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Felipe Arriaga Carriço
Semelhantemente
Copyright ©2013 by Felipe Arriaga Carriço
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/2/1998.
É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios,
sem autorização prévia, por escrito, do seu responsável legal.
Conselho editorial:
Delmo Fonseca |Sung Sim Kim | Fabbio Cortez |Adílio Jorge Marques
Coordenação editorial: Delmo Fonseca
Capa e diagramação: Felipe Arriaga Carriço
Revisão: Equipe Mar de Letras
DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
_______________________________________________________________
Carriço, Felipe Arriaga.
Semelhantemente - Rio de Janeiro - Editora Sapere, 2013.
96 p. ; 23 cm.
ISBN 978-85-64321-24-3
Conto brasileiro. I. Carriço. II. Título.
CDD: B869.3
_______________________________________________________________
Sapere - selo editorial da:
Editora Mar de Letras Ltda.
Tel. (21) 3822-2559
Caixa Postal 63037
Rio de Janeiro – CEP: 20751-970
http://www.editorasapere.com.br
E-mail: [email protected]
Impresso no Brasil
À minha família e aos grandes amigos que
fiz até aqui, obrigado por serem os pilares
desta evolução que tanto busco.
Índice
Sobre a obra
Meu primeiro romance
Sentimento imóvel
Morrem os crisântemos
Tempo
Estarei lá
Refluxo
Cortiço
Amor Unilateral
Entre o branco e o amarelo
Pintando um quadro antigo
Última chamada
Silva e Silva
Ao rapaz que varre
A fuga
A liturgia
Dica de amigo
O beijo
Chorume
Não, não sinto não
Nicto, meu bicho
10 centavos
A quinta rodada
Entalhes
Mentira minha
No relicário
Avenida Paraíso
Uma questão de refração
Cincão
=T3:D10
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Contos inspirados em músicas
para o blog Confraria dos Trouxas
Viés » Garotos - Cazuza
Coisa do destino » Sinceramente - Cachorro Grande
Quem te viu » Santa Chuva - Los Hermanos
Ao acordar dos trilhos » Sonhos - Peninha
Destinataire ne se trouve pas » Outono no Rio - Ed Motta
De repente fim » O nosso amor a gente inventa - Cazuza
C’est la vie! » Coração - Aviões do Forró (Fagner)
Do outro lado » A sua - Marisa Monte
Turma de 1936 » Vou levar - Lobão
Quarta de cinzas » Retalhos de Cetim - Benito de Paula
Doce amor » Formato Mínimo - Skank
Bem guardado » Pra você guardei o amor - Nando Reis
Sr. Scotch » A história de Lily Braun - Chico Buarque
Em meio segundo » Alma Nova - Zeca Baleiro
Nos jardim dos otro » Prato de Flores - Nação Zumbi
Dorme » Tive Sim - Cartola
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Sobre a obra
E
m uma entrevista recente, Neil deGrasse Tyson, um dos
astrofísicos mais respeitados pelos colegas de profissão, foi
questionado sobre o universo e se, em meio a toda a imensidão inexplorada que abraça o planeta Terra, poderia existir
vida inteligente como a nossa. Ele, de maneira bem simples,
respondeu às perguntas com uma indagação: “Quem somos nós
para dizermos o que é um ser inteligente?”.
Ele mesmo respondeu à questão, utilizando-se de uma parábola fundamentada em anos de estudos científicos sobre os seres
humanos e nossa origem genômica. Comprovadamente, nossos
parentes mais próximos em toda a linha evolutiva conhecida é
o chimpanzé, sendo ele um dos animais mais parecidos com os
seres humano em diversos aspectos como sociabilidade, capacidade cognitiva e estrutura corporal. Estudos mais recentes sobre
o genoma humano dizem que nós, seres humanos, temos 99%
de semelhança com nossos ancestrais símios. Chimpanzés são
capazes de utilizar objetos como ferramentas para caçar, abrir
nozes e espantar outros primatas, entre outras coisas. Nós, tendo
apenas 1% de diferença entre eles, somos capazes de compor
sinfonias e realizar grandes feitos de arquitetura e engenharia.
É este pequeno 1% que nos torna mais inteligentes que os chimpanzés. Neil deGrasse termina sua explicação com mais uma
questão: “Se nós, com esta pequena diferenciação entre nossos
parentes primatas, somos capazes de feitos tão extraordinários,
do que seria capaz um ser neste universo desconhecido evoluído
1% além de nós, seres humanos?”.
10
SEMELHANTEMENTE é uma coletânea de contos escritos
ao longo de dois anos para o blog Não Me Faz Pensar, enquanto tomava gosto pela literatura — aprendi muito tarde sobre o
quanto me interessava por ler e escrever. Todos os textos estão
expostos em ordem cronológica, conforme foram escritos. É
nesta ordem onde se encontra o verdadeiro conceito desta obra.
Assim como vimos que os seres humanos são evoluídos em apenas 1% dos chimpanzés, os leitores mais atentos poderão percerber em pequenas nuances a evolução entre os contos — quase
como um darwinismo literário —, sendo que esta evolução não
é apenas textual, mas minha como indivíduo pensante, buscando dia a dia, texto a texto e passo a passo ser um pouco melhor
do que fui antes.
Aqui você encontrará contos sobre assuntos diversos, sem nenhum apego temático, passando por histórias de amor, aventura,
ficção científica e outras, as quais não saberia classificar. Além
disso, estão separados na segunda parte deste livro alguns textos
escritos para o blog Confraria dos Trouxas, todos sobre amor
e inspirados em músicas nacionais, também em ordem cronológica, porém desconectados ao conceito principal, pois foram
escritos concomitantemente aos da primeira parte.
Espero que a viagem seja proveitosa e que ao final do livro você
tenha alcançado um pouco da evolução que tentei passar como
autor. Boa leitura!
Felipe Arriaga Carriço
11
1
Meu primeiro romance
F
oi um romance. Não queria, mas
aconteceu. Estou feliz que tenha
acontecido. Tive medo de começar, bem diferente de meu papai, que
nunca teve medo. Sei que ele começou e terminou muitos. Sei também que deixou alguns
pela metade, sem dizer “acabou”, apenas largou mão por falta
de interesse.
Hoje ele tem um só, mas não sei dizer se é romance. Vivem abraçados, um ao outro, até papai pegar no sono e gentilmente deixar
cair sobre o colchão. Deve ser porque ele está velhinho e não tem
pique para começar um outro qualquer.
E o vovô então. Ah! Esse sim teve muitos romances e aventuras.
Ele me conta histórias de sua juventude, quando via princesas
nas janelas a balançar suas tranças e como os pais das moças não
gostavam disso. Quando vivo me chamava de princesa. Contoume também sobre o terror das guerras que viu e viveu, mas não
havia nada de romântico nessas histórias, apenas nos olhos dele
enquanto as contava baixinho para mim.
Prefiro ter amores e paixões, beijos avassaladores como os que
tive na minha primeira vez. Aliás, quero ter vários. Tantos quanto
couberem em meus braços, na minha mente e no meu coração.
Quero príncipes em cavalos brancos, amores latinos com nomes
engraçados, feras e reinos encantados. Que seja! Vou querer sempre mais e mais.
Ai, ai… O que quero mesmo é que os próximos livros sejam tão
bons quanto meu primeiro romance.
12
2
Sentimento
imóvel
V
iu nesta mesa o pai que tomava café pontualmente às 6h.
Viu também nesta pia a mãe que lavava louça e gritava
para os filhos, neste outro quarto, que dormiam em vez
de estudar. Viu naquela cama ao fundo, um senhor de idade, o
qual chamavam “vovô”, que urinava em um balde e, de tempos
em tempos, chamava a filha para limpar. Viu na sala, à direita,
uma senhora grisalha dormir para a eternidade, vítima de seus
próprios dias, engolida pelos anos de uma idade que de longe
poderia ser chamada de avançada. Viu sim, cada um deles, cada
qual com suas crises de identidade, sofrimentos e alegrias. Viu
traições e escândalos. Viu o sangue de cada um. Em ocasiões o
bebeu de um só gole. Sentiu o calor de cada corpo e dos corpos
todos juntos. Embebeu cada um em suas lágrimas diárias; uns
mais, outros menos, mas todos acabou por lavar. Viu seios, costas,
pernas, mãos, sexos. Viu, ano após ano, a morte que chegava
sorrateira, mas que sobre si jamais lançaria seu véu. Vovó, vovô,
pai, mãe, filho. Todos pereceram, exceto ela, que sofreu calada
cada angústia, sorriu cada aniversário, festejou a vida e cortejou
a morte, totalmente engaiolada em seus próprios
membros e estrutura.
Nascida e crescida sobre um alicerce
eternal de madeira, ferro e pedra.
Uma tumba de gente viva que aguarda por novos moradores há anos.
Outrora chamada “lar doce lar”,
hoje conhecida como amaldiçoada,
esta pequena casa antes cheia de
vida, agora, abandonada.
13
3
Morrem os
crisântemos
S
ob uma cortina de água pôde
observar quase que em câmera
lenta os crisântemos que caíam
sobre a amada.
Era uma manhã chuvosa, mas tais águas não se
comparam às lágrimas derramadas no solo arenoso. Um encontro místico entre as águas que criam a vida e destroem a alma. O
doce e o salgado, o frio e o quente. Personagens antagônicos que
se completam em uma mesma história.
As flores continuam a cair, semeando vida após a morte e fazendo
o aroma adocicado e penetrante desta flor, predestinada à angústia dos aflitos, ir de encontro à água que cai.
As faces ficam ruborizadas, contrastam com o azul dos olhos desta família colocada de pé frente ao abismo, para quem os contrastes têm outros tons. As flores amarelas encontram o negro da
morada eternal e repousam suavemente suas pétalas alheias ao
momento fúnebre.
Elas não têm culpa.
Algumas vezes são atiradas com força, outras apenas deitadas
com delicadeza, mas sempre com o único propósito de declarar
adeus para aquele alguém que se foi e deixou saudades. Se pudessem chorariam como todos, desejariam um último abraço e
diriam uma última vez “eu te amo”.
Mas infelizmente não podem.
14
Agora seguem juntas uma trilha sem fim. Ambas nascidas do pó,
ceifadas da terra e agora voltam, mãos dadas, caladas, frias. Os
aromas se misturando, as mesmas umidades rumo à mesma podridão da terra, que nessa hora começam a cair sobre elas, pá à
pá, pó a pó.
Está consumado.
Acabam as águas no céu e nas faces, cessam os contrastes e sobram apenas o vermelho do solo, dos olhos e o cheiro de um
passado que não voltará.
Morrem os crisântemos.
15
4
Tempo
D
esde moço, desde a mais tenra
idade corria. Corria como se
o tempo fosse um inimigo a ser
vencido. Travou uma batalha no campo
da vida contra este personagem impalpável
chamado Chronos. Cresceu contando suas décadas, anos, meses e dias. Algumas vezes até minutos e segundos
não passavam despercebidos pela sua mente jovem e pensadora.
Passavam as estações, as luas iam se revezando, o sol descia e subia intermitente e grandioso. As velas no bolo iam aumentando
em número e caloria. As rugas e o reumatismo se multiplicavam
e o tempo, carrasco impiedoso, ia minando suas forças e, pouco a
pouco, vencendo. Cansado, agora já não lutava, apenas se defendia, buscando métodos de enganar a ampulheta, traçando planos
e se frustrando com cada batalha perdida, cada nova volta dos
ponteiros em seu já claudicante relógio biológico.
Hoje, caminha com dificuldades, centímetro por centímetro, vendo o tempo passar feroz por entre seus dedos e, com cerca de oito
décadas sobrevividas — já não se pode dizer ao certo —, percebe
que o tempo não foi suficiente e que perdeu grande parte do seu
precioso tempo correndo atrás da eternidade.
16
5
Estarei lá
T
odos os dias estava lá, parado, olhando para o nada.
Na verdade, eu é que olhava para o nada e o via, sempre lá,
de braços estendidos, olhos fitos e semblante triste. Porém,
com um sorriso singelo, que também estava sempre lá.
Imponente, não se curvava devido à chuva, tampouco franzia a
testa. Em meio à sequidão, não tossia, e nos momentos de caos
mantinha-se absoluto.
Era comentado por uns, ignorado por outros, referência entre
ruas, becos e travessas. Na verdade, acho que era amado... Sinto
inveja dele.
A fome que me aflige não o toca. O medo que me guia não o
rege. Minhas angústias não o abalam. Um colosso, uma fortaleza
era ele. Com certeza o invejo, mas sinto pena.
Quão longe consegue enxergar e escutar? Quantas pessoas deve
ter conhecido? Quanto tempo vivido? Mais anos que eu?
Na verdade, sinto pena de mim. Não sou, mas me
sinto como ele, e esta incoerência me corrói.
Difícil pensar na paz que ele tem e que
eu, carne e osso, não possuo.
Nesta hora sinto meu coração bater
mais fraco. Estou quase lá, bem próximo à perfeição.
Será ele onipotente, onisciente?
Sabe quem sou? Certamente que
não. Agora deve faltar bem pouco.
17
Meus ossos tremem cada vez mais vagarosamente. Minha respiração cansada aos poucos fica calma, e pesada, e profunda. Para.
Sou cada vez mais ele.
De braços estendidos me espera. Alto. Forte.
Meu coração de pedra, sempre de pedra, agora verdadeiramente
o sinto assim. Mesma pedra que o sustém, sendo ele uma estátua
antiga e eu, neste momento, nada mais que um velho morto. Ambos duros, frígidos, imóveis.
Pena de mim que o invejei. Serei enterrado, comido, e esquecido.
Ele ficará lá. Sempre esteve e sempre estará.
18
6
Refluxo
N
ão pôde ver o filho lhe dar netos, se casando, crescendo
ou nascendo. Tampouco ele mesmo se casar, conhecer sua
esposa, noiva e namorada. Não concluiu a faculdade, não
se matriculou e não se dedicou ao vestibular. Aquele emprego decente não conquistou e não foi demitido daquele outro que não
lhe faria feliz. Seu colegial não curtiu, das festas não participou
e não fez amigos fiéis. Não teve decepções amorosas, sem uma
terceira, segunda ou primeira vez. Nunca brincou com carrinhos,
bonequinhos e giz de cera. Não foi feliz, não cresceu e não nasceu.
Foi abortado.
19
7
Cortiço
D
e um dos quartos era possível
sentir um agradável cheiro da
comida fresca. Arroz, talvez.
De outro, ouvia-se o ruído das barrigas que
se digeriam com fome, onde o cheiro que exalava do vizinho não era nada agradável, mas o aroma que realmente predominava era o mofo das paredes, que emergiam desde
o chão como uma cerca viva.
Do outro lado do corredor risos e gargalhadas de quem recebe
cócegas. Silêncio. Outra voz e mais risadas. Ali perto, no mesmo
patamar, nada de risos e alegria. Apenas o silêncio de uma das
vidas ali esquecidas.
No andar superior se ouviam rangidos, gemidos e estalidos. Pela
fechadura crianças eufóricas, perdendo de forma trágica para o
mundo real o lado lúdico da vida.
Virava-se uma esquina e o fervor de orações e joelhos nas tábuas
sem brilho se misturavam com o ressoar dos atabaques que do
forro de estuque judiavam, lado a lado, separados por uma fina
camada de cimento e esperança em busca de algum tipo de redenção.
Não faziam dali seu lar. Dormir, acordar e sair era a rotina de
quase todos. Alguns exerciam ali mesmo seu ofício, vendendo o
que de Deus receberam de graça desde o nascimento. Aliás, Deus
estava lá, contudo as pessoas se trancavam perante Ele, que vagava solitário pelos andares.
20
Havia muitas portas e poucos trincos. Salas, quartos e quase nenhuma janela. Corredores sem fim, lixo, animais. Pranto e risos.
Prazeres e dores. Muitas vidas e quase nenhuma importância.
Assim vivia uma enorme família, que sob o mesmo teto não se
conhecia.
21
8
Amor Unilateral
T
inha os cabelos de um vermelho
quente e rubro que se confundia
com o frio em sua pele branca.
Um pescoço longo de bailarina, envolto
por um xale negro muito bem rendado e
olhos azuis como o céu daquela época do ano.
Era setembro e ele escrevia em seu diário de maneira compulsiva.
Sentado ao pé de uma araucária, observava as folhas que farfalhavam e caíam, concedendo o direito de uma última dança ao
vento que por ali passava. Aguardava-a pelo prazer do perfume
dela que, vez em quando, era trazido pela brisa. Esperava ao máximo antes de se virar para admirar seu andar elegante, assim
como um vinho que se degusta com todos os sentidos antes do
paladar. Era de uma ótima safra, porém raras eram as vezes que
seus olhos a tocavam.
Ensaiou por diversas vezes uma aproximação. Queria cumprimentá-la, chamá-la para sair, pedi-la em namoro e casamento.
Treinava na frente de um velho espelho em seu quarto, que todas
as vezes dizia invariavelmente sim. Às vezes estranhava o gosto de
sabão em seus lábios, fruto do esmero da mãe, que, todos os dias,
com seu paninho branco, limpava as marcas de beijos ensaiados
deixadas no reflexo. Ela apenas sorria dizendo: “Isso passa, logo
passa”.
Sonhava todas as noites em acariciar seus cabelos num longo e
próximo abraço. Às vezes acordava com a sensação de tê-la beijado, mas que logo passava com o primeiro gole de um café forte
e bem quente, feito daquela maneira para apaziguar um pouco o
frio daqueles dias.
22
Garoava naquela manhã. De gorro e cachecol aguardava por ela
no mesmo lugar de sempre, mas dessa vez ficou em pé, um pouco mais visível para todos que passavam, inclusive para ela. De
repente um olhar em sua direção, um espirro, as mãos vão ao
rosto por instinto, bloqueando a brevidade do momento. Meses
de preparação e tudo vai por água abaixo. Muitas águas, que
passavam rápido demais, dia após dia, apagando os rastros dos
dias anteriores, que não eram tão diferentes dos que se seguiam.
Ao menos a gripe era novidade.
Certo dia, após acordar, além de café tomou coragem e resolveu
correr atrás do que almejava tanto. Deu passos trêmulos em direção à passarela diária de sua Vênus. Tomou a dianteira, esgueirou-se pela esquina e, a poucos metros do alvo, de súbito, desistiu.
Preferia uma rotina voyeur a uma decepção amorosa unilateral.
E, no dia seguinte, estava lá, escrevendo em seu diário, compulsivamente, sem fazer questão de levar as mãos ao rosto quando
espirrava.
23
9
Entre o branco
e o amarelo
S
im, estou bem aqui. Me odeiem! Poucos centímetros me separam
do êxito. Foram semanas planejando e pensando sobre como tudo deveria acontecer.
Linha vermelha do metrô, bem na ponta esquerda da plataforma. De cinco em cinco minutos posso sentir o golpe do ar que
se move a centenas de quilômetros por hora, criando filetes de
lágrimas no meu rosto. A ardência nos olhos é mero detalhe.
Foram tantos dias sofrendo com o calor de todos e com a frieza
de cada empurrão, que já não posso enumerar quantas vezes saí
esmigalhado poucas estações à frente. Sentia uma forte pressão
vinda de todos os lados. E dor, muita dor. Está certo que as outras
pessoas não tinham culpa da minha condição, mas um pingo de
amor ao próximo é o mínimo que se espera. Será que eles não
enxergam o quanto para mim é difícil andar com estas muletas,
estes apêndices metálicos em cada um dos braços? O quanto é
difícil ser diferente? Sinceramente, isto não vem ao caso. Já posso
sentir o chão vibrando novamente e o vento não demora a inflar
a vela deste barco à deriva que sou.
Entre mim e os trilhos uma faixa amarela e outra branca. Não seria difícil cruzar as duas no momento exato e acabar com todas as
mágoas. O que não esperava é que em algum lugar, entre aquelas
duas faixas, existisse uma fina teia de medo que havia de se tornar
a mais rígida barreira na execução do meu plano infalível.
Neste momento começo a chorar, e, após cruzar o muro do amor
próprio, toda aquela pressão vai embora. Mil razões inúteis em24
baçaram meu ato final. Mas, dentre elas, a de que eu mais gosto
é saber que hoje o atraso e o aperto de todos serão por minha
culpa. Sou eu aquele mero objeto na via. Sim, estou bem aqui.
Me odeiem!
25
10
Pintando um
quadro antigo
Q
ue multidão é essa que vejo ao
longe? Será que é dia de barbárie? Dia de matar mais um que
nada fez de mal? Bom, já que não tenho
nada melhor para fazer, tentarei me aproximar, só para ver a aparência desfigurada do
condenado.
Daqui não vejo bem o seu rosto, mas pela sua cor vermelha predominante, o rei não estava em um dia bom. Chutando por baixo, acredito que foram de quinze a vinte açoites.
Será que vocês podem me dar licença? Abaixem esses cotovelos,
estão acertando meus rins. Só quero chegar mais perto para escutar o que o rei está falando. Puxa! Esse cara fez algo muito ruim
com este povo mesmo. Veja só os rostos transtornados de raiva.
Caramba, o rei falou e eu não escutei. Culpa desse pessoal maluco gritando desesperado. Já que não posso vencê-los, vou me
juntar a eles.
Daqui não estão escutando! E olha que já estou ficando rouco
de tanto gritar. Se ao menos existisse um gesto com as mãos para
este tipo de coisa. Sei lá... Vou tentar. Levo a mão à testa, deslizo
para o centro do peito, passo pelo coração e trago para o lado
direito. Desenho uma cruz. Espero que entendam.
Isso mesmo! Repitam! Repitam! Crucifiquem-no!
26
11
Última chamada
B
om dia, minha querida! Tudo bem com você? Estava preocupada. Você não é de se atrasar. Faça-me um favor e abra
a cortina. Água? Obrigada! Nossa, até parece que você leu
meus pensamentos. Você é uma belezinha mesmo. Sempre tão
prestativa. O que será que teremos hoje para o café da manhã?
Não vá me dizer que é o de sempre. Humm… Pelo cheiro é o de
sempre. Pela textura também. Quanto ao gosto prefiro não comentar, já que não o tem. Será que hoje eu posso ficar com as bolachinhas? Você sempre as guarda em seus bolsos e nem me oferece. Hoje eu realmente queria umas bolachinhas. Gostaria que
alguém viesse me visitar. Já não sei mais há quantos dias não vejo
alguém além de você. Onde fica o telefone? Sei que se tentar me
lembrarei do número de alguém. Escuta! Escuta! Que barulho é
esse? Acho que estão telefonando, não é mesmo?! Atende para
mim, pois deve ser alguém de casa. Ei, volte aqui, por favor…
Ufa! Que bom que você voltou. Quem são esses com você? Acho
que já vi alguns deles, algumas vezes. Puxa. Vocês estão estranhos. Até que enfim alguém atendeu esse telefone. Eu já
estava me sentindo mal com aquele barulho. Amiga, por que você está com esta cara?
Pode ficar com as bolachas...
Foi a ligação? Até parece que alguém
morreu.
27
12
Silva e
Silva
T
em gente que fica com a pulga
atrás da orelha. Já eu tenho uma
verruga e não posso coçar.
A maior parte das crianças não está nem
aí para pequenas imperfeições em seus corpos. Lembro-me de um amigo que tinha três
mamilos, mas mesmo assim jogava bola sem camisa no pátio do
orfanato. Era bom jogar no mesmo time que ele, já que encontrá-lo no campo ficava muito mais fácil devido àquela mancha
disforme quase no meio do peito, feito um farol náutico que as
embarcações usam para chegar a terra firme em noites de nevoeiro. Saudades do Tetinha. Quando crescemos mais um pouco
tornou-se impossível vê-lo sem camiseta, pois pelo visto a idade
trouxe consigo preconceitos ancestrais, sabe-se lá de onde.
E a Marieta, que conheci no pátio durante as partidas de futebol,
a qual se tornou minha primeira namorada? Sempre lá, sozinha,
sentada no banco de cimento enquanto abraçava os próprios joelhos. Certa vez, fui expulso da partida e, como todos os bancos estavam lotados, sentei-me ao lado dela. Namoramos praticamente
em silêncio durante algumas semanas, por medo de sermos pegos
por alguma monitora. Porém, o medo não foi maior do que a
explosão de hormônios que a puberdade nos reservava.
Combinamos de nos encontrar de madrugada, nos fundos do
dormitório feminino. Lá era um local reservado, cheio de camas
vazias, já que o número de meninas abandonadas é bem menor
do que o de meninos, além de elas serem adotadas com muito
mais frequência por casais jovens e ricos que precisam de uma
menininha para mimar ou de uma empregada barata.
28
Como combinado, fiquei escondido debaixo da cama, esperando que ela entrasse nas cobertas para que eu também subisse na
cama. Mal havia escutado seus passos se aproximarem e já estava
excitado, tão rígido quanto os pés da cama acima de mim. Ela
vinha de gatinhas em meio à escuridão, até que chegou à cama
combinada e pude ver seus pés pequenos e delicados. Suas unhas
estavam pintadas com algum esmalte barato esquecido pelas monitoras. Todas as onze unhas.
Quando percebi que seu pé tinha mais dedos do que o normal,
meu estômago se revirou, meu pênis amoleceu e desisti. Esperei
calado até me sentir seguro para sair de onde estava. Nunca mais
a vi. Deve ter sido transferida ou quem sabe adotada; algo que
acho difícil, pois as pessoas costumam avaliar, inclusive, os pés dos
internos antes de adotá-los. Sabe aquela história sobre “cavalo
dado não se olha os dentes”? Só funciona com cavalos.
Ah, esses defeitinhos genéticos! Acho que foi uma das poucas vezes em que me interessei pelas aulas de biologia. A professora
falando e eu tentando entender essa maldita verruga que tanto
me coça. Descobri, inclusive, que os mais variados defeitos físicos podem aparecer devido à mistura de sangue em uma mesma
família. Algo escorria pelos meus dedos. No furor da descoberta
cocei-a até sangrar.
Eu sempre tive essa verruga e, diferente das outras crianças, ela
sempre me incomodou, desde muito novo. Meu cabelo não era
tão ruim quanto o das outras crianças, então conseguia deixá-lo
suficientemente grande para que meu defeito ficasse oculto. Pode
até ser coisa da minha cabeça, mas já pensou se as outras crianças tivessem descoberto? Iam me apelidar de baratinha, M&Ms
e outras coisas que só a mente de crianças sem pudor poderia
inventar.
Saí do orfanato quando era velho o bastante para tocar minha
própria vida. E, engraçado, só depois que pus os pés para fora é
que me dei conta do fato de ter sido abandonado quando ainda
não tinha condição nenhuma de me defender, quando ainda não
tinha reparado no quanto essa verruga coça.
29
Será que fui o único? Tenho irmãos? Quem será que me abandonou? Meu pai? Minha mãe?
Uma vez, ainda no orfanato, tive acesso a alguns papéis antigos
sobre minha internação. Sei que fui encontrado na Zona Oeste, com cinco anos de idade, mas não me lembro de nada antes
dessa data. Fui recolhido, deram-me banho e roupas novas. Foi
então que a Dona Clara reparou na verruga. Desde então viramos companheiros inseparáveis: Eu, Dona Clara e a verruga. Ela
morreu poucos anos depois. Cresci. Encontrei emprego e aluguei
um quartinho próximo ao centro da cidade. Resolvi viver a vida,
já que para ela não conheço remédio.
Nunca tive problemas para encontrar namoradas. Uma aqui, outra ali. Esses namoricos sempre foram bons para esquecer meus
problemas. Pulei de galho em galho até que um dia me apaixonei. Foi a primeira moça que levei para o meu quartinho. Todas
as outras levei para motéis, banheiros públicos e becos. Essa foi
diferente. Uma menina da Zona Oeste, de cabelo crespo, longo,
negro como o meu, tão negra quanto eu.
A primeira vez em casa foi o que mudou tudo. Transamos ainda
vestidos, no sofá, no chão e na cadeira. Uma via sacra até a cama,
onde nus nos deitamos. Eu por cima, ela por cima, de ladinho,
forte, fraco, até que, enquanto a pegava por trás, puxando seus
cabelos, ela me pediu com vós faceira um “papai e mamãe”.
Puxei seus cabelos com força, até que o tronco dela se ergueu em
direção ao meu. Queria responder ao pé do ouvido algo tosco
para excitá-la, contudo me deparei com o improvável. Atrás de
sua orelha, uma verruga. No susto gozei. Larguei-a na cama, com
minha mente em parafuso, invadida por lições de biologia.
Ela engravidou.
Tem gente que fica com a pulga atrás da orelha. Já eu, tenho uma
verruga e não posso coçar, mas coço mesmo assim, até sangrar.
30
13
Ao rapaz
que varre
E
sperar por ela todas as manhãs tornou-se um hobby. Sentado no chão ao lado da porta de sua casa, esperava com
as mãos em concha a entrada das correspondências pela
fenda reservada ao correio. Eram contas, malas-diretas, folders
etc. Mas o que ele esperava não era uma carta qualquer. Era uma
com envelope barato, selada amadoramente por mãos trêmulas.
Mãos femininas.
Conheceram-se numa manhã como as outras, na mercearia de
seu pai, onde trabalhava desde pequeno, carregando caixas, empacotando compras e varrendo. Varria quando a viu de relance.
Era alta, magra, tinha dedos longos e unhas bem-feitas. Não era
possível ver seu rosto. Por debaixo da burca pôde ver apenas seus
pés, tão delicados quanto as mãos, ornados por sandálias surradas compradas em algum brechó. Ela entrou logo atrás de um
homem que parecia ser seu pai, o qual estava de visita, tratando
de algum assunto que merecesse sussurros ao pé do ouvido do
dono da venda.
Sabia que os olhos dela tinham se cruzado
com os seus, enquanto passeava despretensiosamente com as mãos sobre algumas mercadorias, dando uma volta
completa no pequeno comércio para
conseguir enxergar todo o local pelo
pequeno vão de suas vestimentas
destinado aos olhos.
Antes de se despedirem, houve uma
troca de envelopes por ambos os homens, saudaram-se e nunca mais os
31
viu juntos por ali. Eles não retornaram, mas por algum motivo ela
fez visita em seus pensamentos.
Viver em uma cidade liberal de forma tradicional não era fácil
para um jovem sonhador. Não era possível renegar tudo aquilo
em que sua família acreditava para sonhar. Ele achava que seria
egoísmo da sua parte querer o melhor para si em detrimento do
que, havia gerações, de pai para filho, era considerado o ideal.
Simplesmente vivia com os pés atados ao chão, varrendo o pó
vindo da rua que se acumulava pelos cantos.
Recolher as cartas era uma de suas tarefas em casa. Fazia-o sempre, até que num dia como todos os outros um envelope desconhecido, sem identificação de qualquer tipo, entra porta adentro,
com letra caprichosa dizendo “Ao rapaz que varre”. Uma frase
tão pequena, mas suficientemente grande para acelerar seu coração, e mesmo não tendo certeza de se deveria, abriu o envelope
com toda a delicadeza que as mãos de um “rapaz que varre”
permitiam.
“Peguei seu endereço de onde não poderia sequer ter olhado. Escrevi palavras perdidas para não ser encontrada. Elaborei frases
tão curtas quanto a vida me permite enxergar. Deixei transparecer o máximo possível de mim sem deixar. Mal sei seu nome. Mal
sei quem é. Mal sei quem sou. Sei que sou tão perdida quanto
você, que varre o pó do chão como se só chão merecesse seus cuidados. Não tenho rosto para o mundo. Não tenho outra fé senão
a dos meus pais. Não tenho coragem de continuar. Aguarde.”
Leu, releu, virou do avesso o envelope e nada. Nem sequer podia
acreditar que o correio pudesse entregar uma carta anônima para
uma família muçulmana em tempos de medo como os atuais. De
qualquer modo, esperou. Um dia após o outro, e outro, e outros.
Uma semana.
“Dúvidas. Sei que as deixei. Escrevi tortamente devido à pressa…
desculpe-me, temo que me encontrem. Caneta e papel são armas
de terrorismo. Mal sei se suas mãos chegaram a tocar a primeira
carta, tampouco se tocarão esta. É errado sonhar? Pelo menos
as cartas não dependem de pés no chão, pois voam e dizem sem
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medo de serem punidas. Não ligam se serão rasgadas, querem
apenas ser lidas. A mão que conduz minha mensagem tem medo
de ser cortada, e reluta quanto imploro por mais um favor. O
tempo está correndo. Tenho medo. Aguarde.”
O tempo é carrasco. Tão carrasco quanto o medo e a vergonha.
Tão carrasco quanto a insegurança e a incerteza. Sabia que ela
sofria tanto quanto ele, que vivia as mesmas angústias e sentia as
mesmas dores. Não podia expressar nada e, mesmo que expressasse, ninguém a veria.
Uma semana, duas semanas, mas dessa vez nada de nova correspondência.
A vida continuou. Seu pai se casaria novamente. Tinha dinheiro
para “comprar” outra esposa e foi o que fez. Dia marcado, comida preparada, famílias reunidas e uma noiva bem arrumada,
calada como um manequim. Costuma ser assim: comem e bebem
chá, dão presentes para os noivos, que logo saem para uma lua
de mel comprida, deixando o rapaz responsável pela mercearia.
No dia da festa se vestiu com sua melhor roupa, sentou-se em um
dos cantos e ficou a observar as pessoas. Homens de um lado e
mulheres do outro, como reza a tradição, porém algo lhe chamou
a atenção. Sentado, próximo aos parentes da noiva, ele, o pai da
moça de pés delicados e até então sem rosto, que agora se revelava como sogro do seu próprio pai. Certamente o envelope que
trocaram naquele dia tratava-se do acordo matrimonial, que seu
pai fez às escondidas, até mesmo da primeira esposa.
Seu mundo desfigurou-se. Perdeu a cor, o apetite e a vontade de
pensar. Até que, ao final da lua de mel, uma surpresa o esperava
junto às outras correspondências. Sem selo, num envelope novíssimo, branco, com letra caprichosa.
“Não estava entendendo nada da situação até que fui informada
pelo meu pai. O medo corroeu qualquer chance de entrar em
contato com você. Corroeu e transformou em pó minha alegria.
O mesmo pó que você varre todos os dias e varrerá sempre que
eu passar por você. Passarei, e não olharei em seus olhos. Não
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trocarei uma palavra com você. Será melhor assim. Não sustentarei meus sonhos, pois tornaram-se pesados demais com todos
passando por cima deles. Desculpe-me.”
Ele foi para o trabalho naquele dia, todavia varreu muito menos
do que era de costume. Preferiu deixar o pó cobrir o chão, da
mesma forma que cobre o seu coração, a varrê-lo com esperanças
fajutas de um amor sem rosto: o amor-próprio.
34
14
A fuga
D
ura rotina de assalariado. Fazer o quê? Sim, esta é uma
pergunta retórica, já que a resposta é simples de imaginar.
Porém difícil de realizar.
São 18h e volto cansado para casa depois de uma longa jornada
em prol do enriquecimento alheio. A viagem de volta não é mais
simples do que as oito horas que passo em frente ao computador.
Na verdade, ela é a cereja no bolo de um dia como os outros. Sem
ela seria como se algo não estivesse no lugar. Porém, de vez em
quando uma surpresa vem para quebrar a rotina. Tirar da órbita
esse planeta chamado “ego” que gira em torno de si.
Saí do metrô de cabeça baixa, como quem conversa com o chão
sobre as preocupações diárias — mas acho que até ele já está se
cansando de mim. De repente, um vulto passa ao meu lado em
marcha acelerada. Tem mulher que acerta no perfume, e esta era
uma delas. Lindos cabelos longos abraçavam suas costas, indicando a direção para o seu bumbum, que logo me levaram às
coxas e pés. Aos pés mais por curiosidade do que
por fetiche.
Não era todo dia que se via algo assim
por aquelas redondezas. Certamente
ela não pertencia àquela paisagem,
e só não vou chamá-la de miragem
para não soar poeticamente como
um cantor de pagode. Aliás, pagode é o que se escuta por esses lados.
Quando não um axé ou funk.
Resolvi acelerar o passo apenas o
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suficiente para segui-la sem ser notado. E assim foi. Minha sorte
foi que ela ia para o mesmo lado que eu, então pude aproveitar
daquela visão uns tantos quarteirões em linha reta. Tentei me
aproximar algumas vezes, só para sentir novamente o perfume
dela, ou quem sabe dar a sorte de recolher algo que, por algum
“milagre divino”, ela viesse a deixar cair, para então devolver e
arrumar pretexto para puxar assunto. Contudo, isso não aconteceu. Ela andava bem rápido para alguém que usava salto alto.
Um quarteirão, dois, três. A qualquer momento ela viraria para
algum lado diferente do meu e nunca mais a veria. Apertei ainda
mais o passo. Foi quando um veículo lindo, vermelho-sangue, tipo
sedan, fez com que ela fosse obrigada a parar no cruzamento. Eu
nunca amei tanto um carro como amei esse!
Consegui me aproximar da moça e, naquele instante, quando estava ao seu lado, decidi de uma vez por todas dar um jeito na
rotina chata de todos os dias de um modo intrépido e inusitado,
coisa a qual nunca me imaginaria fazendo. Puxei papo.
— Oi, com licença. Você, por acaso, sabe me dizer a marca do
carro que acaba de passar?
— Ai! Acho que era um Peugeot.
— Ah, tá certo. Obrigado.
Foi assim, atravessei a rua, dobrei a esquina e tornei a olhar para
o chão.
Quanto à moça, nunca mais a vi, mas estou adorando meu carro
novo.
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A liturgia
P
é ante pé adentrou o banheiro fumegante. O vapor que
ultrapassava o box ainda fechado já havia tomado todo o
ambiente e embaçado o espelho sobre a pia, onde estavam
cremes, pentes e outros mimos.
O banho foi longo, cheio de uma deliciosa espuma, a qual só não
era mais alva que sua própria pele. Lembrou-se de cada detalhe.
Esquadrinhou meticulosamente com a esponja todo seu corpo
antes de satisfazer-se com o resultado.
Ainda sob o calor da água recém-desligada, sentou-se para depilar os poucos pelos que emergiram desde a última vez que os
retirou. Pernas, virilhas, braços. Tudo ficou liso como antes da
puberdade. Sacou um dos potes rebuscados que se encontravam
no armário, colocou um punhado de creme em suas mãos e acarinhou todos os lugares que podia alcançar.
Com a toalha enrolada no corpo saiu vagarosamente do
banheiro tendo o restante do vapor como uma
companhia que logo se dissiparia no ar seco
do quarto. Em frente ao espelho da penteadeira, deixou cair a toalha no chão
para admirar o resultado da assepsia.
Gostou do que viu. A roupa estava
separada, estendida sobre seu lençol
de cetim, quase como uma alma
sem corpo, que espera dormindo
para ser resgatada.
Era sua melhor lingerie, rendada,
negra como seus olhos e delicada
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como seus traços. Vestiu-a. Admirou-se. Ensaiou olhares. Estava
frio e, assim que seus poros se eriçaram, desviou o olhar para o
vestido que aguardava pacientemente. Este era vermelho, com
finas alças ornadas com rosas de tecido, feitas à mão, diga-se de
passagem. Caiu-lhe como uma luva. Nas pernas, uma grossa
meia-calça para aguentar o frio. Nos pés, o mais agudo salto que
possuía. No pulso, uma pulseira. Nos olhos, cílios postiços. Nas
orelhas, brincos madrepérola. Dos perfumes escolheu o mais caro
e não fez economia. Era doce como baunilha, porém levemente
amadeirado. Quase tudo acabado.
Do segundo andar pôde ouvir uma buzina de automóvel. Era
a deixa final para o término dos preparativos. Dirigiu-se para a
saída de casa, mas não sem antes dar uma derradeira olhada no
espelho. O salto lhe concedeu alguns centímetros a mais na altura, que deram altivez ao seu olhar e andar, além de fazerem com
que suas pernas ficassem ainda mais longilíneas.
Outra buzinada. Se era apenas pressa ou ansiedade logo descobriria. Do mancebo ao lado da porta, para esta ocasião, pegou
uma peruca de cabelos longos e negros. Vestiu-a com pressa, mas
com destreza. Abriu a porta e já ia ao encontro do carro, quando
percebeu que havia se esquecido do cachecol, justo dele que não
poderia faltar. Ele voltou para colocá-lo ao redor do pescoço, chaveou a porta e saiu, mais mulher do que nunca.
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16
Dica de
amigo
“A
lô! Márcia? Tudo bom? Então tá bom! Tive ótimas recomendações suas. Você é tudo isso que dizem? Bom, sua
voz é belíssima. É tão bonita quanto você? Eu não sou
bobo, só estou curioso. Como você está vestida? Espero que seja
algo bem sexy. Calma, não desligue. Só queria te conhecer melhor. Você realmente faz tudo isso? Muito mais? Agora que não
me aguento de curiosidade! Ah, esse eco estranho? Não é nada,
não. Deve ser o sinal do celular que está falhando. Já disse calma.
Estou disposto a pagar o necessário. Onde podemos nos encontrar? Não poderia ser um pouco mais longe? Não gostaria que
me vissem com você. Que bom! Pelo visto você está acostumada
com este tipo de situação. Quer saber o nome dela? É Giovanna,
com dois “enes”. Sim, ela é muito bonita. Oras! Eu vou te pagar,
não quero que você faça perguntas. Apenas faça o seu trabalho,
eu vou para um lado, você vai para o outro e fim de papo. EU
ESTOU CALMO! Me desculpa, mas é que ando um pouco estressado e, na verdade, nunca fiz isso. Ué... Nunca me encontrei
com alguém nessas condições. Humm, vai tirar meu estresse? Que maravilha. Nos vemos por lá. Beijo.”
No dia seguinte voltou até o local do primeiro contato, portando uma caneta
piloto, e fez um acréscimo ao anúncio: NUNCA confie no que dizem as
portas de banheiros públicos.
Limpou vagarosamente sua bunda,
olhou o papel para ver se ainda sangrava, deu a descarga e ficou olhando o resto da sua dignidade ir por
água abaixo.
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O beijo
D
e pernas abertas. Foi assim que
me deparei com ela quando
adentrei o motel quatro estrelas,
o qual havíamos combinado ir. Guardadas as devidas proporções dos anos, ela continuava bonita. Talvez até mais sexy do que na
juventude, já que parte do jogo da sedução se aprende praticando, e, quando éramos mais novos, o que não tínhamos era experiência. Tão novos. Tanto pela frente…
O tempo correu mais do que imaginávamos. No nosso caso, além
de corroer as panelas que foram presente de casamento e que ela
teima em guardar, corroeu parte do romance. No início as noites
eram quentes, o sexo prazeroso e feito com garra. Descobertas
atrás de descobertas para ambos os lados. Tudo era bom, tudo
era novo. E durou por bastante tempo, até que aquela primeira
chama se tornou num fogareiro a gás, daqueles que a gente liga
e desliga a hora que quer. E o gás foi acabando, até que conheci
outra pessoa e tive um tórrido caso cheio de volúpia e sexo sujo,
que também não durou muito. De qualquer forma, ainda me
lembro da maneira que entrava em casa, ainda com o cheiro de
sexo nas bochechas e com pressa para me limpar. Poderia me
lavar no apartamento da outra, mas preferia afivelar meu cinto e
correr de volta para casa. Gostava de estar com outra, mas amava
minha esposa.
Amo.
Tornei-me um homem de família, cheio de métricas e regras. Até
o assento à mesa já havia se moldado ao meu corpo. Comia o
feijão de sempre, o arroz de sempre, o bife de sempre e, vez ou
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outra, alguma coisa fora do habitual, mesmo que já fosse de se
esperar. Ela fazia de tudo para me agradar, pois sabia que me encontrava cansado da dura rotina como fiscal contábil de uma sólida empresa. O que ela não sabia é que até um macaco poderia
exercer minha função. Um dia vi meu chefe entrar no escritório
com uma grande caixa. Talvez dentro dela houvesse um macaco,
não sei, mas no dia seguinte fui demitido. Contudo, não contei
para ela. Na verdade dentro da caixa havia documentos que alguém se esquecera de entregar para alguém, que por sua vez se
esquecera de entregar para outro alguém, que entregaria para
mim. Fiquei em silêncio durante um mês, e ela também.
(…)
Não tivemos filhos. “Filhos, por que tê-los?”, eu dizia. Quando
tentamos percebi que não conseguiria. A esterilidade escrotal era
apenas um reflexo da vida estéril que levávamos. Eu aceitei a situação e esperei pacientemente que ela aceitasse. Esperei durante
anos até me convencer de que ela havia superado.
“Para de chorar e vê se dorme.”
Lá estava ela, me esperando de pernas abertas, pronta para reacender a chama da nossa paixão. Brochei.
Deixei cair de lado meu corpo moído pela vergonha. Ela se ergueu, encostou o peito no meu, olhou-me com seus grandes olhos
castanhos e disse: “Quem sabe num cinco estrelas?”
Beijei sua testa, disse que a amava e dormi.
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18
Chorume
É
, meu amigo. A vida já foi boa!
Como diz o ditado, eu estava por
cima da carne seca e não passava vontade alguma. Era estalar os dedos
e voilà, tudo o que quisesse estaria ao meu
alcance.
Não me faltavam empregados. Na verdade, tinha até mais empregados do que realmente precisava, para satisfazer meu gosto egocêntrico de vez ou outra demitir alguém. Estremeço só de
lembrar! Aquela deliciosa sensação de poder, quase divinal.
Poucas coisas me tiravam do sério: sapatos mal engraxados, café
morno e lixeiros. Não faça essa cara. Sim, lixeiros!
Uma vez resolvi descer pessoalmente ao patamar do prédio para
pegar o jornal e reclamar diretamente com o porteiro sobre os rabiscos no elevador. Quando cheguei próximo ao portão, percebi
uma pilha de lixo em frente à entrada social. O cheiro era horroroso e o chorume escorria até o meio-fio. Pedi “gentilmente” ao
porteiro que abrisse o portão para mim. Do lado de fora pude
perceber que o lixeiro não havia feito seu serviço de maneira decente. Várias pilhas de lixo enfeitavam a rua. Justo na minha rua,
um dos IPTUs mais caros de São Paulo. Onde já se viu?
Fiz o teste durante alguns dias. Saía bem cedo, verificava a rua,
fechava o portão e — alto e bom som — praguejava contra os
malditos lixeiros. Engraçado é que durante a noite, quando retornava para o conforto do meu lar, as pilhas de lixo não eram tantas
quanto as que havia pela manhã.
Em um desses dias, o porteiro colocou a cabeça para fora da gua42
rita e exclamou: “Esse ‘lixo’ é culpa de gente como o senhor. Espero que um dia você prove do próprio chorume!” Eu mesmo dei
meu jeito naquele velho de família medíocre, que no outro dia já
não estava mais na função.
Estranhamente, depois daquele dia, minha vida deixou de ser tão
boa como era.
Demiti um dos meus gerentes e passei a fazer sua função. Realizei em seu lugar um investimento arriscado que infelizmente
não dera tão certo. Os acionistas ficaram bravos e notificaram
minha demissão via telegrama. Nem me ligaram. Foi muita falta
de consideração comigo, que fiz tanto por aquela empresa. No
mesmo telegrama fui informado de que a empresa não custearia
mais minha estada na cidade, mas eu bati o pé e fiquei. Fiquei até
perder tudo com advogados e contas. O dinheiro que havia economizado com tanto esforço sonegando alguns impostos foi por
água abaixo, junto com o meu casamento. Tudo bem que ele era
de fachada, porém me custou muito caro.
Olha que eu não sou supersticioso, mas isso tudo foi culpa da
macumba que aquele porteiro jogou contra mim. Agora, olha eu
aqui. Me tornei uma pilha de “lixo”, em meio aos outros da mesma rua, enrolado em um cobertor velho e, se não fosse meu próprio chorume, não aguentaria o frio que faz em algumas manhãs.
Bom, meu amigo, pare de farejar este lixo e vamos embora, que
o lixeiro deve estar por vir.
Aliás, eu já lhe disse o quanto que odeio lixeiros?
43
19
Não, não
sinto não
A
noite foi mais fria, mais tediosa
e mais comprida do que de costume.
Nenhum pé gelado, nenhum tapa involuntário na cara, nenhuma das dezenas de idas ao
banheiro me fez acordar. Nada. Apenas metade da cama amanheceu desarrumada, o que foi bom, já que levei metade do tempo para arrumá-la. Acordei ao som do meu despertador e não
pela luminosidade proveniente do banheiro, que nesta manhã
estava desocupado.
A tampa estava levantada. Urinei de porta aberta fazendo bastante barulho e nenhum gritinho histérico me coibiu. Minha toalha
estava intacta, amarrotada e ainda úmida, pendurada no box. O
registro estava desobstruído, sem nenhuma peça íntima da noite
passada, que estaria secando após uma detalhada lavagem com
sabonete. Dessa vez foi fácil escolher o xampu, o creme e o sabão.
A síntese prevalecia na prateleira.
Terminado o banho, enrolei-me e saí. O piso estava frio e o encharquei com o excesso de água que escorria dos meus tornozelos. Lembro-me de que tinha sempre uma camisa de vereador
esfolada sob meus pés nesse momento. Em frente ao espelho, nenhum potinho colorido obstruía meu reflexo, nenhum tufo de
cabelo atrapalhava a descida da água e minha escova, cabisbaixa,
aguardava-me solitária para a assepsia diária. Não encontrei nenhum creme para pentear, gel ou coisa parecida, e fui obrigado
a sair do banheiro com os cabelos in natura, desgranhadamente
penteados.
44
Minha roupa estava lá, me esperando, exatamente do jeito que a
havia deixado, cheia de vincos e marcas de uma noite mal dobrada. No armário eu tinha diversas opções, mas não tenho plena
convicção das combinações que dessa vez fiz sozinho. Era tanta
coisa para ornar: gravata com camisa, camisa com meia, meia
com cinto, cinto com sapato, sapato com blêizer, blêizer com gravata. E, como não encontrei perfume algum, usei um desodorante forte que havia muito estava escondido devido a uma rinite
insistente.
Naquela manhã abri a porta e olhei para trás. Me deparei com o
apartamento desarrumado e, sem querer, suspirei.
Falta dela? Não, não sinto não.
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20
Nicto,
meu bicho
H
á tempos eu cuido de algo.
Faço dele meu bicho de estimação. Ele é pequeno, negro e vive
logo ali. Ali no canto da sala. No canto
onde ninguém vai. Ali, atrás de você. Bem
naquele cantinho cego, que nunca viu luz nem
vassoura. Às vezes ele fica no armário, espreitando pelo vão da
porta. Passa correndo no rabo do olho. Outras vezes fica parado
no corredor, em frente à porta do banheiro, esperando alguém
passar. Ou no sótão arranhando as vigas noite após noite. Olhe
bem, mas olhe com cuidado. Se prestar atenção verá seus olhos
cintilantes como pequenos fachos mais negros que o negro que
o envolve e poderá sentir o movimento descompassado da sua
respiração. Você não vê, mas está ali. Ele sente a sua respiração.
Sente sua pele que se eriça em sua presença. Ouça! Escute os
dentes dele, que tilintam e rangem. Escute aquele estômago que
ronca baixinho e se mistura ao som do silêncio. Ele está ali, nos
observando. Olhe como ele presta atenção em você. Olhe como
os olhos dele procuram os seus. Faz tempo que não se alimenta.
Sinto sua fome daqui. Acho que meu medo não mais o satisfaz.
O seu deve bastar.
46
21
10 centavos
S
eleciona o número, pressiona a tecla vermelha, acende a
luz e pronto. Sua vida era simples. Simples como a de outros milhares de pessoas como ele. Pobre, mas limpinho.
Um emprego digno, ganhando um salário mínimo tão mínimo
quanto ele, nesse emprego o qual de digno não tinha nada. “Por
fora, bela viola. Por dentro, pão bolorento.” Era assim que ele definia aquele lugar, uma antiga e requisitada papelaria do bairro.
Bairro pobre, e nada limpo. Entre um cliente e outro, um corte
com papel e outro, uma discussão por troco e outra, seu gosto
pelo desgosto da vida foi se multiplicando. Sentia-se como mais
um. Era mais um. Todos os dias vivendo mais do mesmo. Todos
os dias vivendo cada vez menos. Cada dia menos ele mesmo. O
tempo passava e ele via o rosto das pessoas, escutava as histórias
das pessoas, escutava o rosto das pessoas e neles via suas histórias.
No vinco da cara de cada preta comprando material escolar para
as netas, no blush das faces das meninas mulheres do bairro, na
barba falhada do homem com camisa de mangas curtas e calça cáqui, no bigode ralo dos moleques de boné e blusão
que vira e mexe o assaltavam. A vida era ingrata com as pessoas. As pessoas eram ingratas
com a vida. As pessoas eram ingratas
com ele, que cortava os dedos com papel e não recebia um muito obrigado
sequer. Pães bolorentos escondidos
sob a casca, sob a maquiagem que
escondia a juventude e a longa idade, sob a blusa que escondia a arma
que o assaltava, sob a cara cansada
da velha preta, a filha e a neta. Todos correndo atrás do próprio rabo
purulento. E com as bocas cheias
47
de seus próprios rabos desaprenderam a dizer muito obrigado.
Frustrado. Diariamente frustrado. Ali na sua frente a parábola
verdadeira sobre a vida e tudo o mais. A fotocopiadora. A própria
vida sem criatividade copiando-se hora após hora, dia após dia a
própria vida. A vida copiativa da falta de expressão das 3 por 4,
diariamente refiladas aos montes. Diariamente refilando cabeças
sem expressões. Cabeças mortas inexpressivas. A morte todos os
dias copiada pela vida. E ele ganhando a vida refilando cabeças
mortas. E ele copiando a vida. Copiando mais do que o necessário, guardando cabeças em uma pequena caixa de sapatos, sob
sua pequena cama, no seu pequeno quarto, da sua pequena casa.
Guardava cabeças como quem coleciona selos. Colecionava cabeças copiando os assassinos da tevê. E seu prazer em colecioná
-las o mantinha mínimo, em seu emprego digno, copiando a vida
por 10 centavos.
48
22
A quinta
rodada
(…)
—E
ntão, doutor, eu vim aqui porque nosso namoro anda muito conturbado.
— Sim. Prossiga…
(…)
— Aí, quando nós reatamos ele veio com essas ideias malucas.
— E a senhora?
— Eu fui topando, né… Tudo pra tentar salvar nosso relacionamento.
— Humm…
— Primeiro ele veio com esse papo de axilas… Até aí, tudo bem. Só que
depois ele me pediu pra eu não depilar mais.
— E você?
— Não depilei. E enquanto meus pelos cresciam, ele lambia compulsivamente
o suor enquanto se masturbava. Pediu até pra eu parar de usar desodorante.
Veja só o senhor.
(…)
— A coisa foi ficando estranha, mas eu fui deixando. Ele ficava tão excitado.
Lambia sem se importar em engolir alguns pentelhos. Com uma mão segurava
meu braço para cima e com a outra acariciava o pinto.
— Mas... Como a senhora procedeu?
— Então, doutor… É que com o tempo, eu fui gostando daquilo. Vê-lo ali, ensandecido, feito um
gato com fome, engolindo suor e saliva enquanto falava absurdos… Isso começou a
me excitar.
(…)
— Logo, só se masturbar não dava conta
do apetite dele. Ele colocou o treco dele debaixo do meus braço e começou a guinchar
de tanto tesão, enquanto eu apenas olhava,
excitadíssima.
— E qual é o problema disso tudo? Nunca
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ouviu dizer que “entre quatro paredes vale tudo”?
— Ouvi, doutor… Mas quando eu falei que era minha vez e saquei o pau pra
fora e pedi para foder o sovaco dele, ele fugiu.
— Humm…
— Doutor, tudo aqui é sigiloso, né?
Fez um sinal para que o garçom se aproximasse.
— Aí eu disse que “ela” poderia ficar despreocupada, pois o sigilo
da profissão fazia da minha boca um túmulo. Doideira, né?
— Doideira mesmo. Isso faz quanto tempo?
— Foi um pouco antes de eu vir aqui pro bar. Aliás, garçom, a
sexta rodada dessa turma aqui é por minha conta!
50
23
Entalhes
É
o fim. A duras custas a vida conseguiu calar o poeta. Prostituta. Vendeu-se barato para alguns quaisquer sem valor.
Falo da vida, não das mulheres que se tornaram musas das
minhas poesias. Ironicamente, ambas me trouxeram até aqui,
onde finalmente descansarão de sua revolta.
Conhecemos o topo — elas e eu — mas não antes de beijar a
lama do fundo do poço de alguém, cujos amores beberam até
restar apenas a gota salobra do orgulho próprio.
A primeira decepção foi com quem me entregou a caneta, ideias
e um papel pardo. Ali nasceram os primeiros rabiscos da minha
jornada ao auge. Uma, duas, dez… centenas de páginas rasgavam meu peito pedindo passagem, e o monstro ganhava vida em
meio à morte. Soturno, taciturno, sombrio em meio à tempestade
de dor e pranto nasceu um livro, e outro, e outro. Logo, o que era
uma ferida purulenta, aberta e pulsante, tornou-se uma queloide
insignificante. Mesmo assim escrevia.
Forjei a ferro e fogo mais dor e pranto. Conheci a luxúria de uma celebridade. Fãs
surgiam pedindo autógrafos com o
sangue de seus próprios pulsos. O dinheiro surgiu acompanhado dos vícios, que por sua vez me apresentou
a elas, as mulheres. Excitadas pelo
oculto, vinham com braços e pernas
vorazes para provar um homem outrora quase morto, agora famoso e,
acima de tudo, rico.
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Escrevia inspirado na bebida, nas mulheres pelas quais me apaixonara e que bêbado perdera. Escrevia como quem pendura a
alma no armário: completamente nu, porém irreconhecível. Era
movido pela ira, para todos os lados e sem direção. Preso em uma
lemniscata rumo à solidão. Dinheiro, bebida, mulheres, decepção, dor, letras e mais do mesmo, novamente, mas ainda assim
escrevi. Até um dia conhecer aquela que romperia o ciclo.
Larguei mão de mim, da dor, do vício, das letras. Amei e acreditei
ter sido amado por ela. Ela que me calou para que outras não me
encontrassem e ameaçassem seu (meu) dinheiro, vindo das letras,
da dor e do vício. Ela, que armou minha morte, trancou minhas
letras nesse infinito de nada, para ficar com as reservas de uma
vida de textos sádicos, masoquistas e autodestrutivos. Contudo,
não me calou.
Algum dia, dentro de alguns anos, alguém sentirá falta deste que
vos escreve, o qual vos escrevia como um louco, cego e bêbado.
Este alguém exumará algo que não será mais eu, e encontrará a
voz das letras a gritar o nome daquela, para só então se calarem
como me calarei agora. Falta-me ar, unhas e espaço na tampa
deste caixão, mas as letras nunca me faltarão.
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24
Mentira
minha
V
ocê não vai acreditar no que me aconteceu outro dia.
Lembra-se daquela tatuagem que sempre tive vontade de
fazer? Pois é. Arrumei tempo em meio aos estudos, tomei
coragem e finalmente fui concretizar este sonho. Pesquisei preços,
traços e antecedentes de alguns estúdios que me indicaram, escolhi um, marquei hora e fui.
Cheguei lá um pouco adiantado, e precisei me sentar na sala de
espera. Estava me borrando de medo, mas me acalmei quando
percebi que não era o único que faria uma tatuagem naquele dia.
Sentadas ao meu lado havia duas moças, provavelmente menores de idade, escolhendo qual desenho selaria aquela amizade.
Pelo que entendi, elas estavam em dúvida sobre se tatuavam um
morango ou uma cereja. Mais ao fundo um cara mal encarado,
cheio de tatuagens. Não fazia ideia de onde ele faria o desenho,
pois não tinha mais espaço para ser tatuado — pelo menos eu
acho. Até aí nada de mais. Passeei um pouco mais com o olhar
pela sala, reparei na pintura das paredes, nos quadros e
em um vulto que surgiu no canto mais escuro do
estúdio e veio em minha direção.
Era um senhor de idade, daqueles
com rosto bem familiar, cabelos bem
branquinhos e olhar preocupado.
Chegou e se sentou bem próximo,
olhou para mim e puxou assunto,
como todo senhor de idade faz em
filas e salas de espera.
— Não gosto muito deste lugar. E
você? — Me perguntou num tom de
53
voz amigável.
— O lugar é estranho, mas não que não goste.
— Não gosto porque me lembro da dor que senti com minha
primeira tatuagem.
— Poxa. Doeu muito?
— Doeu — respondeu olhando bem dentro dos meus olhos, fazendo uma pausa dramática. — Doeu muito.
— Assim o senhor me deixa assustado. Justamente hoje farei minha primeira tatuagem.
— Eu sei. Por isso vim até aqui.
A conversa começou a ficar estanha nesse ponto. Surpreendentemente estranha, a ponto de me deixar confuso.
— O que o senhor quer dizer?
— Não me chame de senhor. Pode me chamar de você!
— Tá bom! O que você quer dizer?
— O que VOCÊ quer dizer é que não deve fazer esta tatuagem.
— Como assim? Eu nem te conheço — exclamei exaltado —, por
que te daria ouvidos?
— Você não me conhece, mas eu te conheço há muito tempo,
Alberto. Mais tempo do que você poderia imaginar.
— Como é que o SENHOR sabe meu nome? Por acaso está me
seguindo?
De pé, com o dedo apontado para ele, prossegui com minha raiva
o mais educado possível para não assustar as pessoas que estavam
na sala.
— Quem é o senhor, afinal? — Terminei a frase aos berros, a
ponto de perceber que até o cara mal encarado no canto da sala
se assustou.
— Alberto. Muito prazer! — Estendeu a mão como se eu não
tivesse acabado de gritar com ele. — Vim aqui para te convencer
de não fazer essa tatuagem ridícula.
O cara também se chamava Alberto. Uma coincidência assustadora. O tatuador chamou o cara do fundo da sala, que passou
por nós nos encarando, como se fôssemos aberrações de circo. As
54
meninas levantaram-se em silêncio e dirigiram-se para a porta da
rua, deixando apenas o tal de Alberto na sala.
Quando o cumprimentei senti um estranho calafrio na coluna.
Encarei seus óculos. Ele encarou os meus. Ele era apenas um pouco mais baixo que eu, usava roupas estranhas que revelavam sua
barriga saliente. Bem mais saliente do que a minha. Na verdade
ele possuía um ar extremamente simpático. Era uma pena estar
velho e delirante.
— É meu xará, então? Que interessante, mas isso não te dá o
direito de interferir na minha vida.
— Sua vida? Sente-se, por favor. Precisamos conversar e é melhor
que você esteja sentado para ouvir este velho homem.
Relutante me sentei, respirei fundo e ofereci meus ouvidos para
aquele cara maluco, que disparou a falar sandices absurdas.
— Melhor ir direto ao ponto — encheu os pulmões de ar e prosseguiu. — Eu sou você e vim do futuro para impedir que faça esta
tatuagem — ergueu a manga esquerda da camisa e mostrou uma
tatuagem já acinzentada.
— Cara, você está louco! Quer me convencer que veio do futuro?
— Gargalhava. — Olha, eu até poderia acreditar no senhor, mas
vim aqui para tatuar o nome da minha namorada, não uma frase
tão estranha quando a sua.
— Você não é o Alberto, estudante de física, 25 anos, mora com
os pais? — Imediatamente parei de gargalhar.
— Assim você me assusta. Que tipo de lunático é você? Vou ligar
para a polícia!
— Não precisa fazer isso, Alberto — agarrou minhas mãos com
força —, eu sou você! Juro!
O mal encarado saiu da sala de tatuagem nesse momento, exatamente como entrou, só que andando de maneira estranha.
— Alberto! — Chamou o tatuador.
— Já vou — respondi.
— É, pelo visto não conseguirei te impedir de fazer isso — resmungou o velho enquanto se levantava e partia rumo ao canto de
onde veio. — Mas aceite minha dica. Acho melhor não tatuar o
55
nome da sua namorada, pois vai se arrepender.
— Eu faço o que bem entender, velho mentiroso.
Depois disso dei de ombros e fui para a sessão. Antes de começar,
o tatuador perguntou se eu tinha certeza de que queria marcar
o nome da minha namorada. Meditei por alguns segundos e resolvi mudar de ideia, o que foi uma sábia decisão, já que depois
descobri que ela me traía com um cara mal encarado, cheio de
tatuagens.
Como estava em dúvida sobre o que tatuar, resolvi brincar com
aquela situação que havia presenciado e tatuei a mesma frase que
o velho tinha tatuada no braço: “Num futuro distante voltarei ao
passado e não me deixarei tatuar”.
Pode acreditar em mim. Eu não minto!
56
25
No relicário
N
ascida para guardar segredos, certamente não foi para este
autor que se abriu. Antes, abriu-se a mente dele para revelar o segredo desta. Segredo não, já que aqui história
nenhuma foi literalmente proferida por seus lábios, apenas imaginada ao som solitário de um Lago dos Cisnes abatido. Falo dela,
a quem batizarei Sofia.
O coração dessa bailarina teve uma única dona, chamada Madelleine — apenas mais um fruto desta imaginação, mas que carrega consigo o significado da existência de Sofia.
Madelleine era uma rica e jovem senhora, muito bem sucedida
com os negócios que havia herdado de seu pai, o senhor Jean
Pierre: fazendas, confecções, hotéis. Administrava como se fossem seus desde sempre, com o carinho e atenção que seu pai deixara como um verdadeiro legado. Foi ele quem as apresentou
em um dia comum da na infância da garota. Pierre foi ao encontro de Madelleine, que estava no campo próximo à Grane
Ferme. O sol ornava a paisagem bucólica daquelas paradas, e foi seu brilho que revelou nas
mãos do pai uma pequena joia familiar
aos olhos da garota que não precisou
de nenhuma palavra para entender o
significado daquele gesto.
O pingente em forma de anjo, delicadamente harmonizado em uma
fina corrente dourada, pertencia à
mãe de Madelleine, que acabara de
falecer vítima de tuberculose. Sofia
chegou no dia seguinte, também
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trazida por Pierre, em meio ao luto da mais nova e fiel amiga,
tornando-se a responsável por guardar tão bela joia e, ao mesmo
tempo, acalentar o pequeno coração da órfã com seu ballet todas
as vezes que a menina se dirigia ao quarto onde a bailarina ficava,
e ali conseguir minorar a saudade da mãe que se fora.
Os anos passaram e com eles a saudade. Sofia esperava ansiosa
pelas visitas de Madelleine, cada vez menos frequentes. Ficava
deitada, poupando forças para mais uma dança, por mais breve que fosse. E foi exatamente dessa maneira por muito tempo.
Com o crescimento da menina, Sofia teve a oportunidade de se
levantar para dançar muitas vezes, mas em praticamente todas
elas a música mal chegava a começar, Madelleine atirava alguma
joia qualquer aos pés da amiga e rapidamente partia, deixando
a pobre bailarina à mercê da escuridão, contemplando brincos e
braceletes presenteados por rapazes interessados na mão da garota que, a esta altura, tornara-se na mulher dedicada aos negócios
do pai, também falecido.
As visitas esporádicas terminaram quando finalmente o coração
da moça fora ganho por um rapaz de boa família. Agora, Madelleine visitava a amiga com menos frequência, mas por mais tempo. Enquanto escolhia as joias para ir às festas da alta classe, Sofia
dançava. Dançava enquanto escutava os lamentos da moça que
envelhecia lentamente, mas não perdia o passo. Madelleine tornou-se mãe pouco tempo depois do casamento. Para comemorar,
Sofia ofertou à amiga a joia que pertencera à sua mãe. Ela tomou
o colar nas mãos, olhou com desprezo e o jogou contra o rosto de
Sofia, dizendo não compreender o motivo de ela ter partido tão
cedo, sem ensinar-lhe a maternidade. Nessa explosão de raiva,
Sofia foi ao chão, levando consigo brincos, tiaras, gargantilhas e
com isso não mais dançou. Madelleine recolheu as joias enquanto
chorava. O pingente que sua mãe lhe dera havia se perdido em
meio aos tacos da velha casa e a bailarina dedicada se quebrou na
queda. Sofia aceitou as desculpas da amiga e continuou a guardar
com diligência os pertences de Madelleine. Seu perdão foi tão
profundo que às vezes ainda era possível escutar o triste Lago dos
Cisnes, após algumas voltas no velho mecanismo da caixinha.
58
Sofia viu a menina virar mulher, e a mulher virar mãe. Viu a vida
levar a beleza da jovem que não perdeu a vaidade. E viu a morte
levar a cabo sua amizade. Os filhos de Madelleine, depois que
venderam tudo que estava à vista, não demoraram a encontrar
Sofia, que até então dormia sob o tampo dourado da caixa de
madeira. Eles levaram tudo que um dia pertenceu a ela. Venderam tudo, inclusive Sofia, que hoje reside na prateleira de um
antiquário, num belíssimo balé estático, encantadora aos olhos
deste autor que passeava na calçada quando decifrou o segredo
de sua triste melodia.
59
26
Avenida
Paraíso
N
asceu mais um dia chuvoso
diante dos meus olhos. Amanhecemos juntos; ou melhor, não
dormimos. Agarrado às chaves do carro
me deitei e ainda agarrado a elas me levantei, sem fazer barulho algum para não ser notado. E não fui.
Cinco horas da manhã. Não faço questão de abrir o guarda-chuva para alcançar a porta do carro estacionado em frente à casa
onde moramos eu, minha esposa e meu filho. Uma casa pequena,
desconfortável, comprada às pressas devido a uma gravidez prematura e convenções sociais ultrapassadas, as quais apenas aceitei
sem reação. Nunca soube dizer se ali habitava o amor até que em
nove meses algo mudou e amei. Amei até o dia em que a criação
se voltou contra o criador. Não repreendi. Afinal, quem seria eu
para repreender? Uma transa de três minutos! Um mero doador
de esperma que o sustenta desde os óvulos por pura obrigação!
Ligo o carro e começo a me dirigir ao local que preparei durante a
noite insone. Lembro-me de todos os anos que atravessei a cidade
dentro de um ônibus lotado para chegar ao serviço. Um trabalho
medíocre, com um chefe medíocre, digno de pena. Quantas vezes
fui humilhado perante os colegas por erros que não eram meus?
Quantos perdigotos da boca imunda daquele homem fui obrigado a aguentar em silêncio, de cabeça baixa, assentindo como um
cão miserável? Até hoje estou lá e cada dia que passa percebo que
o único digno de pena naquele local era eu.
Chego ao lugar e contemplo ao longe meu destino. Arranco ao
sinal vermelho. Não tenho nada a perder. Já perdi demais nessa
60
vida. Perdi oportunidades únicas, só minhas de felicidade. As garotas que não cantei na escola. Os flertes que não correspondi. Os
olhares que deixei de trocar por medo de encarar a realidade da
minha infelicidade amorosa. As chances de dizer não. As coisas
que deixei de fazer para garantir o futuro de uma família condenada a um fracasso iminente e complacente. As viagens que não
fiz. Os sonhos que não realizei. Nunca tive nada que pudesse ser
perdido e, se algum dia eu tive, com certeza perdi.
A cento e cinquenta quilômetros por hora viro um gigante! Que
o mundo se foda! Que minha família se foda. Que toda a benevolência divina sobre essa carcaça se exploda! Logo tudo estará
acabado. Chega de tolerância com aqueles que me desrespeitaram em todos esses quarenta anos de uma vida mal vivida. Nunca
mais terei que olhar nos olhos de uma mulher que não me ama,
nem de um filho que me enxerga como uma árvore de dinheiro
que se aduba com merda. Adeus empreguinho de quinta categoria.
Adeus vidinha insossa!
Acelero. Sinto minhas mãos cravarem no volante. Suo frio. Minha visão periférica tornou-se um borrão. A velocidade revelouse uma metáfora aos meus olhos. Sempre prestei tanta atenção
nos alvos que deixei de admirar os caminhos. Assim, tão rápido,
vejo que as imperfeições do asfalto não criam mais do que uma
leve vibração nos pedais. Vejo o muro à minha frente, todo meu.
Gostaria de poder continuar, mas algo impeliu com que retirasse o pé do acelerador e lentamente pressionasse o freio. Paro a
poucos metros dele e contemplo sua imponência perante meu
caminho.
Não tenho coragem de continuar.
Volto para casa dirigindo com prudência, certo de que chegando
lá ninguém terá dado falta de mim e a única coisa que cobrarão
é uma explicação para as multas de trânsito que tomo todos os
meses, na mesma rua, pelos mesmos cento e cinquenta por hora
de sempre.
61
27
Uma questão
de refração
S
empre gostei de me sentar naqueles assentos mais altos dos
ônibus. Às vezes até acreditava
ser algum tipo de infantilidade da minha
parte este costume, já que o carrego desde
pequeno, pois sempre fui obrigado a pegar condução para ir à escola primária.
Certo dia, voltando para casa após uma estressante jornada de
trabalho, tomei o velho ônibus e, como era de esperar, sentei-me
no lugar favorito. Até aí nada fora do habitual, a não ser pela
cena que estava para se desenrolar. Em pontos diferentes tomaram o ônibus uma moça loira, que se sentou na segunda fileira
logo após a catraca, um rapaz alto e bem magro, que não chegou
a cruzá-la, permanecendo em pé próximo ao banco reservado
aos idosos, e um segundo rapaz, que ultrapassou a roleta e sentou-se na fileira atrás da moça. Como disse, eles entraram em
paradas diferentes, espaçadas o suficiente para que nenhum deles
se tocasse antes de alcançarem seus lugares.
A moça era bonita, muito bem vestida e carregada de livros escolares. Por meio do reflexo do vidro que separa a condução em
pagantes e não pagantes era possível, dependendo da qualidade
da luz que vinha do exterior, que eu visse o rosto dela e, por sua
vez, ela era capaz de enxergar o resto da condução como num
espelho retrovisor, e era exatamente isso que ela estava fazendo.
Com olhares atarantados, era nítido que ela esboçava sorrisos
para o rapaz que se sentou atrás dela. Ele, por sua vez, não era
lá um Don Juan, mas tinha seu carisma. Contudo, de tão absorto
que estava com o movimento da rua, não dava a mínima para os
esforços dela. Em compensação, e por um acaso da refração do
62
vidro, o moço que ficou na parte da frente do ônibus acreditava
piamente que as investidas dela eram na direção dele. Ele não
estava errado. Errado estava o ponto de vista. Esse rapaz era feio,
assim mesmo, sem rodeios. Tinha o cabelo nos ombros, um ar
de pseudocomunista e barba por fazer (lembrando que “barba
por fazer” e “pseudocomunistas” são uma grande redundância).
Em todo caso, ele resolveu ser recíproco com a moça, mandando
piscadelas e sorrisinhos, mas ela não o viu. Quem o enxergou foi
o rapaz sentado atrás dela, e, para minha completa surpresa, ele
iniciou um flerte com o rapaz depois do vidro.
Permaneceram assim durante toda a viagem. Ela olhava o de
trás, que olhava o da frente, que olhava para ela. O ônibus sacudia muito, havia som de conversas misturados ao de celulares que
tocavam e os barulhos comuns de um dia de trânsito. A distração
era tamanha que dificilmente mais alguém teve a oportunidade
de se deliciar com essa confusão. Cruzaram os olhares uma última vez e desceram, cada um em seu ponto, sem imaginar que
amaram-se mutuamente e nem ao menos puderam se ver.
63
28
Cincão
A
bola rolou, atravessou as traves feitas com paralelepípedos,
cruzou a calçada e só parou por
completo dentro do motor de um Chevette 75 amarelo. Terminava enfim o verão dos garotos em uma periferia qualquer da
zona sul, onde todos os meninos serão jogadores
profissionais de futebol. Vestiam as camisetas dos seus respectivos
times assim que acordavam, isso quando já não dormiam com
elas, esperando o Sol nascer e o sono preguiçoso das férias ir embora, para então correr ao campinho improvisado e ali passar
o dia. Fazia muito calor naquele ano. Tanto que praticamente
todos os meninos preferiam permanecer carecas a fim de amenizar a situação, ou pelo menos o calor era uma boa desculpa para
que suas mães não gastassem dinheiro com os cortes de cabelo
da moda, inspirados nos jogadores favoritos de seus filhos. Cinco
reais e pronto, todo aquele cabelo desnecessário estava no chão.
E foi assim durante um longo período na vida daquelas crianças
e cabeleireiros que, como baratas, multiplicavam-se no calor. Uns
vinham, abriam seus salões, ficavam duas ou três temporadas e
logo partiam sem grandes explicações.
As crianças também mudavam ano após ano. Uns iam embora,
outros apenas mudavam, cresciam, ganhavam novas formas, cores, cicatrizes. Viravam homens devido à idade ou necessidade. E
é exatamente nessa fase de transição que se encontra o grupinho
que acabara de perder a bola para o melhor carro da região. E
sem bola falavam de mulheres, contavam vantagens e mentiras,
disputando quem mijava mais alto, mais longe, o melhor bigode, o mais rápido, entre outras coisas que os animais fazem para
disputar território e tornarem-se os alfas da região; se é que al64
gum dia conhecerão alguma letra do alfabeto grego. Chegada a
noite, os que podiam ficar na rua iam à banca de jornal do velho
Crispim, onde com apenas uma moedinha conseguiam comprar
uma boa revista de sacanagem. Sim, revezavam-se. E de maneira
muito organizada e respeitosa, o que não vem ao caso. Apenas
aproveite a cadeira privilegiada sobre a qual este autor permite
que você se sente para apreciar a vida pacata desses meninos que
crescem adubados com vontades e hormônios.
As primeiras folhas que caíam das poucas árvores do bairro eram
o sinal de que dentro de alguns dias os cabelos haveriam de se
tornar vastos novamente. Mas isto não foi uma regra entre os do
grupo. Lucas manteve-se careca, enquanto os demais iam revelando sua natureza étnica com penteados black, tranças e descolorantes. Fato é que isto não passou despercebido, e tão logo um
deles apontou, todos começaram a inquirir os motivos da drástica
mudança de hábitos, pois Lucas era o que tinha passado mais
vezes na fila do cabelo enquanto Deus distribuía as características
para cada um deles. Vasta cabeleira, herança do pai. Contudo,
ele foi obrigado a se abrir, quase com a mesma dificuldade que
as revistinhas do Crispim ofereciam para serem abertas após as
férias. E antes que o leitor ache que se trata de um exagero da
minha parte o rapaz ser obrigado a dar satisfações sobre o cabelo, saiba que nessa idade e nessas condições ele não tinha outra
opção a não ser falar seus motivos, ou viraria alvo de brincadeiras
até as próximas férias ou mais. Coisa de moleques.
Atentos, todos permaneceram calados enquanto ouviam o moço
falar. Tratava-se de um novo salão na rua detrás do campinho.
Não exatamente o salão em si, mas a dona dele. Enquanto Lucas
a descrevia, era possível observar que alguns deles ficavam alvoroçados dentro de seus bermudões de náilon e calças de moletom,
sendo que um deles teve que se ausentar, voltando após alguns
minutos com cara de quem viu passarinho listrado. Seu nome era
Odete e, como descreveria Caetano, era dona das mais divinas
tetas que o bairro já vira. Mais pra gorda do que pra gostosa, mas
a imaginação dos garotos era bem mais eficaz do que qualquer
dieta ou cirurgia, fazendo-a uma deusa, uma Vênus, que por cinco reais fazia seu show, muito bem detalhado por Lucas logo que
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seu amigo voltou da segunda sessão solitária de amor-próprio.
Ao sentar-se pela primeira vez naquela cadeira, Lucas não fazia
ideia do que viria a acontecer. Aliás, fazia, só não esperava que
fosse realmente acontecer. Odete o cobriu com uma capa preta
que cheirava a amaciante, coisa rara por aquelas bandas; então
sacou uma máquina de cortar cabelo que estava espetada na tomada e iniciou os trabalhos. Indo e vindo, ela era meticulosa em
sua função, dando atenção a cada uma das saliências do couro cabeludo do menino, sem se dar conta de que seu profundo decote
hipnotizava o cliente, que agradecia silenciosamente a Deus pela
descoberta que não haveria de acabar por aí. Com as mãos fixas
nos braços da cadeira, Lucas percebeu que estava a poucos centímetros das partes baixas da mulher. Seu sistema nervoso estava
quase entrando em colapso devido ao choque térmico causado
pelo suor frio da situação sob o calor insuportável daquela capa
plástica. Estava enfim explicado o motivo pelo qual Lucas havia
deixado de participar das vaquinhas com a galera. Tinha que
economizar dinheiro e fôlego para os cortes semanais.
Era como um filme pornô de quinta. Tudo meticulosamente programado e sem grandes mudanças: cadeira, capa, corte, peitos e
quase, quase um contato de primeiro grau. E foi assim na segunda, terceira e quarta semana de férias, até que na quinta semana
algo fora do script aconteceu, fazendo com que tudo mudasse.
Odete devia estar pronta para algum baile. Mais cheirosa do que
nunca, com roupas mais justas do que a vontade divina, com direito a calça branca colada e uma calcinha teimosamente evidente. Ela estava mais distraída do que das outras vezes, ansiosa para
a noite, talvez, e foi se aproximando do garoto até que encostou
na sua mão. Em choque, o garoto não sabia o que fazer e acabou
permanecendo estático, sentindo-a roçar em seus dedos imaginativos. Terminado o corte, Lucas reparou que o olhar da cabeleireira mudara para ele e, voltando na semana seguinte, mais uma
vez, uma de suas mãos era acariciada enquanto a outra, escondida pela capa, escorregava vagarosamente para dentro da calça.
Isso tornou a ser descrito por mais duas vezes antes que ele terminasse de narrar suas aventuras capilares, prometendo que voltaria
66
no dia seguinte para visitar Odete antes que as férias acabassem.
Luquinhas não voltou ao grupinho no dia seguinte, tampouco na
semana que se passou e, quando procurado, não encontraram
vestígios dele nem de sua família. Os vizinhos recusaram-se a dar
o paradeiro deles; simplesmente fechavam as portas, deixando os
amigos do rapaz em frente aos barracos, a ver navios. Na comunidade não se abre a boca para dar pistas sobre ninguém.
Os boatos logo correram soltos pela escola com o retorno do ano
letivo. Um dos seus amigos foi até o salão da Odete para “obter
informações”, porém nem tudo era como o descrito na história.
Pela vidraça viu a morena atrás do balcão, fazendo alguma coisa qualquer e logo a reconheceu. As cadeiras eram as mesmas
descritas por Lucas, mas as capas que esconderam as mãos do
menino em vez de pretas eram transparentes. Indiscretamente
translúcidas. Na fachada uma placa que não havia sido citada,
simples, escrita a caneta dizia: “Corto cabelo e pinto”. Nenhum
dos garotos voltaria ao local.
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29
=T3:D10
P
reciso de um café.
Control, alt e del com apenas
uma das mãos. Bloqueio.
Arrasto a cadeira, levanto-me, sigo em direção ao café.
No caminho vejo rostos conhecidos, aceno com
a cabeça, digo “opa”, movo o lábio para alguns e só.
Marli trabalha iluminada pelo monitor.
Belos seios tem Marli.
Marli olha para minha gravata, mas volta ao monitor.
Tento desamassá-la com as mãos.
Em vão.
Quem liga?
Faz calor e minhas mangas curtas não evitam o suor.
Vejo meu chefe se aproximar, tomo um papel qualquer da impressora e analiso com importância.
Aceno com a cabeça.
“Trabalho de Marketing”.
Estagiário.
Tomo meu rumo.
Café.
Faz calor e o café não faz sentido.
Tomo mesmo assim.
Olho através da janela.
Prédio, prédio, prédio.
Janelas.
Linhas horizontais, verticais.
Células.
A vida dos outros dentro de uma tabela.
Uns digitam, outros conversam.
Alguns fingem ler com importância certos papéis, enquanto seus
68
chefes passam.
Levo a caneca aos lábios.
O vapor embaça meus óculos.
Limpo-o com a gravata e o coloco novamente.
Então vejo em uma janela alguém que me vê nesta janela.
Ele também toma café.
Coluna T, linha 3.
Naquela célula, do outro lado da avenida, a vida acontecendo
dentro de uma tabela.
Aceno com a cabeça. Digo “opa”.
Sou retribuído.
Igual, se…
Saio da janela.
Não há nada interessante lá fora.
Largo a caneca na pia.
Belos peitos tem Marli.
Volto às minhas células.
Coluna D, linha 10.
69
Viés » Garotos - Cazuza
Coisa do destino » Sinceramente - Cachorro Grande
Quem te viu » Santa Chuva - Los Hermanos
Ao acordar dos trilhos » Sonhos - Peninha
Destinataire ne se trouve pas » Outono no Rio - Ed Motta
De repente fim » O nosso amor a gente inventa - Cazuza
C’est la vie! » Coração - Aviões do Forró (Fagner)
Do outro lado » A sua - Marisa Monte
Turma de 1936 » Vou levar - Lobão
Quarta de cinzas » Retalhos de Cetim - Benito de Paula
Doce amor » Formato Mínimo - Skank
Bem guardado » Pra você guardei o amor - Nando Reis
Sr. Scotch » A história de Lily Braun - Chico Buarque
Em meio segundo » Alma Nova - Zeca Baleiro
Nos jardim dos otro » Prato de Flores - Nação Zumbi
Dorme » Tive Sim - Cartola
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Contos inspirados em músicas
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Viés
“C
ara, que gata!”, pensava eu silenciosamente, enquanto admirava
seu andar dentro de um vestido
fino que marcava suas curvas, montada sobre saltos, de unhas e lábios pintados,
vermelhos, prontos para morder ou arranhar
como fera qualquer homem incauto, distraído ou besta por não
ter reparado na presença de tão bela mulher. O vinco de suas
panturrilhas, o balançar firme das nádegas, coxas que davam alô
através de uma fenda quase tão profunda quanto o decote, quase
revelando mais do que deveriam aos olhos, mas suficiente para
uma imaginação cheia de testosterona e desejosa por ter nos braços, na cama, coisa mais sensual como ela, que, antes de dobrar
a esquina, prendia seus longos cabelos de mechas douradas e colocava grandes óculos escuros. O sol fustigava o dia, fazendo-lhe
o suor escorrer desde a nuca, entrepassando por pelos loiros e
descendo brincalhão pelas costas até ser detido pela calcinha rendada, pequena, que amparava suas naturezas.
“Que calor!”, pensava ela, enquanto andava atrasada para o trabalho, pensando na vida. Passava sempre pelos mesmos lugares, reconhecendo inúmeros rostos familiares que, de vitrine em vitrine, iam
aparecendo para observá-la passar. Um velho, um moço de pasta
na mão e um rapaz em especial. Este, vestia-se apressadamente todas as manhãs, mesmo sem compromisso algum, com bermuda de
náilon, camiseta de surfe e um boné de crochê. De porte físico quase
tísico, os ossos do seu tórax saltavam para frente, frutos de uma forte
bronquite infantil. Mãos e pés enormes, braços que alcançavam os
joelhos e um bigode escuro, ralo e bem mal ajambrado. “Que calor”,
pensava ela, e eu, após vê-la sumir na próxima rua, encarei-me no
reflexo do vidro mais próximo pensando: “Maldita puberdade!”.
72
31
Coisa do
destino
N
unca fui humilde, e posso garantir que melhor partido do que eu você não encontra por aí. Sabem quem
eu sou? O protagonista de todos os papéis de freegels que
você, desesperada, comprava quando criança, com frases que
de tão doces eram mais meladas do que o próprio papel daquela porcaria de bala. Sou tipo o príncipe das histórias infantis e
dos contos de fadas que sua mãe lia aos pés da sua cama. Sério, parabéns! Você acertou no pulo quando me encontrou, por
mais que “acertar no pulo” não faça sentido algum para mim.
Agradeça ao destino por me fazer reparar no seu gingado, naquela baladinha cult. E sinta-se privilegiada com estas palavras, pois
não é pra qualquer uma que me declaro assim, tão sinceramente,
e nem tão tarde como é agora. Não faço ideia por que estou te
falando isso. Acho que o destino também brincou comigo, quem
sabe? Quem sabe você também seja a nora que minha mãe sonhava? Topa ir perguntar pra ela? Queria muito te apresentar.
Espero que ela não pegue o velho álbum de família, porque sempre acaba me envergonhando com histórias bobas de quando eu nem era tão legal
assim, nem tão humilde.
73
32
Quem
te viu
D
esde pequeno, desde que me
entendo por gente ela estava lá,
me entretendo e me enchendo
de inutilidades. Às vezes acho que aquela
caixa mágica fez as vias de babá para que
minha mãe pudesse tomar conta de casa. Meu
padrasto ficava puto quando faltava feijão, mas só percebi isso
quando me dei conta de que noite sem feijão era manhã com
mamãe de olho roxo. O que não a impedia de amar mais a ele
do que a mim.
Quanto percebi que era dono da minha própria vida fugi sem
saber para onde. Vaguei a noite inteira e acabei por me sentar
num degrau qualquer. Logo em frente, viva e implacável em suas
muitas polegadas, um televisor de última geração reprisava um
programa pululante, cheio de orientais, incoerente com a placidez da noite. Muito linda noite, emoldurada num sereno grosso
que caía sobre os carros, cada gota reluzindo as cores de uma
tela. Fiquei ali, mas logo voltei para casa. Ninguém sentiu minha
falta. Nunca fui feijão.
A gente acaba crescendo uma hora, torcendo para fazer as coisas
de maneira diferente. E foi assim. Cresci e jurei fazer diferente,
amar de verdade, sem vaidades, sem medos e sem sofrimento.
Sozinho, consegui emprego, aluguei um quarto com banheiro e
comprei uma TV. Todos são bonitos e felizes dentro dela, não é
mesmo? Queria estar lá, ou com alguém que já estivera. E aconteceu que a vi. Muito linda. Mais linda que a atriz mais linda.
Chovia e nos escondemos sob a mesma marquise. “Chuvinha
chata”, e daquele momento em diante passamos a nos conversar
74
todos os dias. Depois todas as noites. Quando percebi estava comprando uma cama de casal, entre outras peças da mobília. Quem
diria... Cortinas! A verdade é que ela decorou bem mais do que
meu apartamento. Fez do meu coração um lugar habitável como
sempre sonhei em ter, mesmo sem saber o que era isso, pois os
exemplos das novelas não deixam claro o que se passa verdadeiramente no peito das personagens.
Pena que toda novela tem um final, e o meu foi assim, sem graça.
Sem casórios e sem brindes às margens de um cenário qualquer.
Ela se foi deixando em mim apenas vontade de chorar, correndo
para os braços de um coadjuvante que mal cheguei a conhecer.
Ela se foi e levou a TV, alegando ser dela. Não senti sua falta por
algumas semanas, mas a vida aqui do lado de fora é muito chata
e sem brilho.
Sozinho depois de tanto tempo me lembrei da velha casa da minha mãe, hoje viúva pela segunda vez, graças a Deus. Fui visitá-la, tomei café, resgatei minha antiga babá e parti com ela sob
os braços, mas por algum motivo ela não pega na minha solidão, somente chuvisca, dia e noite, me fazendo lembrar da antiga
marquise e de outras reprises.
75
33
Ao acordar
dos trilhos
F
az frio. Acordo, olho para fora e
não reconheço meu reflexo nem
as silhuetas que apressadamente
recolhem as malas.
A respiração embaçou o vidro carinhoso que
me cedeu ombro durante a viagem.
Meus pés ainda dormem, como tudo ao redor.
O estacato das rodas do trem nos embalou até aqui.
Nessa letargia pouco a pouco recobro os sentidos, escuto um apito distante, um ronronar metálico ao longe. Vejo que do outro
lado do vidro as coisas tomam forma, mas falta-me coragem para
levantar-me; o formigamento toma conta de mim, como quem
diz que ainda é vivo. E permaneço ali, recolhendo meu entendimento sem pressa.
O sol lamenta ao longe seu triste acordar, pintando o vagão com
novas cores, fazendo brilhar as gotas nos vidros, aquecendo um
novo dia.
Quase não me lembro dos meus motivos. Minto. Faço força para
não lembrar.
A vida ganha verdadeira vida através das vidraças. Reflito no reflexo e ainda assim lá fora a vida não para. Vejo que ela continua
apesar da distância, abraçando vazios como se fossem concretos.
Finalmente me percebo aqui, novo como ontem, porém muito
diferente do eu que deixei nas paradas anteriores.
76
Somos dois: eu e estes outros alheios a mim.
Abro minha valise. Duas camisas, alguns trocados e uma fotografia manchada. Aquele já não sou eu. Aquela já não era mais
ela. Trouxe comigo apenas o necessário para me encontrar, assim
como ela fez ao tomar o trem na direção oposta aos meus sentimentos.
Alguém me manda descer e apenas obedeço.
Trilhos vão, trilhos vêm.
Saudade.
Penso em retornar, retomar os planos antigos.
Até teria esperanças para queimar e abastecer a locomotiva para
a viagem de volta, mas decido seguir em frente.
Tudo diz bom dia, menos os trilhos que me trouxeram aqui, pois
tranquilos ainda dormem.
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34
Destinataire ne
se trouve pas
“H
oje é primavera em Paris, e eu
não posso vê-la.”
Trecho de um conto publicitário Faz quatro meses desde a última ponte aérea. As flores já morreram, as folhas hoje forram o chão, e do sotaque que arranhava meus ouvidos não sobrou
resquício. Troquei o frio das noites coloridas na cidade-luz pelo
calor solitário deste apartamento donde lhe escrevo, acariciado
pela cortina que, quando muito, recebe uma leve brisa do mar
e traz vida à minha paisagem cotidiana, tão empoeirada quanto
as velhas flores de plástico que você teimava em colocar sobre a
mesa do café. O som da velha Olivette martela e ecoa nas paredes mofadas as palavras que não têm motivo para existir. E não
existirão até que nasçam do envelope pardo, selado com os poucos trocados que tinha no bolso e com a esperança de ter escrito o
endereço corretamente. Aliás, nem sei se você permanece onde a
deixei. Parti sem lutar pelo seu amor, chorei tantas águas quanto
a velha Veneza, e ainda afundo tão dolorosamente quanto ela a
cada dia que passa. Nos distanciamos de tudo para ficarmos mais
próximos, mas ofusquei a beleza da primavera com o tom pastel
do meu egoísmo e não a vi em Paris. Recluso dentro de mim mal
percebi que o brilho nos olhos dele contagiou os seus e que, a
cada dia que passava, eles ficavam mais próximos. Você o beijou
com tanto gosto que invejei. Invejei a beleza, o sotaque, o arfar da
sua blusa com o desejo de se perder para sempre. Virei as costas
e fui-me embora em farrapos; e só agora, alguns quilos mais leve
em peso e consciência, consigo me manifestar. Já é outono, mas
permaneço de braços abertos caso queira voltar e trazer minha
vida de volta. Eu e o Cristo.
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35
De repente
fim
D
e repente fim. Eu sem ter você, você sem ter a mim, e
esta coisa frágil fica em pedaços no chão, caída como uma
morta que nunca gozou a vida. Ingrata coisa é essa, que
enterra com as patas traseiras os cacos que não podem se defender do destino no fundo de um cesto de esquecimento. Não
há cola que conserte as trincas, nem mãos diligentes o suficiente
para catar os menores fragmentos dos vãos dos tacos. Pedaços
eternamente faltarão, assim como fará falta na estante tão lindo
ornamento. Olhando mais de perto é possível ver a silhueta que o
pó deixou na madeira que envelheceu ao redor da peça de porcelana, deixando evidente uma pequena ilha de novos ares há tanto
escondida sob anos de esquecimento, sendo ela tão valiosa e tão
sensível que nem mesmo com espanador era permitido tocá-la.
O dono chorará sua perda, lembrará o quanto lhe foi caro adquiri-la ou até mesmo da tamanha estima que lhe tinha por ter sido
um presente tão raro, atribuindo-lhe significados inexistentes até
este momento, onde a consciência de tê-la perdido para sempre
vem à tona. Cessarão as lágrimas dentro em pouco, alguma outra velharia tomará o lugar marcado pelas arestas de
algo antes tão belo, e esta nova alegoria logo se
tornará tão velha quanto a anterior, irrelevante até ser derrubada no chão por
uma limpeza desastrada. E as marcas
acumular-se-ão, uma após outra, deixando no centro de todas elas uma
mancha muito menor e mais clara
do que todas juntas, até que ali não
existam mais traços do antigo vaso
presenteado por já não se sabe mais
quem, perdido na completude de
sua total e atual inexistência.
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C’est la vie!
Qualquer semelhança com
a vida real é mera consciência.
E
sta é uma daquelas histórias de amor
clichê que a gente sabe onde vai parar.
O cara não tão bonito, nem tão popular
que se apaixona pela moça mais gata do colégio. Tímido, a única
coisa que consegue fazer é encará-la todos os dias no intervalo
das aulas, enquanto come uma pratada de arroz parabolizado,
feijão e salsichas com molho. Ela não dá bola, continua a comer
sua esfiha com coca-cola, cercada de amigos, sorrisos e invejas.
Ela causa inveja, com certeza. Ele sente inveja dela. Ali, encostado com seus “colegas”, imagina como seria a vida caso fosse
popular. Talvez fosse mais fácil de se aproximar, contar uma piadinha na intenção de encantá-la, como acontecia com as moças
não tão bonitas das mesas ao redor da sua, na sala de aula. Passa
um, dois, três anos. Termina o colegial e o clichê. A moça nunca reparou no amante do outro lado do pátio. Por sua vez, ele
se esqueceu dela. Saiu da escola, arrumou emprego, passou no
vestibular e até arrumou uma namorada, ainda mais bonita do
que sua paixonite adolescente. Nunca conseguiu um beijo, um
abraço, nem uma troca de palavras qualquer. Passou esse período
chato da sua vida arrependendo-se de não ser tão legal, tão bonito e tão simpático quanto os que rondavam aquela moça, que
hoje em dia já não machuca nem faz chorar como antes. O que
ele não sabe é que a vida tratou de cuidar de outros pontos da sua
existência. Num futuro ele será feliz, mas nunca se perdoará por
não ter feito aquela piada na fila da cantina quando ela estava
logo atrás, toda ouvidos, só para ele.
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37
Do outro
lado
P
ra tudo isso digo “foda-se”! Cara, na verdade eu cansei
dessa sua mania idiota de transformar tudo em poesia. A
gente acabou e ponto. Não duvido das coisas que você me
diz, de que me quer bem... Afinal, eu também quero seu bem, e é
por isso que estou te dando este adeus, porque sei que mais para
a frente eu me frustraria e te magoaria. E sendo extremamente
franca, preciso lhe confessar algo. Nós ficamos juntos este tempo
porque você me pegou com a guarda baixa. Tinha acabado um
relacionamento longo, de cinco meses, e você surgiu com suas
doçuras e carinhos. Desculpe-me se te fiz achar que havia amor
nisso tudo, mas isso não está nos meus planos, pelo menos por
enquanto. Você é legal e tal, só que eu quero curtir um pouco,
talvez fazer uma aventura ou sei lá o quê. Tenta ocupar sua cabeça com outras coisas, estudar, fazer aula de guitarra! Adorei
tudo que você compôs pra mim no violão, mas falta rock nas suas
veias, you know? Enfim. Nunca fui muito boa com as palavras.
Desculpe-me pela caligrafia, pois faz anos que não escrevo nada a
caneta. E foi mal pelo “foda-se” no início da página. Até
pensei em rasurar, mas ia ficar uma bosta e eu tô
sem tempo pra reescrever. Outra coisa: não
entendi muito bem a parte que você
escreveu sobre o vento. Espero que
o tempo melhore por aí. Desculpa
qualquer coisa. Bjs! =)
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38
Turma de
1936
C
ada ano que passa parece que
um degrau é acrescentado nesta
escadaria. Apenas parece. Sei que,
na verdade, são os anos fustigando minhas
juntas e devorando meus músculos. Lentamente, um a um, vou descendo para estar com
as pessoas que amo, mesmo que isto os incomode.
Agarrado ao corrimão com toda a firmeza possível, passeio meus
olhos pelas fotografias que forram as paredes. Vou observando o
tempo voltar. No alto da escada vejo muitas crianças de que não
lembro o nome, bisnetos e netos. É a vida sobrepondo o presente
em molduras baratas.
Desço mais um pouco e reconheço filhos, genros e noras. Aliás,
muito mais genros e noras do que meus próprios filhos. Os tempos mudaram, o valor do rolo fotográfico é muito mais baixo hoje
em dia e qualquer motivo é motivo para fotografar. Sempre me
estranhou o fato de as esposas atuais deles não se incomodarem
com o registro de antigos amores. Mas eu até entendo. O que
são fotografias em relação aos negativos estampados no coração?
Enfim...
Passo a passo, pouco a pouco, nessa viagem no tempo começo a
me reencontrar. Crianças abraçadas às minhas pernas, crianças
sentadas no meu colo. Eu só. Eu e minha senhora, ambos com
cabelos brancos que, degrau a degrau, vão tornando às cores originais, os olhos voltam a ficar vivos, as roupas mais estranhas e
as molduras mais bonitas, de tempos em que se valorizavam os
instantes muito mais do que o além.
82
Quase no térreo do sobradinho que construí as cores das fotografias vão se perdendo. Tudo agora é preto e branco. Paro no
tempo, degustando os sorrisos, por mais posados que fossem, e
pessoas que se foram muito antes da minha esposa. Pessoas que
vimos passar e hoje estampam estes primeiros degraus.
Fotografia do colégio. Será que as pessoas deixaram este costume? Não vi nenhuma destas mais acima. Me procuro por alguns
instantes. Encontro-me triste, ao lado da mãe dos meus filhos
que sorri com laço no cabelo. Todos olham para frente, menos
uma garota que chama minha atenção. Ela olha para mim, linda.
Lembro-me de que pensava nela enquanto mandavam a turma
ficar quieta. Não lembro seu nome, mas recordo-me muito bem
do que sentia. Sinto agora novamente. É o tipo de coisa que não
explicamos, pois não sabemos como seria se fosse diferente.
Alcanço o chão e dirijo-me até minha poltrona ao lado do rádio
de pilhas, mas não sem antes olhar mais uma vez a fotografia do
colégio e pensar, estacionar no tempo mais uma vez para provar o
gostinho de um amor tão pueril. Vejo as fotografias que sobem e
fazem a curva da escada, suspiro por dentro e agradeço ao tempo
por tudo que me deu, tendo certeza de que valeu a pena cada lance, mesmo sem levá-la comigo para os degraus mais altos da vida.
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39
Quarta de
cinzas
C
omo explicar esta porra que
mais parece furúnculo? Surge de
repente, dói e, por mais que você
tente, só vai embora quando quer. Foi assim comigo. A vadia tinha uma bunda que
não era dela! Pretinha como eu gosto, com pernas com que só o morro abençoa suas filhas. Chegou faceira ao
ensaio, colou no meu cavaco e logo estava no meu cangote. Todos
achavam que tínhamos um caso. É certo que tínhamos, mas não
do jeito que imaginavam, nem do jeito que imaginei. Latejávamos todas as semanas nos fundos do barracão, contudo as pernas
se fechavam e com os retalhos das fantasias ela se cobria por inteira, dizendo não na hora agá. Eu desafinei por ela, e não existe
maior prova de amor do que esta. Quanto mais ela me afastava,
mais eu queria estar perto, estar dentro. Ela me prometeu, coberta de púrpura e lantejoulas que, logo após a nossa passagem na
avenida, eu poderia provar dela tudo o que eu mais queria, cada
gota de suor, cada espaço daquela pele de veludo, apertar cada
carne como se fosse a última da minha vida. Só que a puta se foi!
Antes mesmo de pisar na avenida. E sim, eu chorei. Eu e meu cavaco. Desde então eu comemoro meu luto com samba e lágrimas
na mesa do bar todas as quartas de cinza, como o vestido dela
estendido até hoje no galpão. Você já deve estar cansado de ouvir
esta história, não é mesmo? Desce mais uma branquinha e vai
embora. A branquinha nunca me deixou na mão.
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Doce amor
O
amor em seu formato mínimo cabia na palma da mão e
logo voou para dentro, aos goles de um refrigerante quente
como a noite lá fora e o ambiente lá dentro. A noite então
se tornou sua, pessoal e intransferível. Não existia mais dor nos
pés, nem pessoas feias, nem momentos que não valessem a pena.
A balada seu picadeiro. Era a malabarista! Melhor: era a trapezista! Quem sabe a corda bamba lhe fosse sua por direito. Bem...
Ela podia ser quem quisesse e ninguém poderia impedi-la, ainda
mais depois que o ácido bateu forte duas da madrugada. Todos
eram lindos. Qualquer boca era um convite para o prazer e...
por que negá-lo? Um, dois, dez e a conta se desfez, desabrochou
como o efeito lisérgico da droga. Contudo, somente pela manhã
é que o estrago era notado. Só, em uma cama redonda fedendo a
suor e cândida, levantou-se e foi ao banheiro. Urinou sem baixar
a tábua e se olhou no espelho. A maquiagem borrada ao redor
dos olhos e o batom espalhado por suas bochechas davam um
tom tragicômico ao dia seguinte. Sentia-se uma palhaça, mas não
ligava muito. Estava acostumada com os efeitos do amor
que, para ela, terminava sempre do mesmo jeito,
ironicamente igual aos versos de uma música
que ela imaginava ter escutado na noite
anterior, mas que da letra lembravase apenas de um “tchura tchutcheu”
martelante.
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Bem guardado
A
o chegar ao escritório, perante
uma vasta mesa de mogno polido cheirando a lustra-móveis,
uma calva sobre óculos circulares tamborilava os dedos cheios de anéis, enquanto
permanecia em uma posição que certamente a
grande cadeira de couro estava habituada a lhe oferecer.
— Sentem-se, por favor — em um gesto seco e cortês, levantouse, ofertando ao casal as duas cadeiras vazias que faziam jogo
com o resto da mobília —, pois estamos atrasados, não é mesmo?
Os dois puxaram seus assentos com grande dificuldade, deixando
rastros no velho tapete felpudo do advogado, sentaram-se incomodados com os braços das cadeiras trabalhados em torno rococó e permaneceram calados enquanto o homem lia e relia alguns
papéis claramente consumidos pelas traças do tempo. O homem
era de uma jovialidade indescritível, charmoso e atencioso. Atencioso pelo fato de saltar aos olhos do doutor a maneira como
entraram os dois de mãos dadas. Ela já não possuía beleza. Havia
rugas no rosto, pouca tinta nos cabelos e suas formas eram as de
uma mulher que muito batalhou para alimentar e cuidar do filho
que ali a acompanhava.
— Diga, Doutor, por que nos chamou tão às pressas? — Os olhos
da senhora eram profundos, intensos e, enquanto falava estas
poucas palavras, Dr. Carlos olhava-a fixamente, admirando a
maneira como os músculos do rosto dela deram uma trégua à
beleza de outrora. Dr. Carlos era observador. Prestava atenção
especial a todos os clientes, atitude que lhe rendia o estigma de
bom moço entre os da mesma classe. Seu esmero era tanto pelas
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pessoas e pelas coisas do escritório que, exatamente por este motivo, papéis importantes e antiquíssimos fizeram com que mãe e
filho estivessem naquela sala.
— Dona Rosa. Será que posso chamá-la assim? — Como a resposta não veio, prosseguiu. — Chamei vocês aqui porque um
cliente meu tinha o interesse em lhes falar.
— E onde está o homem?
— Infelizmente o homem já é falecido. Que Deus o tenha. Mas
tenho em mãos uma carta do mesmo, e estamos aqui para que eu
faça a leitura para a senhora e para o seu filho.
Sem compreender de quem poderia ser a missiva, mais uma vez
calaram frente à eloquência do doutor. Tratava-se de um povo
simples e assustado perante o luxo da sala e as roupas do que lhes
falava.
— Aparentemente um senhor chamado Eudes tinha assuntos
inacabados com a senhora. Procede?
O semblante dela foi ao chão. Chorou copiosamente até que as
lágrimas pararam de verter por meio dos afagos do filho que,
assim como o doutor, não fazia ideia do que estava acontecendo.
— Meu filho — um soluço, um gole de coragem —, Eudes foi
um homem que conheci quando morava no nordeste. Eudes foi
quem me deu você, mas eu não te dei para ele.
A ficha do homem demorou alguns segundos para cair, mas nas
entrelinhas do rosto sulcado da sua mãe ele entendeu o recado.
Eudes era o pai que nunca conhecera e jamais conheceria.
— Desculpem-me os dois. Não sabia que este era um assunto
escuso para ambos. Querem remarcar a leitura do testamento?
A palavra “testamento” foi como um choque para eles. Eudes era
assunto esquecido para Dona Rosa, e agora isso.
— Doutor, desculpe-me o senhor. Não quero tomar seu tempo.
Mas, antes de ler pra gente, preciso dizer para você, meu filho,
que se nunca lhe revelei sua paternidade foi para lhe proteger,
pois era vergonha para mim e meus pais ser menina grávida naquelas condições. Ainda mais de um homem tão pobre.
— Tudo bem, mãe — Francisco carregava o nome do avô, uma
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forma de fazer com que o preconceito da família cedesse, coisa
que não aconteceu, mas Dona Rosa cuidou do filho, não muito
mais velho do que ela mesma, com todas as forçar que teve —,
jamais julgaria a senhora depois de tudo que sofremos juntos.
Sem esperar por mais lágrimas após a declaração de Francisco,
Dr. Carlos iniciou a leitura:
“Não tenho forças para escrever estas coisas, por isso quem escreve é um grande amigo, que me prometeu não sujar a folha com as
mãos de carvão. Já faz tempo que você, Rosa Maria de Carvalho,
saiu da minha vida levando na barriga a semente que lhe dei. Foi
um erro da nossa parte, um descuido de amor, que infelizmente
foi a melhor e a pior coisa que nos aconteceu. Peço desde já desculpas pela infelicidade que causei para a sua família. Espero que
onde quer que você esteja a felicidade tenha lhe acompanhado.
Depois que você saiu trabalhei duro, duríssimo, na esperança que
você voltasse precisando de um lar. Construí uma carvoaria, com
muito suor e fumaça. Fiz dinheiro e guardei, para você e meu
bebê, que espero ser menino. Faz três anos que você foi embora, e nesse tempo adoeci. Quase não me levanto da cama, pois
meus pulmões são frágeis. Venderei a carvoaria e juntarei com as
economias da minha vida, bem debaixo deste colchão, onde aos
poucos vou partindo pra uma melhor. O fogo queimou minha
saúde, mas acredito que, caso você resolva voltar, ele servirá para
alimentar a chama deste amor que tenho por você e por meu filho, mesmo sem conhecê-lo. Não lhe cobrarei explicações. Quero
apenas que, de alguma forma, tudo o que guardei por você seja
recebido e nunca falte. Volta, por favor. Com amor e sem entender o porquê, Eudes Aguiar.”
— Esta carta estava anexada aos documentos do homem. Só a
encontramos devido a mudanças dos sistemas de alguns cartórios
antigos.
A mulher voltou a chorar, dessa vez acompanhada do filho.
“Como saber que a vida poderia ter sido diferente caso não tivessem cruzado a ponte para a cidade grande? Como saber da vida
sem vivê-la?” Em pensamentos perdiam-se ambos, emoldurados
pela voz do advogado.
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— Infelizmente, as economias de Eudes Aguiar já não têm mais
valor, pois, como diz a carta, o dinheiro todo estava debaixo de
um colchão, intacto desde muito tempo atrás.
— Eu só quero a carta, Doutor.
Levantaram-se e foram embora.
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Sr. Scotch
E
u estava muito bêbada. E pra
falar bem a verdade, acho que
ainda não me recuperei do porre
daquelas noites.
Ele mirou meus olhos do outro lado do salão e
veio determinado, carregando dois copos, pouco gelo e um belo
whisky. Foi certeiro! Observando que no seu pescoço havia uma
câmera dependurada, nem esperei que ele me dirigisse a palavra,
pois de cara percebi que nosso objetivo era o mesmo: a fama. Eu
na frente delas, ele nos bastidores.
A noite terminou na velocidade de um flash. Autografei uma das
fotos que sempre carreguei comigo, beijei deixando a primeira
de muitas impressões dos meus lábios naquele papel esmaltado
e sumimos na noite, cada um para um lado. Seu nome? Pouco
importa.
Persegui o estrelato de cabaré em cabaré e ele estava lá, todas
as vezes, sentado no gargarejo, segurando o mesmo velho copo.
Entre uma música e outra descia e lhe beijava o gargalo do copo,
deixando que ele me beijasse todas as vezes que voltasse a provar
o malte, embriagando-se na bebida e no gosto do meu batom.
Todas as noites como um flash. Já não sabia se era a câmera ou
se era o sorriso cafajeste dele que me iluminava em meio às lantejoulas da noite. Até então nada além de uma troca de favores. Ele
buscava a minha fama e eu a fama que ele me oferecia, chegando
até a ser capa de uma badalada revista de segunda linha, pouco
conhecida, mas eu estava deslumbrante!
Mais um show. A noite estava quente e ele me esperava como
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sempre. Terminei o show, fui até ele, agradeci pelo clique e eis
que uma surpresa me esperava. Após a segunda dose virei refém
do charme obscuro daqueles olhos negros da grande-angular. Saímos daquela espelunca e nos embrenhamos na escuridão sem
lua do verão. Fui completamente dele, que me devorou corpo e
alma, gastando rolos e rolos de filme imortalizando minha carne.
Ao final de algumas noites não havia mais nada a revelar. Cada
centímetro meu agora era dele e, em meio à embriaguez, percebi
que só sabia seu nome e a marca da câmera que utilizava. Com
isso mudei de postura, deixei de beber com ele no mesmo copo,
deixei de ceder aos seus anseios fotográficos e, ao sair do palco, pela primeira vez cobri meu rosto para me defender da fome
dos seus flashes. Era o término do nosso casamento, da aliança de
fama e sexo que selamos no quarto de motel.
Recebo então um envelope pardo, sem remetente, das mãos de
um dos garçons escalados para aquela noite. Ele apontou a primeira mesa, onde havia dois copos de uísque e cinzas de um cigarro recém-fumado. O assento ainda estava quente quando me
sentei para abrir a correspondência. Dentro, além de ver meu
corpo exposto e praticamente virado do avesso, um bilhete que
me oferecia fama e, ao mesmo tempo, o término da minha alegria. Desde então todos os olhos me comem. Maldito uísque.
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Em meio
segundo
—N
ossa!
— Pois é, amigo. Não faço ideia de
como chegamos até aqui.
— Ué... Eu vim andando e você dentro de mim.
— Não, cara. Tô falando de como a gente conseguiu uma mulher dessas. Afinal, você nem é tão bonito
assim.
— Verdade. Eu não sou nenhum galã de novelas. Deve ter sido meu papo.
— Olha... Não é querendo me gabar, mas a gente só tá aqui com essa gata
por minha causa.
— Tá bom, então! Humildão!
— Pensa um pouco. Você se limita a um metro de distância. Já eu sou
coisa que emana e, diga-se de passagem, até que sou bem bonitinho.
— Mas se não fosse por mim, o que seria de você? Talvez hoje você morasse dentro de um macaco ou algo assim, o que seria um desperdício.
— Beleza, você me convenceu. Obrigado pela consideração!
— Não foi nada, alma. Nós somos um time!
— E que time, hein. A gente tem um belo golaço nos esperando na cama.
— Com certeza! Mas será que eu posso te confessar uma coisa?
— Claro, irmão. Diga.
— Até quando isso vai durar? Tenho medo que acabe.
— Depois de tantos anos com ela, acho que é meio difícil acabar.
— Você não entendeu. Eu estou ficando velho e logo vou ter que partir.
— Fica tranquilo, porque mesmo que você parta, um pedacinho seu sempre estará com ela.
— E que pedacinho seria esse?
— Eu.
— É. Um mulherão desses a gente não pode deixar solto por aí, mesmo.
Melhor perdê-la para um amigo do que para um desconhecido.
— Perdê-la não, cara. Ganhá-la para todo o sempre.
92
44
Nos jardim
dos otro
O
ia só esse povo correno feito maluco de um lado pro otro,
tudo vistido de branco, mas branco bem branquinho
memo. Eles nem deve me vê por aqui, varreno esse piso qui
parece que num caba mais. Tamém, os dotô têm muita coisa pá
fazê, doente pá cuidá, agúia pá espetá e é meió eu fazê meu trabaio, né? Ninguém mandô eu num estudá, muito pelo contrário.
Minha mãe vivia dizeno pá mim sê diferente, mas parece que a
jaca num cai muito longe do tronco. Num reclamo não. Bataiei
demais pá tê minhas coisa e ó eu aqui, cheia de saúde. Varrê é
qui mi ajuda a ficá bem assim, igual minha mãe. Ela morreu bem
veinha, mas bunitona que só! Ceis tinha que vê. A preta num
tinha uma ruga no rosto, e viveu até os oitenta ano varreno a casa
das madama da cidade.
Tá veno esse corredô? Eu faço assim: varro a recepção e vô ino
até lá no fundo, depois viro e vô limpano as sala de espera. A
sala de espera é triste de vê. Dói demais vê esse povo tudo caíno
pelos canto, tussino, cum os machucado feio apareceno.
Esses pobre coitado são diferentes dos dotô. Eles
fica oiano a gente esperando qui nóis oie de
volta. Deus qui mi perdoe, seu moço,
mas eu acho qui é inveja de vê eu aqui,
na minha idade, varreno com tanta
alegria como varro.
Ó. Depois que varro lá vô ino até o
otro lado, onde fica os médico qui
faz os parto. É coisa linda de vê!
Eles corre empurrano as muié buchuda e depois elas sai magrinha
com a criança nos braço. Sabe...
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Antes de varrê aqui eu varria lá incima nos andar onde as muié
qui teve nenê fica hospedada, recebe visita e presente pá mostrá
a cria nova ao mundo. Minha mãe num teve isso não. Me pois
no mundo sozinha, dentro do quartinho onde morava e no dia
seguinte adivinha só o qui ela tava fazeno? Varreno! Senão num
tinha o leite no otro dia. Essas muié aqui tem tanta sorte... recebe
frada, ropa e um mundaréu de frô. E num é sorte só por causa
das coisa não. Eu mema nunca consegui tê fio, e ficá perto dessas
muié e essas criança chorano sem podê tê a minha me dava um
aperto no coração. Por isso eu pedi pro patrão pá eu varrê lá imbaixo. Até ficava triste, mas como eu já disse, num reclamava não.
No final do dia eu varria os quarto e juntava num cantinho todas
pétala de frô qui caía dos buquê e ficava oiano, e só conseguia
agradecê, porque minha véia me pois no mundo e me ensinô a
varrê. Já pensô se a gente fosse mais parecida e ela tamém num
pudesse tê fio? Eu num tava aqui pá recoiê as frô.
94
45
Dorme
—E
ra uma vez uma menina muito desengonçada, que vivia sozinha pelos cantos da escola. Ela tinha os cabelos tão loiros
quanto os seus, olhos tão vivos quanto os seus, e era de uma
pureza tão delicada quanto a sua. Mas essa menina estava triste,
pois não tinha a quem abraçar nas noites de frio, nem mesmo
ursinhos de pelúcia como o Ted, a Lulu e o Salsicha. Aliás, cadê
o Salsicha? Ah, está aqui embaixo.
Bom. Passaram os dias, meses, anos, e esta tão linda menina cresceu sem ninguém, agarrada aos sonhos durante o sono. Ela estudou muito para ficar inteligente, comeu todas as verduras para
ficar forte e bonita e cultivou amizades verdadeiras para não ficar tão só. Ela cresceu. Ela ficou inteligente. Ela ficou bonita.
Mas dentre todas as suas amizades não havia quem fizesse seu
coraçãozinho correr em disparada, suas bochechas corarem de
emoção ou suas mãos ficarem geladas com a esperança de um dia
estarem eternamente agarradas às deste alguém.
Mas num belo dia, quando a lua estava bem lá
no alto do céu iluminando a tudo e a todos,
eis que seu príncipe encantado surgiu. E
como era bonito o príncipe. Ele também tinha os olhos muito vivos, como
se prestasse atenção em tudo. Ele
também tinha os cabelos bem loiros,
como se o sol se enrolasse neles para
tirar uma soneca. Tinha uma voz
potente e ao mesmo tempo delicada, que embalava a menina, que já
não era mais tão menina, até pegar
no sono observando o movimento
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dos seus lábios e o vaivém da camisa enquanto ele respirava. Por
muitas e muitas vezes dormiu escutando o som daquele coração,
tentando entender os motivos, as alegrias e as tristezas que o
acompanhavam. Só que o sono sempre chegava antes de o coração começar a falar, e ela nunca conseguiu entender as coisas que
passavam lá dentro de cada tum tum. E os tum tuns iam ficando
cada vez mais longe, e longe. E os sonhos cada vez mais perto.
E em um desses sonhos, enquanto a menina dormia, o coração
daquele moço chegou de mansinho, sussurrando baixinho, muito
pertinho, para lhe entregar um presente. E depois que entregou o
presente o coração do moço teve que voltar para dentro do sonho
e para longe da menina, que já não conseguia mais escutá-lo.
Aquele foi o maior sono que ela já teve. Dormiu mais que a Margot. E olha que essa gata dorme demais! E quando a menina
acordou, e se espreguiçou tão gostoso quanto a Margot, viu que
tinha se tornado mulher. E no seu colo estava o presente que o
coração do moço deixou no sonho. Era uma menininha tão pequena que cabia na palma da mão. E era linda, linda, linda como
você.
A menina, que agora já era mulher, desejou então que aquele
presente pudesse crescer tão forte e tão bonito quanto ela, para
poder encontrar seu próprio príncipe encantado e, quem sabe,
decifrar os segredos do seu coração, sem medo de ser feliz.
— Boa noite, meu amor.
— Mamãe — entre bocejos e longas piscadelas não deixou que
sua mãe saísse do quarto —, a moça da história é você?
— Sou eu sim, pequena — voltou para a cabeceira da cama e
afagou os longos cabelos loiros da filha —, e você é o melhor presente que eu já ganhei.
— E o príncipe é o papai, né?
— Dorme, querida. Dorme.
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naomefazpensar.com
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@Carrico
Esta obra foi composta em fonte Baskerville.
Miolo em papel Pólen 80 g/m², capa em Supremo 250 g/m²,
impressa pela Singular em maio de 2013.