Eutopias e Distopias da Ciência1 - Morus

Transcrição

Eutopias e Distopias da Ciência1 - Morus
Eutopias e Distopias da Ciência1
Lyman Tower Sargent
University of Missouri-St. Louis (Stati Uniti)
University of Oxford (Inghilterra)
Tradotto da Helvio G. Moraes
Abstract
I propose to survey attitudes to science found in the English-language
utopia from early in that tradition to the present. While the Manuels correctly
identified a strong pro-science stream in early utopianism, and Nell Eurich in her
Science in Utopia: A Mighty Design (1967) noted a positive scientific utopianism,
I argue that the tradition has been more ambivalent about science. And, stressing
the 20th century, I show how ambivalence turned to negativity. My survey begins
with a man who clearly believed that science could bring about eutopia. Francis
Bacon’s New Atlantis is an explicit statement of the power of science properly
used, and many other utopian writers in the 17th century made similar arguments.
But even in the 18th century, when the ability of human reason to improve human
life might seem unquestioned, Jonathan Swift inhabits his rational eutopia with
horses not humans. In the 19th century, when science and technology would seem
to be driving all before them, there are many eutopias that question whether this
is the correct direction. In the early 20th century Francis Galton seems to believe
that eugenics properly applied can achieve a significantly better society, but almost
coterminous with Galton, there is the rise of the dystopia, which regularly sees
science as the culprit. A key figure in my argument is H.G. Wells. In a article
in 1984, “The Pessimistic Eutopias of H.G. Wells,” I argued that even Wells’s
most eutopian works showed ambivalence. Here I argue that Wells’s trajectory was
reflected within the English-language utopian tradition and that one important
aspect of Wells’s and the tradition’s ambivalence was about the ability of human
beings to use science to improve human life. And Wells was more optimistic in
his pessimism than are many, but not all, recent utopia writers. While there are
still scientific eutopias being written, the most common scenario is science gone
horribly wrong, bringing with it environmental devastation, a return to a barbarian
state, or the complete destruction of the human race.
Lyman Tower Sargent é professor de Ciência Política junto à Universidade do Missouri-St. Louis e
pesquisador visitante no Centre for Political Ideologies, Departamento de Política e Relações Internacionais,
da Universidade de Oxford. Foi o fundador de Utopian Studies (1990-2004) e autor de vários estudos
relacionados, em sua maior parte, ao tema da utopia, dentre os quais: British and American Utopian Literature,
1516-1985: An Anotated, Chronological Bibliography (1988) e Living in Utopia: Intentional Communities
in New Zealand (2004, em co-autoria com Lucy Sargisson). Foi fundador e co-editor, juntamente com
Gregory Claeys, da série Utopianism and Communitarianism, lançada pela editora da Universidade de
Siracusa, que conta com mais de vinte volumes. De 1997 a 2000 orientou a Biblioteca Nacional da França
e a Biblioteca Pública de Nova Iorque na exposição Utopie: La quête de la société idéale en Occident/Utopia:
The Quest for the Ideal Society in the West. É co-editor, juntamente com Roland Schaer e Gregory Claeys,
dos catálogos em francês e em inglês da exposição.
1
Originalmente publicado em
Imagining the Future: Utopia
and Dystopia. Números 25 e 26
do Arena Journal. Ed. Andrew
Milner, Mathew Ryan e
Robert Savage (North Carlton,
Australia: Arena Publications
Association, 2006), 357-71.
Lyman Tower Sargent
A
2
F. E. e F. P. Manuel, Utopian
Thought in the Western World,
Cambridge Mass., Harvard
University Press, 1979; N.
Eurich, Science in Utopia: A
Mighty Design, Cambridge
Mass., Harvard University
Press, 1967; R. Dubos, The
Dreams of Reason: Science and
Utopias, New York, Columbia
University Press, 1961; H.
Segal, Technological Utopianism
in American Culture, Chicago,
University of Chicago Press,
1985; H. Segal, Future
Imperfect: The Mixed Blessings
of Technology in America,
Amherst, Mass., University of
Massachusetts Press, 1994.
3
F. Bacon, New Atlantis, a
Work Unfinished, reimpresso
em Francis Bacon: The Major
Works, ed. B. Vickers, Oxford,
Oxford University Press, 2002,
pp. 457-89. O texto original
traz “Salomon’s House”,
mas “Solomon’s” é agora
universalmente usado.
80
maior parte das utopias se baseia em um ou mais fundamentos,
sendo a educação, a lei e a religião os mais comuns, obviamente com
interessantes alterações de predominância ao longo do tempo. Aqui,
eu considero outro, ou melhor, dois outros, plausíveis: a ciência e a tecnologia.
Qualquer estudioso de ficção científica sério dirá que a atitude em
relação à ciência e à tecnologia na ficção científica é, e sempre tem sido,
na melhor das hipóteses, ambivalente. Dentro da tradição utópica mais
ampla, essa questão tem sido menos estudada, mas muitos dos estudiosos
têm enfatizado o papel positivo da ciência e da tecnologia no utopismo.
Em Utopian Thought in the Western World (1979), os Manuel identificaram
com exatidão uma forte corrente pro-ciência no primeiro utopismo, e
Nell Eurich, em seu Science in Utopia: A Mighty Design (1967) notou um
utopismo científico positivo. Em The Dreams of Reason: Science and Utopias
(1961), René Dubos fez quase o mesmo, assim como Howard P. Segal em
Technological Utopianism in American Culture (1985). Mas Dubos reconhece
que não é tão simples assim, e Segal escreveu também Future Imperfect:
The Mixed Blessings of Technology in America (1994)2.
É certo que, começando com New Atlantis de Francis Bacon (1627),
muitas utopias apresentaram a ciência e a tecnologia adequadamente usadas
como um dos maiores mecanismos para realizar e manter a desejada sociedade
ideal. Mas é também certo que o termo “ciência e tecnologia” deve ser
descompactado, pois compreende muitas idéias diferentes, e que a expressão
“adequadamente usadas” é um qualificativo particularmente importante.
Para elaborar minha argumentação, começo com Bacon,
simplesmente porque New Atlantis domina as percepções de ciência na
literatura utópica, e a seguir passo para as utopias relativamente práticas
do século XVII que se referem mais à tecnologia do que à ciência. Depois,
discuto brevemente os debates do século XVII sobre a razão, que afetam
diretamente a apresentação da ciência e da tecnologia. O século XIX é o
auge da crença de que a ciência e a tecnologia podem transformar a vida para
melhor. Enquanto a desilusão cresce durante os últimos anos do século XIX
e continua por todo o século XX e início do XXI, a crença na possibilidade
da ciência e da tecnologia produzirem uma eutopia nunca desaparece.
A desilusão significa que a crença na ciência e na tecnologia como geradoras
da distopia tornou-se mais forte.
1. Bacon e New Atlantis
A maior parte de New Atlantis se ocupa com uma descrição da
chegada de estrangeiros em uma típica ilha isolada e a descrição da
intituição principal do país, a Casa de Salomão3. A Casa de Salomão é uma
combinação de repositório para amostras de plantas, minerais, máquinas,
entre outras coisas, de todo o mundo, assim como um centro de pesquisa
onde são realizadas constantes observações e experimentações.
A relação entre a Casa de Salomão e a sociedade de Bensalem, o
nome da ilha, é obscura. É bastante claro que o cidadão comum não sabe
Eutopias e Distopias da Ciência
muito, se é que sabe algo, sobre a Casa de Salomão. Por outro lado, os
cientistas da Casa de Salomão são, se não os verdadeiros governantes,
grande parte do poder por trás do trono. Governam provendo o povo com
abundância, de modo que ninguém é jamais infeliz. O controle direto seria
excessivamente incômodo.
New Atlantis reflete a combinação setecentista de religião
(particularmente a crença no milênio vindouro) e ciência (particularmente
experimentação e classificação). A revelação isolada, em New Atlantis,
poderia ter sido um Segundo Advento, mas, aparentemente, não foi. Todavia,
revela a íntima conexão entre religião e ciência na época. Nem Bacon, nem
os outros cientistas (como os chamaríamos) desse tempo viam a ciência e
a religião separadas. O fato de Isaac Newton ter dedicado a maior parte de
sua vida à exegese bíblica não era incomum, apenas geralmente esquecido
em nossa tentativa de fazer com que todos os cientistas de todos os tempos
pensem da mesma forma.
No século XVII a ciência estava no processo de se livrar ou de se
diferenciar da magia e da religião4. Nessa época, a cisão estava apenas
começando e ciência, religião e magia ainda eram, em grande parte,
mutuamente dependentes, mesmo naqueles escritores a quem tendemos a
pensar como os cientistas da época.
Bacon acreditava que a ciência (e o termo deve ser usado em sentido
amplo) era uma avenida que levava à compreensão de Deus. Essa era a
posição comum dos cientistas da época. Ciência e religião eram partes da
mesma atividade. New Atlantis, vista sob essa luz, faz sentido. Bensalem é
um país cristão, e os cientistas, que são seus cidadãos mais honrados, são
religiosos também.
4
2. Hartlib e seu círculo
Bacon não foi o único cientista religioso a escrever uma utopia.
Outra utopia da época, Macaria (1641), já foi tida como obra de Samuel
Hartlib, mas hoje é geralmente atribuida a Gabriel Plattes, que foi membro
do círculo em torno a Hartlib e mais conhecido como escritor de temas
relacionados à agricultura5.
Conforme o exaustivo estudo de Charles Webster sobre o círculo de
Hartlib, ele e seus seguidores são representativos de um significante elemento
do pensamento puritano de meados do século XVII, que combinava
expectativas milenaristas e uma crença na renovação do conhecimento. Hartlib
e seus seguidores viam a produção e a distribuição do conhecimento como
instrumentos para o aperfeiçoamento das vidas das pessoas, como um sinal
da chegada do milênio (baseado em Daniel 12:4), e um meio para alcançar
as condições sociais esperadas como resultado do Segundo Advento. Assim,
o milenarismo subjazia tanto aos avanços do conhecimento – incluindo a
ciência e a tecnologia - quanto para a crença no desejo e na possibilidade de
uma significante mudança social.
Ver K. Thomas, Religion and
the Decline of Magic: Studies in
Popular Beliefs in Sixteenth- and
Seventeenth-century England,
London, Weidenfeld and
Nicolson, 1971; ver também H.
Baker, “The Idea of Progress”,
em The Wars of Truth: Studies
in the Decay of Christian
Humanism in the Earlier 17th
Century, London, Staples Press,
1952, pp. 78-89.
5
G. Plattes, A Description of the
Famous Kingdom of Macaria,
reimpresso em C. Webster,
Utopian Planning and the
Puritan Revolution: Gabriel
Plattes, Samuel Hartlib and
‘Macaria’, Oxford, Wellcome
Unit for the History of
Medicine, 1979, pp. 65-73. Ver
C. Webster, “The Authorship
and Significance of Macaria”,
Past and Present, nº 56, 1972,
pp. 34-48.
81
Lyman Tower Sargent
Expectativas milenaristas permeavam o pensamento da época.
O círculo de Hartlib colheu algumas de suas inspirações em Johann Valentin
Andreae, autor da famosa utopia Reipublicae Christianopolis Descriptio
(1619, conhecida como Christianopolis) e outros escritos, alguns dos quais
traduzidos por John Hall, a pedido de Hartlib.
Uma influência mais direta foi Comenius ( Jan Amos Komensky), cuja
apresentação de uma possível pansophia, a integração de todos os conhecimentos,
inspirou o círculo de Hartlib na esperança de conciliar todo conhecimento em
um sistema coerente que pudesse ser prontamente comunicado. Na Inglaterra,
Comenius esteve intimamente associado a Hartlib.
O círculo de Hartlib via a necessidade de propostas práticas para
realizar suas idéias. As propostas variavam de uma colônia no Báltico ou no
Novo Mundo, que se chamaria Antilia, seguindo um esquema de Andrea,
a várias propostas de emprego para os pobres. Elas incluiam um plano para
estabelecer um colégio universal e a utopia Macaria, breve panfleto que
apenas sugere poucas reformas.
A mais recente (e melhor) análise de Macaria, de J. C. Davis,
argumenta que a utopia econômica (ausência de desemprego) era central
para a unificação de todo o conhecimento e prática que Plattes prevê.
O utopismo estava no centro das reflexões do círculo de Hartlib, ainda que
somente uma utopia tenha sido produzida6.
Macaria reflete uma dupla preocupação: com a iminência do milênio
e com o avanço do conhecimento. Embora a religião pareça ter sido varrida
com sentenças que poderiam ter sido escritas por um racionalista irreligioso,
a linguagem não deve ocultar o fato de que a crença e a prática religiosas
são centrais para todo o sistema social e intelectual da sociedade. A religião
era central para a ciência e a tecnologia do círculo de Hartlib, assim como
para Bacon7.
3. Swift e a Razão
6
J. Davis, Utopia and the Ideal
Society: A Study of English
Utopian Writing 1516-1700,
Cambridge, Cambridge
University Press, 1981.
7
Webster, The Great
Instauration, p. xv.
82
Como se observou acima, a ciência emergiu como uma forma
distinta de pensamento no século XVII tão logo se separou da magia e da
religião. A alquimia é o perfeito exemplo de um meio-termo, visto que
combinava experimentação e encantamento. Assim que os encantamentos
foram deixados, algo semelhante a uma ciência moderna e experimental, foi
lentamente se desenvolvendo. Geralmente se reconhece (Dubos, por exemplo),
como principal estímulo para essa separação, o desenvolvimento da razão
como forma de ver o mundo. Mas ainda que a razão tenha vindo a dominar,
foi também questionada, e no século XVIII os debates sobre a razão foram os
primeiros exemplos da ambivalência em relação à ciência e à tecnologia que
discuto aqui. Jonathan Swift foi uma figura maior nesses debates.
Embora haja um considerável desacordo entre os críticos, uma
das intenções de Swift em Gulliver’s Travels (1726) pode ter sido mostrar
que um ser totalmente racional não pode ser humano. Os houyhnhnms
são racionais por natureza. Sua linguagem não tem palavra alguma para
Eutopias e Distopias da Ciência
mentira ou falsidade. O mais próximo que os houyhnhnms podem chegar
da mentira é falar de alguém como se tendo “dito a coisa que não era”. Swift
repetidamente indica as formas em que a racionalidade elimina palavras
desnecessárias para os houyhnhnms8.
Swift salienta a bestialidade dos yahoos (humanos) e a humanidade
dos houyhnhnms, e tal quadro reforça a noção de que uma criatura puramente
racional não pode ser humana. Alguns utopistas argumentaram em favor de
seres humanos puramente racionais9 e, refletindo isso, muitos anti-utopistas
castigaram toda a iniciativa utópica como tentativa de desumanizar todo o
gênero humano precisamente porque os anti-utopistas sustentam que os
utopistas propõem uma vida puramente racional10.
Os yahoos são humanos; os houyhnhnms são cavalos. Certas
características humanas podem ser mantidas na forma grosseira dos yahoos
(que vêm diretamente das narrativas medievais do homem selvagem11),
mas ser totalmente racional seria inumano.
Alguns dos pensadores radicais da segunda metade do século XVIII,
e particularmente aqueles da última década, continuaram e desenvolveram
a ênfase na razão. Em particular, William Godwin e aqueles que influenciou
levaram a razão a novos lugares.
Enquiry Concerning Political Justice (1793) de Godwin tem sido, às
vezes, chamado de utopia; pode ser mais justamente considerado como
tendo influenciado o utopismo do fim do século XVIII e o início do século
XIX. O livro se originou dos eventos da Revolução Francesa e foi uma
resposta a Reflections on the Revolution in France (1790) de Edmund Burke.
Ainda que o livro de Godwin tenha surgido depois de Rights of Man
(1791-1792) de Thomas Paine, e Vindication of the Rights of Men (1790) e
A Vindication of the Rights of Woman (1792), da futura esposa de Godwin,
Mary Wollstonecraft, como respostas a Burke, e fosse muito mais longo e
muito mais caro que os deles, foi um sucesso imediato12.
Os utopistas do período, mesmo aqueles que tomaram posições
radicais, eram geralmente mais conservadores que Godwin. Houve duas
utopias na segunda metade do século que refletiam uma atitude semelhante
com respeito à razão. Enquanto uma foi escrita antes do livro de Godwin,
a outra pode ter sido diretamente influenciada por ele. Various Prospects
(1761) de Robert Wallace e The Commonwealth of Reason (1795) de
William Hodgson apresentam sociedades que são racionais sem serem
anarquistas13.
Embora Wallace argumentasse em Various Prospects que a eutopia
que propunha fosse impossível, listou dezoito pontos concernentes àquilo
que compreenderia seu governo racional. Esses dezoito pontos cobrem
tópicos que vão desde a administração e organização da força de trabalho
até regras relacionadas ao vestuário, mas todos são regulados pelo princípio
de que todos os membros da sociedade devem contribuir para o sucesso da
sociedade como um todo. Wallace propunha uma sociedade em que todos
os seus membros fossem capazes de gozar a vida da forma que escolhessem,
trabalhando todos um número limitado de horas por dia. Para Wallace essas
poucas e simples regras eram o que a razão ditava.
8
J. Swift, Gulliver’s Travels, ed.
A. Rivero, New York, Norton,
2002, pp. 202-3.
9
Por exemplo, ver as três
utopias de John Macmillan
Brown: Riallaro; The
Archipelago of Exiles, New
York, G. P. Putnam’s Sons,
1901; Limanora; The Island of
Progress, London, Putnam’s,
1903; e ‘Beyond’, Ms John
Macmillan Brown Papers
118 B2, John Macmillan
Brown Library, University of
Canterbury, New Zealand.
10
Ver, por exemplo, R.
Dahrendorf, ‘Out of Utopia:
Toward a Reorientation of
Sociological Analyis’, American
Journal of Sociology, nº 64, 1958,
pp. 115-27; and K. Popper,
‘Utopia and Violence’, Hibbert
Journal, nº 46, 1948, pp. 10916. Para críticas dessa posição,
ver os seguintes artigos de B.
Goodwin: ‘The “Authotitarian”
Nature of Utopia’, Radical
Philosophy, nº 32, 1982, pp. 2327; ‘Utopie und Rationalität’,
in Verfassungen, Gerechtigkeit
und Utopien, K–P. Markl (ed.),
Opladen, Westdeutscher
Verlag, 1985, pp. 254-78.
11
Sobre o homen selvagem,
ver R. Bernheimer, Wild Men
in the Middle Ages: A Study in
Art, Sentiment, and Demonology,
Cambridge Mass., Harvard
University Press, 1952.
12
W. Godwin, Enquiry
Concerning Political Justice and
its Influence on Modern Morals
and Happiness, ed. I. Kramnick,
Harmondsworh, Penguin,
1976.
13
R. Wallace, Various
Prospects of Mankind, Nature
and Providence, London, A.
Millar, 1761; W. Hodgson,
The Commonwealth of Reason,
London, Printed for the
Author, 1795.
83
Lyman Tower Sargent
14
O. Goldsmith, Asem, The
Man-hater: An Eastern Tale,
London, Griffith & Farran,
1877, p. 7.
A mais detalhada das utopias da razão, adequadamente intitulada
The Commonwealth of Reason, continha muito mais regras. Hodgson estava
no cárcere por traição quando The Commonwealth of Reason foi publicada.
Ele era um político radical envolvido com outros que apoiavam a Revolução
Francesa. A acusação de traição se baseava em um brinde que propusera à
‘República Francesa’, além de um comentário depreciador que fizera sobre o
rei. Após sua libertação, voltou para sua antiga profissão de cientista e a ela
acrescentou o trabalho com literatura e gramática francesa.
Hodgson extraiu suas idéias principalmente dos philosophes franceses
e dos círculos radicais da Inglaterra do último quarto do século. E embora
não tivesse simplesmente copiado as idéias de outros, e aparentemente
não estivesse envolvido com os grupos mais radicais, sua utopia refletia
a tendência à democracia radical, pilar de sustentação da maioria dos
defensores ingleses da Revolução Francesa. Parte de sua utopia foi chamada
‘Declaration of Rights’, conforme o modelo francês.
Hodgson e os outros entusiastas da razão dominaram o utopismo da
última parte do século, mas não eram as únicas vozes que se ouvia. Ataques
à razão eram comuns, um dos quais escrito por um dos mais importantes
escritores da época, Oliver Goldsmith.
Um curto ataque às pessoas que pensavam que a razão resolveria todos
os problemas humanos é o conto de Goldsmith, conhecido como ‘Asem’
(1759). Nesse conto, originalmente publicado como ‘The Proceedings of
Providence Vindicated. An Eastern Tale’, Goldsmith descreveu um povo
‘racional, absolutamente isento de vícios’. Tal racionalidade produzira uma
sociedade totalmente desprovida de arte e até mesmo de relações sociais14.
Asem, que se revoltara contra a raça humana, sua irracionalidade e seu vício,
acreditava que a razão pura eliminava não somente o vício, como também
toda virtude. Assim como Swift poucos anos antes, Goldsmith acreditava
que a razão pura só poderia ser inumana.
15
Ver G. Claeys, ‘Ecology
and Technology in Early
Nineteenth-Century American
Utopianism: A Note on
John Adolphus Etzler’,
Science and Society, vol. 50,
nº 2, 1986, pp. 219-25; G.
Claeys, ‘John Adophus Etzler,
Technological Utopianism,
and British Socialism: The
Tropical Emigration Society’s
Venezuelan Mission and its
Social Context, 1833-1848’,
English Historical Review, nº
101, 1986, pp. 351-75.
16
W. Gilpin, The Cosmopolitan
Railway. Compacting and
Fusing Together All the World’s
Continents, San Francisco,
The History Company, 1890,
p. 292.
84
4. O século XIX
O século XIX foi o auge da representação positiva da ciência e da
tecnologia na literatura utópica. Em meados do século XIX, um utopista
da tecnologia, John Adolphus Etzler, escreveu um número de livros que
seguiram de perto o título de seu primeiro escrito, The Paradise within Reach
of All Men, without Labour, by Powers of Nature and Machinery (1833)15.
Dois romances vêem uma tecnologia particular como geradora
da eutopia: a ferrovia. A primeira, The Cosmopolitan Railway (1890) de
William Gilpin é a mais imponente, no sentido que a finalidade apresentada
no projeto “... é unir as nações da Terra como membros pacíficos de uma
família...”. Ele propõe construir uma ferrovia circundando o mundo.
Atravessaria o Pacífico no Estreito de Bering (a proposta de um túnel
ali está sendo planejada hoje). Como exatamente o Atlântico poderia ser
atravessado é menos claro para mim16.
Eutopias e Distopias da Ciência
Gilpin, que era o governador do estado do Colorado, acreditava
que “um aumento no conhecimento das artes industriais significa um
correspondente avanço na moralidade e nos costumes”. Portanto, diz, “o
inventor da locomotiva foi infinitamente mais benéfico ao mundo do que os
santos medievais... e o telégrafo, o telefone e a luz elétrica... são troféus da
grandeza nacional, mais nobres e mais duradores do que todas as conquistas
militares...”17. O outro romance, publicado quatorze anos mais tarde,
The Sky Blue; A Tale of the Iron Horse and of the Coming Civilization (1904) de
Olin J. Ross, repete o tema básico de Gilpin de criar uma grande civilização
do novo mundo, por meio da construção de estradas de ferro18.
Enquanto a defesa de soluções tecnológicas para problemas sociais
dominava o século, havia ainda quem delas duvidasse. Por exemplo,
The Age of Science; A Newspaper of the Twentieth Century (1877) de Frances
Power Cobbe é a distopia de uma ciência levada longe demais. A medicina
é particularmente poderosa, e o Parlamento é inteiramente composto por
médicos que agem em seu próprio interesse. Pessoas são executadas por
heresias contra a ciência, tais como a homeopatia, a religião e a resistência à
vacinação. E “The Passing of Niagara” (1897) de Rebecca Harding Davis é
uma sátira à utopia tecnológica. Os Estados Unidos torna-se inteiramente
prático, centrado em ganhar dinheiro e produzir bens de consumo. As
cataratas do Niágara são eliminadas; as marés são detidas para a produção
de energia; todas as igrejas são transformadas em escolas superiores de
comércio; os benefícios de veteranos são abolidos, bibliotecas e galerias
de arte vendidas, e cavalos, cães, pássaros, árvores e flores eliminados; e o
alimento é produzido em forma de pílulas. É algo tão desagradável, que
todos deixam o país19.
A saúde tem sido um tema recorrente nas utopias. Miriam EliavFeldon, em Realistic Utopias (1982), percebe uma preocupação com a saúde
tanto nas utopias britânicas quanto nas continentais, no período entre 1516
e 1630, e Rebecca Totaro afirmou recentemente que pelo menos algumas
utopias do século XVI se ocuparam de soluções para o problema da praga.
Mas foi no século XIX, talvez em resposta aos problemas de saúde advindos
da industrialização e do crescimento das cidades, que a saúde se tornou
um foco central. Como existem muitas dessas utopias, o melhor exemplo
é Hygeia: A City of Health (1876) de Benjamin Ward Richardson. Nesse
discurso feito ao Departamento de Saúde do Congresso de Ciência Social,
ele descreve a cidade saudável do futuro. As mudanças incluem controle de
poluição em caso de incêndios, jardins suspensos, a eliminação de tapetes,
a supervisão estatal de lavanderias públicas, limpeza pública de ruas,
matadouros publicamente supervisionados, sepultamento sem esquife ou
embalsamento, a localização de fábricas fora da cidade, ferrovias e esgoto
subterrâneos. As pessoas devem praticar exercícios regulares, não fumar
nem ingerir bebidas alcólicas. Visto que muitas dessas reformas foram de
fato adotadas, pode nos surpreender vê-las numa eutopia de meados do
século XIX. Mas pode também valer a pena refletir sobre como muitas de
suas propostas não foram adotadas, ainda que fossem conducentes a uma
saúde melhor20.
17
Gilpin, The Cosmopolitan
Railway, p. 290.
18
O. Ross, The Sky Blue: A
Tale of the Iron Horse and of
the Coming of Civilization,
Columbus, published by the
author, 1904.
19
F. Cobbe, The Age of Science:
A Newspaper of the Twentieth
Century, London, Ward, Lock
and Tyler, 1877; R. Davis,
‘The Passing of Niagara’, The
Independent, 25 November
1897, pp. 3-4.
20
M. Eliav-Feldon, Realistic
Utopias: The Ideal Imaginary
Societies of the Renaissance,
1516-1630, Oxford, Clarendon
Press, 1982; R. Totaro,
Suffering in Paradise: The
Bubonic Plague in English
Literature from Morus to
Milton, Pittsburgh, Duquesne
University Press, 2005; B.
Richardson, Hygeia: A City of
Health, London, Macmillan
and Co., 1876.
85
Lyman Tower Sargent
21
F. Galton, ‘The Donoghues
of Dunno Weir’ (1901?), ed.
L. Sargent, Utopian Studies,
vol. 12, nº 2, 2001, pp. 210-33;
F. Galton, ‘Kantsaywhere’
(1911?), ed. L. Sargent,
Utopian Studies, vol. 12,
nº 2, 2001, pp. 191-209.
22
Ver J. Partington, ‘H. G.
Wells Eugenic Thinking of
the 1930s and 1940s’, Utopian
Studies, vol. 14, nº 1, 2003,
pp. 74-81.
23
F. Carrell, 2010, London,
T. Werner Laurie, 1914.
24
E. Forster, ‘The Machine
Stops’, in The Eternal Moment
and Other Stories, London,
Sedgwick & Jackson, 1928,
pp. 1-61.
25
E. Bulwer-Lytton, The
Coming Race, London, George
Routledge and Sons, 1874.
86
A eugenia já era uma preocupação das utopias bem antes de o termo
ser cunhado por Francis Galton. Tão remota quanto La città del sole de
Tommaso Campanella (1611), a eugenia era vista como um recurso central
para alcançar e manter uma eutopia, embora valha a pena notar que a
tradução inglesa usada como padrão por anos havia censurado todo o material
relativo à eugenia, porque sexualmente explícito em demasia. O próprio
Galton escreveu duas eutopias eugênicas, e o tópico recorre constantemente
nas eutopias de fins do século XIX e início do século XX21.
Para muitos autores a eugenia pareceu um meio de resolver muitos
males sociais. A maioria dos autores via tanto a eugenia positiva (ou o
estímulo para que os melhores produzam mais crianças entre si) quanto
a negativa (ou a dissuasão ou mesmo proibição de os piores terem filhos)
como desejáveis. Mas como Wells, por exemplo, rapidamente percebeu, a
chave era a definição de melhor e de pior22. Dadas as atitudes da época, não
é surpreendente que as definições tendam a reforçar os estereótipos raciais
e étnicos. Mas até mesmo quando tais estereótipos eram evitados, restava a
questão de quais características apurar e quais inibir. As eutopias e distopias
da época tendem a seguir o modelo de Wells: um entusiasmo inicial seguido
de dúvidas e, por fim, a evasão da questão. Mas mesmo depois do mau uso
da eugenia na Segunda Guerra, algumas eutopias eugênicas ainda têm sido
escritas, e a questão da manipulação genética, um refinamento da eugenia,
é um tema vivo na ficção científica hoje, geralmente advertindo contra seu
mau uso.
Escritos do período em torno da virada do século XX, quando muitas
utopias foram publicadas, ilustram de forma bastante eficaz certas atitudes.
Algumas utopias desse período vêem a raça humana muito avançada
(muito mais inteligente e refinada), geralmente pelo uso da ciência. Às
vezes, isso é alcançado através da evolução, e outras, pelo aperfeiçoamento
mecânico do cérebro, como em 2010 (1914) de Frederic Carrell23. E. M.
Forster, em seu famoso The Machine Stops (1909), apresenta os perigos de
se tornar tão dependente da ciência. O conto de Forster é uma distopia da
ciência em que uma civilização inteira morre porque perde sua originalidade,
tendo se tornado totalmente dependente da tecnologia, esquecendo até
mesmo de como consertar máquinas24.
Uma das mais excêntricas das utopias do século XIX é The Coming
Race (1871) de Edward Bulwer-Lytton, em que cada pessoa possui um
poder, chamado ‘vril’, que pode ser usado para aniquilar instantaneamente
outra pessoa. Isso me faz lembrar do estado de natureza de Thomas
Hobbes, ou do MAD (Mutually Assured Destruction – Destruição Mútua
Assegurada) no período da Guerra Fria, que pretendia garantir a paz. Um
delicioso aparte sobre isso: hoje em dia uma pessoa pode ir a uma loja e
comprar o alimento energético Bovril, assim chamado por causa do ‘vril’ de
The Coming Race25.
Os escritores de utopias mostraram uma crescente ambivalência em
relação à ciência. Essa ambivalência fica, talvez, mais clara na obra de H. G.
Wells, freqüentemente considerado um cego defensor do avanço científico.
Em seus escritos, os problemas, na maioria dos casos, se originam do medo
Eutopias e Distopias da Ciência
de que a ciência possa ser usada de forma abusiva. A ciência, ao que parece,
é neutra, ou, pelo menos, próxima à neutralidade, mas as pessoas são fracas,
vaidosas, ambiciosas, ávidas de poder, e, às vezes, simplesmente más, e se
tais pessoas controlarem a ciência, estaremos todos em apuros, assim como
de fato estamos. Se, por outro lado, existirem pessoas decentes, honestas,
que possam usar a ciência pelo bem da humanidade, ao invés de usá-la em
proveito próprio, ainda poderemos ser salvos. Wells se preocupou com esse
problema durante a maior parte de sua vida.
Wells é particularmente interessante nesse contexto porque, embora
seja considerado um dos fundadores da ficção científica, sua ficção científica
tinha, de fato, pouca relação com a ciência ou com a tecnologia. Pensem em
The Time Machine (1895), em que a máquina é meramente um meio para
determinado fim numa história cujo tema principal é a evolução social. Mais
uma vez, em The First Men in the Moon (1901), o vôo à lua é o meio para
determinado fim de uma história fundamentalmente relacionada ao mau
uso da inteligência e uma sátira à mentalidade capitalista. The Invisible Man
(1897) e The Island of Doctor Moreau (1896) estão, ambas, fundamentalmente
relacionadas ao mau uso da ciência. Suas eutopias e distopias, como The
Sleeper Wakes (1899), A Modern Utopia (1905), Men Like Gods (1923) e The
Shape of Things to Come: The Ultimate Revolution (1933), na verdade, contêm
pouca coisa sobre ciência e tecnologia. Estas compõem, antes de tudo, um
segundo plano em enredos relacionados a outras questões. The World Set
Free (1914) é uma utopia wellsiana nitidamente diferente, no sentido que
a eutopia finalmente alcançada se baseia na energia abundante e barata,
uma eutopia que ainda hoje não se tornou realidade. A não-ficção de Wells
segue sempre o mesmo padrão e termina com A Mind at the End of Its Tether
(1945), inspirada pela bomba atômica.
Dos fundadores da ficção científica é Jules Verne, não Wells, quem
se aproxima mais da imagem popular do escritor de ficção científica. Mas
devemos nos lembrar também da fundadora da ficção científica, Mary
Godwin Shelley, e de seu Frankenstein (1818), o relato clássico do mau uso
da ciência.
De vez em quando, surge uma panacéia científica ou tecnológica,
e se recorda da busca dos alquimistas pelo elixir da vida. No fim do século
XIX, essa panacéia foi a eletricidade, que, se acreditava, iria revitalizar tanto
o corpo social quanto o físico. Em meados do século XX, a panacéia era a
energia atômica, com o átomo aquecendo os lares, provendo de energia carros
e aviões, e abastecendo uma economia de energia barata26. O santo graal da
força de fusão sugere que tal panacéia não desapareceu completamente.
5. O século XX
O auge das representações positivas da ciência e da tecnologia na
ficção científica pode ser visto nos primeiros pulps, da década de 1920 até a
de 1950. Nessas revistas, cujo público-alvo era rapazes, muitas das histórias
giravam em torno de alguma engenhoca ou avanço científico. Mas mesmo
26
Ver R. Langer, ‘Fast New
World’, Collier’s, nº 106, 1940,
pp. 18-19, 54-55; R. Langer,
‘The Miracle of U-235’,
Popular Mechanics, vol. 75, nº 1,
1941, pp. 1-5, 149-50.
87
Lyman Tower Sargent
27
E. Zamyatin, We,
trad. Clarence Brown,
Harmondsworth, Penguin,
1993; A. Huxley, Brave New
World, London, Chatto &
Windus, 1932; A. Huxley,
Brave New World Revisited,
New York, Harper, 1958; A.
Huxley, Island, New York,
Harper & Row, 1962.
28
Huxley, Island, p. 167.
88
nesses pulps havia uma preocupação quanto ao mau uso da engenhoca ou da
novidade científica, e alguns ainda se preocupavam com as relações humanas
do mesmo modo que se interessavam pela ciência e tecnologia.
Muito trabalho tem sido realizado ultimamente restabelecendo as
escritoras ocultas por trás de iniciais, nomes neutros e pseudônimos usados
nos pulps, argumentando que elas tinham preocupações diferentes das dos
homens. Infelizmente, exceto pelos nomes mais conhecidos, como Isaac
Asimov, Arthur C. Clarke, Robert A. Heinlein e poucos outros, os escritores
de pulp não têm sido estudados. Mas mesmo entre os mais conhecidos,
somente Clarke se preocupava primeiramente com a tecnologia. Asimov
pode ser mais conhecido pelos seus robôs, mas mesmo suas histórias giram
em torno de algum desafio aos limites criados dentro dos robôs, um desafio
que, se não resolvido, põe em perigo a vida humana.
Mas muito do distopismo do século XX é explicitamente anti-ciência,
começando com uma das distopias clássicas, We (1924) de Yevgeny Zamyatin,
em que o desejo de organizar um mundo com precisão matemática produz
uma distopia na qual o perito em eficiência Frederick Winslow Taylor é um
herói e velhos cadernos com horários de trens são grande literatura. Mas
Brave New World (1932) e Brave New World Revisited (1957) de Aldous
Huxley tratam mais vigorosamente dessa questão. A eugenia, através da
geração controlada em incubadoras, o mau uso de drogas e a distorção radical
da psicanálise, nos mostra como é importante a expressão “adequadamente
usada” com respeito à ciência e à tecnologia. Em Brave New World, a ciência
não é adequadamente usada, mas Huxley retorna à questão e mostra, em
Island (1962), como a ciência “adequadamente usada” pode fazer parte
de uma eutopia. A partir desses clássicos, surgiram centenas de contos e
romances descrevendo o mau uso da ciência, tantos que se torna claro que
a posição da ciência e dos cientistas foi um dos conflitos fundamentais do
século XX27.
A energia nuclear pode ser o melhor exemplo disso. Como se
observou anteriormente, a energia atômica foi vista – como ainda é vista
por alguns, embora menos diretamente – como a solução para a carência
de energia do mundo. O uso da energia nuclear para matar não eliminou
as projeções eutópicas. Mas o crescente reconhecimento do quão difícil
seja domar esse gênio particular, e do dano que poderia causar, mesmo
acidentalmente, levou a um contínuo conflito sobre seu uso.
No século XX, a distinção entre tecnologia pesada (ou alta tecnologia)
e baixa tecnologia (ou tecnologia alternativa) é importante. Um slogan que
poderia servir a muitas das utopias low-tech pode ser encontrado em Island
de Aldous Huxley: ‘Eletricidade menos indústria pesada mais controle de
natalidade é igual a democracia e fartura. Eletricidade mais indústria pesada
menos controle de natalidade é igual a miséria, totalitarismo e guerra’28.
A maioria das sociedades low-tech é muito parecida. Politicamente, são
democracias descentralizadas e participativas, ou operam em consenso.
Economicamente, são socialistas e mantêm todos os bens de produção
coletivamente. Socialmente, são comunais, embora com espaço para
excentricidades e uma ampla gama de liberdades individuais. Talvez um
Eutopias e Distopias da Ciência
modo melhor de colocar esta questão seja dizer que, socialmente, elas
são feministas ou cooperativas e educativas ao invés de machistas ou
competitivas, hierárquicas e autoritárias.
Tecnicamente, contam com o que hoje chamamos de tecnologias
“apropriadas”, ou seja, tecnologias não poluentes, com uma maior
probabilidade de se basearem na biologia do que na física, e normalmente
não requerem um grande investimento de capital. Como resultado desta
última característica, são tecnologias que podem ser criadas e operadas por
comunidades locais ou até mesmo por indivíduos, desta forma reforçando ou
ajudando a criar o sistema político descentralizado. As mais conhecidas são
sistemas baseados em fontes de energia solar, eólica e hidráulica. Sistemas
baseados em metano também são populares. The Whole Earth Catalog
(1968-81, com um volume final em 1994) foi a Bíblia low-tech29.
Uma das excentricidades das utopias tecnológicas do século XX é o
que já chamei de “agrarismo tecnológico”, ou sociedades que usam tecnologia
sofisticada para manter uma forma de vida agrária30. Às vezes, a tecnologia
encontra-se tão oculta que não chega a fazer sentido. Um exemplo está num
conto em que, primeiramente, a sociedade parece ser puramente agrícola,
com a exceção de pequenos dirigíveis para longas viagens. A seguir, se
descobre que existe um computador em cada chalé. Essa sociedade parece
ser composta de grandes famílias completamente isoladas (no sentido
dos anos sessenta). Mas de onde veio aquele computador? Onde está a
tecnologia que o produziu? Os computadores não são simplesmente criados
por artesãos31. Um escrito semelhante vai mais longe, elabora algo um tanto
melhor, com um computador comunitário e a vaga noção de uma tecnologia
que lhe serve de suporte32.
Na maioria de tais escritos, as pessoas decidem que não podem viver
sem algo específico, e a tecnologia (mais uma vez, provavelmente estabelecida
biologicamente) é desenvolvida para sustentá-lo. Geralmente, tais tecnologias
são descentralizadas e estão sob controle local. A manufatura dos componentes
também é feita da maneira menos poluente e econômica possível. Quando um
substancial investimento de capital é preciso, trata-se de capital comunitário,
não individual. Esse fenômeno reflete a ambivalência em relação à tecnologia,
assim como, uma vez que a maioria desses casos é americana, a recorrente
crença americana de que a melhor vida é uma vida simples em contato com a
natureza. Essa crença é tão raramente posta em prática que talvez seja melhor
considerá-la como um dos mitos americanos fundamentais.
6. Conclusão
Questiono-me se os escritores contemporâneos pensam que a anticiência possa produzir uma história melhor do que a ciência bem sucedida.
Arthur C. Clarke uma vez escreveu, ‘Marlan estava entediado, com o
supremo tédio que somente a utopia pode dar’33. E Thomas M. Disch
escreveu, ‘O paraíso tem, contudo, uma falha considerável do ponto de vista
narrativo. É anti-dramático. A perfeição não produz uma boa história...’35.
29
Estes volumes foram
acompanhados de CoEvolution
Quarterly (1974-81), que
continuou com The Whole
Earth Review até 1996, quando
se tornou Whole Earth em
2003.
30
L. Sargent, ‘A New
Anarchism: Social and Political
Ideas in Some Recent Feminist
Eutopias’, in M. Barr & N.
Smith (eds.), Women and
Utopia: Critical Interpretations,
Lanham, University Press of
America, 1983, pp. 3-33.
31
Ver P. Novitski, ‘Nuclear
Fission’, in T. Carr (ed.),
Universe Nine, Garden City,
Doubleday, 1979, pp. 43-66.
32
Ver B. Garskof, The Canbe
Collective Builds a Be-Hive,
New Haven, Dandelion Press,
1977.
33
A. Clarke, ‘The Awakening’,
in Prelude to Mars, New York,
Harcourt, Brace & Jovanovich,
1965, p. 264.
35
T. Disch, ‘White Fang Goes
Dingo’, in White Fang Goes
Dingo and Other Funny S. F.
Stories, London, Arrow Books,
1971, p. 160.
89
Lyman Tower Sargent
Enquanto esses são comentários gerais sobre o porquê de estes escritores
escreverem distopias ao invés de eutopias, tal atitude poderia ter o efeito de
aumentar a ambivalência.
Ainda assim, penso que a realidade seja mais complexa e mais
importante. A ambivalência baseia-se nas palavras “adequadamente usada”
e no que essas palavras significam em períodos distintos. No todo, embora
os detalhes variem, as palavras referem-se ao melhoramento humano,
mas o problema rapidamente se desloca para “Em quem você confia para
usar a ciência dessa forma?” Nos ricos: dificilmente. Nos líderes políticos:
obviamente, não. Nos cientistas: aí está o problema. Desde a criação do Dr.
Faustus, do Dr. Frankenstein e do Dr. Moreau, a literatura está cheia de
cientistas em quem não se pode confiar quanto ao uso de seus conhecimentos
para o melhoramento humano ao invés de sua própria obsessão ou poder
pessoal. Contudo, a literatura também está cheia de cientistas do outro tipo:
aqueles em quem podemos confiar. Mas como os comentários de Clarke e
Disch sugerem, estes são menos memoráveis.
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