Baixar arquivo - A Interamérica
Transcrição
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“Como você vive?” por André Mols* Eu tinha 6 anos. Era a primeira vez que ia à aula naquela escola. Minha primeira visita havia sido sombria. Em uma tarde chuvosa de janeiro, quando adentrei aquele espaço no qual iria conviver por 8 anos. Lá, próximo à porta de entrada, enorme e pesada, respondi rapidamente a algumas perguntas, que nem de longe tinham a intenção de entender quem eu era e, ao vislumbrar o enorme, profundo e escuro corredor logo a seguir, parecido com a garganta de um monstro prestes a me devorar, tentei imaginar o que viria pela frente. Logo no primeiro dia de aula, fiquei sozinho no pátio. Fomos instruídos a ir com a “Tia” tal, e com a “Tia” tal. Como não havia nenhuma tia minha no pátio, esperei. Fui chamado de surdo por não ter ouvido, e de bobo por não ter entendido. Ao longo do ano, as freiras responsáveis pela escola descobriram que eu tocava violão e sabia cantar. Para meu mais completo e total desespero, começaram a me chamar para tocar em aulas diversas, eventos diversos na escola. Às vezes para poucos alunos, às vezes para o pátio inteiro, certamente com quase mil alunos. O fardo era enorme. Ninguém nunca me perguntou se eu queria. É difícil entender como algo que eu adorava era, ao mesmo tempo, um castigo, se transformando em um dos principais motivos para que eu fosse desprezado pela vasta maioria dos alunos da escola. Não. Não era legal para eles constatarem que o que eu fazia a maioria deles não conseguia fazer. Assim, em contrapartida eu nunca era escolhido para os times de futebol. Eu nunca era escolhido para dançar quadrilha nas Festas Juninas (não que eu gostasse, na verdade neste caso era um alívio...). Dessa maneira, desde cedo fui criando o meu universo paralelo, e lá me escondi, sempre que pude, de ser chamado de idiota. Nunca me esqueci de uma pergunta em uma prova de Geografia – “Qual é o menor estado do Brasil?”. Naquela época eu estava às voltas com um livro que falava dos grandes rios do mundo, e estava fascinado com o Rio YangTzé, na China... Mas como eu não havia decorado o nome do menor estado do Brasil, a professora me chamou a atenção publicamente, na sala de aula, e passei a ser chamado de burro... Já no fim do meu tempo naquela escola, um dos meus poucos amigos entrou em uma briga muito grande quando apareceu na escola, em 1984, com o LP “Van Halen”, da banda americana do mesmo nome. A capa, com a ilustração de um anjo fumando, chocou muito na época, e eu fiquei imaginando como ele tinha conseguido aquele disco... pouco tempo depois ele desapareceu da escola... Tive muita vontade de conversar com ele, mas não tive oportunidade. Ele teve coragem de afrontar aquele sistema, mas acabou pagando o preço por isso. Minhas preocupações e desejos eram diferentes da maioria. Por isso, fui deixado de lado. O que me cativava não fazia parte do mundo da maioria. Naquele tempo não havia acesso à internet, ou telefonia celular, e as fronteiras ainda eram fechadas para uma enormidade de produtos. Não havia computadores disponíveis com facilidade, não havia CD ou DVD. Mas havia pessoas, havia escolas, as pessoas se relacionavam. É triste perceber que o tempo passa e algumas coisas não mudam. Quem dera pudéssemos entender que as pessoas são diferentes, que não precisam ser moldadas, que não precisam ser enquadradas em formatos fabricados de acordo com conceitos preconceituosos. Quem dera fôssemos livres, longe dessa pseudoliberdade hipócrita que nos concede salvo-conduto para ir e vir ao centro de compras, ao supermercado, à pista de caminhada no fim da tarde, enquanto nos tolhe o direito de expressão real. Tento fazer a minha parte. Afinal de contas, minha grande felicidade foi descobrir que meus pais nunca foram heróis. Descobri que eles são gente como eu (ainda bem) que erram (ainda bem), que choram (ainda bem), que duvidam (ainda bem), que me amam (ainda bem) e que fizeram o melhor que podiam – e isso nunca incluiu me colocar em uma redoma de vidro ou um pedestal. Foi muito doído, mas sobrevivi – até agora. Viver é assim. Como você vive? * André Mols é Coordenador Pedagógico Geral da Escola Interamérica - Unidade II, músico, pai e entusiasta das novas tecnologias e suas aplicações na educação.