Imagem tempo / imagem movimento
Transcrição
Imagem tempo / imagem movimento
Lição 4 – Filmar a fotografia, fotografar o tempo Práticas da Fotografia Textos de Apoio Trata-se de reflectir sobre a relação entre cinema e fotografia e os raros exemplos que existem neste contexto pelo cruzamento absoluto em que um utiliza o outro, constrói e enfatiza a perturbação do fotográfico: pois que a paragem do movimento inspira algo de terror ao espectador - algo de inesperado que a suspensão do movimento produz. A fotografia, sem movimento, privilegia a noção de imagem tempo e de corte temporal que no cinema adquire outra relação e em que as fronteiras do próprio enquadramento se esbatem. A fotografia tem uma dimensão temporal distinta do cinema, um duplica o tempo, trabalha esse tempo, e a fotografia suspende-o, congela-o. O cinema contem uma dimensão temporal distinta da fotografia, pois faz a duplicação do tempo e trabalha esse tempo, enquanto a fotografia concretiza a sua suspensão. Apesar de não muito frequentes, outras obras cinematográficas ou fotográficas problematizam essa ligação entre fotografia e cinema através de uma reflexão sobre as formas de olhar trabalhando a condição do olhar fotográfico dentro da linguagem cinematográfica. Utilizando frequentemente, para explicitar os contornos dessa ligação, a personagem do fotógrafo como protagonista. Rear Window Rear Window (1954) de Alfred Hitchcock revela-se como uma metáfora acerca da própria actividade cinematográfica, em que o protagonista é simultaneamente um observador e um espectador imóvel, que adivinha as histórias das vidas dos seus vizinhos reflectindo, nessa apreciação, a sua própria vida e preocupações pessoais. Em Rear Window, a relação com as capacidades cinemáticas da cidade é subvertida pelo facto de toda a acção do filme se passar entre um apartamento e o interior de quarteirão a que pertence, centrando-se quase em exclusivo no ponto de vista do protagonista. O efeito cinemático de Nova Iorque não é explorado de forma directa, apenas sugestionado através das movimentações das suas personagens, com o movimento da rua – que se vislumbra a partir da única passagem para o interior do quarteirão, pelos sons dos automóveis e das pessoas que passam nos passeios, e por um imponente skyline de arranha-céus que se desenha ao longe, entre as fachadas dos blocos de apartamentos próximos do quarteirão. Toda a história se desenvolve a partir de um apartamento com vista para o interior do quarteirão, onde o protagonista, confinado temporariamente a uma cadeira de rodas devido a um acidente, observa as movimentações dos seus vizinhos durante o período de convalescença. Baseado na obra It Had to Be Murder (1942) de Cornell Woolrich (1903-1968), no qual se limitava a descrever um homicídio observado pelo protagonista, Hitchcock acrescenta-lhe o poder da sugestão daquilo que não é observado. O espaço que compõe o interior do quarteirão deixa de ser apenas um local que proporciona o voyeurismo para se converter num espaço vivencial e reflectir a cidade pela sua diversidade e multiplicidade. Rear Window (1954) de Alfred Hitchcock revela-se como uma metáfora acerca da própria actividade cinematográfica, em que o protagonista é simultaneamente um observador e um espectador imóvel, que adivinha as histórias das vidas dos seus vizinhos reflectindo, nessa apreciação, a sua própria vida e preocupações pessoais. Blow Up O filme Blow Up (1966) do realizador italiano Michelangelo Antonioni, uma adaptação livre do conto Las Babas del Diablo (1959) de Júlio Cortázar (1914-1984), narra a história de um fotógrafo que vive e trabalha na cidade de Londres, onde decorre o filme. O filme organiza-se de acordo com uma estrutura interrogativa sobre as formas de olhar a realidade, trabalhando a reconstrução ilusória do cenário através da personagem de um fotógrafo/ detective, num ensaio que sobrepõe estratégias de distanciamento e aproximação ao registo fotográfico do real, com formas de desfasamento e recontextualização no interior da própria imagem fotográfica. Depois de uma sequência inicial onde procura caracterizar a diversidade temática que interessa fotograficamente ao protagonista – fotografia social, fotografia de moda e eventualmente uma fotografia conceptual (a hélice que adquire no antiquário) e onde se pronuncia uma autoridade sobre a realidade que fotografa, Antonioni caracteriza a personagem do fotógrafo pela sua obsessão sobre essa tomada de vista sobre o real e a sua incontrolável posse através da imagem. Explorando a noção de público e privado o realizador interessa-se por jogar com a tensão e a distância que os relaciona. Num parque londrino, o protagonista fotografa obsessivamente um casal que aparenta um comportamento estranho e que se recusa a ser fotografado. Posteriormente no seu estúdio fotográfico, através de sucessivos enquadramentos da mesma imagem e seguindo o olhar das personagens que figuram no seu interior, o protagonista desvenda elementos secundários ao tema principal da imagem fotográfica que indiciam a presença inesperada de um corpo inanimado, dissimulado num segundo plano da imagem fotográfica. Uma sucessão de ampliações da mesma prova fotográfica demonstram-lhe a diferença entre aquilo que ele pensa ver e aquilo que efectivamente se vê. O olhar para fora do enquadramento que a figura feminina realiza, na interpretação de Vanessa Redgrave (n. 1937), torna-se indicador do domínio especulativo da própria imagem e é nesse território que Antonioni introduz o elemento ficcional que o cinema tanto aprecia – a prova do crime. Depois de uma caracterização descritiva e exaltada da actividade do fotógrafo, interpretado por David Hemmings (1941-2003), Antonioni utiliza o fora de cena, que no cinema se apresenta também ficcionalmente no contra campo, para trabalhar a componente especulativa da narrativa e posiciona todos os elementos do filme em convergência para esse fora de cena, onde se descobrem os vestígios de uma segunda narrativa, camuflada no detalhe de uma imagem fotográfica. O plano escondido e aquilo que o protagonista interroga ao observar em exclusivo esse plano, anulando a distância que lhe permite distinguir o valor de detalhe da imagem como elemento não ficcional, transforma-o no portador único do conhecimento da existência desse corpo e da respectiva prova da hipótese de um crime. O título do filme Blow Up é indicativo da metodologia que o protagonista elabora nas sucessivas ampliações que realiza para chegar ao detalhe – ampliação e revelação – que no filme, pela insistência e pelo excesso, reduzem a imagem a uma circunstância residual, fragmentária, como um jogo de detalhes e divisões que conduzem à explosão da própria imagem. Essa sequência apresenta um paralelo com a cena final onde se pode observar um grupo de mimos a representar um jogo de ténis com uma bola imaginária, numa metáfora irónica sobre fusão entre aparência e realidade. Antonioni torna visível o carácter irredutível da realidade e sublinha a dificuldade de percepcionar o sentido a par das aparências. A apreensão da realidade exclui o ponto de vista único que a fotografia confere à imagem e que pelo cinema, ilusoriamente, se torna plano subjectivo. No final o fotógrafo aceita o jogo do verdadeiro/ falso e reenvia para dentro do campo de ténis a bola imaginária. Cindy Sherman Na série de auto-retratos fotográficos Untitled Film Stills, realizada entre 1977 e 1980, Cindy Sherman não procura o reconhecimento do original pois não parte para a construção das suas fotografias de um original identificável, antes um território de referências relativas ao universo cinematográfico que se projectam nas personagens interpretadas pela própria artista. As figuras femininas que Sherman interpreta seguem uma ideia de estereótipo que advém da indústria cinematográfica, identificando para tal uma espécie de memória dentro da memória, acessível através de um legado imagético comum, uma herança partilhada de referentes cinematográficos que Sherman vai recuperar ao espectador. Cindy Sherman trabalha num universo de simulação onde a cópia existe sem original, preenchendo a clivagem que se situa entre o corpo imaginário e o corpo representado e jogando com estratégias de reconhecimento/desconhecimento que reflectem afinidades com os fenómenos de celebridade e mitificação espontânea, que movimentam a própria indústria cinematográfica. O encadear de mulher/personagem/actriz, que utiliza para a construção das suas personagens e composições fotográficas, constitui-se como uma tripla representação que utiliza a dimensão projectiva da imagem e o seu imaginário privado. A personagem que Cindy Sherman interpreta, em cada uma das fotografias de Untitled Film Stills, auto-representação que exclui a presença de outras personagens na imagem, é construída em função de uma personagem feminina ficcionada e do respectivo reconhecimento da sua representação cinematográfica que por seu turno personifica uma mulher que corresponde à sobrevalorização ou massificação da condição de mulher, neste caso partindo de uma realidade construída por uma cinematografia de autor, com referências explícitas a Alfred Hitchcock (1899-1980), Roberto Rossellini (19061977), Michelangelo Antonioni (n.1912), ou Jean-Luc Godard (n.1930) em paralelo com a imagem das actrizes dos seus filmes como Anna Magnani (1908-1973), Mónica Vitti (n. 1931), Sophia Loren (n. 1934) Jean Seberg (1938-1979), Brigitte Bardot (n. 1934) ou Jeanne Moreau (n. 1928). Sherman funde o acto de auto-representação fotográfica, como realizadora de um filme imaginário, com o próprio realizador que protagoniza o papel de observador sobre a imagem da mulher. Como explica a autora: - At first I wanted to do a group of imaginary stills all from the same actress career so in those first six photographs the hair doesn’t change… I didn’t think about what each movie was about. I focused on the different ages and looks of the same character Como refere Rosalind Krauss, she has a whole repertory of women being watched and of the camera’s concomitant construction of the watcher from whom its proxy. Cindy Sherman desenvolve a estratégia do observador intruso, como a figura do detective que olha sem ser detectado e todas as suas imagens são revelações de voyeurismo, de uma vontade escópica de ver sem ser visto – produtora de uma distância significante. Ao espectador essa distância é reservada e a experiência dessa perturbação simulada. A identificação que Sherman reclama do espectador não é do domínio autoral mas implica o reconhecimento desse legado cinematográfico que o faça acreditar na existência da personagem representada, traído pela sua memória residual. É a própria Cindy Sherman que ironiza sobre a reacção do espectador perante as suas fotografias, quando afirma: - Some people have told me they remember the film that one of my images is derived from, but in fact I had no film in my mind at A inclusão de séries dentro da própria série Untitled Film Stills, quando utiliza a mesma caracterização para uma personagem e a fotografa de pontos de vista diferentes e em diferentes locais, altera a unidade dessas séries menores, quando apresentadas de forma não sequencial, dada a aleatoriedade com que Sherman numera os film stills. A alternância de pontos de vista sobre a mesma personagem desfragmenta a unidade de Untitled Film Still e a produção de sequências aumenta a ambiguidade com que Sherman constrói as suas personagens, pois a deslocação das condições de iluminação e profundidade de campo com que se autoretrata, permitem associar à mesma personagem distintos momentos narrativos, ligando hipotéticas sequências cinematográficas numa mesma e dispensando a necessidade de uma leitura linear sobre a narrativa. A noção de imagem-ecrã pela dupla relação que ela implica, serve a Cindy Sherman para relacionar imaginário e representação cinematográfica, utilizando a fotografia como momento de interrupção e possibilidade de experimentação do instantâneo, no interior da linguagem cinematográfica. Hiroshi Sugimoto Numa relação temporal inversa, a série Theater [fig.12], iniciada nos Estados Unidos em 1978, por Hiroshi Sugimoto (n. 1948), estabelece uma ligação de palimpsesto da imagem cinematográfica na imagem fotográfica, criando uma sequência de imagens fotográficas que registam a presença do filme sem denunciarem a sua origem. Utilizando longos tempos de exposição, Sugimoto fotografa o tempo de projecção do filme escolhendo drive in e teatros dos anos 1920, posteriormente transformados em salas de cinema. A imagem única e singular que Sugimoto obtém sugere-se como uma espécie de imagem mental, indicadora de uma presença fugaz, que corresponde à sobreposição de cada imagem no filme na redução da sua essência lumínica. O tempo fotográfico intersecta a imagem fílmica, registando a totalidade do momento cinematográfico e devolvendo-lhe as suas margens que tendencialmente, durante a projecção, tendem a desaparecer no imaginário do espectador. Sugimoto fotografa o plano de recepção da imagem cinematográfica, a tela de projecção, durante o tempo de duração do filme, registando assim a sua dimensão primordial, a sua essência de luz. A película fotográfica transforma-se também ela em plano receptor, uma espécie de ecrã que concebe a hipótese de registo. Esse ecrã fotográfico retém as imagens projectadas, e no acto de sobreposição apaga sucessivamente as imagens que acumula. Mais do que suspender o tempo, através do instante fotográfico, Sugimoto inscreve esse tempo através da evocação do cinematográfico e paradoxalmente desmonta a circunstância do instante decisivo que persegue a fotografia. O rectângulo do ecrã é transformado numa janela aberta ao exterior que permite uma reflexão sobre a duplicação do tempo e do espaço, alternando a presença e a ausência do próprio filme e a fusão entre realidade e ilusão de realidade, que se intersectam no modo como as suas fotografias confrontam a linguagem do cinema e a da fotografia. Susana Lourenço Marques Dezembro 2008