Revista Jurídica

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Revista Jurídica
Revista Jurídica FACULDADES COC
Ano VI - Nº 6 - Outubro 2009
Ano VI - Nº 6 - Outubro 2009
6
Revista
Jurídica
Revista Jurídica
FACULDADES
COC
Ano VI - Nº 6 - Outubro 2009
ISSN 1806-7603
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Ficha Catalográfica
R281
Revista Jurídica UNICOC / Faculdades COC. Ano 1. n.1
(jun.2004) -.- Ribeirão Preto, SP: Editora COC, 2004.
Ano IV. n. 6 (out. 2009)
Anual
ISSN: 1806-7603 (versão impressa)
1. Ciências Jurídicas. 2. Direito Nacional. 3. Direito Internacional. 4. Doutrina. 5. Jurisprudência. I. Faculdades COC. II. Revista Jurídica UNICOC.
CDD 340
SUMÁRIO
A CIDADE E O DIREITO À MORADIA: O INSTITUTO DO USUCAPIÃO
COMO ALTERNATIVA DE REGULARIZAÇÃO JURÍDICA DE HABITAÇÕES
PRECÁRIAS EM FAVELAS ..............................................................................................11
José Guilherme Perroni Schiavone / Elizabete David Novaes
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO
BRASILEIRO ........................................................................................................................33
Giovanni Comodaro Ferreira
A POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DOS JUROS CONTRATADOS ......................................45
Fernando Alves de Sousa
A QUESTÃO JURÍDICA DA EUTANÁSIA COMO CAUSA SUPRALEGAL DE
EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE ................................................................................67
Flavio Ribeiro da Costa
ACESSO À JUSTIÇA, EXCLUSÃO SOCIAL E AUXÍLIO-RECLUSÃO:
CONSTATAÇÕES DE UMA PESQUISA EMPÍRICA ...................................................75
Elizabete David Novaes / Maressa Mello de Paula
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 449 E A
INCONSTITUCIONAL “BANCARIZAÇÃO” DA DÍVIDA ATIVA DA UNIÃO ...................89
Carlos Alexandre Domingos Gonzales / Mario Augusto Carboni
ANÁLISE DE DISCURSO ACERCA DA UTILIZAÇÃO LEGAL DE CÉLULAS-TRONCO
EMBRIONÁRIAS: RESULTADOS DE PESQUISA EMPÍRICA ..............................................107
Natália Monteiro / Fabiana Cristina Severi
CORRELAÇÃO ENTRE IMPUTAÇÃO, SENTENÇA E NULIDADE ....................................125
Heráclito A. Mossin
LEI COMPLEMENTAR N.º 123: A CAPACIDADE POSTULATÓRIA DOS
PROCURADORES ESTADUAIS E O PACTO FEDERATIVO ................................................133
Washington Luís Batista Barbosa
O DEBATE SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO DAS
CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS PELA JUSTIÇA DO TRABALHO ......................155
Mario Augusto Carboni / Carlos Alexandre Domingos Gonzales
O DOGMA DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E SEU ABRANDAMENTO
PELA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ATRAVÉS DA TÉCNICA
DA PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS ........................................................................................169
Flávio Quinaud Pedron
O MONITORAMENTO ELETRÔNICO E AS RELAÇÕES TRABALHISTAS .........195
Alexandre Atheniense
LIGEIRAS OBSERVAÇÕES SOBRE A IM(P) UNIDADE PENAL NOS CRIMES
CONTRA O PATRIMÔNIO ............................................................................................203
Cláudio da Silva Leiria
NORMA JURÍDICA SECUNDÁRIA, NORMA PROCESSUAL E NORMA PROCESSUAL
TRIBUTÁRIA ...................................................................................................................................215
Alan Martins
OS LIMITES DA AÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA TUTELA DAS PRETENSÕES AO
FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO .......................237
Ana Paula Andrade Borges de Faria
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E A RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO
PELA OMISSÃO E A NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL NO DIREITO
BRASILEIRO ....................................................................................................................................283
Joaquim José Marques Mattar
DOUTRINA
A CIDADE E O DIREITO À MORADIA:
O INSTITUTO DO USUCAPIÃO COMO
ALTERNATIVA DE REGULARIZAÇÃO JURÍDICA
DE HABITAÇÕES PRECÁRIAS EM FAVELAS
JOSÉ GUILHERME PERRONI SCHIAVONE1
ELIZABETE DAVID NOVAES2
Sumário
1. Introdução; 1.1. Conceituando a Cidade; 1.2. Lei de Terras e Urbanização;
1.3. Urbanização e Especulação Imobiliária; 1.4. Mobilizações Sociais pela
Moradia; 2. Aspectos Jurídicos do Direito à Moradia; 2.1. O direito à moradia
na Constituição Federal de 1988. Eficácia no ordenamento jurídico; 2.2.
Moradia e Dignidade humana; 2.3. Moradia e Obrigação do Poder Público;
2.4. Meio Ambiente Artificial Urbano e Proteção Constitucional Ambiental;
3. A Favela como Meio Ambiente Artificial; 3.1. Concessão de Direito Real
de Uso e Regularização Jurídica das Favelas; 4. A Regularização Fundiária
como Solução Social: Usucapião em Favelas; 5. Considerações Finais.
1. INTRODUÇÃO
O déficit habitacional na contemporaneidade tem se mostrado um dos
principais desafios a ser superado pela sociedade brasileira. A condição de
miserabilidade dos habitantes que residem nas chamadas favelas é precária
e necessita urgentemente da aplicabilidade do Direito para garantir-lhes uma
condição digna de vida.
Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo apontar para a
problemática da moradia urbana, especificamente no que se refere à questão
das garantias jurídicas voltadas ao direito de moradia.
Dentro desta preocupação, apresenta-se neste estudo, uma análise
crítico-reflexiva acerca da necessidade de verificar as garantias dos menos
favorecidos obterem a proteção legal de “sua propriedade”, como premissa à
redução das desigualdades sociais.
Importante salientar que a base metodológica deste trabalho é a dialética,
entendida como método de análise e reflexão que favorece a compreensão do
movimento das contradições e sua superação por meio das ações concretas
dos sujeitos socialmente determinados. Neste trabalho, de cunho teórico, a
problemática da moradia é tratada a partir de sua compreensão em meio a
uma totalidade social e jurídica.
Deste modo, para compreender a problemática apresentada em seu
Bacharel em Direito pelas Faculdades COC de Ribeirão Preto; Tecnólogo em Gestão
Ambiental pelo Centro Universitário Barão de Mauá; e-mail: [email protected]
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Doutora em Sociologia pela Unesp de Araraquara; Docente do Curso de Direito das
Faculdades COC de Ribeirão Preto; e-mail: [email protected].
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movimento dialético, lança-se mão do processo teórico-dedutivo, partindo de
argumentos gerais acerca da formação das favelas no Brasil para se chegar
à realidade caótica que as referidas áreas urbanas apresentam, para assim
propor os mecanismos possíveis dentro do nosso ordenamento jurídico, com
vistas a garantir juridicamente o direito de moradia com dignidade.
1.1. Conceituando a Cidade
Com o crescimento das cidades, a literatura a respeito delas também
cresceu consideravelmente. Desse modo, a compreensão teórica da categoria
“cidade” pode ser agrupada em três grupos, como o faz Ruben George Oliven
(1988), sendo a cidade classificada pelo autor como: a) variável independente:
corrente teórica está intimamente associada à corrente da ecologia humana
representada por alguns membros da Escola de Chicago (escola esta que
inaugurou a Sociologia Urbana); b) variável contextual: corrente que considera
que as cidades devem ser compreendidas historicamente como partes de
sociedades mais amplas, abrangentes, levando-se com isso, a discutir e ressaltar
a importância que viver em determinadas cidades pode ter para os fenômenos
sociais; e c) variável dependente: variável que leva em consideração os fatores
históricos, como resultado de várias causas econômicas, políticas e sociais,
que, por sua vez, definiriam seus diversos tipos, e nesse sentido, a cidade não
se auto-explica, pois não é vista como uma totalidade, mas apenas como uma
objetivação maior na qual ela se insere.
1.2. Lei de Terras e Urbanização
A Lei de Terras, quando determinou a proibição das aquisições de terras
devolutas por outro título que não o da compra, impediu que a apropriação
fundiária se desse pelo uso e ocupação da terra. Nesse momento, instalouse o conflito fundiário em nosso país, pois, anteriormente à referida lei, a
propriedade era legítima pela sua posse, ou seja, pela sua ocupação efetiva.
Com isso, a Lei de Terras instituiu o conflito ao estabelecer que a
propriedade da terra seria válida mediante compra, e não mais pela efetiva
ocupação, transformando a terra em uma questão mercadológica (LEITÃO;
LACERDA, 2003).
Para Lúcia Leitão e Norma Lacerda:
A partir da instituição dessa lei, as cidades brasileiras
passaram a conviver com um problema que o tempo e as
circunstâncias só fizeram agravar: a ocupação - agora ilegal
- de parcelas crescentes dos seus territórios por populações
cuja baixa renda não lhes permitia ter acesso ao mercado
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imobiliário. (LEITÃO; LACERDA, 2003, p.60)
A solução encontrada pela população de baixa renda foi a ocupação
pura e simples de um faixa de terra urbana. A urbanização, nesse contexto, foi
marcada pela ação de grupos sociais que afrontaram proprietários fundiários
e o Estado, evidenciando, com isso, que o problema da moradia requeria
alterações estruturais, inclusive os de natureza legislativa. Ou seja, surgia a
necessidade de adequar as leis aos fatos cotidianos.
A conseqüência mais visível do problema da moradia é o acirramento dos
conflitos envolvendo a propriedade da terra, decorrentes dessas ocupações
ilegais, sejam em terras públicas ou privadas.
Desse modo, os movimentos sociais contribuíram satisfatoriamente
para que, no final da década de 1980, a sociedade percebesse a necessidade
do direito de propriedade se subordinar ao direito de moradia, passandose a clarificar o exercício da função social da propriedade. Destaca-se, como
decorrência, dentre os vários movimentos sociais, dois grandes movimentos:
o Movimento dos Sem-Terra (nas áreas rurais) e o Movimento dos Sem-Teto
(nas áreas urbanas).
Desde os primórdios da industrialização até a década de 1930, o problema
habitacional era resolvido pelas empresas, em que se buscava alojar a mão-deobra por meio da construção de “vilas operárias”, próximas às fábricas, onde
as residências eram vendidas ou alugadas aos seus trabalhadores.
A solução criada pelas empresas mostrou-se viável na medida em que a
força de trabalho era diminuta, pois as casas se destinavam aos operários mais
qualificados. Soma-se a pouca quantidade de trabalhadores, o fator do baixo
custo do terreno e da construção, tornando possível a fixação do trabalhador.
Com o aumento do crescimento industrial, o número de trabalhadores
foi rapidamente intensificado, no que se tornou desnecessária a fixação dos
trabalhadores, pois a mão-de-obra, anteriormente “escassa”, passou a abundar
(CAMARGO et alii, 1982).
As empresas, frente a esta nova realidade da época, e buscando contar
com uma força de trabalho barata e abundante, que permitisse a produção
em elevada escala, trataram imediatamente de transferir o custo da moradia
e transporte para o próprio trabalhador. Foram além, inclusive, quando
passaram a delegar os custos dos serviços urbanos básicos, caso existentes,
para o Estado.
Deste momento em diante, o que se observou foi a questão da moradia
sendo resolvida pelas relações econômicas do mercado imobiliário, o que
desencadeou, por sua vez, o surgimento de moradias precárias, como bem
expõe Cândido Procópio Ferreira de Camargo et alii: “Surge no cenário
urbano o que será designado “periferia”: aglomerações, clandestino ou não,
carentes de infra-estrutura, onde vai residir a mão-de-obra necessária para o
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crescimento da produção” (CARMARGO et alii, 1982, p. 25).
1.3. Urbanização e Especulação Imobiliária
Uma vez que a acumulação e a especulação imobiliária andavam juntas, a
classe operária seguia o fluxo desses interesses. A explosão do preço dos terrenos
fez com que se acentuasse a expulsão de pessoas para as áreas periféricas
das cidades, áreas estas onde se avolumavam conjuntos de barracos e casas
precárias, sem qualquer tipo de infra-estrutura. Desse modo, Favelas, casas
precárias da periferia e cortiços abrigam basicamente as classes trabalhadoras,
cujas condições de alojamento expressam a precariedade dos salários. Essa
situação tende a agravar-se, na medida em que se vêm deteriorando os salários.
Para cobrir os gastos básicos, considerados mínimos,com nutrição, moradia,
transporte, vestuário etc. (CAMARGO et alii, 1982, p. 45)
O inverso da ação praticada pelas indústrias não ocorreu. Com o aumento
da quantidade de mão-de-obra, os salários dos trabalhadores permaneceram
os mesmos, ou seja, limitava-se a cobrir somente os gastos com transporte
e alimentação. A construção da casa própria era a única alternativa para o
trabalhador menos qualificado, pois os baixos rendimentos não lhe garantiam
a possibilidade de arcar com gastos de aluguel.
Moradia própria e precária era a solução ao alcance do trabalhador, e, ao
mesmo tempo, uma dificuldade a mais, pois, a partir desse momento, o próprio
operário arcaria com as despesas de sua habitação. Soma-se a isto o aumento
dos gastos com transporte, uma vez que os trabalhadores, ao se instalarem
nas áreas periféricas, deveriam percorrer maiores distâncias a caminho do
trabalho, resultando em várias horas despendidas com locomoção.
As condições de vida de uma população são determinadas por vários
fatores que, direta ou indiretamente são ligados às formas de produção e
distribuição de riquezas, e, ao lado destas, posiciona-se a própria organização
do espaço urbano, da infraestrutura e dos demais serviços da cidade.
Diferentemente do que ocorreu em países da Europa Ocidental, a
industrialização na América Latina não absorveu o excesso de mão-de-obra
(OLIVEN, 1988).
Atualmente, os países que estão se industrializando são “forçados” a
adotar tecnologia que requer muito capital, fazendo com que a mão-de-obra
seja de pouca utilidade em uma atividade altamente mecanizada e avançada.
Logo, a dependência econômica em relação à marginalidade quase que
desaparece por completo, uma vez que os marginalizados não são incorporados
ao mercado formal de trabalho.
Outra questão que surge a respeito da massa marginal é o papel que esta
desempenha no mercado de trabalho.
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Autores apontam no sentido de que a massa é muito maior que a
quantidade necessária para um reservatório de mão-de-obra, sendo, portanto,
irrelevante para o mercado este excedente de força de trabalho, o que leva
à diminuição do valor do salário e a facilidade de encontrar mão-de-obra
disponível. A questão de moradia e infra-estrutura, todavia, teve atenção
especial em outros países, como, por exemplo, na Alemanha, conforme ensina
o urbanista francês Gaston Bardet:
Esse país não se esqueceu de se preocupar, com um cuidado
particular, com os bairros periféricos, destinados a alojar
um enorme afluxo de população industrial, subdividindo,
às vezes até o extremo, os terrenos em zonas de diferentes
caracteres e regulamentando tudo estreitamente “à maneira
prussiana” (BARDET, 1990, p.20).
No Brasil, contudo, o poder público não enfrentou o problema, ao
contrário. Nosso país acompanhou indiretamente a especulação imobiliária
imposta pelo setor privado, e em suas ações governamentais valorizou apenas
o crescimento econômico, que só o poder privado manifestado na figura das
indústrias era capaz de proporcionar.
1.4. Mobilizações Sociais pela Moradia
Como ensina Lúcio Kowavick, não há relação linear entre precariedade
de vida nas cidades e as lutas movidas pelos contingentes por ela afetados.
Para Kowarick:
Obviamente, não se trata de ignorar as condições
macroestruturais e as contradições imperantes na sociedade,
mas de reconhecer que, em si, a pauperização originária do
processo produtivo, a espoliação urbana decorrente da falta
de bens de consumo coletivos, do acesso à terra e habitação
ou a opressão que se faz presente no cotidiano da vida
nada mais são do que matérias-primas que potencialmente
alimentam as reivindicações populares: entre estas e as lutas
sociais propriamente ditas há todo um processo de produção
de experiências, que não está de antemão tecido na teia das
assim chamadas condições materiais objetivas. (KOWARICK,
1994, p.46).
Pode-se afirmar que as reivindicações do mundo do trabalho e aquelas
que visam às melhorias urbanas não representam a mesma reivindicação, ao
contrário. O que se observa é a habitual segmentação, na qual os conflitos
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permanecem em âmbitos localistas e parciais, deixando de englobar variadas
esferas reivindicatórias e manifestando um particularismo de cada movimento
(KOWARICK, 1994).
Acrescenta ainda o autor que esse particularismo nada tem de estranho,
pelo contrário. Segundo suas palavras, extraordinário seria se:
... por exemplo, um grupo que luta por melhorias nos
transportes coletivos numa área determinada da cidade se
identificasse com os interesses de favelados que, em outro
local, reivindicam a posse da terra que ocuparam, ou que
os sindicatos colocassem insistentemente na sua pauta de
demandas a necessidade da extensão da rede de es- gotos e
água (KOWARICK, 1994, p. 47-48).
Não implica afirmar, de modo generalizado, que inexistem interconexões
de interesses, mas é importante ressaltar que a fusão de grupos não é algo que
ocorre naturalmente, mas que se processa através de uma realidade diária
massacrante que compromete a vida da maioria das pessoas.
Destarte, ante as lições empreendidas por Kowarick (1994), para quem
ainda existe a necessidade de muito esforço teórico e de pesquisa para se obter
conceitos adequados que dêem conta do problema referente à ligação entre
espoliação urbana e a exploração do trabalho, conclui-se que a separação
entre ambos só ocorre devido à facilidade analítica.
2. ASPECTOS JURÍDICOS DO DIREITO À MORADIA
O direito à moradia aparece na Declaração Universal dos Direitos dos
Humanos de 1948 não como um direito explícito e preciso, mas como simples
declaração de que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de
assegurar à sua família e a si, entre outros bens essenciais ao homem, também
a habitação (SILVA, 2008).
O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de
1966 estatuiu que os Estados-Partes reconhecem o direito de todo indivíduo
a um nível de vida adequado para si e sua família, inclusive o direito a uma
moradia adequada.
Todavia, a Constituição da República de 1988, embora não tenha
definido precisamente o que venha a ser direito à moradia, incluiu-o no rol de
direitos sociais de que trata o artigo 6º, bem como impôs ao poder público a
competência e o dever de satisfazer esse direito humano.
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2.1. O direito à moradia na Constituição Federal de 1988. Eficácia no
ordenamento jurídico
A Constituição Federal, em seu art. 6º, incluiu o direito à moradia dentre
os direitos sociais. “In verbis”:
Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição. (grifo nosso)
O exame sobre a eficácia de referida previsão constitucional exige
que se verifique se esta depende do entendimento que se tenha acerca da
natureza do direito então assegurado, ante o disposto no § 1º, do art. 5º, da
nossa Carta Magna, que estabelece que as normas definidoras dos direitos e
garantias fundamentais têm aplicação imediata, ou se, na verdade, deve-se
ater à classificação das normas constitucionais no que se refere à sua eficácia,
independentemente de pertencer ou não ao rol dos direitos fundamentais.
Colaciona-se, com a máxima vênia, o artigo supramencionado para
melhor entendimento:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garant indo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata. (g.n)
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que
tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio da proteção
contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas
de vida e desenvolvimento da personalidade humana, pode ser definido como
direitos fundamentais.
Embora existam inúmeros e diferenciados conceitos de direitos humanos
fundamentais, importante destacar que tais direitos se relacionam diretamente
com a garantia de não-ingerência do Estado na esfera individual e a consagração
da dignidade humana, no que possui um universal reconhecimento por parte
da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja
em nível de direito consuetudinário ou mesmo de tratados e convenções
internacionais.
José Afonso da Silva, citado pelo doutrinador Pedro Lenza, descreve que:
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“juntamente com o título dos direitos fundamentais, a ordem social forma o
núcleo substancial do regime democrático,...” (SILVA, apud LENZA, 2008, p.
710). Equivale a dizer que na busca plena pelo regime democrático de direito,
os direitos fundamentais e sociais formam a base do Estado-Nação, devendo
ser priorizados nas políticas públicas.
A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significa
mera enunciação formal de princípios, mas plena positivação de direitos,
com base na qual qualquer individuo poderá exigir sua tutela perante o
Poder Judiciário, para a concretização da democracia. A proteção judicial é
absolutamente indispensável para tornar efetiva a aplicabilidade e o respeito
aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal e no ordenamento
jurídico em geral.
2.2. Moradia e Dignidade humana
Levando-se em conta o conceito de direitos humanos fundamentais
acima exposto, assim como idéia de que estes, invariavelmente, se relacionam
à obrigação de nãointerferência do Estado e à proteção da dignidade humana,
impossível não incluir o direito à moradia neste rol, uma vez que somente se
possui uma existência digna quando é garantido a cada indivíduo um lugar
para se morar.
Dessa forma, coloca-se uma questão: sendo o direito à moradia
considerado um direito fundamental (classificado por alguns como de
segunda categoria - identificado com as liberdades positivas, reais e concretas,
que acentuam o princípio da igualdade, objetivando a melhoria das condições
de vida dos hipossuficientes e visando à concretização da igualdade social),
não deveria ter ele aplicação imediata, isto é, não deveria poder ter sua tutela
exigida, de imediato, perante o Poder Judiciário, ante o disposto no § 1º, do
art. 5º, da CF?
Salvo melhor juízo, a resposta há de ser negativa, exigindo que a questão
seja analisada de forma mais ampla, de modo que não se paute em simples
interpretação literal dos dispositivos constitucionais. Estes, os quais asseguram
direitos, devem ser examinados no que se refere à eficácia, levando-se em
conta a potencialidade de sua implementação imediata.
Assim, em que pese estar diante de direitos ou de garantias declarados
ou considerados pela nossa Constituição Federal como fundamentais, devese perquirir se há a possibilidade de sua efetivação, sem a necessidade de
qualquer regulamentação infraconstitucional ou da execução de programas
estatais ou de criação de órgãos para tanto.
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2.3. Moradia e Obrigação do Poder Público
Dessa forma, parece não ser possível a propositura de ação visando
compelir o Poder Público a fornecer moradia a todos que dela necessitem,
uma vez que é imprescindível que haja a organização estatal, por intermédio
da aprovação de leis e da criação de programas e implementação de projetos, e
assim ocorre por estarmos diante de uma norma de eficácia limitada, ainda que
não haja no texto constitucional a expressão “nos termos da lei”, lembrando
que o termo lei pode ter sentido amplo, abrangendo quaisquer atos normativos
e não apenas lei “stricto sensu”.
Assim sendo, ante o exposto, poder-se-ia concluir pela possibilidade de
compelir o Estado a fornecer moradias aos desamparados; porém, faz-se clara
a necessidade do poder público criar mecanismos para que o referido direito
fundamental possa ser alcançado.
Este também é o entendimento de José Afonso da Silva, quem alega caber
às “entidades do Poder Público promover tais providências para a satisfação
desse direito em relação à população que, por deficiência econômica, não pode
provê-lo por seus próprios meios” (SILVA, 2008, p. 382).
Ademais, segue o autor reproduzindo a brilhante lição dos doutrinadores
portugueses J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, afirmando que:
O direito à moradia significa, em primeiro lugar, não ser
privado arbitrariamente de uma habitação e de conseguir
uma; e, por outro lado, significa o direito de obter uma, o
que exige medidas e prestações estatais adequadas à sua
efetivação (CANOTILHO; MOREIRA, apud SILVA, 2008, p.
382).
Referidos mecanismos compreendem os objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, conforme destaca o artigo 3º, inciso III da
Carta Magna:
Artigo 3º - Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil: (...)
III - erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais;
A alternativa que emerge como a mais viável diante das possibilidades
fornecidas pelo Estado, sem dúvida nenhuma, passa a ser a regularização das
favelas, assunto que será tratado neste trabalho em momento oportuno.
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2.4. Meio Ambiente Artificial Urbano e Proteção Constitucional
Ambiental
Antes de analisar a relação das favelas e sua relação jurídica com a
proteção do meio ambiente, de que trata o artigo 225 da Constituição Federal
de 1988, cumpre reproduzir o conceito do que venha a ser cidade e meio
ambiente artificial.
Trata-se, como já apontado pela doutrina jurídica, algo de difícil realização,
motivo este pelo qual é importante apontar os brilhantes comentários de José
Afonso da Silva, que ensina com sua habitual clareza:
Para que um centro habitacional seja conceituado como
urbano torna-se necessário preencher, no mínimo, os
seguintes requisitos: (1) densidade demográfica específica;
(2) profissões urbanas com comércio e manufaturas, com
suficiente diversificação; (3) economia urbana permanente,
com relação especiais com o meio rural; (4) existência de
camada urbana com produção, consumo e direitos próprios.
Não basta, pois, a existência de um aglomerado de casas para
configurar-se um núcleo urbano. (SILVA, 2008, p.24)
O autor destaca, ainda, três concepções relativas ao conceito de cidade: a
concepção demográfica, a econômica e a de subsistemas.
A primeira - demográfica - leva em consideração o número de indivíduos
presentes em um determinado local, índice quantitativo que varia conforme
o país ou organismo internacional. Como exemplo, pode-se citar a ONU, que
considera como cidade aquela cuja população atinja cerca de 20.000 habitantes.
A concepção econômica de cidade tem como fundamento a doutrina
de Max Weber (SILVA, 2008), para quem a cidade recebe esta denominação
quando a população local satisfaz uma parte economicamente essencial de
sua demanda diária, e em parte também devido aos produtos que esta mesma
população coloca no mercado.
A terceira e última concepção classifica a cidade como um subsistema
de um sistema nacional geral, em que há a predominância de subsistemas
administrativos, comerciais, industriais e sócio-culturais.
3. A FAVELA COMO MEIO AMBIENTE ARTIFICIAL
Com relação ao meio ambiente artificial, conceitua-se como sendo aquele
“compreendido pelo espaço urbano construído, consistente no conjunto de
edificações (chamado de espaço urbano fechado), e pelos equipamentos
públicos (espaço urbano aberto)” (FIORILLO, 2003, p. 21).
Revista Jurídica FACULDADES COC
21
Também acompanha o mesmo raciocínio a doutrina de Virgílio Testa
citado por José Afonso. Nesse sentido, vejamos:
...do ponto de vista urbanístico, um centro populacional
assume a característica de cidade quando possui dois
elementos essenciais: (a) as unidades edilícias - ou seja, o
conjunto de edificações em que os membros da coletividade
moram ou desenvolvem suas atividades produtivas,
comerciais, industriais ou intelectuais; (b) os equipamentos
públicos - ou seja, os bens públicos e sociais criados para
servir às unidades edilícias e destinados à satisfação das
necessidades de que os habitantes não podem prover-se
diretamente e por sua própria conta (estradas, ruas, praças,
parques, jardins, canalização subterrânea, escolas, igrejas,
hospitais, mercados, praças de esportes etc.). (TESTA apud
SILVA, 2008, p. 26)
Dessa forma, ressalta-se que a favela se amolda perfeitamente no conceito
de cidade, pois pertence a ela (é parte do território físico e social) e, muitas
vezes, dada a sua extensão e complexidade, cumprem todos os requisitos de
uma cidade própria, momento em que se poderia considerá-la como uma
cidade autônoma (ou sub-cidade).
Outrossim, verificado o conceito de meio ambiente artificial, forçoso
convir que por mais que as moradias apresentem condições precárias, ainda
assim podem ser (e são) consideradas como meio ambiente artificial, eis que
decorrem da transformação do homem. A doutrina, aliás, não faz qualquer
distinção quanto a isso, e nem poderia fazê-lo.
Sendo assim, a proteção constitucional contida no artigo 225 também
deve ser aplicada ao ambiente das favelas, eis que desnecessário apontar as
péssimas condições de vida daqueles que ali habitam.
O artigo 225 da Lei Maior prevê:
Art. 225º - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações. (grifo nosso)
Vale ressaltar que este também é o entendimento de Cláudio Luiz
Watanabe Escavassini, quando ensina que a realidade das favelas precisa ser
enfrentada, uma vez que a falta de qualidade de vida das pessoas residentes
nas áreas afronta princípios constitucionais, como se percebe no trecho abaixo:
Como se vê, o meio ambiente é o abrigo de toda a vida humana.
22
Revista Jurídica FACULDADES COC
Onde quer que vá, ali está ele, no entanto, as desigualdades
sociais proporcionam qualidades diferentes de vida, algumas
de forma sadia, outras não, situação que afronta o princípio da
igualdade e o fundamento da dignidade da pessoa humana.
(ESCAVASSINI, 2001, p.164)
Nesse diapasão, salienta-se o dever do poder público em tutelar o referido
meio ambiente, haja vista os inúmeros danos causados não só às pessoas ali
residentes, mas também à coletividade como um todo. Tal dever decorre da
própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 23, incisos IX e X, “in
verbis”:
Art. 23º - É competência comum da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios: (...)
IX - promover programas de construção de moradias e a
melhoria de condições ha bitacionais e de saneamento básico;
X - combater as causas da pobreza e os fatores de
marginalização, promovendo a integração social dos setores
desfavorecidos;
Passa-se, então, à análise dos institutos jurídicos de que se pode
valer o poder público na busca da regularização legal de referidas áreas.
3.1. Concessão de Direito Real de Uso e Regularização Jurídica das
Favelas
Juridicamente, o que distingue as favelas das outras formas de ocupação
precária da terra urbana, tais como os loteamentos clandestinos e irregulares,
é o fato de que os favelados, no momento da ocupação da terra, não possuíam
qualquer título de posse ou propriedade (FERNANDES, 1999).
Como já esposado, a obrigação do poder público em regularizar as
favelas, promovendo posteriormente a sua urbanização, faz-se necessária e
inevitável quando se pretende alcançar a melhoria da qualidade de vida das
pessoas e, ao mesmo tempo, garantir direitos sociais e fundamentais previstos
na Lei Fundamental da República.
Assim, a concessão real de uso é um instrumento jurídico de política
urbana capaz de promover a regularização, e que encontra previsão no
Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), em seu artigo 4º, inciso V, alínea ‘g’. A
referida Lei veio a regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal
de 1988, artigos estes que exigiam lei federal para regular a matéria de que
tratam.
Todavia, o Estatuto da Cidade não criou e nem regulou o mencionado
mecanismo, mas somente lhe garantiu previsão, uma vez que o instituto foi
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criado e regulamentado pelo artigo 7º do Decreto-lei 271 de 28 de fevereiro de
1967.
Conforme salienta José Afonso da Silva, o decreto-lei em questão:
...prevê a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares,
remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado,
como direito real resolúvel, para fins específicos de
urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou
outra utilização de interesse social (SILVA, 2008, p. 412).
No direito real de uso, a concessão fica a critério da Administração
Pública, que deverá atuar, não obstante, mediante autorização legislativa e
visando fins de interesse social.
O doutrinador Hely Lopes Meirelles conceitua este instituto da seguinte
maneira:
Concessão de direito real de uso - é o contrato pelo qual a
Administração transfere o uso remunerado ou gratuito de
terreno público a particular, como direito real resolúvel,
para que dele se utilize em fins específicos de urbanização,
industrialização, edificação, cultivo ou qualquer outra
exploração de interesse social (MEIRELLES, 2001, p. 485).
A concessão de direito real é um direito real que não extingue ou modifica
o domínio do bem, sendo apenas uma fruição do bem público, determinada
pelos interesses sociais e públicos. Não discorda Celso Antônio Bandeira de
Mello, quem conceitua a concessão de direito real de uso como:
contrato pelo qual a Administração transfere, como direito real
resolúvel, o uso remunerado ou gratuito de terreno público
ou do espaço aéreo que o recobre, para que seja utilizado com
fins específicos por tempo certo ou por prazo indeterminado
(MELLO, 2000, p. 768).
que:
Fernando Dias Menezes de Almeida, a respeito da concessão, esclarece
O dispositivo ora comentado vem acrescentar a possibilidade
de contratação coletiva da concessão de direito real de uso,
em se tratando de imóveis públicos, nos casos de programas
e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidas por
órgãos ou entidades da Administração Pública com atuação
específica nessa área (ALMEIDA, 2004, p.55).
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Vale dizer, portanto, que resulta de um contrato celebrado entre o poder
público e o interessado, em caráter não precário, porém resolúvel, cujo direito
pode ser transmitido inter vivos e causa mortis. Ademais, é importante também
mencionar que o direito real de uso pode ter fins específicos de urbanização,
industrialização, edificação e, conforme dito acima, qualquer utilização de
interesse social.
4. A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA COMO SOLUÇÃO SOCIAL:
USUCAPIÃO EM FAVELAS
A usucapião significou um passo importante na questão fundiária urbana
no Brasil, mas insuficiente para o enfrentamento desta questão, em virtude de
algumas peculiaridades.
Há no ordenamento jurídico sete tipos de usucapião. Não cabe, aqui,
discorrer sobre todos, haja vista que isto acabaria por se desviar do objeto do
trabalho, mas apenas demonstrar quais as espécies relacionadas e que melhor
se aplicam ao estudo em tela.
Nesse sentido, salienta-se o conceito de usucapião dado pela Constituição
Federal de 1988, que, além de ratificar que a propriedade deve cumprir com
sua função social, ainda o considera como instrumento da política urbana. Tal
entendimento se percebe da leitura de seu artigo 183, que define:
Art. 183 - Aquele que possuir como sua área urbana de até
duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos,
ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua
moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde
que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
O Estatuto da Cidade (Lei federal de nº 10.257de 2001) trouxe também a
previsão do instituto (artigos 9º e 10º), inovando quando prevê a possibilidade
de usucapir áreas coletivamente e acima de duzentos e cinqüenta metros
quadrados, ‘in verbis’:
Art. 9º - Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana
de até 250 m2 (duzentos e cinqüenta metros quadrados), por 5
(cinco) anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a
para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio,
desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou
rural.
Art 10º - As áreas urbanas com mais de 250 m2 (duzentos
e cinqüenta metros quadrados), ocupadas por população
de baixa renda para sua moradia, por 5 (cinco) anos,
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25
ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível
identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são
suscetíveis de serem usucapidos coletivamente, desde que os
possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano
ou rural.
O jurista Nelson Saule Jr. explica, com sabedoria, a finalidade do
usucapião:
O instituto do usucapião tem como finalidade reconhecer
o direito à moradia das pessoas e famílias que vivem nos
assentamentos em condições precárias de habitabilidade e de
segurança jurídica, tais como favelas, loteamentos clandestinos
e irregulares nos bairros periféricos, conjuntos habitacionais
abandonados, em habitações coletivas (cortiços), na chamada
cidade clandestina ou informal. O usucapião urbano é um
instrumento e regularização fundiária destinado a assegurar
o direito à moradia desses segmentos sociais (SAULE JR,
1999, p. 87-88).
Todavia, mesmo o ordenamento jurídico tendo garantindo meios para
que o proprietário de baixa renda, por via de sua efetiva ocupação, garantisse
seu direito de propriedade, nota-se a dificuldade prática na aplicação deste
sistema.
Tratando do tema de usucapião, o doutrinador Edésio Fernandes explica
que:
No caso das favelas sua aplicação é quase impossível, porque
a dinâmica, alta mobilidade e natureza coletiva do fenômeno
da favelização não se conformam aos requerimentos técnicos
e individualistas da legislação civil. Além disso, o direito
de usucapião não pode ser aplicado de forma alguma aos
casos de invasões de terras públicas, com o que não pode ser
reivindicado por cerca de 50% dos favelados, aqueles que
ocupam terras públicas nas várias cidades (FERNANDES,
1999, p.131).
Outrossim, ainda que as favelas estivessem localizadas em propriedades
privadas, ressalta-se o fato de que se encontram, dentro das áreas de favelas,
moradores que exercem atividades comerciais, o que dificultaria a aplicação
do instrumento, pois, como observado, a norma se faz clara ao determinar que
o imóvel deverá ser utilizado para moradia própria e de sua família.
Todavia, ante a impossibilidade de usucapir áreas públicas, salienta-se o
26
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ensinamento de Nelson Saule Jr., que destaca:
O direito à moradia também é reconhecido para as pessoas e
famílias que estão na posse de áreas públicas que atendam os
requisitos constitucionais do artigo 183, conferindo neste caso
não o domínio destas áreas mas a concessão de uso para fins
de moradia (SAULE JR, 1999, p. 88-89).
Acrescenta o mesmo autor dois importantes efeitos do instituto do
usucapião, quais sejam:
O primeiro de garantir uma segurança jurídica para as pessoas
e famílias, comunidades que estão vivendo em assentamentos
em condições precárias de habitabilidade, mediante a posse
de área urbana para fins de moradia. O segundo, do direito
à moradia ser um requisito obrigatório, para verificar se
a propriedade urbana está cumprindo ou não sua função
social” (SAULE JR, 1999, p. 89).
Ressalvadas as características que impossibilitariam a aplicação de
usucapião, e tendo em vista os benefícios acima apontados, destaca-se que:
A regularização da posse da terra tem implicações importantes
na construção da cidadania, especialmente em um país
onde ser proprietário confere status e distinção. Além disso,
a segurança que o título da propriedade costuma dar às
pessoas também tem repercussões urbanísticas significativas:
ao se saberem proprietárias, as pessoas investem muito mais
nas suas edificações, melhoram o padrão urbanístico da área
(...). Soma-se a isso o fato de que, do ponto de vista do poder
público, a legalidade fundiária é o primeiro passo para a
urbanização das áreas pobres, uma vez que dificilmente ele
investe na produção de infra-estruturas básicas em áreas que
são objeto de conflitos fundiários” (LEITÃO; LACERDA,
2003, p.75).
Nessa toada, pode-se afirmar que o instituto do usucapião é benéfico e
necessário ao combate e erradicação da pobreza, sendo o primeiro passo para
a solução deste grave problema, como já apontado.
A questão habitacional se tornou de extrema relevância, juntamente com
a urbanização da humanidade, sendo que, anteriormente a este período, o
problema não apresentava nenhuma significância para os administradores da
máquina pública, conforme ensina José Afonso da Silva:
Revista Jurídica FACULDADES COC
27
Enquanto predominava a vida rural o problema não se
punha, porque cada qual cuidava de organizar sua própria
moradia segundo suas condições econômicas, utilizando para
isso terrenos públicos ou particulares, ainda que a população
pobre morasse sempre em condições precárias. Não se tinha
consciência de um direito especial, inerente a pessoa humana,
que é o direito a moradia (SILVA, 2008, p.381).
Logo, com o crescimento das cidades e concomitantemente ao processo
de urbanização destas, tornou-se possível verificar o surgimento das favelas,
as quais estão, atualmente, servindo de moradia para milhões de pobres nas
áreas urbanas.
Originalmente, as favelas foram formadas em áreas próximas ao
centro das cidades, isso devido ao alto custo do transporte público e à maior
disponibilidade de empregos e serviços. Mais recentemente é que se pôde
observar a formação de favelas nas áreas periféricas das grandes cidades, fato
este obviamente impulsionado pelo alto valor da terra mais central.
Ensina Edésio Fernandes que:
Favelas são o resultado sócio-espacial da combinação de fatores
históricos envolvendo diversos processos sócio-econômicos
formais e informais, as condições de determinação dos
custos do trabalho urbano-industrial, bem como os processos
de desenvolvimento urbano e de especulação imobiliária.
Sendo também o produto da ação do poder público em tais
processos interrelacionados, o processo de favelização tem de
ser entendido no contexto mais amplo da falência da política
habitacional brasileira, que resultou em um déficit gigantesco
de moradias, além de outras graves conseqüências sociais e
ambientais. Em suma, as favelas são a expressão mais radical
- e crua - das desigualdades e contradições que se encontram
na base da estrutura social brasileira” (FERNANDES, 1999,
p.128).
Salienta ainda o doutrinador que as favelas são: “assentamentos
humanos precários que resultam originalmente da invasão de
áreas urbanas privadas e públicas” (FERNANDES, 1999, p.
127).
Quanto a origem da palavra favela ensina Celso A. P. Fiorillo que:
... foi extraída do nome de um morro em Canudos (local do
sertão da Bahia onde foi travada no século XIX sangrenta
guerra envolvendo, de um lado, sertanejos, e de outro,
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Revista Jurídica FACULDADES COC
tropas do exército brasileiro) que os soldados republicanos
tomaram como base na época do histórico confronto. Quando
encerrada a guerra, retornaram os soldados à cidade do Rio
de Janeiro vindo a ocupar o Morro da Providência, que veio
a ser batizado com o mesmo nome do território ocupado na
Bahia: Morro da Favela (FIORILLO, 2004, p.1).
Após este momento, o termo acabou sendo usado em todo o país para
denominar comunidades pobres, surgindo daí a explicação para que a palavra
favela seja utilizada como sinônimo de pobreza na atualidade, ou seja, significa
afirmar que as favelas são porções do território de uma determinada cidade
brasileira onde existe pobreza (FIORILLO, 2004).
Não obstante o fato de que as favelas têm ocupado uma grande parte
das cidades brasileiras, sua relação com o poder público local e com a própria
cidade sempre foi marcada por grandes e graves conflitos, sendo de extrema
dificuldade a conciliação.
Na década de 70, observou-se o período marcado pela predominância de
conflitos intensos e violentos e por inúmeras expulsões promovidas em todo
o país.
Tal realidade só foi alterada em meados da década de 80, época em que
as expulsões de pessoas que residiam nas favelas foram substituídas pelas
remoções, impulsionadas, em parte, pela pressão exercida pela Igreja Católica
e, em parte, pela mobilização crescente dos próprios favelados (FERNANDES,
1999).
Todavia, as já referidas políticas públicas restaram infrutíferas,
principalmente devido à resistência dos favelados em relação às alternativas
oferecidas pelo poder público na ocasião.
Somente nas últimas duas décadas, com o crescimento dos movimentos
populares, é que o poder público local começou a reconhecer os direitos dos
favelados de terem acesso ao solo urbano e à moradia, promovendo, com isso,
em muitos casos, tanto a urbanização como a legalização das favelas existentes.
Os números não são precisos, porém podemos afirmar que mais da
metade de nossas cidades é constituída por assentamentos irregulares,
ilegais ou clandestinos, que contrariam de alguma forma as formas legais de
urbanização. Uma parte significativa destes assentamentos é composta por
posses de propriedades públicas ou privadas abandonadas ou não utilizadas.
Desde os anos 70, os municípios vêm investindo nas chamadas favelas,
reconhecendo sua existência como parte da cidade. Entretanto, embora a
urbanização das favelas venha sendo defendida e praticada há décadas, a
titularidade definida destas áreas para seus verdadeiros moradores vem
esbarrando em processos judiciais intermináveis e enormes dificuldades de
Revista Jurídica FACULDADES COC
29
registro junto aos cartórios (ROLNIK, 2001, p.1)
Frente a estes obstáculos, a questão da habitabilidade passa a envolver a
necessidade de uma política habitacional. Como aponta Saule Jr.:
A política habitacional deve ser estabelecida para garantir
o acesso de todos ao mercado habitacional, através de leis,
instrumentos, planos e programas habitacionais com recursos
públicos e privados para os segmentos sociais que não
tem acesso ao mercado e vivem em condições precárias de
habitabilidade e sem condições dignas de vida (SAULE JR,
1999, p. 123).
Nesse mesmo sentido, Álvaro Pessoa, citado por Guimarães Jr., explica
que a marginalidade passou a ocupar terrenos ociosos, segundo suas
necessidades e a partir das possibilidades encontradas. Afirma o autor:
A invasão de espaços públicos e privados para habitações de
madeira ou alvenaria mostrou-se a única opção ao alcance
de milhares de famílias, porque sem a intervenção pública
na questão fundiária urbana e estando mal equacionada e
formulada a política habitacional de baixa renda, não têm
as classes socialmente desfavoráveis para quem apelar, a
nível formal ou oficial, para solucionar seu problema para
a habitação de baixa renda. Resta-lhes a marginalidade e a
ocupação de terrenos ociosos (PESSOA apud GUIMARÓES
JR, 1999, p.109)
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, conclui-se que as cidades não podem ser consideradas
independentes “per se”, dissociadas de sua história, pois representam a
objetivação máxima de todo um contexto mais amplo, abrangente. A relação
das cidades e sua história se faz clara quando se observam os diferentes tipos
de cultura existentes em diversos países, o que leva à conclusão de que tal
fato só é possível quando a cidade passa a ser considerada como uma variável
dependente de sua história, de seus diversos fatores.
A Lei de Terras, como um fator histórico que influenciou as cidades
brasileiras, ao deter-minar que ficavam proibidas as aquisições de terra por
qualquer título que não o de compra, fez surgir violentos conflitos fundiários
entre a população exilada e os proprietários de terra.
Nas cidades, as empresas resolveram o problema de moradia até o
momento em que o crescimento industrial ganhou proporções significativas,
motivo pelo qual não se tornou mais necessária tal preocupação, pois, deste
30
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momento em diante, houve uma explosão de pessoas interessadas em trabalhar
para estes empresários, gerando uma abundância de mão-de-obra.
A situação se agravou quando as empresas transferiram para o Estado
a incumbência de gerir o processo de urbanização. Desse modo, tornou-se
responsabilidade do Poder Público administrar essa população excluída e
faminta e, para tanto, implementou programas governamentais incapazes de
enfrentar a especulação imobiliária praticada pelas empresas.
Já nesse período, o que predominava nas cidades era uma grande massa
de miseráveis, denominada por Marx de reservatório de mão-de-obra.
Os confrontos sociais surgidos a partir desta realidade não tiveram
significativa expressão, pois permaneceram localizados, havendo um
particularismo em cada movimento, o que prejudicou um processo de
urbanização mais justo e social, pois, como aponta Kowarick, é essencial que
a massa pobre e marginalizada da população participe desse movimento, no
mínimo.
A Constituição Federal de 1988, sem dúvida nenhuma levando em
consideração as péssimas condições de habitação, tratou logo de inserir em
seu rol de direitos sociais o direito à moradia.
Não queremos afirmar, com isso, que, a partir dessa previsão legal, o
Poder Público restou obrigado a fornecer moradia a todos os desamparados,
mas apenas salientar que incumbe ao Estado promover meios adequados para
resolver essa problemática.
Ademais, referida solução se faz necessária, uma vez que a própria Carta
Magna protege o meio ambiente urbano e, como demonstrado, as favelas se
amoldam perfeitamente ao conceito de meio ambiente artificial, necessitando,
portanto, desta mencionada proteção estatal, sob pena de afronta aos princípios
constitucionais.
A proteção almejada é possível mediante a aplicação do instituto da
concessão real de uso, devendo ser aplicada aos casos que não se conflitam
com a própria Constituição, ou seja, diante do raciocínio construído, seria
possível a aplicação de tal instrumento nas áreas de favelas sob o domínio do
poder público. Poder-se-ia, assim, valer-se deste instituto da concessão real
de uso para garantir um mínimo de segurança às pessoas residentes em áreas
degradadas, que não possuem condições dignas de habitação.
Assim, a efetiva proteção ao propalado direito de moradia, como um
primeiro passo à urbanização das favelas, só é possível através do instituto
de usucapião, uma vez que este permite a regularização fundiária de áreas
precárias.
Portanto, como mencionado, a regularização fundiária por meio de
usucapião carrega uma importante carga de benefícios à população carente,
no sentido de promover segurança jurídica, de modo a permitir que tanto
Revista Jurídica FACULDADES COC
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os moradores como o poder público invistam na área, proporcionando seu
desenvolvimento econômico, social e ambiental.
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2008
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO
GIOVANNI COMODARO FERREIRA1
Sumário
1. Algumas notas preliminares; 2. Diplomas supostamente consagradores do
instituto; 3. A desconsideração no novo Código Civil.
1. ALGUMAS NOTAS PRELIMINARES
A desconsideração da personalidade jurídica se traduz na declaração de
ineficácia da autonomia societária para certos efeitos, conservando-se a pessoa
jurídica absolutamente apta a prosseguir em suas lícitas atividades2.Trata-se
de expediente nascido da jurisprudência alienígena, originando-se a partir de
decisões emanadas das altas cortes da Inglaterra e Estados Unidos.
De um modo geral, a disregard doctrine - como se apresenta nos países
anglo-saxônicos - pode ser definida como a
doutrina que assegura que a estrutura da sociedade (...)
pode ser desconsiderada, impondo-se a responsabilidade
pessoal, no caso de fraude ou outra injustiça, aos acionistas,
administradores e diretores que agem em nome da sociedade3,
sempre em casos esporádicos e nunca afetando a validade de
seu ato constitutivo. Portanto, a doutrina do superamento
(segundo nomenclatura também empregada) não se volta à
invalidação da personalidade jurídica de uma entidade, mas
à sua suspensão temporária para responsabilizar os infratores
que fizeram dela instrumento de ilegalidade.
O mecanismo, como se apontou, surgiu nos domínios da Common
Law e se deve, fundamentalmente, à tradição jurídica a que se filiam seus
ordenamentos. Nesses países, a lei exerce papel secundário, entregando-se à
jurisprudência e ao costume o primado entre as fontes do direito.
Pela própria lógica da subordinação, a hierarquia estabelecida entre as
fontes jurídicas determina a necessária adequação do elemento inferior ao
superior, de modo que a eventual invalidação da fonte secundária pressupõe
Mestre em Direito pela UNESP - Campus de Franca; Professor das Faculdades COC de
Ribeirão Preto.
2
Cf. SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no
direito brasileiro. São Paulo: Ltr, 1999. p. 28.
3
SILVA, op. cit., p. 27.
1
34
Revista Jurídica FACULDADES COC
um desajuste desta em face da orientação da fonte principal. E isto se processa
naturalmente, em atenção à exigência da necessária sujeição entre tais
elementos.
A decisão judicial que criou o precedente da desconsideração representou
a afirmação da jurisprudência como referencial supremo das fontes da Common
Law, tendo em vista que não apenas revelou o potencial inovador e criador da
atividade judicante, como importou na relativização de um preceito formal.
Mas tal evento não é de causar espanto, pois simplesmente retratou a dinâmica
específica da superação de uma fonte inferior por outra superior, que, no caso
anglo-saxônico, induz ao triunfo da jurisprudência sobre a lei.
Estranho seria se a iniciativa pioneira de desprezar episodicamente
a personalidade jurídica partisse de um magistrado de formação romanogermânica, num sistema que proclama a autonomia societária pela via legal, a
que justamente se vê, tradicionalmente, subordinado o juiz. A ousadia, neste
caso, seria bem mais expressiva, e talvez fosse sumariamente rechaçada pelas
instâncias judiciárias superiores, hipótese em que teria produzido o mecanismo
como um autêntico natimorto.
Com efeito, há de se dispensar especial atenção ao fato de essa nova
concepção jurídica ter por berço países que não comungam conosco dos
mesmos valores e traços jurídicos, mas apresentam uma cultura jurídica onde,
antes de tudo, não há o primado da lei sobre as demais fontes do direito,
encontrando-se ela sempre em posição subalterna em face da jurisprudência
e do costume.
Isso explica porque causaram tanto alvoroço os primeiros gestos
concretos de relativização da personalidade societária no judiciário brasileiro,
e porque a doutrina tanto apregoou a necessidade de consagração normativa
do expediente no ordenamento pátrio.
Percebe-se, portanto, que foi em sistemas mais flexíveis que floresceu
a doutrina de penetração, nos quais sua aplicação não encontrou resistência
de uma malha normativa difusa e rígida como é a nossa. Em nações como
Inglaterra e Estados Unidos, a recepção de novas tendências jurídicas se faz
mais facilmente, uma vez que elas não passam necessariamente pelo filtro de
um órgão legislativo encarregado da produção dos comandos legais de um
sistema. A decisão dos tribunais, nesses países, é o que introduz no direito
nacional as novas regras, possibilidade que confere aos magistrados um poder
de criar o direito, paralelo àquele tradicional que lhe permite aplicar a norma
ao caso concreto, vale dizer, à jurisdição.
As realidades jurídicas, dessa maneira, são distintas, uma vez que nosso
país integra o bloco dos sistemas em que, repita-se, a lei é a norma suprema.
Daí porque, quando a notícia da desconsideração chegou à comunidade
jurídica brasileira, passou-se a proclamar que a implantação dessa nova teoria
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35
deveria respeitar nossa estrutura legal, integrando-a pelo mesmo processo
que se prevê para a criação das demais regras.
Em face dessas circunstâncias, o advento da desconsideração fez a
doutrina nacional articular-se no protesto por uma estipulação normativa
do mecanismo. Essa movimentação, contudo, resultou em excessos, levando
alguns autores a apontar determinadas normas como brechas do sistema por
meio das quais estaria admitida a teoria entre nós. Assim é que instrumentos
voltados a regulações específicas foram transmudados em preceitos
consagradores do instituto, demonstrando que nem mesmo a boa parte de
nossa doutrina tem importado a precisão técnica exigida à boa lei.
2. DIPLOMAS
INSTITUTO
SUPOSTAMENTE
CONSAGRADORES
DO
O texto legal apontado como pioneiro no tratamento da questão é
o artigo 10 do Decreto nº 3078/19, que cuida das sociedades por cotas de
responsabilidade limitada. O preceito discrimina a responsabilidade dos sócios
pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato
ou de lei. Entretanto, ele reporta, expressamente, à condição de responsáveis
solidários dos componentes desta sociedade, e não a uma utilização indevida
da autonomia da pessoa jurídica, como exige a doutrina do superamento.
Sendo assim, forçoso é reconhecer que tal dispositivo não corresponde à
primeira normatização da teoria no direito brasileiro.
Esse é o entendimento de Alexandre Couto Silva, consignado nos termos
seguintes:
Na legislação sobre sociedades limitadas, o artigo 10 do Decreto
nº 3078/19 não trata de uma hipótese de desconsideração,
como quiseram alguns doutrinadores, mas apenas admite
responsabilidade, perante terceiros, solidária e ilimitada dos
sócios-gerentes ou dos que derem nome à firma por dívidas
da sociedade (dívida alheia), pelo excesso de mandato e pelos
atos praticados com violação do contrato ou da lei.4
A Lei das Sociedades por Ações também é citada, por supostamente
retratar situação ensejadora da relativização da autonomia societária. Roberto
Papini sustenta esta proposição, ensinando que
a definição do acionista controlador, a atribuição de deveres
4
SILVA, op. cit., p. 85.
36
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e respectiva responsabilização por atos praticados com abuso
e desvio de poder, constitui um avanço do direito societário
brasileiro, porquanto representa a adoção da chamada teoria
da desconsideração da personalidade jurídica, ainda discutida
em outros países.5
Todavia, a literalidade da norma referente às ocorrências supracitadas já
evidencia que ocorre, na verdade, uma responsabilização dos controladores
da sociedade por sua conduta pessoal, e não porque praticaram atos ilícitos
sob o manto da personalidade do ente coletivo.
No entendimento de outros importantes juristas, o artigo 2º, parág. 2º da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) equivaleria à primeira experiência
nacional de positivação da doutrina da desconsideração, ao possibilitar a
responsabilização, dentro de um grupo econômico, comercial ou industrial,
das empresas subordinadas a uma sociedade controladora, em se tratando
de relação de emprego. Portanto, havendo lesão a direito trabalhista
ocasionado por um grupo empresarial, todas as empresas participantes de
um conglomerado de sociedades se sujeitariam, a princípio, a responder pela
reparação do dano, tenha sido ele decorrente de dolo ou culpa.
Entretanto, cumpre observar que o dispositivo se refere a uma imputação
de responsabilidade solidária, e assinala a preservação da personalidade jurídica
individual de cada um dos componentes deste grupo. Ademais, não exige que a
ofensa a direito trabalhista decorra de ato ilícito ou abuso de direito, requisitos
indispensáveis a autorizar a invocação da disregard doctrine.
Na verdade, aplica-se à hipótese contemplada a disciplina própria da
responsabilidade solidária, que afasta a incidência da teoria da desconsideração.
Portanto, embora seja esta a posição da doutrina majoritária, não se deve
admitir a CLT como o diploma pioneiro na inserção da disregard doctrine no
sistema jurídico brasileiro.
Alguns autores persistem na identificação do mecanismo no texto da
Consolidação afirmando que a existência do grupo de empresas, que expressa
a reunião de pessoas jurídicas individuais para a consecução de certos fins,
representa, por si só, o pressuposto fundamental para a desconsideração em
matéria trabalhista6. Couto Silva diz o seguinte:
PAPINI, Roberto. Sociedade anônima e mercado de valores mobiliários. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1988. p. 164.
6
Cf. KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. Direito do trabalho e grupos de empresas: aplicação
da disregard doctrine . Revista LTr, São Paulo, v. 54, n. 10, p. 1196-207out. 1990, p. 1203. Para
a autora, a previsão do mecanismo do superamento no parágrafo 2º do artigo 2º da CLT “evita
exatamente que a personalidade jurídica da empresa contratante seja abusivamente utilizada
para encobrir a real vinculação do empregado com o grupo”.
5
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37
(...) é de se crer que a existência do grupo por si só não
configura hipótese de desconsideração. Ao analisar-se a
desconsideração no direito norte-americano, observa-se
que (...) é necessária a existência de algumas circunstâncias,
como a confusão de ativos e passivos entre as companhias
controladoras e suas controladas, ou, ainda, que elas tenham
idênticos administradores, endereços, etc., enfim, tudo que
induza terceiro ao prejuízo ou que lhe venha causar prejuízo.7
Também é corrente a afirmativa de que o Código Tributário Nacional
esboçara certos princípios da teoria da desconsideração, ao tratar de algumas
formas de responsabilidade nos artigos 134, inciso VII, e 135. Especialmente
neste último, alguns autores visualizam traços fundamentais do expediente,
em virtude de a norma preceituar a responsabilização pessoal dos sócios por
créditos decorrentes de obrigações tributárias resultantes de atos praticados
com excesso de poder ou infração da lei ou estatuto. Pelo disposto no texto
legal, sempre que for impossível exigir o cumprimento da obrigação pela
sociedade, respondem os sócios pelos atos praticados irregularmente.
Lamartine Corrêa de Oliveira esclarece que
não tem sentido o direito brasileiro enxergar em dispositivos
como o do artigo 134, VII, do Código Tributário (que
responsabiliza, verificados determinados pressupostos, os
sócios pelas obrigações tributárias da sociedade) indícios que
revelem a presença entre nós das teses de desconsideração.
Tal dispositivo significa apenas, que, em determinadas
circunstâncias, os sócios são responsáveis por dívidas alheias
- no caso, dívida da sociedade.8
3. A DESCONSIDERAÇÃO NO NOVO CÓDIGO CIVIL
Diante da ausência de uma lei específica a regular a doutrina em apreço,
preocupou-se o projeto de Código Civil (nº 634-b, de 1975) em estabelecer
as hipóteses específicas de aplicação da teoria, em estrita obediência a seus
postulados tradicionais. Contudo, o processo de inserção do mecanismo não
ocorreu sem tropeços, vez que a redação dada ao artigo respectivo sofreu
várias alterações, até assumir a feição que hoje o Código apresenta.
O anteprojeto da responsabilidade de Miguel Reale prescrevia que:
SILVA, op. cit., p. 111.
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva,
1979. p. 520.
7
8
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Art. 49 - A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que
determinaram a sua constituição para servir de instrumento
ou cobertura à prática de atos ilícitos ou abusivos, caso em
que caberá ao juiz, a requerimento do lesado ou do Ministério
Público, decretar-lhe a dissolução.
Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo das sanções cabíveis,
responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os
bens pessoais do administrador ou representante que dela se
houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se
a norma especial determinar a responsabilidade solidária de
todos os membros da administração.
A impropriedade mais visível desse enunciado é determinar a dissolução
da entidade societária em caso de ilegalidade ou abuso de direito, quando
é da essência da desconsideração apenas suspender provisoriamente a
personalidade jurídica nestes casos. Destarte, a regra adotada pelo direito
brasileiro estaria contrariando frontalmente os requisitos mais elementares da
formulação original do expediente. Por essa razão, não tardaram a se manifestar
os seus defensores mais ortodoxos, protestando pela revisão daquele texto.
Os membros da Comissão de Elaboração do Anteprojeto propuseram,
assim, a modificação do caput do artigo transcrito, conservando-se, todavia, a
disposição de seu parágrafo único. Eis o novo enunciado:
Art. 48 - A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins
estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento
ou cobertura à prática de atos ilícitos ou abusivos, caso em que
poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios ou do
Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável,
ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade.
Percebe-se que a comissão acabou conservando a dissolução societária
como penalidade em caso de ilegalidade ou prática abusiva, ainda que a tenha
enquadrado como medida alternativa. Isto se afasta dos apelos doutrinários,
imperantes em nossos dias, pela preservação do ente coletivo por todas as
vias possíveis. Num estágio em que se peleja pela revisão da lei de falências,
por apresentar-se explicitamente voltada à punição do insolvente, a estrutura
do documento que viria a ser o novo Código Civil brasileiro parecia caminhar
no sentido oposto. Ademais, nos termos em que foi proposto, o artigo
redundaria na responsabilização de todos os membros da sociedade, ainda
que a desonestidade houvesse partido de apenas um deles. Pela solução
flagrantemente injusta que viabilizava, o dispositivo não poderia subsistir por
muito tempo.
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39
Outras imperfeições se evidenciaram quanto à legitimidade proposta
para a condução do caso ao judiciário. Exigia-se a intervenção do Ministério
Público nesta atividade, quando os interesses envolvidos eram da esfera
estritamente privada. O correto seria, pois, que se entregasse aos credores
lesados a iniciativa da propositura da ação, não se admitindo nem mesmo
aos sócios tomar essa medida. A proposta de dissolução da entidade, a par da
solução profundamente injusta em que resulta, também determina a própria
desfiguração do mecanismo, que nunca anuiu com a extinção da pessoa
jurídica.9
Rubens Requião posteriormente sugere novo texto, cuidando de assinalar
os traços peculiares e genuínos da doutrina anglo-saxônica, após criticar
duramente a formulação anterior. Eis a nova versão proposta:
Art. 48 - A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que
determinam a sua constituição, para servir de instrumento ou
cobertura à prática de atos ilícitos ou abusivos de sócio. Neste
caso, o juiz, desconsiderando a existência da personalidade
jurídica, a pedido do credor do sócio, poderá permitir a
efetivação de sua responsabilidade sobre os bens incorporados
na sociedade para a sua participação no capital social.10
A doutrina, contudo, não aprovou o novo texto, acusando-o de estabelecer
a medida da suspensão como um instrumento à disposição apenas do credor
da sociedade, quando os postulados da genuína desconsideração admitemna para qualquer terceiro lesado, ainda que não se encontre na condição de
credor.11
A partir daí, os autores lançaram-se a ofertar suas contribuições,
formulando, cada qual, o texto que melhor consagraria a doutrina entre nós.
Contudo, o texto finalmente aprovado foi o que integrou o Projeto de Código
Civil acolhido pela Câmara dos Deputados, e remetido ao Senado no ano de
1984, e que acabou conservando muitas falhas. O formato do artigo passou a
dispor o seguinte:
Art. 50 - A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins
estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento
ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que
poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios ou do
Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável,
OLIVEIRA, op. cit., p. 557.
REQUIÃO, Rubens. Projetos de Código Civil - apreciação crítica sobre a parte geral e o Livro
I (das obrigações). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 477, p. 12-27, jul. 1975.
11
Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 557, e COELHO, Fábio Ulhoa. Cesconsideração da personalidade
jurídica . São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 53.
9
10
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ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade.
Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo de outras sanções
cabíveis, responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica,
os bens pessoais do administrador ou representante que dela se
houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se a
norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os
membros da administração.
A comunidade jurídica, entretanto, não se resignou, e prosseguiu nas
críticas aos desvios técnicos apresentados pela regra. Koury assim se expressou:
Não se pode falar em consagração normativa da disregard
doctrine no artigo em questão, pois esta não visa a coibir atos
não previstos no objeto social, já que, uma vez ocorrendo tais
atos, o objeto deixa de ser lícito e pode haver a dissolução da
sociedade. A disregard doctrine procura, isso sim, sancionar
o desvio de função da pessoa jurídica, quer tal desvio seja
qualificado como abusivo de direito, quer ele se choque com
os princípios consagrados pelo ordenamento jurídico, desvio
este que pode ocorrer no estrito desempenho da atividade
empresarial, conforme os estatutos ou atos constitutivos.12
Finalmente, no Senado Federal se obteve nova redação ao dispositivo,
agora consentânea com a estrutura originária da doutrina de penetração. O
relator do projeto, Senador Josaphat Marinho, entendeu adequada a proposta
do acadêmico Marcelo Gazzi Taddei, do Curso de Direito da Universidade
Estadual Paulista (que, naquela época, desenvolvia pesquisa sob a orientação
do Prof. Dr. Luiz Antônio Soares Hentz), e encaminhou a Emenda nº 14, que
estabelecia a regra nos seguintes moldes:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica,
caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão
patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou
do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo,
que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações
sejam estendidos aos bens particulares dos administradores
ou sócios da pessoa jurídica.
A redação desse substitutivo determinou a forma como o novo Código
Civil passaria a acolher o instituto da desconsideração, cujo alcance se
estenderia a todas as relações jurídicas de índole privada em que houvesse
abuso da autonomia formal do ente societário. E, com efeito, tal é a orientação
KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica
(“disregard doctrine”) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 144.
12
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do artigo 50 do referido estatuto civil, que incidirá sobre suas ocorrências
caracterizadoras ao cabo da vacatio legis que põe sua vigência em suspenso até
janeiro de 2003.
Não fosse o atraso de quase trinta anos em sua aprovação definitiva pelo
Congresso Nacional, o Código Civil representaria o canal de ingresso da teoria
do superamento no sistema jurídico brasileiro, e eventualmente injustificasse
a consagração do mecanismo pelo Código do Consumidor, a ser apreciada
subseqüentemente. Isto talvez ocorresse em virtude da abrangência das
regras civis, que vinculam todas as situações jurídicas particulares, em que se
encerram também os eventos ligados ao consumidor. Dessa forma, é possível
que a consagração do instituto pelo Código Civil antes da edição do diploma
consumerista levasse o legislador a aceitar que também os danos causados
pelo desvio da personalidade jurídica ao consumidor fossem igualmente
reparados pelo enunciado do artigo 50 daquele código.
O fato, porém, é que, uma vez tendo o Código do Consumidor reservado
tratamento particular ao adquirente de produto ou serviço lesado pelo sócio
infrator, o alcance da proteção formalizada no novo Código Civil fica restrito
às demais relações privadas afetadas pelo desvio da personalidade jurídica
do ente coletivo. Aplica-se, aqui, o princípio de especialidade, que privilegia
o estatuto do consumidor por ser regramento específico em face da regulação
geral dada pelo Código Civil às relações envoltas pela matéria.
A acolhida do mecanismo pela comunidade jurídica nacional, no modo
como estatuiu a lei civil, não se deu de modo pacífico, porquanto certos juristas
ainda apontaram falhas e omissões no texto do artigo 50. Essa é a observação
de Alexandre Couto Silva, como se vê a seguir:
Verifica-se que o novo dispositivo busca solucionar os
problemas anteriormente relatados, diferenciando, ainda,
despersonificação e desconsideração, mas restringe a
possibilidade de aplicação da teoria da desconsideração às
hipóteses de abuso e de confusão patrimonial, sem acrescentar
a fraude em seu sentido mais amplo, como o adotado no
direito norte-americano, e claro a busca do ideal de justiça.13
Parece a outros doutrinadores, porém, que a estipulação da fraude como
hipótese ensejadora do expediente acaba sendo desdobramento natural da
formalização da medida, considerando que é de seu escopo fundamental
combater a conduta do sócio que maliciosamente emprega a personalidade
societária para enganar terceiros. Essa mostra ser a avaliação que Maria Helena
Diniz, como se transcreve abaixo:
13
SILVA, op. cit., p. 90.
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O Código Civil pretende, como se vê, quando a pessoa jurídica
se desviar dos fins que determinaram sua constituição, ou
que, quando houver confusão patrimonial, em razão de
abuso da personalidade jurídica, o órgão judicante, a pedido
do interessado ou do Ministério Público, esteja autorizado
a desconsiderar, episodicamente, a personalidade jurídica,
para coibir fraudes e abusos dos sócios que dela se valeram
como escudo, sem importar essa medida numa dissolução da
pessoa jurídica. Com isso, subsiste o princípio da autonomia
subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios,
mas tal distinção é afastada, provisoriamente, para um dado
caso concreto. (...) (A aplicação do expediente) é uma forma
de corrigir fraude em que o respeito à forma societária levaria
a uma solução contrária à sua função e aos ditames legais
(grifo nosso).14
A objeção de Couto Silva talvez busque respaldo no rigorismo com que
alguns autores tratam a sistemática da desconsideração, limitando sua aplicação
apenas aos casos expressamente mencionados em lei. Mas essa atitude não se
justifica, pois que sobre a atividade fraudulenta (em conjunto com o abuso
de direito) é que o instrumento se edificou, de modo que sua consagração já
pressupõe o propósito da lei em combater as fraudes perpetradas à sombra da
personalidade jurídica.
Por conseguinte, ainda que o Código Civil não expressamente o declare,
uma interpretação teleológica de seu artigo 50 revela o escopo de se combater
o uso da autonomia societária também tendente a induzir terceiros a erro.
Não cabe aqui, pois, apego à literalidade do dispositivo, mesmo porque
o expediente surgiu como reação a essa mesma postura de intransigência
hermenêutica.
De fato, o espírito que animou a flexibilização da autonomia societária
deve igualmente balizar a aplicação do preceito que hoje a relativiza. Não se
pode aceitar a insensatez de enclausurar o universo da pessoa coletiva em
outro dogmatismo, como se o respeito incondicional à personalidade jurídica
já não houvesse ensinado os inconvenientes de sua servidão judicial aos
ditames da literalidade normativa. Se a positivação de certos instrumentos
pode ensejar benefícios e malefícios, que a normatização da disregard doctrine
pelo Código Civil brasileiro, pela qual tanto se esperou, possa fazer triunfar
os primeiros.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. I.
p. 260.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica . São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro . 19. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002. v. I.
KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. Direito do trabalho e grupos de empresas:
aplicação da disregard doctrine . Revista LTr , São Paulo, v. 54, n. 10, p. 1196207out. 1990.
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São
Paulo: Saraiva, 1979.
PAPINI, Roberto. Sociedade anônima e mercado de valores mobiliários . 2. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1988.
REQUIÃO, Rubens. Projetos de Código Civil - apreciação crítica sobre a parte
geral e o Livro I (das obrigações). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 477, p.
12-27, jul. 1975.
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade
jurídica no direito brasileiro. São Paulo: Ltr, 1999.
A POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DOS
JUROS CONTRATADOS
FERNANDO ALVES DE SOUSA1
Sumário
1. Breve relato histórico; 2. Da aplicação do CDC às instituições bancárias
e financeiras; 3. Das possibilidades de revisão e anulação dos contratos; 4.
As lesões aos consumidores; 5. A distinção dos juros; 6. Da capitalização
dos juros; 7. Da comissão de permanência; 8. Da correção monetária; 9. Da
ilegalidade dos métodos de amortização; 10. Dos juros de mora e da multa
moratória; 11. Da limitação dos juros remuneratórios em 12% ao ano; 12.
Conclusão.
1. BREVE RELATO HISTÓRICO
Ainda precisamos firmar contratos, pois sua importância fundamental é
reconhecida pelo papel da permuta de obrigações e de circulação das riquezas.1
Entretanto, deve-se buscar sempre o equilíbrio contratual, ainda mais quando
na atualidade tem-se reconhecido que o dogma da vontade é relativo.
Nos primórdios das relações negociais, o costume, embelezado pela
HONRA, garantia à confiança de uma lealdade recíproca entre os contratantes,
protegendo, também, as legítimas expectativas das partes e exigindo a
proporcionalidade das obrigações, chegando naturalmente a uma justiça
contratual (nova realidade do direito obrigacional).
O paradigma da pacta sunt servanda, hoje relativizado, era cogente pelo
simples fato de nos antigos pactos haver maior calor aos princípios da honra e
da lealdade na palavra, quer seja verbal ou escrita, com ou sem testemunhas.
Todavia, é irrefutável lembrar que naqueles acordos de vontades era raríssimo
o uso da “má-fé objetiva”, hoje constantemente visualizada.
Ou seja, no reinado da época em que o contrato era lei entre as partes,
era induvidosamente mais fácil, simples e tranqüilo quitar as obrigações
contratuais, pois, como dito, havia uma honestidade (boa-fé) inserida nas
intenções de ambos os contratantes.
A famosa heresia denominada USURA (emprestar dinheiro a juros) foi
repelida por séculos tanto pelo Clero quanto pela Nobreza, mas, na Idade
Média após as vitórias “materiais” das Cruzadas Santas (1.314 d.c), os
Cavaleiros Templários, tidos como “monges guerreiros” da Igreja Católica e
como os primeiros banqueiros que a história ocidental conheceu, por incrível
que pareça, chegaram a tal nível de riqueza e poder que financiaram países
Fernando Sousa é advogado, consultor jurídico, especialista em Direito Civil, em Direito
Processual Civil e especializando em Docência do Ensino Superior.
1
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como a Espanha e a Inglaterra, sendo importante lembrar que muitos desses
empréstimos onerosos eram destinados a guerras internacionais.
Os juros dos Templários não eram generosos, acarretando várias
intrigas e desafetos em vista dos inadimplementos, chegando a amargar as
vontades até do saudoso Rei Felipe, “O Belo”, o qual, pelo endividamento
com os banqueiros da idade média, se uniu com o representante máximo da
Igreja Católica da época e juntos excomungaram os Cavaleiros Templários,
acusando-os de várias imoralidades materiais e espirituais, dentre elas a
prática anticristã da usura.
Dos cavaleiros que foram pegos, todos formam condenados à morte, mas
os que fugiram, escaparam com boa parte da grande fortuna dos Templários e,
afirmam historiadores doutrinários, fundaram a Maçonaria, após a construção
de uma Igreja tipicamente templária existente no Reino Unido.
Com a evolução e a propagação cancerígena da vertente mais ácida do
capitalismo e sua economia de consumo, consolidou a prática do empréstimo
a juros e, como se não bastasse, surgiram os artifícios de minúsculas cláusulas
contratuais, harmônicas a siglas e expressões vinculadas a métodos de
amortização matematicamente geniosos, o que eterniza um dos maiores
pecados do ser humano: a GANÂNCIA.
Por mais que possamos filosofar sobre as intenções desse negócio jurídico,
o grande desdouro dos contratos atuais não se encontra na inadimplência da
parte vulnerável, mas nas articulações da parte que elabora as gananciosas
cláusulas.
A salvação para os homens comuns, que não eram Reis, não veio com
positivações dos costumes em si, mas veio pelas interpretações dadas pelo
Poder Judiciário. Ora, os primeiros fundamentos jurídicos para a anulação dos
contratos excessivamente abusivos achavam-se, sobretudo, nas disposições e
nas intenções das vontades das partes.
O mais relevante é que a extensa enumeração de cláusulas contratuais
nulas, em todos os sistemas jurídicos, tem como pressuposto fundamental o
princípio de ser nulo o contrato quando um dos contratantes, abusando das
condições gerais dos negócios, venha a prejudicar excessivamente o outro,
agindo contra a moral ligada à boa-fé.
De consectário, justamente para disciplinar situações análogas ao tema,
foi inserido na promulgada a Constituição Federal de 1988, o Título VII:
“Da Ordem Econômica e Financeira”, agregando o Capítulo IV: Do Sistema
Financeiro Nacional, o qual iniciava-se com o art. 192, que dispunha em seu
famoso § 3º sobre as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer
outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito,
dizia o texto constitucional com clareza que não poderiam ser superiores a
doze por cento ao ano e, ainda, havendo cobrança acima deste limite será
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conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos
termos do Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933 (Lei de Usura).
Nesse mesmo norte, foi editado o Código de Defesa do Consumidor (Lei
nº 8.078/90) e reformado o Código Civil de 1916 (demudado pelo festejado
Código Civil de 2002), os quais acolheram os princípios humanos supraaludidos
para remanejar o mais popular direito obrigacional, satisfazendo as dúvidas
que remanesciam, cristalizando-se, definitivamente, a possibilidade de
revisão ou anulação do contrato, principalmente das cláusulas referentes
aos juros, primando por um restabelecimento do equilíbrio nas relações de
responsabilidades mútuas.
Com isso, houve uma disseminação das plataformas das famosas ações
declaratórias de revisão de cláusulas contratuais, rescisão contratual, restituição
de importâncias pagas, prestações de contas e até ações de reparação de danos,
todas tendo como objetivo a redução dos juros contratados.
Ocorreu que, em 30/05/2003, depois de arregaçadas várias mangas
políticas, entrou em vigor a emenda constitucional nº 40, a qual alterou o caput
do art. 192 e revogou o mencionado §3º do mesmo artigo, que congelava os
juros ao teto de um por cento ao mês. Em suma, a emenda 40 deixou o mundo
jurídico sem parâmetro constitucional que taxasse os juros.
Contudo, ainda hoje é plenamente possível reduzir os juros contratados,
mesmo em contratos firmados após a publicação da emenda constitucional
nº 40, tendo em vista os princípios e a legislação infraconstitucional, sendo,
embora, oscilante o percentual dos juros, dependendo de cada caso o quantum
da redução.
2. DA APLICAÇÃO DO CDC ÀS INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS E
FINANCEIRAS
De início, insta firmar que as regras atinentes à proteção contratual
previstas pelo Código de Defesa do Consumidor são notoriamente aplicáveis
às instituições bancárias e financeiras e, conseqüentemente, a todos os contratos
vinculados a esses fornecedores, conforme se depreende da leitura da Súmula
297 do STJ:
STJ - SÚMULA 297 - O Código de Defesa do Consumidor é
aplicável às instituições financeiras.
Na esteira desse mesmo entendimento, o ilustre Ministro Aldir Passarinho
decidiu que:
Aplicam-se às instituições financeiras as disposições do
Código de Defesa do Consumidor, conforme cada situação
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específica, rejeitado o entendimento contrário, que não
encontra sede adequada para confrontação. O que importa
para sujeição às diretrizes do CDC é a relação jurídica
existente entre o tomador e o fornecedor do crédito sobre
o qual se litiga, que é de consumo, não a natureza da pessoa
contratante ou a destinação dos bens adquiridos. ( STJ - AgRg
no REsp 620.871).
Ato contínuo, após anos de aplicabilidade ostensiva do CDC, os Bancos
começaram a sentir mais do que um decaimento de seus lucros, sentindo
umdecaimento em seu poder, a Confederação Nacional do Sistema Financeiro
(CONSIF) adentraram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade histórica
(ADI nº 2591/DF), requerendo ao Supremo Tribunal Federal a declaração da
inconstitucionalidade do § 2º, do art. 3º, do Código de Defesa do Consumidor,
defendendo a inaplicabilidade do CDC às instituições financeiras, bancárias e
de crédito.
Esse apelo bancário foi fora dos limites de qualquer glosador que tenha
o norte à interpretação conforme a Constituição Brasileira, e a comprovação
veio com o posicionamento majoritário do Plenário do Excelso Pretório, o qual,
inobstante ser formado por Ministros que felizmente ainda são consumidores,
negou o pedido inicial da ADI 2591, declarando, portanto, constitucional a
aplicabilidade do CDC as relações de natureza bancária, financeira e de crédito:
1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela
incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do
Consumidor. 2. ‘Consumidor’, para os efeitos do Código de
Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que
utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira
e de crédito.
STF - ADI 2591/DF, Relator p/ Acórdão: Min. EROS GRAU,
Julgamento: 07/06/2006, Órgão Julgador: Tribunal Pleno,
Publicação: DJ 29-09-2006 PP-00031, EMENT VOL- 02249-02
PP-00142)
Assim, resta afastada a tese de inaplicabilidade do CDC aos contratos
firmados com instituições financeiras, bancárias e de crédito, de corolário, foi
mantido o leque normativo para se perfazer a revisão e a anulação jurídica dos
contratos, como veremos.
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3. DAS POSSIBILIDADES DE REVISÃO E ANULAÇÃO DOS
CONTRATOS
Como dito, em resposta legislativa as abusividades nos contratos de
consumo, sobrevieram os artigos 51 e 54 do diploma consumerista, os quais
não posso deixar de colacionar a lição do Eminente Ministro do Superior
Tribunal de Justiça Ruy Rosado de Aguiar, que em artigo de sua autoria Aspectos do Código de Defesa do Consumidor, nos ensina:
Para a fase da execução do contrato, está prevista a
importantíssima regra sobre a possibilidade de modificação
de cláusula sempre que o fato superveniente tornar a avença
excessivamente onerosa, estabelecendo o desequilíbrio
entre as partes e a quebra da equivalência entre prestação
e contraprestação (art. 6º, inciso IV, do CDC). Não está aí
incluído o requisito da imprevisão, como insistentemente
se tem exigido até hoje no Brasil, nem que o prejuízo atinja
a ambas as partes, como consta do projeto do Código Civil.
Consagrou-se isto sim, a teoria da base do negócio, que
autoriza a modificação, uma vezalteradas as condições
objetivamente postas ao tempo da celebração.
Como regra da equivalência é uma norma de sobredireito, ela se aplica
para ambos os lados e funciona a favor de qualquer das partes. (REVISTA
AJURIS nº 52, pág. 181).
Sem dúvidas, permissa maxima venia, pode-se afirmar que muitos dos
contratos que todos precisamos firmar, não alcançam aos bons costumes, às
normas jurídicas e os relevantes interesses sociais.
Quer se examine sob o ponto de vista legal, sob os ângulos sociais
e sob a ótica da moral, nada chancela a prática gananciosa das instituições
financeiras e bancárias, eis que as cobranças abusivas por elas desencadeadas
(com suporte em cláusulas contratuais, questionáveis, bem como nos valores
lançados nos saldos devedores por métodos de amortização singulares)
encontram intransponível obstáculo na Legislação Federal, na Constituição
Federal e nas necessidades maiores da Nação.
Hoje, além da doutrina e da jurisprudência, é possível invocar a Lei para
dizer que os contratos de empréstimo oneroso são tipificados como de adesão
(artigo 54, da Lei nº 8.078/90), por isso, deve-se reclamar a interpretação da
maneira mais favorável aos vulneráveis (artigo 47, da lei citada), legítimos
consumidores dos serviços de natureza bancária, financeira e de crédito (artigo
3º, § 2º, e 29, da citada Lei).
A jurista Renata Mandelbaum, em sua obra: Contratos de Adesão e
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Contratos de Consumo, discerne a matéria de forma clara e precisa:
CONTRATOS DE ADESÃO E CONTRATOS DE CONSUMO
A interpretação do Contrato de Adesão reporta-se à interpretação do
negócio jurídico, a necessidade de interpretação dá-se pela discrepância que
observamos entre o alcance e o conteúdo das vontades expressas por meio
de um contrato de adesão, a busca da vontade comum. Mesmo os contratos
de adesão podem possuir cláusulas inseridas além da predisposição natural
e da decorrente, cláusulas introduzidas em conformidade com a natureza do
negócio jurídico celebrado, estas cláusulas específicas, prevalecem sobre as
cláusulas preestabelecidas. Outra possibilidade é do intérprete se deparar com
cláusulas conflitantes, sendo uma delas manuscrita ou mesmo datilografada,
no impresso do contrato formulário, esta prevalece sobre a cláusula genérica,
pois as partes apresentaram expressamente a sua vontade comum ao estipular
diversamente do conteúdo contratual.
Apenas pelo que já foi dissertado, evidencia-se ser, ainda hoje, cabível
a revisão e a anulação judicial de qualquer contrato de consumo. Como
exemplo, nos contratos de empréstimo e financiamento de pecúnia ainda
há determinação jurídica para ser realizado recálculo das transferências e
lançamentos indevidos, inseridos indevidamente em cláusulas contratuais.
Analisando o Código Civil, forçoso reconhecer, nesse aspecto, que grande
parte dos contratantes vulneráveis (na maioria consumidores) são mantidos
na teoria do erro substancial, conforme dispõe o artigo 86, do Código Civil
Brasileiro. Ora, pelo simples fato da parte que “deve aderir ao contrato” não
saber quanto realmente são os juros efetivos com ou sem mora contratual é
que acarreta num erro que vicia a verdadeira vontade do aderente, tornando
anulável o negócio jurídico pela incerteza das condições do parto.
De valia lembrar que não se pode subsistir o ato jurídico decorrente de
erro substancial, uma vez que, constatada a existência do erro, somente pode
ser argüida pela parte interessada, ou por ele prejudicada, isto é, pela pessoa
que aproveite do reconhecimento da existência do erro.
De observar ainda que o disposto do art. 421 do CC trouxe para toda
relação contratual (quer seja ela de consumo ou não) um dos princípios
basilares do CDC, o princípio da função social do contrato: “A liberdade de
contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
O aludido dispositivo torna explicito, como condicionador do processo
hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância
com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa-fé e
da probidade, exigidos expressamente pelo art. 422 do mesmo diploma.
Complementa o quadro da nova visão do contrato o art. 317 do CC/02,
que proclama:
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Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier
desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e
o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a
pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o
valor real da prestação.
Inobstante os fatos e fundamentos anteriormente aduzidos, os contratos
passíveis de modificação ou extinção pelo Judiciário não são apenas os típicos
contratos de adesão, mas também aqueles que permitem às partes discutirem
livremente as condições do negócio, porque, mesmo quando as partes almejam
uma posição de igualdade, nenhum contrato tem o poder de tornar moral o
que é imoral, social o que é insocial.
Mas vale dizer que nos contratos de adesão a lesão já existe antes de
firmadas as obrigações, visto que há a preponderância da vontade de um
dos contratantes, simplesmente por ter elaborado todas as cláusulas sem a
participação do outro contratante. Esse último adere ao modelo de contrato
previamente confeccionado, não podendo modificá-las: aceita-as ou as rejeita,
de forma pura e simples e em bloco, afastada qualquer alternativa de discussão.
4. AS LESÕES AOS CONSUMIDORES
No que tange as possibilidades e formas de lesão imposta aos
consumidores, a doutrina hoje se encontra vivificada por Caio Mário da Silva
Pereira, em sua obra “Lesão nos Contratos”, que assinala:
Em sua nova concepção do instituto, com as características de
lesão qualificada, dois são os elementos que a caracterizam:
I) a desproporcionalidade das prestações;
II) o dolo de aproveitamento.
Em sua nova dogmática, de que o projeto de Código de
Obrigações de 1965 representa a abertura de rumos, foi
desprezada a vinculação tarifária. Diversamente da lesão de
metade, que é fundamental na origem ou lesão de uma quinta
parte, o conceito moderno prefere uma referência genérica,
vantagem manifestamente desproporcional ao proveito
resultante da prestação oposta. (PEREIRA, S/D, p. 197-198)
A matéria já não que parece nova em nosso ordenamento jurídico, pois já
foi comentada no início de nosso século, por Martinho Garcez, em seu clássico
“Nulidades dos Atos Jurídicos”, embora considere a lesão de forma tarifada,
ao lecionar que:
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A lesão divide-se em enorme, quando o engano se verifica em
mais da metade do valor que a parte por comum estimação
devia receber, por se presumir erro ou dolo, e em enormíssima,
quando alguém recebeu somente a terça parte do valor da
coisa.
O dolo ou erro, em se tratando de lesão enorme, segundo a doutrina,
são presumidos, sendo dado à parte lesada a alternativa de pedir a exibição
de documentos necessários para corroborar uma inevitável prestação de
contas ou uma ação revisional de cláusulas contratuais. Sendo corriqueira
a ocorrência de lesões enormes, face cobrança de juros superiores muito
superiores ao antigos parâmetros constitucionais e legais (12% ao ano), mais
encargos matematicamente camuflados, colocando os consumidores como
devedores de valores além do que seria moralmente admitido.
A história jurídica brasileira tem arquivado fracassados planos
econômicos ditados pelo Governo Federal, justamente por ato heróico e
corajoso do Poder Judiciário, que, chamado a se manifestar, fê-lo de pronto
e energicamente. Por exemplo, no famigerado “Plano Collor” que bloqueou,
vergonhosamente, dinheiro em conta corrente dos brasileiros, a justiça, em
tempo, confirmou o grande equívoco deste plano de confisco, protegendo o
cidadão da ganância e a ambição de seus idealizadores.
Aos tempos atuais, a realidade não é muito diferente, em que os grandes
fornecedores de serviços bancários e financeiros vêm praticando verdadeira
sobreposição extorsiva aos brasileiros, usurpando dinheiro depositado ou
emprestado sob a camuflagem de pactuação de encargos, expressivamente
elevados, principalmente índice de juros, muito das vezes compostos e
agregação de outros indexadores e taxas.
No campo das lides revisionais, em face dessas novas circunstâncias
jurídicas, a Justiça Brasileira foi chamada a se pronunciar, e essa ainda está
respeitando os princípios que coadjuvarão a estabelecer, com justeza, um
índice equânime e consentâneo para a anulação de um contrato. São eles:
a) Intolerância de alto índice por configuração de usura;
b) Razoabilidade de taxação no contexto econômico e
c) Desequilíbrio contratual em razão da desproporcionalidade da
pactuação.
Mesmo com as cláusulas expressas no contrato com referência aos juros,
as mesmas devem ser analisadas com o acréscimo do alcance das amortizações,
sob pena de vulnerar o artigo 52 do Código de Defesa do Consumidor, que
reza que no fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de
crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá,
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ter todas as informações relativas ao financiamento, que devem ser fornecidas
previamente e de forma adequada.
Além do exposto, como o rol do art. 51 do Código de Defesa do
Consumidor é exemplificativo, tendo em vista que os artigos 22, IV, e art. 56
do Decreto nº 2.181/97 (Regulamento do CDC) determinam à Secretaria de
Direito Econômico do Ministério da Justiça editar anualmente rol de cláusulas
abusivas extraídas da experiência cotidiana e da jurisprudência dos Tribunais
para que seja complementado o artigo 51. Nesse desiderato, tem-se que, por
meio da Portaria nº 3, de 19/03/1999, publicada no Diário Oficial da União em
22/03/1999, p.1, uma das cláusulas consideradas abusivas é a que estabeleça
a cobrança de juros capitalizados mensalmente.
Após esse tópico, antes de adentrar ao “juro” propriamente dito,
passo a analise de outros encargos contratuais, freqüentemente encontrados
nos financiamentos e empréstimos, sendo que esses também sufocam o
consumidor, mas sempre poderão ser reduzidos.
5. A DISTINÇÃO DOS JUROS
Um dos antônimos da palavra “juro” é a “punição”, ou seja, juro é toda e
qualquer premio, vantagem, lucro ou benefício adquirido. Refletindo pelo lado
contratual, os juros são formados não apenas pelo valor nominal estampado na
cláusula própria, mas sim pela totalidade do conjunto de proveitos e ganhos
da parte que lucra com o simples cumprimento das obrigações da outra.
Sobre a conceituação do tema, Maria Helena Diniz afirma que:
Juros - “ são o rendimento do capital, ou seja, o preço do
uso do capital alheio, em razão da privação deste pelo dono,
voluntária ou involuntariamente.” (DINIZ,s/d. p. 314);
Vejamos agora a visão da mesma autora sobre a bipartição dos juros nos
gêneros compensatórios e remuneratórios:
a) compensatórios - “ decorrem de uma utilização consentida
do capital alheio, pois estão, em regra, preestabelecidos no
título constitutivo da obrigação, onde os contraentes fixam os
limites de seu proveito, enquanto durar o negócio jurídico,
ficando, portanto, fora do âmbito da inexecução.” (DINIZ,s/d.
p. 307);
b) moratórios - “ constituem pena imposta ao devedor pelo
atraso no cumprimento da obrigação, atuando como se fosse
uma indenização pelo retardamento no adimplemento da
obrigação.” (DINIZ,s/d. p. 308).
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Então, os juros remuneratórios são devidos para o pagamento do uso do
dinheiro e os juros moratórios uma espécie de castigo pelo não pagamento em
tempo em que deveria e/ou combinado.
Assim, os juros remuneratórios/compensatórios consistem em
rendimento remuneratório do capital. Já os juros moratórios, constituem a
pena imposta ao devedor pelo atraso no cumprimento da obrigação. Funciona
como uma indenização pelo retardamento na execução do débito.
Veja-se que, desde 1994, o Colendo STJ explicava com precisão que
os juros compensatórios não são propriamente “juros”, não podendo ser
constituindo como um excedente sobre os valores, mas apenas como um meio
de compensação:
III - Os chamados juros compensatórios não se constituem
propriamente em jurosremuneração de capital - mas em
verba destinada a compensar a perda antecipada do imóvel.
Os juros moratórios são devidos pela demora no pagamento,
devendo incidir sobre o total do quantum indenizatório.
Dada a natureza das verbas, não ha a sugerida capitalização.
( STJ - REsp 44080/SP; Ministro CESAR ASFOR ROCHA; DJ
25.04.1994 p. 9217)
Antes que venha para a razão a idéia de que os juros compensatórios
na podem cumular com os moratórios, por constituir anatocismo, escolho
novamente as palavras do Colendo STJ e de sua, até então pouco usada, Súmula
nº 102, na pessoa do então Ministro José Delgado Colendo, esclarecendo:
4. A teor da Sum. 102 desta Corte, a contagem de juros
moratórios sobre compensatórios não constitui anatocismo
vedado em Lei.
5. Precedentes. ( STJ - REsp 113980/SP; Ministro JOSÉ
DELGADO; DJ 22.04.1997 p. 14399)
Destarte, é plenamente permitido e moralmente compulsória a aplicação
de juros compensatórios sobre os valores decorrentes da utilização consentida
de um capital alheio, incidentes, preferencialmente, por mês e a partir da data
de cada desembolso. E, ainda, passado o prazo de cumprimento da obrigação,
deve ser cumulado aos compensatórios os juros moratórios, até a efetiva
quitação da dívida existente.
Com tais detalhamentos, antes de adentrar nos juros contratuais, passo
a abordar os mais notórios encargos contratuais, quais sejam a capitalização
dos juros, a comissão de permanência e os métodos de amortização da dívida.
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6. DA CAPITALIZAÇÃO DOS JUROS
No que tange à capitalização dos juros, restou decidido nos termos
expressos da Súmula 121 do Supremo Tribunal Federal que “é vedada a
capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”.
Dessa forma, indiscutível o entendimento sumular acima referenciado, em
que é vedada a capitalização dos juros remuneratórios, seja mensal ou semestral
em contratos de financiamento. Entretanto, inobstante a generalização da
Súmula nº 121 do STF, é permitida certa incidência da capitalização em casos
excepcionais previstos em lei, ex vi do artigo 4º da Lei de Usura c/c a Súmula
93 do STJ, legitimando a capitalização em relação às cédulas de crédito rural,
comercial e industrial, não se sabendo qual a fundamentação do Legislador
para tal reserva.
Ademais, é mister registrar, que não há se cogitar de eventual
inaplicabilidade da Lei de Usura à capitalização dos juros em virtude da
Súmula 596 do STF, haja vista que tal dispositivo faz referência apenas à
inaplicabilidade do regramento inserto no Decreto 22.626/33 na taxação de
juros e outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições
públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.
Nesse compasso, novamente glosando a Sumula nº 121 do SFT, decidiu
o Superior Tribunal de Justiça que é permitida a capitalização anual dos juros:
Agravo regimental. Recurso especial parcialmente provido.
Alienação fiduciária. Ação revisional conexa com ação de
busca e apreensão. (...) 1. O tema referente à capitalização
dos juros foi decidido com fundamento em ampla e pacífica
jurisprudência desta Corte, que admite, em hipóteses como
a presente, a capitalização anual. (...)” ( STJ - 3ª Turma, Min.
CARLOS ALBERTO MENEZES, AgRg no REsp 655401/RS,
DJ de 01/02/2005).
Ainda que expressamente pactuada, é vedada a capitalização mensal
dos juros, somente admitida nos casos previstos em lei. Incidência do art. 4º
do Decreto n. 22.626/33 e da Súmula n. 121-STF. ( STJ - 4ª Turma, Min. ALDIR
PASSARINHO JUNIOR, AgRg no REsp 718372/RS, DJ de 30/05/2005).
Veja-se que o colendo STJ se reporta, analogicamente, ao permisso
expresso no art. 591 do CC:
Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos,
presumem-se devidos juros, os quais, sob pena redução, não
poderão exceder a taxa que se refere o art. 406, permitida a
capitalização anual.
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De valia relembrar a mencionada Portaria nº 3 da Secretaria de Direito
Econômico do Ministério da Justiça, que considerou como uma das cláusulas
contratuais abusivas a que estabeleça a cobrança de juros capitalizados
mensalmente.
Ainda, com a finalidade de evitar prejuízos irreparáveis aos consumidores,
entendo ser incomportável também a aplicação da Medida Provisória nº 2.17036, publicada no DOU em 24/08/2001, que reeditou as Medidas Provisórias
nºs 1.782, 1.907, 1.963, 2.087, ainda vigentes, a teor do contido no artigo 2º da
EC nº 32/01, que, em seu texto normativo, artigo 5º, permite, nas operações
realizadas pelas instituições financeiras, a capitalização em periodicidade
inferior à anual.
Isto porque, o eminente relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 2.316- DF, Ministro Sidney Sanches, prolatou voto deferindo a suspensão
cautelar da eficácia do artigo 5º, caput e parágrafo único da medida provisória
nº 2.170-36, de 23/08/2001, por aparente falta do requisito de urgência e pela
ocorrência do periculum in mora inverso, mesmo que o julgamento da ADi
ainda não tenha sido encerrado.
Assim, ressalvados os contratos de cédulas de crédito rural, comercial
e industrial (exceções expressas em lei), são pífias as teses de que é possível
a capitalização mensal dos juros remuneratórios nos demais tipos de
contrato, por simples falta de amparo legal, sendo permitida, tão somente, a
capitalização anual, por analogia ao art. 591 do CC e por precedentes do STJ,
como dito alhures.
7. DA COMISSÃO DE PERMANÊNCIA
Sobre a cobrança da comissão de permanência, com o advento da Lei nº
6.899/81 que autorizou a incidência da correção monetária para compensar
a desvalorização da moeda e remunerar a instituição financeira mutuante
no caso de inadimplemento do devedor, a referida comissão perdeu a sua
função, já que seria ilegal a aplicação simultânea das duas correções, pois, ao
contrário, configuraria bis in idem e afronta o princípio da eqüidade (justo
equilíbrio entre direitos e obrigações das partes) associada ou alternada com a
boa-fé, previstos nos arts. 4º, III do CDC e 422, 423 e 424 do CC.
Desse modo, em respeito às Súmulas nºs 30 e 294 do Superior Tribunal
de Justiça, a comissão de permanência quando contratada, só poderá ser
cobrada no período de inadimplência, desde que não cumulada com a correção
monetária, multa contratual e juros remuneratórios e, ainda, limitada à taxa
média de mercado, sem extrapolar o percentual pactuado para os juros do
contrato.
Nesse sentido, a orientação jurisprudencial Pátria dita que:
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(...) 1. Confirma-se a jurisprudência da Corte que veda
a cobrança da comissão de permanência com os juros
moratórios e com a multa contratual, ademais de não permitir
a sua cumulação com a correção monetária e com os juros
remuneratórios, a teor das Súmulas nºs 30, 294 e 296 da Corte.
(...) ( STJ - 3ª Turma, Min. CARLOS ALBERTO MENEZES,
AgRg no REsp 729067/RS, DJ de 01/08/2005).
Dessa forma, improsperável a assertiva dos Fornecedores, pois
incomportável a cobrança de comissão de permanência, devendo ser afastada
e substituída por correção monetária, conforme se observa no tópico seguinte.
8. DA CORREÇÃO MONETÁRIA
No que se refere à correção monetária, pondero que as particularidades
do INPC fizeram com que se tornasse um dos mais aperfeiçoados índices de
atualização do valor nominal da moeda aplicável nas relações de consumo.
Atualmente, no Brasil, este índice é o legalmente utilizado para correção dos
valores defasados pelo processo inflacionário.
Todavia, o INPC não é sempre o índice mais benéfico, concorrendo
equiparadamente com outros, como a TR (Taxa Referencial), a qual, até
meados de 2002, superava o índice nacional de preços ao consumidor.
Prevendo isso, poderá o consumidor pedir judicialmente a aplicação do
índice mais benigno para corrigir monetariamente a dívida. Tal liberdade é
legalmente avalizada pelo CDC (art. 47) e pelo CC (art. 423), autorizando
o privilegio do consumidor com um índice que amenize sua desigualdade
perante o fornecedor.
Nesse contexto, correta é a substituição da comissão de permanência pela
correção monetária, sendo mais comum o INPC como índice de atualização,
haja vista ser o que melhor promove o reajuste das prestações convencionadas
em sintonia com a inflação em vigor, mas há permissão legal capaz de propiciar
alternativa para outro índice cuja correção seja mais favorável ao consumidor.
9. DA ILEGALIDADE DOS MÉTODOS DE AMORTIZAÇÃO
Sobre os métodos de amortização utilizados nos contratos de empréstimo
e financiamentos de relações de consumo, temos como mais famosa a
utilização da Tabela Price como índice de amortização, também denominada
de TP, ou Tabela Progressiva, ou Índice Hamburguês, ou Sistema Francês e
matematicamente chamada de Capitalização Exponencial.
Antes de qualquer contexto, colaciono argumentos do próprio Richard
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Price que, em seu livro, explana os efeitos de sua “obra”, ao explicar suas
tabelas a juros compostos e as conseqüências de seus sistemas de parcelas.
Di-lo:
Um Penny posto a juros composto do dia do nascimento
de Cristo até 1.781, produz um crescimento equivalente
á duzentos milhões de globos de ouro sólido, iguais ao do
tamanho da terra, porém se fosse posto a juros simples no
mesmo período produziria uma quantia igual ou não maior
do que 7 Shilings e seis pence “ (MESCHIATTI, Nogueira, in:
“Tabela Price - Da Prova Documental e Precisa Elucidação do
seu Anatocismo” - Obra original por: PRICE, Richard, 1783,
4ª ed., p. 228).
Como se observa, tal sistema eleva-se o débito extraordinariamente,
cobrando os juros de todas as parcelas antecipadamente na primeira prestação,
mantendo o consumidor na supramencionada Teoria do Erro Substancial e
infectando o pacto com a onerosidade excessiva.
Visto isso, resta claro que tabelas ou sistemas como a Price são métodos
de amortização que incorporam juros compostos para chegar o valor total da
dívida. No entanto, como o art. 4º do Decreto Lei nº 22.626/33, a Súmula 212 do
STF e os princípios do CDC e do CC proíbem o anatocismo, juros compostos
ou juros sobre juros, conclui-se que a Tabela Price e outras similares são
ilegais e devem ser afastadas dos contratos de prestações diferidas no tempo,
porque impõe excessiva onerosidade ao contratante (arts. 478 e 479 do CC, c/c
o art. 51 do CDC).
Aliás, esse é o entendimento do STJ:
A aplicação da Tabela Price aos contratos de prestações
diferidas no tempo impõe excessiva onerosidade aos mutuários
devedores do SFH, pois no sistema em que a mencionada
Tabela é aplicada, os juros crescem em progressão geométrica,
sendo que, quanto maior a quantidade de parcelas a serem
pagas, maior será a quantidade de vezes que os juros se
multiplicam por si mesmos, tornando o contrato, quando não
impossível de se adimplir, pelo menos abusivo em relação ao
mutuário, que vê sua dívida se estender indefinidamente e
o valor do imóvel exorbitar até transfigurar-se inacessível e
incompatível ontologicamente com os fins sociais do Sistema
Financeiro da Habitação. 6. Recurso especial parcialmente
conhecido e, nesta parte, desprovido. (STJ - REsp 668795/
RS; 2004/0123972-0; Ministro JOSÉ DELGADO; PRIMEIRA
TURMA; DJ 13.06.2005 p. 186.).
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No mesmo sentido (SFH - TABELA PRICE - CAPITALIZAÇÃO): STJ RESP 572210-RS (RNDJ 56/95), RESP 410775-PR, AGRG NO RESP 647989-RS,
AGRG NO RESP 622550- RN, AGRG NO RESP 524920-RN, RESP 601445-SE.
Assim, tratando-se de financiamento imobiliário, fiduciário, contrato
de abertura de crédito, entre outras diversidades de empréstimos, resta
legalmente vedada a aplicação de sistemas de amortização que capitalizam
geometricamente ou até aritmeticamente os valores do débito.
10. DOS JUROS DE MORA E DA MULTA MORATÓRIA
Em tempos hodiernos, no que diz respeito à aplicação da multa
moratória e dos juros de mora, seus parâmetros somente são corretos quando
a estipulação contratual fixa os juros de mora em 1% (um por cento) ao mês e
a multa moratória em 2% (dois por cento) ao mês sobre o valor total da dívida,
conforme a Lei de Usura e o art. 52, §1º, do CDC.
Sobre a multa moratória, veja-se que após a Lei nº 9.298/96, o teto deve
ser de 2%, esse é o entendimento do Colendo STJ:
3. Nos contratos firmados após a vigência da Lei 9.298/96, a
multa moratória deve ser reduzida para 2%. ( STJ - 4ª Turma,
Min. BARROS MONTEIRO, AgRg no Ag 599872/ RS, DJU de
07/03/2005).
Sobre os juros de mora, por oportuno esclarecer que o renovado art. 406
do Código Civil de 2002 definiu a porcentagem dos juros de mora em 1% (um
por cento) ao mês:
Art. 406. Quando os juros moratórios não forem
convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando
provierem de determinação da lei, serão fixados segundo
a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de
impostos devidos à Fazenda Nacional.
Agora o que seriam os impostos devidos à Fazenda Nacional? O artigo
161, §1º do CTN nos responde:
Art. 161. O crédito não integralmente pago no vencimento é
acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo determinante
da falta, sem prejuízo da imposição das penalidades cabíveis
e da aplicação de quaisquer medidas de garantia previstas
nesta Lei ou em lei tributária.
§ 1º Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora
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são calculados à taxa de um por cento ao mês.
Juristas reunidos na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de
Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF), sob a coordenação
científica do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr., do Superior Tribunal de
Justiça, editaram o seguinte enunciado, antes da revogação do artigo 192,
parágrafo 3º, pela Emenda Constitucional nº 40/03:
Enunciado 20: A taxa de juros moratórios a que se refere o
artigo 406 é a do artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário
Nacional, ou seja, 1% (um por cento) ao mês.
Dessarte, é justo, pela compensação e pela mora do inadimplente a
incidência dos juros moratórios, no importe de 1% ao mês.
Desse modo, como a porcentagem dos juros da demora (ou juros pelo
inadimplindo) é legalmente e jurisprudencialmente taxada em apenas 1% (um
por cento) ao mês, qual seria então a porcentagem justa dos chamados juros
remuneratórios, levando em consideração que os mesmos já não tem qualquer
regulamentação positivada? Vejamos o próximo tópico.
11. DA LIMITAÇÃO DOS JUROS REMUNERATÓRIOS EM 12% AO
ANO
Quanto à aplicação dos juros remuneratórios em contratos de relação
de consumo ou não, entendo ainda ser aplicável a redução e a limitação de
tais juros ao patamar de 12% (doze por cento) ao ano, mesmo em contratos
firmados após a emenda constitucional nº 40, de 30/05/2003.
Alinhavo minhas fundamentações não só em normas constitucionais,
mas precipuamente em normas e princípios infraconstitucionais. Prima facie,
a limitação dos juros remuneratórios não deve perder de vistas o contido nos
arts. 170, V e 173, § 4º, da CF/88, os quais combatem tanto a formação de
cartéis, monopólios, quanto o aumento exagerado dos lucros por qualquer
instituição. Confira-se:
Art. 173. Ressalvados os caso previstos nesta Constituição, a
exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será
permitida quando necessária aos imperativos da segurança
nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definidos
em lei.
§ 4º. A lei reprimará o abuso do poder econômico que vise à
dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao
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aumento arbitrário dos lucros.
A despeito de se frear o excessivo lucro obtido pelas instituições
financeiras através dos juros, seguem-se as normas infraconstitucionais ínsitas
no Código de Defesa do Consumidor e também do Código Civil, de onde se
extrai magnos princípios que devem ser respeitados, a saber:
a) Princípio da função social, ou seja, a “compatibilização da
proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento
econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos
quais se funda a ordem econômica” (trecho do inciso III, do art.
4º, do CDC); princípio presente no art. 421 do Código Civil e,
implicitamente, conduz também a previsão do art. 173 da CF.
b) Princípio da eqüidade retributiva e da boa-fé objetiva que se
traduz na “transparência” e na “informação” necessária ao bom
desempenho e conhecimento que se exige nas relações de consumo,
presente no art. 4º, III e art. 51, IV, do CDC, previsto inclusive no
art. 422 do CC;
c) Princípio da comutatividade que decorre, essencialmente, de
influências de ordem econômica e consiste na idéia de que toda
troca de bens ou serviços deve fundar-se sobre o postulado da
equivalência das prestações.
d) Princípio da equivalência material, que trata da “vulnerabilidade”,
da “harmonização dos interesses” ou do “equilíbrio nas relações”,
tipificado no art. 4º, I e III, e art. 47, do CDC, encontrado, ainda, nos
arts. 423 e 424 do Código Civil.
Esses princípios são de cunho social e aproximam as tendências protetivas
nos dois Códigos. Portanto, a tendência futura é o desaparecimento progressivo
da distinção dos regimes jurídicos, com a prevalência da constitucionalização
do Código Civil, harmonização e incorporação das previsões do CDC aos
contratos comuns.
Portanto, tais princípios mostram-se imperativos a qualquer contrato,
cujas cláusulas alcançam induvidosamente a pactuação da taxa de juros,
cujo limite deve ser observado para que não se ultrapasse os limites da
razoabilidade e coloque em desvantagem exagerada à parte hipossuficiente,
qual seja, o consumidor.
É bom que se diga que o percentual de doze por cento ao ano, foi o único
patamar legalmente estipulado pelo Poder Legislativo e confirmado pelo
Judiciário.
Nessa esteira, não se pode olvidar que recentemente o Excelso Supremo
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Tribunal Federal, consolidando o seu posicionamento relativo à questão
trazida a lume nesse artigo, editou a Súmula 648, em que se pronuncia pela
necessidade de regulamentação do dispositivo constitucional, hoje extirpado
do mundo jurídico, o qual estipulava o limite máximo da taxa de juros não
superior a 12% (doze por cento) ao ano.
Entretanto, interpretando o revogado § 3º do art. 192 da CF/88, impendese considerar que o patamar máximo dos juros remuneratórios sempre esteve
delimitado pela redação de tal norma, sendo que a prática de taxas mais
elevadas reclamava um disciplinamento legal, o que ainda não ocorreu.
Vale lembrar que todos os disciplinamentos legais realizados até hoje e a
grande maioria das interpretações judiciais, sempre consideraram os juros ao
limite de 12% ao ano, com esteio nas normas do art. 5º da Lei de Usura, §3º do
art. 192 da CF, art. 406 do CC e o art. 161, §1º, do CTN. Observe-se:
Decreto nº 22.626/33 - Art. 5º. Admite-se que pela mora dos
juros contratados estes sejam elevados de 1% (um por cento)
e não mais.
CF - Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de
forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País
e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em
lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: (Artigo
revogado pela redação dada pela Emenda Constitucional nº
40, de 2003)
§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e
quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente
referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores
a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será
conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas
modalidades, nos termos que a lei determinar. (Parágrafo
revogado pela redação dada pela Emenda Constitucional nº
40, de 2003)
Destarte, a Constituição Federal, o Código Civil e o Código de Defesa
do Consumidor determinam, por diversas vezes, a aplicação do chamado
“juro legal”, mas todas as positivações existentes estão pendentes de futuras
leis complementares. Todavia, o Poder Judiciário, considerando todas as
legislações antigas e modernas que formam o ordenamento jurídico, deve, a
meu sentir, adotar um posicionamento firme para regular, impedir e reprimir
os excessos praticados pelas instituições bancárias. A sociedade está a mercê
de um limite legal aos juros, mas, pelos conjuntos normativos acima, é patente
que ordenamento vigente prima por um parâmetro de valor dos juros a
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serem cobrados, o que significa que o quantum dos juros não está livre de
controle judicial, máxime quando se observa que inexiste qualquer lei ou ato
normativo que desqualifique o limite dos juros em 12% ao ano ou que restrinja
a aplicabilidade das normas limitadoras.
Por fim, considerando que é de interesse da economia do país que não
haja capital remunerado exagerado, pois impede o desenvolvimento de quem
se vincula a um contrato, em face da falta de estipulação dos juros legais,
considero o limite de 12% (doze por cento) ao ano como sendo uma taxa justa
de cobrança de juros remuneratórios.
Imperioso salientar, ainda, malgrado o disposto na Súmula nº 596 do
Supremo Tribunal Federal, editada anteriormente à Constituição Federal
de 1988, a majoritária jurisprudência tem reconhecido que o Decreto-Lei nº
22.626/33 (Lei de Usura) foi recepcionado pela Lei Maior. Devendo, tal norma,
ser aplicada de forma analógica frente à determinação do seu art. 5º, onde os
juros pactuados não podem ser superiores a 1% ao mês.
Acrescento que o Supremo Tribunal Federal tem, recentemente, negado
seguimento a Recursos Extraordinários propostos pelos Bancos e Instituições
Financeiras contra a limitação dos juros em 12% ao ano, principalmente quando
há no acórdão fundamentação em normas infraconstitucionais. Confira-se:
DECISÃO: Trata-se de RE em face de acórdão que limitou a
12% ao ano os juros incidentes sobre o débito.
Para assim decidir, o acórdão recorrido, além de fundar-se
na auto-aplicabilidade do artigo 192, § 3º, da Constituição
Federal, baseou-se em fundamento infraconstitucional. (...)
Sendo suficiente à sustentação do acórdão recorrido, incide,
mutatis mutandis, o princípio da Súmula 283 (“É inadmissível
o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta
em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange
todos eles”). (
STF - RE nº 470313; procedência: GOIÁS; Min. Sepúlveda
Pertence; DJ nº 42 - 02/03/2006 - Ata nº 20)
1. Trata-se de recurso extraordinário interposto contra
acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás que
manteve a sentença de procedência da ação de prestação de
contas para, entre outras disposições, estabelecer em 12% ao
ano os juros relativos ao contrato firmado entre as partes com
base na auto-aplicabilidade do art. 192, § 3º, da Constituição e
na legislação infraconstitucional.
2. Omissis. 3. Omissis.
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4. No tocante ao mérito, debate-se limite de juros em contrato
de abertura de crédito em conta-corrente. O acórdão da
apelação decidiu que esses encargos devem ser limitados em
12% ao ano por aplicação da Lei de Usura e do § 3º do art. 192
(redação originária) da Constituição Federal. (...)
Os fundamentos de caráter infraconstitucional, suficientes
per se para manter o acórdão recorrido no tocante ao teto
dos juros, tornaram-se, portanto, definitivos, obstando a
impugnação, mediante recurso extraordinário, com base no
art. 192, § 3º, da Constituição, nos termos da Súmula STF
nº 283. Sobre o tema, confiram-se: RE 372.872-ED, rel. Min.
Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ de 27.06.2003; RE
346.572-ED, rel. Min. Sydney Sanches, Primeira Turma, DJ
de 24.09.2002; e AI 373.994-AgR, rel. Min. Carlos Velloso,
Segunda Turma, DJ de 18.06.2002. (
STF - RE nº 420395; procedência: GOIÁS; Min. Ellen Gracie;
DJ nº 226 - 25/11/2005 - Ata nº 180)
Com se percebe, o Pretório Excelso reconhece a supremacia dos princípios
infraconstitucionais aplicáveis à espécie, considerando-os suficientes e capazes
de reduzir os juros ao limite de 12% ao ano, inobstante a revogação do §3º do
art. 192, da CF.
Logo, os encargos fixados no decisum atacado, a meu sentir, guardam
inteira proporção entre o prestador de serviços e o consumidor, já que a
limitação da taxa de juros remuneratórios em 12% ao ano mantém o equilíbrio
do contrato, amparado, de igual modo, nos dispositivos constitucionais e
infraconstitucionais invocados, como dito alhures.
12. CONCLUSÃO
Hoje é inegável o uso da “má-fé objetiva”, conceituada como a capacidade
inerente e dissimulada de auferir vantagem indevida, uma intenção hoje
constantemente materializada nos sistemas de amortização e progressão
das obrigações contratadas, progredindo geometricamente o ônus da parte
potencialmente mais fraca sem que mesma tome ciência do ardil matemático.
Assim, a permanência abusiva de juros constitui medida nefasta, pois
rompe drasticamente o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e obriga
o contratante, em sua maioria consumidores, a pagar mais do que permite os
princípios do Direito, a moral e a lei. Tal ocorrência segue em total confronto
com o fato do contrato nascer de uma ambivalência, de uma correlação
essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade, como diz o
sólido pensamento do jurista Miguel Reale, mentor do novo Código Civil.
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Di-lo:
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O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo
como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a
sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e
onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida. (REALE,
1986, p. 10.)
Pensar em sentido contrário, isto é, de que todas as normas e os princípios
capazes de limitar os juros foram revogados pela Emenda Constitucional nº 40
e pela Súmula 648 do STF, seria conferir às instituições bancárias e financeiras
o salvo conduto para que tenham a prerrogativa desmedida de estipularem
a taxa de juros que melhor lhes convier, aumentando ainda mais os seus já
exorbitantes lucros.
Entendo, dessa forma, que nos contratos celebrados anterior ou
posteriormente à vigência da Emenda Constitucional nº 40/03 é possível
à relativização da intangibilidade das cláusulas contratuais (pacta sunt
servanda), em estreita observância aos ditames da Constituição Federal, do
Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil que, atento às repercussões
sociais dos contratos privados, enseja a firme intervenção estatal a tutelar a
hipossuficiência do consumidor, na dicção dos princípios aqui levantados.
A propósito, é oportuno considerar que a supradita Súmula 648 do
STF, não foi aprovada por 2/3 dos membros daquele Sodalício (art. 103-A,
CF), portanto, não é uma súmula vinculante, e como tal não tem status de
Lei e pode, perfeitamente, ser contrariada, como já ocorre dentro do próprio
Tribunal genitor da mesma.
No mesmo diapasão, malgrado a assertiva de que, por força dos incisos
VIII e IX do artigo 4º da Lei nº 4.595/64, foi conferido ao Conselho Monetário
Nacional (CMN) a competência para “limitar, sempre que necessário, as
taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração
de operações e serviços bancários”, convém ressaltar que limitar não significa
liberar, como vem entendendo as instituições financeiras, pois essa liberdade
não pode resultar em benefício exclusivo das mesmas em detrimento dos
consumidores, porquanto significaria afronta à Lei, tanto do Código Civil
quanto do Código Consumerista.
Realmente o CMN teve suas obrigações e responsabilidades alargadas
após a ementa constitucional nº 40, conforme bem dissertou o ilustre Ministro
EROS GRAU do Excelso Supremo Tribunal Federal, quando Relator do
Acórdão e da ementa da ADI 2591/DF:
4. Ao Conselho Monetário Nacional incumbe a fixação,
desde a perspectiva macroeconômica, da taxa base de juros
praticável no mercado financeiro.
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9. O Conselho Monetário Nacional é titular de capacidade
normativa --- a chamada capacidade normativa de conjuntura
--- no exercício da qual lhe incumbe regular, além da
constituição e fiscalização, o funcionamento das instituições
financeiras, isto é, o desempenho de suas atividades no plano
do sistema financeiro.
Neste desiderato, devem ser analisados os casos concretos, observando
nos contratos se os encargos avençados foram fixados em percentual acima
do permitido pelos princípios do direito e pelos acervos normativo passados
e presentes, devendo constar cristalino que tal pactuação, além de dever ter
sua permissibilidade permitida no cenário jurídico brasileiro, não deve ser por
demais excessiva e onerosa ao consumidor.
Deve-se considerar, de igual modo, que vivemos em uma economia
em que a taxa de inflação anual está, por enquanto, controlada, bem como
ao trabalhador brasileiro é aplicada a correção de seu salário em percentual
anual ínfimo, não restando dúvida de que qualquer índice que corrija a dívida
contratada acima de 12% (doze por cento) ao ano, fica, no mínimo, impagável.
Ainda hoje, e infelizmente por muitas décadas, comprova-se em muito
contratos que sem a devida intervenção e prestação jurisdicional para ajustar
o equilíbrio na relação pactuada, o consumidor/contratante torna-se mais do
que vulnerável no contexto econômico, torna-se desprovido do combustível
do consumo: o dinheiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, Ruy Rosado de. Aspectos do Código de Defesa do Consumidor.
Revista AJURIS . nº 52. s/d..
MANDELBAUM, Renata. Contratos de Adesão e Contratos de Consumo . São
Paulo: Revista dos Tribunais, s/d.
MESCHIATTI, Nogueira, in: PRICE, Richard. Tabela Price - Da Prova
Documental e Precisa Elucidação do seu Anatocismo4ª ed. 1983, p. 228.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos Contratos . 5ª Edição. São Paulo:
Forense. s/d.
REALE, Miguel. O projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986.
A QUESTÃO JURÍDICA DA EUTANÁSIA
COMO CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO
DA CULPABILIDADE
FLAVIO RIBEIRO DA COSTA1
Na atualidade a questão da eutanásia está a suplantar as expectativas em
termos de questionamento1. Todos os segmentos sociais manifestam interesses
ou reprovações pela sua prática. Uns a defendem. Outros a condenam.
De há longos anos a eutanásia vem sendo cogitada, tendo inclusive o
Parlamento Saxônio a repudiado em 1903, na Alemanha.
Em 1906 tomou nova definição nos Estados Unidos, tendo o poder
legislativo do Estado de Ohio aprovado um projeto que dava direito ao
cidadão de pedir a eutanásia a um tribunal.
Em 1912, num congresso, nos Estados Unidos, a matéria sobre a eutanásia
voltou a ser discutida de forma mais abrangente, a ponto de na Alemanha, o
Parlamento Imperial questionar um projeto, no sentido de que todo aquele
que levasse a morte sem dor a uma pessoa e a pedido do enfermo, não seria
castigado pela justiça.
Na Inglaterra, por volta de 1922 foi proposta a criação de uma alçada
medica que tivesse o poder e a autonomia de facilitar a morte aqueles que
sofressem doenças incuráveis, incluindo o câncer entre elas.
O código penal Tchecoslovaco, em 1925 atenuava a pena e dependendo
do caso, absorvia aquele que tirava a vida de uma pessoa impelida por piedade
e com o fito de livrá-la das dores insuportáveis.
Na longa trajetória em busca da legalização da eutanásia, sempre tem
pautado a necessidade de extremos cuidados, pois a vida é a preciosa. A vida,
como um dom divino, é protegida e guarnecida pelo Estado através dos órgãos
competentes.
Para a consecução da eutanásia há de haver a anuência do paciente,
o consentimento do Estado e a existência de um mal incurável, de causa
desconhecida ou, conhecida e de rêmora cura.
BIZZATO, José Ildefonso, assim se expressa:
“Num sistema jurídico em que a lei penal é de ordem publica,
e em que a pena se impõe em nome da sociedade inteira, e,
por conseqüência, do Ministério Publico, seu representante,
não é possível derrotar por convenções particulares as leis de
ordem publica”.
Advogado
1
68
Revista Jurídica FACULDADES COC
Segundo esse entendimento não tem amparo jurídico o consentimento
ou a vontade do paciente. A vida é embasada em principio de ordem publica,
que não podem ser negociados por acentos particulares.
Diz ainda o mesmo autor,
“a vontade privada, inclusive a do ofendido, não pode ter
o valor de apagar a criminalidade do ato, excluindo toda a
pena. O consentimento não legitima o homicídio, e inútil é
invocá-lo no extermínio das vidas atormentadas”.
MENEZES, Evandro Corrêa de diz que,
“é de pouca importância psicológica o consentimento,
podendo duvidar-se da sanidade ou integridade mental do
que pede a morte aguilhoada pela dor, sob o domínio da
angustia e da emoção”.
Juridicamente, na atualidade, a eutanásia é inconcebida e inaceitável pelo
Estado, em vista de não poder admitir-se a impunidade áquele que, mesmo a
pedido, tira a vida de outrem.
O ato de tirar humana é contrario á moral e ás leis, donde não tem valor
o consentimento dado pelo paciente.
No entendimento de PESSINE, Léo,
“quando o individuo renuncia á própria vida, a ela não
renuncia a vontade comum, que defende com as leis a
existência dos indivíduos no interesse publico”.
Nessa linha de pensamento a lei entende ser responsável criminalmente
e ate civilmente, aquele que, mesmo a pedido, elimina outrem, tornando-se
um homicidasuicida.
As indagações acerca da eutanásia se prendem ao fato de saber se a lei
pode criar uma espécie de escusa legal do homicídio?
A resposta é positiva. Cria essa espécie legal de escusa, quando ampara
a legitima defesa, o estado de necessidade ou o homicídio praticado em estrito
cumprimento de dever legal ou no exercício regular de um direito, conforme
preceituar o artigo 23 do Código Penal Brasileiro.
A legislação atual encara a eutanásia e a julga sob o império do artigo
121 parágrafo 1º do Código Penal, quando relaciona os casos de diminuição
de pena. “Se o agente comete o crime impelido por motivos de relevante valor
social ou moral ou sob o domínio de violência emoção...”. A pena é diminuída
de um sexto a um terço.
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Segundo o Código Penal,
“três são as hipóteses de homicídio privilegio: a de o agente
ter cometido o homicídio impelido por motivos de relevante
(importante, considerável, digno de apreço) valor social
(atinente a interesse coletivo); impelido por motivo de
relevante valor moral (relativo a interesse particular) e sob
domínio de violenta emoção”.
Alguns advogam contrario á tese da eutanásia, dizem que a sua pratica
e ou a morte voluntária de um ser humano pode ser assassínio ou liberação
de um sofredor ou aberração política ou ato legitimo de defesa, conforme o
motivo que a determina.
Não tem validade esse argumento, eis que para a legalização da
eutanásia, necessário se faz a presença de pessoa e ate do poder e até do poder
judiciário, para a concessão desse beneficio, não vigiado apenas a alegação de
que, aberrações de que, aberrações políticas pudessem determinar a morte de
alguém.
Juridicamente não deveria haver diferença entre a ação daquele que
se suicida com uma arma ou veneno e a ação daquele que, a pedido, usa a
vontade de outro para a pratica da eutanásia.
NORONHA, Edgar Magalhães, por sua vez, também entende que
“reconhecer o intuito caritativo do matador por um motivo
de plena exculpação importaria, na adoção de um precedente
subversivo em matéria penal”.
Não pode subsistir tal assertiva, eis que o Estado não reconhece a morte
no estado de necessidade e a ampara. Concorda com a morte na legitima
defesa e a assegura.
Pela lei, o ser humano pode tirar a vida de um outro ser humano que
injustamente lhe agredira, mas está proibido de sentir compaixão pelos seus
semelhantes.
A lei torna o coração do homem brutal, pois o impede de chorar, de
sentir piedade e de ajuda alguém partir para o alem, em paz.
Na explicação da eutanásia se deve ter em mente a pessoa do aplicador,
observada a sua conduta social, aptidão legal e idoneidade.
Todos os casos eutanásicos realizados à revelia de um pedido formal e
com parecer do Ministério Publico, deverá ser julgado como homicídio, pelo
juízo singular, depois de devidamente analisada a prova carreada aos autos.
Se, provado, por testemunhas e por outros, e todos meios de provas
admitidos em direito, ser o matador inocente e que fora levado a esse ato por
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sentimentos nobres, devera ser sumariamente absolvido, sem passar pelo
vexame do Tribunal do Júri.
Assim, necessário se faz distinguir a eutanásia medica, da eutanásia
feita por piedade, levada a efeito por particulares, amigos, familiares ou
desinteressados outros.
Não pode ser taxado de criminoso aquele que dentro das normas já
esboçadas neste trabalho, aliviar também é curar.
A vida humana se apresenta em dois estágios. O material (vida terrena)
e o espiritual (vida eterna).
A medicina tem que ser completa, ou seja, cuidar das agruras físicas,
terrenas e preparar o individuo para a eternidade (supressão dos sofrimentos).
O medico não quer a morte do paciente, mas tão-somente sura-lo e ou
aliviar-lhe as dores, não tendo culpa se a cessação do sofrimento causar a
morte.
Coerente com essa linha de entendimento, observar-se que algumas
nações estudaram a eutanásia com mais afinco, enquanto que a legislação
brasileira omitiu-se a este respeito.
Analisando os códigos Filipinos, Manuelinas e Afonsinos, não
encontramos disposições expressas a respeito da eutanásia, nem inclusive o
nosso código Imperial de 1830 fez referencias, salvo em seu artigo 196 que
continha orientações sobre a ajuda ao suicídio: “ajudar alguém a suicidar-se
ou fornecer-lhe meios para esse fim com conhecimento de causa” pena: prisão
de 2 a 6 anos.
Não pode prosperar a comparação da eutanásia com o direito de matar,
cuja ocorrência vem regulado artigo 23 do Código Penal Brasileiro e pela carta
magna quando instituiu a defesa da pátria e a defesa contra a guerra.
No atual Código Penal, a eutanásia esta encoberta pelo homicídio
privilegiado, ou seja, o cometido por motivos de relevante valor social ou
moral. Não basta diminuir a pena na forma do artigo 121 parágrafo 1º do
Código Penal.
Por este dispositivo legal a pena e diminuída de um sexto a um terço,
se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção.
Mas, na eutanásia, não basta diminuir a pena, urge não apesar o
eutanatista, eis que seu ato é movido por sentimento nobre e não pode culpa,
ou outra modalidade de diminuição que careça de diminuição de pena.
Necessário se faz isentar totalmente de pena àquele que levado por um
sentimento altruísta, piedoso, tira a vida de outrem. O homicídio piedoso
dever ser transformado em ações piedosas e não em homicídio.
O termo homicídio da idéia de culpa, de ilícito, de crime, de ação assassina,
de mal, de algo contrario á moral e aos princípios sociais. O eutanatista não
Revista Jurídica FACULDADES COC
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pode ser chamado de criminoso e nem de longe comparado com ele.
Ora, se matar é um crime, não há porque tornar a ação criminosa
abrandaste.
Não existe crime mais forte ou menos forte. Tudo é crime. A lei, perdida
no tempo e no espaço ousou inventar determinadas minorantes, que não tiram
o cunho e a essência infração.
Na eutanásia não deve existir minorantes, pois que o ato praticado não
se reveste de ação perversa, nem ilícita e como tal não existe crime.
Na atualidade, encontrar um conceito unânime de eutanásia é tarefa não
muito fácil, já que os diversos autores a definem levando em consideração
suas concepções religiosas, morais éticas e jurídicas. Podemos dizer que é a
privação da vida de uma pessoa, tida como paciente terminal, a requerimento
da própria, ao desejar pôr fim aos seus sofrimentos e dores.
De acordo com o finalismo - teoria normativa pura da culpabilidade, não
há culpabilidade todas as vezes que, tendo em vistas as circunstancias do caso
concreto, não se possa exigir do sujeito uma conduta diversa daquelas por
ele cometida. Assim, a exigibilidade de conduta diversa constitui elemento
da culpabilidade, enquanto a não exigibilidade constitui a razão de algumas
causas de exclusão da culpabilidade.
A exigibilidade parte do principio que só pode ser punidas as condutas
que podem ser evitadas.
Para os finalistas a culpabilidade é compreendida como um puro juízo
de valor, de reprovação sobre o autor, por não haver este se omitido da ação
antijurídica, ainda quanto podia fazê-lo.
Uma das mais importantes contribuições do finalismo foi à extração de
todos os elementos subjetivos da culpabilidade, dando origem, dessa forma, a
concepção normativa pura da culpabilidade.
Dolo e culpa é deslocada para o tipo, com o que a finalidade é levada
ao centro do injusto. Em conseqüência, na culpabilidade somente subsiste
circunstancias que condiciona a reprovabilidade da conduta contrairia a
ordem jurídica.
Quanto à previsibilidade do legislador embora este se esforce, não pode
prever todos os casos em que a inexigibilidade de outra conduta deve excluir
a culpabilidade. Assim, é possível a existência de um fato, não previsto pelo
legislador como causa de exclusão da culpabilidade, que apresente todos os
requisitos. Portanto, em face de um caso concreto, seria condenar-se o sujeito
unicamente porque o fato não foi previsto pelo legislador? Se a conduta não
é culpável, por ser exigível outra, a punição seria injusta, pois não a pena sem
culpa.
A aplicação da teoria encontra apoio na integração da lei penal. Vimos
que o direito penal tem lacunas, desta feita, não havendo norma descritiva de
72
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fato semelhante, o juiz pode absolver o sujeito com base nos costumes e nos
princípios gerais do direito em que se fundamenta a exigibilidade. Então, o
juiz não estaria aplicando uma norma contida na legislação penal, mas sim
uma causa supralegal de exclusão de culpabilidade. Tratase de um critério a ser
adotado pelo juiz com ponderação, atendendo a situações excepcionalissíma,
como no caso da eutanásia, não prevista pelo legislador.
Nelson Hungria lembra que os preceitos sobre causas descriminantes,
excludentes ou atenuantes de culpabilidade ou de pena, ou extintivas da
punibilidade, constituem jus singular em relação aos preceitos incriminadores
ou sancionadores e, assim, não admitem extensão alem dos casos taxativos
enumerados.
Entendemos que a eutanásia até poderia ser tipificada, desde que
houvesse discussões profundas para evitar, ou, ao menos, minimizar os
questionamentos futuros, já que a morte sempre foi, e será, grande imprecisão
para o ser humano. No caso de tipificação da eutanásia, dever-se-ia apresentar
requisitos objetivos e procedimentos para que assim, em cada caso, fosse
possível decidir ou não pela sua aplicação.
Porém, dependendo do caso, havendo a ausência de exigibilidade de
conduta diversa, verdadeiro principio geral da culpabilidade, contrariando
frontalmente o pensamento finalista, se torna incongruente punir o inevitável.
Pelos motivos apontados, outra conduta não se pode exigir do medico,
que não a interrupção do desnecessário e desumano sofrimento que chegaria
que já se sabe resultará na morte. Destarte, não pode e não deve o paciente
ser obrigado a suportar o prosseguimento sofrimento, além do pior, que
será presenciar a morte que já antecipadamente sabe que virá a ocorrer. O
sofrimento, portanto, seria desumano e inexigível, e o prolongamento desse
quadro não traria ao paciente nenhum benefício, mas ao contrário, prejuízo
maior do que ela já vem sofrendo e certamente sofrerá.
Por estas razões, de ordem doutrinária e jurisprudencial,
independentemente de posições em contrário, inclusive de fundo religioso,
ousei divergir da maioria, pois só é culpável o agente que se comportar
ilicitamente, podendo orientar-se de modo diverso; o pressuposto basco do
principio da não-exigibilidade, e a motivação normal. O que se quer dizer com
isso é que se a culpabilidade, para configurar-se, exige uma verta normalidade
de circunstancias. À medida que as circunstancias apresentam-se significam
ente anormais, deve-se suspeitar da presença da anormalidade também no ato
volitivo.
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73
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após tecer as considerações acerca do instituto da eutanásia, apontando
situações a partir de diversos aspectos da consciência e inconsciência do
paciente e por a eutanásia, não está ligada só a morte, mas também à vida e à
dignidade humana, Parece lícito afirmar que a única razão para não se entender
possível a adoção da inexigibilidade de conduta diversa na eutanásia como
causa supralegal de exclusão da culpabilidade, para alguns doutrinadores,
é julgar exauridas no Código Penal todas as possibilidades de ausência de
reprovação. Porem, tal entendimento torna-se mutável à medida em que forem
sendo demonstradas possibilidades outras de conduta incensurável por não
se poder reclamar diferente ação ou omissão do sujeito. E é justamente em
razão de essas hipóteses se fazerem presentes no mundo dos fatos que se vem
sustentando a possibilidade de exclusão da culpabilidade. Assim, considerando
a faculdade de uso da analogia para normas penais justificantes; considerando
a exigibilidade de conduta diferente como elemento (ou pressuposto) da
culpabilidade e considerando que o legislador jamais será onisciente a ponto
de prever todos os acontecimentos do mundo dos fatos, não será defesa a
absolvição do agente, com base no artigo 386, inciso V, do Código de Processo
Penal, se não podia o ordenamento jurídico-criminal, no caso da eutanásia,
a ele impor outro comportamento, mesmo que esse ordenamento não tenha
antevisto a faculdade. Então, o que se pode afirmar é que o legislador, sabendo
da impossibilidade de previsão de todas as hipóteses de inexigibilidade de
outra conduta, preferiu elencar as causas de exclusão da culpabilidade nela
baseadas através de fórmula meramente exemplificativa, o que possibilita a
interpretação analógica da eutanásia.
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2004.
ACESSO À JUSTIÇA, EXCLUSÃO SOCIAL E
AUXÍLIO-RECLUSÃO: CONSTATAÇÕES DE
UMA PESQUISA EMPÍRICA
ELIZABETE DAVID NOVAES1
MARESSA MELLO DE PAULA2
Sumário
1. Apresentação; 2. Discussão teórica acerca da problemática; 3. Constatações
decorrentes da Pesquisa de Campo: A) Aspectos Gerais das entrevistadas;
B) Observações Relevantes: B.1. Acerca do Histórico do Presidiário; B.2.
Acerca da Culpabilidade do Presidiário; B.3. Acerca de como foram obtidas
Informações sobre o Auxílio-Reclusão; B.4. Acerca da efetiva ajuda do
Benefício; B.5. Acerca da possibilidade de cessão do Auxílio-Reclusão; 4.
Aspectos Conclusivos.
1. APRESENTAÇÃO
Não há dúvidas de que a temática da exclusão social pode ser estudada
sob diversas óticas. A Ciência Política, por exemplo, pode estudar a questão
a sob o ponto de vista dos Tribunais serem centros de decisões políticas; a
Economia pode debruçarse a compreender a questão das custas para se ter
acesso a justiça; enquanto a Sociologia pode voltar-se para a problemática da
administração da justiça.
Neste trabalho, o que buscamos fazer é uma análise do acesso a justiça
a partir de um viés sócio-jurídico, considerando tal acesso um direito
fundamental do cidadão, elencado no artigo 50, inciso XXV da Constituição
Federal em vigência, segundo o qual: “A lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Neste dispositivo está assegurado
o direito de ação, ou seja, o acesso a justiça, sendo reforçado neste referido
artigo que a lei não pode excluí-lo.
Para tanto, visamos compreender a problemática do acesso à justiça a
partir de um recorte temático, qual seja, o benefício do auxílio-reclusão. Com
tal propósito, realizamos uma pesquisa empírica, por meio da qual foram
entrevistados alguns familiares de presidiários, selecionados por meio de uma
rede de contatos pessoais, que se dispuseram a conceder informações acerca
de suas experiências com relação ao auxílio-reclusão. Por uma facilidade
Profa. Dra. Em Sociologia pela Unesp de Araraquara. Docente das Faculdades COC de
Ribeirão Preto. [email protected]. br
2
Bacharel em Direito pelas Faculdades COC de Ribeirão Preto, Turma de 2008. maressamelo@
hotmail.com
1
76
Revista Jurídica FACULDADES COC
pessoal da pesquisadora, os contatos foram feitos preferencialmente na cidade
de Bebedouro, onde foi possível conversar com familiares - exclusivamente
mulheres, dentre elas quatro esposas e um mãe de presidiários, que nos
contaram suas experiências e percepções acerca do benefício em questão.
As entrevistas foram feitas de maneira não dirigida, por meio de
uma conversa na qual as entrevistadas se sentissem confortáveis para se
expressarem acerca dessa experiência em suas vidas, verbalizando se e como
esse benefício teria sido importante para a manutenção familiar, e se lhes faria
falta sua cessão depois que a pessoa que dá causa a esse benefício vier a ser
colocada em liberdade.
Consideramos que o acesso a justiça está elencado como direito social de
segunda geração, devendo obrigatoriamente ter uma prestação material por
parte do Estado para a sua concretização. É preciso, sem dúvida, que tenhamos
certa cautela em fazê-lo, visto que a realidade da justiça no Brasil tem as suas
especificidades, reflexão que desenvolvemos a seguir.
2. DISCUSSÃO TEÓRICA ACERCA DA PROBLEMÁTICA
Nos países desenvolvidos a questão da acessibilidade está intimamente
relacionada com a possibilidade de os Tribunais reconhecerem novos direitos,
tais como os das mulheres, dos estrangeiros, dentre outros. Desse modo,
nos países desenvolvidos, à justiça torna-se um problema que envolve a
possibilidade de exercer a cidadania em face dos novos direitos (BARBIERI,
2007).
No Brasil, por outro lado, o problema concernente a acessibilidade
à justiça não é esse, mas sim o de que o nosso país está cercado de miséria
e pobreza, e a exclusão social presenciada aqui não é das minorias, como
podemos observar nos países desenvolvidos, mas sim, a exclusão social das
maiorias.
A questão da exclusão dos mais pobres não é de hoje que vem sendo
tratada, muito menos que vem ocorrendo. Trata-se de uma temática antiga
que surge em razão das mudanças ocorridas na história.
Há séculos atrás, quando ainda se verificava o sistema de feudos, as
pessoas que ali trabalhavam o faziam para obter comida, para ter uma casa e
proteção, e as pessoas estavam adaptadas a esse sistema (HUBERMAN, 1987).
Ocorre que com o surgimento das cidades, a expectativa da oportunidade
de ter uma vida melhor fora do campo, acaba por atrair muitas pessoas que
antes viviam sob o sistema do feudalismo, e elas se vêem obrigadas a encarar
a realidade do capitalismo. Entretanto, como nos mostra a história, essa
transição não foi pacífica e indolor para as pessoas que sofreram com a saída
do campo rumo ao desconhecido das novas cidades:
Revista Jurídica FACULDADES COC
77
...o processo de desenvolvimento capitalista ocorre
geralmente de um modo um tanto anárquico e irracional, e o
deslocamento dos futuros operários do campo para as cidades
não é nem automático nem indolor, provocando fenômenos
de inserção de alguns dos novos que chegam no interior dos
mercados chamado “ilícito”..., e igualmente de rejeição e de
hostilidade da parte dos estratos sociais, também operários,
precedentes. (DI GIORGI, 2006, p. 23)
Com essa profunda mudança, os camponeses que não se adaptaram ao
novo sistema a eles imposto acabaram por vivenciar muitos conflitos, tendo
como uma solução para eles a de serem recolhidos ao cárcere de maneira
indefinida, para “pagar pelo mal que eles fizerem a sociedade” (GIORGI, 2006)
Nesse período, o cárcere ainda não apresentava um caráter de
ressocialização do preso, mas sim uma maneira de simplesmente tirá-lo do
convívio da sociedade. Ocorre, contudo, que depois de certo tempo:
...o cárcere será visto como um resíduo arcaico da passado e
serão previstas novas “alternativas” punitivas, “correcionais”
e “reeducativas”; ao mesmo tempo, em algum canto do
mundo, as primeiras patrulhas em busca de um “canalha”
estarão começando a apressar-se, num incansável movimento,
em direção aos confins do contrato social/império. (GIORGI,
2006, p.24)
Mas o que podemos perceber é que esse paradigma da pobreza ainda
se faz presente até hoje em nossa sociedade, e para melhor compreendermos
essa afirmação passaremos a analisar dois textos, escritos em épocas diversas,
mas que demonstram a mesma filosofia, a de desprezo por tamanha pobreza
que, de modo desabusado, ousa se tornar evidente, deixando contaminado o
ambiente metropolitano. (GIORGI, 2006)
Como mostra o citado autor, o que ocorre com o passar do tempo é que
na Europa do século XVII e XVIII “as estratégias do poder mudam lentamente,
passando de uma função negativa de destruição e eliminação física do desvio,
a uma função positiva de recuperação” (DI GIORGI, 2006, p.26), e é com
essa mudança que surge a fase do encarceramento. Ao invés de destruir os
corpos das pessoas marginalizadas, estas passam a ser encerradas, em locais
específicos, como uma forma de punição ao corpo com o intuito de que na
sua produtividade na prisão, se evidencie o poder econômico concernente ao
capitalismo.
Isto porque, depois do surgimento do capitalismo, os presos começam
a ser encarados como uma força de trabalho, não podendo se dar ao luxo de
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morrer ou de simplesmente nada produzir.
Surge aí a questão da “biopolítica” (GIORGI, 2006, p.27), inaugurando
um modelo de controle social disciplinar, que visava dar contornos à fase
de expansão industrial. E a partir da primeira metade do século XX essa
“articulação entre a disciplina dos corpos e governo das populações se
completará, materializando-se no regime econômico da fábrica”.
A pena nos mostra duas funções primordiais, a primeira é a de prevenção,
sendo o seu objetivo imediato o de dissuadir os criminosos em potencial de
violarem as leis, tentando fazer com que as camadas potencialmente criminosas
prefiram, por uma consideração racional, não cometer as ações proibidas, para
não serem vítimas da punição; a segunda é que essas penas variam de acordo
com a história guardando relação com o universo da economia. (RUSCHE,
1976 apud GIORGI, 2006)
Assim colocado todo esse histórico, voltemos para a realidade que
é instalada em nosso país como meio de defender os interesses dos menos
favorecidos em relação aos seus interesses perante a justiça.
No art. 5 da nossa Carta Magna está elencado como um direito
fundamental a prestação de assistência jurídica às pessoas
necessitados, como podemos notar:
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e
gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
A partir de 1988, com o surgimento da atual Constituição Federal, surge
o órgão denominado de Defensoria Pública, sendo ele regulamentado no art.
134 da referida Constituição:
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica
e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do
art. 5º, LXXIV.
A Defensoria é responsável por prestar um serviço gratuito àquelas
pessoas que não possuem condições financeiras de arcar com um advogado
particular e com as custas que um processo judicial demandam.
Esse órgão é oficial, estatal e obrigatório, contando com profissionais
qualificados para possibilitar o acesso a Justiça, sendo esses profissionais
denominados de defensores públicos, sendo tais profissionais advogados,
concursados e pagos pelo Estado para prestarem esse tipo de assistência à
população.
Entretanto, esse órgão é considerado novo, pois ele teve a sua previsão
Revista Jurídica FACULDADES COC
79
em 1988, mas não foi de imediato implantado. Agora, implantando em
vários estados da Federação, o que ainda ocorre é que ainda existem poucos
profissionais para tanta demanda, existindo a Defensoria Estadual e a da
União.
No Estado de São Paulo, somente em 2005 a Defensoria Pública foi
implantada, sendo somente depois de dezessete anos de espera que se chegou
tal órgão a São Paulo, e não sem forte apelo popular para que isso ocorresse.
Segundo um levantamento feito pela Associação Nacional dos Defensores
Públicos (Andp) chegou-se a conclusão de que para cada 100 mil pessoas há
apenas 1,8 defensores públicos no país, em contrapartida a proporção de juízes
para uma população de 100 mil pessoas é de 7,7.
Dessa maneira, o que podemos notar é uma total desproporção entre
os investimentos realizados em relação aos diferentes âmbitos de atuação
de Estado, pois o que ocorreu foi uma grande preocupação do Estado com a
organização do Estado julgador (Poder Judiciário e Magistratura) e do Estado
acusador (Ministério Público), já com o Estado defensor, que é a Defensoria
Pública podemos perceber um grande desinteresse, pois o que temos condições
de notar foi um descaso em relação a proporcionar às pessoas mais carentes
um meio satisfatório de acesso a justiça.
Ainda mais na realidade brasileira, em que 90 milhões de pessoas vivem
na pobreza; em não existindo um órgão com uma boa estrutura essas pessoas
se encontram completamente abandonadas e desamparadas pelo Estado.
E é assim que podemos perceber a situação da Defensoria Pública no
Brasil, fortemente desamparada pela União, segundo dados do presidente
da Associação Nacional dos Defensores Públicos, Leopoldo Portela Júnior.
(BARBIERI, 2007)
Ocorre que a instituição defensoria foi uma ótima idéia criada e de certa
maneira, fomentada pelo Estado, só que ainda engatinha com relação a uma
prestação jurisdicional efetiva perante as pessoas que dela necessitam.
Como podemos perceber, de acordo com as explanações feitas acima,
não há como garantir uma acessibilidade efetiva a justiça para os necessitados,
pois os meios que deveriam garantir o seu acesso não possuem investimentos
necessários para que isso possa ser proporcionado.
Como exigir que um defensor público cuide de milhares de processos
com olhos atentos? O que deveria existir é uma preocupação maior de Estado
com relação às políticas que proporcionasses melhor atendimento e um quadro
de funcionários maior do que é existente hoje.
Trazendo a temática para o benefício do auxílio-reclusão, o que podemos
perceber é que as pessoas que percebem tal benefício são consideradas de
baixa renda mediante uma estipulação constitucional. Dessa maneira, em sua
maioria, tais pessoas se encontram assessoradas juridicamente por defensores
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públicos, ou os que fazem suas vezes. Assim, uma constatação interessante
que se pode obter a partir disso, é a de que quem deveria fornecer à família
do preso a informação da existência do benefício do auxílio-reclusão, seria o
seu defensor, e justamente não é isso o que ocorre na prática, como pôde ser
observado nas entrevistas realizadas com as famílias dos encarcerados.
3. CONSTATAÇÕES DECORRENTES DA PESQUISA DE CAMPO
A metodologia da pesquisa realizada possui enfoque essencialmente
qualitativo, voltada para levantamento, análise e compreensão das
representações que os entrevistados fazem acerca do auxílio-reclusão. Para
tanto, foram aplicadas entrevistas não-diretivas e semi-diretivas com 5
mulheres que recebem o benefício do auxílioreclusão. Estas entrevistas foram
gravadas e transcritas, permitindo análise do conteúdo e captação dos aspectos
mais subjetivos dos entrevistados.
Vale salientar, acerca da metodologia de pesquisa, que os estudos de
representações sociais voltam-se para a captação e compreensão dos valores e
percepções de determinada categoria social acerca do fenômeno investigado
(MINAYO, 2000). No caso em estudo, o objetivo de investigaçao é o Auxílio Reclusão, cabendo à pesquisa investigar a sua legitimidade a partir de sujeitos
empíricos - familiares beneficiados e agentes jurídicos que tratam da temática
como especialistas ou estudiosos da questão.
Inicialmente, para a realização das entrevistas, foram feitas as
apresentações iniciais da entrevistadora à entrevistada, buscando esclarecer o
motivo da entrevista, definindo se a entrevistada concordava em conceder a
entrevista. Algumas solicitaram que a entrevista não fosse gravada, outras não
se opuseram a gravação, desde que seu nome não fosse citado. Vale ressaltar,
portanto, que os entrevistados não foram identificados no decorrer do trabalho,
tanto por uma postura ética quanto pela absoluta falta de necessidade de
qualquer tipo de identificação.
Posteriormente, seguimos um roteiro semi-diretivo que serviu como
ponto de referência para o contato com os familiares tidos como beneficiários
do auxílio -reclusão. Este instrumento pôde fornecer um quadro geral e inicial
das mulheres investigadas em nossa pesquisa e a visualização desses dados
segue na grade de categorias a seguir apresentada:
A) Aspectos Gerais das entrevistadas
Das 5 mulheres entrevistadas, 4 são companheiras ou esposas do preso
em questão, e uma delas é a mãe do presidiário. Dessa maneira podemos
perceber que a ligação afetiva e familiar é bem grande na vida dessas pessoas.
Revista Jurídica FACULDADES COC
81
Em todas elas percebemos que o valor do benefício do auxílio-reclusão
faz muita diferença na vida delas, visto que todas são pobres e algumas só
tem essa renda do benefício como sustento da família, e até mesmo com uma
maneira de ir ao encontro de seu familiar preso na cadeia.
Todas elas demonstram que esse benefício é bastante válido para sua
vida e da família por esse benefício auxiliada, mas ficam em dúvida sobre
como seu familiar irá ajudar no sustento da família quando não estiver mais
no cárcere e o benefício for cessado. Uma das entrevistadas entende que o
benefício não deveria cessar quando a pessoa fosse colocada em liberdade,
visto que ela entende que ao sair da prisão, a pessoa que ali esteve terá muita
dificuldade para encontrar um novo serviço para auxiliar ou até mesmo
sustentar a família que dela depende.
B) Observações Relevantes:
B.1. Acerca do Histórico do Presidiário
As mulheres entrevistadas foram, no decorrer das entrevistas, relatando
um breve histórico dos maridos e filho que se encontram detidos, no sentido
de evidenciar o que estavam fazendo antes de cometerem o crime que os levou
à prisão.
“Meu marido trabalhava para uma construtora aqui da cidade,
só que ele viajava muito a serviço, nem sempre ele estava aqui,
e trabalhava com ele o meu irmão e o meu cunhado também.
Enquanto eles estavam fazendo um serviço em uma cidade,
eles ficaram bêbados em um bar e entraram em uma briga, e
no final das contas acabou morrendo duas pessoas por causa
deles. O que meu marido fala é que meu irmão se engraçou
por uma mulher casada, e essa briga foi com o marido dela”.
(Entrevistada 01)
“...a polícia pegou ele com drogas dentro do carro, e achou que
ele era traficante. Ele tinha acabado de arrumar um serviço
quando isso aconteceu, ele estava tomando jeito, porque eu
tava grávida, e a gente tinha que mudar de vida.
Ele ajudava a carregar e descarregar mercadoria de caminhão
no supermercado. Fazia uns 5 meses já, ele já tinha até virado
efetivo com carteira e tudo.” (Entrevistada 02)
“Ah... ele (o filho) se envolveu com uns amigos mal elementos,
isso foi depois que ele começou a trabalhar, acho que para ele
trabalhar não fez bem, porque depois disso ele chegava muito
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Revista Jurídica FACULDADES COC
tarde em casa sabe filha, e foi ficando difícil. Ele apareceu com
uma moto nova aqui em casa, mas logo ela sumiu, e foi assim
que ele começou no crime, né?!... Era.. ele tava roubando sim,
mas você sabe como é pobre né, já foi esbanjando e logo foi
pego pela polícia.
Antes disso ele era um menino calmo, nunca tinha se metido
em confusão, ele me ajudava em casa sabe, eu faço crochê
para vender, tapete, bico de toalha essas coisas, e ele me
ajudava em casa mesmo com isso. E depois que ele começou a
trabalhar ele mudou muito... Nossa filha, demais, ele chegava
tarde direto, foi mal criado comigo, não me ajudava mais em
nada nos serviços de casa.
Ele foi trabalhar num posto de gasolina aqui no bairro.
Quando ele arrumou o serviço eu achei que era bom né...ele
tinha carteira de trabalho assinada, ganhava cesta básica todo
mês, só que ele tinha um coleguinha lá do posto que fazia
essas coisas e precisava de alguém pra ajudar ele, e o meu
menino entrou nessa.” (Entrevistada 03)
É interessante observar nos depoimentos acima um misto de lamento e
conformismo, pois elas demonstram que a situação em que viviam não era fácil.
Afirmam que todos eles eram pessoas que estavam trabalhando “direitinho” e
entraram em algum tipo de confusão.
Como podemos observar no caso da entrevistada 1, o marido dela
trabalhava, e se empenhava em seu trabalho, como podemos sentir durante
a entrevista ele era um bom marido e bom pai, só que durante uma briga ele
acabou cometendo um crime que o retirou na convivência familiar.
A entrevistada 2 demonstra em suas palavras que o seu marido era
sim uma pessoa que vivia do crime, mas que em razão da sua gravidez, eles
chegaram a um entendimento que deveriam mudar de vida, visto que se não
estivesse trabalhando, ele não teria carteira assinada e em razão disso não faria
jus ao benefício, demonstrando uma lucidez em relação ao auxílio-reclusão.
Já no caso da entrevistada 3 que a relação é entre mãe e filho, ela mostra
claramente que não sabe, ainda hoje, se foi melhor mesmo ele ter arrumado um
serviço fora de casa, já que, segundo suas palavras “foi isso que o modificou,
pois antes era um menino prestativo e que a respeitava, e depois do trabalho
fora de casa ele acabou mudando e entrando para o mundo da marginalidade”.
B.2. Acerca da Culpabilidade do Presidiário
Nos depoimentos colhidos, observamos uma tentativa de defesa do
ato cometido, pois de acordo com três entrevistadas que falaram acerca da
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culpabilidade do familiar preso, houve legítima defesa, ou uma incriminação
por parte de um terceiro que seria o real culpado. Em relação ao filho preso, a
mãe afirma enfática que a culpa foi do pai dele, que não lhe dava mais dinheiro.
“Ele fala que foi legítima defesa, que os caras já foram
atacando...mas ele sempre foi esquentadinho sabe, paviu
curto, ele brigou com os caras, mas acho que foi exagero o
tempo que ele vai passar na cadeia por isso, ele sempre foi
trabalhador.” (Entrevistada 01)
“Só que foi culpa do pai dele isso, porque antes o pai ajudava
com dinheiro né, mas ele parou e eu não tava mais agüentando
com as contas e as crianças, e como ele era o mais velho, ele
que foi trabalhar fora né.” (Entrevistada 03)
“Ele foi preso porque o nosso vizinho escondeu as coisas que
ele roubou no nosso quintal, e quando a polícia chegou não
quis nem saber de quem era, já foram prendendo ele, ele é
inocente disso tudo.”
B.3. Acerca de como foram obtidas Informações sobre o AuxílioReclusão
Perguntadas sobre como ficaram sabendo do benefício do auxílioreclusão, as entrevistadas apresentaram as seguintes respostas:
“É que aqui no meu bairro tem mais gente que está na cadeia,
e as vizinhas me falaram que se ele tivesse carteira de trabalho
que eu receberia dinheiro enquanto ele estava preso. ... Eu fui
na justiça de graça, eu ganhei um advogado do governo para
fa zer esse pedido para mim. .” (Entrevistada 01)
“Os colegas lá da cadeia que falaram para ele, e eu fui atrás
disso né, não dava pra ficar sem dinheiro nenhum.
Não, a minha vizinha já tinha ido na faculdade para conseguir
advogado de graça, e eu fui também.” (Entrevistada 02)
“A minha comadre que me contou, ela recebia do marido que
estava preso, aí eu fui lá na sua faculdade para que pedissem
o dinheiro para mim. (Entrevistada 03)
“Eu pedi sim (o auxílio-reclusão). Eu não trabalho né, ia ser
difícil eu me sustentar depois que ele foi preso. (...) Aqui no
bairro todo mundo sabe desse benefício, né, tem bastante
gente que já foi presa por aqui.” (Entrevistada 04)
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B.4. Acerca da efetiva ajuda do Benefício
É notório o fato de que o benefício do auxílio-reclusão exerce extrema
importância na vida dessas famílias, uma vez que se trata de pessoas com baixa
renda, destituídas muitas vezes de emprego, com vários filhos e dificuldades
materiais cotidianamente enfrentadas. Até mesmo o fato de deslocar-se para
a visita ao marido no presídio (que por vezes fica numa localidade distante)
acaba mostrando-se um gasto excessivo, como se observa no depoimento da
entrevistada 01.
“A única coisa é que eu gasto um tantão indo visitar ele na
cadeia. Quando teve a rebelião na cadeia que ele estava que
era aqui perto, ele foi transferido para longe. Eu gasto mais
dinheiro para visitar ele. E agora eu recebo o dinheiro, que
antes ele não me dava nada.” (Entrevistada 01)
A entrevistada 02 aponta os gastos que tem com seus outros filhos,
bendizendo o benefício que recebe em razão da detenção de um de seus filhos,
que antes lhe ajudava economicamente.
“Ele (o filho) ajudava sim, isso eu não posso reclamar não
filha, mas o menino mudou dum tanto que não dava mais,
ele estava rebelde sabe, muito diferente, e logo foi preso. (...)
Acho muito bom essa ajuda do governo, faz muita diferença
esse dinheiro né, filha, eu tenho mais 4 filhos pra sustentar,
e sem esse dinheiro eu não sei o que eu iria ter que fazer.”
(Entrevistada 03)
Por outro lado, há também aquela situação em que a esposa percebe-se
verdadeiramente beneficiada com o auxílio, uma vez que quando o marido
estava em liberdade não podia contar com seu dinheiro, e hoje tem uma
garantia de recebimento do benefício que é gasto com ela mesma, como se
percebe no depoimento da entrevistada 04.
“Eu acho é bom, agora eu não tenho que dividir né. Gasto
mais comigo esse dinheiro. Visito ele toda semana, mas a
cadeia é aqui perto.” (Entrevistada 04)
Uma das entrevistadas causa estranheza quando afirma que, embora
necessite de auxílio material, pois não se encontra em condições econômicas
favoráveis, não recebe o auxílio reclusão por proibição do próprio marido.
Revista Jurídica FACULDADES COC
85
“Eu não recebo esse auxílio-reclusão... Ele não deixou, disso
que era como confessar, assumir que ele é culpado, e ele não
me deixou pedir. (Mas você não precisa de autorização dele
para isso...) Mas ele vai brigar comigo se eu pedir. Não sei se
ele ta certo... mas ia ajudar com as crianças esse dinheiro. Não
é que eu ache que ele seja culpado, eu tenho certeza que não
foi ele mesmo, mas se eu poderia pedir, acho que seria bom.
Por enquanto eu to dando conta. Mas eu sei que pra eu
continuar com ele eu não posso pedir, ele nunca vai me
perdoar.” (Entrevistada 05)
Vale salientar que a entrevistada 05 demonstrou muita resistência em
conceder a entrevista, que foi bastante curta e contida. Talvez aqui possamos
perceber uma relação de poder masculino bastante forte, exercida pelo marido
sobre a esposa, uma vez que esta, mesmo tendo a necessidade do dinheiro
para os cuidados dos filhos, recusa a possibilidade de valer-se do benefício
por proibição do marido.
B.5. Acerca da possibilidade de cessão do Auxílio-Reclusão
“Não sei se era melhor quando ele estava trabalhando...
Agora com ele lá na cadeia eu sei que ele não vai aprontar.
Mas as crianças sentem muita falta dele. Ele era um bom pai.
Não sei ainda como vai ser, quando ele sair... mas vai ser
difícil ele ganhar a mesma coisa que eu estou recebendo, vai
ser mais difícil ele achar emprego. Quem emprega gente que
saiu da cadeia?” (Entrevistada 01)
“Tá sim né, esse dinheiro ajuda. Não ia ter como eu criar a
minha filha sem esse dinheiro, ia fazer muita falta se não
tivesse, porque antes ele trabalhava. É... (pausa), quando
ele sair vai ser mais difícil, porque ele não vai conseguir
trabalho, e não sei como vamos fazer depois...bem que podia
continuar depois, e ainda mais porque ele nunca gostou de
trabalhar.”(Entrevistada 02)
“É filha, vai sim, vai fazer falta esse dinheiro, ainda mais
porque ele não vai arrumar emprego quando ele sair, e o meu
medo e ele sair, não trabalhar e me dar trabalho. A vida ta
mais tranqüila assim.“ (Entrevistada 03)
“Quando ele sair da cadeia o benefício acaba? Acaba sim.
Já acostumei a gastar esse dinheiro sem pedir nada pra ele.
86
Revista Jurídica FACULDADES COC
Eu prefiro desse jeito, eu sou livre, ganho o salário dele,
e sei que ele não está aprontando... lá preso, não tem jeito,
né?!.”(Entrevistada 04)
O que nos foi permitido apreender com as palavras proferidas pelas
pessoas que são beneficiadas com o benefício do auxílio-reclusão é que elas
ainda não sabem como será o futuro quando seus familiares não estiverem
mais no cárcere, demonstram um certo conformismo e em alguns casos até
gratidão com o fato da pessoa que gera o benefício permanecer na prisão.
Não há dúvidas de que há uma grande dificuldade do ex-presidiário
encontrar um emprego quando sair do cárcere, e as entrevistadas demonstram
essa grande preocupação, de que quando colocada em liberdade a pessoa
não encontre mais um emprego. Alguns não pelo motivo de não terem essa
disposição, mas sim por falta de oportunidade concedida por um provável
empregador a um ex-presidiário.
Existe ainda outra preocupação que é notória nas palavras das
entrevistadas de que enquanto seus maridos ou filho encontram-se no cárcere,
elas tem a consciência de que não têm como cometer outro delito, e até mesmo
o fato de estarem atrás das grades as deixam mais tranqüilas, demonstrando
que há até mesmo um sentimento de que a permanência de seu ente na prisão
geraria um certo “conforto” para elas.
4. ASPECTOS CONCLUSIVOS
O que vemos com o benefício do auxílio-reclusão, é que a seguridade
social adotou critérios objetivos para que a família pudesse pleiteá-lo, e não
critérios subjetivos como, por exemplo, se a família tinha ou não conhecimentos
sobre a intenção do segurado em praticar o ato ilícito que o levou ao cárcere.
Outra constatação importante a ser feita é que o benefício não tem
natureza indenizatória, mas sim uma natureza alimentar, pois nos deixa
claro a intenção do legislador em proteger a família do preso que não tem
condições de subsistência enquanto o provedor do lar se encontra no cárcere
e impossibilitado de exercer algum tipo de serviço, de atividade remunerada,
para colaborar com o sustento de sua família.
Podemos perceber que a questão da constitucionalidade ou não da
Emenda Constitucional 20/98 é muito polêmica, pois com o seu surgimento
foi evidenciada a questão do requisito da baixa renda como sendo necessário
para a concessão do benefício em estudo.
Essa problemática, em nosso entendimento, deve ser vista com olhos
criteriosos, e sem dúvida alguma, o princípio da solidariedade pode ser
percebido como um pilar para a concessão de tal benefício, pois sem ele, não
seria justificado o seu pagamento, e não haveria razão para o Estado preocupar-
Revista Jurídica FACULDADES COC
87
se com a família de uma pessoa que cometeu um crime, e que se encontra no
cárcere.
Outro ponto importante é a questão da personalidade da pena, sendo
este um direito previsto no art. 5 da Constituição Federal. Por tal princípio,
entendemos que não há como punir a família do presidiário em razão de
seu delito. Isto significa que quem deu causa a concessão do benefício foi o
delituoso, mas quem irá usufruir de tal benefício é sua família e não ele.
Conforme as entrevistas realizadas e colocadas em pauta neste trabalho,
entendemos que a concessão do benefício pode acabar gerando o desejo de
que o familiar permaneça preso para poder continuar percebendo o benefício.
Entretanto, o Estado não pode se ocupar desta questão, pois esta possui
um cunho subjetivo, e se o Estado limitasse a concessão do benefício em
razão deste critério ele estaria sendo injusto com a família do delituoso. Como
evidenciado, as políticas sociais do Estado para auxiliar essas famílias não são
efetivas, e assim, o auxílio-reclusão acabou se tornando um paliativo para a
solução do problema em questão.
Portanto, de modo conclusivo, entendemos tratar-se de um benefício
muito válido e necessário para a manutenção de nossa sociedade, pois ele
tem alguns requisitos que filtram o acesso a ele, como o de que a pessoa tem
que ser filiada ao sistema da previdência social para poder pleiteá-lo, como
também o requisito de baixa renda, que acaba por limitar o seu acesso a toda
a população.
Outrossim, ainda que seja um benefício importante, entendemos que
ele apresenta uma conseqüência perversa, a medida que fomenta na família
um sentimento de desejar que o seu ente continue no cárcere para perceber o
benefício. Esse desejo está presente em quase todas as famílias que percebem
o benefício em razão, por julgarem que quando a pessoa que deu causa a
concessão do benefício for colocada em liberdade a dificuldade de encontrar
um novo trabalho será muito grande, especialmente porque o ex-detento
torna-se socialmente estigmatizado pela passagem pelo cárcere.
Entretanto, entendemos que essa problemática não encontra solução no
direito previdenciário, pois o problema deve ser resolvido em outras áreas,
recorrendo-se, essencialmente, aos princípios constitucionais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBIERI, Giseli. Faltam políticas sociais para a Defensoria Pública,
diz associação. Direitos humanos. Disponível em: http://www.
direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view
&id=2539&Itemid=2; acesso em: 15/09/2008.
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GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio
de Janeiro. Editora Revan, 2006.
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem . São Paulo: LTC, 1987.
MINAYO, M. C. Souza. O Conceito de representações sociais dentro da
sociologia clássica. In: GUARESCHI, P. e JOVCHELOVITCH, S. (Orgs). Textos
em Representações Sociais . Petrópolis: Vozes, 2000.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A MEDIDA
PROVISÓRIA Nº 449 E A INCONSTITUCIONAL
“BANCARIZAÇÃO” DA DÍVIDA ATIVA DA UNIÃO
CARLOS ALEXANDRE DOMINGOS GONZALES1
MARIO AUGUSTO CARBONI2
Sumário
1. Introdução; 2. Das funções do estado moderno; 3. Carreiras típicas
de estado; 4. A cobrança da dívida ativa da união como atividade estatal
indelegável; 5. Da competência exclusiva da procuradoria geral da fazenda
nacional para inscrever e cobrar a dívida ativa da união; 6. Da impossibilidade
de medida provisória versar matéria reservada à lei complementar - violação
aos artigos 131 e 146, III, ambos da Constituição Federal; 7. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Com o intuito de racionalizar a cobrança da dívida ativa da União, o
Poder Executivo Federal editou a Medida Provisória nº 449, publicada no
diário oficial da União, do dia 3 de dezembro de 2008, a qual alterou a legislação
tributária relativa a parcelamentos de débitos tributários.
Conquanto referida Medida Provisória trate de outros assuntos deveras
polêmicos, tais como a remissão de dívidas de até R$ 10 mil vencidas há
mais de cinco anos, o objetivo do presente estudo será restrito à denominada
“bancarização” da dívida ativa da União, inovações prevista no artigo 55, que
transfere para instituições financeiras os atos de cobrança amigáveis de tais
créditos. Reza o referido artigo, verbis:
Art.55.Os órgãos responsáveis pela cobrança da Dívida Ativa
da União poderão utilizar serviços de instituições financeiras
públicas para a realização de atos que viabilizem a satisfação
amigável de créditos inscritos.
§ 1º Nos termos convencionados com as instituições
financeiras, os órgãos responsáveis pela cobrança da Dívida
Ativa:
I - orientarão a instituição financeira sobre a legislação
Procurador da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto/SP, ex-Advogado da União. Pós
Graduação em Direito Constitucional pela UNISUL. Professor das Faculdades COC de
Ribeirão Preto e do curso SEAD-LFG.
2
Procurador da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto/SP. Pós Graduação em Direito Público
pela Universidade de Brasília. Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.
1
90
Revista Jurídica FACULDADES COC
tributária aplicável ao tributo objeto de satisfação amigável;
II - delimitarão os atos de cobrança amigável a serem
realizados pela instituição financeira;
III - indicarão as remissões e anistias, expressamente previstas
em lei, aplicáveis ao tributo objeto de satisfação amigável;
IV - fixarão prazo que a instituição financeira terá para obter
êxito na satisfação amigável do crédito inscrito, antes do
ajuizamento da ação e execução fiscal, quando for o caso; e
V - fixarão os mecanismos e parâmetros de remuneração por
resultado.
§ 2º Para os fins deste artigo, é dispensável a licitação, desde que
a instituição financeira pública possua notória competência
na atividade de recuperação de créditos não pagos.
§ 3º Ato conjunto do advogado-geral da união e do ministro
de estado da fazenda:
I - fixará a remuneração por resultado devida à instituição
financeira; e
II - determinará os créditos que podem ser objeto do disposto
no caput deste artigo, inclusive estabelecendo alçadas de
valor.
Percebe-se, pois, que doravante os órgãos responsáveis pela inscrição e
cobrança da dívida ativa federal poderão celebrar acordos com instituições
financeiras públicas, a fim de viabilizar a satisfação amigável de créditos
inscritos.
Feitas tais observações preliminares, cumpre indagar se seria possível,
após a inscrição em dívida ativa, a transferência, para instituições financeiras,
dos atos de cobrança amigáveis de tais créditos?
Demonstrar-se-á a impossibilidade, em face da violação à Constituição
Federal e à Lei Complementar 73/93, de se atribuir a instituições financeiras,
ainda que públicas, o desempenho de atividades tipicamente estatais, que
somente poderiam ser exercidas por agentes públicos, pertencentes a carreiras
típicas de estado.
De início, registre-se que não é de hoje a intenção de se terceirizar
a cobrança da dívida ativa da União. Conforme observa Paulo de Barros
Carvalho3:
Em abril de 1990 foi editada a medida provisória nº 178
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário - 17 ed. - São Paulo : Saraiva, 2005,
p. 544.
3
Revista Jurídica FACULDADES COC
91
que autorizou o Poder Executivo a ceder, a título oneroso e
mediante licitação, créditos inscritos como Dívida Ativa da
União. Esgotado o prazo do parágrafo único do artigo 62 da
Constituição Federal, não foi convertida em lei, perdendo
eficácia
Mais recentemente, a Resolução nº 33/2006, do Senado Federal permitiu
a cessão da dívida ativa dos Estados, Distrito Federal e Municípios para
instituições financeiras. Importante ressaltar que, relativamente a essa resolução,
tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade
n.º 3786 (relator Min. Carlos Aires Brito), movida pela Associação Nacional
dos Procuradores de Estado, mas ainda pendente de julgamento.
Alega-se, como argumento para justificar a terceirização da dívida ativa,
a ineficiência dos órgãos encarregados da sua cobrança, que na sua maioria
carecem de servidores e estrutura para o desempenho dessa relevante função.
Como pano de fundo, há também o interesse declarado de instituições
financeiras privadas, nacionais e estrangeiras, que vêem na terceirização
da Dívida Ativa federal, estadual e municipal, uma inesgotável fonte de
incremento de suas - já vultosas - receitas.
2. DAS FUNÇÕES DO ESTADO MODERNO
Segundo Regis de Castro Andrade4, as funções desempenhadas pelo
Estado moderno podem ser classificadas em três grandes grupos: a) funções
de Estado stricto sensu; b) funções econômicas e c) funções sociais.
A doutrina é unânime em afirmar que as funções stricto sensu são
intransferíveis, logo, exclusivas e permanentes do Estado. Já as funções
econômicas são parcialmente intransferíveis. Por derradeiro, as funções sociais
são exercidas tanto pelo Estado, quanto pelo setor privado.
Com efeito, o Programa Nacional de Desestatização, iniciado na metade
da década de 90, incentivou um programa de privatizações no setor público,
sobretudo naquelas funções passiveis de serem exercidas pela iniciativa
privada, trazendo como principal bandeira a necessidade de redução dos
custos estatais.
Assim, a partir das Emendas Constitucionais nº 5, 6, 7, 8 e 9, todas de
1995, a iniciativa privada passou a agir nas áreas que, até então, eram de
atuação exclusiva do Estado. Tal fenômeno se verificou nos serviços públicos
de telefonia, energia elétrica, petróleo, gás, conservação de estradas etc.
Todavia, ultimamente, nota-se uma tentativa de transferir para o setor
ANDRADE, Régis de Castro et alii. Estrutura e Organização do Poder Executivo Administração Pública Brasileira. Volume 2 - CEDEC/ENAP, 1993, p. 29-39.
4
92
Revista Jurídica FACULDADES COC
privado também aquelas atividades fins do Estado (funções Estatais stricto
sensu), entre as quais se encontram aquelas denominadas tipicamente estatais.
Salvo melhor juízo, a Medida Provisória nº 449, ora em comento, confirma
a tendência acima mencionada, ainda que de forma subliminar, transferindo
(ad referendum do Congresso Nacional) à iniciativa privada atividades
tipicamente estatais, no caso, a cobrança da dívida ativa da União.
3. CARREIRAS TÍPICAS DE ESTADO
Registre-se que as denominadas carreiras típicas de estado seriam
aquelas carreiras públicas imprescindíveis ao funcionamento do Estado e para
as quais não há um paralelo na iniciativa privada.
A Constituição Federal, em seu artigo 3º, consigna os objetivos
fundamentais do Estado Brasileiro, quais sejam: constituir uma sociedade livre,
justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e
a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e de outras
formas de discriminação.
Pois bem, para atingir tais objetivos a que se propõe, o Estado deve atuar
através de seus agentes públicos, os quais para se desincumbirem de seus
encargos recebem da lei prerrogativas não extensíveis aos demais cidadãos.
Não é por outro motivo que tais carreiras, consideradas típicas de estado,
devem adotar o regime estatutário, com vistas a dar aos seus membros garantias
no exercício de seus cargos, contra influências políticas. Por conseqüência,
fica vedada adoção de regime jurídico diferenciado para servidores de uma
mesma carreira ou categoria.
Por essa razão, impõe-se que as carreiras típicas de Estado sejam
precisamente identificáveis, ou seja, que seus membros não possam ser
confundidos com demais servidores (empregados públicos ou particulares
em colaboração com o poder público), exercentes de atividades não típicas.
A primeira norma a elencar as atividades típicas de Estado foi a Lei nº
6.185/74, estabelecendo em seu art. 2º como tais, aquelas compreendidas nas
áreas de Segurança Pública, Diplomacia, Tributação, Arrecadação e Fiscalização
de Tributos Federais e Contribuições Previdenciárias, Procuradoria da Fazenda
Nacional, Controle Interno e Ministério Público.
Posteriormente, já na vigência da Constituição Federal de 1988, a Lei
nº 7.995/90, no seu artigo 1º, inciso I, consagrou o seguinte rol de carreiras
e categorias admitidas como típicas de Estado a serem tratadas de forma
isonômica e já à época sujeitas ao regime estatutário, a saber:
São fixados, nas Tabelas do Anexo I e IX desta Lei, os vencimentos ou
gratificações:
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93
I - dos integrantes das carreiras ou categorias funcionais
Auditoria do Tesouro Nacional, Finanças e Controle,
Orçamento, Procurador da Fazenda Nacional, Assistentes
Jurídicos, Procuradores Autárquicos, Procuradores e
Advogados de Ofício do Tribunal Marítimo, Polícia Federal,
Polícia Civil do DF, Diplomata do Serviço Exterior e Gestor
Governamental.
Sem prejuízo de leis ou atos normativos definindo ora umas, ora outras as
chamadas funções típicas de estado, o certo é que a própria Constituição Federal,
ao organizar os Poderes da República, exigiu a instituição de determinadas
carreiras essênciais ao funcionamento do Estado. Senão, vejamos:
Reza o artigo 21, inciso I da Constituição Federal, competir
a União, exclusivamente, manter relações com Estados
estrangeiros e participar de organizações internacionais. Tal
atividade, por ser tipicamente estatal, somente poderá ser
exercida pela União, através de órgão específico - no caso, o
Ministério das Relações Exteriores -, e por meio de agentes
públicos, componentes de carreiras específicas (Diplomatas e
Oficiais de Chancelaria).
Do mesmo modo, compete à União, de forma exclusiva, organizar, manter
e executar a inspeção do trabalho (artigo 21, XXIV), atividade tipicamente
estatal que será exercida por agentes públicos, pertencentes às carreiras de
Fiscais do Trabalho e demais Agentes da Inspeção do Trabalho (Médicos do
Trabalho, Engenheiros e Assistentes Sociais).
Ademais, a Emenda Constitucional 42, ao incluir o inciso XXII do artigo
37 da Constituição Federal consagrou que as administrações tributárias da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios são atividades
essenciais ao funcionamento do Estado e devem ser exercidas por servidores de
carreiras específicas, no caso, auditores fiscais das Receitas Federal, Estaduais
e Municipais.
Podemos também mencionar o art. 144 da Constituição Federal, segundo
o qual a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de
todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: polícia federal; polícia
rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares
e bombeiros militares. Tais instituições são compostas por agentes públicos,
ocupantes de cargo efetivo (policiais civis e federais; patrulheiros rodoviários
federais; militares das polícias e dos corpos de bombeiros, etc.).
Por fim, a Constituição Federal de 1988 consagrou também órgãos
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Revista Jurídica FACULDADES COC
jurídicos (Advocacia-Geral da União e Defensoria Pública da União), compostos
por Advogados Públicos e Defensores Públicos federais, encarregados,
respectivamente, de representar a União, judicial e extrajudicialmente e
de prestar assistência jurídica integral e gratuita, aos que comprovarem
insuficiência de recursos (art. 131 e 134 da Constituição Federal).
Esclareça-se que o rol acima mencionado é meramente exemplificativo,
havendo inúmeras outras atividades, consideradas pelo Texto Constitucional,
como típicas de estado.
Assim, todas essas atividades, por serem tipicamente estatais, nos
termos da Constituição Federal, somente podem ser exercidas por servidores
públicos, ocupantes de cargo efetivo, aprovados em concurso público de provas
ou de provas e títulos. Como conseqüência, tais atividades não podem ser
transferidas à iniciativa privada, ainda que a título de concessão ou permissão.
4. A COBRANÇA DA DÍVIDA ATIVA DA UNIÃO COMO
ATIVIDADE ESTATAL INDELEGÁVEL
Ainda como ponto de partida do presente estudo, torna-se importante
conceituar dívida ativa, a fim de demonstrar que tal atividade se inclui no rol
de atividades tipicamente estatais, razão pela qual sua transferência para a
iniciativa privada estaria vedada. Com efeito, o conceito de dívida ativa está
positivado no Código Tributário Nacional, que prevê em seu artigo 201, verbis:
Constitui dívida ativa tributária a proveniente de crédito
dessa natureza, regularmente inscrita na repartição
administrativa competente, depois de esgotado o prazo
fixado, para pagamento, pela lei ou por decisão final proferida
em processo regular.
Também a Lei 4.320/64, que dispões sobre normas gerais de Direito
Financeiro para elaboração dos orçamentos e balanços da União, dos Estados
e dos Municípios, prevê em seu artigo 39, caput e §1º que:
Art. 39 - Os créditos da Fazenda Pública, de natureza
tributária ou não tributária, serão escriturados como receita
do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas
rubricas orçamentárias.
§ 1º - Os créditos de que trata este artigo, exigíveis pelo
transcurso do prazo para pagamento, serão inscritos, na
forma da legislação própria, como Dívida Ativa, em registro
próprio, após apurada a sua liquidez e certeza, e a respectiva
receita será escriturada a esse título.
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95
Nesse passo, a inscrição em dívida ativa traduz-se em um dos mais
importantes atos administrativos, voltados à satisfação do crédito tributário,
já que é o primeiro momento em que a administração pública, através de seus
agentes públicos, realiza o controle de legalidade sobre a constituição do seu
crédito. Com precisão que lhe é peculiar, observa Paulo de Barros Carvalho5:
Sempre vimos o exercício de tal atividade revestido da mais
elevada importância jurídica. É o único ato de controle de
legalidade, efetuado sobre o crédito tributário já constituído,
que se realiza pela apreciação crítica de profissional
obrigatoriamente especializado: os procuradores da Fazenda.
Além disso, é a derradeira oportunidade que a administração
tem de rever os requisitos jurídicos-legais dos atos praticados.
Diga-se, também, que o ato de inscrever um crédito tributário em dívida
ativa é ato plenamente vinculado, por decorrência lógica do próprio artigo 3º
do Código Tributário Nacional que reza:
Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda
ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção
de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade
administrativa plenamente vinculada.
Sendo a cobrança do tributo ato plenamente vinculado, é intuitivo
concluir que, sendo o ato de inscrição do crédito em dívida ativa providência
preliminar à cobrança, será esse ato de inscrição também vinculado.
Entenda-se por plenamente vinculada, a atividade em que não é atribuída
ao administrador qualquer margem de conveniência ou oportunidade. Celso
Antonio Bandeira de Mello6 ensina, com precisão, que:
A lei, todavia, em certos casos, regula dada situação em
termos tais que não resta ao administrador margem alguma
de liberdade, posto que a norma a ser implementada perfigura
antecipadamente com rigor e objetividade absolutos os
pressupostos requeridos para a prática do ato e o conteúdo
que este obrigatoriamente deverá ter uma vez ocorrida a
hipótese legalmente prevista.
Vê-se, portanto, que o ato de cobrança do tributo não admite, por parte
do agente público responsável pela cobrança, juízo de conveniência ou
Op. Cit., 542.
Mello, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. 12 ed. São Paulo: Malheiros,
1999, p. 750.
5
6
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oportunidade.
Isso porque o crédito tributário, decorrente do poder impositivo
outorgado pela Constituição Federal aos Entes Políticos (União, Estados,
Distrito Federal e Município) caracteriza-se como bem público indisponível,
irrenunciável e imodificável. Traduz-se em instrumento de realização da
missão constitucional de promover o bemestar da sociedade.
Assim, é certo afirmar que toda a atividade estatal, desde a instituição
do tributo até sua fiscalização, cobrança e aplicação do produto de sua
arrecadação há de ser regida exclusivamente pelas normas jurídicas de direito
público, não havendo margem para atuações discricionárias. Aliás, a dispensa
imotivada, na cobrança de tributo, acarreta, inclusive, a responsabilização
político-administrativa do agente público7.
Conforma já mencionado, nos termos do artigo 131 da Constituição
Federal, o Constituinte Originário de 1988 previu que a Advocacia-Geral da
União seria a instituição que representaria a União, judicial e extrajudicialmente,
cabendo-lhe as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder
Executivo.
No parágrafo 3º do artigo 131 da Constituição Federal, consagrou a
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional como órgão da AGU, atribuindolhe, todavia, a titularidade de representação da dívida ativa da União, verbis:
Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a
representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional, observado o disposto em lei.
Registre-se, agora em nível infraconstitucional, que a Lei Complementar
nº 73, que organizou a Advocacia-Geral da União, também previu a PGFN em
seu artigo 12, I, nos seguintes termos:
À Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, órgão
administrativamente subordinado ao titular do Ministério da
Fazenda, compete especialmente:
I - apurar a liquidez e certeza da dívida ativa da União de
natureza tributária, inscrevendo-a para fins de cobrança,
amigável ou judicial;
O Artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8429/92) reza que constitui ato de
improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou
culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação
dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: X - agir
negligentemente na arrecadação de tributo ou renda , bem como no que diz respeito à
conservação do patrimônio público.
7
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Vê-se, portanto, que a Constituição Federal de 1988 consagrou a existência
de um órgão jurídico, pertencente à estrutura da AGU, atribuindo-lhe toda a
atividade de inscrição, inclusive para fins de cobrança amigável.
Nesse passo, resta indagar se a cobrança, ainda que amigável, do crédito
tributário, poderia ser cedida a outras entidades (órgãos ou pessoas jurídicas),
diversa daquela já eleita pelo Constituinte Originário? Estaria o Poder
Executivo autorizado, por meio de espécie normativa de estreita amplitude, a
modificar atribuição de órgão com status constitucional?
Tais indagações se justificam, vez que com a edição da MP 449, e em sendo
ela aprovada pelo Congresso Nacional, surge a possibilidade de delegação
dessa atividade, até então privativa da PGFN, a instituições financeiras
públicas.
Pensamos, pelos motivos doravante expostos, que a transferência da
cobrança da dívida ativa da União para instituições financeiras, ainda que
públicas, fere a Constituição Federal, vez que atribui função tipicamente
estatal a entidades diversas daquelas previstas no Texto de 1998.
5. DA COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DA PROCURADORIA GERAL
DA FAZENDA NACIONAL PARA INSCREVER E COBRAR A DÍVIDA
ATIVA DA UNIÃO
A previsão, em nível constitucional, de um órgão encarregado da
inscrição e cobrança da dívida ativa da União tem sua razão de ser.
Trata-se da vontade do constituinte originário que, reconhecendo a
relevância da cobrança da Dívida Ativa Federal, reservou-a a órgão jurídico,
secular, de notória especialidade técnica, composto por agentes públicos,
vinculados funcionalmente ao Estado.
E nesse aspecto, registre-se, que o Poder Constituinte Derivado, em
mais de uma oportunidade poderia, se quisesse, ter alterado o dispositivo
constitucional que atribui à PGFN a competência de cobrar a dívida ativa. Se
não o fez através de reforma constitucional, não poderia o Poder Executivo,
por medida provisória, fazê-lo.
Ademais, a experiência mostra que a inexistência de vínculo funcional,
no caso de terceirização de atividades tipicamente estatais, entre o executante
da função e o ente público deixa o Estado indefeso, diante dos atos praticados
pelos terceirizados, face à falta de controle sobre a legalidade dos atos por
estes praticados.
Há, ainda, no caso de terceirização dessas atividades, o possível conflito
de interesse, já que a terceirização envolve a contratação de entidades
(pessoas físicas ou jurídicas), que podem vir a litigar contra o próprio Estado,
acarretando situações conflituosas, prejudiciais ao interesse público.
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Revista Jurídica FACULDADES COC
Assim, a contratação de serviços de instituições financeiras, para a
realização de atos que viabilizem a satisfação amigável de créditos inscritos na
Dívida Ativa da União, sob o pretexto de racionalização e eficiência na gestão
da dívida ativa, poderá acarretar prejuízos inestimáveis ao interesse público.
Aliás, não se diga que, pelo fato de a norma em comento permitir
a contratação apenas de instituições financeiras públicas, o óbice estaria
superado.
Em verdade, o fato de a MP nº 449 poder atribuir a cobrança amigável de
créditos inscritos na Dívida Ativa da União apenas às instituições financeiras
públicas não afasta o desrespeito ao artigo 131 da Constituição Federal.
Isso porque, ainda que públicas, essas instituições financeiras foram
criadas para explorarem atividades economicas, nos exatos termos do artigo
173 do próprio Texto Constitucional, verbis:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a
exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será
permitida quando necessária aos imperativos da segurança
nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos
em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública,
da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias
que explorem atividade econômica de produção ou
comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo
sobre:
I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e
pela sociedade;
II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas
privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis,
comerciais, trabalhistas e tributários;
IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de
administração e fiscal, com a participação de acionistas
minoritários;
V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a
responsabilidade dos administradores.
§ 2º - As empresas públicas e as sociedades de economia mista
não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do
setor privado.
§ 3º - A lei regulamentará as relações da empresa pública com
o Estado e a sociedade.
Revista Jurídica FACULDADES COC
99
§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à
dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao
aumento arbitrário dos lucros.
§ 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos
dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade
desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza,
nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e
contra a economia popular.
Veja que em nenhum momento há menção à possibilidade de tais
entidades desempenharem funções tipicamentes estatais, no caso, a cobrança
da dívida ativa da União. Pelo contrário, estão elas sujeitas, necessariamente,
ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às
obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias.
Em segundo lugar, essas empresas estatais (sociedade de economia
mista e empresas públicas), quando autorizadas a explorarem atividades
econômicas, só podem fazê-lo pelos imperativos da segurança nacional ou
movidas por relevante interesse coletivo, requisitos esses não condizentes
com a bancarização da dívida ativa federal.
Ademais, tais empresas estatais devem estar no mesmo plano de
igualdade com as demais empresas privadas. Nesse passo, não tendo tais
empresas “privilégios” além daqueles concedidos às demais empresas do
setor privado, não poderiam elas se valer de prerrogativas inerentes aos
agentes públicos.
Com efeito, a ausência de tais prerrogativas, necessárias à cobrança da
dívida ativa, ainda que de forma amigável, comprometeriam a arrecadação
dos créditos tributários, de modo a prejudicar a implementação das políticas
públicas.
Não dispondo dessas prerrogativas, por outro lado, tais instituições não
teriam eficiência na cobrança da dívida ativa da União, se comparada aos
resultados já apresentados pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. E
nesse aspecto registre-se, por relevante, que nos últimos anos a PGFN, a par
das suas deficiências estruturais, mostrou resultados mais que satisfatórios8.
Outro fator que vai de encontro com a bancarização diz respeito aos
servidores dessas instituições financeiras. Observe-se que tais entidades são
O trabalho Números da PGFN, de autoria do Procurador da Fazenda Nacional Marco Antônio
Gadelha, do Estado da Paraíba, traça um diagnóstico da atuação da Procuradoria Geral da
Fazenda Nacional. Segundo Gadelha, o benefício econômico total da União com a atuação da
Procuradoria Geral da Fazenda Nacional nos últimos oito anos é superior a R$ 243 bilhões, em
valores não corrigidos monetariamente (valor nominal), excluídos os números referentes a
2007, por não ter sido divulgado o relatório de gestão. Esse estudo está disponível em: http://
www.sinprofaz.org.br/sf/site/ web/noticia_detalhe.php?idNoticia=MDc3RjE2MTM2Ng==
8
100
Revista Jurídica FACULDADES COC
compostas por empregados públicos, regidos pela legislação trabalhista (CLT),
os quais não são detentores de prerrogativas atribuídas aos agentes públicos.
Assim, careceriam de conhecimentos técnicos e jurídicos para o desempenho
dessa relevante função pública.
Outro aspecto que chama a atenção na referida medida provisória é
o fato dela, a princípio, atribuir alto grau de discricionariedade na atuação
dessas instituições financeiras, no que tange ao modo de cobrança.
Já se disse antes, que a cobrança do tributo é ato planamente vinculado,
nos termos do artigo 3 do CTN. Tal característica impede que, no ato de
cobrança, ainda que extrajudicial, sejam utilizados critérios subjetivos que
importem discriminação ou privilégios não previsto em lei.
Por derradeiro, cumpre também observar que a Medida Provisória
449 excepciona, de forma inconstitucional, as regras da obrigatoriedade de
adoção do processo licitatório. Com efeito, o artigo 55, § 2º da referida Medida
Provisória, reza que:
Para os fins deste artigo, é dispensável a licitação, desde que a
instituição financeira pública possua notória competência na
atividade de recuperação de créditos não pagos.
Ora, sabe-se que a ordem econômica brasileira baseia-se na valorização
do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo como princípio norteador a
livre concorrência (art. 170). Assim, mesmo que o Estado explore atividades
econômicas deverá se sujeitar a tais princípios orientadores.
Assim, o privilégio contido no artigo 55, § 2º da referida Medida Provisória
não se coaduna com as disposições da Constituição Federal, sobretudo
naquelas constantes do artigo 173 § 2º que estabelece que as empresas públicas
e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais
não extensivos às do setor privado.
Não se está aqui defendendo que a bancarização deva ser estendida às
demais instituições financeiras privadas, o que seria muito pior, do ponto
de vista do interesse público. Pelo contrário; o que se quer é reafirmar a
impossibilidade de concessão de atividades típicas de Estado.
Entretanto, não se deve afastar a hipótese de eventual argüição de
inconstitucionalidade, por parte das demais instituições financeiras, pelo fato
delas terem sido preteridas na atribuição da cobrança amigável da dívida ativa
da União. Afastada exclusividade da bancarização, de modo a generalizá-las às
demais instituições financeiras, seria, repita-se, preocupante do ponto de vista
do interesse público, vez que nesse caso o interesse das grandes corporações
financeiras subjugaria o interesse coletivo.
Por todos esses motivos, entendemos ser inconstitucional a bancarização
Revista Jurídica FACULDADES COC
101
da dívida ativa da União, ainda que restrita às instituições financeiras públicas,
tendo em vista que tal função caracteriza-se com atividade tipicamente estatal
e, portanto, intransferível à iniciativa privada.
6. DA IMPOSSIBILIDADE DE MEDIDA PROVISÓRIA VERSAR
MATÉRIA RESERVADA À LEI COMPLEMENTAR - VIOLAÇÃO AOS
ARTIGOS 131 E 146, III, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Outro ponto que padece do vício da inconstitucionalidade em relação
à Medida Provisória nº 449, diz respeito ao fato de ela versar sobre matéria
reservada à Lei complementar.
Com efeito, as leis complementares, segundo posição doutrinária,
destinam-se a complementar o texto constitucional. Na verdade, o constituinte
reserva a esta modalidade normativa a questões de especial importância, para
cuja disciplina seja recomendável à obtenção de um maior consenso entre
os parlamentares. Esclarece Alexandre de Moraes, com a precisão que lhe é
peculiar que9:
...a razão da existência da lei complementar consubstanciase no fato do legislador constituinte ter entendido que
determinadas matérias, apesar da evidente importância,
não deveriam ser regulamentadas na própria Constituição
Federal, sob pena de engessamento de futuras alterações;
mas, ao mesmo tempo, não poderiam comportar constantes
alterações através do processo legislativo ordinário.
Pois bem, conforme já externado, a Advocacia Geral da União, em razão
de exigência constitucional, deve ser estruturada através de lei complementar,
nos termos do artigo 131:
Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que,
diretamente ou através de órgão vinculado, representa a
União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos
da lei complementar que dispuser sobre sua organização e
funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento
jurídico do Poder Executivo.
Com efeito, também já foi dito que a Lei Complementar 73/93, atendendo
ao mandamento constitucional, previu a Procuradoria da Fazenda Nacional
como órgão integrante da AGU, atribuindo-lhe, entre outras, a prerrogativa
de gerir a dívida ativa da União de natureza tributária, inclusive para fins de
9
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 569.
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cobrança amigável (art. 12, I).
Vê-se, portanto, que atualmente quem tem a prerrogativa de cobrar
amigavelmente a dívida ativa da União, por expressa previsão em Lei
complementar, é a PGFN.
Ocorre que, as matérias reservadas à lei complementar não podem
ser disciplinadas por medidas provisórias. Esse já era o entendimento
jurisprudencial pacífico e, após a promulgação da Emenda nº 32, de 11 de
setembro de 2001, essa vedação passou a constar expressamente do texto
constitucional.
Conforme se denota do artigo 62, §1º, III da Constituição Federal,
com redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, ficou expressamente
consignado no texto a vedação de edição de medidas provisórias sobre matéria
reservada à lei complementar10.
Nesse passo, o Poder Executivo ao tratar, por meio de medida
provisória, de tema privativo de lei complementar infringiu o artigo 62 da
Constituição Federal, razão pela qual o artigo 55 da Medida Provisória nº 449
é inconstitucional.
Por outro lado, já no aspecto tributário, o sistema constitucional
também exigiu que determinadas matérias fossem reguladas por meio de lei
complementar.
Assim, o artigo 146, estabelece que a lei complementar disponha
sobre conflitos de competência em matéria tributária, regule as limitações
constitucionais ao poder de tributar e estabeleça as normas gerais em matéria
de legislação tributária11.
Ainda nesse contexto, o festejado Luciano Amaro12, ao comentar esse
assunto, observa que:
Na quase totalidade das hipóteses, a Constituição lhes confere
tarefas dentro de sua função precípua (de ‘complementar’
as disposições constitucionais) (...) É, ainda, função típica
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas
provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. § 1º
É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: III - reservada a lei complementar.
11
Nesse último quesito (art. 146, III da Constituição Federal), a legislação complementar
versará especialmente sobre: definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação
aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de
cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas;
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as
empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto
previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição
a que se refere o art. 239.
12
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 168.
10
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103
da lei complementar estabelecer normas gerais e direito
tributário (art. 146, III) (...) aumentar o grau de detalhamento
dos modelos de tributação criados pela CF (...) adensar os
traços gerais dos tributos, preparando o esboço que será
utilizado pela lei ordinária (...) padronizar o regramento
básico das obrigações tributárias, conferindo-se, desta forma,
uniformidade ao sistema tributário nacional.
Dentre as matérias reservadas à Lei complementar, nos termos do art.
146, III, “b” da Constituição Federal, destaquem-se as normas gerais sobre
obrigação e crédito tributário. De acordo com o CTN 139, o crédito tributário
decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta obrigação. Ou
seja, crédito tributário é o direito subjetivo titularizado pelo sujeito ativo da
obrigação tributária e que lhe permite exigir o objeto prestacional (importância
em dinheiro).
Com efeito, o CTN ao tratar do crédito tributário estabelece a forma
de sua constituição, prevendo inclusive as causas de suspensão, extinção e
exclusão. Também prevê as garantias e privilégios, bem como o modo como
tal crédito será inscrito em dívida ativa.
De se atentar para o fato de que o próprio CTN, em seu art. 201, prevê
que a dívida ativa tributária é aquela proveniente de crédito dessa natureza,
regularmente inscrita na repartição administrativa competente, depois de
esgotado o prazo fixado para pagamento.
Ora, de se concluir, pois, que a dívida ativa tributária é, em última
análise, o crédito tributário, levado a registro na repartição competente para
que dele seja extraída a certidão de dívida ativa, título executivo extrajudicial,
nos termos do Código de Processo Civil. Com acerto, Luciano Amaro13 nota
que:
Na verdade haveria três planos diferentes, pois o Código
reconhece uma terceira roupagem da obrigação tributária,
quando se reveste como dívida ativa tributária, ‘proveniente’
do crédito tributário (art. 201)
De se notar, portanto, que as questões envolvendo dívida ativa, em
verdade, versam sobre obrigação e crédito tributário, razão pela qual todos esses
assuntos, por força constitucional, devem ser tratados por Lei complementar.
Assim, verifica-se que a MP em questão, por versar matéria reservada
à Lei Complementar (dívida ativa tributária), também afronta o disposto no
artigo 62, §2º da Constituição Federal.
13
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 339.
104
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7. CONCLUSÃO
Com efeito, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 449,
prevendo a inédita possibilidade de “bancarização” da dívida ativa da União.
Através desse novo instituto, os órgãos responsáveis pela inscrição e cobrança
da dívida ativa federal poderão celebrar acordos com instituições financeiras
públicas, a fim de viabilizar a satisfação amigável de créditos inscritos.
Tal delegação, ainda que realizada apenas em relação empresas estatais,
fere a Constituição, haja vista que a cobrança da dívida ativa é atividade típica
de estado, a qual por força constitucional, foi conferida privativamente à
Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.
Ademais, a Medida Provisória nº 449 afronta o artigo 62, §2º da
Constituição Federal, à medida que versa sobre assuntos (competência da
PGFN e inscrição em dívida ativa de natureza tributária) reservados à lei
complementar14.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro . 13. ed. São Paulo: Saraiva,
2007.
ANDRADE, Régis de Castro et alii. Estrutura e Organização do Poder Executivo
-Administração Pública Brasileira. Volume 2 - CEDEC/ENAP, 1993.
BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária . São Paulo: RT,
EDUC, 1975.
“Atualmente, as normas gerais de direito tributário são reguladas pelo Código Tributário
Nacional (CTN), promulgado como lei ordinária - a Lei nº 5.172/1966 - e recebido como lei
complementar tanto pela Constituição pretérita como pela atual. De fato, à época em que o
CTN foi editado, estava em vigor a Constituição de 1946 e não havia no ordenamento jurídico
a figura da lei complementar. Na oportunidade, o texto do CTN veio dividido em dois livros:
o primeiro sobre “Sistema Tributário Nacional” e o segundo sobre “Normas Gerais de Direito
Tributário”. Ressalte-se que tais expressões foram logo em seguida incorporadas pelo Texto
Constitucional de 1967, que tratou expressamente das leis complementares, reservando-lhes
matérias específicas. (...) Assim, quando sobreveio a exigência na Constituição de 1967 do
uso deste instrumento legal para regular as normas gerais em matéria tributária, o CTN foi
assim recepcionado, tendo recebido a denominação de código e status de lei complementar
pelo Ato Complementar nº 36/67. Igualmente, não há dúvida de que o CTN foi recepcionado
com o mesmo status legislativo sob a égide da Constituição Federal de 1988, que manteve
a exigência de lei complementar para as normas gerais de Direito Tributário.” (Extrato do
relatório do voto do Min. Gilmar Mendes no STF RE 560626, p. 09/10).
14
Revista Jurídica FACULDADES COC
105
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário - 17 ed. - São Paulo
: Saraiva, 2005
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 3. ed.
Forense: Rio de Janeiro, 1999.
MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. 12 ed. São
Paulo: Malheiros, 1999
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15.ed. São Paulo: Atlas, 2004.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed.
revista, São Paulo: Malheiros, 1998
SOUTO, João Carlos. A União Federal em Juízo. 3. ed. rev. e ampl. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006.
ANÁLISE DE DISCURSO ACERCA DA UTILIZAÇÃO
LEGAL DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS:
RESULTADOS DE PESQUISA EMPÍRICA
NATÁLIA MONTEIRO1
FABIANA CRISTINA SEVERI2
Sumário
1. Introdução; 2. Metodologia; 3. Base Teórica sobre Células-tronco:
conceitos, legislação e problemática; 4. Análise das entrevistas; 5. Conclusões.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo central analisar as percepções,
os valores, representações e significados acerca das pesquisas com célulastronco embrionárias, especialmente entre os sujeitos que estão submetidos a
tratamentos médicos envolvendo algum tipo de terapia gênica.12
Dessa forma, o objeto de analise da pesquisa se faz sobre o discurso de
homens e mulheres comuns, que discursam sobre algo promissor, porém
perigoso, o qual é capaz de transformar suas vidas. Configuram-se em um
discurso influenciado por esperanças, medos, crenças, dogmas religiosos e
cultura, dando-se o nome a esta dimensão de moral.
Importante se faz tal estudo, já que os temas sobre terapia gênica,
especialmente sobre células-tronco, envolvem questões sobre a dignidade
humana, o livre consentimento, a responsabilidade sobre as gerações futuras,
o estatuto jurídico e social do embrião humano, a propriedade sobre o
patrimônio genético, a criação artificial da vida, entre outros. Mas também
é fato que na maioria das vezes tais assuntos apresentam-se no campo
social mais contaminados por crenças e dogmas religiosos ou morais, do
que comprometidos com uma reflexão crítica profunda e lastreada por um
conhecimento técnico mínimo.
2. METODOLOGIA
O presente trabalho tem referencial de pesquisa qualitativa, também
conhecida, segundo a tradição antropológica, como investigação etnográfica.
Trata-se, portanto, de um trabalho empírico, através do qual foi desenvolvida
uma pesquisa de campo que visa reunir e organizar um conjunto comprobatório
Bacharel em Direito pelas Faculdades COC de Ribeirão Preto.
Mestre em Direito pela Unesp de Franca; Doutoranda em Psicologia pela USP de Ribeirão
Preto; Consultora Jurídica da Fipase e Docente das Faculdades COC de Ribeirão Preto.
1
2
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Revista Jurídica FACULDADES COC
de informações, sendo que as informações daqui retiradas são documentadas,
abrangendo qualquer tipo de informação disponível, escrita, oral, gravada
(no qual se inclui o trabalho em questão) e filmada, que se preste para
fundamentar o relatório do caso que será, por sua vez, objeto de análise crítica
pelos informantes ou qualquer interessado (CHIZZOTTI, 2003).
A pesquisa qualitativa preocupa-se com uma realidade que não pode
ser quantificada, respondendo à questões muito particulares, trabalhando
com um universo de significados, crenças e valores e que correspondem a
um espaço mais profundo das relações, dos fenômenos que podem não ser
reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 1994).
Essencialmente, uma pesquisa qualitativa será sempre descritiva e as
descrições nela contida, estão sempre influenciadas pelos significados que o
ambiente lhes proporciona, ou seja, são produtos de uma visão subjetiva.
Desta forma, a interpretação dos resultados surge como a totalidade de
uma especulação que tem como base a percepção de um fenômeno em um
contexto (TRIVIÑOS, 1987).
Nesta pesquisa, foi realizada a mesma rota de uma investigação.
Assim, foi escolhido um assunto com toda sua problemática, sendo que a
escolha deste não surgiu espontaneamente, mas foi decorrente de interesses
e circunstâncias socialmente condicionadas, ou seja, essa escolha é fruto de
determinada inserção do pesquisador na sociedade; uma colheita de dados e
por fim uma análise das informações recebidas. Houve também, no processo
de desenvolvimento o estudo, uma fundamentação teórica geral, sendo
necessária uma revisão aprofundada de toda a literatura em torno do tema e
essa fundamentação teórica que proporcionou a formulação das questões de
pesquisa e das perguntas norteadoras.
O instrumento utilizado na feitura desta pesquisa qualitativa foi a
entrevista semi-estruturada, a qual se configura “um dos principais meios que
tem o investigador para realizar uma colheita de dados” (TRIVIÑOS, 1987,
p.143).
A entrevista semi-estruturada, de acordo com Triviños:
(...) parte de questionamentos básicos, fundamentado nas
teorias e nas hipóteses que interessam à pesquisa, oferecendolhe uma diversidade de interrogativas a partir das respostas
dos entrevistados (informantes), ou seja, no momento que
o informante, seguindo espontaneamente a sua linha de
pensamento, responde os questionamentos feitos pelo
investigador, esta resposta poderá gerar uma série de novos
questionamentos e a partir desse momento o informante
passa a participar da elaboração do conteúdo questionado
pela pesquisa.(TRIVIÑOS, 1987, p.146).
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109
São caracterizadas pela presença de um roteiro de perguntas ordenadas,
mas com respostas livres ou abertas.
Portanto, a entrevista semi-estruturada é considerada fruto de toda a
teoria cumulada de toda informação obtida sobre o fenômeno social e assim é
possível perceber que as perguntas fundamentais que constituem a entrevista
semi-estruturada não nascem “a priori”.
Conforme, afirma Triviños, os resultados das pesquisas qualitativas que
se desenvolvem mediante a entrevista semi-estruturada são melhores, uma vez
que se trabalha com diferentes grupos de pessoas; sendo assim foi escolhido
na elaboração deste trabalho os diferentes grupos como padres, jornalistas e
portadores de deficiência, sendo que todos os nomes dessas pessoas foram
resguardados, utilizando-se assim consoantes para identificá-los.
As entrevistas foram feitas com dois padres, dois jornalistas e três
portadores de deficiência, sendo os resultados obtidos submetidos a análise
de discursos diferenciados.
As entrevistas realizadas duraram em média de 15 a 20 minutos para
evitar que se tornasse algo repetitivo e cansativo.
Todas as entrevistas foram realizadas na cidade de Dourado-São Paulo,
visto que em uma pesquisa qualitativa, com base em entrevistas semiestruturadas, é necessário que antes de iniciadas as entrevistas, se tenha
informações sobre o local, informações gerais e também peculiares como o
número de habitantes, de famílias, escolaridade das pessoas, lideranças
vicinais, desenvolvimento econômico, etc. Assim, como a investigadora é
nascida e crescida na mesma cidade, tendo portanto informações do meio, sob
este argumento a opção escolhida foi pela cidade de Dourado.
Todas as entrevistas foram gravadas e submetidas imediatamente à
uma transcrição, antes da realização de uma outra entrevista, tendo todas a
aprovação dos informantes, como ensina Triviños.
Para conseguir a espontaneidade do informante, antes de iniciar a
entrevista a investigadora convenceu-se da necessidade de desenvolver,
no decorrer das entrevistas, todos os elementos humanos, para que assim
permitisse um clima de simpatia e confiança, obtendo a espontaneidade como
uma conseqüência disto.
Para obter um clima descontraído, as entrevistas começaram com
perguntas pessoais, envolvendo atividades da vida de cada entrevistado
e durante todas as asseverações dos informantes, a investigadora procurou
confirmá-las e mostrar-se de acordo com seu modo de apreciar as coisas.
110
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3. BASE TEÓRICA SOBRE CÉLULAS-TRONCO: CONCEITOS,
LEGISLAÇÃO E PROBLEMÁTICA
Parecem existir percepções gerais de que as pesquisas gênicas resultam
em um desrespeito pelos valores e pela dignidade do ser e, ao mesmo tempo,
concepções que se fortalecem na esperança de que estes avanços poderão em um
futuro próximo trazer inúmeros benefícios, como a cura até então improvável.
Muitas vezes, porém, fica esquecido o fato de que tais temas exigem uma
reflexão profunda, garantida a ampla participação e o direito à informação
clara e de diversas naturezas, e também necessita de decisões políticas que se
baseiam nos princípios fundamentais previstos constitucionalmente (STEPKE,
2003).
Por isso, a pesquisa não teve como objeto analisar qual o conjunto de
percepções mais “corretas” sob um ponto de vista ou outro, mas, sobretudo,
pretende, a partir das percepções obtidas por meio da fala do sujeito não técnico
e não intelectual, avaliar a necessidade de políticas públicas que permitam
um debate sobre o tema mais rico, plural, esclarecido e comprometido,
sobretudo com a dignidade humana. Debate esse que permitiria uma melhor
fundamentação jurídica, ética e política em torno das decisões em pesquisas
sobre células - tronco.
Para tanto, foi necessário estabelecer em um segundo momento, qual
o caminho adequado para chegar-se a tal finalidade, ou seja, estabelecer os
objetivos secundários desta pesquisa, uma vez que só se atinge o resultado
pretendido quando se analisa integralmente o contexto onde este tema se
insere, quando se conhece o objeto de análise.
Dessa forma, configura-se de salutar importância esclarecer o que é
célula-tronco, ou seja, mostrar o seu conceito, assim como suas especificações.
É a partir deste conceito, desse entendimento do que vem a ser uma célulatronco que foi possível uma análise do discurso dos informantes.
Células-tronco, traduzidas do inglês stem cell, consistem em:
células com capacidade de se auto-renovar (dar origem a
mais células-tronco a partir da divisão celular) assim como
diferenciar-se em tipos celulares mais maduros, ou seja,
células mais especializadas (REHEN; PAULSEN, 2007, p.90).
Por este motivo são também denominadas como células mãe ou células
estaminais. De forma simplificada, são células primitivas produzidas durante
o desenvolvimento do organismo que dão origem à outros tipos de células.
São elas as que dão origem à diversidade e complexidade do nosso organismo.
Para se ter uma compreensão mais acurada sobre células-tronco faz-se
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111
necessária uma pré-compreensão de sua capacidade de diferenciação, sendo
que se dividem em células-tronco unipotente, totipotente, pluripotente e
multipotente, assim como faz-se imprescindível também sua divisão de
acordo com a sua origem, desta forma as células-tronco podem ser originadas
de células-tronco adulta, fetal ou embrionária, sendo que aqui se encontra
uma grande confusão no discursos do homem mediano, pois pela sua falta
de conhecimento do assunto muitos confundem células-tronco embrionárias
com as fetais, sendo que são distintas.
O Brasil regulamentava os procedimentos relacionados a embriões
humanos supranumerários, oriundos das técnicas de fertilização in vitro, com
base na Lei 8.974 do ano de 1995 na qual se apresentava de acordo com a
“defesa dos princípios e das prerrogativas jurídicas e éticas essenciais aos
seres humanos”. (ROCHA, 2008, p. 139)
No ano de 1996, foi elaborada pelo Conselho Nacional de Saúde, a
Resolução nº 196, que “que disponibilizou no cenário normativo nacional
um conjunto de elementos conceituais inclinados a obedecer ao mandamento
constitucional do respeito à vida e à dignidade da pessoa humana. (ROCHA,
2008, p. 139).
No dia 24 de março de 2005, foi regulamentada, por meio da Lei de
Biossegurança nº 11.105, a pesquisa com células-tronco embrionárias, sendo
que a mesma conceituou células-tronco embrionárias como células de embrião
que apresentam a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido
de um organismo. Essa lei foi aprovada por deputados e sancionada pelo
atual Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, sendo que oito meses
após sua publicação a lei de Biossegurança, em meio a protestos religiosos
e com o apoio da comunidade cientifica resistiu, apesar de sofrer diversas
modificações em seu texto inicial, sendo por fim, regulamentada pelo Decreto
5591, de 22.11.2005. (CORRÊA, GICOIA, CONRADO, 2007). Esta Lei autoriza,
especificamente em seu artigo 5º, o uso em pesquisas científicas de embriões
gerados em clínicas de fertilização in vitro e congelados há mais de três anos,
a partir daquela data, ou aqueles sem qualidade de serem implantados no
útero, em pesquisas científicas:
Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização
de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos
produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no
respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I - sejam embriões inviáveis
II - sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na
data da publicação des ta Lei, ou que, já congelados na data
da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos,
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contados a partir da data de congelamento
§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos
genitores.
§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem
pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas
deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos
respectivos comitês de ética em pesquisas.
§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a que
se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no
art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.
Redigida com uma linguagem imprecisa, confusa, ambígua, e de
valor semântico demasiadamente amplo, a lei mescla temas extremamente
relevantes, polêmicos, controversos, visto que ao mesmo tempo em que permite
o uso de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia, veda no
seu artigo 6º desta mesma lei, a clonagem terapêutica (transferência nuclear
de uma célula adulta para um óvulo com finalidade de se obter células-tronco
embrionárias) ou reprodutiva (transferência nuclear de uma célula adulta
para um óvulo com o objetivo de gerar um indivíduo adulto geneticamente
igual ao doador da célula adulta) (REHEN; PAULSEN, 2007).
Com a publicação desta lei reascenderam-se os debates que circundam
o tema, posto que uma parte da população brasileira, tendo forte apoio da
religião Católica, reafirmou suas considerações sobre a inconstitucionalidade
dessa lei, uma vez que acreditam que a utilização de células-tronco embrionária
consiste em uma violação da vida e da dignidade humana.
Em contraposição, outra parte da sociedade, em sua maioria composta
pela sociedade científica, aprova a edição desta lei, uma vez que acredita que
o início da vida não se dá com a concepção e sim com a formação do sistema
nervoso (atividade cerebral), sendo que o mesmo ainda não se encontra
formado nas células-tronco embrionárias utilizadas para pesquisas.
Frente a tantos debates, ainda no ano de 2005, o ex-Procurador Geral
da República, Cláudio Fonteles moveu uma ação de inconstitucionalidade
(ADIN nº 3510) fundamentando que a lei de Biossegurança não observa “a
inviolabilidade do direito à vida, porque o embrião humano é vida humana,
e faz ruir o fundamento maior do Estado democrático de direito”. (Ação de
inconstitucionalidade nº 3510 de 2005).
A discussão culminou com a realização da primeira Audiência Pública da
história do Supremo Tribunal Federal, que reuniu em Brasília, 22 especialistas
para apresentar suas opiniões sobre o momento de início da vida. (REHEN;
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PAULSEN, 2007, p. 64).
Essa audiência teve como finalidade a formação de um juízo técnico
sobre o que é a vida, já que esse conceito não se encontra de forma clara na
Constituição Federal de 1988, para assim reunir informações cientificas para
julgar o processo, porem ate os dias de hoje não se conseguiu estabelecer o
inicio da vida humana.
Enquanto isso, a o julgamento da Ação de Inconstitucionalidade, se
encontrava suspenso, sendo que só voltou a ser julgada no ano de 2008.
Em Março de 2008, foi à julgamento a constitucionalidade das pesquisas
com células-tronco embrionárias, porém esse julgamento foi suspenso
novamente, sendo assim adiado, por causa de um pedido de vista do ministro
Carlos Alberto Menezes Direito, que solicitou mais tempo para estudar o tema.
Entretanto, nos dias 28 e 29 de Maio de 2008, foi decidido por 6 votos a 5,
que o artigo 5º de Lei de Biossegurança configura-se constitucional, liberando
por fim, a utilização de células-tronco embrionárias em estudos, conforme
prevê esta Lei, sendo que desta forma colocou-se fim à um embate judicial
que perdurava há três anos.
Os cinco ministros vencidos liberaram os estudos, entretanto sugeriram
diferentes restrições, sendo que algumas delas poderiam comprometer
as pesquisas, isso conforme cientistas. Nenhuma delas, no entanto, foi
referendada. (FORMENTI, 2008, p.A19)
No que diz respeito ao princípio da vida, nada foi definido no julgamento
do Supremo, não se chegando a uma exata definição de quando se inicia a
vida. Diante disto, os ministros restringiram-se apenas a concluir que a
atual Constituição Brasileira não garante ao embrião humano mantido em
laboratório a garantia da inviolabilidade à vida e à dignidade.
Passando brevemente pelo conceito de células-tronco e pela legislação
que a regulamenta, dá-se início à analise das entrevistas, objeto de pesquisa
do presente trabalho.
4. ANÁLISE DAS ENTREVISTAS
Durante as entrevistas o que mais se percebeu, e que depois, na análise
das entrevistas se confirmou, foi a falta de conhecimento sobre um assunto
tão polêmico e tão pautado na mídia, muita insegurança, e um pouco de
nervosismo. Também foi percebido que os discursos eram sempre muito
influenciados pelo dogmatismo, por um pensamento dogmático.
Porém, acredita-se que a maior dificuldade da investigadora, foi manterse calada, ou seja, não fazer nenhum tipo de afirmações, não poder concordar
ou discordar com o informante, não fazer juízos de valor, enfim, a investigadora
teve que se conter, o que não foi nada fácil, porém o que era necessário, pois
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caso contrário estaria interferindo nos discursos e na espontaneidade de seu
informante, o que impediria a condução das entrevistas, conforme o método
adotado estabelece.
Entretanto, as entrevistas aconteceram da melhor forma, e isso trouxe
ótimos resultados para esse trabalho. Esses resultados proporcionaram não só
a possibilidade de descrever os fenômenos sociais, mas também de explicálos, interpretá-los e compreendê-los em sua totalidade.
Com esta pesquisa foi possível obter quatro resultados, sendo que o
primeiro deles foi a falta de conhecimento perante um assunto tão pautado
pela mídia e tão importante para a medicina como a utilização de célulastronco embrionárias.
Dessa forma, é possível notar que há uma grande distância entre o
discurso científico e a opinião geral, o senso comum, uma vez que mesmo com
a importância do tema, o esclarecimento visivelmente é baixo, ou ao mesmo
tempo não permeia a esfera social.
Por muitas vezes era notável a insegurança do informante frente a certas
perguntas, chegando até mesmo a recusar-se em responder, como aconteceu
com o informante H, quando perguntado à ele o que entendia sobre Bioética:
Bioética? não sei.
Ou ao informante X perante a mesma pergunta:
Sim, olha é...eu vou ser bem sincero pra você. Nós iríamos
fazer um curso, um curso, mas eu...estava tudo certo para eu
fazer, mas não foi possível chegar até lá, então eu prefiro não
dizer nada.
Também houve algumas contradições em certas afirmativas, o que causou
muita confusão na resposta, como ocorreu com o informante W, quando
perguntado o que ele entendia sobre célula-tronco, sendo que inicialmente
recusou-se a responder, “Aí, eu não saberia te responder agora”, porém que
em seguida tentou explicar o que entendia sobre células-tronco:
Não sei o que que eu entendo por célula-tronco. Bom, célula-tronco vem
do embrião, né, que a pesquisa tá mostrando que vai dá resultados na cura de
certas doenças, entendeu?... então eles dizem que a célula-tronco é tirada do
feto... pode ser né?... ou após o parto, então eu acho que se der resultado, tudo
bem, eu entendo isso, é um sangue...não sei o que é ...sinceramente não sei te
explicar.
Isso aconteceu pelo fato de não saber ao certo o conceito, não
ter fundamentos teóricos e científicos suficientes, ou seja, não ter um
aprofundamento no assunto, entretanto já ter escutado algo sobre isso, mas
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que não foi dada a devida atenção para se ter uma resposta plausível frente
à pergunta. Dessa maneira o informante com base em precárias informações,
utilizando-se do senso comum, influenciado por sua cultura e sua crença,
tenta responder o que lhe fora perguntado.
Aconteceu isso com a maioria dos informantes desta pesquisa, muitos
deles já tinham ouvido falar do tema, porém foram informações passageiras,
pois não tinham nessas, um aprofundamento. Também foi explanado diversas
vezes que as principais fontes de informações eram advindas da mídia, sendo
que esta informa, mas informa mal.
Tanto a mídia como a religião, valem-se de suas posições de formadores
de opinião para exaltarem seus próprios valores, seus interesses e esses
muitas vezes não tem o conhecimento adequado para repassar qualquer tipo
de informação aos seus seguidores.
Com base nas entrevistas, conclui-se que a falta de informação sobre o
tema abordado é o grande empecilho para a formação de opiniões concretas
e definitivas, sendo essas fortemente susceptíveis à influência de toda uma
cultura em sua complexidade.
O segundo resultado foi perceber a forte influencia do pensamento
dogmático no discurso dos informantes, como nos mostra a resposta do
informante X quando perguntado sobre seu entendimento por células-tronco
embrionárias:
Olha, eu entendo o seguinte, toda pesquisa científica é em torno
dessa célula-tronco embrionária, então o que vai acontecer...
essa célula poderá ser destruída. Ela pode ser destruída, vai
destruir essa célula, então destruindo esta célula fere a ética
Cristã, que fere a dignidade de vida do ser humano.
Ainda conforme Garrafa e Pessini (2003), para as pessoas que tem fé
o impacto que os novos desenvolvimentos científicos e médicos implicam
não podem ser abordados sem o amparo dos preceitos teológicos, esses
fundamentais uma vez que dizem respeito à natureza humana perante a
posição de Deus e do seu papel na criação dos homens.
Para essas pessoas a pesquisa com células-tronco embrionárias se
resume na expressão “brincar de Deus” que veio a ser usada como abreviatura
da preocupação com a impropriedade de ações humanas que alterem a
constituição de outros organismos vivos e isso equivale à usurpação da
prerrogativa criadora de Deus (HANSEN; SCHOTSMANS; 2003).
Ainda sobre o discurso do mesmo informante, quando questionado
quais os benefícios e quais os malefícios que ele acredita que a permissão para
a utilização de células-tronco embrionárias pode trazer para a sociedade:
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Não acredito que essa permissão traga benefícios. Não se tem
como ter benefícios quando a gente permite que se possa tirar
a vida de alguém, nem mesmo que seja em benefício de outra
pessoa.
Como eu já te disse, quem decide sobre o momento que a pessoa irá
morrer é somente Deus e ninguém mais. Ninguém tem esse direito, apenas
Deus.
Portanto, é perceptível nesses discursos a importância de que deve
haver, antes de iniciada qualquer tipo de pesquisa, uma revisão dos preceitos
católicos, teológicos, uma vez que são esses preceitos fundamentais que
podem limitar toda pesquisa que envolva a vida de um ser humano, uma vez
que, segundo defendem somente Deus tem o poder de decidir sobre o início e
o término da vida.
Entretanto, a cultura da sociedade, de um modo geral, é constituída a
partir da Igreja, do senso comum e da ciência, e isso mistura o dogmatismo
de cada indivíduo com sua formação, o seu conhecimento frente assuntos de
grande importância e seu modo de pensar sobre esses assuntos, ou seja, o seu
senso comum.
Torna-se nítido nos discursos acima transcritos, que há uma percepção
interdisciplinar na fala de cada informante, ou seja, são discursos influenciados
por uma série de informações, retirados dos inúmeros meios, como da formação
religiosa, da cultura, do meio que se vive, da quantidade de conhecimento, a
valorização particular de cada um à um certo dogma, do interesse ao tema,
sendo que todas essas informações se complementam pelo do senso comum
de cada um desses indivíduos.
Essa seria a resposta mais plausível quando no decorrer das entrevistas
a investigadora deparou-se com discursos totalmente diferentes, e também
com um mesmo discurso amparado por uma diversidade de segmentos, como
se nota na fala do informante Z, quando questionado sobre qual o momento
inicial da vida, ou seja, quando se inicia a vida:
Acho que a partir da fecundação, já se tenha uma vida,
mas só a partir da fecundação dentro do corpo da mulher,
sendo que esse feto tenha a oportunidade de se desenvolver
naturalmente.
Acho que a partir do momento que você, faz uma fertilização
em laboratório, uma fecundação e aquela fecundação vai
gerar um feto que não irá vingar, um feto que ainda não
desenvolveu o seu sistema nervoso, aí eu não acho que tem
vida.
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Você sabe que a morte se dá com a morte encefálica né...então
a vida se dá com o nascimento desse sistema nervoso.
Acho que Deus nos fez naturalmente, ou seja, não foi por
fertilização in vitro que Deus fez o homem, foi da forma mais
natural possível, sendo que foi dentro do corpo materno,
então hoje a vida só é possível, para muitos casais terem filhos,
por causa dos avanços das pesquisas, então o momento exato
quando se tem uma fecundação normal é que se tem vida a
partir daí, a vida, agora quando é por meio desses avanços
que se tem uma vida, a vida se inicia com o nascimento,
vamos dizer assim, do sistema nervoso, porque da mesma
forma que o homem determinou que a vida se daria com a
morte do cérebro, assim o homem determina o inicio da vida,
diferentemente da naturalidade que seria se não houvesse
avanços, não sei se deu pra entender...
Só pra concluir isso, eu divido a forma de vida natural e a in vitro, para
mim cada um tem um inicio tudo conforme a intervenção do homem.
É visível que no discurso acima, há uma mistura dos diversos meios
de informações, sendo que para conceituar, ou para entrar em um consenso
sobre o início da vida, o informante se utiliza de termos científicos, religiosos,
morais e do senso comum.
Portanto, conclui-se que o pensamento dogmático está presente em
todos os discursos dos informantes desta pesquisa, e assim como já enfatizado
no segundo capítulo deste trabalho, a falta de informação cumulada com a
forte influência do dogmatismo, da crença e da cultura (sendo que a cultura
consiste, de acordo com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, um direito à participação na vida cultural e ao desfrute do
processo científico) levam a população a um entendimento diverso do real,
percebendo-se isso mediante um discurso interdisciplinar.
O terceiro resultado consiste em uma visível violação ao direito que
todo e qualquer cidadão tem de receber informações fidedignas, o Direito de
informação.
A sociedade em sua maioria recebe informações segundo o repasse das
mesmas, sendo o meio mais utilizado, a mídia, isso é confirmado nos discursos
da maioria dos informantes desta pesquisa, sendo que perante a pergunta
sobre quais são as principais fontes de informações sobre temas como célulastronco, engenharia genética, Bioética, clonagem, entre outros, a resposta do
informante Y foi:
Eu tiro de revistas, revistas médicas, também de revistas
cientificas e também dos livros de Bioética.
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Nós temos livros muito atualizados que procuram, que estudam né, o que
acontece dentro dos hospitais, das universidades, então a gente busca essas
informações aí, também na internet que é um meio de veículo de comunicação.
K:
Assim como as respostas a mesma pergunta, fornecidas pelo informante
É mais a partir do que a televisão retrata, porque eu acho
que a televisão, ela pauta os nossos assuntos diários, ela que
nos faz pensar, ela que nos leva, a partir do momento que
a televisão enfoca tal assunto ela te leva a pesquisar em um
livro, a pesquisar na internet, ela te leva a refletir sobre isso.
Do informante X:
Jornal e televisão sim.
Percebe-se dessa maneira, que o principal meio de informação é a mídia
por meio da televisão, dos jornais, das revistas e da internet.
A mídia, no entanto, informa porem informa mal, uma vez que todas as
informações passam pelo crivo dos jornalistas.
Confirma-se a afirmação acima, quando foi escolhido como informantes,
jornalistas, com o intuito de analisar o conhecimento dos mesmos sobre o
assunto e de onde essas informações são retiradas, sendo que o que ficou
evidenciado novamente foi o repasse de informações.
O repasse de informações modifica a estrutura da informação, sua
veracidade, posto que além de serem informações não buscadas em sua fonte,
são pautadas por opiniões de quem as escreve, portanto a informação fruto
desse repasse é considerada ilegítima.
No âmbito da saúde é que se percebe mais claramente esta violação,
posto que o Estado, mesmo tendo o dever de fornecer informações em sua
essência, macula este dever sob o argumento de preservação da ordem, para
não se causar alarde, e dessa forma não informa o cidadão sobre a real situação
da saúde no pais.
Para tanto, com o objetivo de garantir o acesso à informação de qualidade
à população, é necessário, que as autoridades e técnicos da área de saúde se
disponham a assumir uma postura efetivamente democrática, preocupando-se
com a divulgação dos fatos, mas, também, com a comunicação de informações
completas, corretas, fiéis à sua essência.
Por fim, o ultimo resultado foi também uma violação ao Direito a Saúde,
como se comprova perante a insatisfação da maioria dos informantes quando
perguntado aos mesmos sobre a situação da saúde no Brasil.
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Informante Q:
Ah, eu acho que o Brasil assim mesmo como país, como nação
tem muitos problemas e eu acho que a saúde e a educação
são os maiores deles assim sabe; eu acho que a saúde é um
direito da população e é o que a gente vê que não tem né, acho
que ninguém vai discordar disso, desse descaso que a gente
vê as autoridades dando à saúde, então não tem vaga em
hospital, não tem hospital, não tem profissionais qualificados
pra atender a população, então eu acho que o tratamento é
péssimo.
Informante K:
Olha eu acredito que em relação à política, há um grande
descaso dos nossos governantes em relação à saúde. A saúde
é deixada em segundo, terceiro, quarto plano, a saúde pública
tá um caos; nós sabemos isso, em qualquer âmbito, âmbito
municipal, estadual e federal há um grande...é uma grande
preocupação mesmo o quesito da saúde na sociedade. Eu
acredito que deveria haver maior preocupação e maior
empenho dos políticos em melhorar, em dá uma melhor
estrutura pra saúde pública no país.
Em relação à ciência, eu acho que a ciência avança sempre porque há
investimentos, há dinheiro e há interesse em que a ciência avance cada vez
mais pra melhorar a saúde. E em relação ao jurídico, ao tratamento jurídico,
eu acho que, a sensação que eu tenho é que há uma certa enrolação também;
sempre que vai pra área jurídica, é tudo sempre muito enrolado, tudo sempre
complicado, sempre muito burocrático.
Informante W:
Fraco, tá muito a desejar, por que eu acho que não só depende
dos políticos, depende também das pessoas em geral né...
da maneira que se trata e depende da localidade. Aqui em
Dourado, por exemplo, não sei como é que está, mas eu acho
que tá tudo muito difícil, tudo muito caro, tudo muito...as
pessoas deixam as coisas ficarem difíceis. Mesmo que você
vá até o SUS, você tem que fazer fila, você paga um convênio,
você tem fila, então é tudo complicado
Quer dizer, que não é o dinheiro que faz com que melhore, a
não ser que tenha muito dinheiro
Aí melhora de uma vez
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Por fim,o informante H:
É péssima, acho que a saúde e a educação estam de mãos
dadas em muito descaso, em muita....acho que se a pessoa
não tem condições, não tem dinheiro, ela não tem nada,
principalmente sabe.
Até para quem tem poder aquisitivo tá muito difícil, porque
eu acho a saúde assim nota baixíssima em relação ao governo,
ao Brasil, enfim acho que eles dão muito pouca atenção à isso.
A saúde está garantida na Constituição Federal de 1988 em seu artigo
196, como um direito inerente a todos os cidadãos assim como um dever do
Estado.
Art. 196- A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem
à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso
universal igualitário às ações e serviços para a sua promoção,
proteção e recuperação.
O direito a saúde do cidadão é um dever do Estado, uma vez que é a
sociedade que financia a saúde no Brasil, por meio de tributos.
Porém, para que o direito à saúde seja uma realidade, é preciso que
o Estado crie condições de atendimento em postos de saúde, hospitais,
programas de prevenção, medicamentos, etc, e, além disso, é preciso que este
atendimento seja universal (atingindo a todos os que precisam) e integral,
ou seja, deve garantir que qualquer necessidade do individuo seja satisfeita
de forma plena, e para esta finalidade foi criado o SUS (sistema Único de
Saúde), ou seja, para oferecer um atendimento satisfatório à população, com
a realização de ações assistenciais e de atividades preventivas, contando com
instalações adequadas, inclusive que ofereça todos os tipos de tratamento a
todas as doenças existentes.
Mas além disso, em busca desta melhora, é preciso atentar-se a três
condições fundamentais, sendo que a primeira é o combate à corrupção, a
segunda é ter por foco as precondições não-médicas da saúde e da vida, como
água limpa, alimento e abrigo, e por último é a educação e a promoção da
alfabetização para a saúde, sendo que há aqui ênfase excessiva da política de
assistência médica, porém uma grande negligência ao fato da cultura e da
sociedade terem obrigação de fornecer adequados instrumentos de informação
e de educação para que se atinja altos níveis no cuidado com a saúde.
A alfabetização dos cidadãos leigos no tocante à saúde pode transpor a
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distância entre a classe de elite de provedores de cuidados médicos e o resto da
população que é mantida ignorante frente às questões e alternativas médicas.
A infeliz situação em que o conhecimento dos cuidados de saúde
básicos é mantido como conhecimento privilegiado constitui uma grande
injustiça aos que são mantidos vulneráveis e exploráveis. É um direito civil
a desprofissionalização de amplas áreas de conhecimento privilegiado dos
cuidados de saúde, bem como tornar esse conhecimento disponível para todos
(SASS, 2003, p.82).
As políticas e a ética da saúde ainda têm que reconhecer o direito básico
de cuidar da saúde e propiciar instrumentos de serviços para pôr em prática,
apoiar e proteger tal direito.
Só depois disso as intervenções curativas assumem importância no
cenário precário do direito à saúde.
Enfim, é urgente a implantação de políticas públicas voltadas à supressão
do desconhecimento da população frente assuntos e direitos fundamentais,
uma vez que só assim que iniciaremos o combate as maiores causas do
desinteresse e da falta de informação da sociedade.
O nosso primeiro passo para o progresso na saúde assim como
consequentemente em outras áreas, perante um problema tão complexo,
é viabilizar o mínimo das garantias constitucionais inerentes ao homem
de forma plena, ou seja, disponibilizar à população o direito à informação
íntegra e mostrar à sociedade a necessidade e o benefício que terão quando
os mesmos deixarem de ser leigos em assuntos tão importantes à suas vidas,
como o direito à saúde,que envolve diretamente o direito à vida.
5. CONCLUSÕES
Conclui-se neste trabalho, que o uso de células-tronco embrionárias
suscita um rol das mais diversas questões, ou seja, assim como os dilemas sobre
a existência de uma suposta vida residente nessas células, também aborda
questões sobre as garantias e disponibilidade dos direitos fundamentais.
A partir do momento que a sociedade depara-se com assuntos dessa
complexidade, nos torna visível, por meio de uma análise de discurso, suas
inúmeras carências, como a falta de informação, uma excessiva influência do
pensamento dogmático e uma estampada violação às garantias constitucionais.
De qualquer forma, é perceptível que sempre há uma violação à dignidade
da pessoa humana, porém não se fala nesta violação apenas diante de um
juízo técnico sobre o começo da vida, mas também quando não se garante de
forma plena o direito à saúde e à informação,
O Estado camufla essas violações por meio da desinformação da
sociedade frente a assuntos que versem sobre o direito à saúde, de modo que
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manter a população ignorante parece ser a garantia da ordem.
Essa desinformação leva à uma contrariedade da população frente
à assuntos que lhes poderão ser bons, uma vez que assim como a falta de
informação também tem-se a forte influência do pensamento dogmático,
pautado pelas mais diversas crenças e religiões.
Dessa forma, o juízo formado pela população leiga, sempre será carregado
por crenças, dogmas, cultura e principalmente pelo senso comum.
Entretanto, no último século, teóricos da filosofia moral apontaram
a necessidade do conhecimento técnico para se tomar decisões morais,
diferentemente das éticas tradicionais que fundavam-se nos discursos
valorativos apenas.
No caso dos temas ligados a engenharia genética em geral e especificamente
aqui no caso do uso de células tronco, mais que uma simples decisão técnica
ou legal por parte do estado em permitir ou não os “avanços científicos”,
estamos diante de algumas decisões morais e que não dependem apenas de
juízos valorativos para sua resolução, mas também de conhecimento técnico.
Em conseqüência disso, o estabelecimento de uma legislação que verse
sobre o tema, é complicado, e isso se comprova segundo uma pesquisa sobre
todo o trâmite percorrido, assim como todas as dificuldades enfrentadas pela
sociedade, em sua totalidade, perante o estabelecimento da atual legislação
que aborda a utilização de células-tronco embrionárias.
Não só se encontrou dificuldades decorrentes da falta de informação,
nos discursos de pessoas comuns, mas também nos discursos de pessoas
instruídas, sendo que foi necessário promover uma audiência pública para
formar um juízo técnico sobre o início da vida, assim como para esclarecer
muitos tópicos científicos desconhecidos pela maioria dos ministros.
Assim, percebe-se que até mesmo a Suprema Corte, teve a necessidade
de recorrer a um conhecimento técnico sobre o assunto, o que leva a concluirse que não apenas uma parte da sociedade é desinformada frente à questões
científicas, mas a população em sua integralidade, salvo técnicos no assunto.
Portanto, o direito à informação deve ser garantido pelo Estado, uma
vez que é a partir de informações técnicas e verdadeiras que conseguimos
a conscientização de toda a sociedade sobre determinado caso, determinado
problema.
Na garantia à informação fidedigna, decorre a preservação do direito à
saúde, posto que o direito à saúde como um direito fundamental, tem como
conteúdo não só a prevenção de doenças ou cura, mas ele deve estar ligado
à informação, à alfabetização da população leiga em assuntos sobre a saúde.
Em síntese, essa informação não pode depender exclusivamente da
mídia, uma vez que a mídia é apenas o instrumento de informação, sendo
assim, depende também do Estado, pois este tem o dever de garantir os direitos
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constitucionais inerentes a todo e qualquer cidadão, o que na realidade não
acontece.
Por isso é fundamental enfatizar a necessidade de políticas públicas, assim
como campanhas, congressos, maior preparo das pessoas que trabalham na
área da saúde, assim como na área da informação, ou seja, tudo isso voltado à
uma informação geral e ìntegra do assunto, o que permita um maior interesse
da população sobre assuntos bioéticos, uma vez que esses podem modificar
suas vidas.
Assim, o direito a saúde deve envolver políticas públicas que garantam a
informação e a problematização dos temas de forma ampla. Não é mantendo
a população na ignorância que se poderá progredir, pois não há progresso
quando falta preparo, informação e garantia aos direitos fundamentais dos
cidadãos.
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TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São
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CORRELAÇÃO ENTRE IMPUTAÇÃO,
SENTENÇA E NULIDADE
HERÁCLITO A. MOSSIN1
Sumário
1 - Correlação; 2 - Correlação e sentença condenatória; 3 - Correlação e
pronúncia; 4 - Considerações Finais.
1. CORRELAÇÃO
Etimologicamente,correlação implica correspondência2. No que tange á
matéria cuidada, o seu objeto cardeal é exatamente procurar estabelecer qual
é a relação mútua entre a denúncia e queixa e a sentença condenatória e de
pronúncia.
Como é cediço, nas peças postulatórias precitadas (petição inicial no
crime) é imputado um fato típico ao acusado, ou seja, uma conduta positiva ou
negativa que encontra moldura na norma penal sancionatária. É exatamente
em torno dessa imputação que o sujeito passivo da relação jurídico-processual
promove sua defesa.
Em circunstâncias desse matiz, tendo em vista a acusação, a defesa que
lhe é conseqüente, bem como a decisão que lhe é posterior, é imprescindível
se estabelecer qual é a correspondência entre esse três elementos de caráter
processual, não só do ponto de vista do direito processual penal, bem como
sob a égide da Magna Carta da República.
Em princípio, cumpre ao magistrado decidir conforme aquilo que lhe foi
postulado. Não pode ele, decidir nem extra ou ultra petita, posto que assim o
fazendo estará ele violando o direito da ampla defesa e do contraditório, que
tem garantia de fundo constitucional.
Por outro lado, se o juiz deve julgar no limite do pedido a ele feito,
qualquer alteração, principalmente a mais, ofende o princípio da inércia do
poder de julgar: ne procedat iudex ex officio.
No campo das nulidades, se houver a ausência de correspondência entre
a imputação e a sentença, essa será imprestável, não gerará nenhuma eficácia.
Feitas estas considerações preliminares, cumpre agora examinar a
correção entre a sentença condenatória e a de pronúncia.
Advogado. Professor de processo penal da Universidade de Ribeirão Preto -Membro das
Academias Ribeirãopretana de Letras Jurídicas e Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM).
2
Código de processo penal interpretado. 11. ed. São Paulo : Atlas, 2003. p. 979.
1
126
Revista Jurídica FACULDADES COC
2. CORRELAÇÃO E SENTENÇA CONDENATÓRIA
A correção somente ostenta aplicabilidade com a sentença
condenatória,não alcançando em seu bojo a absolutória.
Seguindo as pegadas anteriormente traçadas, o fato imputado demarca,
traça o perímetro em que pode incidir a sentença condenatória. Logo, o
magistrado somente pode julgar o pedido contido na denúncia ou queixa
com base no fato que nela se encontra descrito. Não pode o juiz, advirta-se,
julgar extra ou ultra petita, porquanto sua decisão estaria abrangendo fato em
relação ao qual o acusado não exerceu a plenitude de sua defesa, uma vez
que relativamente a ele não houve imputação, não houve descrição na peça
postulatória pública ou privada. Ademais, se houver decisão relativamente
à circunstância fática não atribuída ao réu na inicial criminal, também estará
o magistrado maculando o princípio do ne procedat iudex ex officio, inerente à
jurisdição e que também se eleva à categoria de corolário do sistema acusatório
adotado pela legislação processual penal pátria.
E, como se isso não bastasse, em função do princípio da correlação, o
magistrado encarregado do ius dicere não pode também julgar o réu por fato
mais grave (in peius).
Ocorrendo pronunciamento jurisdicional que não se mostra compatível
com a narração contida na denúncia ou queixa, a conseqüência de ordem
processual imediata é a nulidade absoluta da sentença, como aliás, já se
exortou preteritamente.
Com efeito, não discrepa do que restou assentado o magistério provindo
de Julio Fabbrini Mirabete, ao afirmar que a correlação entre a imputação e a
sentença representa uma das mais relevantes garantias do direito de defesa e
qualquer distorção, sem observância dos dispositivos legais cabíveis, acarreta
a nulidade da decisão3.
A jurisprudência, da mesma forma, tem se inclinado à imprestabilidade
do pronunciamento jurisdicional quando houver a inexistência da correlação
entre imputação e condenação4.
No âmbito da matéria abordada, para efeito de esclarecimento e melhor
compreensão em torno dela, necessário se torna enfocá-la diante dos princípios
do iura novit curia, do narra mihi factum dabo tibi ius ou da livre dicção do direito
(emendatio libelli), que se encontra inserido no art. 383 do Código de Processo
Penal e da mutatio libelli, que está vertido no art. 384,caput, do precitado
diploma legal.
Nota-se pelo conteúdo normativo do art. 383 do Código de Processo
JTACRESP 76/271, RJDTACRIM 2/159.
MOSSIN, Heráclito Antônio. Júri : crimes e processo. 3. ed. Rio de janeiro : Forense, 2009. p.
267.
3
4
Revista Jurídica FACULDADES COC
127
Penal, que cumpre ao juiz, quando da sentença,sem modificar a descrição do
fato contida na denúncia ou queixa, dar a classificação definitiva do crime,
embora possa com isto aplicar pena mais grave do que aquela que seria
imposta tendo em vista a adequação típica apontada na peça acusatória.
Por intermédio desse regramento legal, conclui-se que a figura penal
apontada pelo órgão acusatório público ou privado na peça postulatória que
se torna obrigatória, porquanto sem tipicidade não pode haver persecução
criminal, é plenamente provisória, podendo ser emendada, corrigida pelo
magistrado quando da prolação do pronunciamento jurisdicional. Isso porque,
em última análise, a ele cumpre aplicar o direito: narra mihi factum dabo tibi ius
(narra a mim o fato e te darei o direito).
Posto em poucas palavras o princípio do iura novit curia, convém observar
que sua aplicabilidade em nada interfere no princípio da correlação entre a
imputação e a sentença, uma vez que o fato contido na denúncia ou na queixa
além de se manter íntegro, não é alterado na sentença; não há julgamento extra,
ultra petita ou in peius. Há, simplesmente, correção quanto a adequação típica
indicada na peça acusatória, que não se ajusta à imputação.
Ademais, imprescindível se torna deixar patenteado, que o acusado
nenhum prejuízo sofre no que pertine à sua ampla defesa quando houver
mudança de classificação do fato punível, uma vez que ele se defende da
imputação (fato típico) e não da adequação do delito apontada na inicial penal.
Em se cuidando da mutatio libelli (mudança da imputação), cujos traços
normativos se mostram patenteados no art. 384, caput, do Código de Processo
Penal, a matéria deve ser analisada em ótica bem diversa relativamente à
emendatio libelli.
Na situação normativa versada,quando do encerramento da instrução,
verificase, tendo em vista a prova existente nos autos,a presença de elementos
ou circunstâncias da infração penal não contida na acusação pública ou
privada (queixa supletiva).
Portanto, centrando o raciocínio no campo da matéria abordada, as novas
provas arrostadas nos autos no correr da instrução probatória, conduzem à
mudança da imputação; à alteração da descrição fática.
Em outras palavras, por ocasião da coleta de provas, surgirá circunstância
elementar (fato) que não se encontra vertida na denúncia ou queixa supletiva,
capaz de alterar a classificação do delito.
A circunstância elementar (essentialis delicti) tem sentido amplo, podendo
indicar nova figura penal. No seu contexto também se incluem as causas de
aumento ou diminuição da pena (agravante, privilégio, qualificadora), porque
correspondem à mudança do delito de um preceito para outro, alterando o
tipo fundamental.
Verifica-se, portanto, que há uma diferença jurídica bastante significativa
128
Revista Jurídica FACULDADES COC
entre a emendatio libelli (correção da capitulação do delito) e a mutatio libelli
(mudança da imputação) implicativa do surgimento de outra figura delitiva.
Pontilhados os traços básicos do instituto objeto de considerações, cumpre
cotejá-lo diante da correlação entre a imputação e a sentença condenatória.
Na esteira do que restou ponderado precedentemente, por ocasião da
sentença condenatória o magistrado deve observar a correspondência predita,
sob pena deste ato jurisdicional básico ser eivado de nulidade.
Como ficou bastante claro, na mutatio libelli surgirá um novo fato, nova
imputação, que não se encontra no bojo da denúncia ou queixa supletiva. Nessa
ordem de consideração, como o acusado se defende da imputação irrogada
na peça acusatória, o magistrado não poderá de imediato julgar a pretensão
punitiva condenando-o sem que lhe dê a oportunidade de nova defesa. Se
isso ocorrer, ex abundandia, a nulidade da sentença será manifesta, posto que
transgride e macula princípio constitucional afeto ao devido processo legal.
Diante disso, cumpre ao magistrado baixar os autos para que o membro
do Ministério Público, no prazo de cinco dias, faça o adiamento á denúncia
ou à queixa subsidiária, nela fazendo inserir a nova imputação surgida
quando da coleta da prova judicial, oportunidade em que poderá arrolar até
3 testemunhas.
Tendo sido feito o aditamento, a defesa será intimada para, no prazo
de cinco dias, manifestar sobre a nova imputação, bem como arrolar também
testemunhas em número igual ao da acusação.
Tendo sido admitido o aditamento, o magistrado designará audiência de
instrução e julgamento, oportunidade em que serão ouvidas as testemunhas
arroladas pelas partes, interrogatório do acusado, debates e julgamento,
conforme determina o § 2º, do art. 384 do Código de Processo Penal.
Se, eventualmente, o novo fato surgido na instrução constituir infração
penal de menor potencial ofensivo, deve-se aplicar o rito estabelecido para o
juizado especial criminal (Lei n. 9.099/95);bem como, se for o caso, a adoção
da suspensão condicional do processo (art. 89, da lei n. 9.099/95).
3. CORRELAÇÃO E PRONÚNCIA
Diferentemente do que acontece com a sentença condenatória, a
sentença de pronúncia tem por escopo determinar que o réu seja submetido
a julgamento pelo seu juízo natural que é o tribunal do júri. (art. 413 CPP).
Cuidase de decisão processual de cunho não terminativo, posto que permite
que o procedimento do júri chegue a seu final que é exatamente a solução do
conflito intersubjetivo de interesses pela magistratura popular.
Diante de tais considerações introdutórias, cumpre agora passar a
fazer analisa jurídica para que se conclua sobre o tema sob enfoque que é a
Revista Jurídica FACULDADES COC
129
correspondência entre a pronúncia e a imputação contida na denúncia ou na
queixa supletiva.
Na nova legislação atinente ao procedimento do júri, o legislador, de
maneira oportuna, no § 3º, do art. 411 do Código de Processo Penal, prevê a
aplicação do art. 384 do sobredito estatuto, que já foi objeto, quantum satis, de
considerações doutrinárias quando da dissertação posta no item anterior.
Por questão de equidade, já que o direito, sempre que possível deve ser
visto linearmente, o ponto de partida para se estudar a correspondência entre
a denúncia ou queixa supletiva, deve ser a mutatio libelli.
Para efeito de melhor esclarecimento, nos termos normativos expressos
no § 1º, do art. 413, do Código de Processo Penal, segundo o sistema da
legislação pátria de regência, o juiz da pronúncia ao prolatá-la, deve, de forma
definitiva classificar o crime, embora o pronunciado fique sujeito à pena mais
grave. Trata-se da emendatio libelli.
A exemplo do que ocorre com a sentença condenatória, a adequação
típica definitiva posta na decisão que declara que o réu deve ser submetido a
julgamento pelos seus pares, mesmo que contrarie a capitulação constante da
prefacial acusatória, não exerce nenhuma influência jurídica no princípio da
congruência, mesmo porque não houve alteração da imputação, o fato narrada
continua o mesmo.
Situação diversa ocorre em torno da mutatio libelli, tendo em linha de
consideração o que se encontra consubstanciado, conforme anteriormente
apontado, no § 3º, do art. 411, do Código de Processo Penal, que: “encerrada a
instrução probatória, observa-se, se for o caso, o art. 384 deste Código.”
Seguindo as diretrizes de matéria já precedentemente tratada, surgindo
fato novo no fluir da instrução judicial, que em última análise, altera a acusação,
cumpre ao Ministério Público fazer o indeclinável aditamento narrando a
nova imputação.
Enfocando de forma direta o assunto jurídico cuidado,
para um melhor aclaramento da hipótese sub examine, cita-se o seguinte
exemplo: o réu foi denunciado pelo delito-tipo de aborto provocado sem o
consentimento da gestante (art. 125, CP). Todavia no fluir da instrução resta
demonstrado que o aborto foi praticado com o consentimento da gestante (art.
126, CP)5.
Ainda,
se a denúncia ou queixa supletiva tiver descrito a imputação de homicídio
simples, e no transcorrer da instrução aparecer qualquer qualificadora dentre
aquelas arroladas no art. 121, § 2º, do Código Penal, o aditamento também
se impõe. Isso porque, a qualificadora, tendo em vista sua autonomia típica,
5
MOSSIN, heráclito Antônio. Idem, ibidem.
130
Revista Jurídica FACULDADES COC
imprime nova definição jurídica do homicídio6.
Em face do princípio da correlação, que se assenta basicamente na ampla
defesa e no contraditório, aliado que seja à proibição da decisão ultra petita e
a proibição de o magistrado provocar sua própria jurisdição (ne procedat iudex
ex officio), não pode o juiz pronunciante, surgindo na instrução judicial fato
novo que mude a classificação do crime ou que implique reconhecimento
de qualificadora, determinar que o réu seja submetido a julgamento pelo
tribunal do júri, sem que haja aditamento na prefacial pública ou privada,
possibilitando ao acusado exercer sua defesa relativamente às novas questões
fáticas.
A propósito do que está sendo discursado, “ora, em face do princípio
da ampla defesa e do contraditório, que inexoravelmente também encontra
aplicação nesta fase do procedimento do júri, a defesa não pode ser
surpreendida com o reconhecimento de qualificadora, quando não há
descrição fática a respeito contida na denúncia ou queixa-crime. A defesa
incide sobre a imputação vertida na postulação pública ou privada, não
podendo o magistrado extravasar seus limites, mesmo em se cuidando de
sentença de caráter processual. Permissa rogata venia, deve haver, sempre, a
devida correlação (princípio da congruência) entre pronúncia, denúncia ou
queixa.7”
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A propósito do que está sendo dissertado, observa-se no campo
pretoriano com incidência no Superior Tribunal de Justiça, que “é defeso ao
magistrado fundamentar a pronúncia com elementos que não constavam na
exordial acusatória em violação ao princípio da correlação da denúncia e a
pronúncia.8”
E, como se isso não bastasse, nos lindes do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo, “ao juiz não é dado pronunciar o acusado por fato estranho à
acusação, quer dizer, não mencionado na denúncia. É a imputação contida na
denúncia o que fixa o alcance da pronúncia. O juiz, para ir além, ao reconhecer
circunstância elementar não contida explícita ou implicitamente na peça
vestibular, deverá proceder na forma do art. 384 do CPP, dando oportunidade
ao acusado de defender-se da nova imputação.9”
No campo legal que está sendo objeto de exame, há também doutrina,
MOSSIN, Heráclito Antônio. Op. cit. p. 279.
STJ - REsp 70330/PR - 5ª T - Rel. Min. Laurita Vaz - DJe 07/04/2008. No mesmo sentido: RT
674/299; 692/380.
8
RT 691/310.
9
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. Paulo Rangel. 3. ed. Rio de Janeiro : Lúmen Júris,
2001. p.327-8.
6
7
Revista Jurídica FACULDADES COC
131
embasada no princípio da congruência lavrando inteligência no sentido de
que, “o que se quer evitar com este princípio é uma denúncia por homicídio
simples e pronúncia (sem aditamento à denúncia) por homicídio qualificado.
Ou seja, desconformidade entre o que se pediu e o que foi concedido. É cediço
que no processo, o juiz não pode decidir a lide fora dos limites em que foi
proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo
respeito a lei exige iniciativa da parte (cf. art. 128 do CPC), bem como proferir
sentença, a favor do réu de natureza diversa da pedida ou além do que se
pediu (art. 400 do CPC).”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL . Código de processo penal interpretado. 11. ed. São Paulo : Atlas,
2003. p. 979.
MOSSIN, Heráclito Antônio. Júri : crimes e processo. 3. ed. Rio de janeiro :
Forense, 2009. p. 267.
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. Paulo Rangel. 3. ed. Rio de Janeiro
: Lúmen Júris, 2001. p.327-8.
LEI COMPLEMENTAR N.º 123: A CAPACIDADE
POSTULATÓRIA DOS PROCURADORES
ESTADUAIS E O PACTO FEDERATIVO
WASHINGTON LUÍS BATISTA BARBOSA1
Resumen
O presente trabalho tem por objetivo principal analisar os impactos da
edição da Lei Complementar 123, principalmente no que diz respeito à
constitucionalidade do seu artigo 41 que atribui à Procuradoria Geral da
Fazenda a competência para inscrever em dívida ativa e cobrar os créditos
tributários do chamado SIMPLES Nacional, sendo estruturado da seguinte
forma: 1. Introdução; 2. Lei Complementar n.º123, de 14/12/2006; 3. Pacto
Federativo; 4. Capacidade Postulatória dos Procuradores Estaduais; 5. A
Posição do STF ao Longo dos Anos; 6. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo principal analisar os impactos
da edição da Lei Complementar 123, principalmente no que diz respeito à
constitucionalidade do seu artigo 41 que atribui à Procuradoria Geral da
Fazenda a competência para inscrever em dívida ativa e cobrar os créditos
tributários do chamado SIMPLES Nacional1.
O Cerne da questão que será analisado é acerca da usurpação da
competência constitucional dos Procuradores de Estado para defender os
interesses de sua unidade federada.
Para melhor compreender o tema, far-se-á primeiro a análise da referida
lei complementar, abordando o contexto sócio-político de sua edição.
Posteriormente, como não poderia deixar de ser, aprofundar-se-á na
discussão do pacto federativo da República Federativa do Brasil, sua evolução
e análise da situação atual, principalmente no que diz respeito às competências
tributárias e repartição de receitas.
Após esta, apresentar-se-á informações a respeito da capacidade
postulatória dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, tanto no que
diz respeito aos matizes constitucionais como seus direitos e deveres enquanto
advogados sujeitos à legislação específica.
Será trazido, ainda, para o bojo deste trabalho um breve relato sobre
das Ações Diretas de Incostitucionalidade que abordaram e abordam o tema
nos últimos anos, bem como serão analisadas as diversas posições de nosso
Tribunal Superior.
Especialista em Direito Público. Faculdade de Direito Processus. Assistente da Assessoria
Jurídica da Diretoria-Geral do Tribunal Superior do Trabalho, Ex Diretor Fiscal da Procuradoria
Geral do Governo do Distrito Federal.
1
134
Revista Jurídica FACULDADES COC
Por fim, será apresentada uma proposta de modelo de atuação para
inscrição e cobrança dos créditos tributários originados do SIMPLES Nacional.
2. LEI COMPLEMENTAR N.º 123, DE 14/12/2006
A Constituição de 1988, em seu artigo 179, ao tratar da ordem econômica
e financeira, principalmente em seu capítulo primeiro: “Dos Princípios Gerais
da Atividade Econômica”, estatuiu:
Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de
pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico
diferenciado, visando a incentiva-las pela simplificação de
suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias
e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio
de lei.
Trata-se de norma de eficácia limitada, de cunho programático, carecendo
de lei específica para que possua eficácia plena e possa produzir todos os
efeitos aos quais se propôs.
Não obstante, havia a Lei N.º 7.256/84, chamada de Estatuto da
Microempresa a qual estabelecia: “normas integrantes do Estatuto da
Microempresa, relativas ao tratamento diferenciado, simplificado e favorecido,
nos campos administrativo, tributário, previdenciário, trabalhista, creditício e
de desenvolvimento empresarial”.
O primeiro debate estaria na recepção ou não da lei supracitada pelo novo
ordenamento jurídico trazido pela Constituição de 1988. Ora, não há dúvidas
que a intenção do legislador constituinte se encontrava em congruência
com o preconizado pelo Estatuto da Microempresa, mais que isto se nos
apresenta claro que o desejado pelo Constituinte, principalmente aqueles
que representavam os microempresários, era trazer ao nível constitucional as
vitórias alcançadas com a edição do estatuto.
Foi então, e como não poderia ser diferente, que o Supremo Tribunal
Federal, ao analisar o Mandado de Injunção Coletivo N.º 73-5/94, declarou
que a Lei n.º 7.256/84, fora recepcionada pela Constituição de 1988 e estava
cumprindo com o mandamento do artigo 179 da CF, conforme transcrição
abaixo:
EMENTA: Mandado de Injunção Coletivo. Esta Corte tem
admitido o mandado de injunção coletivo. Precedentes
do Tribunal. Em Mandado de Injunção não é admissível
pedido de suspensão por inconstitucionalidade, de lei,
Revista Jurídica FACULDADES COC
135
por não ser ele o meio processual idôneo para a declaração
de inconstitucionalidade, em tese, de ato normativo.
Inexistência, no caso, de falta de regulamentação do artigo
179 da Constituição Federal, por permanecer em vigor a
Lei 7.256/84 que estabelece normas integrantes do Estatuto
da Microempresa, relativas ao tratamento diferenciado,
simplificado e favorecido, nos campos administrativo,
tributário, previdenciário, trabalhista, creditício e de
desenvolvimento empresarial. Mandado de Injunção não
conhecido. (STF, Ementário n.º 1772-1, DJ de 19.12.94).
(Grifou-se).
Para não pairar mais qualquer dúvida sobre o assunto, solucionando
todas as possíveis controvérsias, foram editadas as Leis 8.864/94 e a Lei
9.841/99, esta última revogando expressamente as Leis 7.256/84 e 8.864/94
e estatuindo o Estatuto da Micro- empresa e da Empresa de Pequeno Porte.
Muito embora toda a atividade legislativa mencionada acima, somente
com o advento da Lei 9.317/1996, o chamado Simples Federal, que a questão
do tratamento diferenciado para micro e pequenas empresas foi regulado no
âmbito federal.
O que se viu a partir de então foi um leque de dispositivos legais de
âmbito estadual e/ou municipal a regular as relações com as micro e pequenas
empresas. Dessa sorte em cada localidade seria possível um tipo de tratamento
diferente o que, com certeza, não foi nem é a intenção do preconizado no artigo
179 da CF.
A Emenda Constitucional 42/2003, ao alterar o artigo 146 da CF e incluir
o artigo 94 da ADCT, reservou a Lei Complementar a definição de tratamento
diferenciado e favorecido para microempresas e empresas de pequeno porte,
inclusive regimes especiais ou simplificados no caso de ICMS, Contribuições
Sociais e PIS.
Depois deste breve histórico pode-se falar da Lei Complementar
123/2006 que instituiu normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e
favorecido a ser dispensado à microempresa e empresa de pequeno porte no
âmbito dos poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Com
vigência a partir de 01/07/2007 esta Lei Complementar revogou as demais
leis que tratavam o tema, unificando nacionalmente a matéria.
O Chamado Simples Nacional inclui os seguintes impostos e contribuições:
a) IRPJ- Imposto de Renda da Pessoa Jurídica;
b) IPI - Imposto sobre Produtos Industrializados;
c) CSLL - Contribuição Social sobre Lucro Líquido;
d) COFINS - Contribuição Social para o Financiamento da
136
Revista Jurídica FACULDADES COC
Seguridade Social;
e) PIS/PASEP - Contribuição para Programa de Integração Social;
f) Contribuição para Seguridade Social “Patronal”;
g) ICMS - Imposto Sobre Circulação de Mercadoria e Sobre
Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal
e de Comunicações; e
h) ISS - Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza.
Na realidade, com o surgimento do SIMPLES Nacional, as empresas
optantes deixaram de ser obrigadas a contribuir com os demais tributos da
União, inclusive as contribuições para as entidades privadas de serviço social
e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical.
Não está no escopo do presente artigo analisar o SIMPLES Nacional ou
mesmo o tratamento diferenciado dado às micro e pequenas empresas, este
tema deverá ser objeto de um outro estudo. Fez-se necessária esta digressão
para que o leitor fosse contextualizado acerca do ambiente sócio-político e,
principalmente, jurídico em que se insere a discussão central deste trabalho.
O artigo 41 da LC 123/2006 prevê:
Art. 41. À exceção do disposto no §3º deste artigo, os
processos relativos a tributos e contribuições abrangidos pelo
Simples Nacional serão ajuizados em face da União, que será
representada em juízo pela Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional.
§1º. Os Estados, Distrito Federal e Municípios prestarão
auxílio à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em relação
aos tributos de sua competência, na forma a ser disciplinada
por ato do Comitê Gestor.
§2º. Os créditos tributários oriundos da aplicação desta Lei
Complementar serão apurados, inscritos em dívida ativa da
União e cobrados judicialmente pela Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional.
§3º. Mediante convênio, a Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional poderá delegar aos Estados e Municípios a inscrição
em dívida ativa estadual e municipal e a cobrança judicial
dos tributos estaduais e municipais a que se refere esta Lei
Complementar.”
Somente para delimitar o escopo da discussão deve-se ressaltar alguns
pontos da norma supracitada:
Revista Jurídica FACULDADES COC
137
a) Alteração da legitimidade passiva para os processos relativos
a tributos estaduais, distritais e municipais avocando esta
legitimidade para a União, representada pela Procuradoria-Geral
da Fazenda Nacional;
b) Alteração da competência administrativa para apuração e
inscrição em dívida ativa, mais que isto a inclusão de créditos
tributários originados de tributos estaduais, distritais e municipais
na dívida ativa da União, representada pela Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional;
c) Alteração da legitimidade ativa para cobrança judicial dos
créditos tributários estaduais, distritais e municipais avocando esta
legitimidade para a União, representada pela Procuradoria-Geral
da Fazenda Nacional;
d) Ressalte-se que o convênio previsto no parágrafo 3º do citado
artigo não inclui a possibilidade de o Distrito Federal vir a ser parte
dele, afastando por completo a possibilidade de o Distrito Federal
vir a participar da cobrança judicial de seus tributos incluídos no
Simples Nacional.
Nas seções seguintes serão abordados os impactos do advento da presente
norma para o pacto federativo nacional e sobre a competência constitucional
dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal para representar a sua
unidade federada.
3. PACTO FEDERATIVO
Inicialmente, urge traçar algumas considerações acerca dos fundamentos
e conceitos do federalismo.
Federalismo é um princípio que sustenta a Federação como um ideal
para a vida social e política em determinados Estados, baseada no aspecto
fundamental do pluralismo, na tendência de harmonização e no princípio
regulador da solidariedade2.
Ou, ainda, como diria o mestre Antônio Roberto Sampaio: “é o
federalismo a fórmula histórico-pragmática de composição política que
permite harmonizar a coexistência, sobre idêntico território, de duas ou mais
”Federalism in is broadest and most general sense is a principle which conceives the federation
as the ideal form of so-cial and political life. It is characterized by a tendency to substitute
coordinating for subordinating relationships from above with reciprocity, understanding and
adjustment, command with persuasion and force with law. The basic aspect of federalism
is pluralistic its fundamental tendency is harmonization and its regulative principle is
solidarity”. BOEHM, Max Hildebert. Encyclopedia of the Social Sciences, p. 169-170, op. cit.
in O Federalismo Fiscal Brasileiro e o Sistema Tributário Nacional, ELIALI, André, p. 17-18.
2
138
Revista Jurídica FACULDADES COC
ordens de poderes autônomos, em suas respectivas esferas de competência”3.
Quando se fala em uma federação não se pode deixar de considerar que
se está falando de uma forma de Estado descentralizada, composta de, pelo
menos, duas esferas, que de forma harmônica e coesa constituem a federação.
Uma única ordem constitucional a manter o Estado soberano, a União de todas
as unidades federadas.
Falar em federalismo e não falar em repartição de competências, seria um
despautério, pois somente com a dispersão do exercício do poder político da
unidade central para as unidades federadas é que se terá a descentralização,
pilar de um Estado Federal. De outro lado, ao não haver esta distribuição do
poder político, sendo ele centralizado, deve-se falar em um Estado Unitário.
Poder-se-ia citar como características básicas do federalismo:
a) alocação eficiente dos recursos nacionais;
b) aumento da participação política da sociedade;
c) proteção das liberdades básicas e dos direitos individuais dos
cidadãos;
d) autonomia constitucional, política, administrativa e financeira
das unidades federadas;
e) uma só ordem constitucional a manter o estado soberano;
f) rigidez constitucional e controle concentrado de
constitucionalidade;
g) mecanismos contra movimentos de secessão e para manter o
pacto federativo;
h) distribuição de competência legislativa, tributária e política
asseguradas constitucionalmente
Desde a proclamação da República e de acordo com todas as constituições
nacionais, o Brasil é uma federação de estados autônomos, somente durante o
império fomos um Estado Unitário.
Mais do que isto, a constituição federal de 1988 dispõe ser a forma
federativa de estado uma cláusula pétrea, ou seja não passível de Emendas,
transcreve-se:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos...”.
SAMPAIO DÓRIA, Antônio Roberto. Discriminação de rendas tributárias. São Paulo: José
Brushatsky, 1972, p. 9. Op. Cit. in. O Federalismo Fiscal Brasileiro e o Sistema Tributário
Nacional, ELIALI, André, p. 18.
3
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139
Art. 60. A Constituição ser emendada mediante proposta: ...
§4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda
tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - O voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos poderes;
IV - os direitos e garantias individuais. (Grifou-se).
Não resta qualquer dúvida, jurisprudência e doutrina são uníssonas em
afirmar que não é possível uma Proposta de Emenda Constitucional que queira
impor o exercício do poder político de forma concentrada, que queira interferir
na autonomia constitucional, política, administrativa, legislativa ou financeira
das unidades federadas. Tal somente seria possível com a instauração de uma
nova ordem constitucional, fruto do poder originário.
De outro lado, não se pode deixar de ter claro que a manutenção da forma
federativa de estado não significa dizer que a distribuição de competências
constitucionais não possa ser revista, o importante é que seja mantida a união
federal e garantida a autonomia das unidades federativas.
Como diria André Elali: “Assim, é possível pela norma vigente uma
reformulação de competências, permitindo-se, por exemplo, a criação de um
imposto sobre o consumo, de competência da União e em substituição ao IPI,
ao ICMS e ao ISS, tendo-se por destinação compulsória a repartição de receitas
com os Estados, Distrito Feral e Municípios de forma a se manter a atual ordem
de receitas. Com tal destinação compulsória, manter-se-ia o nível de recursos
necessários para a estruturação das entidades federativas.4”
Após estas considerações acerca dos conceitos e objetivos do federalismo,
é importante para o presente estudo trazer uma adaptação da excelente
monografia realizada pela FENAFISCO - Federação Nacional do Fisco Estadual
e a Fundação Getúlio Vargas intitulado “Federalismo Fiscal, Eficiência e
Eqüidade: Uma Proposta de Reforma Tributária”, de novembro de 1998.5
Naquela monografia, antes de fazer uma proposta de reforma tributária,
objetivo maior do trabalho, foi realizado estudo comparado dos sistemas
tributários mais importantes do mundo. Estas informações, principalmente
no que diz respeito a administração tributária, são trazidas de forma adaptada
ao presente texto de forma a contribuir com a exploração do tema a que este
ELIALI, André - O Federalismo Fiscal Brasileiro e o Sistema Tributário Nacional - São Paulo:
MP Editora, 2005, p. 63.
5
FENAFISCO/FGV - Federalismo Fiscal, Eficiência e Eqüidade: Uma Proposta de Reforma
Tributária - Monografia contratada pela FENAFISCO para a FGV-EPGE Escola de Pós
Graduação em Economia, trabalho elaborado a partir de princípios e diretrizes deliberadas
pelo Conselho Deliberativo da Entidade e acompanhado por uma comissão específica.
4
140
Revista Jurídica FACULDADES COC
se propõe.
Nos Estados Unidos da América a administração tributária é
descentralizada. Desta forma as competências para administrar e arrecadar
tributos é distribuída em cada esfera de governo. Este fato gera ampla autonomia
fiscal aos estados, mas, de outro lado, traz sérios problemas ao contribuinte
que tem de prestar contas com vários fiscos de forma diferenciada para cada
transação. Além disso não existe uma uniformização de procedimentos e fica
clara a sobreposição de atividades e estruturas administrativas.
No Japão, os governos locais não têm autonomia para determinar base
tributária e alíquotas. O Congresso define a base tributária e determina as
alíquotas detalhadamente de cada imposto, qualquer ação dos governos locais
tem de ter a aprovação do governo central.
Não obstante toda a centralização, a administração tributária é realizada
tanto pelo governo central como pelos governos locais. Já no que diz respeito
à administração tributária nacional, existe a ATN uma a agência do governo
encarregada pela execução e administração da política tributária. Ainda,
muito embora os impostos locais sejam administrados pela Administração
Tributária Local, todas as atividades são vinculadas ao Ministério do Interior,
responsável pelo planejamento e arrecadação dos impostos locais, de forma
centralizada.
No Reino Unido, a constituição não delega amplos poderes aos governos
locais, sendo-lhes atribuído somente dois tipos de impostos: o imposto nacional
sobre a propriedade e o imposto local sobre a propriedade.
A administração tributária é feita basicamente por dois órgãos: o Serviço
de Receita do Reino Unido e o Departamento de Aduanas e Impostos. Estes
órgãos têm escritórios executivos espalhados por todo o território e são
responsáveis pela administração e arrecadação de imposto em todo o Reino
Unido. No que diz respeito ao imposto local, a maior parte da administração
é do próprio governo local. Ressaltese que as relações intergovernamentais
no Reino Unido caracterizam-se por um forte controle do governo central,
havendo reduzida autonomia dos governos locais.
A Alemanha, república federativa com um sistema parlamentarista de
governo e estrutura bicameral, apresenta legislação tributária uniforme e
centralizada. A jurisdição sobre a receita tributária, as categorias de impostos
e a competência tributária de cada nível de governo estão determinadas na
Constituição. O governo federal é responsável pela administração somente
das tarifas alfandegárias, dos impostos seletivos sujeitos a legislação federal,
do IVA das importações e das taxas fixadas pela União Européia. Todos os
outros impostos são administrados pelas agências estaduais de arrecadação.
Com relação aos impostos conjuntos, os estados atuem como agentes da
federação. A administração dos impostos de competência dos governos locais
Revista Jurídica FACULDADES COC
141
é transferida total ou parcialmente para os estados. A administração arca com
os custos da arrecadação dos impostos federais, todos os outros custos são
de responsabilidade dos estados. A autonomia fiscal reduzida dos estados
pode ser explicada, em parte, pelo modelo de federalismo cooperativo alemão
baseado em partilha de receita tributária e o método de equalização financeira.
A distribuição dos impostos no Brasil é do tipo Especializada, ou
seja, atribui a cada unidade federada competência sobre determinada base
tributária. Assim o imposto de renda foi atribuído à união, o imposto sobre a
propriedade territorial e urbana, foi destinado aos município, o imposto sobre
consumo foi divido nas três esferas de governo, sendo dos estados a parte
mais importante deste tipo de imposto.
O Título IV da Constituição Federal, Da Tributação e do Orçamento,
Capítulo I, Do Sistema Tributário Nacional, principalmente no que diz
respeito aos artigos 154 a 157, distribui as competências tributárias para a
União, Estados e Distrito Federal e municípios.
Não basta dividir competência, para se implantar o chamado federalismo
fiscal, uma das bases do federalismo, faz-se necessário buscar o equilíbrio
entre a arrecadação das unidades da federação e as suas responsabilidades.
Aqui nasceu um dos maiores erros da história da Federação Brasileira, erro
este que, às vezes, faz com que pareçamos muito mais centralizado do que os
estados unitários.
As competências tributárias foram claramente estabelecidas, mas, de
outro lado, as responsabilidades não o foram. Questões essenciais como
educação e saúde são atribuídas a todos os níveis da federação que, no lugar
de viabilizar um maior comprometimento de todos, gera um jogo de empurra
e troca de favores.
Como forma de minimizar estes problemas estruturais surgem as
transferências intergovernamentais previstas nos artigos 157 a 162 da CF.
Lá serão encontradas seis tipos de transferências da união para os estados e
quatro da união para os municípios, além de transferências dos estados para
os municípios, quais sejam:
a) União para os Estados:
1. 21,5% da arrecadação dos impostos de renda (CF 159, I);
2. 21,5% sobre os produtos industrializados (CF 159, I);
3. 10% da arrecadação do IPI aos estados exportadores,
proporcionalmente as suas exportações (CF 159,II);
4. 30% da arrecadação do imposto sobre operações financeiras
(IOF-OURO);
5. 29% da arrecadação com a CIDE - contribuição de
intervenção no domínio econômico (159, III);
6. 20% da arrecadação de impostos criados após a CF/88,
142
Revista Jurídica FACULDADES COC
competência residual da União;
b) União para os Municípios:
1. 22,5% da arrecadação dos impostos de renda;
2. 21,5% sobre os produtos industrializados;
3. 70% da arrecadação do imposto sobre operações financeiras
(IOF-OURO);
4. 50% da arrecadação do imposto territorial rural
c) Estados para Municípios:
1. 25% da arrecadação do imposto sobre circulação de
mercadorias e serviços;
2. 50% da arrecadação d imposto sobre a propriedade de
veículos automotores; e
3. 25% da transferência que o estado receber da cota-parte do
IPI-Exportação (CF 159, §3º).
Mais do que isto, a Constituição ainda determinou que o imposto de
renda retido na fonte dos servidores públicos dos estados, do Distrito Federal
e dos municípios ficasse como receita tributária de cada ente, respectivamente.
Estes repasses podem ter natureza constitucional, listados acima, ou
não-constitucional. Os primeiros são vinculados e automáticos; já os segundos
dependem de convênios ou acordos políticos.
Aqui se tem de ressaltar alguns pontos que são de extrema importância
para o problema ora estudado:
a) as competências tributárias estão claramente delimitadas na
Constituição Federal;
b) as responsabilidades de cada ente da federação brasileira carece
de algum esclarecimentos e de extirpar as áreas de sobre, de forma
a se poder definir exatamente aonde começa o papel de um e onde
termina o do outro;
c) não há equilíbrio entre as bases tributárias, receitas, e as atribuições
constitucionais, despesas;
d) existe mecanismo para equilibrar as fontes e usos, repartição das
receitas tributárias, repasses constitucionais e não-constitucionais.
O que se pode defluir destas informações é que não há que se falar em
autonomia do ente federado se não houver um perfeito equilíbrio entre as
receitas tributárias e/ou repasses intergovernamentais e suas responsabilidades
constitucionalmente estatuídas.
Mais que isto, o cerne da questão está na capacidade de arrecadação direta,
Revista Jurídica FACULDADES COC
143
sem que tenha de existir uma dependência de repasses intergovernamentais.
Tal dependência leva, sem sombra de dúvidas, às políticas de “beija-mão” e
de troca de favores, sem falar em tráfego de influência e corrupção.
Um Estado que se diz federal deve primar para que as responsabilidades,
as fontes e os usos estejam o mais descentralizado possível, pois somente a
proximidade com o beneficiário direto pode permitir uma eficiente fiscalização
do cidadão.
4. CAPACIDADE POSTULATÓRIA DOS PROCURADORES
ESTADUAIS
Chega-se agora ao ponto central do trabalho, avaliar a capacidade
postulatória dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal. As
informações trazidas até o presente momento serviram para contextualizar o
leitor no tema. Primeiramente a discussão acerca da Lei Complementar 123,
principalmente no que diz respeito à alteração da capacidade postulatória
e avocação de competências administrativas. Na segunda parte do texto o
foco recai na conceituação de federalismo, dando ênfase à necessidade da
autonomia constitucional, administrativa, política e tributária dos entes
federados. Agora, ao chegar mais próximo da conclusão do trabalho, há de ser
abordada a competência constitucional da Advocacia pública.
Ao se falar em capacidade postulatória dos Procuradores dos Estados
e do Distrito Federal, faz-se necessário primeiro conceituar capacidade
postulatória, para isto transcrevem-se os artigos 133 da CF/88 e 36 do Código
de Processo Civil Brasileiro:
Art. 133. O advogado é indispensável à administração da
justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no
exercício da profissão, nos limites da lei. (CF/88).
Art. 36. A parte será representada em juízo por advogado
legalmente habilitado. Ser-lhe-á lícito, no entanto, postular
em causa própria, quando tiver habilitação legal ou, não a
tendo, no caso de falta de advogado no lugar ou recusa ou
impedimento dos que houver. (CPC)
Ou seja, a capacidade postulatória consiste na possibilidade de se
postular em juízo. Só quem detém essa capacidade no processo civil brasileiro
é o advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil,
ressalvadas as causas até 20 (vinte) salários mínimos que tenham curso nos
juizados especiais.
Ressaltem-se algumas carreiras que possuem capacidade postulatória
decorrente da lei que as instituiu, como é o caso do ministério público que
144
Revista Jurídica FACULDADES COC
recebe o poder de postular em juízo diretamente da Constituição. Ou, ainda
alguns casos no processo penal (habeas corpus, revisão criminal) e o processo
do trabalho.
Centrando a discussão na advocacia pública a Constituição reservou
uma seção específica do capítulo “Das funções Essenciais à Justiça”, que no
artigo 132 prescreve:
Art. 132. Os procuradores dos Estados e do Distrito Federal,
organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de
concurso público de provas e títulos, com a participação da
Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases,
exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das
respectivas unidades federadas.
Poder-se-ia conceituar advocacia pública como sendo as funções atinentes
à representação judicial e extrajudicial das pessoas jurídicas de direito público,
bem como à prestação de consultoria, assessoramento e controle jurídico
interno dos poderes que constituem o ente federado. De se deixar claro que ao
se falar em ente federado não se faz distinção entre os poderes autônomos que
compõe o Estado - Executivo, Legislativo e Judiciário -, como também não se
está restrito a administração6.
A representação da Fazenda Pública tem sede constitucional, sendo
prescindível a juntada de procuração. Os procuradores dos Estados e do
Distrito Federal não precisam juntar instrumento de mandado, pois este
decorre do vínculo que mantêm com a administração.
Neste sentido:
...os procuradores públicos adquirem o poder de representação
pela só condição funcional, o que os desonera de apresentação
de instrumento de mandado. Seria contraditório que
detivessem aquela qualidade por decorrência normativa
e simultaneamente houvessem de comprovar poder de
representação volitivo. A procuração é materialização de
negócio jurídico, circunstância incompatível com a natureza
da relação que se estabelece entre o órgão Público e seus
procuradores. Seu poder de representação está ‘in re ipsa’.
Não por acaso, descabe substabelecimento dos poderes
Texto adaptado de GRADE JÚNIOR, Cláudio. A advocacia pública no Estado Democrático
de Direito. Jornal o Estado do Paraná -Caderno Direito e Justiça. Curitiba, 27/jun/2004,
citado no artigo “Art. 132 Da Constituição Federal - Interpretação e Alcance no âmbito da
Administração Pública - Análise Jurisprudencial”, ZANDONAI, Marisa, As Perspectivas da
Advocacia Pública e a Nova Ordem Econômica/Organizadores: Zênio Ventura, Paulo Roney
Ávila Fagundez - Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006.
6
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145
advindos da lei decorrentes da nomeação (fato que, mesmo
inesperado, acontece no coti diano forense)7.
Conforme o Procurador Federal, Dr. Matheus Rocha Avelar, no artigo
“Os Advogados Públicos e a Ordem dos Advogados do Brasil”8, tratam-se das
chamadas “Procuraturas Constitucionais” - Procuradoria Federal, Advocacia
Geral da União e Procuradoria da Fazenda Nacional. O Autor as designa desta
forma por terem os seus membros recebido a representação das entidades
públicas diretamente da Constituição Federal. Permita-se que sejam incluídos
nesta classificação os procuradores dos estados e do Distrito Federal, seguindo
a mesma linha de raciocínio.
De se destacar que não há simetria entre a representação da União e a
dos Estados. O artigo 131 da Constituição Federal determina:
Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que,
diretamente ou através de órgão vinculado, representa a
União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos
da lei complementar que dispuser sobre sua organização e
funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento
jurídico do Poder Executivo.
§1º (...)
§2º (...)
§3º Na execução da dívida ativa de natureza tributária,
a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional, observado o disposto em lei.
Como se vê a União possui uma Instituição que a representa, mas também
possui um órgão, a ela vinculado, que possui a capacidade postulatória
constitucionalmente definida para execução de dívida ativa de natureza
tributária. Ou seja, se a causa ostentar natureza tributária ou fiscal a União será
representada pela PGFN, nos outros tipos de demanda, sua representação é
feita pela AGU.
Por muito tempo, principalmente quando da edição das constituições
estaduais, houve o entendimento de que esta possibilidade de especialização
e, principalmente, de delegação da capacidade de representação em juízo
PEREIRA, Hélio do Vale. Manual da Fazenda Pública em Juízo. Rio de Janeiro. Renovar,
2003, p.82.
8
AVELAR, Matheus Rocha. Os Advogados Públicos e a Ordem dos Advogados do Brasil:
sai manifesta dissociabilidade. Jus Navegandi, Teresina, 1520, 30 ago. 2007. Disponível em: .
Acesso em: 29 jan. 2008.
7
146
Revista Jurídica FACULDADES COC
devesse se repetir na esfera estadual. Este tema será abordado com maior
profundidade na próxima seção, mas somente para fundamentar a discussão,
transcreve-se o artigo 69 do ADCT:
Art.69. Será permitido aos estados manter as consultorias
jurídicas separadas de suas Procuradorias-Gerais ou
Advocacias-Gerais, desde que, na data da promulgação da
Constituição, tenham órgãos distintos para as respectivas
funções.
Como se vê a norma é muito clara em somente permitir uma exceção ao
preceituado no artigo 131 do corpo permanente da Constituição, mas, como
dito anteriormente, este não foi um entendimento pacífico na jurisprudência e
várias foram as decisões em outro sentido.
Neste sentido:
A Carreira de Procurador do Estado e do Distrito Federal,
foi institucionalizada em nível de Constituição Federal.
Isto significa a institucionalização dos órgãos estaduais de
representação e consultoria dos Estados, uma vez que os
Procuradores, a que se incumbe essa função no artigo 132
daquela Carta Magna, hão de ser organizados em carreira
dentro de uma estrutura administrativa unitária em que
sejam todos congregados, ressalvado o disposto no artigo
69 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que
autoriza os Estados a manter consultorias jurídicas separadas
de suas Procuradorias-Gerais ou Advocacias-Gerais, desde
que, na data da promulgação da Constituição, tenham
órgãos distintos para as respectivas funções (é o caso de
Pernambuco).9
5. A POSIÇÃO DO STF AO LONGO DOS ANOS
O presente tema já foi bastante discutido no Supremo Tribunal Federal,
tendo origem na promulgação das constituições estaduais. Ao regulamentar
a representação judicial e extrajudicial em suas unidades federadas, estas
constituições trouxeram à discussão o real papel das Procuradorias-Estaduais
e do Distrito Federal.
Algumas questões careciam de resposta o que levou a interpretações
incongruentes sobre o mesmo tema:
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Consitucional Positivo. 9.ed. 2. Tiragem, 1993, São
Paulo: Malheiros, p. 540.
9
Revista Jurídica FACULDADES COC
147
a) Quais os limites constitucionais à organização dos Estados?
b) A norma prevista no artigo 131 da CF é de repetição obrigatória?
Poder-se-ia utilizar de simetria entre o modelo da União e o dos
Estados?
c) Quando o artigo 132 fala de “unidade federada” inclui todos os
poderes, administração direta e indireta?
d) O cotejamento entre o artigo 131, do texto permanente, e o
artigo 69 do ADCT possibilita a delegação da competência para
consultoria jurídica?
Estas foram algumas questões que, via ações diretas de
inconstitucionalidade começaram a bater às portas de nossa Corte
Constitucional.
A primeira a levantar esta discussão foi a ADI n.º 175-2/PR, proposta
em janeiro de 1990 e que trazia vários dispositivos da constituição estadual do
Paraná para análise e manifestação. Certamente, o grande número de artigos
questionados não possibilitou um debate mais profundo e contundente sobre
o art. 132 da CF e culminou na decisão abaixo transcrita:
Ementa:1. Funcionalismo. Licenca especial e direito a creche.
Inconstitucionalidade dos itens xviii e xxi do art. 34 Da
constituição do parana, por tratarem de matéria sujeita a
iniciativa privativa do chefe do poder executivo (art. 61,
Par. 1., “C” e “d”, da carta federal). 2. Correção monetária
de vencimentos em atraso (par. 7. Do art. 27 Da carta
paranaense), não incompativel com a constituição federal.
3. Banco regional do desenvolvimento do extremo sul.
Natureza autarquica não caracterizada, não podendo também
o estado dispor, isoladamente, sobre regime dos servidores
da empresa (art. 46 Do adct do parana), sem o concurso das
duas outras unidades da federação, dela participantes (art.
25 Da constituição federal). 4. Inconstitucionalidade do art.
55 Do adct do parana, por dilatar a exceção de dispensa de
concurso para o cargo de defensor público, prevista no art. 22
Das disposições transitorias federais, infringindo os artigos
37, ii, e 134, paragrafo único, da constituição da republica. 5.
Compatibilidade, com o art. 132 Da carta federal e o art. 69 Do
respectivo adct, da manutenção, pelo art. 56 Da constituição
paranaense, de carreiras especiais, voltadas ao assessoramento
jurídico, sob a coordenação da procuradoria geral do estado.
6. Ação direta julgada, em parte, procedente.” (Adi 175-pr/
paraná, dj. 08.10.1993). (Grifou-se).
148
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Em maio de 1993, o Conselho Federal da OAB aforou a ADI nº 881
questionando Lei Complementar do Espírito Santo que instituía cargos
comissionados de assessor jurídico no Poder Executivo, ressalte-se que a
decisão foi de 08/93, mas somente foi publicada em 04/97.
Ementa: ação direta de inconstitucionalidade - lei
complementar 11/91, do estado do espírito santo (art. 12,
Caput, e §§ 1º e 2º; art. 13 E incisos i a v) - assessor jurídico cargo de provimento em comissão - funções inerentes ao cargo
de procurador do estado - usurpação de atribuições privativas
- plausibilidade jurídica do pedido - medida liminar deferida.
- O desempenho das atividades de assessoramento jurídico
no âmbito do poder executivo estadual traduz prerrogativa
de índole constitucional outorgada aos procuradores do
estado pela carta federal. A constituição da república, em seu
art. 132, Operou uma inderrogável imputação de específica
e exclusiva atividade funcional aos membros integrantes da
advocacia pública do estado, cujo processo de investidura no
cargo que exercem depende, sempre, de prévia aprovação
em concurso público de provas e títulos. (Adi-mc. 881/Esespírito santo. Dj. 25.04.1997). (Grifou-se).
Até o presente momento a discussão se encontrava dentro do Poder
Executivo, mas a ADI n.º 1557-DF, proposta pela ANAPE - Associação Nacional
de Procuradores Estaduais em face da Câmara Legislativa do Distrito Federal,
questionou a constitucionalidade da criação de uma Procuradoria Geral da
Câmara Distrital por violar o artigo 132 da CF, cuja ementa transcreve-se
abaixo:
Ementa: ação direta de inconstitucionalidade. Emenda
nº 9, de 12.12.96. Lei orgânica do distrito federal. Criação
de procuradoria geral para consultoria, assessoramento
jurídico e representação judicial da câmara legislativa.
Procuradoria geral do distrito federal. Alegação de vício de
iniciativa e de ofensa ao art. 132 Da cf. 1. Reconhecimento
da legitimidade ativa da associação autora devido ao
tratamento constitucional específico conferido às atividades
desempenhadas pelos procuradores de estado e do distrito
federal. Precedentes: adi 159, rel. Min. Octavio gallotti e adi
809, rel. Min. Marco aurélio. 2. A estruturação da procuradoria
do poder legislativo distrital está, inegavelmente, na esfera
de competência privativa da câmara legislativa do df.
Inconsistência da alegação de vício formal por usurpação de
iniciativa do governador. 3. A procuradoria geral do distrito
Revista Jurídica FACULDADES COC
149
federal é a responsável pelo desempenho da atividade jurídica
consultiva e contenciosa exercida na defesa dos interesses
da pessoa jurídica de direito público distrito federal. 4. Não
obstante, a jurisprudência desta corte reconhece a ocorrência
de situações em que o poder legislativo necessite praticar em
juízo, em nome próprio, uma série de atos processuais na
defesa de sua autonomia e independência frente aos demais
poderes, nada impedindo que assim o faça por meio de um
setor pertencente a sua estrutura administrativa, também
responsável pela consultoria e assessoramento jurídico de
seus demais órgãos. Precedentes: adi 175, dj 08.10.93 E adi
825, dj 01.02.93. Ação direita de inconstitucionalidade julgada
parcialmente procedente. (Adi 1557/df-distrito federal. Dj.
18.06.2004). (Grifou-se).
Ainda, em junho de 1997, a ANAPE ingressou com a ADI 1679,
questionando a Constituição Estadual de Goiás que criou a Procuradoria
da Fazenda Estadual, vinculada ao Secretário Estadual de Fazenda. Nesta
se discutiu com profundidade a possibilidade de replicação, por simetria,
do modelo de representação judicial da União para os Estados e o Distrito
Federal. Abaixo a ementa da decisão:
EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Emenda
Constitucional no 17, de 30 de junho de 1997, promulgada pela
Assembléia Legislativa do Estado de Goiás, que acrescentou
os §§ 2o e 3o e incisos, ao artigo 118 da Constituição estadual.
3. Criação de Procuradoria da Fazenda Estadual, subordinada
à Secretaria da Fazenda do Estado e desvinculada à
Procuradoria-Geral. 4. Alegação de ofensa aos artigos 132 da
Constituição e 32, do ADCT. 5. Descentralização. Usurpação
da competência funcional exclusiva da Procuradoria-Geral
do Estado. 6. Ausência de previsão constitucional expressa
para a descentralização funcional da Procuradoria-Geral do
Estado. 7. Inaplicabilidade da hipótese prevista no artigo 69
do ADCT. Inexistência de órgãos distintos da Procuradoria
estadual à data da promulgação da Constituição. 8. Ação
julgada procedente.” (ADI 1679/GO-GOIÁS. DJ. 21.11.2003).
(grifou-se)
O que se vê até o presente momento é o início de uma posição dominante
na Corte Suprema que assegura aos Procuradores dos Estados e do Distrito
Federal a unicidade de competência para representar os seus entes federados
judicial ou extrajudicialmente.
150
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Considerando a análise das decisões até hoje tomada acerca deste assunto
e tendo por premissa a manutenção da linha de pensamento dos julgadores,
poder-se-ia dividir a atual corte em três blocos de interpretação quanto ao
tema, quais sejam:
a) Defendem a prerrogativa constitucional de competência para
representação judicial e extrajudicial dos procuradores, mas admitem
que os Poderes Legislativo e Judiciário possam ter procuradorias
próprias para representá-los em defesa de uma possível usurpação
de competência. Neste bloco incluímos a Excelentíssima Ministra
Ellen Gracie e os Excelentíssimos Ministros Gilmar Mendes e Celso
de Mello;
b) Outro bloco de interpretação segue a mesma linha do primeiro
somente difere por não admitir a representação autônoma dos
Poderes Legislativo e Judiciário, entendendo que o art. 132 fala em
unidades federadas, sendo estas a comunhão de todos os poderes:
executivo, legislativo e judiciário. Aqui se fala do Excelentíssimo
Ministro Marco Aurélio;
c) Um terceiro grupo tergiversa entre os posicionamentos não se
podendo dizer que possuam uma posição contundente acerca do
tema. Representam esta linha os Excelentíssimos Ministros Cezar
Peluso e Carlos Britto;
d) Por fim em relação a alguns membros da corte não foi possível
verificar o posicionamento, são eles a Excelentíssima Ministra
Carmem Lúcia e os Excelentíssimos Ministros Joaquim Barbosa,
Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Menezes Direito.
É neste cenário que a Associação Nacional dos Procuradores de Estado
- ANAPE afora a ADI 3903 em face da norma constante do art. 41 da Lei
Complementar n.º 123, de 14, de dezembro de 2006 que, no seu entendimento,
viola as normas do art. 132 e do art. 146, parágrafo único, IV, da Constituição
Federal, bem como atinge o pacto federal.
Em sua peça inicial questiona principalmente:
a) A usurpação da autonomia e das atribuições funcionais das
Procuradorias Estaduais e dos próprios entes Federados ao retirar
a competência para ajuizar as ações para cobrança dos tributos e
contribuições relativos ao SIMPLES Nacional;
b) O ataque à competência constitucional das Procuradorias-Gerais
Estaduais e do Distrito Federal para inscrever suas respectivas
dívidas ativas;
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c) O fato de, no seu entendimento, a Constituição Federal, em seu
artigo 146, parágrafo único, ser expressa em instituir uma faculdade
no que diz respeito ao regime único de cobrança administrativa dos
impostos e contribuições dos Estados, Municípios e União e não
uma obrigação que possa ser imposta pela União;
d) Por fim, a grave afronta às autonomias estaduais e municipais,
bem como à estrutura federativa do Brasil.
6. CONCLUSÃO
O que se viu até o presente momento neste trabalho pode ser sumarizado
da seguinte forma:
a) Existe lei em plena vigência e eficácia tratando do assunto;
b) Muito embora os vários questionamentos sobre a
constitucionalidade destes normativos, não foi deferida qualquer
medida liminar que sustasse a produção dos efeitos das normas
citadas;
c) De se deixar claro também que, pelo que se tem notícia, não
houve qualquer medida efetiva da Procuradoria da Fazenda
Nacional no sentido de faz valer a sua competência para inscrever,
ajuizar e representar em juízo conforme previsto nos normativos
em questão;
d) Ainda, não há, como é do conhecimento geral, capacidade
operacionala da PGFN de assumir mais estas responsabilidades,
para tal seria necessária a revisão de seu quadro de procuradores e
de toda a sua estrutura de apoio;
e) Mais do que isto e ainda sobre a possibilidade de a PGFN
assumir estas responsabiliadades, a previsão da Lei Complementar
em comento está por admitir o desenvolvimento de uma complexa
rede de distribuição da PGFN, de forma a se estruturar para atender
nos mais distantes municípios e localidades do nosso território
nacional. Quem conhece o nosso Brasil, certamente tem a noção do
que se está falando;
f) Saindo um pouco da esfera do Executivo, ter-se-ia de discutir a
competência para processar e julgar tais feitos. Como não poderia
deixar de ser diferente, chegar-se-ia aos órgãos da Justiça Federal.
Aqui se apresentam as mesmas dificuldades estruturais. Com tal
medida um sem número de processos que hoje tramitam na justiça
comum estadual seriam deslocados para a justiça comum federal.
Da mesma forma, seria necessário um plexo de medidas de forma
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a dotar de recursos orçamentários, materiais e de pessoal a justiça
federal;
g) Não se poderia deixar de analisar também os impactos para o
contribuinte, afinal de contas a presente norma nasceu baseada
nas diretrizes constitucionais de proporcionar tratamento
diferenciado e simplificado às empresas de micro e pequeno porte.
Aqui certamente repousam os principais impactos das medidas
trazidas pela Lei Complementar 123, principalmente quando se
fala na avocação de competência das procuradorias dos estados
para a PGFN. O deslocamento da competência da justiça comum
estadual para a justiça federal, fará com que o contribuinte tenha
de se especializar, juntamente com os seus advogados, em uma
nova esfera do judiciário, mais do que isto perder-se-ia a análise
de âmbito local e mais próximo, característica primeira da justiça
estadual, para se passar à análise da justiça federal.
O que se vê claramente é que, além da inconstitucionalidade do
dispositivo por modificar competência constitucionalmente estabelecida, as
medidas previstas na Lei são desarrazoadas e de difícil implementação. Mais
do que isto atacam frontalmente os princípios administrativos da eficiência e
supremacia do interesse público.
Assim não resta outra medida senão declarar a inconstitucionalidade do
artigo 41 da Lei Complementar nº 123, de forma a fazer cumprir a competência
constitucionalmente estabelecida para os procuradores dos estados.
Não obstante, faz-se necessário discutir como se dará a operacionalização
da inscrição e cobrança dos tributos participantes do SIMPLES.
Quem deve responder passivamente nas questões relativas a estes
tributos?
Como devem ser estabelecidas as obrigações acessórias?
Quem deve inscrever e como deverá imputar o pagamento dos tributos?
Estas questões dão margem a outro artigo e devem ser devidamente
exploradas, mas, tão somente como sugestão e para não deixa-las totalmente
sem resposta se propõe:
a) O estabelecimento de convênios de cooperação entre União, Estados
e Municípios de forma a possibilitar a adoção de medidas administrativas e
judiciais para os assuntos que envolvam o SIMPLES Nacional nos termos do
artigo 241, da CF/88:
“Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de
cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada dos
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153
serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos,
serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos”.
b) O valor de cada tributo é definido individualmente sendo ainda prevista
a repartição do valor arrecadado, desta forma a inscrição na Dívida Pública
deve ocorrer nos três níveis da federação tomando por base a expectativa de
arrecadação;
c) Por fim, dever-se-ão ser seguidas as normas gerais de imputação do
Código Tributário Nacional, art. 163, do CTN, cominadas com a ordem de
preferência para a execução dos créditos tributários em caso de concurso
entre fazendas públicas, art. 187, do CTN. Assim, deve-se primeiro garantir
o pagamento dos tributos da União, seguido dos estados, DF e Territórios,
conjuntamente e pro rata, e depois dos municípios, também conjuntamente e
pro rata. Ainda, deve-se considerar o prazo prescricional e o valor dos créditos
tributários.
As modernas tendências da administração tributária levam a tormar
próximas as fontes das receitas e de suas aplicações. Assim o movimento mais
adequado seria de se buscar atribuir maiores competências e responsabilidades
para as administrações locais - municípios - em detrimento da estruturas
centralizadas no órgão central - União.
Como se vê, a Lei Complementar 123 vai de encontro aos princípios da
boa administração tributária, por isso merecendo ajustes.
Em conclusão pode-se afirmar que houve considerável avanço
ao se unificar a legislação que propõe tratamento diferenciado para as
empresas de micro e pequeno porte. Simplificar o processo de arrecação
reduzindo procedimentos e formulários deve ser uma busca constante da
administração. Reduzir a carga tributária de forma a beneficiar os maiores
geradores de empregos e propulsores da economia, mais do que um objetivo
é uma responsabilidade dos governos. De outro lado, não se pode permitir
a interferência na autonomia das unidades federadas sob o prestesto de
simplificar processos e procedimentos. O pacto faderativo deve ser, aliás, como
previsto no ordenamento constitucional pátrio, cláusula pétrea e sensível a ser
observada em todas as ações de governo. Ainda, sob o mesmo pretesto, não se
pode dar azo à saga- cidade da União em abocanhar competências e recursos,
fazendo com que o Brasil, em alguns momentos, seja mais centralizado do que
alguns estados unitários.
Finalmente, deve ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 41 da
Lei Complementar 123, devendo as pretensões ali declaradas serem, de forma
negociada com todos os entes da federação, reguladas por meio de convênio
de cooperação nos moldes previstos no artigo 241, da Constituição Federal de
1988.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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do Brasil: sai manifesta dissociabilidade . Jus Navegandi, Teresina, 1520, 30
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âmbito da Administração Pública - Análise Jurisprudencial “.
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FENAFISCO/FGV - Federalismo Fiscal, Eficiência e Eqüidade: Uma Proposta
de Reforma Tributária - Monografia contratada pela FENAFISCO para a FGVEPGE Escola de Pós Graduação em Economia, trabalho elaborado a partir de
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acompanhado por uma comissão específica.
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São Paulo: José Brushatsky, 1972.
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Tiragem, 1993, São Paulo: Malheiros.
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Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006.
Sites consultados:
www.stf.gov.br
www.anape.org.br
O DEBATE SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE
DA EXECUÇÃO DAS CONTRIBUIÇÕES
PREVIDENCIÁRIAS PELA JUSTIÇA DO TRABALHO
MARIO AUGUSTO CARBONI1
CARLOS ALEXANDRE DOMINGOS GONZALES2
Sumário
1. Introdução; 2. Breve histórico legislativo; 3. A inconstitucionalidade da
execução das contribuições previdenciárias de ofício pelo juiz do trabalho;
4. A constitucionalidade da execução das contribuições previdenciárias
de ofício pelo juiz do trabalho; 5. Análise crítica das teses constitucionais
divergentes; 6. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
A questão da constitucionalidade da execução das contribuições
previdenciárias de ofício pela Justiça do Trabalho é tema palpitante desde as
modificações trazidas pela Emenda Constitucional n. 20/98, que acrescentou o
parágrafo 3º, ao art. 114 da Carta Magna, regra hoje constante do inciso VIII do
mesmo artigo por força da Emenda Constitucional n.º 45/2004, estabelecendo
ser competente a Justiça do Trabalho para execução de ofício das contribuições
sociais decorrentes dos seus julgados, bem como diante da edição da Lei
10.035/00 que alterou a CLT, tencionando estabelecer os procedimentos para
realização segura desta nova competência pela Justiça Laboral.1 2
Ressalte-se que, como toda inovação e alteração legal-constitucional, a
ampliação da competência da Justiça do Trabalho em decorrência do inciso
VIII, do art. 114, da Carta Magna de 1988, e da regulação de seus procedimentos
estabelecidos pela Lei 10.035/00, são objeto de ampla discussão na seara
juslaboralista, havendo vários aspectos e pontos polêmicos sobre a referida
temática, que ora serão abstraídos para uma abordagem concentrada no
terreno da constitucionalidade.
O debate da constitucionalidade da execução das contribuições
previdenciárias no contexto da Justiça do Trabalho é realizado na esteira de
uma análise crítica dos fundamentos subjacentes a cada concepção dissonante,
concernentes às teses que sustentam, de um lado, a constitucionalidade, e de
outro, a inconstitucionalidade da cobrança de ofício pelo juiz do trabalho das
Procurador da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto Pós Graduação em Direito Público pela
Universidade de Brasília Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.
2
Procurador da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto/SP, ex-Advogado da União. Pós
Graduando em Direito Constitucional pela UNISUL. Professor das Faculdades COC de
Ribeirão Preto e do curso SEAD-LFG.
1
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contribuições sociais previdenciárias atinentes às sentenças que proferir, na
conformidade do quanto propugnado pelo Poder Constituinte Reformador
de 1998 e 2004.
Diante do conhecimento a respeito do embate teórico sobre a validade
jurídicoconstitucional da competência da Justiça do Trabalho estampada
no inciso VIII do art. 114 do Texto Maior, é possível estabelecer uma
crítica sustentável no sentido de ser revelada uma razoável interpretação
que possa atender ao direito fundamental resvalado pela investigação da
proporcionalidade e ponderação dos bens e valores ligados à execução de
ofício das contribuições previdenciárias pela Justiça do Trabalho.
Torna-se oportuno esclarecer que o tema em lume e as considerações
jurídicas apresentadas neste ensaio comportam inquestionável relevância
social e política, na medida em que a execução das contribuições sociais
previdenciárias se insere na esteira da preservação da higidez do custeio da
Seguridade Social brasileira, especialmente da Previdência Social como direito
fundamental, que garante, em última análise, os direitos previdenciários
do trabalhador, representados pela concessão dos benefícios por morte,
invalidez, idade avançada, proteção à maternidade e à gestante, proteção do
trabalhador em desemprego involuntário, salário-família e auxílio-reclusão
aos dependentes do trabalhador segurado de baixa renda, bem como pensão
por morte.
2. BREVE HISTÓRICO LEGISLATIVO
O Estado pós-moderno revela nos últimos tempos uma preocupação
acirrada em aperfeiçoar os meios legais necessários para evitar a sonegação
fiscal, mormente quando se trata de garantir a sanidade das contas da
Seguridade Social, tendo inclusive se utilizado das tipificações penais, como
é o caso da Lei nº 9.983/2000 que, entre outros temas, trata da “Apropriação
indébita previdenciária” (art. 168-A, do Código Penal) e da “Sonegação de
contribuição previdenciária” (art. 337-A, do Código Penal).
No âmbito desta diretriz estatal, o processo trabalhista tratou de ser
prontamente eleito para o mister de garantir a arrecadação das contribuições
previdenciárias relativas aos julgamentos proferidos pela Justiça do Trabalho,
e o instrumento normativo precursor foi a Lei nº 8.620/93 ao dispor que “o
juiz, sob pena de responsabilidade, determinará o imediato recolhimento das
importâncias devidas à Seguridade Social”.
Todavia, com essa determinação legal, o magistrado trabalhista não
detinha a necessária competência para sancionar a conduta omissiva do
responsável pelo recolhimento das contribuições sociais previdenciárias.
O sentido do termo “determinará” se esgota na simples determinação.
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157
Ora, havendo omissão, ao juiz caberia apenas notificar o órgão previdenciário
(art. 44, Lei nº 8.212/91) a quem cabiam os procedimentos administrativos
vinculados, nos termos dos arts. 3º e 142 do Código Tributário Nacional, e
a cobrança judicial da dívida ativa, com esteio na Lei nº 6.830/60, perante a
Justiça Federal (art. 109, I, CF/88).
Ocorre que em 16 de dezembro de 1998, o Poder Constituinte Reformador
determinou o acréscimo do § 3º ao artigo 114 da Constituição Federal, pela
Emenda Constitucional nº 20, o juiz do trabalho passou a deter a competência
para “executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no artigo 195, I, a, e
II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir”.
Acresça-se que a Emenda Constitucional n.º 45, de 08 de dezembro de
2004, que tratou da “Reforma do Judiciário” e ampliou a competência da Justiça
do Trabalho, manteve o mesmo teor do quanto disposto no mencionado § 3º
do artigo 114 da Constituição Federal, transpondo a sua redação para o inciso
VIII do mesmo artigo.
Cumpre anotar que as contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e 195,
II, ambos da Constituição Federal, referem-se às contribuições previdenciárias,
a cargo respectivamente do empregador e do trabalhador, e que representam
uma das formas de custeio da Seguridade Social.
As contribuições do empregador, denominadas de contribuições
patronais, são aquelas incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos
do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe presta
serviço, mesmo sem vínculo empregatício, como é o caso dos trabalhadores
avulsos, os quais, apesar de não terem vínculo de emprego, também se inserem
na competência da Justiça do Trabalho (art. 643 e 652, alínea “a”, inciso V, da
CLT). Já as devidas pelo trabalhador são extraídas da sua remuneração pelo
empregador e por este recolhidas aos cofres da Seguridade Social.
Assim, diante da mencionada alteração do texto constitucional, o
termo “determinará” passou a compreender não só o mandamento para o
cumprimento da obrigação de fazer, qual seja, o recolhimento das contribuições
sociais previdenciárias, como também a necessária sanção em caso de omissão.
A inovação constitucional, todavia, traz a lume diversas questões
intrincadas para o debate doutrinário, e que têm imediatos reflexos na
jurisprudência, relacionadas à constitucionalidade da própria alteração
promovida pelo Poder Constituinte Derivado (art. 114, VIII, CF/88), bem
como às contribuições previdenciárias executáveis pela Justiça do Trabalho
em face do sentido da expressão “decorrentes das sentenças que proferir” e à
natureza do próprio título executivo que ampara a execução.
Feitas essas considerações iniciais sobre a evolução legislativa e
abstraídos os debates infraconstitucionais decorrentes da execução de
ofício das contribuições previdenciárias pelo juiz do trabalho, os quais são
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ligados especialmente à seara processual, passa-se nas linhas seguintes ao
delineamento do tema central desta exposição.
3. A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO DAS
CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS DE OFÍCIO PELO JUIZ DO
TRABALHO
Os defensores da inconstitucionalidade da execução de ofício das
contribuições previdenciárias pelo magistrado do trabalho, utilizam-se de
interpretações jurídicas que para eles evidenciam, em síntese, haver a quebra
da imparcialidade do juiz, a afronta aos princípios constitucionais da isonomia,
do devido processo legal e da separação de poderes, esta no que tange ao início
de ofício pelo magistrado da execução para cobrar as contribuições sociais, o
qual estaria atuando assim, em tese, como parte.
Com relação à ofensa ao princípio da separação dos poderes, propugna a
tese sobre a inconstitucionalidade ora em análise, que a Emenda Constitucional
n.º 20/98, ratificada pela Emenda Constitucional 45/04, ao determinar que o
magistrado do trabalho, de ofício apure as contribuições previdenciárias antes
de executá-las, no sentido de realizar o respectivo lançamento, faz com o que o
juiz invada esfera privativa do Executivo, porquanto o lançamento é ato típico
da Administração, violando assim o princípio constitucional da separação dos
poderes.
Sobre a matéria, manifesta-se Manuel Teixeira Filho3 no sentido de
que sob o aspecto político, a Emenda Constitucional nº 20/98 transformou a
Justiça do Trabalho em órgão arrecadador de contribuições previdenciárias, e
os seus juízes, em agentes do Executivo, o que é algo assaz preocupante ao se
levar em conta a clássica tripartição dos Poderes e a autonomia que a própria
Constituição Federal assegura a cada um deles.
E ainda, pondera Leandro Paulsen4, que quando o Juiz promove o
lançamento do tributo em sede de liquidação de sentença está violando a
cláusula pétrea estampada no art. 60, parágrafo 4º, inciso III, da Constituição
Federal.
Assim, para o citado jurista, o magistrado transforma-se em agente fiscal
e, de conseqüência, resta contrariado o princípio da separação dos poderes.
Note-se que, para executar de ofício, o juiz teria de lançar o tributo, eis
que só se pode executar crédito constituído e, por isso dotado de liquidez e
TEIXEIRA FILHO, Manuel. Execução no processo do trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2001,
p.642.
4
PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição, Código Tributário e Lei de Execução
Fiscal à luz da doutrina e da jurisprudência. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado/
Esmafe, 2002. p. 693.
3
Revista Jurídica FACULDADES COC
159
certeza, e promover os atos constritivos no sentido da satisfação do crédito.
Ao lançar e promover a execução de ofício há, simultaneamente, atuação
como defensor dos interesses do Fisco e como magistrado, o que se reputa
inadmissível.
O Juiz, assim, não pode ser o titular da execução, e por isso, afirma
categoricamente o autor citado, que a Emenda Constitucional nº 20/98 (e
também a Emenda Constitucional n.º 45/04), ao acrescentar o parágrafo 3º ao
art. 114, hoje o inciso VIII do mesmo artigo, incorreu em inconstitucionalidade.
Além disto, ainda asseveram os opositores da execução de ofício para
o fato de não haver contraditório, nem devido processo legal respeitado, na
execução de contribuições previdenciárias que não foram objeto de discussão
ao longo do litígio trabalhista.
Não poderia, dessa maneira, o magistrado impor uma condenação sem
que o reclamante ou o reclamado tenha controvertido e debatido a matéria em
sede do processo de conhecimento, nem tampouco a União tenha participado
do contencioso. Destarte, impossível que, de um processo judicial, resulte
título executivo em favor de quem não participou da relação jurídica durante
a fase cognitiva.
Por este ângulo de interpretação, a existência da lide e do processo legal
requer seja estabelecida a relação processual tradicional sempre pregada pelos
processualistas com as figuras do autor, réu e Estado-juiz.
Segundo os ensinamentos do jurista Marcus Orione Gonçalves Correia5
há violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa em razão da
empresa só ter oportunidade de se manifestar sobre a exigência no momento
da execução da contribuição, e não no ato administrativo de formação do
título.
O autor enxerga ainda nas modificações introduzidas, ofensa ao duplo
grau de jurisdição haja vista que a União6, só pode se manifestar na segunda
instância, suprimindo assim a instância inicial.
E ainda, esclarece Marcus Orione que o inciso VIII do art. 114 da
Constituição seria inconstitucional por tratar de duas situações de forma
distinta para efeito da execução das contribuições, uma na Justiça Federal,
mediante inscrição em dívida ativa da contribuição não recolhida, outra na
Justiça do Trabalho, quando as sentenças por ela proferidas. Isto porque, a
CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Das inconsistências jurídicas da competência atribuída
à Justiça do Trabalho para a execução de ofício de contribuições sociais decorrentes de suas
sentenças. Revista LTr, São Paulo, nº 65-04/422, abr. 2001.
6
Esclareça-se que a partir da publicação da Lei 11.457/2007 que dispôs sobre a Administração
Tributária Federal e criou a Secretaria da Receita Federal do Brasil através da unificação da
Secretaria da Receita Federal e da Secretaria da Receita Previdenciária, a competência para o
lançamento e cobrança das contribuições previdenciárias, dentre outras, foi determinada à
União e não mais ao INSS.
5
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referida norma “ criou situações díspares entre contribuinte que se encontram
em relação idêntica relativamente a seus débitos fiscais, violando assim o
princípio da isonomia previsto no caput do art. 5o da nossa Carta Magna e
instituído como cláusula pétrea, razão pela qual haveria de ser respeitado
pelas Emendas Constitucionais”7.
Destaca-se ainda na esteira das considerações sobre inconstitucionalidade,
que a execução das contribuições previdenciárias de ofício pelo magistrado do
trabalho é bem diversa das execuções de ofício previstas no art. 878 da CLT que
assim dispõe que a execução poderá ser promovida por qualquer interessado,
ou ex officio pelo próprio Juiz ou Presidente ou Tribunal competente, nos
termos do artigo anterior.
Isto porque nesta execução prevista no art. 878 da CLT houve o
contraditório, ampla defesa, devido processo legal, enquanto que no caso
determinado pelo inciso VIII do art. 114 da Constituição Federal não há tais
garantias, não sendo possível execução ex officio sem um título regular.
4.
A
CONSTITUCIONALIDADE
DA
EXECUÇÃO
DAS
CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS DE OFÍCIO PELO JUIZ DO
TRABALHO
Noutra linha de análise, há tese sobre a constitucionalidade e a regular
possibilidade da execução de ofício das contribuições previdenciárias pela
Justiça do Trabalho.
Primeiramente, estabelece-se que se a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT) permite a execução ex officio na Justiça do Trabalho, conforme
preceituado no art. 878 da Consolidação, e por sua vez, o próprio Código de
Processo Civil também traz hipótese de execução de ofício no seu art. 585, como
o crédito de serventuário de justiça, de perito, de intérprete, ou de tradutor,
quando as custas, emolumentos ou honorários forem aprovados por decisão
judicial, nestes termos, ainda mais a Constituição Federal de 1988 poderia
determinar, como o fez, o manejo da execução de ofício para cobrança de
contribuições previdenciárias perante a Justiça Laboral com base no princípio
da hierarquia das leis.
Além disto, pregam os defensores da constitucionalidade ora considerada,
como o faz Idelson Ferreira8, que o Magistrado manteria a sua imparcialidade
mesmo porque estaria apenas desempenhando uma função administrativa ao
iniciar a execução ex officio, ordenando então a integração da União à lide.
Dessa forma, a expressão execução de ofício deve ser interpretada no
CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Ob cit. 65-04/422.
FERREIRA, Idelson. A posição do Juiz diante da obrigatoriedade de execução das
contribuições sociais in Revista de Previdência Social. São Paulo, v. 23, n. 227, out, 1999, p. 829.
7
8
Revista Jurídica FACULDADES COC
161
sentido de uma obrigação funcional do magistrado do trabalho de provocar o
início e o andamento da execução, e não ser o próprio exeqüente.
Argumenta-se também, que esta função administrativa do juiz de iniciar
a execução corresponderia a um lançamento tributário, não se confundindo
com sua atividade de julgador em sentido estrito.
Tal fato transparece bem nítido na lição de Emerson Odilon:
Nada há, entrementes, que vede ou prive o magistrado do
trabalho de proceder a parametrização do devido, assim como,
resolver a questão de quem é o devedor. De efeito, ele poderá,
com todas as letras, lavrar ao que se denomina de lançamento
tributário no que atina às contribuições previdenciárias
que haverá de executar de ofício. (...) É esse lançamento,
decorrente do Juiz do Trabalho, um ato vinculado, ou seja,
decorrente da própria outorga constitucional. Talvez, até
para evitar porvindouras confusões, batizá-lo de lançamento
ex lege9.
E, mesmo que não se considere este fundamento da possibilidade
do lançamento pelo Judiciário, argumentam os expositores, que existem
procedimentos de cunho dispositivo e inquisitório no âmbito judicial. Seria
a execução de contribuições sociais inquisitória, realizando o magistrado
trabalhista uma importante função social nesta seara. Neste ponto, concluem
que o magistrado deve atuar em benefício do bem público ao executar de
ofício as contribuições previdenciárias, escapando da pecha individualista e
formal que encampa muitas vezes as atuações judiciais.
De outro ângulo de análise há também tese no sentido de que não é porque
existe crédito tributário que, necessariamente deve haver lançamento. O art. 142
do CTN remete à específica modalidade de formalização do crédito tributário,
que nem sempre será exigida, como na espécie de contribuição previdenciária
decorrente de sentença condenatória trabalhista, cuja natureza jurídica
do título executivo é judicial e não extrajudicial. E, em última análise, para
suplantar os argumentos formalistas dos defensores da inconstitucionalidade
da execução das contribuições previdenciárias pela Justiça do Trabalho,
bastaria o juiz oficiar a União para a formalização dos créditos previdenciários
decorrentes das sentenças que proferir. Assim, lançado o crédito, inscrito em
dívida e extraída a correspondente Certidão de Dívida Ativa (CDA), bastaria
a remessa ao Poder Judiciário novamente para a execução.
Entretanto, foi com a finalidade de não se realizar estes procedimentos
SANDIM, Emerson Odilon. Justiça Laboral e execução de contribuições previdenciárias:
exegese sistêmica e operativa da Lei Mater in http://neofito.direito.com.br/artigos/art01/
trab27.htm, em 20 de dezembro de 2000.
9
162
Revista Jurídica FACULDADES COC
formalistas, que prejudicaria sobremaneira o andamento processual, é que o
Poder Constituinte Reformador de 1998 e 2004 introduziram a novidade da
execução de ofício das contribuições previdenciárias das sentenças proferidas
pelo juiz do trabalho.
E também, não haveria afronta ao devido processo legal, pois, como
ressalta Sérgio Pinto Martins, “o contraditório pode ser observado no
momento determinado pela legislação, que pode diferi-lo como ocorre nas
tutelas urgentes, como mandado de segurança, cautelares, tutelas antecipadas
e específicas”10.
Dessa forma, não se trata de inexistência de contraditório e ampla defesa,
mas de manifestação em momentos posteriores como na manifestação à conta
de liquidação e na oposição de embargos de devedor pela empresa. Ademais,
a empresa tem oportunidade de se defender da condenação ao recolhimento
de contribuições previdenciárias quando apresenta contestação na reclamação
trabalhista, uma vez que já o faz ciente que do resultado daquela ação pode
decorrer a imposição de recolhimentos à União.
Quanto à afronta ao duplo grau de jurisdição, os defensores da
constitucionalidade da competência da Justiça do Trabalho para execução
de ofício das contribuições previdenciárias de suas decisões, salientam que
hoje se questiona na doutrina mais abalizada a existência do duplo grau de
jurisdição como princípio constitucional em razão do mesmo não vir expresso
na constituição, mas se decorrência da organização dos tribunais.
Neste sentido manifestou-se Luiz Guilherme Marinoni ao estatuir que
“esse princípio (do duplo grau de jurisdição) não tem sede constitucional
e, portanto, não é cogente para o legislador infraconstitucional”11. Assim,
segundo a doutrina mais abalizada não há irregularidade alguma em uma
norma infraconstitucional prever a participação de uma entidade apenas no
segundo grau de jurisdição.
5. ANÁLISE
DIVERGENTES
CRÍTICA
DAS
TESES
CONSTITUCIONAIS
Apresentado o quadro de debate sobre a constitucionalidade da execução
das contribuições previdenciárias no contexto da Justiça do Trabalho deve-se
passar a uma análise crítica para aferição da ponderação dos princípios e direitos
fundamentais eleitos para o embasamento de cada concepção dissonante, eis
MARTINS, Sérgio Pinto. Execução da contribuição previdenciária na justiça do trabalho .
São Paulo: Atlas, 2001, pág. 14
11
MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdicional
através do processo de conhecimento . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pág.
532.
10
Revista Jurídica FACULDADES COC
163
que não devem passar ao largo da ótica da razoabilidade e dos fins colimados
pela determinação do Texto Maior, no sentido de garantir e preservar, por
meio dos poderes constituídos, as fontes de custeio da Seguridade Social e que
permita a sua realização concreta como direito social fundamental.
Através do embate entre as posições sobre a constitucionalidade da
execução das contribuições previdenciárias no contexto da Justiça do Trabalho
é possível identificar e construir uma interpretação razoável a respeito da
execução das contribuições previdenciárias de ofício pelo magistrado do
trabalho.
Com efeito, os possíveis conflitos entre direitos fundamentais e
bens jurídicos que se possam extrair das considerações sobre o debate da
constitucionalidade da execução de ofício das contribuições previdenciárias
pela Justiça do Trabalho devem ser resolvidos sob a ótica dos interesses
comunitários relevantes que não são todos ou quaisquer bens jurídicos, vez
que se limitam àqueles bens protegidos constitucionalmente.
Assim, se de um lado são apontadas ofensas a princípios constitucionais
como a separação de poderes, devido processo legal, imparcialidade e
isonomia, de outro lado são evidenciados interesses sociais coletivos e difusos
relacionados à seguridade social, também constitucionalmente protegidos, e
que são tornados mais eficazes através da atuação de ofício do magistrado
do trabalho em contato direto com situações fáticas e jurídicas que ensejam a
garantia da higidez do custeio do sistema brasileiro de seguridade social.
São oportunas algumas palavras a respeito da contraposição de
normas jurídicas, e sobre a inconstitucionalidade de norma constitucional,
na conformidade do quando se manifestou Otto Bachof12 no sentido de
que pode, a princípio, parecer paradoxal uma lei constitucional violar-se a
si mesma. Entretanto, é possível que uma norma constitucional secundária,
apenas formalmente constitucional, vá de encontro a um preceito material
fundamental da Constituição.
Nesse sentido a lição de Hans Kelsen13, para quem a ordem jurídica
não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, mas em
escala de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é
produto da conexão de dependência de uma norma com outra. O fundamento
de validade última que constitui a unidade dessa interconexão criadora é a
norma fundamental.
Por sua vez, também Claus-Wilhelm Canaris sintetiza a matéria ao referir
que “o ordenamento jurídico constitui uma unidade, à qual corresponde um
sistema axiológico ou teleológico, realizando valores e escopos”14.
12
13
BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Coimbra: Atlântida, 1977, p. 55.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. São Paulo: RT, 2006.
164
Revista Jurídica FACULDADES COC
Cite-se ainda, que a doutrina majoritária, principalmente consoante
entendimento de Ronald Dworkin, sustenta que a estrutura normativa
é composta por princípios e regras jurídicas.Os princípios, que são mais
genéricos e abstratos do que as regras, não estão subsumidos a uma situação
de fato, possuindo uma dimensão de peso ou importância. Para sua aplicação,
não importa que os princípios estejam previstos no texto constitucional ou
não.
Nesta mesma linha, o jusfilósofo alemão Robert Alexy15 complementa
o pensamento de Dworkin no sentido de que os princípios, como espécies
de norma jurídica, não determinam as conseqüências normativas de forma
direta, ao contrário das regras. Daí serem definidos como mandamentos de
otimização, aplicáveis em vários graus normativos e fáticos.
Sobre o tema, ensina ainda Canaris, “que os princípios não valem sem
exceção e podem entrar entre si em oposição ou em contradição: eles não têm
a pretensão da exclusividade e ostentam o seu sentido próprio apenas numa
combinação de complementação e restrição recíprocas”.
Consigne-se, que para o citado jusfilósofo alemão Robert Alexy, as
regras são comandos definitivos, sujeitas ao conflito no nível de validade, mas
admitem cláusulas de exceção que faz perder seu caráter definitivo sobre a
base de um princípio. O princípio tem caráter prima facie, e são comandos de
otimização que ordenam algo para ser cumprido na maior medida possível
dentro das possibilidades reais e jurídicas existentes. Não se colidem no plano
de validade. Assim, a contradição se resolve no nível da proporcionalidade
como adequação do meio, necessidade do meio e, da ponderação como
proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, referente ao peso da satisfação
de um princípio sobre o outro. As regras serão cumpridas ou não pela ausência
ou não das possibilidades, podendo da azo às cláusulas de exceção para o caso
concreto.
Na esteira dessas considerações, não se pode deixar de lado as
contribuições do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, o qual aponta
uma crítica para as reflexões de Alexy relativas a valores que para este se
aplicam aos princípios e vice-versa, já que do ponto de vista estrutural, em
razão da necessidade de ponderação, os princípios podem ser comparados aos
valores, sendo que Habermas ensina que normas não se comparam a valores,
uma vez que estes são preferências intersubjetivas.
CANARIS, Claus Wilhem. Pensamento sintético e conceito de sistema na ciência do direito.
Lisboa: Calouste, 1996, p. 66.
15
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios
Constitucionales, 1993. p. 86.
14
Revista Jurídica FACULDADES COC
165
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na esteira do embate teórico apresentado a respeito da constitucionalidade
da cobrança de ofício pelo juiz do trabalho das contribuições previdenciárias
decorrentes das sentenças que proferir, em última análise impende considerar
que as normas jurídicas devem ser produzidas, interpretadas e aplicadas
visando precipuamente à melhoria das condições de vida e a garantia dos
direitos fundamentais em todas as suas dimensões.
Neste âmbito, a preservação da dignidade e dos direitos da pessoa
humana são essenciais rumo à construção de uma sociedade justa e de um
Estado Democrático de Direito.
Frise-se que os direitos sociais, enquanto realizações materiais pelo
Estado, podem ser reputados como um pilar da cidadania, ao passo que se
destinam ao amplo desenvolvimento das potencialidades do ser humano
individual e coletivamente, com vistas à garantia de saúde, educação, trabalho,
cultura, lazer, habitação e previdência social. É inegável que a realização e
concretização destes direitos sociais passa, para além de uma mudança de
postura político-econômica-social, sobretudo por uma melhoria da atuação
do Poder Judiciário em conexão mais próxima ao Legislativo e Executivo em
todos os níveis.
Importa notar que a atuação dos poderes constituídos não se dá de forma
estanque, mas com o viés do inter-relacionamento, na medida em que todos
devem buscar a implementação dos direitos fundamentais, para que se possa
criar uma cidadania efetiva, e realizar os princípios e objetivos constitucionais
de um Estado Democrático.
As disposições constitucionais e legais decorrentes das Emendas
Constitucionais n.º 20/1998 e 45/2004 denotam uma alteração profunda na
temática da execução das contribuições previdenciárias, atribuindo-lhe uma
especificidade jurídica única, e, embora haja polêmica sobre a temática da
constitucionalidade da competência da Justiça do Trabalho para executar de
ofício as contribuições previdenciárias relativas às suas decisões, tal alteração,
sob a ótica da ponderação de interesses, conferiu indubitavelmente à Justiça do
Trabalho e a seus órgãos, poderes para preservar e garantir além dos direitos
trabalhistas também os direitos previdenciários dos jurisdicionados de uma
forma efetiva e real, protegendo os hipossuficientes e dando firme passo rumo
à concretização dos direitos sociais estampados no Texto Magno de 1988.
166
Revista Jurídica FACULDADES COC
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O DOGMA DA SUPREMACIA DO INTERESSE
PÚBLICO E SEU ABRANDAMENTO PELA
JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL ATRAVÉS DA TÉCNICA DA
PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS
FLÁVIO QUINAUD PEDRON1
Resumen
O presente trabalho pretende reconstruir a compreensão jurisprudencial do
STF acerca da relação entre interesses públicos e interesses privado a fim de
demonstrar como o primeiro não mais pode avocar primazia sobre o segundo.
Tal conclusão, no direito brasileiro, foi obtida a partir do uso pelo Tribunal
da técnica de “ponderação de princípios” de Robert Alexy, que também será
analisada. Ao final, conclui-se leitura jurisprudencial, em razão do uso de tal
técnica, não é uma via adequada ao Estado Democrático de Direito.
The following article intent rebuilt the argumentative base of the STF’s
precedents in order to demonstrate that the public interest cannot assume
supremacy over the private one. In Brazilian law, this understanding is a
result of the use of the Robert Alexy’s technique of “balancing” between
principles. In the end, concludes such technique is not appropriate to a
Constitutional Estate.
“Em que medida a Constituição de 1988 importa numa mudança
na jurisprudência do Supremo Tribunal Federa? Em que medida as bases
interpretativas no Supremo Tribunal Federal foram modificadas após a
promulgação da Constituição de 1988?” Essas são as perguntas principais
feitas por Baracho Júnior (2004:509), em seu ensaio sobre a possibilidade de
se identificar uma “nova hermenêutica” nos julgados do Supremo Tribunal
Federal (STF).
Ora, se é possível identificar alguma forma de inovação, no curso da
linha de raciocínio que o Tribunal vinha tomando, é de se pressupor também
a existência de algo anterior, algo que foi ou está sendo superado.2 Para tal
empreitada, faz-se necessária a observância dos julgados não apenas como
casos isolados, mas como “precedentes”, ou seja, como fundamentos para as
decisões seguintes - prática utilizada pelo STF para possivelmente representar
Mestre e doutorando em Direito pela UFMG. Professor de Teoria Geral do Processo e
Direito Processual na PUC-Minas. Professor de Hermenêutica Jurídica no Uni-Centro Izabela
Hendrix, Belo Horizonte/MG. Advogado. email: qpedron@ gmail.com
2
Torna-se muito comum a afirmação de uma mudança hermenêutica no Direito brasileiro,
ver, por exemplo, os trabalhos de Streck (2003) e Barroso e Barcelos (2004), que vêm
desenvolvendo diversas pesquisas sobre o que seria essa “nova interpretação” assumida pelo
Supremo Tribunal Federal em seus julgados.
1
170
Revista Jurídica FACULDADES COC
uma forma de sistematizar a sua jurisprudência.3
Mas, diante da história institucional brasileira, esse trabalho pode se ver
ameaçado: “Evidentemente que uma corte cujo trabalho é constantemente
interrompido por golpes de Estado, tem maior dificuldade em consolidar uma
orientação jurisprudencial minimamente coerente” (BARACHO JÚNIOR,
2004:510).
O tema que pode funcionar como guia dessa tarefa, uma vez que sempre
esteve presente, sendo tomado como um dogma, é a prevalência do interesse
público sobre o interesse privado. Como lembra Ávila (2005:171), para a
dogmática jurídica, seu desenvolvimento teórico viria a partir dos estudos
do Direito Administrativo,4 mas com ramificações e influências para outros
“ramos” do Direito, como o direito tributário.
Se, por um lado, a discussão sobre a supremacia do interesse público sobre
o privado era posta como um axioma5 - por partir das lições do positivismo
jurídico, que considerava a separação rígida entre Direito e Política, excluindo
a possibilidade de um Tribunal apreciar “questões políticas” - por outro,
tal afirmação também serviu como “forma de fragilizar a tutela de direitos
individuais em face do poder público” (BARACHO JÚNIOR, 2004:513).
Com isso, evitava a tutela de direitos individuais. E essa não era um
“Na Suprema Corte Americana é possível identificar nitidamente alguns períodos nos quais
houve a consolidação de determinados princípios de interpretação constitucional, como
o período de prevalência do devido processo substantivo, entre 1905 e 1937, o período da
Corte de Warren, a partir de 1954, até 1969, que foi um período fortemente interventivo em
relação às leis estaduais. Ou, ainda, a suprema Corte da Década de 1990, que é uma Suprema
Corte fortemente preocupada com o princípio federativo e, por outro lado, abandona, em
certa medida, os direitos fundamentais como principal foco de sua atuação, possibilitando
que os Estados tenham maior liberdade de atuação legislativa em questões que importam em
restrição ao exercício de tais direitos” (BARACHO JÚNIOR, 2004:511).
4
Nesse sentido, encontra-se a lição de Bandeira de Melo (2003:60): “Trata-se de verdadeiro
axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da
coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo
da sobrevivência e asseguramento deste último”. Todavia, nota-se que essa afirmação parte,
ainda, de uma compreensão paradigmática do Direito que se olvida do atual paradigma
procedimental do Estado Democrático de Direito. Como será explorado, no quarto capítulo,
Habermas (1998) busca reconstruir os princípios do Estado de Direito e da Democracia para
lançar uma compreensão não mais dicotômica da relação público/privado, mas, ao invés
disso, equiprimordial. Para o filósofo alemão: “Os cidadãos só podem fazer um uso adequado
de sua autonomia pública quando são independentes o bastante, em razão de uma autonomia
privada que esteja equanimemente assegurada; mas também no fato de que só poderão chegar
a uma regulamentação capaz de gerar consenso, se fizerem uso adequado de sua autonomia
política enquanto cidadãos” (HABERMAS, 2002:294).
5
Como lembra Ávila (2005:176): “Axioma (usado, originalmente, como sinônimo de postulado)
denota uma proposição cuja veracidade é aceita por todos, dado que não é nem possível nem
necessário prová-la. Por isso mesmo, são os axiomas aplicáveis exclusivamente por meio da
lógica, e deduzidos sem a intervenção de pontos de vista materiais”.
3
Revista Jurídica FACULDADES COC
171
debate novo no Supremo Tribunal Federal. Já no governo Floriano Peixoto, no
início da República, logo após a implantação do Supremo Tribunal Federal,
algumas questões que envolviam ofensas a direitos individuais não foram
por ele apreciadas, pois, segundo dizia a Corte, eram questões políticas. Em
1893, em estado de sítio decretado por Floriano Peixoto, o Supremo se recusou
a apreciar uma série de lesões a direitos individuais ao argumento de que
aquelas questões eram políticas e que, portanto, não poderiam ser objeto de
apreciação pelo Poder Judiciário (BARACHO JÚNIOR, 2004: 512-513).
Entretanto, havia opositores a essa tese, como lembram Rodrigues
(1991:20) e Souza Cruz (2004:277). Segundo a historiadora, o discurso de
Rui Barbosa,6 na defesa dos direitos individuais, representa um contraponto
necessário ao exercício democrático dos direitos políticos:
As palavras de Rui Barbosa em 1892 indicam essa concepção:
“os casos, que, se por um lado toca a interesses políticos, por
outro lado, envolvem direitos individuais, não podem ser
defesos à intervenção dos tribunais, amparo de liberdade
pessoal contra as invasões do executivo. [...] Onde quer que
haja um direito individual violado, há de haver um recurso
judicial para a debelação da injustiça. Quebrada a égide
judiciária do direito individual, todos os diretos desaparecem,
todas as autoridades se subvertem, a própria legislatura
esfacela-se nas mãos da violência; só uma realidade subsiste:
a onipotência do executivo, que a vós mesmos vos devorará,
se nos desarmardes da vossa competência incontestável em
todas as questões concernentes à liberdade” (RODRIGUES,
1991:20-21, grifos no original).
Dessa forma, como afirma Souza Júnior (2004:88), foi-se construindo a
noção de que a condição para o exame judicial de questões políticas seria a
possibilidade de lesão a direitos individuais.
Em um dos [julgados] mais antigos (HC 3061, julgado em 1911), o
Supremo afirmou a possibilidade de conhecimento judicial do caso político
quando acompanhado de uma questão judiciária. Logo depois, em 1914,
aquela corte resguardou do exame judicial os motivos determinantes ou
Como lembra Souza Júnior (2004:89), a figura de Rui Barbosa foi determinante para o
desenvolvimento do debate sobre as questões políticas, pois “[p]ropunha um diálogo franco
entre os grandes poderes do Estado, estipulados em textos formais, de um lado, e, de outro, os
direitos individuais, taxativamente assegurados. A interpretação judicial desempenha, neste
diálogo, a missão de mediação com o objetivo de evitar as possíveis colisões. Se os poderes
exercidos extrapolam o círculo de competências, ou se direitos individuais são feridos, a
intervenção judicial é legítima. Se se quer debater a existência constitucional de uma faculdade
administrativa ou legislativa, também o judiciário será o assunto”.
6
172
Revista Jurídica FACULDADES COC
as conseqüências políticas dos atos de intervenção nos Estados. Construiu
também o entendimento de que podia o Judiciário conhecer de casos puramente
políticos, desde que se alegasse lesão de direito individual (SOUZA JÚNIOR,
2004:88).
Todavia, a noção de prevalência do interesse público sobre o interesse
privado, mesmo com riscos à violação de direitos fundamentais, acaba se
fortalecendo, principalmente a partir de 1960, intensificando-se no período
autoritário que se seguiu.
Vamos ter, especialmente, a partir de 1965, com a edição do Ato
Institucional n. 2, decisões do Supremo Tribunal Federal que importam em
negar tutela de uma série de direitos individuais, fortalecendo a idéia de
prevalência do interesse público sobre o privado. É o que vamos ver em
algumas decisões, como por exemplo, no caso João Goulart, em 1967. De uma
maneira geral, as questões que envolviam a segurança nacional, se pautavam
pela idéia de prevalência do interesse público sobre o privado (BARACHO
JÚNIOR, 2004:514).
Essa interpretação permaneceu, contudo, com o advento da Constituição
da República de 1988; como afirma Baracho Júnior (2004-514), basta analisar a
decisão proferida na ADI n. 47, que tratou da interpretação do art. 100 da Carta
Magna, estabelecendo que “à exceção dos créditos de natureza alimentícia, a
execução contra a fazenda pública se fará através de precatório”.7
De uma maneira geral, para os publicistas, mas principalmente para
os administrativistas, o princípio da supremacia do interesse público sobre
o particular se apresenta como um princípio implícito na ordem jurídica
brasileira e seria usado para justificar uma série de prerrogativas titularizadas
pela Administração Pública. Isso ocorre por se entender que a mesma seria a
“tutora” e a “guardiã dos interesses da coletividade” (SARMENTO, 2005:24).
Como conseqüência, verifica-se a existência de uma verticalidade na relação
entre a Administração Pública e os administrados, de modo que o desequilíbrio
seria sempre em favor do Estado.
Mas o que se pode considerar como interesse público? Talvez essa
questão devesse ser mais bem problematizada pelos publicistas, que muitas
vezes igualam a dimensão do público à coletividade e, outras vezes, ao estatal
(governamental).
Lembra Baracho Júnior (2004:514-515): “ Nesta [ADI], o Supremo Tribunal Federal
interpretou o art. 100 de uma maneira que contraria os próprios anais da Assembléia Nacional
Constituinte. O Constituinte pretendeu retirar os créditos de natura alimentícia desta forma
de execução, qual seja, a execução através de precatórios. O Supremo Tribunal Federal,
entretanto, afirmou que a única especificidade que decore do art. 100 da Constituição é a
possibilidade dos créditos de natureza alimentícia terem prioridade em relação a outros
créditos contra a fazenda pública. Assim, os créditos alimentícios terão sempre prioridade na
ordem de pagamento em relação a outros créditos”.
7
Revista Jurídica FACULDADES COC
173
Para Bandeira de Melo (2003:57) - valendo-se das lições de Alessi8,
seria possível distinguir dois tipos de interesse público: interesse público
primário e interesse público secundário (SARMENTO, 2005:24; BARROSO,
2005:xiii). Nessa ótica, identifica-se o interesse primário como sendo a razão
de ser do Estado ou como os interesses gerais da coletividade; já o segundo
tipo representa os interesses particulares que o Estado possui como pessoa
jurídica e não mais como expressão de uma vontade coletiva. Logo, alguns
administrativistas buscam fazer uma ponte entre o interesse público primário
e o bem comum como forma de afirmação de sua superioridade em face do
interesse privado.
Binenbojm (2005:137) faz uma crítica precisa à tentativa de alguns juristas
de justificar a supremacia do interesse público como princípio norteador da
ação administrativa. Nesse sentido, a supremacia do interesse público atuaria
como garantia de proteção, inclusive do interesse privado, já que impediria
o Estado de atuar a favor de interesses privatísticos, desviando-se dos fins
coletivos. Todavia, a corrente a que se filia Di Pietro (2004:69-70) nada
esclarece sobre a relação público/privado; além do mais, os problemas por
ela apontados não são resolvidos nesse plano, mas no plano dos princípios da
impessoalidade e da moralidade.
Salles (2003:58) reconhece a dificuldade de se chegar a um conceito de
fácil assimilação, haja vista a natureza genérica que o conceito deve assumir
para abranger uma pluralidade de interesses dispersos pela sociedade. Dessa
forma, vale-se do Teorema de Arrow (Arrow’s theorem)9 para assegurar que
tomadas de posição que parecem envolver uma discricionariedade, seria
melhor, se deixadas a cargo da decisão estatal (política), representativa do
interesse público. Todavia, tal posição pode parecer por demais cética e, até
mesmo, ingênua - por vezes, autoritária - ao imaginar que o Estado seja capaz
de corporificar todos os anseios e desejos de uma sociedade. Além do mais,
vale aqui o alerta de Sarmento (2005:27), já que tal tese pode representar uma
forma de ressurreição das “razões de Estado”, colocando-se como obstáculo
Sistema Istituzionale del diritto amministrativo ilaliano, 1960, p. 197, apud Bandeira de Melo
(2003:57).
9
Segundo Salles (2003:59), Kenneth J. Arrow “demonstrou [seu teorema] no começo da década
de 60. Arrow tomou hipoteticamente três indivíduos com poder para tomar uma decisão e,
considerando que cada um deles tem uma ordem de preferências diferentes, demonstrou,
matematicamente, que o cruzamento dessas preferências individuais pode levar a decisões
inteiramentes aleatórias, dependendo de fatores estruturais do processo decisório”.
10
Aragão (2005:7) alerta para o risco de que supostos “interesses públicos” sejam utilizados
pelo Estado como forma de justificar restrições aos direitos fundamentais. Cita, para tanto, dois
precedentes norte-americanos: no primeiro, Cennis vs. United States, esse dogma possibilitou
restrições à liberdade de manifestação de idéias que fossem consideradas esquerdistas; no
outro, Korematsu vs. United States, permitiu que cidadãos norte-americanos de origem
japonesa ficassem confinados em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.
8
174
Revista Jurídica FACULDADES COC
intransponível para o exercício de direitos fundamentais.10
A outra proposta que identifica o público ao componente majoritário
também se mostra delicada. Tomando como referência aplicada dessa
concepção a decisão proferida no julgamento do Recurso Extraordinário n.
153.531-8, de Santa Catarina, fica claro que o interesse público aqui é igualado
a uma maioria da sociedade. Ao examinar o questionamento de se a farra do
boi - prática de alguns descendentes de açoreanos residentes em Florianópolis
- representaria um risco para a segurança dos participantes e uma ação cruel
para com os animais, Baracho Júnior afirma que:
O Supremo Tribunal Federal trabalha com dois fundamentos para dizer
que o Estado de Santa Catarina deveria atuar, através da Polícia Militar, no
sentido de reprimir a farra do boi. O primeiro argumento é que os animais
estariam submetidos à crueldade. O art. 225 da Constituição, inciso VII,
diz que o Estado não deverá tolerar crueldades contra animais. O segundo
fundamento é o mais curioso desta decisão, porque é exatamente a prevalência
de uma visão majoritária sobre a de uma coletividade [minoritária]. Há uma
idéia de que as tradições de um grupo minoritário não podem prevalecer
sobre as tradições que não são compartilhadas pela maioria da sociedade
brasileira. As expressões utilizadas no voto vencedor são ilustrativas, pois os
descendentes de açoreanos são comparados a uma “turba ensandecida”que
adota procedimentos estarrecedores (2004:516).
Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal deixou de observar a dimensão
hermenêutica envolvida na questão. Tomando apenas a posição de um
observador sociológico, compreendeu-se que o interesse público aqui seria o
de proteger os animais de uma prática violenta. Todavia,
[...] esta idéia de violência não existe para os açoreanos. Os descendentes
de açoreanos que faziam da farra do boi uma celebração anual, não associavam
à manifestação uma idéia de violência que nós, que não somos descendentes
de açoreanos, associamos. Este é um dado importante, pois, na Espanha, por
exemplo, em práticas semelhantes, a idéia de violência não está associada.
Dificilmente tais práticas seriam atribuídas a uma “turba ensandecida”
na Espanha. Muito menos seriam os procedimentos considerados como
estarrecedores (BARACHO JÚNIOR, 2004:517).
Dessa forma, pode-se perceber que a associação do interesse público ao
interesse de uma maioria da sociedade mostra-se insuficiente sob o prisma de
uma democracia pluralista, que garante a inclusão da perspectiva de todos os
envolvidos.
Logo, definir o interesse público como interesse geral de uma coletividade
e contrapô-lo a um interesse privado limitado ao perímetro das vivências
experimentadas pelos indivíduos fora do alcance da polis (SARMENTO,
2005:30) é insuficiente. Primeiro, porque não pode o indivíduo ignorar a
Revista Jurídica FACULDADES COC
175
dimensão imposta pela vida em sociedade; sua casa não pode servir como
metáfora da ilha imaginada por Crusoé, ou ser entendida como uma fortaleza
que coloque o público na porta da rua; pois o processo de socialização acontece
concomitantemente com o processo de individualização11. Sarmento (2005:47)
lembra que a sociedade contemporânea é por demais complexa para se apoiar
em pilares estanques. Vive-se em um tempo que imprime um novo sentido
à concepção de espaço público, que não vem mais associada unicamente ao
elemento estatal.12
A pergunta sobre qual é o interesse da coletividade leva, então, a uma
outra pergunta: quem é a coletividade?, ou a outra ainda mais radical: “quem
é o povo?”, que já suscitou um importante ensaio pelo jurista alemão Müller
(1998). Nesse trabalho, Müller alerta para a figura do povo como um ícone em igual precisão, Carvalho Netto (2003:84) lembra que o conceito de povo é
por demais “gordo”, isto é, pode ser manipulado ao sabor de conveniências
políticas.
Outro importante trabalho é o texto de Rosenfeld sobre a Identidade do
Sujeito Constitucional (2003). Através das reflexões do professor da Cardozo
School of Law, pode-se compreender o conceito de povo como um eterno
hiato, aberto a um processo dinâmico de elaboração e revisão. É justamente
no seu fechamento como conceito que se encontra o perigo para a democracia:
Esse rápido olhar inicial sobre a identidade constitucional, bem como
sobre o sujeito e a matéria constitucionais revela que é bem mais fácil
determinar o que eles não são do que propriamente o que eles são. Ao construir
essa intuição, esse insight, exploro a tese segundo a qual, em última instância,
é preferível e mais acurado considerar o sujeito e a matéria constitucionais
como uma ausência mais do que como uma presença. Em outros termos, a
própria questão do sujeito e da matéria constitucionais é estimulante porque
encontramos um hiato, um vazio, no lugar em que buscamos uma fonte última
de legitimidade e autoridade para a ordem constitucional. Além do mais, o
sujeito constitucional deve ser considerado como um hiato ou uma ausência
Ver HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990; HABERMAS, Jürgen. Teoría de
la acción comunicativa. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus, 1987. 2 v. (Tomo I:
Racionalidad de la acción y racionalización social; Tomo II: Crítica de la razón funcionalista);
e FERREIRA, Rodrigo Mendes. Individualização e Socialização em Jürgen Habermas: um
estudo sobre a formação discursiva da vontade. São Paulo: Annablume, 2000.
12
“De fato, se no Estado Liberal o público correspondia ao Estado e o privado a uma sociedade
civil regida pelo mercado, considerada como o locus em que indivíduos perseguiam
egoisticamente seus interesses particulares, robustece-se agora um terceiro setor, que é
público, mas não estatal. Ele é composto por ONG’s, associações de moradores, entidades
de classe e outros movimentos sociais, que atuam em prol de interesses da coletividade, e
agem aglutinando e canalizando para o sistema político demandas importantes, muitas vezes
negligenciadas pelas instâncias representativas tradicionais” (SARMENTO, 2005:48).
11
176
Revista Jurídica FACULDADES COC
em pelo menos dois sentidos distintos: primeiramente, a ausência do sujeito
constitucional não nega o seu caráter indispensável, daí a necessidade de sua
reconstrução; e, em segundo lugar, o sujeito constitucional sempre envolve
um hiato porque ele é inerentemente incompleto, e então sempre aberto a
uma necessária, mas impossível, busca de completude. Conseqüentemente,
o sujeito constitucional encontra-se constantemente carente de reconstrução,
mas essa reconstrução jamais pode se tornar definitiva ou completa. Da
mesma forma, de modo consistente com essa tese, a identidade constitucional
deve ser reconstruída em oposição às outras identidades, na medida em
que ela não pode sobreviver a não ser que pertença distinta dessas últimas.
Por outro lado, a identidade constitucional não pode simplesmente dispor
dessas outras identidades, devendo então lutar para incorporar e transformar
alguns elementos tomados de empréstimo. Em suma, a identidade do sujeito
constitucional só é suscetível de determinação parcial mediante um processo
de reconstrução orientado no sentido de alcançar um equilíbrio entre a
assimilação e a rejeição das demais identidades relevantes acima discutidas
(2003:26-27).
Para isso, Rosenfeld utiliza três instrumentos teóricos:
A negação, a metáfora e a metonímia combinam-se para
selecionar, descartar e organizar os elementos pertinentes com
vistas a produzir um discurso constitucional no e pelo qual o
sujeito constitucional possa fundar sua identidade. A negação
é crucial à medida que o sujeito constitucional só pode emergir
como um “eu” distinto por meio da exclusão e da renúncia. A
metáfora ou condensação, por outro lado, que atua mediante
o procedimento de se destacar as semelhanças em detrimento
das diferenças, exerce um papel unificador chave ao produzir
identidades parciais em torno das quais a identidade
constitucional possa transitar. A metonímia ou deslocamento,
finalmente, com a sua ênfase na contigüidade e no contexto,
é essencial para evitar que o sujeito constitucional se fixe em
identidades que permaneçam tão condensadas e abstratas ao
ponto de aplainar as diferenças que devem ser levadas em
conta se a identidade constitucional deve realmente envolver
tanto o eu quanto o outro (2003:50).
Dessa forma, dentro de uma mesma sociedade, há não apenas uma
identidade coletiva, mas diversas e até mesmo concorrentes, de modo que uma
interpretação da Constituição que leve em conta apenas uma identidade, por
mais majoritária que seja, pode lançar complicações para o desenvolvimento
da democracia. Afinal a identidade constitucional, embora aberta às diversas
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177
identidades coletivas, não se confunde com nenhuma delas.
Todavia, como o próprio julgamento do Recurso Extraordinário n.
153.531-8 irá revelar, a noção de interesse público não foi tomada como um
dogma, mas sim compreendida de maneira a ter de se “compatibilizar” com
o interesse privado pela via da utilização. Para tanto, conforme inspiração
no Direito alemão, mais exatamente na tradição da jurisprudência de valores
alemã, o STF fez uso da técnica de ponderação, por meio da qual: “[...] Quanto
maior o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto mais
tem que ser a importância da satisfação do outro” (ALEXY, 1997:161, tradução
livre).13
Como observa Souza Cruz (2004:160), o pensamento utilitarista serve de
base para a ponderação;14 todavia seus defensores alegam que o “princípio”
da proporcionalidade seria capaz de impedir a escolha arbitrária, vinculando
o operador jurídico ao uso de meios adequados e proporcionais. Um desses
defensores é o jurista de Kiel, Alexy (1997). Mas, como se verificará, o
presente trabalho irá sustentar a tese de que, no pensamento de Alexy, ainda
persiste uma dificuldade em assimilar completamente o giro hermenêuticopragmático,15 por ainda buscar no método a expressão de uma racionalidade
capaz de neutralizar toda a complexidade inerente à linguagem (ALEXY,
“[...] Cuanto mayor es el grado de la no satisfacción o de afectación de un principio, tanto
mayor tiene que ser la importancia de la satisfacción del otro”.
14
A popularidade do método da ponderação adquire cada dia mais destaque nos julgamento
proferidos pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF). Tanto assim, que Barroso e
Barcelos (2004:471) e Baracho Júnior (2004:520) defendem que sua adoção representa uma
mudança no curso da interpretação levada a cabo pelo tribunal, equivalendo à adoção de
uma Nova Hermenêutica na Jurisprudência do STF. O precedente representado pelo HC n.
82.424/RS mostra-se como exemplo de uma aplicação prática da teoria de Alexy. Isso porque
o caso ganhou notoriedade por examinar um suposto conflito entre os princípios da liberdade
de expressão e da dignidade da pessoa humana, envolvendo a acusação de prática de racismo
durante a publicação de livros anti-semitas. As bases da ponderação foram bem explicitadas
através dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio.
15
Cabe destacar, desde já, que, diferentemente de Alexy, Dworkin desenvolve sua teoria
levando em conta o giro hermenêutico empreendido por Heidegger e Gadamer, sendo que
o último irá adotar uma postura de ruptura com as posições objetivistas de Schleiermacher e
Dilthey, radicalizando a experiência hermenêutica e se apoiando principalmente no modo de
ser do Casein(do ser-aí) heideggeriano. Desta forma, a Hermenêutica Filosófica entende que
“a compreensão humana se orienta a partir de uma pré-compreensão que emerge da eventual
situação existencial e que demarca o enquadramento temático e o limite de validade de cada
tentativa de interpretação” (GRONDIN, 1999:159). Os reflexos da percepção de tal “consciência
histórica” podem ser sentidos no pensamento de Dworkin, como lembra Carvalho Netto:
“Para ele, a unicidade e a irrepetibilidade que caracterizam todos os eventos históricos, ou
seja, também qualquer caso concreto sobre o qual se pretenda tutela jurisdicional, exigem do
juiz hercúleo esforço no sentido de encontrar no ordenamento considerado em sua inteireza a
única decisão correta para este caso específico irrepetível por definição” (1999:475).
13
178
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1998:32; 2003:139; 1997:98; 1997b:136).16
A partir dessa ótica, tanto o interesse público quanto o interesse privado
podem ser considerados à luz de princípios. Alexy (1998:09) concorda com a
compreensão de regras e de princípios como espécies de normas jurídicas - o
que leva à necessidade de empreender uma digressão sobre uma compreensão
do Direito para além de um mero conjunto de regras.17
Partindo dessa premissa, lembra-se que freqüentemente a distinção
entre ambos os standars normativos se dá em razão da generalidade dos
princípios frente às regras. Isto é, muitos autores compreendem os princípios
como normas de um grau de generalidade relativamente alta, ao passo que as
regras seriam dotadas de uma menor generalidade.18 Contudo, tal abordagem
quantitativa, levada adiante por autores como Del Vecchio e Bobbio, mostra-se
insuficiente à luz do pensamento desenvolvido já em Esser,19 como demonstra
Galuppo (2002:170-171). Tal tese é denominada por Alexy (1998:09) como a tese
fraca da separação, de modo que uma tese forte, como a que o autor pretende
adotar, considera a distinção como qualitativa. Logo, podese perceber que a
generalidade não é um critério adequado para tal distinção, pois é, quando
muito, uma conseqüência da natureza dos princípios, sendo incapaz de
proporcionar uma diferenciação essencial (GALUPPO, 1999:137).
Afirma-se, então, que regras, diferentemente dos princípios, são
aplicáveis na maneira do tudo-ou-nada (all-or-nothing-fashion);20 isso
significa dizer que, se uma regra é válida, ela deve ser aplicada da maneira
como preceitua, nem mais nem menos, conforme um procedimento de
subsunção silogístico (AFONSO DA SILVA, 2002:25). Todavia, o principal
Importante lembrar a colocação de Cattoni de Oliveira (2001:77-78) no sentido de que,
para Alexy (2001:17-18), a racionalidade de um discurso prático pode ser mantida se forem
satisfeitas as condições expressas por um sistema de regras ou procedimentos.
17
Aqui é preciso lembrar, que Alexy toma como referência de norma o conceito “semântico”
de norma (GALUPPO, 1999:135-136) presente já em Kelsen (1999), de modo que compreende
que a norma é o significado extraído de um enunciado.
18
Nesse sentido, ver Hart (1994:321-325) em resposta a distinção dworkiana entre princípios
e regras.
19
“Para Josef Esser, princípios são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que
determinado mandamento seja encontrado. Mais do que uma distinção baseada no grau
de abstração da prescrição normativa, a diferença entre os princípios e as regras seria uma
distinção qualitativa. O critério distintivo dos princípios em relação às regras seria, portanto,
a função de fundamento normativo para a tomada de decisão” (ÁVILA, 2004:27).
20
Muitos autores atribuem a Alexy a originalidade da distinção entre regras e princípios;
todavia, esses se olvidam do importante ensaio publicado por Dworkin, Model of Rules,
originalmente, na Chicago Law Review nº . 35 (1967-1968), sendo, depois, republicado como
o capítulo 2 da obra Levando os Direitos a Sério(com tradução para o português pela Editora
Martins Fontes, em 2002). Todavia, importante lembrar, mais uma vez, que a distinção
dworkiana se pauta pelo prisma lógico-argumentativo, e não por critéiros estruturais - ou
morfológicos -. Reconhecendo isso, tem-se Sarmento (2000:44).
16
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179
traço distintivo com relação aos princípios é observado quando, diante de um
conflito entre regras, algumas posturas deverão ser tomadas para que apenas
uma delas seja considerada válida (ÁVILA, 2004:30). Como conseqüência, a
outra regra não somente não será considerada pela decisão, mas deverá ser
retirada do ordenamento jurídico, como inválida, salvo se não for estabelecido
que essa regra se situa em uma situação que excepciona a outra - trata-se
do critério da excepcionalidade das regras. Um exemplo é fornecido pelo
próprio Alexy (1997b:163-164): uma Lei Estadual proibia o funcionamento
de estabelecimentos comerciais após as 13:00 e, concomitantemente, existia
uma Lei Federal estendendo esse funcionamento até às 19:00. Nesse caso,
o Tribunal Constitucional alemão solucionou a controvérsia, apoiando-se
no cânone da hierarquia das normas, de modo a entender pela validade da
legislação federal.
Já os princípios, por sua vez, não são determinantes para uma decisão,
de modo que somente apresentariam razões em favor de uma ou de outra
posição argumentativa (ALEXY, 1998:09-10); logo apresentam obrigações
prima facie, na medida em que podem ser superadas em função de outros
princípios (ÁVILA, 2004:30; AFONSO DA SILVA, 2005:32), o que difere na
natureza de obrigações absolutas das regras. É, por isso, que o autor afirma
existir uma dimensão de peso entre princípios - que permanece inexistente
nas regras - principalmente nos chamados casos de colisão, exigindo para a
sua aplicação um procedimento de ponderação (balanceamento). Destarte,
em face de uma colisão entre princípios, o valor decisório será dado a um
princípio que tenha, naquele caso concreto, maior peso relativo, sem que isso
signifique a invalidação do princípio compreendido como de peso menor. Em
face de outro caso, portanto, o peso dos princípios poderá ser redistribuído de
maneira diversa,21 pois nenhum princípio goza antecipadamente de primazia
sobre os demais.22 É desta forma que Alexy (1998:12) apresenta a distinção
“No caso das colisões entre princípios, portanto, não há como se falar em um princípio que
sempre tenha precedência em relação a outro. [...] É por isso que não se pode falar que um
princípio P1 sempre prevalecerá sobre o princípio P2- ( P1 P P2) -, devendo-se sempre falar
em prevalência do princípio P1 sobre o princípio P2 diante das condições C- ( P1 P P2) C “
(AFONSO DA SILVA, 2005:35).
22
Isso pode ser percebido no julgamento do HC n. 82.424/RS. Como já comentado, o STF
identificou um conflito envolvendo os princípios da dignidade da pessoa humana e da
liberdade de expressão. Em momento algum, afirmou-se que a dignidade da pessoa humana
(ou mais exatamente, não discriminação) seria hierarquicamente superior à liberdade
de expressão. Assim, um ou outro princípio pode ser ponderado através de sua aplicação
gradual no caso sub judice . Assim, como bem reconhece o Min. Marco Aurélio em seu voto,
“as colisões entre princípio [sob essa ótica] somente podem ser superadas se algum tipo de
restrição ou de sacrifício formem impostos a um ou os dois lados. Enquanto o conflito entre
regras resolve-se na dimensão da validade, [...] o choque de princípios encontra solução na
dimensão do valor, a partir do critério da ‘ponderação’, que possibilita um meio-termo entre
a vinculação e a flexibilidade dos direitos”.
21
180
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fundamental entre regras e princípios:
[...] princípios são normas que ordenam que algo se realize na
maior medida possível, em relação às possibilidades jurídicas
e fáticas. Os princípios são, por conseguinte, mandamentos de
otimização que se caracterizam porque podem ser cumpridos
em diferentes graus e porque a medida de seu cumprimento
não só depende das possibilidades fáticas, mas também das
possibilidades jurídicas. [...]. Por outro lado, as regras são
normas que exigem um cumprimento pleno e, nessa medida,
podem sempre ser somente cumpridas ou não. Se uma regra
é válida, então é obrigatório fazer precisamente o que se
ordena, nem mais nem menos. As regras contêm por isso
determinações no campo do possível fático e juridicamente
(ALEXY, 1998:12, grifos no original, tradução livre).23
Mas como explicar a natureza de mandamentos de otimização24 atribuída
aos princípios? Ou de outra forma, como uma norma pode ter sua aplicação
em diferentes graus? Para Alexy (1998:14, 1997:138), isso pode ser explicado
quando se compreende que princípios podem ser equiparados a valores. Uma
concepção sobre valores - isto é, axiológica - dirá Alexy (1997:139), traz uma
referência não no nível do dever-ser (deontológico), mas no nível do que pode
ou não ser considerado como bem. Os valores têm como características a
possibilidade de valoração, isto é, permitem que um determinado juízo possa
ser classificado, comparado ou medido. Destarte,
Com a ajuda de conceitos de valor classificatório se pode dizer que algo
tem um valor positivo, negativo ou neutro; com a ajuda de conceitos de valor
comparativo, que a um objeto que se deve valorar corresponde um valor
maior ou o mesmo valor que outro objeto e, com ajuda de conceitos de valor
“[...] principios son normas que ordenan que se realice algo en la mayor medida posible,
en relación con las posibilidades jurídicas y fácticas. Los principios son, por consiguiente,
mandatos de optimización que se caracterizan por que pueden ser cumplidos en diversos
grados y porque la medida ordenada de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades
fácticas, sino también de las posibilidades jurídicas. [...] En cambio, las reglas son normas que
exigen un cumplimiento pleno y, en esa medida, pueden siempre ser sólo o cumplidas o
incumplidas. Si una regla es válida, entonces es obligatorio hacer precisamente lo que ordena,
ni más ni menos. Las reglas contienen por ello determinaciones en el campo de lo posible
fáctica y jurídicamente”.
24
Afonso da Silva (2002:25) alerta que, devido à influência das traduções espanholas das
obras de Alexy, tornou-se comum referir-se aos princípios como “mandados de otimização”.
Todavia, trata-se de utilização imprópria, preferindo esse autor o termo mandamentos de
otimização.
25
“Con la ayuda de conceptos de valor clasificatorios se puede decir que algo tiene un valor
positivo, negativo o neutral; con la ayuda de conceptos de valor comparativos, que a un objeto
que hay que valorar le corresponde un valor o el mismo valor que a otro objeto y, con la ayuda
de conceptos de valor métricos, que algo tiene un valor de determinada magnitud”.
23
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181
métrico, que algo tem um valor de determinada magnitude (ALEXY, 1997:143,
tradução livre).25
Todavia, apesar de dizer que princípios podem ser equipados aos
valores, Alexy (1997:147) dirá que princípios não são valores. Isso porque os
princípios, como normas, apontam para o que se considera devido, ao passo
que os valores apontam para o que pode ser considerado melhor.26 Assim,
mesmo tendo uma operacionalização idêntica aos valores, ainda assim
princípios apresentam uma diferença básica frente aos valores.27
Para concluir, dirá que, se alguém estiver diante de uma norma que
exige um cumprimento na maior medida do possível, estará diante de um
princípio; em contrapartida, se tal norma exigir apenas o cumprimento em
uma determinada medida, ter-se-á uma regra. Logo, a diferença se centraria
“La diferencia entre principios y valores se reduce así a un punto. Lo que en el modelo de
los valores es prima facie lo mejor es, en el modelo de los principios, prima facie debido; y lo
que en el modelo de los valores es definitivamente lo mejor es, en el modelo de los principios,
definitivamente debido” (ALEXY, 1997:147).
27
Apenas para demarcar a dissonância, adianta-se que tese alexyana é refutada tanto por
Dworkin quanto por Habermas, que defendem a impossibilidade de equiparar princípios a
valores, sob pena de desnaturar a própria lógica de aplicação normativa. Ambos os autores
ainda lançarão mão não de uma diferenciação morfológica entre princípios e regras, preferindo
o que se pode considerar como uma distinção em razão da natureza lógico-argumentativa.
28
Afonso da Silva (2002:24-27) sustenta que seria errônea a referência à técnica da ponderação
como “princípio da proporcionalidade”. Segundo o autor, “[o] chamado princípio da
proporcionalidade não pode ser considerado um princípio, pelo menos não com base na
classificação de Alexy, pois não tem como produzir efeitos em variadas medidas, já que
é aplicado de forma constante, sem variações”. Dessa forma, tratar-se-ia de uma regra de
ponderação, aplicável por meio da subsunção, bem como suas sub-regras. Ávila (2005)
refere-se a um dever de proporcionalidade, termo considerado correto por Afonso da Silva,
mas pouco adequado, já que a idéia de dever remete apenas ao gênero norma jurídica, sem
explicitar sua espécie - princípios ou regras. Também não se deve confundir proporcionalidade
com racionalidade, como lembra Afonso da Silva (2002:28). Muitos juristas tratam como se
fossem termos sinônimos, como se proporcionalidade fosse o termo adotado pelos autores de
tradição germânica, ao passo que a razoabilidade tivesse sua difusão na tradição do common
law. Segundo o constitucionalista, a diferenciação se dá não pela origem, mas pela estrutura.
“A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais surgiu
por desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão e não é uma simples
pauta que, vagamente, sugere que os atos estatais devem ser razoáveis, nem uma simples
análise da relação meio-fim. Na forma desenvolvida pela jurisprudência constitucional alemã,
tem ela uma estrutura racionalmente definida, com subelementos independentes - a análise da
adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito-, que são aplicados em
uma ordem pré-definida e que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a
diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade” (AFFONSO DA SILVA, 2002:30).
É, por isso, que esse autor afirma que o STF apenas consegue exercer sua função nos limites
da razoabilidade, pouco ou nada compreendendo sobre a dimensão da proporcionalidade.
O órgão judicante, então, apenas mencionaria as sub-regras da proporcionalidade, sem,
contudo, analisá-las perante o caso específico que tem a sua frente.
26
182
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em um aspecto da estrutura dos princípios e das regras, de uma maneira
morfológica, fazendo com que regras sejam aplicadas de maneira silogística
e princípios, por meio de uma ponderação ou balanceamento (ALEXY, 2003;
AFONSO DA SILVA, 2002:25).
Dessa forma, os princípios que prescrevem a proteção tanto do interesse
público. de um lado, quanto do interesse privado de outro, deverão ser
ponderados por meio do “princípio” da proporcionalidade,28 para que se possa
atingir um resultado em face de um caso concreto. Assim, o próximo passo
da presente explanação é analisar melhor o mecanismo da proporcionalidade
teorizado por Alexy. Para tanto, deve-se lembrar que nem princípios nem
regras são capazes de regular por si mesmos suas condições de aplicação,
de modo que o jurista de Kiel reconhece a necessidade de promover uma
compreensão da decisão jurídica regrada por uma teoria da argumentação
(ALEXY, 1997b:173).29 A partir disso, o sistema jurídico, além de conter regras
e princípios, comporta um terceiro nível, no qual são feitas considerações
sobre um procedimento - seguindo o modelo da razão prática - que permitiria
alcançar e assegurar a racionalidade de aplicação jurídica (CHAMON JUNIOR,
2004:103).
A argumentação jurídica é vista por Alexy (1998:18) como um caso
especial da argumentação prática geral, ou seja, da argumentação moral.
Sua peculiaridade, contudo, está na série de vínculos institucionais que
a caracteriza, tais como a lei, o precedente e a dogmática jurídica.30 Mas
mesmo esses vínculos - concebidos como um sistema de regras, princípios
e procedimento - são incapazes de levar a um resultado preciso. As regras
do discurso serviriam apenas para que se pudesse contar com um mínimo
de racionalidade. Tudo, para Alexy (1998:18-19), gira em volta de um
problema referente à racionalidade jurídica. Como não é possível uma teoria
“[...] el agregado del nivel de los principios conduce sólo condicionadamente a una
vinculación en el sentido de una determinación estricta del resultado. También después
de la eliminación de las lagunas de apertura a nivel de las reglas quedan las lagunas de
indeterminación del nivel de los principios. Sin embargo, de aquí no podrían inferirse un
argumento a favor del modelo de la regla e en contra del modelo regla/principio, tampoco
si ésta fuera la última palabra. Lo que hasta ahora se ha descrito, el nivel de la regla y el de
los principios, no proporciona un cuadro completo del sistema jurídico. Ni los principios ni
las reglas regulan por sí mismos su aplicación. Si se quiere obtener un modelo completo, hay
que agregar al costado pasivo uno activo, referido al procedimiento, de la aplicación de las
reglas y los principios. Por lo tanto, los niveles de las reglas y los principios tienen que ser
completados con un tercer nivel. En un sistema orientado por el concepto de la razón práctica,
este tercer nivel puede ser sólo al de un procedimiento que asegura la racionalidad” (ALEXY,
1997b:173, grifos nossos).
30
Sobre isso, um maior detalhamento pode ser obtido pela leitura do capítulo 3 da obra
ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria
da Justificação Jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001
29
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183
moral de cunho substantivo, somente se pode apelar para as teorias morais
procedimentais, que formulariam regras ou condições para a argumentação
ou para uma decisão racional.31
Para desenvolver sua teoria da argumentação, o professor alemão irá
proceder a uma minuciosa análise de diversas teorias, retirando delas o que
considera notável, como lembra Souza Cruz:
Dos julgamentos morais de Stevenson, destacou as distintas
formas de argumentos e de argumentações. Da filosofia
lingüística de Wittgenstein, observou que a linguagem
normativa não poderia ser reduzida à linguagem descritiva,
ao passo que da Teoria Discursiva de Austin aproveitou os
aspectos performativos da linguagem e sua relação com os
dados da realidade.
Da teoria metaética de Hare, destacou o esforço na comensurabilidade
de valores, ao exigir que o juiz não apenas se colocasse na posição do réu,
mas que levasse a sério todos os interesses daqueles que de alguma forma
pudessem ser afetados pela decisão, enquanto da filosofia psicológica de
Toulmin aproveitou a concepção da existência de regras no discurso moral
que permitiam um exame racional.
Da Teoria da Argumentação Moral de Baier notou que a argumentação
prática possui regras distintas da argumentação desenvolvida nas ciências
naturais, mas que ambas devem/podem ser taxadas como atividades racionais.
Por sua vez, da Teoria do Consenso da Verdade de Habermas, ele percebeu
que as ações são jogos de linguagem e que num discurso é possível depurar-se
argumentos válidos de argumentos inválidos, em razão de sua aceitabilidade
numa “situação ideal de discurso”.
Contudo, ao entender que tal situação dificilmente ocorreria factualmente,
Alexy estipulou o critério de Hare como condição mínima de sua teoria. Da
Teoria da Liberação Prática da Escola de Erlanger, observou a necessidade da
padronização da linguagem.
Finalmente, da Nova Retórica de Perelman assumiu a idéia de que não é
possível definir um único resultado como correto e duradouro, dando abertura
a um criticismo heurístico (2004:165-166).
Todo esse instrumental teórico irá contribuir para estruturar o
Em consonância com essa afirmação, tem-se Souza Cruz (2004:164-165), que observa que
Alexy irá divergir da Corte Constitucional alemã, uma vez que essa exige a relativização
de todos os direitos fundamentais, inclusive o da dignidade humana (ALEXY, 1997:108109). Assim, a adoção pelo paradigma procedimental sustenta uma proteção aos direitos
fundamentais por um aspecto dialógico do discurso e conforme a racionalidade do método
de ponderação.
31
184
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procedimento da ponderação a partir de três sub-regras (regra de adequação,
regra da necessidade e regra da proporcionalidade em sentido estrito).
Essas sub-regras são estruturadas de maneira a funcionarem sucessiva e
subsidiariamente, mas nunca aleatoriamente32 por isso nem sempre será
necessária uma análise de todas as três sub-regras.33
Em termos claros e concretos, com subsidiariedade quer-se dizer que a
análise da necessidade só é exigível se, e somente se, o caso já não tiver sido
resolvido com a análise da adequação; e a análise da proporcionalidade em
sentido estrito só é imprescindível, se o problema já não tiver sido solucionado
com as análises da adequação e da necessidade (AFONSO DA SILVA, 2002:34).
Afonso da Silva alerta que, no Brasil, difundiu-se o conceito de adequação
como aquilo que é apto a alcançar o resultado pretendido (SARMENTO, 2000:87;
MENDES, 1994:371). Todavia, trata-se de uma compreensão equivocada da
sub-regra, derivada da tradução imprecisa do termo alemão fördern como
alcançar, ao invés de fomentar, o que seria mais correto. Nessa leitura:
Adequado, então, não é somente o meio com cuja utilização
um objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja
utilização a rejeição de um objetivo é fomentada, promovida,
ainda que o objetivo não seja completamente realizado. Há
uma grande diferença entre ambos os conceitos, que fica
clara na definição de Martin Borowski, segundo a qual uma
medida estatal é adequada quando o seu emprego faz com
que o “objeto legítimo pretendido seja alcançado ou pelo
menos fomentado”. Dessa forma, uma medida somente pode
ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir
em nada para fomentar a realização de objetivo pretendido
(AFONSO DA SILVA, 2002:36-37).
Pode-se tomar o exemplo da ADC n. 9-6 (racionamento de energia), como
forma de esclarecer melhor o conteúdo da regra da adequação: para impedir o
risco de questionamento judicial, principalmente dos artigos 14 a 18 da Medida
Provisória n. 2.152-2 - que disciplinava as metas de consumo de energia
“Se simplesmente as enunciarmos, independentemente de qualquer ordem, pode-se ter a
impressão de que tanto faz, por exemplo, se a necessidade do ato estatal é, no caso concreto,
questionada antes ou depois da análise da adequação ou da proporcionalidade em sentido
estrito . Não é o caso. A análise da adequação precede a da necessidade, que, por sua vez,
precede a da proporcionalidade em sentido estrito “ (AFONSO DA SILVA, 2002:34).
33
”A impressão que muitas vezes se tem, quando se mencionam as três sub-regras da
proporcionalidade, é que o juiz deve sempre proceder à análise de todas elas, quando do
controle do ato considerado abusivo. Não é correto, contudo, esse pensamento. É justamente
na relação de subsidiariedade acima mencionada que reside a razão de ser da divisão em subregras” (AFONSO DA SILVA, 2002:34).
32
Revista Jurídica FACULDADES COC
185
elétrica e previa as sanções no caso de descumprimento, foi proposta a ADC
n. 9-6, visando à declaração de constitucionalidade, com efeitos vinculantes.
O STF entendeu, em sede de medida cautelar, que estava demonstrada a
proporcionalidade e a razoabilidade das medidas tomadas pelo governo.
Como lembra Afonso da Silva, o teste de adequação da medida deveria se
limitar “ao exame de sua aptidão para fomentar os objetivos visados” (2002:37).
Assim, mesmo que fosse questionável o fato de essas medidas tomadas serem
as mais adequadas, para o constitucionalista, mostra-se inegável - devido ao
caráter coercitivo - que as medidas levariam os consumidores a economizarem
energia elétrica e, mesmo que sozinhas não possam solucionar o problema
de interrupção do fornecimento de energia elétrica, as medida tomadas
mostram-se capazes de colaborar para que o mesmo seja atingido. Por tal
observação, elas poderiam ser consideradas adequadas nos termos exigidos
pela proporcionalidade.
Mas será que elas poderiam passar também pelo grifo da regra
de necessidade? Essa afirma o seguinte: “Um ato que limita um direito
fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido
não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato
que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido” (AFONSO
DA SILVA, 2002:38). Segundo Sarmento, “impõe que o Poder Público adote
sempre a medida menos gravosa possível para atingir a determinado objetivo”
(2000:88). Assim, a adequação exige um exame absoluto do ato, ao passo que
a necessidade, um exame comparativo (ALEXY, 1998:30), isto é:
Suponha-se que, para promover o objetivo O, o Estado adote a medida
M , que limita o direito fundamental D. Se houver uma medida M que, tanto
quanto M , seja adequada para promover com igual eficiência o objetivo O,
mas limite o direito fundamental D em menor intensidade, então a medida M
, utilizada pelo Estado, não é necessária (AFONSO DA SILVA, 2002:38).
Voltando ao exemplo do julgamento da ADC n. 9-6, Afonso da Silva
considera que as medidas tomadas pelo governo podem ser consideradas
adequadas, por ajudarem a promover a economia de energia. Mas o exame
da necessidade exige que, primeiro, se identifique os direitos que serão
limitados. Muitos, então, poderiam ser apontados como direitos possivelmente
lesionados: direito de acesso a um serviço público, direito de igualdade, direito
à livre iniciativa, direito ao trabalho, e, em última análise, o direito a uma vida
digna (AFONSO DA SILVA, 2002:38-40).
O passo seguinte seria identificar medidas alternativas que também
pudessem satisfazer os objetivos da medida governamental.34 Se fosse
Afonso da Silva (2002:39-40) destaca que, durante o julgamento da ADC n. 9-6, deixou-se
de proceder à identificação de medidas alternativas para a crise brasileira de energia, mesmo
havendo outras soluções que foram apresentadas e discutidas pelos meios de comunicação na
época. Logo, ficou prejudicada a aplicação da proporcionalidade neste caso específico.
34
186
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demonstrada a existência - o que é bem plausível - de medida tão (ou até mais)
adequada que as tomadas pelo governo, o STF teria de considerar a medida
escolhida como desproporcional e, por isso, declarar a inconstitucionalidade
da Medida Provisória n. 2.152-2.
O último passo a ser verificado, a proporcionalidade em sentido estrito,
apenas acontecerá depois de verificado que o ato é adequado e necessário
(ALEXY, 1998:31). Por isso,
[...] o exame da proporcionalidade em sentido estrito, que
consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição
ao direito fundamental atingido e a importância da realização
do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta
a adoção da medida restritiva (AFONSO DA SILVA, 2002:40).
Segundo Sarmento (2000:89), há aqui um raciocínio baseado na relação
custo-benefício da norma avaliada, isto é, o ônus imposto pela norma deve
ser inferior ao benefício que pretende gerar. A constatação negativa deve ser
tomada, portanto, como um juízo pela inconstitucionalidade do ato. Todavia,
[p]ara que uma medida seja reprovada no teste da proporcionalidade
em sentido estrito, não é necessário que ela implique a não-realização de um
direito fundamental. Também não é necessário que a medida atinja o chamado
núcleo essencial de algum direito fundamental. Para que ela seja considerada
desproporcional em sentido estrito, basta que os motivos que fundamentam
a adoção da medida não tenham peso suficiente para justificar a restrição ao
direito fundamental atingido. É possível, por exemplo, que essa restrição
seja pequena, bem distante de implicar a não-realização de algum direito ou
de atingir o seu núcleo essencial. Se a importância da realização do direito
fundamental, no qual a limitação se baseia, não for suficiente para justificá-la,
será ela desproporcional (AFONSO DA SILVA, 2002:41, grifo no original).
No exemplo que até agora foi desenvolvido, o STF, por olvidar
analisar a necessidade das medidas do governo, prejudicou a análise da
proporcionalidade em sentido estrito. Mas, em um outro exemplo - ADI n.
855-2 (pesagem de botijões de gás), a exigência de pesagem dos botijões de gás
na presença dos consumidores foi considerada adequada pelo STF. Também
pode ser considerada por Afonso da Silva (2002:40-41) necessária, pois a
medida alternativa apresentada - pesagem por amostragem - embora pudesse
restringir em menor escala a livre iniciativa das empresas distribuidoras
de gás, não pareceu ter a mesma capacidade de fomentar a proteção do
consumidor. Assim, pode-se avançar para a análise da proporcionalidade em
sentido estrito: verificar se a proteção ao consumidor se justifica em face da
limitação à liberdade de iniciativa sofrida pelas empresas distribuidoras de
gás. Para Afonso da Silva (2002:41), o peso maior deveria ser dado à proteção
Revista Jurídica FACULDADES COC
187
do consumidor, todavia o entendimento do STF pendeu para uma solução
inversa.
Evidenciar-se-ia, então, uma mudança em termos de compreensão do
Supremo Tribunal Federal sobre a questão da supremacia do interesse público.
Todavia, os julgados existentes ainda revelariam que o dogma persiste; o que
se teria admitido seria apenas a relativização através da técnica de ponderação
da supremacia do interesse público em algumas situações especiais, mas com
um caminho aberto para revisão dessa compreensão (BARACHO JÚNIOR,
2004:520). Cattoni de Oliveira, entretanto, apresenta uma outra leitura desse
quadro:
O que eu discordo, em princípio, é quanto à afirmação de
parte da doutrina atual segundo a qual, recentemente, o
STF estaria relativizando o “princípio da supremacia do
interesse público”, ao ponderar, usando como critério a
proporcionalidade, interesse público (estatal) e interesse
privado. Não penso assim. Há uma tendência jurisprudencial
a se relativizar, isto sim, a distinção entre questões políticas
e questões jurídicas, com conseqüências para a compreensão
da separação de poderes, para o papel do STF, para a
práxis e para a metódica constitucionais. Por exemplo, ao
considerar que, no exercício do controle concentrado, o STF
exerce “tarefas não somente jurídicas mas políticas”, ele é
“legislador negativo”, mas também “legislador positivo”,
ainda que excepcional, em prol de um “interesse público ou
social maior” (2006:12).
A partir da crítica acima, deve ser posta uma questão: mesmo se o STF
levasse a sério a ponderação - o que foi demonstrado que não ocorre, conforme
a técnica desenvolvida por Alexy - poder-se-ia considerar essa uma resposta
adequada ao paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito?
Cattoni de Oliveira (2004:535), pautando-se no pensamento de Habermas
(1998:327- 333), apresentará uma resposta negativa à questão. Como problemas
que pesem contra a sua utilização podem ser levantados os seguintes: (1) ao
se admitir uma compreensão dos princípios jurídicos como mandamentos
de otimização, aplicáveis de maneira gradual, Alexy emprega uma
operacionalização própria dos valores: isso faria, então, com que os princípios
“O Direito, ao contrário do que defende uma jurisprudência dos valores, possui um código
binário, e não um código gradual: que normas possam refletir valores, no sentido de que a
justificação jurídico-normativa envolve questões não só acerca de o que é justo para todos
(morais), mas também acerca de o que é bom, no todo e a longo prazo para nós (éticas), não
que dizer que elas sejam ou devam ser tratadas como valores [...]” (CATTONI DE OLIVEIRA,
2002:88-89, grifos no original).
35
188
Revista Jurídica FACULDADES COC
perdessem a sua natureza deontológica, transformando o código binário do
Direito em um código gradual;35 (2) como conseqüência desse raciocínio, o
Direito passaria a indicar o que é preferível, ao invés de o que é devido;36
(3) o Direito - como pretensão de universalidade sobre a correção de uma
ação - então, não mais pode ser considerado como um “trunfo”,37 como quer
Dworkin, nas discussões políticas que envolvam o bem-estar de uma parcela
da sociedade; desnatura-se, portanto, a tese de Rawls (2003:199; 1996:171)
sobre a prevalência do justo sobre o bem; (4) além disso, a tese de Alexy
nega a diferenciação entre discursos de justificação e discursos de aplicação,
transformando a atividade judiciária em um poder constituinte permanente;
e, por fim, (5) olvida-se da racionalidade comunicativa, uma vez que todo o
raciocínio é pautado a partir de uma racionalidade instrumental, deixando
a aplicação jurídica a cargo de um raciocínio de adequação de meios a fins,
ficando para segundo plano a questão da legitimidade da decisão jurídica;
exatamente por isso o raciocínio sobre a ponderação acaba por cair em um
decisionismo de cunho irracionalista, isto é, ausência de uma racionalidade
“[...] normas - quer como princípios, quer como regras - visam ao que é devido, são enunciados
deontológicos: à luz de normas, posso decidir qual é a ação ordenada. Já valores visam ao
que é bom, ao que é melhor; condicionados a uma determinada cultura, são enunciados
teleológicos: uma ação orientada por valores é preferível. Ao contrário das normas, valores
não são aplicados mais priorizados” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:90). Em outro texto,
lembra o mesmo autor: “[...] ou nós estamos diante de uma conduta ilícita, abusiva, criminosa,
ou então, do exercício regular, e não abusivo, de um direito. Tertium non datur! Como é que
uma conduta pode ser considerada, ao mesmo tempo, como lícita (o exercício de um direito
à liberdade de expressão) e como ilícita (crime de racismo, que viola a dignidade humana),
sem quebrar o caráter deontológico, normativo, do Direito? Como se houvesse uma conduta
meio lícita, meio ilícita?” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:6-7, grifos no original); é por isso
mesmo que: “Esse entendimento judicial, que pressupõe a possibilidade de aplicação gradual,
numa maior ou menor medida, de normas, ao confundi-las com valores, nega exatamente o
caráter obrigatório do Direito. Tratar a Constituição como uma ordem concreta de valores
é pretender justificar a tese segundo a qual compete ao Poder Judiciário definir o que pode
ser discutido e expresso como digno de valores, pois haveria democracia, nesse ponto de
vista, sob o pressuposto de que todos os membros de uma sociedade política compartilham,
ou tenham de compartilhar, de um modo comunitarista, os mesmos supostos axiológicos,
uma mesma concepção de vida e de mundo. Ou, o que também é incorreto, que os interesses
majoritários de uns devem prevalecer, de forma utilitarista, sobre os interesses minoritários
de outros, quebrando assim, o princípio do reconhecimento recíproco de igual direitos de
liberdade a todos” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:7, grifo no original).
37
“[...] um direito não pode ser compreendido como um bem, mas como algo que é devido
e não como algo que seja meramente atrativo. Bens e interesses, assim como valores, podem
ter negociada a sua ‘aplicação’, são algo que se pode ou não optar, já que se estará tratando
de preferências otimizáveis. Já direito não. Tão logo os direitos sejam compreendidos como
bens e valores, eles terão que competir no mesmo nível que esses pela prioridade no caso
individual. Essa é uma das razões pelas quais, lembra Habermas, Ronald Dworkin haver
concebido os direitos como ‘trunfos’ que podem ser usados nos discursos jurídicos contra os
argumentos de políticas” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:90-91).
36
Revista Jurídica FACULDADES COC
189
comunicativa (HABERMAS, 1998:332).38
Essas críticas servem para fomentar a discussão e sinalizam a necessidade
de uma compreensão do Direito à luz do paradigma procedimental do Estado
Democrático de Direito. Por isso, a proposta habermasiana desponta como a
mais adequada. Mas as razões de tal opção transbordam os limites do presente
artigo, devendo ser exploradas em outro estudo.
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Nesse sentido, Cattoni de Oliveira (2006:5) denuncia que, no caso do HC 82.424-2 (Relator
Min. Maurício Correia), o raciocínio de ponderação, que se supunha atingir uma solução
objetiva para o caso concreto, acaba por atingir resultados contrários nos votos dos Min.
Gilmar Mendes e Marco Aurélio ao buscar solucionar a suposta colisão entre dignidade
humana e liberdade de expressão, tomados como valores.
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O MONITORAMENTO ELETRÔNICO E AS
RELAÇÕES TRABALHISTAS
ALEXANDRE ATHENIENSE1
A atividade empresarial moderna está inserida em um contexto de extrema
competitividade, com demandas crescentes por soluções rápidas e eficazes.1
O advento e a conseqüente consolidação das tecnologias de informação
propiciaram o instrumental necessário para responder adequadamente a estas
exigências apontadas. Somado a este fator, observa-se o decréscimo no custo
de tais ferramentas, bem como a sua simplificação, permitindo desta forma
uma abrangência dilatada de usuários, devido sua maior acessibilidade.
Neste diapasão, o implemento da tecnologia adentrou-se não somente
nas linhas de produção, sendo utilizada em todos os setores da empresa.
Esta incorporação deuse de forma irreversível ao ponto de se constatar a
dependência de atividades estritamente secundárias da empresa aos meios de
informática e à tecnologia da informação em geral.
O correio eletrônico, especificamente, exerce papel imprescindível neste
cenário delineado.
A comunicação veloz e eficaz que ele propicia, permitindo inclusive
a incorporação de diversos documentos digitalizados, enseja benefícios
imediatos e um prisma de possibilidades que não podem ser desprezados.
Salienta-se ainda o baixo-custo e o alcance que tal meio de comunicação se
reveste, acarretando a adesão em massa em todo o ambiente empresarial.
A tecnologia como um todo é apta a fornecer inúmeras comodidades,
mas não se pode ignorar que seu uso inadequado pode gerar danos de
amplitudes consideráveis. No que tange às tecnologias da informação, desvios
de finalidade podem ser facilmente constatados no âmbito das relações de
trabalho, sejam no pólo do empregador como no do empregado.
Sob a ótica do trabalhador, o meio de comunicação eletrônico pode
ensejar a transmissão de dados sigilosos a competidores, bem como pode ser
um mecanismo para a prática de diversos ilícitos, na seara cível e criminal.
Em resguardo a esta constatação, o empregador utiliza variados instrumentos
para viabilizar o monitoramento das atividades dos seus prepostos.
O chamado monitoramento eletrônico corresponde justamente
à consecução dos meios disponíveis de vigilância com emprego de
Alexandre Atheniense é sócio-advogado do escritório Aristoteles Atheniense Advogados;
presidente da Comissão de Tecnologia da Informação do Conselho Federal da OAB;
coordenador e professor do Curso de Pós Graduação de Direito de Informática da Escola
Superior de Advocacia da OAB/SP; editor do blog “Direito e Novas Tecnologias” www. dnt.
adv.br
1
196
Revista Jurídica FACULDADES COC
recursos tecnológicos. Este procedimento é plenamente viável quanto às
mensagens eletronicamente transmitidas. Basicamente pode-se distinguir o
monitoramento eletrônico em duas modalidades de controle. A vigilância pelo
controle formal concretiza-se em programas que analisam aspectos externos
da mensagem, tais como o destinatário, o título da mensagem e o registro das
páginas visitadas. Via de regra, buscam-se palavras-chave que possam indicar
nocividade à empresa, ou mesmo indícios de empecilhos à atividade laboral.
Podem ser citados como exemplos os filtros, cookies, scripts.
Salienta-se que este meio de controle não incide no conteúdo das
mensagens transmitidas, restando estas incólumes. O mesmo não pode ser dito
quanto ao controle material, pois neste caso averigua-se o próprio conteúdo
da mensagem.
O monitoramento eletrônico ampara-se em diversos fundamentos legais.
Primeiramente menciona-se o poder de direção atribuído ao empregador (art.
2º da CLT), visando o controle e direcionamento da atividade desenvolvida pela
empresa. Esta diretriz advém do próprio direito de propriedade, vinculando a
determinação do uso e da fruição ao seu titular.
A influência da propriedade não se restringe àquela supra mencionada.
Para a determinação de sua real abrangência, insta distinguir as duas
modalidades de correio eletrônico disponibilizadas em um ambiente de
empresa.
O chamado e-mail corporativo consiste no correio eletrônico fornecido
pela empresa ao seu preposto. Há uma identificação direta com a empresa
devido à adoção de nomenclatura do empregador, o chamado domínio na
internet (por exemplo: [email protected]).
Já o denominado e-mail privado é aquele provido por ente alheio ao
empregador. Não obstante, o acesso a tal meio de comunicação se concretiza
apenas com a utilização da estrutura, do maquinário de propriedade da
empresa.
Destarte, o e-mail corporativo pode ser facilmente caracterizado como
ferramenta de trabalho, nos termos do art. 458, §2º da CLT, e como tal tem sua
função adstrita ao exercício da atividade laboral.
A função da senha e sua respectiva finalidade adquirem relevância
neste contexto. A tentativa de descaracterização do e-mail corporativo como
ferramenta de trabalho é impulsionada pelo argumento de que a senha
fornecida ao empregador teria como propósito a garantia de sua privacidade
frente ao seu empregador, bem como a terceiros. Não se pode olvidar o
fato de que as senhas, nesta modalidade de correio eletrônico, são criadas e
posteriormente fornecidas diretamente pelo empregador aos seus prepostos.
O intuito nitidamente perceptível é o resguardo de informações pertinentes à
empresa que são transmitidas por tal meio de comunicação, ocorrendo, por
Revista Jurídica FACULDADES COC
197
conseguinte, a proteção da atividade empresarial desenvolvida em face de
terceiros e até mesmo do próprio empregado.
O conhecimento quanto à senha, destarte, decorre logicamente da própria
estrutura do e-mail corporativo. Enfatiza-se que posicionamento contrário
poderia até mesmo gerar obstáculos consideráveis à realização da atividade
empresarial. Basta salientar o transtorno que o impedimento do empregado
poderia causar. Seu afastamento, por qualquer motivo, poderia ensejar no
mínimo a interrupção do curso normal do trabalho e a ausência de acesso a
dados imprescindíveis.
São também fundamentos para a determinação da licitude do
monitoramento eletrônico as inúmeras hipóteses legais de responsabilização
do empregador pela conduta de seus prepostos. Nesta seara mencionase o art. 932, III do Código Civil que atribui a responsabilidade objetiva do
empregador por fato de terceiro. O tipo penal previsto no art. 241, §1º, III
do Estatuto da Criança e do Adolescente quanto à transmissão de material
envolvendo pedofilia por meio eletrônico. O crime de violação de direitos
autorais disposto no art. 12 da lei 9609/98 também pode ser mencionado.
A atribuição de crime a conduta do empregado que viola segredo
profissional (art. 154 do Código Penal) assim como o delito de concorrência
desleal (art. 195 da lei 9279/96) da mesma forma incluem-se no rol de legítimos
fundamentos para o monitoramento eletrônico. No entanto, o monitoramento
eletrônico pode esbarrar em garantias fundamentais do cidadão, acarretando
conflitos que passam a ser observados no Judiciário brasileiro.
Os argumentos formulados contrariamente ao monitoramento residem
basicamente na proteção dada pela Constituição ao sigilo das comunicações
(art. 5º, XII). Esta proteção constitucional é decorrência lógica de outra garantia
fundamental: a privacidade (art. 5º, X).
A fixação da possível antinomia deve ser realizada com cautela. Os
supostos óbices constitucionais ao monitoramento eletrônico cingem-se à
vedação ao controle material das mensagens. A vigilância desenvolvida por
meios de controle meramente formais não atinge a inviolabilidade tutelada
pela Magna Carta e, portanto nesta modalidade não há que se falar em conflito
de valores constitucionais.
Quanto ao controle material, diversas variáveis devem ser levadas em
consideração.
Inicia-se perquirindo a natureza jurídica do correio eletrônico. A
controvérsia quanto a este ponto é presente na doutrina. Sua caracterização
como correspondência torna-se pressuposto essencial para a corrente que
pugna pela inviolabilidade de seu conteúdo.
Relevante a consideração de Kildare Gonçalves Carvalho (2004, p. 390)
que assevera: “Quanto à inviolabilidade de correspondência, embora não
198
Revista Jurídica FACULDADES COC
haja, quanto a ela, previsão expressa no texto constitucional permitindo seja
interceptada, deve-se entender possa ser quebrada naqueles casos em que
venha a ser utilizada como instrumento de práticas ilícitas”.
A perspectiva do citado constitucionalista encontra fulcro no princípio
da proporcionalidade. Uma norma constitucional não deve prevalecer de
forma abstrata e apriorística em relação à outra. Constatada a antinomia,
esta se resolve através do princípio da proporcionalidade. Contudo, a
caracterização do correio eletrônico como correspondência não abrange o
cerne da questão, podendo até mesmo ser considerada inócua. Mesmo que se
repute o correio eletrônico como correspondência, os limites de sua proteção
estão determinados na lei 9296/96, que regulamentou o aludido dispositivo
constitucional.
O artigo 10 da mencionada lei ordinária estatui: “Constitui crime realizar
interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática,
ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos
não autorizados em lei”. A exegese da norma aponta a permissividade do
monitoramento desde que haja autorização judicial ou se esteja munido
por uma finalidade legalmente tutelada. Neste ponto urge o reforço dos
inúmeros fundamentos legais apresentados para o monitoramento eletrônico,
atribuindo legitimidade ao seu implemento, desde que adstrito aos objetivos
apresentados.
O Tribunal Superior do Trabalho manifestou-se quanto ao tema no
RR 613, publicado em 10/06/2005. Esta importante decisão reconhece a
legalidade do monitoramento do e-mail corporativo. Pertinente a vinculação
do monitoramento ao controle realizado “de forma moderada, generalizada e
impessoal”. O desvio destes objetivos configura abuso de direito (art. 187 do
Código Civil), viabilizando inclusive a reparação civil.
A garantia da inviolabilidade das comunicações nos termos supra
descritos funda-se na proteção ao direito à privacidade, como já assentado.
Portanto, sua correta definição torna-se imprescindível para a solução do
conflito posto. Costumeiramente, aborda-se o tema da privacidade pela
delimitação de sua abrangência, deslocando-se do ponto essencial da questão.
Mesmo a doutrina que procede à perspectiva do direito adstrita a sua
amplitude reconhece a relativização de seu conteúdo, moldado segundo
algumas especificidades. Alexandre de Morais (2000, p. 74) estabelece os
parâmetros para tal restrição:
“Essa necessidade de interpretação mais restrita, porém, não
afasta a proteção constitucional contra ofensas desarrazoadas,
desproporcionais e, principalmente, sem qualquer nexo
causal com a atividade profissional realizada”.
Revista Jurídica FACULDADES COC
199
Da mesma forma, pondera José Afonso da Silva (1996, p. 204) ao distinguir
os aspectos da vida da pessoa: “A vida exterior, que envolve a pessoa nas
relações sociais e nas atividades públicas, pode ser objeto das pesquisas e das
divulgações de terceiros, porque é pública”.
O conteúdo abrangido pela privacidade é de relevante determinação,
entretanto, a limitação a este aspecto foge do núcleo do problema. A privacidade
consiste em essência não ao seu conteúdo em si. Refere-se ao poder atribuído
ao seu titular de autodeterminar a exteriorização do conteúdo que abrange
o próprio conceito de privacidade. O conceito colacionado por José Afonso
da Silva (1996, p. 202) é de precisão irreparável, caracterizando a privacidade
como “o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir
manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando,
onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito”.
Nestes termos, não se cogita de violação à privacidade pelo simples fato
de ocorrer o conhecimento de terceiro quanto a elemento intrínseco à esfera
íntima do indivíduo. A ofensa à privacidade exige o cerceamento na faculdade
do titular em determinar os destinatários de tais informações.
Esta noção aplicada à problemática do monitoramento eletrônico
produz efeitos imediatos em sua resolução. Fixa-se a premissa que o e-mail
corporativo, como ferramenta de trabalho que é, restringe-se à transmissão
de mensagens pertinentes à atividade laboral desenvolvida. Admitido este
pressuposto, tem-se que o monitoramento eletrônico é legítimo, pois seu
objeto de incidência não alcança conteúdo da esfera privativa do empregado.
Assim, o ambiente proporcionado pelo e-mail corporativo é desprovido
de qualquer expectativa de privacidade. O envio de mensagens com
conteúdo íntimo não caracteriza violação da privacidade devido a cognição
do empregado quanto a natureza do meio de comunicação utilizado. Não
ocorreu neste caso subtração ao poder de autodeterminação do preposto como
já ressaltado, restando incólume a sua privacidade.
Não obstante a predisposição do e-mail corporativo como ferramenta de
trabalho e as já expostas conseqüências advindas de tal imputação, a conduta
das partes é elemento idôneo à modificação destas características. O contrato
de trabalho demanda que a atuação de seus figurantes seja pautada pela boafé. O dever de informação insere-se plenamente neste instituto.
A vedação expressa ao uso particular do e-mail corporativo e a previsão
do monitoramento eletrônico de tal meio de comunicação, disposta no
contrato de trabalho ou em termo aditivo (art. 444 da CLT), não somente
qualifica a conduta do empregador como fiel, mas também torna inequívoco
comportamento esperado do empregado.
É notório que o direito do trabalho (material e processual) possui como um
de seus princípios regentes o da proteção. A inércia do empregador acrescido
200
Revista Jurídica FACULDADES COC
de demais variáveis relevantes pode caracterizar sua anuência tácita quanto
ao uso particular do correio eletrônico, sendo esta perspectiva reforçada pelo
princípio acima apresentado.
A repercussão do aludido aceite tácito modifica a própria natureza do
correio eletrônico.
Admitida sua utilização para fins alheios à atividade laboral, tem-se
criada a legítima expectativa do empregado quanto ao respeito de informações
pertinentes à sua esfera íntima, suscitando a necessidade de um ambiente de
privacidade. Como não há modo de se aferir aprioristicamente a natureza
do conteúdo da mensagem, senão pela sua averiguação, o monitoramento
eletrônico (material como já enfatizado) neste contexto deve ser reputado
ilícito.
Em síntese, o usuário de e-mail privado detém expectativa de privacidade
quanto a este meio de comunicação, ensejando assim a proteção do conteúdo
das mensagens transmitidas. Já o e-mail corporativo, a princípio, poderia ser
objeto de controle material desde que não caracterizada a aceitação tácita pelo
empregador para fins distintos da atividade laboral.
Torna-se assim aconselhável que o empregador proíba o uso do
correio eletrônico corporativo para fins diversos. Caso a política da empresa
deseje permitir o uso privado, o caminho mais sensato seria a exigência de
que as mensagens privadas sejam transmitidas por e-mail privado. Este
posicionamento é facilmente realizado tendo em vista os inúmeros provedores
que oferecem tal serviço gratuitamente na internet. De todo modo, optando o
empregador a permitir seus prepostos a utilizarem o e-mail corporativo para
fins privados, o monitoramento eletrônico somente tornase sustentável caso se
estabeleça um horário rígido para a veiculação de tais mensagens. Neste lapso
temporal facultado ao empregado, por consectário lógico, o monitoramento
eletrônico é veemente proibido.
Quanto a qualificação das provas obtidas com o monitoramento, a
licitude daquelas é determinada pela validade deste. Ou seja, o resultado
de um monitoramento validamente realizado (nas hipóteses já devidamente
arroladas) pode ser perfeitamente utilizado para a instrução probatória em
eventual lide.
A despeito de se viabilizar as provas obtidas pelo monitoramento nas
hipóteses acima delineadas, o uso de e-mail corporativo para fins privados
não acarreta por si só a possibilidade de rescisão do contrato por justa causa. A
jurisprudência tem exigido a demonstração de prejuízo ao desenvolvimento
normal do trabalho ou idoneidade dos atos para causarem danos à empresa.
As questões envolvendo o monitoramento eletrônico ainda podem ser
consideradas incipientes. Somado a este fato, tem-se o envolvimento de um
complexo de valores de grande apreço no bojo constitucional, o que acaba
Revista Jurídica FACULDADES COC
201
por acirrar a controvérsia. Inúmeras decisões judiciárias conflitantes foram
prolatadas, cenário este felizmente tende a ser sanado com a já mencionada
decisão do Tribunal Superior do Trabalho quanto ao tema.
Espera-se a observância deste precedente para que se estabeleça maior
segurança jurídica nas relações de trabalho.
1. A título de exemplo menciona-se a seguinte situação: um indivíduo que
procede a um diálogo com seu amigo, abordando aspectos de sua intimidade,
em um elevador lotado de passageiros não tem sua privacidade violada.
Apesar destas informações alcançarem terceiros, este fato ocorreu sem mácula
à sua faculdade de autodeterminação.
2. “Justa causa. Email não caracteriza-se como correspondência pessoal.
O fato de ter sido enviado por computador da empresa não lhe retira essa
qualidade. Mesmo que o objetivo da empresa seja a fiscalização dos serviços,
o poder diretivo cede ao um único email enviado para fins particulares, em
horário de café, não tipifica justa causa” (TRT-SP n. 2000034734, rel. Fernando
Antônio Sampaio da Silva).
LIGEIRAS OBSERVAÇÕES SOBRE A IM(P)
UNIDADE PENAL NOS CRIMES CONTRA
O PATRIMÔNIO
CLÁUDIO DA SILVA LEIRIA1
Resumen
No presente artigo, defende-se que as imunidades previstas no artigo 181 do
Código Penal não são absolutas, mas dependem de representação, sob pena
de entendimento contrário ferir o princípio da igualdade de todos perante a
lei e os direitos fundamentais à propriedade e segurança.
In the present article, it is defended that the immunities foreseen in article
181 of the Criminal Code are not absolute, but depend on representation,
duly warned contrary agreement to wound the principle of the equality of all
before the basic law and rights to the property and security.
“Na história da sociedade há um ponto de fadiga e enfraquecimento
doentios em que ela até toma partido pelo que a prejudica, pelo criminoso, e o
faz a sério e honestamente” (F. Nietsche, Para além do bem e do mal).
1. INTRODUÇÃO
Prescreve o artigo 181 do Código Penal que é isento de pena quem
comete delitos contra o patrimônio em prejuízo do cônjuge, na constância
da sociedade conjugal (inciso I) e de ascendentes ou descendentes, seja o
parentesco legítimo ou ilegítimo, civil ou natural (inciso II).
Já nos incisos I, II e III do artigo 182 do Diploma Repressivo é previsto que
somente se procede mediante representação se os crimes contra o patrimônio
forem praticados em detrimento de cônjuge desquitado ou judicialmente
separado; de irmão, legítimo e ilegítimo; de tio ou sobrinho, com quem o
agente coabita.
Não se aplica o disposto nos dois artigos acima citados se o crime é de
roubo ou extorsão, ou, em geral, quando haja o emprego de grave ameaça ou
violência à pessoa; ao estranho que participa do crime; se o crime é praticado
contra pessoa com idade igual ou superior a 60 anos, conforme dispõe os
incisos I, II e III do artigo 183 do Código Penal.
No presente artigo, pretende-se demonstrar que a norma veiculada no
artigo 181, inciso I, do Código Penal deve ser relativizada, pois, dentre outros
motivos, sua ‘interpretação tradicional’ (literal) fere o princípio constitucional
da isonomia, além de servir de fomento à impunidade.
1
Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.
204
Revista Jurídica FACULDADES COC
2. DA NECESSIDADE DE NOVA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO
181 DO CÓDIGO PENAL
Refere NUCCI que ‘imunidade é um privilégio de natureza pessoal,
desfrutado por alguém em razão do cargo ou da função exercida, bem como
por conta de alguma condição ou circunstância de caráter pessoal. No âmbito
penal, trata-se (art. 181) de uma escusa absolutória, condição negativa de
punibilidade ou causa pessoal de exclusão da pena. Assim, por razões de
política criminal, levando em conta motivos de ordem utilitária e baseando-se
nas circunstâncias de existirem laços familiares ou afetivos entre os envolvidos,
o legislador houve por bem afastar a punibilidade de determinadas pessoas”2.
O citado autor prossegue afirmando que ‘Ensina Nélson Hungria que a
razão dessa imunidade nasceu, no direito romano, fundado na co-propriedade
familiar. Posteriormente, vieram outros argumentos: a) evitar a cizânia entre
os membros da família; b) proteger a intimidade familiar; c) não dar cabo
do prestígio auferido pela família. Um furto, por exemplo, ocorrido no seio
familiar deve ser absorvido pelos próprios cônjuges ou parentes, afastando-se
escândalos lesivos à sua honorabilidade (Comentários ao Código Penal, v. 7,
p. 324).
No entanto, o legislador não poderia, pura e simplesmente, face
ao princípio de que todos são iguais perante à lei, blindar contra a ação
persecutória do Estado o agente que pratica crimes patrimoniais em prejuízo
de seus ascendentes, descendentes e cônjuges.
Está-se, vez mais, diante do problema de colisão de direitos fundamentais.
De um lado, o direito fundamental à segurança e à propriedade de que a vítima
é titular; de outro, o direito do réu a uma imunidade penal, qual seja, não verse processado pelo Estado por uma conduta ilícita.
2.1. Colisão de direitos fundamentais
É pacífico na doutrina e na jurisprudência que os direitos fundamentais
não são intocáveis e absolutos. Como o homem vive em sociedade, estando
em contato permanente com seu semelhante - que também goza de direitos
e garantias -, natural que surjam situações de conflitos e choques entre esses
direitos.
Tem-se colisão ou conflito de direitos sempre que a Constituição proteja,
ao mesmo tempo, dois valores ou bens que estejam em contradição em um
caso concreto.
Conforme CANOTILHO, uma colisão autêntica de direito fundamentais
ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular
2
Código Penal Comentado, 5ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, P. 731.
Revista Jurídica FACULDADES COC
205
colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.
E no âmbito penal, não se pode ter visão monocular do Direito. Os
interesses da sociedade também devem ser tutelados. Importante relembrar a
lição do Supremo Tribunal Federal: “A lei deve ser interpretada não somente
à vista dos legítimos interesses do réu, mas dos altos interesses da sociedade,
baseados na tranqüilidade e segurança social3”.
O princípio da proporcionalidade tem dupla face: se de um lado há
a proibição de excesso, para conter o arbítrio do Estado, de outro existe a
proibição da proteção deficiente aos que têm seus direitos fundamentais
violados.
2.2. Do direito fundamental à segurança e à propriedade
Toda pessoa que se encontre no território do país tem direito à segurança
e à propriedade, cabendo ao poder público promover este direito, garantindo
à população o direito de ir e vir, de se estabelecer com tranqüilidade, de ter
sua intimidade preservada, sem que seu patrimônio, integridade física, moral
ou psicológica sejam colocados em risco.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 1948, no
seu artigo 3, prescreve que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal” No art. 8 há a previsão de que todo homem tem direito a
receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos
que violem os direitos fundamentais que lhes sejam reconhecidos pela
constituição ou pela lei. E, por fim, prescreve o artigo 17, itens 1e 2, da referida
Declaração:
“I - Todo homem tem direito à propriedade, só ou em
sociedade com outros.
“II - Ninguém será arbitrariamente privado de sua
propriedade.”
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (o famoso ‘Pacto de
São José da Costa Rica’), no seu artigo 7º assegura que ‘toda pessoa tem direito
à liberdade e à segurança pessoais’.
A Constituição Brasileira garante aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade - art. 5º, ‘caput’.
É absolutamente necessário que os operadores do Direito passem a
enxergar que não somente o indivíduo tem direitos, mas que a coletividade
3
RHC 63.673-0-SP, DJU 20.06.1986, p. 10.929.
206
Revista Jurídica FACULDADES COC
pacata e ordeira precisa de ordem e segurança para levar em paz sua vida.
O contrato social precisa ser protegido. O Estado tem sua razão maior de ser
na proteção do todo, e não somente da da parte. Invoca-se ensinamento de
SAMPAIO DÓRIA (grifos não constantes do original):
Em verdade, o Estado, que o homem organiza, se destina ao
bem do homem, e não à sua desgraça. Ninguém constrói,
por exemplo, uma estrada de ferro para ser esmagado por
um desastre. Nem mesmo para servi-la. Mas para se servir
dela. Da mesma forma, não é para ser anulado que o homem
organiza o Estado. As sociedades se formam em função dos
indivíduos, e para eles. E, nas sociedades, a organização
política, ou Estado, surge, mas é para garantir, igualmente, a
cada um a liberdade, isto é, fazer, ou deixar de fazer, o que
generalizado, não destrua, nem prejudique a vida social.
Nunca para suprimir aos homens a dignidade da existência
“4.
A solução que se alvitra para o conflito de direitos fundamentais é fazer
interpretação condicionando à representação as situações previstas nos incisos
do art. 181 do Código Penal.
Muitos são os motivos pelos quais se deve considerar condicionada à
representação a ação penal nos crimes contra o patrimônio em que são vítimas
as pessoas referidas no artigo 181 do Código Penal.
Em primeiro lugar, face ao princípio da igualdade, o patrimônio dessas
vítimas não é menos digno de proteção do que o das demais pessoas.
A Constituição brasileira, no ‘caput’ do art. 5º, prescreve que todos
são iguais perante a lei, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade e à propriedade.
A interpretação literal do art. 181 do CP gera teratóide: cidadãos de
segunda clas- se, cujo patrimônio não teria a proteção penal. E lembre-se
que o patrimônio é protegido pela Constituição e pelo Pacto de São José da
Costa Rica.
A igualdade perante a lei penal exige que a mesma lei penal, com as
sanções correspondentes, seja aplicada a todos quantos pratiquem o fato típico
nela descrito.
Ao tratar sobre o tema ‘inconstitucionalidade’, JOSÉ AFONSO DA
SILVA ensina que
A outra forma de inconstitucionalidade revela-se em se
DÓRIA, A. Sampaio. Direito Constitucional, 5ª edição, vol. I, Tomo I, São Paulo: Max
Limonad, 1962, p. 244.
4
Revista Jurídica FACULDADES COC
207
impor obrigação, dever, ônus, sanção ou qualquer sacrifício
a pessoas ou grupos de pessoas, discriminando-as em face
de outros na mesma situação que, assim, permanecem em
condições mais favoráveis. O ato é inconstitucional por fazer
discriminação não autorizada entre pessoas em situação de
igualdade5 “.
Se a Constituição Federal de um lado impõe limites ao legislador
ordinário na escolha dos bens jurídicos a serem tutelados pelo direito penal,
de outro impõe a obrigação de incriminar a ofensa de certos bens jurídicos e
determina a exclusão de certos benefícios.
Ao dispor que ‘a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos
direitos e liberdades fundamentais’ (art. 5º, inciso XLI), a Constituição está
protegendo a propriedade (direito fundamental), e via de conseqüência,
impedindo que de forma absoluta o legislador penal prescreva imunidades
no que diz respeito aos crime contra o patrimônio praticados pelas pessoas
referidas no artigo 181 do Código Penal. Configura-se um direito constitucional
a não ser discriminado em função dos direitos fundamentais.
Não pode o legislador infraconstitucional simplesmente negar proteção
penal a bens jurídicos de primazia e fundamentalidade, como a propriedade,
face a ataques repulsivos, como os delitos de furto, estelionato, apropriação
indébita, abuso de incapazes, etc.
Na esteira do ensinamento de LUCIANO FELDENS, “Passamos a
perceber, pois, uma situação de intrínseca conexão entre o dever de prestação
normativa em matéria penal e o tema da prospecção objetiva dos direitos
fundamentais, haja vista a exigência que se impõe ao Estado de protegê-los....
Por essa razão, e tal como reconhecido por pe nalistas de primeira grandeza,
a problematização em torno dos mandados constitucionais de criminalização
deve partir de bases normativo-constitucionalistas6.”
Em segundo, a meta optata do artigo 181 do Código Penal é acobertar a
intimidade familiar, protegê-la de escândalos perante terceiros. No entanto,
há outras formas de se fazer isso e ainda assim dar proteção ao patrimônio
das vítimas.
Isso poderia ser facilmente obtido determinando-se o segredo de justiça
para o inquérito policial ou processo judicial criminal envolvendo as partes
elencadas no art. 181 do CP. Preservada ficaria a honorabilidade da família
(enquanto instituição) e de seus membros (no particular).
Em terceiro, em muitas situações, a vítima não tem qualquer sentimento
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª edição, 4ª tiragem. São
Paulo: Malheiros Editores, p. 208.
6
A Constituição Penal - A dupla face da proporcionalidade no controle das leis penais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 73.
5
208
Revista Jurídica FACULDADES COC
de amor ou afeto pelo agente que lhe causou um desfalque patrimonial. Nem
é preciso mencionar que são inúmeros os casamentos ‘de ‘fachada’, em que os
cônjuges não nutrem o menor sentimento de amor um pelo outro, ou de pais
que até odeiam seus filhos.
Nesses casos, que motivo racional haveria para tornar os autores dos
ilícitos imunes a uma persecução penal?
Frise-se ainda que a família modificou-se radicalmente. Novos padrões
de comportamento são adotados. Na década de 40, quando o Código Penal
entrou em vigor, o Brasil ainda era uma sociedade agrária e patriarcal. A
religião, especialmente a católica, era de enorme influência. Os sentimentos
de unidade e de honra de uma família eram bem mais acentuados do que
nos tempos atuais. A matriarca apenas cuidava dos filhos e dos afazeres
domésticos. O dinheiro da família era guardado em cofres ou debaixo do
colchão. O divórcio sequer existia.
Importante destacar que na seara infracional, o Tribunal de Justiça de
São Paulo improveu recurso de adolescente contra a sentença que lhe aplicou
a medida socioeducativa de internação porque subtraiu vários objetos de seus
pais com o intuito de comprar substâncias entorpecentes. No julgamento, os
Desembargadores entenderam que os atos infracionais praticados foram
mais danosos ao grupo familiar do que a preservação da instituição familiar.
Em quarto, como conseqüência do ponto anterior, mencione-se que
a vítima pode ter interesse em futura ação indenizatória, na esteira do que
dispõe o art. 63 do CPP 7, para o que será de enorme utilidade o trânsito em
julgado de uma sentença condenatória na órbita criminal.
Em quinto, a imunidade prevista no artigo 181 do CP quebra a coerência
interna do sistema jurídico. Ora, um crime no seio familiar seria sempre grave,
independentemente do bem jurídico afetado. Então, qual a lógica de permitir
a imunidade para os crimes patrimoniais quando ela não se aplica a delitos
que afetam outros bens jurídicos? Por que conceder imunidade para delitos
com maior quantitativo de pena e negá-la para delitos menos graves?
É de bom alvitre salientar que o Código Penal capitula como agravante o
crime cometido contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge, nos termos
do seu artigo 61, inciso II, ‘e’. E assim sendo, os delitos não-patrimoniais
cometidos contra as pessoas referidas no art. 181 do CP também não
prejudicariam o ‘bom nome da família? Não semeariam a cizânia?
Não se pode olvidar, também, que a imunidade penal prevista no
artigo 181 do CP é fator criminógeno, pois sabendo que não poderá haver
a persecução penal pelo Estado, o indivíduo não se intimidará em realizar a
Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução,
no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus
herdeiros.
7
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209
conduta ilícita.
Para a pobre vítima, restaria apenas uma ação indenizatória contra
o agente. Mas qualquer um que tenha os pés na realidade sabe a crise que
atravessa a execução: muitos bens não são penhoráveis, o agente via de
regra não terá bens para pagar o devido, o escamoteamento de bens é de
fácil realização (venda do bem, colocação do bem em nome de terceiros,
ocultamento de bens, etc).
Deve-se, sempre, portanto, deixar ao crivo do familiar ou cônjuge lesado
a decisão de possibilitar a deflagração da ação penal. É a única forma de
manter-se o equilíbrio entre os direitos da vítima e do acusado.
O Parlamento parece estar atento para a questão. Visando corrigir
a absurda situação consagrada pelo art. 181 do Código Penal, tramita no
Congresso Nacional o Projeto de Lei n.º 3.764/2004, de autoria do Deputado
Coronel Alves, prevendo a revogação desse artigo e dando nova redação ao
artigo 182, nos seguintes termos:
Art. 1º. Esta lei revoga o art. 181 e dá nova redação ao art. 182
do Código Penal Brasileiro.
Art. 2º. Fica revogado o artigo 181 do Decreto-lei n.º 2848, de
7 de dezembro de 1940.
Art. 3º. O art. 182 do Decreto-lei 2848, de 7 de dezembro de
1940, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 182....................................................................
I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal ou
judicialmente separado;
II - de ascendente, descendente e colateral até o 3º grau.
Na justificativa do Projeto de lei, o parlamentar argumenta:
Para melhor adequar o texto à realidade brasileira e não
beneficiar o parente que praticou a infração contra a própria
família, entendemos que a melhor hipótese seria a revogação
do art. 181, pois traz a isenção de pena, quando o mais correto
deve ser a representação, deixando para a família a decisão da
responsabilidade penal ou não.
Assim, este projeto visa aperfeiçoar o texto e ampliar a ação familiar na
210
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correção dos atos delituosos, dentro do espírito das penas alternativas.”
2.3. Lei Maria da Penha e imunidades penais
Com o advento da Lei Maria da Penha, tende a se formar um consenso
doutrinário de que as imunidades penais entre cônjuges e parentes não teriam
mais aplicabilidade quando se tratar de violência patrimonial contra a mulher,
nos termos do artigo 5º, incisos I a III, c/c o artigo 7º, inciso IV, da Lei n.º
11.340/06)8. 8
Nesse diapasão é o entendimento da douta Desembargadora gaúcha
Maria Berenice Dias, verbis:
A partir da vigência da Lei Maria da Penha, o varão que
‘subtrair’ objetos da sua mulher pratica violência patrimonial
(art. 7º., IV). Diante da nova definição de violência doméstica,
que compreende a violência patrimonial, quando a vítima é
mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza
familiar, não se aplicam as imunidades absoluta ou relativa
dos arts. 181 e 182 do Código Penal. Não mais chancelando
o furto nas relações afetivas, cabe o processo e a condenação,
sujeitando-se o réu ao agravamento da pena (CP, art. 61, II,
f)”9.
A interpretação acima é a única que se afina com o espírito da lei de
garantir a proteção à mulher. Entender que as imunidades do artigo 181 do
Código Penal prevalecem sobre o disposto no artigo 7º, inciso IV, da Lei Maria
da Penha, seria tornar o último dispositivo mero ornamento legal e propiciar a
continuidade das subtrações patrimoniais contra a mulher nas esferas familiar
e residencial.
No mínimo, há de se entender pela derrogação dos artigos 181 e 182 do
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica,
compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo
familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida
como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos
por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima
de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente
de coabitação. (...) Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre
outras: I , II, III - (omissis) IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que
configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os
destinados a satisfazer suas necessidades;
9
A Lei Maria da Penha na justiça, RT, pp. 88-89.
8
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Código Penal face ao disposto no artigo 2º, 1º, da Lei de Introdução ao Código
Civil - a lei posterior revoga a anterior quando com ela incompatível.
3. A OBJEÇÃO IDEOLÓGICA
Com certeza, as posições externadas no presente artigo atrairão os
protestos dos autodesignados ‘penalistas modernos’, que, escandalizados,
focarão suas críticas no fato de que direitos dos acusados, expressos
legislativamente, não poderiam ser suprimidos na ‘via interpretativa’.
Na dogmática ‘garantista’, o Direito Penal existe tão-somente para a
proteção daquele que seus adeptos denominam ‘o mais débil’ (o acusado)
diante do Leviatã (O Estado).
Nessa visão estreita e unilateral do fenômeno jurídico, o Direito Penal
tem como única finalidade proteger o acusado da fúria punitiva do Estado.
Só não percebeu o ‘garantista’, ‘neto retardatário do Iluminismo’, que
na realidade brasileira o débil na relação penal é o Estado (depauperado,
sem condições de equipar sua polícia e o Poder Judiciário, ou dar vida
digna aos seus cidadãos), enquanto o Leviatã é o criminoso, cada vez mais
ousado, organizado e bem armado. Isso é mais uma prova do equívoco que
é transplantar-se doutrinas alienígenas para aplicação em solo pátrio, sem
qualquer observância das realidades locais.
Na linha de pensamento ‘garantista’, conforme as necessidades de
proteção do ‘mais débil’, ora a legalidade se flexibiliza (concedendo-se direitos
sem previsão legal), ora torna-se uma muralha intransponível (restringindo-se
interpretações desfavoráveis ao acusado).
Essa cegueira ideológica, no entanto, não se harmoniza com a Constituição
brasileira, que deve ser a bússola na interpretação do Direito. Pode-se dizer
que se extrai do sistema constitucional o mandamento de criminalizar os
delitos patrimoniais praticados pelos agentes elencados no artigo 181 do
Código Penal.
O ‘garantista’ constrói sobre areia movediça, ao interpretar o Código
Penal e a Constituição com olho de Polifemo: ‘só o delinqüente tem direitos’.
Ora, análise ponderada da Constituição revela, como não poderia deixar
de ser, que ela faz o justo equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais
do acusado e a defesa da sociedade (individual x coletivo). Pode-se dizer com
todas as letras que a Constituição Federal não acolheu o comando normativo
estampado no artigo 181 do CP.
A não ser assim, o Direito Penal chancelaria situações teratológicas e
afrontosas aos mais elementares sentimentos de justiça, como, por exemplo,
não punir o agente que lesa patrimonialmente a mãe com 59 anos de idade,
cega e analfabeta; ou então, isentar de pena o agente relacionado no art. 181 do
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CP pela prática do grave delito de abuso de incapaz débil mental.
Como já referido neste texto, se de um lado o Estado não pode usar
de arbítrio contra o cidadão, excedendo-se no rigor punitivo (proibição de
excesso), também não pode pecar pela proteção deficiente à coletividade na
seara penal.
E é justamente a tarefa do aplicador do direito encontrar o ponto de
equilíbrio entre direitos do acusado e os direitos da sociedade, não permitindo
o aniquilamento de uma espécie por outra. Não existem ‘modelos’ de
interpretação pré-definidos, sujeitando-se o intérprete, também, às variáveis
sociais.
No Brasil, infelizmente, os operadores do Direito que se intitulam
‘garantistas’ (termo que usurparam) cingem-se a criar doutrinas pródelinqüentes, esquecendo que as vítimas também têm direitos, o que faz
relembrar as agudas palavras de VOLNEY CORRÊA JÙNIOR10:
Todos os séculos registram surtos espasmódicos de
contracultura e anticivilização. Neste fim de século, a
revivescência cínica em voga é a bandidolatria. Cegos à
dramática situação da população atormentada por assaltantes
e surdos aos gemidos das vítimas, insensatos há que se
propõem a identificar no ladrão-assaltante uma auréola robinhoodiana: ele, a seu modo e em última instância, estaria a
promover redistribuição de renda...Seria cômico, se não fosse
trágico.
Humanismo sadio é o que se volta para o trabalhador pacato: para a
faxineira e para a lavadeira (que não delinqüem); para o balconista e para
o ascensorista (que não delinqüem); para o metroviário e para o bancário
(que não delinqüem); para o rurícola, cujo único crime é suplicar um pedaço
de terra; para o funileiro, o carpinteiro, o operário em construção (que não
delinqüem); para todos quantos se vêem submetidos a formas espoliativas de
trabalho, abrigam-se em sub-habitações, alimentam-se precariamente, vestemse mal, afligem-se em corredores de hospitais deficientes (e não delinqüem,
não delinqüem, não delinqüem, porque mansos de espírito, puros, dotados de
boa índole).
“Falso e hipócrita humanismo é o que prodigaliza benesses aos que
estupram, seqüestram, matam e roubam.”
Crime e Castigo - Reflexões Politicamente Incorretas. Campinas: Millennium Editora, 2002,
p. 90.
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4. BREVES CONCLUSÕES
1. A imunidade prevista no artigo 181 do Código Penal, tal como posta,
é inconstitucional, pois: a) fere o princípio da igualdade, já que o patrimônio
da vítima naquelas hipóteses é tão digno de proteção quanto o de qualquer
cidadão; b) a proteção à intimidade familiar, buscada pelo instituto, pode ser
alcançada por outros meios, tal como a decretação de sigilo no procedimento
investigatório; c) muitas vezes não há vínculos afetivos a proteger entre autor
e vítima; d) a vítima pode ter interesse na condenação do culpado para exercer
a ação ex delicto; e) há uma quebra de coerência interna do sistema penal, já
que a imunidade não é aplicada para outros delitos cometidos pelos agentes
relacionados no art. 181 do CP, inclusive para os com menor quantitativo de
pena.
2. Ainda, a imunidade positivada no artigo 181 do Código Penal estimula
a impunidade, pois sabendo de antemão que não poderá ser perseguido
penalmente, o simples temor de sofrer uma ação indenizatória, de difícil
execução posterior, não intimidará o agente.
3. Contra as pessoas elencadas no artigo 181 do CP pode haver a
deflagração de ação penal, mas condicionada à representação da vítima.
4. A Lei 11.340/06 (“Maria da Penha”) derrogou tacitamente o artigo
181 do Código Penal, fazendo com que as imunidades penais entre cônjuges
e parentes não tenham mais aplicabilidade quando se tratar de violência
patrimonial contra a mulher (artigo 5º, incisos I a III, c/c o artigo 7º, inciso IV).
5. O Direito Penal não pode ser visto somente sob a ótica dos direitos
do acusado (visão monocular), devendo a interpretação da lei levar em
consideração os interesses da vítima, pois o princípio da proporcionalidade
é uma via dupla: de um lado, contém o arbítrio do Estado, de outro proíbe
proteção deficiente ao lesado em seus direitos fundamentais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça . Editora RT, 2007.
DÓRIA, A. Sampaio. Direito Constitucional. 5ª edição, vol. I, Tomo I, São
Paulo: Max Limonad, 1962.
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FELDENS, Luciano. A Constituição Penal - A dupla face da proporcionalidade
no controle das leis penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005.
MORAES JÚNIOR, Volney Corrêa Leite de. Crime e Castigo - Reflexões
Politicamente Incorretas. Campinas: Millennium Editora, 2002.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado . 5ª edição. São Paulo:
Editora Saraiva, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 9ª edição, 4ª
tiragem. São Paulo: Malheiros Editores.
NORMA JURÍDICA SECUNDÁRIA,
NORMA PROCESSUAL E NORMA
PROCESSUAL TRIBUTÁRIA
ALAN MARTINS1
Resumen
Este é um estudo sobre normas jurídicas processuais, cujos propósitos são
três. O primeiro é analisar a norma jurídica completa e demonstrar que a
norma secundária possui a natureza de norma processual. Para atingir o
referido objetivo, é necessário estabelecer o antecedente e o conseqüente da
norma secundária, tarefa que pressupõe serem fixados conceitos normativos
e de teoria geral do processo. Também é importante entender como se dá o
ciclo de positivação jurídica no âmbito de um processo judicial. O segundo
propósito é chegar a um conceito de norma jurídica processual adequado ao
contexto jurídico em que a mesma é aplicada. Por fim, o terceiro propósito
deste trabalho é investigar sobre a existência de normas processuais
tributárias, esforço científico que partirá de premissas estabelecidas na
consecução dos dois primeiros propósitos e também da existência de lides e
ações tributárias.
This is a study about processual juridical norms, which has three purposes.
The first is to analyse the complete juridical norm and to demonstrate that
the secondary norm has nature of processual norm. This objective can be
reached if the antecedent and the consequent of the secondary norm were
established, task that presuppose the fixation of normative and general theory
of process concepts. It’s also important to understand the circle of juridical
positivation in the ambit of a judicial process. The second purpose is to get a
concept of processual juridical norm adequate to the juridical context in that
it’s applied. At last, this work has the third purpose to investigate about the
existence of tributary processual norms, scientific effort that’ll depart from
premises established in the consecution of the two first purposes and also
from the existence of tributary litigation and lawsuits.
INTRODUÇÃO
Unidade mínima componente do sistema de direito positivo, a norma
jurídica constitui objeto de infindáveis estudos da Ciência do Direito.
Investigada sob o concurso da lógica jurídica, revela um ciclo dinâmico de
positivação normativa. Um trânsito analítico panorâmico sobre o mesmo,
pode partir da enunciação legislativa de uma norma geral e abstrata de
cunho dispositivo, cujo descumprimento desencadeia a aplicação de outra
norma geral e abstrata também gestada legislativamente, porém veiculadora
de uma sanção. Deste compartimento normativo, dito primário, devem-se
extrair os elementos descritivos componentes do antecedente de um comando
Mestre em Direito Obrigacional Público e Privado pela Universidade Estadual Paulista
- UNESP; Professor de Direito Tributário e Direito Processual Civil em cursos de PósGraduação, Especialização e Aperfeiçoamento na Universidade Estadual Paulista - UNESP,
Instituto Nacional de Pós-Graduação - INPG e Universidade de Franca - UNIFRAN; Agente
Fiscal de Rendas/SP - Assistente Fiscal na Delegacia Regional Tributária de Ribeirão Preto Autor e colaborador da IOB - Thomson.
1
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secundário, cujo conseqüente prescreve uma atuação do Estado-Juiz.
Trata-se o presente de um estudo sobre normas jurídicas processuais.
O primeiro desiderato é, justamente, demonstrar que a norma prescritiva de
uma atuação do Estado-Juiz (norma secundária) constitui, de fato, uma norma
processual, bem como que a sua aplicação verifica-se no bojo de uma relação
jurídica triádica regida por outras normas processuais.
Satisfeito o primeiro propósito, pretende-se, como segundo objetivo do
trabalho, estabelecer um conceito de norma jurídica processual que seja afeto ao
contexto do ciclo de positivação em que normas de tal natureza são aplicadas.
Para tanto, serão necessárias ágeis incursões por conceitos fundamentais de
teoria geral do processo.
Não obstante a dualidade processual do sistema jurídico brasileiro
(processo penal e processo civil), adotando-se como premissas maiores
aquilo que sedimentado na consecução dos dois primeiros propósitos, e
como premissa menor a demonstração de que existem lides e ações de caráter
eminentemente tributário, o último propósito é demonstrar a existência de
normas processuais tributárias.
1. DIREITO POSITIVO E CIÊNCIA JURÍDICA
Segundo a visão jurídica tradicional, direito positivo é o conjunto de
normas jurídicas válidas em determinado local e em determinada época.
Sem deixar de destacar o consagrado conceito, mas denotando sua visão do
direito positivo como disciplina do comportamento humano estabelecida
em formulação lingüística, Paulo de Barros Carvalho afirma que “...o direito
positivo aparece como um plexo de preposições que se destinam a regular a
conduta das pessoas, nas relações inter-humanidade”.2
A partir de um vínculo ciência - objeto, o mesmo jurista concebe ciência
jurídica como aquela à qual “...cabe descrever esse enredo normativo...” (o
direito positivo) “...ordenando-o, declarando sua hierarquia, exibindo suas
formas lógicas que governam o entrelaçamento das várias unidades do sistema
e oferecendo seus conteúdos de significação”.3
Aproximação inicial dos dois conceitos revela que Carvalho se vale da
Semiótica para trazer um discurso qualificado à ciência jurídica, o que tem sido
de grande valia para desqualificar algumas teses fundadas em argumentos de
autoridade que predominaram nas origens do Direito Tributário brasileiro.
Para Eurico de Santi, a “... aplicação da semiótica ao estudo do direito
potencializa o discurso da Ciência do Direito, instrumentaliza o jurista para
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2005,
p. 2.
3
Ibidem, p. 2.
2
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descrever com maior precisão e riqueza as realidades imanentes ao fenômeno
lingüístico do direito”4. Logo, o objetivo principal é a busca de uma linguagem
jurídica lógica, precisa e fundamentada.
Nessa mesma linha, Tárek Moussallem, valendo-se de terminologia
empregada em textos de Lourival Vilanova, expõe que:
Utilizando-nos dos léxicos empregados por Vilanova temos
de plano dois níveis lingüísticos: 1) a linguagem-objeto (L0),
que seria a linguagem prescritiva em que se manifesta o
direito positivo e; 2) a metalinguagem (L1), que se traduz na
linguagem descritiva do cientista do direito. Esta (L1) versa
sobre aquela (L0) (g.n.).5
Portanto, a linguagem prescritiva do direito positivo estabelece regras
de comportamento denominadas normas jurídicas, ao passo que o discurso
da Ciência do Direito caracteriza-se por uma sobrelinguagem descritiva das
normas jurídicas.
2. A NORMA JURÍDICA COMPLETA
2.1. Aspectos conceituais
É possível conceituar norma jurídica em poucos termos, sem que haja
confusão com normas de outras naturezas, como sendo o juízo hipotéticocondicional de conteúdo deôntico veiculado nos textos de lei.
Observe-se que o termo “lei” da expressão “texto de lei” é tomado
no sentido amplo de “veículo normativo” ou, na acepção do artigo 96 do
Código Tributário Nacional, de “legislação tributária”. Pode corresponder
a instrumentos introdutores de normas primários (leis ordinárias,
complementares ou delegadas, medidas provisórias, decretos-legislativos,
tratados e convenções internacionais etc) ou secundários (decretos
regulamentares e normas complementares). O “juízo hipotético-condicional”
diz respeito à estrutura lógica da norma jurídica, de cunho implicacional (
“se... então...deve-ser”), enquanto o termo “conteúdo” é utilizado no sentido
semântico de significação do texto de lei, correspondente sempre a um
comando imperativo. E por fim, “deôntico” diz respeito ao conseqüente do
juízo implicacional da norma jurídica, isto é, o dever ser, modalizado em
permitido, obrigatório ou proibido.
SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento tributário . 2ª. ed. São Paulo: Max Limonad,
2001, p. 32.
5
MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário . 1ª. ed. São Paulo: Max Limonad,
2001, p. 42.
4
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A estrutura lógica de uma norma jurídica pode ser representada por D
(p---q), onde: p representa uma proposição descritiva (antecedente normativo),
q diz respeito a uma proposição prescritiva (conseqüente ou tese) e D é functor
deôntico neutro incidente sobre a relação de implicação intraproposicional.
Uma vez desmembrada, a tese q pode ser representada por S’RS”,
encontrandose as seguintes variáveis: S’ e S” são sujeitos e R outro functor
dêontico, presente no interior da estrutura proposicional da tese. O functor R
do interior da tese, embora também de natureza deôntica, distingue-se do que
incide sobre toda a relação-de-implicação (extrínseco e neutro), pois constitui
variável cujos valores substituintes são as constantes deônticas “permissão”,
“proibição” e “obrigação”.
2.2. A norma jurídica completa: primária e secundária
Definida norma jurídica e identificada a sua estrutura lógica hipotéticacondicional, um mergulho nos meandros lógicos do ciclo de positivação do
direito traz à tona os conceitos fundamentais de norma primária e norma
secundária, componentes da chamada norma jurídica completa.
Na obra “Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo”, lançada com
prefácio de Geraldo Ataliba no ano de 1976, o discurso de Lourival Vilanova
em torno da diferença entre norma primária e norma secundária era o seguinte:
Seguimos a teoria da estrutura dual da norma jurídica: consta
de duas partes, que se denominam norma primária e norma
secundária. Naquela, estatuem-se as relações deônticas
direitos/deveres, como conseqüência da verificação
de pressupostos, fixados na proposição descritiva de
situações fáticas ou situações já juridicamente qualificadas;
nesta, preceituam-se as conseqüências sancionadoras, no
pressuposto do não-cumprimento do estatuído da norma
determinante da conduta.6
Uma leitura isolada do trecho citado, que inaugura o capítulo V da obra
em foco, pode deixar a entender que Vilanova pensava em norma primária
como um comando determinante de conduta e em norma secundária como
sancionadora do descumprimento da primária. Entretanto, na seqüência do
mesmo capítulo, já nas próximas linhas, apenas em aparente contradição, o
mesmo jusfilósofo progride no seu raciocínio, afirmando que norma secundária
é “...a que vem em conseqüência da inobservância da conduta indevida,
justamente para sancionar seu inadimplemento (impôlo coativamente ou darVILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo “. São Paulo:
Noeses, 2005, p. 105.
6
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lhe substitutiva reparadora)” (g.n.).7
Sinaliza, assim, com a teoria que dominaria por completo suas obras
posteriores. Ao falar em coação e reparação, implicitamente, Vilanova está
tocando em provimentos impositivos de competência exclusiva do EstadoJuiz, antecipando a concepção que somente ficaria mais nítida em vários
excertos da obra “Causalidade e relação no direito”, editada pela primeira vez
em 1985, entre eles os seguintes:
O esquema da norma jurídica toma a forma ‘deve ser que se
H, então C’, ou ‘D (H --- C). Abrangendo a norma primária
e a norma secundária, temos ‘D [(H --- C) v (não - C --- E )]’
O esquema simplifica, inevitavelmente. A hipótese H pode
simbolizar fato natural ou conduta, situação, ou relação
empírica. A conseqüência C, em sua estrutura interna, é uma
relação os sujeitos S’ e S” sobre uma coisa, prestação pessoal
etc. A hipótese não-C é uma relação entre S’ e S” (e possíveis
‘terceiros’, S’” - uma estipulação em favor de terceiros,
por exemplo), cuja não prestação do que devia fazer, ou
omitir, o sujeito passivo (não-C marca unilateralmente o
descumprimento), [e hipótese para uma conseqüência E, que
simboliza, simplificadamente, quer uma sanção, quer uma
coação (com interveniência do sujeito S””, ou seja, o juiz)...”8
Norma primária (oriunda de normas civis, comerciais, administrativas)
e a norma secundária (oriunda de normas de direito processual objetivo)
compõem a bimembridade da norma jurídica: a primária sem a secundária
desjuridiciza-se; a secundária sem a primária reduz-se a instrumento, meio,
sem fim material, adjetivo sem o suporte do substantivo.9
Ao estudar o conjunto da obra de Lourival Vilanova, a percepção de
Paulo de Barros Carvalho sobre norma secundária é de que o antecedente
descreve o ilícito, qual seja, o descumprimento da relação jurídica prevista no
conseqüente da norma primária, e o conseqüente prescreve uma atuação do
Poder Judiciário, cujo objetivo é a produção de uma terceira norma (sentença
de mérito). 10
Não obstante o grande avanço no raciocínio, adiante neste artigo, no
tópico dedicado ao estudo das normas processuais, o intento é apresentar uma
Ibidem, p. 105.
VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito . 4ª. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2.000, p. 95.
9
Ibidem, p. 190.
10
FUSO, Rafael Correia. Lógica jurídica e norma jurídica . Disponível em www.eknippel.adv.
br/default.asp?id=77& ACT=5&content=153&mnu=77. Acesso em 14 de maio
de 2.006.
7
8
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visão sobre o antecedente da norma secundária que se acredita constituir um
passo à frente na compreensão do ciclo de positivação jurídica.
2.3. Norma secundária e autonomia processual
A norma primária e a norma secundária, de acordo com a concepção
até aqui admitida, não estão simplesmente justapostas. Existe entre elas um
relacionamento de ordem lógico-formal, em que a inobservância da proposição
normativa primária implica, como conseqüência, na proposição normativa
secundária.11
Não significa, porém, negar o princípio da “autonomia processual”.
Uma relação processual instaura-se independentemente de ter ocorrido, de
fato, o descumprimento da norma primária. Uma vez acionado, o Estado-Juiz
julgará a ação: i) procedente, em caso de reconhecer o citado descumprimento;
ii) improcedente, quando deixa de reconhecê-lo.
Deve-se a Oskar Von Bülow a teoria da autonomia do processo frente ao
direito material. Publicou, em 1868, o clássico Teoria das exceções processuais
e dos pressupostos processuais, obra na qual dá realce a duas relações distintas:
a de direito material, que se discute no processo; e a de direito processual, que
é o continente em que se coloca a discussão sobre aquela. A relação jurídicoprocessual se distinguiria da de direito material por três aspectos: pelos seus
sujeitos (autor, réu e Estado-juiz), pelo objeto (prestação jurisdicional) e pelos
seus pressupostos (pressupostos processuais).12
Portanto, em uma primeira análise, se a norma secundária depende da
existência da norma primária, o mesmo não se pode dizer do processo, pois:
i) a relação processual é triangular (autor, réu e Estado-Juiz); ii) a relação
processual é regida por normas próprias, que estabelecem o conjunto de
atos coordenados por meio dos quais se dá a tutela jurisdicional; iii) existe a
possibilidade de o juiz julgar improcedente a ação, deixando de reconhecer o
descumprimento da norma primária, ou até pronunciando-se pela inexistência
ou inaplicabilidade da mesma para o caso concreto.
Eis a razão de ser enfatizada, na seqüência do presente estudo, uma
concepção sobre o antecedente da norma secundária mais ligada aos conceitos
fundamentais de teoria geral do processo.
VILANOVA. As estruturas... , p. 111.
NASCIMENTO, Adilson de Oliveira. Ca natureza jurídica do processo penal
epistemologicamente adequada à concepção democrática do Estado de direito . Disponível
em www.editora.univale.br/artigos%20direito/Adi son%20de%20Oliveira%20Nascimento.
doc. Acesso em 14 de maio de 2.006.
11
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3. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE TEORIA GERAL DO
PROCESSO
3.1. Lide ou litígio
Paulo Cesar Conrado defende que a relação processual pressupõe a
afirmação da existência ou inexistência de uma relação jurídica de direito
material (relação jurídica base), que serve de fundo para o nascimento do
processo.13
Portanto, o processo tem por objeto um conflito de interesses, isto é,
uma controvérsia sobre uma relação jurídica de direito material. À referida
controvérsia, denomina-se lide ou litígio.
Sobre a lide, fez história a teoria de Francesco Carnelutti, a partir da qual
se fixou o conceito de lide como conflito de interesses caracterizado por uma
pretensão resistida. É o que se depreende da seguinte passagem de sua obra:
O germe da discórdia é o conflito de interesses. Quem tem fome tem
interesse em dispor do pão com que se saciar; se são dois os que têm fome e o
pão não é suficiente mais do que para um, surge o conflito entre eles...A lide
é, pois, um desacordo, elemento essencial do desacordo ou um conflito de
interesses: satisfazendo-se um interesse de uma pessoa, fica-se sem satisfazer
o interesse da outra, e vice-versa. Sobre este elemento substancial implantase um elemento formal, que consiste em um comportamento correlativo dos
dois interessados: um deles exige que se tolere o outro e a satisfação de seu
interesse, e a essa exigência se dá o nome de pretensão; mas o outro, em vez
de tolerá-lo, se opõe.14
Harmonizando-se a teoria normativa de Conrado e o tradicional conceito
apresentado, verifica-se que: i) o conflito de interesses é sobre a existência ou
inexistência de uma relação jurídica de direito material; ii) a pretensão resistida
é justamente a exigência do titular da relação jurídica de direito material objeto
do conflito em fazer prevalecê-la em detrimento de uma resistência do sujeito
passivo.
Nesse diapasão, poder-se-ia definir lide como um conflito de interesses
sobre a existência ou não de uma relação jurídica de direito material. Entretanto,
tal conceito ainda não parece ser exato, vez que a sentença, muitas vezes, não
consiste em um pronunciamento sobre a existência ou inexistência de uma
relação jurídica, referindo-se mais ao cumprimento ou descumprimento de
uma norma de direito material.
CONRADO. Introdução à teoria geral do processo civil. 2ª. ed. São Paulo: Max Limonad,
2003, p. 85.
13
CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo . 2ª. ed. Belo Horizonte: Líder, 2001, p.
25/26.
14
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Um estudo mais aprofundado do direito positivo, revela que a
sentença de mérito é veículo introdutor de norma individual e concreta cujo
antecedente descreve hipóteses de existência, inexistência, cumprimento ou
descumprimento de relações jurídicas; e o conseqüente, que prescreve relações
jurídicas, como bem identifica Rodrigo Dalla Pria,15 pode ter por modalizador
deôntico, na procedência, uma proibição, permissão ou obrigação, e na
improcedência, uma proibição.
Melhor, então, dizer que lide é um conflito de interesses caracterizado
por uma pretensão resistida relacionada a uma relação jurídica material.
3.2. Jurisdição e tutela jurisdicional
Sobre jurisdição, é precisa a lição de Moacyr Amaral Santos no sentido
de que se trata de “...uma das funções da soberania do Estado”, uma função
do Poder Judiciário consistente “...no poder de atuar o direito objetivo, que o
próprio Estado elaborou, compondo os conflitos de interesses”.16
Mais do que poder, jurisdição é dever do Estado, até porque, como
preconiza o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito,
isto é, nenhum conflito de interesses ficará aquém da atuação do Estado-juiz.17
É o Estado-juiz, pois, que tem a função de pronunciar-se acerca dos conflitos
de interesses sobre existência, inexistência, cumprimento ou descumprimento
de relações jurídicas de direito material (tutela jurisdicional), promovendo
o que a dogmática chama de composição da lide. Assim, do ponto de vista
teleológico, a jurisdição é atividade compositiva de conflitos de interesses.18
Como se vê, o exercício da jurisdição é prerrogativa do Estado, por
intermédio do Poder Judiciário. Daí falar-se em Estado-juiz, o que autoriza a
definir jurisdição como o poder-dever exercido pelo Estado-juiz de promover
a composição dos conflitos de interesse, pronunciando-se sobre as relações
jurídicas de direito material.
Por outro lado, não é demais ressalvar a possibilidade de uma
conceituação mais ampla, já que a tutela jurisdicional não se restringe à
declaração da existência ou inexistência do direito, sendo suas funções, ainda:
i) mediante a norma individual e concreta veiculada na sentença: constituir
DALLA PRIA, Rodrigo. O direito ao processo. “In” CONRADO, Paulo Cesar (coord.).
Processo tributário analítico. São Paulo: Dialética, 2003, p. 42.
16
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. V. 1. 23ª. ed. São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 67.
17
CONRADO. Op. cit., p. 98.
18
CONRADO, Paulo César. Efetividade do processo, segurança jurídica e tutela jurisdicional
diferenciada. Revista do Tribunal Regional Federal 3ª. Região. Porto Alegre: IOB-Thomson,
vol 76, mar-abr/2006, p. 47.
15
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e desconstituir relações jurídicas, promover condenações e expedir ordens
(função mandamental); ii) garantir sua própria efetividade através de medidas
de urgência (cautelares e tutela antecipada); iii) promover a realização prática
de suas decisões ou a satisfação creditícia de credores extrajudiciais (execução).
A declaração sobre a relação jurídica de direito material, mais as tarefas
constitutivas, condenatórias e mandamentais, além das tutelas antecipadas,
estão compreendidas no âmbito do que se chama processo de conhecimento.
As medidas de urgência de natureza assecuratória caracterizam o processo
cautelar, enquanto as providências tendentes à realização prática das decisões
ou à satisfação de credores extrajudiciais referem-se ao processo de execução.
3.3. Ação
Ação é termo ambíguo que, em uma de suas acepções, significa o direito
subjetivo público19 de acessar o Estado-juiz para dele cobrar o exercício da
função jurisdicional20. Exercer o direito de ação significa provocar a atuação
do poder-dever deferido pela Constituição ao Estado-juiz de promover a
composição da lide, pronunciandose acerca da relação jurídica de direito
material.
Trata-se de direito abstrato, conforme a seguinte explicação extraída da
obra de Moacyr Amaral Santos:
Concebida a ação como direito de provocar a prestação
jurisidicional do Estado, está afastada a idéia de ação no sentido
concreto. Provocando a jurisdição a um pronunciamento,
a ação não pode exigir senão isso e não uma decisão de
determinado conteúdo. É por isso um direito abstrato,
por que exercível por quem tenha ou não razão, o que será
apurado tão-somente na sentença, e, além do mais, genérico,
pois não varia, é sempre o mesmo, por mais diversos sejam
os interesses a que, em cada caso, possam os seus titulares
aspirar.21
Rodrigo Dalla Pria defende haver uma norma autônoma contemplando
o direito de ação, dizendo que a referida norma, no antecedente, descreve
a existência de uma relação jurídica conflituosa, mais as condições da ação
(legitimidade, interesse e possibilidade jurídica), e no conseqüente, prescreve
uma relação jurídica pela qual, aquele que se alega titular do direito material
controvertido provoca a atuação do Estadojuiz consubstanciada na composição
AMARAL. Op. cit, p. 159.
CONRADO. Introdução..., p. 168.
21
AMARAL. Op. cit, p. 159.
19
20
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da lide, mediante uma sentença sobre a relação jurídica de direito material
(sentença de mérito).22
Todavia, como será demonstrado adiante, a ação é direito adstrito à
relação jurídica processual estabelecida no conseqüente da norma secundária,
ou seja, é direito daquele que se diz titular da relação jurídica pretensamente
violada exigir do Estado- Juiz uma atuação tendente à composição da lide. Já
as condições da ação, são extraídas da própria norma secundária e cingem-se
à legitimidade das partes, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido.
Conceitualmente, ação é o direito abstrato de alguém que se alega titular
de um direito material provocar a atuação do Estado-juiz consubstanciada na
composição da lide, mediante uma sentença sobre a relação jurídica de direito
material.
3.4. Processo
O processo é relação jurídica que se instaura pela provocação do Estadojuiz, mediante o exercício do direito de ação, tornando-se completa com a
convocação do réu para dela participar, pelo ato da citação.23
A isto cumpre acrescentar que o processo visa uma atuação do Estadojuiz (tutela jurisdicional), que se conclui mediante uma sentença ou acórdão
de mérito a que seja aplicável a norma da coisa julgada material.
Em decorrência de prescrições de normas processuais aplicáveis em
determinadas circunstâncias, a relação processual pode ser extinta por uma
sentença ou acórdão que não contenha decisão de mérito, nem se lhe aplique
a norma da coisa julgada material.
O processo consiste, portanto, numa relação jurídica triádica angular,
no âmbito da qual, de um lado, o autor suscita ao Estado-juiz a prestação de
tutela jurisdicional, e do outro, o réu exerce o direito de opor sua resistência à
referida prestação.
Saliente-se que a validade da relação processual submete-se aos
pressupostos processuais, isto é, a requisitos estabelecidos em normas
processuais para a constituição e desenvolvimento válido do processo.
Por haver pressupostos legais para a constituição da relação
processual, como é o caso da citação válida, e também para a sobrevivência
e desenvolvimento da mesma, como por exemplo a ausência de nulidades
no decurso do processo, é que se fala em “pressupostos” de existência
(constituição) e de desenvolvimento do processo.
Tal concepção, é bom dizer, coaduna-se com a visão de Paulo Cesar
Conrado, para quem os pressupostos processuais constituem “...requisitos
23
22
CONRADO. Introdução..., p. 217.
DALLA PRIA. Op. cit., p. 42.
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225
prescritos no sistema de direito positivo, que dizem com a essência da relação
processual, ou seja, que atinam com o que é imperativo à existência e ao
desenvolvimento do processo”.24
3.5. Procedimento
Como ensina Paulo Cesar Conrado, num sentido procedimental, podese dizer que “...a relação processual revela-se por força de um conjunto de atos
concatenados logicamente com o escopo de alcançar um ato final (no caso, a
sentença)...”25. Em uma visão mais tradicional, o procedimento é o conjunto
de atos, ditos atos processuais, pelos quais o processo tramita até a sentença
ou acórdão.
Em termos normativos, o processo é produto de uma série de relações
(relações de relações) havidas em um âmbito triádico angular (umas entre
autor e juiz e outras entre juiz e réu). Os elementos constitutivos dessas
relações são chamados de atos processuais 26 e o conjunto dos atos processuais
que constituem a relação processual completa denomina-se procedimento.
Enquanto processo é a relação jurídica triádica, o procedimento diz
respeito ao conjunto de atos (relações de relações) por meio dos quais o
processo desenvolve-se até seu ato final (sentença ou acórdão).
4. NORMAS PROCESSUAIS
Na esteira da visão normativa até aqui delineada, Paulo Cesar Conrado
tece considerações em sua obra que levam a crer que o conceito de norma
processual confunde-se com o de norma secundária:
Quando falamos de uma relação jurídica processual,
todavia, a circunstância acaba por ser bem outra: supondo o
descumprimento do dever inscrito no consequente da norma
primária (aquela que deu ensejo a uma relação jurídica
qualquer, de natureza prestacional), vem à baila uma outra
norma, dita secundária, em cujo antecedente está justamente
o fato de o dever jurídico clausulado na norma primária ter
sido inadimplido. E será essa norma outra norma que dará
luz a relação jurídica processual, preconizando o surgimento
de vínculo no qual o sujeito ativo (que é a vítima do
descumprimento do dever contido na norma primária) exige
do sujeito passivo (que é o Estado) a imposição coativa do
CONRADO. Introdução.. ., p.239.
Ibidem, p. 216.
26
CONRADO. Introdução.. ., p. 217/257.
24
25
226
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cumprimento daquele mesmo dever.
Seja como for, o fato é que quando ingressamos nesse campo deparamonos com uma específica norma a precitada norma secundária, em cujo
antecedente está o fato de o sujeito ofensor não ter cumprido a sua obrigação
de indenizar, e em cujo conseqüente encontramos uma relação jurídica pela
o sujeito ofendido invoca uma atuação do Estado no sentido de compelir o
ofensor a cumprir seu dever. Eis a gênese da relação processual.
Mas não é só. É imprescindível aduzir a figura do sujeito ante o qual se
pede a prestação da tutela estatal (jurisdicional), vale dizer, o réu (no nosso
exemplo, aquele que causou dano e não indenizou). É que a relação processual
não se perfaz apenas com autor (aquele que cobra o dever estatal de compor
a lide) e juiz (aquele de quem se cobra o referido dever), suscitando, seja por
imposição lógica, seja por imposição expressa de nosso sistema, o respeito ao
princípio do contraditório...”27
Para o citado jurista, norma processual é aquela cujo antecedente
descreve o descumprimento de uma norma primária, enquanto o conseqüente
prescreve o vínculo processual triádico angular, mediante o qual, de um lado,
o autor provoca o Estadojuiz à prestação de tutela jurisdicional, e do outro, o
réu exerce o direito de opor sua resistência à referida prestação, defendendose.
Disso diverge Rodrigo Dalla Pria, advogando a seguinte teoria:
Cabe, nesse momento, questionar-se a idéia de que o fato
do descumprimento, constituído em sentença que acolhe
o pedido do autor e julga-o procedente, seja o único fato
jurídico constitutivo da norma secundária. Ao que parece,
tal assertiva padece do equívoco que consiste em excluir a
norma individual e concreta resultante de sentenças de
improcedência do conceito de norma secundária...
Para resolver este paradoxo, propõe-se substituir o fato do
descumprimento da relação jurídico-substancial como fato jurídico necessário
ao nascimento da norma secundária, pelo simples fato da possibilidade de
ocorrência do descumprimento, que pode ser reduzido à constatação de um
mero conflito de interesses que impõe a prolação de uma sentença de mérito
que coloque fim à conflituosidade (esta sim, prejudicial da eficácia das relações
jurídicas de direito material”.28
De fato, diante dos conceitos de teoria geral do processo abordados,
verifica-se que o escopo da tutela jurisdicional é a composição da lide, que
27
28
Ibidem, p. 211/213.
DALLA PRIA. Op. Cit., p. 26.
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227
é um conflito de interesses acerca de um direito material. Pode ser que o
direito material alegado pelo autor seja existente e tenha realmente sido
desrespeitado pelo réu (procedência). Mas pode ocorrer também que esse
direito seja inexistente, ou ainda que, existindo, tenha sido respeitado pelo
réu (improcedência).
Em outras palavras, a norma secundária não estabelece em seu
conseqüente uma relação que confira um direito a uma sentença favorável ao
autor. É sim uma norma que veicula em seu conseqüente o direito a uma tutela
jurisdicional em face de um conflito de interesses acerca de uma relação jurídica
de direito material. Seu antecedente também não é o descumprimento de uma
relação jurídica de direito material, mas sim a alegação desse descumprimento
pelo autor e a resistência do réu à pretensão, o que se traduz, em termos mais
sintéticos, pela simples possibilidade do descumprimento da norma primária.
Com essa concepção de norma secundária, o mesmo Rodrigo Dalla
Pria manifesta uma visão bem diferente de norma processual. E nesse ponto,
apresenta um conceito de norma processual voltado diretamente ao direito
positivo e ao processo dinâmico de positivação jurídica, in verbis:
Retomando algumas noções, é certo que as relações jurídicas
individualizadas pela aplicação de normas gerais de conduta
são chamadas relações jurídicas efectuais; por outro lado,
aquelas individualizadas pela aplicação de normas gerais de
produção, são chamadas relações jurídicas intranormativas.
O Código de Processo Civil é um diploma legal que veicula normas
gerais de estrutura (processuais) cuja aplicação resulta na produção de relações
jurídicas intranormativas, integrantes de normas individuais e concretas
(petição inicial, citação etc) Estas, por sua vez, compõe facticidade jurídica
que dá ensejo à constituição de outra norma individual e concreta, a sentença,
que, em circunstâncias normais, veicula uma relação jurídica efectual (mérito),
resultante da aplicação de uma norma geral de conduta (material)”.29
De uma forma mais analítica, mas na mesma linha, as normas processuais
são veiculadas nas leis processuais civis (seus veículos introdutores). São normas
jurídicas que se classificam como normas de estrutura. Uma vez aplicadas,
resultam em normas individuais e concretas (petição inicial, citação, recursos
etc), cujos conseqüentes prescrevem relações jurídicas intranormativas.
Da aplicação dessas últimas normas (individuais e concretas prescritoras
de relações jurídicas intranormativas) resulta a constituição de uma peculiar
norma individual e concreta (a sentença ou acórdão). Peculiar porque a
sentença (ou acórdão) tem caráter ambíguo. Tanto pressupõe a sucessiva
29
DALLA PRIA. Op. cit, p. 24.
228
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aplicação de normas gerais de estrutura e de normas individuais e concretas
prescritoras de relações jurídicas intranormativas, como também veicula em
seu conseqüente uma relação jurídica efectual (mérito), resultante da aplicação
de uma norma jurídica de direito material (norma de conduta).
Pode ocorrer, entretanto, que a sentença não tenha esse caráter ambíguo,
o que vai acontecer nas sentenças sem resolução de mérito (CPC, art. 267),
resultantes sim da sucessiva aplicação de normas gerais de estrutura e de normas
individuais e concretas prescritoras de relações jurídicas intranormativas, mas
que não veiculará em seu conseqüente uma relação jurídica efectual (mérito).
Como logo se vê, a norma secundária tem por antecedente a possibilidade
da norma primária ter sido descumprida, e por conseqüente, uma atuação do
Estado-juiz em face de autor e réu, consubstanciada em uma decisão de mérito
sobre a procedência ou improcedência do pedido do autor. Nesse ponto do
raciocínio, surge uma divergência com a teoria sobre o “ciclo de positivação
da norma secundária” de Rodrigo Dalla Pria.
Para o referido jurista, a norma secundária “...só é chamada norma
processual pela circunstância de ser extraída de contexto inserido num
veículo normativo produzido exclusivamente em processo judiciais...”30 Esse
veículo é a sentença de mérito, pois nas sentenças extintivas sem julgamento
de mérito não há decisão sobre o conflito de interesses, não há provimento
sobre a procedência ou improcedência do pedido do autor.
Porém, tal modo de pensar deixa de levar em conta que, no processo
de positivação, a norma secundária vem antes da sentença. É ela a norma
processual de estrutura da qual se extraem os conceitos de lide, ação, jurisdição,
tutela jurisdicional e processo.
Portanto, se por um lado a concepção de norma secundária aqui
defendida, sem prejuízo dos estudos normativos de Lourival Vilanova e Paulo
de Barros Carvalho, aproveite os avanços teóricos obtidos pelos processualistas
Paulo Cesar Conrado e Rodrigo Dalla Pria, por outro, também acrescenta aos
mesmos a compreensão de norma secundária como aquela em que se encerram
os conceitos de lide, ação, jurisdição, tutela jurisdicional e processo.
Chega-se, assim, à síntese de que, na norma secundária: i) o antecedente
descreve um conflito de interesses sobre uma relação jurídica de direito
material, isto é, a possibilidade de ter havido o descumprimento de uma
relação jurídica prevista no conseqüente de uma norma primária (lide); ii)
o conseqüente prescreve o direito do que se diz titular da relação jurídica
pretensamente violada exigir do Estado-Juiz (ação) o exercício-cumprimento
de um poder-dever consubstanciado em uma atuação tendente à composição
da lide (jurisdição), mediante a produção de uma norma individual e concreta
30
DALLA PRIA. Op. cit., p. 26.
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229
denominada sentença ou acórdão de mérito (tutela jurisdicional), no âmbito
de uma relação jurídica triádica que se completa com a citação para defesa
daquele que se alega ser o responsável pela pretensa violação da norma
primária (processo).
Destarte, a norma secundária é norma processual porque dela é que
decorre a relação jurídica processual. Mais do que isso, pode-se dizer que,
sem norma secundária, não há processo. Entretanto, não é a única norma que
rege essa relação jurídica tendente à construção de uma norma individual e
concreta que contemple a composição da lide pelo Estado-juiz (sentença ou
acórdão).
A partir dos veículos introdutores de normas que regem o processo,
cujo principal diploma é o Código de Processo Civil, muitas outras normas
podem ser construídas. São exemplos as normas relativas à petição inicial, à
contestação, à revelia, à coisa julgada material, ao direito de recurso contra
decisões interlocutórias, ao direito de recurso contra sentenças e acórdãos,
à produção de provas ou ainda às normas que determinam a extinção do
processo por sentença sem resolução de mérito, entre outras.
Veja-se, pois, que não apenas a norma secundária é norma processual.
A relação processual é regida por normas gerais de estrutura (normas
processuais), que podem levar ao cumprimento da norma secundária (sentença
de mérito - atuação do Estado- Juiz) ou até a uma sentença extintiva do processo
sem julgamento de mérito. Nesta última hipótese, o juiz, em decorrência das
normas processuais obtidas a partir do artigo 267 do CPC, deixa de completar
a atuação que lhe é prescrita pela norma secundária.
Não por outra razão, as sentenças ou acórdãos sem resolução de mérito
não se submetem à norma da coisa julgada material. Permanece inconcluso o
ciclo de positivação decorrente da norma secundária, pois o Estado-juiz não se
pronuncia sobre o mérito. Tanto é verdade que, posteriormente, se porventura
afastadas as circunstâncias que ensejaram a aplicação das normas decorrentes
do artigo 267 do CPC, é possível que seja formada uma nova relação jurídica
processual tendente ao cumprimento da norma secundária.
De todo o exposto, conclui-se que norma processual é qualquer norma
geral de estrutura, veiculada por instrumentos introdutores de normas, que seja
determinante da instauração da relação jurídica processual ou reguladora do
ciclo de positivação que se desenrola em seu âmbito. A rigor, o resultado de sua
aplicação é a produção de normas individuais e concretas cujos conseqüentes
prescrevem relações jurídicas intranormativas que levam à constituição de
uma peculiar norma individual e concreta denominada sentença ou acórdão.
Isto vai ocorrer, inclusive, no processo cautelar, cuja tutela jurisdicional
versará sobre lide caracterizada por uma controvérsia em torno da
plausabilidade de existência do direito relativo ao processo principal (fumus
230
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boni iuris) e à presença de iminente risco de dano irreparável ou de difícil
reparação ao autor (periculum in mora). Será diferente, porém, no processo
de execução, que se rege por normas processuais cuja aplicação resulta em
relações jurídicas intranormativas tendentes à satisfação creditícia do autor
(execução de título extrajudicial) ou o cumprimento de uma sentença ou
acórdão (execução de título judicial).
5. NORMA PROCESSUAL TRIBUTÁRIA
5.1. Direito processual tributário e sua lide
O direito positivo brasileiro contempla dois sistemas processuais: o
penal, referente às relações jurídico-processuais tendentes à condenação e
cominação de penas ou à absolvição criminal, e o civil, relativo à solução de
todos os conflitos de interesses alheios à égide do fato jurídico crime, inclusive
aqueles que versem sobre relações jurídicas de natureza tributária.31
Portanto, é lícito afirmar que “...processo tributário é processo civil,
particularizado pela circunstância, única, de a relação jurídica que o precede
logicamente alinharse ao específico ramo didático do direito tributário”.32
É possível, outrossim, falar-se na existência de um “Direito Processual
Tributário”, concernente às relações jurídico-processuais civis que tenham por
objeto lides de natureza tributária.
Também é viável estabelecer-se uma correlação entre os conceitos
fundamentais de teoria geral do processo que orbite em torno da concepção
de lide. E nessa linha, jurisdição é poder-dever do Estado-juiz de promover a
composição da lide, e processo a relação jurídica no âmbito da qual o Estadojuiz atua para compor a lide.
Logo, como lide tributária é aquela que diz respeito a conflitos de
interesses sobre relações jurídicas tributárias, jurisdição tributária é o poderdever do Estado-juiz de promover a composição da lide tributária, enquanto
processo tributário vem a ser a relação jurídica no âmbito da qual o Estadojuiz atua para compor a lide tributária. Daí a importância da noção de lide
tributária para a definição dos conceitos de jurisdição e processos tributários.
No mesmo sentido, na relação com a lide, ação é direito abstrato de
provocar a jurisdição em sua tarefa de compor a lide, sendo lícito falar em
ações tipicamente tributárias quando versem sobre lides tributárias, isto é,
sobre conflitos de interesses relativos a relações jurídicas de direito material
tributário.
31
32
CONRADO, Paulo Cesar. Processo tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 23/24.
CONRADO. Processo... , p. 24.
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231
5.2. Ações tributárias
Importa lembrar que os elementos da ação são as partes, o pedido e a
causa de pedir. Nas ações tributárias a causa de pedir e o pedido adstringemse a uma relação jurídica tributária, o mesmo ocorrendo com as partes, que são
as mesmas envolvidas no vínculo obrigacional tributário.
Seguindo-se no raciocínio, é oportuno transcrever considerações feitas
na obra do jurista James Marins, quais sejam:
...podemos afirmar que o processo tributário trata da ações
com referibilidade ao Direito Tributário, que podem ser
denominadas ações tributárias.
As ações tributárias supõem em regra uma estrutura peculiar, especial,
em maior ou menor medida, que consiste no processo tributário, que tem
como objetivo a produção de uma norma individual e concreta que estabeleça
‘no caso concreto o exato alcance das obrigações determinadas pelas normas
gerais de direito tributário substantivo’.
Nestas ações, teremos compondo a relação jurídica processual, como
partes, de um lado a Fazenda Pública e de outro o cidadão-contribuinte,
podendo figurar, qualquer deles, no pólo ativo ou passivo...”.33
Tal excerto não apenas vai ao encontro da idéia de existência de ações
tipicamente tributárias, como também aponta para o horizonte da distinção
entre ações exacionais e antiexacionais.
Ações exacionais são aquelas de iniciativa da Fazenda Pública, tendentes
à formação de uma relação processual cujo sujeito ativo é a Fazenda Pública
e o sujeito passivo o contribuinte ou responsável. Já as ações antiexacionais
são aquelas de iniciativa do contribuinte ou responsável, sujeitos passivos da
relação jurídica de direito material tributário, tendendo à formação de uma
relação processual cujo sujeito ativo é o contribuinte ou responsável e sujeito
passivo a Fazenda Pública.
Outro diferencial das ações de iniciativa do contribuinte é que se
destinam “...à produção de normas individuais e concretas que protejam o
contribuinte da imposição de exações tributárias indevidas”34. Ou seja, as
ações antiexacionais visam como sentença um provimento jurisdicional que
reconheça a inexistência ou a ausência de descumprimento de uma relação
jurídica de direito material tributário.
São antiexacionais as seguintes ações: ação declaratória de inexistência
de relação jurídica, ação anulatória de débito fiscal, mandado de segurança,
embargos do devedor (este vinculado à existência de uma execução fiscal) e a
MARINS, James. Cireito processual tributário brasileiro. 3ª. ed. São Paulo: Dialética, 2003,
p. 386.
34
DALLA PRIA. Op. cit., p. 60.
33
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repetição de indébito tributário.
Veja-se que, no mandado de segurança, de caráter mandamental, e nas
ações anulatórias e embargos do devedor, que têm natureza constitutiva
negativa, a sentença deve também contemplar a declaração da inexistência
de uma relação jurídico-tributária. Mesmo na sentença da ação de repetição
de indébito, que tem caráter condenatório, a condenação será precedida da
declaração da inexistência de uma relação jurídico-tributária, o que lhe confere
caráter antiexacional. Em outros termos, referida ação não visa evitar uma
imposição exacional, mas sua sentença tem o condão de declarar inexistente
a relação jurídica que a dava suporte, condenando o fisco à devolução da
quantia paga em cumprimento à “obrigação tributária” fulminada pela tutela
jurisdicional.
Já nas ações exacionais, o objetivo é sempre a “...efetivação do conteúdo da
obrigação tributária, que já se suporia antes constituída”35. Mais precisamente,
uma vez constituída a obrigação tributária no âmbito administrativo, têm lugar
as ações exacionais, que visam compelir o sujeito passivo ao cumprimento da
relação jurídica tributária.
Inserem-se nesse âmbito a ação de execução fiscal (realização prática da
prestação jurisdicional mediante um processo que contempla atos executórios)
e a medida cautelar fiscal (visa assegurar a efetividade da prestação
jurisdicional, impedindo que o sujeito passivo promova a dilapidação de seu
patrimônio, frustrando a pretensão executória do fisco-credor).
5.3. Norma processual tributária
Conforme já demonstrado, a norma processual é norma geral de
estrutura veiculada por instrumentos introdutores de normas determinantes
da instauração da relação jurídica processual ou reguladoras do ciclo de
positivação. Tem por resultado de sua aplicação a produção de normas
individuais e concretas cujos conseqüentes prescrevem relações jurídicas
intranormativas que levam à constituição de uma norma individual e concreta
denominada sentença ou acórdão.
Assim, a partir dos veículos introdutores de normas que regem o processo,
cujo principal diploma é o Código de Processo Civil, muitas outras normas
podem ser construídas. São exemplos as normas que regem a petição inicial,
a contestação, a revelia, a coisa julgada material, o direito de recurso contra
decisões interlocutórias, o direito de recurso contra sentenças e acórdãos,
a produção de provas ou ainda as normas que determinam a extinção do
processo por sentença sem resolução de mérito, entre outras.
Também conforme já exposto, o processo tributário é regido pelas
35
CONRADO. Processo..., p. 199.
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233
normas processuais civis, o que não significa, porém, negar a existência de
normas jurídicas tipicamente processuais tributárias.
O processo tributário particulariza-se pelo fato de que as relações jurídicoprocessuais instauradas têm por objeto lides de natureza tributária, havendo
o que se falar, inclusive, em ações exacionais e antiexacionais, tipicamente
tributárias. Então, embora a relação processual tributária seja regida pelas
normas processuais civis em geral, as peculiaridades das lides tributárias
demandam a enunciação legislativa de normas processuais aplicáveis com
exclusividade a ações tipicamente tributárias. É o caso das normas veiculadas
pelo artigo 164 do CTN, atinentes à consignação judicial pelo sujeito passivo
da importância relativa ao crédito tributário. O mesmo pode ser dito acerca
das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário (CTN, art.
151), com reflexo direito sobre a ação de execução fiscal, impedindo o seu
ajuizamento ou suspendendo-a quando já em andamento. Trata-se de norma
jurídica ambivalente, com efeitos nas esferas de direito material e direito
processual.
Mais do que isto, existem veículos introdutores de normas especificamente
determinantes da instauração de relações jurídicas processuais de natureza
tributária ou reguladoras do ciclo de positivação que se verifica no âmbito de
processos que versem sobre lides tributárias.
Quer dizer que, além do Código de Processo Civil e das leis processuais
em geral, há diplomas que veiculam especificamente normas processuais
aplicáveis a processos e ações que versem sobre lides tributárias. A execução
fiscal e a medida cautelar fiscal, ações exacionais, são regidas, respectivamente,
pelas leis 6.830/80 e 8.397/92. Entre as ações antiexacionais, os embargos à
execução fiscal também obedecem às normas da Lei 6.830/80.
CONCLUSÃO
Partindo-se do conceito de norma jurídica como o juízo hipotéticocondicional de conteúdo deôntico veiculado nos textos de lei, um mergulho
nos meandros lógicos do ciclo de positivação do direito traz à tona os conceitos
fundamentais de norma primária e norma secundária, componentes da
chamada norma jurídica completa.
Diz-se secundária aquela norma cujo antecedente descreve um conflito
de interesses sobre uma relação jurídica de direito material, ou em outras
palavras, a possibilidade de ter havido o descumprimento de uma relação
jurídica prevista no conseqüente de norma primária (lide). No conseqüente,
a norma secundária prescreve o direito daquele que se diz titular da relação
jurídica pretensamente violada de exigir do Estado-Juiz (ação) o exercíciocumprimento de um poder-dever consubstanciado em uma atuação tendente
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à composição da lide (jurisdição), mediante a produção de uma norma
individual e concreta denominada sentença ou acórdão de mérito (tutela
jurisdicional), no âmbito de uma relação jurídica triádica que se completa com
a citação para defesa daquele que se alega ser o responsável pela pretensa
violação da norma primária (processo).
A norma secundária não estabelece em seu conseqüente uma relação que
confira um direito a uma sentença favorável ao autor. É sim uma norma que
veicula em seu conseqüente o direito a uma tutela jurisdicional em face de
um conflito de interesses acerca de uma relação jurídica de direito material.
Seu antecedente também não é o descumprimento de uma relação jurídica
de direito material, mas sim a alegação desse descumprimento pelo autor e a
resistência do réu à pretensão, o que se traduz, em termos mais sintéticos, pela
simples possibilidade do descumprimento da norma primária.
A norma secundária é norma processual porque dela é que decorre a
relação jurídica processual. Sem ela, não há processo. Entretanto, não é a única
entre as normas processuais, que se encontram veiculadas nas leis processuais
(seus veículos introdutores).
Normas processuais são normas jurídicas de estrutura. Uma vez aplicadas,
resultam em normas individuais e concretas (petição inicial, citação, recursos
etc), cujos conseqüentes prescrevem relações jurídicas intranormativas. Da
aplicação dessas últimas normas (individuais e concretas prescritoras de
relações jurídicas intranormativas) constitui-se uma peculiar norma individual
e concreta (a sentença ou acórdão). Peculiar porque a sentença (ou acórdão) é
norma individual e concreta de caráter ambíguo. Tanto pressupõe a sucessiva
aplicação de normas gerais de estrutura e de norma individuais e concretas
prescritoras de relações jurídicas intranormativas, como também veicula em
seu conseqüente uma relação jurídica efectual (mérito), resultante da aplicação
de uma norma jurídica de direito material (norma de conduta).
Comprovada fica a autonomia da relação processual, regida por normas
gerais de estrutura (normas processuais), que podem levar ao cumprimento da
norma secundária (sentença de mérito - atuação do Estado-Juiz) ou até a uma
sentença extintiva do processo sem julgamento de mérito, hipótese em que o
juiz, em decorrência das normas processuais obtidas a partir do artigo 267 do
CPC, deixa de completar a atuação que lhe é prescrita pela norma secundária.
Isto vai ocorrer, inclusive, no processo cautelar, cuja tutela jurisdicional
versará sobre lide que se caracteriza por uma controvérsia em torno da
plausabilidade da existência do direito relativo ao processo principal (fumus
boni iuris) e à presença de iminente risco de dano irreparável ou de difícil
reparação ao autor (periculum in mora). Será diferente, porém, no processo
de execução, que se rege por normas processuais cuja aplicação resulta em
relações jurídicas intranormativas que visam a satisfação creditícia do autor
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(execução de título extrajudicial) ou o cumprimento de uma sentença ou
acórdão (execução de título judicial).
Por fim, admitir a dualidade processual brasileira (processo penal e
processo civil) não significa negar a existência de normas jurídicas tipicamente
processuais tributárias. É lícito falar em um processo tributário, que se
particulariza pelo fato de que as relações jurídico-processuais instauradas
têm por objeto lides de natureza tributária. No mesmo sentido, existem
ações tipicamente tributárias, que versam sobre lides tributárias, isto é, sobre
conflitos de interesses relativos a relações jurídicas de direito material.
Outrossim, embora a relação processual tributária seja regida pelas
normas processuais civis em geral, as peculiaridades das lides tributárias
demandam a enunciação legislativa de normas processuais aplicáveis com
exclusividade a ações tipicamente tributárias. É o caso das normas veiculadas
pelo artigo 164 do CTN e pelo artigo 151 do mesmo diploma legal, estas
últimas de caráter ambivalente (material e processual).
Há também diplomas que veiculam especificamente normas processuais
aplicáveis a processos e ações que versem sobre lides tributárias. A execução
fiscal e a medida cautelar fiscal, ações exacionais, são regidas, respectivamente,
pelas leis 6.830/80 e 8.397/92. Entre as ações antiexacionais, os embargos à
execução fiscal também obedecem às normas da Lei 6.830/80.
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VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4ª. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2.000.
OS LIMITES DA AÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA
TUTELA DAS PRETENSÕES AO FORNECIMENTO
GRATUITO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO
ANA PAULA ANDRADE BORGES DE FARIA
Resumen
O trabalho tem por objetivo assinalar quais os limites da ação do Poder
Judiciário brasileiro na tutela das pretensões individuais ao fornecimento
gratuito de medicamentos pelo Poder Público. Parte-se da análise da
estrutura, eficácia e efetividade das normas constitucionais, contrastando
as conclusões alcançadas com a teoria do mínimo existencial e o princípio
da máxima efetividade dos direitos fundamentais. Apresenta-se, então,
a dinâmica institucional estabelecida pela Constituição brasileira para
a concretização do direito à saúde, indicando quais as políticas públicas
promovidas pelo Poder Executivo na área da assistência farmacêutica.
Debate-se as objeções apresentadas à intervenção do Poder Judiciário na
implementação de políticas públicas, notadamente, o princípio da Separação
de Poderes, a reserva do possível (jurídica e fática) e o conflito entre direitos
fundamentais. Examina-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
sobre a temática apresentada. Por fim, delimita-se a área de atuação legítima
do Poder Judiciário para dar efetividade ao comando emergente do artigo 196
da Constituição Federal no que respeita à assistência farmacêutica.
The work aims to highlight the limits of Brazilian Judiciary action in the
custody of individual claims for free medicine supply by governmental
agencies. It stars from the analysis of the structure, efficiency and
effectiveness of constitutional requirements, contrasting the r eached
conclusions with the theory of minimum existential and the principle of
maximum effectiveness of fundamental rights. There is then the Institutional
dynamics established by Brazilian Constitution for the real right to
health, indicating the public policies promoted by the Executive Power in
pharmaceutical care area. The objections submitted to the intervention of the
Judiciary in the implementation of public policies are debated, notably the
principle of power separation, the reservation of possible (legal and in fact)
and the conflict between fundamental rights. The Federal Supreme Court
jurisprudence on the subject presented is also examined. Finally, The area of
legitimate expertise of the Judiciary is delimited to give effectiveness to the
emerging command of Article 196 of the Federal Constitution with regard
to pharmaceutical care.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é delinear as fronteiras da atuação do Poder
Judiciário na tutela das pretensões individuais ao fornecimento estatal gratuito
de medicamentos não contemplados nos protocolos clínicos dos programas
de assistência farmacêutica editados pelas várias esferas de Governo.1
Não será analisada a questão da tutela jurisdicional do direito subjetivo
Monografia apresentada ao Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito
Processual Grandes Transformações, na modalidade Formação para o Mercado de Trabalho,
como requisito parcial à obtenção do grau de especialista em Direito Processual Grandes
Transformações. Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Rede de Ensino Luiz
Flávio Gomes - REDE LFG.
1
238
Revista Jurídica FACULDADES COC
ao fornecimento de medicamentos que integram programas de fornecimento
gratuito implementados pelo Poder Público.
Isto porque, se o medicamento cujo fornecimento é postulado judicialmente
consta da lista de um programa de fornecimento gratuito editado por certa
pessoa política, e é indicado, segundo o protocolo clínico administrativo, para
o tratamento da doença que acomete determinado indivíduo, este tem inegável
direito subjetivo ao fornecimento do remédio, já que todos os pressupostos
para o exercício do direito estão previstos em normas legais e regulamentares
que concretizam o enunciado do artigo 196 da Constituição Federal. Logo, uma
decisão judicial que determine o fornecimento do remédio na hipótese apenas
aplica um comando regulamentar editado pelo próprio Poder Executivo, não
havendo interferência do Poder Judiciário na esfera das políticas públicas.
Diversamente, se o medicamento não está previsto na lista de um
programa estatal de fornecimento gratuito, ou, ainda que esteja previsto, se não é
indicado, pelo protocolo clínico administrativo, para o tratamento da patologia
que acomete certo indivíduo, este, ao postular uma tutela jurisdicional que
determine ao Estado a obrigação de lhe fornecer o medicamento, pressupõe,
para satisfazer sua pretensão, que o Poder Judiciário interfira na política de
saúde pública criada pelo Poder Executivo, fazendo eclodir uma série de
questionamentos jurídicos que serão abordados no presente estudo.
A importância da investigação é inegável, pois, é fato notório a crescente
multiplicação de demandas individuais em que se postula ao Poder Judiciário
que determine ao Poder Executivo a entrega de medicamentos excepcionais
e de alto custo que não são fornecidos pelos programas oficiais de assistência
farmacêutica, e os Juízos e Tribunais têm sido sensíveis ao anseio da população,
concedendo tutelas antecipadas, medidas cautelares e liminares que geram
distorções no funcionamento do Sistema Único de Saúde - SUS2 .
Não foi outro o motivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal, no
julgamento do RE 566471 RG/RN, ocorrido em 15 de novembro de 2007,
decidiu que: “Possui repercussão geral controvérsia sobre a obrigatoriedade
de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo” (grifo nosso).
Ademais, a participação do Poder Judiciário na implementação de
políticas públicas tem sido especialmente focada na área de assistência
farmacêutica, reforçando a corrente jurisprudencial inaugurada no início da
década de noventa, com a acolhida de pedidos de tutela jurisdicional para o
tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - SIDA, forte na Lei
Federal n. 9.313/963, corrente esta que se expandiu para amparar pretensões
individuais de tratamento de outras patologias, ainda que ausente uma
Judicialização da Saúde: a balança entre acesso e eqüidade (29/01/2008) - matéria jornalística
publicada na página:
http://www.ensp.fiocruz.br/informe/materia.cfm?matid=8374 - Acesso em 22/02/08.
2
Revista Jurídica FACULDADES COC
239
legislação específica relacionada4.
Para realizar a pesquisa foram consultadas obras doutrinárias editadas
no Brasil e em Portugal especialmente nos campos do Direito Constitucional,
dos Direitos Humanos e do Direito Administrativo, além de artigos e textos
publicados na rede mundial de computadores, com abrangência interdisciplinar
nas áreas do Direito e da Saúde Pública. Ainda, foram acessadas as páginas
eletrônicas do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para coletar acórdãos e decisões
monocráticas sobre o tema.
A seqüência de capítulos foi organizada para propiciar ao leitor o acesso
gradual a noções e conceitos importantes para compreender com clareza as
conclusões alcançadas.
Assim, e considerando que as decisões do Poder Judiciário que tutelam
pretensões individuais ao fornecimento de medicamentos têm como principal
fundamento o comando do artigo 196, da Constituição Federal, define-se,
inicialmente, a classificação das normas constitucionais segundo sua estrutura,
eficácia e efetividade, para, em seqüência, situar o direito social à saúde como
direito fundamental e interpretá-lo à luz do princípio dignidade da pessoa
humana e da teoria do mínimo existencial.
Então, passa-se à análise da competência discricionária do Poder
Executivo para concretizar o direito à assistência farmacêutica, situando essa
competência institucional no contexto do princípio da Separação de Poderes, da
reserva do possível (fática e jurídica) e do conflito entre direitos fundamentais,
para evidenciar as objeções freqüentemente apresentadas à interferência do
Poder Judiciário na implementação de políticas públicas. Por fim, destacam-se
os fundamentos de acórdãos e decisões monocráticas proferidas sobre o tema,
no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a fim de iluminar as conclusões
finalmente alcançadas no derradeiro capítulo do estudo onde são traçados
os limites da atuação jurisdicional na tutela das pretensões individuais ao
fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo.
1. CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
SEGUNDO A SUA ESTRUTURA, EFICÁCIA E EFETIVIDADE
O estudo da estrutura das normas jurídicas tem inegável relevância para
Nos termos do artigo 1º, da Lei n. 9.313/96: “ Art. 1º. Os portadores do HIV (vírus da
imunodeficiência humana) e doentes de Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida)
receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária ao
tratamento “.
4
GOUVÊA, Marcos Maselli. O Direito ao Fornecimento Estatal de Medicamentos. “in”A
Efetividade dos Direitos Sociais. Emerson Garcia - Coordenador. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2004, p. 201/3.
3
240
Revista Jurídica FACULDADES COC
a interpretação e aplicação dos comandos da Lei Maior, porém, a doutrina
constitucionalista é controvertida sobre a classificação dos preceitos da
Constituição segundo o apontado critério.
JOSÉ AFONSO DA SILVA compreende as normas jurídicas como
proposições definidoras de direitos e obrigações, hábeis a criar posições
subjetivas ativas ou passivas, enquanto que os princípios seriam “disposições
que se irradiam e imantam os sistemas de normas”.5
LUÍS ROBERTO BARROSO assinala que as normas jurídicas subdividemse em normas-disposição, que regem situações específicas, e normas-princípio,
ou princípios, que possuem grande teor de abstração e posição hierárquica
superior no sistema normativo, porque sintetizam os valores mais relevantes
da ordem jurídica6.
Sobre o tema, entre as alternativas ofertadas pela doutrina, adota-se a
concepção de J.J. GOMES CANOTILHO7, segundo a qual a Constituição
contém duas espécies de normas jurídicas: as regras e os princípios.
As regras possuem um grau de abstração reduzido e aptidão para
aplicação direta, porque contêm comandos imperativos, proibindo, permitindo
ou impondo determinados comportamentos, concretizando-se mediante
subsunção, sob a lógica do tudo ou nada, uma vez que o legislador define
a hipótese de incidência e a conseqüência jurídica respectiva, de modo que,
sempre que a previsão normativa da regra realizar-se no mundo dos fatos,
incidirá a conseqüência jurídica por ela estipulada para reger a situação
concreta. Havendo conflito aparente entre regras jurídicas, este há de ser
solucionado pelos critérios cronológico, da especialidade e da hierarquia8.
Diversamente, os princípios são dotados de elevado grau de abstração,
com conteúdo vago e indeterminado, encerrando verdadeiros “standards”
fundados na noção de Justiça e na idéia de Direito. Por isso, têm papel
fundamental no sistema normativo, ocupando posição hierárquica privilegiada
no sistema de fontes, e, em certas hipóteses, desempenhando função estrutural
do ordenamento jurídico9.
Daí a conclusão de que os princípios seriam normas jurídicas impositivas
de uma otimização, concretizável em variados graus, dependendo de
condicionamentos fáticos e jurídicos. Isso significa que a aplicação de certo
princípio para regular uma situação concreta pode impor o balanceamento de
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002,
p. 91/2.
6
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva,
2003, p. 151.
7
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra:
Almedina, 1998, p. 1033 e segs.
8
Ibidem, p. 1033 e segs.
9
Ibidem, p. 1033 e segs.
5
Revista Jurídica FACULDADES COC
241
valores e interesses na contingência de existirem outros princípios conflitantes
igualmente aplicáveis. Assim é que, será preciso harmonizar os vários
princípios, segundo o seu peso, para dimensionar o campo de incidência de
cada qual, sobre o conflito de interesses a ser regulado10.
Sob outro enfoque, HUMBERTO ÁVILA11 assevera que “se o conteúdo
normativo de um princípio depende da complementação (positiva) e limitação
(negativa) decorrentes da relação dialética que mantém com outros princípios,
parece inconcebível a ocorrência de efetivas colisões entre eles”. Na verdade,
os princípios, em razão do elevado grau de abstração lógica, são fluidos
e imprecisos, e não veiculam hipóteses de incidência nem conseqüências
jurídicas determinadas, de modo que “o problema que surge na aplicação dos
princípios reside muito mais em saber qual deles será aplicado e qual relação
mantêm entre si”12.
Completando o raciocínio, JUAN CIANCIARDO13 esclarece:
[...] a rigor, não se trata da primazia de um princípio
sobre outro, mas apenas da inaplicabilidade do princípio
eventualmente afastado, funcionando como suposto de fato
da regra de decisão que, então, necessariamente, se formula
as circunstâncias do caso e, como sua conseqüência jurídica, a
que se extrai do princípio de maior peso.
Como se denota, considerando que a norma constitucional veiculada
sob a forma de princípio, de conteúdo indeterminado e abstrato, não revela,
por si mesma, a abrangência de sua hipótese de incidência normativa, deverá
o intérprete, valendo-se do método tópico-problemático, definir o suposto
normativo a partir do caso concreto de modo que, segundo o magistério de
J.J. GOMES CANOTILHO14:
[...] a interpretação da constituição reconduzir-se-ia, assim,
a um processo aberto de argumentação entre os vários
participantes (pluralismo de intérpretes) através da qual se
tenta adaptar ou adequar a norma constitucional ao problema
Ibidem, p. 1033 e segs.
ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de
proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 215:151-179, jan/
mar.1999 “apud” MENDES, Gilmar Ferreira et. al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2008, p. 33/4.
12
Ibidem, p. 179.
13
CIANCIARDO, Juan. El conflictivismo em los derechos fundamentales. Pamplona: EUNSA,
2000, p. 200-201”apud” MENDES, Gilmar Ferreira et. al. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Saraiva, 2008, p. 34.
14
Ob. cit., p. 1085.
10
11
242
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concreto. Os aplicadores-interpretadores servem-se de vários
topoi ou pontos de vista, sujeitos à prova das opiniões pró ou
contra, a fim de descortinar, dentro das várias possibilidades
derivadas da polissemia de sentido do texto constitucional,
a interpretação mais conveniente para o problema. A tópica
seria, assim, uma arte de invenção (inventio) e, como tal,
técnica de pensar problemático. (grifos do autor)
Nesse cenário, o fato de se afastar a aplicação de um princípio em certo
caso concreto, não o invalida para futuras aplicações, pois, sua não incidência
em favor de outro princípio ocorre em face das circunstâncias do caso
concreto específico, e pode não prevalecer para casos futuros, motivo pelo
qual a aplicação dos princípios não será apta para criar precedentes, afinal,
enquanto as regras jurídicas ordenam determinados comportamentos, “[...] os
princípios jurídicos são mandados de otimização ou preceitos de intensidade
modulável, a serem aplicados na medida do possível e com diferentes graus
de efetivação.” 15
Com apoio nas premissas doutrinárias referidas que propiciam a
identificação de dois tipos de normas constitucionais segundo a sua estrutura
- regras e princípios -, na seqüência serão apresentadas várias propostas de
classificação das normas constitucionais sob o critério da eficácia e efetividade,
a fim de que, no encerramento deste capítulo seja possível estabelecer a
relação entre a estrutura dos enunciados normativos da Lei Maior e seu grau
de aplicabilidade. Senão vejamos:
Nossa Constituição Federal é escrita e, como tal, contém
inúmeras disposições consubstanciadas em enunciados
ou preceitos que veiculam símbolos lingüísticos os quais
devem ser interpretados para que se possa deles extrair seu
significado e alcance, identificando, assim, a norma jurídica
contida no texto supremo, cuja eficácia será modulada
segundo a possibilidade de ser imediatamente aplicada a
casos concretos, produzindo efeitos jurídicos16.
Assim é que, as normas jurídico-constitucionais são dotadas de diferentes
graus de eficácia segundo os símbolos lingüísticos que compõem os enunciados
ou preceitos dos quais são extraídas, e esses variados graus de eficácia
correspondem ao que pode ser exigido, judicialmente, com fundamento na
norma jurídica invocada pelo postulante da tutela jurisdicional.
No âmbito deste estudo, a expressão “eficácia” significa o grau de
15
16
MENDES, Gilmar Ferreira et. al. ob. cit., p. 37.
Ibidem, p. 248.
Revista Jurídica FACULDADES COC
243
aptidão de uma norma jurídica para dispor sobre um conflito de interesses
concretamente considerado (hipótese de incidência) e, subseqüentemente,
produzir efeitos jurídicos tendentes a solucioná-lo (conseqüência jurídica); por
seu turno, o termo “efetividade” será empregado para designar o resultado da
realização do comando normativo no mundo fenomênico (realidade social)17.
Várias são as propostas classificatórias apresentadas pela doutrina de
Direito Constitucional para definir a eficácia e a efetividade das normas da
Constituição.
No Direito norte-americano construiu-se a clássica teoria das normas
constitucionais executáveis por si mesmas (self-executing provisions), e
das normas não executáveis por si mesmas (not self-executing provisions),
acolhida no Brasil por Ruy Barbosa para quem as normas do primeiro grupo
seriam imediatamente aplicáveis, por veicularem verdadeiras regras jurídicas,
enquanto que as do segundo grupo não seriam aplicáveis por veicularem
princípios que demandariam a intermediação do legislador para a devida
concretização.18
Nesse particular, elucidativa é a lição de GILMAR FERREIRA MENDES19:
Tendo em conta, igualmente, a sua eficácia e aplicabilidade,
consideram-se autoexecutáveis as disposições constitucionais
bastantes em si, completas e suficientemente precisas na
sua hipótese de incidência e na sua disposição, aquelas que
ministram os meios pelos quais se possa exercer ou proteger
o direito que conferem, ou cumprir o dever e desempenhar
o encargo que elas impõem; não auto-aplicáveis, ao
contrário, são as disposições constitucionais incompletas
ou insuficientes, para cuja execução se faz indispensável a
mediação do legislador, editando normas infraconstitucionais
regulamentadoras.
Essa teoria foi mais tarde criticada por ser inconcebível admitir que as
normas constitucionais não executáveis por si mesmas sejam completamente
destituídas de efeitos normativos20.
No direito brasileiro, destaca-se a doutrina de JOSÉ AFONSO DA SILVA,
que concebeu uma classificação tricotômica das normas constitucionais
segundo sua qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos,
SARLET, Ingo Wolfang. ob cit., p. 248/9.
BARBOSA, Ruy, Comentários à Constituição Federal Brasileira (coligidos e ordenados por
Homero Pires), vol. II, São Paulo , Saraiva & Cia., 1933, p. 495, “ apud “, SARLET, Ingo
Wolfang. Ob. cit, pp. 253.
19
MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Saraiva, 2008
p. 28.
20
SARLET, Ingo Wolfang, Ob. cit., pp. 255.
17
18
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Revista Jurídica FACULDADES COC
regulando imediatamente situações, relações ou comportamentos21.
De acordo com o referido autor22, as normas constitucionais quanto à sua
eficácia subdividem-se em: (1) normas de eficácia plena de aplicabilidade
direta, imediata e integral - produzem todos os efeitos jurídicos essenciais em
relação a interesses, comportamentos e situações que a Constituição regula
já que veiculam comandos certos e determinados (ex. o casamento é civil e
gratuita a sua celebração, CF art. 226, p. 1º); (2) normas de eficácia contida de
aplicabilidade direta, imediata, mas possivelmente não integral - consagram
direitos subjetivos aos indivíduos ou a entidades públicas ou privadas, mas
autorizam que o legislador infraconstitucional possa restringir os ditos
direitos (ex. é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão,
atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, CF art. 5º, XIII);
(3) normas de eficácia limitada, que se subdividem em: (3.1) normas de
princípio institutivo - definem esquemas gerais de estruturação de órgãos,
entidades ou institutos, conferindo ao legislador infra-constitucional a tarefa
de minudenciar a estrutura e funcionamento dos mesmos e, (3.2) normas
programáticas - estipulam objetivos que devem ser perseguidos pelos Poderes
Públicos com vistas à realização dos fins sociais do Estado, tendo por objeto
os elementos sócio-ideológicos da Constituição, i.e., os direitos econômicos,
sociais e culturais (grifos nossos).
Por seu turno, LUÍS ROBERTO BARROSO defende o princípio da
efetividade em matéria de interpretação das normas constitucionais,
concebendo a efetividade como a materialização dos preceitos legais no
mundo fenomênico, aproximando o deverser normativo do ser da realidade
social23. Buscando ilustrar a matéria, o autor recorre à classificação ontológica
das Constituições elaborada por KARL LOEWENSTEIN24: (1) Constituição
normativa - juridicamente válida e plenamente integrada no corpo social, de
modo que o processo político se amolda às normas constitucionais (roupa que
assenta e veste bem no corpo social); (2) Constituição semântica -submete-se
ao poder político que utiliza o aparato constitucional para perpetuar-se no
comando de determinado Estado (roupa que disfarça, dissimula, esconde
as intenções dos detentores do poder); (3) Constituição nominal - o processo
político não se amolda perfeitamente às normas constitucionais que indicam
metas e fins a serem paulatinamente realizados (roupa não assenta bem no
TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991, pp. 289.
22
SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros,
2000, p. 66 e ss.
23
Ob. cit., p. 248.
24
LOEWESTEIN, Karl. Teoria de la Constituicion. Barcelona: Ariel, 1986, p. 217 e s. “apud”
BARROSO, Luis Roberto. Ob. cit. p. 252.
21
Revista Jurídica FACULDADES COC
245
corpo social, mas pode vir a servir).
O grande anseio dos constitucionalistas pátrios é, segundo LUÍS
ROBERTO BARROSO, realizar um constitucionalismo normativo que
imprima às normas constitucionais um caráter imperativo, de mandamento,
ordem, prescrição, imbuídos de força jurídica, pois, a Constituição não veicula
comandos meramente morais.
Sob o prisma do conteúdo, conforme a doutrina de LUÍS ROBERTO
BARROSO, as normas constitucionais subdividem-se em: (1) de organização:
regulam a repartição do poder político, definindo as competências dos
órgãos constitucionais; (2) definidoras de direitos: geram direitos subjetivos,
conferindo ao titular a prerrogativa de exigir do Estado prestações positivas
ou negativas; e (3) programáticas: estipulam fins sociais a serem alcançados
pelo Poder Público em caráter prospectivo não conferindo aos indivíduos a
prerrogativa de exigir prestações positivas em face do Estado que só estará
obrigado a abster-se de condutas contrárias aos objetivos definidos de modo
que as normas programáticas “não geram direitos subjetivos na sua versão
positiva, mas geram-nos em sua feição negativa”25 (grifos nossos).
Considerando que, como será abordado no capítulo subseqüente, o
direito à saúde é veiculado pelo legislador constituinte através de enunciados
normativos programáticos, para este estudo interessa mais imediatamente
destacar, do universo das classificações apresentadas, as denominadas normas
programáticas, elucidando mais detalhadamente sua natureza jurídica e
características, dentro da dimensão da eficácia e aplicabilidade. Confira-se:
Para JORGE MIRANDA26, as normas constitucionais, segundo sua
eficácia, podem ser: (1) preceptivas, possuindo eficácia incondicionada ou não
dependente de condições institucionais ou de fato; e (2) programáticas que
são aquelas que se voltam à transformação “[...] não só da ordem jurídica, mas
também das estruturas sociais ou da realidade constitucional (daí o nome),
implicam a verificação pelo legislador, no exercício de um verdadeiro poder
discricionário, da possibilidade de as concretizar”.
Ainda JORGE MIRANDA27 demonstra que as normas programáticas
possuem conteúdo essencial valorativo vertido através de conceitos jurídicos
indeterminados, imprimindo elasticidade ao sistema constitucional, e têm por
destinatário principal o legislador, atribuindo-lhe competência discricionária
para definir qual a oportunidade e os meios adequados para lhes dar
exeqüibilidade, e finalmente, as normas programáticas:
Ob. cit., p. 256.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Ed., 1996, t. 2, p.
242.
27
Ibidem, p. 244.
25
26
246
Revista Jurídica FACULDADES COC
[...] não consentem que os cidadãos ou quaisquer cidadãos as
invoquem já (ou imediatamente após a entrada em vigor da
Constituição), pedindo aos Tribunais o seu cumprimento só
por si, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que
delas constam, máxime os direitos sociais, têm mais natureza
de expectativas que de verdadeiros direitos subjectivos.
Nada obstante, em que pese o deficiente grau de eficácia das normas
programáticas, elas possuem inegável juridicidade na medida em que
funcionam como critérios de interpretação dos demais dispositivos da
Lei Maior, podendo, inclusive, contribuir para a integração de lacunas.
Ademais, as normas programáticas impedem a edição de normas legais
que contrariem seus preceitos, além de fixarem parâmetros ou diretrizes
ao legislador infraconstitucional na matéria que disciplinam e, tendo seus
comandos concretizados através de leis e regulamentos, estes não podem
ser simplesmente revogados sem a edição de regulamentação substitutiva
razoável, pois, é inadmissível tolher a exeqüibilidade já adquirida por uma
norma constitucional (vedação do retrocesso)28.
Por fim, JORGE MIRANDA29 declara que as normas programáticas:
[...] determinam igualmente a cessação da vigência, por
inconstitucionalidade superveniente, das normas legais
anteriores discrepantes, mas apenas a partir do momento
em que seja possível (na perspectiva inelutável da realidade
constitucional) receberem exequibilidade;
b) A inconstitucionalidade por omissão também só pode
verificar-se a partir dessa altura, e não antes.
Não significa isto que fique na disponibilidade do legislador ordinário
a eficácia jurídica das normas programáticas. Havendo fiscalização da
constitucionalidade, pelo menos, tal não sucederá: o órgão ou órgãos
competentes verificarão se ocorrem ou não as circunstâncias objetivas
(normativas ou não normativas) que tornam possível - e portanto, obrigatória
- a emissão das normas legislativas susceptíveis de conferirem exeqüibilidade
às normas constitucionais.
Como se denota, as normas programáticas têm sua exeqüibilidade
condicionada por fatores socioeconômicos competindo aos Poderes Legislativo
e Executivo avaliarem a presença dos pressupostos fáticos necessários à sua
implementação, que se dá de forma gradual, segundo a evolução da própria
28
29
Ibidem, p. 250/1.
Ibidem, p 252.
Revista Jurídica FACULDADES COC
247
comunidade conformada pelo ordenamento jurídico constitucional vigente
em certo Estado e em determinado momento histórico. E, assim sendo, a
omissão inconstitucional só ocorrerá se ficar evidenciada a inércia estatal
em um contexto onde haja condições econômicas e sociais indispensáveis à
implementação dos enunciados normativos programáticos.
Nesse cenário, contrastando o pensamento de JORGE MIRANDA, com a
doutrina de ANA PAULA DE BARCELLOS30, pode-se concluir que as normas
programáticas não possuem eficácia simétrica ou positiva, mas, somente,
negativa, de vedação do retrocesso e interpretativa. Explica-se:
A eficácia simétrica ou positiva de uma norma jurídica é aquela
que atribui um verdadeiro direito subjetivo ao destinatário da
disposição aparelhando-o a exigir judicialmente a produção
dos efeitos emergentes do enunciado normativo, como, é o
caso das disposições contidas no artigo 208, “caput” e inciso
I c/c parágrafo 1º, da Constituição Federal, nos termos das
quais é dever do Estado garantir o ensino fundamental
obrigatório e gratuito como direito público subjetivo.
Já a eficácia jurídica negativa da norma jurídico-constitucional permite a
declaração de invalidade das normas ou atos que contravenham os ditames
da Constituição Federal, como, v.g., uma lei infraconstitucional que impedisse
as pessoas de certa religião de freqüentar escolas públicas, pelo simples fato
de pertencerem a determinado grupo religioso, consubstanciaria manifesta
afronta ao comando do artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, nos termos
do qual é inviolável a liberdade de consciência e de crença. Tal lei seria passível
de ser declarada nula através do controle abstrato de constitucionalidade por
ação, por força da eficácia negativa do artigo 5º, VI, da Lei Maior.
Por outro lado, com base em construção doutrinária que prestigia os
direitos fundamentais, fala-se que algumas normas constitucionais possuem
eficácia jurídica de vedação do retrocesso a qual impediria o Estado de revogar
leis ou políticas destinadas a concretizar direitos sociais fundamentais, salvo
se implementar, simultaneamente, medidas substitutivas daquelas revogadas.
Assim, ilustrativamente, se o Estado houver estipulado o valor do salário
mínimo em um patamar consentâneo com os ditames da Constituição, ele
não poderá editar nova legislação, diminuindo o valor atribuído ao salário
mínimo, pois, isso representaria um retrocesso em sede de implementação dos
direitos sociais e, a legislação nesse sentido seria inconstitucional.
Por fim, destaca-se a eficácia interpretativa das normas constitucionais
BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais - O princípio da
dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp 75 e segs.
30
248
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que significa que as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas em
conformidade com as normas da Constituição Federal de modo que:
[...] os princípios constitucionais vão orientar a interpretação
das regras em geral (não apenas as constitucionais, é bem
de ver), de modo que o intérprete se encontra obrigado a
optar, dentre as possíveis exegeses que o texto admite para
o caso, aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo
princípio constitucional pertinente. Notese que se trata de
uma modalidade de eficácia jurídica exatamente porque se
deve poder exigir que o magistrado faça essa opção.31
Do exposto infere-se que há uma imediata conexão entre o grau de
densidade normativa de um enunciado da Constituição Federal e sua eficácia e
aplicabilidade, sendo correto concluir que, as normas constitucionais de maior
densidade normativa têm aptidão para, diretamente e sem a interposição
legislativa, produzir seus principais efeitos, ao passo de que as normas
constitucionais de baixa densidade normativa não podem potencialmente
gerar seus efeitos essenciais32.
As normas programáticas têm baixa densidade normativa, por
expressarem valores éticos de elevado grau de abstração e generalidade,
motivo pelo qual seus comandos devem, em princípio, concretizar-se através
da ação discricionária do legislador e do Poder Executivo.
Por outro lado, como as normas programáticas têm sua efetividade
condicionada a fatores socioeconômicos, só haverá inconstitucionalidade por
omissão pelo descumprimento delas se ficar evidenciado, na situação concreta
submetida ao crivo do Poder Judiciário, que existem condições fáticas propícias
à implementação dos direitos consagrados pelos comandos constitucionais
programáticos.
2. EFICÁCIA E EFETIVIDADE DO DIREITO À SAÚDE NA
CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA À LUZ DA TEORIA DO MÍNIMO
EXISTENCIAL
No decorrer dos últimos séculos filósofos e juristas contribuíram
para a paulatina identificação dos direitos do homem, agrupando-os,
pelo seu conteúdo, titularidade e eficácia, em várias gerações edificadas
progressivamente ao longo da história.
Os direitos de primeira geração, concebidos no fim do século XVII,
31
32
BARCELLOS, Ana Paula. Ob cit., p. 99/100.
SARLET, Ingo Wolfang. Ob, cit., p. 264.
Revista Jurídica FACULDADES COC
249
delimitam uma esfera de autonomia individual em face do poder do Estado,
sendo, por tal motivo, denominados direitos de defesa de conteúdo negativo,
dirigidos à abstenção do Poder Público, compreensivos das liberdades
clássicas ou formais. São os denominados direitos civis e políticos, dentre os
quais destaca-se o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade
perante a lei33.
O individualismo do Estado Liberal de Direito, caracterizado pela
submissão ao império da lei, pela divisão de poderes e o enunciado e garantia
dos direitos individuais, teve que evoluir diante da pressão exercida pelos
movimentos sociais dos séculos XIX e XX no sentido de que fossem realizados
objetivos de Justiça Social. Daí a concepção do Estado Social de Direito
destinado a compatibilizar o capitalismo, como forma de produção, com a
consecução do bem-estar social geral garantindo o desenvolvimento da pessoa
humana.
Eis o motivo pelo qual as Constituições ocidentais passaram a prever
capítulos de direitos econômicos e sociais34, denominados de direitos de
segunda geração abrangentes das liberdades sociais, como, ilustrativamente,
o direito de greve, de sindicalização, a limitação da jornada de trabalho; e
das prestações sociais estatais de cunho positivo, concretizadas através das
políticas públicas na área da saúde, educação, cultura, lazer, trabalho, etc.
(grifos nossos).
Os direitos sociais estão umbilicalmente ligados ao princípio da Justiça
Social, previsto como um dos objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil (CF, art. 3º, I e III). Isto porque, a implementação dos direitos
sociais é mecanismo indispensável para assegurar a redistribuição de renda,
permitindo que a parcela economicamente menos favorecida da população
possa compartilhar do bem-estar social, concretizando, assim, a igualdade
e a liberdade reconhecidas como direitos de primeira geração apenas sob o
aspecto formal35.
De acordo com JOSÉ AFONSO DA SILVA36 os direitos sociais são:
[...] prestações positivas proporcionadas pelo Estado, direta
ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais,
que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos,
direitos que tendem a realizar a igualização de situações
sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao
direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo
BULOS, Uadi Lamêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 402/3.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002,
pp. 112/5.
35
SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 56/8.
36
SILVA, José Afonso. Ob. cit., p. 285/6.
33
34
250
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dos direitos individuais na medida em que criam condições
materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o
que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com
o exercício efetivo da liberdade.
A doutrina é praticamente uníssona em qualificar os direitos sociais como
aqueles destinados a tutelar os menos favorecidos e a realizar o postulado da
igualdade real37, afinal, os direitos sociais têm a nítida função de beneficiar
os hipossuficientes, com vistas à consagração dos princípios fundamentais da
justiça e da solidariedade sociais (CF, art. 3º, I e III).
Destarte, como pontua JOSÉ EDUARDO FARIA.38:
[...] os direitos sociais não configuram um direito de
igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam
um tratamento uniforme; são, isto sim, um direito das
preferências e das desigualdades, ou seja, um direito
discriminatório com propósitos compensatórios.
No ordenamento jurídico pátrio, o direito à saúde é uma espécie de direito
social, já que é previsto no Capítulo II - -Dos Direitos Sociais-, da Constituição
Brasileira, e é qualificado como direito fundamental denominação que designa
os “direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito
constitucional positivo de determinado Estado”39.
Isto porque, o direito à saúde está contemplado no Título II, da Lei Maior -Dos Direitos e Garantias Fundamentais-, caracterizando-se, inequivocamente,
como direito fundamental reconhecido e protegido pelo direito constitucional
positivo brasileiro.
Muitos doutrinadores negam aplicabilidade direta e imediata aos direitos
sociais, econômicos e culturais consagrados na Lei Maior, sob o argumento
de que tais direitos, por se caracterizarem como direitos à prestações,
especialmente se tiverem por objeto prestações materiais, exigem uma
interposição do legislador para serem passíveis de ser exigidos judicialmente40.
Contra tal raciocínio, entretanto, existe corrente doutrinária segundo a
qual o princípio da aplicabilidade direta das normas definidoras de direitos
fundamentais (CF, artigo 5º, parágrafo 1º) teria força normativa suficiente
para conferir plena eficácia aos enunciados normativos da Constituição
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. cit, p. 619.
FARIA, José Eduardo. “O Judiciário e os Direitos Humanos e Sociais: notas para uma
avaliação da justiça brasileira”. In: Cireitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo:
Malheiros, 1994, p. 105.
39
SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., pp. 35/6.
40
SARLET, Ingo Wolfang. Ob, cit., p. 272.
37
38
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251
que veiculam direitos sociais, econômicos e culturais, sendo lícito ao
Poder Judiciário proteger tais direitos contra qualquer lesão ou ameaça de
lesão apresentada ao seu conhecimento, preenchendo as lacunas da norma
constitucional com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de
direito (LICC, art. 4º)41.
Nada obstante, não se pode contrariar a natureza das coisas, sendo forçoso
reconhecer que a maior parte dos denominados direitos sociais, econômicos
e culturais são positivados no texto constitucional através de enunciados de
baixa densidade normativa, que não são aptos a conferir aos indivíduos a
prerrogativa de exigir judicialmente que o Estado cumpra o correlato dever
de oferecer os pressupostos materiais necessários ao gozo integral e efetivo da
saúde, educação, moradia, lazer, etc.
Nesse cenário, conclui-se que a mais consentânea interpretação do
enunciado do artigo 5º, parágrafo 1º, da Lei Maior é a de que se está diante de uma
norma jurídica -de cunho inequivocamente principiológico, considerando-a,
portanto, uma espécie de mandado de otimização (ou maximização), isto é,
estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia
possível aos direitos fundamentais.42”.
Destarte, e em que pese o postulado da plena eficácia e aplicabilidade
dos direitos fundamentais, há que se reconhecer que, em função da diversa
estrutura jurídicopositiva dos dispositivos constitucionais que os contemplam,
são diversos os graus de eficácia e efetividade de tais direitos.
No campo dos chamados direitos de defesa (liberdade, igualdade formal,
garantias institucionais, etc.), que em regra exigem apenas um comportamento
estatal omissivo, no sentido da não interferência na autonomia das pessoas, a
norma do artigo 5º, parágrafo 1º garante a integral justiciabilidade às pretensões
dos indivíduos em face do Estado para fazer valer os direitos individuais,
em sua maior parte consagrados no extenso rol do artigo 5º da Constituição
Federal.
Porém, ao contrário dos direitos de defesa, para cujo respeito é preciso,
apenas, conservar uma situação existente, a efetivação dos denominados
direitos sociais, econômicos e culturais, depende, diretamente, da aplicação
de recursos orçamentários e da edição de medidas legislativas, já que a
efetividade de tais direitos impõe sejam criadas novas situações materiais para
que os hipossuficientes possam ter igualdade de oportunidade, participando
da riqueza produzida pela comunhão social43.
Eis o motivo pelo qual tais direitos são geralmente previstos pelo legislador
CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle judicial das omissões do Poder Público. São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 270/1.
42
Ibidem, p. 284.
43
SARLET, Ingo Wolfang. Ob cit., p. 299.
41
252
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constituinte através de normas programáticas cuja eficácia está condicionada
à reserva do possível, em sua dupla dimensão: (1) fática (existência material
de recursos) considerando que as necessidades públicas são infinitas e que
os recursos orçamentários são limitados, há que se reconhecer que o Estado
não tem condições financeiras de conferir gratuitamente a todos os indivíduos
condições ótimas de existência material (moradia, lazer, saúde, educação, etc.);
e (2) jurídica (poder de dispor dos recursos) - os recursos públicos só podem
ser movimentados e aplicados em necessidades previamente definidas nas
leis orçamentárias, não bastando, assim, a existência material das verbas, mas,
também, que estas estejam destinadas a atender a necessidade eleita (grifos
nossos).
O direito à saúde é direito social fundamental que, sob o aspecto
funcional, é classificado pelos constitucionalistas como uma espécie de direito
à prestações materiais positivas, vinculado à realização progressiva dos
fins e tarefas do Estado Social de Direito que, para eliminar gradualmente
as desigualdades sociais, deve valer-se das políticas públicas dirigidas à
implementação da igualdade material44.
Dada a sua característica de direito social à prestações estatais positivas,
a concretização direito à saúde pressupõe a existência de recursos públicos
destinados normativamente à implementar políticas sociais e econômicas
tendentes à efetivar ações e serviços de saúde, o que leva à conclusão de que a
norma do artigo 196 da Constituição Federal tem natureza programática, fato
reafirmado pela análise do enunciado normativo do dispositivo constitucional
em destaque, que contém conceitos jurídicos fluidos e indeterminados, o que,
em princípio, impede sua aplicação direta pelo Poder Judiciário.
Deveras, conforme observa MARCOS MASSELI GOUVÊA45:
O art. 196 é um daqueles dispositivos da Constituição
que, tradicionalmente, seriam considerados meramente
programáticos, a despeito de qualificar a saúde como
-direito de todos e dever do Estado-. Isto porque o termo
saúde, à vista de seu caráter genérico, dificulta a definição
de um campo preciso de sindicação. Em tese, seria possível
aventar uma infinidade de medidas que contribuiriam para a
melhoria das condições de saúde da população, decorrendo
daí a necessidade de se precisar que meios de valorização
da saúde poderiam ser postulados judicialmente. Um
grupo de cidadãos poderia advogar que a ação do Estado,
na área de saúde, fosse máxima, fornecendo tudo o quanto,
44
45
Ibidem, p. 228/30.
Ob. cit., p. 206.
Revista Jurídica FACULDADES COC
253
ainda remotamente, pudesse satisfazer tal interesse; outros
poderiam enfatizar o cuidado com as práticas preventivas,
concordando com o fornecimento, pelo Estado, de vacinas
de última geração, de eficácia ainda não comprovada; um
terceiro grupo poderia pretender que o Estado desse impulso
a uma política de saúde calcada na medicina alternativa, ou
ao subsídio aos planos privados de saúde. Existem, enfim, um
leque infinito de estratégias possíveis, o que aparentemente
tornaria inviável sindicar-se prestações positivas, nesta seara,
sem que o constituinte ou o legislador elegessem uma delas.
No mesmo sentido é o magistério de INGO WOLFANG SARLET46:
A necessidade de interposição legislativa dos direitos sociais
prestacionais de cunho programático justifica-se apenas
(se é que tal argumento pode assumir feição absoluta) pela
circunstância já referida de que se cuida de um problema de
natureza competencial, porquanto a relização destes direitos
depende da disponiblidade dos meios, bem como em muitos
casos da progressiva implementação e execução de políticas
públicas na esfera socioeconômica.
[...] Os direitos sociais prestacionais carecem de uma
interpositio legislatoris pelo fato de ser extremamente difícil e,
em certas situações, inviável, precisar, em nível constitucional,
o conteúdo e alcance da prestação que constitui seu objeto.
Portanto, é forçoso concluir, preliminarmente, que o enunciado do artigo
196 da Constituição Federal contém um comando programático que, como tal,
não é imediatamente aplicável pelo Poder Judiciário, carecendo para tanto,
de interposição legislativa e/ ou administrativa (prática de atos materiais no
sentido de criar e aparelhar determinado serviço público para viabilizar a
concretização do comando constitucional programático), afinal “as normastarefa e normas-fim pressupõem, em larga medida, a clarificação conformadora
efectuada pelas autoridades com poderes político-normativos”47.
Nada obstante, a compreensão integral do tema investigado exige que
a referida conclusão preliminar seja complementada pelo estudo da teoria do
mínimo existencial à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (CF,
art. 1º, III). Confira-se:
O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento
e fim de toda a ordem jurídica, valor-fonte que condiciona a
46
47
Ob. cit. p. 310 e 327.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Ob cit., p. 1054.
254
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interpretação e aplicação das demais normas da Constituição
Federal.48
A dignidade é qualidade inerente ao homem, irrenunciável e inalienável,
atributo que qualifica a pessoa humana e dela não pode ser dissociado.
Seu núcleo consubstancia a capacidade potencial de autodeterminação do
indivíduo, sem referência a uma situação concreta, pois, também os incapazes
possuem dignidade. Ademais, a dignidade humana possui uma dimensão
cultural emergente da evolução histórica da humanidade que interage com a
descrita dimensão natural, formando um todo indissociável49.
Segundo INGO WOLFANG SARLET50:
[...] a dignidade da pessoa é simultaneamente limite e tarefa
dos poderes estatais. Na condição de limite da atividade
dos poderes públicos, a dignidade necessariamente é algo
que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou
alienado, porquanto, deixando de existir, não haveria mais
limite a ser respeitado (considerando o elemento fixo e
imutável da dignidade). Como tarefa imposta ao Estado, a
dignidade da pessoa humana reclama que este guie as suas
ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente
ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno
exercício da dignidade, sendo, portanto, dependente (a
dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquerir
até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio,
parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas
ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da
comunidade (este seria o elemento mutável da dignidade).
Assim é que, considerando o elemento fixo e imutável da dignidade
da pessoa humana, para que esta seja efetivamente respeitada e preservada
o homem deve ser tratado como um fim em si mesmo, e não como objeto,
daí decorrendo o fundamento da profusão de normas jurídicas destinadas a
proteger a vida e a integridade física e mental do homem, sua privacidade
e liberdade, dentre as quais destacamos a vedação da tortura e das penas
cruéis, a inadmissibilidade de se realizar experiências científicas com seres
humanos, a proibição das provas obtidas por meios ilícitos, etc. Já, tendo como
parâmetro o elemento mutável da dignidade, é dever do Estado proporcionar
condições adequadas de vida ao indivíduo e sua família, dispensando-lhe
MENDES, Gilmar et al., Ob cit. p. 36.
SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 118/9.
50
Ibidem, p. 119/20.
48
49
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255
proteção básica contra as vicissitudes51.
Nesse cenário, impende destacar a arguta observação de LUÍS ROBERTO
BARROSO52:
[...] o conteúdo jurídico do princípio (dignidade da pessoa
humana) vem associado aos direitos fundamentais,
envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e
sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo
existencial, locução que identifica o conjunto de bens e
utilidades básicas para a subsistência física e indispensável
ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar,
ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. O elenco
de prestações que compõem o mínimo existencial comporta
variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore,
mas parece haver razoável consenso de que inclui: renda
mínima, saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um
elemento instrumental, que é o acesso à justiça, indispensável
para a exigibilidade e efetivação dos direitos.
Na mesma esteira, afirma GILMAR MENDES53 que:
[...] são vários e -gananciosamente- expansivos os âmbitos
de proteção da dignidade humana, indo desde o respeito à
pessoa como valor em si mesmo - o seu conceito metafísico
como conquista do pensamento cristão -, até à satisfação das
carências elementares dos indivíduos - e.g., alimentação,
trabalho, moradia, saúde, educação e cultura -, sem cujo
atendimento resta esvaziada a visão antropológico-cultural
desse princípio fundamental.
Como se denota, os direitos fundamentais constituem desdobramentos
do princípio da dignidade da pessoa humana54 sendo imperiosa, portanto, sua
preservação e proteção para que a vontade soberana do legislador constituinte
seja efetivamente implementada.
Por conseguinte, como anuncia J.J. GOMES CANOTILHO55:
SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 122.
O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas - Limites e Possibilidades
da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro. Renovar: 2001, p. 26/7, “apud” BONTEMPO,
Alessandra Gotti. Direitos Sociais: Eficácia e Acionabilidade à luz da Constituição de 1988
.Curitiba. Juruá: 2008, p. 176.
53
Ob. cit., p. 154.
54
SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 130.
51
52
256
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[...] o Estado, os poderes públicos, o legislador, estão
vinculados a proteger o direito à vida, no domínio das
prestações existenciais mínimas, escolhendo um meio (ou
diversos meios) que tornem efectivo este direito, e, no caso
de só existir um meio de dar efectividade prática, devem
escolher precisamente este meio”.
-[...] todos (princípio da universalidade) têm um direito
fundamental a um núcleo básico de direitos sociais (minimum
core of economic and social rights), na ausência do qual o
estado português se deve considerar infractor das obrigações
jurídico-sociais constitucional e internacionalmente impostas.
Nesta perspectiva, o -rendimento mínimo garantido-, as
-prestações de assistência social básicas-, o -subsídio de
desempregosão verdadeiros direitos sociais originariamente
derivados da constituição sempre que eles constituam o
standard mínimo de existência indispensável à fruição de
qualquer direito. (grifos do autor)
E, diante da importância de se criarem políticas públicas dirigidas
à implementação dos direitos sociais, econômicos e culturais para a real
concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, muitos
constitucionalistas pátrios defendem ser possível extrair do artigo 1º, I,
da Constituição Federal determinados direitos fundamentais à prestações
destinadas a assegurar aos indivíduos uma padrão de vida básico,
caracterizador do denominado mínimo existencial.
Assim é que ANA PAULA DE BARCELLOS56 assinala a presença de “um
núcleo de condições materiais que compõe a noção de dignidade de maneira
tão fundamental que sua existência impõem-se como regra-, de maneira que,
no caso de ser atingido esse núcleo essencial do princípio da dignidade da
pessoa humana haverá violação da norma constitucional que, neste aspecto,
têm eficácia simétrica ou positiva.
Ultrapassado esse núcleo essencial, a norma do artigo 1º, I, da Constituição
Federal -mantém a sua natureza de princípio, estabelecendo fins relativamente
indeterminados, que podem ser atingidos por meios diversos, dependendo
das opções constitucionalmente legítimas do Legislativo e Executivo em cada
momento histórico57”.
CANOTILHO, J.J. Tomemos a Sério os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Coimbra:
Coimbra Editora, 1988, p. 34. “apud” SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 353/4. Idem.
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almendina, 1998, p. 470.
56
Ob. cit., p. 226.
57
Ibidem, p. 226.
55
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257
No mesmo sentido, LUIZ ROBERTO BARROSO58 pondera que:
O Estado constitucional de direito gravita em torno da
dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos
fundamentais. A dignidade da pessoa humana é o centro de
irradiação dos direitos fundamentais, sendo freqüentemente
indentificada como o núcleo essencial de tais direitos. Os
direitos fundamentais incluem: [...] c) o mínimo existencial,
que corresponde às condições elementares de educação,
saúde e renda que permitam, em uma determinada sociedade,
o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida
no processo político e no debate público. Os três Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário - têm o dever de realizar
os direitos fundamentais, na maior extensão possível, tendo
como limite mínimo o núcleo essencial desses direitos.
Sob outro enfoque, GILMAR MENDES59 deixa consignado que a norma
constitucional que erige a dignidade da pessoa humana a fundamento de nossa
República Federativa pode consubstanciar regra ou princípio, dependendo do
caso concreto a ser analisado, em que pese seja extremamente problemática a
identificação do núcleo da norma que se estabelece como regra. Assim:
[...] em relação ao que nela é princípio, existe um amplo grupo
de condições de precedência, assim como um elevado grau
de segurança no sentido de que, presentes tais condições, ela
prevalece sobre as normas contrapostas; já com respeito à
regra que ali igualmente se contém, diz-nos o mesmo Alexy
que não cabe indagar em abstrato se ela precede ou não a
outras normas, mas tão-somente se, numa dada situação
concreta, ela foi violada, resposta que ele mesmo considera
difícil porque, diante da imprecisão da norma da dignidade
humana, existe um amplo espectro de soluções igualmente
razoáveis para essa indagação.
O que o pensamento doutrinário exposto propugna, portanto,
é a possibilidade de se atribuir eficácia simétrica ou positiva à norma
constitucional que consagra a dignidade da pessoa humana como princípio
fundamental do Estado Brasileiro, em que pese tratar-se de enunciado
BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à
Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial.
Artigo publicado em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf - Acesso em
26/04/08.
59
MENDES, Gilmar Mendes et al. Ob. cit., p. 151.
58
258
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normativo excessivamente genérico e abstrato, com natureza prevalente de
princípio, carente, portanto, de densidade normativa.
O problema que se evidencia, neste ponto, é que a delimitação do
que seja o núcleo essencial de direitos fundamentais caracterizáveis como
direitos subjetivos que poderiam ser diretamente extraídos do artigo 1º, I, da
Constituição Federal, seria carreada ao Poder Judiciário, que, a partir da análise
do caso concreto: (1) verificaria a eventual inexistência de uma política pública
idônea a preservar a dignidade da pessoa humana na dimensão do mínimo
existencial (definição da hipótese de incidência normativa) e, em seguida,; (2)
atribuiria efeitos jurídicos a tal constatação, determinando as ações a serem
implementadas pelo Poder Público para corrigir a omissão inconstitucional
(estabelecimento da conseqüência jurídica).
E, assim agindo, o Poder Judiciário estaria proferindo uma sentença
determinativa60 supressiva de uma lacuna constitucional heterônoma61, em
nítida atividade de integração legislativa, já que, como sobredito, o artigo 1º,
I, da Constituição Federal é norma constitucional desprovida da necessária
densidade para ser diretamente aplicável.
Então, sobressaem duas problemáticas sobrepostas.
A primeira consiste em saber se para regular o caso concreto há de fato
uma lacuna constitucional heterônoma ou, apenas, uma abertura intencional
para regulamentação da norma pelo Poder Legislativo viabilizando -a luta
política, a liberdade de conformação do legislador, a adaptação da disciplina
normativa à evolução da vida (realidade) constitucional-62. Nessa última
hipótese, o deficiente grau de eficácia da norma constitucional é conforme
ao projeto regulador estipulado pelo legislador constituinte, enquanto que
a existência de lacunas heterônomas contraria tal projeto, autorizando a
intervenção do Poder Judiciário para apontar a omissão legislativa violadora
de um direito fundamental.
A segunda problemática consiste em saber se, uma vez constatada
a existência da lacuna constitucional, seria possível reconhecer ao Poder
Judiciário a competência para criar uma regra jurídica que discipline o conflito
A sentença determinativa é concebida pela doutrina civilística como aquela através da qual
o Juiz, instado a promover a revisão das cláusulas de determinado negócio jurídico para fazer
valer os princípios da função social do contrato (CC, art. 421) e da boa fé objetiva (CC, art.
113), se vê na contingência de estabelecer novas cláusulas contratuais, integrando o negócio
jurídico - NERY JÚNIOR, Nelson, et al. Código Civil Comentado. São Paulo: RT, 2006, p. 417.
61
A lacuna constitucional heterônoma tem lugar quando não houverem sido editadas normas
jurídicas infraconstitucionais aptas a completar a lei constitucional, consubstanciando-se uma
clara violação aos princípios impositivos da Constituição diante da não consecução do plano
regulamentar definido pelo legislador constituinte originário - CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob.
cit., p. 1108.
62
CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob. cit., p. 1108.
60
Revista Jurídica FACULDADES COC
259
de interesse, diretamente a partir do princípio da dignidade da pessoa humana,
compelindo o Poder Executivo a ofertar ao indivíduo postulante da tutela
jurisdicional uma prestação material apta a concretizar o direito fundamental
lesado ou ameaçado de lesão.
Uma tal atividade judicial consubstanciaria, claramente, a promoção
de uma política pública, ainda que referida a um indivíduo particularmente
considerado. Assim, é mister indagar se Poder Judiciário teria legitimidade para
regular imediatamente a situação concreta na hipótese aventada sem violar o
princípio da Separação de Poderes e o postulado do Estado Democrático de
Direito.
Ressalvando que o regime democrático pressupõe a formulação e
a execução de políticas públicas pelo Poder Executivo, LUIZ ROBERTO
BARROSO63 oferece resposta à indagação formulada, nos seguintes termos:
Como visto, constitucionalismo traduz-se em respeito aos
direitos fundamentais. E democracia, em soberania popular
e governo da maioria. Mas pode acontecer de a maioria
política vulnerar direitos fundamentais. Quando isto ocorre,
cabe ao Judiciário agir. É nesse ambiente, é nessa dualidade
presente no Estado constitucional democrático que se coloca
a questão essencial: podem juízes e tribunais interferir com as
deliberações dos órgãos que representam as maiorias políticas
- isto é, o Legislativo e o Executivo -, impondo ou invalidando
ações administrativas e políticas públicas? A resposta
será afirmativa sempre que o Judiciário estiver atuando,
inequivocamente, para preservar um direito fundamental
previsto na Constituição ou para dar cumprimento a alguma
lei existente. Vale dizer: para que seja legítima, a atuação
judicial não pode expressar um ato de vontade própria do
órgão julgador, precisando sempre reconduzir-se a uma
prévia deliberação majoritária, seja do constituinte, seja do
legislador.
O questionamento, porém, está longe de ser equacionado, sendo
mister promover uma mais acurada análise da problemática nos capítulos
subseqüentes, onde serão abordados os óbices à atuação do Poder Judiciário
na implementação de políticas públicas. Entretanto, antes de encerrar este
capítulo, é mister abordar a questão da eficácia do direito fundamental à saúde
BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à
Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial.
Artigo publicado em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf - Acesso em
26/04/08.
63
260
Revista Jurídica FACULDADES COC
sob a ótica da teoria do mínimo existencial. Senão vejamos:
A teoria do mínimo existencial tem sido utilizada para
corroborar o raciocínio de que também é possível identificar
um núcleo essencial de direitos fundamentais nas normas
jurídicas que veiculam comandos programáticos, no sentido
de conferir-lhes a máxima efetividade.
INGO WOLFANG SARLET enumera os pressupostos necessários ao
reconhecimento da eficácia simétrica ou positiva das normas constitucionais
que enunciam direitos sociais, econômicos e culturais, a saber: (1) a
indispensabilidade da garantia efetiva do direito social ao exercício das
liberdades fáticas (direitos de defesa); (2) a inexistência de séria afronta ao
princípio da separação de poderes, especialmente no que concerne à edição
e execução das leis orçamentárias, e a direitos fundamentais de terceiros.
Em arremate, o multicitado doutrinador afirma que o padrão mínimo
existencial, no campo dos direitos sociais, compreende “[...] formação escolar
e profissional, uma moradia simples e um padrão mínimo de atendimento na
área de saúde64”.
Em sintonia com o pensamento exposto, MARCOS MASELLI GOUVÊA65
ressalta que:
[...] mesmo normas prima facie programáticas podem ter
um núcleo-jurídico positivo: embora não se possa obter do
Estado uma prestação determinada, pode-se exigir que ao
menos alguma atitude, dentre as eficazes, seja tomada diante
de um certo problema de saúde. Existindo apenas uma opção
de atuação eficaz, que permita a melhoria das condições de
saúde ou a manutenção da vida da pessoa interessada, é esta
mesma a conduta que deve ser adotada pelo poder público.
Na mesma esteira, ilustrando sua análise com o direito social à saúde,
INGO WOLFANG SARLET66 assim se manifesta:
Tomando-se como exemplo o direito à saúde, verifica-se que
assim como é correto (pelo menos é o que se irá sustentar mais
adiante) deduzir da Constituição um direito fundamental
à saúde (como complexo de deveres e direitos subjetivos
negativos e positivos), também parece certo que ao enunciar
SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 368/9.
Ob. cit., p. 210.
66
Ob. cit., p. 312.
64
65
Revista Jurídica FACULDADES COC
261
que a saúde - além se ser um -direito de todos-, -é dever do
Estado, mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos...- (art. 196 da
CF de 1988), a nossa Lei Fundamental consagrou a promoção
e proteção da saúde para todos como um objetivo (tarefa)
do Estado, que, na condição de norma impositiva de políticas
públicas, assume a condição de norma de tipo programático.
Importa notar, portanto, que a assim designada dimensão
programática convive com o direito (inclusive subjetivo)
fundamental, não sendo nunca demais lembrar que a eficácia
é das normas, que, distintas entre si, impõe deveres e/ou
atribuem direitos, igualmente diferenciados quanto ao seu
objeto, destinatários, etc.
Deveras, o direito à saúde, por ser o mais estritamente relacionado à
vida e à proteção da integridade física e mental do homem, é um dos mais
imediatamente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana, já que a
vida é o substrato dos demais direitos humanos fundamentais67.
Destarte, e com apoio nos posicionamentos doutrinários destacados, é
possível inferir que a norma jurídica contida no enunciado do artigo 196 da
Constituição Federal possui uma dupla dimensão de eficácia: no que concerne
à garantia do núcleo essencial do direito à saúde (mínimo existencial), a norma
em destaque tem eficácia simétrica ou positiva, impondo ao Poder Público o
dever de disponibilizar à população as prestações materiais básicas na área de
saúde voltadas à preservação da vida humana digna. Por outro lado, em relação
à esfera periférica do direito à saúde, compreensiva de prestações materiais
destinadas à melhoria da qualidade de vida das pessoas, a norma comentada
tem natureza programática, cuja eficácia depende da atuação discricionária do
legislador e do Poder Executivo, que têm liberdade de escolher os meios e a
oportunidade ótima para regulamentá-la.
A complexidade da matéria, porém, não se esgota na conclusão
apresentada, comportando ulteriores considerações, especialmente no que
toca às limitações orçamentárias e ao conflito entre direitos fundamentais,
afinal, não se pode desconsiderar que a implementação dos direitos sociais
está condicionada por fatores socioeconômicos que podem representar sérias
limitações à ação estatal, especialmente nos países em desenvolvimento, como
é o caso do Brasil.
67
SARLET, Ingo Wolfang. Ob, cit., p. 344.
262
Revista Jurídica FACULDADES COC
3. OBJEÇÕES À INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA
ESFERA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA
No desenho institucional estabelecido pela Constituição da República
Federativa do Brasil a atribuição de realizar políticas públicas68 pertence,
inequivocamente, ao Poder Executivo, seja por força da legitimidade
democrática de que o mesmo se reveste, seja por razões técnico-operacionais,
já que a administração pública, com uma visão macroscópica da sociedade
brasileira, tem maiores condições de detectar as carências da população e,
a partir de tal diagnóstico, pode definir qual a dimensão dos recursos a ser
investida, e quais as ações prioritárias a serem implementadas no sentido de
garantir ao maior número de pessoas a realização de seus direitos sociais,
econômicos e culturais.
Porém, para que o Poder Executivo alcance os objetivos, fins e metas
a que se propõe, deve, preliminarmente, estar autorizado pelo Poder
Legislativo, através das leis orçamentárias, a despender recursos públicos para
executar ações e tarefas eleitas como prioritárias, a partir de critérios técnicos
fundamentados e razoáveis.
Essa dinâmica institucional está fincada no princípio a Separação de
Poderes que, além da vertente política fundamentada na soberania popular,
também compreende uma dimensão técnico-operacional, como elucida
MARCOS MASELLI GOUVÊA69:
O Legislativo e o Executivo acham-se aparelhados de órgãos
técnicos capazes de assessorá-los na solução de problemas
mais complexos, em especial daqueles campos que geram
implicações macropolíticas, afetando diversos campos de
atuação do poder Público. O Poder Judiciário, por sua vez,
não dispõe de iguais subsídios; a análise que faz do caso
concreto tende a perder de vista possíveis implicações fáticas
e políticas da sentença, razão pela qual os problemas de
maior complexidade - incluindo a implementação de direitos
prestacionais - devem ser reservados ao administrador
público.
Nesse cenário, e considerando que o direito fundamental à saúde, dada
sua natureza de direito social prestacional, deve ser implementado através
Segundo AMÉRICO BEDÊ FREIRE JÚNIOR política pública significa -um conjunto ou
uma medida isolada praticada pelo Estado com o desiderato de dar efetividade aos direitos
fundamentais ou ao Estado Democrático” - O controle Judicial de Políticas Públicas. São
Paulo: RT, 2005, p. 46.
69
GOUVÊA, Marcos Maselli. O Controle Judicial das Omissões Administrativas. Rio de
Janeiro: Forense, 2003, p. 22-3.
68
Revista Jurídica FACULDADES COC
263
de políticas públicas (CF, art. 196), evidencia-se competir ao Poder Executivo
o dever de concretizálo através da adoção de medidas destinadas à redução
do risco de doença e de outros agravos e que proporcionem aos indivíduos
acesso às prestações positivas de promoção, proteção e recuperação da saúde.
A Constituição Federal, desde logo orientando a ação dos Poderes
Legislativo e Executivo, traçou os contornos do Sistema Único de Saúde
como rede regionalizada e hierarquizada organizada segundo os critérios:
(1) da descentralização, com direção única em cada esfera de governo; (2)
do atendimento integral, com prioridade para ações preventivas e (3) da
participação da comunidade, evidenciando o caráter democrático do sistema
(CF, art. 198).
E os comandos constitucionais em destaque foram minudenciados pela
Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080/90) que prevê, no elenco de serviços
ofertados no âmbito do Sistema Único de Saúde, a prestação de assistência
terapêutica integral, inclusive farmacêutica (art. 6º, I, “d”).
E, para concretizar o comando legal em destaque, dentre outros vários
atos administrativos, foi editada a Portaria n. 3.916/98, do Ministério da
Saúde, que veicula a Política Nacional de Medicamentos, por força da qual,
cada pessoa política deve elaborar listas de medicamentos a serem adquiridos
e fornecidos gratuitamente à população, competindo ao gestor federal a
formulação da Política Nacional de Medicamentos, com o auxílio aos gestores
estaduais e municipais, e a elaboração da Relação Nacional de Medicamento
(RENAME). Aos Municípios compete estabelecer a relação municipal de
medicamentos essenciais, com base na RENAME e executar a assistência
farmacêutica, de modo que o objetivo prioritário da atuação municipal é
disponibilizar medicamentos destinados à atenção básica à saúde, além de
outros considerados essenciais que estejam definidos no Plano Municipal de
Saúde (grifos nossos)70.
Os medicamentos essenciais previstos na RENAME são escolhidos a partir
dos parâmetros da Organização Mundial da Saúde71 que define medicamentos
essenciais como aqueles que satisfazem às necessidades de saúde prioritárias
da população, os quais devem estar acessíveis em todos os momentos, na dose
apropriada, a todos os segmentos da sociedade, além de serem selecionados
BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à
Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Artigo
publicado em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf - Acesso em 26/04/08.
71
A Organização Mundial da Saúde publica periodicamente listas de medicamentos
considerados essenciais e que devem ser obrigatoriamente disponibilizados à população
dos vários Estados como direito humano à prestação material. As listas constam do
“site” da Organização Mundial da Saúde e estão disponíveis em http://www.who.int/
childmedicines/publications/EMLc%20(2).pdf e em http://www.who.int-medicines-newsLancet_EssMedHumanRight.pdf, acesso em 05/05/2008.
70
264
Revista Jurídica FACULDADES COC
segundo critérios de relevância em saúde pública, evidências de eficácia e
segurança e estudos comparativos de custo-efetividade.
Por força da Portaria n. 2.577/06/GM72, compete à União, em parceria
com os Estados e o Distrito Federal, adquirir e distribuir os medicamentos
de caráter excepcional que são destinados ao tratamento de patologias
específicas, que atingem número limitado de pacientes, e que apresentam alto
custo, seja em razão do seu valor unitário, seja em virtude da utilização por
período prolongado (grifos nossos).
Portanto, o Poder Público, nas várias esferas de Governo, tem
empreendido ações e programas de distribuição gratuita de medicamentos,
desde os destinados à atenção básica, para o tratamento de doenças mais
comuns, até os de caráter excepcional, voltados principalmente ao tratamento
contínuo de doenças crônicas.
Porém, frente ao crescente e ininterrupto progresso tecnológico no
campo da indústria farmacêutica, é impraticável a inclusão imediata dos
medicamentos recentemente lançados nas listas elaboradas pelo Poder Público,
seja por força da necessidade de avaliar previamente a eficácia terapêutica das
novas drogas, seja em razão do elevadíssimo custo de alguns medicamentos
e dos inegáveis impactos orçamentários de sua padronização.
Eis o motivo pelo qual proliferam ações judiciais em que se busca instar
o Poder Público a fornecer gratuitamente ao postulante da tutela jurisdicional
medicamentos que não são contemplados nas listas dos programas oficiais
de assistência farmacêutica ou, remédios que, ainda que previstos nas listas
referidas, não estejam indicados, segundo os protocolos clínicos oficiais, para
tratar a patologia que acomete o demandante.
E o Poder Judiciário tem tutelado as pretensões deduzidas pelos
particulares nesta seara, interferindo, dessa maneira, na política pública de
assistência farmacêutica promovida pelo Poder Executivo, nas várias esferas
de governo. Logo o argumento central contra os mandados judiciais de entrega
de medicamentos tem sido o princípio da Separação de Poderes, afinal, no
desenho institucional concebido pelo legislador constituinte, quem tem poder
discricionário para promover políticas públicas é o Poder Executivo.
A teoria da Separação de Poderes formulada no âmbito do Estado Moderno
por Montesquieu teve por escopo a proteção de liberdades individuais contra
a atuação de Governantes hegemônicos, consagrando os ideais do liberalismo
A Portaria N. 2.577/GM, de 27 de outubro de 2006, aprova a lista de medicamentos cuja
aquisição e distribuição gratuita é tarefa da União - http://dtr2001.saude.gov.br/sas/
PORTARIAS/Port2006/GM/GM-2577.htm, acesso em 15/05/2008.
73
FERREIRA, Camilia Duran, et al. O Judiciário e as Políticas de Saúde no Brasil: o caso
da AIDS. Disponível em: http://getinternet.ipea.gov.br/SobreIpea/40anos/estudantes/
monografiacamila.doc. Acesso em: 06/05/08.
72
Revista Jurídica FACULDADES COC
265
econômico voltados à preservação dos chamados direitos de defesa, ou de
primeira geração (vida, liberdade, segurança, propriedade, etc.)73.
A Separação de Poderes na forma originariamente concebida não
contemplava uma atuação estatal no sentido de assegurar o bem-estar das
pessoas, através da oferta de serviços públicos, limitando-se o Estado Liberal
a garantir a segurança jurídica, mediante a salvaguarda das liberdades
individuais.
Por conseguinte, o surgimento do Estado do Bem-Estar, entre os séculos
XIX e XX causou inegável impacto no princípio da Separação de Poderes, com
o fortalecimento institucional do Poder Executivo, instância responsável pela
organização e execução dos serviços públicos de assistência social.
No Brasil, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, com
nítida feição dirigente, a tarefa de promover a redistribuição de renda e realizar
a Justiça Social através da concretização dos direitos sociais, especialmente
os direitos a prestações materiais, passou a ser o principal desafio do Poder
Executivo a ser realizado através das políticas públicas.
Entretanto, para que o Poder Executivo exerça regularmente a atribuição
de implementar políticas públicas ele necessita estar imbuído da chamada
competência discricionária que é exercida nos termos e limites da lei a qual
delimita os contornos da ação estatal e autoriza a realização das despesas
destinadas à implantação efetiva dos serviços públicos de assistência social
(leis orçamentárias).
Em princípio, a competência discricionária do Governo para implementar
políticas públicas segundo critérios de conveniência e oportunidade, desde
que contida nos limites da lei, não pode ser reavaliada pelo Poder Judiciário,
exatamente por força do princípio da Separação de Poderes. Logo, no caso
específico da assistência farmacêutica, a tutela conferida às pretensões
individuais deduzidas em juízo seria, aparentemente, desbordante da
competência jurisdicional por representar nítida interferência no campo da
ação institucional do Poder Executivo.
Ocorre que, a real presença da discricionariedade administrativa só pode
ser avaliada perante o caso concreto, pois, “[...] a compostura do caso concreto
excluirá obrigatoriamente algumas das soluções admitidas in abstracto na
regra e, eventulamente, tornará evidente que uma única medida seria apta a
cumprir-lhe a finalidade”74.
Destarte, o Poder Executivo, ao implementar ações e serviços voltados
à assistência farmacêutica atuará discricionariamente se existirem várias
alternativas terapêuticas para tratar determinada patologia e uma delas for
disponibilizada gratuitamente aos pacientes. Nessa seara, a interferência
jurisdicional será ilegítima, pois, é ínsito ao conceito de discricionariedade
74
Ibidem, p. 907.
266
Revista Jurídica FACULDADES COC
administrativa o poder de eleger, dentre as alternativas viáveis, aquela mais
conveniente e oportuna ao atendimento da necessidade pública identificada.
Ainda, o Poder Judiciário não pode instar o Poder Público a fornecer aos
postulantes de tutelas jurisdicionais medicamentos cuja eficácia terapêutica
seja questionável, seja por falta de registro na Agência Nacional de Vigilância
Sanitária - ANVISA, seja por indicação “off label”75, pois, a competência
discricionária da administração pública abrange a definição de critérios técnicos
acerca da eficácia e segurança dos medicamentos que não são sindicáveis na
esfera jurisdicional.
Porém, se para o tratamento de certa doença, existir somente uma opção
terapêutica eficaz da qual dependa a preservação da vida do paciente, o Poder
Executivo estará em princípio vinculado adotá-la, já que, se no caso concreto
só houver uma alternativa idônea a preservar o direito fundamental à vida,
não há campo para o exercício do poder discricionário do Governante. Em
tal hipótese, havendo omissão do Poder Público, poderá este ser compelido
judicialmente a fornecer o medicamento de alto custo, com fundamento na
teoria do mínimo existencial, afinal, em que pese o princípio da Separação de
Poderes, é possível afirmar que a vontade soberana do legislador constituinte
deve prevalecer quando se trata de preservar o direito fundamental à vida da
pessoa humana.
Nada obstante, esta última afirmação só é verdadeira se a aquisição do
medicamento de alto custo no caso concreto submetido à apreciação judicial
não colocar em risco outras ações e serviços em prejuízo aos demais usuários
do Sistema Único de Saúde - SUS. Explica-se:
O financiamento do Sistema Único de Saúde é realizado
por todas as pessoas políticas que são obrigadas a investir
determinados percentuais mínimos de receitas públicas na
Muitas vezes o postulante da tutela jurisdicional busca receber medicamento com amparo
na prescrição “off label”, mediante a qual o médico dispensa determinado medicamento já
conhecido no mercado farmacêutico, mas para tratar patologia não contemplada na indicação
terapêutica da bula do remédio. A prescrição, no caso, é baseada em conhecimentos adquiridos
em congressos e na literatura científica. Em tal hipótese, a responsabilidade pela eficácia do
tratamento e dos possíveis efeitos colaterais é integralmente atribuída ao médico que avia
a receita, pois, a indicação proposta não tem amparo da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária - ANVISA, que aprovou a droga para tratamento de patologia diferente daquela
que acomete o paciente (VIVIANO, Lúcia. Uso “off label” De Medicamentos. Disponível em:
http://www.cvs.saude.sp.gov.br/pdf/bfarmaco_2.pdf. Acesso em 15/04/2008.) Na verdade,
a prática deveria ser autorizada, unicamente, na esfera das pesquisas clínicas patrocinadas
pelo próprio laboratório fabricante da droga, pesquisas estas que devem ser aprovadas pelo
Ministério da Saúde, com o cumprimento de rigoroso protocolo clínico pelos pesquisadores,
a fim garantir a segurança dos pacientes.
75
Revista Jurídica FACULDADES COC
267
implementação das ações e serviços de saúde, de acordo com o
que for definido em lei complementar (CF, art. 198, parágrafo
2º). A referida lei complementar, até hoje, porém, não foi
editada, estando em vigor, portanto, o disposto no artigo
77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que
estabelece percentuais mínimos de receita a serem aplicados
pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios nas ações
e serviços de saúde.
O descumprimento das disposições constitucionais em destaque é
fundamento para decretação de intervenção federal nos Estados e Distrito
Federal (CF, art. 34, VII, “e”) e destes nos Municípios (CF, art. 35, III), e pode
ser invocado como condição que impede a transferência de receitas tributárias
da União aos Estados e ao Distrito Federal e destes aos Municípios (CF, art.
160, parágrafo único, II).
A elaboração da proposta orçamentária do Sistema Único de Saúde é
atribuição de todas as pessoas políticas e deve corresponder às exigências de
aportes financeiros destinados a realizar o plano de saúde governamental para
o exercício respectivo (art. 15, Lei n. 8080/90).
Ademais, os recursos destinados à concretização das finalidades do
Sistema Único de Saúde são previstos na Lei Orçamentária Anual, elaborada
segundo proposta orçamentária da direção nacional do SUS, com a participação
dos órgãos da Previdência Social e da Assistência Social, tendo em vista as
metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (art. 31,
Lei n. 8080/90).
Por força do princípio da legalidade orçamentária, as despesas realizadas
pelos órgãos integrantes do Sistema Único de Saúde só podem ser financiadas
com recursos previstos no orçamento respectivo.
Eis o motivo pelo qual a Lei n. 8080/96 determina que os planos de
saúde serão a base das atividades e programações de cada nível de direção do
Sistema Único de Saúde (SUS), e seu financiamento será previsto na respectiva
proposta orçamentária (art. 36, parágrafo 1º), sendo vedada a transferência de
recursos para o financiamento de ações não previstas nos planos de saúde,
exceto em situações emergenciais ou em caso de calamidade pública (art. 36,
parágrafo 2º).
A premente necessidade de atender aos mandados judiciais que
estipulam prazos exíguos para o fornecimento de remédios consubstancia,
inequivocamente, situação emergencial na forma prevista pelo parágrafo 2º,
do artigo 36, da Lei n. 8080/96, a qual autoriza a transferência de recursos de
uma ação e serviço de saúde para outra, pois, do contrário, a pessoa política
destinatária da ordem judicial poderá ser penalizada, seja pela incidência de
268
Revista Jurídica FACULDADES COC
multa diária, seja com o bloqueio de verbas públicas76.
Logo, o Administrador, premido pela necessidade de atender às leis
orçamentárias, notadamente ao princípio da legalidade, e para cumprir
com presteza as ordens judiciais, simplesmente retira recursos do próprio
orçamento da saúde para adquirir os medicamentos e insumos farmacêuticos
solicitados pelos demandantes, o que representa inegável prejuízo à
população que é atendida pelo Sistema Único de Saúde - SUS, cujas ações
podem ficar comprometidas para dar atendimento às requisições judiciais de
medicamentos.
Assim, o óbice da reserva do possível não pode ser simplesmente
desprezado pelas decisões judiciais que, especialmente em um cenário de
multiplicação de demandas, podem potencialmente, desorganizar o Sistema
Único de Saúde afetando o integral atendimento dos pacientes regularmente
credenciados em programas públicos de acesso gratuito a medicamentos, os
quais são imediatamente atingidos pelo desvio de recursos originariamente
alocados.
Na matéria, destaca-se a arguta observação de LUIS ROBERTO
BARROSO77:
São comuns, por exemplo, programas de atendimento
integral, no âmbito dos quais, além de medicamentos, os
pacientes recebem atendimento médico, social e psicológico.
Quando há alguma decisão judicial determinando a entrega
imediata de medicamentos, freqüentemente o Governo retira
o fármaco do programa, desatendendo a um paciente que o
recebia regularmente, para entregá-lo ao litigante individual
que obteve a decisão favorável.
Evidencia-se, portanto, que a situação descrita consubstancia verdadeira
colisão entre os direitos fundamentais à vida e à saúde do postulante da tutela
jurisdicional, de um lado, e do paciente que é cadastrado previamente no
programa do Governo, de outro, que corre o risco de ficar sem atendimento,
sendo possível afirmar que nessa seara o óbice da reserva do possível merece
É expressiva a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o
descuprimento de mandados judiciais que determinam ao Poder Público a entrega de
medicamentos aos beneficiários das tutelas jurisdicionais enseja o bloqueio de verbas públicas,
com base no artigo 461, parágrafo 5º, do CPC, como meio de efetivar o direito do postulante.
Nesse sentido, confira-se os seguintes julgados: AgRg no REsp 935083; AgRg no REsp 880955;
REsp 900458; AgRg no REsp 851797; REsp 836913; AgRg no REsp 888325; REsp 890441; REsp
840912.
77
BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à
Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Artigo
publicado em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf - Acesso em 26/04/08.
76
Revista Jurídica FACULDADES COC
269
consideração, conforme alerta INGO WOLFANG SARLET:
A reserva do possível constitui, em verdade (considerada
em toda a sua complexidade), espécie de limite jurídico e
fático dos direitos fundamentais, mas também poderá atuar,
em determinadas circunstâncias, como garantia dos direitos
fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflitos de
direitos, quando se cuidar da invocação - observados sempre
os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo
existencial em relação a todos os direitos - da indisponibilidade
de recursos com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial
de outro direito fundamental.78
Na mesma esteira, há julgados recentes do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo acolhendo a tese de ser inviável a salvaguarda do direito à
vida e à saúde do postulante da tutela judicial se ficar demonstrado que a
despesa pública efetuada para fornecer o medicamento pretendido é idônea
a comprometer o orçamento destinado à saúde pública, em prejuízo de
outras parcelas da população que ficariam sem acesso às ações e serviços de
saúde. Eis alguns trechos emblemáticos extraídos dos votos proferidos pelos
Desembargadores Relatores dos acórdãos:
A aquisição a preço de mercado de medicamento específico
para um paciente, que teve a felicidade de conseguir o
concurso de um advogado para acionar o Poder Judiciário,
custa, economicamente, desvio de verbas da saúde, com o
risco do perecimento de centenas de crianças carentes por
falta de uma simples vacina. Lastima-se o mal que só pode
ser combatido com medicamentos caríssimos e importados
mas, direcionar-se recurso público para esse particular
paciente implica em sacrificar o necessário recurso que seria
destinado a uma vacina, medida preventiva indispensável
para a sobrevivência de milhares de crianças originárias,
igualmente de bolsões de miséria que cercam s grandes
cidades. Trata-se de evidente inversão de valores.79 (Apelação
Cível 646.308-5/5-00, 7ª Câmara Cível do TJSP, Relator Des.
Cláudio Marques, julgado em 09/11/2007)
Há de se ter em mente que causas como a presente, versando sobre a
distribuição gratuita de medicamentos, possuem implicações muito mais
SARLET, Ingo Wolfang. Ob. Cit. Pp. 305.
Apelação Cível 646.308-5/5-00, 7ª Câmara Cível do TJSP, Relator Des. Cláudio Marques,
julgado em 09/11/2007 - www.tj.sp.gov.br , acesso em 27/04/2008.
78
79
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amplas e complexas do que se poderia inicialmente imaginar. A proliferação
indiscriminada de ordens judiciais determinando a aquisição de medicamentos
caríssimos e não devidamente incorporados às listas e programas oficiais acaba,
em última instância, comprometendo totalmente o planejamento realizado
pelo Poder Executivo para a já combalida área da saúde pública no país.
Apenas a título de exemplo, pesquisas recentes indicam que no Estado de São
Paulo quase um terço da verba para a compra de medicamentos é consumida
no cumprimento de decisões judiciais que beneficiam menos de um décimo
da população que recebe gratuitamente remédios na rede pública. É fácil
perceber que ta quadro torna quase que inviável a concretização de políticas
públicas visando a redução da desigualdade e a realização tão reclamada da
justiça social.80
Com efeito, num contexto em que se multiplicam as demandas judiciais
para que o Estado forneça gratuitamente aos indivíduos os medicamentos
mais modernos, de última geração e de elevadíssimo custo, há evidente
comprometimento da eficiência do Sistema Único de Saúde - SUS, conforme
alerta LUIZ ROBERTO BARROSO81:
Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou
emocionais, que condenam a Administração ao custeio de
tratamento irrazoáveis - seja porque inacessíveis, seja porque
destituídos de essencialidade -, bem como de medicamentos
experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias
alternativas. Por outro lado, não há um critério firme para a
aferição de qual entidade estatal - União, Estados e Municípios
- deve ser responsabilizada pela entrega de cada tipo de
medicamento. Diante disso, os processos terminam por
acarretar superposição de esforços e de defesas, envolvendo
diferentes entidades federativas e mobilizando grande
quantidade de agentes públicos, aí incluídos procuradores e
servidores administrativos. Desnecessário enfatizar que tudo
isso representa gastos, imprevisibilidade e desfuncionalidade
da prestação jurisdicional.
Forçoso concluir, assim, que o deferimento indiscriminado de tutelas
jurisdicionais para garantir o direito à saúde de uns, em detrimento de
outros, pode não ser a melhor solução para equacionar o problema da falta de
Apelação Cível 734.721-5/9-00, 2ª Câmara Cível do TJSP, Relator Des. Corrêa Vianna,
julgado em 26/02/2008 - www. tj.sp.gov.br , acesso em 27/04/2008.
81
BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à
Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Artigo
publicado em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf - Acesso em 26/04/08.
80
Revista Jurídica FACULDADES COC
271
efetividade das ações e serviços de saúde no Brasil. A questão é mais profunda,
e perpassa pela legitimidade do Poder Judiciário para interferir na elaboração
das leis orçamentárias, única maneira efetiva de garantir que não haverá
injustiças na distribuição dos parcos recursos que integram o orçamento da
saúde. Essa temática, porém, não será desenvolvida no presente estudo, cujo
objetivo é, singelamente, identificar os limites da atuação do Poder Judiciário
na tutela de pretensões individuais ao fornecimento gratuito de medicamentos
de alto custo pelo Poder Público.
4. A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
SOBRE A TUTELA DO DIREITO INDIVIDUAL AO FORNECIMENTO
GRATUITO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO
Há mais de dez anos o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento
de que nossa Constituição abriga o direito público subjetivo à saúde, como
conseqüência imediatamente dedutível do direito à vida, inviolável e
indisponível, e consagrado no artigo 5º, “caput”, da Lei Maior, sendo, por
conseguinte, dever do Estado zelar pela sua implementação.
Ilustrativamente, em julgamento de 29 de junho de 1999, a 1ª Turma
do Supremo Tribunal Federal, confirmou acórdão do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, pelo qual o Estado fora condenado a fornecer
gratuitamente à pessoa carente, os medicamentos necessários ao tratamento
da AIDS. Considerou-se que, por força da Lei Estadual n. 9.908/93, o Estado
do Rio Grande do Sul vinculara-se a programa de distribuição gratuita de
medicamentos, não podendo, portanto, furtar-se à obrigação de fornecer os
remédios à população, ante o comando emergente do artigo 196 da Constituição
Federal (RE 242.859/RS - DJ 17/09/99).
Na ocasião, os argumentos clássicos no sentido de obstar o deferimento
da tutela individual ao fornecimento gratuito de medicamentos pelo Estado,
a saber, o princípio da reserva do possível, sob os aspectos econômicos
(recursos limitados X necessidades públicas infinitas) e jurídicos (limitações
orçamentárias - compete ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo estabelecer
a aplicação da receita pública), não foram acolhidos como idôneos a afastar o
dever do estatal de concretizar o direito à saúde.
Esse entendimento, por seu turno, também foi acatado pela 2ª Turma
do Supremo Tribunal Federal, que, em julgamento realizado em 12 de
setembro de 2000, afirmou que o Estado (União, Estados, Distrito Federal
e Municípios) não pode furtar-se ao dever de zelar pela vida humana, para
cuja preservação a saúde é condição essencial, sob pena de incorrer em grave
omissão inconstitucional. Os Ministros admitiram que a norma do artigo
196 da Constituição Federal é programática, mas obtemperaram que entre
272
Revista Jurídica FACULDADES COC
proteger um interesse financeiro do Estado (reserva do possível), e tutelar o
direito à vida e à saúde, há que se privilegiar este último, por razões de ordem
ético-jurídica (RE-AgR 271286/RS - Julgamento 12/09/00 - DJU 24/11/00).
No mesmo sentido, os seguintes julgados da 2ª Turma do Supremo
Tribunal Federal: AI-AgR 616551/GO - DJU 30/11/07; AI-AgR 648971/RS DJU 28/09/07; AI-AgR 604949/RS - DJU 24/11/06; RE-AgR 255627/RS - DJU
23/02/00.; RE-AgR 393175/ RS - DJU 12/12/06.
Sintetizando os argumentos que fundamentam os julgados de nossa
Corte Constitucional, acerca da atuação do Poder Judiciário na implementação
da política pública de assistência farmacêutica, pode-se destacar o seguinte:
- o direito à saúde é conseqüência indissociável do direito
à vida (CF, art. 5º, “caput”), qualificando-se como direito
fundamental, sendo relevante expressão das liberdades reais
e concretas;
- deve-se reconhecer efetividade aos preceitos fundamentais
da Constituição Federal, não bastando a proclamação do
reconhecimento formal do direito à saúde, sendo mister
respeitá-lo e garanti-lo;
- a norma do artigo 196 da Constituição Federal tem natureza
programática, mas não pode ser convertida em promessa
constitucional vazia, sob pena do Estado descumprir a
vontade soberana do legislador constituinte originário;
- a função primordial do Estado é proporcionar às pessoas
o mínimo existencial apto à assegurar a preservação da
dignidade humana;
- no conflito entre a inviolabilidade do direito à vida e à saúde
e o interesse financeiro do Estado, deve prevalecer o direito à
vida e à saúde.
Infere-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal tem se mostrado sensível
ao acolhimento das pretensões individuais no sentido de obrigar o Estado,
em sua acepção genérica (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), ao
fornecimento gratuito de medicamentos, sem delimitar parâmetros seguros
para definir o conteúdo do direito subjetivo à saúde assegurado pela Lei Maior.
A orientação jurisprudencial parece fincar-se na concepção de que:
[...] ao Estado não apenas é vedada a possibilidade de tirar a
vida (daí, por exemplo, a proibição das pena de morte), mas
Revista Jurídica FACULDADES COC
273
também que a ele se impõe o dever de proteger ativamente
a vida humana, já que esta constitui a própria razão de ser
do Estado, além de pressuposto para o exercício de qualquer
direito (fundamental ou não).82
Por outro lado, as decisões de nossa Corte Constitucional superam
o óbice da falta de legitimidade democrática do Poder Judiciário para
implementar políticas públicas com o argumento de ser inquestionável a
vontade do legislador constituinte federal em preservar a vida da pessoa
humana, pois, “[...] na esfera das condições existenciais mínimas encontramos
um claro limite à liberdade de conformação do legislador”83. Do mesmo modo,
a limitação imposta pelo princípio da reserva do possível é rechaçada sob a
fundamentação de que no conflito entre o direito à vida da pessoa humana e
os interesses financeiros do Estado, há de prevalecer àquele.
E, com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem
sido crescente a multiplicação de demandas individuais em que se postula
o fornecimento gratuito de medicamentos, gerando um significativo
comprometimento do orçamento público alocado para a assistência
farmacêutica que é desviado para cumprimento dos mandados judiciais de
entrega de medicamentos, em detrimento de outros pacientes previamente
cadastrados em programas oficiais.
Em sintonia com tal circunstância, e diante da necessidade de traçar
limites à atuação do Poder Judiciário, as recentes decisões da Ministra
Ellen Gracie, proferidas em pedidos de Suspensão de Tutela Antecipada,
Suspensão de Liminares e Suspensão de Seguranças, apontam no sentido de
que o direito ao fornecimento gratuito de medicamentos pelo Poder Público
deve ser reconhecido de acordo com os princípios da proporcionalidade e
razoabilidade. Daí os pedidos terem sido analisados de forma casuística, não
se admitindo análise genérica, mas, necessariamente tópica.
Os principias parâmetros identificados no sentido da manutenção da
decisão de fornecer medicamentos aos pacientes, explicitados nas decisões da
Ministra Ellen Gracie, foram os seguintes:
- a hipossuficiência econômica do beneficário da tutela
jurisdicional questionada84;
- a gravidade da doença (risco de morte e/ou seqüelas
SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 373.
Ibidem, p. 373.
84
STA 162/RN, DJU: 25/10/07; STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS 3205/AM, DJU: 08/06/07;
SS 3158/RN, DJU: 08/06/07; SS 3183/SC, DJU: 13/06/07; SS 3231/RB, DJU: 01/06/07; SS
3382/RN, DJU 29/11/07, SS 3345/RN, DJU: 19/09/07; SL 166/ RJ, DJU: 21/06/07; SS 3196/
RN, DJU: 15/06/07; SS 3403/PR, DJU: 04/12/07.
82
83
274
Revista Jurídica FACULDADES COC
graves)85 ;
- o registro do medicamento na ANVISA ou a existência de
outro meio técnico confiável de comprovação da eficácia
terapêutica86 .
- a comprovação por laudo médico de que a doença não
responde a outros tratamentos ofertados pelo SUS87.
No sentido da inadmissibilidade da manutenção do fornecimento dos
medicamentos, podem ser elencados os seguintes argumentos extraídos das
decisões da Ministra Ellen Gracie:
- a existência de alternativas de tratamento mais baratas e
eficientes, ainda que não ofereçam o mesmo conforto, pois,
v.g., a forma de aplicação é mais dolorosa88;
- o fato da eficácia do medicamento não ser comprovada, seja
por falta do registro na ANVISA, seja por comprovação por
laudo científico de instituição abalizada apresentado pelo
Estado89;
- o fato da doença não representar risco à vida e à saúde do
paciente, como é o caso da infertilidade feminina90.
Estas decisões demonstram ser imperioso aplicar o princípio da
razoabilidade na solução de controvérsias propostas nesta seara. Afinal, como
alerta INGO WOLFANG SARLET91:
[...] a prestação reclamada deve corresponder ao que o
indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal
sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo
o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação
de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável.
SL 188/SC, DJU: 01/02/08; STA 162/RN, DJU: 25/10/07; STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS
3205/AM, DJU: 08/06/07; SS 3158/RN, DJU: 08/06/07; SS 3183/SC, DJU: 13/06/07; SS 3231/
RB, DJU: 01/06/07; SS 3382/RN, DJU 29/11/07, SS 3345/ RN, DJU: 19/09/07; SL 166/RJ,
DJU: 21/06/07; SS 3196/RN, DJU: 15/06/07; SS 3403/PR, DJU: 04/12/07.
86
STA 162/RN, DJU: 25/10/07; STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS 3158/RN, DJU: 08/06/07; SS
3183/SC, DJU: 13/06/07; SS 3231/RB, DJU: 01/06/07; SS 3382/RN, DJU 29/11/07, SS 3345/
RN, DJU: 19/09/07; SL 166/RJ, DJU: 21/06/07; SS 3403/ PR, DJU: 04/12/07.
87
STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS 3205/AM, DJU: 08/06/07; SS 3345/RN, DJU: 19/09/07; SS
3196/RN, DJU: 15/06/07.
88
STA 139/RN, DJU: 10/09/07; SS 3145/RN, DJU: 18/04/07.
89
SS 3073/RN, DJU: 14/02/07; SS 3403/PR, DJU: 04/12/07.
90
SS 3322/GO, DJU: 26/09/07; SS 3350/GO, DJU: 23/08/07; SS 3274/GO, DJU: 22/08/07; SS
3263/GO, DJU: 02/08/07; SS 3201/GO, DJU: 27/06/07.
91
Ob. cit., p. 304, 347 e 376.
85
Revista Jurídica FACULDADES COC
275
Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor
ao Estado a prestação de assistência social a alguém que
efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio,
de recursos suficientes para o seu sustento.
[...] o princípio da proporcionalidade também opera nesta
esfera e que não se afigura como proporcional (e até mesmo
razoável) que um particular que disponha de recursos
suficientes para financeira um bom plano de saúde privado
(sem o comprometimento de um padrão digno de vida para
sai e sua família, e sem prejuízo, portanto, do acesso a outros
bens fundamentais como educação, moradia, etc) possa
cessar, sem qualquer tipo de limitação ou condição, o sistema
público de saúde nas mesmas condições que alguém que não
esteja apto a prover com recursos próprio a sua saúde pessoa.
(...) Em termos de direitos sociais básicos a efetiva necessidade
haverá de ser um parâmetro a ser levado a sério, juntamente
com os princípios da solidariedade e da proporcionalidade.
[...] De outra parte, resulta igualmente evidente que - consoante
admitido pelo próprio Alexy e já frisado - mesmo no plano
de um mínimo existencial (inclusive quando restrito a um
mínimo de sobrevivência, a depender das circunstâncias)
não deixa de ocorrer, por vezes, agudo comprometimento
dos recursos públicos, especialmente em países com grandes
parcelas da população compostas por pobres e miseráveis,
onde, portanto, largas parcelas dos cidadãos dependem das
prestações públicas na esfera da proteção social básica.
Esse derradeiro aspecto, concernente ao princípio da reserva do possível
fática, foi especialmente prestigiado pela Ministra Ellen Gracie ao deferir
pedido de suspensão da tutela antecipada formulado pelo Estado de Alagoas
em face de decisão do Presidente do Tribunal de Justiça do Estadual que, no
âmbito de ação coletiva, determinava, genericamente, que o Estado fornecesse
todo e qualquer medicamento necessário ao tratamento dos transplantados
renais e pacientes renais crônicos (STA 91/AL, DJU 05/03/07). Eis alguns
trechos da decisão da Ministra:
(...) a liminar impugnada é genérica ao determinar que o
Estado forneça todo e qualquer medicamento necessário
ao tratamento dos transplantados renais e pacientes renais
crônicos. (...) o fornecimento de medicamentos, além daqueles
relacionados na Portaria nº 1.318 do Ministério da Saúde e
sem o necessário cadastramento dos pacientes, inviabiliza
276
Revista Jurídica FACULDADES COC
a programação do Poder Público (...) a gestão da política
nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca
uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos
tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim
de atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo
que a norma do art. 196 da Constituição da República, que
assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação
de políticas públicas que alcancem a população como um
todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não
a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado
em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde
de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público
de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da
antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça
os medicamentos relacionados “(...) e outros medicamentos
necessários para o tratamento (...)” (fl. 26) dos associados, estáse diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de
saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, a tutela
concedida atinge, por sua amplitude, esferas de competência
distintas, sem observar a repartição de atribuições decorrentes
da descentralização do Sistema Único de Saúde, nos termos
do art. 198 da Constituição Federal. Finalmente, verifico
que o Estado de Alagoas não está se recusando a fornecer
tratamento aos associados (fl. 59). (...) defiro parcialmente o
pedido para suspender a execução da antecipação de tutela,
tão somente para limitar a responsabilidade da Secretaria
Executiva de Saúde do Estado de Alagoas ao fornecimento
dos medicamentos contemplados na Portaria n.º 1.318 do
Ministério da Saúde (...). (grifos nossos)
Como se denota, na decisão em destaque evidencia-se especialmente o
choque entre direitos fundamentais imposto por força do princípio da reserva
do possível, tendo a Ministra Ellen Gracie reconhecido, implicitamente, não ser
admissível colocar em risco o atendimento regular de pacientes previamente
cadastrados no Sistema Único de Saúde (direito a vida e à saúde de uns), para
tutelar a pretensão do postulante da tutela jurisdicional (direito à vida e à
saúde de outros).
CONCLUSÃO
A afirmação de que o ser humano é livre e igualmente amparado pelo
sistema normativo posto não assegura que, no mundo fenomênico, todas as
pessoas tenham as mesmas oportunidades sociais de desenvolver os vários
Revista Jurídica FACULDADES COC
277
aspectos de sua personalidade. Por força dessa constatação, entre os séculos
XIX e XX foi concebido o denominado Estado do Bem Estar Social ao qual
compete proporcionar às pessoas a fruição de bens e utilidades para que todos
possam viver dignamente.
Um dos meios jurídicos idôneos a alcançar o desiderato do -Welfare
State- é a oferta de serviços públicos voltados à concretização do direito social
às prestações materiais, garantindo a igualdade de oportunidade, inclusive
para que os cidadãos possam efetivamente participar de decisões políticas
necessárias à manutenção e ao desenvolvimento do Estado, exercendo, de
fato, a democracia.
O Brasil qualifica-se como Estado Social de Direito, pois, a República
Federativa do Brasil tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (CF,
art. 1º, III), e como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária e a erradicação da pobreza e da marginalização, para reduzir
as desigualdades sociais e regionais (CF, art. 3º, I e III), além do legislador
constituinte contemplar um vasto rol de direitos sociais que permeiam todo o
texto da Lei Maior.
Nesse cenário, a implantação de políticas públicas que concretizem
direitos sociais é instrumento indispensável para realizar a Justiça Social, tão
cara ao legislador constituinte brasileiro, competindo ao Poder Executivo,
executando o orçamento aprovado previamente pelo Poder Legislativo,
implementar políticas públicas tendentes à promoção e proteção da saúde,
educação, cultura, lazer, etc.
Porém, os brasileiros estão insatisfeitos com o desempenho institucional
do Poder Executivo no sentido de concretizar os direitos sociais a prestações
materiais através das políticas públicas, e, assim, têm recorrido ao Poder
Judiciário buscando alcançar utilidades não disponibilizadas pelo Poder
Público, principalmente na área da saúde. A par da receptividade do Poder
Judiciário, inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal, em acolher as
pretensões individuais deduzidas com o objetivo de instar o Estado a fornecer
gratuitamente medicamentos de alto custo, desenvolveu-se, no âmbito da
doutrina constitucionalista pátria, a teoria do mínimo existencial com o escopo
de fundamentar a atividade judicial de promoção de políticas públicas.
Por conseguinte, multiplicam-se as demandas judiciais para que o Estado
forneça gratuitamente aos indivíduos os medicamentos mais modernos, de
última geração, que, muitas vezes, sequer estão registrados na ANVISA92, ou
que são objeto de prescrição “off label”.
O problema que se evidencia é que os elevadíssimos custos de certos
tratamentos postulados e a incessante multiplicação de demandas para
entrega gratuita de remédios ameaça a manutenção de programas oficiais
de assistência farmacêutica, já que para atendimento dos mandados judiciais
278
Revista Jurídica FACULDADES COC
de entrega de medicamentos são utilizados recursos públicos oriundos do
próprio orçamento da saúde.
Logo, os órgãos jurisdicionais devem agir com redobrada cautela ao
instar o Poder Público a fornecer medicamentos de alto custo, só sendo legítimo
atender às pretensões individuais se ficar demonstrado, inequivocamente,
que:
- não haverá violação do direito fundamental à saúde de
outros usuários do Sistema Único de Saúde - SUS, por força do
redirecionamento das receitas orçamentárias;
- o postulante da medida judicial não tem condições financeiras
de pagar o tratamento, afinal, o objetivo do legislador constituinte
ao prever os direitos sociais foi realizar a Justiça Social, mediante
a redistribuição de renda e a eliminação das desigualdades
econômicas;
- o medicamento é comprovadamente eficaz e tem registro na
ANVISA, sendo objeto de prescrição médica regular (não “off
label”);
- a patologia é grave sendo o remédio indispensável para
manutenção da vida ou da higidez física e mental do doente;
Conforme noticia ANA CRISTINA KRMER ( O Poder Judiciário e as ações na área da saúde.
Disponível em: http:// www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/edicao015/Ana_Kramer.
htm. Acesso em: 22/02/2008), o Poder Público tem sido instado a fornecer medicamentos não
registrados na ANVISA, como ilustra a matéria jornalística publicada no Jornal Zero Hora, de
12/06/05, p. 38/9, sob o título Remédios caros são empurrados para o SUS - O Poder Público
tem sido obrigado pela Justiça a fornecer a pacientes medicamentos sequer reconhecidos
pelo Ministério da Saúde , da qual se destaca o seguinte trecho: “O Iressa (gefitinib, pelo
princípio ativo) ganhou páginas em revistas especializadas que o apresentavam como smart
bomb (bomba inteligente) na luta contra o câncer. Conforme o laboratório, ele atacaria só
as vulnerabilidades das células cancerígenas - diferentemente da quimioterapia tradicional.
Com o uso nos EUA surgiram as primeiras dúvidas. Os testes clínicos que embasaram sua
aprovação em regime de urgência pela Food and Drug Administration (FDA) norte-americano
logo indicaram o baixo QI da droga inteligente: ela não acrescia sobrevida aos pacientes, não
estendia o tempo de progressão da doença, nem alterava o índice de resposta em relação às
drogas anteriores. Tinha efeitos colaterais clássicos - como acne, náuseas, diarréia e perda
de apetite - e acrescentava, em pequeno percentual, outros riscos: pneumonias e acredite, a
morte. Uma pesquisa publicada no Journal Of Clinical Oncology , revista da sociedade norteamericana de oncologia Clínica, comparou-o a uma pílula ineficaz (placebo) e concluiu que
o Iressa não era mais eficiente. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) seguiu
decisões européias e recusou o registro. Ocorre que, em dezembro, por indicação médica,
uma paciente solicitou à Justiça gaúcha o tratamento com Iressa. Mesmo se referindo a uma
droga sem registro e fora dos protocolos brasileiros a Justiça lhe foi favorável. O Estado só não
pagou o tratamento em razão da morte da paciente. Em São Paulo, o governo é obrigado pelo
STJ a importar o remédio. O custo: R$ 23.000,00 por paciente, durante três meses”.
92
- inexistem alternativas terapêuticas já disponibilizadas pelo Poder
Público, ou mais baratas, idôneas a substituir o medicamento
postulado, ainda que não garantam o mesmo conforto ao paciente.
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EDUCAÇÃO AMBIENTAL E A RESPONSABILIDADE
OBJETIVA DO ESTADO PELA OMISSÃO E
A NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
NO DIREITO BRASILEIRO
JOAQUIM JOSÉ MARQUES MATTAR
Resumen
A Constituição Federal de 1988 positivou no ART. 225, parágrafo 1º . Do
inciso VI, impôs ao Poder Público, incumbindo-o a efetividade desse direito,
como um poder/dever de assegurar para esta e as futuras gerações a defesa e
a preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado por tratarse de bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida ao
povo brasileiro. Há que ressaltar, que a nova dogmática jurídica balizada na
Supremacia da Constituição faz uma nova e pós-positivista interpretação
do texto constitucional, utilizando os instrumentos da argumentação nos
princípios constitucionais, evocando as bases axiológicas das normas
jurídicas e o alcance almejado pelo legislador no amparo aos princípios
fundamentais na ordem estabelecida. A hermenêutica jurídica tem como
condão buscar a interpretação das leis, levando em consideração seus aspectos
materiais e subjetivos, para que possamos entender a amplitude da proteção
dos direitos e garantias fundamentais no que concerne à dignidade da pessoa
humana, fundamento do Estado Democrático de Direito. O ART. 170 da
CF, que regula os princípios gerais da atividade econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios: VI - defesa do meio ambiente. Ocorre, que o Estado não
vem cumprindo seu papel em respeito às normas positivadas na Lei Suprema,
se omitindo da responsabilidade expressa nos artigos 225, parágrafo 1º ., VI
e 170, VI da Constituição Federal, onde os governantes eleitos pelo sufrágio
universal, sonegam políticas públicas de extrema importância, pecando
contra aspectos basilares de soberania nacional, que é o oferecimento de
educação ambiental ao ensino público brasileiro. A política governamental
num Estado que mescla o perfil de um Estado Liberal de Direito e um Estado
Social de Direito, não assume as responsabilidades do mandato político em
respeitar a Constituição Federal, desatendendo aspectos cruciais, fazendo
com que o Estado se furte do dever constitucional como agente normativo
e regulador da atividade econômica na forma da lei, e ainda, se omitindo
como agente das funções de fiscalizador, incentivador e planejador, como
fator determinante para o setor público e em segunda instância indicativo
para o setor privado, conforme preceitua o art. 174 da CF/88.
A educação ambiental elevada como valor econômico pelo texto constitucional
tem como premissa maior assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social.
La Constitution fédérale de 1988, dans positivou ART. 225, paragraphe 1.
Le point VI, a ordonné la puissance publique, responsable de l’efficacité de
ce droit, en tant que pouvoir / devoir d’assurer aux générations futures, et
la défense et la préservation d’un environnement écologiquement équilibré
car il est bien à l’utilisation en commun de personnes et essentiel À la bonne
qualité de vie pour le peuple brésilien. Il convient de noter que le nouveau
cadre légal dogmatique Supremacia marqué dans la Constitution est un
nouveau poste - positiviste interprétation du texte constitutionnel, à l’aide
des outils de l’argumentation sur les principes constitutionnels, évoquant
axiológicas les bases de normes juridiques et de la mesure souhaitée par les
Législateur dans le refuge dans les principes fondamentaux de l’ordre établi.
284
Revista Jurídica FACULDADES COC
L’herméneutique juridique a comme condão solliciter l’interprétation de la
loi, en prenant en considération les aspects matériels et subjectifs, de sorte que
nous pouvons comprendre l’ampleur de la protection des droits fondamentaux
et des garanties quant à la dignité de la personne humaine, fondement d’un
État démocratique. L’ART. 170 de la FA, qui régit les principes généraux
de l’activité économique, fondé sur l’exploitation du travail humain
et de la libre initiative vise à faire en sorte que tous les existence digne,
comme les exigences de la justice sociale, a observé les principes suivants:
- milieu VI Défense environnement. Il arrive que l’État ne s’acquitte pas
de son rôle en ce qui concerne les normes positivadas la loi suprême, si la
responsabilité d’omettre exprimées dans les articles 225, paragraphe 1. ,
VI et 170, VI de la Constitution fédérale, où les gouvernements élus par le
suffrage universel, sonegam politiques publiques d’une extrême importance,
contre pecando aspects fondamentaux de la souveraineté nationale, qui
offre l’éducation à l’environnement à l’éducation du public au Brésil. La
politique du gouvernement dans un État qui allie le profil d’un Etat de
droit libéral social, et un État de droit, ne pas assumer les responsabilités
du mandat politique de respecter la Constitution fédérale, desatendendo
domaines cruciaux, provoquant l’État est le devoir constitutionnel comme
Furte législatif et l’agent régulateur de l’activité économique sous la forme
de la loi, et même si en tant qu’agent d’omettre des fonctions de surveillance,
d’instigateur et organisateur, comme un facteur déterminant dans le secteur
public et de deuxième instance d’orientation pour le secteur privé, en tant
que Prévoit l’art. 174 du CF/88. L’éducation à l’environnement comme une
valeur économique élevée par le texte constitutionnel a le plus de veiller à ce
que tous prémisse existence digne, comme les exigences de la justice sociale.
1. O MEIO AMBIENTE POSITIVADO COMO VALOR ECONÔMICO
NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
O Título VII da Constituição Federal de 1988 no Capítulo I que trata
“Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, em seu ART. 170, inciso
VI, o meio ambiente foi tratada pelo legislador pátrio como valor econômica
na ordem estabelecida. 1Para que haja uma vida digna ao cidadão ele precisa
viver num ambiente ecologicamente equilibrado, oferecendo-lhe existência
digna e só assim teremos a justiça social. Fundamentos do Estado Democrático
de Direito, a dignidade da pessoa humana, envolve seu inter-relacionamento
e a sua forma universal de conviver com pessoas e seres, num ecossistema
auto-sustentável.
[...] Deveras, é o princípio da dignidade da pessoa humana
que confere unidade de sentido e legitimidade à ordem
constitucional, existindo redobradas razões para constituir o
fim mesmo da ordem econômica.
A legitimidade que o princípio da dignidade da pessoa humana
conferindo sentido e unidade a ordem constitucional é fator preponderante
para que o Estado faça sua lição de casa, ao cumprir a norma positiva, que
incumbe ao Poder Público o dever/poder ou poder/dever de “promover a
educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública
Revista Jurídica FACULDADES COC
285
para a preservação do meio ambiente”.
Data vênia deve trazer a luz da memória histórico-social-econômicapolítica brasileira, que a educação sempre ficou no banco da regra três, mesmo
a educação de base, e quando digo base, alço o vôo da memória aos bancos do
ensino fundamental brasileiro, mais especificamente a escola pública nacional,
onde o Estado tem por dever/poder de oferecer ensino gratuito e de qualidade
a todo o cidadão brasileiro. O poder político vem pecando nas três esferas
de atuação: União, Estados e Municípios, na sonegação de políticas públicas
na área educacional, continuando o mesmo pensamento colonial-burguês
de dominantes e dominados, tratando a educação como aspecto secundário
na libertação da ignorância, para trilhar caminhos fora do desenvolvimento
tardio, envergando no corpo da nação 40% de analfabetos funcionais.
1.1. A promoção da educação ambiental como fator prioritário para o
desenvolvimento nacional.
O Brasil vem ocupando os últimos lugares em desenvolvimento autosustentável se levarmos em consideração dados cruciais e alarmantes no que
diz respeito às políticas públicas nas áreas de água, saneamento básico, coleta
de resíduos sólidos, doenças originárias da falta de infra-estrutura urbana
e da falta do poder de polícia e de fiscalização do Estado sobre a produção
industrial.
[...] Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), em 1996, 40 milhões de brasileiros não dispunham de
água canalizada e 70 milhões não tinham esgoto encanado
ligado às suas moradias. Em 1989, foi aprovado o artigo 279
da Constituição Estadual do Rio de Janeiro que obriga a
Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae) a divulgar
semestralmente dados sobre a qualidade da água da rede.
Em 1991, a associação ecológica Defensores da Terra ajuizou
uma ação exigindo que a Cedae cumprisse esse dispositivo
constitucional. Obteve os seguintes dados: 22 municípios,
entre eles os da Baixada Fluminense (mais populosos), os da
Costa Verde e os do norte do estado, estavam com a água das
torneiras cheias de coliformes fecais. Todos apresentavam
índices muito acima do permitido pelo padrão nacional, que
é de no máximo cinco amostras positivas em cada 100. O
padrão do Ministério da Saúde, válido para todo o país, exige
que pelo menos 95% das amostras domiciliares apresentem
total ausência de coliformes. (MINC, 2002, p.50-51).
286
Revista Jurídica FACULDADES COC
O que se pretende demonstrar com o presente tema é que, como diz o
filósofo Pitágoras: “Educai as crianças e não será preciso punir os homens”. A
educação ambiental é demonstrar de forma dirigida à atenção que as pessoas
devem ter no lugar onde vivem e sua interrelação com o meio. A observação
das pessoas, o dia-a-dia, o que se vê e o que se sente, o seu microcosmo (a
vida no bairro) e o seu macrocosmo (a cidade, como um todo), como se tratam
outros aspectos como a saúde e o que e como se pode melhorar para se ter
melhor qualidade de vida. Uma forma de educar de forma gregária, interativa,
homem, natureza, sociedade, solidariedade, consumo, humildade e desejo de
se construir um lugar mais saudável entre pessoas e o ambiente dinâmico que
envolve toda uma comunidade.
A mudança de comportamento pela educação ambiental, induz o menino,
a menina, o adolescente e mesmo o adulto a um aprofundamento científico e
teórico, através de experimentações práticas e observações constantes sobre
a forma como se trata os objetos, os seres, fora do ambiente escolar. Vejo a
educação ambiental como fator prioritário do desenvolvimento nacional, por
ser a educação um instrumento de busca de “maioridade espiritual”. Quando
se muda comportamentos com o espírito aberto em aprender o respeito pelo
outro, pelas plantas, pelos animais, pela limpeza da calçada, pela atenção da
coleta seletiva de lixo - nasce os mais nobres sentimentos do coração, que é a
solidariedade. O solidário tem a liberdade como fator principal na construção
da cidadania.
1.2.1. A responsabilidade objetiva do estado e o não atendimento ao
princípio da moralidade por omissão na promoção da educação ambiental
no ensino fundamental.
O ART. 5º. , inciso LXXIII da Constituição Federal de 1988 positiva que: “
qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular
ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe,
à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e
cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais
e do ônus da sucumbência;”. Dentro da melhor hermenêutica nos aspectos
que envolvem a axiologia jurídica, a norma constitucional deixa protegendo
o direito do cidadão, nas questões onde o Estado, através da administração
pública, venha a infringir de forma ativa ou passiva, por ação ou por omissão,
que não atendendo a um dos princípios constitucionais apostos na Lei Maior,
venha a responder por Ação Popular por deixar de fazer aquilo a que foi
incumbido pelo próprio texto da lei, utilizando de forma inapropriada o
Erário Público, quando os agentes políticos não aplicam as verbas públicas
destinadas à educação, previstos no Orçamento Plurianual. A união aplicará
Revista Jurídica FACULDADES COC
287
18%, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios 25%. Ora, o simples ato
de se omitir no atendimento da “não promoção de educação ambiental em
todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do
meio ambiente”, já caracteriza a inadimplência de uma obrigação de fazer.
Não podemos nem sequer falar em conflito de normas ou de leis, vez que, o
Poder Público assumiu pelo texto constitucional a incumbência de assegurar
a efetividade desse direito que é um bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida.
Quando falamos de vida, falamos dos princípios fundamentais que
ancora os ordenamentos jurídicos pátrio, que é a própria dignidade da pessoa
humana. A dignidade envolve uma educação de qualidade, um preparo em
conhecimentos, no desenvolvimento da consciência crítica, numa saudável
relação com o ecossistema, para que através de um desenvolvimento autosustentável, possamos galgar o Estado Social de Direito, que é a meta do
Estado Democrático de Direito.
A Constituição Federal é uma sistematização de normas hierarquicamente
harmonizadas que compõe um todo indissolúvel. As partes não podem subsistir
sem a presença do todo. É princípio de ciência, é princípio de razoabilidade,
de proporcionalidade, de ponderação e equilíbrio, que consagra a própria
existência da razão e da vida, espelhos hermenêuticos da equidade e do bom
senso que compõe o corpo do ordenamento jurídico.
[...] Faltam 710 mil professores no País. Uma estimativa do
Ministério da Educação aponta que faltam cerca de 235 mil
professores no ensino médio no País. Os números do déficit de
profissionais no ensino fundamental de quinta a oitava séries
são ainda mais pessimistas. De acordo com as projeções, 475
mil cargos de docentes seriam necessários para completar os
quadros. Os dados são baseados no censo escolar de 2002 e
apenas dão uma idéia geral da situação. Eles referem-se às
chamadas “funções docentes”, expressão que está relacionada
a cada cargo, ou seja, um professor que dá aula em duas
escolas tem duas funções docentes. Entre as disciplinas, a
demanda é maior por licenciados em matemática, física,
química, biologia.
O Estado ao se furtar da responsabilidade de promover a educação
ambiental em todos os níveis de ensino, ao nosso ver, está se furtando de
um dever, que fere os princípios gerais de direito, ao atingir as necessidades
primárias do individuo, que é o direito a educação. O alimento do conhecimento
sacia a fome da mente e da alma e o faz ser auto-suficiente para buscar o
alimento do corpo. A descoberta do mundo, induz ao fortalecimento da alma,
288
Revista Jurídica FACULDADES COC
o fluxo contínuo de vida que alimenta a chama da vida.
[...] Outro saber de que não posso duvidar um momento
sequer na minha prática educativo-crítica é o de que, como
experiência especificamente humana, a educação é uma
forma de intervenção no mundo. Intervenção que além do
conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou
aprendidos implica tanto o esforço de reprodução a ideologia
dominante quanto o seu desmascaramento.
A questão política da educação, no caso específico, a educação ambiental,
nos faz repensar sobre qual é o papel do Estado, através de seus governantes
em omitir políticas públicas no que se refere ao incentivo e a promoção da
conscientização populacional desde o ensino fundamental até a universidade,
da importância do respeito ao meio ambiente, e a sua profunda relação
com os atos governamentais? Devemos pensar sobre isto, de uma maneira
multidisciplinar, para entendermos os aspectos axiológicos, ideológicos
e finalísticos que compõe a Constituição Federal de 1988, sonegada pelos
agentes políticos na constante troca do Poder ( desde a ditadura militar até os
governos civis ).
2. A AXIOLOGIA E O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE NO
ATENDIMENTO AO PARÁGRAFO 1O. DO INCISO VI DO ART. 225 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
Data vênia, a Constituição Federal é um tratado que congrega valores
legais, morais e espirituais que regem o destino de um povo. Consagrado
como sagrado, o texto constitucional se eleva a Lei Maior de uma Nação
na defesa dos direitos onde os deveres estão encetado na própria razão de
existir do equilíbrio que recepciona a balança da Justiça. Conforme preceitua
os nobres constitucionalistas Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano
Nunes Junior:
[...] O princípio da publicidade é aquele cujo objetivo reside
em assegurar transparência nas atividades administrativas.
Fincado no pressuposto de que o administrador público é
o responsável pela gestão dos bens da coletividade, esse
princípio fixa a orientação constitucional de que ele deve
portar-se com absoluta transparência, possibilitando aos
administrados o conhecimento pleno de suas condutas
administrativas. O conteúdo exegético do princípio em causa
foi reforçado pelo disposto no art. 5º., XXXIII, de nossa Lei
Revista Jurídica FACULDADES COC
289
Maior, visto que este assegura o direito de “ receber dos
órgãos públi cos informações de seu interesse particular, ou
de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo
da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas
cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado.
Pois bem, o ART. 5º. caput assim se expressa:
[...] Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes: (...) (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).
Trilhando os caminhos da hermenêutica jurídica, podemos traduzir que
o Estado através da administração pública tem o poder/derver de levar a
Todos (caput, art. 5º. inciso XXXIII) (grifo nosso) conforme explicitado no texto
constitucional as informações que são de interesse coletivo, o meio ambiente,
por tratar-se de direitos e garantias fundamentais, as questões relativas a
Educação Ambiental, seja com relação a sua omissão em não promover a
educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública;
seja com relação o porque não atende o princípio constitucional positivado
na norma do art. 225, parágrafo 1º. do inciso VI, sob pena de responder por
responsabilidade, com a atenuante, de que a norma não coloca prazo na
concretização da política pública específica, ficando com prazo indeterminado,
ferindo toda a relação contratual - tratadista, entre a obrigação de fazer do
Poder Público e o direito de receber tal benefício pelo povo, vez que, trata de
interesse público, bem da coletividade.
2.1. O poder econômico, o direito à vida e o papel dos principios no
direito brasileiro.
O grande desafio é conciliar crescimento econômico, meio ambiente,
capitalismo selvagem e justiça social. Os famigerados neoliberais de plantão
estão voltados exclusivamente para o lucro na contra-mão das intenções de
conter as desigualdades sociais e regionais em busca do desenvolvimento
sustentável. É como se Davi estivesse na frente de Golias e o herói bíblico
não contasse com a Misericórdia Divina para vencer a batalha dos justos. A
complexidade e colisão de normas, pela falta de bom senso de uma parcela
atrasada e reacionária da doutrina e da jurisprudência que compõe os
operadores no Direito Brasileiro, se eximindo dos princípios da ponderação,
290
Revista Jurídica FACULDADES COC
da argumentação, nas questões que envolvem o caso concreto, ao pensarem
o direito de forma osmótica e subsuntiva, estão aprofundando para o caos
as razões cativas e reais para buscarmos um viés equânime no deslinde da
Justiça. Digo isto, me sentindo a vontade, uma vez, que não consigo achar um
consenso geral sobre as questões humanistas num mundo globalizado (palavra
inventada pelos donos do capital) e selvagem onde a supremacia do lucro
vence de forma cínica e deslavada as teses que defendem a vida do homem, a
liberdade, a igualdade, a solidariedade e a fraternidade. É como se a doutrina
pós-positivista que se levanta das cinzas do passado, com tendência ao direito
natural, defendendo os mais altos valores da vida, se transformassem no
amável e indomável personagem de Cervantes lutando contra os moinhos de
vento.
Os Princípios no Direito Brasileiro é a franca expressão da busca da
verdade, escondida atrás do véu da linguagem, tentando a utopia da semiótica,
na busca incansável da semântica, para converter o frio e concreto texto da lei,
na real roupagem de carne, osso e sangue corpo vivo do cidadão, e a espada
defensora do Direito e da Justiça.
[...] O princípio da dignidade da pessoa humana identifica
um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas
as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito
à criação, independentemente da crença que se professe
quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com
a liberdade e valores do espírito como com as condições
materiais de subsistência. Não tem sido singelo, todavia,
o esforço para permitir que o princípio transite de uma
dimensão ética e abstrata para as motivações racionais e
fundamentadas das decisões judiciais, Partindo da premissa
anteriormente estabelecida de que os princípios, a despeito
de sua indeterminação a partir de um certo ponto, possuem
um núcleo no qual operam como regras, tem-se sustentado
que no tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana
esse núcleo é representado pelo mínimo existencial. Embora
existam visões mais ambiciosas do alcance elementar do
princípio, há razoável consenso de que ele inclui pelo menos os
direitos à renda mínima, saúde básica, educação fundamental
e acesso à justiça.
A questão dos princípios no Direito Brasileiro encarna o papel da
responsabilidade dos operadores do Direito em observarem de forma detida a
aplicação da norma ao caso concreto, tendo como premissa básica o respeito à
dignidade da pessoa humana, como elemento e ponto fundamental na busca
da Justiça. A educação fundamental, a educação ambiental é uma forma de
Revista Jurídica FACULDADES COC
291
preservar a vida como um todo para esta e as futuras gerações. Estamos
falando da supremacia do homem sobre todos os demais interesses, sejam
eles, econômicos, particulares, etc. O interesse público é fundamento para a
razão de existir do Estado, nas denominadas democracias de cunho liberal e
social.
A conciliação entre desenvolvimento econômico, desenvolvimento
sustentável e justiça social, só poderá existir se houver uma mudança no coração
do homem e na forma como se conduzir à doutrina e a jurisprudência, nos
caminhos de um Estado Democrático de direito, que através da interpretação
da lei ordinária, possa colocar a dignidade da pessoa humana como o centro
decisório iluminando os caminhos da Justiça.
2.1.1. O poder público e o não cumprimento constitucional positivado
no art. 208, Inciso vii, parágrafo 2o. Na promoção da educação ambiental no
ensino fundamental.
O Estado Democrático Brasileiro vem pecando em seu papel como
agente controlador, regulador e fiscalizador nos deveres a ele atribuídos pela
Lei Maior de 1988. Vê-se claramente que a educação congrega os princípios
fundamentais da dignidade da pessoa humana, positivados e balizador de
todo o texto constitucional. O Estado deve garantir e efetivar a educação,
conforme preceitua o ART. 208, inciso VII, parágrafo 2º., que assim se expressa:
[...] ART. 208 - O dever do Estado com a educação será
efetivado mediante a garantia de:
I - .............................................................
VII - atendimento ao educando, no ensino fundamental,
através de programas suplementares de material didáticoescolar (grifo nosso), alimentação e assistência à saúde.
Parágrafo 2º. O não oferecimento do ensino obrigatório
pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa
responsabilidade da autoridade competente (grifo nosso).
Data vênia, é publico e notório o descaso das autoridades públicas e dos
órgãos competentes, principalmente do Ministério da Educação e da Cultura,
que tem o dever/poder de respeitar os princípios constitucionais elencados
no presente artigo da CF/88 no que concerne às responsabilidades da União
e a responsabilidade das Secretárias de Estado da Educação e das Secretarias
Municipais, naquelas da alçada dos Estados e dos Municípios, principalmente
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Revista Jurídica FACULDADES COC
nas verbas públicas estabelecidas para a educação dentro dos devidos
Orçamentos Anuais, além, dos alarmantes casos de desvios de finalidades
naquilo que é oferecido a educação pública no Brasil.
De acordo com o Deputado Paulo Rubem em seu Site na Internet:
[...] Nas verbas destinadas à educação fundamental,
repassadas através do FUNDEF, os mecanismos se repetem,
com fraudes na reforma de escolas, na compra de bancas e
outros bens necessários ao funcionamento das instituições de
ensino. Enquanto isso crianças estão fora das salas de aula,
os índices de repetência e evasão não são reduzidos e as
distorções idade-série se acentuam já nos primeiros anos do
ensino fundamental. (RUBEM, Paulo, 28/09/2006).
Repasse da União para o FUNDEF (em R$)
Valor Decreto
Presidencial
Valor Legal
Complementação
efectuada pela União
Complementação
prevista em Lei
1998
R$ 315,00
R$ 418,56
R$ 486.656.300
R$ 1.971.322.800
R$ 1.484.666.500
1999
R$ 315,00
R$ 418,56
R$ 579.989.000
R$ 1.852.827.000
R$ 1.272.838.000
2000
R$ 333,00 e R$ R$ 455,23 e
349,65
R$ 478,00
R$ 485.455.000
R$ 1.988.498.900
R$ 1.503.043.900
2001
R$ 363,00 e R$ R$ 522,13 e
381,15
R$ 548,23
R$ 445.258.200
R$ 2.310.316.600
R$ 1.865.058.400
2002
R$ 418,00 e R$ R$ 613,67 e
438,90
R$ 644,35
R$ 871.868.800
R$ 3.665.728.700
R$ 2.793.859.900
Total
--
R$ 2.869.227.300
R$ 11.788.694.000
R$ 8.919.466.900
Ano
--
Divida da União
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293
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