitas vezes, em torno de um beijo, circula todo um mundo, toda uma
humanidade.
De resto, no caso presente, que podia valer a noite fantástica em face do nosso encontro
— desse encontro que marcou o princípio da minha vida?Ah! sem dúvida amizade predestinada
aquela que começava num cenário tão estranho, tão perturbador, tão dourado…
2
Decorrido um mês, eu e Ricardo éramos não só dois companheiros inseparáveis, como
também dois amigos íntimos, sinceros, entre os quais não havia mal-entendidos, nem quase já
segredos.
O meu convívio com Gervásio Vila-Nova cessara por completo.
Mesmo, passado pouco, ele regressou a Portugal.
Ah! como era bem diferente, bem mais espontânea, mais cariciosa, a intimidade com o
meu novo amigo! E como estávamos longe do Gervásio Vila-Nova que, a propósito de coisa
alguma, fazia declarações como esta:
— Sabe você, Lúcio, não imagina a pena que eu tenho de que não gostem das minhas
obras. (As suas obras eram esculturas sem pés nem cabeça, pois ele só esculpia torsos contorcidos,
enclavinhados, monstruosos, onde, porém, de quando em quando, por alguns detalhes, se
adivinhava um cinzel admirável.) Mas não pense que é por mim. Eu estou certo do que elas valem.
É por eles, coitados, que não podem sentir a sua beleza.
Ou então:
— Creia, meu querido amigo, você faz muito mal em colaborar nessas revistecas lá de
baixo… em se apressar tanto a imprimir os seus volumes. O verdadeiro artista deve guardar quanto
mais possível o seu inédito. Veja se eu já expus alguma vez… Só compreendo que se publique um
livro numa tiragem reduzida; e a 100 francos o exemplar, como fez o… (e citava o nome do russo
chefe dos selvagens). Ah! eu abomino a publicidade!…
As minhas conversas com Ricardo — pormenor interessante — foram logo, desde o
início, bem mais conversas de alma, do que simples conversas de intelectuais.
Pela primeira vez eu encontrara efetivamente alguém que sabia descer um pouco aos
recantos ignorados do meu espírito — os mais sensíveis, os mais dolorosos para mim. E com ele o
mesmo acontecera — havia de mo contar mais tarde.
Não éramos felizes — oh! não As nossas vidas passavam torturadas de ânsias, e
incompreensões, de agonias de sombra…
Subíramos mais alto: delirávamos sobre a vida. Podíamo-nos embriagar de orgulho, se
quiséssemos — mas sofríamos tanto… tanto… O nosso único refúgio era nas nossas obras.
Pintando-me a sua angústia, Ricardo de Loureiro fazia perturbadoras confidências,
tinha imagens estranhas.
— Ah! meu caro Lúcio, acredite me! Nada me encanta já; tudo me aborrece, me
nauseia. Os meus próprios raros entusiasmos, se me lembro deles, logo se me esvaem — pois, ao
medi-los, encontro os tão mesquinhos, tão de pacotilha… Quer saber? Outrora, à noite, no meu
leito, antes de dormir, eu punha-me a divagar. E era feliz por momentos, entressonhando a glória, o
amor, os êxtases… Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer. Acastelei os maiores… eles
próprios me fartaram: são sempre os mesmos — e é impossível achar outros… Depois, não me
saciam apenas as coisas que possuo — aborrecem-me também as que não tenho, porque, na vida
como nos sonhos, são sempre as mesmas. De resto, se às vezes posso sofrer por não possuir certas
coisas que ainda não conheço inteiramente, a verdade é que, descendo-me melhor, logo averiguo
isto: Meu Deus, se as tivera, ainda maior seria a minha dor, o meu tédio. De forma que gastar
tempo é hoje o único fim da minha existência deserta. Se viajo, se escrevo — se vivo, numa
palavra, creia-me: é só para consumir instantes. Mas dentro em pouco — já o pressinto — isto
mesmo me saciará. E que fazer então? Não sei… não sei… Ah! que amargura infinita…
Eu punha-me a animá-lo; a dizer-lhe inferiormente que urgia pôr de parte essas idéias
abatidas. Um belo futuro se alastrava em sua face. Era preciso ter coragem!
— Um belo futuro?… Olhe, meu amigo, até hoje ainda me não vi no meu futuro. E as
coisas em que me não vejo, nunca me sucederam.
Perante tal resposta, esbocei uma interrogação muda, a que o poeta volveu:
— Ah! sim, talvez não compreendesse… Ainda lhe não expliquei. Ouça: Desde criança
que, pensando em certas situações possíveis numa existência, eu, antecipadamente, me vejo ou não
vejo nelas. Por exemplo: uma coisa onde nunca me vi, foi na vida — e diga-me se na realidade nos
encontramos nela? Mas descendo a pequenos detalhes:
"A minha imaginação infantil sonhava, romanescamente construía mil aventuras
amorosas, que aliás todos vivem. Pois bem: nunca me vi ao fantasiá-las, como existindo-as mais
tarde. E até hoje eu sou aquele que em nenhum desses episódios gentis se encontrou. Não porque
lhes fugisse… Nunca fugi de coisa alguma.
"Entretanto, na minha vida, houve certa situação esquisita, mesmo um pouco torpe. Ora
eu lembrava-me muita vez de que essa triste aventura havia de ter um fim. E sabia de um muito
natural. Nesse, contudo, nunca eu me figurava. Mas noutro qualquer. Outro qualquer, porém, só
podia dar-se por meu intermédio. E por meu intermédio — era bem claro — não se podia, não se
devia dar. Passou-se tempo… Escuso de lhe dizer que foi justamente a "impossibilidade" que se
realizou…
"Era um estudante distinto, e nunca me antevisionava com o meu curso concluído.
Efetivamente um belo dia, de súbito, sem razão, deixei a universidade. Fugi para Paris…
"Dentro da vida prática também nunca me figurei. Até hoje, aos vinte e sete anos, não
consegui ainda ganhar dinheiro pelo meu trabalho. Felizmente não preciso… E nem mesmo
cheguei a entrar nunca na vida, na simples Vida com V grande — na vida social, se prefere. É
curioso: sou um isolado que conhece meio mundo, um desclassificado que não tem uma dúvida,
uma nódoa — que todos consideram, e que entretanto em parte alguma é admitido… Está certo.
Com efeito, nunca me vi "admitido” em parte alguma. Nos próprios meios onde me tenho
embrenhado, não sei por que senti me sempre um estranho…
"E é terrível: martiriza-me por vezes este meu condão. Assim, se eu não vejo erguida
certa obra cujo plano me entusiasma, é seguro que a não consigo lançar, e que depressa me
desencanto da sua idéia — embora, no fundo. a considere admirável.
"Enfim, para me entender melhor: esta sensação é semelhante, ainda que de sentido
contrário, a uma outra em que provavelmente ouviu falar — que talvez mesmo conheça —, a do já
visto. Nunca lhe sucedeu ter visitado pela primeira vez uma terra, um cenário, e — numa
reminiscência longínqua, vaga, perturbante — chegar-lhe a lembrança de que, não sabe quando
nem onde, já esteve naquela terra, já contemplou aquele cenário?…
"É possível que o meu amigo não atinja o que há de comum entre estas duas idéias. Não
lhe sei explicar — contudo pressinto, tenho a certeza, que essa relação existe.
Respondi divagando, e o poeta acrescentou:
— Mas ainda lhe não disse o mais estranho. Sabe? É que de maneira alguma me
concebo na minha velhice, bem como de nenhuma forma me vejo doente, agonizante. Nem sequer
suicidado — segundo às vezes me procuro iludir. E creia, é tão grande a minha confiança nesta
superstição que — juro-lhe — se não fosse haver a certeza absoluta de que todos morremos, eu,
não me “vendo" morto, não acreditaria na minha morte…
Sorri da boutade.
Vagos conhecidos entravam no café onde tínhamos abancado. Sentaram-se junto de nós
e, banal e fácil, a conversa deslizou noutro plano.
*
*
*
Outras vezes também, Ricardo surgia-me com revelações estrambóticas que lembravam
um pouco os esnobismos de Vila-Nova. Porém, nele, eu sabia que tudo isso era verdadeiro, sentido.
Quando muito, sentido já como literatura. Efetivamente o poeta explicara-me, Uma noite:
— Garanto-lhe, meu amigo, todas as idéias que lhe surjam nas minhas obras, por mais
bizarras, mais impossíveis — são, pelo menos em parte, sinceras. Isto é: traduzem emoções que na
realidade senti; pensamentos que na realidade me ocorreram sobre quaisquer detalhes da minha
psicologia. Apenas o que pode suceder é que, quando elas nascem, já venham literalizadas…
Mas voltando às suas revelações estrambóticas:
Como gostássemos, em muitas horas, de nos embrenhar pela vida normal e nos
esquecer a nós próprios — freqüentávamos bastante os teatros e os music-halls, numa ânsia
também de sermos agitados por esses meios intensamente contemporâneos, europeus e luxuosos.
Assim uma vez, no Olímpia, assistíamos a umas danças de girls inglesas misturadas
numa revista, quando Ricardo me perguntou:
— Diga-me, Lúcio, você não é sujeito a certos medos inexplicáveis, destrambelhados?
Que não, só se muito vagamente — volvi.
— Pois comigo — tornou o artista — não acontece o mesmo. Enfim, quer saber? Tenho
medo destas dançarinas
Soltei uma gargalhada.
Ricardo prosseguiu:
— É que, não sei se reparou, em todos os music-halls tornaram-se agora moda estes
bailados por ranchos de raparigas inglesas. Ora essas criaturinhas são todas iguais, sempre —
vestidas dos mesmos fatos, com as mesmas pernas nuas, as mesmas feições tênues, o mesmo ar
gentil. De maneira que eu em vão me esforço por considerar cada uma delas como uma
individualidade. Não lhes sei atribuir uma vida — um amante, um passado; certos hábitos, certas
maneiras de ser. Não as posso destrinçar do seu conjunto daí, o meu pavor. Não estou pousando,
meu amigo, asseguro-lhe.
"Mas não são estes só os meus medos Tenho muitos outros. Por exemplo o horror dos
arcos — de alguns arcos triunfais e, sobretudo, de alguns velhos arcos de ruas. Não propriamente
dos arcos — antes do espaço aéreo que eles enquadram. E lembro-me de haver experimentado uma
sensação misteriosa de pavor, ao descobrir no fim de uma rua solitária de não sei que capital um
pequeno arco ou, melhor, uma porta aberta sobre o infinito Digo bem — sobre o infinito. Com
efeito a rua subia e para lá do monumento começava, sem dúvida, a descer De modo que, de longe,
só se via horizonte através desse arco. Confesso-lhe que me detive alguns minutos olhando o
fascinado Assaltou me um forte desejo de subir a rua até ao fim e averiguar para onde ele deitava.
Mas a coragem faltou-me. Fugi apavorado. E veja, a sensação foi tão violenta, que nem sei já em
que triste cidade a oscilei…
"Quando era pequeno — ora, ainda hoje! — apavoravam-me as ogivas das catedrais, as
abóbadas, as sombras de altas colunas, os obeliscos. as grandes escadarias de mármore… De resto,
toda a minha vida psicológica tem sido até agora a projeção dos meus pensamentos infantis —
ampliados, modificados; mas sempre no mesmo sentido, na mesma ordem: apenas em outros
planos.
"E por último, ainda a respeito de medos: Assim como me assustam alguns espaços
vazios emoldurados por arcos — também me inquieta o céu das ruas, estreitas e de prédios altos,
que de súbito se partem em curvas apertadas.
O seu espírito estava seguramente predisposto para a bizarria, essa noite, pois ainda me
fez estas esquisitas declarações à saída do teatro:
— Meu caro Lúcio, vai ficar muito admirado, mas garanto-lhe que não foi tempo
perdido o que passei ouvindo essa revista chocha. Achei a razão fundamental do meu sofrimento.
Você recorda-se de uma capoeira de galinhas que apareceu em cena? As pobres aves queriam
dormir. Metiam os bicos debaixo das asas, mas logo acordavam assustadas pelos jorros dos
projetores que iluminavam as “estrelas”, pelos saltos do compadre… Pois como esses pobres
bichos, também a minha alma anda estremunhada — descobri em frente deles. Sim, a minha alma
quer dormir e, minuto a minuto, a vêm despertar jorros de luz, estrepitosas vozearias: grandes
ânsias, idéias abrasadas, tumultos de aspirações — áureos sonhos, cinzentas realidades… Sofreria
menos se ela nunca pudesse adormecer. Com efeito, o que mais me exacerba esta tortura infernal é
que, em verdade, a minha alma chega muitas vezes a pegar no sono, a fechar os olhos — perdoe a
frase estrambótica. Mal os cerra, porém, logo a zurzem — e de novo acorda perdida numa agonia
estonteada…
Mais tarde, relembrando-me esta constatação, ajuntara:
— O meu sofrimento mora, ainda que sem razões, tem aumentado tanto, tanto, estes
últimos dias, que eu hoje sinto a minha alma fisicamente. Ah! é horrível! A minha alma não se
angustia apenas, a minha alma sangra. As dores morais transformam-se-me em verdadeiras dores
físicas, em dores horríveis, que eu sinto materialmente não no meu corpo, mas no meu espírito. É
muito difícil, concordo, fazer compreender isto a alguém. Entretanto, acredite-me; juro lhe que é
assim. Eis pelo que eu lhe dizia a outra noite que tinha a minha alma estremunhada. Sim, a minha
pobre alma anda morta de sono, e não a deixam dormir — tem frio, e não sei aquecer! Endureceume toda, toda! secou, ancilosou-se-me; de forma que movê-la — isto é pensar — me faz hoje sofrer
terríveis dores. E quanto mais a alma me endurece, mais eu tenho ânsia de pensar! Um turbilhão de
idéias — loucas idéias! — me silva a desconjuntá-la, a arrepanhá-la, a rasgá-la, num martírio
alucinante! Até que um dia — oh! é fatal — ela se me partirá — voará em estilhaços. A minha
pobre alma! a minha pobre alma!…
Em tais ocasiões os olhos de Ricardo cobriam-se de um véu de luz. Não brilhavam:
cobriam-se de um véu de luz. Era muito estranho, mas era assim.
Divagando ainda sobre as dores físicas do seu espírito; num tom de blague que
raramente tomava, o poeta desfechou-me uma tarde, de súbito:
— Tenho às vezes tanta inveja das minhas pernas… Porque uma perna não sofre. Não
tem alma, meu amigo, não tem alma!
Largas horas, solitário, eu meditava nas singularidades do artista, a querer concluir
alguma coisa. Mas o certo é que nunca soube descer uma psicologia, de maneira que chegava só a
esta conclusão: ele era uma criatura superior — genial, perturbante. Hoje mesmo, volvidos longos
anos, é essa a minha única certeza, e eis pelo que eu me limito a contar, sem ordem — à medida
que me vão recordando — os detalhes mais característicos da sua psicologia, como meros
documentos na minha justificação.
Fatos, apenas fatos — avisei logo de princípio.
Compreendiam-se perfeitamente as nossas almas — tanto quanto duas almas se podem
compreender. E, todavia, éramos duas criaturas muito diversas. Raros traços comuns entre os
nossos caracteres. Mesmo, a bem dizer, só numa coisa iguais: no nosso amor por Paris.
— Paris! Paris! — exclamava o poeta — Por que o amo eu tanto? Não sei… Basta
lembrar-me que existo na capital latina, para uma onda de orgulho, de júbilo e ascensão se
encapelar dentro de mim. É o único ópio louro para a minha dor — Paris!
"Como eu amo as suas ruas, as suas praças, as suas avenidas! Ao recordá-las longe
delas — em miragem nimbada, todas me surgem num resvalamento arqueado que me traspassa em
luz. E o meu próprio corpo, que elas vararam, as acompanha no seu rodopio.
"De Paris, amo tudo com igual amor: os seus monumentos, os seus teatros, os seus
bulevares, os seus jardins, as suas árvores… Tudo nele me é heráldico, me é litúrgico.
"Ah, o que eu sofri um ano que passei longe da minha Cidade, sem esperanças de me
tornar a envolver nela tão cedo… E a minha saudade foi então a mesma que se tem pelo corpo de
uma amante perdida…
"As ruas tristonhas da Lisboa do sul, descia-as às tardes magoadas rezando o seu nome:
O meu Paris… o meu Paris…
"E à noite, num grande leito deserto, antes de adormecer, eu recordava-o — sim,
recordava-o — como se recorda a carne nua de uma amante dourada!
"Quando depois regressei à capital assombrosa, a minha ânsia foi logo de a percorrer
em todas as avenidas, em todos os bairros, para melhor a entrelaçar comigo, para melhor a
delirar… O meu Paris! o meu Paris!…
"Entretanto, Lúcio, não creia que eu ame esta grande terra pelos seus bulevares, pelos
seus cafés, pelas suas atrizes, pelos seus monumentos. Não! Não! Seria mesquinho. Amo-a por
qualquer outra coisa: por uma auréola, talvez, que a envolve e a constitui em alma — mas que eu
não vejo; que eu sinto, que eu realmente sinto, e lhe não sei explicar!…
"Só posso viver nos grandes meios. Quero tanto ao progresso, à civilização, ao
movimento citadino, à atividade febril contemporânea!", Porque, no fundo, eu amo muito a vida.
Sou todo de incoerências. Vivo desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida, entanto como
nunca ninguém a admirou!
"Europa! Europa! Encapela-te dentro de mim, alastra-me da tua vibração, unge-me da
minha época!…
"Lançar pontes! lançar pontes! silvar estradas férreas! erguer torres de aço!…
E o seu delírio prosseguia através de imagens bizarras, destrambelhadas idéias.— Sim!
Sim! Todo eu sou uma incoerência! O meu próprio corpo é uma incoerência. Julga-me magro,
corcovado? Sou-o; porém muito menos do que pareço. Admirar-se-ia se me visse nu…"Mas há
mais. Toda a gente me crê um homem misterioso. Pois eu não vivo, não tenho amantes…
desapareço… ninguém sabe de mim… Engano! Engano! A minha vida é pelo contrário uma vida
sem segredo. Ou melhor, o seu segredo consiste justamente em não o ter.
"E a minha vida, livre de estranhezas, é no entanto uma vida bizarra — mas de uma
bizarria às avessas. Com efeito a sua singularidade encerra-se, não em conter elementos que se não
encontram nas vidas normais — mas sim em não conter nenhum dos elementos comuns a todas as
vidas. Eis pelo que nunca me sucedeu coisa alguma. Nem mesmo o que sucede a toda a gente.
Compreende-me?
Eu compreendia sempre. E ele fazia-me essa justiça. Por isso as nossas conversas de
alma se prolongavam em geral até de manhã; passeando nas ruas desertas, sem sentirmos frio nem
cansaço, numa intoxicação mútua e arruivada.
*
*
*
Em horas mais tranqüilas, Ricardo punha-se-me a falar da suavidade da vida normal. E
confessava-me:
— Ah, quantas vezes isolado em grupos de conhecidos banais, eu não invejei os meus
camaradas… Lembro-me tanto de certo jantar no Leão de Ouro… numa noite chuvosa de
dezembro… Acompanhavam-me dois atores e um dramaturgo. Sabe? O Roberto Dávila, o Carlos
Mota, o Álvares Sesimbra… Eu diligenciara, num esforço, descer até eles. Por último, consegui
iludir-me. Fui feliz, instantes, creia… E o Carlos Mota pedia a minha colaboração para uma das
suas operetas… Carlos Mota, o autor da Videirinha, o grande sucesso da Trindade… Bons rapazes!
bons rapazes… Ai, não ser como eles…
"Porque afinal essa sua vida — 'a vida de todos os dias' — é a única que eu amo.
Simplesmente não a posso existir… E orgulho-me tanto de não a poder viver .. orgulho-me tanto de
não ser feliz… Cá estamos: a maldita literatura…
E, depois de uma breve pausa:
— Noutros tempos, em Lisboa, um meu companheiro íntimo, hoje já morto, alma
ampla e intensa de artista requintado — admirava-se de me ver acamaradar com certas criaturas
inferiores. É que essas andavam na vida, e eu aprazia-me com elas numa ilusão. As minhas eternas
incoerências! Vocês, os verdadeiros artistas, as verdadeiras grandes almas — eu sei — nunca saem,
nem pretendem sair, do vosso círculo de ouro — nunca lhes vêm desejos de baixar à vida. É essa a
vossa dignidade. E fazem bem. São muito mais felizes… Pois eu sofro duplamente, porque vivo no
mesmo círculo dourado e, entretanto, sei-me agitar cá embaixo…
— Ao contrário, eis pelo que você é maior — comentava eu, — Esses a quem se refere,
se não ousam descer, é por adivinharem que, se se misturassem à existência quotidiana, ela os
absorveria, soçobrando o seu gênio de envolta com a banalidade. São fracos. E esse pressentimento
instintivamente os salva. Enquanto que o meu amigo pode arriscar o seu gênio por entre medíocres.
É tão grande que nada o sujará.
— Quimera! Quimera! — volvia o poeta. — Sei lá o que sou… Em todo o caso, olhe
que é lamentável a banalidade dos outros… Como a "maioria" se contenta com poucas ânsias,
poucos desejos espirituais, pouca alma… Oh! é desolador!… Um drama de Jorge Ohnet, um
romance de Bourget, uma ópera de Verdi, uns versos de João de Deus ou um poema de Tomás
Ribeiro — chegam bem para encher o seu ideal. Que digo? Isto mesmo são já requintes de almas
superiores. As outras — as verdadeiramente normais — ora… ora.. deixemo-nos de devaneios,
contentam-se com as obscenidades lantejouladas de qualquer baixo-revisteiro sem gramática…
"A maioria, meu caro, a maioria… os felizes… E daí, quem sabe se eles é que têm
razão… se tudo o mais será frioleira…
"Em suma… em suma…
Correram meses, seguindo sempre entre nós o mesmo afeto, a mesma camaradagem.
Uma tarde de domingo — recordo-me tão bem — íamos em banalidade Avenida dos
Campos Elísios acima, misturados na multidão, quando a sua conversa resvalou para um campo,
que até aí o poeta nunca atacara, positivamente:
— Ah! como se respira vida, vida intensa e sadia, nestes domingos de Paris, nestes
maravilhosos domingos!… É a vida simples, a vida útil, que se escoa em nossa face. Horas que nos
não pertencem — etéreos sonhadores de beleza, roçados de Além, ungidos de Vago… Orgulho!
Orgulho! E entanto como valera mais se fôssemos da gente média que nos rodeia. Teríamos, pelo
menos de espírito, a suavidade e a paz. Assim temos só a luz. Mas a luz cega os olhos… Somos
todos álcool, todos álcool! — álcool que nos esvai em lume que nos arde!
"E é pela agitação desta cidade imensa, por esta vida atual, quotidiana, que eu amo o
meu Paris numa ternura loura. Sim! Sim! Digo bem, numa ternura — uma ternura ilimitada. Eu não
sei ter afetos. Os meus amores foram sempre ternuras… Nunca poderia amar uma mulher pela alma
— isto é: por ela própria. Só a adoraria pelos enternecimentos que a sua gentileza me despertasse:
pelos seus dedos trigueiros a apertarem os meus numa tarde de sol, pelo timbre sutil da sua voz,
pelos seus rubores — e as suas gargalhadas… as suas correrias…
"Para mim, o que pode haver de sensível no amor é uma saia branca a sacudir o ar, um
laço de cetim que mãos esguias enastram, uma cintura que se verga, uma madeixa perdida que o
vento desfez, uma canção ciciada em lábios de ouro e de vinte anos, a flor que a boca de uma
mulher trincou…
"Não, nem é sequer a formosura que me impressiona. É outra coisa mais vaga —
imponderável, translúcida: a gentileza. Ai, e como eu a vou descobrir em tudo, em tudo — a
gentileza… Daí, uma ânsia estonteada, uma ânsia sexual de possuir vozes, gestos, sorrisos, aromas
e cores!…
"…Lume doido! Lume doido!… Devastação! Devastação!…
Mas logo, serenando:
— A boa gente que aí vai, meu querido amigo, nunca teve destas complicações. Vive.
Nem pensa… Só eu não deixo de pensar… O meu mundo interior ampliou-se — volveu-se infinito,
e hora a hora se excede! É horrível. Ah! Lúcio, Lúcio! tenho medo —medo de soçobrar, de me
extinguir no meu mundo interior, de desaparecer da vida, perdido nele…
"…E aí tem o assunto para uma das suas novelas: um homem que, à força de se
concentrar, desaparecesse da vida — imigrado no seu mundo interior…
"Não lhe digo eu? A maldita literatura…
Sem motivos nenhuns, livre de todas as preocupações, sentia-me entanto esquisitamente
disposto, essa tarde. Um calafrio me arrepiava toda a carne — o calafrio que sempre me varara nas
horas culminantes da minha vida.
E Ricardo, de novo, apontando-me uma soberba vitória que dois esplêndidos cavalos
negros tiravam:
— Ah! como eu me trocaria pela mulher linda que ali vai… Ser belo! ser belo!… ir na
vida fulvamente… ser pajem na vida… Haverá triunfo mais alto?…
"A maior glória da minha existência não foi — ah! Não julgue que foi — qualquer
elogio sobre os meus poemas, sobre o meu gênio. Não. Foi isto só: eu lhe conto:
"Uma tarde de abril, há três anos, caminhava nos grandes bulevares, solitário como
sempre. De súbito, uma gargalhada soou perto de mim… Tocaram-me no ombro… Não dei
atenção… Mas logo a seguir me puxaram por um braço, garotamente, com o cabo de uma
sombrinha… Voltei-me… Eram duas raparigas… duas raparigas gentis, risonhas… Àquela hora,
duas costureiras — decerto — saídas dos ateliers da Rua da Paz. Tinham embrulhos nas mãos…
"E uma delas, a mais audaciosa:
"— Sabe que é um lindo rapaz?
"Protestei… E fomos andando juntos, trocando palavras banais… (Acredite que meço
muito bem todo o ridículo desta confidência.)
"À esquina do Faubourg Poissonnière, despedi-me: devia-me encontrar com um amigo
— garanti. Efetivamente. Num desejo de perversidade, eu resolvera pôr termo à aventura. Talvez
receoso de que, se ela se prolongasse, me desiludisse. Não sei…
"Separamo-nos…
"Essa tarde foi a mais bela recordação da minha vida!…
"Meu Deus! Meu Deus! Como em vez deste corpo dobrado, este rosto contorcido — eu
quisera ser belo, esplendidamente belo! E, nessa tarde, fui-o por instantes, acredito… É que vinha
de escrever alguns dos meus melhores versos.
"Sentia-me orgulhoso, admirável… E a tarde era azul, o bulevar ia lindíssimo…
Depois, tinha um chapéu petulante… ondeava-se-me na testa uma madeixa juvenil…
"Ah! como vivi semanas, semanas, da pobre saudade… que ternura infinita me desceu
para essa rapariguinha que nunca mais encontrei — que nunca mais poderia encontrar porque, na
minha alegria envaidecida, nem sequer me lembrara de ver o seu rosto… Como lhe quero… Como
lhe quero… Como a abençôo… Meu amor! meu amor!…
E, numa transfiguração — todo aureolado pelo brilho intenso, melodioso, dos seus
olhos portugueses —, Ricardo de Loureiro erguia-se realmente belo, esse instante…
Aliás, ainda hoje ignoro se o meu amigo era ou não era formoso. Todo de incoerências,
também a sua fisionomia era uma incoerência: Por vezes o seu rosto esguio, macerado — se o
víamos de frente, parecia-nos radioso. Mas de perfil já não sucedia o mesmo… Contudo, nem
sempre: o seu perfil, por vezes, também era agradável… sob certas luzes… em certos espelhos…
Entretanto, o que mais o prejudicava era sem dúvida o seu corpo que ele desprezava,
deixando-o "cair de si", segundo a frase extravagante, mas muito própria, de Gervásio Vila-Nova.
Os retratos que existem hoje do poeta, mostram-no belíssimo, numa auréola de gênio.
Simplesmente, não era essa a expressão do seu rosto. Sabendo tratar-se de um grande artista, os
fotógrafos e os pintores ungiram-lhe a fronte de uma expressão nimbada que lhe não pertencia.
Convém desconfiar sempre dos retratos dos grandes homens…
— Ah! meu querido Lúcio — tornou ainda o poeta —, como eu sinto a vitória de uma
mulher admirável, estiraçada sobre um leito de rendas, olhando a sua carne toda nua…
esplêndida… loura de álcool! A carne feminina — que apoteose! Se eu fosse mulher, nunca me
deixaria possuir pela carne dos homens — tristonha, seca, amarela: sem brilho e sem luz… Sim!
num entusiasmo espasmódico, sou todo admiração, todo ternura, pelas grandes debochadas que só
emaranham os corpos de mármore com outros iguais aos seus — femininos também; arruivados,
suntuosos… E lembra-me então um desejo perdido de ser mulher — ao menos, para isto: para que,
num encantamento, pudesse olhar as minhas pernas nuas, muito brancas, a escoarem-se, frias, sob
um lençol de linho…
Entanto, eu admirava-me do rumo que a conversa tomara. Com efeito, se a obra de
Ricardo de Loureiro era cheia de sensualismo, de loucas perversidades — nas suas conversas nada
disso surgia. Pelo contrário. Às suas palavras nunca se misturava uma nota sensual — ou
simplesmente amorosa — e detinham-no logo súbitos pudores se, por acaso, de longe se referia a
qualquer detalhe dessa natureza.
Quanto à vida sexual do meu amigo, ignorava-a por completo. Sob esse ponto de vista,
Ricardo afigurava-se-me, porém, uma criatura tranqüila. Talvez me enganasse… Enganava-me
com certeza. E a prova — ai, a prova! — tive-a essa noite pela mais estranha confissão — a mais
perturbadora, a mais densa…
Eram sete e meia. Havíamos subido todos os Campos Elísios e a Avenida do Bosque
até à Porta Maillot. O artista decidiu que jantássemos no Pavilhão de Armenonville — idéia que eu
aplaudi do melhor grado.
Tive sempre muito afeto ao célebre restaurante. Não sei… O seu cenário literário
(porque o lemos em novelas), a grande sala de tapete vermelho e, ao fundo, a escadaria; as árvores
românticas que exteriormente o ensombram, o pequeno lago — tudo isso, naquela atmosfera de
grande vida, me evocava por uma saudade longínqua, sutil, bruxuleante, a recordação astral de
certa aventura amorosa que eu nunca vivera. Luar de outono, folhas secas, beijos e champanhe…
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principiou:
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Correu simples a nossa conversa durante a refeição. Foi só ao café que Ricardo
— Não pode imaginar, Lúcio, como a sua intimidade me encanta, como eu bendigo a
hora em que nos encontramos. Antes de o conhecer, não lidara senão com indiferentes — criaturas
vulgares que nunca me compreenderam, muito pouco que fosse. Meus pais adoravam-me. Mas, por
isso exatamente, ainda menos me compreendiam, Enquanto que o meu amigo é uma alma rasgada,
ampla, que tem a lucidez necessária para entrever a minha. É já muito. Desejaria que fosse mais;
mas é já muito. Por isso hoje eu vou ter a coragem de confessar, pela primeira vez a alguém, a
maior estranheza do meu espírito, a maior dor da minha vida…
Deteve-se um instante e, de súbito, em outro tom:
— É isto só: — disse — não posso ser amigo de ninguém… Não proteste… Eu não sou
seu amigo. Nunca soube ter afetos — já lhe contei —, apenas ternuras. A amizade máxima, para
mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo
caricioso: um desejo de beijar… de estreitar… Enfim: de possuir! Ora eu, só depois de satisfazer os
meus desejos, posso realmente sentir aquilo que os provocou. A verdade, por conseqüência, é que
as minhas próprias ternuras, nunca as senti, apenas as adivinhei. Para as sentir, isto é, para ser
amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir
quem eu estimasse, ou mulher ou homem. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir.
Logo eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de
sexo.
"Ah! a minha dor é enorme: Todos podem ter amizades, que são o amparo de uma vida,
a "razão" de uma existência inteira — amizades que nos dedicam; amizades que, sinceramente, nós
retribuímos. Enquanto que eu, por mais que me esforce, nunca poderei retribuir nenhum afeto: os
afetos não se materializam dentro de mim! É como se me faltasse um sentido — se fosse cego, se
fosse surdo. Para mim, cerrou-se um mundo de alma. Há qualquer coisa que eu vejo, e não posso
abranger; qualquer coisa que eu palpo, e não posso sentir… Sou um desgraçado… um grande
desgraçado, acredite!
"Em certos momentos chego a ter nojo de mim. Escute. Isto é horrível! Em face de
todas as pessoas que eu sei que deveria estimar — em face de todas as pessoas por quem adivinho
ternuras — assalta-me sempre um desejo violento de as morder na boca! Quantas vezes não retraí
uma ânsia de beijar os lábios de minha mãe…
"Entretanto estes desejos materiais — ainda lhe não disse tudo — não julgue que os
sinto na minha carne; sinto-os na minha alma. Só com a minha alma poderia matar as minhas ânsias
enternecidas. Só com a minha alma eu lograria possuir as criaturas que adivinho estimar — e assim
satisfazer, isto é, retribuir sentindo as minhas amizades.
"Eis tudo…
"Não me diga nada… não me diga nada!… Tenha dó de mim… muito dó…
Calei-me. Pelo meu cérebro ia um vendaval desfeito. Eu era alguém a cujos pés, sobre
uma estrada lisa, cheia de sol e árvores, se cavasse de súbito um abismo de fogo.
Mas, após instantes, muito naturalmente, o poeta exclamou:
— Bem… Já vai sendo tempo de nos irmos embora.
E pediu a conta.
Tomamos um fiacre.
Pelo caminho, ao atravessarmos não sei que praça, chegaram-nos ao ouvido os sons de
um violino de cego, estropiando uma linda ária. E Ricardo comentou:
— Ouve esta música? É a expressão da minha vida: uma partitura admirável, estragada
por um horrível, por um infame executante…
3
No dia seguinte, de novo nos encontramos, como sempre, mas não aludimos à estranha
conversa da véspera. Nem no dia seguinte, nem nunca mais… até ao desenlace da minha vida…
Entretanto, a perturbadora confidência do artista não se me varrera da memória. Pelo
contrário — dia algum eu deixava de a relembrar, inquieto, quase numa obsessão.
Sem incidentes notáveis — na mesma harmonia, no mesmo convívio de alma — a
nossa amizade foi prosseguindo, foi-se estreitando. Após dez meses, nos fins de 1896, embora o
seu grande amor por Paris, Ricardo resolveu regressar a Portugal — a Lisboa, onde em realidade
coisa alguma o devia chamar.
Estivemos um ano separados.
Durante ele, a nossa correspondência foi nula: três cartas minhas; duas do poeta —
quando muito.
Circunstâncias materiais e as saudades do meu amigo levaram-me a sair de Paris,
definitivamente, por meu turno. E em dezembro de noventa e sete chegava a Lisboa.
Ricardo esperava-me na estação.
Mas como o seu aspecto físico mudara nesse ano que estivéramos sem nos ver!
As suas feições bruscas haviam-se amenizado, acetinado — feminilizado, eis a verdade
— e, detalhe que mais me impressionou, a cor dos seus cabelos esbatera-se também. Era mesmo
talvez desta última alteração que provinha, fundamentalmente, a diferença que eu notava na
fisionomia do meu amigo — fisionomia que se tinha difundido, Sim, porque fora esta a minha
impressão total: os seus traços fisionômicos haviam-se dispersado — eram hoje menores.
E o tom da sua voz alterara- se identicamente, e os seus gestos: todo ele, enfim, se
esbatera.
Eu sabia já, é claro, que o poeta se casara há pouco, durante a minha ausência. Ele
escrevera-mo na sua primeira carta; mas sem juntar pormenores, muito brumosamente — como se
se tratasse de uma irrealidade. Pelo meu lado, respondera com vagos cumprimentos, sem pedir
detalhes, sem estranhar muito o fato — também como se se tratasse de uma irrealidade; de qualquer
coisa que eu já soubesse, que fosse um desenlace.
Abraçamo-nos com efusão. O artista acompanhou-me ao hotel, ficando assente que
nessa mesma tarde eu jantaria em sua casa.
De sua mulher, nem uma palavra… Lembro-me bem da minha perturbação quando, ao
chegarmos ao meu hotel, reparei que ainda lhe não perguntara por ela. E essa perturbação foi tão
forte, que ainda menos ousei balbuciar uma palavra a seu respeito, num enleio em verdade
inexplicável…
Cheguei. Um criado estilizado conduziu-me a uma grande sala escura, pesada, ainda
que jorros de luz a iluminassem, Ao entrar, com efeito, nessa sala resplandecente, eu tive a mesma
sensação que sofremos se, vindos do sol, penetramos numa casa imersa em penumbra.
Fui pouco a pouco distinguindo os objetos… E, de súbito, sem saber como, num
rodopio nevoento, encontrei-me sentado em um sofá, conversando com o poeta e a sua
companheira…
Sim. Ainda hoje me é impossível dizer se, quando entrei no salão, já lá estava alguém,
ou se foi só após instantes que os dois apareceram. Da mesma forma, nunca pude lembrar-me das
primeiras palavras que troquei com Marta — era este o nome da esposa de Ricardo.
Enfim, eu entrara naquela sala tal como se, ao transpor o seu limiar, tivesse regressado
a um mundo de sonhos.
Eis pelo que as minhas reminiscências de toda essa noite são as mais tênues. Entretanto,
durante ela, creio que nada de singular aconteceu. Jantou-se; conversou-se largamente, por certo…
À meia-noite despedi-me.
Mal cheguei ao meu quarto, deitei-me, adormeci… E foi só então que me tornaram os
sentidos. Efetivamente, ao adormecer, tive a sensação estonteante de acordar de um longo desmaio,
regressando agora à vida… Não posso descrever melhor esta incoerência, mas foi assim.
(E, entre parênteses, convém-me acentuar que meço muito bem a estranheza de quanto
deixo escrito. Logo no princípio referi que a minha coragem seria a de dizer toda a verdade, ainda
quando ela não fosse verossímil.)
*
*
*
A partir daí, comecei freqüentando amiudadas noites a casa de Ricardo. As sensações
bizarras tinham-me desaparecido por completo, e eu via agora nitidamente a sua esposa.
Era uma linda mulher loira, muito loira, alta, escultural — e a carne mordorada, dura,
fugitiva. O seu olhar azul perdia-se de infinito, nostalgicamente. Tinha gestos nimbados e
caminhava nuns passos leves, silenciosos — indecisos, mas rápidos. Um rosto formosíssimo, de
uma beleza vigorosa, talhado em ouro. Mãos inquietantes de esguias e pálidas.
Sempre triste — numa tristeza maceradamente vaga — mas tão gentil, tão suave e
amorável, que era sem dúvida a companheira propícia, ideal, de um poeta.
Cheguei a invejar o meu amigo…
Durante seis meses a nossa existência foi a mais simples, a mais serena. Ah! esses seis
meses constituíram em verdade a única época feliz, em névoas, da minha vida…
Raros dias se passavam em que não estivesse com Ricardo e Marta. Quase todas as
noites nos reuníamos em sua casa, um pequeno grupo de artistas: eu, Luís de Monforte, o
dramaturgo da Glória; Aniceto Sarzedas, o verrinoso crítico; dois poetas de vinte anos cujos nomes
olvidei e — sobretudo — o conde Sérgio Warginsky, adido da legação da Rússia, que nós
conhecêramos vagamente em Paris e que eu me admirava de encontrar agora assíduo freqüentador
da casa do poeta. Às vezes, com menor freqüência, apareciam também Raul Vilar e um seu amigo
— triste personagem tarado que hoje escreve novelas torpes desvendando as vidas íntimas dos seus
companheiros, no intuito (justifica-se) de apresentar casos de psicologias estranhas e assim fazer
uma arte perturbadora, intensa e original: no fundo apenas falsa e obscena.
Os serões corriam lisonjeiros entre conversas intelectuais — vincadamente literárias —
onde a nota humorística era dada em abundância por Aniceto Sarzedas, nos seus terríveis
ereintements contra todos os contemporâneos.
Marta misturava-se por vezes nas nossas discussões, e evidenciava-se de uma larga
cultura, de uma finíssima inteligência. Curioso que a sua maneira de pensar nunca divergia da do
poeta. Ao contrário: integrava-se sempre com a dele reforçando, aumentando em pequenos detalhes
as suas teorias, as suas opiniões.
O russo, esse exprimia a sensualidade naquele grupo de artistas — não sei por que, eu
tinha esta impressão.
Era um belo rapaz de vinte e cinco anos, Sérgio Warginsky. Alto e elançado, o seu
corpo evocava o de Gervásio Vila-Nova, que, há pouco, brutalmente se suicidara, arremessando-se
para debaixo de um comboio. Os seus lábios vermelhos, petulantes, amorosos, guardavam uns
dentes que as mulheres deveriam querer beijar — os cabelos de um loiro arruivado caíam-lhe sobre
a testa em duas madeixas longas, arqueadas. Os seus olhos de penumbra áurea, nunca os
despregava de Marta — devia-me lembrar mais tarde. Enfim, se alguma mulher havia entre nós,
parecia-me mais ser ele do que Marta. (Esta sensação bizarra, aliás, só depois é que eu reconheci
que a tivera. Durante este período, pensamentos alguns destrambelhados me vararam o espírito.)
Sérgio tinha uma voz formosíssima — sonora, vibrante, esbraseada. Com a
predisposição dos russos para as línguas estrangeiras, fazendo um pequeno esforço, pronunciava o
português sem o mais ligeiro acento. Por isso Ricardo se aprazia muito em lhe mandar ler os seus
poemas que, vibrados por aquela garganta adamantina, se sonorizavam em auréola.
De resto era evidente que o poeta dedicava uma grande simpatia ao russo. A mim, pelo
contrário, Warginsky só me irritava — sobretudo talvez pela sua beleza excessiva —, chegando eu
a não poder retrair certas impaciências quando ele se me dirigia.
Entretanto bem mais agradáveis me eram ainda as noites que passava apenas na
companhia de Ricardo e de Marta — mesmo quase só na companhia de Marta pois, nessas noites,
muitas vezes o poeta se ausentava para o seu gabinete de trabalho.
Longas horas me esquecia então conversando com a esposa do meu amigo.
Experimentávamos um pelo outro uma viva simpatia — era indubitável. E nessas ocasiões é que eu
melhor podia avaliar toda a intensidade do seu espírito.
Enfim, a minha vida desensombrara-se. Certas circunstâncias materiais muito
enervantes tinham-se-me modificado lisonjeiramente. Ao meu último volume, recém-saído do
prelo, estava-o acolhendo um magnífico sucesso. O próprio Sarzedas lhe dedicara um grande artigo
elogioso e lúcido!…
Por sua parte, Ricardo só me parecia feliz no seu lar.
Em suma, tínhamos aportado. Agora sim: vivíamos.
Decorreram meses. Chegara o verão. Haviam cessado as reuniões noturnas em casa do
artista. Luís de Monforte retirara-se para a sua quinta; Warginsky partira com três meses de licença
para S. Petersburgo. Os dois poetazinhos tinham-se perdido em Trás-os-Montes. Só, de vez em
quando — com o seu monóculo e o seu eterno sobretudo —, surgia Aniceto Sarzedas, queixando-se
do reumático e do último volume que aparecera.
Depois de projetar uma viagem à Noruega, Ricardo decidiu ficar por Lisboa. Queria
trabalhar muito esse verão, concluir o seu volume Diadema, que devia ser a sua obra-prima. E,
francamente, o melhor para isso era permanecer na capital. Marta estando de acordo, assim
sucedeu.
Foi neste tempo que a intimidade com a mulher do meu amigo mais se estreitou —
intimidade onde nunca a sombra de um desejo se viera misturar, embora passássemos largo tempo
juntos. Com efeito, numa ânsia de trabalho, Ricardo, após o jantar, logo nos deixava, encerrando-se
no seu gabinete até às onze horas, meia-noite…
As nossas palavras, de resto, apesar da nossa intimidade, somavam-se apenas numa
conversa longínqua em que não apareciam as nossas almas. Eu expunha-lhe os enredos de futuras
novelas, sobre as quais Marta dava a sua opinião — lia-lhe as minhas páginas recém-escritas,
sempre numa camaradagem puramente intelectual.
Até aí nunca me ocorrera qualquer idéia misteriosa sobre a companheira do poeta. Ao
contrário: ela parecia-me bem real, bem simples, bem certa.
*
próprio:
*
*
Mas aí, de súbito, uma estranha obsessão começou no meu espírito…
Como que acordado bruscamente de um sonho, uma noite achei-me perguntando a mim
— Mas no fim de contas quem é esta mulher?…
Pois eu ignorava tudo a seu respeito. Donde surgira? Quando a encontrara o poeta?
Mistério… Em face de mim nunca ela fizera a mínima alusão ao seu passado. Nunca falara de um
parente, de uma sua amiga. E, por parte de Ricardo, o mesmo silêncio, o mesmo inexplicável
silêncio…
Sim, em verdade, tudo aquilo era muito singular. Como a conhecera o artista — ele,
que não tinha relações algumas, que nem mesmo freqüentava as casas dos seus raros amigos — e
como aceitaria a idéia do matrimônio, que tanto lhe repugnava?… O matrimônio? Mas seriam eles
casados?… Nem sequer disso eu podia estar seguro. Lembrava-me numa reminiscência vaga: na
sua carta o meu amigo não me escrevera propriamente que se tinha casado. Isto é: dizia-mo talvez,
mas sem empregar nunca uma palavra decisiva… Aludindo a sua mulher, dizia sempre Marta —
reparava agora também.
E foi então que me ocorreu outra circunstância ainda mais estranha, a qual me acabou
de perturbar: essa mulher não tinha recordações; essa mulher nunca se referira a uma saudade da
sua vida. Sim; nunca me falara de um sítio onde estivera, de alguém que conhecera, de uma
sensação que sentira — em suma, da mais pequena coisa: um laço, uma flor, um véu…
De maneira que a realidade inquietante era esta: aquela mulher erguia-se aos meus
olhos como se não tivesse passado — como se tivesse apenas um presente!
Em vão tentei expulsar do espírito as idéias afogueadas. Mais e mais cada noite elas se
me enclavinhavam, focando-se hoje toda a minha agonia em desvendar o mistério.
Nas minhas conversas com Marta esforçava- me por obrigá-la a descer no seu passado.
Assim lhe perguntava naturalmente se conhecia tal cidade, se conservava muitas reminiscências da
sua infância, se tinha saudades desta ou doutras épocas da sua vida… Mas ela — naturalmente
também, suponho — respondia iludindo as minhas perguntas; mais: como se não me percebesse…
E, pela minha parte, num enleio injustificado, faltava-me sempre a coragem para insistir —
perturbava-me como se viesse de cometer uma indelicadeza.
Para a minha ignorância ser total, eu nem mesmo sabia que sentimentos ligavam os dois
esposos. Amava-a realmente o artista? Sem dúvida. Entanto nunca mo dissera, nunca se me referira
a esse amor, que devia existir com certeza. E, pelo lado de Marta, igual procedimento — como se
tivessem pejo de aludir ao seu amor.
Um dia, não me podendo conter — vendo que da sua companheira detalhe algum
obtinha —, decidi-me a interrogar o próprio Ricardo.
E, num esforço, de súbito:
— É verdade — ousei —, você nunca me contou o seu romance…
No mesmo momento me arrependi. Ricardo empalideceu; murmurou quaisquer
palavras e, logo, mudando de assunto, se pôs a esboçar-me o plano de um drama em verso que
queria compor.
Entretanto a minha idéia fixa volvera-se-me num perfeito martírio, e assim — quer
junto de Marta, quer junto do poeta — eu tentei por mais de uma vez ainda suscitar alguma luz,
Mas sempre embalde.
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*
*
Contudo o mais singular da minha obsessão, ia-me esquecendo de o dizer.
Não era com efeito o mistério que encerrava a mulher do meu amigo que, no fundo,
mais me torturava. Era antes esta incerteza: a minha obsessão seria uma realidade, existiria
realmente no meu espírito; ou seria apenas um sonho que eu tivera e não lograra esquecer,
confundindo-o com a realidade?
Todo eu agora era dúvidas. Em coisa alguma acreditava. Nem sequer na minha
obsessão. Caminhava na vida entre vestígios, chegando mesmo a recear enlouquecer nos meus
momentos mais lúcidos…
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Voltara o inverno, e, com ele, os serões artísticos em casa do poeta, sucedendo aos dois
vates, perdidos definitivamente em Trás-os-Montes, um vago jornalista com pretensões a
dramaturgo e Narciso do Amaral, o grande compositor. Sérgio Warginsky, loiro como nunca,
sempre o mais assíduo e o mais irritante.
A prova de que o meu espírito andava doente, muito doente, tive-a uma noite dessas —
uma noite chuvosa de dezembro…
Narciso do Amaral decidira-se enfim a executar-nos o seu concertante Além, que
terminara há muitas semanas e que até hoje só ele conhecia.
Sentou-se ao piano. Os seus dedos feriram as teclas…
Automaticamente os meus olhos se tinham fixado na esposa de Ricardo, que se
assentara num fauteuil ao fundo da casa, em um recanto, de maneira que só eu a podia ver olhando
ao mesmo tempo para o pianista.
Longe dela, em pé, na outra extremidade da sala, permanecia o poeta.
E então, pouco a pouco, à medida que a música aumentava de maravilha, eu vi — sim,
na realidade vi! — a figura de Marta dissipar-se, esbater-se, som a som, lentamente, até que
desapareceu por completo. Em face dos meus olhos abismados eu só tinha agora o "fauteuil"
vazio…
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Fui de súbito acordado da miragem pelos aplausos dos auditores que a música genial
transportara, fizera fremir, quase delirar…
E, velada, a voz de Ricardo alteou-se:
— Nunca vibrei sensações mais intensas do que perante esta música admirável. Não se
pode exceder a emoção angustiante, perturbadora, que ela suscita. São véus rasgados sobre o Além
— o que a sua harmonia soçobra… Tive a impressão de que tudo quanto me constitui em alma, se
precisou condensar para a estremecer — se reuniu dentro de mim, ansiosamente, em um globo de
luz…
Calou-se. Olhei…
Marta regressara. Erguia-se do fauteuil nesse instante…
Ao dirigir-me para minha casa debaixo de uma chuva miudinha, impertinente — sentiame silvado por um turbilhão de garras de ouro e chama.
Tudo resvalava ao meu redor numa bebedeira de mistério, até que — num esforço de
lucidez — consegui atribuir a visão fantástica à partitura imortal.
De resto eu apenas sabia que se tratara de uma alucinação, porque era impossível
explicar o estranho desaparecimento por qualquer outra forma. Ainda que na realidade o seu corpo
se dissolvesse devido aos lugares que ocupávamos na sala — presumivelmente só eu o teria notado.
Com efeito, bem pouco natural seria que, em face de música tão sugestionadora, alguém pudesse
desviar os olhos do seu admirável executante…
A partir dessa noite, a minha obsessão ainda mais se acentuou.
Parecia-me, em verdade, enlouquecer.
Quem era, mas quem era afinal essa mulher enigmática, essa mulher de sombra? De
onde provinha, onde existia?… Falava-lhe há um ano, e era como se nunca lhe houvesse falado…
Coisa alguma sabia dela — a ponto que às vezes chegava a duvidar da sua existência. E então,
numa ânsia, corria a casa do artista, a vê-la, a certificar-me da sua realidade — a certificar-me de
que nem tudo era loucura: pelo menos ela existia.
Em mais de uma ocasião já Ricardo pressentira em mim decerto alguma coisa
extraordinária. A prova foi que uma tarde, solícito, se informou da minha saúde. Eu respondi-lhe
brutalmente — lembro-me — afirmando com impaciência que nada tinha; perguntando-lhe que
idéia estrambótica era essa.
E ele, admirado perante o meu furor inexplicável:
— Meu querido Lúcio — apenas comentara —, é preciso tomarmos conta com esses
nervos…
Não podendo mais resistir à idéia fixa; adivinhando que o meu espírito soçobraria se
não vencesse lançar enfim alguma luz sobre o mistério — sabendo que, nesse sentido, nada me
esperava junto de Ricardo ou de Marta —, decidi valer-me de qualquer outro meio, fosse ele qual
fosse.
E eis como principiou uma série de baixezas, de interrogações mal dissimuladas, junto
de todos os conhecidos do poeta — dos que deviam ter estado em Lisboa quando do seu casamento.
Para as minhas primeiras diligências escolhi Luís de Monforte.
Dirigi-me a sua casa, no pretexto de o consultar sobre se deveria conceder a minha
autorização a certo dramaturgo que pensava em extrair um drama de uma das minhas mais célebres
novelas. Mas logo de começo não tive mãos em mim, e, interrompendo-me, me pus a fazer-lhe
perguntas diretas, ainda que um tanto vagas, sobre a mulher do meu amigo. Luís de Monforte
ouviu-as como se as estranhasse — mas não por elas próprias, só por virem da minha parte; e
respondeu-me chocado, iludindo-as, como se as minhas perguntas fossem indiscrições a que seria
pouco correto responder.
O mesmo — coisa curiosa — me sucedeu junto de todos quantos interroguei. Apenas
Aniceto Sarzedas foi um pouco mais explícito, volvendo-me com uma infâmia e uma obscenidade
— segundo o seu costume, de resto.
Ah! como me senti humilhado, sujo, nesse instante — que difícil me foi suster a minha
raiva e não o esbofetear, estender-lhe amavelmente a mão, na noite seguinte, ao encontrá-lo em
casa do poeta…
Estas diligências torpes, porém, foram vantajosas para mim. Com efeito se, durante
elas, não averiguara coisa alguma — concluíra pelo menos isto: que ninguém se admirava do que
eu me admirava; que ninguém notara o que eu tinha notado. Pois todos me ouviram como se nada
de propriamente estranho, de misterioso, houvesse no assunto sobre o qual as minhas perguntas
recaíam — apenas como se fosse indelicado, como se fosse estranho da minha parte tocar nesse
assunto. Isto é: ninguém me compreendera… E assim me cheguei a convencer de que eu próprio
não teria razão…
De novo, por algum tempo, as idéias se me desanuviaram; de novo, serenamente, me
pude sentar junto de Marta.
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Mas ai, foi bem curto este período tranqüilo.
De todos os conhecidos do artista, só um eu não ousara abordar, tamanha antipatia ele
me inspirava — Sérgio Warginsky.
Ora uma noite, por acaso, encontramo-nos no Tavares. Não houve pretexto para que
não jantássemos à mesma mesa…
… E de súbito, no meio da conversa, muito naturalmente, o russo exclamou, aludindo a
Ricardo e à sua companheira:
— Encantadores aqueles nossos amigos, não é verdade? E que amáveis… Já conhecia o
poeta em Paris. Mas, a bem dizer, as nossas relações datam de há dois anos, quando fomos
companheiros de jornada… Eu tomara em Biarritz o sud-express para Lisboa. Eles faziam viagem
no mesmo trem, e desde então…
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4
Atordoaram-me, positivamente me atordoaram, as palavras do russo.
Pois seria possível? Ricardo trouxera-a de Paris?… Mas como não a conhecera eu,
sendo assim? Acaso não o teria acompanhado à gare do Quai d'Orsay? Fora verdade, fora, não o
acompanhara — lembrei-me de súbito. Estava doente, com um fortíssimo ataque de gripe… E
ele… Não; era impossível… não podia ser…
Mas logo, procurando melhor nas minhas reminiscências, me ocorreram pela primeira
vez, nitidamente me ocorreram, certos detalhes obscuros que se prendiam com o regresso do artista
a Portugal.
Ele amava tanto Paris… e decidira regressar a Portugal… Declarara-mo, e eu não me
tinha admirado — não tinha admirado como se houvesse uma razão que justificasse, que exigisse
esse regresso.
Ai, como me arrependia hoje de, com efeito, o não ter acompanhado à estação, embora
o meu incômodo, e talvez ainda outro motivo, que eu depois esquecera. Entretanto recordava-me de
que, apesar da minha febre, das minhas violentas dores de garganta, estivera prestes a erguer-me e a
ir despedir-me do meu amigo… Porém, em face do um torpor físico que me invadira tudo, deixarame ficar estendido no leito, imerso numa profunda modorra, numa estranha modorra de
penumbra…
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Aquela mulher, ah! aquela mulher…
Quem seria… quem seria?… Como sucedera tudo aquilo?…
E só então me lembrei distintamente da carta do poeta pela qual se me afigurava ter
sabido do seu enlace: a verdade era que, de forma alguma, ele me participava um casamento nessa
carta; nem sequer de longe aludia a esse ato — falava-me apenas das "transformações da sua vida",
do seu lar, e tinha frases como esta que me bailava em letras de fogo diante dos olhos: "agora, que
vive alguém a meu lado; que enfim de tudo quanto derroquei sempre se ergueu alguma coisa…"
E, fato extraordinário, notava eu hoje: ele referia-se a tudo isso como se se tratasse de
episódios que eu já conhecesse, sendo por conseguinte inútil narrá-los, só comentados…
Mas havia outra circunstância, ainda mais bizarra: é que, pela minha parte, eu não me
admirara, como se efetivamente já tivesse conhecido tudo isso, que, porém, olvidara por completo,
e que a sua carta agora, vagamente, me vinha recordar.
Sim, sim: nem me admirara, nem lhe falara do meu esquecimento, nem lhe fizera
perguntas — não pensara sequer em lhas fazer, não pensara em coisa alguma.
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Mais do que nunca o mistério subsistia pois: entretanto divergido para outra direção.
Isto é: a idéia fixa que ele me enclavinhava no espírito alterara-se essencialmente.
Outrora o mistério apenas me obcecava como mistério: evidenciando-se, também, a
minha alma se desensombraria. Era ele só a minha angústia. E hoje — meu Deus! — a tortura
volvera-se em quebranto; o segredo que velava a minha desconhecida só me atraía hoje, só me
embriagava de champanhe — era a beleza única da minha existência.
Daí por diante seria eu próprio a esforçar-me por que ele permanecesse, impedindo que
luz alguma o viesse iluminar. E quando desabasse, a minha dor seria infinita. Mais: se ele
soçobrasse, apesar de tudo, numa ilusão, talvez eu ainda o fizesse prosseguir!
O meu espírito adaptara-se ao mistério — e esse mistério ia ser a armadura, a chama e o
rastro de ouro da minha vida…
Isso, entretanto, não o avistei imediatamente; levou-me muitas semanas o aprendê-lo —
e, ao descobri-lo, recuei horrorizado. Tive medo; um grande medo… O mistério era essa mulher.
Eu só amava o mistério…
… Eu amava essa mulher! Eu queria-a! eu queria-a!
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Meu Deus, como sangrei…
O espírito fendera-se-me numa oscilação temível; um arrepio contínuo me varava a
carne ziguezagueantemente. Não dormia, nem sequer sonhava. Tudo eram linhas quebradas em
meu redor, manchas de luz podre, ruídos dissonantes…
Foi então que num ímpeto de vontade, bem decidido, comecei a procurar com toda a
lucidez a força de salvar o precipício que estava já bem perto, na minha carreira… Logo a
encontrei. O que me impelia para essa mulher fazendo-ma ansiar esbraseadamente, não era a sua
alma, não era a sua beleza — era só isto: o seu mistério. Derrubado o segredo, esvair-se-ia o
encantamento: eu poderia caminhar bem seguro.
Assim determinei abrir-me inteiramente com Ricardo, dizer-lhe as minhas angústias, e
suplicar-lhe que me contasse tudo, tudo, que pusesse termo ao mistério, que preenchesse os espaços
vazios da minha memória.
Mas foi-me impossível levar a cabo tal resolução. Desfaleci adivinhando que sofreria
muito mais, muito mais fanadamente, extinto o sortilégio, de que enquanto ele me diluísse.
Quis ter porém outra coragem: a de fugir.
Desapareci durante uma semana fechado em minha casa, sem fazer coisa alguma,
passeando todo o dia à roda do meu quarto. Os bilhetes do meu amigo principiaram chovendo, e
como nunca lhe respondesse, uma tarde ele próprio me veio procurar. Disseram-lhe que eu não
estava, mas Ricardo, sem ouvir, pricipitou-se no meu quarto a gritar-me:
— Homem! que diabo significa isto? Pousas ao neurastênico, à última hora? Vamos,
faz-me o favor de te vestir e de me acompanhares imediatamente a minha casa.
Não soube articular uma razão, uma escusa, Apenas sorri volvendo:
— Não faças caso. São as minhas esquisitices…
E, no mesmo instante, decidi não fugir mais do precipício; entregar-me à corrente —
deixar-me ir até onde ela me levasse. Com esta resolução voltou-me toda a lucidez.
Acompanhei Ricardo. Ao jantar falou-se só da minha "madureza" e o primeiro a
blagueá-la fui eu próprio.
Marta estava linda essa noite. Vestia uma blusa negra de crepe-da-china, amplamente
decotada. A saia, muito cingida, deixava pressentir a linha escultural das pernas, que uns sapatos
muito abertos mostravam quase nuas, revestidas por meias de fios metálicos, entrecruzados em
largos losangos por onde a carne surgia…
E pela primeira vez, ao jantar, me sentei a seu lado, pois o artista recusou o seu lugar do
costume pretextando uma corrente de ar…
O que foram as duas semanas que sucederam a esta noite, não sei. Entanto a minha
lucidez continuava. Nenhuma idéia estranha feria o meu espírito, nenhuma hesitação, nenhum
remorso… E contudo sabia-me arrastado, deliciosamente arrastado, em uma nuvem de luz que me
encerrava todo e me aturdia os sentidos — mas não deixava ver, embora eu tivesse a certeza de que
eles me existiam bem lúcidos. Era como se houvesse guardado o meu espírito numa gaveta…
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Foi duas noites após o meu regresso que as suas mãos, naturalmente, pela primeira vez,
encontraram as minhas…
Ah! como as horas que passávamos solitários eram hoje magentas… As nossas palavras
tinham-se volvido — pelo menos julgo que se tinham volvido — frases sem nexo, sob as quais
ocultávamos aquilo que sentíamos e não queríamos ainda desvendar, não por qualquer receio, mas
sim, unicamente, num desejo perverso de sensualidade.
Tanto que uma noite, sem me dizer coisa alguma, ela pegou nos meus dedos e com eles
acariciou as pontas dos seios — a acerá-las, para que enfolassem agrestemente o tecido ruivo do
quimono de seda.
E cada noite era uma nova voluptuosidade silenciosa.
Assim, ora nos beijávamos os dentes, ora ela me estendia os pés descalços para que
lhos roesse — me soltava os cabelos: me dava a trincar o seu sexo maquilado, o seu ventre obsceno
de tatuagens roxas…
E só depois de tantos requintes de brasa, de tantos êxtases perdidos — sem forças para
prolongarmos mais as nossas perversões — nos possuímos realmente.
Foi uma tarde triste, chuvosa e negra de fevereiro. Eram quatro horas. Eu sonhava dela
quando, de súbito, a encantadora surgiu na minha frente…
Tive um grito de surpresa. Marta, porém, logo me fez calar com um beijo mordido…
Era a primeira vez que vinha a minha casa, e eu admirava-me, receoso da sua audácia.
Mas não lho podia dizer: ela mordia-me sempre…
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Por fim os nossos corpos embaralharam-se, oscilaram perdidos numa ânsia ruiva…
… E em verdade não fui eu que a possuí — ela, toda nua, ela sim, é que me possuiu…
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À noite, como de costume, jantei em casa de Ricardo.
Muito curiosa a disposição do meu espírito: nem o mínimo remorso, o mínimo
constrangimento — nuvem alguma. Pelo contrário, há muito me não via tão bem disposto. O
próprio meu amigo o observou.
Falamos os dois largamente essa noite, coisa que há bastante não acontecia. Ricardo
terminara enfim nessa tarde o seu volume. Por isso nos não deixou…
… E no meio da sua conversa íntima, eu esquecera até o episódio dourado. Olhando em
redor de mim nem mesmo me ocorria que Marta estava seguramente perto de nós…
*
coisa:
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*
Na manhã seguinte, ao acordar, lembrei-me de que o poeta me dissera esta estranha
— Sabe você, Lúcio, que tive hoje uma bizarra alucinação? Foi à tarde. Deviam ser
quatro horas… Escrevera o meu último verso. Saí do escritório. Dirigi-me para o meu quarto… Por
acaso olhei para o espelho do guarda-vestidos e não me vi refletido nele! Era verdade! Via tudo em
redor de mim, via tudo quanto me cercava projetado no espelho. Só não via a minha imagem… Ah!
não calcula o meu espanto… a sensação misteriosa que me varou… Mas quer saber? Não foi uma
sensação de pavor, foi uma sensação de orgulho.
Porém, refletindo melhor, descobri que em realidade o meu amigo me não dissera nada
disto. Apenas eu — numa reminiscência muito complicada e muito estranha — me lembrava, não
de que verdadeiramente ele mo tivesse dito, mas de que, entretanto, mo devera ter dito.
5
A nossa ligação, sem uma sombra, foi prosseguindo.
Ah! como eu, ascendido, me orgulhava do meu amor… Vivia em sortilégio, no
contínuo deslumbramento de uma apoteose branca de carne…
Que delírios estrebuchavam os nossos corpos doidos… como eu me sentia pouca coisa
quando ela se atravessava sobre mim, iriada e sombria, toda nua e litúrgica…
Caminhava sempre aturdido do seu encanto — do meu triunfo. Eu tinha-a! Eu tinhaa!… E erguia-se tão longe o meu entusiasmo, era tamanha a minha ânsia que às vezes — como os
amorosos baratos escrevem nas suas cartas romanescas e patetas — eu não podia crer na minha
glória, chegava a recear que tudo aquilo fosse apenas um sonho.
*
*
*
A minha convivência com Ricardo seguia sempre a mesma, e o meu afeto. Nem me
arrependia, nem me condenava. De resto, antevendo-me em todas as situações, já anteriormente me
supusera nas minhas circunstâncias atuais, adquirindo a certeza de que seria assim.
Com efeito, segundo o meu sentir, eu não prejudicava o meu amigo em coisa alguma,
não lhe fazia doer — ele não descera coisa alguma na minha estima.
Nunca tive a noção convencional de certas ofensas, de certos escrúpulos. De nenhum
modo procedia pois contra ele; transpondo-me, não me sabia indignar com o que lhe tinha feito.
Aliás, ainda que o meu procedimento fosse na verdade um crime, eu não praticava esse
crime por mal, criminosamente. Eis pelo que me era impossível ter remorsos.
Se lhe mentia — estimava-o entretanto com o mesmo afeto. Mentir não é menos querer.
*
*
*
Porém — coisa estranha — este amor pleno, este amor sem remorsos, eu vibrava-o
insatisfeito, dolorosamente. Fazia-me sofrer muito, muito. Mas por que, meu Deus? Cruel
enigma…
Amava-a, e ela queria-me também, decerto… dava-se-me toda em luz… Que me
faltava?
Não tinha súbitos caprichos, recusas súbitas, como as outras amantes. Nem me fugia,
nem me torturava. Que me doía então?
Mistério…
O certo é que ao possuí-la eu era todo medo — medo inquieto e agonia: agonia de
ascensão, medo raiado de azul; entanto morte e pavor.
Longe dela, recordando os nossos espasmos, vinham-me de súbito incompreensíveis
náuseas. Longe dela? Mesmo até no momento dourado da posse essas repugnâncias me nasciam a
alastrarem-se, não a resumirem-se, a enclavinharem-me os êxtases arfados: e — cúmulo da
singularidade — essas repugnâncias eu não sabia, mas adivinhava, serem apenas repugnâncias
físicas.
Sim, ao esvaí-la, ao lembrar-me de a ter esvaído, subia-me sempre um além-gosto a
doença, a monstruosidade, como se possuíra uma criança, um ser de outra espécie ou um cadáver…
Ah! e o seu corpo era um triunfo; o seu corpo glorioso… o seu corpo bêbado de carne
— aromático e lustral, evidente… salutar…
*
*
*
As lutas em que eu hoje tinha de me debater para que ela não suspeitasse as minhas
repugnâncias, repugnâncias que — já disse e acentuo — apenas vinham contorcer os meus desejos,
aumentá-los…
Elançava-me agora sobre o seu corpo nu, como quem se arremessasse a um abismo
encapelado de sombras, tilintante de fogo e gumes de punhais — ou como quem bebesse um
veneno sutil de maldição eterna, por uma taça de ouro, heráldica, ancestral…
Cheguei a recear-me, não a fosse um dia estrangular — e o meu cérebro, por vezes de
misticismos incoerentes, logo pensou, num rodopio, se essa mulher fantástica não seria apenas um
demônio: o demônio da minha expiação, noutra vida a que eu já houvesse baixado.
E as tardes iam passando…
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Por mais que diligenciasse referir toda a minha tortura à nossa mentira, ao nosso crime
— não me lograva enganar. Coisa alguma eu lastimava; não podia ter remorsos… Tudo aquilo era
quimera!
Volvido tempo, porém, à força de as querer descer, de tanto meditar nestas estranhezas,
como que enfim me adaptei a elas. E a tranqüilidade regressou-me.
Mas este novo período de calma bem pouco durou. Em face do mistério não se pode ser
calmo — e eu depressa me lembrei de que ainda não sabia coisa alguma dessa mulher que todas as
tardes emaranhava.
Nas suas conversas mais íntimas, nos seus amplexos mais doidos, ela era sempre a
mesma esfinge. Nem uma vez se abrira comigo numa confidência — e continuava a ser a que não
tinha uma recordação.
Depois, olhando melhor, nem era só do seu passado que eu ignorava tudo — também
duvidava do seu presente. Que faria Marta durante as horas que não vivíamos juntos? Era
extraordinário! Nunca me falara delas; nem para me contar o mais pequenino episódio — qualquer
desses episódios fúteis que todas as mulheres, que todos nós nos apressamos a narrar, narramos
maquinalmente, ainda os mais reservados… Sim, em verdade, era como se não vivesse quando
estava longe de mim.
Passou-me esta idéia pelo espírito, e logo encontrei outro fato muito estranho:
Marta parecia não viver quando estava longe de mim. Pois bem, pela minha parte,
quando a não tinha ao meu lado, coisa alguma me restava que, materialmente, me pudesse provar a
sua existência: nem uma carta, um véu, uma flor seca — nem retratos, nem madeixas. Apenas o seu
perfume, que ela deixava penetrante no meu leito, que bailava sutil em minha volta. Mas um
perfume é uma irrealidade. Por isso, como outrora, descia-me a mesma ânsia de a ver, de a ter junto
de mim para estar bem certo de que, pelo menos, ela existia.
Evocando-a, nunca a lograra entrever. As suas feições escapavam-me como nos fogem
as das personagens dos sonhos. E, às vezes, querendo-as recordar por força, as únicas que
conseguia suscitar em imagem eram as de Ricardo. Decerto por ser o artista quem vivia mais perto
dela.
Ah! bem forte, sem dúvida, o meu espírito, para resistir ao turbilhão que o silvava…
(Entre parênteses observe-se, porém, que estas obsessões reais que descrevo nunca
foram contínuas no meu espírito. Durante semanas desapareciam por completo e, mesmo nos
períodos em que me varavam, tinham fluxos e refluxos.)
Juntamente com o que deixo exposto, e era o mais frisante das minhas torturas, outras
pequeninas coisas, traiçoeiras ninharias, me vinham fustigar. Coloca-se até aqui um episódio
curioso que, embora sem grande importância, é conveniente referir:
Apesar de grandes amigos e de íntimos amigos, eu e Ricardo não nos tratávamos por tu,
devido com certeza à nossa intimidade ter principiado relativamente tarde — não sermos
companheiros de infância. De resto, nunca sequer atentáramos no fato.
Ora, por esta época, eu encontrei-me por vezes de súbito a tratar o meu amigo por tu. E
quando o fazia, logo me emendava, corando como se viesse de praticar uma imprudência. E isto
repetia-se tão amiudadamente que o poeta uma noite me observou com a maior naturalidade:
— Homem, escusas de ficar todo atrapalhado, titubeante, vermelho como uma
malagueta, quando te enganas e me tratas por tu. Isso é ridículo entre nós. E olha, fica combinado:
de hoje em diante acabou-se o "você". Viva o "tu"! É muito mais natural…
E assim se fez. Contudo, nos primeiros dias, eu não soube retrair um certo embaraço ao
empregar o novo tratamento — tratamento que me fora permitido.
Ricardo, virando-se para Marta, mais de uma vez me troçou, dizendo-lhe:
— Este Lúcio sempre tem cada esquisitice… Não vês? Parece uma noiva lirial… uma
pombinha sem fel… Que marocas!…
Entretanto este meu embaraço tinha um motivo — complicado esse, por sinal:
Nas nossas entrevistas íntimas, nos nossos amplexos, eu e Marta tratávamo-nos por tu.
Ora, sabendo-me muito distraído, eu receava que alguma vez, em frente de Ricardo, me
enganasse e a fosse tratar assim.
Este receio converteu-se por último numa idéia fixa, e por isso mesmo, por esse excesso
de atenção, comecei um dia a ter súbitos descuidos. Porém, dessas vezes, eu encontrava-me sempre
a tratar por tu, não Marta, mas Ricardo.
E embora depois tivéssemos assentado usar esse tratamento, o meu embaraço continuou
durante alguns dias como se ingenuamente, confiadamente, Ricardo houvesse exigido que eu e a
sua companheira nos tratássemos por tu.
tarde.
As minhas entrevistas amorosas com Marta realizavam-se sempre em minha casa, à
Com efeito ela nunca se me quisera entregar em sua casa. Em sua casa apenas me dava
os lábios a morder e consentia vícios prateados.
Eu admirava-me até muito da facilidade evidente que ela tinha em se encontrar comigo
todas as tardes à mesma hora, em se demorar largo tempo.
Uma vez recomendei-lhe prudência. Ela riu. Pedi-lhe explicações: como não eram
estranhadas as suas longas ausências, como me chegava sempre tranqüila, caminhando pelas ruas
desassombradamente, nunca se preocupando com as horas… E ela então soltou uma gargalhada,
mordeu-me a boca… fugiu…
Nunca mais a interroguei sobre tal assunto. Seria mau gosto insistir.
Entretanto fora mais um segredo que se viera juntar à minha obsessão, a excitá-la…
De resto, as imprudências de Marta não conheciam limites.
Em sua casa beijava-me com as portas todas abertas, sem se lembrar de que qualquer
criado nos poderia descobrir — ou mesmo o próprio Ricardo, que muitas vezes, de súbito, saía do
seu gabinete de trabalho. Sim, ela nunca tinha desses receios. Era como se tal nos não pudesse
acontecer — tal como se nós nos não beijássemos…
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*
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Aliás, se havia alguém bem confiante, era o poeta. Bastava olhá-lo para logo se ver que
nenhuma preocupação o torturava. Nunca o vira tão satisfeito, tão bem disposto.
Um vago ar de tristeza, de amargura, que após o seu casamento ainda de vez em quando
o anuviava, esse mesmo desaparecera hoje por completo — como se, com o decorrer dos dias, ele
já tivesse esquecido o acontecimento cuja lembrança lhe suscitava aquela ligeira nuvem.
As suas antigas complicações de alma, essas, mal eu chegara a Lisboa logo ele me disse
que já não o desolavam — pois que, nesse sentido, a sua vida se limpara.
E — fato curioso — justamente depois de Marta ser minha amante é que tinham
cessado todas as nuvens, é que eu via melhor a sua boa disposição — o seu orgulho, o seu júbilo, o
seu triunfo…
As imprudências de Marta aumentavam agora dia a dia.
Numa audácia louca, nem retinha já certos gestos de ternura a mim dirigidos, na
presença do próprio Ricardo!
Todo eu tremia, mas o poeta nunca os estranhava — nunca os via; ou, se os via, era só
para se rir, para os acompanhar.
Assim, uma tarde de verão, lanchávamos no terraço, quando Marta de súbito — num
gesto que, em verdade, se poderia tomar por uma simples brincadeira agarotada — me mandou
beijá-la na fronte, em castigo de qualquer coisa que eu lhe dissera.
Hesitei, fiz-me muito vermelho; mas como Ricardo insistisse, curvei-me trêmulo de
medo, estendi os lábios mal os pousando na pele…
E Marta:
— Que beijo tão desengraçado! Parece impossível que ainda não saiba dar um beijo…
Não tem vergonha? Anda, Ricardo, ensina-o tu…
Rindo, o meu amigo ergueu-se, avançou para mim… tomou-me o rosto… beijou-me…
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O beijo de Ricardo fora igual, exatamente igual, tivera a mesma cor, a mesma
perturbação que os beijos da minha amante. Eu sentira-o da mesma maneira.
6
Mais e mais a minha tortura se exacerbava cada noite. E embora visse claramente que
todo o meu sofrimento, todos os meus receios provinham só de obsessões destrambelhadas e que,
portanto, motivo algum havia para eu os ter — o certo é que, pelo menos, uma certeza lúcida me
restava pressentida fosse como fosse, havia em todo o caso um motivo real no arrepio de medo que
me varava a todo o instante. Seriam destrambelhadas as minhas obsessões — ah! mas eram justos,
no fundo, os meus receios.
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Os nossos encontros prosseguiam sempre todas as tardes em minha casa, e eu hoje
esperava, tremendo, a hora dos nossos amplexos. Tremendo e, ao mesmo tempo, a ansiar numa
agonia aquilo que me fazia tremer.
Esquecera as minhas repugnâncias; o que me oscilava agora era outra dúvida: apesar de
os nossos corpos se emaranharem, se incrustarem, de ela ter sido minha, toda minha — começou a
parecer-me, não sei por que, que nunca a possuíra inteiramente: mesmo que não era possível
possuir aquele corpo inteiramente por uma impossibilidade física qualquer: assim como se ela fosse
do meu sexo!
E ao penetrar-me esta idéia alucinadora, eu lembrava-me sempre de que o beijo de
Ricardo, esse beijo masculino, me soubera às mordeduras de Marta; tivera a mesma cor, a mesma
perturbação.
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Passaram-se alguns meses.
Entre períodos mais ou menos tranqüilos, o tempo ia agora seguindo. Eu olvidava a
minha inquietação, o meu mistério, elaborando um novo volume de novelas — o último que devia
escrever…
Meus tristes sonhos, meus grandes cadernos de projetos — acumulei-vos… acumuleivos numa ascensão, e por fim tudo ruiu em destroços… Etéreo construtor de torres que nunca se
erguem, de catedrais que nunca se sagraram… Pobres torres de luar… pobres catedrais de
neblina…
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Por este tempo, houve também uma época muito interessante na minha crise que não
quero deixar de mencionar: durante ela eu pensava muito no meu caso, mas sem de forma alguma
me atribular — friamente. desinteressadamente, como se esse caso se não desse comigo.
E punha-me sobretudo a percorrer o começo da nossa ligação. De que modo se iniciara
ela? Mistério… Sim, por muito estranho que pareça, a verdade é que eu me esquecera de todos os
pequenos episódios que a deviam forçosamente ter antecedido. Pois decerto não começáramos logo
por beijos, por carícias viciosas — houvera sem dúvida qualquer coisa antes, que hoje não me
podia recordar.
E o meu esquecimento era tão grande que, a bem dizer, eu não tinha a sensação de
haver esquecido esses episódios: parecia me impossível recordá-los, como impossível é
recordarmo-nos de coisas que nunca sucederam.
Mas estas bizarrias não me dilaceravam, repito: durante esta época eu examinei-me
sempre de fora, num deslumbramento — num deslumbramento lúcido, donde provinha o meu
alívio atual.
E só me lembrava — conforme narrei — do primeiro encontro das nossas mãos, do
nosso primeiro beijo… Nem de tanto, sequer. A verdade simples era esta: eu sabia apenas que
devera ter havido seguramente um primeiro encontro de mãos, uma primeira mordedura nas
bocas… como em todos os romances…
Quando a saudade desse primeiro beijo me acudia mais nítida — ele surgia-me sempre
como se fora a coisa mais natural, a menos criminosa, ainda que dado na boca… Na boca? Mas é
que eu nem mesmo disso estava seguro. Pelo contrário: era até muito possível que esse beijo mo
tivessem dado na face — como o beijo de Ricardo, o beijo semelhante aos de Marta…
Meu Deus, meu Deus quem me diria entretanto que estava ainda a meio do meu
calvário, que tudo o que eu já sofrera nada valeria em face de uma nova tortura — ai, desta vez,
tortura bem real, não simples obsessão…
Com efeito um dia comecei observando uma certa mudança na atitude de Marta — nos
seus gestos, no seu rosto: um vago constrangimento, um alheamento singular, devidos sem dúvida a
qualquer preocupação. Ao mesmo tempo reparei que já não se me entregava com a mesma
intensidade.
Demorava-se agora menos em minha casa e uma tarde, pela primeira vez faltou.
No dia seguinte não aludiu à sua ausência, nem eu tampouco me atrevi a perguntar-lhe
coisa alguma.
Entretanto notei que a expressão do seu rosto mudara ainda: voltara a serenidade
melancólica do seu rosto — mas essa serenidade era hoje diferente: mais loira, mais sensual, mais
esbatida…
E, desde aí, principiou a não me aparecer amiudadas vezes — ou chegando fora das
horas habituais, entrando e logo saindo, sem se me entregar.
De maneira que eu vivia agora num martírio incessante. Cada dia que se levantava, era
cheio de medo de que ela me faltasse. E desde a manhã a esperava, fechado em casa, numa
excitação indomável que me quebrava, que me ardia.
Por seu lado, Marta nunca tinha pensado em justificar-me as suas ausências, as suas
recusas. E eu, embora o quisesse, ardentemente o quisesse, não lhe ousava fazer a mais ligeira
pergunta.
De resto, devo explicar que, desde o início da nossa ligação, terminara a nossa
intimidade. Com efeito, desde que Marta fora minha — eu olhava-a como se olha alguém que nos é
muito superior e a quem tudo devemos. Recebera o seu amor como uma esmola de rainha — como
aquilo que menos poderia esperar, como uma impossibilidade.
Eis pelo que não arriscava uma palavra.
Eu era apenas o seu escravo — um escravo a quem se prostituíra a patrícia
debochada… Mas, por ser assim, tanto mais contorcida se enclavinhava a minha angústia.
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Uma tarde decidi-me.
Passara há muito a hora depois da qual Marta nunca vinha.
— Ah! que faria nesse instante! Por que não viera!?…
Fosse como fosse, era preciso saber alguma coisa!
Já mais de uma vez, quando ela me faltava, eu estivera prestes a ir procurá-la. Mas
nunca ousara sair do meu quarto, no receio pueril de que — embora muito tarde — ainda
aparecesse.
Nesse dia, porém, pude-me vencer. Decidi-me…
Corri à casa do meu amigo numa ânsia esbraseada…
Fui encontrá-lo no seu gabinete de trabalho, entre uma avalancha de papéis, fazendo
uma escolha dos seus versos inéditos para uma distribuição em dois volumes — distribuição que há
mais de um ano o torturava.
— Ainda bem que apareceste! — gritou-me. — Vais-me ajudar nesta horrível tarefa!…
Volvi-lhe balbuciando, sem me atrever a perguntar pela sua companheira, motivo único
da minha inesperada visita… Estaria em casa? Era pouco provável. Entanto podia ser…
Só a vi ao jantar. Tinha um vestido-tailleur, de passeio…
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Agora todas as minhas obsessões se haviam dissipado, convertidas em ciúme — ciúme
que eu ocultava à minha amante como uma vergonha, que fazia por ocultar a mim próprio, tentando
substituí-lo pelos meus antigos desvarios. Mas sempre embalde.
Contudo nunca passavam três dias seguidos sem que Marta me pertencesse.
O horror físico que o seu corpo já me suscitara tinha voltado de novo. Esse horror,
porém, e o ciúme mais me faziam desejá-la, mais alastravam em cores fulvas os meus espasmos.
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Muitas vezes repeti a experiência de correr a sua casa nas tardes em que ela não vinha.
Mas sempre encontrava Ricardo. Marta não aparecia senão ao jantar… E eu, na minha incrível
timidez, nunca perguntava por ela — esquecia-me mesmo de o fazer, como se não fosse para isso
só que viera procurar o meu amigo àquela hora…
Porém, um dia o poeta admirou-se das minhas visitas intempestivas, do ar febril com
que eu chegava e, desde então, nunca mais ousei repetir essas experiências, aliás inúteis.
Decidi espioná-la.
Uma tarde tomei um coupé e, descidas as cortinas, mandei-o parar perto de sua casa…
Esperei algum tempo. Por fim ela saiu. Ordenei ao cocheiro que a seguisse a distância…
Marta tomou por uma rua transversal, dobrou à esquerda, enveredou por uma avenida
paralela àquela em que habitava e onde as construções eram ainda raras. Dirigiu-se a um pequeno
prédio de azulejos verdes. Entrou sem bater…
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Ah! como eu sofria! como eu sofria!… Fora buscar a prova evidente de que ela tinha
outro amante… Louco que eu era em a ter ido procurar… Hoje, nem mesmo que quisesse, me
poderia já iludir…
E como eu me enganara outrora pensando que não seria sensível à traição carnal de
uma minha amante, que pouco me faria que ela pertencesse a outros…
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Começou então a última tortura…
Num grande esforço baldado, procurei ainda olvidar-me do que descobrira — esconder
a cabeça debaixo dos lençóis como as crianças, com medo dos ladrões, nas noites de inverno.
Ao entrelaçá-la, hoje, debatia-me em êxtases tão profundos, mordia-a tão sofregamente,
que ela uma vez se me queixou.
Com efeito, sabê-la possuída por outro amante — se me fazia sofrer na alma, só me
excitava, só me contorcia nos desejos…
Sim! sim! — laivos de roxidão! — aquele corpo esplêndido, triunfal, dava-se a três
homens — três machos se estiraçavam sobre ele, a poluí-lo, a sugá-lo!… Três? Quem sabia se uma
multidão?… E ao mesmo tempo que esta idéia me despedaçava, vinha-me um desejo perverso de
que assim fosse…
Ao estrebuchá-la agora, em verdade, era como se, em beijos monstruosos, eu possuísse
também todos os corpos masculinos que resvalavam pelo seu.
A minha ânsia convertera-se em achar na sua carne uma mordedura, uma escoriação de
amor, qualquer rastro de outro amante…
E um dia de triunfo, finalmente, descobri-lhe no seio esquerdo uma grande nódoa
negra… Num ímpeto, numa fúria, colei a minha boca a essa mancha — chupando-a, trincando-a,
dilacerando-a…
Marta, porém, não gritou. Era muito natural que gritasse com a minha violência, pois a
boca ficara-me até sabendo a sangue. Mas o certo é que não teve um queixume. Nem mesmo
parecera notar essa carícia brutal…
De modo que, depois de ela sair, eu não pude recordar-me do meu beijo de fogo — foime impossível relembrá-lo numa estranha dúvida…
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Ai, quanto eu não daria por conhecer o seu outro amante… os seus outros amantes…
Se ela me contasse os seus amores livremente, sinceramente, se eu não ignorasse as
suas horas - todo o meu ciúme desapareceria, não teria razão de existir.
Com efeito, se ela não se ocultasse de mim, se apenas se ocultasse dos outros, eu seria o
primeiro. Logo, só me poderia envaidecer; de forma alguma me poderia revoltar em orgulho.
Porque a verdade era essa, atingira: todo o meu sofrimento provinha apenas do meu orgulho ferido.
Não, não me enganara outrora, ao pensar que nada me angustiaria por a minha amante
se entregar a outros. Unicamente era necessário que ela me contasse os seus amores, os seus
espasmos até.
O meu orgulho só não admitia segredos. E em Marta era tudo mistério. Daí a minha
angústia — daí o meu ciúme.
Muita vez - julgo diligenciei fazer-lhe compreender isto mesmo, evidenciar-lhe a minha
forma de sentir, a ver se provocava uma confissão inteira da sua parte, cessando assim o meu
martírio. Ela, porém, ou nunca me percebeu, ou era resumido o seu afeto para tamanha prova de
amor.
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Se em face do meu ciúme todas as outras obsessões haviam soçobrado, restavam-me
ainda - como já disse - as minhas repugnâncias incompreensíveis.
E procurando de novo aclará-las a mim próprio, assaltou-me de súbito este receio:
seriam elas originadas pelo outro amante?
Eu me explico:
Tive sempre grandes antipatias físicas, meramente exteriores. Lembro-me por exemplo
de que, em Paris, a um restaurante onde todas as noites jantava com Gervásio Vila-Nova ia algumas
vezes uma rapariga italiana, deveras graciosa - modelo sem dúvida —, que muito me enternecia,
que eu cheguei quase a desejar.
Mas em breve tudo isso passou.
É que a vira um domingo caminhando de mãos dadas com certo indivíduo que eu
abominava com o maior dos tédios, e que já conhecia de o encontrar todas as tardes jogando as
cartas num café burguês da Praça S. Michel. Era escarradamente o que as damas de quarenta anos e
as criadas de servir chamam um lindo rapaz. Muito branco, rosadinho e loiro, bigodito bem frisado,
o cabelo encaracolado; uns olhos pestanudos, uma boca pequenina - meiguinho, todo esculpido em
manteiga; oleoso nos seus modos, nos seus gestos. Caixeiro de loja de modas - ah! não podia deixar
de ser!…
Embirrava de tal forma com semelhante criatura açucarada, que nunca mais tinha
voltado ao café provinciano da Praça S. Michel. Com efeito era-me impossível sofrer a sua
presença. Dava-me sempre vontade de vomitar em face dele, na mesma náusea que me provocaria
uma mistura de toucinho rançoso, enxúndia de galinha, mel, leite e erva-doce…
Ao encontrá-lo - o que não era raro - eu não sabia nunca evitar um gesto de
impaciência. Uma manhã por sinal nem almocei, pois, abancando num restaurante que não
freqüentava habitualmente, o alambicado personagem tivera a desfaçatez de se vir sentar diante de
mim, na mesma mesa… Ah! que desejo enorme me afogueou de o esbofetear, de lhe esmurrar o
narizinho num chuveiro de murros… Mas contive-me. Paguei e fugi.
Ora encontrar essa pequena galante de mãos dadas com tamanho imbecil - fora o
mesmo do que a ver tombar morta a meus pés. Ela não deixara de ser um amor - é claro - mas eu é
que nunca mais a poderia sequer aproximar. Sujara-a para sempre o homenzinho loiro,
engordurara-a. E se eu a beijasse, logo me ocorreria a sua lembrança amanteigada, vir-me-ia um
gosto úmido a saliva, a coisas peganhentas e viscosas. Possuí-la, então, seria o mesmo que banharme num mar sujo, de espumas amarelas, onde boiassem palhas, pedaços de cortiça e cascas de
melões…
Pois bem: e se as minhas repugnâncias em face do corpo admirável de Marta tivessem a
mesma origem? Se esse amante que eu ignorava fosse alguém que me inspirasse um grande
nojo?… Podia muito bem ser assim, num pressentimento, tanto mais que - já o confessei —, ao
possuí-la, eu tinha a sensação monstruosa de possuir também o corpo masculino desse amante.
Mas a verdade é que, no fundo, eu estava quase certo de que me enganava ainda; de que
era homem bem diferente, bem mais complicada a razão das minhas repugnâncias misteriosas. Ou
melhor: que mesmo que eu, se o conhecesse, antipatizasse com o seu amante, não seria esse o
motivo das minhas náuseas.
Com efeito a sua carne de forma alguma me repugnava numa sensação de enjôo - a sua
carne só me repugnava numa sensação de monstruosidade, de desconhecido: eu tinha nojo do seu
corpo como sempre tive nojo dos epilépticos, dos loucos, dos feiticeiros, dos iluminados, dos reis,
dos papas - da gente que o mistério grifou…
*
*
*
Numa derradeira vontade tentei ainda provocar uma explicação com Marta - descreverlhe sinceramente todo o meu martírio, ou, pelo menos, insultá-la. Enfim, pôr um termo qualquer à
minha situação infernal.
Mas não o consegui nunca. Quando ia a dizer-lhe a primeira palavra, via os seus olhos
de infinito… o seu olhar fascinava-me. E como um medium no estado hipnótico eram outras as
frases que eu proferia - talvez só as que ela me obrigava a pronunciar.
*
*
*
Então resolvi, pelo menos, saber de qualquer forma quem era o habitante do
prediozinho verde. Repugnavam-me muito as diligências suspeitas, mas não descera eu já a seguir
Marta?
Assim, enchi-me de arrojo e determinei ir perguntar pelas cercanias informações sobre
o que eu desejava averiguar, mesmo em último caso ao porteiro - se é que o prédio tinha guardaportão.
Escolhi a manhã de um domingo para as minhas investigações, dia em que eu e Marta
só nos encontrávamos em casa do poeta, que todas as tardes de domingo nos levava a passear no
seu automóvel, o qual então - estávamos em 1899 - fazia grande sucesso em Lisboa.
Porém, ao dobrar a rua transversal que levava à avenida onde era o prédio misterioso,
tive um gesto de despeito: Ricardo caminhava na minha frente. Não me pude esconder. Ele vira-me
já, não sei como:
— Hem? Tu por aqui a estas horas?… — gritou admirado.
Reuni as minhas forças para balbuciar:
— É verdade… Ia a tua casa… Mas lembrei-me de ver estas ruas novas… Ando tão
aborrecido…
— Do calor?
— Não… E tu próprio… diz-me… Nunca costumas sair de manhã… sobretudo aos
domingos…
— Ah! uma madureza como outra qualquer. Concluí agora mesmo uns versos E na
ânsia de os ler a alguém, ia a casa do Sérgio Warginsky para lhos mostrar… É aqui perto… Anda
comigo… Fazemos horas para o almoço.
A estas palavras todo eu tremi num arrepio. Silencioso, pus-me a acompanhá-lo,
maquinalmente.
O artista quebrou o silêncio:
— Então, e a tua peça?
— Terminei-a a semana passada.
— O quê!? Mas ainda não me tinhas dito coisa alguma!…
Desculpei-me, murmurando:
— É que me esqueci, talvez…
— Homem! tens cada resposta que não lembra ao diabo!… - recordo-me perfeitamente
de que ele exclamara, rindo. E prosseguiu:
— Mas conta-me depressa… Estás satisfeito com a tua obra?… Como resolveste afinal
aquela dificuldade do segundo ato? O escultor sempre morre?… E eu:
— Resolve-se tudo muito bem. O escultor…
Chegáramos defronte do prediozinho verde. Interrompi-me de súbito…
Não! não era ilusão: em face de nós, no outro passeio, Marta sempre nos seus passos
leves, indecisos mas rápidos, silenciosos - sem nos ver, sem reparar em redor de si, dirigia-se ao
prédio misterioso, batia à porta desta vez, entrava…
E, ao mesmo tempo, apertando-me o braço bruscamente, dizia- me o poeta:
— No fim de contas é um disparate irmos incomodar o russo. O que eu estou é ansioso
por conhecer o teu drama. Vamos buscá-lo os dois a tua casa. Quero ouvi-lo esta tarde. Tanto mais
que o automóvel precisa conserto. Aquilo, dia sim dia não, é uma peça que se parte…
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Vivi todo o resto desse dia como que envolto num denso véu de bruma. Entanto pude
ler o meu drama a Ricardo e a Marta. Sim, quando voltamos ao palacete, após termos passado por
minha casa, já Marta regressara, e notei mesmo que já tinha mudado de vestido - embora contra o
seu costume, não vestisse um traje de interior, mas sim uma toilette de passeio.
Lembro-me também de que durante toda a leitura da minha peça só tive esta sensação
lúcida: que era bizarro como eu, no meu estado de espírito, podia entretanto trabalhar.
De resto, conforme observei, as minhas dores, as minhas angústias, as minhas
obsessões eram intermitentes, tinham fluxos e refluxos: como nos dias de revolta social, entre os
tiros de canhão e o tiroteio nas praças, a vida diária prossegue - também, no meio da minha tortura,
seguia a minha vida intelectual. Por isso mesmo lograra esconder de todos, até hoje, a atribulação
do meu espírito.
Mas, juntamente com a idéia lúcida que descrevi, sugerira-se-me durante a leitura outra
idéia muito estrambólica. Fora isto: pareceu-me vagamente que eu era o meu drama - a coisa
artificial - e o meu drama a realidade.
Um parêntese:
Quem me tiver seguido deve, pelo menos, reconhecer a minha imparcialidade, a minha
inteira franqueza. Com efeito, nesta simples exposição da minha inocência, não me poupo nunca a
descrever as minhas idéias fixas, os meus aparentes desvairos que, interpretados com estreiteza,
poderiam levar a concluir, não pela minha culpabilidade, mas pela minha embustice ou - critério
mais estreito - pela minha loucura. Sim, pela minha loucura; não receio escrevê-lo. Que isto fique
bem frisado, porquanto eu necessito de todo o crédito para o final da minha exposição, tão
misterioso e alucinador ele é.
*
*
*
Ricardo e Marta felicitaram-me muito pela minha obra - creio. Mas não o posso
afirmar, em virtude do denso véu de bruma cinzenta que me envolvera, e que só me deixou nítidas
as lembranças que já referi.
Jantei com os meus amigos. Despedi-me cedo pretextando um ligeiro incômodo.
Corri para minha casa. Deitei-me logo… Mas antes de adormecer, revendo a cena
culminante do dia, observei esta estranha coisa:
Ao pararmos em face do prédio verde, de súbito eu vira Marta avançar distraída até
bater à porta… Ora, segundo a direção em que ela me aparecera, era fatal que tinha vindo sempre
atrás de nós. Logo, ela devia-me ter visto: logo eu devia-a ter visto quando - lembrava-me muito
bem - olhara para trás, por sinal em frente de um grande prédio em construção… E ao mesmo
tempo - ignoro por que motivo — lembrei-me de que o meu amigo, quando decidira de repente não
ir a casa de Warginsky, terminara a sua frase com estas palavras:
— …o automóvel precisa conserto. Aquilo, dia sim, dia não, é uma peça que se parte…
E eram as únicas palavras de que me lembrava frisantemente - mesmo as únicas que eu
estava certo de lhe ter ouvido. Entretanto as únicas que eu não podia admitir que ele tivesse
pronunciado…
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Demorei-me ainda largas horas a rever o meu estranho dia. Mas por fim adormeci,
levado num sono até alta manhã…
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Dois dias depois, sem prevenir ninguém, sem escrever uma palavra a Ricardo, eu tive
finalmente a coragem de partir…
Ah! a sensação de alívio que experimentei ao descer enfim na gare do Quai d'Orsay:
respirava, desenastrara-se-me a alma!…
Com efeito eu sofri sempre as dores morais na minha alma, fisicamente. E a impressão
horrível que há muito me debelava era esta: que a minha alma se havia dobrado, contorcido,
confundido…
Mas agora, ao ver-me longe de tudo quanto me misturara, essa dor estranha diluíra-se: o
meu espírito, sentia-o destrinçado como outrora.
Durante a viagem, pelo contrário, numa ânsia de chegar a Paris, as minhas torturas
tinham-se enrubescido. Eu pensava que nunca chegaria a Paris, que era impossível haver triunfado,
que sonhava com certeza - ou então que me prenderiam no caminho por engano: que me obrigariam
a tornar a Lisboa, que vinham no meu encalço Marta, Ricardo, todos os meus amigos, todos os
meus conhecidos…
E um calafrio de horror me ziguezagueara ao ver entrar em Biarritz um homem alto e
louro, no qual, de súbito, eu julguei reconhecer Sérgio Warginsky. Mas olhando-o melhor olhando-o pela primeira vez realmente - sorri para mim próprio: o desconhecido apenas tinha do
conde russo o ser alto e louro…
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Entanto agora já não podia duvidar: vencera. Atravessara a Praça da Concórdia,
monumental e aristocrática, tilintante de luzes…
De novo, ungindo-me de Europa, alastrando-me da sua vibração, se encapelava dentro
de mim Paris - o meu Paris, o Paris dos meus vinte e três anos…
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E foram então os últimos seis meses da minha vida… Vivi-os de existência diária, em
banalidade, freqüentando os cafés, os teatros, os grandes restaurantes…
Nas primeiras semanas - e mesmo depois, numa ou noutra hora - ainda pensei no meu
caso, mas nunca embrenhadamente.
Afinal - pressentia - tudo aquilo, no fundo, era talvez bem mais simples do que se me
afigurava. O mistério de Marta? Ora… ora… Fazem-se tantas loucuras… há tantas aventureiras…
E parecia-me até que, se eu quisesse, num grande esforço, numa grande concentração,
poderia explicar coisa alguma, esquecer tudo. Esquecer é não ter sido. Se eu lograsse abolir o triste
episódio da minha recordação, era exatamente como se nunca o existira. E foi pelo que me esforcei.
Entretanto nunca podia deixar de pensar numa circunstância: a complacência inaudita
de Ricardo - a sua infâmia. E então as coisas haviam chegado a ponto de a sua mulher ir atrás dele,
quase com ele, a casa de um amante? Pois se nós a não víramos, ela, por mais distraída que
caminhasse, tinha-nos visto com certeza. Mas nem por isso retrocedera!
E um turbilhão de pequeninas coisas me ocorria juntamente, mil fatos sem importância
ao primeiro exame, mil pormenores insignificantes em que eu só agora atentava.
Há muito que o meu amigo descobrira tudo decerto; por força que há muito soubera das
nossas relações… Nem podia deixar de ser assim… Só se fosse cego… Era pasmoso!…
E ele que me queria sempre ao lado da sua companheira? Mudara de lugar à mesa,
pretextando uma corrente de ar que nunca existira, só para que eu me sentasse junto de Marta e as
nossas pernas se pudessem entrelaçar…
Se saíamos os três, eu ia ao lado dela… E nos nossos passeios de automóvel, Ricardo
tomando sempre o volante, sentávamo-nos os dois sozinhos no interior da carruagem… bem
chegados um ao outro… de mãos dadas. Sim; pois logo os nossos dedos se nos enastravam maquinalmente, instintivamente… Ah! e era impossível que ele o não observasse quando, muita
vez, se voltava para nos dizer qualquer coisa…
Mas - fato estranho - a verdade é que, nesses momentos, eu nunca receara que ele visse
as nossas mãos; nunca me perturbara, nem sequer esboçara nunca um gesto de as desenlear… Era
como se as nossas mãos fossem soltas, e nós sentados muito longe um do outro…
E dar-se-ia o mesmo com Sérgio? Oh, sem dúvida… Ricardo estimava-o tanto…
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O mais infame, o mais inacreditável, porém, era que sabendo ele, a sua amizade, as suas
atenções, por mim e pelo russo aumentassem cada dia…
Que ele soubesse e entanto se calasse, por muito amar a sua companheira e, acima de
tudo, não a querer perder - ainda se admitia. Mas então, ao menos, que mostrasse uma atitude nobre
- que nos não adulasse, que não nos acariciasse…
Ah! como tudo isto me revoltava! Não propriamente pela sua atitude; antes pela sua
falta de orgulho. Eu não soube nunca desculpar uma falta de orgulho. E sentia que toda a minha
amizade por Ricardo de Loureiro soçobrara hoje em face da sua baixeza. A sua baixeza! Ele que
tanto me gritara ser o orgulho a única qualidade cuja ausência não perdoava em um caráter…
Mas devo esclarecer. ao pensar no extraordinário procedimento do meu amigo, nunca
me confrangiam as reminiscências das minhas antigas obsessões. Esquecera-as por completo.
Mesmo que as recordasse, importância alguma já daria ao mistério - seguramente mistério de
pacotilha —, ao meu ciúme, a tudo mais…
Apenas às vezes, quando muito, me assaltava uma saudade vaga, esvaída em
melancolia, por tudo o que outrora me torturara.
Somos sempre assim: O tempo vai passando, e tudo se nos volve saudoso - sofrimentos,
dores até, desilusões…
Com efeito, ainda hoje, às tardes maceradas, eu não sei evitar numa reminiscência
longínqua a saudade violenta de certa criaturinha indecisa que nunca tive, e mal roçou pela minha
vida. Por isto só: porque ela me beijou os dedos: e um dia, a sorrir, defronte dos nossos amigos, me
colocou em segredo o braço nu, mordorado, sobre a mão…
E depois logo fugiu da minha vida, esguiamente, embora eu, por piedade - doido que
fui! —, ainda a quisesse dourar de mim, num enternecimento azul pelas suas carícias…
E sofri… ela era tão pouca coisa, mas a verdade é que sofri… sofri de ternura… uma
ternura muito suave… penetrante… aquática…
Os meus afetos, mesmo, foram sempre ternuras…
Porém, quando me acordava essa saudade branda do meu antigo sofrimento - isto é: do
corpo nu de Marta no mesmo instante ela se me diluía, ao lembrar-me da atitude infame de
Ricardo.
E a minha revolta era cada vez maior.
Por felicidade, até aí, ainda não recebera uma carta do artista. Que nem a teria aberto, se
a recebera…
Pessoa alguma conhecia o meu endereço. Saber-se-ia talvez que eu estava em Paris,
devido a encontros fortuitos com vagos conhecidos.
Não comprava jornais portugueses. Se vinha no Matin qualquer telegrama de Lisboa,
não o lia: e assim, em verdade quase triunfara esquecer-me de quem era… Entre a multidão
cosmopolita, criava-me alguém sem pátria, sem amarras, sem raízes em todo o mundo.
— Ah! que venturoso eu fora se não tivesse nascido em parte nenhuma e entretanto
existisse… - lembrei-me muita vez estranhamente, nos meus passeios solitários pelos bulevares,
pelas avenidas, pelas grandes praças…
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Uma tarde, como de costume, folheava as últimas novidades literárias nas galerias do
Odéon, quando deparei com um volume de capa amarela, recém-aparecido, segundo a clássica tira
vermelha… E diante dos meus olhos, em letras de brasa, o nome de Ricardo de Loureiro
fulgurou…
Era com efeito a tradução francesa do Diadema que um editor arrojado acabara de
lançar, revelando ao mundo uma literatura nova…
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alucinadas.
Nessa tarde, pela primeira vez desde que cheguei a Paris, tive algumas horas realmente
Durante elas embrenhei-me a pensar em Ricardo, no seu procedimento inqualificável,
na sua inadmissível falta de orgulho.
Meditei em todos os pequenos episódios que atrás referi, descortinei outros ainda mais
significativos, perdendo-me a querer descobrir todos os amantes possíveis de Marta… E numa
alucinação, não podia conceber que nenhum dos homens que eu vira um dia junto dela não tivesse
passado pelo seu corpo - e sabendo-o o marido: Luís de Monforte, Narciso do Amaral, Raul
Vilar… todos, enfim, todos…
Entretanto, no meio disto, ainda havia qualquer coisa mais bizarra: era que nesta
revolta, neste asco, neste ódio sim, neste ódio! - por Ricardo, misturava-se como que um vago
despeito, um ciúme, um verdadeiro ciúme dele próprio.
Invejava-o! Invejava-o por ela me haver pertencido… a mim, ao conde russo, a todos
mais!…
E esta sensação descera-me tão forte, essa tarde, que num relâmpago me voou pelo
cérebro a idéia rubra de o assassinar - para satisfazer a minha inveja, o meu ciúme: para me vingar
dele!…
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Mas voltei por fim à minha calma, e, perante o meu antigo amigo, só me restou o meu
nojo, o meu tédio, e um desejo ardente de lhe escarrar na cara todo a sua indignidade, toda a sua
baixeza, clamando-lhe:
— Olha que fomos amantes dela… eu e todos nós, ouves? E todos sabemos que tu já o
sabes!…
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luminoso:
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À noite, antes de adormecer, veio-me ainda esta idéia perturbadora, num atordoamento
— A sua baixeza… a sua falta de orgulho… Ah! mas se eu me engano… se eu me
engano… se é Marta quem lhe conta tudo… se ele conhece tudo só porque ela lho diz… se ela tem
segredos para todos, menos para ele… como eu queria… como eu a queria para mim… Nesse
caso… nesse caso…
E ao mesmo tempo - arrepiadamente, desarrazoadamente - acudiu-me à lembrança a
estranha confissão que Ricardo me fizera uma noite, há tantos anos… no fim de um jantar… para o
Bosque de Bolonha… no Pavilhão… no Pavilhão d'Armenonville…
7
ombro:
Outubro de novecentos principiara.
Uma tarde, no Bulevar des Capucines, alguém de súbito me gritou, batendo-me no
— Ora até que enfim! Andava exatamente à sua procura…
Era Santa-Cruz de Vilalva, o grande empresário.
Tomou-me por um braço, fez-me à viva força sentar junto dele no terraço do La Paix, e
pôs-se a barafustar-me o espanto que a minha falta de notícias lhe causara, tanto mais que, poucos
dias antes de desaparecer, eu lhe falara da minha nova peça. Disse-me que em Lisboa muita gente
perguntava por mim, que apenas vagamente se sabia que eu estava em Paris por alguns portugueses
que tinham vindo à Exposição. Em suma: "Que demônio era isso, homem? neurastênico pelo
último correio?…"
Como sucedia sempre quando alguém me fazia perguntas sobre a minha forma de viver,
fiquei todo perturbado — corei e titubeei quaisquer razões.
O grande empresário atalhou, exclamando-me:
— Bom. Mas antes de mais nada, vamos ao importante: Dê-me a sua peça.
Que não a concluíra ainda, que não me satisfazia…
E ele:
— Espero-o esta noite no meu hotel… ali, no Scribe…
Traga-me a obra. Quero ouvi-la hoje… Que título?
— A Chama.
— Ótimo. Até logo… Primeira em abril. Última récita de assinatura. Preciso fechar a
minha estação com chave de ouro…
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*
*
Fora-me muito desagradável o encontro que viera pôr termo ao meu isolamento de há
seis meses. Porém, ao mesmo tempo, no fundo, a verdade é que eu não o lastimava. Sempre a
literatura…
Desde que chegara a Paris, não escrevera uma linha nem sequer já me lembrava de que
era um escritor… E agora, de súbito, vinham-me recordá-lo - evidenciando o apreço em que se
tinha o meu nome; e precisamente alguém que eu sabia tão pouco lisonjeiro, tão brusco, tão
homem-de-negócios…
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*
*
À noite, como se combinara, li o meu drama. Santa-Cruz de Vilalva exultou: "Trinta
seguras!" punha as mãos no fogo; "a minha melhor obra" - garantiu.
Entreguei-lhe o manuscrito, mas com estas condições:
Que não iria assistir aos ensaios nem me ocuparia da distribuição, de pormenores
alguns da mise-en-scène. Da mais ligeira coisa, enfim. Deixava tudo ao seu cuidado. Ah! e
principalmente que não me escrevesse nem uma palavra sobre o assunto…
O grande empresário anuiu a tudo. Falamos ainda alguns instantes.
E ao despedirmo-nos:
— É verdade - disse - sabe quem me perguntou várias vezes por si? se eu sabia de
você… o seu endereço?… O Ricardo de Loureiro… Que o meu amigo nunca mais lhe tinha
escrito… Também represento um ato dele… em verso… Boa noite…
Esquecera já o meu encontro com o empresário, a minha peça, tudo - enfim tornara a
mergulhar no meu antigo alheamento, quando de súbito me ocorreu uma idéia nova, inteiramente
diversa da primeira, para o último ato da Chamo: uma idéia belíssima, grande, que me entusiasmou.
Não descansei enquanto não escrevi o novo ato. E um dia não pude resistir; parti com
ele para Lisboa.
*
*
*
Quando cheguei, tinham começado os ensaios pouco antes.
Todos os meus intérpretes me abraçaram efusivamente. E Santa-Cruz de Vilalva:
— Ora… se eu não sabia já que ele havia de aparecer!… Quem não os conhecesse…
São todos a mesma…
Os ensaios marchavam otimamente. Roberto Dávila, no papel de escultor, ia ter decerto
uma das suas mais belas criações.
Passaram-se dois dias.
Coisa espantosa: ainda não falara do novo ato da minha peça, razão única por que
decidira regressar a Lisboa contra todos os meus projetos, contra toda a minha vontade.
Entanto ao terceiro dia, enchendo-me de coragem (foi certo: precisei encher-me de
coragem) disse ao empresário o motivo que me trouxera de Paris.
Santa-Cruz de Vilalva pediu-me o manuscrito, sem consentir, porém, que eu lho lesse.
E na manhã seguinte:
— Homem! - gritou-me - Você está maluco! O antigo é uma obra-prima. Este, perdoeme.. Posso dizer-lhe a minha opinião franca?…
— Sem dúvida… - volvi, já perturbado.
— Um disparate!…
Uma raiva excessiva me afogueou perante a boçalidade do empresário, a sua pouca
clarividência. Pois se algumas vezes eu adivinhara nas minhas obras lampejos de gênio, era nessas
páginas. Mas tive a força de me conter.
Não sei bem o que depois se seguiu. O certo é que tudo acabou por o drama ser retirado
de ensaios, visto eu não consentir que o representassem com o primitivo ato, e a empresa se negar
terminantemente a montá-lo, conforme o parecer do diretor e dos principais intérpretes.
Quebrei as relações com um e com outros, e exigi que me entregassem todas as cópias
do manuscrito e os papéis. A minha exigência foi estranhada - lembro-me bem - sobretudo pelo
modo violento como a fiz.
Ao chegar a minha casa - juntamente com o manuscrito original, lancei tudo ao fogo.
Tal foi o destino da minha última obra…
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Decorreram algumas semanas.
As dores físicas do meu espírito tinham regressado; mas agora dores injustificadas dores pelo menos cuja razão eu desconhecia.
Desde que chegara a Lisboa - era claro - não procurara ainda nenhum dos meus
companheiros. Às vezes parecia-me até que gente, que em tempos eu conhecera, me evitava. Eram
literatos, dramaturgos, jornalistas, que decerto pretendiam lisonjear assim o grande empresário de
quem todos mais ou menos dependiam, hoje ou amanhã.
Só uma coisa me admirava: Ricardo, pela sua parte, não me tinha procurado nunca. O
que, de resto, ao mesmo tempo se me afigurava bem explicável; o mais natural até: ele percebera
sem dúvida os motivos do meu afastamento, e por isso se retraíra, sensatamente.
Estimava bastante que tivesse procedido assim. Caso contrário ter-se-ia dado entre nós
uma cena muito desagradável. Em face dele, eu não saberia reprimir os meus insultos.
O caso da Chama aborrecera-me deveras. Uma grande náusea me subira por tudo
quanto tocava à arte no seu aspecto mercantil. Pois só o comércio condenara a versão nova da
minha peça: com efeito, em vez de ser um ato meramente teatral, de ação intensa mais lisa, como o
primitivo - o ato novo era profundo e inquietador; rasgava véus sobre o Além.
Num último tédio comecei vagabundeando dias inteiros pelas ruas da cidade, à toa, por
bairros afastados de preferência…
Lembro-me de que seguia por avenidas, dobrava por travessas, ansioso, quase a correr:
como alguém, enfim, que debalde procurasse uma pessoa que muito desejasse encontrar - não sei
por que, fiz esta comparação às vezes.
Em geral à noite, febril, cheio de cansaço, aturdido, recolhia cedo a casa, dormindo de
um sono estagnado até de manhã… para recomeçar o meu devaneio…
Fato curioso: nunca me lembrei durante este período de regressar a Paris, e volver-me
ao meu tranqüilo isolamento de alma. Não porque me desagradasse hoje essa maneira de viver.
Apenas tal recurso nunca me passou pela idéia…
Uma manhã vi de súbito alguém atravessar a rua, dirigindo-se ao meu encontro…
Quis fugir. Mas os pés enclavinharam-se no solo. Ricardo, ele próprio, estava em minha
frente…
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Não me podem lembrar - de banais que foram, por certo - as primeiras palavras que
trocamos. Seguramente o poeta me disse o espanto que a minha desaparição lhe causara, que lhe
causara o meu procedimento atual.
Fosse como fosse, falara-me num tom de grande tristeza, e em toda a sua figura havia a
expressão de um sincero desgosto. É possível que ao expor-me tudo isso, os seus olhos estivessem
úmidos de lágrimas.
Pelo meu lado, desde que o tinha em face de mim, ainda não pudera refletir; aturdia-me
um denso véu de bruma - tal como na última tarde que passara com o meu amigo.
Escutei em silêncio os seus queixumes, até que, de repente - desenvencilhado, desperto
- me não soube conter, como receara, e lhe comecei gritando todo o meu ódio: a minha revolta, o
meu nojo…
A sua expressão dolorosa não se transformou com as minhas palavras - o artista pareceu
mesmo não as estranhar, como se eu lhe desse a resposta mais natural ao que me contara. Apenas
só agora, indubitavelmente, as lágrimas lhe desciam pelo rosto; mas não era diversa da primeira dor
que as provocava.
E eu acabei:
ouves!?…
— … Tinha-me atascado na lama… Por isso fugi… por essa ignomínia… Ouves?
Todo ele tremeu então. Velou-lhe o rosto uma sombra…
Deteve-se um instante e, por fim, numa voz muito estranha, sumida, úmida - tão
singular que nem parecia vir da sua garganta, começou:
— Ah! como te enganas… Meu pobre amigo! Meu pobre amigo!… Doido que eu era
no meu triunfo… Nunca me lembrei de que os mais o não entenderiam… Escuta-me! Escuta-me!…
Oh! tu hás-de me escutar!…
Sem vontade própria, esvaído, em silêncio, eu acompanhava-o como que arrastado por
fios de ouro e lume, enquanto ele se me justificava:
— Sim! Marta foi tua amante, e não foi só tua amante… Mas eu não soube nunca quem
eram os seus amantes. Ela é que mo dizia sempre… Eu é que lhos mostrava sempre!
"Sim! Sim! Triunfei encontrando-a!… Pois não te lembras já, Lúcio, do martírio da
minha vida? Esqueceste-o?… Eu não podia ser amigo de ninguém… não podia experimentar
afetos… Tudo em mim ecoava em ternura… eu só adivinhava ternuras… E, em face de quem as
pressentia, só me vinham desejos de carícias, desejos de posse - para satisfazer os meus
enternecimentos, sintetizar as minhas amizades…
Um relâmpago de luz ruiva me cegou a alma.
O artista prosseguiu:
— Ai, como eu sofri… como eu sofri!… Dedicavas-me um grande afeto; eu queria
vibrar esse teu afeto - isto é: retribuir-to; e era-me impossível!… Só se te beijasse, se te enlaçasse,
se te possuísse… Ah! mas como possuir uma criatura do nosso sexo?…
"Devastação! Devastação! Eu via a tua amizade, nitidamente a via, e não a lograva
sentir!… Era toda de ouro falso…
"Uma noite, porém, finalmente, uma noite fantástica de branca, triunfei! Achei-A…
sim, criei-A!… criei-A… Ela é só minha - entendes? - é só minha!… Compreendemo-nos tanto,
que Marta é como se fora a minha própria alma. Pensamos da mesma maneira; igualmente
sentimos. Somos nós-dois… Ah! e desde essa noite eu soube, em glória soube, vibrar dentro de
mim o teu afeto - retribuir-to: mandei-A ser tua! Mas, estreitando-te ela, era eu próprio quem te
estreitava… Satisfiz a minha ternura: Venci! E ao possui-la, eu sentia, tinha nela, a amizade que te
devera dedicar - como os outros sentem na alma as suas afeições. Na hora em que a achei - tu
ouves? - foi como se a minha alma, sendo sexualizada, se tivesse materializado. E só com o espírito
te possuí materialmente! Eis o meu triunfo… Triunfo inigualável! Grandioso segredo!…
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"Oh! mas como eu hoje sofro… como sofre outra vez despedaçadoramente…
"Julgaste-me tão mal… Enojaste-te… gritaste à infâmia, à baixeza… e o meu orgulho
ascendia cada aurora mais alto!… Fugiste… E, em verdade, fugiste de ciúme… Tu não eras o meu
único amigo - eras o primeiro, o maior - mas também por um outro eu oscilava ternuras… Assim a
mandei beijar esse outro… Warginsky, tens razão, Warginsky… Julgava-o tão meu amigo…
parecia-me tão espontâneo… tão leal… tão digno de um afeto… E enganou-me… enganou-me…
Atônito, eu ouvia o poeta como que hipnotizado - mudo de espanto, sem poder articular
uma palavra…
A sua dor era bem real, bem sincero o seu arrependimento; e observei que o tom da sua
voz se modificara, aclarando-se ao referir-se ao conde russo - para logo de novo se velar, dizendo:
— Que valem os outros, entanto, em face da tua amizade? Coisa alguma! Coisa
alguma!… Não me acreditas?… Ah! mas é preciso que me acredites… que me compreendas…
Vem!… Ela é só minha! Pelo teu afeto eu trocaria tudo — mesmo o meu segredo. Vem!
Depois, foi uma vertigem…
Agarrou-me violentamente por um braço… obrigou-me a correr com ele…
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Chegamos por fim diante da sua casa. Entramos… galgamos a escada de um salto…
Ao atravessarmos o vestíbulo do primeiro andar, houve um pormenor insignificante, o
qual, não sei por que, nunca olvidei: em cima de um móvel onde os criados, habitualmente, punham
a correspondência, estava uma carta… Era um grande sobrescrito timbrado com um brasão a
ouro…
É estranho que, num minuto culminante como este, eu pudesse reparar em tais
ninharias. Mas o certo foi que o brasão dourado me bailou alucinador em frente dos olhos.
Entretanto não pude ver o seu desenho - vi só que era um brasão dourado e, ao mesmo tempo coisa mais estranha —, pareceu-me que eu próprio já recebera um sobrescrito igual àquele.
O meu amigo - ainda que preso de uma grande excitação - abriu a carta, leu-a
rapidamente, e logo a amarfanhou arremessando-a para o sobrado…
Depois, torceu-me o braço com maior violência.
Em redor de mim tudo oscilou… Sentia-me disperso de alma e corpo entre o rodopio
que me silvava… tinha receio de haver caído nas mãos de um louco…
E numa voz ainda mais velada, mais singular, mais falsa - isto é: melhor do que nunca
parecendo vir doutra garganta —, Ricardo gritava-me num delírio:
— Vamos ver! Vamos ver!… Chegou a hora de dissipar os fantasmas… Ela é só tua! e
só tua… hás-de me acreditar!… Repito-te: Foi como se a minha alma, sendo sexualizada, se
materializasse para te possuir… Ela é só minha! É só minha! Só para ti a procurei… Mas não
consinto que nos separe… Verás… Verás!…
E no meio destas frases incoerentes, impossíveis, arrastava-me correndo numa fúria
para os aposentos da sua esposa, que ficavam no segundo andar.
(Pormenor curioso: nesse momento eu não tinha a sensação de que eram impossíveis as
palavras que ele me dizia; apenas as julgava cheias da maior angústia…)
Tínhamos chegado. Ricardo empurrou a porta brutalmente…
Em pé, ao fundo da casa, diante de uma janela, Marta folheava um livro…
A desventurada mal teve tempo para se voltar… Ricardo puxou de um revólver que
trazia escondido no bolso do casaco e, antes que eu pudesse esboçar um gesto, fazer um
movimento, desfechou-lho à queima-roupa…
Marta tombou inanimada no solo… Eu não arredara pé do limiar…
E então foi o mistério… o fantástico mistério da minha vida…
Ó assombro! ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela, não era Marta - não!
—, era o meu amigo, era Ricardo… E aos meus pés - sim, aos meus pés! - caíra o seu revólver
ainda fumegante!…
Marta, essa desaparecera, evolara-se em silêncio, como se extingue uma chama…
Aterrado, soltei um grande grito - um grito estridente, despedaçador - e, possesso de
medo, de olhos fora das órbitas e cabelos erguidos, precipitei-me numa carreira louca… por entre
corredores e salões… por escadarias…
Mas os criados acudiram.
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… Quando pude raciocinar, juntar duas idéias, em suma: quando despertei deste
pesadelo alucinante, infernal, que fora só a realidade, a realidade inverossímil - achei-me preso
num calabouço do governo civil, guardado à vista por uma sentinela…
8
Pouco mais me resta a dizer. Pudera mesmo deter-se aqui a minha confissão. Entretanto
ainda algumas palavras juntarei.
Convém passar rapidamente sobre o processo. Ele nada apresentou que valha a pena
referir. Pela minha parte, nem por sombras tentei desculpar-me do crime de que era acusado. Com
o inverossímil, ninguém se justifica. Por isso me calei.
O apelo do meu advogado, brilhantíssimo. Deve ter dito que, no fundo, a verdadeira
culpada do meu crime fora Marta, a qual desaparecera e que a polícia, segundo creio, procurou em
vão.
No meu crime subentenderam-se causas passionais, seguramente. A minha atitude era
romanesca de esfíngica. Assim pairou sobre tudo um vago ar de mistério. Daí, a benevolência do
júri.
Entanto devo acentuar que sobre o meu julgamento conservo reminiscências muito
indecisas. A minha vida ruíra toda no instante em que o revólver de Ricardo tombara aos meus pés.
Em face a tão fantástico segredo, eu abismara-me. Que me fazia pois o que volteava à superfície?…
Hoje, a prisão surgia-me como um descanso, um termo…
Por isso, as longas horas fastidiosas passadas no tribunal, eu só as vi em bruma - como
sobrepostas, a desenrolarem-se num cenário que não fosse precisamente aquele em que tais horas
se deveriam consumar…
Os meus "amigos" como sempre acontece, abstiveram-se: nem Luís de Monforte - que
tanta vez me protestara a sua amizade - nem Narciso de Amaral, em cujo afeto eu também crera.
Nenhum deles, numa palavra, me veio visitar durante o decorrer do meu processo, animar-me. Que
a mim, de resto, coisa alguma me animaria.
Porém, no meu advogado de defesa fui achar um verdadeiro amigo. Esqueceu-me o seu
nome: apenas me recordo de que era ainda novo e de que a sua fisionomia apresentava uma
semelhança notável com a de Luís de Monforte.
Mais tarde, nas audiências, havia de observar igualmente que o juiz que me interrogava
se parecia um pouco com o médico que me tinha tratado, havia oito anos, de uma febre cerebral que
me levara às portas da morte.
Curioso que o nosso espírito, sabendo abstrair de tudo numa ocasião decisiva, não deixe
entanto de frisar pequenos detalhes como estes…
Passaram velozes os meus dez anos de cárcere, já o disse.
De resto, a vida na prisão onde cumpri a minha sentença não era das mais duras. Os
meses corriam serenamente iguais.
Tínhamos uma larga cerca onde, a certas horas, podíamos passear, sempre sob a
vigilância dos guardas, que nos vigiavam misturados conosco e que às vezes até nos dirigiam a
palavra.
A cerca terminava num grande muro, um grande paredão sobre uma rua larga - melhor:
sobre uma espécie de largo onde se cruzavam várias ruas. Em frente - pormenor que se me gravou
na memória - havia um quartel amarelo (ou talvez outra prisão).
O prazer maior de certos detidos era de se debruçarem do alto do grande muro, e
olharem para a rua; isto é: para a vida. Mas os carcereiros, mal os descobriam, logo brutalmente os
mandavam retirar.
Eu poucas vezes me acercava do muro; apenas quando algum dos outros prisioneiros
me chamava com insistência, por grandes gestos misteriosos, pois nada me podia interessar do que
havia para lá dele.
Mesmo, nunca soubera evitar um arrepio árido de pavor ao debruçar-me a esse paredão
e ao vê-lo esgueirar-se, de uma grande altura - enegrecido, lezardento, escalavrado - sobre raros
indícios de uma velha pintura amarela.
*
*
*
Nunca tive que me queixar dos guardas, como alguns dos meus companheiros que, em
voz baixa, me contavam os maus tratos de que eram vítimas.
E o certo é que, às vezes, se ouviam de súbito, ao longe, uns gritos estranhos - ora
roucos, ora estridentes. E um dia um prisioneiro mulato - decerto um mistificador — disse-me que
o tinham vergastado sem dó nem piedade com umas vergastas horríveis - frias como água gelada,
acrescentara na sua língua de trapos…
Aliás, eu com raros dos outros prisioneiros me misturava. Eram - via-se bem - criaturas
pouco recomendáveis, sem ilustração nem cultura, vindas por certo dos bas-fonds do vício e do
crime.
Apenas me aprazia durante as horas de passeio na grande cerca, falando com um rapaz
louro, muito distinto, alto e elançado. Confessou-me que expiava igualmente um crime de
assassínio. Matara a sua amante: uma cantora francesa, célebre, que trouxera para Lisboa.
Para ele como para mim, também a vida parara - ele vivera também o momento
culminante a que aludi na minha advertência. Falávamos por sinal muita vez desses instantes
grandiosos, e ele então referia-se à possibilidade de fixar, de guardar, as horas mais belas da nossa
vida - fulvas de amor ou de angústia - e assim poder vê-las, ressenti-las. Contara-me que fora essa a
sua maior preocupação na vida - a arte da sua vida…
Escutando-o, o novelista acordava dentro de mim. Que belas páginas se escreveriam
sobre tão perturbador assunto!
*
*
*
Enfim, mas não quero insistir mais sobre a minha vida no cárcere, que nada tem de
interessante para os outros, nem mesmo para mim.
Os anos voaram. Devido à minha serenidade, à minha resignação, todos me tratavam
com a maior simpatia e me olhavam carinhosamente. Os próprios diretores, que muitas vezes nos
chamavam aos seus gabinetes ou eles próprios nos visitavam, a conversar conosco, a fazerem-nos
perguntas tinham por mim as maiores atenções.
… Até que um dia chegou o termo da minha pena e as portas do cárcere se me
abriram…
Morto, sem olhar um instante em redor de mim, logo me afastei para esta vivenda rural,
isolada e perdida, donde nunca mais arredarei pé.
Acho-me tranqüilo - sem desejos, sem esperanças. Não me preocupa o futuro. O meu
passado, ao revê-lo, surge-me como o passado de um outro. Permaneci, mas já não me sou. E até à
morte real, só me resta contemplar as horas a esgueirar-se em minha face… A morte real - apenas
um sono mais denso…
Antes, não quis porém deixar de escrever sinceramente, com a maior simplicidade, a
minha estranha aventura. Ela prova como fatos que se nos afiguram bem claros são muitas vezes os
mais emaranhados; ela prova como um inocente, muita vez, se não pode justificar, porque a sua
justificação é inverossímil - embora verdadeira.
Assim eu, para que lograsse ser acreditado, tive primeiro que expiar, em silêncio,
durante dez anos, um crime que não cometi…
A vida…
1-27 Setembro 1913 — Lisboa.
Mário de Sá-Carneiro
Fernando Pessoa - Athena - Presenca da cultura grega
FERNANDO
PESSOA
ATHENA
(presença da cultura grega)
Tem duas formas, ou modos, o que chamamos cultura. Não é a cultura senão o
aperfeiçoamento subjetivo da vida. Esse aperfeiçoamento é direto ou indireto; ao primeiro se
chama arte, ciência ao segundo. Pela arte nos aperfeiçoamos a nós; pela ciência
aperfeiçoamos em nós o nosso conceito, ou ilusão, do mundo.
Como, porém, o nosso conceito do mundo compreende o que fazemos de nós mesmos,
e, por outra parte, no conceito, que de nós formamos, se contêm o que formamos das
sensações, pelas quais o mundo nos é dado; sucede que em seus fundamentos subjetivos, e
portanto na maior perfeição em nós -- que não é senão a sua maior conformidade com esses
mesmos fundamentos --, a arte se mistura com a ciência, a ciência se confunde com a arte.
Com tal assiduidade e estudo se empregam os sumos artistas no conhecimento das
matérias, de que hão de servir-se, que antes parecem sábios do que imaginam, que
aprendizes da sua imaginação. Nem escasseiam, assim nas obras como nos dizeres dos
grandes sabedores, lucilações lógicas do sublime; em a lição deles se inventou o dito, o belo
é o esplendor do vero, que a tradição exemplarmente errônea, atribuiu a Platão. E na ação
mais perfeita que nos figuramos -- a dos que chamamos deuses -- a unamos por instinto as
duas formas da cultura: figuramo-los criando como artistas, sabendo como sábios, porém em
um só ato; pois o que criam, o criam inteiramente, como verdade, que não como criação; e o
que sabem, o sabem inteiramente, porque o não descobriram mas criaram.
Se é lícito que aceitemos que a alma se divide em duas partes -- uma como material, a
outra puro espírito --, de qualquer conjunto ou homem hoje civilizado, que deve a primeira à
nação que é ou em que nasceu, a segunda à Grécia antiga. Excetas as forças cegas da
Natureza, disse Sumner Maine, quanto neste mundo se move, é grego na sua origem.
Estes gregos, que ainda nos governam de além dos próprios túmulos desfeitos,
figuraram em dois deuses a produção da arte, cujas formas todas lhes devemos, e de que só
não criaram a necessidade e a imperfeição. Figuraram em o deus Apolo a liga instintiva da
sensibilidade com o entendimento, em cuja ação a arte tem origem como beleza. Figuraram
em a deusa Athena a união da arte e da ciência, em cujo efeito a arte (como também a
ciência) tem origem como perfeição. Sob o influxo do deus nasce o poeta, entendendo nós
por poesia, como outros, o princípio animador de todas as artes; com o auxílio da deusa se
forma o artista.
Com esta ordem de símbolos -- e assim nesta matéria como em outras -- ensinaram os
gregos que tudo é de origem divina, isto é, estranho ao nosso entendimento, e alheio à nossa
vontade. Somos só o que nos fizeram ser, e dormimos com sonhos, servos orgulhosos neles
da liberdade que nem neles temos. Por isso o nascitur que se diz do poeta, se aplica também
a metade do artista. Não se aprende a ser artista; aprende-se porém a saber sê-lo. Em certo
modo, contudo, quanto maior o artista nato, maior a sua capacidade para ser mais que o
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Fernando Pessoa - Athena - Presenca da cultura grega
artista nato. Cada um tem o Apolo que busca, e terá a Athena que buscar. Tanto o que
temos, porém, como o que teremos, já nos está dado, porque tudo é lógico. Deus geometriza,
disse Platão.
Idéias Estéticas da Arte
Fernando Pessoa.
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Fernando Pessoa
Cancioneiro
Ciberfil Literatura Digital
1
Versão para Adobe Acrobat Reader por
Rodolfo S. Cassaca
Março de 2002
Permitida a distribuição
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ou mande-nos um e-mail: [email protected]
2
Cancioneiro:
Nota Preliminar
1. Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de
percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência dum estado de alma, temos
diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior,
uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases,
tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa
percepção.
2. Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só
representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em
nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma
tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso
espírito. E — mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma
paisagem — pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode
representar por uma paisagem. Se eu disser “Há sol nos meus pensamentos”,
ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
3. Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e
sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de
duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que
o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que
estamos vendo — num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como
num dia de chuva — e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de
alma — é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que “na
ausência da amada o sol não brilha”, e outras coisas assim. De maneira que a
arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma
representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta
que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Tem de ser duas
paisagens, mas pode ser — não se querendo admitir que um estado de alma é
uma paisagem — que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma
(puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]
3
ÍNDICE
Abat-Jour............................................................................................. 7
Abdicação............................................................................................ 8
Abismo ................................................................................................ 9
A Grande Esfinge do Egito ............................................................... 10
A minha vida é um barco abandonado.............................................. 11
A morte chega cedo........................................................................... 12
Andei léguas de sombra .................................................................... 13
A alcova............................................................................................. 14
Ao longe, ao luar ............................................................................... 15
Aqui onde se espera .......................................................................... 16
As horas pela alameda....................................................................... 17
As minhas Ansiedades ...................................................................... 18
Assim, sem nada feito e o por fazer .................................................. 19
As tuas mãos terminam em segredo.................................................. 20
Às vezes entre a tormenta ................................................................. 21
Atravessa esta paisagem o meu sonho .............................................. 22
Autopsicografia ................................................................................. 23
(?) Azul ou verde ou roxo ................................................................. 25
Baladas de uma outra terra................................................................ 27
Bate a luz no cimo............................................................................. 28
Brilha uma Voz na Noute ... .............................................................. 29
Canção............................................................................................... 30
Cansa Sentir Quando se Pensa .......................................................... 31
Cerca de grandes muros quem te sonhas Conselho ......................... 32
Cessa o teu canto!.............................................................................. 33
Chove. É dia de Natal........................................................................ 34
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva ..................................... 35
Chove ? Nenhuma chuva cai............................................................. 36
Começa a ir ser dia............................................................................ 37
Como a noite é longa! ....................................................................... 38
Como inútil taça cheia....................................................................... 39
Como uma voz de fonte que cessasse ............................................... 40
Conta a lenda que dormia.................................................................. 41
Contemplo o lago mudo .................................................................... 42
Contemplo o que não vejo ................................................................ 43
Dá a surpresa de ser........................................................................... 44
Da minha idéia do mundo ................................................................. 45
De onde é quase o horizonte ............................................................. 46
De quem é o olhar ............................................................................. 47
Ditosos a quem acena........................................................................ 48
Dizem que finjo ou minto ................................................................. 49
4
Dizem? .............................................................................................. 50
Dobre................................................................................................. 51
Dorme enquanto eu velo... ................................................................ 52
Dorme, que a vida é nada! ................................................................ 53
Dorme sobre o meu seio.................................................................... 54
Do vale à montanha........................................................................... 55
Durmo. Se sonho, ao despertar não sei ............................................. 56
É brando o dia, brando o vento ......................................................... 57
Ela canta, pobre ceifeira.................................................................... 58
Ela ia, tranqüila pastorinha................................................................ 59
Elas são vaporosas............................................................................. 60
Em Busca da Beleza.......................................................................... 61
Em horas inda louras, lindas ............................................................. 62
Emissário de um rei desconhecido.................................................... 63
Em plena vida e violência ................................................................. 64
Além-Deus ........................................................................................ 65
Entre o bater rasgado dos pendões.................................................... 68
Entre o luar e a folhagem .................................................................. 69
Entre o sono e sonho, ........................................................................ 70
Eros e Psique ..................................................................................... 71
Esqueço-me das horas transviadas.................................................... 73
Esta espécie de loucura ..................................................................... 74
Feliz dia para quem é ........................................................................ 76
Flor que não dura .............................................................................. 77
Foi um momento ............................................................................... 78
Fosse eu apenas, não sei onde ou como ............................................ 80
Fresta ................................................................................................. 81
Fúria nas trevas o vento..................................................................... 82
Glosa.................................................................................................. 83
Gomes Leal ....................................................................................... 84
Grandes mistérios habitam................................................................ 85
Guia-me a só a razão ......................................................................... 86
Ilumina-se a Igreja por Dentro da Chuva.......................................... 87
Intervalo ............................................................................................ 88
Isto..................................................................................................... 89
Liberdade........................................................................................... 90
Não digas nada!................................................................................. 91
Não: não digas nada!......................................................................... 92
O Andaime ........................................................................................ 93
O Maestro Sacode a Batuta ............................................................... 95
O que me dói não é............................................................................ 97
Pobre velha música! .......................................................................... 98
Põe-me as mãos nos ombros... .......................................................... 99
5
Sonho. Não sei quem sou. ............................................................... 100
Sorriso audível das folhas ............................................................... 101
Tenho Tanto Sentimento ................................................................. 102
Teus olhos entristecem. ................................................................... 103
Tomamos a Vila depois de um Intenso Bombardeamento.............. 104
Vaga, no azul amplo solta ............................................................... 105
6
Abat-Jour
A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza
Sobre o chão que é meu.
No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.
E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.
Bem sei... Era dia
E longe de aqui...
Quanto me sorria
O que nunca vi!
E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar...
7
Abdicação
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho. Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
8
Abismo
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é sério, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus.
9
A Grande Esfinge do Egito
A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...
Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops ...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste
candeeiro
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a
pena...
Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...
Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim! ...
10
A minha vida é um barco abandonado
A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado ?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.
Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.
Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.
11
A morte chega cedo
A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.
O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.
E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.
12
Andei léguas de sombra
Andei léguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu às avessas
Meu ócio com sem-nexo,
E apagaram-se as lâmpadas
Na alcova cambaleante.
Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tato
Dos veludos da alcova,
Não pela minha vista.
Há um oásis no Incerto
E, como uma suspeita
De luz por não-há-frinchas,
Passa uma caravana.
Esquece-me de súbito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical.
13
A alcova
Desce não se por onde
Até não me encontrar.
Ascende um leve fumo
Das minhas sensações.
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não há
Cá-dentro nem lá-fora.
E o deserto está agora
Virado para baixo.
A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.
Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguém morto.
Qualquer coisa caiu
E tiniu no infinito.
14
Ao longe, ao luar
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela ?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça ?
Que amor não se explica ?
É a vela que passa
Na noite que fica.
15
Aqui onde se espera
Aqui onde se espera
— Sossego, só sossego —
Isso que outrora era,
Aqui onde, dormindo,
— Sossego, só sossego —
Se sente a noite vindo,
E nada importaria
— Sossego, só sossego —
Que fosse antes o dia,
Aqui, aqui estarei
— Sossego, só sossego —
Como no exílio um rei,
Gozando da ventura
— Sossego, só sossego —
De não ter a amargura
De reinar, mas guardando
— Sossego, só sossego —
O nome venerando...
Que mais quer quem descansa
— Sossego, só sossego —
Da dor e da esperança,
Que ter a negação
— Sossego, só sossego —
De todo o coração ?
16
As horas pela alameda
As horas pela alameda
Arrastam vestes de seda,
Vestes de seda sonhada
Pela alameda alongada
Sob o azular do luar...
E ouve-se no ar a expirar —
A expirar mas nunca expira —
Uma flauta que delira,
Que é mais a idéia de ouvi-la
Que ouvi-la quase tranqüila
Pelo ar a ondear e a ir...
Silêncio a tremeluzir...
17
As minhas Ansiedades
As minhas ansiedades caem
Por uma escada abaixo.
Os meus desejos balouçam-se
Em meio de um jardim vertical.
Na Múmia a posição é absolutamente exata.
Música longínqua,
Música excessivamente longínqua,
Para que a Vida passe
E colher esqueça aos gestos.
18
Assim, sem nada feito e o por fazer
Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.
Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.
Tênue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.
Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quere.
Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solentemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar!
19
As tuas mãos terminam em segredo
As tuas mãos terminam em segredo.
Os teus olhos são negros e macios
Cristo na cruz os teus seios (?) esguios
E o teu perfil princesas no degredo...
Entre buxos e ao pé de bancos frios
Nas entrevistas alamedas, quedo
O vendo põe o seu arrastado medo
Saudoso o longes velas de navios.
Mas quando o mar subir na praia e for
Arrasar os castelos que na areia
As crianças deixaram, meu amor,
Será o haver cais num mar distante...
Pobre do rei pai das princesas feias
No seu castelo à rosa do Levante!
20
Às vezes entre a tormenta
Às vezes entre a tormenta,
quando já umedeceu,
raia uma nesga no céu,
com que a alma se alimenta.
E às vezes entre o torpor
que não é tormenta da alma,
raia uma espécie de calma
que não conhece o langor.
E, quer num quer noutro caso,
como o mal feito está feito,
restam os versos que deito,
vinho no copo do acaso.
Porque verdadeiramente
sentir é tão complicado
que só andando enganado
é que se crê que se sente.
Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
folhas caídas que secam.
21
Atravessa esta paisagem o meu sonho
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse
desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele
porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
22
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
23
24
(?) Azul ou verde ou roxo
Azul, ou verde, ou roxo quando o sol
O doura falsamente de vermelho,
O mar é áspero (?), casual (?) ou mol(e),
É uma vez abismo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho
O que em mim quereria mais que o mar
Já que nada ali há por desvendar.
Os grandes capitães e os marinheiros
Com que fizeram a navegação,
Jazem longínquos, lúgubres parceiros
Do nosso esquecimento e ingratidão.
Só o mar às vezes, quando são
Grandes as ondas e é deveras mar
Parece incertamente recordar.
Mas sonho... O mar é água, é água nua,
Serva do obscuro ímpeto distante
Que, como a poesia, vem da lua
Que uma vez o abate outra o levanta.
Mas, por mais que descante
Sobre a ignorância natural do mar,
Pressinto-o, vasante, a murmurar.
Quem sabe o que é a alma ? Quem conhece
Que alma há nas coisas que parecem mortas.
Quanto em terra ou em nada nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vácuo há portas?
O sonho que me exortas
A meditar assim a voz do mar,
Ensina-me a saber-te meditar.
Capitães, contramestres — todos nautas
Da descoberta infiel de cada dia
Acaso vos chamou de ignotas flautas
A vaga e impossível melodia.
Acaso o vosso ouvido ouvia
Qualquer coisa do mar sem ser o mar
Sereias só de ouvir e não de achar?
25
Quem atrás de intérminos oceanos
Vos chamou à distância ou quem
Sabe que há nos corações humanos
Não só uma ânsia natural de bem
Mas, mais vaga, mais sutil também
Uma coisa que quer o som do mar
E o estar longe de tudo e não parar.
Se assim é e se vós e o mar imenso
Sois qualquer coisa, vós por o sentir
E o mar por o ser, disto que penso;
Se no fundo ignorado do existir
Há mais alma que a que pode vir
À tona vã de nós, como à do mar
Fazei-me livre, enfim , de o ignorar.
Dai-me uma alma transposta de argonauta,
Fazei que eu tenha, como o capitão
Ou o contramestre, ouvidos para a flauta
Que chama ao longe o nosso coração,
Fazei-me ouvir , como a um perdão,
Numa reminiscência de ensinar,
O antigo português que fala o mar!
26
Baladas de uma outra terra
Baladas de uma outra terra, aliadas
Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,
Retinem lívidas ainda aos ouvidos
Dos luares das altas noites aladas...
Pelos canais barcas erradas
Segredam-se rumos descridos...
E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,
As fadas são belas e as estrelas
São delas... Ei-las alheadas...
E são fumos os rumos das barcas sonhadas,
Nos canais fatais iguais de erradas,
As barcas parcas das fadas,
Das fadas aladas e hiemais
E caladas...
Toadas afastadas, irreais, de baladas...
Ais...
27
Bate a luz no cimo...
Bate a luz no cimo
Da montanha, vê...
Sem querer eu cismo
Mas não sei em quê....
Não sei que perdi
Ou que não achei...
Vida que vivi,
Que mal eu a amei!...
Hoje quero tanto
Que o não posso ter,
De manhã há o pranto
E ao anoitecer...
Tomara eu ter jeito
Para ser feliz...
Como o mundo é estreito,
E o pouco que eu quis!
Vai morrendo a luz
No alto da montanha...
Como um rio a flux
A minha alma banha,
Mas não me acarinha,
Não me acalma nada...
Pobre criancinha
Perdida na estrada!...
28
Brilha uma Voz na Noute ...
Brilha uma voz na noute
De dentro de Fora ouvi-a...
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!
Cinzas de idéia e de nome
Em mim, e a voz: Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.
29
Canção
Silfos ou gnomos tocam?...
Roçam nos pinheirais
Sombras e bafos leves
De ritmos musicais.
Ondulam como em voltas
De estradas não sei onde
Ou como alguém que entre árvores
Ora se mostra ou esconde.
Forma longínqua e incerta
Do que eu nunca terei...
Mal oiço e quase choro.
Por que choro não sei.
Tão tênue melodia
Que mal sei se ela existe
Ou se é só o crepúsculo,
Os pinhais e eu estar triste.
Mas cessa, como uma brisa
Esquece a forma aos seus ais;
E agora não há mais música
Do que a dos pinheirais.
30
Cansa Sentir Quando se Pensa
Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.
Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.
Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.
(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo —
Ah, nada é isto, nada é assim!)
31
Cerca de grandes muros quem te sonhas
Conselho
Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.
Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és —
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...
32
Cessa o teu canto!
Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Com que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós.
Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas cantar.
E a melodia
Que não havia.
Se agora a lembro,
Faz-me chorar.
33
Chove. É dia de Natal
Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.
Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.
Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.
34
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...
Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...
Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...
35
Chove ? Nenhuma chuva cai...
Chove? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia ?
Onde é que chove, que eu o ouço ?
Onde é que é triste, ó claro céu ?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu...
E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...
E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.
Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim...
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés
No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância...
36
Começa a ir ser dia
Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A Ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.
Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.
Mas eu, o mal-dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia.
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.
Em vão o dia chega
Quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.
Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é isto que a minha alma sente ?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.
37
Como a noite é longa!
Como a noite é longa!
Toda a noite é assim...
Senta-te, ama, perto
Do leito onde esperto.
Vem p’r’ao pé de mim...
Amei tanta coisa...
Hoje nada existe.
Aqui ao pé da cama
Canta-me, minha ama,
Uma canção triste.
Era uma princesa
Que amou... Já não sei...
Como estou esquecido!
Canta-me ao ouvido
E adormecerei...
Que é feito de tudo ?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me dormir,
Dormir a sorrir
E seja isto o fim.
38
Como inútil taça cheia
Como inútil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa,
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza.
Sonhos de mágoa figura
Só para Ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se temeu a fingir.
Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.
39
Como uma voz de fonte que cessasse
Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), p’ra além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce
Parou... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...
A paisagem longínqua só existe
Para haver nela um silêncio em descida
P’ra o mistério, silêncio a que a hora assiste...
E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...
40
Conta a lenda que dormia
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino —
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
à cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
41
Contemplo o lago mudo
Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.
O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.
Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?
42
Contemplo o que não vejo
Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.
Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.
Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.
Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.
43
Dá a surpresa de ser
Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.
Seus seios altos parecem
(Se ela tivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem Ter que haver madrugada.
E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.
Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como ?
44
Da minha idéia do mundo
Da minha idéia do mundo
Caí...
Vácuo além do profundo,
Sem ter Eu nem Ali...
Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...
Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão do Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...
45
De onde é quase o horizonte
De onde é quase o horizonte
Sobe uma névoa ligeira
E afaga o pequeno monte
Que pára na dianteira.
E com braços de farrapo
Quase invisíveis e frios,
Faz cair seu ser de trapo
Sobre os contornos macios.
Um pouco de alto medito
A névoa só com a ver.
A vida? Não acredito.
A crença? Não sei viver.
46
De quem é o olhar
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos ?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando ?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo ?
Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Por mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha idéia das coisas.
Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora —
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua —
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora!
Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.
47
Ditosos a quem acena
MARINHA
Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes : têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.
Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar...
E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.
48
Dizem que finjo ou minto
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê!
49
Dizem?
Dizem?
Esquecem.
Não dizem ?
Disseram.
Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.
Por quê
Esperar ?
Tudo é
Sonhar.
50
Dobre
Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão
Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.
Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;
Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.
51
Dorme enquanto eu velo...
Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.
A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.
Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.
52
Dorme, que a vida é nada!
Dorme, que a vida é nada!
Dorme, que tudo é vão!
Se alguém achou a estrada,
Achou-a em confusão,
Com a alma enganada.
Não há lugar nem dia
Para quem quer achar,
Nem paz nem alegria
Para quem, por amar,
Em quem ama confia.
Melhor entre onde os ramos
Tecem docéis sem ser
Ficar como ficamos,
Sem pensar nem querer,
Dando o que nunca damos.
53
Dorme sobre o meu seio
Dorme sobre o meu seio,
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.
Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O ‘spaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.
Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor...
No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.
54
Do vale à montanha
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte, cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Pr casas, por prados,
Por Quinta e por fonte,
Caminhais aliados.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.
55
Durmo. Se sonho, ao despertar não sei
Durmo. Se sonho, ao despertar não sei
Que coisas eu sonhei.
Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto
Para um espaço aberto
Que não conheço, pois que despertei
Para o que inda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
E nunca despertar.
56
É brando o dia, brando o vento
É brando o dia, brando o vento
É brando o sol e brando o céu.
Assim fosse meu pensamento!
Assim fosse eu, assim fosse eu!
Mas entre mim e as brandas glórias
Deste céu limpo e este ar sem mim
Intervêm sonhos e memórias...
Ser eu assim ser eu assim!
Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Existe tudo porque existo.
Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto!
57
Ela canta, pobre ceifeira
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
58
Ela ia, tranqüila pastorinha
Ela ia, tranqüila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha...
“Em longes terras hás de ser rainha
Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...
Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora _
Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...
59
Elas são vaporosas
MINUETE INVISÍVEL
Elas são vaporosas,
Pálidas sombras, as rosas
Nadas da hora lunar...
Vêm, aéreas, dançar
Com perfumes soltos
Entre os canteiros e os buxos...
Chora no som dos repuxos
O ritmo que há nos seus vultos...
Passam e agitam a brisa...
Pálida, a pompa indecisa
Da sua flébil demora
Paira em auréola à hora...
Passam nos ritmos da sombra...
Ora é uma folha que tomba,
Ora uma brisa que treme
Sua leveza solene...
E assim vão indo, delindo
Seu perfil único e lindo,
Seu vulto feito de todas,
Nas alamedas, em rodas,
No jardim lívido e frio...
Passam sozinhas, a fio,
Como um fumo indo, a rarear,
Pelo ar longínquo e vazio,
Sob o, disperso pelo ar,
Pálido pálio lunar ...
60
Em Busca da Beleza
Soam vãos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa
Desse teu sonho, que perturba a vista.
Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria idéia em nós dessa beleza
Um infinito de nós mesmos dista.
Nem à nossa alma definir podemos
A Perfeição em cuja estrada a vida,
Achando-a intérmina, a chorar perdemos.
O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia da Coisa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.
61
Em horas inda louras, lindas
Em horas inda louras, lindas
Clorindas e Belindas, brandas,
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas,
De onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam a fio as frias bandas.
Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E o tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.
E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos....
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os atentos ventos.
62
Emissário de um rei desconhecido
Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me desdém
Por este humano povo entre quem lido...
Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas há! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
63
Em plena vida e violência
Em plena vida e violência
De desejo e ambição,
De repente uma sonolência
Cai sobre a minha ausência.
Desce ao meu próprio coração.
Será que a mente, já desperta
Da noção falsa de viver,
Vê que, pela janela aberta,
Há uma paisagem toda incerta
E um sonho todo a apetecer ?
64
Além-Deus
Abismo
Passou
A Voz de Deus
A Queda
Braço sem Corpo Brandindo um Gládio
I/ ABISMO
OLHO O TEJO, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus.
II/ PASSOU
Passou, fora de Quando,
De Porquê, e de Passando...,
Turbilhão de Ignorado,
Sem ter turbilhonado...,
Vasto por fora do Vasto
Sem ser, que a si se assombra...
O Universo é o seu rasto...
Deus é a sua sombra...
65
III/ A VOZ DE DEUS
Brilha uma voz na noute...
De dentro de Fora ouvi-a...
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!
Cinzas de idéia e de nome
Em mim, e a voz: Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que para Deus me afundo.
IV/ A QUEDA
Da minha idéia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...
Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...
Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...
V/ BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO
(Entre a árvore e o vê-la)
Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?... E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...
66
Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida —
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando — o pombal
Está-lhes sempre à direita, ou é real?
Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me... E o pombal elevado
Está em torno na pomba, ou de lado?
[1913?]
67
Entre o bater rasgado dos pendões
Entre o bater rasgado dos pendões
E o cessar dos clarins na tarde alheia,
A derrota ficou : como uma cheia
Do mal cobriu os vagos batalhões.
Foi em vão que o Rei louco os seus varões
Trouxe ao prolixo prélio, sem idéia.
Água que mão infiel verteu na areia —
Tudo morreu, sem rastro e sem razões.
A noite cobre o campo, que o Destino
Com a morte tornou abandonado.
Cessou, com cessar tudo, o desatino.
Só no luar que nasce os pendões rotos
’Strelam no absurdo campo desolado
Uma derrota heráldica de ignotos.
68
Entre o luar e a folhagem
Entre o luar e a folhagem,
Entre o sossego e o arvoredo,
Entre o ser noite e haver aragem
Passa um segredo.
Segue-o minha alma na passagem.
Tênue lembrança ou saudade,
Princípio ou fim do que não foi,
Não tem lugar, não tem verdade.
Atrai e dói.
Segue-o meu ser em liberdade.
Vazio encanto ébrio de si,
Tristeza ou alegria o traz ?
O que sou dele a quem sorri ?
Nada é nem faz.
Só de segui-lo me perdi.
69
Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.
Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.
Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.
E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.
70
Eros e Psique
...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
(Do Ritual Do Grau De Mestre Do
Átrio
Na Ordem Templária De Portugal)
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,
71
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
Publicado pela primeira vez in Presença, n.os 41-42, Coimbra, maio
de 1934. Acerca da epígrafe que encabeça este poema diz o próprio
autor a uma interrogação levantada pelo crítico A. Casais Monteiro,
em carta a este último:
A citação, epígrafe ao meu poema “Eros e Psique”, de um trecho
(traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da
Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente — o que é fato
— que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus
dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não
estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se
não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão
em trabalho [In VO/II.]
72
Esqueço-me das horas transviadas
PASSOS DA CRUZ
Esqueço-me das horas transviadas
o Outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros...
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco... Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés
No meu cansaço perdido entre os gelos
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância...
73
Esta espécie de loucura
Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,
Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há
74
75
Feliz dia para quem é
Feliz dia para quem é
O igual do dia,
E no exterior azul que vê
Simples confia!
Azul do céu faz pena a quem
Não pode ser
Na alma um azul do céu também
Com que viver
Ah, e se o verde com que estão
Os montes quedos
Pudesse haver no coração
E em seus segredos!
Mas vejo quem devia estar
Igual do dia
Insciente e sem querer passar.
Ah, a ironia
De só sentir a terra e o céu
Tão belo ser
Quem de si sente que perdeu
A alma p’ra os ter!
76
Flor que não dura
Flor que não dura
Mais do que a sombra dum momento
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.
Não te perdi
No que sou eu,
Só nunca mais, ó flor, te vi
Onde não sou senão a terra e o céu.
77
Foi um momento
Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.
Senti ou não ?
Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido.
Mas tão de leve!...
Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há muita coisa
Incompreendida...
Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
‘Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço ?
Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
78
Que nem soubesses
Que tinha ser.
Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.
79
Fosse eu apenas, não sei onde ou como
Fosse eu apenas, não sei onde ou como,
Uma coisa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado assomo....
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer
Meu intuito gloríola com Ter
A árvore do meu uso o único pomo...
Fosse eu uma metáfora somente
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,
Mas doente, e , num crepúsculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na última tarde de um império em chamas...
80
Fresta
Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado
Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.
81
Fúria nas trevas o vento
Fúria nas trevas o vento
Num grande som de alongar,
Não há no meu pensamento
Senão não poder parar.
Parece que a alma tem
Treva onde sopre a crescer
Uma loucura que vem
De querer compreender.
Raiva nas trevas o vento
Sem se poder libertar.
Estou preso ao meu pensamento
Como o vento preso ao ar.
82
Glosa
Quem me roubou a minha dor antiga,
E só a vida me deixou por dor ?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,
Me deixou só no fogo e no torpor ?
Quem fez a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor ?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor...
Quem me dispôs para o que não pudesse ?
Quem me fadou para o que não conheço
Na teia do real que ninguém tece ?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu só a vida em que me esqueço,
“Onde a minha saudade a cor se trava ?”
83
Gomes Leal
Sangra, sinistro, a alguns o astro baço.
Seus três anéis irreversíveis são
A desgraça, a tristeza, a solidão.
Oito luas fatais fitam no espaço.
Este, poeta, Apolo em seu regaço
A Saturno entregou. A plúmbea mão
Lhe ergueu ao alto o aflito coração.
E, erguido, o apertou, sangrando lasso.
Inúteis oito luas da loucura
Quando a cintura tríplice denota
Solidão e desgraça e amargura!
Mas da noite sem fim um rastro brota,
Vestígios de maligna formosura :
É a lua além de Deus, álgida e ignota.
84
Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.
São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.
Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.
85
Guia-me a só a razão
Guia-me a só a razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão ?
Só ela me alumia.
Tivesse quem criou
O mundo desejado
Que eu fosse outro que sou,
Ter-me-ia outro criado.
Deu-me olhos para ver.
Olho, vejo, acredito.
Como ousarei dizer:
«Cego, fora eu bendito» ?
Como olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão —
Olhar de conhecer.
Se ver é enganar-me,
Pensar um descaminho,
Não sei. Deus os quis dar-me
Por verdade e caminho.
86
Ilumina-se a Igreja por Dentro da Chuva
Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por
dentro ...
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...
A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste ...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...
E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa ...
87
Intervalo
Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado —
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca —
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.
88
Isto
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
89
Liberdade
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
90
Não digas nada!
Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.
91
Não: não digas nada!
Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já
É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.
És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.
92
O Andaime
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!
Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.
A ‘sp’rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha ‘s’prança,
Rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam — verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!
Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.
93
Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças —
Mortas, porque hão de morrer.
Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim —
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser — muro
Do meu deserto jardim.
Ondas passadas, levai-me
Para o alvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.
94
O Maestro Sacode a Batuta
O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe ...
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...
Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo. e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos ...
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se
preto,
95
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
96
O que me dói não é
O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...
São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.
São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.
(Fernando Pessoa, 5-9-1933)
97
Pobre velha música!
Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
98
Põe-me as mãos nos ombros...
Põe-me as mãos nos ombros...
Beija-me na fronte...
Minha vida é escombros,
A minha alma insonte.
Eu não sei por quê,
Meu desde onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho.
Põe a tua mão
Sobre o meu cabelo...
Tudo é ilusão.
Sonhar é sabê-lo.
99
Sonho. Não sei quem sou.
Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.
Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.
100
Sorriso audível das folhas
Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.
Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.
Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?
101
Tenho Tanto Sentimento
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
102
Teus olhos entristecem.
Teus olhos entristecem
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.
Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.
Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.
Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.
Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.
103
Tomamos a Vila depois de um
Intenso Bombardeamento
A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.
A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
— Dos que bóiam nas banheiras —
À beira da estrada.
Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...
E o da criança loura?
104
Vaga, no azul amplo solta
Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.
O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma.
E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.
Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.
Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.
105
Fernando Pessoa - Emocao e Poesia
FERNANDO
PESSOA
EMOÇÃO E POESIA
Quem quer que seja de algum modo um poeta sabe muito bem quão mais fácil é
escrever um bom poema (se os bons poemas se acham ao alcance do homem) a respeito de
uma mulher que lhe interessa muito do que a respeito de uma mulher pela qual está
profundamente apaixonado. A melhor espécie de poema de amor é, em geral, escrita a
respeito de uma mulher abstrata.
Uma grande emoção é por demais egoísta; absorve em si própria todo o sangue do
espírito, e a congestão deixa as mãos demasiado frias para escrever. Três espécies de
emoções produzem grande poesia - emoções fortes e profundas ao serem lembradas muito
tempo depois; e emoções falsas, isto é, emoções sentidas no intelecto. Não a insinceridade,
mas sim, uma sinceridade traduzida, é a base de toda a arte.
O grande general que pretende ganhar uma batalha para o império de seu país e para a
história de seu povo não deseja - não pode desejar ter muitos de seus soldados assassinados
(mortos). Contudo, uma vez que tenha penetrado na contemplação de sua estratégia,
escolherá (sem um pensamento para seus homens) o golpe melhor, embora o faça perder
cem mil homens, em vez da estratégia pior, ou mesmo a mais lenta, que lhe pode deixar
nove décimos daqueles homens com quem e por quem luta, e a quem, em geral, ama.
Torna-se um artista por amor a seus compatriotas, e expõe-nos à carnificina por causa de sua
estratégia.
Fernando Pessoa.
file:///C|/site/LivrosGrátis/fep02.htm [09/04/2001 22:19:05]
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FERNANDO
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***************
O G ua r da do r de
Rebanhos
FERNANDO PESSOA
(Alberto Caiero)
I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que
se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
II
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
III
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai
andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos ...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...
IV
Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos ...
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...
Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranqüilamente, como o muro do quintal;
Tendo idéias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...
Sentia-me alguém que nossa acreditar em Santa
Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente e visível
Ou que julgará dela?)
(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós ...
Ali, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)
E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega.
V
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados
das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
VI
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos! ...
VII
Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no
Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra
qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para
longe
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos
olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
VIII
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha
fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
"Se é que ele as criou, do que duvido" —
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.
.............................................................................
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta
sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer nos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
......................................................................
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
.....................................................................
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
IX
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
X
Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"
"Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?"
"Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."
"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti."
XI
Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem ...
Para que é preciso ter um piano?
o melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
XII
Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras cousas
E cantavam de amor literariamente.
(Depois — eu nunca li Virgílio.
Para que o havia eu de ler?)
Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a Natureza é bela e antiga.
XIII
Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.
XIV
Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural corno o levantar-se vento...
XV
As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou ...
Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente),
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira
Devo ser todo doente — idéias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.
Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são a paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário
VI
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas
...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
XVII
No meu prato que mistura de Natureza!
As minhas irmãs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza...
E cortam-as e vêm à nossa mesa
E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tendo mantas
Pedem "Salada", descuidosos...,
Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela tem,
As primeiras cousas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde a pomba apareceu
O arco-íris se esbateu...
XVIII
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo. . .
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...
Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena
XIX
O luar quando bate na relva
Não sei que cousa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas ...
Se eu já não posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?
XX
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha
aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
XXI
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...
XXII
Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...
Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?
Quando o Verão me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...
XXIII
O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta ...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar
mais belo...
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol ...
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso...)
XXIV
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma seqüestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras
eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores.
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
XXV
As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.
XXVI
Às vezes, em dias de luz perfeita e exata,
Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Por que sequer atribuo eu
Beleza às cousas.
Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então por que digo eu das cousas: são belas?
Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as cousas,
Perante as cousas que simplesmente existem.
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!
XXVII
Só a natureza é divina, e ela não é divina...
Se falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos
homens
Que dá personalidade às cousas,
E impõe nome às cousas.
Mas as cousas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande a terra larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...
Bendito seja eu por tudo quanto sei.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol.
XXVIII
Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não
eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.
XXIX
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ...
XXX
Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem,
tenho-o.
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.
O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.
Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.
XXXI
Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.
XXXII
Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os
outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.
(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa — existir claramente,
E saber faze-lo sem pensar nisso.
E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?
XXXIII
Pobres das flores dos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...
XXXIV
Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa ...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas. . .
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente. . .
Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos ...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.
XXXV
O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.
XXXVI
E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas! ...
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, corno quem constrói um
muro
E ver se está bem, e tirar se não está! ...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem
respira,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem sei eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao solo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.
XXXVII
Como um grande borrão de fogo sujo
O sol posto demora-se nas nuvens que ficam.
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
Deve ser dum comboio longínquo.
Neste momento vem-me uma vaga saudade
E um vago desejo plácido
Que aparece e desaparece.
Também às vezes, à flor dos ribeiros,
Formam-se bolhas na água
Que nascem e se desmancham
E não têm sentido nenhum
Salvo serem bolhas de água
Que nascem e se desmancham.
XXXVIII
Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham
como eu,
E, nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural — mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral ...
XXXIX
O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os
homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
XL
Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
XLI
No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...
Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão ...
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos ...
Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo
Porque a imperfeição é uma cousa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o Mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ver e ouvir. . .
XLII
Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a ação humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias.
XLIII
Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!
XLIV
Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente
brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima
da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da
boca,
Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou
significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...
XLV
Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes.
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de cousa a cousa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente
reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do
que isso!
XLVI
Deste modo ou daquele modo.
Conforme calha ou não calha.
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a
nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me
ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer
como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.
Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.
XLVII
Num dia excessivamente nítido,
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas idéias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.
XLVIII
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi
sua.
Passo e fico, como o Universo.
XLIX
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
***************
Sobre o autor e sua obra
Fernando Antonio
Nogueira Pessoa
(1888-1935) nasceu
em Lisboa, partindo,
após o falecimento do
pai e o segundo
casamento da mãe,
para África do Sul.
Freqüentou várias
escolas, recebendo
uma educação inglesa.
Regressa a Portugal
em 1905 fixando-se
em Lisboa, onde inicia
uma intensa atividade
literária.
Simpatizante da Renascença Portuguesa, corta com ela e
em 1915, com Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e
outros, esforça-se por renovar a literatura portuguesa
através da criação da revista Orpheu, veículo de novas
idéias e novas estéticas.
Cria vários heterônimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos,
Ricardo Reis, Bernardo Soares, etc.), assinando as suas
obras de acordo com a personalidade de cada heterônimo.
Colabora em várias revistas, publica em livro os seus
poemas escritos em inglês e, em 1934, ganha o concurso
literário promovido pelo Secretariado de Propaganda
Nacional, categoria B, com a obra Mensagem, que publica
no mesmo ano.
Faleceu prematuramente em 1935, deixando grande parte
da sua obra ainda inédita. É considerado um dos maiores
poetas portugueses.
CRONOLOGIA
1888 A 13 de Junho nasce Fernando António Nogueira Pessoa
no Largo de São Carlos nº 4, 4º Esq. em Lisboa.
1893 Morre com 43 anos o pai de Fernando Pessoa - Joaquim de
Seabra Pessoa
1895 A mãe de Fernando Pessoa - Maria Madalena Pinheiro
Nogueira Pessoa - casa, por procuração, com João Miguel
Rosa - consul interino em Durban - África do Sul.
A 26 de Julho escreve Fernando Pessoa a sua primeira
quadra À minha querida mamã.
1896 A família parte para Durbam
1896-1904 Fernando Pessoa faz os seus estudos primários e
secundários em Durbam
1905 Fernando Pessoa regressa sozinho a Lisboa, a bordo do
navio alemão Herzog, para se matricular no Curso Superior
de Letras que abandona um ano depois.
1907 Fernando Pessoa funda a Empresa Íbis - Tipografia Editora
- Oficinas a Vapor - que durou escassos meses.
1908 Fernando Pessoa inicia a sua actividade como
"correspondente estrangeiro"
1912 Colabora na revista A Águia
1913 Conhece Mário de Sá-Carneiro e José de Almada Negreiros
Escreve a poesia Pauis
1914 Primeiros poemas dos seus heterónimos Alberto Caeiro,
Álvaro de Campos e Ricardo Reis
1915 Publicação dos dois números da revista Orpheu
1916 Mário de Sá Carneiro suicida-se em Paris
1917 É publicado o único número da revista Portugal Futurista
1920 Conhece Ofélia a quem são destinadas as suas "Cartas de
Amor"
1921 Início da publicação da revista Contemporânea onde
Fernando Pessoa colabora
1924-1925 Publicação dos cinco números da revista Athena dirigida
por Fernando Pessoa e Ruy Vaz
1927 Em Coimbra inicia-se a publicação da revista Presença
onde Fernando Pessoa colaborará
1932 Requer, em concurso documental, o lugar de conservadorbibliotecário do Museu-Biblioteca Conde de Castro
Guimarães, em Cascais, no qual não foi provido.
1934 Publicação da Mensagem.
A 31 de Dezembro a Mensagem recebe o prêmio da
Secretaria da Propaganda Nacional.
1935 A 30 de Novembro Fernando Pessoa morre no Hospital de
S. Luís dos Franceses onde tinha sido internado na véspera
com uma cólica hepática.
Nota auto-biográfica de
Fernando Pessoa
Nota biográfica escrita por Fernando Pessoa em 30 de
Março de 1935 e publicada, em parte, como introdução ao
poema editado pela Editorial Império em 1940 e intitulado:
"À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais"
Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa.
Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos
Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do
Diretório) em 13 de Junho de 1888.
Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de
D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do
general Joaquim António de Araújo Pessoa, combatente
das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto
materno do conselheiro Luís António Nogueira,
jurisconsulto e que foi Diretor-Geral do Ministério do Reino,
e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral: misto
de fidalgos e judeus.
Estado: Solteiro.
Profissão: A designação mais própria será «tradutor», a
mais exata a de «correspondente estrangeiro em casas
comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão,
mas vocação.
Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dto. Lisboa.
(Endereço postal - Caixa Postal 147, Lisboa ).
Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se
entende cargos públicos, ou funções de destaque,
nenhumas.
Obras que tem publicado: A obra está essencialmente
dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações
ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como
válido, é o seguinte: «35 Sonnets» (em inglês), 1918;
«English Poems I-II» e «English Poems III» (em inglês
também), 1922, e o livro «Mensagem», 1934, premiado
pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria
«Poema». O folheto «O Interregno», publicado em 1928, e
constituído por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal,
deve ser considerado como não existente. Há que rever
tudo isso e talvez que repudiar muito.
Educação: Em virtude de falecido seu pai em 1893, sua
mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o
Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em
Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prêmio Rainha
Vitória de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa
Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos.
Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico
seria o mais próprio para uma nação organicamente
imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a
Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a
haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com
pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é,
liberdade dentro do conservantismo, e absolutamente antireacionário.
Posição religiosa: Cristão gnóstico e portanto inteiramente
oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja
de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão
implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem
íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa
Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.
Posição iniciática: Iniciado, por comunicação direta de
Mestre a Discípulo, nos três graus menores da
(aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.
Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico,
de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana,
criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a
substitua espiritualmente, se é que no catolicismo
português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista
que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade; nada
contra a Nação».
Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais
deduz-se do que vai dito acima.
Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na
memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos
Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os
seus três assassinos - a Ignorância, o Fanatismo e a
Tirania.
Lisboa, 30 de Março de 1935
Biblioteca
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O
Marinheiro
Fernando
Pessoa
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2
O MARINHEIRO
Fernando Pessoa
Drama estático em um quadro
Fernando Pessoa
A Carlos Franco
Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é
circular. Ao centro ergue-se, sobre uma mesa, um caixão com uma donzela,
de branco. Quatro tochas aos cantos.
À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela,
alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos,
um pequeno espaço de mar.
Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à
janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão
sentadas uma de cada lado da janela. É noite e há como que um resto vago
de luar.
PRIMEIRA VELADORA — Ainda não deu hora nenhuma.
SEGUNDA — Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco
deve ser dia.
TERCEIRA — Não: o horizonte é negro.
PRIMEIRA — Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que
3
fomos? É belo e é sempre falso...
SEGUNDA — Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa?
PRIMEIRA — Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do
passado... As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim,
tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras
torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que
isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer
cousa?...
(uma pausa)
A MESMA — Falar do passado — isso deve ser belo, porque é inútil e faz
tanta pena...
SEGUNDA — Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido.
TERCEIRA — Não. Talvez o tivéssemos tido...
PRIMEIRA — Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão
falso de nos esquecermos! ... Se passeássemos?...
TERCEIRA — Onde?
PRIMEIRA — Aqui, de um lado para o outro. Às vezes isso vai buscar sonhos.
TERCEIRA — De quê?
PRIMEIRA — Não sei . Porque o havia eu de saber?
(uma pausa)
SEGUNDA — Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era
menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela
dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... Muitas vezes eu não
fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já
não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse...
PRIMEIRA — Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a
4
única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de outras terras é
belo?
SEGUNDA — Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos
dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca...
(uma pausa)
PRIMEIRA — Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado?
SEGUNDA — Não, não dizíamos.
TERCEIRA — Por que não haverá relógio neste quarto?
SEGUNDA — Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e
misterioso. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós
poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é?
PRIMEIRA — Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo Dezembros na alma...
Estou procurando não olhar para a janela.. Sei que de lá se vêem, ao
longe, montes... Eu fui feliz para além de montes, outrora... Eu era
pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que não mas
tirassem... Não sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de
chorar... Foi longe daqui que isto pôde ser... Quando virá o dia?...
TERCEIRA — Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira... sempre,sempre,
sempre...
(uma pausa)
SEGUNDA — Contemos contos umas às outras... Eu não sei contos nenhuns, mas
isso não faz mal... Só viver é que faz mal... Não rocemos pela vida nema
orla das nossas vestes... Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e
cada gesto interrompe um sonho... Neste momento eu não tinha sonho nenhum,
mas é-me suave pensar que o podia estar tendo... Mas o passado — por que
não falamos nós dele?
PRIMEIRA — Decidimos não o fazer... Breve raiará o dia e
arrepender-nos-emos... Com a luz os sonhos adormecem... O passado não é
senão um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho. Se olho para o
5
presente com muita atenção, parece-me que ele já passou... O que é
qualquer cousa? Como é que ela passa? Como é por dentro o modo como ela
passa?... Ah, falemos, minhas irmãs falemos alto, falemos todas juntas...
O silêncio começa a tomar corpo, começa a ser cousa... Sinto-o envolver-me
como uma névoa... Ah, falai, falai!...
SEGUNDA — Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo... Parece-me
que entre nós se aumentaram abismos... Tenho que cansar a ideia de que vos
posso ver para poder chegar a ver-vos... Este ar quente é frio por dentro,
naquela parte que toca na alma... Eu devia agora sentir mãos impossíveis
passarem-me pelo cabelos — é o gesto com que falam das sereias... (Cruza
as mãos sobre os joelhos. Pausa). Ainda há pouco, quando eu não pensava em
nada, estava pensando no meu passado.
PRIMEIRA — Eu também devia ter estado a pensar no meu...
TERCEIRA — Eu já não sabia em que pensava... No passado dos outros
talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu... Ao pé da
casa de minha mãe corria um riacho... Por que é que correria, e por que é
que não correria mais longe, ou mais perto?... Há alguma razão para
qualquer cousa ser o que é? Há para isso qualquer razão verdadeira e real
como as minhas mãos?...
SEGUNDA — As mãos não são verdadeiras nem reais... São mistérios que
habitam na nossa vida... às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo
de Deus... Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas
movem-se... Para onde se inclinam elas?... Que pena se alguém pudesse
responder!... Sinto-me desejosa de ouvir músicas bárbaras que devem agora
estar tocando em palácios de outros continentes... É sempre longe na minha
alma... Talvez porque, quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar.
Levei a vida pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter
cruzado as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo
para que nunca mais ninguém olhasse...
TERCEIRA — As vossas frases lembram-me a minha alma...
SEGUNDA — É talvez por não serem verdadeiras... Mal sei que as digo...
Repito-as seguindo uma voz que não ouço que mas está segredando... Mas eu
devo ter vivido realmente à beira-mar... Sempre que uma cousa ondeia, eu
amo-a... Há ondas na minha alma... Quando ando embalo-me... Agora eu
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gostaria de andar... Não o faço porque não vale nunca a pena fazer nada,
sobretudo o que se quer fazer... Dos montes é que eu tenho medo... É
impossível que eles sejam tão parados e grandes... Devem ter um segredo de
pedra que se recusam a saber que têm... Se desta janela, debruçando-me, eu
pudesse deixar de ver montes, debruçar-se-ia um momento da minha alma
alguém em quem eu me sentisse feliz...
PRIMEIRA — Por mim, amo os montes... Do lado de cá de todos os montes é
que a vida é sempre feia... Do lado de lá, onde mora minha mãe,
costumávamos sentarmo-nos à sombra dos tamarindos e falar de ir ver outras
terras... Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves, uma de
cada lado do caminho... A floresta não tinha outras clareiras senão os
nossos pensamentos... E os nossos sonhos eram de que as árvores
projetassem no chão outra calma que não as suas sombras... Foi decerto
assim que ali vivemos, eu e não sei se mais alguém... Dizei-me que isto
foi verdade para que eu não tenha de chorar...
SEGUNDA — Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla da minha
saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas... Eu era pequena
e bárbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente parece-me que
durmo... Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ninguém... O mar era
grande de mais para fazer pensar nelas... Na vida aquece ser pequeno...
Éreis feliz, minha irmã?
PRIMEIRA — Começo neste momento a tê-lo sido outrora... De resto, tudo
aquilo se passou na sombra... As árvores viveram-no mais do que eu...
Nunca chegou nem eu mal esperava... E vós irmã, por que não falais?
TERCEIRA — Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou
dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao
passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo, e
penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente...
Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave
de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que
estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir,
como por uma floresta escura, através do mistério de falar... E, afinal,
quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?...
PRIMEIRA — Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em nós!...
Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso... Falai, portanto,
7
sem reparardes que existis... Não nos íeis dizer quem éreis?
TERCEIRA — O que eu era outrora já não se lembra de quem sou... Pobre da
feliz que eu fui !... Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha
alma é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a minha sombra é fresca.
Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes, onde eu molhava, quando
sonhava de viver, as pontas tranqüilas dos meus dedos... Às vezes, à beira
dos lagos, debruçava-me e fitava-me... Quando eu sorria, os meus dentes
eram misteriosos na água... Tinham um sorriso só deles, independente do
meu... Era sempre sem razão que eu sorria... Falai-me da morte, do fim de
tudo, para que eu sinta uma razão para recordar...
PRIMEIRA — Não falemos de nada, de nada... Está mais frio, mas por que é
que está mais frio? Não há razão para estar mais frio. Não é bem mais frio
que está... Para que é que havemos de falar?... É melhor cantar, não sei
porquê... O canto, quando a gente canta de noite, é uma pessoa alegre e
sem medo que entra de repente no quarto e o aquece a consolar-nos... Eu
podia cantar-vos uma canção que cantávamos em casa de meu passado. Por que
é que não quereis que vo-la cante?
TERCEIRA — Não vale a pena, minha irmã... quando alguém canta, eu não
posso estar comigo. Tenho que não poder recordar-me. E depois todo o meu
passado torna-se outro e eu choro uma vida morta que trago comigo e que
não vivi nunca. É sempre tarde de mais para cantar, assim como é sempre
tarde de mais para não cantar...
(uma pausa)
PRIMEIRA — Breve será dia... Guardemos silêncio... A vida assim o quer. Ao
pé da minha casa natal havia um lago. Eu ia lá e assentava-me à beira
dele, sobre um tronco de árvore que caíra quase dentro de água...
Sentava-me na ponta e molhava na água os pés, esticando para baixo os
dedos. Depois olhava excessivamente para as pontas dos pés, mas não era
para os ver. Não sei porquê, mas parece-me deste lago que ele nunca
existiu... Lembrar-me dele é como não me poder lembrar de nada... Quem
sabe por que é que eu digo isto e se fui eu que vivi o que recordo?...
SEGUNDA — À beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não podemos ser o
que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no
passado... Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que há mil
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vozes mínimas a falar. A espuma só parece ser fresca a quem a julga uma...
Tudo é muito e nós não sabemos nada... Quereis que vos conte o que eu
sonhava à beira-mar?
PRIMEIRA — Podeis contá-lo, minha irmã; mas nada em nós tem necessidade de
que no-lo conteis... Se é belo, tenho já pena de vir a tê-lo ouvido. E se
não é belo, esperai..., contai-o só depois de o alterardes...
SEGUNDA — Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso, porque sem dúvida
nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que eu dei por
mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esquecido que
tinha pai e mãe e que houvera em mim infância e outros dias — nesse dia vi
ao longe, como uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma
vela. Depois ela cessou... Quando reparei para mim, vi que já tinha esse
meu sonho... Não sei onde ele teve princípio.. . E nunca tornei a ver
outra vela... Nenhuma das velas dos navios que saem aqui de um porto se
parece com aquela, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar...
PRIMEIRA — Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele que
vistes...
SEGUNDA — Não, minha irmã; esse que vedes busca sem dúvida um porto
qualquer... Não podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer porto...
PRIMEIRA — Por que é que me respondestes?... Pode ser... Eu não vi navio
nenhum pela janela... Desejava ver um e falei-vos dele para não ter
pena... Contai-nos agora o que foi que sonhastes à beira-mar...
SEGUNDA — Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha
longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas
passavam por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que,
naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio
de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a
sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma
outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens,
e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem
das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele
nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que
se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite,
estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.
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PRIMEIRA — Não ter havido uma árvore que mosqueasse sobre as minhas mãos
estendidas à sombra de um sonho como esse!...
TERCEIRA — Deixai-a falar... Não a interrompais... Ela conhece palavras
que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar... Dizei,
minha irmã, dizei... Meu coração dói-me de não ter sido vós quando
sonháveis à beira-mar...
SEGUNDA — Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho
contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho
nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já tantas
vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao
longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía
do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no
murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele
passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta...
(uma pausa)
PRIMEIRA — Minha irmã, por que é que vos calais?
SEGUNDA — Não se deve falar demasiado... A vida espreita-nos sempre...
Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber... Quando
falo de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com
que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração. Tenho
então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como
a um filho... Vede: o horizonte empalideceu... O dia não pode já tardar...
Será preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho?
PRIMEIRA — Contai sempre, minha irmã, contai sempre... Não pareis de
contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca raia para quem
encosta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não torçais as mãos. Isso
faz um ruído como o de uma serpente furtiva... Falai-nos muito mais do
vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum. Só pensar em
ouvir-vos me toca música na alma...
SEGUNDA — Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo contar. À
medida que o vou contando, é a mim também que o conto... São três a
escutar... (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo). Três
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não... Não sei... Não sei quantas...
TERCEIRA — Não faleis assim... Contai depressa, contai outra vez... Não
faleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos quantas coisas
realmente vivem e vêem e escutam... Voltai ao vosso sonho... O marinheiro.
O que sonhava o marinheiro?
SEGUNDA (mais baixo, numa voz muito lenta) — Ao princípio ele criou as
paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas,
uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma — uma a uma as ruas,
bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os
portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre
elas das janelas... Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece
apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto
era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo... Depois viajava,
recordando, através do país que criara... E assim foi construindo o seu
passado... Breve tinha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova
pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os
portos onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infância e
depois os amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente de
como ele o tivera — nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se
pareciam com o que haviam sido... Exigis que eu continue?... Causa-me
tanta pena falar disto!... Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais
estar-vos falando de outros sonhos...
TERCEIRA — Continuai, ainda que não saibais porquê... Quanto mais vos
ouço, mais me não pertenço...
PRIMEIRA — Será bom realmente que continueis? Deve qualquer história ter
fim? Em todo o caso falai... Importa tão pouco o que dizemos ou não
dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso mister é inútil como a
Vida...
SEGUNDA — Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o
marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria
verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia
para ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho;
adolescência que recordasse, era aquela que se criara... Toda a sua vida
tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não podia ser que outra
vida tivesse existido... Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de
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um gesto materno se lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado,
tudo era real e tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado,
conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... Ó
minhas irmãs, minhas irmãs... Há qualquer coisa, que não sei o que é, que
vos não disse... Qualquer coisa que explicaria isto tudo... A minha alma
esfria-me... Mal sei se tenho estado a falar... Falai-me, gritai-me, para
que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui! ante vós e que há coisas
que são apenas sonhos...
PRIMEIRA (numa voz muito baixa) — Não sei que vos diga... Não ouso olhar
para as cousas... Esse sonho como continua?...
SEGUNDA — Não sei como era o resto.... Mal sei como era o resto... Por que
haverá mais?...
PRIMEIRA — E o que aconteceu depois?
SEGUNDA — Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?... Veio um dia um
barco... Veio um dia um barco... — Sim sim... só podia ter sido assim... —
Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o
marinheiro.
TERCEIRA — Talvez tivesse regressado à pátria... Mas a qual?
PRIMEIRA — Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia
alguém?
SEGUNDA — Por que é que mo perguntais? Há resposta para alguma coisa?
(uma pausa)
TERCEIRA — Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que
tenha havido esse marinheiro e essa ilha?
SEGUNDA — Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.
PRIMEIRA — Ao menos, como acabou o sonho?
SEGUNDA — Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo
se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não
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é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?.. Não me faleis mais...
Principio a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é... Avançam
para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror que
desconheço... Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos
contei?... Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu
sonho... Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite... Não estejais
silenciosas... Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o
saiba... Vede, começa a ir ser dia.. Vede: vai haver o dia real...
Paremos... Não pensemos mais... Não tentemos seguir nesta aventura
interior... Quem sabe o que está no fim dela?.... Tudo isto, minhas irmãs,
passou-se na noite... Não falemos mais disto, nem a nós próprios... É
humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.
TERCEIRA — Foi-me tão belo escutar-vos... Não digais que não... Bem sei
que não valeu a pena... É por isso que o achei belo... Não foi por isso,
mas deixai que eu o diga... De resto, a música da vossa voz, que escutei
ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez só por ser música,
descontente...
SEGUNDA — Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens que pensam
cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no,
porque mudam com tudo... De eterno e belo há apenas o sonho... Por que
estamos nós falando ainda?...
PRIMEIRA — Não sei... (olhando para o caixão, em voz mais baixa) — Por que
é que se morre?
SEGUNDA — Talvez por não se sonhar bastante...
PRIMEIRA — É possível... Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e
esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?...
SEGUNDA — Não, minha irmã, nada vale a pena...
TERCEIRA — Minhas irmãs, é já dia... Vede, a linha dos montes
maravilha-se... Por que não choramos nós?... Aquela que finge estar ali
era bela, e nova como nós, e sonhava também... Estou certa que o sonho
dela era o mais belo de todos... Ela de que sonharia?...
PRIMEIRA — Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já sabe para que
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servem os sonhos...
(uma pausa)
SEGUNDA — Talvez nada disto seja verdade... Todo este silêncio, e esta
morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho... Olhai bem
para tudo isto... Parece-vos que pertence à vida?...
PRIMEIRA — Não sei. Não sei como se é da vida... Ah, como vós estais
parada! E os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente...
SEGUNDA — Não vale a pena estar triste de outra maneira... Não desejais
que nos calemos? É tão estranho estar a viver... Tudo o que acontece é
inacreditável, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo... Vede, o céu
é já verde... O horizonte sorri ouro... Sinto que me ardem os olhos, de eu
ter pensado em chorar...
PRIMEIRA — Chorastes, com efeito, minha irmã.
SEGUNDA — Talvez... Não importa... Que frio é isto?... Ah, é agora... é
agora!... Dizei-me isto... Dizei-me uma coisa ainda... Por que não será a
única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um
sonho dele?...
PRIMEIRA — Não faleis mais, não faleis mais... Isso é tão estranho que
deve ser verdade. Não continueis... O que íeis dizer não sei o que é, mas
deve ser de mais para a alma o poder ouvir... Tenho medo do que não
chegastes a dizer... Vede, vede, é dia já... Vede o dia... Fazei tudo por
reparardes só no dia, no dia real, ali fora... Vede-o, vede-o... Ele
consola.. Não penseis, não olheis para o que pensais... Vede-o a vir, o
dia... Ele brilha como ouro numa terra de prata. As leves nuvens
arredondam-se à medida que se coloram.. Se nada existisse, minhas
irmãs?... Se tudo fosse, qualquer modo, absolutamente coisa nenhuma?...
Porque olhastes assim?...
(Não lhe respondem. E ninguém olhara de nenhuma maneira.)
A MESMA — Que foi que dissestes e que me apavorou?... Senti-o tanto que
mal vi o que era... Dizei-me o que foi, para que eu, ouvindo-o segunda
vez, já não tenha tanto medo como dantes... Não, não... Não digais nada...
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Não vos pergunto isto para que me respondais, mas para falar apenas, para
me não deixar pensar... Tenho medo de me poder lembrar do que foi... Mas
foi qualquer coisa de grande e pavoroso como o haver Deus... Devíamos já
ter acabado de falar... Há tempo já que a nossa conversa perdeu o
sentido... O que é entre nós que nos faz falar prolonga-se
demasiadamente... Há mais presenças aqui do que as nossas almas.. O dia
devia ter já raiado.. Deviam já ter acordado... Tarda qualquer coisa...
Tarda tudo... O que é que se está dando nas coisas de acordo com o nosso
horror?... Ah, não me abandoneis... Falai comigo, falai comigo... Falai ao
mesmo tempo do que eu para não deixardes sozinha a minha voz... Tenho
menos medo à minha voz do que à idéia da minha voz, dentro de mim, se for
reparar que estou falando...
TERCEIRA — Que voz é essa com que falais?... É de outra... Vem de uma
espécie de longe...
PRIMEIRA — Não sei... Não me lembreis isso... Eu devia estar falando com a
voz aguda e tremida do medo... Mas já não sei como é que se fala... Entre
mim e a minha voz abriu-se um abismo... Tudo isto, toda esta conversa e
esta noite, e este medo — tudo isto devia ter acabado, devia ter acabado
de repente, depois do horror que nos dissestes... Começo a sentir que o
esqueço, a isso que dissestes, e que me fez pensar que eu devia gritar de
uma maneira nova para exprimir um horror de aqueles...
TERCEIRA (para a SEGUNDA) — Minha irmã, não nos devíeis ter contado essa
história. Agora estranho-me viva com mais horror. Contáveis e eu tanto me
distraía que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som
separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que
dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam.
SEGUNDA — São realmente três entes diferentes, com vida própria e real.
Deus talvez saiba porquê... Ah, mas por que é que falamos? Quem é que nos
faz continuar falando? Por que falo eu sem querer falar? Por que é que já
não reparamos que é dia?...
PRIMEIRA — Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me a
gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha vontade para a
minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que alguém
possa bater àquela porta. Por que não bate alguém à porta? Seria
impossível e eu tenho necessidade de ter medo disso, de saber de que é que
15
tenho medo... Que estranha que me sinto!... Parece-me já não ter a minha
voz... Parte de mim adormeceu e ficou a ver... O meu pavor cresceu mas eu
já não sei senti-lo... Já não sei em que parte da alma é que se sente...
Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha de chumbo... Para que
foi que nos contastes a vossa história?
SEGUNDA — Já não me lembro... Já mal me lembro que a contei... Parece ter
sido já há tanto tempo!... Que sono, que sono absorve o meu modo de olhar
para as coisas!... O que é que nós queremos fazer? o que é que nós temos
idéia de fazer? — já não sei se é falar ou não falar...
PRIMEIRA — Não falemos mais. Por mim, cansa-me o esforço que fazeis para
falar... Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis... A
minha consciência bóia à tona da sonolência apavorada dos meus sentidos
pela minha pele... Não sei o que é isto, mas é o que sinto... Preciso de
dizer frases confusas um pouco longas, que custem a dizer... Não sentis
tudo isto como uma aranha enorme que nos tece de alma a alma uma teia
negra que nos prende?
SEGUNDA — Não sinto nada... Sinto as minhas sensações como uma coisa que
se sente... Quem é que eu estou sendo?... Quem é que está falando com a
minha voz?... Ah, escutai...
PRIMEIRA e TERCEIRA — Quem foi?
SEGUNDA — Nada. Não ouvi nada... Quis fingir que ouvia para que vós
supusésseis que ouvíeis e eu pudesse crer que havia alguma coisa a
ouvir... Oh, que horror, que horror íntimo nos desata a voz da alma, e as
sensações dos pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando tudo
em nós pede silêncio e o dia e a inconsciência da vida... Quem é a quinta
pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe sempre que vamos
a sentir?
PRIMEIRA — Para quê tentar apavorar-me? Não cabe mais terror dentro de
mim... Peso excessivamente ao colo de me sentir. Afundei-me toda no lodo
morno do que suponho que sinto. Entra-me por todos os sentidos qualquer
coisa que nos pega e nos vela. Pesam as pálpebras a todas as minhas
sensações. Prende-se a língua a todos os meus sentimentos. Um sono fundo
cola umas às outras as idéias de todos as meus gestos. Por que foi que
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olhastes assim?...
TERCEIRA (numa voz muito lenta e apagada) — Ah, é agora, é agora... Sim,
acordou alguém... Há gente que acorda... Quando entrar alguém tudo isto
acabará... Até lá façamos crer que todo este horror foi um longo sono que
fomos dormindo... É dia já. Vai acabar tudo... E de tudo isto fica, minha
irmã, que só vós sois feliz, porque acreditais no sonho...
SEGUNDA — Por que é que mo perguntais? Porque eu o disse? Não, não
acredito...
Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As três veladoras
quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras.
Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.
********
17
Sobre o autor e sua obra
Fernando Antonio Nogueira Pessoa (1888-1935) nasceu em
Lisboa, partindo, após o falecimento do pai e o segundo casamento
da mãe, para África do Sul.
Freqüentou várias escolas, recebendo uma educação inglesa.
Regressa a Portugal em 1905 fixando-se em Lisboa, onde inicia
uma intensa atividade literária.
Simpatizante da Renascença Portuguesa, corta com ela e em 1915, com Mário
de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e outros, esforça-se por renovar a literatura
portuguesa através da criação da revista Orpheu, veículo de novas idéias e
novas estéticas.
Cria vários heterônimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis,
Bernardo Soares, etc.), assinando as suas obras de acordo com a personalidade
de cada heterônimo. Colabora em várias revistas, publica em livro os seus
poemas escritos em inglês e, em 1934, ganha o concurso literário promovido
pelo Secretariado de Propaganda Nacional, categoria B, com a obra Mensagem,
que publica no mesmo ano.
Faleceu prematuramente em 1935, deixando grande parte da sua obra ainda
inédita. É considerado um dos maiores poetas portugueses.
CRONOLOGIA
1888 A 13 de Junho nasce Fernando António Nogueira Pessoa no Largo de São Carlos
nº 4, 4º Esq. em Lisboa.
1893 Morre com 43 anos o pai de Fernando Pessoa - Joaquim de Seabra Pessoa
1895 A mãe de Fernando Pessoa - Maria Madalena Pinheiro Nogueira Pessoa - casa,
por procuração, com João Miguel Rosa - cônsul interino em Durban - África do
Sul.
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A 26 de Julho escreve Fernando Pessoa a sua primeira quadra À minha querida
mamã.
1896 A família parte para Durbam
1896-1904 Fernando Pessoa faz os seus estudos primários e secundários em Durbam
1905 Fernando Pessoa regressa sozinho a Lisboa, a bordo do navio alemão Herzog,
para se matricular no Curso Superior de Letras que abandona um ano depois.
1907 Fernando Pessoa funda a Empresa Íbis - Tipografia Editora - Oficinas a Vapor que durou escassos meses.
1908 Fernando Pessoa inicia a sua atividade como "correspondente estrangeiro"
1912 Colabora na revista A Águia.
1913 Conhece Mário de Sá-Carneiro e José de Almada Negreiros.
Escreve a poesia Pauis.
1914 Primeiros poemas dos seus heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e
Ricardo Reis.
1915 Publicação dos dois números da revista Orpheu.
1916 Mário de Sá Carneiro suicida-se em Paris.
1917 É publicado o único número da revista Portugal Futurista.
1920 Conhece Ofélia a quem são destinadas as suas "Cartas de Amor".
19
1921 Início da publicação da revista Contemporânea onde Fernando Pessoa colabora.
1924-1925 Publicação dos cinco números da revista Athena dirigida por Fernando Pessoa e
Ruy Vaz.
1927 Em Coimbra inicia-se a publicação da revista Presença onde Fernando Pessoa
colaborará.
1932 Requer, em concurso documental, o lugar de conservador-bibliotecário do
Museu-Biblioteca Conde de Castro Guimarães, em Cascais, no qual não foi
provido.
1934 Publicação da Mensagem.
A 31 de Dezembro a Mensagem recebe o prêmio da Secretaria da Propaganda
Nacional.
1935 A 30 de Novembro Fernando Pessoa morre no Hospital de S. Luís dos Franceses
onde tinha sido internado na véspera com uma cólica hepática.
Nota auto-biográfica de Fernando Pessoa
Nota biográfica escrita por Fernando Pessoa em 30 de Março de
1935 e publicada, em parte, como introdução ao poema editado
pela Editorial Império em 1940 e intitulado: "À memória do
Presidente-Rei Sidónio Pais"
Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa.
Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos
Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Diretório) em 13 de
Junho de 1888.
Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena
Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim António de Araújo Pessoa,
combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto materno do
20
conselheiro Luís António Nogueira, jurisconsulto e que foi Diretor-Geral do
Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral: misto
de fidalgos e judeus.
Estado: Solteiro.
Profissão: A designação mais própria será "tradutor", a mais exata a de
"correspondente estrangeiro em casas comerciais". O ser poeta e escritor não
constitui profissão, mas vocação.
Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dto. Lisboa. (Endereço postal - Caixa
Postal 147, Lisboa ).
Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos
públicos, ou funções de destaque, nenhumas.
Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por enquanto,
por várias revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou folhetos,
considera como válido, é o seguinte: "35 Sonnets" (em inglês), 1918; "English
Poems I-II" e "English Poems III" (em inglês também), 1922, e o livro
"Mensagem", 1934, premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na
categoria "Poema". O folheto "O Interregno", publicado em 1928, e constituído
por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser considerado como não
existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito.
Educação: Em virtude de falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em
1895, em segundas núpcias, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de
Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prêmio Rainha Vitória de
estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de
admissão, aos 15 anos.
Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio
para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo
tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um
plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República. Conservador
do estilo inglês, isto é, liberdade dentro do conservantismo, e absolutamente
anti-reacionário.
Posição religiosa: Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as
Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais
adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas
relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência
oculta da Maçonaria.
21
Posição iniciática: Iniciado, por comunicação direta de Mestre a Discípulo, nos
três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.
Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida
toda a infiltração católico-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo
novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve
alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: "Tudo pela
Humanidade; nada contra a Nação".
Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito
acima.
Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir
Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a
parte, os seus três assassinos - a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania.
Lisboa, 30 de Março de 1935
******
22
Fernando Pessoa
POEMAS
(Antología)
Traducción y presentación:
Miguel Ángel Flores
1
1ª edición 1997
2ª edición 1998
PRESENTACIÓN
En la hermosa ciudad de Lisboa, que se extiende a lo largo del
estuario del Río Tajo, nació el 13 de junio de 1888 Fernando
Pessoa. Y ahí mismo murió el 30 de noviembre de 1935. El poeta
dejó de existir dos meses después de que su heterónimo, Alvaro de
Campos escribiera: «Todos tenemos dos vidas: la verdadera, que es
la que soñamos en la infancia y que continuamos soñando cuando
adultos, en un sustrato de niebla; la falsa, que es la que vivimos en
convivencia con otros, que es la práctica, la útil, aquella que acaban
por meternos en un cajón.»
De la vida útil, falsa, práctica dejó pocas huellas. La vida soñada
se plasmó en innumerables páginas que guardó en un baúl, y que
según un primer recuento contenía 27,543 documentos. En 1979
dichos papeles fueron adquiridos por la Fundación Gulbenkian que
los entregó en 1982 a la Biblioteca Nacional de Lisboa. De ellos sólo
una parte han sido publica dos. Toda la energía intelectual de
Pessoa está reunida en ese baúl: notas de lectura, diarios,
horóscopos y trabajos de astrología (pasión que compartió con su
madre), textos políticos, listas bibliográficas, correspondencia,
poemas, canciones, prosas, obras de teatro, traducciones, en suma:
un inventario exhaustivo que aún no termina de hacerse.
Con motivo del centenario de su nacimiento (1988) un periodista
francés entrevistó al dueño de un taller de radiotécnica contiguo a
la casa que habitó el poeta. Lo frecuentó porque su padre le cortaba
el pelo; y lo recordó así: «Era un hombre solitario, tímido, poco
comunicativo. Salía siempre hacia el mediodía. Iba a un café que
estaba aquí en frente. Para él era un rito. Se sentaba y decía: 'Dê
me sete' (déme siete). Era una comunicación en clave entre el
mesero y él, y quería decir que deseaba alcohol. Al terminar su
bebida se marchaba. Bebía mucho. Supe que era escritor cuando
me lo dijo mi padre. Nadie se imaginó que se volvería tan famoso.
Escribía de noche. En las ocasiones en que acompañé a mi padre a
la casa del poeta, me di cuenta que los ceniceros estaban repletos».
Ese mismo año su media hermana, Henriqueta, habló
públicamente de los años de infancia que compartieron en
Sudáfrica. El padre del poeta murió cuando Pessoa tenía cinco años
de edad; dos años después su madre contrajo segundas nupcias
© De la presentación y traducción: Miguel Ángel Flores
© De esta edición: Letras Vivas, 1998
Diseño de la portada: Elias Nahmad
Diseño de interiores: Israel Ayala y Eugenia Herrera
Ilustraciones de Julio Pomar
Ilustración de solapa Antonio Costa Pinheiro
ISBN 968-7888-07-5
Impreso y hecho en México
Printed and made in México
2
con el cónsul portugués de Durban, Sudáfrica. Henriqueta, siete
años menor que el poeta, lo recordaba como un niño silencioso que
casi no jugaba y que ya escribía desde entonces. Jamás hablaba de
su padre. A veces los hermanos discutían de religión. A los
diecisiete años abandonó la ciudad sudafricana de Durban y se
trasladó a Lisboa para continuar sus estudios. «No lo volví a ver»,
dijo Henriqueta, «sino hasta muchos años después. Vino a
buscarnos al barco, a mí y a mi mamá. Había una huelga en los
muelles. Fernando quedó impresionado al reencontrar a su madre
semiparalítica por una trombosis. Al cabo de un corto tiempo nos
instalamos los tres en la calle de Coelho da Rocha. Él dedicaba su
tiempo a escribir. Y a hacer horóscopos. Algunas veces entraba en
la cocina y nos decía: <¿quieren que les lea lo que he escrito?> Mi
madre siempre respondía que sí... Mi hermano llevaba una vida
poco ordenada. Durante el día iba a la oficina, salía tarde,
atravesaba la ciudad a pie, y regresaba y se ponía a escribir. Bebía
y fumaba mucho. Tomaba baños de agua fría. Su salud era frágil y
se quejaba con frecuencia. Muy seguido pasaba la noche en vela
dando vueltas por el departamento. En la mañana evocaba sus
insomnios: <no pude dormir, decía, <tuve fiebre>. Hablaba de los
heterónimos que había creado como si fueran personas vivas. Mi
madre estaba convencida de ello, lo quería mucho. En cuando a mí,
jamás pude tomarlo en serio con relación a este asunto. Sin
embargo, era extraordinario verlo cambiar de personalidad».
Según el escritor italiano Antonio Tabucchi, quien imaginó los
tres últimos días del poeta, el 29 de noviembre pasaron por
Fernando Pessoa, a la casa de Coelho da Rocha, cuatro amigos que
lo acompañaron al Hospital de San Luis de los Franceses, el más
antiguo de la ciudad. Pessoa se había quejado de dolores intensos
en el vientre. Quedó encamado en el cuarto 27 del tercer piso. La
ventana del cuarto da a uno de los barrios más viejos de la ciudad,
el Bairro Alto. Desde su cama podía ver las puntas de las copas de
las tres palmeras que ocupaban el patio del hospital. Su primo,
médico de profesión, le diagnóstico cirrosis. Cuando la muerte era
inminente, el poeta pidió sus anteojos y una hoja de papel.
Escribió: «I knownot what tomorrow will bring» (No sé lo que traerá
el mañana). Los trazos son débiles pero serenos. Fueron sus
últimas palabras. Al día siguiente el mal hepático puso fin a su vida.
En vida sólo publicó un breve libro, Mensagem, que envió a un
concurso, sin mucha suerte. En 1929, el entonces joven crítico João
Gaspar Simões, uno de los directores de la revista Presença, que se
editaba en Coimbra, dijo de Pessoa: «es, sin duda, en Portugal, un
escritor cuya obra sólo dentro de veinte o treinta años será
debidamente admirada y comprendida. Hasta entonces, permita
Fernando Pessoa que yo, oscuro y joven, le ofrezca esta tentativa,
por cierto infeliz, de una comprensión y de una admiración
infinitamente mayores de lo que parecen». Hasta ese año Pessoa
sólo había publicado unos cuantos poemas en revistas de escasa
circulación y vivía, como vivió toda su vida, en retiro casi total:
nunca se alejó de la ciudad de Lisboa. Con Simőes se inició la larga
lista de quienes, cada vez en mayor número se iban a sentir
tocados por la extraordinaria humanidad y la exigente labor de este
«indisciplinador de almas», «el más universal y el más portugués de
los poetas de este siglo».
Fernando Pessoa representa un caso único en la poesía de
Occidente. Escribió con su propio nombre e inventó otros poetas a
los que atribuyó una biografía y una poética. En él el yo se
fragmentaba y pasaba a ser una ficción. A esas figuras las llamó
heterónimos, y él mismo se puede considerar como uno de ellos.
Repetidas veces a lo largo de su obra, Pessoa afirmó ser nadie.
«Siento que soy nadie salvo una sombra...» escribió. Una sombra
en plural. Las experiencias estéticas de su juventud lo conducen al
definitivo encuentro con el poeta dramático, que creó los
heterónimos que siempre habitaron en él. En sus sueños construyó
un foro y sobre él se desarrolló un drama no en actos sino en
«gentes».
En una carta, Pessoa explicó así la génesis de los heterónimos:
«No podrá decirse que son anónimos o seudónimos, pues en
realidad no lo son la obra seudónima, es la del autor en su
personalidad, salvo en el nombre con que firma; la heterónima es
del autor fuera de su personalidad, es de una individualidad
completa fabricada por él, como si fueran los parlamentos de
cualquier personaje de cualquier drama suyo (...) Puse en Caeiro
todo mi poder de despersonalización dramática, puse en Ricardo
Reis toda mi disciplina mental, investida de la música que le es
propia, puse en Alvaro de Campos toda la emoción que no debo ni a
mí ni a la vida (...) Las obras de estos tres poetas forman, como se
dice, un conjunto dramático; y se halla debidamente estudiada la
3
interacción intelectual de las personalidades así como sus propias
relaciones personales. Todo esto constará en biografías próximas,
acompañadas, cuando se publiquen, de horóscopos y tal vez de
fotografías. Es un drama en gentes en vez de ser en actos».
En sus poemas, como vimos, Pessoa afirmó ser nadie y en una
de las múltiples cartas que envió a Simões, dijo tener la íntima
exaltación del poeta y la despersonalización del dramaturgo; esto
seguramente llevó a la crítica brasileña, María Alíete Galhoz, a
preguntarse: «¿Quién fue, al fin, Fernando Pessoa? ¿El poeta de
altos vuelos? ¿El inquietante virtuoso en ejercicios de raciocinio? ¿El
humorista intelectual del non sense? ¿El ocultista diletante que
levantaba horóscopos? ¿El impecable esteta de frialdad irónica? ¿El
cavilador de proféticos y matemáticos Quintos Imperios del
espíritu? ¿El inquieto y monótono comentador del absurdo o del
milagro de la vida?»
El vasto universo poético de Fernando Pessoa contiene la
respuesta a cada una de estas interrogantes, pero esa respuesta es
múltiple y única para cada lector.
4
5
POEMAS
6
Fernando Pessoa: corazón de nadie
7
A su propio encuentro
8
IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO
IMPRESIONES DEL CREPÚSCULO
29-3-1913
29-3-1913
PAUIS DE ROÇAREM ânsias pela minh'alma em ouro...
Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh'alma..
PAULARES DE ROZAR ansias a mi alma en oro...
El lejano doblar de Otras Campanas... Empalidece el rubio
Trigo en la ceniza del poniente... Corre un frío carnal por mi alma..
Tão siempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!...
Silêncio que as folhas fitam em nos... Outono delgado
Dum canto de vaga ave... Azul esquecido em estagnado...
Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!
Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...
Címbalos de Imperfeição...Ó tão antiguidade
A Hora expulsa de si-Tempo! Onda de recuo que invade
O meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer,
E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...
Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se...
O Mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...
A sentinela é hirta — a lanςa que finca no chão
É mais alta do que ela...Para que é tudo isto... Dia chão...
Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os Aléns...
Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro.,
Fanfarras de ópios de silêncios futuros... Longes trens...
Portões vistos longe... através de árvores...tão de ferro!
La Hora, ¡siempre la misma!... Balanceo de copas de palma!...
Silencio que las hojas miran en nosotros... Otoño afilado
Del canto de una vaga ave... Olvidado azul en lo estancado...
¡Oh qué mudo grito de ansia pone garras a la Hora!
¡Qué asombro de mí ansia por algo más que lo que llora!
Extiendo las manos hacia allá, mas al extenderlas veo
Que no es aquello que quiero aquello que deseo...
Címbalos de Imperfección... ¡Oh, es tan antigua
La Hora expulsada de si-Tiempo! ¡Ola de retroceso que invade
El abandonarme a mí mismo hasta desfallecer,
Y de recordar tanto el Yo presente me siento olvido!...
Fluido de aureola, transparente de Fue, oquedad de tenerse...
El Misterio me sabe a ser otro... Luar sobre el no contenerse...
El Centinela, yerto —la lanza que clavó en el suelo
Es más alta que él... Para qué es todo eso... Día suelo...
Enredaderas de despropósito lamiendo los Más Allá de Instantes...
Horizontes cerrando ojos al espacio en que son eslabones de yerro..
Fanfarrias de opios de silencios futuros... Unos trenes distantes...
Portales vistos desde lejos... a través de árboles... ¡tan de hierro!
9
HORA ABSURDA
HORA ABSURDA
4-7-1913
4-7-1913
O TEU SILÊNCIO é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
TU SILENCIO es una nao con todas las velas pandas...
Suaves, las brisas juegan en las flámulas, tu sonreír...
Y tu sonreír en tu silencio es la escalera y las andas
Con que me finjo más alto y al pie de cualquier paraíso...
Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...
Mi corazón es una ánfora que cae y que se parte...
Tu silencio lo recoge y lo guarda, roto, en un rincón...
Mi idea de tí es un cadáver que el mar trae a la playa...,
y mientras tanto
Tú eres la tela irreal en que yerra mi arte el color ...
Abre todas as portas e que o vento varra a idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histriões...
Abre todas las puertas y que el viento barra la idea
Que tenemos de que un humo perfuma de ocio los salones...
Mi alma es una caverna henchida por la marea alta,
Y mi idea de soñarte una caravana de histriones...
Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
Llueve oro mate, mas no afuera...En mí... Soy la Hora,
Y la Hora es de asombros y toda escombros de ella...
En mi atención hay una viuda pobre que nunca llora...
En mi cielo interior nunca hubo una única estrella...
Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...
Hoy pesa el cielo como la idea de nunca llegar a un puerto...
La lluvia menuda es vacía... La Hora sabe a haber sido...
¡No hay nada mejor como un lecho para las naos!... Absorto
En su alienarse de sí, tu mirar es una plaga sin sentido...
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...
Todas mis horas están hechas de jaspe negro,
Mis ansias todas talladas en un mármol que no hay,
No es alegría ni dolor este dolor con que me alegro,
Y no es buena ni mala mi bondad a la inversa...
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Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...
Los haces de los lictores se abrieron a la vera de los caminos...
Los pendones de las victorias medievales ni llegaron a
las Cruzadas...
Pusieron infolios útiles entre las piedras de las barricadas...
Y la yerba creció en las vías férreas con fuerza dañina...
¡Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...
¡Ah, qué vieja, esta hora!... ¡Y todas las naos partieron!
En la playa sólo un cabo muerto y unos restos de velas hablan
De la Lejanía, de las horas del Sur, de donde nuestros
sueños sacan
Aquella angustia de soñar más que hasta para sí callan...
O palácio está en ruínas ... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada.
El palacio está en ruinas... Duele ver en el parque el abandono
De la fuente sin surtidor... Nadie levanta la mirada del camino
Y siente saudades de sí ante aquel lugar-otoño...
Este paisaje es un manuscrito con la frase más bella cortada...
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos
candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...
La loca rompió todos los candelabros glabros,
Ensució de humano el lago con cartas rasgadas, tantas...
Y mi alma es aquella luz que no habrá más en los
candelabros...
¿Y qué quieren, mis ansias, del lago aciago, brisas fortuitas?...
¿Por que me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...
¿Por qué me aflijo y enfermo?... Se acuestan desnudas al luar
Todas las ninfas... Llegó el sol y ya habían partido...
Tu silencio que me arrulla es la idea de naufragar,
Es la idea de tu voz al sonar la lira de un Apolo fingido...
Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora.
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...
Ya no hay colas de pavones todas ojos en el jardín de otrora...
Las mismas sombras están más tristes... Aún
Hay rastros de vestidos de ayas en el suelo, y aún llora
Un como eco de pasos por la alameda que aquí termina...
11
Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...
Todos los ocasos se fundieron en mi alma...
Toda la yerba de los prados fue fresco bajo mis pies fríos...
Se secó en tu mirar la idea de creerte en calma,
Y ver eso en ti es un puerto sin navíos...
Ergueram-se a un tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...
Se alzaron a un tiempo todos los remos... Por el oro de las mieses
Pasó una saudade de no ser el mar... Frente
A mi trono de alienación hay gestos con piedras raras...
Mi alma es una lámpara que se apagó y aún está caliente...
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...
¡Ah y tu silencio es un perfil de pináculo al sol!
Todas las princesas sintieron el seno oprimido...
Desde la última ventana del castillo sólo un girasol
Se ve, y soñar otros trae brumas en nuestro sentido...
Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?..
¡Ser y no ser más!... ¡Oh, leones nacidos en la jaula!...
Repique de campanas allá, en el Otro Valle... ¿Cercano?...
Arde el colegio y un niño quedó encerrado en el aula...
¿Por qué no ha de ser Norte el Sur?... ¿Lo que está descubierto?...
E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho...
Yyo deliro... De repente hago pausa en qué pienso... Te miro
Y tu silencio es una ceguera mía... Te miro y sueño...
Hay cosas rojas y cobras en el modo como te medito,
Y tu idea sabe al recuerdo de un sabor que es horrendo...
Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um lequeUm leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...
¿Por qué no tenerte desprecio? ¿Por qué no perderlo?...
Ah, deja que te ignore... Tu silencio es un abanico —
Un abanico cerrado, un abanico que abierto sería tan bello, tan
bello,
Pero más bello es no abrirlo, para que la hora no peque...
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
Se helaron todas las manos cruzadas sobre todos los pechos...
Se marchitaron más flores de las que había en el jardín...
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O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...
Mi amarte es una catedral de silencios elegidos
Y mis sueños una escalera sin principio y con fin...
Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozan as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...
Alguien va entrar por la puerta... Se siente el aire sonreír...
Tejedoras viudas gozan las mortajas de vírgenes que tejen...
Ah, tu tedio es la estatua de una mujer que ha de venir,
El perfume que los crisantemos tendrían, si lo tuviesen...
E preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...
Es preciso destruir el propósito de todos los puentes,
Vestir de alienación al paisaje de todas las tierras,
Enderezar a fuerza la curva de los horizontes,
Y gemir por tener que vivir, cual brusco ruido de sierras...
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã — como
nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...
¡Hay tan poca gente que ame los paisajes que no existen!...
Saber que seguirá existiendo el mismo mundo mañana — como
nos desalegra!...
Que mi oír tu silencio no sean nubes que entristecen
Tu sonrisa, ángel exiliado, y tu tedio, aureola negra...
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...
Suave como tener madre y hermanas, cae la tarde opulenta...
No llueve ya, y el vasto cielo es una gran sonrisa imperfecta...
Es una plegaria mi conciencia de tener conciencia de ti,
Y mi saberte sonreír es una flor marchita en mi pecho...
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitória!
¡Ah, si fuésemos dos figuras en un lejano vitral!...
¡Ah, si fuésemos los dos colores en una bandera de gloria!...
Estatua acéfala puesta en un rincón, polvorienta pila bautismal,
Pendón de vencido que tiene escrito al centro este lema —
¡Victoria!.
O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
¿Qué es lo que me tortura?... Si hasta tu rostro en calma
Sólo me hincha de tedios y de opios de ocios funestos...
No sé... Yo soy un loco que extraña su propia alma...
Fui amado en efigie en un país más allá de los sueños...
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CHUVA OBLICUA
LLUVIA OBLICUA
8-3-1914
8-3-1914
I
I
ATRAVESSA esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais sarrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
ATRAVIESA este paisaje mi sueño de un puerto infinito
Y el color de las flores se transparenta en las velas de grandes
navíos
Que zarpan del muelle arrastrando sobre las aguas cual sombra
Los rostros al sol de aquellos árboles antiguos...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu epírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
El puerto que sueño es sombrío y pálido
Y el paisaje está lleno de sol de este lado...
Mas en mi espíritu el sol de este día es puerto sombrío
Y los navíos que salen del puerto son estos árboles al sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro.
Liberado dos veces, me abandono al paisaje de abajo...
El rostro del muelle es el camino nítido y en calma
Que al elevarse se yergue como un muro,
Y los navíos pasan por dentro de los troncos de los árboles
Con una horizontalidad vertical,
Y dejan caer en el agua las amarras dentro de las hojas una a una..
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse
desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em
aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
No sé quien me sueño...
De súbito toda el agua del mar del puerto es transparente
Y veo en el fondo, como una estampa enorme que allí estuviese
desdoblada,
Todo este paisaje, hilera de árboles, camino que arde en aquel
puerto,
Y la sombra de una nao más antigua que el puerto pasa
Entre mi sueño del puerto y mi mirar de este paisaje
Y llega al pie de mí, y en mí se adentra,
Y pasa al otro lado de mi alma...
14
II
II
Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...
Se ilumina la iglesia dentro de la lluvia de este día,
Y cada vela que se enciende es más lluvia que golpea en el vitral...
Me alegra oír la lluvia porque ella es el templo encendido,
Y los vitrales de la iglesia vistos por fuera son el sonido
de la lluvia oído por dentro...
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido
por dentro...
El esplendor del altar mayor es que casi no pueda ver los montes
A través de la lluvia que es oro tan solemne en el mantel del altar..
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Suena el canto del coro, en mí latín y viento sacuden el vitral
Y el chirriar del agua en el hecho de haber coro...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...
La misa es un automóvil que pasa
A través de los fieles que se arrodillan hoy que es un día triste...
De repente el viento sacude un esplendor mayor
La fiesta de la catedral y el ruido de la lluvia todo lo absorbe
Hasta sólo oírse la voz del padre agua perdiéndose a lo lejos
Con el ruido de las llantas del automóvil...
A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...
Y se apagan las luces de la iglesia
En la lluvia que cesa...
E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...
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III
III
A Grande Esfinge do Egito sonha pôr este papel dentro...
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...
La Gran Esfinge de Egipto sueña por este papel adentro...
Escribo — y ella se me aparece a través de mi mano transparente
Y en la orilla del papel se yerguen las pirámides...
Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...
Escribo — y me perturba ver que el punto de mi pluma
Es el perfil del rey Keops...
De repente me detengo...
Oscureció todo... Caigo en un abismo hecho de tiempo...
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste
candeeiro
E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com
a pena...
Enterrado bajo las pirámides escribo versos a la luz clara de este
candelero
Y todo Egipto me aplasta desde lo alto a través de los trazos que
hago con la pluma...
Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Oigo a la Esfinge reír por dentro
El sonido de mi pluma corre sobre el papel...
Una mano enorme atraviesa el que yo no puedo verla,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito
abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...
Barre todo hacia el borde del techo que está detrás de mí,
Y sobre el papel donde escribo, entre él y la pluma que escribe,
Yace el cadáver del rey Keops, mirándome con los ojos muy
abiertos,
Y entre nuestras miradas que se cruzan corre el Nilo
Y una alegría de barcos abanderados errando va
En una diagonal difusa
Entre mí y lo que yo pienso...
Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim!...
¡Funerales del rey Keops en oro viejo y Mí!...
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IV
IV
Que pandeiretas o silêncio deste quarto!...
As paredes estão na Andaluzia...
Há danças sensuais no brilho fixo da luz...
¡Qué panderetas el silencio de este cuarto!...
Las paredes están en Andalucía...
Hay danzas sensuales en el brillo fijo de la luz...
De repente todo el espacio se detiene...,
Se detiene, se desliza, se enreda...,
Y en un rincón del techo, mucho más lejos de donde él está,
Abren manos blancas ventanas secretas
Y hay ramos de violetas cayendo
Por haber una noche de Primavera allá afuera
Sobre el yo estar de ojos cerrados...
De repente todo o espaço pára...,
Pára, escorrega, desembrulha-se...,
E num canto do teto, muito mais longe do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados...
V
V
Allá afuera van en remolino de sol los caballos del carrusel...
Árboles, piedras, montes bailan inmóviles dentro de mí...
Noche absoluta en la feria iluminada, luar en el día de sol allá
afuera,
Y todas las luces de la feria hacen ruidos de los muros del quintal...
Rondas de muchachas con cántaros en la cabeza
Que pasan allá fuera, plenas de estar bajo el sol,
Se cruzan con grandes grupos pegajosos de gente que anda en
la feria,
Gente mezclada con las luces de las barracas, con la noche y
con el luar,
Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel...
Árvores, pedras, montes bailam parados dentro de mim...
Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal...
Ranchos de raparigas de bilha à cabeça
Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda
na feira,
Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e
com o luar,
Y los dos grupos se encuentran y se penetran
Hasta formar sólo uno que es los dos...
La feria y las luces de la feria y la gente que anda en la feria,
Y la noche que toma a la feria y la levanta en el aire,
Andan por encima de las copas de los árboles llenos de sol,
Andan visiblemente por abajo de los peñascos que lucen al sol,
E os dois grupos encomtram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois...
A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta no ar,
Andam por cimas das copas das árvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
17
Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à
cabeça,
Aparecen del otro lado de los cántaros que las muchachas
llevan sobre la cabeza,
E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...
Y todo este paisaje de primavera es la luna sobre la feria,
Y toda la feria con ruidos y luces es el suelo de este día de sol...
De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...
De repente alguien sacude como un tamiz esta hora doble
Y, mezclado, el polvo de las dos realidades cae
Sobre mis manos llenas de dibujos de puertos
Con grandes veleros que zarpan y no piensan regresar...
Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos...
As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a
feira,
Sozinha e contente como o dia hoje...
Polvo de oro blanco y negro sobre mis dedos...
Mis manos son los pasos de aquella muchacha que abandona la
feria,
Sola y contenta como el día de hoy...
VI
VI
O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música rompe...
El maestro sacude la batuta,
Lánguida y triste irrumpe la música...
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo...
Me recuerda mi infancia, aquel día
En que jugaba al pie del muro de un patio
Lanzándole una pelota que tenía de un lado
El deslizar de un perro verde, y del otro lado
Un caballo azul que corría con jockey amarillo...
Prossegue a, música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Prosigue la música, y he aquí en mi infancia
De repente entre mí y el maestro, muro blanco,
Va y viene la pelota, ora un perro verde,
Ora un caballo azul con un jockey amarillo...
18
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Todo el teatro es mi patio, mi infancia
Está en todos los lugares, y la pelota viene a tocar música,
Una música triste y vaga que pasea en mi patio
Vestida de perro verde tornándose jockey amarillo...
(Tan rápida gira la pelota entre yo y los músicos...)
Atiro-a de encontro à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
A minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos...
La lanzo contra mi infancia y ella
Atraviesa todo el teatro que está a mis pies
juega con un jockey amarillo y con un perro verde
Y un caballo azul que asoma por encima del muro
De mi patio... Y la música lanza pelotas
A mi infancia... Y el muro del patio está hecho de gestos
De batuta y de rotaciones confusas de unos perros verdes
Y caballos azules y jockeys amarillos...
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo el teatro es un muro blanco de música
Por donde un perro verde corre tras de mi saudade
De mi infancia, caballo azul con un jockey amarillo...
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
Y de un lado a otro, de derecha a izquierda,
Donde hay árboles y entre las ramas al pie de la copa
Con orquestas para tocar música,
Para donde hay filas de pelotas en la tienda donde la compré
Y el hombre de la tienda sonríe entre las memorias de mi infancia..
E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se
preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
Y la música cesa como un muro que se derrumba
La pelota rueda por el despeñadero de mis sueños interrumpidos,
y desde lo alto de un caballo azul, el maestro, jockey amarillo se
torna negro,
Agradece, colocando la batuta encima de la fuga de un muro,
Y se inclina, sonriendo, con una pelota blanca sobre la cabeza.
Pelota blanca que le desaparece por las cuestas...
19
20
Cancionero
21
AUTOPSICOGRAFIA
AUTOPSICOGRAFIA
1-4-1931
1-4-1931
O POETA é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
EL POETA es un fingidor.
Finge tan enteramente
Que hasta finge que es dolor
El dolor que de veras siente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
Y quienes leen lo que escribe,
En el dolor leído sienten bien,
No los dos que el poeta tuvo,
Pero sólo el que ellos no tienen.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
Y así por las vías rueda
Gira, para entretener la razón,
Este tren de cuerda
Que se llama corazón.
22
ISTO
ESTO
1-4-1931
1-4-1931
DIZEM que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
DICEN que finjo o miento
Todo lo que escribo. No.
Yo simplemente siento
Con la imaginación.
No uso el corazón.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Todo lo que sueño o vivo,
Lo que me falla o acaba,
Es como una terraza
Aún sobre otra cosa.
Esa cosa es la que es bella.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Por eso escribo en medio
De lo que no está al pie,
Libre de mi ensueño,
Serio de lo que no es.
¿Sentir? ¡Que sienta quién lee!
23
9-11-1932
9-11-1932
NÃO MEU, não meu é quanto escrevo.
A quem o devo?
De quem sou o arauto nado?
Por que, enganado,
Julguei ser meu o que era meu?
Que outro mo deu?
Mas, seja como for, se a sorte
For eu ser morte
De uma outra vida que em mim vive,
Eu, o que estive
Em ilusão toda esta vida
Aparecida,
Sou grato Ao que do pó que sou
Me levantou.
(E me fez nuvem um momento
De pensamento.)
(Ao de quem sou, erguido pó,
Símbolo só.)
NO ES MÍO, no es mío cuanto escribo.
¿A quién lo debo?
¿De quién soy el heraldo nato?
¿Por qué, engañado,
Juzgué ser mío lo que era mío?
¿Quién más me lo dio?
Pero, sea como fuere, si la suerte
Fuera que yo sea la muerte
De otra vida que en mí vive,
Yo, el que estuve
Ilusionado toda esta vida
Aparecida,
Agradezco Al que del polvo que soy
Me levantó.
(Y me hizo nube un momento
Del pensamiento.)
(Al de quien soy, erguido polvo,
Sólo símbolo.)
24
PASSOS DA CRUZ
VIA CRUCIS
6-1-1923
6-1-1923
ACONTECEU-ME do alto do infinito
Esta vida. Através de nevoeiros,
Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,
Vim ganhando, e através estranhos ritos
ME SUCEDIÓ desde lo alto del infinito
Esta vida. A través de neblinas,
De mi propio yermo ser, humos primeros,
Vine ganando, y a través de extraños ritos
De sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incógnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscrito...
De sombra y luz ocasional, y gritos
Vagos a lo lejos, y asomos pasajeros
De saudade incógnita, luceros
De divino, este ser opaco y proscrito...
Caiu chuva em passados que fui eu.
Houve planícies de céu baixo e neve
Nalguma cousa de alma do que é meu.
Cayó lluvia en pasados que fui yo.
Hubo planicies de cielo bajo y nieve
En alguna cosa de alma de lo que es mío.
Me narré a la sombra y no me hallé sentido.
Hoy me sé el desierto donde Dios tuvo
Otrora su capital de olvido...
Narrei-me à sombra e não me achei sentido.
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido...
XI
XI
No soy quien describo. Soy la tela
Y oculta mano colorea alguien en mí.
Puse el alma en el nexo de perderla
Y mi principio floreció como Fin.
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.
¿Qué importa el tedio que dentro de mí hiela,
Y el leve Otoño, y las galas, y el marfil,
Que importa o tédio que dentro em mim gela,
E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
25
E a congruência da alma que se vela
Como os sonhados pálios de cetim?
Y la congruencia del alma que se vela
Como los soñados palios de satín?
Disperso... E a hora como um leque fecha-se..
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar..
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se.
E, brindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do voo começado
Pestaneja no campo abandonado...
Disperso... Y la hora como un abanico se cierra...
Mi alma es un arco tendido con el mar por fondo...
¿El tedio? ¿La amargura? ¿La vida? ¿El sueño? Déjase.
Y abriendo las alas sobre Renovar,
La yerma sombra del vuelo comenzado
Pestañea en el campo abandonado...
26
6-1-1923
6-1-1923
SONHO. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.
SUEÑO. No sé quién soy en este momento.
Duermo sintiéndome. En la hora calma
Mi pensamiento olvida el pensamiento,
Mi alma no tiene alma.
Se existo, é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.
Si existo es un error saberlo. Si despierto
Parece que yerro. Siento que no sé.
Nada quiero ni tengo ni recuerdo.
No tengo ser ni ley.
Lapso da consciência entre ilusões,
Fnatasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.
Lapso de la conciencia entre ilusiones,
Fantasmas me limitan y me contienen.
Duerme sin saber de ajenos corazones,
Corazón de nadie.
27
MARINA
MARINHA
29-9-1926
29-9-1926
DITOSOS a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.
FELICES a quienes señala
Un pañuelo de despedida!
Son felices: tienen pena...
Yo sufro sin pena la vida.
Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar...
Me duele hasta donde pienso,
Y el dolor es ya de pensar,
Huérfano de un sueño suspendido
Que por la marea baja...
E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.
Y sube hasta mí, ya harto
De inútiles agonías,
En el muelle de donde nunca parto,
La marejada de los días.
28
EL NIÑO DE SU MAMA
O MENINO DA SUA MAE
29-9-1926
29-9-1926
NO PLAINO abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
—Duas, de lado a lado—,
Jaz morto, e arrefece.
EN EL LLANO abandonado
Que la tibia brisa calienta,
De balas traspasado
—Dos, de lado a lado—,
Yace muerto, y se enfría
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
La sangre le mancha el uniforme.
Con los brazos extendidos,
Albo, rubio, exangüe,
Mira con mirada lánguida
Y ciega los cielos perdidos.
Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».
¡Tan joven! ¡qué joven era!
(¿Ahora qué edad tiene?)
Hijo único, la madre le diera
Un nombre y lo mantuviera:
«El niño de su mamá».
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
Le cayó del bolsillo
La cigarrera breve.
Se la dio la madre. Está entera
Y buena la cigarrera.
Es él quien ya no sirve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
De otro bolsillo, alada
Punta al rozar el suelo,
La blancura embastillada
De un pañuelo... Se lo dio la criada
Vieja que lo trajo en brazos.
29
Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
Allá lejos, en casa, rezan:
«¡Qué regrese temprano, y con bien!>
(¡Mallas que el Imperio teje!)
Yace muerto, y se pudre,
El niño de su mamá.
30
1914
1914
ELA CANTA, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
ELLA CANTA, pobre segadora,
Creyéndose feliz tal vez;
Canta y siega, y su voz, llena
De alegre y anónima viudez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ondula como un canto de ave
En el aire limpio cual umbral,
Y hay curvas en la trama suave
Del sonido que tiene al cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Oírla alegra y entristece,
En su voz hay campo y brega,
Y canta como si tuviese
Más razones para cantar que la vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
¡Ah, canta, canta sin razón!
Lo que en mí siente está pensando.
¡Derrama en mi corazón
Tu incierta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! O canção! A ciência
¡Ah, poder ser tú, siendo yo!
Tener tu alegre inconsciencia,
Y la conciencia de eso! ¡Oh cielo!
¡Oh campo! ¡Oh canción! ¡La ciencia
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
Pesa tanto y la vida es tan breve!
¡Entrad dentro de mí! ¡Tornad
Mi alma vuestra sombra leve!
¡Y después, llevándome, pasad!
31
14-3-1928
14-3-1928
PAIRA à tona de água
Uma vibração,
Há uma vaga mágoa
No meu coração.
FONDEA sobre el agua
Una vibración,
Hay una vago dolor
En mi corazón.
Não é porque a brisa
Ou o que quer que seja
Faça esta indecisa
Vibração que adeja,
No es porque la brisa
que quiere que sea
Haga esta indecisa
Vibración que flota,
Nem é porque eu sinta
Uma dor qualquer.
Minha alma é indistinta,
Não sabe o que quer.
Ni es porque yo sienta
Un dolor cualquiera.
Mi alma es indistinta,
No sabe lo que quiere.
E uma dor serena,
Sofre porque vê.
Tenho tanta pena!
Soubesse eu de quê!...
Es un dolor sereno,
Sufre porque ve.
¡Tengo tanta pena!
¡si yo supiese de qué!...
32
INICIACION
INICIAÇÃO
NÃO DORMES sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
.................................................
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
NO DUERMES bajo los cipreses,
Pues no hay sueño en el mundo.
.........................................................
El cuerpo es la sombra de los vestidos
Que cubren tu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Viene la noche, que es la muerte,
Y la sombra acabó sin ser.
Vas en la noche sólo silueta,
Igual a ti sin querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Mas en la Posada del Asombro
Te arrancan los Ángeles la capa:
Sigues sin capa en el hombro,
Con lo poco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Entonces Arcángeles del Camino
Te desvisten y te dejan desnudo.
No tienes ropas, no tienes nada:
Tienes sólo tu cuerpo, que eres tú.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
.................................................
Por fin, en la profunda caverna,
Los Dioses te desvisten más.
Tu cuerpo cesa, alma externa,
Mas ves que son tus iguales.
...........................................................
33
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não 'stás morto, entre ciprestes.
Neófito, não há morte.
La sombra de tus vestidos
Quedo entre nosotros en Ia Suerte.
No estás muerto, entre cipreses.
Neófito, no hay muerte.
34
35
NADIE EN PLURAL
36
Álvaro de Campos
37
10-1913
10-1913
A PRAÇA da Figueira de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.
LA PLAZA de Figueira de mañana,
Cuando el día es soleado (como sucede
Siempre en Lisboa), nunca en mí olvida,
Aunque sea un recuerdo vano.
Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui... Sei eu
Por que o amo? Não importa. Adiante...
Hay tanta cosa más interesante
Que aquel lugar lógico y plebeyo,
Mas amo aquello, también aquí... ¿Sé yo
Por qué lo amo? Nada importa. Adelante...
Isto de sensações só vale a pena
Se a gente se não põe a olhar para elas.
Nenhuma delas em mim serena...
Esto de las sensaciones sólo vale la pena
Si nosotros no nos ponemos a mirarlas.
Ninguna de ellas en mí es serena...
De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros ou as que não há.
Por lo demás, nada en mí es cierto y está
De acuerdo conmigo mismo. Las horas bellas
Son las de los otros, o las que no existen.
38
8-1913
8-1913
QUANDO olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.
CUANDO me miro no me percibo.
Tengo tanto la manía de sentir
Que me extravío a veces al salir
De las propias sensaciones que recibo.
O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.
El aire que respiro, este licor que bebo
Pertenecen a mi modo de existir,
Y nunca sé como he de concluir
Las sensaciones que a mi pesar concibo.
Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei
Ni nunca, propiamente, reparé
Si en verdad siento lo que siento. Yo
¿seré tal cual como me parezco? ¿seré
Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
Tal cual como me juzgo verdaderamente?
También ante las sensaciones soy un poco ateo,
Ni sé bien si soy yo quien en mí siente.
39
OPIARIO
OPIARIO
Ao senhor Mário de Sá-Carneiro
Al señor Mário de Sá-Carneiro
3-1914
3-1914
É ANTES DO ÓPIO que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
Es antes del opio que mi alma está enferma.
Sentir la vida que convalece y se seca
Y voy en busca del opio que consuela
Un Oriente al oriente del Oriente.
Esta vida de bordo há de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
Já não encontro a mola pra adaptar-me.
Esta vida de a bordo ha de matarme.
Son días sólo de fiebre en la cabeza
Y, por más que busque hasta que enferme,
Ya no encuentro el resorte para adaptarme.
Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.
En paradoja e incompetencia astral
Yo vivo a rayas de oro mi vida,
Ola donde el pundonor es un descenso
Y los propios goces ganglios de mi mal.
E por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardin onde há flores no ar, sem hastes.
Es por un mecanismo de desastres,
Un engranaje con volantes falsos,
Que paso entre visiones de cadalsos
En un jardín donde hay flores en el aire, sin astas.
Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.
Voy oscilando a través de la labor
De una vida interior de encaje y laca.
Creo tener en casa el cuchillo
Con que fue degollado el Precursor.
Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca , vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.
Ando expiando un crimen en una valija,
Que un abuelo mío cometió con esmero.
Tengo los nervios en la horca, veinte a veinte,
Y caí en el opio como en una cuneta.
40
Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina,
Al toque adormecido de la morfina
Me pierdo en transparencias palpitantes
Y en una noche llena de brillantes
Se eleva la luna como mi Destino.
Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.
Yo, que siempre fui un mal estudiante, ahora
No hago más que ver la nave que va
Por el canal de Suez conduciendo
Mi vida, alcanfor en el alba.
Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.
Perdí los días que ya aprovechara.
Trabajé sólo para tener el cansancio
Que es hoy en mí una especie de brazo
Que a mi cuello me sofoca y ampara.
E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.
Y fui niño como toda la gente.
Nací en una provincia portuguesa
Y he conocido gente inglesa
Que dice que sé inglés perfectamente.
Gostava de ter poemas e novelas
Publicadas por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure.
Se nesta viagem nem houve procelas!
Gustaba de tener poemas y novelas
Publicadas por Pión y en el Mercure,
Mas es imposible que esta vida dure.
¡Si en este viaje ni hubo tempestades!
A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.
La vida a bordo es una cosa triste
Si bien la gente se divierte a veces.
Hablo con alemanes, suecos e ingleses
Y mi dolor de vivir persiste.
Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
Y pienso que no vale la pena haber
Ido al Oriente y visto la India y China.
41
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.
La tierra es la misma y diminuta
Y hay sólo una manera de vivir.
Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.
Por eso yo fumo opio. Es un remedio.
Soy un convaleciente del Momento.
Vivo en la planta baja del pensamiento
Y me da tedio ver pasar la Vida.
Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já
Pra que fui visitar a índia que há
Se não há índia senão a alma em mim?
Fumo. Me canso. ¡Ah, una tierra donde, al fin,
Muy al este no fuera ya el oeste!
¿Por qué visité la India que hay
Si no hay India sino el alma en mí?
Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talves nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que ma abrigue do meu frio.
Soy desgraciado por mi primogenitura.
Los gitanos robaron mi Suerte.
Tal vez ni así encuentre al pie de la muerte
Un lugar que me abrigue de mi frío.
Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.
Fingí que estudié ingeniería.
Viví en Escocia. Visité Irlanda.
Mi corazón es una abuelita que anda
Pidiendo limosnas a las puertas de la Alegría.
Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smoking-room com o conde—
Um escroc francês, conde de fim de enterro.
¡No llegues a Port-Said, barco de hierro!
Gira a la derecha, ni yo sé hacia dónde.
Paso los días en el fumador con el conde—
Un vividor francés, conde de final de entierro.
Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.
Regreso a Europa disgustado, y en vías
De llegar a ser un poeta sonámbulo.
Soy monárquico mas no católico
Y me gustaba ser las cosas fuertes.
42
Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.
Me gustaba tener creencias y dinero,
Ser la varia gente insípida que vi.
Hoy, al final, no soy sino, aquí,
En un barco cualquier un pasajero.
Não tenho personalidade alguma.
E mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.
No tengo ninguna personalidad.
Destaca más que yo ese criado
De a bordo que tiene una hermosa pose estirada
De lord escocés que ayuna desde hace días.
Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.
No puedo estar en ninguna parte. Mi
Patria es donde no estoy. Soy achacoso y débil.
El comisario de abordo es un bellaco.
Me vio con la sueca... y lo demás él lo adivina.
Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que às vezes me debordo.
Un día escandalizo aquí a bordo,
Sólo para dar de qué hablar a los demás.
No puedo con la vida, y encuentro fatales
Las iras con que a veces me desbordo.
Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.
¡Paso el día fumando, bebiendo cosas,
Drogas americanas que atontan,
Y yo ya tan ebrio sin nada! Dieran
Mejor cerebro a mis nervios como rosas.
Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O fato é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.
Escribo estas líneas. ¡Parece imposible
Que aun teniendo talento mal lo sienta!
El hecho es que esta vida es un huerto
Donde se aburre una alma sensible.
Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Los ingleses son hechos para existir.
No hay gente como esta para estar hecha
43
Com a Tranqüilidad. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.
Con la Tranquilidad. La gente arroja
Un centavo y sale uno de ellos a sonreír.
Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.
Pertenezco a una clase de portugueses
Que después de haber descubierto la India
Se quedaron sin trabajo. La muerte es cierta.
He pensado en esto muchas veces.
Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.
¡Al diablo la vida y la gente que la tiene!
Ni leo el libro de mi cabecera.
Me enfada el Oriente. Es una estera
Que la gente enrolla y deja de ser bella.
Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,
Caigo en el opio por fuerza. Querer
Que pase en limpio una vida de estas
No se puede exigir. Almas honestas
Con horas para dormir y comer,
Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!
¡Qué un rayo las parta! Y esto al final es envidia.
Porque estos nervios son mi muerte.
¡Que no haya un barco que me transporte
Hacia donde nada quiera que no lo vea!
Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.
Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.
¡Ahora! Me fatigaba del mismo modo.
Quería un opio más fuerte para ir de allí
Hacia sueños que acabasen conmigo
Y que me arrojase en algún lodo.
Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O fato essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.
¡Fiebre! Si esto que tengo no es fiebre,
No sé cómo se tiene fiebre y se siente.
El hecho esencial es que estoy enfermo.
Esto está consumado amigos.
44
Veio a noite. Tocou já a primeira
Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia p'la coleira!
Vino la noche, Tocó ya la primera
Corneta para vestirse y la cena.
¡Toda una vida social! ¡Eso! ¡Y marchar
Hasta que la gente salga apergollada!
Porque isto acaba mal e há de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.
Porque esto acaba mal y ha de haber
(¡Cómo no!) sangre y un revólver allá al fin
de este desasosiego que hay en mí
Y no hay forma de resolver.
E quem me olhar, há de me achar banal,
A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...
O meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.
Y quien me mira, ha de hallarme banal,
A mí y a mi vida... ¡Ahora! un rapaz...
Y mi propio monóculo hace
Que pertenezca a un tipo universal.
Ah quanta alma viverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?
¡Ah, cuánta alma habrá, que ande metida
Así como yo en la Rectitud, y como yo mística!
¿Cuántos bajo el frac característico
No tendrán como yo horror a la vida?
Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.
Não fazer nada é a minha perdição.
¡Si al menos por fuera fuese yo tan
interesante como lo soy por dentro!
Voy en el Maelstrom, cada vez más hacia el centro.
No hacer nada es mi perdición.
Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co'os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!
Un inútil. ¡Mas es tan justo serlo!
Pudiera la gente despreciar a los otros
Y, aunque con los codos rotos,
Ser héroe, loco, maldecido o bello!
Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Tengo ganas de llevar mis manos
A la boca y morder en ellas fuerte y castigarme.
45
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.
Sería una ocupación original
Y distraería a los otros, los dizque sanos.
O absurdo, como uma flor da tal índia
Que não vim encontrar na índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a...
Lo absurdo, como una flor de la tal India
Que no vine a encontrar en la India, nace
En mi cerebro harto de cansarse.
Que Dios cambie mi vida o que la acabe...
Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.
Que me deje estar aquí, en esta silla,
Hasta que me metan en el cajón.
Nací para mandarín de condición,
Mas me falta el sosiego, el té y la estera.
Ah que bom que era ir daqui de caída
Pra cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.
¡Ah qué bueno sería ir de aquí en caída
Hacia la tumba por una trampa de estruendo!
La vida me sabe a tabaco rubio.
Nunca hice más que pasar la vida fumando.
E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas
E basta de comédias na minh'alma!
Y al final lo que quiero es fe, es calma,
Y no tener esas sensaciones confusas.
¡Que Dios acabe con esto! Abra las esclusas
¡Y basta de comedias en mi alma!
No Canal de Suez a bordo
A bordo, por el Canal de Suez
46
SONETO JÁ ANTIGO
SONETO YA ANTIGUO
12-1922
12-1922
OLHA, DAISY: quando eu morrer tu hás de
dizer aos meus amigos aí de Londres;
embora não o sintas, que tu escondes
a grande dor da minha morte. Irás de
MIRA, DAISY, cuando yo muera tú has de
Decir a mi amigos de allí de Londres,
Que aunque no lo sientas, escondes
El gran dolor de mi muerte. Irás de
Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes...
que eu nada que tu digas acredito),
contar àquele pobre rapazito
que me deu tantas horas tão felizes,
Londres para York, donde naciste (dices...
No creo nada de lo que digas)
Contad a aquel pobre muchachito
Que me dio tantas horas tan felices,
Embora não o saibas, que morri...
mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
nada se importará... Depois vai dar
Aunque no lo sepas, que morí.
Hasta él, a quien tanto creí amar,
Nada importará... Después ve a dar
a notícia a essa estranha Cecily
que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!
La noticia a esa extraña Cecily
Que pensaba que yo sería grande...
¡Rayos, partan la vida y quien allá ande!
47
ODE TRIUNFAL
ODA TRIUNFAL
6-1914
6-1914
À DOLOROSA LUZ das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
A la dolorosa luz de las grandes lámparas eléctricas de la fábrica
Tengo fiebre y escribo.
Escribo rechinando los dientes, fiera para la belleza de esto,
Esta belleza totalmente desconocida por los antiguos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
¡Oh, ruedas, oh engranajes, r-r-r-r-r-r-r eterno!
¡Fuerte espasmo retenido de los mecanismos en furia!
En furia fuera y dentro de mí,
Por todos mis nervios disecados afuera,
¡Por todas las papilas fuera de todo con que yo siento!
Tengo los labios secos, oh grandes ruidos modernos,
De oíros demasiado cerca,
Y me arde la cabeza de quereros cantar con un exceso
De expresión de todas mis sensaciones,
Con un exceso contemporáneo de vosotras, ¡oh máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Naturaleza tropical—
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Esquilo do
século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos
e por estes volantes,
En fiebre y mirando los motores como una naturaleza tropical—
Grandes trópicos humanos de hierro y fuego y fuerza—
Canto, y canto al presente, y también al pasado y al futuro,
Porque el presente es todo el pasado y todo el futuro
Y hay Platón y Virgilio dentro de las máquinas y en las luces
eléctricas
Sólo porque existieron otrora y fueron humanos Virgilio y Platón,
Y fragmentos de Alejandro Magno tal vez del siglo cincuenta,
Átomos que tendrán fiebre en el cerebro del Esquilo del siglo
cien,
Andan por estas correas de transmisión y por estos émbolos y por
estos volantes,
48
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à
alma.
Rugiendo, rechinando, susurrando, estrujando, ferriando,
Haciéndome un exceso de caricias en el cuerpo en una sola caricia
al alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
¡Ah, poder expresarme todo como se expresa un motor!
¡Ser completo como una máquina!
¡Poder ir en la vida triunfante como un automóvil último modelo!
Poder al menos impregnarme físicamente de todo esto,
Rasgarme todo, abrirme completamente, tornarme poroso
A todos los perfumes de aceite y calores y carbones
¡De esta flora estupenda, negra, artificial e insaciable!
Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de
transmissão!
Horas europeias, produtoras entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés-oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos da estatura do Momento!
¡Fraternidad con todas las dinámicas!
Furia promiscua de ser parte-agente
Del rodar férreo y cosmopolita
De los trenes fuertes,
De las faenas de transporte de los barcos de carga,
Del giro lúbrico y lento de las grúas,
Del tumulto disciplinado de las fábricas,
Y del cuasi silencio susurrante y monótono de las correas de
transmisión!
¡Horas europeas, productoras, entablilladas
Entre máquinas y trabajos utilitarios!
¡Grandes ciudades paradas en los cafés,
En los cafés-oasis de inutilidades ruidosas
Donde cristalizan y se precipitan
Los rumores y los gesto de lo Útil
Y las ruedas, y las ruedas dentadas y las chumaceras del Progreso!
¡Nueva Minerva sin alma de los muelles y de los andenes!
¡Nuevos entusiasmos de la estatura del Momento!
49
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Atividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Picadillies e Avenues de l'Opera que entram
Pela minh'alma dentro!
Quillas de planchas de hierro sonriente acostadas en los diques,
¡O en seco, erguidas, en los planos inclinados de los puertos!
Actividad internacional, transatlántica, Canadian-Pacific
Luces y febriles pérdidas de tiempo en los bares, en los hoteles,
En los Longchamps y Derbies y Ascots,
Y Piccadilly y Avenida de la Ópera que entran
Dentro de mi alma!
Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-la-hó la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes;
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!
¡Qué tal calles, qué tal plazas, qué tal la foule!
¡Todo lo que pasa, todo lo que se detiene frente a los aparadores!
Comerciantes; vagos; vividores exageradamente bien vestidos;
Miembros notorios de clubs aristocráticos;
Escuálidas figuras dudosas; jefes de familia vagamente felices
Y paternales hasta en la cadena de oro que les cruza el chaleco
¡De bolsillo a bolsillo!
¡Todo lo que pasa, todo lo que pasa y nunca pasa!
Presencia demasiado acentuada de las cocotes;
Banalidad interesante (¿y quién sabe lo que hay por dentro?)
De las burguesitas, madre e hija generalmente,
Que andan por la calle sin un fin determinado;
La gracia femenina y falsa de los pederastas que pasan,
lentamente;
¡Y toda la gente simplemente elegante que pasea y se exhibe
Y que a pesar de todo tiene alma!
(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)
(¡Ah, como desearía ser el souteneur de todo esto!)
A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!
La maravillosa belleza de las corrupciones políticas,
Deliciosos escándalos financieros y diplomáticos,
Agresiones políticas en las calles,
Y de vez en cuando el cometa de un regicidio
Que ilumina de Prodigio y Fanfarria los cielos
Usuales y lúcidos de la Civilización cotidiana!
50
Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes—
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfato
E com o tato (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!
Noticias desmentidas de los periódicos,
Artículos políticos insinceramente sinceros,
Noticias passez-à-la-caisse, grandes crímenes—
¡A dos columnas y pase a la segunda página!
¡El olor fresco de la tinta de imprenta!
¡Los carteles pegados hace poco, aún húmedos!
¡Vients-de-paraître amarillos como una cinta blanca!
Cómo los amo a todos, a todos, a todos,
Como os amo de todas las maneras,
Con los ojos y los oídos y con el olfato
Y con el tacto (¡lo que significa para mí palparos!)
¡Y con la inteligencia como una antena que hacéis vibrar!
¡Ah, como todos mis sentidos tienen celo de vosotros!
Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!
¡Abonos, trilladoras de vapor, progresos de la agricultura!
¡Química agrícola, y el comercio casi una ciencia!
¡Oh, muestrario de los agentes viajeros,
De los agentes viajeros, caballeros andantes de la Industria,
Prolongaciones humanas de las fábricas y de las tranquilas oficinas!
Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Oh géneros en los aparadores! ¡oh maniquíes! ¡oh figurines
recientes!
¡Oh, artículos inútiles que todos quiere comprar!
¡Hola!, grandes almacenes con varios departamentos!
¡Hola!, anuncios eléctricos que miran, están y desaparecen!
¡Hola!, todo con que hoy se fabrica, que hoy se distingue de ayer!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias seções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói com que hoje se é diferente
de ontem!
Eh, cimento armado, betom de cimento novos processos!
¡Eh, cemento armado, concreto de cemento, nuevos
procedimientos!
¡Progreso de los armamentos gloriosamente mortíferos!
¡Corazas, cañones, ametralladoras, submarinos, aeroplanos!
Os amo a todos, a todo, como una fiera.
Os amo carnívoramente,
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
51
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!
Pervertidamente y enroscando mi vista
En vosotras, oh grandes cosas, banales, útiles, inútiles,
¡Oh cosas todas modernas,
Oh mis contemporáneas, forma actual y próxima
Del sistema inmediato del Universo!
¡Nueva Revelación metálica y dinámica de Dios!
Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes —
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como uma mulher bela,
Completamente vos possuo como uma mulher bela que não se
ama,
Que se encontra casualmente y se acha interessantíssima.
Oh, fábricas, oh laboratorios, oh music-hall, oh Luna-Parks,
Oh, acorazados, oh puentes, oh diques flotantes—
En mi mente turbulenta e incandescente
Os poseo como a una mujer bella,
Completamente os poseo como a una mujer bella que no se ama,
A la que se encuentra casualmente y hallamos interesantísima.
¡Hola-ho fachadas de las grandes tiendas!
¡Hola-ho elevadores de los grandes edificios!
¡Hola-ho cambios ministeriales!
¡Parlamentos, políticas, relatores de presupuestos,
Presupuestos falsificados!
(Un presupuesto es tan natural como un árbol
Y un parlamento tan bello como una mariposa).
Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamento, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta.)
Hola el interés por todo en la vida,
Porque todo es la vida, desde los brillantes en los aparadores
Hasta la noche, puente misterioso entre los astros
Y el mar antiguo y solemne, bañando las costas
Y siendo misericordiosamente el mismo
Que era cuando Platón era realmente Platón
En su presencia real y en su carne con el alma dentro,
Y hablaba con Aristóteles, que no había de ser su discípulo.
Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.
52
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!
Yo podría morir triturado por un motor
Con el sentimiento de deliciosa entrega de una mujer poseída.
¡Arrojadme a los hornos!
¡Metedme debajo de los trenes!
¡Azotadme a bordo de los barcos!
¡Masoquismo a través de maquinismos!
¡Sadismo de no sé qué moderno y yo mismo y barullo!
Up-lá hó jóckey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!
Hupla-ho jinete ganador del Derby,
¡Morder entre dientes tu gorra bicolor!
(¡Ser tan alto que no pudiera entrar por ninguna puerta!
¡Ah, mirar es para mí una perversión sexual!)
¡Eh-la, eh-la, eh-la, catedrales!
¡Dejadme romper la cabeza en vuestras esquinas,
Y ser recogido de la calle ensangrentado
¡Qué nadie sepa quién soy!
(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)
Eh-lá, eh-lá, eh-lá catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,
E ser levantado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
¡Oh tranvías, funiculares, metropolitanos,
Restregaos en mí hasta el espasmo!
¡Hilla! ¡huía! ¡hilla-ho!
Escupidme carcajadas en plena cara,
¡Oh, automóviles atestados de juerguistas y de putas,
Oh, multitudes cotidianas ni alegres ni tristes en las calles,
Río multicolor anónimo donde me puedo bañar como quería!
¡Ah, qué vidas complejas, qué de cosas en las casas de todo esto!
¡Ah, enterarse de la vida de todos, las dificultades de
dinero,
Los pleitos domésticos, los libertinajes que no se sospechan,
Los pensamientos que cada uno tiene a solas en su cuarto
Y los gestos que hace cuando nadie lo puede ver!
Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla, hilla, hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como
quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah saber-lhes as vidas a todos, as dificultades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
53
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e um fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
No saber todo esto es ignorar todo, oh rabia,
¡Oh, rabia que como una fiebre y un celo y una avidez
Me pone magro el rostro y me agita a veces las manos
Con absurdas crispaciones en plena mitad de las turbas en las
calles llenas de encontronazos!
Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e amo-o—
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como os cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
¡Ah, y la gente ordinaria y sucia, que parece siempre la misma,
Que emplea palabrotas como palabras comunes,
Cuyos hijos roban en las puertas de las mercerías
Y cuyas hijas a los ocho años—y esto lo encuentro hermoso y lo
amo!—
Mas turban hombres de aspecto decente en los vanos de las
escaleras.
¡La gentuza que trepa a los andamios y regresa a casa
Por callejuelas casi irreales de estrechez y podredumbre.
Maravillosa gente humana que vive como los perros,
Que está por debajo de todos los sistemas morales,
Para quien ninguna religión se hizo,
Ni ningún arte se ha creado,
Ni ninguna política destinada a ellos!
¡Como os amo a todos por ser así,
Ni inmorales de tan bajos que sois, ni buenos ni malos,
Inalcanzables por todos los progresos,
Fauna maravillosa del fondo del mar de la vida!
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
(En la noria del huerto de mi casa
El burro da vueltas y vueltas,
Y el misterio del mundo es del tamaño de esto.
Limpia el sudor con el brazo, trabajador descontento.
La luz del sol sofoca el silencio de las esferas
Y habremos todos de morir,
Oh pinares sombríos al crepúsculo,
54
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)
Pinares donde mi infancia era otra cosa
De lo que hoy soy...)
Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ônibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos
os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das
docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!
¡Mas, ah, otra vez la rabia mecánica, constante!
Otra vez la obsesión del movimiento de los autobuses.
Y otra vez la furia de estar yendo al mismo tiempo dentro de
todos los trenes
De todas partes del mundo,
De estar diciendo adiós a bordo de todos los barcos,
Que a estas horas levan anclas o se alejan de los muelles.
¡Oh hierro, oh acero, oh aluminio, oh planchas de hierro ondulado!
¡Oh muelles, oh puertos, oh trenes, oh grúas, oh remolcadores!
¡Eh-la grandes desastres de trenes!
¡Eh-la el derrumbe de las galerías de las minas!
¡Eh-la naufragios deliciosos de los grandes transatlánticos!
¡Eh-la-ho revoluciones aquí, allá, acullá,
¡Cambios de constituciones, guerras, tratados, invasiones,
Ruido, injusticias, violencias, y tal vez pronto el final,
La gran invasión de los bárbaros amarillos por Europa,
Y otro Sol en el nuevo Horizonte!
Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injusticias, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro sol no novo Horizonte!
¿Qué importa todo esto, mas qué importa todo esto
Al fúlgido y encarnado ruido contemporáneo,
Al ruido cruel y delicioso de la civilización actual?
Todo esto acalla todo, salvo el Momento,
El Momento de tronco desnudo y caliente como un horno,
El Momento estridentemente ruidoso v mecánico,
El Momento dinámico pasaje de todas las bacantes
Del hierro y del bronce y de la borrachera de los metales.
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
Eh-a trenes, eh-a puentes, eh-a hoteles a la hora de la cena,
Eh-a aparejos de todas las especies, férreos, brutales, mínimos,
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
55
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Instrumentos de precisión, trituradoras, cavadoras,
Ingenieros, brocas, máquinas rotativas!
¡Eh-a! ¡eh-a! ¡eh-a!
Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafïa-sem-fios, simpatia metálica do Insconciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
¡Eh-a electricidad, nervios enfermos de la Materia!
¡Eia telegrafía sin hilos, simpatía metálica del Inconsciente!
¡Eh-a túneles, eh-a canales, Panamá, Kiel, Suez!
¡Eh-a todo el pasado dentro del presente!
¡Eh-a todo el futuro ya dentro de nosotros! ¡eh-a!
Eia! eia! eia!
¡Frutos de hierro y herramienta del árbol-fábrica cosmopolita!
¡Eh-a! ¡eh-a! ¡eh-a!
No sé que existo hacia dentro. Giro, doy vueltas, me ingenio.
Me enganchan en todos los trenes.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô eia!
Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade!
Me izan en todos los muelles.
Giro en las hélices de todos los barcos.
¡Eh-a! ¡eh-a-ho! ¡eh-a!
¡Eh-a! ¡soy el calor mecánico y la electricidad!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurra por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
¡Eh-a! y los rieles y las casas de máquinas y Europa!
¡Eh-a y hurra por mí todo, y todo máquinas, que trabajan, eh-a!
Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
¡Trepar con todo por encima de todo! ¡Hup-la!
Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hò, hup-lá!
Hé-lá! he-hô Ho-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
¡Hup la, hup la, hup-la-ho, hup-la!
¡He-ha! ¡He-ho! ¡Ho-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!
¡Ah no ser yo toda la gente y toda la parte!
Londres
Londres
56
LISBON REVISTED
LISBOA REVISITADA
1923
1923
NÃO: NÃO quero nada.
Já disse que não quero nada.
NO: NO quiero nada.
Ya dije que no quiero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
¡No me vengan con conclusiones!
La única conclusión es morir.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem
conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
¡No me vengan con estéticas!
¡No me hablen de moral!
¡Aparten de aquí la metafísica!
No me pregonen sistemas completos, no me alineen conquistas
De las ciencias (¡de las ciencias, Dios mío, de las ciencias!)—
¡De las ciencias, de las artes, de la civilización moderna!
¿Qué mal hice a todos los dioses?
Que mal fiz eu aos deuses todos?
¡Si poseen la verdad, guárdensela!
Se têm a verdade, guardem-a!
Soy un técnico, pero tengo técnica sólo dentro de la técnica.
Fuera de eso soy loco, con todo el derecho a serlo.
Con todo el derecho a serlo, ¿oyeron?
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
¡No me fastidien, por amor de Dios!
Não me macem, por amor de Deus!
¿Me querían casado, fútil, cotidiano y tributable?
¿Me querían lo contrario de esto, lo contrario de cualquier cosa?
Si yo fuese otra persona, les daría a todos gusto.
¡Así, como soy, tengan paciencia!
¡Váyanse al diablo sin mí,
O déjenme que me vaya al diablo solo!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
57
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
¿Para qué hemos de ir juntos?
¡No me toquen en el brazo!
No me gusta que me toquen en el brazo. Quiero estar solo,
¡Ya dije que soy un solitario!
¡Ah, que fastidio querer que sea de la compañía!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Oh cielo azul —el mismo de mi infancia—,
¡Eterna verdad vacía y perfecta!
¡Oh suave Tajo ancestral y mudo,
Pequeña verdad donde el cielo se refleja!
¡Oh amargura revisitada, Lisboa de antaño de hoy!
¡Nada me das, nada me quitas, nada eres que yo me sienta!
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
¡Déjenme en Paz! No tardo, yo nunca tardo...
¡Y mientras tarda el Abismo y el Silencio quiero estar solo!
58
DOIS EXCERTOS DE ODES
(FINS DE DUAS ODES, NATURALMENTE)
DOS FRAGMENTOS DE ODAS
(FINALES DE ODAS, NATURALMENTE)
30-6-1914
30-6-1914
I
I
...............................................................................................
VEM, NOITE, antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
...............................................................................................
VEN, NOCHE antiquísima e idéntica,
Noche Reina nacida destronada,
Noche igual por dentro al silencio, Noche
Con estrellas, lentejuelas rápidas
En tu vestido con franjas de infinito.
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.
Ven, vagamente,
Ven, levemente,
Ven, sola, solemne, con las manos caídas
A tu lado, ven
Y trae los montes lejanos al pie de los árboles cercanos,
Funde en un campo tuyo todos los campos que veo,
Haz de la montaña un solo bloque de tu cuerpo,
Bórrale todas las diferencias que de lejos veo,
Todos los caminos que la ascienden,
Todos los diversos árboles que la hacen verde oscuro a lo lejos.
Todas las casas blancas humeando entre los árboles,
Y deja sólo una luz y otra luz y otra más,
En la distancia imprecisa y vagamente perturbadora,
En la distancia súbitamente imposible de recorrer.
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Nuestra señora
De las cosas imposibles que buscamos en vano,
De los sueños que acuden a nosotros en el crepúsculo, en la
ventana,
De los propósitos que nos acarician
En las grandes terrazas de los hoteles cosmopolitas
59
Ao som europeu das músicas e da vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem, e afaga-nos,
Al sonido europeo de las músicas y de las voces lejanas y cercanas,
Y que nos duele al saber que nunca los realizaremos...
Ven, y arrúllanos,
Ven y acarícianos,
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
Bésanos silenciosamente en la frente,
Tan levemente en la frente que no sepamos que nos besan
Sino por una diferencia en el alma
Y un vago sollozo que sale melodiosamente
De lo más antiquísimo de nosotros
Donde arraigan todos esos árboles de maravilla
Cuyos frutos son los sueños que acariciamos y amamos
Porque los sabemos sin relación con lo hay en la vida.
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
Ven solemnísima,
Solemnísima y llena
De una oculta voluntad de sollozar,
Tal vez porque el alma es grande y la vida pequeña,
Y todos los gestos no salen de nuestro cuerpo
Y sólo alcanzamos donde nuestro brazo llega,
Y sólo vemos hasta donde llega nuestra mirada.
Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Ebúrnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Ven, dolorosa,
Mater-Dolorosa de las Angustias de los Tímidos,
Turris-Eburnea de las Tristezas de los Despreciados,
Fresca mano en la frente febril de los humildes,
Sabor de agua sobre los labios secos de los Cansados.
Ven, allá del fondo
Del horizonte lívido,
Ven y arráncame
De la soledad de angustia y de inutilidad
En que retoño.
Recógeme de mi suelo, margarita olvidada,
60
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu te tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Hoja a hoja lee en mí no sé qué sino
Y deshójame a tu agrado,
A tu agrado silencioso y fresco.
Lanza una hoja mía lanza al Norte,
Donde están las ciudades de Hoy que tanto amé;
Lanza otra hoja mía lanza al Sur,
Donde están los mares que abrieron los Navegantes;
Otra hoja mía impulsa al Occidente,
Donde arde al rojo todo lo que tal vez sea el Futuro,
Que sin conocer adoro;
Y la otra y las otras, lo que queda de mí
Tira al Oriente,
Al Oriente de donde viene todo, el día y la fe,
Al Oriente pomposo y fanático y cálido,
Al Oriente excesivo que nunca veré,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? —Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...
Al Oriente budista, brahamánico, sintoísta,
Al Oriente que es todo lo que no tenemos,
Que es todo lo que no somos,
Al Oriente donde —¿quién sabe?— Cristo tal vez aún hoy viva,
Donde Dios tal vez exista realmente mandando todo...
Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso de fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domado rã hipnótica das coisas que se agitam muito!
Ven sobre los mares,
Sobre los mares mayores,
Sobre los mares sin horizontes precisos,
Ven a pasar la mano por el dorso de fiera,
Y cálmalo misteriosamente,
¡Oh, domadora hipnótica de las cosas que se agitan mucho!
Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuces das fés já perdidas,
Ven, cuidadosa,
Ven, maternal,
Pie a pie enfermera antiquísima que te sentaste
En la cabecera de los dioses de las fes ya perdidas,
61
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Y que viste nacer a Jehová y Júpiter,
Y sonreíste porque todo te es falso e inútil.
Vem, noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como una brisa na tarde leve,
Tranquilamente como un gesto materno afagando,
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua mascara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar,
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
Ven noche silenciosa y extática,
Ven a envolver en la noche con manto blanco
Mi corazón...
Serenamente como una brisa en la leve tarde,
Tranquilamente como un gesto materno que acaricia,
Con las estrellas luciendo en tus manos
Y la luna máscara misteriosa sobre tu rostro.
Todo los sonidos suenan de otra manera
Cuando tú vienes.
Cuando entras todas las voces bajan,
Nadie te ve entrar,
Nadie sabe cuándo entraste,
Sino de repente, viendo que todo se recoge,
Que todo pierde las aristas y los colores,
Y que en el alto cielo todavía muy azul
Creciendo ya nítido, o círculo blanco, o sólo luz nueva que viene,
A lua começa a ser real.
La luna comienza a ser real.
II
II
Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes
cidades
E a mão de mistério que abafa o bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exata e precisa e ativa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios
E que misterioso o fundo unânime das ruas,
¡Ah el crepúsculo, la noche que cae, las luces en las grandes
ciudades que se encienden,
Y la mano de misterio que ahoga el bullicio,
Y el cansancio de todo en nosotros que nos corrompe
Con una sensación exacta y precisa y activa de la Vida!
¡Cada calle es un canal de una Venecia de tedios
Y qué misteriosa la intimidad unánime de las calles,
62
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde , ó Mestre,
Ó do «Sentimento de um Ocidental»!
De las calles al caer de la noche, oh Cesário Verde, oh Maestro,
Oh, del «Sentimiento de un Occidental»!
Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas,
Que nem são países, nem momentos, nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Umedece interiormente o instante lento e longínquo!
¡Qué inquietud profunda, qué deseo de otras cosas,
Que ni son países, ni momentos, ni vidas,
Qué deseo tal vez de otros modos de estados de alma
Humedece interiormente el lento y lejano instante!
Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar...
Un horror sonámbulo entre luces que se encienden,
Un pavor tierno y líquido, apoyado en las esquinas
Como un mendigo de sensaciones imposibles
Que no sabe quién las pueda dar...
Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,
Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não
assomaríamos,
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,
Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,
Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,
Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a ideia de Deus
Esculpir corpo e existência nitidamente plausível
Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.
Cuando muera,
Cuando me vaya, vilmente, como toda la gente,
Por aquel camino cuya idea no se puede encarar de frente,
Por aquella puerta a la que, si pudiésemos asomar, no
asomaríamos,
Hacia aquel puerto que el capitán del Barco no conoce,
Sea por esta hora digna de los tedios que tuve,
Por esta hora mística y espiritual y antiquísima,
Por esta hora en que tal vez, hace mucho más tiempo del que
parece,
Platón soñando vio la idea de Dios
Esculpir cuerpo y existencia nítidamente plausibles
Dentro de su pensamiento exteriorizado como un campo.
Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu não sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas,
Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.
Sea por esta hora en que me lleváis a enterrar,
Por esta hora que no sé como vivir,
En que no sé que sensaciones tener o fingir que tengo,
Por esta hora cuya misericordia es torturada y excesiva,
Cuya sombras vienen de cualquier otra cosa que no las cosas,
Cuyo pasaje no roza vestidos en el suelo de la Vida Sensible
Ni deja perfume en los caminos de la Mirada.
63
Cruza as mãos sobre o joelho ó companheira que não tenho nem
quero ter.
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria
—Tu que me conheces— quem eu sou...
Cruza las manos sobre la rodilla, oh, compañera que no tengo
ni quiero tener.
Cruza las manos sobre la rodilla y mírame en silencio
En esta hora en que no puedo ver que tú me miras,
Mírame en silencio y en secreto y pregunta a tí misma
—tú que me conoces— quién soy...
64
15-4-1928
15-4-1928
MESTRE, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?
¡MAESTRO, mi querido maestro!
¡Corazón de mi cuerpo intelectual y entero!
¡Vida del origen de mi inspiración!
Maestro, ¿qué se hizo de ti en esta forma de vida?
Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstrata e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano de terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjetiva...
No te importó si morías, si vivirías, ni tú ni nada,
Alma abstracta y visual hasta los huesos,
Atención maravillosa al mundo exterior siempre múltiple,
Refugio de saudades de todos los dioses antiguos,
Espíritu humano de la tierra materna,
Flor encima del diluvio de la inteligencia subjetiva...
Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo com um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!
¡Maestro, mi maestro!
En la angustia sensacionista de todos los días sentidos,
En la amargura cotidiana de las matemáticas del ser,
Yo, esclavo de todo como un polvo de todos los vientos,
¡Alzo las manos hacia ti, que estás lejos, tan lejos de mí!
Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.
¡Mi maestro y mi guía!
A quien ninguna cosa hirió, ni dolió, ni perturbó,
Seguro como un sol haciendo su día involuntariamente,
Natural como un día mostrando todo,
Maestro mío, mi corazón no aprendió tu serenidad.
Mi corazón no aprendió nada.
Mi corazón no es nada,
Mi corazón está perdido.
Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Maestro, sólo sería como tú si yo hubiera sido tú.
¡Qué triste la gran hora alegre en que primero te oí!
65
Depois tudo é cansaço neste mundo subjetivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Después todo es cansancio en este mundo subjetivado,
Todo es esfuerzo en este mundo donde se quieren cosas,
Todo es mentira en este mundo donde se piensan cosas,
Todo es otra cosa en este mundo donde todo se siente.
Después, he sido como un mendigo dejado a la intemperie
Por la indiferencia de toda la aldea,
Después, he sido como las yerbas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.
Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Por que é me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?
Dejadas en manojos en alineamientos sin sentido.
Después, he sido yo, sí yo, para mi desgracia,
Y yo, por mi desgracia, no soy yo ni otro ni nadie.
Después, por qué enseñaste la nitidez de la vista,
¿Si no me pudiste enseñar a tener el alma con qué verla clara?
¿Por qué me llamaste hacia lo alto de los montes
Si yo, criatura de las ciudades del valle, no sabía respirar?
¿Por qué me diste tu alma si yo no sabía qué hacer con ella
Como quien está cargado de oro en un desierto,
O canta con voz divina entre ruinas?
¿Por qué me despertaste para la sensación y el alma nueva,
Si yo no sabré sentir, si mi alma es siempre mía?
Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!
Pluguiera al Dios ignoto que siempre fuera yo aquel
Poeta decadente, estúpidamente pretencioso,
Que podría al menos venir a agradar,
Y no surgiera en mí la pavorosa ciencia de ver.
¿Para qué me hiciste yo? ¡Me hubieras dejado ser humano!
Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada.
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Feliz el hombre ordinario,
Que tiene su tarea cotidiana normal, tan leve aunque pesada,
Que tiene su vida común,
Para quien el placer es placer y el recreo es recreo,
Que duerme el dormir,
66
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.
Que come comida,
Que bebe bebida, y por eso tiene alegría.
A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.
La calma que tenías, me la diste, y me fue inquietud.
Me liberaste, pero el destino humano es ser esclavo.
Me despertaste, pero el sentido de ser humano es dormir.
67
11-5-1928
11-5-1928
NA NOITE TERRÍVEL, substância natural de todas as noites,
Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incómoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um
medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam
algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
EN LA NOCHE terrible, substancia natural de todas las noches,
la noche de insomnio, substancia natural de todas mis noches,
Recuerdo, velando en modorra incómoda,
Recuerdo lo que hice y lo que pude haber hecho en la vida.
Recuerdo, y una angustia
Se difunde completamente por mí como un frío del cuerpo o
un miedo.
Lo irreparable de mi pasado —¡ése es el cadáver!
Puede ser que sean ilusión todos los demás cadáveres.
Puede que estén vivos en otra parte todos los muertos.
Puede que existan en otro lugar todos mis propios momentos
pasados,
En la ilusión del espacio y del tiempo,
En la falsedad del transcurrir.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso —e foi afinal o melhor de mim— é que nem os Deuses fazem
viver...
Pero lo que yo no fui, lo que no hice, lo que ni siquiera soñé;
Lo que sólo ahora veo que debió hacerse,
Lo que sólo ahora claramente veo que debió haber sido —
Eso que está muerto más allá de todos los Dioses,
Eso —y fue al final lo mejor de mí— pues ni los Dioses hacen
vivir...
Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro—
Se tudo isso tivesse sido assim,
Si en cierto momento
Me hubiera vuelto hacia la izquierda en lugar de hacia la derecha,
Si en cierto momento
Hubiese dicho sí en lugar de no, o no en lugar de sí;
Si en cierta plática
Hubiera tenido las frases que sólo ahora elaboro en la duermevela—
Si todo ello hubiese sido así,
68
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Hoy sería otro, y tal vez el universo entero
Sería insensiblemente llevado a ser otro también.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não
disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
Pero no me volví hacia el lado irreparablemente perdido.
No me vuelvo ni pienso en volverme, y sólo ahora lo percibo;
Pero no dije no o no dije sí, y sólo ahora veo lo que no dije;
Pero las frases que hubo que decir en ese momento se parecen
todas,
Claras, inevitables, naturales,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
La conversación terminada concluyentemente,
El asunto todo resuelto...
Pero sólo ahora, lo que nunca fue ni será hacia atrás, me duele.
O que falhei deveras não tem sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de
sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para
todos os universos,
En lo que fallé de veras no tiene ninguna esperanza,
En ningún sistema metafísico.
Puede ser que para otro mundo yo pueda llevar lo que soñé,
¿Pero podré llevar a otro mundo lo que me olvidé de soñar?
Esto sí, los sueños por haber, son el cadáver.
Lo entierro en mi corazón para siempre, para todo el tiempo, para
todos los universos,
En esta noche en que no duermo y la quietud me cerca
Como una verdad de la que no comparto,
Y allá fuera el luar, como la esperanza que no tengo, es invisible
para mí.
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisivel p’ra
mim.
69
ADIAMENTO
APLAZAMIENTO
14-4-1928
14-4-1928
DEPOIS DE AMANHÃ, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma ...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Después de mañana, sí, sólo después de mañana...
Llevaré el día de mañana pensando en después de mañana,
Y sí será posible; pero hoy no...
No, hoy nada; hoy no puedo.
La persistencia confusa de mi subjetividad objetiva,
El sueño de mi vida real, intercalado,
El cansancio anticipado e infinito,
Un cansancio de mundos para tomar un tranvía...
Esta especie de alma...
Sólo después de mañana...
Hoy quiero prepararme,
Quiero prepararme para pensar mañana en el día siguiente...
Es él que es decisivo.
Tengo ya el plano trazado; pero no, hoy no dibujo planos...
Mañana es el día de los planos.
Mañana me sentaré en el escritorio para conquistar el mundo;
Pero sólo conquistaré el mundo después de mañana...
Tengo ganas de llorar,
De repente tengo ganas de llorar mucho, desde dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a
semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da
minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e práctico
No, no quieran saber nada más, es secreto, no lo digo.
Sólo después de mañana...
Cuando era niño, el circo del domingo me divertía por toda la
semana.
Hoy sólo me divierte el circo del domingo de toda la semana de mi
infancia...
Después de mañana seré otro,
Mi vida ha de triunfar,
Todas mis cualidades reales de inteligente, leído y práctico
70
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
Serán convocadas por un bando...
Pero por un bando de mañana...
Hoy quiero dormir, redactaré mañana...
Por hoy, ¿cuál es el espectáculo que me repetiría la infancia?
Para comprar incluso los boletos de mañana,
Pues para pasado mañana estará bien el espectáculo...
Antes, no...
Pasado mañana tendré la pose pública que mañana estudiaré.
Pasado mañana seré finalmente el que hoy no puedo nunca ser.
Sólo después de mañana...
Tengo sueño como el frío de un perro vagabundo.
Tengo mucho sueño.
Mañana te diré las palabras, o pasado mañana...
Sí, tal vez sólo después de pasado mañana...
O porvir...
Sim, o porvir...
El porvenir...
Sí, el porvenir...
71
TABACARIA
TABAQUERÍA
15-1-1928
15-1-1928
NÃO SOU nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
NO SOY nada.
Nunca seré nada.
No puedo querer ser nada.
A parte de eso, tengo en mí todos los sueños del mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe
quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por
gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos
homens
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa a este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Ventanas de mi cuarto,
De mi cuarto de uno de los millones en el mundo que nadie sabe
quién es
(Y si supiesen, ¿qué sabrían?),
Dais al misterio de una calle cruzada constantemente por gente,
A una calle inaccesible a todos los pensamientos,
Real, imposiblemente real, cierta, desconocidamente cierta,
Con el misterio de las cosas bajo las piedras y los seres,
Con la muerte que mancha de humedad las paredes y hace
blancos los cabellos de los hombres,
Con el Destino que conduce la carroza de todo por el camino de
nada.
Estoy hoy vencido, como si supiese la verdad.
Estoy hoy lúcido, como si estuviese por morir,
Y no tuviese más hermandad con las cosas
Que la de una despedida, tornándose esta casa a este lado de la
calle
La hilera de vagones de un tren, y el silbido de una partida
Dentro de mi cabeza,
Y una sacudida de mis nervios y un chirriar de huesos al arrancar.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Estoy hoy perplejo, como quien pensó y halló y olvidó.
Estoy hoy dividido entre la lealtad que debo
A la Tabaquería del otro lado de la calle, como cosa real por fuera,
Y a la sensación de que todo es sueño, como cosa real por dentro.
72
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Fallé en todo.
Como no hice ningún propósito, tal vez todo fuese nada.
El aprendizaje que me dieron,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Descendí por la ventana trasera de la casa.
Fui al campo con grandes propósitos.
Pero allí sólo encontré yerbas y árboles,
Y cuando había gente era igual a la otra.
Me retiro de la ventana y me siento en una silla. ¿En qué he de
pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser atnesma coisa que não pode haver
tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos
certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —,
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha
razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
¿Qué sé yo lo que seré, yo, que no sé lo que soy?
¿Ser lo que pienso? ¡Pienso ser tanta cosa!
¡Y hay tantos que piensan ser la misma cosa que no puede haber
tantos!
¿Genio? En este momento
Cien mil cerebros se piensan en sueños genios como yo,
Y la historia no señalará, ¿quién sabe? ni a uno,
No habrá sino un muladar para tantas futuras conquistas.
No, no creo en mí.
¡En todos los manicomios hay tantos locos deschavetados con
tantas certezas!
Yo, que no tengo ninguna certeza, ¿soy más cierto o menos cierto?
No, ni en mí...
¿En cuántas buhardillas y no buhardillas del mundo
No están en esta hora genios-para-sí-mismos soñando?
¿Cuántas aspiraciones altas y nobles y lúcidas—
Sí, verdaderamente altas y nobles y lúcidas—,
Y quién sabe si realizables,
¿Nunca verán la luz del sol real ni hallaran oídos de nadie?
El mundo es de quien nace para conquistarlo
Y no para quien sueña que puede conquistarlo, aunque tenga
razón.
He soñado más que Napoleón.
73
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que
Cristo
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de
uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
He abrazado contra el pecho hipotético más humanidades que
Cristo.
Hice filosofías en secreto que ningún Kant escribió.
Pero soy, y tal vez seré siempre, el de la buhardilla,
Aunque no viva en ella;
Seré siempre el que no nació para esto,
Seré siempre sólo el que tenía cualidades;
Seré siempre el que esperó que le abriesen la puerta al pie
de una pared sin puerta,
Y cantó la cantiga del Infinito en un gallinero,
Y escuchó la voz de Dios en un pozo cegado.
¿Creer en mí? No, ni en nada.
Que me derrame la Naturaleza sobre la cabeza ardiente
Su sol, su lluvia, el viento que me despeina,
Y lo demás que venga si viene o que tenga que venir, o que no
venga.
Esclavos cardíacos de las estrellas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o indefinido.
Conquistamos todo el mundo antes de levantarnos de la cama;
Pero nos despertamos y él es opaco,
Nos levantamos y es ajeno,
Salimos de casa y es la tierra entera,
Más el sistema solar y la Vía Láctea y lo Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que
comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de
estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
(Come chocolates, niña;
¡Come chocolates!
Mira que no hay más metafísica en el mundo que la de los
chocolates.
Mira que todas las religiones no enseñan más que la confitería.
¡Come, niña sucia, come!
¡Si pudiera yo comer chocolates con la misma verdad con que tú
los comes!
Pero yo pienso y, al quitarles el papel plateado, que es de estaño,
Arrojo todo al suelo, como tiré la vida.)
74
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
Pero queda al menos de la amargura de lo que nunca seré
La caligrafía rápida de estos versos,
Pórtico hendido hacia lo Imposible.
Pero al menos dedico a mí mismo un desprecio sin lágrimas,
Noble al menos por el gesto amplio con que arrojo
La ropa sucia que soy, sin motivo, para el decurso de las cosas,
Y me quedo en casa sin camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno —não concebo bem o quê—,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritus invocam espíritus invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejos os passeios, vejo os carros que passam.
Vejos os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
(Tú que consuelas, que no existes y por eso consuelas,
O diosa griega, concebida como estatua con vida,
O patricia romana, imposiblemente noble y nefasta,
O princesa de trovadores, gentilísima y colorida,
O marquesa del siglo dieciocho, escotada y distante,
O cocotte célebre del tiempo de nuestros padres,
O no sé qué moderno —no concibo bien qué—,
Todo eso, sea lo que fuera, lo que sea, si puede inspirar ¡qué
inspire!
Mi corazón es un balde vacío.
Como invocan espíritus los que invocan espíritus me invoco
Me invoco a mí mismo y nada encuentro.
Me acerco a la ventana y veo la calle con una nitidez absoluta.
Veo las tiendas, veo las aceras, veo los coches que pasan.
Veo los entes vivos vestidos que se cruzan,
Veo los perros que también existen,
Y todo esto me pesa como un condena al destierro,
Y todo esto es extranjero, como todo.)
Viví, estudié, amé y hasta creí,
Y hoy no hay mendigo al que no envidie sólo por no ser yo.
En cada uno miro los andrajos y las llagas y la mentira,
E penso: talves nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem
cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada
disso);
Y pienso: tal vez nunca hayas vivido ni estudiado ni amado ni
creído
(Porque es posible hacer la realidad de todo eso sin hacer
nada de eso);
75
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem
cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Tal vez hayas existido apenas, como un lagarto a quien cortan
la cola
Y que es cola más acá del lagarto que se retuerce.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Hice de mí lo que no supe,
Y lo que pude hacer de mí no lo hice.
Vestí un disfraz equivocado.
Me tomaron enseguida por quien no era, y no lo desmentí, y me
perdí.
Cuando quise arrancarme la máscara,
Estaba pegada a la cara.
Cuando la arrojé y me vi en el espejo,
Ya había envejecido.
Estaba borracho, y no sabía vestir el disfraz que no me había
quitado.
Arrojé la mascara y dormí en el vestidor
Como un perro tolerado por la gerencia
Por ser inofensivo
Y voy a escribir esta historia para probar que soy sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Esencia musical de mis versos inútiles,
quién pudiera encontrarte como cosas que yo hice,
Y no quedarme siempre enfrente de la Tabaquería de enfrente,
Pisoteando la conciencia de estar existiendo,
Como un tapete con el que tropieza un borracho
O la esterilla que los gitanos roban y no vale nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da alma mal-voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Pero el Dueño de la Tabaquería se asomó a la puerta y se quedó
en ella.
Lo miro con la incomodidad de la cabeza torcida
Y con la incomodidad de una alma que mal entiende.
Él morirá y yo moriré.
76
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de
coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Él dejará el letrero, yo dejaré versos.
Y un día morirá el letrero y también mis versos.
Después morirá la calle donde estuvo el letrero,
Y la lengua en que fueron escritos los versos.
Morirá después el planeta girante en que todo esto sucedió.
En otros satélites de otros sistemas cualquier cosa como nosotros
Continuará haciendo cosas como versos y viviendo debajo de las
cosas como letreros,
Siempre una cosa frente a otra,
Siempre una cosa tan inútil como la otra.
Siempre lo imposible tan estúpido como lo real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério
da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Siempre el misterio del fondo tan cierto como el sueño del
misterio de la superficie,
Siempre ésta o aquella cosa o ni una ni la otra cosa.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Pero un hombre entró en la Tabaquería (¿a comprar tabaco?),
Y la realidad plausible cae de repente sobre mí.
Me incorporo a medias enérgico, convencido, humano,
Y voy a intentar escribir estos versos en los que digo lo contrario.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar
mal disposto.
Enciendo un cigarro al pensar en escribirlos
Y saboreo en el cigarro la liberación de todos los pensamientos.
Sigo el humo como mi camino,
Y gozo, en un momento sensitivo y adecuado,
La liberación de todas las especulaciones
Y la conciencia de que la metafísica es la consecuencia de una
indisposición.
Depois deito-me para trás na cadeira
E contínuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
Después me reclino en la silla
Y sigo fumando.
Seguiré fumando hasta que el Destino me lo permita.
77
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou àjanela.
(Si me casase con la hija de mi lavandera
Tal vez sería feliz.)
Visto esto, me levanto de la silla. Me acerco a la ventana.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das
calças?)
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da
Tabacaria sorriu.
El hombre salió de la Tabaquería (¿guarda el cambio en el bolsillo
del pantalón?).
Ah, lo conozco: es Esteves sin metafísica.
(El Dueño de la Tabaquería llegó a la puerta.)
Como por un instinto divino, Esteves se volvió y me vio.
Hizo una señal de adiós, le grité ¡Adiós, Esteves!, y el universo
Se reconstruye en mí sin ideal ni esperanza, y el Dueño de la
Tabaquería sonrió.
78
APOSTILA
APOSTILLA
11-4-1928
11-4-1928
APROVEITAR o tempo!
Mas o que e o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linhas...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho a Virgílio, à Milton...
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!
¡APROVECHAR el tiempo!
Pero qué es el tiempo, ¿para que yo lo aproveche?
¡Aprovechar el tiempo!
Ni un día sin línea...
El trabajo honesto y superior...
El trabajo para Virgilio, para Milton...
¡Pero es tan difícil ser honesto o ser superior!
¡Es tan poco probable ser Milton o ser Virgilio!
Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos —nem mais nem menos—
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...
Pôr as sensações e castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil...
¡Aprovechar el tiempo!
Arrancar del alma los pedazos precisos —ni más ni menos—
Para con ellos juntar los cubos ajustados
Que hacen estampas ciertas en la historia
(Y están ciertas también del lado de abajo, que no se ve)...
Poner las sensaciones en castillo de naipes, pobre China de las
veladas,
Y los pensamientos en dominó, igual contra igual,
Y la voluntad en carambola difícil...
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos —
Imagens da vida, imagens das vidas, imagens da Vida.
Imágenes de juegos o de paciencias o de pasatiempos—
Imágenes de vida, imágenes de las vidas, Imagen de la Vida.
Verbalismo...
Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça.
Não ter um ato indefinido nem factício...
Não ter um movimiento desconforme com propósitos...
Verbalismo...
Sí, verbalismo...
¡Aprovechar el tiempo!
No tener un minuto que desconozca el examen de conciencia..
No tener un acto indefinido ni ficticio...
No tener un movimiento disconforme con propósitos...
79
Boas maneiras da alma...
Elegância de persistir...
Buenas maneras del alma...
Elegancia de persistir...
Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
¡Aprovechar el tiempo!
Mi corazón está cansado como un mendigo verdadero.
Mi cerebro está listo como un bulto colocado en un rincón.
Mi canto (¡verbalismo!) está tal como está y es triste.
¡Aprovechar el tiempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!
Desde que comencé a escribir pasaron cinco minutos.
¿Los aproveché o no?
Si no sé si los aproveché, ¡¿qué sabré de otros minutos?!
(Passageira que viaja tantas vezes no mesmo compartimento
comigo
No comboio suburbano,
Chegaste a interessar-te por mim?
Aproveitei o tempo olhando para ti?
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto à vida?)
(Pasajera que viajas tantas veces en el mismo compartimento
conmigo
En el tren suburbano,
¿Llegaste a interesarte en mí?
¿Aproveché el tiempo mirándote?
¿Cuál fue el ritmo de nuestro sosiego en el tren andante?
¿Cuál fue el entendimiento que no llegamos a tener?
¿Cuál fue la vida que hubo en esto? ¿Qué fue esto para la vida?)
Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisas,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O regato casual das chuvas que vão acabando,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da terra,
E estremece, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.
¡Aprovechar el tiempo!
¡Ah, déjenme que no aproveche nada!
¡Ni tiempo, ni ser, ni memorias de tiempo o de ser!
Déjenme ser una hoja de árbol, sacudida por la brisa,
La polvareda de un camino, involuntario y solo,
El arroyo casual de las lluvias que se acaban,
El surco que hacen en los caminos las ruedas mientras no vienen
otras,
El trompo del muchacho que va a detenerse,
Y oscila, con el mismo movimiento que tiene la tierra,
Y se estremece, con el mismo movimiento que tiene el alma,
Y cae, como caen los dioses, en el suelo del Destino.
80
DEMOGORGON
DEMOGOGON
12-4-1928
12-4-1928
NA RUA CHEIA de sol vago há casas paradas e gente que anda.
Uma tristeza cheia de pavor esfria-me.
Pressinto um acontecimento do lado de lá das frontarias e dos
movimentos.
EN LA CALLE LLENA de sol vago hay casas detenidas y gente que
camina.
Una tristeza llena de pavor me cala.
Presiento un suceso más allá de las fachadas y de los movimientos.
Não, não, isso não!
Tudo menos saber o que é o Mistério!
Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas,
Não vos ergais nunca!
O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!
¡No, no, eso no!
Todo menos saber lo que es el Misterio!
¡Superficie del Universo, oh Párpados Descendidos,
No os alcéis nunca!
¡La mirada de la Verdad Final no debe poder soportarse!
Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber nada!
A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo,
Debe trazer uma loucura maior que os espaços
Entre as almas e entre as estrelas.
¡Dejadme vivir sin saber nada, y morir sin saber nada!
La razón de haber ser, la razón de haber seres, de haber todo,
Debe traer una locura mayor que los espacios
entre las almas y entre las estrellas.
Não, não, a verdade não! Deixai-me estas casas e esta gente;
Assim mesmo, sem mais nada, estas casase e esta gente...
Que bafo horrível e frio me toca em olhos fechados?
Não os quero abrir de viver! Ó Verdade, esquece-te de mim!
¡No, no, la verdad no! Dejadme estas casas y esta gente;
Tal cual, si nada más, estas casas y esta gente...
¿Qué aliento horrible y frío toca mis ojos cerrados?
¡No los quiero abrir a la vida! ¡Oh Verdad, olvídate de mí!
81
82
Ricardo Reis
83
16-6-1932
16-6-1932
SEVERO NARRO. Cuanto siento, pienso,
Palabras son ideas.
Murmurante, el río pasa, y el sonido que no pasa,
Es nuestro, no del río.
Así quisiera el verso: mío y ajeno
Y por mí mismo leído
SEVERO NARRO. Quanto sinto, penso.
Palavras são ideias.
Murmuro, o rio passa, e o que não passa,
Que é nosso, não do rio.
Assim quisesse o verso: meu e alheio
E por mim mesmo lido.
84
14-2-1933
14-2-1933
PARA SER GRANDE, sé entero: nada
Tuyo exagera o excluye.
Sé todo en dada cosa. Pon cuanto eres
En lo mínimo que haces,
Así en cada lago la luna entera
Brilla, porque alta vive.
PARA SER GRANDE, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
85
31-7-1930
31-7-1930
SERENO AGUARDA el fin que poco tarda.
¿Qué es cualquier vida? Breve soles y sueño.
Cuánto piensas emplea
En no muchos pensamientos.
Para el nauta el mar oscuro es la ruta clara,
Tú, en la confusa soledad de la vida,
A ti mismo te elige
(No sabes de otro) el puerto.
SERENO AGUARDA o fim que pouco tarda.
Que é qualquer vida? Breve sóis e sono.
Quanto pensas emprega
Em não muito pensares.
Ao nauta o mar obscuro é a rota clara.
Tu, na confusa solidão da vida,
A ti mesmo te elege
(Não sabes de outro) o porto.
86
17-11-1923
17-11-1923
COMO si cada beso
Fuera de despedida,
Cloe mía, besémonos, amando.
Tal vez ya nos toque
En el hombro la mano que llama
A la barca que no viene sino vacía;
Y que en el mismo haz
Ata lo que fuimos mutuamente
Y la ajena suma universal de la vida.
COMO se cada beijo
Fora de despedida,
Minha Cloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que já nos toque
No ombro a mão, que chama
A barca que não vem senão vazia;
E que no mesmo feixe
Ata o que mútuos fomos
E a alheia soma universal da vida.
87
12-6-1914
12-6-1914
VEM SENTAR-TE comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadmente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
VEN Y SIÉNTATE conmigo, Lidia, a la orilla del río
Sosegadamente miremos su curso y aprendamos
Que la vida pasa y no estamos con las manos entrelazadas.
(Entrelacemos las manos).
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Después pensemos, niños adultos, que la vida
Pasa y no queda, nada deja y nunca regresa,
Se va hacia un mar muy lejano, se va junto al Hado,
Más lejos que los dioses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber pasar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Desenlacemos nuestras manos pues no hay por que cansarse.
Gozando, no gozando, pasamos como el río.
Más vale saber pasar silenciosamente
Y sin grandes desasosiegos.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Sin amores, ni odios, ni pasiones que alzan la voz,
Ni envidias que dan demasiado movimiento a los ojos,
Ni cuidados, pues teniéndolos el río siempre correría,
Y siempre iría a dar al mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estaroumos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Amémonos tranquilamente, pensando que podríamos,
Si quisiéramos, cambiar besos y abrazos y caricias,
Pero más vale sentarse uno junto al otro
Oyendo correr el río y viéndolo.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Cortemos flores, tómalas y ponlas
En el regazo y que su perfume suavice el momento—
Este momento en que sosegadamente no creemos en nada,
Inocentes paganos de la decadencia.
88
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
Al menos, si fuere sombra antes, te acordarás de mi después
Sin que mi recuerdo te queme, te hiera o te mueva,
Porque nunca entrelazamos las manos, ni nos besamos
Ni fuimos más que niños.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim-á beira-rio.
Pagã triste e com flores no regaço.
Y si antes de mí llevaras el óbolo al barquero sombrío,
Nada tendré que sufrir al acordarme de ti.
Me serás suave a la memoria, recordándote así —a la orilla del río.
Triste pagana y con flores en el regazo.
89
16-6-1914
16-6-1914
AO LONGE os montes têm neve ao sol,
Mas é suave já o frio calmo
Que alisa e agudece
Os dardos do sol alto.
EN LA LEJANÍA los montes tienen nieve al sol,
Pero es suave ya el frío calmado
Que alisa y agudiza
Los dardos del sol alto,
Hoje, Neera, não nos escondamos,
Nada nos falta, porque nada somos.
Não esperamos nada
E temos frio ao sol.
Hoy, Neera, no nos escondamos,
Nada nos falta porque nada somos.
No esperamos nada
Y sentimos frío al sol.
Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece.
Mas tal como es, gocemos el momento,
Solemnes en la alegría levemente,
Y aguardando la muerte
Como quien la conoce.
90
29-8-1915
29-8-1915
BOCAS ROXAS de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;
BOCAS ROJAS de vino,
Frentes blancas bajo rosas,
Desnudos, blancos antebrazos
Reposados sobre la mesa,
Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.
Que así sea, Lidia, el cuadro
En que quedemos, mudos,
Eternamente inscritos
En la conciencia de los dioses.
Antes isto que a vida
Como os homens a vivem,
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.
Antes esto y no la vida
Que los hombres viven,
Llena del negro polvo
Que alzan de los caminos.
Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.
Sólo socorren los dioses
Con su ejemplo a aquellos
Que nada más pretenden
Irse en el río de las cosas.
91
1-6-1916
1-6-1916
OUVI CONTAR que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
OÍ CONTAR que antaño, cuando Persia
Libraba no sé cual guerra,
Cuando la invasión ardía en la Ciudad
Y las mujeres gritaban,
Dos jugadores de ajedrez jugaban
Su juego continuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
A la sombra de amplio árbol miraban
El tablero antiguo,
Y junto a cada uno, esperando sus
Momentos más holgados,
Cuando había movido la pieza, y ahora
Esperaba al oponente,
Un búcaro con vino refrescaba
Sobriamente su sed.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo do xadrez.
Ardían casas, saqueadas eran
Arcas y paredes,
Violadas, las mujeres eran puestas
Contra los muros caídos,
Atravesados por lanzas, los niños
Eran sangre en las calles...
Pero donde estaban, cerca de la ciudad,
Y lejos de su ruido,
Los jugadores de ajedrez jugaban
El juego del ajedrez.
Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
Aunque en los mensajes del yermo viento
Les llegaran los gritos,
92
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.
Y, al pensar, supiesen desde el alma
Que por cierto las mujeres
Y las tiernas hijas violadas eran
En esa distancia próxima,
Aunque, en el momento en que lo pensaban,
Una sombra ligera
Pasara por su frente ajena y vaga,
Pronto sus ojos tranquilos
Volvían su atenta confianza
Al viejo tablero.
Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.
Cuando el rey de marfil está en peligro,
¿Qué importa la carne y el hueso
De las hermanas y de la madre y de los niños?
Cuando la torre no cubre
La retirada de la Reina blanca,
El saqueo poco importa.
Y cuando la mano confiada lleva el jaque
Al rey del adversario,
Poco pesa en el alma que allá lejos
Estén muriendo hijos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(E ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif’rentes.
Aunque, de repente, sobre el muro
Surja la sañuda cara
De un guerrero invasor, y pronto deba
En sangre allí caer
El solemne jugador de ajedrez,
El momento antes de este
(Es aún dado al cálculo de un lance
Para el efecto horas después)
Se entrega aún al juego predilecto
De los grandes indiferentes.
93
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.
Caigan ciudades, sufran pueblos, cese
La libertad y la vida.
Los haberes tranquilos y amados
Arden y que se arranquen
Mas cuando la guerra los juegos interrumpa,
Esté el rey sin jaque,
Y el peón de marfil más avanzado
Dispuesto a comprar la torre.
Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Hermanos míos amando a Epicuro
Y a entenderlo más
De acuerdo con nosotros que con él,
Aprendamos en la historia
De los calmados jugadores de ajedrez
Cómo pasar la vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
Que todo lo serio poco nos importe,
Lo grave poco pese,
El natural impulso de los instintos
Cede al inútil goce
(Bajo la tranquila sombra de la arboleda)
De jugar un buen jugo.
O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.
Lo que llevamos de esta vida inútil
Tanto vale si es
La gloria, la fama, el amor, la ciencia, la vida,
Como si fuera apenas
La memoria de un juego bien jugado
Y una partida ganada
A un jugador mejor.
A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
La gloria pesa como un fardo caro,
La fama como la fiebre,
94
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
El amor cansa pues es un serio y busca,
La ciencia nunca encuentra,
Y la vida pasa y duele porque lo conoce...
El juego del ajedrez
Prende el alma toda, pero perdido, poco
Pesa, pues no es nada.
¡Ah! Bajo las sombras que sin querer nos aman,
Con un búcaro de vino
Al lado y sólo atentos a la inútil faena
Del juego de ajedrez
Aunque el juego sea apenas sueño
Y no haya compañero de juego,
Imitemos a los persas de esta historia,
Y mientras allá fuera,
O cerca o lejos, la guerra y la patria y la vida
Llaman por nosotros dejemos
Que en vano nos llamen, cada uno de nosotros
Bajo las sombras amigas
Soñando, él y los compañeros de juego y el ajedrez
Su indiferencia.
Ah! sob as sombras que sem q’rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só a inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença
95
1-6-1916
1-6-1916
PREFIRO ROSAS, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.
PREFIERO ROSAS, amor mío, a la patria,
Y antes amo magnolias
Que a la gloria y la virtud.
Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.
Siempre que la vida no me canse, dejo
Que la vida por mí pase
Siempre que yo sea el mismo.
Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,
Qué importa al que ya nada importa
Que uno pierda y otro venza,
Si la aurora raya siempre,
Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o outono cessam?
¿Si cada año con la Primavera
Las hojas aparecen
Y con el otoño cesan?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?
¿Y lo demás, las otras cosas que los humanos
Acrecientan a la vida,
Me aumentan en el alma?
Nada, salvo o desejo de indif rença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.
Nada, salvo el deseo de indiferencia
Y la confianza blanda
En la hora fugitiva.
96
10-8-1932
10-8-1932
NINGUÉM a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
De penas.
NADIE a otro ama, sino que ama
Lo que de sí hay en él, o se supone.
Que no te pese que no te amen. Te sienten
Quien eres, y eres extranjero.
Cuida de ser quien eres. Te aman o nunca.
Firme contigo, sufrirás avaro
De penas.
97
9-6-1932
9-6-1932
LÍDIA, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde que estejamos.
LIDIA, ignoramos. Somos extranjeros
Donde quiera que estemos.
Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos. Tudo é alheio
Nem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos o retiro
Onde esconder-nos, tímidos do insulto
Do tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Como um segredo dito nos mistérios,
Seja sacro por nosso.
Lidia, ignoramos, somos extranjeros
Donde quiera que habitemos. Todo es ajeno
Y no habla nuestro idioma.
Hagamos de nosotros el retiro
Donde escondernos, tímidos por el insulto
Del tumulto del mundo.
¿Qué quiere el amor más que no ser de los otros?
Como un secreto dicho en los misterios,
Sea sagrado por nuestro.
98
28-9-1932
28-9-1932
NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
QUEDA de nada. Nada somos.
Un poco al sol y al aire nos retrasamos
De la irrespirable tiniebla que nos pesa
De la humilde tierra impuesta,
Cadáveres aplazados que procrean.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
Leyes hechas, estatuas vistas, odas terminadas—
Todo tiene su cueva, si nosotros, carnes
A las que un íntimo sol da sangre, tenemos
Poniente, ¿Por qué no ellas?
Somos cuentos contando cuentos, nada.
99
2-3-1933
2-3-1933
QUERO IGNORADO, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.
QUIERO IGNORADO, y sereno
Por ignorado, y propio
Por sereno llenar mis días
De no querer más de ellos.
Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.
A los que la riqueza toca
El oro irrita la piel
A los que la fama sopla aliento
Empaña la vida.
Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada ‘spera
Tudo que vem é grato.
Para los que la felicidad
Es sol, vendrá la noche.
Pero al que nada espera
Todo lo que venga es grato.
100
3-6-1926
3-6-1926
JÁ SOBRE a fronte vã se me acinzenta
O cabelo do jovem que perdi.
Meus olhos brilham menos.
Jã não tem jus a beijos minha boca.
Se me ainda amas, por amor não ames:
Traíras-me comigo.
YA SOBRE la frente vana encanece
El pelo del joven que perdí.
Mis ojos brillan menos.
No tiene ya derecho a besos mi boca.
Si me amas todavía, por amor no ames:
Me traicionarías conmigo.
101
28-9-1932
28-9-1932
NÃO SÓ VINHO, mas nele o olvido, deito
Na taça: serei ledo, porque a dita
É ignara. Quem, lembrando
Ou prevendo, sorrira?
Dos brutos, não a vida, senão a alma,
Consigamos, pensando; recolhidos
No impalpável destino
Que não ‘spera nem lembra.
Com mão mortal elevo à mortal boca
Em frágil taça o passageiro vinho,
Baços os olhos feitos
Para deixar de ver.
NO SOLO VINO, sino en él el olvido echo
En la copa: seré alegre pues la dicha
Es ignara. ¿Quién, recordando
O previendo, sonriera?
De los brutos, no la vida, sino el alma,
Consigamos, pensando recogidos
En el impalpable destino
Que no espera ni recuerda.
Con mano mortal elevo a la mortal boca
En frágil copa el pasajero vino,
Empañados los ojos hechos
Para dejar de ver.
102
13-6-1926
13-6-1926
QUANTA TRISTEZA e amargura afoga
Em confusão a ‘streita vida! Quanto
Infortúnio mesquinho
Nos oprime supremo!
Feliz é o bruto que nos verdes campos
Pasce, para si mesmo anónimo, e entra
Na morte como em casa;
Ou o sábio que, perdido
Na ciência, a fútil vida austera eleva
Além da nossa, como o fumo que ergue
Braços que se desfazem
A um céu inexistente.
¡CUANTA TRISTEZA y amargura ahoga
En confusión la estrecha vida!
¡Cuánto infortunio mezquino
Nos oprime supremo!
Feliz del bruto que en los verdes campos
Pace, para sí mismo anónimo, y entra
En la muerte como en casa.
O el sabio que, perdido
En la ciencia, la fútil vida austera eleva
Más allá de la nuestra, como el humo que alza
Brazos que se deshacen
A un cielo inexistente.
103
25-12-1923
25-12-1923
OLHO os campos, Neera,
Campos, campos, e sofro
Já o frio da sombra
Em que não terei olhos.
A caveira ante-sinto
Que serei não sentindo,
Ou só quanto o que ignoro
Me incógnito ministre.
E menos ao instante
Choro, que a mim futuro,
Súbdito ausente e nulo
Do universal destino.
MIRO los campos, Neera,
Campos, campos, y sufro
Ya el frío de la sombra
En que no tendré ojos.
La calavera presiento
Que seré no sintiendo,
O sólo cuanto lo que ignoro
Me entregue incógnito.
Y menos al instante
Lloro, que a mí futuro,
Subdito ausente y nulo
Del universal destino.
104
105
Alberto Caeiro
106
O GUARDADOR DE REBANHOS
EL GUARDADOR DE REBAÑOS
VII
VII
DA MINHA ALDEIA vejo quanto da terra se pode ver no Universo.
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
DESDE MI ALDEA veo cuanto de la tierra se puede ver del Universo.
Por eso mi aldea es tan grande como cualquier otra tierra
Porque soy del tamaño de lo que veo
Y no del tamaño de mi altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurran o nosso olhar para longe de
todo céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
En las ciudades la vida es más pequeña
Que aquí en mi casa en la cima de este monte
En la ciudad las grandes casas cierran la mirada con llave,
Esconden el horizonte empujan nuestra mirada lejos de todo el
cielo,
Nos hacen pequeños porque nos sacan todo y así no podemos
mirar,
Y nos hacen pobres porque nuestra única riqueza es ver.
VIII
VIII
NUM MEIO-DIA de fim de primavera
tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva.
E a arrancar flores para as deitar fora.
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
EN UN MEDIODÍA de fin de primavera
Tuve un sueño como una fotografía.
Vi a Jesucristo bajar a la tierra.
Vino por la falda de un monte
Nuevamente como un niño,
Corriendo y rodando por la yerba
Y arrancando flores para tirarlas
Con una risa que se oía a lo lejos.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
Había huido del cielo,
Era demasiado nuestro para fingirse
La segunda persona de la Trinidad.
107
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas—
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
En el cielo todo era falso, todo estaba en desacuerdo
Con flores y árboles y piedras.
En el cielo debía estar siempre serio
Y alguna vez volverse hombre nuevamente
Y subir a la cruz, y estar siempre muriendo
Con una corona hecha toda de espinos
Y los pies clavados con un clavo con cabeza,
Y hasta con un paño alrededor de la cintura
Como los negros en las ilustraciones.
Ni siquiera le dejaban tener padre y madre
Como los demás niños.
Su padre era dos personas—
Un viejo llamado José, que era carpintero,
Y que no era su padre;
Y otro padre que era una paloma estúpida,
La única paloma fea del mundo
Porque no era del mundo ni era paloma.
Y su madre no había amado antes de tenerlo.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele unha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
No era mujer; era la maleta
En la que él había venido del cielo.
Y que rían que tan sólo nacido de madre,
Y sin padre para amar con respeto,
¡Predicara la bondad y lajusticia!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espíritu Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Como o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
Un día en que Dios se hallaba durmiendo
Y el Espíritu Santo andaba volando,
Fue a la caja de los milagros y robó tres.
Con el primero hizo que nadie supiera que había huido.
Con el segundo se creó eternamente humano y niño.
Con el tercero creó un Cristo eternamente en la cruz
108
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Y lo dejó clavado en la cruz que hay en el cielo
Y sirve de modelo a las demás.
Después huyó hacia el sol
Y bajó por el primer rayo que cogió.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
Hoy vive conmigo en mi aldea.
Es un lindo niño risueño y natural.
Se limpia la nariz con el brazo derecho,
Chapotea en los charcos,
Arranca flores, las quiere y las olvida.
Arroja piedras a los burros,
Roba fruta en las huertas
Y huye de los perros llorando y gritando.
Y, porque sabe que a ellas no les gusta
Y que todos se ríen,
Corre detrás de las muchachas
Que van en grupo por los caminos
Con los cántaros en la cabeza
Y les levanta las faldas.
A mini ensinou-me tudo.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
A mí me enseñó todo.
Me enseñó a mirar las cosas.
Me muestra todas las cosas que hay en las flores.
Me hace ver como son graciosas las piedras
Cuando las tenemos en la mano
Y las mira despacio.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espíritu Santo coça-se com o bico
Me habla muy mal de Dios.
Dice que es un viejo estúpido y enfermo,
Siempre escupiendo en el suelo
Y diciendo groserías.
La Virgen María pasa las tardes de la Eternidad tejiendo calcetas
Y el Espíritu Santo se rasca con el pico
109
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou—
«Se é que ele as criou, do que duvido»—
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Y se retrepa en las sillas y las ensucia.
Todo en el cielo es estúpido como en la iglesia católica.
Me dice que Dios nada entiende
De las cosas que creó—
«Si es que él las creó, que lo dudo»—
«Él dice, por ejemplo, que los seres cantan su gloria,
Pero los seres no cantan nada,
Si cantaran serían cantores.
Los seres existen y nada más,
Y por eso se llaman seres.»
Y después, cansados de hablar mal de Dios,
El niño Jesús se duerme en mis brazos
Y lo llevo cargando hacia la casa.
..............................................................................................
.......................................................................................
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
Ele por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
Él vive conmigo en mi casa a la mitad del monte.
Él es el eterno niño, el Dios que faltaba.
Él es lo humano que es natural.
Él es lo divino que sonríe y que juega.
Y así es que sé con toda certeza
Que es él el Niño Jesús verdadero.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
Y el niño tan humano que es divino
Es ésta mi cotidiana vida de poeta,
Y porque siempre está conmigo soy siempre poeta,
Y mi mínima mirada
Me llena de sensación,
Y el más pequeño sonido, sea lo que fuere,
Parece hablar conmigo.
El Niño Nuevo que habita donde vivo
Me da una mano a mí
110
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
Y la otra a todo lo que existe
Y así vamos los tres por el camino que haya,
Brincando y cantando y riendo
Y gozando nuestro secreto común
Que es el de saber en todas partes
Que no hay misterio en el mundo
Y que todo vale la pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O eu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
El Niño Eterno me acompaña siempre.
La dirección de mi mirada es la que señala su dedo.
Mi oído atento alegremente a todos los sonidos
Son las cosquillas que él me hace en las orejas, jugando.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Nos llevamos tan bien uno con el otro
En compañía de todo
Que nunca pensamos uno en el otro,
Pero vivimos juntos siendo dos
En un íntimo acuerdo
Como la mano derecha y la izquierda.
Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Al anochecer jugamos a la matatena
En el escalón de la puerta de la casa,
Graves como conviene a un dios y a un poeta,
Y como si cada piedra
Fuese todo un universo
Y fuese por eso un gran peligro para ella
Dejarla caer al suelo.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não saõ reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Después le cuento historias de las cosas sólo de los hombres
Y él sonríe porque todo es increíble.
Se ríe de los reyes y de los que no son reyes,
Y le da pena oír hablar de las guerras,
Y del comercio y de los barcos,
111
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Que humean en el aire de alta mar.
Porque él sabe que todo eso falta a aquella verdad
Que una flor tiene al florecer
Y que anda con la luz del sol
Cambiando los montes y los valles,
Y haciendo que duelan los ojos por los muros enjalbegados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Después él se duerme y yo lo acuesto.
Lo llevo en brazos adentro de la casa
Y lo acuesto, desnudándolo lentamente
Como si siguiera un ritual muy limpio
Y del todo maternal hasta que está desnudo.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
El duerme dentro de mi alma
Ya veces despierta en la noche
Y juega con mis sueños.
Coloca a unos piernas arriba,
Pone a unos encima de otros
Y aplaude solo
Sonriendo a mi sueño.
..............................................................................................
..............................................................................................
Quando eu morrer, fìlhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me historias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Cuando muera, hijito.
Que sea yo el niño, el más pequeño.
Tómame en tus brazos
Y llévame hacia adentro de tu casa.
Desnuda mi ser cansado y humano
Y acuéstame en tu cama.
Y cuéntame historias, si despierto,
Para que vuelva a dormir.
Y dame sueños tuyos para que juegue
Hasta que nazca cualquier día
Que tú sabes cuál es.
112
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
Esta es la historia de mi Niño Jesús.
¿Por qué razón que se percibe
No ha de ser ella más verdadera
Que todo cuanto los filósofos piensan
Y todo cuanto las religiones enseñan?
IX
IX
SOU UM guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
SOY UN guardador de rebaños.
El rebaño es mis pensamientos
Y mis pensamientos son todos sensaciones.
Pienso con los ojos y con los oídos
Y con las manos y los pies
Y con la nariz y la boca.
Pensar una flor es verla y olerla
Y comer un fruto es saberle el sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Por eso cuando en un día de calor
Me siento triste de gozarlo tanto,
Y me acuesto en la yerba,
Y cierro los ojos calientes,
Siento todo mi cuerpo acostado en la realidad,
Sé la verdad y soy feliz.
113
X
X
«OLA, GUARDADOR de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?»
«HOLA, GUARDADOR de rebaños
Ahí, a la orilla del camino,
¿Qué te dice el viento que pasa?»
«Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?»
«Que es viento y que pasa,
Y que ya pasó antes,
Y que pasará después.
Ya ti, ¿qué te dice?»
«Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memória e de saudades
E de cousas que nunca foram.»
«Muchas más cosas que eso.
Me habla de muchas otras cosas.
De recuerdos y de saudades
Y de cosas que nunca fueron».
«Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.»
«Nunca oíste pasar el viento.
El viento sólo habla del viento.
Lo que le oíste fue mentira,
Y la mentira está en ti».
XI
XI
AQUELA SENHORA tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...
AQUELLA SEÑORA tiene un piano
Que es agradable escuchar pero no es el correr de los ríos
Ni el murmullo que hacen los árboles...
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvido
E amar a Naturaleza.
¿Para qué se necesita tener un piano?
Es mejor tener oídos
Y amar a la Naturaleza.
114
XII
XII
OS PASTORES de Virgílio tocavam avenas e outras cousas
E cantavam de amor literariamente.
LOS PASTORES de Virgilio tocaban flautas y otras cosas
Y cantaban de amor literariamente.
(Depois — eu nunca li Virgílio.
Para que o havia eu de ler?)
(después —yo nunca leí a Virgilio.
¿Para qué habría yo de leerlo?)
Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a Naturaleza é bela e antiga.
Pero los pastores de Virgilio, pastores, son Virgilio,
Y la Naturaleza es bella y antigua.
XIII
XIII
LEVE, LEVE, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.
LEVE, LEVE, muy leve,
Un viento muy leve pasa
Y se va, siempre muy leve.
Y yo no sé lo que pienso
Ni busco saberlo
XIV
XIV
NÃO ME IMPORTO com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior.
NO ME IMPORTAN las rimas. Raras veces
Hay dos árboles iguales, uno al lado del otro.
Pienso y escribo así como las flores tienen color
Mas con menos perfección en mi modo de expresarme
Porque me falta la simplicidad divina
De ser todo sólo mi exterior.
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento...
Miro y me conmuevo,
Me conmuevo como el agua que corre cuando el suelo se inclina,
Y lo que escribo es natural como cuando se eleva el viento...
115
XV
XV
AS QUATRO canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou...
LAS CUATRO canciones que siguen
Se separan de todo lo que pienso,
Mienten a todo lo que siento,
Son lo contrario de lo que soy...
Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam...
Estando doente devo pensar o contrário.
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente),
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira...
Devo ser todo doente — ideias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.
Las escribí estando enfermo
Y por eso ellas son naturales
Y concuerdan con lo que siento,
Concuerdan con lo que no concuerdan...
Estando enfermo debo pensar lo contrario
De lo que pienso cuando estoy sano.
(Si no, no estaría enfermo),
Debo sentir lo contrario de lo que siento
Cuando tengo salud,
Debo mentir a mi naturaleza
De criatura que siente de cierta manera...
Debo ser todo enfermo —ideas y todo.
Cuando estoy enfermo, no estoy enfermo para otra cosa.
Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são a paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário...
Por eso estas canciones que me reniegan
No son capaces de renegarme
Y son el paisaje de mi alma en la noche,
La misma, al contrario...
XVI
XVI
QUEM ME DERA que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
OJALA que mi vida fuese un carro de bueyes
Gimiendo en el camino por la mañana, muy temprano,
116
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Y que vuelve después hacia donde vino
Casi al anochecer por el mismo camino.
Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas.
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eujá não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
Yo no debí tener esperanzas, sólo debí tener ruedas...
Mi vejez no tenía arrugas ni el pelo blanco...
Cuando ya no sirviese, me sacarían las ruedas
Quedando yo abandonado y roto en el fondo de una barranca.
XVII
XVII
NO MEU PRATO que mistura de Natureza!
As minhas irmãs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza.,.
EN MI PLATO ¡qué mezcla de Naturaleza!
Mis hermanas las plantas,
Las compañeras de las fuentes, las santas
A quien nadie reza...
E cortam-as e vêm à nossa mesa
E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tendo mantas
Pedem «Salada», descuidosos...,
Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela tem,
As primeiras cousas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde a pomba apareceu
O arco-íris se esbateu...
Y las cortan y vienen a nuestra mesa
Y en los hoteles los huéspedes ruidosos,
Que llegan con correas envolviendo mantas
Piden «Ensalada», descuidados...,
Sin pensar que exigen a la Tierra Madre,
Su frescura y sus hijos primogénitos,
Las primeras palabras verdes que ella tiene,
Las primeras cosas vivas e iridiscentes
Que Noé vio
Cuando bajaron las aguas y la cima de los montes
Verde y alagada surgió
Y en el aire por donde apareció la paloma
El arcoiris se esfumó...
117
XVIII
XVΠI
QUEM ME DERA que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...
OJALA yo fuera el polvo del camino
Y los pies de los pobres me pisaran...
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...
Ojalá yo fuera los ríos que corren
Y que las lavanderas estuviesen en mi orilla...
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...
Ojalá yo fuera los chopos a la orilla del río
Y tuviese sólo el cielo arriba y el agua debajo.
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...
Ojalá yo fuera el burro del molinero
Y que él me pegase y me estimase...
Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...
Antes eso que ser el que atraviesa la vida
Mirando tras de sí con mucha pena...
XIX
XIX
O LUAR quando bate na relva
Naõ sei que cousa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas...
EL LUAR cuando ilumina el pasto
No se que cosa me recuerda...
Me recuerda la voz de la sirvienta vieja
Contándome cuentos de hadas.
Y de como Nuestra Señora vestida de mendiga
Andaba por la noche en los caminos
Socorriendo niños maltratados...
Se eu já não posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?
Si ya no puedo creer que eso es verdad,
¿Para qué el luar ilumina el pasto?
118
XX
XX
O TEJO é mais belo que o rio flue corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
EL TAJO es más bello que el río que corre por mi pueblo
Pero el Tajo no es más bello que el río que corre por mi pueblo
Porque el Tajo no es el río que corre por mi pueblo.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
El Tajo tiene grandes barcos
Y navega en él todavía,
Para aquellos que ven en todo lo que allá no está,
La memoria de las naves.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
E mais livre e maior o rio da minha aldeia.
El Tajo desciende de España
Y el Tajo entra en el mar en Portugal.
Eso todos lo sabemos.
Pero pocos saben cuál es el río de mi pueblo
Y hacia adonde va
Y de dónde viene.
Y por eso, porque pertenece a menos gente,
Es más libre y más ancho el río de mi pueblo.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
Por el Tajo se va al Mundo.
Más allá del Tajo está América
Y la fortuna para los que la encuentran.
Nadie pensó nunca en lo que hay más allá
Del río de mi pueblo.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
El río de mi pueblo no hace pensar en nada.
Quien está a su orilla sólo está a su orilla.
119
XXI
XXI
SE EU PUDESSE trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
E preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
SI YO PUDIERA morder toda la tierra
Y sentirle un sabor,
Sería más feliz por un momento...
Mas yo no siempre quiero ser feliz
Hay que ser de vez en cuando infeliz
Para poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade como a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...
No todos los días son de sol,
Y la lluvia, cuando falta mucho, se ruega.
Por eso tomo la infelicidad no la felicidad
Naturalmente, como quien no se extraña
Que haya montañas y llanuras
Y que haya rocas y yerbas.
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...
Lo que se necesita es ser tranquilo y natural
En la felicidad o la infelicidad,
Sentir como quien mira,
Pensar como quien anda,
Y cuando se va a morir, acordarse de que el día muere,
Y que el poniente es bello y es bella la noche que queda..
Así es y que así sea...
XXII
XXII
COMO QUEM num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...
COMO QUIEN en un día de verano abre la puerta de la casa
Y observa el calor de los campos con todo su rostro,
A veces, de repente, me golpea la Naturaleza con fuerza
En la suma de mis sentidos,
Y me quedo confundido, perturbado, queriendo entender
No sé bien como ni qué...
120
Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?
Quando o Verão me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...
Pero ¿quién me dijo que debía querer entender?
¿Quién me dijo que habría que entender?
Cuando el verano me pasa por el rostro
La mano leve y caliente de su brisa,
Sólo debo sentir agrado porque es brisa
O sentir desagrado porque está caliente,
Y de cualquier modo que la sienta,
Así, porque así lo siento, mi deber es sentirlo...
XXIII
XXIII
O MEU OLHAR azul como o céu
E calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta...
MI MIRADA azul como el cielo
Es tranquila como el agua al sol.
Es así, azul y tranquila,
Porque no interroga ni se espanta...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo.
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol...
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço.
Para não parecer que penso nisso...)
Si yo interrogara y me espantase
No nacerían flores nuevas en los prados
Ni cambiaría nada en el sol para que se hiciera más bello.
(Aunque si nacieran flores nuevas en el prado
Y si el sol se hiciera más bello,
Yo sentiría menos flores en el prado
Y hallaría más feo el sol...
Porque todo es como es y así es,
Y yo acepto y no agradezco,
Para no parecer que pienso en eso...)
XXXV
XXXV
O LUAR através dos altos ramos,
Dizem os poetas todo que ele é mais
EL LUAR a través de las altas ramas,
Dicen todos los poetas que él es más
121
Que o luar através dos altos ramos.
Que el luar a través de las altas ramas.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
E, alem de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.
Mas para mí, que no sé lo que pienso,
Lo que el luar a través de las altas ramas,
Es, además de ser
El luar a través de las altas ramas,
Es no ser más
Que el luar a través de las altas ramas.
XXXVI
XXXVI
E HÁ POETAS que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...
Y HAY POETAS que son artistas
Y trabajan sus versos
¡Como un carpintero las tablas!...
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.
¡Qué triste no saber florecer!
Tener que poner verso sobre verso, como quien construye un muro
Y ver si quedó bien y derribarlo si no es así!...
Cuando la única casa artística es toda la Tierra
Que cambia y está siempre bien y es siempre la misma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divinidade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.
Pienso en esto, no como quien piensa, sino como quien respira,
Y miro las flores y sonrío...
No sé si ellas me comprenden
Ni si yo las comprendo,
Pero sé que la verdad está en ellas y en mí
Y en nuestra común divinidad
De dejarnos ir y vivir por la Tierra
Y llevar en brazos por las Estaciones contentos
Y dejar que el viento cante para adormecernos
Y no tener ensueños en nuestro sueño.
122
XXXVII
XXXVII
COMO UM GRANDE borrão de fogo sujo
O sol posto demora-se nas nuvens que ficam.
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
Debe ser dum comboio longínquo.
COMO UN GRAN borrón de fuego sucio
El sol poniente se demora en las nubes que quedan.
A lo lejos se escucha un vago silbido en la tarde serena.
Debe ser de un tren lejano.
Neste momento vem-me uma vaga saudade
E um vago desejo plácido
Que aparece e desaparece.
En este momento me viene una vaga saudade
Y un vago deseo plácido
Que aparece y desaparece.
Também às vezes, à flor dos ribeiros,
Formam-se bolhas na água
Que nascem e se desmancham
E não têm sentido nenhum
Salvo serem bolhas de água
Que nascem e se desmancham.
También, a veces, en la superficie de los riachuelos,
Se forman burbujas en el agua
Que nacen y se deshacen
Y no tienen ningún sentido
Salvo el de ser burbujas de agua
Que nacen y se deshacen.
XXXVIII
XXXVIII
BENDITO SEA el mismo sol de otras tierras
Que me hermana con todos los hombres
Porque todos los hombres en un momento del día, lo miran como
yo,
Y en ese puro momento
Limpio y sensible
Regresan lacrimosamente
Y con un suspiro que mal sienten
Al hombre verdadero y primitivo
Que veía al Sol nacer y aún no lo adoraba.
Porque eso es natural —más natural
Que adorar al oro y a Dios
Y el arte y la moral...
BENDITO SEJA o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu,
E nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural — mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e amoral...
123
XXXIX
XXXIX
O MISTÉRIO das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens
pensam delas,
Rio como un regato que soa fresco numa pedra.
¿EL MISTERIO de las cosas, dónde está?
¿Dónde está que no aparece
para mostraros al menos que es misterio?
¿Qué sabe de eso el río y qué sabe el árbol?
Y yo, que no soy más que ellos ¿Qué sé de eso?
Siempre que miro las cosas y pienso en lo que los hombres
piensan de ellas,
Río como un arroyo que suena fresco entre las piedras.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
E mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Porque el único sentido oculto de las cosas
Es que no tienen ningún sentido oculto,
Es más extraño que todas las extrañezas
Y que todos los sueños de los poetas
Y los pensamientos de todos los filósofos,
Que las cosas sean realmente lo que parecen ser
Y que no haya nada que comprender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
Sí, he aquí lo que mis sentidos aprendieron solos: —
Las cosas no tienen significado: tienen existencia.
Las cosas son el único sentido oculto de las cosas.
XL
XL
7-5-1914
7-5-1914
PASA UNA MARIPOSA delante de mí
Y por primera vez en el universo yo veo
Que las mariposas no tienen color ni movimiento,
Así como las flores no tienen perfume ni color.
El color es que tiene color en las alas de la mariposa,
En el movimiento de la mariposa el movimiento es el que se mueve,
PASSA UMA BORBOLETA por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
124
El perfume es el que tiene perfume en el perfume de la flor.
La mariposa es sólo mariposa
Y la flor es sólo flor.
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
XLI
XLI
7-5-1914
7-5-1914
NO ENTARDECER dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...
EN EL ATARDECER de los días de verano a veces,
Aunque no haya nada de brisa, parece
Que pasa, un momento, una leve brisa...
Mas los árboles permanecen inmóviles
En todas las hojas de sus hojas
Y nuestros sentidos tuvieron una ilusión
Tuvieron la ilusión de lo que les agradaría...
Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão...
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos...
¡Ah! ¡Nuestros sentidos, los enfermos que ven y oyen!
Si fuéramos nosotros como deberíamos ser
No habría en nosotros necesidad de ilusión...
Nos bastaría sentir con claridad y vida
Y no observar para qué hay sentidos...
Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo
Porque a imperfeição é uma cousa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o Mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ver e ouvir...
Mas gracias a Dios que hay imperfección en el Mundo
Porque la imperfección es una cosa,
Y que haya gente que se equivoque es diferente,
Y el que haya gente que enferma hace al Mundo más grande
Si no hubiera imperfección, habría una cosa de menos,
Y debe haber muchas cosas
Para que tengamos mucho que ver y oír...
125
XLII
XLII
7-5-1914
7-5-1914
¡PASÓ LA DILIGENCIA por el camino y se fue!
Y el camino no se hizo más bello, ni tampoco más feo.
Así es la acción humana en el mundo.
Nada quitamos y nada ponemos ¡pasamos y olvidamos!
Y el sol es siempre puntual todos los días.
PASSOU A DILIGÊNCIA pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a ação humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias...
XLIII
XLIII
7-5-1914
7-5-1914
ANTES O VÔO da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser,
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
ANTES EL VUELO del ave, que pasa y no deja huella,
Que el paso del animal, que deja un recuerdo en el suelo.
El ave pasa y olvida, y así debe ser.
El animal, donde ya no está, lo que no sirve de nada,
Muestra que ya estuvo lo que no sirve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
El recuerdo es una traición a la Naturaleza,
Porque la naturaleza de ayer no es Naturaleza.
Lo que fue no es nada, y recordar es no ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!
¡Pasa, ave, pasa, y enséñame a pasar!
XLIV
XLIV
7-5-1914
7-5-1914
DESPIERTO EN LA NOCHE repentinamente,
Y mi reloj ocupa la noche entera.
No siento la naturaleza allá afuera.
ACORDO DE NOITE subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
126
O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente
brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da minha
mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Mi cuarto es una cosa oscura con paredes vagamente blancas
Allá fuera hay un sosiego como si nada existiera.
Sólo el reloj prosigue su ruido.
Y esta pequeña cosa de engranajes que está encima de mi
mesa
Ahoga toda la existencia de la tierra y del cielo...
Casi me pierdo, pensando en lo que esto significa,
Pero me vuelvo, y me siento sonreír en la noche con las comisuras
de la boca,
Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
E a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...
Porque la única cosa que mi reloj simboliza o significa
Al llenar con su pequenez la noche enorme
Es la curiosa sensación de llenar la noche enorme
Con su pequenez...
XLV
XLV
7-5-1914
7-5-1914
UM RENQUE de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes.
UNA HILERA de árboles allá lejos, allá en la cuesta.
Pero ¿qué es un hilera de árboles? Sólo hay árboles,
La hilera y el plural árboles no son cosas, son nombre.
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de cousa a cousa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própia terra inocente e mais verde e florida do que isso!
Tristes de las almas humanas, que ponen todo en orden,
Que trazan líneas entre cosa y cosa,
Que ponen letreros con nombres en los árboles absolutamente
reales,
Y dibujan paralelos de latitud y longitud
¡Sobre la propia tierra inocente y más verde y florida que esto!
127
XLVI
XLVI
10-5-1914
10-5-1914
DESTE MODO ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outra vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer.
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
DE ESTE o de aquel modo,
Conforme venga o no venga,
Pudiendo a veces decir lo que pienso,
Y otras veces diciéndolo mal y entremezclado,
Voy escribiendo mis versos sin querer,
Como si escribir no fuera una cosa hecha de gestos,
Como si escribir fuera una cosa que me ocurriera
Como si me diera el sol de afuera.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.
Busco decir lo que siento
Sin pensar en que lo siento
Busca arrimar las palabras a la idea
Sin necesitar de un corredor
Del pensamiento a las palabras.
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
No siempre consigo sentir lo que sé que debo sentir.
Mi pensamiento sólo muy despacio atraviesa el río a nado
Porque le pesa la ropa que los hombres le hicieron usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a unta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
Busco desnudarme de lo que aprendí,
Busco olvidarme del modo de recordar que me enseñaron,
Y raspar la pintura con la que me pintaron los sentidos,
Desencajonar mis emociones verdaderas,
Desempacarme y ser yo, no Alberto Caeiro,
Sino un animal humano que la Naturaleza produjo.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como
um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Y así escribo, queriendo sentir la Naturaleza ni siquiera
como un hombre,
Sino como quien siente la naturaleza y nada más.
Yasí escribo, ora bien, ora mal,
128
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.
Ora acertando con lo que quiero decir, ora errando,
Cayendo aquí, levantándome allá,
Mas yendo siempre por mi camino como un ciego obstinado
Ainda assim, sou alguém.
Sou o descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.
Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.
Sin embargo, soy alguien.
Soy el descubridor de la Naturaleza.
Soy el Argonauta de las sensaciones verdaderas.
Traigo al Universo un nuevo Universo
Porque traigo al Universo mismo.
Esto siento y esto escribo
Perfectamente sabedor y sin que no vea
Que son las cinco de la mañana
Y que el sol, que aun no muestra la cabeza
Por encima del muro del horizonte,
Le vemos aun así la punta de los dedos
Asiendo el borde del muro
Del horizonte lleno de montes bajos.
XLVII
XLVII
NUM DIA excessivamente nítido,
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez sea o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
EN UN DÍA excesivamente nítido,
Día en que se tenían ganas de haber trabajado mucho
Para en él no trabajar nada,
Entreví, como un camino entre los árboles,
Lo que tal vez sea el Gran Secreto,
Aquel Gran Misterio del que hablan los falsos poetas.
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Vi que no hay Naturaleza,
Que la Naturaleza no existe,
Que hay montes, valles, llanuras,
Que hay árboles, flores, yerbas,
Que hay ríos y piedras,
129
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
E uma doença das nossas ideias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam.
Pero que no hay un todo al que eso pertenezca,
Que un conjunto real y verdadero
Es una enfermedad de nuestras ideas.
La Naturaleza es partes sin un todo.
Esto es tal vez aquel misterio del que hablan.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todo andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.
Fue esto lo que sin pensar ni detenerme,
Acerté que debía ser la verdad
Que todos creen hallar y que no hallan,
Y que sólo yo, porque no la busqué, la hallé,
XLVIII
XLVIII
DA MAIS ALTA janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.
DESDE LA MAS ALTA ventana de mi casa
Con un pañuelo blanco digo adiós
A mis versos que parten hacia la Humanidad.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Y no estoy alegre ni triste.
Este es el destino de los versos.
Los escribí y debo mostrárselos a todos
Porque no puedo hacer lo contrario
Como la flor no puede ocultar su color,
Ni el río ocultar que corre,
Ni el árbol ocultar que da fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Helos que van ya lejos como en la diligencia
Y yo sin querer me apeno
Como un dolor en el cuerpo.
Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?
¿Quién sabe quién los leerá?
¿Quién sabe a que manos irán?
130
Flor, colheu-me o meu desuno para os olhos.
Arvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Flor, me tomó mi destino para los ojos.
Árbol, me arrancaron los frutos para las bocas.
Río, el destino de mi agua era no quedar en mí.
Me someto y me siento casi alegre,
Casi alegre como quien se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
¡Alejaos, alejaos de mí!
Pasa el árbol y se queda disperso por la Naturaleza.
Se marchita la flor y su polvo dura siempre.
Corre el río y entra en el mar y su agua es siempre la que fue suya.
Passo e fico, como o Universo.
Paso y quedo, como el Universo.
XLIX
XLIX
METO-ME para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse dajanela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
ME METO y cierro la ventana.
Traen el candelero y dan las buenas noches,
Y mi voz contenta da las buenas noches.
Ojalá que mi vida sea siempre así:
El día lleno de sol, o suave de lluvia,
O tempestuoso como si se acabara el Mundo,
La tarde suave y los grupos que pasan
Observados con interés desde la ventana,
La última mirada amiga puesta en el sosiego de los árboles,
Y después, cerrada la ventana, prendido el candelero,
Sin leer nada, ni pensar en nada, ni dormir,
Sentir la vida correr por mí como un río por su lecho,
Y allá fuera un gran silencio como un dios que duerme.
131
EL PASTOR AMOROSO
O PASTOR AMOROSO
6-7-1914
6-7-1914
CUANDO YO no te tenía
Amaba la naturaleza como un sereno monje a Cristo.
Ahora amo a la Naturaleza
Como un sereno monje a la Virgen María,
Religiosamente, a mi modo, como antes,
Pero de otra manera más conmovida y próxima...
Veo mejor los ríos cuando voy contigo
Por los campos hasta la orilla de los ríos;
Sentado a tu lado observando las nubes
Las observo mejor—
Tú no me arrancaste la Naturaleza...
Tú no cambiaste la Naturaleza...
Me trajiste la Naturaleza junto a mí,
Porque existe la veo mejor, pero la misma
Porque me amas, la amo del mismo modo, pero más,
Por escogerme para tenerte y amarte,
Mis ojos la miraron más demoradamente
Sobre todas las cosas.
No me arrepiento de lo que antaño fui
Porque aún lo soy.
QUANDO EU não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima....
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelo campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor —
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mini,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
132
6-7-1914
6-7-1914
VAI ALTA no céu a lua da Primavera.
Penso em ti e dentro de mim estou completo.
VA ALTA en el cielo la luna de la primavera.
Pienso en ti y dentro de mi estoy completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.
Corre por los vagos campos hasta mí una brisa ligera.
Pienso en ti, murmuro tu nombre y no soy yo: soy feliz.
Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher
flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.
Mañana vendrás, irás conmigo a cortar flores al campo,
Y yo iré contigo por los campos a verte cortar flores.
Ya te veo mañana cortando flores conmigo por los campos,
Pues cuando vengas mañana conmigo a cortar flores,
Esto será una alegría y una verdad para mí.
133
10-7-1930
10-7-1930
EL AMOR es una compañía.
Ya no sé andar solo por los caminos,
Porque ya no puedo andar solo.
Un pensamiento visible me hace andar más de prisa
Y ver menos, y al mismo tiempo gustar de ir viendo todo.
También la ausencia de ella es una cosa que está conmigo.
Y me gusta tanto ella que no sé como desearla.
Si no la veo, la imagino y soy fuerte como los árboles altos.
Pero si la veo tiemblo, no sé que se hace de lo que siento en su
ausencia.
Todo yo soy cualquier fuerza que me abandona.
Toda la realidad me mira como un girasol con su rostro en
medio.
O AMOR é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma cousa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência
dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela
no meio.
134
10-7-1930
10-7-1930
PASÉ TODA la noche, sin saber dormir, viendo, sin espacio, su
figura
Y viéndola siempre de maneras distintas de cómo la veo
Hago pensamiento con el recuerdo de lo que ella es cuando me
habla,
Y en cada pensamiento ella cambia de acuerdo con su semejanza.
Amar es pensar.
Y yo casi me olvido de sentir sólo de pensar en ella,
No sé bien lo que quiero, hasta de ella, y yo no pienso sino en ella
Tengo una gran distracción animada.
Cuando deseo encontrarla
Casi prefiero no encontrarla,
Para no tener que dejarla después.
No sé bien lo que quiero, ni quiero saber lo que quiero. Quiero sólo
Pensar en ella.
No pido nada a nadie, ni a ella, sino pensar.
PASSEI TODA a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura
dela
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela
Tenho uma grande distração animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Nãi sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só
Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.
135
10-7-1930
10-7-1930
EL PASTOR AMOROSO perdió el báculo,
Y las ovejas se perdieron por la cuesta,
Y, de tanto pensar, ni tocó la flauta que trajo para tocar.
Nadie se le apareció o desapareció, nunca más encontró el
báculo,
Otros, maldiciéndolo, le recogieron las ovejas.
Nadie lo había amado, al final.
Cuando se levantó de la cuesta y de la falsa verdad, lo vio todo:
Los grandes valles llenos de los mismos verdes de siempre,
Las grandes montañas alo lejos, más reales que cualquier
sentimiento,
La realidad toda, con el cielo y el aire y los campos
tan presentes,
(Y nuevamente el aire, que le faltara tanto tiempo, le entró fresco
en los pulmones)
Y sintió que de nuevo el aire le abría, pero con dolor, una libertad
en el pecho.
O PASTOR AMOROSO perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu. Nunca mais encontrou
cajado.
Outro, praguejando contre ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, tão
presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos
pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade
no peito.
136
JÚLIO POMAR
INDICE
Los retratos de Pessoa que se reproducen en este libro forman
parte de un conjunto de 223 dibujos de Júlio Pomar. Fueron
concebidos para decorar los azulejos de la estación Alto dos
Moinhos del metro de Lisboa.
Júlio Pomar nació en Lisboa en 1926; vive y trabaja entre Lisboa
y Paris, donde se instalo desde 1963. Ha expuesto numerosas veces
en ambas ciudades.
PRESENTACIÓN ................................................................ 2
POEMAS ................................................................................ 6
Fernando Pessoa: corazón de nadie ........................................ 7
A su propio encuentro .......................................................... 8
IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO ........................................... 9
IMPRESIONES DEL CREPÚSCULO......................................... 9
HORA ABSURDA.............................................................. 10
HORA ABSURDA.............................................................. 10
CHUVA OBLICUA ............................................................. 14
LLUVIA OBLICUA............................................................. 14
Cancionero ....................................................................... 21
AUTOPSICOGRAFIA ......................................................... 22
AUTOPSICOGRAFIA ......................................................... 22
ISTO ............................................................................. 23
ESTO............................................................................. 23
PASSOS DA CRUZ ........................................................... 25
VIA CRUCIS ................................................................... 25
MARINHA ....................................................................... 28
MARINA ......................................................................... 28
O MENINO DA SUA MAE ................................................... 29
EL NIÑO DE SU MAMA...................................................... 29
INICIAÇÃO ..................................................................... 33
INICIACION.................................................................... 33
NADIE EN PLURAL ................................................................ 36
Álvaro de Campos .............................................................. 37
OPIARIO ........................................................................ 40
OPIARIO ........................................................................ 40
SONETO JÁ ANTIGO ........................................................ 47
SONETO YA ANTIGUO ...................................................... 47
ODE TRIUNFAL ............................................................... 48
ODA TRIUNFAL ............................................................... 48
LISBON REVISTED .......................................................... 57
LISBOA REVISITADA ....................................................... 57
DOIS EXCERTOS DE ODES (FINS DE DUAS ODES,
NATURALMENTE) ............................................................ 59
DOS FRAGMENTOS DE ODAS (FINALES DE ODAS,
137
NATURALMENTE) ............................................................. 59
ADIAMENTO.................................................................... 70
APLAZAMIENTO ............................................................... 70
TABACARIA..................................................................... 72
TABAQUERÍA................................................................... 72
APOSTILA ....................................................................... 79
APOSTILLA ..................................................................... 79
DEMOGORGON ................................................................ 81
DEMOGOGON.................................................................. 81
Ricardo Reis ...................................................................... 83
Alberto Caeiro.................................................................. 106
O GUARDADOR DE REBANHOS ........................................ 107
EL GUARDADOR DE REBAÑOS ......................................... 107
O PASTOR AMOROSO ..................................................... 132
EL PASTOR AMOROSO .................................................... 132
JÚLIO POMAR................................................................ 137
INDICE......................................................................... 137
El libro POEMAS (Antologia) de Fernando Pessoa, traducción de
Miguel Ángel Flores se termino de imprimir el 15 de septiembre de
1998 en los talleres de la Imprenta AGES de Ia Ciudad de México;
con un tiraje de 1 ,000 ejemplares más sobrantes. En la impresión
se utilizo papel Kromos ahuesado del Grupo Pochteca de 37 kgs. En
la composición se emplearon los tipos New Baskerville y Footlight
MT. El cuidado de la edición estuvo a cargo de Miguel Ángel Flores y
Elias Nahmad Sittón.
138
Á Emissora Nacional
Fernando Pessoa
Para a gente se entreter
E não haver mais chatice
Queiram dar nos o prazer
De umas vezes nos dizer
O que Salazar não disse.
Transmittem a toda a hora,
Nas entrelinhas das danças,
"Salazar disse" Emissora
E ahi vem essa senhora
A Estada Nova com tranças.
Sim, talvez seja o melhor,
Porque estes homens de estado
Quando fallam, é o peor,
E então quando são do teor
Do chatazar já citado!
Primavera de 1935
Edição Crítica de Fernando Pessoa - Volume I. Edição de Luís Prista. Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2000.
António de Oliveira Salazar
Fernando Pessoa
Antonio de Oliveira Salazar.
Trez nomes em sequencia regular...
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma arvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
29-03-1935
--------------------------------------------------------Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A agua dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...
--------------------------------------------------------Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.
Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
29-03-1935
Edição Crítica de Fernando Pessoa - Volume I, Tomo V. Edição de Luís Prista. Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2000.
Autopsicografia
Fernando Pessoa
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
01.04.1931
Publicado in Presença, n.º 36, Novembro de 1932.
Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986.
Elegia na Sombra
Fernando Pessoa
Lenta, a raça esmorece, e a alegria
É como uma memoria de outrem. Passa
Um vento frio na nossa nostalgia
E a nostalgia torna-se desgraça.
Pesa em nós o passado e o futuro.
Dorme em nós o presente. E a sonhar
A alma encontra sempre o mesmo muro,
E encontra o mesmo muro ao dispertar.
Quem nos roubou a alma? Que bruxedo
De que magia incognita e suprema
Nos enche as almas de dolencia e medo
Nesta hora inutil, apagada e extrema?
Os heroes resplandecem a distancia
Num passado impossivel de se ver
Com os olhos da fé ou os da ancia.
Lembramos nevoa, sombras a esquecer.
Que crime outrora feito, que peccado
Nos impoz esta esteril provação
Que é indistinctamente nosso fado
Como o pressente nosso coração?
Que victoria maligna conseguimos –
Em que guerra, com que armas, com que armada? –
Que assim o seu castigo irreal sentimos
Collado aos ossos d'esta carne errada?
Terra tam linda com heroes tam grandes,
Bom sol universal localizado
Pelo melhor calor que aqui expandes,
Calor suave e azul só a nós dado –
Tanta belleza dada e gloria ida!
Tanta esperança que, depois da gloria,
Só conheceu que é facil a descida
Das encostas anonymas da historia!
Tanto, tanto! Que é feito de quem foi?
Ninguem volta? Do mundo subterraneo
Onde a sombria luz por nulla doe,
Pesando sobre onde já esteve o craneo,
Não restitue Plutão a sob o ceu
Um heroe ou o animo que o faz,
Como Eurydice dada á dor de Orpheu;
Ou restituiu, e olhámos para traz?
Nada. Nem fé nem lei, nem mar nem porto.
Só a prolixa estagnação das maguas,
Como nas tardes baças, no mar morto,
A dolorosa solidão das aguas.
Povo sem nexo, raça sem supporte,
Que, agitada, indecisa, nem repare
Em que é raça, e que aguarda a propria morte
Como a um comboio expresso que aqui pare.
Torvelinho de duvidas, descrença
Da propria conciencia de se a ter,
Nada ha em nós que, firme e crente, vença
Nossa impossibilidade de querer.
Plagiarios da sombra e do abandono,
Registramos, quietos e vazios,
Os sonhos que ha antes que venha o somno
E o somno inutil que nos deixa frios.
Oh, que ha de ser de nós? Raça que foi
Como que um novo sol occidental
Que houve por typo o aventureiro e o heroe
E outrora teve nome Portugal...
(Falla mais baixo! Deixa a tarde ser
Ao menos uma externa quietação
Que por ser fóra faça menos doer
Nosso descompassado coração.
Falla mais baixo! Somos sem remedio,
Salvo se do ermo abysmo onde Deus dorme
Nos venha dispertar do nosso tedio
Qualquer obscuro sentimento informe.
Silencio quasi! Nada digas! Cala
A esperança vazia em que te acho,
Patria. Que doença de teu ser se exhala?
Tu nem sabes dormir. Falla mais baixo!)
Ó incerta manhã de nevoeiro
Em que o Rei morto vivo tornará
Ao povo ignobil e o fará inteiro –
És qualquer coisa que Deus quer ou dá?
Quando é a tua Hora e o teu Exemplo?
Quando é que vens, do fundo do que é dado,
Cumprir teu rito, reabrir teu Templo
Vendando os olhos lucidos do Fado?
Quando é que sôa, no deserto de alma
Que Portugal é hoje, seu sentir,
Tua voz, como um balouçar de palma
Ao pé do oasis do que possa vir?
Quando é que esta tristeza desconforme
Verá, desfeita a tua cerração,
Surgir um vulto, no nevoeiro informe,
Que nos faça sentir o coração?
Quando? Estagnamos. A melancholia
Das horas successivas que a alma tem
Enche de tedio a noite, e chega o dia
E o tedio augmenta porque o dia vem.
Patria, quem te feriu e envenenou?
Quem, com suave e maligno fingimento
Teu coração supposto socegou
Com abundante e inutil alimento?
Quem fez que durmas mais do que dormias?
Que fez que jazas mais que até aqui?
Aperto as tuas mãos: como estão frias!
Mãe do meu ser que te ama, que é de ti?
Vives, sim, vives porque não morreste...
Mas a vida que vives é um somno
Em que indistinctamente o teu ser veste
Todos os sambenitos do abandono.
Dorme, ao menos, de vez. O Desejado
Talvez não seja mais que um sonho louco
De quem, por muito te ter, Patria, amado,
Acha que todo o amor por ti é pouco.
Dorme, que eu durmo, só de te saber
Presa da inquietação que não tem nome
E nem revolta ou ansia sabe ter
Nem da esperança sente sede ou fome.
Dorme, e a teus pés teus filhos, nós que o somos,
Colheremos, inuteis e cansados
O agasalho do amor que ainda pomos
Em ter teus pés gloriosos por amados.
Dorme, mãe Patria, nulla e postergada,
E, se um sonho de esperança te surgir,
Não creias nelle, porque tudo é nada,
E nunca vem aquillo que ha de vir.
Dorme, que a tarde é finda e a noite vem.
Dorme, que as palpebras do mundo incerto
Baixam solemnes, com a dor que têm,
Sobre o mortiço olhar inda disperto.
Dorme, que tudo cessa, e tu com tudo,
Quererias viver eternamente,
Ficção eterna ante este espaço mudo
Que é um vacuo azul? Dorme, que nada sente,
Nem paira mais no ar, que fora almo
Se não fora a nossa alma erma e vazia,
Que o nosso fado, vento frio e calmo
E a tarde de nós mesmos, calma e fria –
Como - longinquo sopro altivo e humano! –
Essa tarde monotona e serena
Em que, ao morrer, o imperador romano
Disse: Fui tudo, nada vale a pena.
2-6-1935
Edição Crítica de Fernando Pessoa - Volume I. Edição de Luís Prista. Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2000.
Liberdade
Fernando Pessoa
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
16-03-1935
Publicado in Seara Nova, n.º 526, de 11.09.1937
Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986.
Mensagem
Fernando Pessoa
Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum
PRIMEIRA PARTE
BRASÃO
Bellum sine bello
I
OS CAMPOS
PRIMEIRO / O DOS CASTELOS
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.
SEGUNDO / O DAS QUINAS
Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!
Baste a quem baste o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.
Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.
II
OS CASTELOS
PRIMEIRO / ULISSES
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
SEGUNDO / VIRIATO
Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu.
Nação porque reencarnaste,
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste —
Assim se Portugal formou.
Teu ser é como aquela fria
Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.
TERCEIRO / O CONDE D. HENRIQUE
Todo começo é involuntário.
Deus é o agente,
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»
Ergueste-a, e fez-se.
QUARTO / D. TAREJA
As nações todas são mistérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de impérios,
Vela por nós!
Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por ele reza!
Dê tua prece outro destino
A quem fadou o instinto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.
Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não há o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!
QUINTO / D. AFONSO HENRIQUES
Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!
Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A bênção como espada,
A espada como benção!
[...]
III
AS QUINAS
PRIMEIRA / D. DUARTE, REI DE PORTUGAL
Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
Em dia e letra escrupuloso e fundo.
Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.
SEGUNDA / D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL
Deu-me Deus o seu gládio porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
TERCEIRA / D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL
Claro em pensar, e claro no sentir,
É claro no querer;
Indiferente ao que há em conseguir
Que seja só obter;
Dúplice dono, sem me dividir,
De dever e de ser —
Não me podia a Sorte dar guarida
Por não ser eu dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
Calmo sob mudos céus,
Fiel à palavra dada e à ideia tida.
Tudo o mais é com Deus!
QUARTA / D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL
Não fui alguém. Minha alma estava estreita
Entre tão grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemmente parada;
Porque é do português, pai de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —
O todo, ou o seu nada.
QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
IV
A COROA
NUN'ÁLVARES PEREIRA
Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando,
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.
Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Artur te deu.
'Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!
V
O TIMBRE
A CABEÇA DO GRIFO
O INFANTE D. HENRIOUE
Em seu trono entre o brilho das esferas,
Com seu manto de noite e solidão,
Tem aos pés o mar novo e as mortas eras —
O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.
UMA ASA DO GRIFO
D. JOÃO O SEGUNDO
Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontório uma alta serra —
O limite da terra a dominar
O mar que possa haver além da terra.
Seu formidável vulto solitário
Enche de estar presente o mar e o céu.
E parece temer o mundo vário
Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.
A OUTRA ASA DO GRIFO
AFONSO DE ALBUQUERQUE
De pé, sobre os países conquistados
Desce os olhos cansados
De ver o mundo e a injustiça e a sorte.
Não pensa em vida ou morte,
Tão poderoso que não quer o quanto
Pode, que o querer tanto
Calcara mais do que o submisso mundo
Sob o seu passo fundo.
Três impérios do chão lhe a Sorte apanha.
Criou-os como quem desdenha.
SEGUNDA PARTE
MAR PORTUGUEZ
POSSESSIO MARIS
I
O INFANTE
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
II
HORIZONTE
Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da Verdade.
III
PADRÃO
O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
IV
O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
V
EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS
Jaz aqui, na pequena praia extrema,
O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,
O mar é o mesmo: já ninguém o tema!
Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.
VI
OS COLOMBOS
Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.
Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história.
E por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma luz emprestada.
VII
OCIDENTE
Com duas mãos — o Acto e o Destino —
Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o fecho trémulo e divino
E a outra afasta o véu.
Fosse a hora que haver ou a que havia
A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
Foi alma a Ciência e corpo a Ousadia
Da mão que desvendou.
Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal
A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.
[...]
X
MAR PORTUGUÊS
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
[...]
TERCEIRA PARTE
O ENCOBERTO
PAX IN EXCELSIS
I
OS SÍMBOLOS
PRIMEIRO / D. SEBASTIÃO
'Sperai! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura
É Esse que regressarei.
SEGUNDO / O QUINTO IMPÉRIO
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz —
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa — os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
TERCEIRO / O DESEJADO
Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!
Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,
Mas já no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucaristia Nova.
Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido,
Excalibur do Fim, em jeito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Gral!
[...]
II
OS AVISOS
PRIMEIRO / O BANDARRA
Sonhava, anónimo e disperso,
O Império por Deus mesmo visto,
Confuso como o Universo
E plebeu como Jesus Cristo.
Não foi nem santo nem herói,
Mas Deus sagrou com Seu sinal
Este, cujo coração foi
Não português mas Portugal.
SEGUNDO / ANTÓNIO VIEIRA
O céu 'strela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.
No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.
Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
É um dia; e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.
TERCEIRO
'Screvo meu livro à beira-mágoa.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver.
Só te sentir e te pensar
Meus dias vácuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?
Quando virás a ser o Cristo
De a quem morreu o falso Deus,
E a despertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?
Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras português,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anseio que Deus fez?
Ah, quando quererás, voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da névoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?
III
OS TEMPOS
PRIMEIRO / NOITE
A nau de um deles tinha-se perdido
No mar indefinido.
O segundo pediu licença ao Rei
De, na fé e na lei
Da descoberta, ir em procura
Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.
Tempo foi. Nem primeiro nem segundo
Volveu do fim profundo
Do mar ignoto à pátria por quem dera
O enigma que fizera.
Então o terceiro a El-Rei rogou
Licença de os buscar, e El-Rei negou.
*
Como a um cativo, o ouvem a passar
Os servos do solar.
E, quando o vêem, vêem a figura
Da febre e da amargura,
Com fixos olhos rasos de ânsia
Fitando a proibida azul distância.
*
Senhor, os dois irmãos do nosso Nome
O Poder e o Renome —
Ambos se foram pelo mar da idade
À tua eternidade;
E com eles de nós se foi
O que faz a alma poder ser de herói.
Queremos ir buscá-los, desta vil
Nossa prisão servil:
É a busca de quem somos, na distância
De nós; e, em febre de ânsia,
A Deus as mãos alçamos.
Mas Deus não dá licença que partamos.
[...]
QUINTO / NEVOEIRO
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
Valete, Frates
Fernando Pessoa, Mensagem, 14.ª ed. 1987. Lisboa, Edições Ática.
O Menino da sua Mãe
Fernando Pessoa
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
– Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
É boa a cigarreira,
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
1926
Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986.
Poemas para Lili
Fernando Pessoa
No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada –
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...
No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela –
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...
No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não –
No comboio descendente
De Palmela a Portimão ...
Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986.
Fernando Pessoa
Solemnemente
Carneirissimamente
Foi approvado
Por toda a gente
Que é, um a um, animal,
Na assembleia nacional
Em projecto do José Cabral.
Está claro
Que isso tudo
É desse pulha austero e raro
Que, em virtude de muito estudo,
E de outras feias coisas mais
É hoje presidente do conselho,
Chefe de infernanças animaes,
E astro de um estado novo muito velho.
Que quadra
Isso com qualquer coisa que se faça?
Nada.
A Egreja de Roma ladra
E a Maçonaria passa.
E elles todos a pensar
Na victoria que os uniu
Neste nada que se viu,
Dizem, lá se conseguiu,
Para onde agora avançar?
Olhem, vão p'ra o Salazar
Que é a puta que os pariu.
5-4-1935
Edição Crítica de Fernando Pessoa - Volume I, Tomo V. Edição de Luís Prista. Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2000.
Pessoa e o Fado: um depoimento de 1929
No seu número de 14 de Abril de 1929, publicou o «Notícias Ilustrado», revista semanal editada
pelo «Diário de Notícias» e dirigida por Leitão de Barros, uma vasta recolha de documentos e
depoimentos sobre o fado. Leite de Vasconcellos, Campos Monteiro, António Botto, Augusto de
Santa Rita, Teixeira de Pascoaes, Stuart Carvalhaes, e muitos outros (como Almada ou Jorge
Barradas que colaboraram com desenhos) vieram alimentar a já acesa polémica que, por essa
altura, envolvia o assunto.
Fernando Pessoa apareceu, também, com uma deliciosa declaração «mensageira» que,
pairando acima de defensores e de atacantes, põe em prática a sua habitual argumentação
cortante e paradoxal. Ei-la:
«Toda a poesia - e a canção é uma poesia ajudada - reflecte o que a alma não tem. Por isso a
canção dos povos tristes é alegre, e a canção dos povos alegres é triste.
O Fado, porém, não é alegre nem triste. É um episódio de intervalo. Formou-o a alma
portuguesa quando não existia e desejava tudo sem ter forças para o desejar.
As almas fortes atribuem tudo ao Destino; só os fracos confiam na vontade própria, porque ela
não existe.
O fado é o cansaço de alma forte, o olhar de desprezo de Portugal ao Deus em que creu e
que também o abandonou.
No fado os Deuses regressam, legítimos e longínquos. É, esse o segundo sentido da figura de
El-Rei D. Sebastião.»
In JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias. Lisboa, 01 de Março de 1983.
Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias
Fernando Pessoa
I
Aforismos e Fragmentos sobre a Arte
1
[ms.] [1914?]
- Só a Arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes - tudo isso passa. Só a arte fica, por isso
só a arte vê-se, porque dura.
2
[ms.] [1925?]
O valor essencial da arte está em ela ser o indício da passagem do homem no mundo, o resumo
da sua experiência emotiva dele; e, como é pela emoção, e pelo pensamento que a emoção
provoca, que o homem mais realmente vive na terra, a sua verdadeira experiência, regista-a ele
nos fastos das suas emoções e não na crónica do seu pensamento cientifico, ou nas histórias
dos seus regentes e dos seus donos [?].
Com a ciência buscamos compreender o mundo que habitamos, mas para nos utilizarmos dele;
porque o prazer ou ânsia só da compreensão, tendo de ser gerais, levam à metafísica, que é já
uma arte.
Deixamos a nossa arte escrita para guia da experiência dos vindouros, e encaminhamento
plausível das suas emoções. É a arte, e não a história, que é a mestra da vida.
3
[ms.] [1909?]
A ciência descreve as coisas como são; a arte descreve-as como são sentidas, como se sente
que são.
O essencial na arte é exprimir; o que se exprime não interessa.
4
[ms.] [1913?]
A arte é a auto-expressão forcejando por ser absoluta.
5
[ms.] [1915?]
O valor de uma obra de arte é tanto maior quanto é puramente artístico o meio de manifestar a
ideia.
6
[ms.] [1910?]
H[istory] of a D[ictatorship] (1) ou Estética
A arte é apenas e simplesmente a expressão de uma emoção. Um grito, uma simples carta
pertencem um à arte de cantar, à literatura a outra, inevitàvelmente.
O próprio gesto é artístico segundo é ou não interpretação de uma emoção. Porque no gesto há
o fim do gesto e a expressão desse fim. Uma cousa reporta-se à vontade, a outra à emoção.
Elegância ou deselegância de um gesto significam conformidade ou não-conformidade com a
emoção que exprime. Assim uma estátua da dor é a fixação dos gestos que mostram a dor - e
será tanto mais bela quanto mais justa e exactamente representar por esses gestos a emoção
da dor, quanto mais adaptados em tudo forem esses gestos ao mostrar essa emoção.
(1) O titulo refere-se ao projecto duma história da ditadura de João Franco, de que existem
alguns fragmentos no espólio do autor.
7
[ms.] [1915?]
Arte - Idealização
Todo o material da arte repousa sobre uma abstracção: a escultura, p. ex., desdenha o
movimento e a cor; a pintura desdenha a 3 dimensão e o movimento portanto; a música
desdenha tudo quanto não seja o som; a poesia baseia-se na palavra, que é a abstracção
suprema, e por essência, porque não conserva nada do mundo exterior, porque o som acessório da palavra - não tem valor senão associado - por impercebida que seja essa
associação.
A arte, portanto, tendo sempre por base uma abstracção da realidade, tenta reaver a realidade
idealizando. Na proporção da abstracção do seu material está a proporção em que é preciso
idealizar. E a arte em que mais é preciso idealizar é a maior das artes.
8
[ms.] [1930?]
Porque a arte dá-nos, não a vida com beleza, que, porque é a vida [var.: concreta], passa, mas a
beleza com vida, que, como é beleza [var.: abstracta], não pode perecer.
A cada conceito da vida cabe não só uma metafísica, mas também uma moral. O que o
metafísico não faz porque é falso, e o moralista não faz porque é mau, o esteta não faz porque é
feio.
9
[ms.] [1913?]
Os desvios ideativos da poesia moderna
Emoção que não seja vaga, pensamento que o seja não prestam. Os modernos poetas
franceses têm o contrário: são nítidos e (...) na emoção e vagos, deploràvelmente vagos na
ideia.
Uma obra literária procura sentimentos que têm que ver com: a ideia, a emoção, a imaginação
(que vem a ser uma combinação inteira de ideia e emoção). A ideia deve ser nítida, a emoção
vaga, a imaginação, como é composta essencialmente de ambos, ao mesmo tempo vaga e
nítida. - A arte deve dirigir-se a estas 3 faculdades, que não a uma ou duas delas isoladamente.
10
[ms.] [1916?]
Se a obra de arte proviesse da intenção de fazê-la, podia ser produto da vontade. Como não
provém, só pode ser, essencialmente, produto do instinto; pois que instinto e vontade são as
únicas duas qualidades que operam.
A obra de arte é, portanto, uma produção do instinto. O drama, sendo primàriamente uma obra
de arte, é-o também.
11
[dact.] [1925?]
Introdução à Estética
Exigir de sensibilidades como as nossas, sobre que pesam, por herança, tantos séculos de
tantas cousas, que sintam e portanto se exprimam com a limpidez, e a inocência de sentidos, de
Safo ou de Anacreonte, nem é legítimo, nem razoável. Não é no conteúdo da sensibilidade que
está a arte, ou a falta dela: é no uso que se faz desse conteúdo.
Distinguiremos na arte, como em tudo, um elemento material, e um formal. A matéria da arte, dáa a sensibilidade, a forma, dirige-a a inteligência. E na forma há, ainda, duas partes a considerar:
a forma concreta ou material, que se prende com a matéria mesma da obra, e a forma abstracta
ou imaterial, que se prende só com a inteligência e depende de suas leis imutáveis.
Três são as leis da forma abstracta, e, como são da forma abstracta, aplicam-se a todas as artes
e a todas as formas de cada arte. Abdicar delas é abdicar da mesma arte. Podemos eleger
quebrar tais leis; não podemos, porém, elegendo-o, presumir que fazemos arte, pois a arte
consiste, mais que em qualquer outra cousa, na obediência a essas leis. As três leis da forma
abstracta são: a unidade; a universalidade ou objectividade; e (...).
Por unidade se entende que a obra de arte há-de produzir uma impressão total definida, e que
cada seu elemento deve contribuir para a produção dessa impressão; não havendo nela nem
elemento que não sirva para esse fim, nem falta de elemento que possa servir para esse fim. É
uma falha artística, por exempla, a introdução em um poema de um trecho, por belo que seja,
que não tenha relação necessária com o conjunto do poema, como o é, mais palpàvelmente, a
introdução em um drama de uma cena em que, por grande que seja a força ou a graça própria, a
acção pára ou não progride, ou, o que é pior, se atrasa.
Por universalidade, ou objectividade, se entende que a obra de arte há-de ser imediatamente
compreensível a quem tenha o nível mental necessário para poder compreendê-la.
Quanto mais altamente intelectual for uma obra de arte, maior será, em princípio, a sua
universalidade, pois que a inteligência abstracta é a mesma em todos os tempos e em todos os
lugares - dada a espécie humana no nível de tê-la -, enquanto a sensibilidade varia de tempo
para tempo e de lugar para lugar.
Cumpre esclarecer este ponto. A obra de arte procede de uma impressão ou emoção do artista
que a constrói, impressão ou emoção que, como tal, é própria e intransmissível. Se o valor dessa
emoção, para quem a sente, é o ser própria, deve gozar-se simplesmente, e não exprimir-se. Se
o valor dela, porém, é mais alguma cousa, (...).
Todos nós sentimos a dor e o delírio do Rei Lear de Shakespeare; esse delírio, contudo, é,
diagnosticàvelmente, o da demência senil, de que não podemos ter experiência, pois quem cai
em demência senil nem pode perceber Shakespeare, nem qualquer outra causa. Porque é,
então, que, sendo esse delírio tão caracterizadamente o do demente senil, o sentimos tanto nós,
que não temos conhecimento desse delírio? Porque Shakespeare pôs nesse delírio só aquela
parte que nele é humano, e afastou a que nele seria, ou particular do indivíduo Lear, ou especial
do demente senil. Todo o processo mórbido envolve essencialmente ou um excesso, ou um
abatimento, de função; ou uma hipertrofia, ou uma atrofia, de órgão. O desvio, que constitui a
doença, está na distância a que fica o excesso, ou o abatimento, do nível da função normal; na
dessemelhança que se estabelece entre o órgão hipertrofiado, ou atrofiado, e o órgão são.
Assim a doença é, ao mesmo tempo, e no mesmo acto, um excesso ou abatimento do normal, e
um desvio (ou diferença) desse normal. Se, apresentando um caso de doença mental, o
apresentarmos pelo lado em que é excesso ou abatimento da função normal, com isso mesmo o
apresentamos como ligação a essa função, e compreensível para quem a tenha; se, porém, o
apresentarmos pelo lado em que é desvio ou diferença, com isso mesmo o apresentamos como
desligado ou separado dessa função, e incompreensível, portanto, a quem não esteja no mesmo
caso mórbido, o que será pouca gente, senão pouquíssima. As duas maneiras são comparáveis
à maneira racional, e à dogmática ou aforística, de apresentar uma conclusão: o raciocinador
leva o ouvinte ou lente até à conclusão por um processo gradual, e ainda que a conclusão seja
estranha ou paradoxal, torna-se em certo modo aceitável por se tornar compreensível como se
chegou até ela; o dogmático põe a conclusão sem explicar como chegou a ela, e sucede, como
se não vê relação entre o ponto de partida e o de chegada, que só quem tenha feito o raciocínio
necessário, ou quem aceite a conclusão sem raciocínio, pode convir nessa conclusão.
Tudo que se passa numa mente humana de algum modo análogo se passou já em toda outra
mente humana. O que compete, pois, ao artista que quer exprimir determinado sentimento, por
ex., é extrair desse sentimento aquilo que ele tenha de comum com os sentimentos análogos
dos outros homens, e não o que tenha de pessoal, de particular, de diferente desses
sentimentos.
A obra de arte, ou qualquer seu elemento, deve produzir uma impressão, e uma só; deve ter um
sentido, e só um; seja sugestivo o processo, ou explícito. Isto se vê claramente no emprego do
epíteto em literatura. Muito se tem bradado contra o emprego de adjectivos estranhos, ou juntos
a substantivos com os quais não parecem poder ligar-se. Não há, porém, adjectivos estranhos,
nem é possível construir uma frase a que se não possa atribuir um sentido qualquer. O que é
necessário é que esse «sentido qualquer» seja só um, e não possivelmente um de vários.
Ésquilo, numa frase célebre, refere-se ao «riso inúmero das ondas»; o epíteto é daqueles a que
é uso chamar ousados, pois que tudo é ousado para quem a nada se atreve. Toda a gente,
porém, compreende a frase, nem lhe é atribuível mais que um sentido. Há, porém, uma poetisa
francesa que deu a um seu livro o título, mimado desta frase, de O Coração inúmero, frase esta
que pode ter vários sentidos, porém que não é certo que tenha este ou aquele. A «ousadia» do
epíteto é igual no grego e na francesa; uma, porém, é a ousadia da inteligência, a outra a do
capricho.
Pode ser, no caso de um epíteto desta última ordem, que a sensibilidade de várias pessoas
convenha na mesma interpretação, e, ainda, que essa interpretação seja - o que também
poderia não acontecer - aquela mesma que lhe o autor deu. Como, porém, a sensibilidade é
passageira e local, local e passageira é também a interpretação que dela procede.
Estas considerações têm que ser interpretadas em relação às diversas artes, diversamente para
cada uma, conforme sua matéria e fim. Aquele trecho musical cuja frescura e alegria me dá a
mim a impressão de madrugada, pode dar a outro a impressão de Primavera. Como, porém, não
é função da música definir as cousas, senão a emoção que geram, o trecho produziu, em
verdade, a mesma impressão em mim e no outro, pois ambos sentimos nele frescura e alegria; o
lembrar-me essa frescura a madrugada, e a outro a Primavera, é apenas a tradução pessoal que
cada um de nós faz da sensação que recebeu, pois a sensação abstracta de alegria e de
frescura é comum à madrugada e à Primavera. A um terceiro esse mesmo trecho poderia
evocar, por exemplo, certa cena de amor, ou certa paisagem, sem que em alguma cousa saísse
do seu fim próprio, logo que a essa cena de amor e a essa paisagem estejam nele ligadas as
ideias de frescura e alegria. Do mesmo modo a frase de Ésquilo «riso inúmero das ondas» não é
diversa em mim e num veneziano por em mim evocar o Atlântico e nele o Adriático.
14
[dact.] [1916?]
Regresso dos Deuses: Estética (1)
Mas o critério de perspicuidade não limitará demasiado a arte? Não limita, se atendermos a um
ponto importante, que é que há várias artes, cada uma das quais corresponde a um género de
perspicuidade. Certos sentimentos vagos e pensamentos nebulosos, que são naturais a todos os
homens, encontram a sua expressão em a música.
O critério de perspicuidade é, porém, derivado na arte helénica. O grego amava a perspicuidade
porque amava a generalidade, a universalidade e a distinção das artes. Ora, era difícil que uma
ideia vaga pudesse ser geral, universal, e caber na arte literária ou scultural, por muito bem que
estivesse em a música.
Semelhantemente, não é a sobriedade um característico essencial na estética pagã, senão
também um corolário dela. A arte é o aperfeiçoamento do mundo exterior. Ora este
aperfeiçoamento (da Realidade) pode fazer-se de três maneiras: pela alteração do mundo
exterior, (...).
(1) Nos dois fragmentos seguintes respeitamos traços típicos da ortografia de Ricardo Réis,
autor suposto do ensaio Regresso dos Deuses (cf. Páginas intimas e de auto-interpretação).
15
[dact.] [1916?]
Regresso dos Deuses: Estética
Objectar-se-á, sem dúvida, que, havendo sentimentos que são vagos, sentimentos que são
confusos, impulsos do ânimo (spírito) que, de confundidos com outros, se nos não apresentam
claros, é abusivo exigir do artista que os delineie como nítidos, como qualquer cousa que eles
não são.
A resposta a esta observação stá na pergunta, se esses stados do ânimo são legitimamente
representáveis em arte? O artista subjectivo parte do princípio que o fim da sua arte é exprimir
as suas próprias emoções. Critério é esse que o artista objectivo não aceita, e com razão
absoluta o não aceita, porque a arte objectiva é que é a arte, por isso que é uma cousa
realizada, que passa para fora do artista, e não fica nele, como a emoção que a produz.
De feito, perguntemos, porque é um pensamento confuso, porque é um sentimento vago, por
que razão não se apresenta nítido um impulso volitivo? Para todos a razão é uma: é que o
pensamento se não pôs em contacto com a realidade, é que o sentimento se não comparou com
a sua realização, é que a vontade se não mediu com o exterior.
Uma obra de arte é um objecto exterior; obedece portanto às leis a que stão subordinados os
objectos exteriores, no que objectos exteriores.
O artista não exprime as suas emoções. O seu mister não é esse. Exprime, das suas emoções,
aquelas que são comuns aos outros homens. Falando paradoxalmente, exprime apenas aquelas
suas emoções que são dos outros. Com as emoções que lhe são próprias, a humanidade não
tem nada. Se um erro da minha visão me faz ver azul a cor das folhas, que interesse há em
comunicar isso aos outros? Para que eles vejam azul a cor das folhas? Não é possível, porque é
falso. Para que eles saibam que eu vejo azuis as folhas? Não é preciso porque não tem
importância nenhuma. O mais que o fenómeno é curioso, e o curioso é senti-lo; senti-lo sinto-o
eu, não os outros. O que há de realmente estético, pois, nas sensações estranhas é que cada
um as guarde para si, gozando-as em silêncio, se para tal lhe dá o gozo.
Assim, o primeiro princípio da arte é a generalidade. A sensação expressa pelo artista deve ser
tal que possa ser sentida por todos os homens por quem possa ser compreendida.
O segundo princípio da arte é a universalidade. O artista deve exprimir, não só o que é de todos
os homens, mas também o que é de todos os tempos. O subjectivismo cristista, além do erro
pessoalista, produziu essoutro erro, a preocupação de interpretar a época. A frase de Goethe,
bastas vezes citada sobre o assunto, é de mestre; com efeito, um homem de génio é da sua
época só pelos seus defeitos. A nossa época deduz-nos da humanidade. Como o artista deve
procurar erguer-se acima da sua personalidade, deve procurar levantar-se fora da sua época.
O terceiro princípio da arte é, finalmente, a limitação. Isto é, a cada arte. corresponde um modo
de expressão, sendo o da música diferente do da literatura, e o da literatura diverso do da
escultura, este do da pintura, e assim com todas as artes. Erro crasso, mas recentemente vulgar,
é o de confundir os limites das artes., Foi cometido por uma época tão aparentemente ortodoxa
como o século dezassete dos franceses. Os poetas como Corneille e Racine aplicaram à poesia
a secura de expressão, a nitidez de raciocínio, que são características da prosa. Racine, errou
como errou Mallarmé. Por um errar por fazer da poesia prosa, e outro por fazer da poesia
música, não é menor o erro de um do que o de outro.
Para os sentimentos vagos, que não comportam definição, existe uma arte - a música, cujo fim é
sugerir sem determinar. Para os sentimentos perfeitamente definidos, de tal modo que é difícil a
emoção neles, existe a prosa. Para os sentimentos que são harmoniosos e fluidos, existe a
poesia. Em uma época sã e robusta, um Verlaine ou um Mallarmé escreveriam a música que
nasceram para escrever. Não teriam tido nunca a tendência para dizer em palavras aquilo que a
palavra não comporta. Pergunto ao maior entusiasta dos simbolistas franceses se Mallarmé os
comoveu tanto como uma melodia vulgar, se a inexpressão de Verlaine chegou alguma vez à
inexpressão legítima de uma valsa simples. Não chegou, e se me responderem que preferem
para esse fim Verlaine e Mallarmé à música, o que me estão dizendo é que preferem a literatura
como música à música. Stão-me dizendo uma cousa que não tem sentido fora de lamentá-los.
II
Da Crítica e da História Literária
1
[ms.] [1917?]
[Formas de crítica estética]
Toda a produção humana se pode analisar sob 3 pontos de vista: o do seu valor, o da sua
produção e o da sua significação humana. Teremos pois que qualquer produção do homem se
pode apreciar sob os pontos de vista valorista, psicológico e sociológico. O que significa perante
o que produziu? (crítica psicológica). O que significa na sociedade? (crítica sociológica). O que
significa perante o ideal? (crítica valorista).
A crítica valorista divide-se evidentemente segundo as 3 formas do ideal (verdade, bem, beleza)
em crítica científica, crítica moral (ou ética) e crítica estética.
2
[ms.] [1915?]
Balança de Minerva
Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos. E esse modo imoral e hipócrita
de falar a que se chama escrever, mais completamente nos vela aos outros e àquela espécie de
outros a que a nossa inconsciência chama nós-próprios. Por isso, se escrever, no sentido de
escrever para dizer qualquer cousa, é acto que tem um cunho de mentira e de vício, criticar as
cousas escritas não deixa de ter um correspondente aspecto de curiosidade mórbida ou de
futilidade perversa. E, quando a crítica é escrita também, requinta-se para repugnante a sua
imoralidade essencial. Pega-se-lhe a doença do criticado - o facto de existir escrito.
Pròpriamente, o único crítico de arte ou de letras deve ser o psiquiatra; porque, ainda que os
psiquiatras sejam tão ignorantes e laterais aos assuntos como todos os outros homens daquilo a
que eles chamam ciência, têm ainda assim, perante o que vem a ser um caso de doença mental,
aquela competência que consiste em nós julgarmos que eles a têm. Nenhum edifício de
sabedoria humana pode erguer-se sobre outros alicerces.
5
[ms.] [1915?]
Balança de Minerva
Aferição.
Destina-se esta secção à crítica dos maus livros e especialmente à crítica daqueles maus livros
que toda a gente considera bons. O livro, consagrado por qualidades que não tem, do homem
consagrado por qualidades com que outros o pintaram; o livro daquele que, tendo criado fama,
se deitou a fingir que dormia; o livro do que entrou no palácio das Musas pela janela ou colheu a
maçã da sabedoria com o auxílio dum escadote - tudo isto se pesará na Balança de Minerva.
Claro que a razão do título Balança de Minerva é a circunstância de Minerva não ter balança
nenhuma. Vagamente absurdo, leva este título em si a definição dum modo-de-ver que escolhe o
onde opor-se a todos para ter razão inùtilmente. A consciência do esforço inútil e do trabalho
perdido ainda é uma das grandes emoções estéticas que restam a quem se preocupa com as
cousas que ainda restam.
A crítica, de resto, é apenas a forma suprema e artística da maledicência. É preferível que seja
justa, mas não é absolutamente necessário que o seja. A injustiça, aliás, é a justiça dos fortes.
No fundo isto é tudo bondade. Dizer mal dum livro é o único modo de dizer bem dele. Se é mau,
faz-se justiça; se é bom põe-o na evidência que os livros bons merecem. E, no fim de tudo, nada
disto tem importância, porque os livros bons leva-os a História ao colo para casa. E quanto aos
maus - criticar é apenas abrir-lhes a cova e rezar-lhes em cima da última descida o latim que
falava Juvenal. Às vezes é com sete pós de elogios que esta justiça mortal melhor se sela.
A justificação última da crítica assim bem entendida é o satisfazer a função natural de desdenhar
- função tão natural como a de comer e que é de boa higiene de espírito satisfazer
cuidadosamente. Quem sente vontade de desdenhar não deve atar-se à cobardia de julgar isso
feio, nem vender-se à infâmia de ir desdenhar o que os outros desdenham, abdicando assim da
sua individualidade, gregário.
As horas passam devagar e pesa em tédio a consciência delas. Buscar o conforto no desprezo é
não só o nosso dever para com o desprezo, mas também o nosso dever para com nós-próprios.
Espetar alfinetes na alma alheia, dispondo esses alfinetes em desenhos que aprazam à nossa
atenção fùtilmente concentrada, para que o nosso tédio se vá esvaindo - eis um passatempo
deliciosamente de crítico, e ao qual juramos fidelidade.
Traduzindo isto para a metáfora que dá cor a esta secção, pretendemos dar a entender que o
nosso uso da Balança de Minerva limitar-se-á, na maioria dos casos, a dar com ela - pesos e
tudo - na cabeça do criticado. Isso, de resto, não deve preocupar ninguém. Quem tiver de ser
imortal pode sê-lo mesmo com a cabeça partida. O ser imortal é a única das preocupações antisociais que não faz mal a ninguém. Visto que o futuro raras vezes dá por ela, não é demais que
o presente algumas vezes dê nela.
III
Arte e Moral
1
[ms.] (domingo, 13 de Outubro de 1914?]
A arte suprema tem por fim libertar - erguer a alma acima de tudo quanto é estreito, acima dos
instintos, das preocupações morais ou imorais.
A arte nada tem com a moral, quanto ao fim; tem, quanto ao conteúdo.
Toda a arte deve dar prazer - o tipo de prazer é que varia. A arte inferior dá prazer porque distrai,
liberdade porque liberta das preocupações da vida; a arte superior menor dá prazer porque
alegra, liberdade porque liberta da imperfeição da vida; a arte superior dá prazer porque liberta,
liberdade porque liberta da própria vida.
Um assunto sexual deve ser tratado em arte de modo que não suscite desejo. Para suscitar
desejos, serve melhor uma fotografia pornográfica.
2
[ms.] [1916?]
As artes
As relações entre a arte e a moral são análogas às entre a arte e a ciência. Não há relação entre
a arte e a moral, como a não há entre a arte e a ciência; mas um poema que viola as nossas
noções morais impressiona idênticamente o homem são como um poema que viola a nossa
noção da verdade.
Um poeta que canta, elogiando, o roubo, não fará com isso um bom poema; nem o fará um
poeta moderno a quem lembre cantar o curso do sol á volta da terra, que é uma cousa falsa.
Viola a regra do agrado. Agradará a mais gente um poema que, sobre ser belo, seja moral, que
um que, sendo belo, seja imoral. As épocas têm mais de comum as suas ideias morais que as
suas imoralidades. Só nas épocas de decadência é que a moralidade deixou de ser um ideal; e,
mesmo nessas, reconhece-se o seu valor ideal.
As relações são entre o artista e o moralista, não entre a arte e a moral. Como é improvável que
um grande artista, por isso mesmo que é um grande artista, falseie a verdade, é improvável que
falseie a moral. Não pertence esse característico aos de um cérebro típico de criador.
O criador de arte para influenciar tem, em geral, como motivo o interesse de influenciar; ao qual
falha se cria obra com elementos que tendem a limitar a acção da obra.
A tendência moral é reconhecida pela espécie [?] humana como superior à realidade [?] imoral.
O poeta imoral corre portanto, na proporção em que é imoral, o risco de não influenciar os
espíritos superiores (quando não da sua época, porventura decadente), das outras épocas pelo
menos.
3
[ms.] [1914?]
A questão da arte moral ou imoral - se a arte deve ser «art for art's sake», independentemente
da moralidade -, apesar de muito simples de solução, não tem deixado de ocupar
desagradàvelmente muito pensador, especialmente dos que desejam provar que a arte deve ser
moral.
Em primeiro lugar dêmos inteira razão - é evidente que a têm - aos estetas; a arte tem, em si, por
fim só a criação de beleza, à parte considerações de ser moral ou não. Se isto é assim, quem
manda pois à arte ser moral? A resposta é simples: a moral. Manda-o a moral porque a moral
deve reger todos os actos da nossa vida e a arte é uma forma da nossa vida. Têm errado
aqueles que têm querido achar uma razão, dentro da própria natureza da arte, para a arte ser
moral. Não existe essa razão onde a procuraram. A arte, quâ arte, tem por fim apenas a beleza.
A razão que a manda ser moral existe na moral, que é exterior à estética; existe na natureza
humana.
A arte tem duas feições: a feição puramente artística e a feição social. A feição artística é criar a
beleza - nada mais. Como a beleza é uma cousa independente do consenso humano (apesar de
julgada por ele), como a beleza em si, digamos, é independente de opiniões, a arte na sua (...)
social nenhum outro fim tem que a criação da beleza, sem outra consideração moral ou
intelectual.
Mas a arte tem outra feição. É a feição social. O artista é um homem e um artista. Puramente
artista a sua obra, já o dissemos, tem só por fim criar a beleza, só uma responsabilidade perante a Estética. Mas o artista vive em sociedade, publica as suas obras de arte. Vive em
sociedade como artista e vive em sociedade como homem. Como artista o seu fim é um só:
agradar. Como homem o seu fim é um só: obter glória. Vemos pois que o artista mostra-se-nos
sob 3 feições: como puramente artista (não tendo outro fim que criar a beleza), como ao mesmo
tempo artista e homem (querendo ver essa beleza que criou admirada), e finalmente como
homem (desejando a glória, no que é comum aos outros homens, geralmente a todos). O
primeiro sentimento é puramente impessoal; o segundo é entre pessoal e impessoal - o desejar
ver admirada uma obra de arte, conquanto sua, não é inteiramente egoísta; o terceiro é
inteiramente pessoal.
Cremos ter dado, nestas palavras, a solução definitiva do problema.
Ora, segundo estas 3 feições do artista, está ele submetido a diversas leis. Como puramente
artista nenhuma outra lei tem que não seguir a estética. Mas já buscando agradar se tem que
submeter a outras leis; a natureza da humanidade é uma só, não se divide em estética, moral,
intelectual, etc. Só a Estética personalizada é que poderia apreciar uma obra de arte sob o ponto
de vista puramente estético. A humanidade não; o amor da beleza é fundamental na sua alma é arte; mas não só isso reside nela, não só com isso critica e aprecia. Outros elementos entram
inevitàvelmente nessa apreciação. Um grande poema revolucionário agradará mais a um
republicano do que a um conservador, admitindo em ambos, quanto a qualidades críticas, a
mesma dose de estética.
Os homens não apreciam só estèticamente, apreciam segundo toda a sua constituição moral.
Por isso cousas grosseiras, impuras, lhes desagradam, não na parte estética neles, mas na
parte moral que não podem mandar embora de si.
IV
Sobre a Poesia
1
[dact.] [1930?]
[Os graus da poesia lírica]
O primeiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, de temperamento intenso e emotivo,
exprime espontânea ou reflectidamente esse temperamento e essas emoções. É o tipo mais
vulgar do poeta lírico; é também o de menos mérito, como tipo. A intensidade da emoção
procede, em geral, da unidade do temperamento; e assim este tipo de poeta lírico é em geral
monocórdio, e os seus poemas giram em torno de determinado número, em geral pequeno, de
emoções. Por isso, neste género de poetas, é vulgar dizer-se, porque com razão se nota, que
um é «um poeta do amar», outro «um poeta da saudade», um terceiro «um poeta da tristeza».
O segundo grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, por mais intelectual ou imaginativo,
pode ser mesmo que só por mais culto, não tem já a simplicidade de emoções, ou a limitação
delas, que distingue o poeta do primeiro grau. Este será também tipicamente um poeta lírico, no
sentido vulgar do termo, mas já não será um poeta monocórdio. Os seus poemas abrangerão
assuntos diversos, unificando-os todavia o temperamento e o estilo. Sendo variado nos tipos de
emoção, não o será na maneira de sentir. Assim um Swinburne, tão monocórdio no
temperamento e no estilo, pode contudo escrever com igual relevo um poema de amor, uma
elegia mórbida, um poema revolucionário.
O terceiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, ainda mais intelectual, começa a
despersonalizar-se, a sentir, não já porque sente, mas porque pensa que sente; a sentir estados
de alma que realmente não tem, simplesmente porque os compreende. Estamos na antecâmara
da poesia dramática, na sua essência íntima. O temperamento do poeta, seja qual for, está
dissolvido pela inteligência. A sua obra será unificada só pelo estilo, último reduto da sua
unidade espiritual, da sua coexistência consigo mesmo. Assim é Tennyson, escrevendo por igual
Ulysses e The Lady of Shalott, assim, e mais, é Browning, escrevendo o que chamou «poemas
dramáticos», que não são dialogados, mas monólogos revelando almas diversas, com que o
poeta não tem identidade, não a pretende ter e muitas vezes não a quer ter.
O quarto grau da poesia lírica é aquele, muito mais raro, em que o poeta, mais intelectual ainda
mas igualmente imaginativo, entra em plena despersonalização. Não só sente, mas vive, os
estados de alma que não tem directamente. Em grande número de casos, cairá na poesia
dramática, propriamente dita, como fez Shakespeare, poeta substancialmente lírico erguido a
dramático pelo espantoso grau de despersonalização que atingiu. Num ou outro caso continuará
sendo, embora dramàticamente, poeta lírico. É esse o caso de Browning, etc. (ut supra). Nem já
o estilo define a unidade do homem: só o que no estilo há de intelectual a denota. Assim é em
Shakespeare, em quem o relevo inesperado da frase, a subtileza e a complexidade do dizer, são
a única coisa que aproxima o falar de Hamlet do do Rei Lear, o de Falstaff do de Lady Macbeth.
E assim é Browning através dos Men and Women e dos Dramatic Poems.
Suponhamos, porém, que o poeta, evitando sempre a poesia dramática, externamente tal,
avança ainda um passo na escala da despersonalização. Certos estados de alma, pensados e
não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos, tenderão a definir para ele uma
pessoa fictícia que os sentisse sinceramente (...)
2
[dact.] [Junho de 1930]
[Carta a Adolfo Rocha]
Meu prezado camarada:
Recebi a sua carta que agradeço, e vou procurar expor em frases sem imagens o sentido
daquilo que lhe havia escrito. Devo explicar, antes de mais nada, que, tendo tardado já uns dias
em agradecer o seu livro, escrevi uma carta rápida, para não demorar mais. Sucede que, quando
escrevo ràpidamente, isto é, sem ter tempo de desdobrar em razões o que digo, e concisamente,
por escrever ràpidamente, o que escrevo assume naturalmente uma forma metafórica, e não
lógica. Isto lhe explicará a confusão, ou a obscuridade, que necessàriamente existiria na minha
carta. O que não havia nela era o dogmatismo que parece supor que continha. Nunca sou
dogmático, porque o não pode ser quem de dia para dia muda de opinião, e é, por
temperamento, instável e flutuante. Vamos, que consigo o caso não foi grave: já me sucedeu
pior, com um poeta espanhol - ainda que porventura um pouco por imperfeito conhecimento da
língua - o ser o conciso tomado por seco, e o metafórico por irónico.
Em substância, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe expus é o seguinte:
1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;
2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível;
3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que
decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem
deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não
direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e instintiva da
sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama
«inspiração», quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação
à frase intelectual (prim. versão: tirem da sensação o que não pode ser sensível aos outros e ao
mesmo tempo, para compensar, reforçam o que lhes pode ser sensível); b) a reflexão crítica
sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela «inspiração» a um
processo inteiramente objectivo - construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de
escola ou corrente.
5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de
intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas
feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é
fraco ou nulo, o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e critico, que
elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.
Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um
artista espontâneo - isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para
ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz
a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de «maneira», não de ser, mas de «dever ser».
Na sua aplicação ao seu livro, estas considerações tomam para mim a forma seguinte: 1) a sua
sensibilidade é boa, e, por natureza, de tipo intelectual; 2) pode, portanto, ser um poeta
espontâneo, sem ter que sobreintelectualizar demais ou recorrer a uma atitude reflexiva ou
crítica; 3) para isso, porém, convinha-lhe (a meu ver, bem entendido-mas era a minha opinião,
que não a de outrem, que lhe dava), ou a) focar num ponto nítido e universalmente transmissível
a intelectualização da sensação, ou b) distribuir mais igualmente a intelectualização pela
extensão da sensação.
Isto não é, talvez, muito claro; não sei, porém, como o diga melhor. Servir-me-ei de exemplos.
Um homem que era, e suponho (embora nada publique, nem talvez escreva) ainda é, o mais
curioso espírito crítico português, Manuel António de Almeida, escreveu, em 1912, no «Inquérito
Literário» de Boavida Portugal, esta definição da arte moderna: «Uma representação central
nítida, em torno da qual bóia todo um nimbo de coisas evocadas.» Isto representa muito bem o
que quero indicar como o primeiro processo que lhe sugeri. O segundo seria, servindo-me de
uma expressão de igual tipo, «uma representação central vaga, em torno da qual brilham,
nítidas, e para lhe destacar o vago, todas as representações secundárias».
É este, meu Camarada, o desenvolvimento mais claro que, de momento, e para não tardar em
responder-lhe, posso fazer do que na minha primeira carta lhe disse translatamente. Peço-lhe
que creia no verdadeiro apreço de...
3
[dact.] [1928?]
Estética
A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção, mas no momento
da recordação dela. Um poema é um produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual,
tem, evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a
existência intelectual de uma emoção é a sua existência na inteligência - isto é, na recordação,
única parte da inteligência, pròpriamente tal, que pode conservar uma emoção.
4
[dact.] [1924?]
Às três subespécies da poesia lírica - a heróica, a elegíaca e a lírica pròpriamente dita atribuíam os antigos a protecção de três musas, Calíope para a primeira, Érato para a segunda,
e para a terceira Polímnia.
Chama-se poesia lírica, em boa razão estética, a toda aquela que não é dramática nem
narrativa, e na espécie da poesia chamada narrativa há por certo que incluir a didáctica. A
poesia lírica pode exprimir directamente os sentimentos e as emoções do poeta, sem deles
querer tirar conclusões gerais, ou lhes atribuir maior sentido que o de serem simples emoções e
sentimentos: é esta a poesia pròpriamente, ou simplesmente, lírica. A esta é que Polímnia rege.
Pode também a poesia lírica exprimir não sentimentos ou emoções do poeta, senão o conceito
que forma desses sentimentos, ou dos alheios: é esta, pròpriamente, a poesia elegíaca, que não
há mister que seja triste, como o uso vulgar do nome ordinàriamente indica. Desta poesia Érato
é a musa. Pode, por fim, a poesia lírica dedicar-se a exaltar ou a deprimir a pessoa ou os feitos
de outrem, não tanto os comentando, quanto os elevando ou diminuindo: é esta, em seus dois
ramos, a poesia heróica e a satírica. A estas legitimamente rege Calíope, se bem que lhe não
dessem os antigos a regência da sátira.
5
[ms.] [1913?]
[Poesia e Música]
A poesia é a emoção expressa em ritmo através do pensamento, como a música é essa mesma
expressão, mas directa, sem o intermédio da ideia.
Musicar um poema é acentuar-lhe a emoção, reforçando-lhe o ritmo.
6
[ms.] [1915?]
Estética
[Poesia e Música]
Poesia lírica primeiro música+poesia, poesia cantada. Depois a poesia tomou para si o ritmo. A
música passou a expressar sentimentos por si, e a poesia lírica a ter música em si (Cf. as
poesias de Shelley e a sua má musicabilidade). A sátira, o epigrama são duros, mas é porque a
música do satirizar é a aspereza e a [...]
Toda a poesia lírica tem, ou deve ter, uma música própria (como Tennyson tem). - A arte que
poetas líricos, às vezes instintivos de todo, têm, é uma composição musical.
Uma poesia (lírica ou outra) exige intérprete, como uma partitura (trecho musical); só que na
poesia a interpretação é mais restritamente inindividualizável por causa do elemento fixador.
VII
Sobre as Escolas Literárias
1
[ms.] [1915?]
Classicismo
O movimento da ode grega - estrofe, antístrofe, epodo - não representa uma invenção dos
Gregos, mas uma descoberta sua. Não é um postulado da inteligência grega; é um axioma da
inteligência humana, que aos Gregos foi dado encontrar. A sua constatação não é a duma teoria
artística, é a de um facto científico, de uma lei da inteligência.
Este triplo movimento não é só a lei da ode, o fundamento eterno [var.: perene] da poesia lírica;
é, mais, a lei orgânica da disciplina mental, o regulamento eterno da criação psíquica. É a
constatação superior do facto simples de que todas as cousas têm um princípio, um meio e um
fim, de que o princípio conteria já em si o fim, e a indicação do meio; e de que o meio é o modo
como o princípio se torna fim.
A tal ponto esta descoberta psicológica dos Gregos - mais importante, por certo, que a
subversão por Galilei da astronomia Ptolemaica - é uma lei do espírito, que a vemos reaparecer
várias vezes, e sempre com o mesmo carácter de eterna, na história do pensamento. Outra
cousa não é o triplo movimento - tese, antítese, síntese - da dialéctica de Platão. Outra cousa
não é o pensamento substancial de Hegel - em que o ser em si (Sein) se torna outro-ser
(Dasein) e volta a si (für sich Sein). Outra base não tem, no seu exterior filosófico, a doutrina
cristã da Trindade divina, que representa Deus como sendo aquele de quem tudo procede, como
Pai, por quem tudo existe, como Filho, e para quem tudo existe, como Espírito Santo; havendo
assim, no entender da filosofia cristã, já uma previsão da doutrina rígida de Hegel na doutrina
fluida de S. Paulo.
Perderemos [var.: Erraremos] por completo o sentido do classicismo se não nos obrigamos a
estudá-lo como deve ser estudado - na Grécia, onde nasceu, e segundo a lei do pensamento. Da
Grécia para cá não tem havido senão aplicações tortuosas e incertas da Disciplina helénica.
Há, depois, que distinguir no classicismo [var.: na arte grega], como em tudo mais, entre a
matéria e a forma. A matéria dá-a a sensibilidade, o temperamento especial, a visão individual [?]
do artista; a forma supõe a inteligência. Geral na sua natureza, como a ciência, seu produto
màximamente característico, é antiparticular de sua índole.
O pseudoclassicismo francês - Boileau, Corneille, Racine - foi na cultura europeia o pior inimigo
da tradição clássica, porque foi o seu desvirtuador, e, como disse Tennyson, «a mentira que é
meia verdade é a pior das mentiras». O classicismo francês é um classicismo de duas
dimensões, um classicismo de silhueta ou [var.: e] de papel cortado. A disciplina helénica é
aplicada, mas não há sensibilidade a que aplicá-la. O grego aceitava, a mãos plenas, a
experiência integral da vida da emoção; e a essa experiência plena impunha a disciplina da sua
inteligência (abstracta). O francês
castra, limita, arredonda primeiro a experiência da vida, depois é que disciplina essa
sensibilidade que castrou. O classicismo que resulta é tão natural como a castidade num
eunuco. É como o escolar que, tendo que fazer uma soma de parcelas compostas de números
inteiros e de quebrados, começasse, para chegar a uma soma perfeita, por apagar do quadro os
quebrados. O francês não tem força mental para aceitar a experiência total da vida; tem que ter
dieta na sensibilidade para a poder digerir com a inteligência.
Quando, como no Romantismo, adquiriu a sensibilidade plena, o espírito francês revelou
imediatamente a sua debilidade; perdeu o poder da disciplina, produziu as monstruosidades
construtivas que são os poemas de Hugo, de Musset e de Lamartine. Só, e em alguns poemas,
a alma triste de Vigny conseguiu filiar-se, em estilo Chénier, na velha, na grande tradição da
Beleza. O espírito francês é a apoteose do secundário.
Só em Flaubert [...]. Mais uma prova da secundariedade intelectual da França. Só atingiu o ideal
clássico num género secundário - no romance. Nem na poesia épica, nem na dramática...
2
[ms.] [1915?]
O Sentido do Classicismo
Entre as tendências recentes do espírito crítico europeu há uma que acima de todas avulta quer
pelo (...) como está espalhada, quer pela coesão inteira dos vários pontos que representam a
essência da sua doutrina. Essa tendência - representada pelo movimento conservador em
política - aflora na crítica literária sob a forma do chamado neoclassicismo.
No nome da doutrina vai já a sua explicação. Ela inclui uma contraposição aos princípios
românticos ou pós-românticos - considerados quer como literàriamente falsos (Matthew Arnold),
quer como a forma literária de princípios politicos dissolventes - dos princípios por que
ostensivamente se regia a literatura pré-revolucionária.
Como, porém, os expositores deste sistema não primem pela originalidade (cf. Maurras), sucede
que, na elaboração dessa doutrina, caem em três erros (...).
Os 3 erros são: 1) errar o ponto de partida desses princípios clássicos; 2) confundir o conteúdo
da obra de arte com o seu (...), a sua estática com a sua dinâmica; 3) fazer crítica literária sem
referência a condições médias (?).
O primeiro erro é dos conservadores franceses, e, de aí, dos que eles influenciam. Consiste em
confundir a essência dos princípios clássicos com a sua aplicação em determinada época.
Assim, quando defendem os princípios clássicos, defendem, em geral, apenas os princípios do
século dezassete, e, o que é pior, do século XVII em França. Não reparam, porém, que a
mentalidade francesa difere muito da mentalidade grega. O grego aceita as sensações e a vida e
subordina-as a uma disciplina intelectual. O francês, incapaz de criar uma disciplina superior,
trunca e restringe a vida e o sentimento para os poder disciplinar. É como um escolar que, tendo
que somar parcelas (...) (1).
O papel da inteligência, no romantismo, é apenas representativo; serve apenas para exprimir a
emoção que inspirou o poema. Nos pseudoclássicos dos séculos anteriores, o papel da
inteligência é outro - é criar a emoção; não criar nenhuma, é claro, porque esse papel é antihumano, ao passo que o dos românticos é apenas inferiormente humano.
(1) Cf. o fragmento anterior.
3
[ms.] [1914?]
[Neoclassicismo e Romantismo]
O que a nossa época sente é um desejo de inteligência. O que a desgosta no romantismo é a
escassez dos elementos intelectuais, quer directamente pela escassez, quer pela subordinação
deles aos elementos emotivos. O único elemento intelectual notável no romantismo é o da
especulação, da reflexão, aparecido naturalmente pela ruína progressiva das influências
religiosas. Nisto o romantismo é forte, porque está na grande tradição civilizacional europeia, que
é a tradição helénica, do individualismo racionalista.
Por outra parte o romantismo é o aboutissement de outra tradição, a cristã; é isso pelo seu
emotivismo e subjectivismo. De novo, o que o romantismo trouxe foi o sentimento, propriamente
tal, da Natureza. (A renovação da metáfora e da imagem.)
O «classicismo» decadente, a que o romantismo se seguiu e se opôs, não tinha pensamento,
não tinha emoção, não tinha alma. Custa-nos hoje a crer num Delille, nos Árcades. Como, salvo
alguns versos, pesam hoje sobre nós tedientamente The Traveller, The Deserted Village,
Retaliation!
O fim do classicismo teve talento só na sátira, na poesia social, no género de que os vers de
société são uma espécie.
Quanto maior a subjectividade da Arte, maior tem que ser a sua objectividade, para que haja
equilíbrio, sem o qual não há vida, nem, portanto, vida ou duração da mesma arte. Como o
romantismo tinha mais emoção, tinha que ter mais pensamento; como tinha mais subjectividade,
tinha que ter mais objectividade.
[Ao alto deste fragmento, a lápis, escreveu F. Pessoa, para confronto: «A. de Campos: A nossa
época está farta de inteligência. A inteligência é infecunda [...] As filosofias irracionalistas.]
4
[dact.] [1917?]
[O perigo do Romantismo]
O verdadeiro perigo do romantismo é que os princípios, por que se rege ou diz reger, são de
natureza a que os possa invocar qualquer, para conferir a si-próprio a categoria de artista. Tomar
a ânsia de uma felicidade inatingível, a angústia dos sonhos irrealizados, a inapetência ante a
acção e a vida, como critério definidor do génio ou do talento, imediatamente facilita a todo o
indivíduo que sente aquela ânsia, sofre daquela angústia, e é presa daquela inapetência, o
convencimento de que é uma individualidade interessante, que o Destino, fadando-a para
aquelas ânsias, aqueles sofrimentos, e aquelas impossibilidades, implicitamente fadou para a
grandeza intelectual.
Na teoria clássica não era assim. O discípulo dos antigos apoiava a sua crença em que era
poeta em faculdades de construção e de coordenação, em uma disciplina interior que não é tão
fácil a qualquer presumir, para si mesmo, que possui. Não é tão fácil, em relação às pretensões
que são a base do romantismo, do sentimento romântico. Há basta gente que pode crer-se,
falsamente, dotada de qualidades construtivas em arte; mas toda a agente, e não alguma, pode
julgar-se artista, quando as qualidades fundamentais exigidas são um sentimento de vácuo nos
desejos, um sofrimento sem causa, e uma falta de vontade para trabalhar - característicos que
mais ou menos todos possuem, e que nos degenerados e nos doentes do espírito assumem um
relevo especial.
Não é no estímulo que dá ao individualismo que o perigo romântico consiste; consiste, sim, no
estímulo que dá a um falso individualismo. O individualismo não é necessàriamente falso;
quando muito, é uma teoria moral e política. Mas há uma certa forma do individualismo - como
há uma certa forma do classicismo - que é com certeza falsa. É a que permite que o primeiro
histérico ou o mais reles dos neurasténicos se arrogue o direito de ser poeta pelas razões que,
de per si, só lhe dão o direito de se considerar histérico ou neurasténico.
Quando um poeta romântico canta, lamentando-se, a eterna imperdurabilidade das coisas, faz
uso legítimo de um sentimento bem humano. Quando, do fundo da sua dor, sofrendo pelo
contacto com a humanidade, apela para a grande Natureza e para o seu constelado repouso, faz
uso legítimo de uma emoção que, sendo velha como a humanidade, nem sempre serviu de tema
poético.
A ruína de uma vida simples, ou de uma vida reles, é tão trágica como a ruína de uma vida
grande, ou de uma vida nobre; mas isso é vistas de fora, não de dentro. A ruína de uma alma
reles não pode ser grande para a alma reles, porque ela é uma alma reles.
5
[dact.] [1918?]
[Sobre o Romantismo]
O movimento literário, a que ordinàriamente se chama romantismo, contrapôs-se de três
maneiras ao classicismo que o precedera. À estreiteza e secura dos processos clássicos
substituiu o uso da imaginação, liberta, quanto possível, de outras leis, que não as suas próprias.
À mesquinhez especulativa da arte clássica, onde a inteligência aparece apenas como elemento
formativo, e nunca como elemento substancial, substituiu a literatura feita com ideias. À clássica
subordinação da emoção à inteligência, substituiu, invertendo-a, a subordinação da inteligência à
emoção, e do geral ao particular. Os dois primeiros processos representaram uma inovação, e
uma vigoração da arte; o terceiro é puramente mórbido.
Segundo aquele movimento cíclico, que parece ser o de toda a civilização, o romantismo, nos
seus dois processos verdadeiramente inovadores, não fez mais que reeditar o helenismo, contra
a fórmula clássica, mais latina que grega. Nestes dois pontos, de resto, ele é o continuador
daquilo que a Renascença trouxe de novo - mas também de helénico - à literatura da Europa. No
que teve de próprio, a substituição da ordem da inteligência e da emoção, o romantismo foi um
simples fenómeno de decadência; e foi porque a Renascença não mostrou este terceiro
característico que ela pôde atingir um nível poético mais alto, pois que no romantismo não há
Dante nem Milton, tal a falência construtiva de que o novo sistema vinha inquinado.
No seu desenvolvimento, o romantismo, que nasceu mórbido, esfacelou-se. Desintegrou-se nos
seus três elementos componentes, e cada um destes passou a ter uma vida própria, a formar
uma corrente separada das outras. Da substituição da imaginação ao escrúpulo imitativo nasceu
toda a literatura da Natureza que distinguiu o século passado. Da introdução da especulação na
substância da arte nasceu toda a literatura realista. Da inversão das posições mentais da
inteligência e da emoção nasceu todo o movimento decadente, simbolista, e os seguintes.
É claro que estes elementos, embora criassem correntes que podem dizer-se separadas, não
estão separados; e a maioria dos cultores das literaturas nascidas dos dois primeiros estão
viciados pelo preconceito personalista que é a base mórbida do terceiro.
O século vinte encontrou diante de si, herdado do século que o precedeu, um problema
fundamental - o da conciliação da Ordem, que é intelectual e impessoal, com as aquisições
emotivas e imaginativas dos tempos recentes.
É impossível resolver este problema, como querem os integralistas franceses, pela supressão de
um dos seus termos. É igualmente impossível resolvê-lo aceitando a predominância da emoção
sobre a razão, porque, aceite esta predominância, desaparece a ordem, e o problema está por
resolver. Evidentemente que há só uma solução: o levar a personalidade do artista ao abstracto,
para que contenha em si mesma a disciplina e a ordem. Assim a ordem será subjectiva e não
objectiva.
Tornar a imaginação abstracta, tornar a emoção abstracta, é o caminho.
[ms.]
Dramatização da emoção. Os homens da Renascença já a tinham; a sua poesia da emoção é
impessoal e humanamente universal.
Emoção do abstracto.
A literatura de fantasia, que irrompeu com os transcendentalistas alemães e seguidamente nos 2
grandes poemas de Goleridge. Este elemento é de origem medieval.
Por dramatização da emoção entendo o despir a emoção de tudo quanto é acidental e pessoal,
tornando-a abstracta - humana.
In Fernando Pessoa, «Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias», ed. Georg Rudolf
Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa, Edições Ática, 2.ª ed, 1973.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação
Fernando Pessoa
I
Notas Autobiográficas e de Autognose
1
Jamais houve alma mais amante ou terna do que a minha, alma mais repleta de bondade, de
compaixão, de tudo o que é ternura e amor. Contudo, nenhuma alma há tão solitária como a
minha – solitária, note-se, não mercê de circunstâncias exteriores, mas sim de circunstâncias
interiores. O que quero dizer é: a par da minha grande ternura e bondade, entrou no meu
carácter um elemento de natureza inteiramente oposta, um elemento de tristeza, egocentrismo,
portanto de egoísmo, produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o desenvolvimento e a
plena acção interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, deprimindo a vontade, a sua plena
acção externa, a sua manifestação. Hei-de analisar isto; um dia hei-de examinar melhor,
destrinçar, os elementos que constituem o meu carácter, pois a minha curiosidade acerca de
tudo, aliada à minha curiosidade por mim próprio e pelo meu carácter, conduz a uma tentativa
para compreender a minha personalidade.
*
Foi por causa destas características que eu escrevi acerca de mim próprio, em «The Writers
Day»(1):
Alguém como Rousseau,
Misantrópico amante da humanidade.
De facto, tenho muitas, demasiadas, afinidades com Rousseau. Em certas coisas, é idêntico o
nosso carácter. O caloroso, intenso, inexprimível amor da humanidade e a dose de egoísmo que
o contrapesa – eis uma característica fundamental do seu carácter, e também do meu.
*
O meu intenso sofrimento patriótico, o meu intenso desejo de melhorar o estado de Portugal,
provocam em mim – como exprimir com que ardor, com que intensidade, com que sinceridade! –
mil projectos que, mesmo se realizáveis por um só homem, exigiriam dele uma característica
puramente negativa em mim – força de vontade. Mas sofro – até aos limites da loucura, juro-o –
como se tudo eu pudesse fazer sem, no entanto, o poder realizar, por deficiência da vontade. É
um sofrimento horrível que, afirmo-o, me mantém constantemente nos limites da loucura.
E, depois, incompreendido. Ninguém suspeita do meu amor patriótico, mais intenso do que o de
todos aqueles a quem encontro ou conheço. Não o traio; como sei, então, que não o possuem?
Como posso dizer que a sua preocupação não iguala a minha? Porque, nalguns casos – na
maior parte, até – o seu temperamento é inteiramente diferente; porque, nos outros casos, a sua
maneira de falar revela a ausência de, ao menos, um patriotismo nominal.
O fervor, a intensidade – terna, revoltada e ardente – do meu, jamais os exprimirei, [...]
Além dos meus projectos patrióticos – escrever «República de Portugal», provocar aqui uma
revolução, escrever panfletos portugueses, dirigir a publicação de obras literárias nacionais mais
antigas, fundar um periódico, uma revista científica, etc.– outros planos em que me consumo na
necessidade de serem em breve postos em prática [...] conjugam-se para produzir um impulso
excessivo que me paralisa a vontade. O sofrimento que isto produz não sei se poderá ser
definido como situado aquém da loucura.
A tudo isto acrescentem-se ainda outros motivos de sofrimento, alguns físicos, mentais outros, a
susceptibilidade a toda a coisa comezinha que possa ser dolorosa (ou que o não seria, até, para
um homem normal), acrescentem-se ainda outras coisas, complicações, dificuldades de dinheiro
- junte-se isto tudo ao meu temperamento fundamentalmente desequilibrado e talvez se possa
suspeitar qual a intensidade do meu sofrimento.
30.10.08
Uma das minhas complicações mentais – mais horrível do que as palavras podem exprimir – é o
medo da loucura, o qual, em si, já é loucura. Encontro-me em parte no estado que Rollinat
denuncia como seu no poema inicial (segundo creio) das suas «Névroses». Impulsos, alguns
deles criminosos, loucos outros, que chegam, por entre o meu sofrimento excruciante, a uma
tendência horrível para a acção, uma terrível muscularidade, sentida nos músculos, quero eu
dizer – eis coisas frequentes em mim, e o seu horror e intensidade – agora maiores do que
nunca em número como em intensidade – são indescritíveis.
2
Tenho pensamentos que, pudesse eu trazê-los à luz e dar-lhes vida, emprestariam nova leveza
às estrelas, nova beleza ao mundo, e maior amor ao coração dos homens.
3
Compromisso entre Alexandre Busca, residente no Inferno, Nenhures, e Jacob Satanás, senhor,
embora não rei, do mesmo lugar:
1. Nunca esmorecer nem recuar no propósito de fazer bem à humanidade.
2. Nunca escrever coisas sensuais, ou más a qualquer outro respeito, que possam lesar e
prejudicar quem as ler.
3. Nunca esquecer, ao atacar a religião em nome da verdade, que a religião dificilmente pode ser
substituída e que o pobre ser humano chora nas trevas.
4. Nunca esquecer o sofrimento e o padecimento dos homens.
┼ A marca de Satanás.
2 de Outubro de 1907
Alexandre Busca
4
A primeira nutrição literária da minha meninice foi a que se encontrava em numerosos romances
de mistério e de aventuras horríveis. Pouco me interessavam os livros ditos para rapazes e que
relatam vivências emocionantes. Não me atraía a vida saudável e natural. Anelava, não pelo
provável, mas pelo incrível, nem sequer pelo impossível em grau, mas sim pelo impossível por
natureza.
A minha infância decorreu serena (...), recebi uma boa educação. Mas, desde que tenho
consciência de mim mesmo, apercebi-me de uma tendência nata em mim para a mistificação,
para a mentira artística. Junte-se a isto um grande amor pelo espiritual, pelo misterioso, pelo
obscuro, que, ao fim e ao cabo, não era senão uma forma e uma variante daquela outra minha
característica, e a minha personalidade será completa para a intuição.
5
[ms.][1910?]
Eu era um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas.
Adorava admirar a beleza das coisas, descortinar no imperceptível, através do que é diminuto, a
alma poética do universo.
A poesia da terra nunca morre. É possível dizermos que as eras transactas foram mais poéticas,
mas podemos dizer (...)
Há poesia em tudo - na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na
cidade - não o neguemos - facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia
nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas; em cada
movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de
um talho.
O meu sentido interior de tal modo predomina sobre os meus cinco sentidos que – estou
convencido – vejo as coisas desta vida de modo diferente do dos outros homens. Existe para
mim – existia – um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na
parede, os bigodes de um gato. Encontro toda uma plenitude de sugestão espiritual no
espectáculo de uma ave doméstica com os seus pintainhos que, com ar pimpão, atravessam a
rua. Encontro um significado mais profundo do que as lágrimas humanas no aroma do sândalo,
nas latas velhas jazendo numa montureira, numa caixa de fósforos caída na valeta, em dois
papéis sujos que, num dia ventoso, rolam e se perseguem rua abaixo. É que poesia é espanto,
admiração, como de um ser tombado dos céus em plena consciência da sua queda, atónito com
as coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas e se esforçasse por rememorar
esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não com estas formas
e nestas condições, mas de nada mais se recordando.
6
[dact.][1910?]
Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. Não importa o meu nome, nem quaisquer
outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe
dizer algo.
Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser
positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio.
Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas
as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um
medo por de mais inteligente.
Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha vida,
pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendências) – por tudo isto o
meu carácter é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente mas perdido em si
próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no
ódio, no horror da e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente,
para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do
autodomínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles
ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis
associações de ideias cujo termo era o infinito. Não posso evitar o ódio que os meus
pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e
destes dez mil pensamentos brotam dez mil interassociações, e não tenho força de vontade para
os eliminar ou deter, nem para os reunir num só pensamento central em que se percam os
pormenores sem importância mas a eles associados. Perpassam dentro de mim; não são
pensamentos meus, mas sim pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho;
não estou inspirado, deliro. Sei pintar mas nunca pintei, sei compor música, mas nunca compus.
Estranhas concepções em três artes, belos voos de imaginação acariciam-me o cérebro; mas
deixo-os ali dormitar até que morrem, pois falta-me poder para lhes dar corpo, para os converter
em coisas do mundo externo.
O meu carácter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos. Afligeme a ideia de se encontrar uma solução para os mais altos, mais nobres, problemas da ciência,
da filosofia; a ideia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo enche-me de
horror. Que as coisas mais momentosas se concretizem, que um dia os homens venham todos a
ser felizes, que se encontre uma solução para os males da sociedade, mesmo na sua concepção
– enfurece-me. E, contudo, não sou mau nem cruel; sou louco, e isso duma forma difícil de
conceber.
Embora tenha sido leitor voraz e ardente, não me lembro de qualquer livro que haja lido, em tal
grau eram as minhas leituras estados do meu próprio espírito, sonhos meus – mais, provocações
de sonhos. A minha própria recordação de acontecimentos, de coisas externas, é vaga, mais do
que incoerente. Estremeço ao pensar quão pouco resta no meu espírito do que foi a minha vida
passada. Eu, um homem convicto de que hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de
hoje.
7
Apontamentos pessoais
[ms.][1910?]
Deixei para trás o hábito de ler. Já nada leio a não ser um ou outro jornal, literatura ligeira e
ocasionalmente livros técnicos relacionados com o que porventura estudo e em que o simples
raciocínio possa ser insuficiente.
O género definido de literatura quase o abandonei. Poderia lê-lo para aprender ou por gosto.
Mas nada tenho a aprender, e o prazer que se obtém dos livros é do género que pode ser
substituído com proveito pelo que me pode proporcionar directamente o contacto com a natureza
e a observação da vida.
Encontro-me agora em plena posse das leis fundamentais da arte literária. Shakespeare já não
me pode ensinar a ser subtil, nem Milton a ser completo. O meu intelecto atingiu uma
flexibilidade e um alcance tais que me permitem assumir qualquer emoção que deseje e penetrar
à vontade em qualquer estado de espírito. Quanto àquilo por que sempre se luta com esforço e
angústia, ser-se completo, não há livro que valha.
Isto não significa que eu tenha sacudido a tirania da arte literária. Aceito-a apenas sujeita a mim
próprio.
Há um livro de que ando sempre acompanhado«As Aventuras de Pickwick»(2). Li várias vezes
os livros de Mr. W. W. Jacobs. O declínio do romance policial fechou para sempre uma das
minhas portas de acesso à literatura moderna.
Deixei de me interessar por pessoas que são apenas inteligentes – Wells, Chesterton, Shaw. As
ideias desta gente são das que ocorrem a muitos que não são escritores; a construção das suas
obras é inteiramente um valor negativo.
Tempo houve em que eu lia apenas pela utilidade da leitura, mas agora compreendo que há
pouquíssimos livros úteis, mesmo os que versam assuntos técnicos que me possam interessar.
A sociologia é [...]; quem pode tolerar tal escolástica na Bizâncio de hoje?
Todos os meus livros são de consulta. Leio Shakespeare apenas em relação com o «Problema
de Shakespeare»; o resto já o sei.
Descobri que a leitura é uma forma servil de sonhar. Se tenho de sonhar, porque não sonhar os
meus próprios sonhos? [...]
8
Plano de Vida
[dact.][1913?]
Um plano geral para a vida deve implicar, antes de mais, alcançar-se qualquer forma de
estabilidade financeira. Marquei como limite para essa coisa humilde a que chamo estabilidade
financeira cerca de sessenta dólares - quarenta para o necessário, e vinte para as coisas
supérfluas da vida. A forma de o alcançar é adicionar aos trinta e um dólares dos dois escritórios
(P & FF) vinte e nove dólares de proveniência a determinar. Em rigor, para viver apenas,
cinquenta dólares bastariam, pois, tomando trinta e cinco como base necessária, quinze já
davam para o resto.
*
A coisa essencial que vem logo a seguir é residir numa casa com bastante espaço, espaço
quanto a divisões e divisões com os requisitos necessários, para arrumar todos os meus papéis
e livros na devida ordem; e tudo isto sem grande possibilidade de me mudar dentro de pouco
tempo. Parece que o mais fácil seria alugar eu próprio uma casa – à base de, suponhamos, oito
ou, quando muito, nove dólares – e viver lá à vontade, combinando que me levassem o jantar (e
o pequeno-almoço) todos os dias, ou coisa parecida. Mas seria este sistema absolutamente
conveniente?
Substituir, no tocante à ordem dos papéis, a minha caixa grande por caixas mais pequenas
contendo os papéis por ordem de importância. Na caixa grande e na outra em A. S. ficariam só
os jornais e revistas que guardo.
*
Alugada uma casa, qual o mobiliário? Não seria melhor combinar de novo as coisas com S? De
modo a alcançar isto de que preciso, mudando-nos nós, se necessário, para tanto?
*
Seja como o Destino quiser.
9
[ms.] [1914?]
Cada vez estou mais só, mais abandonado. Pouco a pouco quebram-se-me todos os laços. Em
breve ficarei sozinho.
*
O meu pior mal é que não consigo nunca esquecer a minha presença metafísica na vida. De aí a
timidez transcendental que me atemoriza todos os gestos, que tira a todas as minhas frases o
sangue da simplicidade, da emoção directa.
10
[ms.] [1915?]
Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as cousas como verdadeiramente
são – como são para os outros.
Sinto isto.
11
Prefácio (aproveitar para o «Shakespeare»?) (3)
Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência
masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem
o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação – a
inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso - são de homem.
Quanto à sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de amar, tenho
dito tudo. Magoava-me sempre o ser obrigado, por um dever de vulgar reciprocidade – uma
lealdade do espírito – a corresponder. Agradava-me a passividade. De actividade, só me aprazia
o bastante para estimular, para não deixar esquecer-me, a actividade em amar daquele que me
amava.
Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no espírito.
Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tive nunca a
certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia
descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse
impulso; mas bastava o desejo para me humilhar. Somos vários desta espécie, pela história
abaixo - pela história artística sobretudo. Shakespeare e Rousseau são dos exemplos, ou
exemplares, mais ilustres. E o meu receio da descida ao corpo dessa inversão do espírito radica-mo a contemplação de como nesses dois desceu - completamente no primeiro, e em
pederastia; incertamente no segundo, num vago masoquismo.
12
[Carta a Mário Beirão] (4)
Lisboa, 1 de Fevereiro de 1913.
Meu querido Mário Beirão:
Deu-me um grande prazer a sua carta de 25, que há dias recebi. Tinha muita pena, é certo, que
v. não me tivesse escrito ainda, mas, como eu também lhe não tinha escrito, não me cabia o
direito objectivo de ter essa pena. O pior para mim é que eu, por certo, sinto mais a falta de
correspondência que v. Estou, quanto a companhia espiritual e imediata, quase só, se não só em
absoluto... Não sou das pessoas menos acompanháveis por si próprias, mas ainda assim – e de
vez em quando aborreço-me de não andar senão comigo.
Por isto a sua carta, ainda que breve, me causou uma grande alegria.
Estou actualmente atravessando uma daquelas crises a que, quando se dão na agricultura, se
costuma chamar «crises de abundância».
Tenho a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso que preciso fazer da minha atenção
um caderno de apontamentos, e, ainda assim, tantas são as folhas que tenho a encher, que
algumas se perdem, por elas serem tantas, e outras se não podem ler depois, por com mais que
muita pressa escritas. As ideias que perco causam-me uma tortura imensa, sobrevivem-se nessa
tortura, escuramente outras. V. dificilmente imaginará que Rua do Arsenal, em matéria de
movimento, tem sido a minha pobre cabeça. Versos ingleses, portugueses, raciocínios, temas,
projectos, fragmentos de coisas que não sei o que são, cartas que não sei como começam ou
acabam, relâmpagos de críticas, murmúrios de metafísicas... Toda uma literatura, meu caro
Mário, que vai da bruma – para a bruma – pela bruma...
Destaco de coisas psíquicas de que tenho sido o lugar, o seguinte fenómeno que julgo curioso.
V. sabe, creio, que de várias fobias que tive guardo unicamente a assaz infantil mas
terrivelmente torturadora fobia das trovoadas. O outro dia o céu ameaçava chuva e eu ia a
caminho de casa e por tarde não havia carros. Afinal não houve trovoada, mas esteve iminente e
começou a chover - aqueles pingos graves, quentes e espaçados – ia eu ainda a meio do
caminho entre a Baixa e minha casa. Atirei-me para casa com o andar mais próximo do correr
que pude achar, com a tortura mental que v. calcula, perturbadíssimo, confrangido eu todo. E
neste estado de espírito encontro-me a compor um soneto – acabei-o uns passos antes de
chegar ao portão de minha casa –, a compor um soneto de uma tristeza suave, calma, que
parece escrito por um crepúsculo de céu limpo. E o soneto é não só calmo, mas também mais
ligado e conexo que algumas coisas que eu tenho escrito. O fenómeno curioso do
desdobramento é coisa que habitualmente tenho, mas nunca o tinha sentido neste grau de
intensidade. Como prova do género calmo do soneto, aqui lho transcrevo:
ABDICAÇÃO
Toma-me, ó Noite Eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho... Eu sou um Rei
Que voluntàriamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei,
E meu ceptro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas dum tinir tão fútil
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a Realeza, corpo e alma,
E regressei à Noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
Dê saudades minhas ao Vila-Moura e escreva-me breve e o mais extensamente que puder.
Um grande abraço do seu dedicadíssimo
FERNANDO PESSOA
Rua Passos Manuel, 24, 3.º E.
14
[ms.] [1915?]
Ficarei o Inferno de ser Eu, a Limitação Absoluta, Expulsão-Ser do Universo longínquo! Ficarei
nem Deus, nem homem, nem mundo, mero vácuo-pessoa, infinito de Nada consciente, pavor
sem nome, exilado do próprio mistério, da própria Vida. Habitarei eternamente o deserto morto
de mim, erro abstracto da criação que me deixou atrás. Arderá em mim eternamente, inutilmente,
a ânsia (estéril) do regresso a ser.
Não poderei sentir porque não terei matéria com que sinta, não poderei respirar [?] alegria, ou
ódio, ou horror, porque não tenho nem a faculdade com que o sinta, consciência abstracta no
inferno do não conter nada, não-Conteúdo Absoluto, [Sufocação] absoluta e eterna! Oco de
Deus, sem universo, (...).
15
[Prece]
[ms.] [1912?]
Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu!
Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu
habitas e onde tudo está – (o teu templo) – eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na
terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus
pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar
os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
[... ]
Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma
possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua,
para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver
sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.
16
[ms.] [1914?]
Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na
humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o número aúreo e reduzido das horas felizes
que a Vida deixa que eu passe, conto por do melhor ano aquelas em que a leitura de Conan
Doyle ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo.
Um volume de um destes autores, um cigarro de 45 ao pacote, a ideia de uma chávena de cafétrindade cujo ser-uma é o conjugar a felicidade para mim – resume-se nisto a minha felicidade.
Seria pouco para muitos, a verdade é que não pode aspirar a muito mais uma criatura com
sentimentos intelectuais e estéticos no meio europeu actual.
Talvez seja para os senhores como que causa de pasmo, não o eu ter estes por meus autores
predilectos - e de quarto de cama, mas o eu confessar que nesta conta pessoal assim os tenho.
17
Estética da abdicação
[dact.] [1913?]
Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso toda a vitória é uma
grosseria. Os vencedores perdem sempre todas as qualidades de desalento com o presente que
os levaram à luta que lhes deu a vitória. Ficam satisfeitos, e satisfeito só pode estar aquele que
se conforma, que não tem a mentalidade do vencedor. Vence só quem nunca consegue. Só é
forte quem desanima sempre. O melhor e o mais púrpura é abdicar. O império supremo é o do
Imperador que abdica de toda a vida normal, dos outros homens, em quem o cuidado da
supremacia não pesa como um fardo de jóias.
18
[ms.] 21.11.1914
Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver à altura do meu mister, e, por isso, de
desprezar a ideia do reclame, e plebeia sociabilização de mim, do Interseccionismo, reentrei de
vez, de volta da minha viagem de impressões pelos outros, na posse plena do meu Génio e na
divina consciência da minha Missão. Hoje só me quero tal qual meu carácter nato quer que eu
seja; e meu Génio, com ele nascido, me impõe que eu não deixe de ser.
Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose por pose, a pose de
ser o que sou.
Nada de desafios à plebe, nada de girândolas para o risa ou a raiva dos inferiores. A
superioridade não se mascara de palhaço; é de renúncia e de silêncio que se veste.
O último rasto de influência dos outros no meu carácter cessou com isto. Reconheci – ao sentir
que podia e ia dominar o desejo intenso e infantil de «lançar o Interseccionismo» – a tranquila
posse de mim.
Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.
19
[ms.] [1914?]
Pertenço a uma geração que ainda está por vir, cuja alma não conhece já, realmente, a
sinceridade e os sentimentos sociais. Por isso não compreendo como é que uma criatura fica
desqualificada, nem como é que ela o sente. É oca de sentido, para mim, toda essa (...) das
conveniências sociais. Não sinto o que é honra, vergonha, dignidade. São para mim, como para
os do meu alto nível nervoso, palavras de uma língua estrangeira, como um som anónimo
apenas.
Ao dizerem que me desqualificaram, eu não percebo senão que se fala de mim, mas o sentido
da frase escapa-me. Assisto ao que me acontece, de longe, desprendidamente, sorrindo
ligeiramente das cousas que acontecem na vida. Hoje, ainda ninguém sente isto; mas um dia
virá quem o possa perceber.
Procurei sempre ser espectador da vida, sem me misturar nela. Assim, a isto que se passa
comigo, eu assisto como um estranho; salvo que tiro dos pobres acontecimentos que me cercam
a volúpia suave (5) de (...).
Não tenho rancor nenhum a quem provocou isto. Eu não tenho rancores nem ódios. Esses
sentimentos pertencem àqueles que têm uma opinião, ou uma profissão ou um objectivo na vida.
Eu não tenho nada dessas cousas. Tenho na vida o interesse de um decifrador de charadas.
Mas eu não tenho princípios. Hoje defendo uma cousa, amanhã outra. Mas não creio no que
defendo hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei. Brincar com as ideias e com os
sentimentos pareceu-me sempre o destino supremamente belo. Tento realizá-lo quanto posso.
Nunca me tinha sentido desqualificado. Como lhe agradecer ter-me ministrado esse prazer! Ele é
uma volúpia suave, como que longínqua...
Não nos entendem, bem sei...
... Assim como criador de anarquias me pareceu sempre o papel digno de um intelectual (dado
que a inteligência desintegra e a análise estiola).
20
Crónica da vida que passa (6)
[dact.]
As vezes, quando penso nos homens célebres, sinto por eles toda a tristeza da celebridade.
A celebridade é um plebeísmo. Por isso deve ferir uma alma delicada. É um plebeísmo porque
estar em evidência, ser olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensação de
parentesco exterior com as criaturas que armam escândalo nas ruas, que gesticulam e falam alto
nas praças. O homem que se torna célebre fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes
da sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mínimas
acções – ridiculamente humanas às vezes – que ele quereria invisíveis, coa-as a lente da
celebridade para espectaculosas pequenezes, com cuja evidência a sua alma se estraga ou se
enfastia. É preciso ser muito grosseiro para se poder ser célebre à vontade.
Depois, além dum plebeísmo, a celebridade é uma contradição. Parecendo que dá valor e força
às criaturas, apenas as desvaloriza e as enfraquece. Um homem de génio desconhecido pode
gozar a volúpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu génio; e pode, pensando
que seria célebre se quisesse, medir o seu valor com a sua melhor medida, que é ele-próprio.
Mas, uma vez conhecido, não está mais na sua mão reverter à obscuridade. A celebridade é
irreparável. Dela como do tempo, ninguém torna atrás ou se desdiz.
E é por isto que a celebridade é uma fraqueza também. Todo o homem que merece ser célebre
sabe que não vale a pena sê-lo. Deixar-se ser célebre é uma fraqueza, uma concessão ao baixoinstinto, feminino ou selvagem, de querer dar nas vistas e nos ouvidos.
Penso às vezes nisto coloridamente. E aquela frase de que «homem de génio desconhecido» é
o mais belo de todos os destinos, torna-se-me inegável; parece-me que esse é não só o mais
belo, mas o maior dos destinos.
Diz-se que os herméticos da Rosa-Cruz, seita esotérica e magista, descobriram, desde o início
dos tempos, o segredo da vida-eterna, o elixir da vida; que, nunca morrendo, passam de época
em época, através dos ciclos e das civilizações, despercebidos, nenhuns e, contudo, pela
grandeza da cousa transcendental que criaram, maiores do que os génios todos da evidência
humana. Da sua seita é o preceito, que cumprem, de se não darem nunca a conhecer. A sua
presença eterna, que vive à margem da nossa transiência, vive também fora da nossa
pequenez.
Vão-se-me os olhos da alma nessas figuras supostas – e quem sabe a que ponto reais? – que,
verdadeiramente, realizam o supremo destino do homem: o máximo do poder no mínimo da
exibição; o mínimo da exibição por certo, por terem o máximo do poder. O sentido das suas
vidas é divino e longínquo. Apraz-me crer que eles existam para que possa pensar nobremente
da humanidade.
21
[dact.] [Janeiro de 1917?]
Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação. O meu espírito vive
constantemente no estudo e no cuidado da Verdade, e no escrúpulo de deixar, quando eu despir
a veste que me liga a este mundo, uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade.
Reconheço que o sentido intelectual que esse Serviço da Humanidade toma em mim, em virtude
do meu temperamento, me afasta, muitas vezes, das pequenas manifestações que em geral
revelam o espírito humanitário. Os actos de caridade, a dedicação por assim dizer quotidiana
são cousas que raras vezes aparecem em mim, embora nada haja em mim que represente a
negação delas.
Em todo o caso, reconheço, em justiça para comigo próprio, que não sou mais egoísta que a
maioria dos indivíduos, e muito menos o sou que a maioria dos meus colegas nas artes e nas
letras. Pareço egoísta àqueles que, por um egoísmo absorvente, exigem a dedicação dos outros
como um tributo.
25
[ms.] [1934?]
Não é que não publique porque não quero: não publico porque não posso. Não se entendam
estas palavras como dirigidas contra a Comissão de Censura; ninguém tem menos razão de
queixa do que eu dessa Comissão. A Censura obedece, porém, a directrizes que lhe são
superiormente impostas; e todos nós sabemos quais são, mais ou menos, essas directrizes.
Ora sucede que a maioria das coisas que eu pudesse escrever não poderia ser passada pela
Censura. Posso não poder coibir o impulso de escrevê-las: domino fàcilmente, porque não o
tenho, o impulso de as publicar nem vou importunar os Censores com matéria cuja publicação
eles teriam forçosamente que proibir.
Sendo assim para quê publicar? Privado de poder publicar o que deveras interessará o público,
que empenho tenho eu em levar a um jornal qualquer o que, por ilegível, lhe não serve, ou que
(...)
Posso, é certo, dissertar livremente (e, ainda assim, só até certo ponto e em certos meios) sobre
a filosofia de Kant (...)
III
Para a Explicação da Heteronímia
1
[ms.] [1915?]
Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou vàriamente outro do que um
eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre
mim perpètuamente me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela
julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para
reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas
alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens,
incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.
2
[ms.] [s. d.]
Sê plural como o universo!
3
[dact.] [s. d]
Sendo nós portugueses, convém saber o que é que somos.
a) adaptabilidade, que no mental dá a instabilidade, e portanto a diversificação do indivíduo
dentro de si mesmo. O bom português é várias pessoas.
b) a predominância da emoção sobre a paixão. Somos ternos e pouco intensos, ao contrário
dos espanhóis - nossos absolutos contrários - que são apaixonados e frios.
Nunca me sinto tão portuguêsmente eu como quando me sinto diferente de mim – Alberto
Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, e quantos mais haja havidos ou por
haver.
4
[dact.] [1930?]
Aspectos [Prefácio para a edição projectada das suas obras]
A obra complexa, cujo primeiro volume é este, é de substância dramática, embora de forma vária
– aqui de trechos em prosa, em outros livros de poemas ou de filosofias.
É, não sei se um privilégio se uma doença, a constituição mental que a produz. O certo, porém, é
que o autor destas linhas – não sei bem se o autor destes livros – nunca teve uma só
personalidade, nem pensou nunca, nem sentiu, senão dramàticamente, isto é, numa pessoa, ou
personalidade, suposta, que mais pròpriamente do que ele próprio pudesse ter esses
sentimentos.
Há autores que escrevem dramas e novelas; e nesses dramas e nessas novelas atribuem
sentimentos e ideias às figuras, que as povoam, que muitas vezes se indignam que sejam
tomados por sentimentos seus, ou ideias suas. Aqui a substância é a mesma, embora a forma
seja diversa.
A cada personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele
deu uma índole expressiva, e fez dessa personalidade um autor, com um livro, ou livros, com as
ideias, as emoções, e a arte dos quais, ele, o autor real (ou porventura aparente, porque não
sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o ter sido, no escrevê-las, o médium de figuras
que ele próprio criou.
Nem esta obra, nem as que se lhe seguirão têm nada que ver com quem as escreve. Ele nem
concorda com o que nelas vai escrito, nem discorda. Como se lhe fosse ditado, escreve; e, como
se lhe fosse ditado por quem fosse amigo, e portanto com razão lhe pedisse para que
escrevesse o que ditava, acha interessante – porventura só por amizade – o que, ditado, vai
escrevendo.
O autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma. Quando acaso
sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente diferente do que ele é,
embora parecido; filho mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas as diferenças de ser
outrem.
Que esta qualidade no escritor seja uma forma da histeria, ou da chamada dissociação da
personalidade, o autor destes livros nem o contesta, nem o apoia. De nada lhe serviriam,
escravo como é da multiplicidade de si próprio, que concordasse com esta, ou com aquela,
teoria, sobre os resultados escritos dessa multiplicidade.
Que este processo de fazer arte cause estranheza, não admira; o que admira é que haja cousa
alguma que não cause estranheza.
Algumas teorias, que o autor presentemente tem, foram-lhe inspiradas por uma ou outra destas
personalidades que, um momento, uma hora, uns tempos, passaram consubstancialmente pela
sua própria personalidade, se é que esta existe.
Afirmar que estes homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma
incorporadamente, não existem - não pode fazê-lo o autor destes livros; porque não sabe o que
é existir, nem qual Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade.
Estes livros serão os seguintes, por enquanto: Primeiro, este volume, «Livro do Desassossego»,
escrito por quem diz, de si próprio chamar-se Vicente Guedes; depois «O Guardador de
Rebanhos» e outros poemas e fragmentos do (também, e do mesmo modo, falecido) Alberto
Caeiro, que nasceu próximo de Lisboa em 1889 e morreu onde nascera em 1915. Se me
disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho
provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer cousa quer que
seja.
Este Alberto Caeiro teve dois discípulos e um continuador filosófico. Os dois discípulos, Ricardo
Reis e Álvaro de Campos, seguiram caminhos diferentes; tendo o primeiro intensificado e
tornado artisticamente ortodoxo o paganismo descoberto por Caeiro, e o segundo, baseando-se
em outra parte da obra de Caeiro, desenvolvido um sistema inteiramente diferente, e baseado
inteiramente nas sensações. O continuador filosófico, António Mora (os nomes são tão
inevitáveis, tão impostos de fora como as personalidades), tem um ou dois livros a escrever,
onde provará completamente a verdade, metafísica e prática, do paganismo. Um segundo
filósofo desta escola pagã, cujo nome, porém, ainda não apareceu na minha visão ou audição
interior, dará uma defesa do paganismo baseada, inteiramente, em outros argumentos.
É possível que, mais tarde, outros indivíduos, deste mesmo género de verdadeira realidade,
apareçam. Não sei; mas serão sempre bem-vindos à minha vida interior, onde convivem melhor
comigo do que eu consigo viver com a realidade externa. Escuso de dizer que com parte das
teorias deles concordo, e que não concordo com outras partes. Estas cousas são perfeitamente
indiferentes. Se eles escrevem cousas belas, essas cousas são belas, independentemente de
quaisquer considerações metafísicas sobre os autores «reais» delas. Se, nas suas filosofias,
dizem quaisquer verdades – se verdades há num mundo que é o não haver nada – essas
cousas são verdadeiras independentemente da intenção ou da «realidade» de quem as disse.
Tornando-me assim, pelo menos um louco que sonha alto, pelo mais, não um só escritor, mas
toda uma literatura, quando não contribuísse para me divertir, o que para mim já era bastante,
contribuo talvez para engrandecer o universo, porque quem, morrendo, deixa escrito um verso
belo deixou mais ricos os céus e a terra e mais emotivamente misteriosa a razão de haver
estrelas e gente.
Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão
converter-se, ele só, em uma literatura? Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje,
que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos,
os seus companheiros de espírito?
Pensei, primeiro, em publicar anònimamente, em relação a mim, estas obras, e, por exemplo,
estabelecer um neopaganismo português, com vários autores, todos diferentes, a colaborar nele
e a dilatá-lo. Mas, sobre ser pequeno de mais o meio intelectual português, para que (mesmo
sem inconfidências) a máscara se pudesse manter, era inútil o esforço mental preciso para
mantê-la.
Tenho, na minha visão a que chamo interior apenas porque chamo exterior a determinado
«mundo», plenamente fixas, nítidas, conhecidas e distintas, as linhas fisionómicas, os traços de
carácter, a vida, a ascendência, nalguns casos a morte, destas personagens. Alguns
conheceram-se uns aos outros; outros não. A mim, pessoalmente, nenhum me conheceu,
excepto Álvaro de Campos. Mas, se amanhã eu, viajando na América, encontrasse subitamente
a pessoa física de Ricardo Reis, que, a meu ver, lá vive, nenhum gesto de pasmo(7) me sairia da
alma para o corpo; estava certo tudo, mas, antes disso, já estava certo. O que é a vida?
5
[ms.] [1930?]
Aspectos
A série, ou colecção, de livros, cuja publicação com a destes se inicia, representa, não um
processo novo em literatura, mas uma maneira nova de empregar um processo já antigo.
*
Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da
humanidade.
*
A confecção destas obras não manifesta um qualquer estado de opinião metafísica. Quero dizer:
com o escrever estes «aspectos» da realidade, totalizados em pessoas que os tivessem, não
pretendo uma filosofia que insinue que só há de real o haver aspectos de uma realidade ou
ilusiva, ou inexistente. Não tenho, nem essa crença filosófica, nem a crença filosófica contrária.
Adentro do meu mester, que é literário, sou um profissional, no sentido superior que o termo tem;
isto é, sou um trabalhador científico, que a si não permite que tenha opiniões estranhas à
especialização literária, a que se entrega. E o não ter nem esta, nem aquela, opinião filosófica a
propósito da confecção destas pessoas-livros, tão-pouco deve induzir a crer que sou um céptico.
A questão está num plano onde a especulação metafísica, porque não entra legitimamente,
escusa de ter estes, ou aqueles caracteres. Como o físico não tem metafísica no seu laboratório,
e a não tem o clínico nos diagnósticos que faça, [?] não porque a não possa ter, mas porque (...)
assim o problema metafísico meu não existe, porque não pode, nem tem que existir adentro das
capas destes meus livros de outros.
6
[Rascunho duma carta a Adolfo Casais Monteiro]
[ms.] [1935]
Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias,
sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por
dentro das suas almas. Não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isolada e não desejando
senão assim estar, já me acompanhavam algumas figuras de meu sonho – um capitão Thibeaut,
um Chevalier de Pas – e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento, como a imperfeita
lembrança daqueles, é uma das grandes saudades da minha vida.
Isto parece simplesmente aquela imaginação infantil que se entretém com a atribuição de vida a
bonecos ou bonecas. Era porém mais: eu não precisava de bonecas para conceber
intensamente essas figuras. Claras e visíveis no meu sonho constante, realidades exactamente
humanas para mim, qualquer boneco, por irreal, as estragaria. Eram gente.
Além disto, esta tendência não passou com a infância, desenvolveu-se na adolescência, radicouse com o crescimento dela, tornou-se finalmente a forma natural do meu espírito. Hoje já não
tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja
obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.
Trata-se, contudo, simplesmente do temperamento dramático elevado ao máximo; escrevendo,
em vez de dramas em actos e acção, dramas em almas. Tão simples é, na sua substância, este
fenómeno aparentemente tão confuso.
Não nego, porém – favoreço, até –, a explicação psiquiátrica, mas deve compreender-se que
toda a actividade superior do espírito, porque é anormal, é igualmente susceptível de
interpretação psiquiátrica. Não me custa admitir que eu seja louco, mas exijo que se compreenda
que não sou louco diferentemente de Shakespeare, qualquer que seja o valor relativo dos
produtos do lado são da nossa loucura.
Médium, assim, de mim mesmo, todavia subsisto. Sou, porém, menos real que os outros, menos
coeso [?], menos pessoal, eminentemente influenciável por eles todos. Sou também discípulo de
Caeiro, e ainda me lembro do dia-13 de Março de 1914 – quando, tendo «ouvido pela primeira
vez» (isto é, tendo acabado de escrever, de um só hausto do espírito) grande número dos
primeiros poemas do «Guardador de Rebanhos», imediatamente escrevi, a fio, os seis poemasintersecções que compõem a «Chuva Oblíqua» («Orpheu» 2), manifesto e lógico resultado da
influência de Caeiro sobre o temperamento de Fernando Pessoa.
7
[s. d.]
Umas figuras insiro em contos, ou em subtítulos de livros, e assino com o meu nome o que elas
dizem; outras projecto em absoluto e não assino senão com o dizer que as fiz. Os tipos de
figuras distinguem-se do seguinte modo: nas que destaco em absoluto, o mesmo estilo, me é
alheio, e se a figura o pede, contrário, até, ao meu; nas figuras que subscrevo não há diferença
do meu estilo próprio, senão nos pormenores inevitáveis, sem os quais elas se não distinguiriam
entre si.
Compararei algumas destas figuras, para mostrar, pelo exemplo, em que consistem essas
diferenças. O ajudante de guarda-livros Bernardo Soares e o Barão de Teive – são ambas
figuras minhamente alheias – escrevem com a mesma substância de estilo, a mesma gramática
e o mesmo tipo e forma de propriedade: é que escrevem com o estilo que, bom ou mau, é o
meu. Comparo as duas porque são casos de um mesmo fenómeno – a inadaptação à realidade
da vida, e, o que é mais, a inadaptação pelos mesmos motivos e razões. Mas, ao passo que o
português é igual no Barão de Teive e em Bernardo Soares, o estilo difere em que o do fidalgo é
intelectual, despido de imagens, um pouco como o direi?, hirto e restrito; e o do burguês é fluido,
participando da música e da pintura, pouco arquitectural. O fidalgo pensa claro, escreve claro, e
domina as suas emoções, se bem que não os seus sentimentos: o guarda-livros nem emoções
nem sentimentos domina, e quando pensa é subsidiariamente a sentir.
Há notáveis semelhanças, por outra, entre Bernardo Soares e Álvaro de Campos. Mas, desde
logo, surge em Álvaro de Campos o desleixo do português, o desatado das imagens, mais íntimo
e menos propositado que o de Soares.
Há acidentes do meu distinguir uns de outros que pesam como grandes fardos no meu
discernimento espiritual. Distinguir tal composição musicante de Bernardo Soares de uma
composição de igual teor que é a minha.
Há momentos em que o faço repentinamente, com uma perfeição de que pasmo; e pasmo sem
imodéstia, porque, não crendo em nenhum fragmento de liberdade humana, pasmo do que se
passa em mim como pasmaria do que se passasse em outros – em dois estranhos.
Só uma grande intuição pode ser bússola nos descampados da alma; só com um sentido que
usa da inteligência, mas se não assemelha a ela, embora nisto com ela se funda, se pode
distinguir estas figuras de sonho na sua realidade de uma a outra.
*
Nestes desdobramentos de personalidade ou, antes, invenções de personalidades diferentes, há
dois graus ou tipos, que estarão revelados ao leitor, se os seguiu, por características distintivas.
No primeiro grau, a personalidade distingue-se por ideias e sentimentos próprios, distintos dos
meus, assim como, em mais baixo nível desse grau, se distingue por ideias, postas em raciocínio
ou argumento, que não são minhas, ou, se o são, o não conheço. O Banqueiro Anarquista é um
exemplo deste grau inferior; o Livro do Desassossego, e a personagem Bernardo Soares, são o
grau superior.
Há o leitor de reparar que, embora eu publique (publicasse) o Livro do Desassossego como
sendo de um tal Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, o não incluí
todavia nestas «Ficções do Interlúdio». É que Bernardo Soares, distinguindo-se de mim por suas
ideias, seus sentimentos, seus modos de ver e de compreender, não se distingue de mim pelo
estilo de expor. Dou a personalidade diferente através do estilo que me é natural, não havendo
mais que a distinção inevitável do tom especial que a própria especialidade das emoções
necessariamente projecta.
Nos autores das «Ficções do Interlúdio» não são só as ideias e os sentimentos que se
distinguem dos meus: a mesma técnica da composição, o mesmo estilo, é diferente do meu. Aí
cada personagem é criada integralmente diferente, e não apenas diferentemente pensada. Por
isso nas «Ficções do Interlúdio» predomina o verso. Em prosa é mais difícil de se outrar.
*
Dividiu Aristóteles a poesia em lírica, elegíaca, épica e dramática. Como todas as classificações
bem pensadas, é esta útil e clara; como todas as classificações, é falsa. Os géneros não se
separam com tanta facilidade íntima, e, se analisarmos bem aquilo de que se compõem,
verificaremos que da poesia lírica à dramática há uma gradação contínua. Com efeito, e indo às
mesmas origens da poesia dramática – Ésquilo por exemplo – será mais certo dizer que
encontramos poesia lírica posta na boca de diversos personagens.
O primeiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, concentrado no seu sentimento,
exprime esse sentimento. Se ele, porém, for uma criatura de sentimentos variáveis e vários,
exprimirá como que uma multiplicidade de personagens, unificadas somente pelo temperamento
e o estilo. Um passo mais, na escala poética, e temos o poeta que é uma criatura de sentimentos
vários e fictícios, mais imaginativo do que sentimental, e vivendo cada estado de alma antes pela
inteligência que pela emoção. Este poeta exprimir-se-á como uma multiplicidade de
personagens, unificadas, não já pelo temperamento e o estilo, pois que o temperamento está,
substituído pela imaginação, e o sentimento pela inteligência, mas tão-somente pelo simples
estilo. Outro passo na mesma escala de despersonalização, ou seja de imaginação, e temos o
poeta que em cada um dos seus estados mentais vários se integra de tal modo nele que de todo
se despersonaliza, de sorte que, vivendo analiticamente esse estado da alma, faz dele como que
a expressão de um outro personagem, e, sendo assim, o mesmo estilo tende a variar. Dê-se o
passo final, e teremos um poeta que sela vários poetas, um poeta dramático escrevendo em
poesia lírica. Cada grupo de estados de alma mais aproximados insensivelmente se tornará uma
personagem, com estilo próprio, com sentimentos porventura diferentes, até opostos, aos típicos
do poeta na sua pessoa viva. E assim se terá levado a poesia lírica – ou qualquer forma literária
análoga em sita substância à poesia lírica – até à poesia dramática, se todavia se lhe dar a
forma de drama, nem explícita nem implicitamente.
Suponhamos que um supremo despersonalizado, como Shakespeare, em vez de criar o
personagem de Hamlet como parte de um drama, o criava como simples personagem, sem
drama. Teria escrito, por assim dizer, um drama de uma só personagem, um monólogo
prolongado e analítico. Não seria legítimo ir buscar a esse personagem uma definição dos
sentimentos e dos pensamentos de Shakespeare, a não ser que o personagem fosse falhado,
porque o mau dramaturgo é o que se revela.
Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise,
construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que
atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e ideias, os escreveria.
Assim têm estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser
considerados. Não há que buscar em quaisquer deles ideias ou sentimentos meus, pois muitos
deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler
como estão, que é aliás como se deve ler.
Um exemplo: escrevi com sobressalto e repugnância o poema oitavo do «Guardador de
Rebanhos», com a sua blasfémia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto. Na minha pessoa
própria, e aparentemente real, com que vivo social e objectivamente, nem uso da blasfémia, nem
sou antiespiritualista. Alberto Caeiro, porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que
escrever, quer eu queira, quer não, quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer
isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady
Macbeth, com o fundamento de que ele, poeta, nem era mulher, nem, que se saiba, histeroepiléptico, ou de lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição que não recua perante o
crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é igualmente lícito das personagens
fictícias sem drama, pois que é lícito porque elas são fictícias e não porque estão num drama.
Parece escusado explicar uma coisa de si tão simples e intuitivamente compreensível. Sucede,
porém, que a estupidez humana é grande, e a bondade humana não é notável.
VI
Para a comprensão de Alberto Caeiro
[Ricardo Reis: Alberto Caeiro]
[dact. com anotações manuscritas] [s. d.]
Alberto Caeiro da Silva nasceu em Lisboa a (...) de Abril de 1889, e nessa cidade faleceu,
tuberculoso, em (...) de (...) 1915. A sua vida, porém, decorreu quase toda numa quinta do
Ribatejo (?); só os últimos meses dele foram de novo passados na sua cidade natal. Ali foram
escritos quase todos os seus poemas, os do livro intitulado «O Guardador de Rebanhos», os do
livro, ou o quer que fosse, incompleto, chamado «O Pastor Amoroso», e alguns, os primeiros,
que eu mesmo, herdando-os para publicar, com todos os outros, reuni sob a designação, que
Álvaro de Campos me sugeriu bem, de «Poemas Inconjuntos». Os últimos poemas, a partir
daquele numerado (...), são porém produto do último período da vida do autor, de novo passado
em Lisboa. Julgo de meu dever estabelecer esta breve distinção, pois alguns desses últimos
poemas revelam, pela perturbação da doença, uma novidade um pouco estranha ao carácter
geral da obra, assim em natureza como em direcção.
A vida de Caeiro não pode narrar-se pois que não há nela de que narrar. Seus poemas são o
que houve nele de vida. Em tudo mais não houve incidentes, nem há história. O mesmo breve
episódio, improfícuo e absurdo, que deu origem aos poemas de «O Pastor Amoroso», não foi um
incidente, senão, por assim dizer, um esquecimento.
A obra de Caeiro representa a reconstrução integral do paganismo, na sua essência absoluta, tal
como nem os gregos nem os romanos, que viveram nele e por isso o não pensaram, o puderam
fazer. A obra, porém, e o seu paganismo, não foram nem pensados nem até sentidos: foram
vindos com o que quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou a razão. Dizer
mais fora explicar, o que de nada serve; afirmar menos fora mentir. Toda obra fala por si, com a
voz que lhe é própria, e naquela linguagem em que se forma na mente; quem não entende não
pode entender, e não há pois que explicar-lhe. É como fazer compreender a alguém um idioma
que ele não fala.
Ignorante da vida e quase ignorante das letras, quase sem convívio nem cultura, fez Caeiro a
sua obra por um progresso imperceptível e profundo, como aquele que dirige, através das
consciências inconscientes dos homens, o desenvolvimento lógico das civilizações. Foi um
progresso de sensações, ou, antes, de maneiras de as ter, e uma evolução íntima de
pensamentos derivados de tais sensações progressivas. Por uma intuição sobre-humana, como
aquelas que fundam religiões, porém a que não assenta o título de religiosa, por isso que
repugna toda a religião e toda a metafísica, este homem descreveu [??] o mundo sem pensar
nele, e criou um conceito do universo que não contém uma interpretação. [?]
Pensei, quando primeiro me foi entregada a empresa de publicar estes livros, em fazer um largo
estudo crítico e excursivo sobre a obra de Caeiro e a sua natureza e natural destino. Porém não
pude fazer estudo algum que me satisfizesse.
Pesa-me que a razão me compila a dizer estas nenhumas palavras (este pouco de palavras)
ante a obra do meu Mestre, de não poder escrever, de útil ou de necessário, mais que disse,
com o coração, na Ode (...) do Livro I meu, com a qual choro o homem que foi para mim, como
virá a ser para mais que muitos, o revelador da Realidade, ou, como ele mesmo disse, «o
Argonauta das sensações verdadeiras» - o grande Libertador, que nos restituiu, cantando, ao
nada luminoso que somos; que nos arrancou à morte e à vida, deixando-nos entre as simples
coisas, que nada conhecem, em seu decurso, de viver nem de morrer; que nos livrou da
esperança e da desesperança, para que nos não consolemos sem razão nem nos entristeçamos
sem causa; convivas com ele, sem pensar, da necessidade objectiva do Universo.
Dou a obra, cuja edição me foi cometida, ao acaso fatal do mundo. Dou-a e digo:
Alegrai-vos, todos vós que chorais na maior das doenças da História!
O grande Pã renasceu!
Esta obra inteira é dedicada
por desejo do próprio autor
à memória de
Cesário Verde.
NOTAS
1 – Título de um longo poema inglês da primeira mocidade.
2 – Romance de Charles Dickens.
3 – O título alude a um opúsculo sobre o problema shakesperiano, de que ficaram fragmentos no
espólio.
4 – Publicada no «Diário Popular» de 28-11-1957. As cartas restantes de F. Pessoa a Mário
Beirão vão ser incluídas noutra colectânea de prosas inéditas.
5 – Var.: acre.
6 – Escrita para «O Jornal», em 1915, não chegou a ser publicada.
7 – No texto vem «mesmo», decerto por distracção de Pessoa ao escrever à máquina.
In Fernando Pessoa, «Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação», ed. Georg Rudolf Lind e Jacinto
do Prado Coelho. Lisboa, Edições Ática, 1966.
Este comentário consiste apenas num subsídio
para a compreensão da obra em questão. De
maneira alguma substitui a leitura integral do
livro, condição essencial para um perfeito
entendimento do texto literário.
Fernando Pessoa, importante nome do Modernismo Luso, é um dos três
maiores poetas da Língua Portuguesa, superado, talvez, apenas por Camões.
Sua característica essencial é a heteronímia, ou seja, a criação de inúmeras
personalidades poéticas com linguagens e posturas filosóficas diversas, como
se tratassem de outros tipos de poetas.
No entanto, antes de analisarmos cada uma dessas “entidades”,
interessante seria enxergar o que se convencionou chamar “Ortônimo”, ou
seja, o Fernando Pessoa que faz poesia e assina pelo próprio nome.
Uma das características essenciais dessa personalidade é o
saudosismo, o que se pode perceber no poema abaixo.
Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
As lembranças que uma música traz. Eis o tema desse poema, composto
em forma tradicional (redondilha menor, com rimas em ABAB). Mas há mais do
que isso. Deixando de lado um certo tom masoquista (vv 2 a 4), chama a
atenção a interessante idéia (comum no ortônimo) de que as sensações podem
ser alteradas (estrofe 2), abrindo possibilidade até para que a imagem que
temos do passado, na forma de lembranças, tenha sua existência questionada.
Esse aspecto será reforçado na última estrofe, principalmente no paradoxo do
último verso, como se a idéia de que a felicidade estava no passado (“outrora”)
é, de fato, uma ficção engendrada pelas emoções do presente (“agora”), ou
seja, no agora é que ele pensa que tinha sido feliz no outrora.
1
Esse apego ao passado fará com que o eu-lírico sinta falta de uma nãoconsciência, como se a consciência fosse fonte da infelicidade, das incertezas.
Note como tal idéia se desenvolve no poema abaixo.
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
O poema apresenta uma forma tradicional, a redondinha maior, com
esquema de rimas em ABAB. É um aspecto formal comum no ortônimo de
Fernando Pessoa.
Sua temática também se apresenta típica. Por meio de uma comparação
entre o eu-lírico e o gato, expressa-se uma inveja em relação à condição do
animal, pois este está mergulhado numa inconsciência (“E sentes só o que
sentes”, “Bom servo das leis fatais”). Tal falta de consciência é belamente
representada na idéia de que a sorte do felino nem nome tem. Deve-se lembrar
que uma das realizações da consciência humana é a nomeação, que implica
conhecimento, análise, raciocínio.
Assim, esse aspecto puramente instintivo, que seria um mergulho, uma
prisão no nada, é ingrediente que dá felicidade ao animal, ao contrário do eulírico, que é dotado de pensamento, o que de maneira alguma lhe é proveitoso,
pois só o faz ter crise de identidade (temática muito comum no ortônimo),
conforme os dois últimos versos.
Mas se o saudosismo de Fernando Pessoa Ortônimo se manifesta, no
plano pessoal, como um retorno à infância, no cidadão português surge como o
desejo de recuperação de um clima, de uma atmosfera que retoma a
grandiosidade antiga do Império Português. Tal se manifesta na única obra que
o autor publicou, Mensagem, de 1934. Típico exemplo disso é o poema
abaixo1.
O INFANTE
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
1
- Este poema não faz parte da seleção apresentada no volume cobrado pela UFU, mas é
eficiente para que possamos captar as idéias requeridas nesta análise.
2
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Esse texto, perfeitamente dentro do clima de Mensagem, expõe a idéia
de que a Expansão Marítima era uma empresa nobre porque cumpria um
desígnio místico, ou seja, era vontade divina que o Império Português se
estabelecesse, unificando terras e mares. Tornar essas ações fruto do Destino
acaba por engrandecê-las.
Tais ideais encaixam-se bem no consagrado tom sebastianista da obra
(e da cultura portuguesa também), que desenvolve a tese de que Portugal seria
o Quinto Império, que, de acordo com interpretações do livro bíblico
Apocalipse, se ergueria em defesa da palavra de Cristo. Dessa forma, os
lusitanos – e Fernando Pessoa não se exclui desse grupo – estão sempre à
espera do retorno de D. Sebastião para que a grande missão de Portugal seja
cumprida.
Por fim, deve-se lembrar que Fernando Pessoa notabilizou-se pela
produção de textos metalingüísticos, do qual o texto a seguir, provavelmente o
mais famoso do autor, é o melhor exemplo.
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
Poema famosíssimo de Fernando Pessoa, mas pouco compreendido.
Talvez a sua fama se deva a uma falsa atribuição de que o seu charme está no
3
mero jogo de palavras da primeira estrofe. Pior ainda é a pobre interpretação
que alguns fazem, achando que a idéia básica do texto é a de que todo poeta
seria falso mentiroso.
A riqueza do poema já se avalia pelo título, que sugere a capacidade de
escrever um texto que é ditado por um espírito ao mesmo tempo externo e
interno. Parece estar aqui a idéia de heteronímia, como se Fernando Pessoa
recebesse outros espíritos que são ele mesmo. Paradoxal, mas belíssimo.
Para compreender o texto de forma adequada, há que se entender que
“fingidor” vem do verbo “fingir”, que significa não só “disfarçar, ser falso”, mas
algo como “simular”. Neste sentido, está ligado à criação de outra realidade. É
essa a idéia expressa aqui. O poeta é de fato um criador de realidades. Assim,
o poeta finge sua dor, simula sua dor, ou seja, cria outra realidade. Em outras
palavras: seus sentimentos, da área afetiva, são transformados em poesia.
Poesia não é afetividade, mas um conjunto de palavras. Essa é a arte da
ficção, da simulação: expressar, por meio de palavras, a dor, os sentimentos.
Note: palavras não são sentimentos, mas uma simulação destes.
Dessa forma, fica mais fácil entender a segunda estrofe, em que se fala
de três dores: as duas que o poeta teve (real e ficcional) e a que o leitor não
teve, mas com a qual se depara no momento em que degusta o poema.
Interessante é notar as idéias da última estrofe, que fazem lembrar um
tema muito caro a Fernando Pessoa. A emoção não está separada da razão. O
coração, de acordo com “Autopsicografia”, entretém a razão, ou seja, a emoção
é pensada, raciocinada. Em outros textos esse postulado gerará uma crise: até
que ponto a emoção é pura, até que ponto é fruto do pensamento. O que
sentimos não será fruto da imaginação. Parece que estamos entrando no
mesmo caminho do célebre filme Matrix.
Finalmente, note o emprego de formas tradicionais: versos em
redondilha maior com rimas em ABAB. Típico do ortônimo de Fernando
Pessoa.
Fernando Pessoa, no entanto, afirmou que seu mestre, que lhe ensinou
a fazer poesia, foi um heterônimo, Alberto Caeiro. Uma primeira leitura,
superficial, o identificaria como artista identificado com o campo, com a
natureza. Na verdade, existe aqui a valorização de uma simplicidade ligada ao
ambiente campestre que estabelecerá coerência com o comportamento do eulírico. Em primeiro lugar, sua linguagem apresenta-se extremamente simples,
muitas vezes repetitiva, tautológica. Em segundo lugar, essa simplicidade vaise refletir em sua filosofia, que valoriza o não-pensar. É o que se nota no texto
abaixo.
XXIV
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
4
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma seqüestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
Observe com é valorizada uma captação da realidade apenas pelos
sentidos, sem intelectualismos que comprometem a noção do mundo que o
roda. Caeiro torna-se, pois, o poeta contente em apenas sentir o mundo, sem
se preocupar em interpretar o que o rodeia. Opõe-se, incrivelmente, ao
ortônimo de Fernando Pessoa.
Outro heterônimo é Ricardo Reis, poeta que se sente no final do
Império Romano, época em que o deus cristão acaba por se misturar aos
demais do paganismo. Apresenta, portanto, uma sintaxe latinizante, com frases
cheias de hipérbatos, vocábulos arcaicos e intensa recorrência à mitologia
clássica. Veja como tal se manifesta no texto a seguir.
As rosas amo dos jardins de Adônis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.
Comportando-se como um poeta clássico, adotará o equilíbrio,
principalmente na defesa de um epicurismo como chave para a felicidade da
existência. É o tema do seguinte poema, extremamente famoso.
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
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No entanto, o mais modernista dos heterônimos é o engenheiro Álvaro
de Campos, cantor apaixonado pelo progresso, pela ciência, pela tecnologia,
enfim, homem urbano. Talvez por causa disso acabe se tornando um poeta
histérico, nervoso, extremamente sensacionista. As conseqüências desse
descalabro emotivo e sensorial é a produção de poemas da fase do opiário
(esse heterônimo era viciado em ópio) e da fase da depressão, da qual
podemos retirar o poema abaixo como exemplo.
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
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Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede
sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
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Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem
cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
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Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como
tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da
superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal
disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.
Note como a emotividade desbragada de Álvaro de Campos acaba por
produzir uma poesia que se derrama, muitas vezes assumindo características
de prosa. É o fazer literário mais adequado para captar o mais rápido possível
o vulcão de emotividade que assola o poeta. Além disso, há a consciência do
eu-lírico de que possui dentro de si todos os sonhos do mundo. Esse
comportamento faz com que alguns críticos enxerguem nesse heterônimo a
personalidade de Fernando Pessoa representada com mais fidelidade.
Em suma, tamanha engenhosidade na criação de heterônimos que
acabam, no conjunto, abarcando as diferentes faces da realidade faz de
Fernando Pessoa um dos nomes mais expressivos de toda a literatura em
Língua Portuguesa.
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