representações sociais - Abrapso-ES
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. A PRODUÇÃO DA PSICOLOGIA SOCIAL NO ES memórias, interfaces e compromissos Edinete Maria Rosa Lídio de Souza Luziane Zacché Avellar (Orgs.) Regional Espírito Santo © COPYRIGHT A reprodução dos textos da presente coletânea, no todo ou em parte, está autorizada desde que sejam citados os autores e a fonte. COMISSÃO EDITORIAL Edinete Maria Rosa Lídio de Souza Luziane Zacché Avellar Maria Cristina Campello Lavrador Zeidi Araujo Trindade Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) E17p A produção da Psicologia Social no ES : memórias, interfaces e compromissos / Edinete Maria Rosa, Lídio de Souza, Luziane Zacché Avellar (orgs.). - Vitória, ES : ABRAPSO/ES : UFES, 2008. 146p. : il. ; 30 cm ISBN - 978-85-99510-32-2 1. Psicologia Social. I. Rosa, Edinete Maria. II. Souza, Lídio de. III. Avellar, Luziane Zacché CDU: 316.6 Os textos estão publicados na versão final encaminhada e o seu conteúdo é de inteira responsabilidade dos autores. EDITORAÇÃO Edson Maltez Heringer - 27 8113-1826 - [email protected] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA SOCIAL - ABRAPSO Universidade Federal do Espírito Santo MAIO / 2008 Sumário APRESENTAÇÃO .............................................................................................................. 7 COMO NOSSOS PAIS: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE GÊNERO ENTRE FORMANDOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO .................................................................................. 9 André Mota do Livramento, Ana Paula da Silva Milani, Julia Alves Brasil, Mariana Bonomo, Maria Cristina Smith Menandro e Zeidi Araujo Trindade MASCULINIDADES EM MOVIMENTO: UM ESTUDO SOBRE AS IDENTIDADES MASCULINAS NO CENÁRIO ATUAL .................................... 19 Paola Vargas Barbosa, Mariana Bonomo e Zeidi Araujo Trindade REPRESENTAÇÃO SOCIAL DE POLÍTICA ENTRE ADOLESCENTES DE DEZESSEIS E DEZESSETE ANOS ..................................... 31 Ágnes Bonfá Drago, Elisa Avellar Merçon de Vargas, Julia Alves Brasil, Juliana Brunoro de Freitas, Karina de Andrade Fonseca e Edinete Maria Rosa REPRESENTAÇÕES DE ENSINO MÉDIO EM ESTUDANTES DE ESCOLA PÚBLICA .............................................................. 39 Luiz Gustavo Silva Souza, Julia Alves Brasil, Carlos Eduardo Feletti e Maria Cristina Smith Menandro HOMICÍDIO DOLOSO: UMA CARACTERIZAÇÃO DE HISTÓRIAS DO DELITO A PARTIR DOS DADOS ENCONTRADOS SOBRE O TRANSGRESSOR E AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME ................................. 47 Luciana Souza Borges e Heloisa Moulin de Alencar CARACTERIZAÇÃO DOS ADOLESCENTES QUE CUMPRIRAM MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE LIBERDADE ASSISTIDA NO MUNICÍPIO DE SERRA/ES NOS ANOS 2002 A 2006 ...................................... 57 Fabiana da Silva Araújo Malheiros e Edinete Maria Rosa A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO JUNTO AO ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL ................................................ 69 Mônica Nogueira dos Santos Vilas Boas e Maria Cristina Smith Menandro ONG E PSICOLOGIA: ESPAÇOS DE CRIAÇÃO .................................................... 75 Lucinéia Pesente e Roberta Scaramussa A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA HIPERTENSÃO E DO DIABETES: DILEMAS DA ADESÃO MEDICAMENTOSA NO PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA .............................................................. 83 Guilherme Bracarense Filgueiras, Raphael Agrizzi Pereira e Emílio Nolasco de Carvalho A SAÚDE DO TRABALHADOR DA SAÚDE: O QUE ISSO TEM A VER COM O USUÁRIO DO SUS? ........................................ 93 Tiago Carlos Zortéa, Diego Fernandes Souza, Tullio Cezar de Aguiar Brotto, Jeff Emmanuel Costa Firmino e Elizeu Batista Borloti APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS NA IMPLEMENTAÇÃO DE RESIDENCIAS TERAPÊUTICAS ...................................................................... 103 Francisco de Assis Lima Filho e Maria Inês Badaró Moreira O IMPACTO DO DIAGNÓSTICO DE DEFICIÊNCIA, SEGUNDO A VISÃO DAS MÃES ............................................................................... 111 Kely Maria Pereira de Paula, Anna Beatriz Carnielli Howat Rodrigues, Danielly Bart do Nascimento, Marly Santos, Sandra Bonfim Leonel e Thatiana Mara Barbosa Grampinha A LUTA PELA TERRA EM ARACRUZ-ES: O OLHAR DA CRIANÇA GUARANI ........................................................................ 119 Kleber de Oliveira, Sabrine Mantuan dos Santos Coutinho e Zeidi de Araujo Trindade BRINCADEIRA E AMIZADE: ENTRE O LÍBANO E O BRASIL, ENTRE PAIS E FILHOS ................................................................... 127 Lorena Queiroz Merizio e Agnaldo Garcia POLÍTICA PÚBLICA SOBRE DROGAS NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA .................................................................................. Mirian Cátia Vieira Basílio e Maria Lúcia Teixeira Garcia 137 Apresentação A presente coletânea A PRODUÇÃO DA PSICOLOGIA SOCIAL NO ES – MEMÓRIAS, INTERFACES E COMPROMISSOS tem como propósito dar visibilidade a uma parte do conhecimento que tem sido produzido nas diversas instituições de ensino superior do Estado do Espírito Santo que abrigam cursos de Psicologia. É fundamental relembrar a importância da instalação da Regional ABRAPSO na Universidade Federal do Espírito Santo, nos idos anos de 1980, para o desenvolvimento da área, visto sua inquestionável contribuição para a ampliação da diversidade, tanto teórica quanto metodológica e temática, e para impulsionar a realização de estudos inovadores. Os temas acolhidos pela coletânea, como as representações sociais dos mais diversos objetos sociais (gênero, masculinidades, política e ensino médio), a atuação do psicólogo junto a adultos e adolescentes envolvidos em delitos ou atos infracionais, os dilemas das políticas públicas sobre drogas e dirigidas à saúde integral (incluindo a saúde do trabalhador da saúde), bem como a criação de espaços de transformação, sem dúvida, reflete as influências que percorreram as sempre polêmicas discussões sobre Psicologia Social, tanto no âmbito dos cursos de Psicologia quanto nos Encontros da área. Parece não haver dúvidas de que os capítulos aqui reunidos representam o crescimento e o fortalecimento de uma Psicologia que procura aliar a construção de conhecimento com compromisso social e práticas que inovam, repensam e propõem. Neste sentido, pretendemos que a publicação seja um passo em direção a constituição de novos debates em um processo contínuo reflexão e ação. Edinete Maria Rosa Lídio de Souza Luziane Zacché Avellar (Orgs.) . COMO NOSSOS PAIS: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE GÊNERO ENTRE FORMANDOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO1 André Mota do Livramento 2 Ana Paula da Silva Milani 2 Julia Alves Brasil 2 Mariana Bonomo 3 Maria Cristina Smith Menandro 4 Zeidi Araujo Trindade 5 Os grupos sociais são organizados a partir de sistemas de crenças, valores e normas sociais, sustentando-se na capacidade simbólica de criar ideologias que justifiquem as condições de distintividade estabelecidas entre os diversos grupos em suas dimensões de status e poder (STREY, 1998; TAJFEL, 1983). Conforme orientação da psicologia sócio-histórica, as relações de gênero são socialmente construídas, fruto das relações estabelecidas entre os indivíduos em seus espaços contextuais e da participação ativa pelos mesmos no processo de apropriação e uso dos elementos sociais que direcionam as práticas cotidianas. Deste modo, é constituído um sistema de significados que se organizam nas interações humanas, como na dimensão gênero, por exemplo, configurando uma gama de expectativas a respeito da conduta do homem e da mulher no meio social em que vivem (NOGUEIRA, 1996). A atribuição de tarefas ao homem e à mulher, em alguns momentos, acaba por apresentar certo caráter maniqueísta: o que é tarefa masculina e o que não é, ou seja, a tarefa feminina. Em proporções mais valorativas dessa circunstância, em escala mais geral das relações sociais na esfera pública, a hierarquia de gênero é uma realidade concreta, na qual o poder e o trabalho são associados à masculinidade. Este modelo de masculinidade hegemônica nos lança em um processo histórico de organização e complexificação das relações sociais, oriundo de estratégias da classe burguesa em ascensão, conceito que se difundiu e naturalizou intensamente na cultura ocidental, entre os séculos XIX e XX (MOSSE, 1996; SAFFIOTI, 1987). 1 2 3 4 5 Apoio Financeiro: CNPq/CAPES Estudantes da graduação em Psicologia/UFES Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFES Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/ UFES Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/ UFES; Coordenadora da Rede de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social (RedePSO) 10 COMO NOSSOS PAIS: Representações Sociais de Gênero entre formandos da Universidade Federal do Espírito Santo A.M. do Livramento; A. P. da Silva Minali; J. A. Brasil; M. Bonomo; M. C. S. Menandro e Z. A. Trindade A influência desse modelo hegemônico de masculinidade pode ser constatada desde as diversas relações cotidianas entre as pessoas, nos significados e práticas que circulam como forma de organizar e justificar as posições e interações em curso intra e intergênero, até nas atividades dos mais diversos profissionais no exercício do seu trabalho, sinalizando que a ciência também ajuda a construir e a manter uma narrativa fortalecedora das representações sociais clássicas de gênero. Sabe-se que as representações sociais são determinantes de vários fatores que compõem a estrutura social vigente e que são produtos de processos histórico-culturais. Assim, o masculino e o feminino são dotados de significados socialmente construídos e partilhados, sendo as representações sociais de homem e de mulher orientadoras de condutas, práticas, hierarquias sociais, enfim, das relações de poder (BATISTA, 1997). Como nos esclarece Jodelet (2002), a Representação Social é “uma forma de conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (p.22). Desta forma, escolhemos a Teoria das Representações Sociais como recurso teórico para pensarmos as questões presentes neste estudo, por serem as representações formas de conhecimentos socialmente construídos nas diversas relações que os indivíduos estabelecem uns com os outros. Utilizaremos a Teoria do Núcleo Central, desenvolvida por Jean Claude Abric, que se fundamenta nos processos sócio-cognitivos a partir dos estudos das representações sociais. De acordo com este autor (2003), as representações sociais têm por função contribuir na percepção que um grupo tem acerca de si mesmo e dos grupos com os quais se relaciona (função identitária), bem como justificar e orientar determinadas práticas sociais (funções justificadora e orientadora). Abric (1998) sugere que as Representações Sociais estão em torno de um núcleo central, composto de um ou mais elementos, os quais se organizam e dão sentido às representações. O núcleo central constitui-se como elemento mais estável da mesma, garantindo a continuidade das representações sociais e, em torno do núcleo central, organizam-se os elementos periféricos, que são mais móveis e flexíveis, constituindo-se como a interface entre a realidade concreta e o sistema central (MARTINS; TRINDADE; ALMEIDA, 2003). Esta pesquisa teve como objetivo investigar as representações sociais de gênero entre estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), todos do sexo masculino. Problematizamos a formação acadêmica enquanto espaço de exercício analítico entre o senso comum e o conhecimento científico. Não estabelecemos aqui qualquer espécie de avaliação acerca da validade desses saberes em suas especificidades e encontros enquanto dimensões mais gerais da realidade social; pretendemos sim discutir os efeitos da manutenção dos modelos tradicionais de gênero na atividade de profissionais que irão se deparar com a dimensão real das relações sociais: a diversidade. Considerando os códigos sociais, referenciados nos modelos hegemônicos que naturalizam e justificam determinadas práticas e representações sociais, o conjunto de vivências efetivas dos indivíduos sinaliza a importância de colocarmos em relevo essa discussão. 11 A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos MÉTODO Participantes Entrevistamos 60 estudantes do sexo masculino, com idades entre 20 e 43 anos, todos universitários formandos das áreas de humanas, exatas e biomédicas. Uma caracterização mais detalhada dos participantes é apresentada na tabela a seguir. CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES Grupos Faixa etária Cursos 20-25 26-31 32-37 38-43 Ciências Humanas 12 06 – 02 Ciências Sociais Geografia História Letras Psicologia 01 08 06 04 01 Ciências Exatas 17 02 01 – Ciências da Computação Economia Engenharia Física Matemática 01 01 15 01 02 Ciências Biomédicas 18 02 – – Enfermagem Farmácia Medicina Odontologia 05 07 06 02 Nota: Distribuição dos participantes segundo as áreas de pertencimento acadêmico Procedimento de coleta dos dados e instrumento Os dados foram coletados nos campi da Universidade Federal do Espírito Santo durante o semestre de 2006/02, local que favoreceu o acesso aos alunos concludentes. Durante as entrevistas, servimo-nos de um roteiro semi-estruturado, com questões de evocação livre (ABRIC, 1998) a partir dos termos indutores “homem” e “mulher”, e questões abertas, contemplando as representações de gênero vinculadas aos papéis masculino e feminino na esfera familiar. Procedimentos de análise dos dados Para a análise dos dados foram utilizados o software EVOC (Ensemble de Programmes Permettant L’Analyse dês Évocations) e Análise de Conteúdo. 12 COMO NOSSOS PAIS: Representações Sociais de Gênero entre formandos da Universidade Federal do Espírito Santo A.M. do Livramento; A. P. da Silva Minali; J. A. Brasil; M. Bonomo; M. C. S. Menandro e Z. A. Trindade O EVOC analisa as palavras enunciadas de acordo com dois critérios: freqüência e ordem de evocação. Combinar estes dois critérios permite o levantamento dos elementos que mais provavelmente têm associação ao termo indutor e, conseqüentemente, também possibilitam a identificação da organização interna das representações sociais relacionadas a esses termos (CARVALHO et al., 2005; FISCHER et al., 2003; OLIVEIRA et al., 2005; RIBEIRO, 2000). A análise de conteúdo é um conjunto de instrumentos metodológicos que se aplicam aos mais diversos discursos, objetivando a identificação das unidades de significado presentes no corpus coletado, pela via categorial ou temática, à luz da orientação teórica a que o estudo em curso se propõe (BARDIN, 2002; BAUER, 2002; FLICK, 2004). RESULTADOS E DISCUSSÃO Representações Sociais de gênero: o imaginário masculino acerca do ser homem e ser mulher Inicialmente, será apresentado, na Tabela 1, o resultado das questões de evocação, referente ao termo indutor “homem”, analisado pelo EVOC, com a finalidade de realizarmos o levantamento da organização interna das representações sociais. Os resultados serão expostos em uma tabela de quatro quadrantes organizados em dois eixos. O eixo vertical diz respeito à freqüência de evocação das palavras e o eixo horizontal à ordem de evocação. No primeiro quadrante, estão os elementos mais relevantes e, dessa forma, possíveis de constituírem o núcleo central. Estes termos são os evocados primeiramente e citados com elevada freqüência. No segundo e terceiro quadrantes, estão os elementos menos relevantes na estrutura da representação, no entanto, são expressivos em sua organização. No segundo quadrante estão os elementos que alcançaram uma alta freqüência, entretanto foram citados nas últimas posições e no terceiro quadrante encontram-se os elementos que foram evocados com uma baixa freqüência, porém foram citados primeiramente. No quarto quadrante encontram-se os elementos que correspondem à periferia distante ou segunda periferia. Neste quadrante estão os elementos menos citados e menos prontamente evocados (RIBEIRO, 2000). Ao analisar as evocações na Figura 1, notou-se que os possíveis elementos que organizam a representação social de homem são: arrogante, características físicas, machista, racional e robusto. Essa representação afirma a masculinidade segundo os elementos clássicos do que é ser homem e busca protegê-la de qualquer associação ao feminino. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 13 Tabela 1: Evocações de “Homem” de alunos do ensino superior. EVOCAÇÕES DE “HOMEM” DE ALUNOS DO ENSINO SUPERIOR Média da Ordem de Evocação Inferior a 2,9 Superior ou igual a 8 Inferior a 8 Média das Freqüências Termo evocado arrogante características-físicas machista racional robusto amigo gosta-de-mulher individualista Superior ou igual a 2,9 Freqüência Ordem de Termo evocado Freqüência Ordem de evocação evocação 9 18 8 28 16 2,889 2,667 2,125 2,286 2,000 insensível inteligente sincero 5 4 5 2,800 1,750 2,600 bebida decidido esportes independente virilidade 10 8 11 3,500 3,000 3,273 4 7 5 5 4 3,000 3,286 4,400 4,600 3,250 Através destes resultados verificou-se que a característica evocada com maior freqüência foi “racional”, consistindo este em um elemento importante na concepção de homem destes estudantes. Ao se perguntar os motivos de tais evocações, obtiveram-se as seguintes respostas: 60% dos participantes argumentaram que os homens “são assim” devido ao processo de socialização na esfera familiar ou nos diferentes grupos sócio-culturais em que estes estão inseridos. Geralmente os respondentes deste grupo trouxeram evocações relacionadas a comportamentos tidos tipicamente como masculino ou feminino, e os atribui como produção social a partir dos papéis de gênero instituídos historicamente. A justificativa acerca das especificidades masculinas é apresentada dentro de um discurso naturalizado por 25% dos participantes, em sua maioria vinculada a respostas que enfatizam a superioridade do homem frente à mulher. Ainda, 16,7% dos respondentes atribuem a aspectos biológicos o fator de diferenciação masculina, marcado, sobretudo, por características anatômicas e fisiológicas. A Figura 2 ilustra o resultado das questões de evocação, referente ao termo indutor “mulher”, analisado pelo EVOC. 14 COMO NOSSOS PAIS: Representações Sociais de Gênero entre formandos da Universidade Federal do Espírito Santo A.M. do Livramento; A. P. da Silva Minali; J. A. Brasil; M. Bonomo; M. C. S. Menandro e Z. A. Trindade Tabela 2: Evocações de “Mulher” de alunos do ensino superior. EVOCAÇÕES DE “MULHER” DE ALUNOS DO ENSINO SUPERIOR Média da Ordem de Evocação Inferior a 2,9 Superior ou igual a 7 Inferior a 7 Média das Freqüências Termo evocado bonita características-físicas delicada sensível atenciosa companheira comunicativa fofoqueira fresca observadora simpática Superior ou igual a 2,9 Freqüência Ordem de Termo evocado Freqüência Ordem de evocação evocação 10 17 9 31 2,500 2,824 2,000 2,323 consumista dedicação sincera 7 8 7 3,286 3,000 3,714 4 4 4 4 4 5 5 2,000 2,750 2,500 2,500 1,750 2,800 2,600 amorosa inconstante inteligente invejosa vaidosa 5 4 6 6 4 3,200 3,500 3,333 4,000 3,250 Notou-se, assim, que os possíveis elementos que organizam a representação social de mulher são: bonita, características físicas, delicada e sensível. Embora tais elementos possam ter aparentemente uma conotação positiva, ainda estão alicerçados na idéia da mulher como indefesa, frágil e passiva, amparados na idéia de complementaridade ao homem. A partir destes resultados observou-se que a característica citada com maior freqüência foi “sensível”. Como explicação para tais evocações as respostas que mais se destacaram foram: os elementos enunciados na representação de “mulher”, tal como a apresentada para o “homem”, estão alicerçados em concepções sócio-culturais por 60% dos participantes – as respostas destacavam exemplos históricos da resistência feminina ao processo de exclusão e a luta pelos seus direitos; 33,3% trazem o discurso de algo inerente à mulher. Esta categoria contempla respostas que referenciam o estereótipo feminino de fragilidade, sensibilidade e instabilidade comportamental; as características biológicas foram apresentadas por 15% dos entrevistados. A concepção do ser mulher como o lugar da emoção e do ser homem como o centro da razão, reflete representações clássicas do feminino e do masculino. Como veremos a seguir, essas representações são compatíveis com o que os respondentes definem como “coisas de homens” e como eles entendem os papéis masculino e feminino na organização familiar, sinalizando a força das representações na orientação e justificação das práticas sociais. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 15 “Porque homem é homem”: os discursos ancorados nas representações tradicionais As ambigüidades presentes nos significados e práticas fazem parte do processo de corporificação das representações sociais. Nas relações de gênero esta dinâmica tem como núcleo as relações de poder, historicamente construídas, e solidificadas em nossa cultura ocidental através das representações da mulher como mãe, cuidadora e passiva, e o homem como o provedor e ativo. Quando perguntado aos participantes “o que não é coisa de homem” 51,7% deram respostas que enfatizavam características que se referiam às mulheres como chorar, freqüentar salão de beleza e, ainda, questões relacionadas à fisiologia feminina. Alguns participantes (13,3%) deram respostas muito semelhantes a essas, mas priorizavam comportamentos femininos estereotipados (fofocar, fugir de compromisso e correr de briga); 11,7% referiramse ao homossexualismo para expressar o que não é coisa de homem; 13,3% disseram que não existem coisas que homens não possam fazer, não delimitando especificidades e limites aos comportamentos dos homens. Respostas como essas demonstram um imaginário social que reforça práticas sexistas e homofóbicas, como o preconceito com a mulher que trabalha ou com os homens metrossexuais, o que pode fazer aumentar a discriminação sofrida por essas categorias sociais, além de reforçar a idéia de papéis fixos de gênero. Para comportamentos ditos morais, 5% dos estudantes consideraram, por exemplo, desonestidade e mentira como não sendo coisas de homens, o que corrobora a visão que muitos têm de que “homem de verdade” tem que manter a sua honra e a da própria família, e indica como a questão da moralidade, da honra masculina, ainda está presente no discurso de muitos estudantes. Somente 10% dos participantes deram suas respostas baseando-se nos papéis masculinos e femininos como construções sócio-culturais. Este foi um dado interessante, visto que ao iniciar a pesquisa acreditávamos que tal discurso seria mais forte e que, possivelmente, encontraríamos diferenças significativas nas falas dos estudantes das diferentes áreas pesquisadas (humanas, exatas e biomédicas). Isto nos mostra como nosso discurso é permeado pelas relações que estabelecemos com os outros indivíduos em nosso contexto cotidiano, e que, por mais que às vezes tentemos analisar melhor o que vamos falar, fazendo uso de um discurso mais acadêmico, muitas vezes a visão do senso comum ainda prevalece. Quando perguntados “por que essas coisas não são coisas de homem” a justificativa engloba com maior freqüência respostas que enfatizam comportamentos femininos – 31,7%. Em seguida, surgiram as explicações baseadas na questão sócio-cultural (16,7%), destacando os papéis masculinos e femininos como construções sociais. Vemos assim, que, independente da área de estudo dos entrevistados, o discurso acadêmico, que leva em consideração os papéis de gênero como construtos sociais, foi usado apenas para justificar suas respostas, que, como visto na questão anterior, priorizou opiniões do senso comum, com uma visão naturalizada das relações de gênero. 16 COMO NOSSOS PAIS: Representações Sociais de Gênero entre formandos da Universidade Federal do Espírito Santo A.M. do Livramento; A. P. da Silva Minali; J. A. Brasil; M. Bonomo; M. C. S. Menandro e Z. A. Trindade Dos 60 entrevistados, 15% deram suas justificativas baseando-se na naturalização, ou seja, universalizaram comportamentos masculinos e femininos, reforçando os papéis enquanto distintos e hierarquizados, como observado em questões anteriores. Direcionaram suas respostas para o que consideram valores morais importantes 11,7% dos participantes, salientando mais uma vez a presença da honra como algo importante na fala desses respondentes. Finalmente, 8,3% explicaram a questão proposta baseando-se em elementos que buscam referenciar a distinção entre os gêneros a partir de características fisiológicas femininas. OS PAPÉIS DE GÊNERO NA DINÂMICA FAMILIAR É comum atribuir papéis sociais ao homem e à mulher, mesmo que em algumas situações esses papéis não sejam específicos. No entanto, ainda se observa a existência de expectativas em relação às atitudes que devem ter um homem e uma mulher na sociedade, sendo estas ancoradas nas clássicas representações de masculino e feminino. Sendo assim, como se dão as representações quando pensamos em gênero, mais precisamente nas relações estabelecidas dentro da esfera familiar? O que faz um homem e uma mulher na família? De acordo com 51,6% dos entrevistados, o homem deve assegurar a estabilidade familiar, exercendo o papel de líder e de chefe; 33,3% dos entrevistados também atribuem à mulher a função de garantir a estabilidade da família, no entanto, a estabilidade que esta assegura é diferente da estabilidade masculina; a mulher apenas apóia o homem, auxiliando-o no seu dever de manter a estabilidade do lar. Ao homem também foi atribuído o papel de provedor da família (30% das respostas), aquele que educa os filhos (10%), no entanto, as respostas dos sujeitos não nos permitiram avaliar se tal função foi pensada como específica dos homens. A realização de tarefas pesadas associada à função do homem foi mencionada por 3,3% dos sujeitos, ou seja, a força física foi um determinante para distinguir as atividades entre os gêneros e, por fim, 3,3% retrataram hábitos e comportamentos tidos como tipicamente masculinos, como ficar na sala assistindo televisão, brigar com os outros. Aproximadamente 25% dos sujeitos disseram ser papel da mulher cuidar dos filhos e 13,3% dos entrevistados associaram a mulher também à execução de tarefas domésticas. Também há a visão da mulher como um ser afetivo (25% das falas), fonte de amor e carinho, compreensiva, atributos considerados essenciais para proteção da família. O papel da maternidade esteve presente para 10% dos entrevistados. Em menor freqüência, 6,6%, a mulher foi vista como aquela que é provedora do lar. É interessante pontuar que as características que mais apareceram nas respostas, são aquelas que reforçaram as clássicas representações de homem e de mulher. Assim, o homem, com maior freqüência foi visto como aquele que é o chefe, provedor da família, enquanto à mulher cabe educar os filhos, executar tarefas domésticas, ser o apoio do homem no sustento do lar, A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 17 ser a fonte de carinho e amor nas relações familiares, garantindo assim, graças à sua serenidade e compreensão, o bem estar da família. O presente trabalho alerta para a força desse imaginário social na formação dos profissionais, cujas atuações implicarão em lidar com as questões de gênero. Os dados revelaram que as representações de gênero dos universitários formandos estão alicerçadas em padrões tradicionais, independente das áreas de formação acadêmica. A questão que se coloca, quase de forma imperativa, é sobre o processo de formação desses profissionais no espaço acadêmico e sua posterior atuação profissional. A teoria das representações sociais nos ensina que os sistemas de crenças e valores orientam nossas práticas, bem como possuem a função de organizar e proteger o grupo do qual fazemos parte (ABRIC, 2003). Desta forma, apesar das limitações do presente estudo, é importante registrar que o grupo empírico referente a esta pesquisa consiste em formandos do sexo masculino, ou seja, apesar de apresentarem algumas atenuações, as representações e concepções dos papéis masculino e feminino conferem ao seu próprio grupo o lugar de status e poder – enquanto às mulheres associa-se à idéia de equilíbrio afetivo, provedora das relações na família como apaziguadora de conflitos e mantenedora do seu bem-estar, ao homem vincula-se a racionalidade e a responsabilidade do controle material (prover a mulher e filhos) e a chefia do universo familiar frente a toda sociedade. REFERÊNCIAS ABRIC, J. C. A abordagem estrutural das representações sociais. In: MOREIRA, A. S. P.; OLIVEIRA, D. C. (Orgs.). 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Mosse (1996) nos alerta que o conceito moderno de masculinidade se difundiu de tal forma na cultura ocidental, entre os séculos XIX e XX, que o seu tratamento enquanto objeto de estudo ficou obscurecido. Instaurado o ideal de masculinidade, este se tornou um verdadeiro lugar-comum da cultura moderna, assumido pelos diferentes segmentos políticos, científicos e pedagógicos. Este conceito, que passou a estruturar a sociedade e permitiu à classe burguesa ascender através da solidificação da organização social que lhe interessava, se difundiu de forma transversal (dos nobres aos camponeses), ganhando o corpo social em todas as esferas da sociedade. O homem então, assume o comando, independente do segmento social a que pertence (Mosse, 1996; Saffioti, 1987). A masculinidade torna-se uma verdadeira ideologia que naturaliza e justifica a sua própria dominação, formando e mantendo a construção das identidades dos indivíduos, bem como sua dinâmica de relação, acentuados na diferença fundamental entre homens e mulheres, o que ratifica a heterossexualidade como normal e a vincula como elemento basilar no domínio ideológico masculino (Whitehead, 2002). A ideologia do “homem de verdade” passa a ser nutrida no imaginário social, pelas instituições e saberes que reúnem esforços, criam crenças e as disseminam como verdade equivalente de uma única realidade possível, “ser homem” é ser heterossexual, provedor, pai de família (Astúrias, 1997; Welzer-lang, 2001). É desta forma que esse patrimônio ideológico é oferecido ao dinâmico contexto de construção das identidades via processo de socialização. 1 2 3 4 Apoio: CNPq/CAPES Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFES Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFES Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/ UFES; Coordenadora da Rede de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social (RedePSO) 20 MASCULINIDADE EM MOVIMENTO: um estudo sobre as identidades masculinas no cenário atual P. V. Barbosa; M. Bonomo; e Z. A. Trindade E se as escolhas dos homens, no entanto, não se pautarem nas opções a priori determinadas, ou ainda, se os arranjos do seu contexto não lhe possibilitam assumir o papel masculino tradicionalmente estabelecido? Se o homem prefere ser dançarino (Oliveira et al, 2005), por exemplo, ou se ele apanha da mulher (Alvim & Souza, 2005), ou mesmo, se ele não é o provedor da família, mas sustentado pela esposa (Nascimento, 2000)? Os estudos revelam o preconceito sofrido pelos homens que, por escolha ou por impossibilidade, não vivenciam a identidade masculina prescrita. Esse desajustamento entre a vivência masculina dos homens e o modelo hegemônico anuncia a chamada “crise da masculinidade” (Carabí, 2000; Toneli & Adrião, 2005), uma vez que a masculinidade, como definida por Hernandez (1998) e Jimenez (1998), pode ser entendida como o sentimento de pertença em relação à categoria masculina. Desta forma, a dinâmica entre as práticas masculinas e o modelo referenciador está sofrendo mudança. Como as identidades são assumidas a partir do conflito estabelecido entre os grupos a que nos sentimos pertencer e os grupos a que não pertencemos (Tajfel, 1983), e considerando a histórica construção de um referencial de ser homem amplamente reforçado pela esfera familiar, escolar, médica, o contraste entre o efetivamente vivido e o ideologicamente representado gera as ambigüidades expressas nas práticas e concepções do universo masculino na atualidade. Os processos identitários, conforme focalizados por teóricos que trabalham nessa perspectiva (Doise, Deschamps, Mugny, 1980; Tajfel, 1982, 1983; Turner, 1984), nos possibilitam a investigação dessa dinâmica, paradoxal e mutante, de constituição das identidades masculinas na atualidade. Para a Teoria da Identidade Social de Tajfel (1982; 1983) o processo de categorização social e comparação social são fundamentais para a compreensão do processo de construção da identidade. O processo de categorização se constitui em meio à capacidade cognitiva de apreender os elementos disponíveis nos diversos contextos, funcionando como um princípio ordenador da realidade, o qual permite a definição das fronteiras entre o que seria o “dentro” ou in-group e o “fora” ou out-group, seria o coração cognitivo do processo identitário (Hogg et al, 2004). Para Tajfel (1983), a categorização social é o processo por meio do qual “[...] se reúnem os objectos ou acontecimentos sociais em grupos, que são equivalentes no que diz respeito às ações, intenções e sistemas de crenças do individuo” (p.290). Este processo, que só é possível através da comparação social por meio do confronto entre o “próprio grupo” e o “grupo de relação”, compõe o mecanismo elementar para a construção da identidade. MÉTODO Considerando a diversidade de expressões do masculino, buscamos investigar grupos empíricos nos quais pudéssemos encontrar a vivência de tal multiplicidade. Neste sentido, participaram deste estudo 15 homens, com idades entre 24 e 40 anos, sendo 05 identificados A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 21 pelos seus grupos de relação como homens tradicionais (T), 05 como homens metrossexuais (M) e 05 como homens homossexuais (H). Todos os entrevistados eram residentes de áreas urbanas e de classe média do Estado do Espírito Santo. Todas as entrevistas foram realizadas individualmente e gravadas para análise posterior do material obtido. Como recurso para a orientação das entrevistas, conforme objetivos propostos, nos servimos de um roteiro semi-estruturado, contemplando questões acerca das identificações e diferenciações sociais referentes aos modelos de masculinidades. A organização do instrumento considerou o universo representacional entre o grupo de pertença e o grupo identificado como de oposição, tendo em vista que cada grupo estabeleceu a sua própria dinâmica identitária. Buscando coerência entre os pressupostos teórico-metodológicos partiu-se para a elaboração de um plano geral de análise e tratamento dos dados. Foram selecionados o software ALCESTE (Analyse Lexicale par Contexte d’um Ensemble de Segments de Texte) e a técnica de Análise de Conteúdo (Bardin, 2002; Bauer, 2002; Flick, 2004), numa tentativa de compreender os atuais processos identitários masculinos, a partir dos relatos dos sujeitos. RESULTADOS E DISCUSSÃO Descrevemos inicialmente os resultados gerados pelo software ALCESTE, segundo cada um dos grupos pesquisados (homens tradicionais, metrossexuais e homossexuais), e, posteriormente, as Unidades Temáticas propostas com a articulação dos três grupos: “A Masculinidade hegemônica X as masculinidades”; “O feminino como o outgroup do masculino”. ANÁLISE DOS RESULTADOS SEGUNDO O SOFTWARE ALCESTE * Grupo de homens tradicionais Podemos observar no dendrograma a seguir, obtido através da análise de dados do grupo tradicional pelo ALCESTE, a disposição dos dados em dois eixos distintos, contendo 2 classes em cada um deles. O primeiro eixo, “Dinâmica dos papéis sociais: legítimos e não-legítimos”, é composto pelas classes que concentram falas referentes à discussão dos papéis sociais de gênero considerados legítimos (homem e mulher) e não-legítimos (homossexuais) na opinião desses sujeitos. A Classe 1 apresenta o discurso dos entrevistados no que se refere à descrição dos papéis masculinos e femininos. O “ser homem” diz respeito às qualidades morais, tais como a honra, a honestidade, a responsabilidade, o respeito, o caráter e a liderança. O “ser mulher” é representado seguindo o mesmo padrão tradicional, sendo descrito como cuidadora, delicada 22 MASCULINIDADE EM MOVIMENTO: um estudo sobre as identidades masculinas no cenário atual P. V. Barbosa; M. Bonomo; e Z. A. Trindade e mãe, aquela que sempre ajuda. A família aparece como peça obrigatória na completude desses papéis de homem ou de mulher, seja através do casamento, da descrição de tarefas do dia-a-dia da casa ou dos filhos. Figura 1: Dendrograma sugerido pelo software Alceste – grupo de homens tradicionais R = 0,75 R = 0,75 R = 0,42 CLASSE 1 CLASSE 2 CLASSE 3 CLASSE 4 Família como cenário de vivência dos papéis sociais legítimos Homem e Não-Homem Flexibilização do papel de homem pela prática Mudanças dos papéis pressionado pela mulher 13,98% 19,89% 45,16% 20,97% FORMAS Família Filho Responsabilidade Seu Cuidar Ser Mãe Sozinho Frente Ter Ajudar Junto Força Mulher Gerir XZ 36,63 26,29 25,89 20,99 18,63 14,49 14,31 14,31 13,60 13,37 12,66 12,66 10,50 10,50 9,05 FORMAS Questões Maquiagem Feminino Agir Homossexual Características Forma Acredito Conseguem Sexo Força Bruta Doença Interesse Usar Dinâmica dos papéis sociais: legítimos e não-legítimos XZ 21,25 20,69 19,94 19,78 18,80 17,16 12,33 12,28 11,22 9,52 8,61 7,79 7,79 7,79 6,33 FORMAS Eu Amigo Seja Tenho Faz Pessoal Gosto Tipo Meu Diferente Cabelo Falar Problema Gente Social XZ 14,95 13,91 12,54 12,54 11,35 9,36 8,83 8,56 7,53 7,41 7,30 6,60 6,34 6,24 4,96 FORMAS Casa Hoje Era Antigmente Mim Quero Fora Igual Dia Ficar Mudar Meio Ela Nunca Tomando XZ 39,48 34,05 26,33 23,37 22,33 19,37 18,40 18,40 17,14 16,17 15,41 13,33 13,46 11,92 11,49 Masculinidade em conflito A Classe 2 apresenta a dicotomia do masculino e não-masculino, contrastando descrições das características anteriormente apresentadas como do homem (principalmente a força física), com descrições do homossexual ligadas ao feminino, apresentando-o como o NÃO-homem. O segundo eixo gerado pelo ALCESTE “Masculinidade em conflito”, representado pelas Classes 3 e 4, apresenta conteúdos referentes à masculinidade em crise, levantando discussões A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 23 acerca da mudança de papéis na sociedade e a crescente flexibilização do papel masculino. É um eixo que concentra mais da metade das UCE geradas, demonstrando uma forte preocupação em relação aos conflitos e mudanças dos atuais papéis de gênero. A Classe 3 revela as ambigüidades provocadas pelo encontro entre as representações tradicionais e a necessidade dos homens exercerem práticas cotidianas até então associadas à esfera feminina. As classificações até então fechadas e tradicionais abrem espaço para uma posição mais flexível. A quarta e última classe gerada pelo ALCESTE discute as mudanças observadas nas práticas desses indivíduos a respeito dos papéis de gênero. Há uma comparação dos papéis de gênero de “ontem” e “hoje”, numa constatação das mudanças ocorridas na sociedade e em sua própria família e história. Apesar da mudança nos papéis de gênero ser apresentada como ligada diretamente à busca de espaço na sociedade e na família pela mulher, o homem não parece sentir que tem um papel ativo nessas modificações. * Grupo de homens metrossexuais A análise do material do grupo metrossexual permitiu a disposição dessas classes em função dos papéis sociais masculinos e femininos e das formas de masculinidades. O eixo “Masculinidades” contempla ainda as práticas consideradas masculinas. A Figura 2 apresenta tal configuração. O eixo “Papéis sociais masculinos e femininos” corresponde ao discurso referente aos papéis sociais exercidos por homens e mulheres na sociedade. Na Classe 1 encontramos conteúdos relacionados à avaliação dos papéis sociais masculinos e femininos. Nesta classe surgem informações que dizem respeito às formas dos homens e mulheres exercerem seus papéis, demarcando características específicas, mas entendendo que ambos podem alternar entre os papéis que seriam “tipicamente” masculinos ou femininos. A Classe 5 explicita o lugar onde os papéis masculinos e femininos são exercidos na sociedade, ou seja, aqui surgem questões sobre a vivência prática, como é o dia-a-dia dos homens e mulheres, a forma como eles executam suas tarefas mediante as mudanças que estão ocorrendo nos seus papéis. O Eixo “Masculinidades/Práticas” reúne conteúdos que contemplam as várias formas de masculinidades, passando pela questão das práticas. As idéias centrais presentes na Classe 2 correspondem às características que diferenciam o que é “ser heterossexual” e “ser homossexual”. Aqui os participantes expressam que o fator que diferencia o homo do hetero é a preferência sexual, mas deixam claro que os papéis na sociedade são iguais para ambos e que os direitos e deveres não são modificados por causa da preferência sexual. 24 MASCULINIDADE EM MOVIMENTO: um estudo sobre as identidades masculinas no cenário atual P. V. Barbosa; M. Bonomo; e Z. A. Trindade Figura 2: Dendrograma sugerido pelo software Alceste – grupo de homens metrossexuais R = 0,05 R = 0,60 R = 0,62 CLASSE 1 CLASSE 5 CLASSE 2 CLASSE 3 CLASSE 4 Avaliação Cenário de Vivência Hetero x Homo Masculinidades em movimento Flexibilização da fronteira entre os papéis XZ FORMAS FORMAS XZ FORMAS Papel 19,52 Ainda 29,73 Termos Antigamente 18,03 Gente 16,94 Ele 15,89 Papéis 16,94 Era 14,99 Trabalhar 16,94 Anos 10,89 Ficar Sensível 10,53 XZ FORMAS XZ FORMAS XZ 39,18 Outro 18,56 Sexo 25,40 Única 37,46 Liberdade 17,21 Vaidade 24,31 Tipo 33,66 Existem 13,11 Feminino 23,10 Comportamento 31,47 Física 12,80 Bem 22,06 15,91 Preferência 31,01 Eu 11,94 Certas 19,56 Já 14,39 Trejeitos 24,64 Criado 11,32 Sentir 19,56 Dia 8,66 Fechado 13,46 Homossexual 16,31 Exercer 10,28 Aparência 18,36 Cumprir 7,00 Meio 12,55 Duas 12,36 Foi 10,28 Oposto 18,23 Exclusivamente 7,00 Sociedade 11,54 Sexual 11,78 Vários 10,11 Geralmente 13,99 Lar 7,00 Família 10,36 Heterossexual 11,14 Gosto 8,43 Sensibilidade 13,99 Hoje 6,88 Fazer 10,00 Você 10,24 Universidade 8,43 Característica 11,28 Provedor 6,61 Difícil 9,45 Roupa 8,82 Minhas 8,31 Saber 11,14 Seja 5,56 Espaço 9,45 Usar 8,82 Masculinidade 7,85 Masculino 8,79 Mulher 4,83 Lugar 9,25 Fora 8,82 Acho 7,84 Coisas 7,18 Proteção 4,57 Sei 8,88 Poder 7,65 Diferenças 5,49 Exemplo 7,10 Papéis sociais masculino e feminino Práticas Masculinidades A Classe 3 focaliza as “masculinidades em movimento”, as várias formas de exercer as masculinidades existentes na sociedade atual, as práticas e representações acerca do homem moderno. Aqui se percebe que o modelo hegemônico de homem é atenuado pela realidade múltipla. Na Classe 4 encontramos os elementos que traduzem como esse grupo entende a questão da masculinidade, sendo encarada de forma flexível sem que haja delimitações rígidas nos papéis do homem na sociedade. Aqui eles tratam a questão da vaidade, da aparência e A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 25 sensibilidade de homens e mulheres como sendo algo compartilhado, algo que pode ser tanto do masculino quanto do feminino, demonstrando a introdução de novos elementos na conceituação do que é ser homem. * Grupo de homens homossexuais Os resultados desse grupo estão organizados em dois eixos distintos, cada um deles contendo duas classes, conforme sugerido pelo software e demonstrado na figura 3. A idéia central presente na Classe 1 é a discussão entre os papéis de gênero prescritos e os concretamente vividos, em relação às mulheres e aos homens, tanto hetero quanto homossexuais. A família é destacada como o principal cenário em que estas diferenças são sublinhadas, uma vez que a instituição familiar assume a função, historicamente construída, de formadora e reguladora dos indivíduos em suas identidades de gênero (Siqueira, 1997). O homossexual, no contexto familiar, aparece ligado ao conflito dos indivíduos desse grupo, por não partilharem dos papéis de gênero socialmente prescritos, sendo apontada como alternativa a saída de casa. É interessante destacar que o grupo homossexual também representa a identidade masculina vinculada à paternidade e ao casamento heterossexual, reproduzindo a função tradicional da masculinidade de manutenção da família nuclear. Na Classe 2 apresenta-se a dinâmica identitária do grupo dos participantes a partir da busca por uma distinção entre “quem são” e “quem não são”. A distinção inicial que os participantes estabelecem em relação à sua pertença toma como referência o grupo heterossexual. O preconceito enfrentado e a supervalorização do ingroup estão presentes, assim como a existência de um preconceito-resposta em relação ao grupo heterossexual. Porém, apesar do discurso da luta, do preconceito vivido internamente ao grupo de homossexuais ainda surge uma importante distinção: os “homossexuais homens” X os “homossexuais afetados”. É interessante que, de fato, parece que o protesto é devido à masculinidade estar “afetada” pelo feminino. A identidade social desses homens é preservada quando se sentem distinguidos dos homossexuais “mais afeminados”, o que deverá ser legitimado pelo reconhecimento na esfera pública. 26 MASCULINIDADE EM MOVIMENTO: um estudo sobre as identidades masculinas no cenário atual P. V. Barbosa; M. Bonomo; e Z. A. Trindade Figura 3: Dendrograma sugerido pelo software Alceste – grupo de homens homossexuais R = 0,01 R = 0,66 CLASSE 1 CLASSE 2 CLASSE 3 Discussão sobre a Diferença Homo x Hetero Homo x Homo Discussão entre o tradicional e o novo FORMAS Família Respeito Pessoa Filho Gosto Independente Sociedade Tenho Começa Diferente Era Chegar Hora Ninguém Ela XZ 13,68 9,58 8,46 8,21 6,56 6,56 6,20 6,20 5,94 5,94 5,43 4,87 4,87 4,87 4,66 FORMAS Heterossexual Preconceito Discriminação Grupo Diferença Debate São Homens Comigo Relação Questão Homossexual Iguais Manter Somos Família como cenário do conflito dos papéis sociais XZ 44,91 44,53 30,29 27,12 24,47 22,64 20,69 20,57 17,70 13,48 9,04 8,94 8,76 8,58 8,58 FORMAS Atitude Corpo Maneira Olhar Busca Conflito Sensibilidade Mentalidade Socialmente Orgânico Percepção Posso Afirmação Contradição Feminino XZ 51,13 34,02 20,93 19,75 17,39 17,39 16,12 13,86 13,86 13,86 13,86 12,88 10,36 10,36 10,36 Masculinidades O QUE OS GRUPOS TÊM EM COMUM A análise conjunta entre os três grupos empíricos nos revela interessantes pontos de discussão a partir da dinâmica de identificação entre o feminino e o masculino, bem como do jogo ideológico que produz o processo identitário masculino alicerçado em valores sociais historicamente estabelecidos. * A masculinidade hegemônica X as masculinidades O conflito entre o modelo hegemônico e as práticas masculinas efetivamente vividas, está presente em todos os grupos. Esse modelo pode ser observado nas narrativas apresentadas principalmente através da concepção de “ser homem”, que se caracteriza pelos valores morais, como por exemplo, a honestidade, a responsabilidade, a sinceridade e o caráter. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 27 Esse modelo prescrito entra em confronto com a realidade de forma diferenciada em cada um dos grupos. Para o grupo de homens tradicionais, o conflito se estabelece pela obrigatoriedade de flexibilização dos papéis de gênero em função das mudanças sofridas também pelo universo feminino. O grupo de homens metrossexuais, por sua vez, explicita o conflito de assumir um lugar que culturalmente está associado ao feminino, lugar este que comporta a sensibilidade, a vaidade e a preocupação com a estética. Nos homens homossexuais, o conflito entre o hegemônico e o plural se processa de uma forma muito intensa, considerando a longa história de um estereótipo negativo associado à homossexualidade. Pertencer ao grupo que é entendido como o grande out-group da masculinidade, ou seja, o homem que porta a feminilidade na visão da sociedade, que é o não-homem, representa o grande conflito. * A feminização como contraste A análise entre os três grupos nos mostra que o movimento de preservar a masculinidade, tomando o feminino como referencial na delimitação entre o in-group e out-group, é a questão central. Cada grupo localiza out-groups diferentes, mas o grupo depositário continua sendo aquele que, de alguma forma, é associado ao feminino, pois a função de identificação de um outro negativado em relação à sua pertença, ainda é a questão mais importante nesse processo de construção identitária masculina. O grupo de homens tradicionais associa o homossexual ao feminino. Os homens metrossexuais têm o grupo de homossexuais como seu grupo de oposição, contudo os elementos que referenciam essa diferenciação, não são as características ditas femininas, mas a opção sexual, buscando sempre marcar a heterossexualidade versus a homossexualidade. Para os homens homossexuais entrevistados, o seu out-group são os também homossexuais, contudo os chamados “afetados”. Diante das várias mudanças e da anunciada “crise da masculinidade” (Carabí, 2000; Toneli & Adrião, 2005), poderíamos nos perguntar: será que esses homens questionam a própria masculinidade? A atual flexibilização dos papéis masculinos e femininos que gera uma maior dificuldade de caracterizar “o que é coisa de homem” e “o que é coisa de mulher”, torna a vivência da masculinidade algo difícil e contraditório. A questão da preservação da identidade masculina e da manutenção de uma auto-imagem positiva (Tajfel, 1982; 1983) se apresenta, por isso, como uma preocupação latente para todos os grupos pesquisados. De acordo com a Teoria da Identidade Social, a preocupação em preservar a própria identidade se dá como processo que faz parte da dinâmica das identidades, uma vez que a constituição identitária de um indivíduo se processa através da discriminação valorativa via estabelecimento da igualdade e diferença. Em um estudo realizado por Joffe (1995), essa função depositária no “outro” é claramente percebida: a responsabilidade sobre o surgimento da AIDS foi sempre transferida para os grupos estrangeiros, protegendo a imagem do próprio grupo frente a este evento negativo. 28 MASCULINIDADE EM MOVIMENTO: um estudo sobre as identidades masculinas no cenário atual P. V. Barbosa; M. Bonomo; e Z. A. Trindade No grupo de entrevistados dessa pesquisa, observamos esse processo quando os participantes buscam afastar de seu grupo e de si mesmos, as características tidas como tipicamente femininas. É interessante ressaltar que o os entrevistados consideram prejudicial, e por isso afastam de si, não a mulher em si, mas sim o feminino no homem, que quando presentes nos indivíduos masculinos os tornariam menos homens, conforme discutido por Carabí (2000) e Toneli e Adrião (2005). Essa preocupação dos homens com a associação de sua identidade ao feminino faz sentido quando levamos em conta estudos que reafirmam como ponto relevante da masculinidade latino-americana a “cultura do machismo”, que entende as relações de gênero de forma hierárquica, “estabelecendo relações de poder e domínio dos homens sobre as mulheres” (Parker, apud Alves, 2003, p.430). Portanto, ser associado ao feminino, é ser associado ao passivo e ao menos importante (DaMatta, 1997). O grupo tradicional se defende desse risco ora afastando de si a imagem do homem homossexual, e fortalecendo a importância da heterossexualidade como característica masculina, ora flexibilizando alguns papéis sociais dentro da família, que em sua concepção tradicional podem ser vistos como femininos. O grupo de homens metrossexuais precisa também se defender da imagem feminina ao assumir comportamentos entendidos como femininos no plano tradicional. O cuidado com a aparência, o freqüentar salões de beleza, o se vestir bem, se apresenta como uma linha tênue entre a masculinidade real e a suspeita. Apresentam então uma maior flexibilização dos papéis de gênero, e defendem comportamentos como a sensibilidade, o cuidado com a aparência, como vantagens no terreno da conquista das mulheres, afirmando então sua heterossexualidade acima de qualquer suspeita. O grupo de homens homossexuais finalmente apresenta a mesma tentativa e defesa de seu ingroup, desqualificando indivíduos que compõem seu próprio grupo homossexual, por apresentarem características femininas, os chamados afetados. Intitulam-se “homens que gostam de homens”, reafirmando o modelo hegemônico e se afastando do risco de identificação com o feminino. O universo empírico investigado nos permite discutir a produção do discurso hegemônico acerca da masculinidade – independente da escolha sexual ou da realidade mais ou menos tradicional – sustentada no homem heterossexual, provedor e pai de família (Siqueira, 1997; Trindade, 1999). Dessa forma, mesmo os indivíduos que assumem opiniões ou vivências distintas do padrão hegemônico, ainda se pautam nesse modelo de masculinidade para a construção de suas próprias identidades. Essa ambigüidade expressa o conflito acerca de sua própria identidade masculina e a busca de conservar sua auto imagem de “homem” intacta. Todos os entrevistados falam do conflito vivido e da mudança dos papéis sociais de gênero. Essa mudança é ocasionada por inúmeras situações, das quais podemos nomear: a entrada da mulher no mercado de trabalho; as modificações econômicas, que torna cada vez mais necessária a incrementação da renda da família para a manutenção da casa; um maior acesso a informação e educação, facilitando um aumento do nível escolar das mulheres. Esse novo contexto no A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 29 qual se amparam as relações entre mulheres e homens apresentam à vida cotidiana destes últimos a necessidade de transformação de representações e comportamentos. Os resultados encontrados através da análise do ALCESTE reafirmam as discussões apontadas na literatura de gênero acerca da “crise da masculinidade” e das transformações das práticas e significados do masculino (Carabí, 2000; Toneli & Adrião, 2005; Kimmel, 1997, 1998). Os grupos empíricos também exemplificam a dinâmica da teoria das Identidades Sociais, não só confirmando seus conceitos elementares, mas principalmente reafirmando que os processos identitários estão em constante construção e movimento, modificando e sendo modificados pela realidade vivenciada pelos indivíduos. REFERÊNCIAS ALVES, M.F.P. (2003). Sexualidade e prevenção de DST/AIDS: representações sociais de homens rurais de um município da zona da mata pernambucana, Brasil. Caderno Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19 (sup. 2), pp. 429 – 439. ALVIM, S. & Souza, L. (2005). Violência conjugal em uma perspectiva relacional: homens e mulheres agredidos/agressores. Psicologia: Teoria e Prática, 7 (2), 171-206. ASTÚRIAS, L E. (1997). Construcción de la masculinidade y relaciones de genero. Fórum sobre Igualdade e Justiça Social, Cidade de Guatemala. BARDIN, L. (2002). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1977). BAUER, M. W. (2002). 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REPRESENTAÇÃO SOCIAL DE POLÍTICA ENTRE ADOLESCENTES DE DEZESSEIS E DEZESSETE ANOS Ágnes Bonfá Drago 1 Elisa Avellar Merçon de Vargas 1 Julia Alves Brasil 1 Juliana Brunoro de Freitas 1 Karina de Andrade Fonseca 1 Edinete Maria Rosa 2 A adolescência já foi vista como uma fase natural do desenvolvimento humano, sendo deste modo, considerada universal, e como um período difícil e turbulento. Tal concepção norteia ainda hoje comportamentos e atitudes de pais e orientadores direcionados aos adolescentes, e até mesmo dos adolescentes com relação a eles mesmos. Contudo, essa visão não é suficiente para a compreensão da adolescência (MENANDRO, 2004). Dessa forma, o desenvolvimento do adolescente admite várias significações construídas sócio-historicamente, não se limitando às várias transformações ocorridas na esfera biológica e fisiológica. Acontecem também mudanças de papéis, de idéias e de atitudes, além das alterações biológicas (MARTINS; TRINDADE; ALMEIDA, 2003). Assim, a adolescência e os fenômenos a ela associados são determinados social e culturalmente, sendo transmitidos à criança no processo de socialização, incluindo-se fatores econômicos, sociais, políticos, culturais, entre outros (OLIVEIRA & EGRY, 1997; OZELLA, 2003). E em diferentes sociedades podem existir concepções distintas sobre adolescente, e mesmo em uma determinada sociedade, num dado momento histórico, é possível haver diferentes pontos de vista em constante transformação, conforme o gênero, a classe social, a religião e a etnia (OLIVEIRA & EGRY, 1997). Em relação à participação do cidadão no processo político, vale destacar a dos jovens, que é relevante tanto para o desenvolvimento social quanto para o desenvolvimento próprio. Segundo a Constituição Federal de 1988, em seu art. 14, parágrafo 1° (incisos de I a II) (BRASIL, 1988, p. 18). § 1° O alistamento eleitoral e o voto são: I – obrigatórios para os maiores de dezoito anos II – facultativos para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. 1 2 Estudantes da graduação em Psicologia/UFES Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES 32 Representação Social de Política entre Adolescentes de dezesseis e dezessete anos A. B. Drago; E. A. M. de Vargas; J. A. Brasil; J. B. de Freitas; K. A. Fonseca; e E. M. Rosa A política está ligada basicamente a uma prática humana essencialmente acoplada ao poder, mas não qualquer poder, e sim, o poder político. A política se refere às relações de poder no interior de uma sociedade, e se relaciona com a questão da convivência entre os diferentes, assim, “os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças” (ARENDT, 1999, p.22). Para um bom funcionamento da democracia espera-se que os cidadãos participem do processo eleitoral de maneira responsável e ativa. Segundo Zaguary (1999), aparentemente, na atualidade, não há um interesse geral dos jovens pela política e pelos políticos. Isso mostra a necessidade atual de compreender de maneira mais eficaz como se desenvolvem, nos cidadãos, as atitudes que levam a uma participação responsável no sistema político. Utilizamos neste estudo a Teoria das Representações Sociais (TRS), que compreende as Representações Sociais (RS) como formas de saber do senso-comum entre indivíduos de um mesmo grupo em relação a um objeto. Estas são criadas a partir da cultura e da interação social entre os indivíduos, portanto, para existir representação de um determinado objeto, os membros desse grupo devem falar sobre ele e reconhecê-lo, socialmente, como importante (MARTINS; TRINDADE; ALMEIDA, 2003 & SÁ, 1998). Consideraremos aqui a abordagem teórica desenvolvida por Jean Claude Abric, a Teoria do Núcleo Central, que se fundamenta nos conteúdos cognitivos a partir dos estudos das RS (SÁ, 1998). Tal teoria visa compreender a composição, o conteúdo e a estrutura das RS, a fim de entender o funcionamento das mesmas. Segundo Martins; Trindade & Almeida (2003) e Sá (1998), Abric sugere que as RS estão em torno de um núcleo central, composto de um ou mais elementos, os quais se organizam e dão sentido às RS. O núcleo central constitui-se de elementos cognitivos mais estáveis, garantindo a continuidade das RS e os elementos periféricos possuem características mais mutáveis. As condições históricas, sociológicas e ideológicas determinam os elementos do núcleo central e, por isso, estes são coletivamente compartilhados, e, dessa forma, mais resistentes a mudanças. Assim sendo, observamos que: Em torno do núcleo central e como seu complemento indispensável, organizamse os elementos periféricos que se constituem como a interface entre a realidade concreta e o sistema central, por isso são mais flexíveis e móveis. Dessa forma, em caso de transformações da representação, estas acontecerão primeiramente nos elementos periféricos, pois é no sistema periférico que poderão aparecer e ser toleradas contradições (MARTINS & TRINDADE & ALMEIDA, 2003, p. 557). Esta pesquisa teve como objetivo geral conhecer e analisar a RS que os jovens entre dezesseis e dezessete anos de idade têm sobre política, uma vez que o voto nessa faixa etária é facultativo. Como objetivo específico pretendeu-se compreender a importância do voto nessa faixa etária, o porquê votar quando não é obrigatório, qual a motivação para votar ou não, o que influencia na escolha dos candidatos; questões relevantes para a sociedade, principalmente em ano eleitoral. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 33 MÉTODO Para a realização desta pesquisa foram realizadas 50 entrevistas, nos dias 20 e 22 de setembro de 2006 com adolescentes de 16 e 17 anos de idade em uma instituição pública de ensino médio em Vitória, ES. Destes, 30 eram do sexo masculino e 20 do sexo feminino. Foi obtido o consentimento da escola, e garantido aos entrevistados que seus nomes não seriam divulgados nos resultados do estudo e pedido que eles expressassem o interesse em participar através da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. As perguntas sobre política e político foram elaboradas utilizando a técnica de associação livre e aprofundadas por questões abertas. A associação livre é uma técnica utilizada por Abric a qual permite coletar os elementos constitutivos do conteúdo de uma representação. Os termos indutores utilizados para a associação livre foram “política” e “político”. Para a análise dos dados, foi utilizado o software EVOC (Ensemble de Programmes Permettant L’Analyse dês Évocations). O EVOC analisa as palavras evocadas em função de dois critérios: freqüência e ordem de evocação. Combinar estes dois critérios possibilita a realização do levantamento dos elementos que mais provavelmente se associam ao termo indutor e, por conseguinte, também permitem o levantamento da organização interna das RS relacionadas a esses termos. Os resultados são apresentados em quatro quadrantes: no primeiro, estão os elementos mais relevantes e, por isso, possíveis de estabelecerem o núcleo central. Estes elementos são os primeiramente evocados e mencionados com freqüência elevada. No segundo quadrante estão os elementos que alcançaram uma alta freqüência e, no entanto, foram citados nas últimas posições já; no terceiro quadrante, encontram-se os elementos que foram evocados com uma baixa freqüência, porém citados primeiramente. No quarto quadrante encontram-se os elementos que correspondem à periferia distante ou segunda periferia. Neste estão os elementos menos citados e menos prontamente evocados (RIBEIRO, 2000). RESULTADOS E DISCUSSÃO A partir dos dados coletados, pôde-se perceber que 94% dos participantes morava com os pais, que apenas 6% trabalhava e, ainda, que 94% informou ter alguma religião. Quando se perguntou sobre a formação do pai, percebeu-se que 50% tinha Ensino Superior Completo e 22% possuía somente o Ensino Médio Completo, e 4% não trabalhava. Em relação à escolaridade da mãe 46% possuía Ensino Superior Completo e 38% tinha somente o Ensino Médio Completo, e 20% delas não trabalhava. Verificou-se que 34% dos adolescentes entrevistados possuíam titulo de eleitor, e iria votar nas Eleições de 2006, sendo que os motivos que eles deram para votar foram: exercer a cidadania; esperança de mudança; interesse em votar; motivação dos pais ou porque tirou 34 Representação Social de Política entre Adolescentes de dezesseis e dezessete anos A. B. Drago; E. A. M. de Vargas; J. A. Brasil; J. B. de Freitas; K. A. Fonseca; e E. M. Rosa o título de eleitor. Os motivos mais citados foram exercer a cidadania e esperança de mudança. Já os participantes que afirmaram que não iriam votar, destacaram como razões para isso o fato de: não possuírem título de eleitor; não terem informações suficientes; não ser obrigatório; não terem interesse; não terem tempo; terem perdido o prazo para tirar o título e, também, não acreditarem na política. Quando perguntado se houve influência na decisão de votar ou não, se observou que, dos que iriam votar, 70,6% relatou não ter sofrido influência, e os que afirmaram ter tido influência citaram a família e os amigos como os responsáveis por esta. Dos que não iriam votar, 81,8% declarou não terem sido influenciados em sua decisão. Já os que disseram ter sofrido influência, afirmaram que esta foi devido ao descrédito na política, à falta de tempo, à ausência de título eleitoral ou à propaganda eleitoral. Ao serem indagados se acompanhavam o processo eleitoral, e como o faziam, 48% relatou acompanhar; 24% afirmou não acompanhá-lo e 28% disse acompanhar pouco. Dos que acompanhavam (inclusive os que disseram que o fazem pouco), o faziam através de conversa direta com políticos, com outras pessoas, com a família; panfletos; propostas; pesquisas e meios de comunicação. Os meios de comunicação citados foram: jornal, televisão, Internet, revistas e rádio. Foram destacados os programas eleitorais incluindo debates dos candidatos. Quando se perguntou como os adolescentes escolheriam seus candidatos, e o que os influenciava, foram observados os seguintes fatores: família; informações sobre os candidatos; meios de comunicação; pessoas conhecidas; pesquisas; candidato com menos marketing; político conhecido; comunicação com o candidato; interesse próprio ou religião. Notou-se que 20% afirmaram não sofrer influência em sua escolha, no entanto, observou-se que muitos deles citaram alguns dos fatores descritos acima, indicando, portanto, uma contradição. ANÁLISE DAS QUESTÕES DE EVOCAÇÃO PELO EVOC Na Tabela 1 está o resultado das questões de evocação, referente ao termo indutor “política”, analisado pelo EVOC com a finalidade de realizar o levantamento da organização interna das representações. Os resultados estão expostos em uma tabela de quatro quadrantes organizados em dois eixos. O eixo vertical corresponde à freqüência de evocação das palavras e o eixo horizontal à ordem de evocação. Ao analisar as evocações na Tabela 1, notou-se que os possíveis elementos que organizam a RS de política são: corrupção, eleição, líder. 35 A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos Tabela 1: Elementos centrais acerca da Evocação “Política”, em função da freqüência e da ordem de evocação (n = 50). EVOCAÇÕES DE “POLÍTICA” DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO Média da Ordem de Evocação Inferior a 2,7 Superior ou igual a 9 Inferior a 9 Média das Freqüências Termo evocado corrupção eleição líder democracia projetos-sociais roubo Superior ou igual a 2,7 Freqüência Ordem de Termo evocado evocação 39 19 12 1,564 2,632 2,417 desonestidade dinheiro direito responsabilidade 6 5 5 2,000 2,200 2,600 desordem economia governo melhoria mudança Freqüência Ordem de evocação 17 9 9 10 3,765 3,333 2,889 3,300 7 5 8 7 7 3,286 3,200 2,875 4,000 3,000 Através destes resultados percebeu-se que os adolescentes vêem a política associada à corrupção, uma vez que este foi o elemento citado com a maior freqüência e com a maior média de evocação. Logo, a corrupção consiste em um elemento importante na configuração da RS de política destes adolescentes, pois estaria sendo criada a partir da cultura e da interação social destes indivíduos, reconhecendo-a socialmente como importante (MARTINS; TRINDADE; ALMEIDA, 2003 e SÁ, 1998). Ao se perguntar os motivos de tais evocações obtiveram-se as seguintes respostas: com relação à menção da palavra corrupção, eles a justificaram como sendo o que eles têm conhecimento, pelo fato de que a corrupção está presente e pelo descrédito da política e do político; já no que diz respeito à evocação eleição, justificaram pelo fato de exercer a cidadania e por a população ser responsável pela política; já a evocação de líder foi justificada por ser uma função atribuída ao político. “O que têm conhecimento” e “a corrupção está presente” foram os motivos mais citados pelos entrevistados, o que corrobora a idéia de que o contexto histórico, sociológico e ideológico é determinante para o compartilhamento destas idéias acerca da política. A Tabela 2, abaixo, ilustra o resultado das questões de evocação referentes ao termo indutor “político”, analisado pelo EVOC. Notou-se, assim, que os possíveis elementos que organizam a RS de político são: corrupção, desonesto, honestidade, ladrão, representante. 36 Representação Social de Política entre Adolescentes de dezesseis e dezessete anos A. B. Drago; E. A. M. de Vargas; J. A. Brasil; J. B. de Freitas; K. A. Fonseca; e E. M. Rosa Tabela 2: Elementos centrais acerca da Evocação “Político”, em função da freqüência e da ordem de evocação (n = 50). EVOCAÇÕES DE “POLÍTICA” DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO Média da Ordem de Evocação Inferior a 2,6 Superior ou igual a 7 Inferior a 7 Média das Freqüências Termo evocado corrupção desonesto honestidade ladrão representante partido propaganda Superior ou igual a 2,6 Freqüência Ordem de Termo evocado evocação 33 26 7 13 8 1,545 2,231 2,143 2,385 2,375 ambição dinheiro responsabilidade 4 4 2,000 2,250 ajuda esperto inteligente lei mudança privilégio Freqüência Ordem de evocação 11 8 13 3,364 3,250 2,615 4 4 4 4 5 4 3,000 3,000 3,000 3,000 3,600 3,250 A partir destes resultados observou-se que os adolescentes associam os políticos à corrupção, assim como visto no caso do termo indutor “política” (tabela 1). Este elemento foi, novamente, citado com maior freqüência e maior média de evocação. De acordo com Zaguary (1999), atualmente, existe uma situação de grande descrédito com relação à figura dos políticos e tal situação deve-se à sucessão de escândalos financeiros envolvendo pessoas públicas no exercício de funções que carecem de confiabilidade e ética, e, conseqüentemente, acabam por desiludir todos aqueles, que no seu dia-a-dia, suam e lutam e reafirmam seus princípios morais. Como explicação para tais evocações as respostas foram semelhantes. As explicações que mais se destacaram para as evocações corrupção, desonesto e ladrão, foram: é o que eles têm conhecimento; descrédito dos políticos; interesse próprio dos políticos; corrupção está presente; impunidade dos políticos. Já para as evocações honestidade e representante, as justificativas foram: esperança de mudança; compromisso de alguns políticos; função do político. Dessa forma, através da observação dos dados obtidos e da literatura, foi possível perceber que “a evocação da palavra ‘política’ suscita, antes de qualquer outra perspectiva, imagens negativas” (MÜXEL, 1997, p.153). É evidente em nossa sociedade uma crise política. Como percebido na RS dos adolescentes, no geral não foram evocadas imagens positivas da política, A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 37 quando eram evocados fatores positivos, normalmente estavam relacionados a um desejo de mudança ou a como a política deveria ser, a exemplo disso, podemos observar a contradição existente no núcleo central da RS de político, que trouxe as palavras “desonesto” e “honestidade”. A imagem negativa apresentada sobre a política se deve, em parte, aos próprios políticos que, como visto no estudo de Müxel (1997) “são suspeitos, por causa dos privilégios de que dispõem” (p.153). No Brasil, nos últimos anos, aumentaram os escândalos políticos e financeiros explícitos, culminando em uma perda de confiança por parte dos cidadãos para com seus representantes políticos, o que foi observado, também, no presente estudo com adolescentes. Junto a isso está uma política que cada vez mais segue a lógica do mundo do marketing, produzindo imagens “padronizadas”, coadunando com a fala de alguns entrevistados. A perda de credibilidade na política, como vista nesse estudo, faz com que ocorra uma perda de vontade dos jovens em participar do mundo político. Como nos diz Müxel (1997), “a crise da representação política se impõe pelo seu caráter evidente” (p.153). Assim, uma política distante e excludente faz com que a população tenha um sentimento de impotência, uma ausência de controle sobre a realidade política. A política acaba se fechando em suas próprias lógicas, vivendo para si mesma. Conforme esclarece Müxel, Esta perda generalizada de credibilidade estabelece um tipo de ruptura nos laços que podem unir os jovens ao mundo político. Este é percebido como um mundo ‘paralelo’ que suscita cada vez mais incompreensão e em relação ao qual eles têm cada vez mais dificuldade de se identificar e se situar (MÜXEL, 1997, p. 153). Frente a isso, os valores e atitudes dos jovens frente à política mostram, além da desconfiança, do pessimismo e da distância, uma crítica ativa e um desejo de mudança. Os ideais, os sonhos e o desejo de uma sociedade mais justa continuam presentes na vida dos jovens. O que parece ter mudado são os meios pelos quais se pretende atingir esses ideais (ABRAMO, 2004). CONSIDERAÇÕES FINAIS A adolescência em nossa sociedade ainda é vista de maneira naturalizada, pois geralmente atribui-se aos adolescentes características que os estigmatizam como rebeldes ou imaturos para a vida. Contudo, o que se verificou, especialmente diante de temas como “política”, foi que os adolescentes de dezesseis e dezessete anos, não obrigados a exercerem o direito do voto, se demonstraram desestimulados diante do atual quadro político brasileiro, não fugindo, portanto, da tendência de descrédito político presente na maioria da população brasileira; por outro lado, muitos manifestaram também desejo de mudança desta realidade. Assim, é 38 Representação Social de Política entre Adolescentes de dezesseis e dezessete anos A. B. Drago; E. A. M. de Vargas; J. A. Brasil; J. B. de Freitas; K. A. Fonseca; e E. M. Rosa necessário que haja um questionamento se são somente os jovens que se apresentam desiludidos e desorganizados diante da política ou se toda a sociedade se encontra dessa forma, pois se verifica que o fator idade não é decisivo para acompanhar as mudanças políticas e para opinar sobre elas. Constatando-se que a RS dos adolescentes acerca da política e dos políticos gira em torno da corrupção, o que corresponde à realidade do nosso país, faz-se necessária uma moralização da política e uma maior transparência. Portanto, são necessários outros trabalhos no sentido de produzir conhecimento sobre o tema da relação dos adolescentes com a política, visto que esse é um tema recorrente em nossa sociedade e que merece destaque. REFERÊNCIAS ABRAMO, H. Participação e organizações juvenis. Recife: Projeto Redes e Juventudes, 2004. Disponível em: http://www.redesejuventudes.org.br/sispub/image-data/1268/publicacoes.htm ARENDT, H. O que é política? 2ª edição, RJ: Bertrand Brasil, 1999. MARTINS, P. O.; TRINDADE, Z. A.; ALMEIDA, A. M. O.. O ter e o ser: representações sociais da adolescência entre adolescentes de inserção urbana e rural. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 16, n. 3, 2003. 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Ao mesmo tempo, dados de 2002 e de 2003 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (descritos pelo IPEA, 2005) mostram sinais da defasagem educacional que ainda atinge os jovens de nosso país. Somente 57,1% dos alunos chegam à oitava série do Ensino Fundamental e somente 36,6% concluem o Ensino Médio. Há considerável descompasso entre série e idade em todo o sistema. Os dados citados por Zibas (2005) indicam que o Ensino Médio tem atendido um número crescente de jovens, o que faz aumentar sua importância e pregnância sócio-cultural. Adicionalmente, nas últimas décadas, assistimos a um aumento das exigências de qualificação para entrada no trabalho. Antunes (1999) mostra que, a partir da década de 1970, os países industrializados passaram por profundas transformações políticas, econômicas e produtivas que desembocaram respectivamente no chamado “estado mínimo”, no neoliberalismo e no toyotismo. Nesse contexto, os sistemas de proteção social (como o seguro desemprego, etc.) são desvalorizados em prol da iniciativa individual, ao mesmo tempo em que crescem as taxas de desemprego. Exige-se que o trabalhador seja competitivo e flexível, que tenha um “diferencial” para se destacar no mercado de trabalho. Esse “diferencial” se traduz na formação acadêmica, geral ou técnica, tida como “arma” na competição pelos empregos. Tendo em vista a importância crescente do Ensino Médio em nossa sociedade, torna-se cada vez mais relevante estudar como os diversos atores sociais têm percebido esse nível de ensino. Estudos desse tipo podem trazer indicações para intervenções pedagógicas e psicossociais e para a construção de políticas públicas voltadas para o setor. 1 2 3 Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGPUFES), é professor e coordenador do curso de Psicologia do Instituto de Ensino Superior e Formação Avançada de Vitória (FAVI). Estudantes da graduação em Psicologia da UFES. Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. 40 Representações de Ensino Médio em estudantes de Escola Pública L. G. S. Souza; J. A. Brasil; C. E. Feletti; e M. C. S. Menandro A pesquisa relatada neste artigo se insere nesse conjunto de esforços. Buscamos apreender as representações sociais de Ensino Médio em estudantes ingressantes em uma escola pública, considerando seus sete primeiros meses de escolarização secundária. Os dados levantados geraram análises das representações sociais construídas pelos estudantes e também das suas experiências escolares. As representações sociais são formas de conhecimento, ditas do senso-comum, socialmente elaboradas e partilhadas por indivíduos de um mesmo grupo. São conjuntos de conceitos e explicações associados a crenças e valores sobre objetos relevantes. Têm funções de comunicação, identificação grupal, orientação e justificação dos comportamentos (Moscovici, 2003; Bonardi & Roussiau, 1999). As representações sociais, segundo Abric (2001), possuem uma estrutura que inclui um núcleo central bastante estável e sistemas periféricos mais maleáveis. Como veremos a seguir, os dados coletados nesta pesquisa forneceram indícios a respeito da organização estrutural das representações estudadas. OBJETIVO E MÉTODO O estudo que aqui relatamos teve por objetivos: a) investigar representações sociais relacionadas a escola e a Ensino Médio construídas por estudantes secundaristas e b) verificar possíveis transformações dessas representações nos meses iniciais de escolarização secundária.4 Para detectar essas possíveis transformações, fizemos um acompanhamento de tipo longitudinal, coletando dados em dois momentos diferentes do ano de 2006: fevereiro (início do ano letivo) e setembro. Chamaremos esses dois momentos, respectivamente, de primeira coleta e segunda coleta. Os participantes foram estudantes de uma escola pública de Ensino Médio localizada em Viana, ES, com idades principalmente entre 14 e 16 anos. Todos eram ingressantes no primeiro ano do Ensino Médio (turno vespertino). Na primeira coleta, contamos com 120 estudantes, 61 meninas e 59 meninos. Na segunda coleta, o número de participantes caiu para 77, devido principalmente a trocas de escola ou de turno, com 34 meninas e 43 meninos. Todos os 77 participantes da segunda coleta responderam também à primeira. Utilizamos o método das evocações livres5. Por meio de questionários, pedimos que os estudantes associassem cinco palavras ou frases curtas a três “expressões indutoras”, quais sejam: “ensino médio”, “parar de estudar” e “bom aluno”. As evocações produzidas foram categorizadas e analisadas com auxílio do software EVOC (Ensemble de programmes permettant l’analyse des evocations), que mostra as respostas mais relevantes, distribuindo-as em função de sua 4 5 O estudo de Cruz (1997) serviu como inspiração para a formulação desses objetivos. A autora analisou a evolução das representações sociais de escola em crianças ingressantes no Ensino Fundamental. Este estudo é parte de uma pesquisa mais ampla, que embasou a dissertação de mestrado de Souza (2007), intitulada “Uma nova etapa: juventude e experiências de ingresso no Ensino Médio”, orientada pela professora Maria Cristina Smith Menandro. Além dos objetivos e do método relatados neste artigo, essa pesquisa mais ampla se propôs a analisar a construção da identidade junto aos estudantes e contou com dados de questões discursivas e entrevistas individuais. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 41 freqüência e ordem de evocação. Segundo Oliveira, Marques, Gomes e Teixeira (2005), o EVOC permite uma análise estrutural das representações, mostrando seus elementos centrais e periféricos6. RESULTADOS E DISCUSSÃO Neste artigo, focaremos nossa atenção nos elementos centrais relacionados pelos estudantes a “ensino médio”, “parar de estudar” e “bom aluno”. Tais elementos são qualificados como “centrais” por terem sido, simultaneamente, os mais freqüentes e os que tiveram maior prioridade na ordem de evocação (por exemplo, ao pensar em “parar de estudar”, uma das primeiras idéias que vieram à mente de boa parte dos estudantes foi “desemprego”). A tabela abaixo mostra os elementos centrais associados às representações estudadas, nos dois momentos de coleta. Tabela 1: Elementos centrais associados às expressões indutoras nos dois momentos de coleta. Expressões indutoras Ensino médio Parar de estudar Bom aluno 6 Momento de coleta Fevereiro de 2006 (início do ano letivo) Aprender Difícil Escola Estudar Estudar muito Passar de ano Professores Responsabilidade Provas e Notas Desemprego Estupidez Ficar burro Ficar à toa Futuro ruim Jamais Perder oportunidade Só por motivos sérios Trabalhar É ruim Boas notas Comportado Esforçado Estudioso Inteligente Passar de ano Responsável Setembro de 2006 Aprender Difícil Estudar Futuro bom Novas matérias Passar de ano Responsabilidade Desemprego Emprego ruim Futuro ruim Jamais Boas-notas Comportado Educado Esforçado Estudioso Inteligente Responsável Os “elementos centrais” não são necessariamente os elementos do que Abric (2001) chamou de “núcleo central” da representação. São, entretanto, seus prováveis integrantes (Oliveira et al., 2005). 42 Representações de Ensino Médio em estudantes de Escola Pública L. G. S. Souza; J. A. Brasil; C. E. Feletti; e M. C. S. Menandro REPRESENTAÇÕES DE ESCOLA E ENSINO MÉDIO Inicialmente, abordaremos os elementos associados a “ensino médio”. Na primeira coleta, os alunos evocaram alguns termos meramente contextuais ou descritivos, que se associam ao ensino formal de maneira óbvia e direta, como “escola” e “professores”. Pode-se inferir que, ao citar esses termos, os estudantes recorreram ao óbvio para descrever algo que ainda não conheciam bem. Na segunda coleta, como resultado da ambientação ao novo contexto de escolarização, esses elementos deixaram de ser centrais. Notamos, também na primeira coleta, termos que podemos qualificar como elementos de expectativa: “aprender”, “difícil”, “estudar”, “estudar muito”, “passar de ano”, “responsabilidade” e “provas e notas” No centro da representação de Ensino Médio, no momento da entrada nesse nível de ensino, figuraram as idéias de que ele seria caracterizado não só por “aprender e estudar”, mas também por “estudar muito”. A expectativa é a de que seria um nível difícil e que implicaria em (mais) responsabilidade. “Passar de ano”, as provas e as notas apareceram também como preocupação central, como um desafio, uma vez que se esperava que o ensino fosse difícil e mais rígido. No segundo momento de coleta, continuaram a ser centrais os termos “aprender”, “difícil”, “estudar”, “passar de ano” e “responsabilidade”. Após os sete primeiros meses de escolarização secundária, os estudantes ainda associavam fortemente o Ensino Médio à idéia de um nível difícil e que envolve responsabilidade. O termo “futuro bom” se tornou central, o que é especialmente significativo. Pode-se inferir que o Ensino Médio funcione como uma espécie de fronteira para a vida adulta. Ao cruzar essa fronteira, seria preciso mais responsabilidade e mais preocupação com o futuro. A experiência inicial no Ensino Médio parece ter reforçado a associação desse nível de ensino com “o futuro” e, especificamente, com um “futuro bom”, caracterizado pelo sucesso pessoal e profissional. O termo “novas matérias” se tornou central, evidenciando que os conteúdos curriculares diferentes daqueles do Ensino Fundamental chamaram a atenção dos alunos. Os termos “estudar muito” e “provas e notas” se fizeram ausentes do quadro de elementos centrais, na segunda coleta. Os estudantes parecem ter desmistificado a idéia de que estudariam muito mais do que faziam no Ensino Fundamental e de que as provas seriam muito mais difíceis. A partir de sua adaptação à nova escola, pareceram ver nela uma “velha conhecida”, marcada pelas mesmas práticas (naturalizadas) às quais se habituaram ao longo de seu curso acadêmico. Passemos ao termo indutor “parar de estudar”. As evocações produzidas a partir desse termo nos dão uma idéia da maneira como os estudantes representaram o abandono da escola. Na primeira coleta, esse abandono foi definido como “estupidez”, “perder oportunidade” e “é ruim”. A idéia é a de que uma pessoa que pára de estudar comete um ato irresponsável e estúpido, que implica em perder uma oportunidade, perder um tempo que deverá ser recuperado depois. As condições para parar de estudar são: “jamais” e “só por motivos sérios”. Só uma razão muito forte, como problemas de saúde ou problemas familiares, poderia justificar tal ato. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 43 Alguns termos apontavam conseqüências futuras como “desemprego”, “ficar burro”, “ficar à toa”, “futuro ruim” e “trabalhar”. Parar de estudar se associou fortemente a não encontrar um bom trabalho, característica integrante de um futuro ruim. O termo “trabalhar” se referiu possivelmente a uma entrada precoce e precarizada no mundo do trabalho. Parar de estudar implica em assumir uma postura desvalorizada socialmente, tanto pela ausência de uma boa inserção profissional quanto pela marca da ignorância: “ficar burro”. Na segunda coleta, o número de elementos centrais selecionados pelo programa EVOC foi menor, mas mantiveram-se as valorações negativas e as referências a efeitos indesejáveis. Os estudantes concentraram suas evocações nos termos “desemprego”, “emprego ruim”, “futuro ruim” e “jamais”. O termo “emprego ruim” se tornou central. Pôde-se perceber uma centralização em termos que se referem ao futuro pessoal e profissional. Encontramos, nas representações estudadas, a forte associação entre a escola e o trabalho. Enguita (1989) mostra que essa associação é de fato um elemento crucial para entendermos a origem da escola como a conhecemos. O autor argumenta que, na Europa, as escolas se transformaram em instituições dirigidas às massas progressivamente a partir do século XVIII, com a Revolução Industrial. Essa massificação serviu para adequar as novas gerações aos modos de produção dominantes no capitalismo. Enguita (1989) classifica essa função como “a face oculta da escola”, escondida por trás dos objetivos explícitos de transmissão intelectual. O autor descreve diversas práticas de adequação escola-trabalho presentes no cotidiano escolar. Resumindo sua argumentação, podemos dizer que a escola de ontem e de hoje valoriza a ordem e a submissão, inclui os jovens em relações burocráticas e de impessoalidade e aliena os estudantes dos processos de trabalho: eles não podem escolher o que vão estudar, nem como e nem em qual ritmo. A escola institui formas padronizadas de viver o tempo, que são também heterodeterminadas, seleciona traços de personalidade, reforçando principalmente a obediência e a tenacidade e punindo a criatividade, a agressividade e a independência. Contribui para a atomização social (o aluno deve aprender a estar sozinho na multidão), favorece o individualismo e a competição, desencorajando formas de agremiação. Institui sistemas de recompensas extrínsecas (as atividades e os estudos parecem, na maior parte das vezes, não possuir valor em si). Favorece a divisão entre trabalho manual e intelectual e a crença de que esses tipos de trabalhos são inconciliáveis, acostuma à submissão a avaliações alheias e justifica a estratificação social por meio do discurso da meritocracia (Enguita, 1989). As representações sociais, como fenômenos psicossociais, são construídas ativamente pelos indivíduos a partir dos significados produzidos sócio-historicamente em dada cultura. Encontramos, nas representações sociais de escola e Ensino Médio a forte associação escola-trabalho que mencionamos acima. Nossa pesquisa corroborou, nesse sentido, os resultados de outros estudos que incluíram indagações sobre as representações de escola em estudantes de classes populares (Oliveira et. al., 2001; Lins & Santiago, 2001; Franco, 2002; Aguiar & Ozella, 2003; Matos, 2003). Pudemos verificar que o Ensino Médio é representado pelos jovens pesquisados como 44 Representações de Ensino Médio em estudantes de Escola Pública L. G. S. Souza; J. A. Brasil; C. E. Feletti; e M. C. S. Menandro uma ponte para um bom futuro, para “ser alguém na vida”. Nessa idéia, também podemos vislumbrar alguns ecos da construção histórica do ensino secundário no Brasil como distintivo de classe, como nível “elitista” (construção analisada por Romanelli, 1994). A entrada no Ensino Médio parece constituir, para os jovens, um dos marcos de ingresso em um mundo adulto, de maiores responsabilidades. Essa análise condiz com as interpretações de Guimarães e Romanelli (2002), que analisam as relações entre pais e filhos e a inserção dos jovens no mercado de trabalho. Os autores afirmam que a transição no plano escolar tende a significar, para os pais, que eles cumpriram ao máximo sua responsabilidade de manter os filhos na escola. A partir do ingresso no Ensino Médio, a escolarização tende a ser responsabilidade dos jovens, que são incentivados pela família a buscar trabalho. REPRESENTAÇÃO DE “BOM ALUNO” Na tabela 1, verifica-se claramente que os elementos centrais da representação de “bom aluno” correspondem aos valores cultuados tradicionalmente pelas escolas. Ser bom aluno é ser estudioso, inteligente, esforçado e responsável. Como conseqüência, o bom aluno tira boas notas e invariavelmente passa de ano. O termo “comportado” deixa entrever que o bom aluno é, essencialmente, submisso às normas escolares pré-estabelecidas. Esse aspecto de submissão do bom aluno foi reforçado pela ausência de termos como “independente”, “autônomo” ou “criativo”, para citar alguns exemplos, nos dois momentos de coleta (é bom frisar que esses elementos não apareceram sequer nas zonas periféricas da representação). Nas evocações produzidas na segunda coleta foi possível verificar uma notável consistência dos elementos centrais. A experiência no Ensino Médio parece ter alterado em muito pouco a representação de “bom aluno”. Nesse segundo momento, ser bom aluno continuava a corresponder a ser comportado, esforçado, estudioso, inteligente, responsável e a tirar boas notas. O esforço, a valorização do estudo e a obediência às regras continuaram a ser a tônica desse conceito. Esses significados parecem ter raízes profundas, constituídas desde as primeiras experiências escolares, como demonstra Hollanda (2001). A autora realizou um estudo sobre as representações sociais de “bom aluno” em estudantes de primeira série de uma escola pública de Ensino Fundamental e fez uma análise evolutiva dessas representações ao longo do primeiro semestre de escolarização. Foi possível verificar que o cotidiano escolar contribui ativamente para que os alunos construam conceitos e imagens sobre a escola e sobre si mesmo, estabelecendo padrões de valorização e desvalorização dos indivíduos. O “bom aluno” foi definido sobretudo por sua relação de obediência à professora (ele fica quieto, não briga, obedece, respeita, é educado, não diz palavrões). Secundariamente, aparece a relação com os estudos (o bom aluno sabe a matéria, sabe ler e escrever, é dedicado). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 45 A pesquisadora verificou que os alunos constroem ativamente uma autoclassificação e passam a se entender como bons ou maus alunos. Além disso, percebeu que a representação de bom aluno não variou substancialmente ao longo do primeiro semestre (Hollanda, 2001). No período que estudamos, como vimos, esses valores também foram mantidos. É interessante destacar que a representação de bom aluno não incluiu, para o grupo pesquisado, elementos associados às exigências dos “novos contextos produtivos”, como “motivação”, “polivalência”, “flexibilidade”. Outros estudos poderiam explorar mais detalhadamente esse dado. Já a exigência de hiper-formação parece se associar de maneira importante às representações de escola e Ensino Médio, tendo em vista a forte relação entre o abandono da escola e o desemprego. Essa exigência, aliada à auto-culpabilização do trabalhador por seu desemprego, constitui característica hegemônica dos contextos produtivos no capitalismo contemporâneo, segundo Heckert (2000). Para concluir, a análise das representações sociais construídas pelos jovens pesquisados evidenciou que o início da escolarização secundária parece não ter sido capaz de fomentar valores de autonomia, participação juvenil ou criatividade para a definição do “bom aluno”. Essa escolarização, ao fortalecer a associação entre Ensino Médio e bom futuro, parece ter se baseado em uma lógica de adequação aos valores socialmente hegemônicos de bem-estar individual. É importante que estejamos atentos a essas representações, visando a questionálas, a transformá-las e a construir conceitos e práticas educativas mais atentas à promoção de autonomia e de democracia nas relações humanas. REFERÊNCIAS ABRIC, J. C. (2001). L’approche structurale des représentations sociales: développements récents. Psychologie et société, 4 (2), 81-103. ANTUNES, R. (1999). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo. AGUIAR, W. M. J. & Ozella, S. (2003). O sentido subjetivo atribuído à escolha profissional: um estudo com jovens de camadas populares. Em: S. Ozella (Org.), Adolescências construídas: a visão da psicologia sócio-histórica (pp. 253-276). São Paulo: Cortez. BONARDI, C. & Roussiau, N. (1999). Les représentations sociales. Paris: Dunod. CRUZ, S. H. V. (1997). Representação de escola e trajetória escolar. Psicologia USP, 8 (1), 91-111. ENGUITA, M. F. (1989). A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Porto Alegre: Artes Médicas. FRANCO, M. L. P. B. (2002). As representações sociais de alunos da 8a série inseridos em oito escolas estaduais do município de São Paulo. Psicologia da educação. Revista do programa de estudos pós-graduados da PUC-SP, 14/15, 189-206. 46 Representações de Ensino Médio em estudantes de Escola Pública L. G. S. Souza; J. A. Brasil; C. E. Feletti; e M. C. S. Menandro GUIMARÃES, R. M. & Romanelli, G. (2002). A inserção de adolescentes no mercado de trabalho através de uma ONG. Psicologia em estudo, 7 (2), 117-126. HECKERT, A. L. C. (2000). Os desafios da educação na contemporaneidade. Em: A. A. Silva, M. E. B. Barros (Orgs.). Psicopedagogia. Alguns hibridismos possíveis (pp 11-18). Vitória: Saberes. HOLLANDA, M. P. (2001). A teoria das representações sociais como modelo de análise do contexto escolar. Em: A. S. P. Moreira (Org.). Representações sociais. Teoria e prática (pp 451-463). João Pessoa: UFPB. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. (2005). Radar Social. Brasília: IPEA. LINS, C. P. A. & Santiago, M. E. (2001). Representação social: educação e escolarização. Em: A. S. P. Moreira (Org.). Representações sociais. Teoria e prática (pp 411-440). João Pessoa: UFPB. MATOS, K. L. (2003). Juventude, professores e escola. Ijuí: Unijuí. MOSCOVICI, S. (2003). Representações sociais. Investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes. OLIVEIRA, D. C. Marques, S. C. Gomes, A. M. T. & Teixeira, M. C. T. (2005). Análise das evocações livres: uma técnica de análise estrutural das representações sociais. Em: A. S. P. Moreira, B. V. Camargo, J. C. Jesuíno, S. M. Nóbrega (Orgs). Perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais (pp 573-603). Paraíba: UFPB. OLIVEIRA, D. C. Sá, C. P. Fischer, F. M. Martins, I. S. & Teixeira, L. R. (2001). Futuro e liberdade: o trabalho e a instituição escolar nas representações sociais de adolescente. Estudos de psicologia, 6 (2), 245-258. ROMANELLI, O. O. (1994). História da educação no Brasil. 16 ed. Petrópolis: Vozes. SOUZA, L. G. S. (2007). Uma nova etapa: juventude e experiências de ingresso no ensino médio. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo. ZIBAS, D. M. L. (2005). A reforma do ensino médio nos anos de 1990: o parto da montanha e as novas perspectivas. Revista Brasileira de Educação, (28), 24-37. HOMICÍDIO DOLOSO: UMA CARACTERIZAÇÃO DE HISTÓRIAS DO DELITO A PARTIR DOS DADOS ENCONTRADOS SOBRE O TRANSGRESSOR E AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME.1 Luciana Souza Borges 2 Heloisa Moulin de Alencar 3 É engano pensar que a atual violência no Brasil seja algo recente, como nos fazem crer os veículos de comunicação. As notícias repetem manifestações desse quadro exacerbado de violência, sem, contudo, esclarecer que essa situação remonta há décadas, como produto de uma sociedade marcada por nítida desigualdade na distribuição de renda. Nessa medida, tentar compreender o fenômeno da violência, necessariamente, levar-nos-á a momentos precedentes da história brasileira, como nos aponta Zaluar (1994) para o fato de o Brasil, já em 1983, ocupar o 2° lugar no ranking internacional dos países mais violentos. Velho (1996), ao analisar a violência cotidiana, considera que pelo fato de ter-se perdido uma forma de contrato social entre as diferentes classes, nossa sociedade não possuiria a cidadania como um valor e não promoveria o desenvolvimento da democracia, podendo ficar seus integrantes à mercê da exclusão social e dos mais variados tipos de violência. O resultado seria o desrespeito, a desconsideração e a falta de compromisso ético para com os parceiros sociais, panorama por meio do qual visualizamos o aumento da criminalidade no Brasil, produzido em meio às relações de seus atores sociais, diante de uma pluralidade de situações sociais, econômicas, políticas e culturais. O crime é uma das facetas dessa violência e o homicídio, por sua vez, como relata Michaud (1989), vai de encontro a um dos valores mais prestigiados da humanidade: a vida. O crime de homicídio atenta, portanto, contra um dos direitos fundamentais do ser humano, inscrito e legitimado por meio de três grandes importantes documentos históricos, segundo Schilling (2002): as cartas de direitos humanos do final do século XVII; a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789; e a Declaração Universal de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948. Por essa última, em seu artigo 3°, todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, ou seja, criam-se redes sociais de proteção para os indivíduos. A revisão de literatura (Beato Filho, Assunção, Silva, Marinho, Reis e Almeida, 2001; Chauí, 1980; Cordeiro e Donalisio, 2001; Gianini, Litvoc e Eluf Neto, 1999; Lima e Ximenes, 1 2 3 Apoio financeiro da CAPES. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. 48 HOMICÍDIO DOLOSO: uma caracterização de histórias do delito a partir dos dados encontrados sobre os transgressores e as circunstâncias do crime. L. S. Borges e H. M. de Alencar 1998; Macedo, Paim, Silva e Costa, 2001; Mello Jorge, Gawryszewski e Latorre, 1997; Minayo e Souza, 1993; Schilling, 2002; Rizzini, 1993; Velho, 1996; Zaluar, 1994, 1996; Zanotelli, 2003), indicou um aumento da criminalidade nos anos 80 em vários estados brasileiros e já na década de 90 os homicídios passam a ocupar o 1° lugar, sobretudo nas regiões Norte e Sudeste do País, na classificação de mortes por causas externas. Os autores destacam que as mortes vêm ocorrendo, sobretudo, devido a acidentes de trânsito e a assassinatos, neste último caso, vitimando mais os jovens urbanos do sexo masculino por meio de armas de fogo. Concluem ser o cenário urbano um local mais vulnerável à violência, tendo em vista as altas concentrações populacionais, as desigualdades sociais e as dificuldades nas inter-relações. Além disso, há estudos (Beato Filho et al., 2001; Cabernite, 1982; Mansur e Jorge, 1986; Minayo e Deslandes, 1998; Oliveira e Luis, 1996) que destacam o alto percentual de casos de homicídios envolvendo o uso ou a venda de drogas e concluem que os crimes contra a vida, nesses casos, podem ter ocorrido tanto em função da alteração de comportamento, pelo uso de substâncias químicas, quanto em decorrência da violência que envolve a comercialização ilegal das drogas. A cidade de Vitória-ES é destacada como a campeã, entre todas as demais do País, quando nos referimos ao crime de homicídio doloso, segundo dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Os campeões da violência, 2003) e de Zanotelli (2003). Os números aumentam ainda mais quando consideramos as mortes violentas em geral, como homicídio doloso, homicídio culposo ligado ao trânsito, outros homicídios culposos, lesão corporal seguida de morte, morte suspeita e resistência seguida de morte. A partir dos registros da PM capixaba no ano de 2001, foram 2.750 notificações de lesões corporais, 2.661 ameaças contra a vida e um total de 8.230 registros de crimes contra a vida, para uma população estimada em 1,3 milhões de habitantes, o que equivale a dizer que foram 615 casos de morte por 100.000 habitantes, situação dimensionada por Zanotelli (2003) como sendo de calamidade pública. Após essa inserção teórica, que sustentou a análise dos dados que estamos prestes a apresentar, julgamos importante relatar que este trabalho faz parte de uma pesquisa mais abrangente,4 na qual foram contemplados casos em que os sujeitos foram condenados pelo Poder Judiciário pela prática de homicídio doloso, que se caracteriza pelo desejo do agressor em matar sua vítima (Brasil, 1997; Gonçalves, 1999). A proposta desta parte do estudo foi, portanto, investigar a representação atual de homicidas a respeito de suas histórias sobre o crime, incluindo informações que diziam respeito ao transgressor e às circunstâncias do delito. 4 A dissertação de mestrado “Moralidade e homicídio: um estudo sobre a motivação e a ação do transgressor”, da primeira autora sob orientação da segunda, foi aprovada em 02 de setembro de 2004 junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 49 MÉTODO Realizamos entrevistas individuais com 20 homens entre 30 e 49 anos de idade, cumprindo pena em liberdade condicional na Vara de Execuções Penais de Vitória-ES, de acordo com o método clínico proposto por Piaget (1932/1994), a partir de um roteiro semi-estruturado com questões abertas. Ressaltamos o cuidado ético e científico que buscamos tomar em todo o desenvolvimento de nosso estudo, tendo em vista as normas que regulamentam as pesquisas envolvendo seres humanos (Brasil, 1996, 2000). Uma vez que não buscamos previamente esses dados em processos ou prontuários, consideramos essa etapa de fundamental importância, pois passamos a conhecer um pouco sobre o entrevistado e sua história de homicídio, cujos resultados passamos a apresentar. RESULTADOS E DISCUSSÃO Apesar de termos entrevistado 20 (vinte) pessoas, João e Ronaldo5 relataram dois homicídios cometidos por cada um deles, o que aponta para um número de 22 (vinte e duas) vítimas. No entanto, João cometeu os dois homicídios na mesma ocasião, caracterizando um duplo homicídio, e Ronaldo em momentos diferentes. Assim, temos 20 participantes transgressores que cometeram 22 homicídios em 21 ocasiões ou situações diferentes. Verificamos que 60% dos transgressores se encontram na faixa etária entre 30 e 40 anos e que 52,4% haviam cometido homicídio há mais de 10 anos. Eram bastante jovens quando infringiram a lei, e, de fato, ao nos reportarmos à época do crime, encontramos um total de 66,6% dos que cometeram o homicídio em um período compreendido entre os 19 e os 30 anos de idade (sendo que 38% estavam entre 19 e 25 anos de idade), fase inicial da maturidade, conforme apontam alguns autores do desenvolvimento humano, como, por exemplo, Palácios (2004). Nesse sentido, nossa pesquisa trata dos adultos jovens de hoje que cometeram o crime de homicídio doloso quando eram ainda mais jovens e estavam no início da maturidade ou no final da adolescência. Com relação à execução do crime, verificamos que, para as 21 situações de homicídios cometidos, em 90,4% dos casos aqui investigados, o próprio agressor teve a idéia de matar alguém e assim procedeu. Apenas em duas situações os entrevistados agiram de forma diferente, estando ambas caracterizadas como crime por encomenda ou de mando, embora os entrevistados se diferenciem nestes dois casos entre aquele que encomendou o homicídio e aquele que recebeu a encomenda para praticar o crime, denominado por Rafael (1999) de “o braço armado” ou “o autor material” (p. 02). 5 Destacamos o fato de todos os nomes utilizados, para identificar os participantes dessa pesquisa, serem fictícios. 50 HOMICÍDIO DOLOSO: uma caracterização de histórias do delito a partir dos dados encontrados sobre os transgressores e as circunstâncias do crime. L. S. Borges e H. M. de Alencar Na primeira delas, o participante afirmou que teve a intenção de matar alguém, mas não o fez, solicitando a um amigo que o fizesse em seu lugar, tendo em vista que o entrevistado nunca havia matado ninguém, conforme ilustramos por meio de seu próprio depoimento:6 (FERNANDO, 30 anos de idade): Um dia, quando cheguei em casa, vi essa menina fumando maconha junto com mais dois caras. (...) Pedi para que não fumassem ali, porque era falta de respeito. Depois disso ela soprou na minha cara a fumaça de maconha e eu não gostei daquilo porque me senti humilhado. Eu então subi no morro. Eu não mexia com nada de errado, mas conhecia uns caras lá de cima. Inclusive eles gostavam de mim para ‘caramba’! (...). Isto foi na mesma hora? Não, foi uns dias depois. Uns dois dias depois. Falei o que tinha acontecido e falei que eles sabiam que eu saia para trabalhar e que nunca mexia com nada, inclusive esses caras gostavam muito de mim. Pedi para que um desses caras me arrumasse uma arma porque aquilo não ficaria daquela forma, porque eu não tinha gostado não! O cara me deu a maior força, e me disse que ele não fazia uma coisa dessas e também não gostava que ninguém fizesse. Ele disse: ‘pode fazer mesmo’. Ele me deu a arma na mão e eu a deixei em casa. Daí chamei um outro amigo meu, que está preso até hoje. Ele já tinha várias passagens pela cadeia, quando era menor de idade. E eu então lhe contei que nunca tinha matado ninguém e nem terminei de falar tudo, pois ele falou que eu podia lhe dar a arma que ele mataria a moça na mesma hora para mim. Ele me disse que seria só eu o levar onde ela estaria, que lhe mostrasse quem era, que ele faria o serviço: ‘você chama ela para fora e quando ela sair eu meto bala’. Outra situação, inversa a essa, foi a de André que matou uma mulher (conhecida) que havia assassinado o filho de um amigo seu. Nesse caso, o entrevistado menciona que os motivos para cometer o homicídio não eram dele próprio, mas de seu amigo, conforme ilustramos a seguir: (ANDRÉ, 38 anos de idade): Seu amigo queria que você fizesse o quê? Ele queria que eu matasse a mulher. Eu lhe disse então que não faria aquilo porque, apesar de eu gostar muito do filho dele, eu não tinha interesse em fazer aquilo. Eu nunca tinha matado ninguém e não poderia tirar algo de alguém, se eu não pudesse lhe dar. Daí ele disse que se eu fizesse aquilo para ele, na época, ele me ofereceu dois mil. Mas eu disse que não faria aquilo não. Depois disso eu deixei de vê-lo. Só que todos sabiam que eu era amigo dele. Ele ia à minha casa passear, na época, eu sempre tinha bebida em casa e ele chegava e tomava umas comigo. Nós convivíamos (...). Em certo dia, minha situação financeira começou a não ficar muito boa, a situação financeira foi piorando. Eu tinha um sócio que mexia com a parte de pizza 6 Utilizamos citações dos protocolos das entrevistas, de forma a ilustrar os dados e suas respectivas análises. Utilizamos logo no início de cada citação, entre parênteses, o nome fictício de cada entrevistado e sua idade e destacamos a fala do participante, na citação, com a letra em negrito e itálico. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 51 e macarrão caseiro e eu mexia com pão de cachorro quente etc. As vendas começaram a ficar difíceis (...). E meu amigo sempre me cobrando isso. O quê, a morte? É, que eu matasse a mulher. Daí um dia, eu estou em casa bebendo e essa mulher chegou na minha casa, para conversar com minha ex-mulher. (...) Ela estava viva? Estava. Eu lhe dei uma facada e a deixei ali. Deu-me um troço na cabeça! Mas o que aconteceu? Ela ficou ali ferida e você fugiu? Eu a arrastei para dentro do banheiro e a deixei ali. Fui atrás do meu amigo, mas não o encontrei. E sua esposa ficou na casa? Deixei ela ali, arrumando as coisas para que a gente fugisse. Eu encontrei com meu amigo e ele me perguntou se ela estava morta, e eu respondi ‘sei lá se está morta, rapaz! Sei que a deixei lá’. Pegamos um táxi, pegamos as crianças e minha mulher e entramos todos no táxi (...). Fugimos. Fomos para outro Estado. Encontrei com minha família e meu pai me disse que eu não deveria ter feito aquilo. Quando eu fugi, eu deixei a casa trancada com a mulher ferida lá dentro. Além dessas duas situações, onde o homicídio encomendado foi explicitamente afirmado pelos participantes da pesquisa, gostaríamos de assinalar outro caso em que, ao contrário, tal situação foi sugerida de uma forma indireta, pela qual nos pareceu que outros homicídios cometidos pelo sujeito foram encomendados por outrem. É o caso de Ronaldo, já citado anteriormente como tendo cometido dois homicídios em ocasiões diferentes, por enforcamento. O entrevistado faz referência a outras mortes que teriam sido por ele provocadas, além de usar a palavra ‘morte’ em toda a sua entrevista, quando dava exemplos ou falava sobre si, como podemos ver no trecho selecionado, a seguir: (RONALDO, 33 anos de idade): É quando você trama fazer algo e astuto, é quando você vai tratando o outro bem, vai dando o que ele quer, daí ele fica pensando que você é um grande amigo dele. Por exemplo, hoje em dia, para a pessoa cometer um homicídio, sabe o que se faz? Sabe o que essas pessoas que vivem no mundo do crime fazem? Essas pessoas que vivem de matar os outros? Não, o quê? Eles pegam e (...) um dia desses eu até topei com um cara desses aqui no fórum. Essa pessoa também cumpre pena por causa de homicídio. Ele falou assim: vamos ali comigo, em outro município, na casa de minha esposa. E eu pensei ‘não vou ali não, porque eu já conheço esse cara, ele é ex-polícia’. Daí eu desci e o carro dele estava meio longe e tivemos que ir andando até o carro. Eu pensei ‘esse negócio está estranho!’. Estava desconfiado e ele queria me levar em casa e eu não queria. Ele insistia. Então a pessoa tem que ser astuto, tem que vigiar, desconfiar, e eu falei isso para ele. Fomos à pastelaria (....). Você ficou desconfiado dele? É difícil eu pensar uma coisa que não seja, porque dois psicopatas andando juntos! Por que psicopatas? Porque existem pessoas que se acostumam a matar. É o seu caso? Ah? Não. É o dele. No meu caso não, só se a pessoa merecer mesmo! Mas você achou que aquele ex-policial queria te matar? Ele poderia me levar a algum lugar e (...). Ele poderia te matar? Poderia não! Certamente me mataria. Eu já sei que é assim. Ele estava fazendo comigo o que eu já sabia fazer. Eu 52 HOMICÍDIO DOLOSO: uma caracterização de histórias do delito a partir dos dados encontrados sobre os transgressores e as circunstâncias do crime. L. S. Borges e H. M. de Alencar sei que é assim. Por exemplo, você mora em um bairro e se eu te pego e te mato nesse bairro onde você mora todos vão te reconhecer. Mas se eu te pego e te levo lá onde é a desova de corpos e te jogo por ali, quem vai te conhecer ali, e ainda jogo uma pedra na cara da pessoa, quem vai te conhecer? Vão falar que era uma indigente! É assim que essas pessoas fazem. É um transplante, como se fala, de um bairro para o outro. Vemos pelo relato de Ronaldo que ele já havia cometido outras mortes, além dessas duas explicitadas na entrevista, o que nos sugere que estávamos diante de um ‘matador de aluguel’, embora ele alegasse que, nesses dois homicídios mencionados na entrevista, o motivo que tinha para matar era dele, como uma forma de vingança por ter sido furtado pelas vítimas. No que se refere ao julgamento (pelo Tribunal do Júri) pelos crimes cometidos, Ronaldo foi considerado culpado somente por esses dois homicídios e por um atentado contra a vida de um policial (tentativa de homicídio), estando as outras mortes ou os outros crimes impunes até o momento. Esse dado nos reporta aos altos índices de homicídios relacionados à cidade de Vitória e à falta de conhecimento dos responsáveis por eles, tendo em vista que as estatísticas se baseiam nas notificações do número de vítimas, pois os autores da maioria desses crimes permanecem ignorados. Além disso, temos o grande envolvimento do crime organizado nas estatísticas sobre o homicídio na cidade de Vitória, o que eleva o número de mortes ao mesmo tempo em que se mantém a impunidade de seus autores. Os dados referentes ao uso de drogas nos surpreenderam, pois não esperávamos tamanha incidência nas histórias de homicídios de nossos participantes. Assim, em 71,4% das situações de homicídio aqui analisadas, os agressores afirmaram estar sob o efeito de alguma droga, enquanto que em 28,6% os participantes afirmaram nada terem usado. Entre os que usaram drogas, 80% relataram estar alcoolizados no momento do crime e 20% afirmaram terem feito uso de álcool e de alguma outra droga, ilícita. Assim, o uso de drogas ilícitas foi bem menos mencionado, aparecendo somente a maconha e a cocaína em seus relatos e, mesmo nesses casos, o álcool também havia sido consumido conjuntamente com a droga ilícita. Interpretamos o fato de o ‘crack’ não ter sido sequer mencionado em razão de a maioria dos homicídios terem ocorrido há pelo menos dez anos, quando essa droga ainda não tinha inserção significativa na Grande Vitória. Esse resultado nos interessou muito, pois, apesar de toda campanha contra as drogas ilícitas e de sua possível vinculação com a criminalidade, ao nos debruçarmos sobre esses casos em particular, verificamos que foi o estado de embriaguez pelo álcool que, predominantemente, esteve relacionado aos crimes de homicídio, no estudo em questão. Outro dado que pudemos constatar é a reação dos agressores após terem cometido um homicídio, no que diz respeito a fugir ou a se entregar. Verificamos que 54,6% fugiram da cena do crime, logo em seguida (‘Fugiu, mas depois foi preso’, ‘Fugiu, mas depois se entregou e foi preso’, ‘Fugiu, mas depois se entregou e não foi preso’); 27,3% dos entrevistados, apesar de terem fugido, retornaram espontaneamente e se entregaram para cumprir pena pelo crime que cometeram (‘Fugiu, mas depois se entregou e foi preso’, ‘Fugiu, mas depois 53 A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos se entregou e não foi preso’); os outros 27,3% (‘Fugiu, mas depois foi preso’) não retornaram e foram capturados e presos, como podemos observar na Tabela 1. Tabela 1: Reação do transgressor após o homicídio O que fez depois do crime Número Percentual Fugiu, mas depois foi preso 6 27,3 Fugiu, mas depois se entregou e foi preso 4 18,2 Fugiu, mas depois se entregou e não foi preso 2 9,1 Não fugiu e nem se entregou, mas depois foi preso 6 27,3 Não fugiu e nem se entregou, e depois não foi preso 3 13,6 Não respondido 1 4,5 22 100,0 Total Podemos pensar na fuga como uma reação esperada nos casos em que o sujeito sabe que infringiu uma norma e que tal infração é considerada grave, pois, como mencionamos anteriormente, o crime de homicídio é aquele que, no Código Penal Brasileiro (Brasil, 1997), recebe a pena mais alta, demonstrando a importância que nossa sociedade dá à vida. O retornar algum tempo depois do crime cometido para se entregar à punição parece passar por uma avaliação do agressor diante da ação que cometeu, na qual decide pagar o preço por ter infringido uma norma de tamanha relevância moral, portanto social, não somente para os outros, mas muitas vezes, para si próprio. Gostaríamos também de ressaltar o fato de que 40,9% dos entrevistados não reagiram com a fuga nem se entregaram após o ato transgressor (‘Não fugiu e nem se entregou, mas depois foi preso’, ‘Não fugiu e nem se entregou, e depois não foi preso’). Levantamos a hipótese de que eles teriam apostado na impunidade de nosso sistema, pelo qual a maioria dos homicídios não sofre investigação. No entanto, dos entrevistados que não fugiram nem se entregaram, 27,3% foram capturados e presos pelo homicídio cometido (‘Não fugiu e nem se entregou, mas depois foi preso’). Os dados que poderiam reforçar essa questão da impunidade representam duas situações: a primeira delas, com 13,6% da amostra, caracteriza-se por ser daqueles que não fugiram nem se entregaram pelo crime cometido e realmente não sofreram as conseqüências que esse tipo de delito estabelece, que é a privação da liberdade como parte da pena; a segunda se refere a dois casos (9,1%) em que os participantes fugiram após o homicídio, se entregaram pouco tempo depois, mas não foram presos. Dessa forma, apesar de julgados culpados por homicídio doloso, cinco deles não cumpriram nenhuma parte da pena em regime fechado:7 7 Ressaltamos que mesmo aqueles que não permaneceram parte de sua pena em regime fechado encontravam-se, no momento da coleta de dados, em regime de liberdade condicional. 54 HOMICÍDIO DOLOSO: uma caracterização de histórias do delito a partir dos dados encontrados sobre os transgressores e as circunstâncias do crime. L. S. Borges e H. M. de Alencar Mário, Lucas e Roberto não ficaram nenhum dia presos, embora Roberto tenha ficado internado em clínica psiquiátrica particular até o momento da liberdade condicional; Célio ficou apenas sete dias privado de sua liberdade, em razão do não-cumprimento de uma intimação judicial, pela qual teria que se apresentar ao juiz, e Edgar ficou preso quatro meses, mas não em decorrência do homicídio cometido, e sim por não ter sido localizado o endereço residencial que tinha fornecido à justiça na época em que foi ouvido sobre seu crime. É importante ressaltar que, uma vez julgados e condenados pelo Poder Judiciário, como culpados pelo crime de homicídio doloso, como é o caso de todos os participantes deste estudo, a lei prevê uma pena de seis a vinte anos de reclusão, se o homicídio for simples, e de doze a trinta anos, se for qualificado, conforme previsto no Código Penal Brasileiro (Brasil, 1997). Ressaltamos que, em se tratando de homicídio privilegiado (motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção), se a pena for baixa (inferior a 6 anos), é possível ao transgressor permanecer em liberdade desde o início do cumprimento de sua pena.8 Os entrevistados que não permaneceram presos representam um resultado considerável, o que poderia dar margem a uma interpretação de impunidade nesses casos. A impunidade pode, não somente para esses participantes, em particular, mas também para a sociedade, de forma geral, reforçar uma permissividade para esse tipo de crime, além de demonstrar que o valor da vida não foi considerado, como era de se esperar, em sua relevância moral. Nesse sentido, os valores que permeiam a vida social correm o risco, cada vez maior, de se enfraquecerem, trazendo à tona os desejos particulares em detrimento do bem comum. O último dado relacionado ainda ao transgressor trata da quantidade de delitos cometidos por essa população entrevistada. Consideramos de grande importância ressaltar que 90% relataram ter cometido apenas um homicídio, ao contrário do que parece ser uma crença popular de que ‘quem mata um, mata dois, três etc’ e, além disso, 70% revelaram nunca ter cometido qualquer outro delito, além do crime em questão. Esse dado nos remete, por fim, ao período em que atuamos como psicóloga no Serviço Social e Psicológico da Vara de Execuções Penais de Vitória-ES. Pedimos licença para relatar que a representação que o setor parecia possuir desses sujeitos homicidas não estava em conformidade com essa crença popular mencionada. Com base nos atendimentos a essas pessoas que haviam cometido homicídio e comparando-as com aquelas que cometeram outros tipos de delitos, tínhamos nos homicidas os sujeitos ‘mais fáceis’ de lidar, profissionalmente e pessoalmente falando, naquele contexto institucional – o fórum criminal. De uma forma geral, esses casos nos pareciam ‘mais fáceis’, tendo em vista o fato de que não ocorriam reincidências e não chegavam até nós reclamações de qualquer tipo, por parte de ninguém, nem de 8 Uma possibilidade seria um participante que tivesse sido considerado culpado por homicídio doloso, em sua forma privilegiada, receber uma pena inferior a seis anos, devendo cumpri-la em regime semi-aberto (internado na Colônia Agrícola do estado do Espírito Santo). Caso não houvesse, por exemplo, vagas disponíveis nessa Instituição, o transgressor poderia dar início ao cumprimento da pena em liberdade. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 55 empregadores, nem de familiares, nem de conhecidos nem do próprio reeducando, como eram por nós denominados. Parece, portanto, que os homicidas eram dessa forma por nós percebidos devido ao fato de terem somente uma história de homicídio em suas vidas pregressas e nada, além disso, durante todo o período em que permaneciam em liberdade condicional, sob o nosso acompanhamento. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista a preocupação da Psicologia em oferecer respostas às demandas de cunho social, como no caso da criminalidade, esperamos que estes resultados tenham colaborado na compreensão dos seguintes aspectos: a coincidência ou não entre a intenção de matar alguém e a autoria da ação criminosa; a incidência do uso de drogas nas histórias de homicídios de nossos participantes; a reação dos agressores após terem cometido um homicídio, no que diz respeito a fugir, entregar-se ou nada fazer, levando-nos a considerações sobre a impunidade na forma de pensar desses sujeitos; e, ainda, a quantidade de delitos cometidos pelos participantes. Com isso, destacamos uma importante reflexão acerca da realidade da transgressão da norma pelo sujeito e, portanto, do próprio sujeito transgressor, análise essa que poderia beneficiar diretamente a prática do atendimento periódico ao reeducando, potencializando sua ‘ressocialização’. Em outras palavras, sem se compreender o sujeito transgressor, tornase impossível qualquer pretensão de auxiliá-lo em seu retorno ao convívio social. REFERÊNCIAS BEATO FILHO, C. C., Assunção, R. M., Silva, B. F. A., Marinho, F. C., Reis, I. A. & Almeida, M. C. (2001). Conglomerados de homicídios e o tráfico de drogas em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, de 1995 a 1999. Cadernos de saúde Pública, 17 (5), 1163-1171, set/out. BRASIL (1996). Resolução 196/96 do Ministério da Saúde. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília, Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/ BRASIL (1997). Código Penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. BRASIL (2000). Resolução 016/2000 do Conselho Federal da Psicologia. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa em Psicologia com seres humanos. Brasília. CABERNITE, L. (1982). O alcoolismo no Brasil e as dificuldades na área: epidemiologia-prevenção. Jornal brasileiro de Psiquiatria, 31 (2), 89-112. 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CARACTERIZAÇÃO DOS ADOLESCENTES QUE CUMPRIRAM MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE LIBERDADE ASSISTIDA NO MUNICÍPIO DE SERRA/ES NOS ANOS 2002 A 2006 Fabiana da Silva Araújo Malheiros 1 Edinete Maria Rosa 2 A década de 1980 foi pautada principalmente pelo avanço dos movimentos sociais rumo à redemocratização do país depois de mais de vinte anos de ditadura militar Esta intensa movimentação se deu no campo da abertura política, econômica e na luta por direitos e respeito à pessoa humana “no combate ao arbítrio e a consolidação de um Estado democrático de direitos” (VOLPI, 2006, p.48). Nesse contexto através de uma mobilização nacional de diversas entidades e do poder público em relação à política de atendimento a crianças e adolescentes, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/90, substituindo assim o antigo Código de Menores. O Estatuto inaugura uma nova visão sobre a concepção de criança e adolescente no Brasil. Abandona uma concepção assistencialista da Doutrina da Situação Irregular e cria a Doutrina de Proteção Integral, onde toda criança e adolescente são vistos como sujeitos de direitos (VOLPI, 2006). Esta mudança de visão trás em si muitas implicações, uma delas é a afirmação de que toda criança e adolescente são pessoas em condição “peculiar de desenvolvimento” (BRASIL, 2004) o que impõe aos agentes envolvidos na operacionalização dos direitos da criança e do adolescente, uma visão integral de sujeito, garantindo, educando e integrando tais sujeitos no contexto social, familiar, no direito à saúde, escola, profissionalização, entre outros (VOLPI, 2006). Partindo desta concepção, o adolescente, por estar em desenvolvimento, não comete crime, mas Ato Infracional (BRASIL, 2004). Também são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos (BRASIL, 2004), isto é, existe uma legislação própria que compreende que, por estar o adolescente em desenvolvimento ele será tratado de forma educativa, e tem seus direitos assegurados pelo Estatuto, onde o mesmo garante que aos adolescentes sejam aplicadas, ao invés de penas, Medidas Sócio-Educativas (MSE) divididas em não privativas de liberdade, restritiva de liberdade e privativa de liberdade (JESUS, 2006). Sobre as MSE, Jesus (2003) afirma: 1 2 UFES - Universidade Federal do Espírito Santo Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. 58 Caracterização dos Adolescentes que cumpriram Medida Sócio-Educativa de Liberdade Assistida ... F. S. A. Malheiros e E. M. Rosa Todas as medidas sócio-educativas apresentam natureza punitiva e conteúdo pedagógico. Deve-se minimizar aquela ao ponto estritamente necessário para demonstrar o erro e utilizar este caminho para a (re)inserção social. Ao contrário das penas, as medidas sócio–educativas significam comprometimento comum e continuidade social: o medo, o preconceito e a estigmatização não podem separar o Estado e a sociedade dos adolescentes em conflito com a lei (JESUS, 2003, p.95). Ao estudarmos sobre as MSE em meio aberto, a Liberdade Assistida se apresenta como uma das medidas mais eficazes na ressocialização do adolescente em conflito com a lei, é uma medida coercitiva, pois faz um acompanhamento de perto da vida do adolescente, principalmente na escola, no trabalho e na família e educativa, pois garante um trabalho personalizado, facilitando a construção de outra história de vida do adolescente que vai de encontro à construção da cidadania e da emancipação do indivíduo em todos os aspectos, social, cultural, profissional e intelectual (VOLPI, 2002). Baseados neste pensamento é que desenvolvemos um estudo documental a respeito dos adolescentes que foram encaminhados ao Programa de Liberdade Assistida Comunitária “Casa Sol Nascente” no período de 2002 a 2006, e, uma análise quanti-qualitativa das respostas do questionário de desligamento do adolescente do programa quando encerra o cumprimento da medida sócio-educativa. O objetivo deste trabalho é caracterizar os adolescentes do município de Serra que cometeram ato infracional e foram encaminhados ao Programa de Liberdade Assistida “Casa Sol Nascente” e avaliar a opinião destes a respeito do Programa ao término da medida. Pretende-se estudar e investigar as características destes adolescentes a fim de contribuir para formulação de políticas que visem à modificação do quadro colocado, especificamente do adolescente em Conflito com a Lei. Os documentos pesquisados foram: o relatório de atividade do ano de 2006 do Programa de Liberdade Assistida Comunitária “Casa Sol Nascente”; o Banco de dados do Programa, que abrange todos os adolescentes atendidos desde sua fundação, do ano 2002 até o ano de 2006, e o questionário que é aplicado ao fim da medida, pelo qual os adolescentes avaliam e dão sugestões sobre o acompanhamento da Medida Sócio-Educativa desde sua inserção até a sua finalização. Foi escolhida aleatoriamente uma amostra de 10 questionários de um total de 76. É importante ressaltar que esta avaliação só passou a ser aplicada no final do ano de 2005 visto que antes os adolescentes faziam suas avaliações nos atendimentos individuais. Como o Programa foi implantado em outubro de 2002, os 06 adolescentes encaminhados neste ano foram incorporados ao ano de 2003 para efeito de composição do banco de dados. Também foi feito um levantamento junto à 2ª Vara da Infância e Juventude da Serra, sobre os adolescentes que cometeram atos infracionais no município nos anos de 2003 a 2006. Para a leitura e compreensão dos dados baseamos a pesquisa na teoria Dialética. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 59 Minayo (1994) afirma que: A Abordagem Dialética (...) se propõe a abarcar o sistema de relações que constrói, o modo de conhecimento exterior do sujeito, mas também as representações sociais que traduzem o mundo dos significados. A Dialética pensa a relação da quantidade como uma das qualidades dos fatos e fenômenos. Busca encontrar, na parte, a compreensão e a relação com o todo; a interioridade e a exterioridade como constitutivas dos fenômenos. (MINAYO, 1994, p.25) Esta teoria traz em si a crença em que os processos sociais devem ser entendidos como uma construção histórica, passíveis de transformações que são dadas pelos sujeitos. Compreende uma relação de oposição e complementaridade entre o material e o pensamento, o mundo social e natural, trabalha a complexidade, as diferenciações e especificidades que os “objetos sociais” apresentam (MINAYO, 1994). Por conta disto escolhemos uma leitura sócio-histórica da adolescência que acredita que não há características próprias e normais desta fase da vida, mas interpreta estas características, através de uma análise do todo, de todas as variáveis que implicam na construção social, que repercutem na construção da subjetividade e da vida do homem moderno (BOCK, 2004). Como expressa Bock (2004), Não há nada de patológico, não há nada de natural. A adolescência é social e histórica (..) não há uma adolescência, como possibilidade de ser, há uma adolescência como significado social, mas suas possibilidades de expressão são muitas (p. 42). O PROGRAMA DE LIBERDADE ASSISTIDA COMUNITÁRIA CASA SOL NASCENTE O Programa de Liberdade Assistida Comunitária Casa Sol Nascente, foi implantado em outubro de 2002 no município da Serra, para atender adolescentes que respondem a Medida Sócio-educativa de Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviço Comunitário (PSC). O referido Programa surgiu de um Convênio entre a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) / Pastoral do Menor e o Governo Federal através do Ministério da Justiça. A Casa sol Nascente pertence a uma rede de atendimentos da Pastoral do Menor no município de Serra denominado Atendimento Integrado a Crianças e Adolescentes (AICA). (PASSAMANI, 2006). O Programa, até o ano de 2005 contava com 05 profissionais, sendo uma coordenadora, uma auxiliar administrativa, duas assistentes sociais e uma psicóloga. Através de um convênio com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), a equipe foi ampliada, contando com mais 04 profissionais: um auxiliar técnico, uma psicóloga, uma pedagoga e um oficineiro de arte. Este convênio trata especificamente da profissionalização 60 Caracterização dos Adolescentes que cumpriram Medida Sócio-Educativa de Liberdade Assistida ... F. S. A. Malheiros e E. M. Rosa dos adolescentes, um dos gargalos das Políticas Públicas voltadas para esta faixa-etária (TRASSI, 2006). São oferecidos cursos de Informática, montagem e manutenção de computadores e soldador. As oficinas de arte são de grafite e pintura sobre tela. A Casa Sol Nascente possui ainda 50 educadores sociais voluntários que acompanham os adolescentes em suas comunidades sendo referências constantes no processo sócio – educativo. A formação dos educadores sociais é realizada pelos técnicos do Programa a cada seis meses. Uma vez ao mês eles se reúnem com os técnicos para discutir sobre o adolescente acompanhado e também fazem relatório mensal sobre a situação deste. O atendimento é feito a partir de encaminhamentos dos Juizados da Infância e Juventude. O requisito principal para atendimento é que o adolescente seja morador do município de Serra, independente da comarca em que esteja respondendo processo ou do município onde cometeu o ato infracional. Alguns adolescentes que moram em outros municípios são atendidos no Programa devido à situação de ameaça contra a vida destes. O trabalho da equipe é feito de forma interdisciplinar, onde os atendimentos e encaminhamentos são compartilhados e discutidos conjuntamente. Também há participação dos técnicos nos conselhos de Assistência Municipal e Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente. A formação é feita a partir de participação em fóruns, congressos, seminários e cursos destinados aos profissionais da área dos direitos da criança e do adolescente. (Relatório do Programa, 2006) A equipe técnica faz visitas às instituições onde os adolescentes irão cumprir a MSE de Prestação de Serviço à Comunidade (PSC). Uma equipe da Pastoral do Menor, onde estão incluídos dois técnicos do Programa, fazem visitas à Unidade de Internação Provisória (UNIP) e à Unidade de internação Sócio-Educativa (UNIS). Estas visitas têm como objetivo: [...] conhecer e auxiliar nos processos dos adolescentes internados, criar um vínculo com as famílias desses adolescentes, orientando-os acerca do andamento do processo dos filhos e dos encaminhamentos posteriores à internação, facilitando assim, sua inserção e retorno à comunidade.(Relatório do Programa, 2006, p. 44) CARACTERIZAÇÃO DOS ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI Como já foi dito anteriormente, um dos objetivos deste trabalho é caracterizar os adolescentes em conflito com a lei que respondem ou responderam Medida Sócio-Educativa de Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviço à Comunidade (PSC) no Programa de Liberdade Assistida Casa Sol Nascente. A seguir apresentaremos os dados referentes aos períodos compreendidos entre os anos 2002 e 2006. Lembramos que, em 2002 como o Programa estava em implantação e só começou suas atividades em outubro, somente seis adolescentes foram encaminhados. Por este motivo resolvemos agregá-los ao ano de 2003. Os dados apresentados serão: número de adolescentes atendidos, sexo, tipo de MSE, período A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 61 da medida, infração cometida, idade, escolaridade, consumo de drogas, drogas mais consumidas, renda familiar e reincidência. O número de adolescentes atendidos no Programa de 2002 a 2006 foi de 397, sendo que em 2002 foram 6 adolescentes atendidos; em 2003 foram atendidos 92 adolescentes; em 2004, 99; em 2005, 80 e em 2006, 120. Destacamos o ano de 2006, onde aumentaram em 50% os atendimentos em relação ao ano anterior. Infelizmente não podemos explicar o crescimento destes encaminhamentos ao Programa, pois os dados referentes aos adolescentes que cometeram ato infracional no Município de Serra começaram a ter um tratamento especializado pelo Juizado da Infância e Juventude de Serra a partir do ano de 2006. Por isso o que podemos afirmar é que no ano de 2006, 419 adolescentes receberam MSE no município de Serra, destes 120 (28,6%) compareceram ao Programa para cumprimento da medida de LA. Em relação ao sexo, 365 (92%) dos adolescentes atendidos são do sexo masculino e apenas 32 (8%) do sexo feminino. As mulheres cometem mais atos infracionais ligados ao tráfico e consumo de drogas. A maioria dos adolescentes que são encaminhados ao Programa está na faixa etária que compreende os 16 aos 18 anos, ou seja, 266 adolescentes, correspondendo a 67.1%. Destes 117 (44%) tem 17 anos. Existe um crescente envolvimento em atos infracionais até os 17 anos que podemos chamar do índice máximo. Depois um declínio considerável e quase constante até os 20 anos. Uma pesquisa concluída em 1996 pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) com o apoio do UNICEF, que pesquisou 4.245 crianças e adolescentes privados de liberdade no Brasil apontava para esta mesma faixa etária. A maioria dos adolescentes privados de liberdade tinha entre 15 e 18 anos (82,8%), com índice máximo de 17 anos (29,2%) (Volpi, 2006). Mesmo que nosso estudo tenha trabalhado com uma amostra, podemos sugerir que pouca coisa mudou nestes 10 anos. A existência de maiores de 18 anos no Programa se deve ao fato da demora do Juizado em determinar a MSE adequada ao adolescente que à época do ato infracional era menor de dezoito anos. Algumas vezes o adolescente é liberado na primeira audiência, em que ocorre a ciência dos fatos, e a segunda audiência é marcada anos depois, ocasião em que se determina ou não uma medida sócio-educativa. Quanto à escolaridade 215 adolescentes (54%) não estavam matriculados em unidade de ensino quando encaminhados ao Programa. Em contrapartida 175 (44%) estavam matriculados, enquanto 7 adolescentes (2%), não responderam. Especificamente, se tratando de adolescente em conflito com a lei, pesa o fato de muitos deles saírem da internação provisória ou da própria internação no meio do ano letivo dificultando sua inserção na escola. Em relação à escolaridade, a maioria dos adolescentes 307 (77%) não concluiu o ensino fundamental, sendo que 261 (65%) estão concentrados no período escolar que compreende a 5ª e 8ª série. Volpi (2006) explica a defasagem escolar de duas maneiras: a primeira decorre 62 Caracterização dos Adolescentes que cumpriram Medida Sócio-Educativa de Liberdade Assistida ... F. S. A. Malheiros e E. M. Rosa da forma como a escola hoje trata seus alunos. Para ele, a escola é excludente e não está preparada para lidar com a realidade do adolescente, assumindo um perfil seletivo e discriminatório A segunda explicação para a defasagem escolar que Volpi (2006) nos aponta é a inserção precoce no mercado do trabalho, na sua maioria, informal. Apesar de 193 (48%) dos adolescentes não terem ocupação, 162 (41%) estavam trabalhando informalmente sendo que apenas 35 (9%) possuíam trabalho formal. O trabalho informal exige força física, a remuneração é baixa, os horários são extensos e as condições precárias, o que dificulta ao adolescente permanecer na escola. Apesar disto, é na informalidade que a maioria destes consegue auxiliar no sustento da família, criando assim uma contradição. O mercado de trabalho exige cada vez mais qualificação por parte do trabalhador e, no entanto, não oportuniza a qualificação aos adolescentes empobrecidos. Muitas vezes trabalham para garantir o sustento, ou seja, o trabalho informal acaba por criar um círculo vicioso na vida dos adolescentes. Para Volpi (2006) é preciso revolucionar o sistema educacional de forma que a escola se adapte à realidade não só do adolescente trabalhador, mas das crianças e adolescentes da zona rural, analfabetos e moradores de rua oportunizando não só ingresso mas a permanência destes na escola. Em relação à renda familiar dos adolescentes atendidos verificou-se que 195 adolescentes (49,1%) possuem renda entre 0 a 1,5 salários mínimos e 133 (33,5%) possuem renda entre 2 a 3,5 salários mínimos. Esta situação comprova o que foi dito anteriormente. Segundo relatório anual do Programa (2006), a maioria das famílias são remetidas aos programas de auxílio e assistência social. Sobre o uso de drogas, 222 (56%) declararam não ser usuários; 169 (42 %) declararam usar algum tipo de droga e 6 (2%) não responderam. Dos adolescentes usuários de drogas 148 (53%) consumiam maconha, seguidos de 31 usuários de crack (19%) e 48 adolescentes usuários de cocaína, correspondendo a 18% dos casos estudados. Os 13 (5%) adolescentes que declararam usar cola são ou foram moradores de rua e somente 13 (5%) adolescentes declararam ser usuários de álcool. Destacamos, porém, que nos atendimentos percebemos que a maioria dos adolescentes utiliza esta droga, mas, por ser lícita, acaba por não ser mencionada, assim como o cigarro, que nem foi citado (Relatório Programa, 2006). Cumpre ressaltar que geralmente os adolescentes usam mais de um tipo de drogas e que muitos adolescentes, quando chegam ao Programa têm receio de se declararem usuários de drogas. Na medida em que o adolescente é acompanhado acaba-se por saber que existe um número maior de usuários do que os declarados. Quanto aos atos infracionais, o mais cometido é o assalto à mão armada que envolveu 143 adolescentes (36%), seguido de porte de arma envolvendo 81 adolescentes (20,4%) e furto, que comprometeu 73 adolescentes, correspondendo a 18,4% dos adolescentes estudados. Se juntarmos os atos infracionais que possuem ligação direta com o uso de arma de fogo, teremos 56,4% dos atos infracionais cometidos. Isto demonstra a facilidade de se conseguir uma arma para cometer algum delito. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 63 Quanto às MSE, 257 adolescentes (65%), do universo pesquisado, vivenciaram a aplicação da Liberdade Assistida, 97 (24%) dos adolescentes passaram por uma MSE de Prestação de Serviço à Comunidade. Outros 43 adolescentes, totalizando 11% da amostra vivenciaram a aplicação da medida de Liberdade Assistida acumulada com Prestação de Serviço à Comunidade. Segundo Liberati (2003), não há qualquer impedimento legal para a acumulação das medidas sócio-educativas em meio aberto. Dos adolescentes que ingressaram no Programa de Liberdade Assistida Comunitária “Casa Sol Nascente”, 115 (29%) eram reincidentes, ou seja, declararam ter cometido mais de um ato infracional; 269 adolescentes, portanto 68% dos participantes do Programa, declaram ter cometido ato infracional uma única vez. Analisando a reincidência dos adolescentes durante o cumprimento da MSE no Programa, vimos que 63 (16%) reincidiram e 322 (81%) não cometeram novo ato infracional quando acompanhados pelo Programa. Se compararmos as duas taxas, observaremos que o índice de reincidência diminui em quase 50%. Muito se debate sobre a eficácia das MSE observada somente através dos dados de reincidência, pois na maioria dos casos não se mede se o adolescente que respondeu a MSE voltou a cometer algum crime na idade adulta. No entanto, não há como negar que, de acordo com os dados, o adolescente que responde a MSE de Liberdade Assistida em Serra e é acompanhado pelo Programa reincide menos. Acreditamos que isto seja devido ao trabalho de acompanhamento sistemático com os adolescentes em todas as atividades que ele desenvolve. ANÁLISE DAS RESPOSTAS DOS ADOLESCENTES AO QUESTIONÁRIO DE FIM DE MEDIDA Iremos apresentar agora uma análise dos questionários que os adolescentes respondem ao terminarem a MSE no Programa Casa Sol Nascente. Este questionário foi elaborado pelos técnicos para ser um instrumento de avaliação do adolescente a respeito da Medida Sócioeducativa a que ele fora submetido. Objetiva a melhoria dos serviços prestados e proporciona ao adolescente refletir sobre o tempo em que foi atendido no Programa. Lembramos que foram analisados 10 questionários e todos eles foram respondidos por adolescentes que receberam MSE de Liberdade Assistida. A primeira pergunta diz respeito a como o adolescente imagina o Programa antes de ingressar no mesmo. A maioria, nove adolescentes, tinha uma visão negativa da Casa Sol Nascente. As palavras UNIS, UNIP, Fórum, foram usadas por eles como sinônimo de prisão, e os mesmos nove imaginaram a Casa Sol Nascente como semelhante a estas instituições. Apenas um já sabia como era o Programa, pois já tinha ouvido falar do mesmo. Isto demonstra que, as instituições destinadas à internação ainda causam medo e insegurança nos adolescentes e que a idéia de Medida Sócio-Educativa está intimamente ligada à punição, prisão, depoimentos, 64 Caracterização dos Adolescentes que cumpriram Medida Sócio-Educativa de Liberdade Assistida ... F. S. A. Malheiros e E. M. Rosa vigilância. Quando perguntados sobre o que eles achavam da casa após terem concluído a medida, a visão do Programa se modificou, todos demonstraram que era um lugar de aprendizado, onde foi bem recebido, bem tratado, um lugar de aconselhamento, de oportunidades e de mudança de vida. Ainda para alguns causa espanto terem sido bem tratados num local onde ninguém os conhecia. Quanto aos profissionais que trabalham no Programa, todos concordam que são profissionais educados e preparados paro o serviço. Eles também avaliam que são essenciais para que os auxiliem na mudança de atitudes, o que demonstra que um trabalho personalizado cria vínculos que facilitam o processo de ressocialização (VOLPI, 2006). Na avaliação dos adolescentes há uma unanimidade em dizer que os profissionais da Casa não precisam mudar em nada; na maioria dos questionários há citação do tratamento dispensado a eles e da importância de serem ouvidos e respeitados. A respeito do comportamento do adolescente antes de freqüentar a Casa Sol Nascente, cinco deles apontaram que não respeitavam as pessoas e eram desobedientes e “revoltados”; um respondeu que era muito sério e pouco comunicativo; dois disseram que não mudaram seu comportamento, pois, na avaliação deles não tinham comportamento ruim; um falou da sua relação com as drogas, mais precisamente o álcool; e o outro admitiu o envolvimento com a criminalidade. Sobre como eles se consideram após terem cumprido a medida, dois adolescentes se consideram normais; quatro se consideram mais calmos e pensam antes de fazer ou falar algo; dois se consideram vitoriosos e vencedores; um acredita estar preparado para conseguir seus objetivos e um está mais comunicativo e agradável. Todos os adolescentes relataram mudanças de atitude após o cumprimento da medida, e apesar de não falarem diretamente sobre o ato infracional cometido percebe-se as mudanças em seu comportamento, o que acaba por gerar outras expectativas de vida que os afastam da criminalidade. A respeito das mudanças positivas ocorridas na vida do adolescente após sua inserção no Programa, todos admitiram ter mudado: três se afastaram da criminalidade e escolheram mudar suas amizades; três passaram a respeitar mais as pessoas; um está mais calmo; um aprendeu uma profissão; um passou a ter “bons pensamentos” e um mudou a maneira de pensar e agir. Nota-se aqui a importância de estar em grupo, o grupo cria “um sentimento de pertencimento, uma maior identidade, auto-estima e proteção” (ABRAMOVAY, WAISELFISZ, ANDRADE, RUA, 2004, p. 109). Como não estão privados de liberdade, mas estão respondendo a MSE, uma estratégia utilizada por eles para estar em suas comunidades e não voltar a cometer atos infracionais foi mudar o grupo de convivência. Cria-se uma outra identificação com pessoas que consideram ajudá-los nesta mudança de atitude, além de demonstrarem que a convivência familiar melhorou. O respeito, antes deixado de lado, passa a ser peça fundamental para o bom desenvolvimento da medida. Quando indagados a respeito do que se tornou obstáculo para o progresso da medida no Programa as respostas foram variadas: dois adolescentes reclamaram da distância; um de A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 65 problemas no Bairro; dois de seguirem as regras, principalmente os horários; um não respondeu; um respondeu que não teve nenhum obstáculo; um reclamou do cansaço, pois trabalha; um falou do seu próprio comportamento classificado como “fechado”, que dificulta se abrir com os técnicos e um da relação com os técnicos que, segundo ele, cobram muito. Neste tópico, fica clara a importância de se criarem Programas de LA no município onde os adolescentes residem. Apesar de a Casa Sol Nascente atender adolescentes apenas do município de Serra, alguns dos adolescentes se mudaram para Cariacica e lá não há Programa de LA, por isso continuam seus atendimentos em Serra. Não podemos mensurar qual seria o problema no Bairro citado pelo adolescente, mas, de acordo com o relatório anual do Programa do ano de 2006, alguns adolescentes têm dificuldades de voltar para suas comunidades, porque são vítimas de preconceito, ou cometeram o ato infracional no próprio bairro, ou ainda porque a comunidade não acredita em sua mudança. Além disso, muitos deles sofrem ameaças de diferentes atores sociais, do traficante, do policial ou do justiceiro. Quando indagados sobre o que deve ser mudado na Casa Sol Nascente assim se posicionaram: 06 adolescentes responderam que não precisa mudar nada; um reclamou da cor da casa; um pediu mais passeios; um solicitou maior variedade de cursos e um que as aulas tivessem mais recursos visuais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dados coletados e tratados nesta pesquisa nos possibilitam um olhar diferenciado sobre a realidade dos adolescentes que cumprem MSE de LA. Através deles podemos afirmar que a maioria dos adolescentes acompanhados possui idade de 17 anos, estão em defasagem escolar, fora do mercado formal de trabalho. Suas famílias possuem renda familiar baixa, são provenientes de bairros de periferia, possuem fácil acesso a armas e a maioria dos atos infracionais cometidos tem uma ligação com o tráfico ou o uso de drogas. Acreditamos que a facilidade ao acesso a armas acaba por contribuir para o aumento de crimes de natureza grave, como homicídio ou tentativas. Segundo pesquisa do Instituto Viva Rio, 50% das armas de fogo no Brasil são ilegais. No entanto há uma diferença quanto ao tráfico de drogas: a droga nasce ilegal, a arma não. A produção dela é legal, em algum momento ela se perde na ilegalidade. Portanto, é mais fácil fiscalizar a produção e venda de armas de fogo: basta haver controle do mercado formal. Podemos também, através dos dados, refletir sobre os critérios adotados pelo Juizado da Infância e Juventude ao aplicar as medidas sócio-educativas. Entendemos que a Liberdade Assistida é uma MSE que envolve uma rede de serviços. Destacamos, todavia que não há como ser bem sucedida se não houver envolvimento da família e da comunidade onde reside o adolescente. No entanto, alguns juízes interpretam que a LA e a PSC são as medidas mais adequadas a adolescentes moradores de rua. Acreditamos que a estes se devem aplicar medidas 66 Caracterização dos Adolescentes que cumpriram Medida Sócio-Educativa de Liberdade Assistida ... F. S. A. Malheiros e E. M. Rosa de proteção, para após sua reinserção no meio familiar e comunitário possa, ou não, lhe ser aplicada a MSE. Discordamos ainda que sejam aplicadas MSE, em meio aberto, a adolescentes que cometeram atos infracionais de natureza grave como homicídio, estupro ou lesão corporal grave. Por mais complicada que seja a internação em nosso estado, acreditamos que a impunidade ou sensação dela acaba por contribuir para o aumento da criminalidade e reforçam o que Volpi (2006) chama de mito da irresponsabilidade penal, que se refere à crença de que o Estatuto não prevê medidas que coíbam a prática de atos infracionais, estimulando o aumento da delinqüência infanto–juvenil, sendo este um argumento muito usado para a redução da maioridade penal. Uma preocupação que temos ao analisar os dados é não criminalizar a pobreza. Apesar de a maioria dos adolescentes ser proveniente da periferia, lembramos que, o que leva o adolescente a cometer ato infracional é um conjunto de relações complexas, sendo que a pobreza pode ou não ser uma delas. Afinal, uma parcela muito pequena dos adolescentes provenientes da periferia comete atos infracionais (ZALUAR, 2004). Há adolescentes das classes média e alta que ingressam na criminalidade. O que não podemos negar é que a violação dos direitos da criança e do adolescente acontece muito mais nas classes mais baixas, que dependem diretamente das ações do Estado para terem seus direitos garantidos. Quanto à análise dos questionários, concluímos que a avaliação dos adolescentes a respeito do tratamento e cumprimento das MSE de LA e PSC no Programa de Liberdade Assistida Comunitária “Casa Sol Nascente” é positiva. O Programa é visto como um local acolhedor, onde os adolescentes são tratados com dignidade. O que nos chama a atenção é a pouca menção ao ato infracional nos questionários. Podemos pensar que por ser um questionário de avaliação da Medida os adolescentes tenham receio de tocar neste assunto. Mas preferimos acreditar que como é um término de medida o ato infracional é visto em um lugar distante do adolescente, a criminalidade não faz mais parte de sua vida, isto pode explicar a baixa reincidência dos adolescentes após o ingresso no Programa. A mudança da visão que tinham de si também é salientada nas respostas. Como a maioria disse que está mais calmo e pensa antes de agir, podemos inferir que para eles é muito importante pensar antes de fazer algo, e que os atos infracionais cometidos foram feitos intempestivamente, sem muita reflexão a respeito das conseqüências. Além disso, quando se está mais calmo o relacionamento familiar melhora e cria-se um clima mais harmônico e agradável na família, conseqüentemente gerando maior sensação de segurança e auto-estima. Acreditamos que uma das estratégias para a diminuição da violência e do envolvimento de adolescentes com práticas de ato infracional, em curto prazo, sejam o investimento em políticas sociais para e com estes adolescentes principalmente em programa de inclusão no mercado de trabalho; de práticas educacionais voltadas para a construção da cidadania, que promovam a arte e a cultura musical; de programas de valorização das culturas e modos de vida das classes populares, enfim, políticas que envolvam o adolescente e possibilitem sua participação democrática nas ações desenvolvidas. Propomos também um fortalecimento A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 67 das redes de serviços aos adolescentes em conflito com a lei; a construção de um fórum para discutir a temática, promovendo ações, seminários, debates, entre outros, onde possamos dinamizar o debate, garantindo outra visão do adolescente em conflito com a lei e contribuindo para o questionamento dos estereótipos promovidos muitas vezes pela mídia em momentos de comoção nacional. Entendemos também que precisamos fomentar o debate para garantir um maior número de Programas de Liberdade Assistida nos municípios. Isto garantiria um menor número de internações. Afinal defendemos que havendo uma diminuição nas internações o trabalho com os adolescentes internados será muito mais facilitado e logrará êxito. Além disso, através de Programas de Liberdade Assistida, com acompanhamento específico e personalizado a partir da realidade dos adolescentes, há uma maior eficácia da MSE aplicada. Em longo prazo devemos atentar para que sejam desenvolvidas outras ações direcionadas ao enfrentamento da desigualdade social; à participação mais engajada de toda a população nos Conselhos para que se tenha maior controle das aplicações das verbas públicas e maior participação na elaboração das políticas; à real efetivação dos direitos afirmados no Estatuto da Criança e do Adolescente, garantindo maior qualidade nas ações desenvolvidas. Enfim, o que nosso estudo pode demonstrar é que a qualidade do serviço prestado faz a diferença quando se analisa a trajetória de adolescentes que cumprem MSE. Isso nos faz crer que unindo programas de iniciativas como o por nós analisado e ações políticas sérias e comprometidas com a juventude, podemos contribuir de fato para a promoção de sujeitos de direitos, combatendo políticas cristalizadas em pensamentos preconceituosos e neoliberais. REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, M.; WAISELFISZ, J. J.; ANDRADE, C.C.; RUA, M.G. Gangues, Galeras, chegados e rappers: juventude. Violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. 3. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. BOCK, A, M. M. A perspectiva sócio-histórica de Leontiev e a crítica a naturalização da formação do ser humano: a adolescência em questão. Caderno Cedes, Campinas, vol.24, n. 62, p. 26-43, abril 2004. JESUS, M. N. Adolescente em conflito com a lei: prevenção e proteção integral. Campinas: Servanda, 2006. MINAYO, M. C. S. (Org) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 23. ed. Petrópolis: Vozes, 1993. PASSAMANI, M E. A experiência de liberdade assistida comunitária na percepção de seus operadores. 2006. 178f. Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2006. 68 Caracterização dos Adolescentes que cumpriram Medida Sócio-Educativa de Liberdade Assistida ... F. S. A. Malheiros e E. M. Rosa TRASSI, M. L. Adolescência-violência: desperdícios de vidas. São Paulo: Cortez, 2006. VOLPI, M. Sem liberdade, sem direitos: a privação de liberdade na percepção do adolescente. São Paulo: Cortez, 2002. VOLPI, M. (Org.) O adolescente e o ato infracional. 6.ed. São Paulo: Cortez, 2006. ZALUAR. A. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO JUNTO AO ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL1 Mônica Nogueira dos Santos Vilas Boas 2 Maria Cristina Smith Menandro 3 Atualmente as ações voltadas ao atendimento do adolescente em conflito com a lei são marcadas pelo direcionamento dado pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990, que são verdadeiros marcos do estabelecimento no Brasil da chamada “Doutrina de Proteção Integral” para o atendimento de crianças e adolescentes. A Doutrina da Proteção Integral, denominada de Sistema de Garantia de Direitos, inclui princípios e normas que regem a política de atenção a crianças e adolescentes no Brasil e substitui a “Doutrina da Situação Irregular” proposta para o mesmo fim pelo Código de Menores (1979). Com relação especificamente ao adolescente em conflito com a lei, foi criado, em 2006, o Sistema Nacional de Atendimento Sócio Educativo – Sinase, resultante de um processo coletivo de elaboração de alternativas de enfrentamento a situações de violência envolvendo adolescentes autores de atos infracionais uma vez que o “Sistema FEBEM” se mostrou falido. O Sistema FEBEM teve seu inicio em 1964 com a criação da Fundação Nacional de Bem Estar do Menor, cuja atuação nos Estados era totalmente dependente da esfera federal. O Sinase instrumentaliza a implementação das Medidas Sócio-educativas, previstas no ECA, que são as ‘penalidades’ aplicadas por um juiz a um adolescente quando comete algum ato infracional. As medidas sócio-educativas se dividem em: Privativas de Liberdade (Semiliberdade e a Internação) e Não Privativas de Liberdade (Advertência, Obrigação de reparar o dano, Prestação de Serviços na Comunidade e a Liberdade Assistida). O psicólogo é chamado a intervir com os adolescentes em ambas as esferas. A mudança de paradigmas no trato da questão do adolescente em conflito com a lei, resulta não só na substituição da legislação que regulamenta o setor, mas também na mudança de representações e práticas que envolvem este adolescente, o que tem ocorrido mais lentamente. Belluzzo e Victorino (2004) afirmam que as políticas públicas caracterizam-se por decisões, o que fazer/não fazer/como fazer, que norteiam a ação pública que, além da prestação de serviços, “contém a definição dos modos de interação entre os agentes da política e sua regulação. 1 2 3 Pesquisa desenvolvida com o apoio da CAPES. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. 70 A atuação do Psicólogo junto ao Adolescente autor de Ato Infracional M. N. S. Vilas boas e M. C. S. Menandro Tal ação reflete a concepção do sujeito-alvo e a forma de se lidar com ele sendo respaldado num plano mais amplo, pelo modelo institucional vigente no país” (p.8). Oliveira & Assis (1999) afirmam que crianças e jovens são cada vez mais considerados perigosos pela sociedade e o enfrentamento dessa questão tem sido feito pela internação em instituições correcionais. De acordo com dados recentes que apresentaremos adiante, vemos que passada quase uma década, após a publicação das autoras, este quadro só se agravou. A descentralização do atendimento, quando o Governo Federal convocou Estados e Municípios através do ECA, a assumirem as instituições, não foi em si suficiente para a efetivação das mudanças necessárias na prestação deste serviço. O esperado aumento da qualidade do atendimento prestado aos adolescentes infratores não foi alcançado, mesmo com todas as mudanças feitas até então. “O cotidiano pressionava, impedindo a elaboração de um novo planejamento dentro da filosofia estabelecida no ECA (...) A tentativa de adaptação do modelo à realidade institucional foi muito traumática” (OLIVEIRA & ASSIS, 1999, p.841). Estudos mais recentes como os realizados por Hülle (2006) e Faleiros (2005), continuam a apontar o fracasso do sistema. Hülle (2006) ao realizar uma pesquisa com adolescentes do sexo feminino que cumpriam medidas de internação provisória ou de privação de liberdade observou que “...após quatorze anos de vigência do ECRIAD não é possível observar na prática todas mudanças propostas. Os preceitos do Estatuto não foram adotados na íntegra pela sociedade. Tal fato pode ser verificado em uma análise das condições dos órgãos e das políticas de atendimento à infância e à juventude existentes no país, como os Conselhos Tutelares” (p.11). Faleiros (2005) afirma haver um fracasso na política de enfrentamento da questão do adolescente infrator, o que segundo o autor está relacionado não só à força do crime organizado, mas também à herança do antigo modelo das FEBEM’s. “As constantes rebeliões e mortes ainda mostram a predominância do modelo repressivo, também presente em muitos projetos de lei que buscam encaminhar uma solução para o problema por meio da penalização dos jovens ou redução da idade de imputabilidade penal de 18 para 16 anos. (p.174). A “proteção integral” exigida pelo ECA esbarra no crescente antagonismo para com o adolescente infrator presente na sociedade que os associa a atos criminosos e os responsabiliza pelo aumento da violência urbana, demandando por medidas de repressão e punição deste jovem (CONCEIÇÃO, TOMASELLO & PEREIRA, 2003). Desta forma, mantém-se a tradição histórica brasileira de criminalização e exclusão dos jovens pobres e negros que é o perfil da grande maioria dos internos no Sistema Socioeducativo (VOLPI, 2006). Ao estudarem as representações sociais de assistentes de desenvolvimento social (ADSs) de adolescentes em regime de internação, Espíndula & Santos (2004, p.365) consideram que “é A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 71 de fundamental importância o rompimento com a doutrina da situação irregular e a adoção da doutrina de proteção integral”. Considerar o adolescente como sujeito de direitos traz uma mudança radical no modo de conceber a adolescência e tal mudança, segundo estes autores, vai paulatinamente sendo apropriada pelo senso comum e modificando as concepções e práticas sociais. E ressaltam que é também “no conjunto de significados compartilhados no senso comum, que se estabelecem as resistências à mudança. As relações cotidianas podem viabilizar ou não tais políticas no sentido de modificar as práticas sociais com essa população” (p.365/366). As medidas sócio-educativas de internação, são tratadas nos artigos 112 a 125 do ECA. Segundo o art. 121 “A internação constitui medida privativa de liberdade, sujeita a princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar da pessoa em desenvolvimento” (ECA, art. 121). No estado do Espírito Santo o Instituto de Atendimento Sócio-Educativo (IASES), autarquia vinculada a Secretaria de Estado da Justiça, é o órgão responsável por coordenar e articular a execução das Medidas Sócio-educativas, e promover a defesa dos direitos do adolescente em conflito com a lei. Cruz, Hilleshein e Guareschi (2005), problematizam a inserção da Psicologia no debate sobre as políticas públicas da área da infância, denominada vulnerável (estreitamente vinculada à adolescência) como também apontam algumas práticas da Psicologia nesta área: “estabelecendo (...) padrões de normalidade e anormalidade, circunscrevendo etapas evolutivas, consolidando as práticas escolares de classificação e ordenação das crianças conforme seus desempenhos...” (p.42). O desafio de se colocar em prática a doutrina da proteção integral preconizada no ECA, muitas vezes aparece através da atuação do psicólogo, conforme alerta Brito (2000). Esta autora, ao resgatar a história do atendimento aos jovens em conflito com a lei, lembra que na doutrina da situação irregular (Código de menores, 1979) a função da equipe técnica, que inclui o psicólogo, era principalmente avaliativa. Também Diniz (2001), ao realizar na sua pesquisa a análise do conteúdo e do discurso de 46 pareceres presentes em 43 processos de adolescentes evadidos da internação iniciados entre os anos de 1995 e 1998, concluiu que os pareceres estão repletos de conteúdos estigmatizantes destes jovens. Como exemplos encontrados: a dicotomia carente/delinqüente, a culpabilização da família, previsão de comportamentos futuros e a não inserção das condições socioeconômicas na formação da subjetividade individual. Morato e outros (2005) em seu relato de experiência de prática psicológica com adolescentes, prática denominada “Acompanhamento psicológico individual de adolescentes autores de ato infracional”, apontam que ao iniciar sua intervenção na instituição por meio de encontros com a direção e a equipe técnica (psicólogos e assistentes sociais contratados pela FEBEM, responsáveis pelo acompanhamento de cada adolescente interno), notaram que “havia uma dificuldade, por parte das psicólogas, em definir uma atuação perante os adolescentes com encaminhamento judicial” (p.138) o que foi justificado devido à sobrecarga de funções. Este 72 A atuação do Psicólogo junto ao Adolescente autor de Ato Infracional M. N. S. Vilas boas e M. C. S. Menandro é um dos pontos que queremos estudar, a dificuldade do psicólogo em definir sua atuação junto ao adolescente privado de liberdade. Práticas profissionais coerentes com o reordenamento no sistema socioeducativo efetuado pelo ECA, necessariamente precisam considerar os adolescentes em conflito com a lei como pessoas em desenvolvimento, “isto significa procurar compreender a origem e a evolução dos problemas sociais vivenciados por elas e, com isso, buscar alternativas de solução que sejam mais adequadas à realidade em que elas vivem” (DESSEN & BIASOLI-ALVES, 2001, p.184). Costa e Assis (2006) explicitam a situação do atendimento a adolescentes infratores da seguinte forma: “A despeito das conquistas alcançadas a partir dos novos parâmetros normativos, o adolescente em conflito com a lei não tem sido atendido segundo a especificidade de seu período de formação. Tampouco tem sido possível modificar a condição de vulnerabilidade na qual se encontram” (p.74). As autoras observam ainda que o atendimento, na aplicação das medidas sócioeducativas, ainda é caracterizado pelo enfoque da punição e pelas concepções patologizantes acerca da adolescência e do ato infracional. “O sentido de ‘cura’ ou de ‘reforma moral’ necessita ser substituído pelo ideal de transformação das condições que afetam a vida do adolescente e pelo investimento em suas potencialidades” (COSTA & ASSIS, 2006, p.75). Para Silva (2003) a inserção do psicólogo no campo das políticas públicas pode ser fundamentada tanto numa real consciência da importância da participação da Psicologia na transformação das questões sociais como pode estar vinculada apenas ao fato de precisarmos garantir postos de trabalhos, e ter assim, mais possibilidades de sobreviver financeiramente de nossa profissão, “somos uma profissão que tem um grave problema de empregabilidade. Somos uma profissão marcada por uma potência virtual que, entretanto, tem encontrado limitadas possibilidades de expressão concreta” (p.9). Yamamoto (2003) avalia esta situação da seguinte forma: de um lado há a manutenção do perfil clínico pela grande maioria, e de outro, um aumento das oportunidades profissionais, propiciada “pela abertura de novos espaços de inserção profissional. É nesse particular que se observa a presença do psicólogo nos campos do bem-estar social de cunho preventivo e compensatório” (p.41). Daí considerarmos a importância da problematização das práticas dos psicólogos, uma vez que são convocados a assumir, e essa categoria profissional já o fez, um compromisso social. Compromisso este que segundo Bock (2003) significa quebrar com uma tradição de apoio às elites, incluindo o mundo cotidiano, cultural e social na produção e na compreensão do mundo psicológico, mudar a concepção de mundo psíquico individual. Esta mudança de concepção “consolidará um novo compromisso dos psicólogos e da Psicologia com a sociedade, um compromisso de trabalho pela melhoria da qualidade de vida...” (p.28). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 73 Mendonça (2002) salienta a necessidade de mais estudos que aprofundem a análise política da proteção social à juventude no Brasil, e isto, acreditamos que passa pela análise das práticas dos profissionais com esta população. No caso deste estudo temos como objetivo geral identificar e analisar a atuação dos psicólogos. Trata-se de uma pesquisa descritiva com abordagem qualitativa de coleta e tratamento dos dados. REFERÊNCIAS BELLUZZO, L & Victorino, R C. (2004). A Juventude nos Caminhos da Ação Pública. São Paulo em Perspectiva, 18 (4): 8-19. BOCK, A M B. (2003). Psicologia e sua ideologia: 40 anos de compromisso com as elites. In A M B. Bock (Org.), Psicologia e Compromisso Social (pp. 15 – 28). São Paulo: Cortez. BRITO, L. M. T. 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O desafio da política de atendimento à infância e à adolescência na construção de políticas públicas eqüitativas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18 (Suplemento): 113-120. 74 A atuação do Psicólogo junto ao Adolescente autor de Ato Infracional M. N. S. Vilas boas e M. C. S. Menandro MORATO, H. T. P; Carvalho, L.S; Eisenlohr, M. G. V; Noguchi, N.F.C & Mosqueira, S. M. (2005). Acompanhamento psicológico individual na FEBEM/SP: um convite a cuidar de si. Imaginário/ NIME-LABI, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, nº11, 2º sem: 137-160. NASCIMENTO, M. L., Manzini, J. M. & Bocco, F. (2006). Reinventado as práticas PSI. Psicologia & Sociedade; 18 (1): 15-20. OLIVEIRA, M. B. & Assis, S. G. (1999) Os adolescentes infratores do Rio de Janeiro e as instituições que os “ressocializam”. A perpetuação do descaso. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(4): 831-844. SILVA, M. V. O. (2003). Psicologia e Protagonismo Social. 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De acordo com Andrade (2006), a Psicologia tem sido marcada pelo movimento de naturalização de questões que são de ordem eminentemente político-social, o que produz modelos de subjetivação pautados na individualização e na internalização dos processos psicológicos, como se eles não se referissem a construções sócio-históricas. Nos últimos anos, com a abertura de novos campos de atuação, em especial nos serviços públicos e no terceiro setor, a prática do profissional de Psicologia passa a ser alvo de questionamentos. Diversos autores (TRAVERSO-YÉPEZ, 2001; DIMENSTEIN, 2001; ANDRADE, 2006; ANDRADE, 2007) têm apontado para o despreparo desses profissionais na efetivação de uma prática mais próxima da realidade social na qual estão inseridos e que seja capaz de engendrar mudanças necessárias em seu campo de atuação. Tais avaliações criticam, exatamente, a herança epistemológica que respalda e orienta a postura e intervenção do psicólogo, inadequada para provocar ações criativas e coletivas.3 Tal herança é refletida em práticas de controle, categorização e adequação dos sujeitos visando enquadrá-los aos moldes pré-estabelecidos por padrões hegemônicos impostos pela lógica neoliberal. Assim, as diferenças passaram a ser negadas ou consideradas desvios, erros, quando comparadas às normas ou padrões vigentes. Nos últimos anos, essa forma de pensar vem sendo questionada e criticada em função da diversidade emergente nas diversas práticas – principalmente naquelas desenvolvidas com populações de baixo nível sócio-econômico, não contempladas nas teorias psicológicas tradicionais. No contexto educacional, a Psicologia comprometeu-se com a lógica de formalização dos indivíduos que atende a expectativas sociais e econômicas. A escola, pressupondo que os alunos têm interesses e capacidades comuns, aplica um modelo único que atende à demanda dos valores capitalistas, por meio do encaminhamento de alunos para a Universidade e daí para o mercado 1 2 3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. A concepção de coletivo, como proposto por Andrade (2007), remete a algo construído no encontro; algo que não é da ordem do constituído, mas da criação; e, assim, exige a desconstrução de configurações cristalizadas e morais, partindo para a produção conjunta de outros sentidos. 76 ONG e PSICOLOGIA: espaços de criação L. Pesente e R. Scaramussa profissional. Esse modelo centrado na competição, na excelência, na especialização e na velocidade das informações é um dos mecanismos responsáveis pela produção dos males do século na educação: déficit de atenção, hiperatividade, estresse e problemas de aprendizagem diversos. Todos eles muitos bem acolhidos, diga-se de passagem, pela Neurologia, pela Psiquiatria e pela Psicologia, entre outros saberes (SCARAMUSSA, 2007). A educação, na contemporaneidade, é caracterizada por se dar em um meio formal e isolado, com formação moral e intelectual, adestramento, disciplina autoritária e separação por idades. Tal modelo se constitui em um longo processo de formalização da educação forjado segundo expectativas sociais e econômicas. Nesse contexto, a própria educação passa a valer como um bem de mercado e a servir como instrumento de controle. Não é difícil perceber que aquele que, por algum motivo, não se “enquadra” no modelo rígido imposto é considerado um problema. Também não é difícil perceber que a culpabilização por esse “desajuste” recai única e exclusivamente sobre o indivíduo que o apresenta. Em um contexto geral, os problemas de aprendizagem não são percebidos como um engendramento sócio-histórico onde estão incluídos os vários mecanismos de sustentação do modelo vigente, entre os quais podemos citar o saber psicológico. Sendo assim, a Psicologia e a Pedagogia configuram-se como saberes instituintes de um olhar vigilante normalizante e disciplinador dos indivíduos, que, por sua vez, atuam como produtores de corpos dóceis. Em nossa sociedade, esses saberes sustentam a moral dominante e respondem às necessidades capitalistas de produtividade, capacitação e especialização. Os indivíduos são avaliados em função do que é considerado normal, uma herança platônica responsável pela supervalorização das semelhanças em detrimento das diferenças. Nas escolas, esses procedimentos disciplinares funcionam como mecanismos de ajustamento e também como operadores pedagógicos – treinamento, avaliação, testes e correção (FOUCAULT, 2002; 2003). Esse modelo escolar orienta-se por “um corpo produtivo e útil onde o tempo não pode ser perdido e toda energia deve estar dirigida à produção” (HECKERT, 2000, p.13). Assim, a escola reproduz um modelo educacional focado na formação de trabalhadores, na hierarquização e na moralização da produção capitalista. Nesse sentido, seria preciso intervir desde a infância para que o indivíduo se torne produtivo e possa corresponder às expectativas do mercado. A criança passa a ser vista como mão-deobra em potencial que necessita ser orientada e moralizada. Para sustentar esse novo paradigma e redefinir hábitos percebidos como perigosos, emerge um modelo médico de prevenção eugênico e higienista, e é criado um aparato institucional e administrativo que permite ao Estado definir as políticas de intervenção que visam recuperar e reintegrar. O aparato legal para o cuidado da infância assumiu várias formas até culminar, em 1990, com a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que amplia o foco de proteção para além da irregularidade e garante direitos a todas as crianças e adolescentes. O ideário de preservação dos direitos da criança e do adolescente que emerge nas décadas de 1970 e 1980 culmina, entre outras coisas, no aparecimento de várias Organizações Não- A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 77 Governamentais (ONGs) relacionadas ao tema. As ONGs são organizações da sociedade civil integrantes do terceiro setor que se declaram com finalidades públicas e sem fins lucrativos. Desenvolvem ações em diferentes áreas e, geralmente, mobilizam a opinião pública e o apoio da população para melhorar determinados aspectos da sociedade. Essas organizações, financiadas pela esfera pública e também por entidades privadas, podem ainda complementar o trabalho do Estado, realizando ações onde ele não consegue chegar. Desse modo, assim como nos serviços públicos de saúde, educação e ação social, também o terceiro setor torna-se um espaço de trabalho para a Psicologia, que recebe a difícil tarefa de reinventar suas possibilidades de atuação – o que possivelmente levará a um rompimento com modelos estereotipados e amplamente solicitados da prática psicológica, propondo novas formas de agir. Essa não é tarefa fácil, já que o lugar de que se fala é de descobertas, e, portanto, de riscos. Sobre esse desafio, que consiste numa atuação coerente da Psicologia nesse contexto social, afirmam Andrade e Novo (2004) que “o trabalho do psicólogo junto aos grupos sociais mais expropriados dos direitos da cidadania tem exigido o contínuo repensar suas referências teóricas, assim como sua participação efetiva na transformação de uma sociedade autoritária e excludente” (p. 62). Para Andrade e Novo (2004), assumir o compromisso da luta pelos direitos de vida e cidadania de toda a população “exige a busca permanente de superação das avaliações reducionistas e individualizantes presentes em sua história” (p.62). Ainda que práticas emancipatórias sejam engendradas, predomina a visão do trabalho psicológico associado à clínica individual, curativa, voltada para adequação dos indivíduos. Esse relato de experiência visa justamente apresentar tentativas de ruptura com a prática psicológica tradicional e, ao contrário desta, firmar um compromisso efetivo com as questões sociais. A CAOCA A Casa de Acolhimento e Orientação a Crianças e Adolescentes (Caoca) é uma Organização Não-Governamental que tem como objetivo dar apoio sócio-educativo a crianças e adolescentes com idades entre sete e quatorze anos consideradas em situação de risco e vulnerabilidade sociais. Essa clientela é atendida em horário alternado com a escola, o que visa impedir que fiquem nas ruas, submetidas a todo tipo de risco. Em seus onze anos de existência, a Caoca enfocou sua atuação no reforço escolar e na formação espiritual. A espiritualidade é oriunda da congregação religiosa mantenedora desse projeto social; já o reforço escolar é resultado da demanda dos pais e da escola inconformados com o baixo rendimento dos alunos. Ao longo de sua história, a Caoca construiu forte parceria com a comunidade local, que é responsável pelo trabalho voluntário na instituição e por seu apoio financeiro. O reconhecimento da Caoca ao longo dos anos permitiu que ela fosse mais bem estruturada por meio de parcerias com 78 ONG e PSICOLOGIA: espaços de criação L. Pesente e R. Scaramussa médias e grandes empresas, bem como com a Prefeitura Municipal de Vitória. As verbas são reinvestidas em recursos materiais ou humanos, e a segurança financeira permitiu, além da realização das atividades originais, a abertura de cursos para adultos e a contratação de antigos voluntários ou ex-alunos para os cargos de educador social, cozinheiro, auxiliar de serviços gerais, secretário e assistente social. A profissionalização da instituição resultou, entre outras realizações, na contratação dos serviços de Psicologia. O relato dessa experiência de trabalho parte justamente do olhar da Psicologia Social sobre esse contexto. No discurso da instituição e da comunidade observouse a expectativa de um trabalho psicológico clínico tradicional que desse conta de “solucionar” os “problemas” de aprendizagem e de comportamento das crianças e adolescentes. Diante de tal realidade, busca-se resistir à captura por um modelo estereotipado de Psicologia que, de certo modo, sustenta práticas excludentes e de normalização dos sujeitos que servem de apoio ao modelo pedagógico hegemônico. A criação de novas formas de atuação para a Psicologia torna-se fundamental para fomentar um trabalho realmente transformador na instituição – e isso pode se efetivar através do rompimento com o lugar de saber próprio da Psicologia, da abertura de espaços efetivamente democráticos entre profissionais, comunidade e crianças e da construção coletiva de novos modos de pensar a educação. CONSTRUINDO NOVOS POSSÍVEIS Após período de observação e contato com os diversos atores desse contexto, emerge a oportunidade de atuação junto às educadoras sociais. Em conversas formais e informais com essas profissionais, observou-se o desejo por um espaço de discussão e planejamento onde pudessem trocar idéias e informações sobre suas atividades. Reclamaram da ausência de um profissional que orientasse suas práticas de forma efetiva. Também relataram sentir falta de uma participação mais efetiva nas decisões tomadas pela entidade. Além disso, o discurso apontou para uma insatisfação com a sobrecarga de horas extras, entendida pela instituição beneficente como um trabalho voluntário. Como era início de ano, período de férias letivas, foi possível reavaliar todo o projeto político-pedagógico da instituição, que deixa de ser articulado por um profissional específico para ser construído no coletivo. As idéias transbordaram: as tradicionais salas de aula foram substituídas por oficinas, e seu objetivo principal deixou de ser o reforço escolar, ainda que ele continuasse a existir de modo informal, para ser o de uma formação cidadã. Mas a mudança estrutural não garantia a eficácia do projeto. Era preciso garantir encontros semanais para constante avaliação e construção conjunta de novos procedimentos pedagógicos. Assim, foi conquistado uma vez por semana um espaço no qual o atendimento a crianças e adolescentes seria realizado por voluntários ou estagiários, o que permitiria a liberação das professoras. Ao longo dos encontros, muitos embates aconteceram. Aos poucos, a percepção A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 79 da necessidade de se ter um especialista para orientar as atividades deu lugar à valorização do saber construído no coletivo: trocavam-se materiais e ferramentas, dividiam-se angústias e criavam-se estratégias para o enfrentamento dos conflitos. Esse espaço também passou a facilitar a comunicação entre instituição e educadoras, inclusive abarcando os demais funcionários interessados em participar. A comunicação facilitada permitiu, entre outras realizações, a criação e a sustentação de um banco de horas que garantia aos profissionais a compensação da hora extra trabalhada. Além disso, foi criado, em lugar do tradicional relatório mensal, um caderno de anotações, ou melhor, um diário de campo, no qual seriam descritos práticas e sentimentos em relação às atividades realizadas com as crianças nos encontros. O objetivo era romper com o tecnicismo e com a neutralidade impostos na confecção dos relatórios pedagógicos. Para isso, lançou-se mão da “liberdade” de fato de não se pertencer a instituições educacionais instituídas e hierarquizadas como as escolas. Dessa forma, ao mesmo tempo em que era atendida a demanda da coordenação, de fazer uma descrição da atividade realizada, fugia-se dos padrões tradicionais na tentativa de abrir portas para a emergência da criatividade, da expressão de sentimentos e do que mais emergisse daí. Os relatos eram discutidos nos encontros semanais, e, com as experiências iniciais, foi possível perceber que, ainda que tenha havido estímulo para se fazer uma descrição mais afetiva e menos focada em técnicas e procedimentos utilizados, houve uma insistência nos modelos de relatórios tradicionais – o que aponta para uma certa dificuldade das educadoras, principalmente aquelas com maior experiência profissional, de sair do modelo tradicional de relatório. Já as professoras com menos experiência, ou ligadas a atividades mais artísticas, como as artes plásticas ou a música, evidenciaram maior facilidade para expressar suas angústias e satisfações e para descrever as situações tal qual aconteceram. Para Kastrup (2007), as atividades artísticas facilitam a aproximação de uma aprendizagem inventiva4, ou seja, “a habilidade musical não é meramente técnica, nem visa a um adestramento muscular e mecânico. Está envolvida aí uma aprendizagem da sensibilidade, o que significa a aprendizagem de uma atenção especial que encontra a música, deixando-se afetar por ela e acolhendo seus efeitos sobre si” (p.1278). Já a dificuldade das demais educadoras é efeito de um modelo educacional representacional no qual apenas se reproduz o objeto real sem que haja envolvimento com ele. Tal fato remete à história “O meninho”, que relata o caso de uma criança que foi ensinada a desenhar uma flor sempre do mesmo modo que sua professora e que quando, em outra escola, já mais velho, lhe foi pedido para desenhar uma flor, desenhou a mesma que a antiga professora o havia ensinado acreditando que as demais formas-flor estariam erradas. Assim, o diário representou a possibilidade de questionar experiências tão 4 A noção de aprendizagem inventiva inclui, além da solução de problemas, a invenção de problemas; e revela-se também como invenção de mundo. Trata-se de dotar a aprendizagem da potência de invenção e de novidade. 80 ONG e PSICOLOGIA: espaços de criação L. Pesente e R. Scaramussa enraizadas e abriu espaço para a emergência de novos fazeres. Aos poucos, os cadernos foram ganhando contornos singulares: desenhos, pinturas, colagens, comentários, expressões de raiva, decepção, alegria e entusiasmo, entre tantos outros. INVENTANDO OFICINAS DE CRIATIVIDADE O projeto pedagógico desenvolvido pela Caoca tem como objetivo principal a formação para a vida dos alunos participantes. Isso significa que a entidade se compromete com a formação de sujeitos críticos e autônomos. Essa experiência acontece por meio de oficinas, que, além de trabalharem técnicas específicas como arte, música, dança e capoeira, também se compromete com a construção de uma aprendizagem conjunta produzida no encontro. O objetivo final de uma oficina como essa não é somente aprender uma técnica, mas utilizá-la como ferramenta de discussão da realidade. No entanto, a equipe de Psicologia, em avaliação institucional, observou uma certa dificuldade tanto dos oficineiros quanto das crianças e adolescentes em se desprender de uma prática pedagógica tradicional. Também foi possível perceber que as crianças chegavam à oficina muito agitadas e com dificuldade em se concentrar na atividade proposta, situação provavelmente provocada pelo cansaço resultante de uma jornada escolar dupla. Tais desafios apontaram para a necessidade de se encontrar uma maneira de reestruturar esse trabalho para que os objetivos acima propostos fossem atingidos. Desse modo, foi desenvolvido o projeto Espaços de Criação, que se propõe a promover atividades de relaxamento/aquecimento e rodas de conversa nas oficinas. O objetivo da técnica de relaxamento ou aquecimento é tentar criar um ambiente mais propício a uma aprendizagem inventiva. Já as rodas de conversa são bate-papos nos quais as crianças expõem suas reflexões sobre a atividade proposta na oficina e a relacionam com sua realidade. Ao mesmo tempo, funcionam com um espaço aberto para a emergência de outros assuntos que as crianças queiram discutir. A escolha das técnicas de relaxamento/aquecimento é realizada semanalmente e discutida junto ao educador responsável pela oficina em questão, tendo em vista sua aplicabilidade em relação à atividade pensada para aquele dia e as particularidades de cada turma. Cada oficina envolve aproximadamente quinze crianças ou adolescentes. A atividade é iniciada com uma técnica de relaxamento ou aquecimento, e, em seguida, o educador desenvolve sua atividade propriamente dita. Por volta de vinte minutos antes do fim da oficina, todos se sentam em roda no chão e o debate é estimulado junto às crianças. Foram realizadas até o momento quatro experiências em quatro oficinas diferentes. A avaliação dos educadores foi positiva: eles relataram gostar da parceria na preparação das atividades e em sua implementação. Consideraram também a sistematização da oficina em três etapas (relaxamento, atividade, roda de conversa) como positiva para seu melhor aproveitamento. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 81 Contudo, muitas dificuldades têm sido encontradas. Em primeiro lugar está a ausência de um momento específico propício à construção conjunta da atividade com os educadores. A estratégia utilizada foi chamá-los um a um durante os pequenos intervalos entre as oficinas. Como as atividades são diferentes a cada semana, a ausência de encontros torna o processo lento e desgastante. Há também a desconfiança dos educadores no que se refere ao que alguns deles consideram ser uma “intromissão” em suas oficinas, além do receio de estarem sendo “avaliados”. Tais angústias foram trabalhadas antes do início das atividades e continuam a ser foco de análises e avaliações conjuntas. No entanto, os maiores desafios têm sido os impasses cotidianos, como a ausência de educadores suficientes para o número de crianças atendidas e a inadequação do espaço físico ao número de crianças matriculadas e ao tipo de atividade desenvolvida. Por tudo isso, muitas vezes não é possível realizar o que foi pensado. Tudo isso compromete o maior objetivo, de desenvolver espaços estimulantes para o debate nos quais as oficinas não sejam meras reprodutoras de técnicas. Estar aberto ao novo, ao que emerge no encontro, gera ansiedade e insegurança – e por isso é necessário acolher esses sentimentos. As experiências efetivadas pelo projeto Espaços de Criação têm auxiliado nessa leitura sobre as oficinas, e, com isso, têm ampliado o olhar sobre a aprendizagem. A criança deixa de ser um mero expectador e passa ser autor e ator do processo de construção do aprender. CONSIDERAÇÕES FINAIS A intenção de se escrever sobre a essa experiência emerge da necessidade de se relatar novos possíveis na prática psicológica; prática essa que, como vimos, vem sendo criticada e repensada por diferentes autores. Contudo, percebe-se que grande parte das publicações sobre o assunto refere-se a construções teóricas, e pouco se encontra sobre a efetivação desses espaços de trabalho. A intenção dessa experiência foi justamente mostrar que essa efetivação é possível. Não se pretende com esse exemplo criar mais um modelo de atuação, mas estimular a invenção de novos modos de fazer Psicologia. O espaço de trabalho no terceiro setor, nesse caso uma ONG, pode e deve ser um local de atuação da Psicologia, lugar de experimentação e de tentativas de efetivas transformações sociais. REFERÊNCIAS ANDRADE, A. N. de. Oficinas de Criatividade – deslocamento e com-posições. (aceito, no prelo). In: CUPERTINO C. (Org.). Espaços de Criação. São Paulo: Arte e Ciência, 2006, p. 1-23. 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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA HIPERTENSÃO E DO DIABETES: DILEMAS DA ADESÃO MEDICAMENTOSA NO PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA Guilherme Bracarense Filgueiras 1 Raphael Agrizzi Pereira 1 Emílio Nolasco de Carvalho 2 No presente trabalho buscamos analisar um grupo de moradores hipertensos e diabéticos que resiste ao regime terapêutico proposto pelos profissionais de saúde da Unidade de Saúde da Família da Ilha das Caieiras (USF-IC) — que compreende, além do bairro citado, os bairros de Comdusa, São Pedro I, São Pedro II e São Pedro IV. Para tanto, acompanhamos uma das equipes do Programa de Saúde da Família (PSF) e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) por cerca de um ano, visitando diversos moradores e construindo com estes novos percursos e diálogos relativamente autônomos e diferenciados em relação àqueles que marcam a relação dos mesmos com os profissionais e agentes de saúde. A delimitação mais precisa deste tema ocorreu no início de 2007 e deve-se, por um lado, à relevância que a questão da adesão medicamentosa ganhou para os pesquisadores durante os primeiros meses de estágio supervisionado, a partir dos encontros com os usuários da unidade de saúde e, por outro, à relevância dada ao tema entre os próprios técnicos e agentes comunitários da unidade de saúde. Foram estes, em última instância, que ajudaram na delimitação em torno de hipertensos e diabéticos3 e que escolheram os usuários a serem visitados, focando aqueles considerados mais “rebeldes”. Optamos, então, por uma estratégia dividida em duas frentes de investigação: uma primeira junto aos moradores, visando compreender os modos como constroem o corpo, a saúde e a doença, assim como as formas de adesão aos recursos de prevenção e tratamento oferecidos pelas políticas oficiais; uma segunda junto às equipes de profissionais da unidade de saúde, visando mapear as estratégias de intervenção e produzir espaços de discussão e reinvenção das mesmas. Aqui focaremos as análises produzidas na primeira frente, junto aos moradores, com o intuito de explicitar um conjunto de modos culturais de produção do sujeito, do corpo e da doença que parecem impor limites e desafios às visões do tipo “bio-psico-social” e às estratégias de prevenção que fundamentam nossa política contemporânea de atenção básica 1 2 3 Alunos de graduação em Psicologia da FAESA. Professor do curso de graduação em Psicologia da FAESA. Conforme os profissionais de saúde e os discursos médico-científicos oficiais, a hipertensão e a diabetes são doenças freqüentemente associadas e encontradas num mesmo caso. 84 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA HIPERTENSÃO E DO DIABETES: dilemas da adesão medicamentosa ... G. B. Filgueiras; R. A. Pereira; e E. N. de Carvalho em saúde. A estratégia privilegiada nesta frente de investigação foi a da observação participante, focada em referências etnográficas e em perspectivas teóricas antropológicas. No presente texto, optamos por apresentar inicialmente uma breve história do bairro e das políticas oficiais de saúde, que servirão como pano de fundo para as análises das construções sociais do corpo e da doença explicitadas pelos moradores. A partir disto, propomos um modo de problematização que inclua, como parte dos embates culturais em jogo, nossas próprias verdades científicas e nossos valores modernos, fundamentos que são de nossas políticas de saúde contemporâneas. UMA BREVE HISTÓRIA: os Bairros, o Estado e as Políticas de Saúde De certa forma, o crescimento de Vitória na segunda metade do século XX acompanhou os efeitos migratórios da política meritocrática adotada no segundo governo de Getúlio Vargas. Mas, como nos mostram Andreatta (1987) e Costa (2007), foi a partir da década de 1970, com a crise no setor cafeeiro e a chegada de grandes indústrias, como a Companhia Siderúrgica de Tubarão que este movimento se intensificou na cidade. O crescimento da população associado a uma política de urbanização que desconsiderava as classes sociais de baixa renda promoveram a ocupação rápida e desordenada de diversas áreas antes não habitadas – os morros e os manguezais. Assim, até a década de 1970 a região de São Pedro era composta basicamente por fazendas, sítios, uma grande área de manguezal e um pequeno povoado na Ilha das Caieiras que vivia da pesca. Entretanto, ao longo desta década e, principalmente, em seus últimos anos, a região sofreu grandes transformações com a ocupação progressiva das áreas de mangue. Vale lembrar que, no âmbito nacional, este período foi marcado por uma crescente mobilização social em direção ao fim da ditadura, à democratização do Estado e ao fortalecimento dos movimentos de base. Em sintonia com este contexto, os novos moradores da região de São Pedro organizaram-se em várias frentes de luta – como as Comunidades Eclesiais de Base, o Movimento Comunitário de São Pedro, a MUSP (Mulheres Unidas de São Pedro), os sindicatos e outras –, imprimindo uma relação intensa e não raras vezes tensa com os governos municipal e estadual. Foi assim que no final da década de 1970 e nas décadas seguintes, os novos moradores desta região participaram ativamente das negociações junto à prefeitura em relação às políticas de urbanização e à construção dos serviços de saúde e de educação4, dentre outros. Nesse contexto, surge em 1978 o primeiro posto de saúde de São Pedro, com o modelo medicocêntrico próprio às políticas de saúde da época. 4 A Escola “Grito do Povo”, por exemplo, foi construída pelos próprios moradores entre o final de 1982 e o início de 1983. No mesmo ano foi incorporada pela prefeitura de Vitória, passando a se chamar Escola “Francisco Lacerda de Aguiar” (Cf. Andreata, 1987, p. 79). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 85 Durante a década de 1980, ao mesmo tempo em que a reforma sanitária e os demais movimentos em saúde ganhavam força e preparavam o que viria a ser o atual Sistema Único de Saúde (SUS), a região da Grande São Pedro crescia rapidamente, alcançando já em meados desta década uma expansão territorial semelhante à de hoje. Entretanto, estes movimentos não se encontraram nesta década. Foi somente a partir de meados da década de 1990, com a transformação do posto de saúde em Unidade Básica de Saúde e, posteriormente, em Unidade de Saúde da Família, o que deslocou a atenção à saúde da visão medicocêntrica para aquela bio-psico-social e preventiva. Tem-se assim, com os novos moradores da região de São Pedro uma população politicamente ativa desde o surgimento dos bairros e que, no entanto, manteve-se distanciada das novas políticas de saúde, com suas propostas de prevenção e atenção básica, de integralidade, de territorialização e hierarquização dos níveis de atenção, de cidadania participativa e de controle social. Mais do que uma questão de “informação” ou de “consciência cidadã”, esta distância apresenta, como veremos, todo um conjunto lógico “outro” de produção do corpo e da saúde. Este conjunto, por sua vez, só pode ser visualizado quando realocamos nossas próprias concepções modernas e cientificistas de corpo, saúde e doença como parte de um modo cultural específico que, segundo Duarte (1993), difundiu-se no Brasil privilegiadamente entre a classe média e a elite. Pensar a ciência e os valores modernos como parte de um processo cultural permite-nos, até certo ponto, escapar às armadilhas antropocêntricas da verdade científica e dos processos de modernização e compreender esses últimos em suas formas políticas de sobreposição, enquadramento e desqualificação dos grupos sociais que permaneceram à margem da modernidade. Deste modo, não nos propomos tentar compreender os usuários a partir de uma “lógica da falta”, na qual analisaríamos o que lhes falta em termos de informação, valores e hábitos. Tal lógica tem se mostrado invariavelmente um braço histórico de nossos etnocentrismos e de nossos modos evolucionistas de exclusão social. Ao invés disso, optamos pelo caminho mais duro e incerto da desconstrução interminável de nossas armadilhas, para tentar compreender as formas cotidianas como estes usuários produzem seus corpos, suas doenças, seus hábitos, suas relações sociais e suas relações com os serviços de saúde. AS CONSTRUÇÕES SOCIAIS DO CORPO E DA DOENÇA ENTRE OS USUÁRIOS DA UNIDADE DE SAÚDE DA FAMÍLIA – ILHA DAS CAIEIRAS Como já foi dito, no segundo semestre de 2006 começamos o trabalho junto à Unidade de Saúde da Família da Ilha das Caieiras, com a proposta de conhecer a população da Região da Grande São Pedro e levantar possíveis demandas para intervenções futuras. O trabalho se resumia em acompanhar as agentes comunitárias de saúde em suas visitas domiciliares, o 86 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA HIPERTENSÃO E DO DIABETES: dilemas da adesão medicamentosa ... G. B. Filgueiras; R. A. Pereira; e E. N. de Carvalho que nos permitiu entrar em contato com uma parte dos moradores dessa região. Nesses encontros percebemos que a administração de fármacos muitas vezes se diferenciava da maneira prescrita pelo médico e orientada pelas agentes comunitárias: “Começo a sentir uma pressão na nuca e sei que a doença tá vindo... aí já tomo logo um ou dois comprimidos... depende da pressão” (Adriana5, moradora hipertensa). A partir de alguns relatos como esse, resolvemos então pensar sobre os modos de compreensão e adesão ao tratamento medicamentoso por moradores dos bairros atendidos pela Unidade de Saúde. No início de 2007 decidimos focar o trabalho em usuários hipertensos e diabéticos, o que nos permitiria trabalhar com a exigência de implicação do usuário e cuidadores no tratamento da doença e com o que Caretta (2002), juntamente com outros autores da antropologia contemporânea, chama de “visibilidade sintomática”, onde “é possível observar alguns dispositivos acionados para caracterizar o evento doença, cuja gravidade é demarcada pelo surgimento de sintomas e sinais físicos” (CARETTA, 2002, 140). Além disso, essas doenças são focos privilegiados das políticas de saúde da família na região, envolvendo assim, estratégias periódicas e sistemáticas de intervenção – principalmente reuniões, palestras, panfletos informativos e visitas domiciliares. No decorrer do trabalho vimos a necessidade de expandir a noção de “tratamento medicamentoso” para “regime terapêutico” que, conforme os profissionais de saúde, envolve estratégias – como exercícios físicos, restrições alimentares, freqüência nas consultas e reuniões – que vão além da administração de fármacos. Portanto, a relação do usuário com o Regime Terapêutico é o foco de nosso trabalho. Um dos fatores que marca desde início os nossos encontros com os usuários é o lugar estratégico do remédio. Enquanto para os médicos os fármacos também devem ser administrados quando o usuário estiver com a pressão e taxa glicêmica controladas – como meio de prevenir possíveis alterações nessas taxas –, para os moradores, o remédio aparece como agente eliminador de sintomas. Aparece mancha roxa no rosto, a veia aqui em baixo do olho sobe... aí minha chefe me avisa, já sei que minha pressão tá alta... vou e tomo remédio... (Claudia, moradora hipertensa). 5 Os entrevistados deste trabalho são identificados por nomes fictícios, e a identificação segue a seguinte ordem: nome, condição no bairro e doença diagnosticada. Para este último aspecto seguiremos as classificações dadas pelos profissionais de saúde e assimiladas pelos entrevistados, especificando os casos nos quais as classificações médicas e as dos entrevistados não coincidem. Vale lembrar que a diferença entre as classificações médicas e as dos usuários entrevistados não será tomada aqui como uma relação entre “verdade” e “crença”, mas sim, como uma relação entre formas diferentes de invenção/ produção do corpo, da doença, do sujeito e da vida social. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 87 A visibilidade de sintomas é um evento antecedente que sinaliza a hora de intervir. A doença quando não colada ao plano físico/sensível muitas vezes não é percebida como um fenômeno relevante para o sujeito. Vimos que quando o sintoma não permanece presente, a hipertensão e o diabetes parecem deixar de fazer parte da vida do usuário, alterando inclusive o grau de implicação no tratamento dessas doenças: Não tenho paciência pra tomar, levar na bolsa, pensar nisso o dia todo... já fiquei até quatro meses sem tomar (Claudia, moradora hipertensa). A intensidade de sintomas é outro fator considerado na hora da medicalização, pois, quanto mais forte o sintoma maior deve ser a quantidade de remédios para “combatê-lo”. Minha mãe é doida... só toma remédio quando começa a sentir dor na nuca... quando a dor tá muito forte ela toma uns dois ou três comprimidos logo... o médico já disse pra ela... qualquer hora dessa aí ela pode ter um problema (Tatiana, moradora, neta e filha de hipertensas). A partir da importância dada à visibilidade e à intensidade do sintoma, podemos perceber o quanto a saúde e a doença são construídas por esses moradores a partir da dimensão densa e física do corpo, o que vai de encontro às estratégias que pressupõem uma lógica de prevenção e uma concepção mais abstrata da doença e do corpo. Nesse sentido, o remédio, ligado diretamente à fisicalidade da doença, parece ocupar um lugar de destaque no tratamento entre os moradores. Por outro lado, o remédio é questionado constantemente por esses moradores quanto ao caráter benéfico de sua ação no corpo. Os discursos dos entrevistados apresentam pelo menos dois motivos para esse questionamento. Primeiramente, o remédio pode ser considerado ruim ou danoso quanto aos seus efeitos colaterais. Há usuários que relatam que, com o uso dos remédios, sentem “fraqueza”, “sono”, “tosse” e “tonteira” 6. Nesse sentido, tanto o remédio quanto a doença, passam a ser associados a um enfraquecimento do corpo e à dificuldade na execução das atividades cotidianas. No começo foi difícil, porque me dava sono, aí... eu não conseguia trabalhar, eu trabalhava fora, me dava tonteira, muito sono... agora não. Tem um que eu tomava que me dava tosse. Agora não... já acostumei com todos (Alice, moradora diabética e hipertensa). 6 O discurso médico aponta para alguns efeitos colaterais que podem ocorrer no início do tratamento com anti-hipertensivos: cansaço, nariz entupido, secura na boca, alterações de humor, depressão, desconforto muscular ou cãibras nas pernas, diminuição do desejo sexual, inchaço das pernas e dos pés, tosse e dor de cabeça. 88 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA HIPERTENSÃO E DO DIABETES: dilemas da adesão medicamentosa ... G. B. Filgueiras; R. A. Pereira; e E. N. de Carvalho Para além do enfraquecimento do corpo, o remédio é também compreendido em alguns relatos como um agente “não natural”. Nesses casos, dependendo do tipo e da duração do tratamento, o medicamento pode ser visto como um causador de males ao organismo. Às vezes eu paro de tomar o remédio... paro porque não adianta ficar tomando muito assim, né... sempre (Olinda, moradora hipertensa). O remédio do mato não causa um problemão que o outro causa... às vezes você toma um remédio e prejudica com gastrite...demora um pouco mais pra fazer efeito, uns dois ou três dias, mas faz...se toma antibiótico demais, atinge o sangue, começa pelos órgãos vermelhos...se toma um chá de folha de algodão, tem antibiótico do mesmo jeito (Alice, moradora hipertensa e diabética). O uso de ervas é freqüentemente citado pelos moradores como um recurso terapêutico alternativo àquele oferecido pelos profissionais de saúde. Pau-ferro, vagem de feijão e pata de vaca são exemplos de “remédios do mato” que fazem a taxa glicêmica cair. Eu tava com a glicose em 4307... num tem a vagem, de feijão? Você pega, corta ela em um monte de pedacinho, aí ferve... Aí você toma depois aquela água sem sal, e sem nada... e depois come a vagem... fiz isso e minha glicose caiu para 160 (Elizeu, morador diabético). A construção social da doença e do recurso medicamentoso vinculado à visibilidade sintomática, ou ainda à relação direta com as atividades cotidianas e com o lugar de trabalhador pode ser encontrada em diversos estudos antropológicos tais como o de Duarte (1986), Guedes (1997), Nardi (1998), Carvalho (2001) e Caretta (2002), dentre outros. Como já foi dito, no trabalho de Caretta, a AIDS como doença, está atrelada ao surgimento de sintomas físicos através da tuberculose, fazendo assim com que o usuário privilegie essa doença em detrimento daquela aparentemente assintomática. Quando a sintomatologia é aparente (no caso, a tuberculose) e compromete a realização de atividades cotidianas, essa doença acaba se enquadrando melhor dentro da lógica de construção da doença própria aos grupos populares. De certa forma, isso também pôde ser observado entre os moradores que entrevistamos. Esse é o caso, por exemplo, de Dona Marieta e Dionísio – diagnosticados como hipertensa e diabético respectivamente – quando questionados sobre suas doenças: 7 Segundo a concepção biomédica, os valores considerados normais para a taxa glicêmica devem ficar entre 70 e 99mg/dl em jejum e abaixo de 140mg/dl 2 horas após a sobrecarga de glicose. Os sinais e sintomas do diabetes geralmente aparecem somente quando as glicemias estão muito elevadas (acima de 200mg/dl). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 89 Não tenho pressão alta, só tenho asma. (Marieta, moradora hipertensa). Eu trabalhei por 25 anos, aí me deu um problema no pé, aí tive que aposentar... e depois ainda veio a diabetes... Não dava pra fazer mais nada porque o coração não agüenta (Dionísio, morador diabético)8. A tuberculose, a asma ou o problema no pé são fenômenos que prejudicam a realização de atividades enquanto que a hipertensão e o diabetes não. Em seus relatos Dona Marieta nos apresentou uma série de estratégias para evitar ataques de asma, tais como “evitar usar perfume”, “lavar as paredes (devido à poeira)” e outros, deixando ausente a questão da hipertensão diagnosticada pelos médicos. A questão da alimentação é outro elemento de bastante relevância quando estudamos essa população. A dieta, para os médicos, é tida como um componente essencial na manutenção das taxas de pressão e glicose. Para os usuários esta é a intervenção terapêutica que gera mais dificuldade para ser seguida. Sempre que questionamos sobre as dificuldades que a doença proporciona, a alimentação é o primeiro ponto a ser lembrado. A restrição de alimentos, para os moradores, muitas vezes significa “fraqueza”, o que inclusive pode prejudicar em suas atividades corriqueiras. Assim, o alimento enquanto provedor de vitalidade, fonte de força e energia, quando alterado em sua qualidade e quantidade pode ser sinônimo de indisposição física, e de agravamento da doença: Continuo comendo de tudo... essas comidas que (os médicos) mandam a gente comer parece que não sustentam... eu preciso comer bem, senão não me sustenta. Esse negócio de comer folha e frango o dia todo num dá certo não... tenho que comer banha (Ilza, diabética e hipertensa). O médico passou uma dieta pra minha irmã quando ela adoeceu, a coitada só comia arroz, chuchu e frango. Carne de frango sustenta alguém? Aquela carne branca... minha irmã morreu de fraqueza... morreu de dieta (Marieta, moradora hipertensa). Esse negócio de dieta deixa a gente muito fraco, sem sustância (Leonardo, morador diabético). 8 O discurso médico sobre o diabetes relata como uma das complicações associadas a essa doença, a perda de sensibilidade nos pés, e a dificuldade de cicatrização nas extremidades dos membros, o que, em última instância pode acarretar amputação do pé. 90 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA HIPERTENSÃO E DO DIABETES: dilemas da adesão medicamentosa ... G. B. Filgueiras; R. A. Pereira; e E. N. de Carvalho A idéia de “sustância”, como demonstrada nos relatos, aparece na maioria dos discursos. O sujeito saudável muitas vezes é citado como aquele que é “gordo”, “forte” e “bem alimentado” enquanto o magro é tido como “fraco” e mais propenso à doença: Ela (filha) teve um problema... falavam que ela era louca... mas num era não. Ela foi internada no Adauto (hospital psiquiátrico) três vezes... quando ela voltava, ela voltava boa... forte, bonita, saudável, gorda... Da última vez, acabou que ela morreu lá... magrinha, magrinha... (Olinda, moradora hipertensa). Meu peso normal é 77 quilos... eu quando tava trabalhando lá, cheguei a perder 7 quilos, já tinha alguma coisa de errado... (Walter, morador diabético) O exercício é um componente do regime terapêutico que poucas vezes aparece nos discursos dos usuários como integrante desse regime. Somente uma moradora, neta de hipertensa que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), falou da importância dos exercícios físicos relacionando-os ao tratamento. O exercício, na maioria das vezes, aparece associado, por um lado, à aptidão para executar um trabalho e ao lugar de trabalhador (plano moral-relacional) e, por outro, à melhor circulação do sangue (plano físico-moral): Depois que ela teve esse problema (AVC), o médico disse pra sempre caminhar um pouco com ela... não é bom o sangue ficar muito tempo parado, né? (Tatiana, moradora, neta e filha de hipertensa). Antes de vim pra cá (Vitória) eu nunca tive doença não... Lá (na roça) era todo mundo forte... eu trabalhava muito... pegava na enxada... (Ilza, moradora diabética e hipertensa). É importante ressaltar que, ainda que influenciada pelos valores modernos, a questão do trabalho e do lugar de sujeito trabalhador remete, entre os entrevistados, aos jogos morais e relacionais locais e a toda uma compreensão indissociavelmente física e moral do corpo que resiste historicamente aos processos de modernização como nos mostra muito bem o trabalho de Duarte (1986). Nesse sentido, o corpo e a vida social se entrelaçam de tal maneira que os discursos sobre ser trabalhador, ser bom, ser forte e ser saudável aparecem freqüentemente de forma concomitante, da mesma forma que a doença vem associada a uma interrupção do trabalho e a um questionamento do sujeito em termos de sua força. Assim, para além de uma questão econômica e de sobrevivência, o trabalho e a saúde ocupam um lugar central nos jogos relacionais de prestígio. Ele era muito saudável... trabalhador... trabalhava muito no mangue... [...] Márcio, antes disso tudo... nossa! Era um homem bom! Trabalhou até na firma A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 91 da família D. Agora fica aí. Se eu saio ele passa fome o dia todo. Não toma banho... É igual a uma criança mesmo. (Olinda, moradora hipertensa mãe de Márcio, hipertenso). DILEMAS CULTURAIS ÀS POLÍTICAS CONTEMPORÂNEAS DE SAÚDE Nos encontros com os agentes comunitários e com os profissionais de saúde da USF-IC, os moradores lançam mão de um conjunto variado de estratégias de aliança, de confrontação, de esquiva e de recusa que está diretamente relacionado às discrepâncias e proximidades entre suas formas de construção do corpo e da doença e aquelas que compõem os discursos e práticas dos profissionais de saúde. Entre estes profissionais é comum atribuir o “uso errado” dos medicamentos à pobreza e à falta de informação. Como vimos, entretanto, não se trata somente de uma questão de “falta”. É preciso considerar também as diferenças qualitativas entre os usuários e profissionais de saúde no que se refere aos modos de construção social da pessoa, do corpo e da doença. Desta forma, as construções explicitadas pelos moradores da região de São Pedro não podem ser compreendidas única e exclusivamente a partir de uma racionalidade abstrata moderna onde a ciência e o Estado estabelecem “a” verdade ou “o” parâmetro, o que acaba por reduzir os demais mundos a um conjunto de “crendices” errôneas, isto é, a deformações e imperfeições do real. Trata-se antes de uma racionalidade outra que, dentre outras coisas, remete à questão da não-adesão medicamentosa a uma problematização mais ampla: a dos históricos esforços políticos de modernização do povo brasileiro – e, junto a isto, de desqualificação e enquadramento dos discursos e práticas que resistem a esta modernização. Os profissionais de saúde não estão distantes dos discursos e práticas que marcam boa parte das produções intelectuais brasileiras e que nos acompanham com várias caras e nomes ao longo do século XX – “purificar a raça”, “civilizar o povo”, “desalienar a classe dominada”, “conscientizar as massas”, “capacitar o indivíduo para o mercado de trabalho”, “empoderar”, “cidadanizar”... Encontramos nestas e em outras formas as mais variadas, socialistas ou capitalistas, o nosso resquício iluminista a partir do qual a luz da razão traz consigo a capacidade quase mágica de transformar o sujeito e o seu mundo, desbravando a escuridão e fazendo brotar, como que por geração espontânea – como um caminho natural e um tanto cristão da essência humana em direção à “verdade” –, uma nova ordem. Não se quer dizer aqui que não haja violências a serem combatidas ou que não haja intervenções importantes a serem sustentadas e potencializadas. Também não se trata de desconsiderar os investimentos já existentes no campo das políticas de saúde em busca da negociação e da compreensão da linguagem dos usuários. Trata-se, neste trabalho, de uma tentativa de mostrar que, no esforço de melhorar o mundo do outro, cai-se freqüentemente 92 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA HIPERTENSÃO E DO DIABETES: dilemas da adesão medicamentosa ... G. B. Filgueiras; R. A. Pereira; e E. N. de Carvalho em armadilhas antigas de desqualificação deste outro. Mais do que uma questão de linguagem, tais armadilhas reproduzem violências históricas em nome da expansão e sobreposição do mundo moderno. Elas são, antes de mais nada, dispositivos numa guerra de mundos. Imbuídos de um “projeto de cidadanização”, os profissionais de saúde apostam geralmente na estratégia de intervenção mais utilizada em nossas políticas sociais contemporâneas: dar palestras, informar, conscientizar e sensibilizar. Em meio a isto, defrontam-se com uma parcela de moradores que resistem e persistem com formas de construção do sujeito, do corpo e da vida social coerentes em sua lógica e historicamente consistentes; moradores que aprenderam a dizer o que os profissionais querem ouvir, compondo com estes alianças e cumplicidades; mas que aprenderam também a separar o saber da ciência do saber da experiência sem descartar um ou outro. Nesse encontro dos mundos a estratégia da “conscientização” – quando repleta das lógicas científicas e cidadanizadoras que a fundamentam – já traz para esses moradores os discursos aceitáveis e o campo restrito de negociações possíveis. Mais do que fazer brotar magicamente uma nova ordem, “conscientizar o outro” é uma ferramenta política de sobreposição/desqualificação dos mundos, de delimitação dos territórios legítimos e de exclusão dos territórios outros. REFERÊNCIAS ANDREATA, Graça. Na lama prometida, a redenção. São Paulo: O Recado, 1987. 190 p. CARETTA, Marta Inês B. A construção social da pessoa e da perturbação no contexto da AIDS: um estudo de caso. Cadernos do IPUB, Rio de Janeiro, v.8, n. 21, p. 131-151, ago/set 2002. CARVALHO, Emílio Nolasco de. A reforma, as formas e outras formas: estudos sobre construções sociais da pessoa e da perturbação em um serviço de saúde mental. Rio de Janeiro, 2001. 199 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. COSTA, Samira Lima da. Memória social na Ilha das Caieiras, em Vitória – ES: os sentidos da comunidade. Rio de Janeiro. 226 f. Tese (Doutorado em Ecologia Social e Psicossociologia de Comunidades) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007 (no prelo). DUARTE, Luiz Fernando Dias; BARSTED, Leila Linhares; TAULOIS, Maria Rita; GARCIA, Maria Helena. Vicissitudes e limites da conversão à cidadania nas classes populares brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 8, n. 22, p. 5-19, jun. 1993. DUARTE, Luiz Fernando Dias. Da vida nervosa – nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Zahar/CNPq, 1986. 290 p. GUEDES, Simone Lahud. Jogo de corpo: um estudo de construção social de trabalhadores. Niterói: EDUFF, 1997. 355 p. NARDI, Henrique Caetano. Ethos masculino e adoecimento relacionado ao trabalho. In: DUARTE, L. F. D. (org.) Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Editora da FIOCRUZ, 1998. p. 116-122. A SAÚDE DO TRABALHADOR DA SAÚDE: O QUE ISSO TEM A VER COM O USUÁRIO DO SUS? Tiago Carlos Zortéa 1 Diego Fernandes Souza 2 Tullio Cezar de Aguiar Brotto 2 Jeff Emmanuel Costa Firmino 2 Elizeu Batista Borloti 3 Desde sua criação, no artigo 198 da Constituição Federal de 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) vem passando por avaliações e reformulações em sua estrutura. A lei de nº. 8.080 de 19 de setembro de 1990 dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá, ainda, outras providências. Esta mesma lei prevê como diretrizes básicas do SUS a descentralização e o atendimento integral do usuário, com prioridade para as atividades preventivas do adoecimento, preconizando aspectos biológicos, psicológicos e sociais da pessoa, além da participação da comunidade no próprio sistema (BRASIL, 1990). Em todos os campos da saúde esta previsão é válida. Por exemplo, no campo da saúde do trabalhador, o parágrafo 3º do artigo 6º desta lei lista a execução de ações do SUS, e conceitua este campo, para fins desta lei, como [...] um conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho (BRASIL, 1990). Vê-se que esta lei acompanhou uma área em transformação. O fato de antes ser “medicina do trabalho”, posteriormente ser “saúde ocupacional” e, no momento atual, ser “saúde do trabalhador” mostra que a área não tem como objeto um fenômeno isolado e datado. Ela lida com um processo impulsionado por lutas sociais e políticas. O objeto da Saúde do Trabalhador tem hoje uma dimensão maior e mais complexa, representando um esforço no sentido de compreender o processo saúde e doença do homem em sua relação com o trabalho (MENDES & DIAS, 1991). 1 2 3 Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) do curso de Psicologia da UFES. Estudantes do curso de graduação em Psicologia da UFES. Professor do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. 94 A SAÚDE DO TRABALHADOR DA SAÚDE: o que isso tem a ver com o usuário do SUS? T. C. Zortéa; D. F. Souza; T. C. A. Brotto; J. E. C. Firmino; e E. B. Borloti Apesar do parágrafo 3º, citado acima, mencionar apenas as “condições de trabalho” como potencialmente geradoras de riscos e agravos à saúde do trabalhador, é pertinente fazer uma distinção entre as condições e a organização do trabalho. As condições do trabalho referemse especificamente aos estímulos do local do trabalho, ou seja, a tudo aquilo que pode afetar a saúde física do trabalhador: ruídos excessivos, temperaturas inadequadas, vibrações ou outros. Já a organização do trabalho diz respeito à relação capital-trabalho, “[...] à divisão técnica e social do trabalho - à hierarquia interna dos trabalhadores, ao controle por parte da empresa, do ritmo e pausas do trabalho e padrão de sociabilidade interna [...]” (COHN & MARSIGLIA, 1994, p. 71). A organização do trabalho afeta a saúde do trabalhador em uma dimensão diferente daquela descrita como sendo das condições de trabalho, podendo ocasionar sofrimentos generalizados. No caso da área da saúde, tanto as condições quanto a organização do trabalho incidem no sofrimento específico e generalizado dos profissionais da saúde responsáveis pela ação genérica de “cuidar”. Rabow et al (2004, apud REZENDE et al, 2005) deixaram clara a mescla entre condições e organização do trabalho de cuidadores de usuários do SUS: a dedicação de longos períodos de tempo ao usuário expõe a saúde física e mental do cuidador a riscos, o que culmina com desgaste físico e emocional. Pensando sobre a organização do trabalho nesta dimensão ampla, e potencialmente danosa à saúde do trabalhador, estudos apontam que os profissionais da saúde estão propensos a níveis altos de ansiedade, depressão e estresse, devido ao contexto de trabalho onde estão inseridos, no qual a forma de funcionamento gera excessivas demandas que imprimem cobranças ao profissional comprometendo sua saúde, bem como seus serviços prestados aos usuários do SUS (BORLOTI et al, 2005). Além de todas essas situações que podem envolver profissionais da saúde, há ainda as contingências relacionadas à questão de gênero. A Organização Mundial da Saúde, num relatório publicado em 2001, aponta que as mulheres são mais propensas ao desenvolvimento de transtornos de ansiedade e de humor, dado o processo histórico de estigmatização sobre os papéis sociais por elas desempenhados e que, até hoje, num grau ainda considerável, se mantém (OMS/OPAS, 2001). Considerando que o papel social de cuidar recai, na maioria das vezes sobre as mulheres, é possível pensar que as condições e a organização do trabalho no SUS acarretam mais agravos à saúde das mesmas. Referindo-se às dificuldades enfrentadas pelos profissionais de saúde, a cartilha do Programa Nacional de Humanização (PNH), em sua segunda edição, escreve assim: A falta de equipamento/material adequado ou outros aspectos das condições e do processo de trabalho faz com que muitos trabalhadores “adoeçam”. O estresse devido ao trabalho realizado e às relações autoritárias tem ocasionado hipertensão e problemas psicológicos, como ansiedade e depressão (BRASIL, 2006, p. 28). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 95 Apesar da luta pela humanização das práticas de saúde já existir na pauta do movimento feminista desde a década de 1960, ganhando expressão no debate em torno da saúde da mulher (BENEVIDES & PASSOS, 2005), o processo de atenção à “saúde do trabalhador da saúde” somente conquistou um espaço maior com a implementação da Política Nacional de Humanização “Humaniza SUS”, em 2004, pelo Ministério da Saúde. No que diz respeito a essa política, tanto gestores quanto trabalhadores, e também os usuários do SUS são postos como alvo. No Documento Base para Gestores e Trabalhadores do SUS, publicado em 2004, o Ministério da Saúde descreve que “Por humanização entendemos a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores” (BRASIL, 2004). Essa política reconhece institucionalmente as dificuldades do trabalho no SUS, incluindo a ausência de condições ergonômicas favoráveis à saúde, a falta de uma ouvidoria para as queixas dos trabalhadores e as conseqüências destas para o usuário do SUS. Nesse documento base, que institui oficialmente o “Humaniza SUS”, o Ministério da Saúde entende que “tem a responsabilidade de ampliar esse debate, de sensibilizar outros segmentos e, principalmente, de tornar a humanização uma política pública de saúde” (BRASIL, 2004). Entretanto, em muitas instituições públicas de saúde, essa política ainda não foi implantada. Quando instalada, sua efetividade mostrou-se precária no que diz respeito à assistência às demandas dos trabalhadores do SUS. Oliniski & Lacerda (2004, p. 46), discutindo a dinâmica do trabalho em saúde, afirmam que “[...] o trabalho em saúde acabou por perder seu significado de ajuda, recuperação, restauração da saúde, para tornar-se apenas uma prestação de serviço mecânica e massificada, esvaziada de conteúdo e valores humanos”. Estas autoras alegam que uma das explicações possíveis a esta perda de significado do trabalho em saúde são as “características peculiares do ambiente de trabalho em saúde e o tipo de relacionamento estabelecido neste contexto” (p. 46). Destacam que as relações interpessoais desenvolvidas nesse ambiente configuram-se muitas vezes de formas “[...] destrutivas, não favorecendo a auto-estima” (p. 46), podendo este padrão de relacionamento estender-se a colegas de trabalho e, até mesmo, familiares de usuários. A relação entre isso e os agravos à saúde geral é mais evidente no hospital, “um ambiente insalubre, penoso e perigoso para os que ali trabalham” (AQUINO, 1993 apud ELIAS & NAVARRO, 2006, p. 518). Segundo Aquino (1993 apud ELIAS & NAVARRO, 2006, p. 518) há 16 anos, Pitta já denunciara este fato em relação à saúde mental, especialmente na ocorrência de transtorno de ansiedade e de humor (depressão), tão freqüentes entre as auxiliares de enfermagem. As condições e a organização do trabalho no SUS permitem uma análise funcional desses transtornos. Ansiedade, por exemplo, é definida por Rezende et al como “um estado de alerta, que amplia o estado de atenção diante de uma situação de perigo real ou imaginário. (2005, p. 738)”. Quando patológica, caracteriza-se por “nervosismo persistente, tremores, tensão muscular, transpiração, sensação de vazio na cabeça, palpitações, tonturas e desconforto epigástrico” (OMS/CID-10, 1997), sendo desproporcional à situação que a desencadeia ou 96 A SAÚDE DO TRABALHADOR DA SAÚDE: o que isso tem a ver com o usuário do SUS? T. C. Zortéa; D. F. Souza; T. C. A. Brotto; J. E. C. Firmino; e E. B. Borloti não direcionada a uma situação específica (DUGAS & LADOUCEUR, 2003). Considerando este exemplo, as condições e a organização do trabalho no SUS permitem um questionamento acerca dessa “desproporcionalidade”, uma vez que podem ser entendidas como possíveis “situações específicas” eliciadoras de ansiedade. Borloti et al (2005) destacaram o contato com a agonia e morte de usuários e com o sofrimento e agressividade de familiares como possíveis fatores ansiogênicos que fazem parte da realidade diária dos profissionais de saúde do SUS. O impacto da morte dos usuários sobre a saúde mental dos profissionais de saúde, entretanto, deve ser mais bem investigado já que “pouco se conhece sobre o estado psicológico do cuidador principalmente no período que antecede a morte do paciente” (REZENDE et al, 2005, p. 738). Estudos desse tipo são relevantes, já que aqueles que cuidam têm se tornado aqueles a serem cuidados; ou seja, os profissionais do SUS acabam se tornando usuários do SUS, especialmente pela ocorrência gradativa de sintomas de ansiedade e depressão. “Esse efeito, além de perverso sob o ponto de vista social, acaba por sobrecarregar o sistema público de saúde.” (AGÊNCIA USP DE NOTÍCIAS, 2005). Quando as situações ansiogênicas permanecem inalteradas a depressão pode advir. Ela é diagnosticada quando o profissional de saúde [...] apresenta um rebaixamento do humor, redução da energia e diminuição da atividade. Existe alteração da capacidade de experimentar o prazer, perda de interesse, diminuição da capacidade de concentração, associadas em geral a fadiga importante, mesmo após um esforço mínimo. Observam-se em geral problemas do sono e diminuição do apetite. Existe quase sempre uma diminuição da autoestima e da autoconfiança e freqüentemente idéias de culpabilidade e ou de indignidade, mesmo nas formas leves. (OMS/CID-10, 1997) Novamente, as condições e a organização do trabalho no SUS permitem, em conjunto, uma análise funcional do sentimento de indignidade que pode acompanhar estados de ansiedade e de humor depressivo em profissionais de saúde. Relações de poder hierarquizadas e instáveis devido à ingerência governamental ou às constantes trocas de gestores são marcadas pela ausência de repertório de habilidades sociais de enfrentamento de usuários, familiares, gerentes e, até mesmo, colegas de trabalho agressivos. Tudo isso torna o stress presente no cotidiano do trabalho em saúde. Desta maneira, o SUS, da forma como está, configura um amplo contexto que pode irritar, amedrontar, excitar ou confundir os trabalhadores, gerando as alterações psicofisiológicas que definem o stress (LIPP & MALAGRIS, 2001, p. 477). Costa & Lima (2003, apud OLINISKI & LACERDA, 2004) corroboram esta afirmação ao elencar como fatores geradores de stress no ambiente hospitalar de trabalho “a organização, administração e o sistema de trabalho, e as relações humanas existentes nesse contexto” (p. 47). Junto a estes fatores, Oliniski & Lacerda (2004) também discutem a possibilidade do profissional de saúde ser submetido ao assédio moral por parte de gestores da saúde ou A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 97 de outros profissionais em níveis mais altos da hierarquia no trabalho, destacando o efeito cumulativo de um modo de relacionamento interpessoal que pode culminar em agressão. “O termo moral é utilizado para designar a importância da humilhação e da falta de respeito envolvidas. Os sentimentos mais comuns produzidos pelo assédio moral são os seguintes: maltrato, desprezo, humilhação e rejeição” (OLINISKI & LACERDA, 2004, p. 47). Quanto a isto, Malagris e Fiorito (2006) enfatizam que [...] conflitos relacionados à liderança autoritária ou falta de autoridade, incompatibilidades, limites não muito claros, desumanização no trabalho, mecanização e burocratização, pressões e excesso de trabalho podem contribuir para insatisfações individuais e falta de realização pessoal e profissional (p. 394). Considerando tais pressupostos, este estudo visa avaliar sintomas de stress, depressão e ansiedade em trabalhadoras da saúde no SUS e discutir os impactos desses sintomas no atendimento aos usuários do SUS. O trabalho também discute criticamente, a partir dos dados desta avaliação, a humanização do serviço público de saúde. MÉTODO A amostra deste estudo foi composta por 133 trabalhadoras do SUS (idades variando de 23 e 64 anos), funcionárias de dois hospitais públicos da Grande Vitória, um de atendimento pediátrico e outro de atendimento adulto, que responderam aos itens de três instrumentos de avaliação psicológica reconhecidos pelo Conselho Federal de Psicologia. A aplicação dos instrumentos ocorreu em assembléias de funcionárias4, o que caracteriza a amostra como sendo de conveniência. Os dados foram colhidos no período que se estendeu do segundo semestre de 2005 ao primeiro semestre de 2007. O presente estudo tem caráter quantitativo. Os instrumentos de coleta de dados foram o ISSL (Inventário de Sintomas de Stress para Adultos de Lipp), o BDI (Inventário de Beck para Depressão) e BAI (Inventário de Beck para Ansiedade) que investigam stress, depressão e ansiedade, respectivamente. Os três inventários têm questões voltadas a sintomas, quantificadas em uma medida escalar. O ISSL “visa identificar de modo objetivo a sintomatologia que o paciente apresenta, avaliando se este possui sintomas de stress, o tipo de sintoma existente (se somático ou psicológico) e a fase em que se encontra” (LIPP, 2000, p. 11). Baseando-se no modelo 4 Trata-se do processo de seleção do público-alvo do Projeto de Extensão Universitária “Grupo de Apoio a Mulheres de dois hospitais públicos da Grande Vitória”, que teve como objetivo prestar atendimento psicológico às trabalhadoras da saúde na abordagem cognitivo-comportamental. 98 A SAÚDE DO TRABALHADOR DA SAÚDE: o que isso tem a ver com o usuário do SUS? T. C. Zortéa; D. F. Souza; T. C. A. Brotto; J. E. C. Firmino; e E. B. Borloti quadrifásico (derivado do modelo trifásico anterior de stress de Selye) permite identificar o stress em quatro fases de progressão: Alerta – fase positiva do stress; Resistência – fase em que há uma tentativa pessoal de lidar com os estressores; Quase-Exaustão – persistência dos estressores; e Exaustão – quando os estressores estão tão intensos que podem acometer gravemente órgãos mais vulneráveis (LIPP, 2000, p. 9-10). O BDI foi desenvolvido como uma “escala sintomática de depressão”, enquanto o BAI “mede a intensidade dos sintomas de ansiedade” (CUNHA, 2001, p. 4 e 5). Ambos, BDI e BAI, constituem escalas de auto-relatos, contendo 21 itens. O BDI classifica os sintomas de depressão em quatro fases: Mínima ou Ausente, Leve, Moderada e Profunda. A classificação do BAI é semelhante, sendo as fases: Mínima, Leve, Moderada e Grave. Cada item representa um sintoma, sendo que cada um desses é descritível em quatro graus crescentes de severidade dos sintomas, sendo a variação da pontuação de 0 a 63. (CUNHA, 2001, p. 4-5). As 133 participantes foram submetidas aos inventários ISSL e BDI e 99 delas foram submetidas ao BAI. É preciso ressaltar que não se objetivou realizar uma avaliação psicológica geral dessas funcionárias, dado que esta se constitui em um processo muito mais complexo que inclui uma análise funcional do comportamento no trabalho que extrapola a aplicação de inventários. Consideramos assim que os resultados que aqui serão explanados se caracterizam como indicadores de processos amplos e multifatoriais, sendo que sobre esses indicadores serão analisados seus possíveis efeitos para essas trabalhadoras e para os usuários que estão sendo atendidos por elas. RESULTADOS E DISCUSSÃO A amostra de 133 de mulheres funcionárias de dois hospitais, submetidas aos inventários supracitados, apresentou resultados que sugerem uma situação preocupante. Já foram discutidos na introdução os muitos fatores que podem ter levado este grupo a desenvolver sintomas de stress, ansiedade e depressão, e como isto pode comprometer sua saúde física, como, por exemplo, que o stress é um estado de tensão exagerada podendo levar a ocorrência de doenças devido a uma redução no sistema imunológico (LIPP, 2000, p. 21). Das 133 participantes da presente pesquisa, 23,7% não apresentaram stress, 7,6% encontraram-se na fase de Alerta, 47,3% na de Resistência, 18,3% na de Quase Exaustão e 3,1% na de Exaustão. Considerando os achados acima, a porcentagem encontrada na população investigada, referente às fases de Resistência à Exaustão é de 68,7%; 14,7% acima do esperado, visto que, de acordo com os critérios de validação do ISSL, este valor deveria estar em torno de 54%. Nos resultados encontrados para o BDI (depressão), das 133 participantes, 34,1% encontraram-se na fase Mínima, 36,4% na fase Leve, 24,2% na fase Moderada e 5,3% na fase Profunda. A média e o desvio-padrão da amostra foram de 15,5 e 8,87, respectivamente. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 99 A validação deste inventário com uma amostra de funcionários não-clínicos de um Hospital Geral indicou média igual a 6,09 e desvio-padrão de 5,21.5 Portanto, as participantes informaram índices muito acima do esperado para a população de comparação. Novamente, os dados acerca da depressão também são preocupantes. Das 99 participantes submetidas ao inventário BAI (ansiedade), 33,7% encontraram-se na fase Mínima, 28,6% na fase Leve, 28,6% na fase Moderada e 9,9% na fase Grave. A média e o desvio-padrão foram de 16,44 e 10,7, respectivamente. Segundo os critérios de avaliação presentes no manual do BAI, para funcionários de Hospital Geral, parte da população nãoclínica estudada no desenvolvimento do inventário, a média e o desvio-padrão correspondem a 5,10 e 3,95, respectivamente.6 De novo, os números são indicadores de processos agravantes da saúde das trabalhadoras participantes. Os dados descritos apontam um índice médio de stress, depressão e ansiedade acima dos índices apresentados pela população geral estudada para a padronização dos instrumentos psicométricos utilizados. Diante dos dados obtidos, notamos a ocorrência de um alto índice de stress, depressão e ansiedade nesses ambientes de trabalho no SUS, que se apresentam como um contexto aversivo, onde a demanda da população supera a oferta e disponibilidade de mão-de-obra encontrada. Ainda que a intensidade seja uma característica do modo de trabalhar no capitalismo atual, o contexto aversivo do trabalho de uma profissional de saúde num hospital do SUS tem a especificidade de ser constante, caracterizando o cuidado com a vida do usuário e o contato com o risco de que esse usuário venha a falecer. O conjunto destes fatores, somados às atribulações da vida diária dessas mulheres, contribuem de forma significativa para que os sintomas avaliados pelos inventários ocorressem com a freqüência medida. Tais sintomas, ao mesmo tempo em que podem estar sendo produzidos pelo trabalho, podem também interferir de modo significativo no atendimento que essas trabalhadoras prestam à população, nas relações que elas estabelecem com os gerentes das unidades e setores de trabalho e com os demais membros de sua equipe. Assim, o desempenho efetivo de suas funções pode ser prejudicado, visto que podem fazer com que o trabalhador torne-se mais vulnerável a doenças ou, em casos mais graves, torne-se impossibilitado de trabalhar. A literatura sobre stress (HANDY, 1978 apud LIPP & MALAGRIS, 2001) ressalta que no trabalho, o stress pode levar a irritabilidade, hipersensibilidade, pressões do grupo, dificuldades de comunicação, absenteísmo, baixa auto-estima, dentre outros sintomas que, na verdade, acentuarão o stress do indivíduo, pois podem trazer prejuízos para o seu desempenho 5 6 Vide Tabela A.3 BECK (2001, p. Vide Tabela A.3 BECK (2001, p. Médias e desvios-padrão dos grupos não-clínicos do Manual da versão em português das ESCALAS 88). Médias e desvios-padrão dos grupos não-clínicos do Manual da versão em português das ESCALAS 88). 100 A SAÚDE DO TRABALHADOR DA SAÚDE: o que isso tem a ver com o usuário do SUS? T. C. Zortéa; D. F. Souza; T. C. A. Brotto; J. E. C. Firmino; e E. B. Borloti que se constituirão em mais fontes de stress. Sendo assim, questionam-se: como proceder ao atendimento ao usuário do SUS tendo irritabilidade e dificuldades de comunicação, efeitos dos impactos de estressores diversos, por exemplo? Como esperar que as diretrizes básicas de funcionamento do sistema de saúde pública sejam efetivadas com índices de stress que interferem no trabalho de forma significativa? Além disso, novas questões surgem neste âmbito: onde estão as intervenções propostas pela Política Nacional de Humanização nestes três anos? Quais contingências têm surgido no impedimento destas proposições? Junto a essas interferências do stress na vida dessas funcionárias, ressalta-se o desconforto de sintomas da ansiedade tais como apreensão, dificuldade de concentração, tensão motora, incapacidade de relaxar, preocupações e outros mais que contribuem para o sofrimento das trabalhadoras desses hospitais. É preciso relembrar que no Documento Base para Gestores e Trabalhadores do SUS, publicado em 2004, o Ministério da Saúde descreve a humanização como “a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores” (BRASIL, 2004). Mediante esta afirmação é necessário questionar como tem se dado esta valorização dos trabalhadores e quais são seus resultados. A cartilha de humanização propõe estratégias, tal qual “a promoção de ações que assegurem a participação dos trabalhadores nos processos de discussão e decisão, fortalecendo e valorizando os trabalhadores, sua motivação, o autodesenvolvimento e o crescimento profissional” (BRASIL, 2004). Infelizmente, a proposição de fortalecimento, motivação e autodesenvolvimento se contrastam, nestes hospitais estudados, com altos índices de stress, depressão e ansiedade, abarcando seus sintomas, sofrimento e interferência no desempenho do trabalho e no atendimento à população. A criação de um espaço de discussão de reivindicações dessas trabalhadoras deveria volver a atenção para os aspectos que têm contribuído para a produção desses efeitos sintomáticos de ansiedade, depressão, e stress. Entender como se dá o funcionamento dessas contingências se constitui peça fundamental para a construção de proposições de intervenção neste ambiente, para que os efeitos sejam modificados, tanto nos trabalhadores como naqueles que se utilizam do serviço público de saúde. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como ressaltam Elias e Navarro (2006) “se a saúde só é possível a partir da possibilidade real de cuidar de si e de usufruir a vida, esse fato parece difícil de ser alcançado por quem trabalha no hospital” (p. 523). Entretanto, se hospitais gerais existem (e sempre existirão) por serem essenciais aos serviços do SUS no nível da recuperação da saúde, a saúde do cuidador que atua no hospital deve ser algo possível de ser alcançado, apesar de difícil. Obviamente, os resultados das aplicações dos inventários revelam sinais de que algo não está muito bem, e este algo precisa ser assistido. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 101 A idéia de que o profissional da saúde está imune aos problemas de saúde (quem não se lembra do dito popular “médico, cura-te a ti mesmo”?) declina diante dos dados alarmantes sobre os sintomas de depressão, stress e ansiedade vivamente presentes na amostra de trabalhadoras do SUS que compôs este estudo. Se a saúde está ligada à liberdade, o trabalho no hospital, privando a liberdade, conduz o trabalhador à doença (ELIAS & NAVARRO, 2006). Restaurar o direito à saúde das profissionais que trabalham nos hospitais é uma necessidade e o processo pode se iniciar por desnaturalizar o cuidado com o outro, atribuindolhe um novo estatuto, nem feminino e nem, por isto, desvalorizado. Assim pode-se dizer que permanece o desafio de garantir que os avanços políticos obtidos até hoje, entre eles a atenção à saúde dos trabalhadores do SUS pelo SUS, saiam definitivamente do papel e sejam incorporados, de fato, ao cotidiano dos trabalhadores de um modo geral e em particular dos trabalhadores e das trabalhadoras da saúde. Os dois maiores beneficiários são os próprios trabalhadores e a população usuária do seu serviço. REFERÊNCIAS AGÊNCIA USP DE NOTÍCIAS. Falta de suporte social aumenta a sobrecarga de cuidadores de idosos com doenças psiquiátricas. Boletim nº 1570, Publicado em 21/02/2005. São Paulo. Disponível em: <http://www.usp.br/agen/repgs/2005/pags/023.htm> Acesso em 11 de ago. 2007. BENEVIDES, R. & PASSOS, E. Humanização na Saúde: Um Novo Modismo? Rev. Comunicação, Saúde e Educação, v.9, n.17, p.389-406, mar/ago 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/ pdf/icse/v9n17/v9n17a14.pdf>, Acesso em: 03 abr. 2007. BORLOTI, E. B.; BAPTISTA, L. G.; MACIEL, M. 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APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS NA IMPLEMENTAÇÃO DE RESIDENCIAS TERAPÊUTICAS Francisco de Assis Lima Filho 1 Maria Inês Badaró Moreira 2 ESPAÇOS DE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA Desde que a saúde foi reconhecida como direito de todos e dever do Estado, que a saúde pública vem imprimindo fortes mudanças em suas políticas. Políticas essas que deveriam estar voltadas para “redução do risco de doença, e de outros agravos”, e “acesso universal e igualitário, às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Isso por sua vez caracteriza o Sistema Único de Saúde (SUS) como um sistema organizado em torno de três diretrizes conceituais básicas: a descentralização, como direção única em cada esfera do governo; o atendimento integral; e a participação da comunidade (MATTOS, 2006). No caso das ações em saúde mental, a Lei Federal 10.216 redireciona sua assistência, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, dispondo sobre a proteção e os direitos das pessoas com sofrimento psíquico, mas não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios, adotando mais concretamente a política de redução de leitos. É necessário notar ainda que a partir dessa lei, a internação somente entrará em vigor quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. (BRASIL, 2004). Dessa maneira, com a política de redução de leitos, torna-se necessária a criação de serviços que se configurem como alternativa à lógica hospitalocêntrica anterior. Trata-se de construir serviços que possam garantir uma atenção básica em saúde mental, onde os direitos e a cidadania dos antigos moradores de hospitais psiquiátricos sejam devolvidos a eles. Tais moradores são retirados de uma vida enclausurada, com suas dinâmicas sociais e passam a fazer parte de um universo muito mais amplo – o viver na cidade. Na busca de alternativas à institucionalização como única resposta social ao louco e à loucura, opções possíveis à substituição dessa lógica na atenção a saúde mental são os serviços substitutivos, tais como os Centros de Atenção Psicossocial (C.A.P.S.) e os Serviços Residenciais Terapêuticos, sendo estes últimos instituídos pela portaria GM nº 106/2000. Juntamente com esses serviços surge a necessidade de fortalecimento e criação de “redes sociais” que possam “sustentar” esses novos serviços e que funcionem de modo efetivo e em adequação à realidade 1 2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES; Professora - FAESA. 104 Apropriação dos Espaços Sociais na Implementação de Residências Terapêuticas F. A. L. Filho e M. I. B. Moreira local, estruturados de acordo com a demanda, contribuindo assim para a expansão e consolidação de uma rede de ações e serviços substitutivos às práticas hegemônicas. Reduzir leitos e superar a condição cronificante de “moradores do hospital” a que muitos pacientes foram relegados implicou a formação de alternativas de moradias para os futuros egressos, seja pelo suporte requerido para garantir sua permanência fora do hospital, seja pela dificuldade de reinserção familiar (FURTADO, 2006). RESIDÊNCIAS TERAPÊUTICAS E RESIDÊNCIAS TERAPÊUTICAS NO ES Segundo Furtado (2006) surgem no Brasil, no início dos anos 90, iniciativas pioneiras de estruturas residenciais extra-hospitalares, voltadas para a reinserção dos “internos” de longa data no espaço urbano e na comunidade. Tais residências correspondem aos atuais Serviços Residenciais Terapêuticos (S.R.T.s)., nomenclatura freqüentemente questionada por razões diversas, mas assim estabelecida para justificar sua inserção no Sistema Único de Saúde, sobretudo no que concerne aos termos “serviços” e “terapêuticos”. As residências terapêuticas constituem-se como alternativas de moradia para um grande contingente de pessoas que estão internadas há anos em hospitais psiquiátricos por não contarem como suporte adequado na comunidade. Trata-se de casas localizadas no espaço urbano, mais especificamente em bairros aonde a dinâmica social da cidade acontece mais intensamente. O número de moradores dessas residências pode variar de um até o máximo de oito indivíduos. Deve-se levar em conta a singularidade de cada um dos moradores, e não apenas projetos e ações baseadas no coletivo dos moradores (BRASIL, 2004). No Estado do Espírito Santo foram inauguradas duas residências terapêuticas em Outubro de 2004 e mais três em Fevereiro de 2006, todas sob gestão estadual. Desde o funcionamento das duas primeiras residências, até a inauguração das outras três, 37 pessoas já deixaram de morar no hospital e passaram a levar suas vidas na comunidade, nos serviços residenciais. Pode-se dizer que o morador que passa a viver em uma casa como essa experimenta uma dupla inserção: é usuário de um serviço de saúde, recebe a assistência, os cuidados terapêuticos do profissional e, ao mesmo tempo, é um indivíduo que, na casa, deve resgatar as forma de morar, imprimir sobre ela significados decorrentes de experiências, ritmos próprios e ser um morador da casa e da cidade. Os moradores, em alguns momentos, precisam de algum suporte para retomar suas vidas neste novo espaço; em outros, relacionam-se entre si, com os técnicos e com o espaço de sua nova morada como “donos” da casa, com um elevado nível de apropriação e cuidado. É preciso considerar que esse atravessamento de lugares institucionais que se forma na base das relações estabelecidas cotidianamente nas moradias funda uma tensão, uma situação paradoxal que acaba por perpassar as formas como os moradores se inserem nestas residências e na cidade (WEYLER; FERNADES, 2005). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 105 Orientamos nosso trabalho em busca de conhecer e intermediar relações em diversos espaços de interação social entre os moradores dos chamados serviços residenciais terapêuticos no Espírito Santo e a comunidade em que vivem atualmente. A atividade iniciou-se na possibilidade de utilizarmos o espaço da Associação de Moradores, dos bairros em que as residências estão situadas. Este trabalho é inspirado na experiência de desinstitucionalização italiana desenvolvida por Basaglia e sua equipe (BASAGLIA, 1982) em que a cidade foi tomada pelas ações da saúde mental. Sob esta inspiração, buscamos conhecer, promover e experimentar novos espaços para intermediarmos possíveis encontros entre os cidadãos. Estas atividades de pesquisa e intervenção são etapas de trabalho que vem sendo desenvolvido junto aos moradores dos Serviços Residenciais Terapêuticos do Espírito Santo vinculados ao projeto Loucura e Cidade: ações em saúde mental para apropriação de espaços sociais (MOREIRA, 2005). Nesta perspectiva de promover espaço de encontros, forjou-se o espaço de “Oficinas Expressivas”, caracterizadas como espaço de construção de uma nova maneira de se relacionar com o louco e a loucura. Um espaço de trocas sociais entre cidadãos, bem como o encontro dos diversos protagonistas da cena social de um bairro. Configura-se aí também uma construção de “suportes” para os moradores das casas acompanhadas, para possibilitar inserções sociais no momento de transição de uma vida enclausurada no espaço hospitalar para uma dinâmica do viver na cidade por meio da mudança para a residência. Este espaço foi utilizado como um novo lugar para possibilitar inserções sociais para os moradores dos recentes serviços terapêuticos implantados, investindo na desconstrução de muros manicomiais existentes fora do Hospital Psiquiátrico. Assim, neste texto pretendemos relatar nossas experiências, referentes às considerações feitas acima, que ainda se encontram em andamento. O INÍCIO DO CAMINHO A partir do momento que iniciamos esse projeto, percebemos que a história da desinstitucionalização da loucura estava virando nova página. O cenário desatualizava algumas leituras sobre qual era o lugar do louco. O momento era de inauguração de casas para a população de “ex-internos” do hospital psiquiátrico estadual, os chamados Serviços Residências Terapêuticos (SRTs). Com isso, algumas preocupações já se mostravam: Como era a comunidade em que essas casas iriam se instalar? Como é a relação daquele grupo com o universo da “loucura”, já que no município, o Hospital Adauto Botelho (HAB) existe desde a década de 1950? Quem seriam os funcionários das casas? Como vêem essa “nova” forma de pensar a “loucura”? Na casa, a relação seria com moradores ou pacientes? Os SRTs poderiam se sustentar sem redes sociais, sem espaços de trocas sociais que permitissem uma forma de estabelecer uma nova contratualidade social? 106 Apropriação dos Espaços Sociais na Implementação de Residências Terapêuticas F. A. L. Filho e M. I. B. Moreira Diante deste caldeirão de questionamentos e preocupações acerca destas casas, certa ansiedade começou a aparecer ao mesmo tempo em que servia de motor para que começássemos a pensar em alguma possibilidade de intervir nessa nova situação. Com o passar do tempo, pudemos entender que somente com a instalação destas casas, pela movimentação nos novos espaços, pelo fluxo incessante do presente, pelo surgimento de novos problemas, que o inesperado e o imprevisível gerariam novas situações que poderiam refletir as trocas sociais e as novas redes de relações que ali estavam acontecendo. Inicialmente começamos a nos aproximar dessa realidade, conhecer os moradores, construir e fortalecer vínculos, assim como conhecer a região em que moravam, a Associação de Moradores, a padaria, o supermercado, a farmácia, enfim, nos aproximamos da comunidade em questão. Éramos uma espécie de “testemunhas oculares” das ruas. Aprendemos a cheirar o gosto da situação, a ouvir imagens, a ver sons. Precisávamos, de alguma maneira, fazer um pouco parte do que acontecia. Uma das coisas que começamos a perceber é que nosso trabalho deveria estar mais voltado para rua do que efetivamente para trabalhos a serem realizados dentro das casas. Obviamente que nas casas há questões e situações a serem elaboradas e revistas, mas nossa prioridade voltou-se a olhar para fora delas e buscar intervir no intermédio das novas relações que foram estabelecendo ao longo do nosso trabalho. Percebemos que não é suficiente tirá-los do Hospital Adauto Botelho e trazê-los para as casas, era necessário conseguir recursos para possibilitar a criação de novos problemas, era preciso apresentá-los aos espaços dentro da comunidade ou mesmo criá-los e ter o Centro de Atenção Psicossocial como um serviço de referência. Partimos em busca de incentivar uma nova forma de apropriação dos espaços urbanos. Existiam três questões evidentes que se tornaram eixos centrais de nosso plano inicial de ação: a necessidade de voltarmos o olhar para fora da casa, para construção de redes sociais que possibilitassem a sustentação dos moradores na comunidade; o resquício manicomial de ociosidade, e além disso, os moradores das residências disseram sentir falta da rotina em que viviam antes, das atividades que antes realizavam. OFICINAS EXPRESSIVAS E O SURGIMENTO DE NOVOS PARCEIROS Ao conhecer o município e por estarmos ali nas ruas, conhecendo as pessoas, os locais, etc, ouvimos a noticia que a Associação de Moradores do bairro de Santana estava abrindo espaço para realização de trabalhos comunitários. Assim conseguimos o próprio espaço da Associação de Moradores para realização de atividades, bem como a participação e apoio dos que ali estavam. Começamos a pensar as atividades que desenvolvemos como um meio “possibilitador”, comunicador, e não um fim. Para convocar a participação da comunidade partimos para a confecção de um modelo de cartaz de divulgação de uma “Oficina Expressiva”, oficina de trabalhos manuais. Nosso A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 107 “artifício - plástico” exigia dos participantes o envolvimento em um processo de criação, mas sobretudo, seria o meio para promoção de um lugar de encontro entre pessoas daquela comunidade. O convite a participar destas atividades na associação foi feito à comunidade por meio desses cartazes e aos moradores das casas que acompanhávamos, fizemos um convite direto e duas moradoras aceitaram nosso convite. Embora uma moradora da casa acompanhada tenha despertado olhares estranhos, percebemos que ela foi lentamente entrando no grupo. Pretendíamos realizar uma atividade em que todas as pessoas envolvidas aprendessem um oficio, algo que pudesse gerar renda, algo que pudesse ser utilizado como presente ou mesmo como enfeite. E também criamos um espaço de troca social, o que se mostrou posteriormente fundamental, até mais que a produção do artesanato. As participantes por vezes demonstravam pensar, respeitar, viver, sentir a loucura presente ali de outra forma. Percebemos que elas não se relacionavam com ela em um papel de “coitadinha” e muito menos num lugar que requer uma atenção exagerada, como uma pessoa diferente ou especial. Com o passar do tempo entre as participantes surgiu um interesse mútuo de se conhecer, sabiam onde moravam, chamavam-se pelos nomes. Revelaram que queriam conhecer, queriam entender e saber quem eram os novos moradores do bairro. Notamos que timidamente a loucura começou, mesmo que num pequeno espaço, com um número pequeno de pessoas, a se inserir na comunidade, por meio de suas histórias. Histórias que eram contadas entre uma investida artesanal, entre um objeto ou instrumento trocado, uma tesoura, cola, papel, madeira que intermediavam e testemunhavam outras trocas. Ao longo dessas atividades, pudemos constatar que nossa idéia inicial daquele encontro foi superada não só em sua dinâmica como também no plano da atividade plástica. Essas superações foram ganhando formas e alicerces a partir das opiniões e sugestões que as próprias moradoras indicaram e nos apontaram que poderiam ser realizadas. Uma das participantes que trabalha nesse ramo de atividades plásticas se tornou uma figura importante na medida em que participava e interagia com as outras, sugerindo e dando conselhos a respeito da “melhor” maneira de desenvolver a atividade. Essas atividades quando iniciadas, ainda através de oficinas de cunho artesanal, possuíam, entre outros, o desígnio de realizarmos atividades com o olhar mais voltado para fora das casas (SRTs). Pudemos perceber que tais espaços, permitiram trocas sociais com maior intensidade e a possibilidade de consolidação de um novo imaginário social, para construção de redes sociais que possibilitassem a sustentação dos SRTs e para a desconstrução da ociosidade, resquício manicomial constantemente presente nesses novos serviços. Certa vez, por exemplo, o local de realização das oficinas (A.M.S) não pode ser utilizado, pois o mesmo estava sendo usado para a realização de um velório. Em um determinado momento uma das moradoras disponibilizou a sua casa para que pudéssemos realizar a oficina, de alguma maneira uma das moradoras abriu as portas de sua casa para realização daquele tipo de atividade. Nos encontros havia o incentivo às moradoras que já tivessem 108 Apropriação dos Espaços Sociais na Implementação de Residências Terapêuticas F. A. L. Filho e M. I. B. Moreira terminado a sua parte, para ajudar a colega do lado, o que dinamizou e integrou de maneira mais efetiva as pessoas que ali estavam. Uma das participantes (moradora da RT) começou a ir ao nosso encontro de ônibus e sozinha, em todo início de encontro chegava contando como foi a sua aventura em pegar os ônibus que não pegava freqüentemente, como se orientava e pedia ajuda às pessoas para chegar na associação de bairro. Ao término destas oficinas havia aprendido a ir de ônibus sozinha para realização de sua atividade nas quartas feiras. Desde o início construímos uma forte parceria com uma “oficineira” da comunidade que passou a nos orientar em relação a técnicas a serem usadas na produção dos artesanatos. Essa oficineira da comunidade, mostrou-se muito receptiva, sempre com muitas idéias, disposta a contribuir com aquele trabalho, encontrava tempo em meio a seu trabalho para nos ajudar e participar das oficinas. Planejamos várias oficinas possíveis, tais como: portaretratos, caixinhas, pratos enfeitados, etc e lembramos que o dia das mães estava se aproximando, podendo ser essa a temática do artesanato. Os detalhes eram acordados com ela, mas já tínhamos um ponto de partida para elaboração dessa Oficina Expressiva. Assim, como estudantes de psicologia, experimentamos lançarmo-nos como oficineiros aprendendo a construir artefatos diversos através desta moradora da comunidade que trabalha com artesanato em geral. Com isso percebemos o quão importante é a criação de parcerias que possam estar ajudando na promoção de espaços de trocas sociais. Outra parceria que conseguimos criar trata-se do vínculo que estabelecemos com uma determinada madeireira para fornecimento das madeiras para a confecção das caixinhas. Outra parceria foi firmada com as próprias moradoras do Bairro de Santana. Com elas percebemos que há uma potência comunitária para a mudança, e somente com sua participação pudemos realizar nosso trabalho, que viemos a chamar de consolidação de um novo imaginário social. Constatamos também que cada vez mais nosso simples movimento, iniciado no espaço da associação, ganha força e começa a ser tornar conhecido das pessoas do entorno. Durante as atividades ali realizadas desenvolveram-se vários conflitos no que diz respeito às diferenças sociais, mas todos, de alguma maneira, confluíram para um mesmo sentido de (re)conhecimento do que é o outro, das diferenças entre as pessoas loucas ou não. Demonstrando um bom indício da capacidade das pessoas de se apropriarem de uma idéia e coletivamente superá-la, mesmo diante de diferenças sociais aparentes ou não. As moradoras das casas em análise puderam construir novos laços sociais e demonstraram que se localizavam nos espaços, ao andar de ônibus, ao conversarem animadamente com as vizinhas, demonstraram interesse em continuar realizando as atividades e pediram para que avisássemos quando iriam ocorrer novamente as oficinas. Construímos novos vínculos e formalizamos outros na comunidade que são nossos fios condutores de como realizaremos a próximas oficinas e o quê construiremos. Na terceira etapa de oficinas, notamos que mesmo com moradoras que já haviam participado, A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 109 de um lado da mesa ficaram as moradoras das residências e do outro ficaram as moradoras que vieram participar da oficina pela divulgação dos cartazes. Mas ao longo da oficina, as pessoas se deslocaram e notaram como interagíamos e assim a distância entre elas foi se tornando menos visível. As moradoras das residências quando interpeladas sobre o desenvolvimento de sua atividade, repetiam constantemente: “eu não sei fazer isso não”. Isso ao contrário de ser verdade, serviu para que as outras moradoras, já adiantadas em suas tarefas, ajudassem umas às outras, fazendo com que o grupo por vezes funcionasse com ajuda mútua, descartando a intervenção dos “oficineiros”. Observamos que a partir daí as participantes estreitaram as relações e se conheceram mais intimamente. Algumas perguntavam o nome, onde morava e se tinha problema nos nervos, possibilitando uma interação maior. No último dia da oficina as moradoras levaram o lanche que haviam combinado logo quando chegamos, já que a mesa estava arrumada esperando o horário do lanche. Como algumas moradoras haviam terminado seus pratos, começaram a lanchar. As moradoras levaram um lanche caprichado até com comidas preparadas por elas. Ao longo do lanche ouvimos sugestões das moradoras para a próxima oficina, conversamos sobre o horário e dias possíveis e também conversarmos a respeito daquela oficina. Percebemos a satisfação delas com seus pratos, sendo que uma delas contou-nos que iria fazer quarenta pratos com a técnica que havia aprendido ali para levar para um encontro religioso de que ela iria participar. PARA FINALIZAR NOSSAS OBSERVAÇÕES Consideramos importante a construção de novos olhares e novas formas de conviver com aquelas pessoas que estavam vivendo entre muros manicomiais. Esta maneira de nos colocarmos como intermediadores de relações foi uma maneira encontrada por nós, para responder às questões que nos incomodavam neste momento em que as residências terapêuticas foram instaladas nos bairros que percorremos. Mas compreendemos que não é a única forma de desconstruir uma forma de olhar excludente sobre o indivíduo considerado como louco. É importante salientar que as atividades ilustradas acima estão sob um viés pós-manicômios, onde o manicômio não se encontra mais como peça fundamental e hegemônica da atenção em saúde mental. A esfera na qual se inserem tais redes sociais que sustentam os serviços substitutivos tem como principal desafio as relações manicomiais que se mostram mais aprisionadoras do que o próprio espaço físico do manicômio, já em processo de desconstrução. Assim, ao mesmo tempo em que o espaço da cidade traz consigo esses novos desafios, os espaços urbanos trazem também, uma nova gama de possibilidades onde a loucura possa habitar um velho-novo lugar social do qual outrora ela foi retirada. Trata-se de “agenciar” os atores sociais envolvidos direta e indiretamente com esse processo como um todo, construir 110 Apropriação dos Espaços Sociais na Implementação de Residências Terapêuticas F. A. L. Filho e M. I. B. Moreira parcerias, criar novos problemas, onde a troca social seja permitida, onde uma outra forma de cuidado que não a manicomial seja difundida nos meios onde esses cidadãos de diretos possam habitar a vida em sua possibilidade máxima de própria existência. Estamos abertos a apreender e cônscios da necessidade de criação de novas formas de realizar e refletir o processo que estamos conduzindo, pois estamos nos produzindo nele também. Nossos olhares também vão se ampliando a cada dia, e defendemos que deveríamos estar nos interpelando sobre nosso fazer o tempo todo, para não cairmos no peso da história e dar justificativas para a não-vida. REFERÊNCIAS MATTOS, R.A. Os sentindos da INTEGRALIDADE na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS: ABRASCO, 2006. BASAGLIA, F. Psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo: Ed. Brasil Debates, 1982. BRASIL. Ministério da Saúde. Residências Terapêuticas. O que são? Para que Servem? Secretaria de atenção à saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Brasília, 2004. FURTADO, J.P. Avaliação da situação atual dos Serviços Residenciais Terapêuticos no S.U.S. Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.11, n. 3, 2006 Disponível em: http:// www.scielo.php?script=sci_arttex&pid=S1413-81232006000300026&Ing=pt&nrm=iso. Acesso em: 28 de abril 2007. MOREIRA, M. I. B. Projeto: Loucura e Cidade: ações em saúde mental para apropriação de espaços sociais. Projeto de Estágio Pesquisa e Extensão apresentado à Coordenação de Pesquisa e Extensão da FAESA, Vitória, 2005. WEYLER, A., R.; FERNANDES, M. I. A. Os caminhos das propostas de moradias para ex-pacientes psiquiátricos. Vínculo, dez. 2005, vol.2, no.2, p.80-88. Disponível em: http://pepsic.bvspsi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S180624902005000100010&lng=pt&nrm=is O IMPACTO DO DIAGNÓSTICO DE DEFICIÊNCIA, SEGUNDO A VISÃO DAS MÃES Kely Maria Pereira de Paula 1 Anna Beatriz Carnielli Howat Rodrigues 2 Danielly Bart do Nascimento 2 Marly Santos 2 Sandra Bonfim Leonel 2 Thatiana Mara Barbosa Grampinha 2 Uma deficiência pode configurar-se como um problema social, visto que a mera existência dessa pessoa muitas vezes passa a ser considerada perigosa e indesejável. Pessoas com algum “desvio” são tratadas como uma marca social de inferioridade, são estigmatizadas e necessárias na construção de uma sociedade inclusiva, sendo esta, a questão fundamental enfrentada pela sociedade humana que precisa combater as desigualdades (OMOTE, 2004). O estigma refere-se a um atributo, que é tomado de forma depreciativa, e reduz o indivíduo àquela marca. Termos específicos como aleijado, bastardo, retardado são utilizados no discurso diário para estigmatizar o portador de uma deficiência, sem pensar no seu significado original (GOFFMAN, 1982). O conceito de deficiente vem sendo construído ao longo da história, baseando-se em abordagens filosóficas e práticas de atendimento ao indivíduo portador de deficiência, sendo, portanto, um conceito dinâmico que varia de acordo com a ideologia historicamente determinada, ou seja, a indicação dos membros desviantes do padrão convencional, como “normal”, depende de cada sociedade e é baseada nos valores, crenças e padrões sociais da mesma (ENUMO e CUNHA, 2001). A questão da deficiência sempre esteve impregnada de muitos preconceitos. Na sociedade clássica da antiguidade, em que se valorizava a perfeição física do indivíduo, crianças com deficiência física ou mental eram consideradas sub-humanas, o que legitimava seu abandono (PESSOTI, 1984, apud SILVA & DESSEN, 2001). Na Idade Média, a deficiência era advinda de um fenômeno metafísico e espiritual, tinha um caráter divino ou demoníaco. As crianças deficientes já não eram abandonadas, elas tinham alma e eram filhas de Deus, por isso eram acolhidas por instituições de caridade; porém, junto ao ideal cristão, que vigorava, acreditava-se que crianças com deficiência mental eram filhas da união de uma mulher com o demônio, sendo levadas à fogueira para serem queimadas junto à sua mãe (ARANHA, 1995, apud SILVA & DESSEN, 2001). 1 2 Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES Estudantes da graduação em Psicologia da UFES 112 O Impacto do Diagnóstico da Deficiência, segundo a visão das Mães K. M. P. de Paula; A. B. C. H. Rodrigues; D. B. do Nascimento; M. Santos; S. B. Leonel; e T. M. B. Grampinha Com a revolução burguesa no final do século XV, houve uma mudança na concepção de homem e de sociedade, mudando também a concepção de deficiência. Esta passou a ser um atributo dos indivíduos não produtivos economicamente. Com o avanço da medicina e da visão organicista, a Doença Mental deixou de ser um problema apenas espiritual e se tornou também, um problema médico (ARANHA, 1995, apud SILVA & DESSEN, 2001). A assistência ao deficiente também foi desenvolvida, ora com caráter controlador, ora com caráter humanista. No século XIX as classes dominantes criaram sociedades filantrópicas para essa população, cuja finalidade foi garantir que grupos marginais, como os deficientes, não ameaçassem a República e os valores sociais vigentes na época. As escolas especiais eram organizadas como asilos fazendo com que os alunos fossem mais controlados do que ensinados (KARAGIANNIS, STAINBACK & STAINBACK, 1999). No princípio do século XX com o movimento de eugenia, criou-se a idéia de que pessoas com deficiência tivessem tendência à criminalidade sendo uma ameaça à população, justificando a segregação. Diante disso as salas especiais surgiram, visto que, as crianças deficientes eram indesejadas e não aceitas em salas regulares, desmistificando as razões humanitárias para sua criação. A partir da década de 50 começaram a surgir associações para defender o direito dessas crianças, para que pudessem freqüentar e aprender nos ambientes escolares normais. Muitas conquistas legais se deram a partir dessa data. Em 1972, crianças rotuladas como mentalmente retardadas, tiveram a garantia de uma educação gratuita e adequada. Em 1992 foram garantidos, por lei, os direitos dos indivíduos com deficiência, no emprego e nas instituições educacionais que recebem recursos federais, assim como o direito à educação pública gratuita a todas as crianças, independente de qualquer deficiência (KARAGIANNIS, STAINBACK & STAINBACK, 1999). Segundo Carvalho & Maciel (2003), mesmo com os avanços nos campos legais, a deficiência mental está inserida em sistemas de categorias, apresentando-se como demência e comprometimento permanente da racionalidade e do controle comportamental há muito tempo. O deficiente ainda enfrenta o estigma de ser alguém indesejado, as pessoas não anseiam por um amigo deficiente ou um filho deficiente. De acordo com Silva & Dessen (2001), é importante compreender as relações que se estabelecem entre a criança e o ambiente em que se dá o seu desenvolvimento, apesar da democratização do acesso à educação apontado por Omote (2004), em que o contato entre as diferenças é facilitado. Nesse sentido a família tem um papel fundamental quando constitui o primeiro universo de relações sociais da criança, lhe proporcionando um ambiente adequado para o seu desenvolvimento e promovendo-lhe atenção e cuidados específicos (REICHARD, 2005). Ela talvez seja a representante da forma de relação mais complexa e de ação mais profunda sobre a personalidade humana, dada a enorme carga emocional das relações entre seus membros (REY & MARTINEZ,1989, apud SILVA & DESSEN, 2001). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 113 No momento que uma criança vem ao mundo, a primeira preocupação dos pais é se o bebê, tão esperado e desejado, é normal. O impacto sentido quando esta resposta é negativa, é intenso. No lugar de felicidade e alívio vêm sentimentos de decepção e frustração acompanhados da preocupação com o futuro (REICHARD, 2005). Para Brito & Dessen (1999), esse momento pode causar desestruturação na estabilidade familiar. Esta passa por um longo processo de superação até chegar à aceitação da sua criança com deficiência. Esse processo vai do choque, da negação, da raiva, da rejeição dentre outros sentimentos até a construção de um ambiente familiar mais preparado para incluir essa criança como membro integrante da família. A reorganização familiar fica mais fácil quando há apoio mútuo entre o casal na construção de um ambiente adequado para o desenvolvimento e crescimento da criança com deficiência, contudo essas alterações podem constituir desafios para todos os membros familiares (DESSEN, 1997; KREPPNER, 1989, 1992, apud SILVA & DESSEN, 2001). Na maioria dos casos, há uma inadequação na forma como os médicos dão o diagnóstico sobre a deficiência do filho, aos pais, levando-os a aumentarem suas fantasias sobre o problema, quando não têm o devido conhecimento do assunto. É fundamental o apoio de uma equipe multi-profissional, incluindo um psicólogo, no momento de informá-los sobre o diagnóstico, visto que, para os pais, esse é um momento muito difícil (SILVA & DESSEN, 2003). É importante considerar que a deficiência mental é uma condição complexa, assim como deve ser seu diagnóstico para uma intervenção efetiva (CARVALHO & MACIEL, 2003). Lamb e Billing (1997, apud SILVA & DESSEN, 2003), relatam haver diferenças quanto às expectativas do pai e da mãe em relação à criança, quando descobrem que ela é deficiente. O diagnóstico pode levar à formação de estigmas, preconceitos e estereótipos que funcionaram como rótulos para o indivíduo, que será identificado como desviante ou anormal. Os profissionais de saúde devem levar em conta que nem sempre os indivíduos excepcionais enquadram-se em categorias bem definidas, com características homogêneas. Sendo assim o diagnóstico deve ser um processo contínuo e sistemático de avaliação, que vai investigar, interpretar, orientar e prevenir a estigmatização de indivíduos identificados por suas diferenças (ENUMO & CUNHA, 2001). Em suas investigações Reichard (2005) constatou que enquanto alguns pais preferem se isolar e fugir de novos diagnósticos, outros encaram a deficiência como um desafio, arregaçam as mangas e buscam todos os recursos terapêuticos possíveis. Esses pais vão atrás de informações através de pesquisas recentes, consultam especialistas, tudo que pode promover auxílio para lidar com aquela situação inesperada em suas vidas. Dos irmãos mais velhos é exigida compreensão e ajuda nas tarefas familiares. Os sentimentos dos pais, em relação ao filho com deficiência, são fundamentais para a adaptação e o bem estar da família. O restabelecimento do equilíbrio familiar vai depender dos recursos psicológicos utilizados para tal fim. São muitas as variáveis que afetam o desenvolvimento da criança, como a renda familiar, grau de instrução dos pais, qualidade das interações entre os membros da família e pessoas afins e as práticas psico-sociais de cuidados adotadas no contexto. 114 O Impacto do Diagnóstico da Deficiência, segundo a visão das Mães K. M. P. de Paula; A. B. C. H. Rodrigues; D. B. do Nascimento; M. Santos; S. B. Leonel; e T. M. B. Grampinha Pesquisas analisadas mostram o relato de mágoa e sofrimento, bem como de culpa, sentidos pelas mães diante da deficiência dos filhos. Muitos pais se responsabilizam pela deficiência mental dos filhos e diante de pressões vindas do meio social limitam as atividades culturais de seus filhos, bem como o contato com vizinhos e parentes. Geralmente as mães dispensam maiores cuidados à criança com deficiência, apresentando altos níveis de estresse, ao contrário dos pais que muitas vezes se esquivam e relatam menor satisfação com a vida familiar (SILVA & DESSEN, 2001). Silva & Dessen (2003) mostram que pais de crianças com deficiência apresentam comportamentos de comunicação menos positivos e altas taxas de reciprocidade negativa quando comparados com pais de crianças normais. A gravidade da deficiência é uma variável que vai influenciar no envolvimento e adaptação do pai à criança com deficiência, porém há estudos e pesquisas a esse respeito que são contraditórios quando enfocam as interações paicriança com deficiência. Portanto, variáveis internas e externas contribuem para aumentar o estresse vivenciado pelos pais influenciando nas interações e relações familiares. O deturpado conceito de deficiência, aliado a um diagnóstico estereotipado, pode levar a práticas segregacionistas que, de acordo com Karagiannis et al (1999), fortalecem estigmas e rejeição contra pessoas com deficiência, fortalecendo nas pessoas normais a incapacidade de conhecer a diversidade social e cultural e impedindo a valorização das coisas significativas que unem a todos. Diante do exposto, essa pesquisa tem por objetivo analisar estratégias de enfrentamento, à época do diagnóstico da deficiência, utilizadas pelas mães de crianças e adolescentes atendidas por uma instituição voltada ao tratamento da deficiência mental, a partir da lembrança das mesmas. MÉTODO Participantes Participaram da pesquisa 16 mães de crianças e adolescentes com deficiências físicas, mentais e/ou sensoriais, devidamente regulamentados em uma instituição (APAE) localizada na Grande Vitória – ES. Instrumento Esta pesquisa contou com um rápido questionário sobre o perfil da mãe da criança e com a aplicação de uma versão adaptada da Escala Modos de Enfrentamento de Problemas – EMEP (SEIDL, TROCCOLI & ZANNON, 2001). O questionário sobre o perfil das mães continha perguntas como idade, escolaridade, estado civil, profissão, informações sobre outros filhos e informações sobre o que ela sabe sobre a deficiência diagnosticada em seu filho. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 115 A versão utilizada do EMEP foi adaptada para o tempo passado já que as mães foram entrevistadas após anos de diagnóstico. Contudo, a nova versão continuou contendo os 45 itens, distribuídos em quatro fatores: Fator 1 – enfrentamento focalizado no problema (18 itens) compreendendo estratégias comportamentais que representam aproximação em relação ao estressor, voltadas para o seu manejo ou solução, bem como estratégias cognitivas direcionadas para a reavaliação e resignificação do problema; Fator 2 – enfrentamento focalizado na emoção (15 itens), estratégias cognitivas e comportamentais de esquiva ou negação, expressão de emoções negativas, auto-culpabilização e/ou culpabilização de outros, com função paliativa ou de afastamento do problema; Fator 3 – busca de práticas religiosas/ pensamento fantasioso (7 itens), definido como adoção de práticas religiosas ou pensamentos de conteúdo fantasioso como modos de enfrentamento do estressor; Fator 4 – busca de suporte social (5 itens), definido como procura de apoio social, emocional ou instrumental, para lidar com o problema. As respostas foram dadas em escala Likert de cinco pontos (1 = nunca faço isso; 5 = faço isso sempre). Os escores, variando de 1 a 5, foram obtidos mediante média aritmética, e os mais altos foram indicativos de maior utilização de determinada estratégia de enfrentamento. No presente estudo, foi solicitado às mães que respondessem à versão adaptada da EMEP, com base nas estratégias de enfrentamento que elas lembrassem ter recorrido quando receberam o diagnóstico de deficiência de seus filhos. Os escores foram computados com base na estrutura fatorial encontrada por Seidl e Cols (2001). Procedimento de coleta de dados Inicialmente entramos em contato com a diretoria da instituição a qual nos informou haver um grupo de mães que ficavam lá diariamente enquanto seus filhos estudavam, portanto poderíamos ir lá quando fosse mais cômodo. Fomos à instituição em 2 dias diferentes, no primeiro dia entrevistamos 10 mães e no segundo dia entrevistamos 6 mães. Expomos a elas o objetivo da pesquisa e foram assinados os termos de consentimento. Procedimento de análise de dados Os questionários foram devidamente numerados para facilitar a análise. Os dados sociodemográficos foram categorizados de acordo com o perfil das participantes. Quanto aos dados colhidos pela versão adaptada da EMEP, para sabermos qual foi a estratégia de enfrentamento mais utilizada na época do diagnóstico pelos participantes entrevistados, foi efetuada a soma de cada fator e dividido o produto por 16 (número de entrevistados), obtendose assim a média para a análise dos dados. 116 O Impacto do Diagnóstico da Deficiência, segundo a visão das Mães K. M. P. de Paula; A. B. C. H. Rodrigues; D. B. do Nascimento; M. Santos; S. B. Leonel; e T. M. B. Grampinha RESULTADOS E DISCUSSÃO Segundo os dados sócio-demográficos, das 16 mães entrevistadas, a maioria possui idade acima de 40 anos, tem o ensino fundamental incompleto, trabalha em casa (domésticas), são casadas e com uma média de 5,5 filhos por mãe. Nove mães tinham o primeiro filho com deficiência, de sexo feminino e sete, de sexo masculino. Os filhos possuíam idades entre 4 e 28 anos e foram diagnosticados em sua maioria ao nascer ou pouco tempo após o nascimento. Quando perguntadas sobre o diagnóstico de seus filhos, a maioria das mães sabia responder especificamente e em nossa amostra, as deficiências mais comuns foram a Deficiência Mental e Síndrome de Down, porém algumas mães não sabiam definir o diagnóstico de seu filho e tentavam explicar de outra forma dizendo, por exemplo, que estes eram esquecidos, nervosos, agitados, que não reagiam às emoções, tinha a perna dura ou cabeça pequena. Outro dado importante é que a metade dos filhos não havia estudado em escolas regulares, freqüentando apenas a APAE (algumas mães relataram que os filhos sofreram violência física em escolas regulares, sendo este um dos motivos pelos quais elas não os matricularam nesses estabelecimentos de ensino). Além disso, estas mães em sua maioria não contavam com a ajuda de outras pessoas para cuidarem de seus filhos, como lembra Silvia e Dessen (2003), em que as mães dispensam a ajuda de pessoas para cuidar dos filhos e apresentam altos níveis de estresse, o oposto do que acontece com os pais que muitas vezes se esquivam e demonstram menor interação com a família. Quanto ao sustento, a maioria dos filhos com deficiência depende da renda gerada pelo pai e apenas quatro responderam que os filhos recebem benefício da previdência. Tabela 1: Referente à média das estratégias utilizadas pelas mães Fator Estratégia Média 1 Estratégias de enfrentamento focalizadas no problema 3,04 2 Estratégias de enfrentamento focalizadas na emoção 3,02 3 Busca de práticas religiosas/pensamento fantasioso 3,01 4 Busca de suporte social 2,41 Ao visualizarmos a tabela 1, podemos perceber que as estratégias mais utilizadas, referemse às Estratégias de enfrentamento focalizadas no problema, com m= 3,04, seguida com pouca diferença das Estratégias de enfrentamento focalizadas na emoção com m= 3,02 e Busca de práticas religiosas/pensamento fantasioso com m=-3,01. Por último encontra-se a Busca de suporte social representada por uma média de 2,41. Foi constatado que a estratégia de enfretamento focalizada no problema foi a mais mencionada. A escala de modos de enfrentamento de problemas utilizada nesta pesquisa, evidencia que este tipo de enfretamento tem relação com o impacto do diagnóstico, quando A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 117 os pais recebem a noticia que o filho é deficiente. Além dos resultados da EMEP, este dado foi confirmado nos relatos verbais das entrevistas. Todas as mães deixaram clara a ênfase em desafios e esforços focalizados na dificuldade de enfrentar o diagnóstico. Portanto, é necessária a presença de uma equipe preparada para informar aos pais sobre ele, já que trata – se de um momento bastante complicado e na maioria dos casos há uma inadequação na forma como os médicos dão a notícia sobre a deficiência do filho, causando um forte impacto sobre a família. A estratégia de enfrentamento focalizada na emoção foi, a segunda estratégia mais mencionada, quando comparada com as demais. Os itens da EMEP que mensuraram este fator descrevem sentimentos de culpa, emoções negativas e comportamentos de esquiva. A pesquisa realizada por Silvia e Dessen (2003) mostrou o relato de mágoa e sofrimento sentido pelas mães ao receberem a notícia da deficiência do filho. De acordo com a pesquisa de Reichard (2005) foi constatado que após receberem o diagnóstico, alguns pais se isolam e se esquivam de novos diagnósticos enquanto outra parcela encara a deficiência do filho como um desafio e procuram se informar mais acerca da deficiência e recorrem a recursos terapêuticos possíveis e disponíveis a eles, pois os sentimentos dos pais em relação aos filhos com deficiência são imprescindíveis para a adaptação e o bem estar da família e do portador de necessidades especiais. A terceira estratégia mais mencionada foi a busca da prática religiosa/pensamento fantasioso, principalmente por mães com baixo nível de escolaridade provavelmente porque elas tinham dificuldade em compreender o significado do diagnóstico. O pensamento fantasioso quase sempre está relacionado com a maneira com que os médicos dão o diagnóstico sobre a deficiência da criança, aumentando a fantasia que os pais têm a cerca do problema do filho. Com relação à prática religiosa, foi observado que a maioria das mães passou a freqüentar mais a igreja com a esperança de que um milagre pudesse ocorrer e seus filhos fossem curados. A busca de suporte social foi o item que obteve a menor média, demonstrando que a maioria das mães não levou em consideração esse item, pois são elas próprias que cuidam dos filhos e quando saem o que raramente ocorre, elas deixam os filhos com a avó ou com parentes. Elas passaram a limitar a vida social para viver em função dos filhos, além de limitarem as atividades culturais dos filhos também, como a não inserção deles em escolas regulares e restringindo a convivência com vizinhos e parentes. CONCLUSÃO A Pesquisa foi realizada com mães que receberam o diagnóstico há muito tempo, sendo que elas tiveram que recorrer a lembranças para responder ao questionário. As mães relataram muito sobre o lado positivo de terem um filho com necessidades especiais, não remetendo ao sentimento negativo de quando receberam o diagnóstico. 118 O Impacto do Diagnóstico da Deficiência, segundo a visão das Mães K. M. P. de Paula; A. B. C. H. Rodrigues; D. B. do Nascimento; M. Santos; S. B. Leonel; e T. M. B. Grampinha A falta de informação sobre a deficiência do filho é freqüente e os dados demonstraram que o processo de inclusão para seus filhos não ocorre, visto que a maioria não estuda em escola regular, freqüentando somente a APAE. Logo, os resultados obtidos nesta pesquisa podem incentivar os profissionais da área de saúde que têm interesse por esse tema a pesquisar mais, visando explicações científicas mais consistentes acerca dos diferentes tipos de deficiência. Este envolvimento é necessário para que seja possível o desenvolvimento de intervenções adequadas às necessidades psico-sociais e comportamentais dos portadores de necessidades especiais e de suas famílias. REFERÊNCIAS Adaptação da Escala Modos de Enfrentamento de Problemas – EMEP. SEIDL, E.M.F., TRÓCCOLI, B.T. & ZANNON, C.M.L.C. Análise fatorial de uma medida de estratégias de enfrentamento. Psicologia Teoria e Pesquisa, 17, 225-234, 2001. BRITO, A.M.W. & DESSEN, M.A. Crianças surdas e suas famílias: um panorama geral. Psicologia: Reflexão e Crítica. v.12, p. 429-445, 1999. CARVALHO, E.N.S. MACIEL, D.M.M.A. Nova Concepção de Deficiência Mental Segundo a American Association on Mental Retardation - AAMR: sistema 2002. Temas em Psicologia da SBP V.11, n.2, p.147-156, 2003. ENUMO, S.R. F; CUNHA, A.C.B. Intervenções comportamentais e cognitivas em pessoas com deficiências. In: RANGÉ, B. (Org.). Psicoterapias cognitivo-comportamentais: Um diálogo com a Psiquiatria. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001, p. 499-512. GOFFMAN, E. Estigma e identidade social. In: Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. cap. 1, p.11-50. KARAGIANNIS, A.; STAINBACK, S.; STAINBACK, W. Visão geral histórica da inclusão. In: STAINBACK, S.; STAINBACK, W. (Orgs.). Inclusão: um guia para educadores (M. F. Lopes, Trad.). Porto Alegre: ArtMed, 1999, cap. 2, p. 35. OMOTE, S. Estigma no tempo da inclusão. Revista Brasileira de Educação Especial, v. 10, n. 3, p. 287-308, 2004. REICHARD, D. Deficiência, desafio para toda a família. Viver Mente & Cérebro n. 145, 2005. SILVA, N. L. P.; DESSEN, M. Crianças com Síndrome de Down e suas interações familiares. Psicologia: Reflexão e Crítica. v. 16, n. 3, p. 503-514, 2003. SILVA, N. L. P.; DESSEN, M. Deficiência mental e família: Implicações para o desenvolvimento da criança. Psicologia: Teoria e Pesquisa. V.17, n.2, p.133-141, 2001. A LUTA PELA TERRA EM ARACRUZ-ES: O OLHAR DA CRIANÇA GUARANI Kleber de Oliveira 1 Sabrine Mantuan dos Santos Coutinho 2 Zeidi de Araujo Trindade 3 OS GUARANI E A LUTA PELA TERRA NO ESPÍRITO SANTO Segundo Loureiro (2006) há registros de Tupiniquim na região norte do Espírito Santo desde tempos coloniais, em aldeamentos jesuítas (Aldeia Nova, hoje Aracruz, fundada em 1556) ou em territórios demarcados pela Coroa portuguesa (sesmaria demarcada em 1760, na região entre Santa Cruz e Comboios), fatos comprovados por diversos registros de viajantes como Saint-Hilaire (em 1818), Wied Neuwied (em 1815) e o imperador Dom Pedro II (em 1860). Até as primeiras décadas do século XX, encontravam-se organizados em pequenas aldeias comunais dispersas pelas matas de Aracruz (LOUREIRO, 2006). Na década de 40, com o objetivo de produzir carvão, a Companhia de Ferro e Aço de Vitória (COFAVI) obteve do governo do estado a autorização para explorar 10.000 hectares da Mata Atlântica em Aracruz, justamente nesta área habitada pelos núcleos Tupiniquim desde o século XVI. No início da década de 60, famílias de Guarani Mbya, dentro do processo migratório em busca da Terra-sem-mal, chegaram à área indígena Tupiniquim, onde foram recebidos como “parentes” (LOUREIRO, 2006). Segundo o relato de Aurora Carvalho da Silva este grupo é originário da aldeia Pindovy, no Paraguai, local chamado de yvymbyte – o meio do mundo, local da criação por Ñanderu. De lá saíram a partir da revelação da necessidade de iniciar a oguata (caminhada). Passaram pela Argentina e chegaram ao Rio Grande do Sul, em Porto Xavier. (LADEIRA, 2006). Reiniciam a caminhada e, nos anos 60, chegam ao ES, encontrando os aldeamentos tupiniquins. Neste local receberam a triste revelação: a revelação apontava que ali era a terra por onde seus antepassados também passaram a partir da mesma caminhada para se encantar e chegar a yvy marã ey e que lá deveriam permanecer, ao invés de continuar sua caminhada (LADEIRA, 2004). 1 2 3 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES; docente do curso de Psicologia da Unilinhares. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/ UFES; Coordenadora da Rede de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social (RedePSO). 120 A LUTA PELA TERRA EM ARACRUZ-ES: o olhar da criança Guarani K. de Oliveira; S. M. S. Coutinho; e Z. A. Trindade Nesse mesmo período, a empresa Aracruz Celulose S.A. se instalou no Espírito Santo com incentivos do estado, explorando, dentre outras, aquelas terras cedidas à COFAVI, inclusive com a formação de extensas áreas de monoculturas de florestas de eucalipto. Na década de 70 grupos indígenas reagem e ocupam uma área de 250 hectares dentro das terras cedidas a esta empresa. O conflito instaurado leva a FUNAI a realizar o primeiro estudo das terras com posterior decisão de demarcação de parte delas. O conflito permanece até a década de 90. Entre 1994 e 1997 foi feito o segundo estudo pelo Grupo de Trabalho (GT) da FUNAI identificando 18.070 hectares de terra indígena. O Ministério da Justiça demarca 7.061 hectares. Paralelamente, foi estabelecido acordo entre a FUNAI, os indígenas e a empresa. Segundo este acordo ela continuaria explorando o território indígena identificado, em troca de uma indenização em forma de projetos sociais. Em fevereiro de 2005, em uma Assembléia Geral, os indígenas decidiram retomar a luta pela terra, referente a 11.009 hectares reconhecidos pela FUNAI e que ainda não estavam demarcados. Em maio, o Ministério Público encaminhou a Recomendação 003/2005 para o Ministro da Justiça solicitando a edição de novos atos de reconhecimento das terras indígenas. Tupiniquins e Guaranis iniciaram o processo de autodemarcação, (derrubada de eucaliptos, demarcação de picadas, levantamento de aldeia), com apoio de diversas entidades, movimentos sociais, religiosos, políticos e estudantis. Em outubro ocorre a ocupação da planta industrial da Aracruz Celulose S.A. Após a autodemarcação, foram reconstruídas duas aldeias que existiam antes da chegada da empresa: as aldeias de Olho d´Água e Córrego do Ouro. No início de 2006 a polícia federal e a tropa de choque da PM / ES cumpriram mandado de re-integração de posse em favor da empresa, com a derrubada das construções das aldeias e erradicação dos plantios já realizados. O DESENHO INFANTIL COMO INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS A utilização de desenhos como forma de acesso ao discurso das crianças é um instrumento já consagrado nas pesquisas dentro do campo da psicologia. Sua utilização para estudo de crianças de sociedades não ocidentais, também já ocorre, aproximando a psicologia da antropologia. Este instrumento também já foi utilizado, destacando-se, neste caso, os trabalhos de Sonia Grubits, entre os Guarani Kaiowá no Mato Grosso, uma referência importante na análise do material coletado nesta pesquisa. Lembrando que o desenho infantil sempre nos chama a atenção Grubits (2003) aponta que “o desenho é um suporte onde se misturam e se cruzam os valores do objeto e os valores da pessoa” sendo que nos casos da criança há uma postura diferenciada com relação ao desenho, sendo mais fiel com o significado que quer representar do que com o realismo visual. Com relação à análise dos desenhos infantis, Grubits (2000), citando Wallon, adverte em A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 121 relação ao cuidado necessário para que não se faça uma análise “adultóide” do desenho, isolando elementos e esquecendo-se do caráter sincrético da produção infantil. Por fim, a autora nos lembra de que o valor narrativo do desenho infantil tem caráter simbólico, expressando o conteúdo de seu mundo imaginário. Este trabalho insere-se assim, dentro desta temática discutida acima, buscando identificar as percepções e significados elaborados por crianças guarani de uma aldeia no município de Aracruz – ES acerca de seu contexto sócio-cultural, a partir de seu discurso sobre um tema específico: o momento de disputa política contra a empresa Aracruz Celulose S.A. para a retomada de seus territórios tradicionais. MÉTODO Para a realização desta pesquisa foram selecionadas 23 crianças guarani com idade variando entre 9 e 12 anos de idade, todas alunas da escola diferenciada localizada na aldeia Três Palmeiras na cidade de Aracruz-ES. A distribuição da amostra pelas idades se deu segundo o quadro abaixo: Idade Masculino Feminino Total 09 anos 02 06 08 10 anos 05 01 06 11 anos 02 03 05 12 anos - 04 04 09 14 23 Total Com relação aos procedimentos, a coleta de dados contou com a participação do pesquisador e um assistente que optaram pela técnica do desenho como forma de acesso ao discurso da criança. Durante uma aula com duração de cerca de 2 horas, foi solicitado às crianças a elaboração individual de um desenho que retratasse sua maneira de ver o momento de retomada de terras pelos Guarani. As crianças foram organizadas em pares (conforme já se organizam durante as aulas regulares). Para cada dupla de crianças foi disponibilizado um kit de material contendo uma caixa de giz de cera com 12 cores, uma caixa de lápis de cor com 12 cores, dois lápis preto No. 02, duas borrachas de apagar e folhas de papel A4 para a elaboração do desenho. As instruções para a atividade foram dadas pelo próprio pesquisador sendo que, logo em seguida, o professor guarani reforçou a orientação na própria língua guarani, momento no qual apontou a idéia da temática do desenho, de maneira genérica, como “Luta pela Terra”. Nestas instruções foi solicitado às crianças que elaborassem desenhos “bem bonitos”, buscando incentivar a presença da maior riqueza nos trabalhos. 122 A LUTA PELA TERRA EM ARACRUZ-ES: o olhar da criança Guarani K. de Oliveira; S. M. S. Coutinho; e Z. A. Trindade Durante a elaboração dos desenhos, os pesquisadores circulavam pela sala de aula, incentivando a produção das crianças quando não se mostravam muito envolvidas com a atividade e elogiando aquelas que se mostravam mais dispostas. No momento em que as crianças terminavam seu desenho, sinalizavam aos pesquisadores que, antes de recolher o material, conversavam com cada uma sobre o que foi desenhado e que explicação elas dariam para o resultado final. RESULTADOS De maneira geral, os desenhos se mostraram muito ricos com grande utilização de cores e figuras diversas, resultado do grande envolvimento das crianças com a atividade. A árvore, único elemento presente em todos os desenhos é, de maneira geral, o eucalipto, na grande maioria das cenas aparece sendo cortado e / ou derrubado. Em apenas um caso a criança indicou que as árvores desenhadas não eram o eucalipto, mas exclusivamente o que chamava de “mata” ou, de maneira mais geral, árvores. Tanto os seres humanos quanto as casas foram explicitamente identificados com o universo simbólico da cultura guarani. Desta forma, todas as casas desenhadas foram feitas no padrão das casas tradicionais das aldeias guaranis, com o teto arredondado e as paredes desenhadas de forma a indicar serem construídas com barro, madeira e palha. Eram coloridas de marrom, como as casas formadas de barro. Os seres humanos, por sua vez, quando elaborados além do esquema corporal (um círculo representando a cabeça e traços para o corpo e os membros), eram representados com adornos de penas, cocares e pinturas corporais, tanto para homens como para mulheres, além de aparecerem empunhando utensílios como o arco-e-flecha, varas de pesca, ferramentas como o machado e serrotes. De acordo com o quadro geral de cada desenho e com a narrativa feita aos pesquisadores pela criança ao final de sua produção, os desenhos foram agrupados em duas categorias de análise, que chamamos de “A luta pela terra” (com 07 desenhos) e “A nova aldeia olho d’água” (com 12 desenhos). “A luta pela terra” O grande tema destes desenhos é o processo de autodemarcação, iniciado pelos Guarani e Tupiniquim no segundo semestre de 2005, nas terras historicamente reivindicadas pelos povos indígenas do estado do Espírito Santo e, até então, ocupadas pelas plantações de eucalipto da empresa Aracruz Celulose S.A Retratando uma realidade de conflito aberto, em todos os desenhos deste grupo os índios desenhados aparecem empunhando instrumentos como machados e serrotes, derrubando a A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 123 floresta de eucalipto. Em geral, as crianças identificavam esta figura com a demarcação de fronteiras ou com a abertura da área para a nova aldeia a ser construída na área retomada. Demarcando novamente o conflito, é apenas neste grupo que a empresa Aracruz Celulose S.A. foi representada, aparecendo em dois dos sete desenhos do grupo. A empresa é desenhada como um prédio grande em relação às demais figuras do desenho. Em um desenho, esta figura lembra uma fábrica, uma figura quadrada, com chaminés soltando fumaça. No outro, a empresa é desenhada como um edifício com vários andares, similar a prédios de uma cidade. Em nenhum dos casos a figura é colorida. Também é nesta categoria em que mais dois elementos surgem exclusivamente: a contraposição aldeia–cidade e o conflito entre índios-polícia, ambos em um mesmo desenho. Este desenho, totalmente não colorido, retrata claramente os momentos mais tensos da retomada de território, quando a polícia militar entra em cena para a reintegração de posse, a pedido da empresa Aracruz Celulose S.A. No desenho, índios e policiais se encontram frente a frente em uma estrada, tendo como pólos opostos a cidade e a floresta. Os dois personagens coletivos se encontram na estrada, os primeiros vindos da mata de mãos livres e os últimos vindos da cidade com armas e carros. Entre eles, a meio caminho, a floresta de eucaliptos sendo cortada por funcionários da empresa Aracruz Celulose S.A. “A nova aldeia Olho D’Água” Grupo significativo de crianças decidiu desenhar a nova aldeia que teve sua construção iniciada na área de litígio para ocupação e vigilância, atualmente ocupada por um casal, segundo relatos de informantes adultos. Nesta categoria estão 12 desenhos, sendo, assim, praticamente a metade da produção total das crianças. Neste grupo estão representados os elementos ligados mais diretamente ao universo simbólico da cultura guarani, retratando a aldeia, o espaço ambiental de sua inserção e o sistema sócio-cultural ali desenvolvido. A nova aldeia, denominada Olho d’água, é retratada como um local ensolarado, repleto de árvores e animais como araras, onças, peixes, tartaruga e pássaros voando. As pessoas são representadas caçando, pescando, andando pelos caminhos da aldeia ou trabalhando no cuidado do eucalipto. As casas são arredondadas ou desenhadas com as paredes divididas com traços horizontais e verticais, lembrando a armação das casas de pau-a-pique. São pintadas na coloração marrom, identificando-as com as moradias típicas das aldeias Guarani. Estão presentes, também, fogueiras com armações sobre elas, como que moqueando alimentos. O desenho das pessoas é bem melhor elaborado do que no grupo anterior. Os índios são retratados sorridentes, com riqueza de diversos detalhes como cocares, saias, tangas, penas, pintura corporal ou portando instrumentos como arcos, varas de pesca ou machados. É nesta categoria, também, que o eixo céu – sol / mata – aldeia é mais representativa, estando presente em cerca da metade dos desenhos (06 desenhos), que são também, mais elaborados e coloridos. 124 A LUTA PELA TERRA EM ARACRUZ-ES: o olhar da criança Guarani K. de Oliveira; S. M. S. Coutinho; e Z. A. Trindade CONSIDERAÇÕES FINAIS Na análise do primeiro grupo de desenhos denominado por nós “Luta pela terra” percebese que a criança guarani compreende e entende o complexo processo pelo qual seu grupo social passa atualmente. Assim, nesta categoria, os desenhos apresentam como tema principal o conflito entre índios e sociedade envolvente, representada pela empresa Aracruz Celulose S.A, a floresta de eucalipto, a cidade e a polícia militar. A compreensão do foco da disputa e da maneira desigual como ela se dá fica patente no discurso das crianças, conforme nos mostra o desenho em que o conflito com a polícia militar é retratado. Ali, todos os elementos importantes na disputa estão presentes. De um lado a mata nativa e a população indígena em marcha a pé e desarmada; do outro lado, a cidade com suas casas e a polícia armada e acompanhada de carros. Entre eles, no meio do caminho, está o centro do conflito: a floresta de eucalipto com os trabalhadores da empresa Aracruz Celulose S.A. trabalhando. Deste modo, percebe-se que a polarização cidade / aldeia é compreendida pela criança, bem como a assimetria de poder na disputa territorial, sendo a polícia militar identificada como elemento aliado à cidade e, conseqüentemente, neste caso, contrário aos povos indígenas. O grupo de desenhos que retratam a nova aldeia olho d’água também apresentou muitas questões interessantes, que dialogam bastante com as questões das etnografias sobre os Guarani. Concretamente, a nova aldeia ainda estava em construção, contando com apenas dois casais como moradores e vigias. Seu ambiente é marcado pela monocultura do eucalipto e, conseqüentemente, com baixa diversidade de fauna e flora. Nos desenhos, porém, ela é retratada como um local colorido, com florestas, animais silvestres como onça, tartaruga, pássaros, rios de águas limpas, céu azul e sol radiante. Seus moradores estão felizes, enfeitados com cocares de penas, roupas típicas e pinturas corporais. Ao invés de recorrermos à explicação de que isto representaria uma fantasia infantil, denotando sua falta de compreensão do mundo à sua volta, dada sua imaturidade, entendemos este resultado como significativo da capacidade de reflexão, entendimento e construção de significados acerca de sua realidade sócio-cultural. Concordamos, com Nunes (2002), que citando Toren (1990), defende que as crianças elaboram um conhecimento qualitativamente diferente, mas não enganoso ou incorreto sobre sua realidade. Assim, evidencia-se no discurso das crianças, expresso nos desenhos, a compreensão da interligação entre teko (o ser guarani ideal) e tekohá (a base espacial ideal deste ser), conforme apresentado na literatura sobre esta etnia. No grupo de desenhos da nova aldeia, mais do que um espaço geográfico, as crianças retrataram um espaço sócio-cultural. Ampliar sua área territorial para espaços tradicionalmente reivindicados parece ser, na visão das crianças, ampliar também as possibilidades para a vivência do ideal sócio-cultural guarani (teko). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 125 As pessoas desenhadas na nova aldeia são caracterizadas com elementos importantes do guarani ete (guarani “verdadeiro”), com traços diacríticos em relação à sociedade envolvente. Se este guarani ete implica, primordialmente em ser “avesso às seduções do mundo não-índio”, este ideal é representado pela simbolização das pessoas da aldeia adornadas com elementos diferenciadoras deste mundo que deve ser distanciado. Colares, cocares de penas, pinturas corporais, instrumentos de caça e coleta são marcantes nos desenhos deste grupo, reforçando a etnicidade, em paralelo à ocupação territorial. A própria simbolização da aldeia segue este mesmo padrão, com o retrato de um local cercado pela mata, presença de animais silvestres, pessoas pescando, carne sendo moqueada. A casa, elemento importante na simbolização infantil, é, sem exceção, retratada nos moldes da casa tradicional guarani, com formato redondo, pintada de marrom, denotando a simbolização de sua construção com materiais tradicionais, como madeira e barro. Isso é mais significativo na medida em que aldeia Três Palmeiras conta, além das casas típicas, com construções residenciais no padrão da cidade, de tijolos e quadradas além de estar às margens de uma estrada de acesso ao litoral de Aracruz, um hotel e as vilas litorâneas, além de ter acesso aos meios de comunicação de massa, como rádio e principalmente a televisão. Assim, percebemos neste trabalho que a capacidade de entender seu contexto sóciocultural e ter um papel ativo na construção de seus significados e estruturas aparecem como atributos destas crianças. A criança Guarani demonstrou ser um ator social capaz, dentro da especificidade de seu olhar e compreensão. Reforça-se, assim, a maior viabilidade epistemológica desta abordagem para a compreensão das crianças em contexto de desenvolvimento diverso em relação à sociedade ocidental. Na psicologia, os modelos ortodoxos se abrem para o entendimento da diversidade e na antropologia, a conceituação de pontos com cultura e sociedade permitem a compreensão do papel da criança com construtora de significados e compreensões primordiais para o entendimento de seu grupo. Desta forma, a concepção local sobre a infância e o contexto sócio-cultural são as referências para a compreensão da criança. Como ensina Cohn (2005), com relação à antropologia, mas que pensamos pode ser estendido para qualquer estudo da criança, “o importante (...) não é saber em que condição cognitiva a criança elabora sentidos e significados, e sim a partir de que sistema simbólico o faz”. Com isso, poderemos identificar e compreender o discurso das crianças, a partir de seu ponto de vista e dos elementos de seu contexto sócio-cultural, escapando da armadilha de aprisioná-la nos referenciais que a descrevem apenas como um ser em formação visando a condição adulta, ou como sujeito incapaz de elaborar significados válidos e produzir cultura. 126 A LUTA PELA TERRA EM ARACRUZ-ES: o olhar da criança Guarani K. de Oliveira; S. M. S. Coutinho; e Z. A. Trindade REFERÊNCIAS COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. GRUBITS, Sônia; DARRAULT-HARRIS, Ivan. Psicossemiótica na construção da identidade infantil: um estudo da produção artística de crianças Guarani / Kaiowá. São Paulo: Casa do Psicólogo; Campo Grande: Universidade Católica Dom Bosco, 2000. GRUBITS, Sônia. Ambiente, identidade e cultura: reflexões sobre comunidades guarani/ kaiowá e kadiweu de Mato Grosso do Sul. Psicologia e sociedade, 15 (1): 182-200, 2003. LADEIRA, Maria Inês. Verbete: Guarani Mbya. In: Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil. Instituto Sócio-Ambiental (ISA), São Paulo, 2003. Disponível em: http://www.socioambiental.org Acesso em 17/11/2006. LOUREIRO, Klitia. O processo de modernização autoritária da agricultura do Espírito Santo: os índios Tupiniquim e Guarani Mbya e a empresa Aracruz Celulose S/A (1967 – 1983). Dissertação de Mestrado, CCHN – UFES, 2006. NUNES, Ângela. No tempo e no espaço: brincadeiras das crianças A’uwe-Xavante. In: SILVA, A. L.; MACEDO, A. V. L. S.; NUNES, Â. (Orgs.). Crianças indígenas: ensaios antropológicos. São Paulo: Global, 2002b. BRINCADEIRA E AMIZADE: ENTRE O LÍBANO E O BRASIL, ENTRE PAIS E FILHOS1 Lorena Queiroz Merizio 2 Agnaldo Garcia 3 O brincar e a amizade na infância estão presentes em diferentes culturas e momentos históricos. De acordo com Carvalho et al. (2003), partindo do pressuposto de que cultura é o conjunto de ações e conseqüências de ações humanas, é lícito conceber a brincadeira como uma prática cultural, tendo por base o contexto no qual se constitui a identidade de seus membros. Dessa maneira, para Carvalho (2000), as brincadeiras constituem práticas culturais e, como tais, abarcam rituais que se transmitem por repetição ou por recriação em ambientes sócio-culturais diferentes. Nesse sentido, pode-se considerar as brincadeiras como parte do patrimônio cultural humano. A criança torna-se, então, agente de criação e de transmissão de cultura. Huizinga (1971) concebe o jogo (ou o brincar) como algo que permite o incremento da cultura. Alves (1997, p. 38), comentando a obra do autor, destaca que “é através do jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve, sendo assim, um fenômeno cultural” e ainda aponta o papel do “brincar com” como um meio pelo qual as crianças estabelecem laços afetivos, deixando o egocentrismo e aceitando o ponto de vista de outrem. A amizade é um tipo de relacionamento interpessoal caracterizado pela voluntariedade dos indivíduos envolvidos no início e na manutenção do relacionamento (KRAPPMANN, 1996). Para Auhagen (1996), a amizade se baseia na mutualidade, de modo que possui uma dinâmica própria, que pode ser nutrida por aspectos lúdicos. Da mesma forma, Garcia (2005) afirma que similaridade, simetria, reciprocidade e influência social são características fundamentais nas relações entre amigos. Dessa maneira, brincadeiras entre amigos podem tornar ainda mais estreita sua relação. Segundo Garcia (2006), o estudo da amizade infantil tem demonstrado relevância emocional, social e cognitiva para a vida da criança, proporcionando oportunidades para o desenvolvimento emocional, a socialização, o desenvolvimento de valores éticos e morais, além de ser um dos relacionamentos que maior satisfação traz à vida de uma criança. Por sua vez, a amizade na infância também está associada à cultura. Usualmente, os estudos sobre a amizade na infância tratam a cultura em dois níveis inter-relacionados: a cultura dos 1 2 3 Apoio: CAPES/CNPq Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. Professor do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. 128 BRINCADEIRA E AMIZADE: entre o Líbano e o Brasil, entre pais e filhos L. Q. Merizio e A. Garcia pares e a cultura de forma mais ampla, usualmente relacionada a um povo ou nação. Em relação ao primeiro aspecto, Corsaro e Rizzo (1988), por exemplo, investigaram a socialização na cultura dos pares entre crianças, destacando como parte da cultura do grupo a preocupação com o cultivo e manutenção da amizade e a ligação da amizade com a qualidade ou a perícia no desempenho de atividades específicas. Como exemplo do segundo aspecto, Schneider, Fonzi, Tani e Tomada (1997) compararam crianças canadenses e italianas quanto às habilidades de comunicação na resolução de conflitos entre amigos, apontando diferenças culturais entre Itália e Canadá quanto à qualidade da comunicação e à estabilidade das amizades. Entre as crianças italianas houve menos conflito, fato atribuído à superioridade (devido ao ambiente cultural) nas habilidades de comunicação destas crianças para resolver os conflitos. O ato de brincar e as amizades ocorrem em um contexto cultural. O presente trabalho procurou investigar e comparar a relação entre o brincar e a amizade na infância de duas gerações (pais e filhos) em duas culturas (Líbano e Brasil). A obra de Hinde (1997) é utilizada como referencial teórico. Assim, a discussão procura apontar as relações dialéticas entre os vários elementos propostos por Hinde (1997) em torno do relacionamento interpessoal (no caso, as amizades), como grupos, a sociedade, o ambiente físico e as estruturas sócio-culturais. MÉTODO Participaram da pesquisa quatro libaneses (dois homens e duas mulheres) com idades entre 56 e 69 anos que, tendo nascido e passado a infância no Líbano, se estabeleceram no Brasil, na região da Grande Vitória. Todos pertencem a famílias cristãs e constituíram família no Brasil, tendo filhos brasileiros. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas em profundidade abordando suas amizades na infância (Líbano), as amizades dos filhos na infância (Brasil) e a comparação entre ambas. Ainda foram investigadas as brincadeiras da infância dos participantes e as brincadeiras de seus filhos quando crianças, quanto às diferenças e semelhanças entre elas, as relações entre brincadeira e amizade e os aspectos culturais destacados pelos participantes. Os dados foram analisados de modo qualitativo e organizados de acordo com as categorias prévias, de acordo com os temas acima apresentados. Os nomes indicados são fictícios. AMIZADES E INFÂNCIA NO LÍBANO E NO BRASIL, PASSADO E PRESENTE 1. Amigos de Infância no Líbano Os participantes relataram suas lembranças acerca dos amigos de infância, incluindo as atividades compartilhadas, locais associados às amizades e seus aspectos e peculiaridades, além do grau de envolvimento da família nas amizades. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 129 Em sua infância, Ana considerava apenas os primos (do mesmo gênero) como amigos, o que era incentivado por sua família. Para Rute, as primeiras amizades foram com os vizinhos (familiares) e depois com colegas de escola. Ainda encontrava os amigos na igreja e nas casas das amigas. Juntas, faziam palavras-cruzadas, passeavam, lanchavam e jogavam baralho. Quando o clima permitia, viajavam nos finais de semana. Havia muita sinceridade e cumplicidade entre os amigos, já que “eram amizades muito sadias”. Os pais dela conheciam suas amigas. João recorda-se dos primos (vizinhos) e dos meninos da escola como amigos de infância. As constantes idas à Igreja também facilitavam as amizades. Os amigos de infância de Antônio eram da escola e da vizinhança, com os quais costumava brincar de bola. Construía os próprios brinquedos e seus amigos freqüentavam as casas uns dos outros para brincar. Devido aos conflitos no país (guerra), não ficavam muito na rua brincando. Os quatro relatos apontam a amizade como um relacionamento importante em suas infâncias. Quanto à rede de amigos, estes eram familiares (primos), vizinhos ou colegas da escola ou da igreja. As famílias valorizavam a amizade com outros familiares (primos). Freqüentar a casa um do outro para brincar era uma atividade importante para as amizades. 2. Amizades dos filhos no Brasil Os participantes também falaram sobre as amizades dos filhos na infância, incluindo as atividades realizadas e lugares associados às amizades, entre outros aspectos. De acordo com Ana, os amigos de seus filhos eram vizinhos e da escola. Ela sempre foi presente nas amizades dos filhos, participando das conversas e brincadeiras. Procurava conhecer os pais dos amigos dos filhos e os ambientes que os filhos freqüentavam. Rute conhecia os amigos de infância do filho. Conhecia os pais desses amigos, tornando-se amiga deles. As brincadeiras ocorriam nas garagens dos prédios (havia poucas meninas). João conhecia os amigos de infância do filho (a maior parte era de vizinhos, da escola e primos). Costumeiramente, o filho e os amigos iam a parques, jardins do palácio e ao clube libanês. Acredita que a escola intermediou a formação das amizades do filho, bem como o contato que mantinham com os patrícios. Ficava atento à educação e à família desses amigos. Antônio conhecia as amigas de suas filhas, ainda que de modo superficial. Considerou a escola o melhor lugar para se fazer amigos e como os pontos mais importantes das amizades de suas filhas “[...] o companheirismo e a socialização que elas aprenderam a ter e a fazer. Elas aprenderam com os amigos enquanto brincavam”. Ainda se referiam à verticalização das cidades como desencadeadora de novas formas de brincar. No Brasil, a escola e a vizinhança foram apontadas como fontes das amizades dos filhos na infância. Os pais acompanharam essas amizades, incentivando-as quando sadias e mantendo ligação com esses amigos e seus pais (com quem fizeram amizades). 3. Comparação entre as amizades Ao compararam suas amizades no Líbano com as amizades dos filhos, no Brasil, Ana 130 BRINCADEIRA E AMIZADE: entre o Líbano e o Brasil, entre pais e filhos L. Q. Merizio e A. Garcia considerou mais fácil iniciar uma amizade no Brasil em virtude da cultura, do comportamento e do desprendimento das pessoas. De acordo com Rute, o Brasil propicia a construção e a intensificação das amizades pelo clima favorável e a convivência “pacífica”, sem guerras. Para João, não há diferença entre as amizades que ele mantinha na infância e as que o filho teve, por possuírem personalidades semelhantes. Contudo, reconhece uma maior facilidade em ser criança no Brasil do que no Líbano, pela convivência religiosa pacífica. Para ele, ser amigo no Líbano e no Brasil envolve características semelhantes, pois “amizade se adquire, não compra”. Antônio, apesar da guerra, brincava na rua. No entanto, a verticalização urbana reduziu essa possibilidade e também o espaço de brincar, de modo que suas duas primeiras filhas brincavam na garagem do prédio ou dentro de casa. Durante as férias escolares, se aproximavam dos primos (amigos). “A semelhança entre a época delas e a minha são as amizades que existem. Só dá pra brincar se tiver amigo, né?!”. Acha que se envolve nas amizades delas somente se necessário, tentando ser superficial, como seus pais eram. De modo geral, acreditam ser mais fácil fazer amigos no Brasil em virtude de aspectos culturais e da situação política e social do país (ausência de guerras). BRINCAR NO LÍBANO E NO BRASIL 1. Brincadeiras no Líbano Os participantes descreveram as brincadeiras e os brinquedos da infância no Líbano. Quando criança, Ana costumava brincar de casinha com as primas. Ela mesma fazia os brinquedos. “Nossas brincadeiras eram com pedras, a gente catava [...] cercava com as pedras. Brinquedo a gente não tinha, não”. Não era permitido brincar com meninos. Os pais vigiavam até mesmo as brincadeiras das meninas. Segundo Rute, suas brincadeiras mais comuns no Líbano eram amarelinha, pula-corda e queimada, que ocorriam nos quintais onde ela ou as amigas moravam e no pátio da escola. Brincava de casinha e com bonecas (compradas). Apesar da possibilidade de interagir com meninos (a escola facilitava a aproximação), ela se relacionava mais com as meninas por questões de afinidades e interesses e pensamentos em comuns. Os meninos brincavam com bola e as meninas não participavam. Seus irmãos tinham um grupo específico de amigos para brincar principalmente com pião e bola-degude. Para ela, o tipo de brincadeira ‘separava’ meninos e meninas. Em virtude da neve que cobria a cidade durante muitos dias ao longo do ano, as brincadeiras precisavam ser adequadas para ambientes fechados, de forma que o baralho transformou-se em uma alternativa plausível de entretenimento. Tanto em casa quanto na escola era necessário modificar as formas de brincar para se proteger do frio intenso. João brincava de bolinha-de-gude, de corrida, de jogar bola e outros esportes. As brincadeiras aconteciam nas casas dos amigos, nas ruas da vizinhança e no pátio da escola. Os brinquedos eram artesanais, construídos e improvisados por eles mesmos, sem contar com a ajuda dos A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 131 adultos. Havia contato entre gêneros, mas nem sempre brincavam juntos em virtude do tipo de brincadeira. Segundo Antônio, a corrida era uma brincadeira comum com os amigos (criavam seus próprios carrinhos a partir de objetos acessíveis em seu cotidiano), bem como brincadeiras com bola, diversos ‘piques’ e cantigas de roda. Apostavam A amizade e o brincar ocorriam basicamente entre crianças do mesmo gênero, refletindo nas brincadeiras e nos brinquedos. As brincadeiras mais comuns entre as meninas eram casinha, bonecas, “cozinhadinho”, amarelinha, pula-corda, queimada e baralho. Entre os homens, era bola, corrida, pião, bolinha-de-gude, esportes e pique. Em ambos os gêneros, alguns brinquedos eram artesanais, construídos com objetos do cotidiano das crianças. 2. Brincadeiras dos filhos no Brasil Os participantes relataram, então, as brincadeiras e os brinquedos mais comuns da infância de seus filhos no Brasil. Os filhos de Ana brincavam de casinha, de “cozinhadinho”, de piqueesconde e com jogos de tabuleiro (todos comprados em lojas). Considera que o brincar junto contribui para a manutenção e durabilidade das amizades. O filho de Rute brincava de moto e carrinho de “Fórmula 1”, motorizados, e na praia. As brincadeiras ocorriam na garagem do condomínio O vídeo-game era muito utilizado nos encontros dos amigos, que se reuniam também para assistir televisão. O filho de João jogava bola e apostava corridas na garagem do prédio. Os brinquedos eram comprados pela facilidade em adquiri-los. As filhas de Antônio gostavam de brincar com bonecas, assistir televisão com os amigos e colecionar papel de carta. Como havia mais espaço para brincadeiras na casa dos avós, este era o local onde elas andavam de bicicleta, brincavam de “pique” e jogavam jogos de tabuleiro com os primos. 3. Comparando Brincadeiras do Líbano e do Brasil Ao comparar as brincadeiras e os brinquedos da infância no Líbano com aqueles da infância dos filhos no Brasil, Ana relatou que a maioria das brincadeiras de infância dos filhos era diferente das suas. Em comum, brincavam de casinha e fazer cozinhadinhos. Para Rute, foram poucas brincadeiras em comum entre ela e seu filho pela diferença de gênero. Destaca como semelhantes, amarelinha, queimada e bonecos. Seus irmãos e seu marido brincavam de rodar pião, jogar bolinha-de-gude, jogar bola e apostar corridas, como seu filho. Segundo João, o filho tinha brincadeiras semelhantes às suas quando criança: jogar bola, corridas, pião e bolinha-de-gude. Antônio afirma que podia brincar mais na rua (mesmo com os conflitos) e suas filhas brincavam mais dentro do apartamento. Para ele, as brincadeiras na escola como correr e pular se assemelhavam às de sua época e país. Em suma, apontaram diferenças nos objetos e na maneira de brincar, em parte devido à facilidade de acesso ao brinquedo pronto, em virtude da expansão da indústria de brinquedos infantis e pela verticalização das moradias, com redução do espaço físico. 132 BRINCADEIRA E AMIZADE: entre o Líbano e o Brasil, entre pais e filhos L. Q. Merizio e A. Garcia AS RELAÇÕES ENTRE O BRINCAR E A AMIZADE Ao relacionar brincadeiras e amizades nas duas gerações, Ana afirmou que as brincadeiras contribuíram para as amizades de seus filhos. Para Rute, as brincadeiras auxiliaram na formação e na estabilidade das amizades por aproximarem as pessoas por similaridades. Ela incentivava as brincadeiras do filho, visando seu desenvolvimento motor e afetivo. Acredita que a brincadeira atua incisivamente na formação do ser humano e que o brincar impulsiona criações e descobertas. João tinha brincadeiras diferenciadas para cada grupo de amigos. Segundo ele, a brincadeira influencia na formação e manutenção das amizades, por ser algo prazeroso, que envolve e aproxima as pessoas. Acredita que a tranqüilidade das amizades do filho relaciona-se diretamente ao fato do Brasil possibilitar brincadeiras sadias, não estimulando a desarmonia religiosa entre as crianças. Para Antônio, as brincadeiras influenciaram de modo positivo tanto a construção como a manutenção de suas amizades de infância e também as de suas filhas, pelo fato de criarem “momentos de confiança e intimidade”, o que permite que as pessoas possam ir “aprendendo a lidar com as coisas”. Em suma, todos afirmaram que as brincadeiras contribuíram efetivamente na formação e manutenção das amizades, especialmente no caso dos filhos. Por meio da brincadeira é possível conhecer pessoas que podem se tornar amigos. Da mesma forma, segundo os pais, reunir-se para brincar contribui para a manutenção das amizades. BRINCAR E AMIZADE: A PERCEPÇÃO DE ASPECTOS CULTURAIS Os participantes destacaram alguns traços culturais do brincar e da amizade. Neste sentido, procuram transmitir costumes, valores, língua e características culturais libanesas para os filhos. Rute mostrou-se feliz por ser libanesa, mas admite que a maior convivência com brasileiros a modificou, de modo que atualmente ela se identifica muito com a cultura do Brasil. Durante sua infância no Líbano, estudou em escolas mistas (em termos de gênero e religião), o que proporcionou ambientes agradáveis de convivência. Procurava clubes e instituições libanesas para sentir-se confortável e integrada. Segundo ela, os casamentos entre primos são uma tradição libanesa, uma “cultura que realmente não existe em outros lugares”. Ela credita grande valor à cultura libanesa, mas não força o filho a assumi-la, uma vez que ele nasceu e foi criado no Brasil, estando acostumado e satisfeito com o jeito brasileiro. Ela demonstra muito orgulho de sua terra-mãe. Todavia, sente uma grande ‘vergonha’ decorrente dos inúmeros conflitos lá existentes. Segundo Rute, os conflitos ocorrem entre as religiões, por uma antiga disputa de poder. Para ela, o filho ter nascido e sido criado aqui foi melhor, pois ele pôde aproveitar a infância e/com as amizades. Ressalta que ela e o esposo sempre buscaram guiá-lo para boas amizades, por meio das conversas e diálogos esclarecedores. Afirma A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 133 que “aqui eu me achei. Eu me encontrei aqui na paz, na tranqüilidade. Eu me encontrei aqui, entendeu?! Então eu eduquei meu filho conforme a área em que ele viveu, a cultura”. João afirma que entre os cristãos, ao contrário dos muçulmanos, não há segregação entre homem e mulher. Nos colégios em que estudou, havia meninos e meninas na mesma sala de aula, sem privilégios decorrentes ao gênero. Alguns conflitos entre crianças de diferentes religiões começavam por motivos banais. Quando veio para o Brasil, procurou clubes e instituições libanesas para sentir-se mais acolhido, apesar de já ter familiares aqui. Afirma ‘criar’ no filho amor pela pátria dos pais e avós, querendo que ele tenha orgulho de sua ascendência libanesa. Entre os fatores culturais no Líbano, a religião ocupa posição de destaque. A religião era importante na formação familiar e nas atividades cotidianas no Líbano. No Brasil, procuraram preservar a cultura libanesa, como na culinária ou no apreço pelo ouro, pelas jóias, característica bem presente na cultura libanesa. Fazem questão de transmitir aspectos culturais de seu país de origem aos filhos brasileiros, como a língua árabe e a alimentação peculiar. Ainda gostariam que os filhos conhecessem o Líbano. Ainda citam costumes sociais, como o casamento entre primos. Enaltecem o Brasil pelo clima, pela “paz e tranqüilidade”, sentindo-se envergonhados pelos conflitos no Líbano justificados pela religião. Ressaltam que a infância dos filhos foi melhor por ter sido vivenciada no Brasil. DISCUSSÃO A presente discussão procura interpretar os dados de acordo com a proposta de Hinde (1997) para o estudo do relacionamento, partindo dos relacionamentos (amizades), a ligação entre diferentes formas de relacionamento (como amizade e relações familiares), entre a amizade e grupos (a família), entre a amizade e a sociedade, até a participação do ambiente físico e de estruturas sócio-culturais e suas relações dialéticas com a amizade. A amizade na infância apresentou similaridades e diferenças entre os dois países. Em ambos, os amigos eram outras crianças do mesmo gênero e tinham o brincar como atividade de destaque com os amigos. No Líbano, contudo, parece haver uma maior sobreposição das relações de amizade com as relações familiares. Os primos foram freqüentemente citados como amigos, o que era incentivado pela família. No Brasil, apesar da presença de familiares (especialmente primos) entre os amigos, eles não exercem papel de destaque na rede de amigos (Garcia, 2005). Apesar da família como fonte importante de amigos, a escola, a vizinhança e a igreja também são citadas. Possivelmente, o valor dados às amizades dentro da família esteja associado às tensões culturais entre diferentes grupos, em função principalmente de diferenças religiosas, como entre cristãos e muçulmanos. No Brasil, a escola e a vizinhança foram apontadas como fontes importantes de amizades dos filhos. Outra diferença refere-se a uma maior independência dos filhos em relação aos 134 BRINCADEIRA E AMIZADE: entre o Líbano e o Brasil, entre pais e filhos L. Q. Merizio e A. Garcia pais para a escolha dos amigos no Brasil, possivelmente devido a um nível menor de tensões culturais. No Brasil, os pais parecem se envolver mais com os amigos dos filhos (de fora da família) e mesmo com os pais desses amigos, chegando a fazer amizade com eles. O ambiente físico também foi um fator relevante para as amizades. Além dos objetos (brinquedos), cujas propriedades estavam associadas às características culturais de cada lugar, ainda houve menção de aspectos do ambiente mais amplo, como a estrutura das moradias e mesmo o clima. Os pais ressaltaram a verticalização das cidades como desencadeadora de novas formas de brincar (fato que seria comum às cidades nos dois países). Dois aspectos culturais afetaram as amizades diretamente: o brincar e a religião. No Líbano, segundo os participantes, a religião exerce uma forte influência sobre a formação familiar, as atividades cotidianas e as relações sociais, afetando diretamente as amizades. De modo geral, acreditam ser mais fácil tecer redes de amizade no Brasil em virtude de aspectos culturais. No Líbano e no Brasil as amizades infantis, segundo os participantes, estavam associadas a brincadeiras. O brincar pode ser interpretado como uma importante forma de mediação cultural para a relação entre amigos na infância. O brincar, como fenômeno básico da cultura (Huizinga, 1971), serviria de objeto cultural em torno do qual as amizades infantis se organizariam, ao menos em parte. Amizades e brincadeiras também se afetam mutuamente em uma relação dialética. Assim, a separação entre gêneros nas amizades infantis está associada com a separação dos brinquedos para os diferentes gêneros (tanto no Líbano quanto no Brasil). Apesar das diferenças culturais, há traços semelhantes entre as brincadeiras dos dois países. Algumas diferenças podem estar mais relacionadas com o momento histórico do que com diferenças entre os países. Assim, no Líbano, em ambos os gêneros, alguns brinquedos eram artesanais, enquanto no Brasil, havia facilidade de adquirir o brinquedo pronto, em virtude da expansão da indústria de brinquedos. Todos consideraram que as brincadeiras contribuíram efetivamente para a formação e a manutenção dos relacionamentos de amizade. A brincadeira, em sua íntima relação com a cultura, pode ser considerada como produto e produtora de ações humanas, que transmitidos de geração a geração, denotam identidades grupais e pessoais. Conforme proposto por Hinde (1997), os grupos também afetaram os relacionamentos, especialmente o grupo familiar que, segundo os participantes, apresentaria diferenças entre o Líbano e o Brasil. Os participantes ainda perceberam a influência da sociedade como um todo sobre as amizades e indicaram diferenças entre o Líbano e o Brasil quanto a este aspecto, especialmente pela ausência de conflitos entre grupos em nome da religião no Brasil. Tomando por base o modelo sugerido por Hinde (1997), pode-se encontrar nas respostas acima relações dialéticas entre três dimensões centrais: os relacionamentos (as amizades e os relacionamentos familiares, que estão intimamente relacionados), as estruturas sócioculturais (ligadas à religião, às brincadeiras, entre outros elementos) e o ambiente físico (que sofre as modificações do ser humano, incluindo os brinquedos e os aspectos geográficos A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 135 e ecológicos do ambiente urbano). Na comparação das duas culturas, tanto os aspectos ambientais quanto as estrutura sócio-culturais revelam particularidades que, contudo, continuam a manter um padrão de similaridade que permite que aqueles que viveram infância e suas brincadeiras em outro país e cultura reconheçam muitos traços comuns da amizade e do brincar entre essas duas culturais, a despeito das diferenças. Os dados ainda indicam um fator de comunicabilidade das culturas, de integração, em que os que cresceram em outro país e cultura integram memórias de um outro mundo (tempos, lugares e culturas diferente) com a percepção do brincar e da amizade em outro país, com outro idioma e cultura, indicando que brincar e amizade e a mediação do brincar pela amizade, apesar das suas variações culturais, representa não apenas um caráter presente em diversas culturas, mas permite a comunicação entre essas culturas em que pessoas que mudam ainda testemunham relações de amizade e brincar entre os seus filhos. A utilização do modelo de Hinde para a pesquisa do relacionamento interpessoal, especialmente levando em conta dimensões culturais, deve ter um detalhamento ou reelaboração quanto ao papel do ambiente físico e das estruturas sócio-culturais, que também necessitam de uma melhor definição de sua natureza e de sua posição no modelo. O presente trabalho propõe que, entre as estruturas sócio-culturais, sejam incluídos fatores culturais em sua diversidade (como fatores religiosos, a cultura ligada ao brincar, as expressões idiomáticas utilizadas no relacionamento, entre outros). Do ponto de vista ambiental, propõese que este seja considerado em suas dimensões mais amplas (ecológicas e geográficas), mas também em suas dimensões mais restritas, referindo-se aos objetos presentes no ambiente físico. Também se faz necessário relacionar dialeticamente essas duas dimensões, uma vez que a cultura e o ambiente físico se afetam mutuamente. Finalmente, não são apenas as relações entre relacionamento interpessoal e as dimensões acima que necessitam ser repensadas. O próprio conteúdo dos relacionamentos deve incluir o ambiente físico e fatores culturais não apenas como cenário para os relacionamentos, mas como fatores de mediação do relacionamento. A presente pesquisa deixou claro como a amizade e o brincar, expressões humanas presentes em diferentes culturas, estão relacionados e que fatores do ambiente e da cultura fazem a mediação entre o brincar e a amizade. As brincadeiras tomam objetos do meio ambiente e lhe atribuem um significado próprio e as próprias brincadeiras fazem a mediação entre os amigos. O modelo de Hinde serve, assim, como ponto de partida para uma análise mais ampla dos relacionamentos, devendo-se, contudo, ampliar a consideração de fatores culturais, além das dimensões psicossociais tipicamente investigadas nos relacionamentos. 136 BRINCADEIRA E AMIZADE: entre o Líbano e o Brasil, entre pais e filhos L. Q. Merizio e A. Garcia REFERÊNCIAS ALVES, R. M. A interdependência na descoberta das regras de um jogo: uma análise piagetiana. Dissertação de Mestrado, Vitória: UFES, 1997. AUHAGEN, A. E. Adult friendship. In: A. E. Auhagen e M. Von Salich (orgs). The diversity of human relationships. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 229-247. CARVALHO, A. M. A. Brincadeira, universalidade e diversidade cultural. In: Psicologia no Brasil – diversidades e desafios. XXX Reunião anual de psicologia. Universidade de Brasília, Brasília: FINATEC, 2000. CARVALHO, A. M. A.; MAGALHÃES, C. M. C.; PONTES, F. A. R.; BICHARA, I. D. (Orgs). Brincadeira e cultura: viajando pelo Brasil que brinca – brincadeiras de todos os tempos, v. II, São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. CORSARO, W. A. & RIZZO, T. A. (1988). Discussione and friendship: Socialization processes in the peer culture of Italian nursery school children. American Sociological Review, 53 (6), 879894. GARCIA, A. Psicologia da amizade na infância – uma introdução. Vitória: UFES, 2005. GARCIA, A. Relacionamento Interpessoal – estudos brasileiros. Vitória: UFES, 2006. HINDE, R.A. (1997). Relationships: A Dialectical Perspective. Hove: Psychology Press. HUIZINGA, J. (1971). Homo Ludens. Boston: Beacon Press. KRAPPMANN, L. Amicitia, drujba, shin-yu, philia, Freundschaft, friendship: on the cultural diversity of a human relationship. In: W. M. Bukowski, A. F. Newcomb & W. W. Hartup (eds.). The company they keep: friendship in childhood and adolescence. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 19-40. SCHNEIDER, B. H., FONZI, A., TANI, F. & TOMADA, G. (1997). A cross-cultural exploration of the stability of children’s friendships and predictors of their continuation. Social Development, 6 (3), 322-339. POLÍTICA PÚBLICA SOBRE DROGAS NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA1 Mirian Cátia Vieira Basílio 2 Maria Lúcia Teixeira Garcia 3 Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o processo de formulação das políticas públicas de álcool e drogas pelo legislativo municipal de Vitória. Trata-se de um dos eixos de análise da dissertação: “Política de enfrentamento às drogas: um estudo sobre a formulação de políticas públicas no processo decisório do legislativo municipal de Vitória” desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo. Parte-se aqui do pressuposto que o uso indevido de drogas configura-se como uma das manifestações da questão social. Trata-se de fenômeno complexo que demanda do pesquisador uma análise tanto do contexto da produção quanto da demanda e da oferta de uma mercadoria pela sociedade ao mercado em uma sociedade capitalista (CARVALHO; GUERREIRO, 2004). Como fruto também das expressões que a questão social adota no momento atual da sociedade capitalista, a oferta e a demanda por drogas (lícitas e/ou ilícitas) inserem-se em um contexto do empobrecimento da classe trabalhadora com a consolidação e expansão do capitalismo desde o início do século XIX, bem como o quadro da luta e do reconhecimento dos direitos sociais e das políticas públicas correspondentes, além dos espaços das organizações e movimentos por cidadania social (BENEVIDES, 2005). Uma análise das legislações de drogas propostas pelo legislativo municipal de Vitória/ ES possibilita identificar as questões que envolvem o processo decisório, através da identificação dos atores públicos e privados que se apresentam na cena política, que perspectiva de droga esses atores reafirma e a quem as ações propostas buscam atingir. Adotar-se-á uma análise crítica que visualize os ditames da realidade política que está sistematizada e pensada dentro de uma lógica da sociedade atual. DROGAS E POLÍTICAS PÚBLICAS O fenômeno contemporâneo do consumo de drogas lícitas e ilícitas não tem precedentes na história da humanidade, dado que seu alto desenvolvimento encontra-se profundamente atrelado a elevados interesses econômicos (MESQUITA, 2006). 1 2 3 Apoio: FAPES/CNPq Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UFES. Professora do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UFES. 138 Política Pública sobre Drogas no município de Vitória M. C. V. Basílio e M. L. T. Garcia Mesquita (2006) refere que a história do consumo de drogas se mistura com a história da humanidade, mas em nenhum momento anterior ao contexto atual, o consumo de drogas foi estimulado como produto, com mercado e marketing estabelecidos, e com lucros que chegam à casa de 500 bilhões de dólares/ano4. Estes lucros, como em toda cadeia produtiva, vão crescendo do produtor ao distribuidor final. Interesses comerciais associados envolvem a poderosa indústria de armas e o mercado financeiro, além de outros segmentos menos relevantes. Hoje, o Brasil globalizado, é parte deste fenômeno. De um país considerado de trânsito, ele tornou-se, gradativamente, um grande consumidor de drogas ilícitas, além de apresentar um intenso consumo de drogas lícitas5 (MESQUITA, 2006). Pela sua diversidade, pela complexidade de sua teia econômica e social, as drogas apresentam uma tendência de consumo sem data para acabar. Mesquita (2006) nos provoca com uma indagação: como regular a utilização de drogas pela população, evitando danos à saúde, aos seus usuários e a sociedade como um todo, já que ela envolve múltiplos interesses? No caso das drogas lícitas, como as bebidas alcoólicas, o seu consumo pode ser entendido como um ato social que expressa valores, normas e atitudes de cada cultura, existindo, em todas as sociedades, padrões institucionalizados de uso destas bebidas, bem como de motivos e de oportunidades e escolha para o seu consumo (BERTOLOTE, 1997). O ambiente cultural funcionaria como um definidor de estratégias de controle social6 do uso do álcool, definindo a forma, o como e o momento de beber, priorizando os espaços e as situações adequadas. Bertolote (1997, p. 132) ressalta que as ocasiões de ingestão de bebidas alcoólicas “[...] funcionam como expressão e apoio à estrutura social existente, estimulando interações sociais e fortalecendo identificações e solidariedade coletiva” (regra é beber em grupo, ao abrigo dos valores e das afiliações comunitárias). A ampla variação de relacionamento com as bebidas alcoólicas, por exemplo, sobre o processo de elaboração das políticas públicas de saúde em todo o mundo (KINGDON, 1995). Afinal, o que se deve fazer para controlar os problemas gerados por uma substância que ao mesmo tempo em que traz dados alarmantes de prejuízos para a saúde pública, por outro lado está associada a pontos que estão arraigados em nossas culturas? Reportando-nos historicamente vemos que, com o advento da Revolução Industrial e com as modificações estruturais por ela provocadas na sociedade, o relacionamento das pessoas com as drogas passou por transformações profundas. No caso do álcool, tanto a qualidade quanto a disponibilidade de acesso às bebidas alcoólicas sofreu um aumento significativo 4 5 6 Esta cifra é extremamente vulnerável a erros, por se tratar de uma atividade com difícil mensuração de lucros. Dados da Organização das Nações Unidas indicam em 2005 um crescimento no consumo de drogas sintéticas no Brasil e uma baixa prevalência de consumo de maconha e cocaína. No caso do álcool, o levantamento do perfil de consumo de álcool no Brasil (de 2007) identificou que 57% dos brasileiros são bebedores freqüentes ou bebedores freqüentes pesados e 61% dos consumidores de bebidas alcoólicas no país usam a cerveja. O controle social aqui é apreendido como aquele controle realizado pelo Estado sobre a sociedade através da implementação de políticas sociais para amenizar ou evitar os possíveis conflitos sociais (CORREIA, 2000). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 139 com o surgimento da produção industrial e da crescente indústria alcooleira, que já era (e ainda é) capaz de fazer marketing junto às massas e lobby 7 junto à classe política. Embora muitos sejam os estudos e intervenções realizadas e que apontam para a necessidade de políticas públicas, o fenômeno do uso indevido de drogas ainda se depara com barreiras tais como os interesses econômicos envolvidos na produção e venda de drogas (lícitas e ilícitas), a multiplicidade de perspectivas que norteia a todos (pesquisadores, leigos, políticos, religiosos, etc) em suas ações e, por fim, a falta de recursos (humanos e materiais) adequados para o seu tratamento (BABOR; CAETANO; CASSWELL, 2003). Ainda são insuficientes as investigações que abordam a questão em suas múltiplas dimensões, pois os estudos se reduzem na sua quase totalidade a diagnósticos parcializados e/ou investigações sobre a conseqüência mais dolorosa do uso de drogas: a morte. O aumento crescente do uso de substâncias psicoativas e os elevados custos sociais decorrentes deste consumo vêm exigindo que avancemos na discussão das políticas públicas tanto direcionadas à redução da oferta quanto à redução da demanda e a adoção de medidas mais eficazes sob o ponto de vista da saúde pública (LARANJEIRA; ROMANO, 2003). Durante décadas a maioria dos países (incluindo o Brasil), privilegiou a repressão às substâncias ilícitas, mas pouco se fez no campo da prevenção (SICA, 2005). O controle sobre a produção, distribuição e consumo das drogas em geral, tem se mostrado para as autoridades ora como uma questão de saúde pública ora de segurança pública (GARCIA; LEAL, 2006). Diferentes países vêm estabelecendo políticas públicas de controle de drogas, com mais ou menos sucesso. O Brasil por sua vez, precisa ainda achar um caminho próprio, culturalmente aceitável, integrador dos esforços esparsos empreendidos até o momento. Encontrar este caminho não significa inventar a roda, mas buscar o melhor de algumas experiências históricas já desenvolvidas no país, bem como as ações de melhores resultados empreendidos por outros povos. Assim, o grande desafio do governo e da sociedade será estabelecer uma política pública de drogas que pense em ações de redução da oferta, redução da demanda e redução de danos (MESQUITA, 2006). No caso do Brasil, este caminho deverá levar em consideração o panorama da atual sociedade brasileira (VAISSMAM, 2004) na qual os interesses econômicos envolvidos na produção e venda de drogas (lícitas e ilícitas) incidem e delimitam ações de lobbies no Legislativo brasileiro. As políticas públicas nessa área envolvem uma intrincada luta entre diferentes grupos de interesse para que sejam (ou não) adotadas medidas políticas que sirvam como estratégia global de criação de um ambiente que ajude as pessoas a fazerem escolhas saudáveis (EDWARDS, 1994). Essa é uma área que requer assim problematizar a trajetória que leva uma questão a inserir-se na agenda política. 7 Pressupõe competição e luta concorrencial de interesses divergentes. É uma resposta à intervenção do Estado, por isso é um fenômeno usual na esfera legislativa (VIANNA, 2000). 140 Política Pública sobre Drogas no município de Vitória M. C. V. Basílio e M. L. T. Garcia Uma formulação de uma política pública é resultado de um longo e emaranhado processo que envolve interesses divergentes, confrontos e negociações entre várias instâncias e atores (VIANA, 2000). Envolve assim relações e mobilizações estabelecidas por diferentes atores (que representam interesses antagônicos), pelas instituições que podem facilitar ou impedir o acesso dos atores aos espaços decisórios; pelo processo de decisão, no qual se estabelecem coalizões e escolhas e também pelos produtos da política resultante (SILVA, 2001). Uma política pública, via de regra, é mais que decisão e requer diversas ações estrategicamente selecionadas para implementar as decisões tomadas. A decisão política corresponde a uma escolha a partir de várias alternativas, conforme a hierarquia das preferências dos atores envolvidos. Mas, como nos alerta Rua (s/d), uma política pública implica decisão política, mas nem toda decisão política constitui uma política pública. Concebemos políticas públicas como estratégias de ação estatal visando à consecução de objetivos políticos nos mais diversos domínios da vida em sociedade (SILVA, 2001). Diversas podem ser as formas pelas quais os interlocutores organizados se vinculam às arenas de decisão do Estado. Com isso, para entender essas relações, é necessário que se compreendam as mudanças na estrutura do processo político, na diversificação funcional e amplitude das associações de interesse e na maneira de como seus representantes compactuam com as instâncias decisórias (LABRA, 1999). De acordo essa autora (1999), essa extrema variedade associativa responde pelo alto grau de governabilidade das democracias modernas, o que não significa simplificação dos processos de decisão pública, mas sim o contrário, pelo grande número de atores tanto no setor público como no privado e dos diferentes níveis e áreas funcionais, tanto governo como sociedade, acabam constituindo uma verdadeira rede de políticas, o que significa um complicador no campo do processo decisório. Tomando como exemplo a indústria de bebida alcoólica, esta se insere na arena política, em geral, para proteger os seus interesses comerciais. Em alguns países a indústria é dominante, sua presença na área governamental é visualizada na cadeira política. Por isso, representantes das indústrias buscam influenciar os defensores da saúde pública na hora da construção da agenda política, na escolha da legislação políticas e na escolha dos debates políticos (BABOR, CAETANO, CASSWELL, 2003). Um exemplo é a grande quantidade de dinheiro é gasto com marketing pelas indústrias de bebidas não só para promover seu produto, mas para o financiamento de campanhas políticas para garantir o seu espaço na mídia., Assim, a forma de fazer da indústria é jogar, colocando os seus interesses à frente de outros interesses que poderiam beneficiar a população em geral, que muitas vezes acaba por ficar fora deste cenário de decisão (BABOR, CAETANO, CASSWELL, 2003). A partir da análise de vários jogos na arena política do álcool, poderia se fundamentar a conclusão de que políticas de drogas acabam por produzir interesses competitivos, valores e ideologias. No caso do álcool, assim como outros produtos, ele é atrativo para a economia, mas requer atenção política para as formas de regulação, taxação e necessidades humanas em virtude do seu potencial para gerar problemas (BABOR, CAETANO, CASSWELL, 2003). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 141 O processo político do álcool e das drogas em geral, precisa assim ser pensado como uma arena na qual comparecem múltiplos e antagônicos interesses. Portanto, como refere Silva (2001), na análise de uma política pública é necessário identificar como esses diferentes atores sociais e institucionais interagem, formulam seus problemas e buscam solucioná-los, e de como se dá à negociação entre forças sociais e políticas envolvidas. Neste trabalho, analisaremos o processo de formulação das políticas públicas de álcool e drogas pelo legislativo municipal de Vitória tendo como ponto de partida as legislações propostas pelo legislativo municipal, aprovadas entre os anos de 2000 e 2005, buscaremos identificar quais são os atores públicos e privados, que perspectiva da droga estes atores reafirmam e a quem busca atingir. MÉTODO Após autorização prévia do responsável pelo departamento de apoio do legislativo, foi realizado um levantamento do conjunto de textos legislativos e projetos de lei referentes ao tema álcool (bebidas alcoólicas). Optamos por um recorte temporal (2000-2005), privilegiando as duas últimas legislaturas. Utilizou-se a pesquisa documental (Projetos de Lei que tramitam na Câmara de Vitória). Os documentos foram organizados considerando-se: autor, partido político, grupo que o legislador prioriza e representa, e o foco da ação da legislação, apresentado no momento em que o vereador justifica a legislação de sua autoria. Para essa pesquisa documental foi realizada uma busca através de um sistema disponível no meio eletrônico do Legislativo municipal. Para isso, utilizamos as palavras chaves: toxicológico, fumar, drogas, bebidas alcoólicas, solvente, fumo, tabaco, substâncias entorpecentes, dependência química e álcool. Foram localizados 16 projetos de lei no período. Destes projetos, 10 viraram Lei (Quadro I a VI). Ao observarmos estas legislações temos que os conteúdos estão focados em: campanhas e ações educativas; restrições a locais de venda (no caso do álcool); proibição de publicidade; restrições à compra e proibição do uso. RESULTADOS Entre os anos de 2000 e 2005 foram submetidos 16 e destes 10 viraram Lei. Ao observarmos estas legislações temos que os conteúdos estão focados em: campanhas e ações educativas; restrições a locais de venda (no caso do álcool); proibição de publicidade; restrições à compra e proibição do uso. A proposição destas leis, em sua maioria, foi de vereadores de partidos de direita, que no cenário político do município, apresentou-se, como maioria no legislativo, no período de 1999-2005. 50% das leis têm o caráter de ação direcionado a medidas repressivas. “Autoriza 142 Política Pública sobre Drogas no município de Vitória M. C. V. Basílio e M. L. T. Garcia o exame laboratorial periódico em alunos do município para constatar o uso de drogas” (lei 14/2000). Incorporam uma ideologia anti-drogas, plataforma para se divulgarem e implantarem medidas de controle daqueles fenômenos de consumo considerados, no referido prisma ideológico, como socialmente indesejável e, portanto, exigindo repressão (BUCHER; OLIVEIRA, 1994). Tomando o projeto de lei 14/2000 como exemplo, identifica-se uma visão preconceituosa, repressora e, por vezes, moralista, obtendo aceitação nos segmentos políticos e públicos que se destacam seja pelo desconhecimento do tema, seja pelas tendências conservadoras ou antiliberais. Para os autores, a ação mais eficaz consiste no papel de disciplinarização das pessoas, à medida que compactua com normas de conduta constitutivas de um amplo projeto normalizador das relações sociais. Apontando a possibilidade e a ameaça de condutas desviantes, funda-se a prescrição normativa que desencadeia o controle, a intervenção e a exclusão. Outra marca encontrada nos textos dos projetos de lei foi o autoritarismo e a monossemia que direcionam suas operações verbais, dirigidas aos leitores com objetivos claramente persuasivos, visando a exercer influência decisiva sobre as suas representações (BUCHER, OLIVEIRA,1994). A lei 5282/2001 traz o discurso de combate às drogas: “Dispõe sobre campanha educativa do combate ao uso de drogas em diversões públicas e dá outras providências”, propondo que durante a realização de shows e eventos públicos de campanhas educativas sobre o uso de substâncias entorpecentes e dá outras providências. Babor; Caetano e Casswell (2003), baseados em análises de políticas que propõem a modificação do contexto no qual ocorre o consumo de bebidas alcoólicas, afirma que algumas dessas modificações têm baixa efetividade, o que requer uma avaliação sistemática antes de implementá-las. Programas de informações sobre os males das drogas conforme aprovado pela Lei 6464/ 2005 que “institui a semana de prevenção às drogas e ao fumo na rede municipal de ensino”, só surtirão efeito se forem acompanhadas de demais políticas que não sejam contraditórias. Por exemplo, de nada adiantaria o educador informar ao aluno sobre os prejuízos do álcool e de outras drogas enquanto as propagandas continuam mostrando situações que incentivam o consumo, passando a impressão de que o álcool não faz mal (EDWARDS, 1994; LARANJEIRA, 2004). Ou ainda, que a comercialização de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos seja uma prática recorrente no Brasil e em Vitória. A proposta de criação do Conselho Municipal de Políticas sobre drogas no município de Vitória (Projeto de lei 13/2005), em conformidade com o preconizado pela Política Pública sobre drogas do governo federal foi vetada. Assim, a instância competente para formular e acompanhar a implementação da política municipal na área não é instituída. Abaixo apresentamos um quadro síntese dos projetos de lei e suas ementas. A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos Projeto de Lei Ementa 66/2000 Altera os artigos 1º, 2º, 3º e 4º da Lei 5052/2000 5052 que proíbe a veiculação visual de bebidas alcoólicas. Lei Base Partido aliada Político propositor 143 Características da proposta PSDB repressão Igrejas evangélicas 150/2000 Dispõe sobre as restrições a venda de produtos derivados do fumo e bebidas alcoólicas a menores de 18 anos. veto PSC Associação restrição de moradores 175/2000 Dispõe sobre a promoção durante a realização de shows e eventos públicos de campanhas educativas sobre o uso de substâncias entorpecentes e dá outras providências. 5282/2001 PMDB Médicos e educativo profissionais da área da saúde 14/2000 Autoriza exame laboratorial periódico em alunos do município para constatar o uso de drogas e dá outras providências. 5350/2001 PMDB Médicos e repressão profissionais da área da saúde 63/2000 Autoriza o município a instituir unidades Volantes de Educação Sanitária, na forma que estabelece e dá outras providências. 5281/2001 PMDB Médicos e restrição profissionais da área da saúde 137/2001 Institui o exame toxicológico aos eleitos para mandatos eletivos secretários e ocupantes de cargos comissionados da PMV e da CMV. 5378/2001 PFL Comercian- repressão tes de pescado e pescadores 175/2001 Altera Artº 1º da Lei nº de 16 de abril de 2001. Art. 1º As empresas que comercializam solvente (tinner) no município de Vitória, somente poderão vendê-las a pessoas maiores de 18 anos, mediante apresentação de documento. 5763/2002 PMDB Projetos de restrição utilidade pública. Alguns focam a questão das áreas verdes 109/2002 Obriga os cinemas localizados no município de Vitória a exibirem filmes publicitários com esclarecimentos e alerta a respeito dos malefícios causados por drogas, bebidas alcoólicas, fumo e doenças infecciosas sexualmente transmissíveis e AIDS. veto PSC Associações de moradores PMDB Médicos e repressão profissionais da área da saúde 192/2002 Proíbe a venda de bebidas alcoólicas 5766/2002 nos parques do Município. repressão continua 144 Política Pública sobre Drogas no município de Vitória M. C. V. Basílio e M. L. T. Garcia continuação Projeto de Lei Ementa 63/2003 Proíbe a venda de bebidas alcoólicas veto nos parques do município. Lei Partido Base Político aliada propositor Características da proposta PMDB Médicos e repressão profissionais da área da saúde 162/2004 Autoriza o poder Executivo a criar veto campanha escolar antidrogas na rede pública escolar de ensino. PHS Comunida- educativo des periféricas 154/2004 Proíbe o consumo de bebidas alcoólicas, de produtos que representam riscos de explosão nos postos de gasolina do município. PSDB Associações de moradores de bairros de classe média repressão PDT Biarros periféricos fiscalização PL Igrejas educativo 512/2005 Fica declarada de utilidade pública o 6626/2006 instituto de Diagnóstico, tratamento e recuperação da Dependência Química –“Instituto Perspectiva”. PSDB Comunidades tratamento 315/2005 Dá nova redação ap artigo 1 da Lei 5766 de 02/11/02. “Art. 1. Fica proibida a venda de bebidas alcoólicas no interior dos parques municipais, exceto cerveja, em lata”. PFL Comercian- repressão tes que lidam com pescado e os pescadores 13/2005 veto Autoriza o poder Executivo a criar o veto Conselho Municipal de Políticas sobre drogas no município de Vitória e dá outras providências 122/2005 Institui a semana de prevenção as drogas e ao fumo na rede municipal de ensino. 6464/2005 6495/2005 CONSIDERAÇÕES FINAIS As políticas públicas de drogas formuladas pelo legislativo municipal inscrevem-se em um contexto permeado por um lado, pela veiculação de explicações e recomendações que garantam a adaptação dos cidadãos à ordem social, concebida como entidade a-histórica, inquestionável, imutável e ideal; por outro, provem intervenções repressoras e punitivas que excluem o sujeito diferente, percebido como uma ameaça às instituições e à sociedade como um todo. Assim, é preciso controlar o comportamento de jovens estudantes de escolas públicas municipais a dizerem não às drogas (sem refletir o por que e o para que serve esse discurso). A Produção da Psicologia Social no ES: memórias, interfaces e compromissos 145 A dimensão ideológica permeia o conjunto desses textos de leis elaborados pelo legislativo, vinculando suas formas e idéias a sistemas de poder presentes nas relações sociais, necessitando de controles eficazes. Constrói um quadro de moralismo que se baseia na intolerância quanto à pluralidade das opções e visões; por não se fundar numa ética humanista, torna-se incapaz de caminhar em direção a valores representativos de liberdade e justiça social. O modelo repressivo apregoado pelo discurso anti-droga deve ser questionado não apenas pela sua comprovada ineficácia em diminuir o consumo de drogas e em contribuir significativamente para resolver as questões de saúde pública que levanta, mas por impor um sistema de intervenção cujos resultados são ineficazes e não questionam a questão de base – a desigualdade e injustiça social perversa. A participação política da sociedade civil emerge como ponto central no interior de superação desse quadro, entretanto a proposta de criação do conselho gestor de política na área é vetado. Sem enfrentamento, e sem disputas políticas em torno de visões antagônicas, as relações de poder que os diferentes segmentos da sociedade civil organizada poderiam deixar ficam como potenciais vir a ser. REFERÊNCIAS BABOR, T. F.; CAETANO R.; CASSWELL, S. Alcohol: ordinary commodity. Oxford: Oxford Press, 2003. BENEVIDES, M. V. M. A questão social no Brasil: os direitos econômicos e sociais como direitos fundamentais. Disponível em: <http://www.hottopos.com/index.html>, Acesso em: 20 de fevereiro de 2005. BERTOLOTE, J. M. Problemas sociais relacionados ao consumo de bebidas. In: RAMOS, S. P; BERTOLOTE, J. M. Alcoolismo hoje. Brasília: Distrito Federal, 1997. BUCHER, R.; OLIVEIRA, S. R. M. O discurso do combate às drogas e suas ideologias. Revista Saúde Pública. 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