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AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E A TUTELA COLETIVA
DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
Yulgan Tenno de Farias Lira ¹
RESUMO
O presente artigo tem o escopo de explanar a fundamentação de existência da audiência de custódia, do ponto de vista interno e
internacional, além de demonstrar como a garantia de obediência de uma norma internacional pode ser ampliada mediante a utilização
de ações coletivas para o exercício do controle de convencionalidade. Avança-se com a demonstração de que a audiência de custódia
foi fomentada, no Brasil, mediante a utilização do controle de convencionalidade na ação civil pública, com o consequente aumento da
eficácia da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Conclui-se que o uso de
ações coletivos pode aumentar o grau de enforcement da norma internacional de direitos humanos.
Palavras-chave: audiência de custódia. tutela coletiva. tratado internacional de direitos humanos. enforcement reduzido.
ABSTRACT
This article has the scope to explain the existence of grounds for the custody hearing, the domestic and international perspective, and
how to demonstrate that the obedience assurance of an international standard can be expanded through the use of collective action for
the exercise of control of conventionality. Forward with the demonstration that the custody hearing was fostered in Brazil by using the
conventionality control in the public civil action, with a consequent increase of the effectiveness of the American Convention on Human
Rights and the International Covenant on Civil and Political Rights. We conclude that the use of collective action may increase the degree
of enforcement of the international standard of human rights.
Keywords: custody hearing. collective protection. international human rights treaty. reduced enforcement.
¹Editor-chefe da LEXMAX – Revista do Advogado. Extensionista da Academy on Human Rights and Humanitarian Law da Washington College of Law – American
University em Washington-DC. Membro do Internacional Law Association (ILA) – Ramo brasileiro. Membro do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em
Educação e Direito – CIPED. Pós-graduando em Direito Público pelo Instituto Cândido Mendes no Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela Universidade
Federal da Paraíba. Advogado.
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1. INTRODUÇÃO
Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos (TIDH), no Brasil, são dotados de natureza jurídica de supralegalidade, estando
acima de todas as normas, salvo a Constituição, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), veiculada no RE 466.343/
SP, em 2008.
Dessarte, possui atributo de supralegalidade a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Convenção ADH) e o Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) que, entre outros preceitos, estabelecem o dever dos Estados em garantir a apresentação
imediata do preso ao juiz em caso de prisão em flagrante.
Constitui consequência da adoção da teoria da supralegalidade das normas internacionais de direitos humanos a utilização de
instrumentos processuais tendentes a conformar a norma de hierarquia inferior (leis e atos infralegais) com as de hierarquia superior
(TIDH).
Tal mecanismo é conhecido como controle de convencionalidade, instrumento de que se vale o órgão jurisdicional para declarar
uma norma incompatível frente às convenções internacionais de direitos humanos.
Contudo, mesmo adquirindo status privilegiado no ordenamento jurídico pátrio, os TIDH são constantemente desconsiderados na solução de contendas jurídicas internas, pois não possuem o que se convenciona chamar de alto grau de enforcement, ou seja,
garantias de observância e aplicação da norma internacional nos processos domésticos do Estado.
Neste passo, a pesquisa aponta que as ações coletivas, quando desempenham o controle de convencionalidade, ampliam as
chances de que a norma internacional seja obedecida por todos, pois a coisa julgada advinda da decretação de inconvencionalidade de
uma lei frente o TIDH, possui eficácia erga omnes, invalidando a referida lei em toda a jurisdição interna.
Noutro giro, desde que foram incorporadas ao ordenamento brasileiro, em 1992, pelo rito especifico de internalização de
tratados, o PIDCP e a Convenção ADH (Decreto no 592 e Decreto no 678, respectivamente) permaneceram despidas de eficácia no que
tange a alguns de seus dispositivos, sendo exemplo deles a audiência de custódia.
Entretanto, a conjuntura muda quando os legitimados para a propositura da ação civil pública (ACP), lastreados pela normativa
internacional, passam a se valer desta ação coletiva para implementar a audiência de custódia no Brasil, no interesse de parcela da
sociedade prejudicada pela não regulamentação de tal instituto processual penal no País, que já fora previsto por pactos internacionais
desde 1992, porém ignorados.
A discussão levou o CNJ a dar início ao projeto audiência de custódia, com o objetivo de, paulatinamente, implementar a referida
audiência em todo o território nacional, com a ajuda dos tribunais de justiça dos Estados.
Dessa forma, o presente artigo tem o escopo de explanar a fundamentação de existência da audiência de custódia, do ponto de
vista interno e internacional, além de demonstrar como a eficácia de uma norma internacional pode ser ampliada mediante a utilização
de ações coletivas para o exercício do controle de convencionalidade.
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2. A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
A audiência de custódia, também conhecida como audiência de apresentação, é o instrumento processual penal que tem o
escopo de defender a liberdade pessoal e a dignidade do acusado, servindo a propósitos processuais, humanitários e de defesa de direitos
fundamentais inerentes ao devido processo legal.
Em definição, consiste na apresentação imediata ou sem demora ao juiz de pessoa presa em flagrante ou sem mandado judicial
pela polícia.
Nessa esteira, diversos países ocidentais positivaram em seus ordenamentos internos a audiência de custódia, com a finalidade
de fazer cessar “eventuais atos de maus tratos ou de tortura e, também, para que se promova um espaço democrático de discussão acerca
da legalidade e da necessidade da prisão” (LOPES JR; PAIVA, 2014).
O regramento encontra lastro normativo no artigo 9º, 3 do PIDCP e no artigo 7ª, 5, da Convenção ADH, tendo este a seguinte
redação:
Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de
um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem
direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade,
sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a
garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo (grifo nosso).
No excerto, identifica-se a expressão “sem demora”, interpretada pela Corte IDH no caso Cabrera Garcia e Montiel Flores v. México
(2010), oportunidade em que não considerou compatível com a Convenção (artigo 7º, 5) o prazo de 5 (cinco) dias, contados da data da
prisão, para apresentar o preso ao juiz competente, determinado pela legislação mexicana.
Dessa forma, parte da doutrina acena que a citada expressão deve ser entendida como 24 (vinte e quatro) horas contadas a
partir da prisão em flagrante.
Na CRFB/88, a audiência de custódia se manifesta na norma que determina o imediato relaxamento da prisão ilícita (artigo 5ºLXV), o rápido desfecho da investigação e do processo (artigo 5º- LXXVIII) e pelo princípio do juiz natural, conforme o qual o investigado
tem o direito de ter um julgamento justo, com parâmetros previamente estabelecidos (artigo 5º- LIII), e não por tribunal de exceção (artigo
5º- XXXVII). Tais garantias são inerentes ao devido processo legal instituído pela atual Constituição.
Com isso, o instituto tende a coibir maus tratos aos presos no momento da prisão, além de exercer papel relevante no que tange
à diminuição da população carcerária, na medida em que a apresentação imediata do preso ao juiz possibilitará a apreciação da legalidade
da prisão em flagrante e da necessidade da prisão preventiva de forma célere, minimizando a possibilidade de manter prisões abusivas e
desnecessárias.
Registre-se também a possibilidade de o juiz decretar a prisão preventiva na própria audiência, desde que presentes os requisitos
do artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP) – Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
Conquanto não exista previsão legal no Brasil sobre a audiência judicial de custódia, o CNJ, em parceria com os tribunais de
justiça dos Estados federados, vem instaurando a audiência de apresentação em todo o Brasil, com regulamento estabelecido por cada
Tribunal, diante da lacuna na legislação.
Todavia, tramita no Senado Federal o projeto de lei nº 554/2011, de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares, propondo a
alteração do §1º do artigo 306 do CPP para instituir a audiência de custódia em 24 horas após a prisão em flagrante.
O texto original do projeto tem a seguinte redação:
Art. 306. [...]
§1º. No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser
conduzido à presença do juiz competente, ocasião em que deverá ser apresentado
o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o
autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria
Pública.
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Dessarte, com o trâmite na Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa (CDH), o PL foi contemplado por uma
emenda substitutiva apresentada pelo Senador João Capiberibe – aprovada por unanimidade na CDH, conferindo a seguinte redação ao
projeto originário:
Art. 306. [...]
§ 1.º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o
preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas
previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus
direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis
para preservá-los e para apurar eventual violação.
§ 2.º A oitiva a que se refere o § 1.º não poderá ser utilizada como meio de prova
contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade
da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos
assegurados ao preso e ao acusado.
§ 3.º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão
em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada
pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes
das testemunhas.
§ 4.º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado,
ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do
Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no § 2.º,
bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310
deste Código.
Em 25/06/2014, o texto recebeu nova emenda substitutiva, de autoria do Senador Francisco Dornelles, estabelecendo que a
audiência de custódia também poderá ser feita mediante o sistema de videoconferência. O substitutivo traz a seguinte redação:
Art. 306. [...]
§ 1.º No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá
ser conduzido à presença do juiz competente, pessoalmente ou pelo sistema de
videoconferência, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em
flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe
o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.
Pondera-se que o texto é de duvidosa convencionalidade, pois a videoconferência retiraria a possibilidade de contato direto
pessoal entre o juiz e o preso, dificultando a aferição das circunstâncias corpóreas, além de facilitar a coação e o abuso da autoridade
policial, de forma a induzir o acusado a faltar com a verdade no depoimento transmitido online.
Ademais, reforçando tal entendimento, a Corte IDH (2005), interpretando o artigo 7ª, 5 da Convenção ADH, decidiu que, para
os fins previsto nos TIDH, o detido deve comparecer em pessoa e render sua declaração exclusivamente perante um juiz ou autoridade
judicial competente.
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3. PRINCIPAIS DISCUSSÕES SOBRE O INSTITUTO
Consoante aponta Weis (2013), a audiência de custódia “aumenta o poder e a responsabilidade dos juízes, promotores e
defensores de exigir que os demais elos do sistema de justiça criminal passem a trabalhar em padrões de legalidade e eficiência”.
Na visão da Diretora do Human Rights Watch – Brasil, Maria Laura Canineu (2014), o risco de maus-tratos é frequentemente
maior durante os primeiros momentos que seguem a detenção, quando a polícia questiona o suspeito, pois “Esse atraso torna os detentos
mais vulneráveis à tortura e outras formas graves de maus-tratos cometidos por policiais abusivos”.
Contudo, apesar da expressa previsão convencional (dotada de natureza jurídica de supralegalidade), a audiência de custódia
não foi efetivamente implementada em todo o País².
Com efeito, o CPP exige apenas que os documentos policiais do caso, mas não o preso, sejam apresentados a um juiz no prazo
de 24 horas (artigo 306, § 1º), momento em que a autoridade judicial terá a incumbência de avaliar a legalidade da prisão e decidir sobre
sua prisão preventiva ou liberdade provisória, com base exclusivamente nos documentos escritos fornecidos pela polícia.
A única circunstância em que a polícia precisa levar imediatamente o preso perante o juiz, de acordo com o CPP, ocorre no
caso da prática de crime inafiançável, não tendo o policial exibido o respectivo mandado judicial no momento da prisão (art. 287). Caso
contrário, o detento também pode chegar a não ver um juiz por vários meses (CANINEU, 2014).
Dessa forma, constata-se que o encontro entre o investigado e o juiz acaba sendo postergado por meses ou anos, tendo em
vista que o interrogatório é o último ato da instrução (art. 400, caput, do CPP), somente ao final do processo.
É nesse sentido que Lopes Jr. e Paiva (2014) afirmam que “o juiz não tem contato com o cidadão preso e, se decretar a prisão
preventiva, somente irá ouvi-lo no interrogatório muitos meses (às vezes anos) depois, pois agora o interrogatório é o último ato do
procedimento.”
Enfaticamente, prevê o artigo 306 do CPP que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados
imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”.
Entretanto, a disposição não passa pelo crivo de convencionalidade, uma vez que a mera comunicação através de correspondência por escrito inviabiliza a análise judicial sobre o corpus, impossibilitando qualquer aferição de maus tratos e o contato direto do juiz
com o acusado.
Nessa esteira, posiciona-se reiteradamente a Corte IDH que “o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa
está detida não satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao juiz ou autoridade
competente” (2005) e ainda que “o juiz deve ouvir pessoalmente o detido e valorar todas as explicações que este lhe proporcione, para
decidir se procede a liberação ou a manutenção da privação da liberdade”, concluindo que “o contrário equivaleria a despojar de toda
efetividade o controle judicial disposto no art. 7.5 da Convenção” (2008).
São muitas as vantagens da efetiva implementação da audiência de custódia; para elencá-las, foi-se necessário a reunião dos
motivos no Informativo Rede de Justiça Criminal, produzido por organizações de defesa de direitos humanos, tal qual a Associação pela
Reforma Prisional (ARP), Conectas Direitos Humanos, Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Instituto de Defensores de
Direitos Humanos (DDH), Instituto Sou da Paz, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Justiça Global e Pastoral Carcerária Nacional.
Entre tais vantagens, o citado Informativo considera as dez seguintes (2013, p. 2):
1. A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), ratificada
pelo Brasil em 1992, dispõe que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora,
à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais” (art. 7º);
2. A apresentação da pessoa presa em juízo no prazo de 24 horas é a maneira mais célere de
garantir que a prisão ilegal será imediatamente relaxada e que ninguém será levado à prisão ou
nela mantido se a lei admitir a liberdade (garantias constitucionais previstas no art. 5º, LXV e LXVI,
respectivamente);
3. A audiência de custódia servirá para que o juiz i) analise a legalidade e necessidade da prisão
e ii) verifique eventuais maus tratos ao preso havidos até ali, podendo determinar a imediata
apuração de qualquer abuso que venha a tomar conhecimento. No que diz respeito ao controle
da legalidade da prisão, poderá o juiz no momento da audiência de custódia: i) relaxar a prisão
em flagrante ilegal; ii) decretar a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão;
iii) manter solta a pessoa suspeita da prática de determinado delito, se verificar ausentes os
pressupostos de cautelaridade previstos no artigo 312 do CPP;
4. A previsão da ordem dos atos nesta audiência (Ministério Público requer a medida cautelar que
entender adequada e necessária, a Defesa contra-argumenta e o Juiz decide) é a expressão do
princípio constitucional do contraditório (art. 5º, LV, CF), com a garantia inerente de que a defesa
deve sempre manifestar-se depois da acusação;
5. O depoimento prestado nessa audiência deve ser autuado em apartado para que não seja
manuseado no curso da instrução criminal e com isso não contamine a prova a ser produzida e
discutida no futuro, garantindo, portanto, que seu conteúdo não seja utilizado em prejuízo do
acusado em futura ação penal;
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6. A autuação em apartado do depoimento e a proibição de que se inquira o preso sobre pontos atinentes ao mérito da imputação evitam
que os avanços da Lei nº 11.719/2008 – que alterou a ordem dos atos no processo penal, garantindo que o interrogatório do acusado
seja o último ato da instrução criminal, em conformidade com o princípio do contraditório (art. 5º, LV, CF) –, se esvaiam com a adoção da
audiência de custódia;
7. A obrigatoriedade para que dessa audiência participe o representante do Ministério Público e o advogado/defensor público é a garantia
de que a lei não contrarie a garantia constitucional de assistência de um advogado (art. 5º, LXIII), bem como o contraditório e a ampla
defesa (art. 5º, LV);
8. A audiência de custódia representa para o Estado um instrumento eficiente e ágil para a obtenção e verificação de informações precisas
sobre os procedimentos policiais, evitando que maus tratos e práticas de extorsões continuem a ocorrer impunemente;
9. O controle imediato da legalidade, necessidade e adequação de medida extrema que é a prisão cautelar será uma forma eficiente de
combater a superlotação carcerária, sempre tendo em conta que a excessiva política de encarceramento em massa atinge com muito mais
força a camada mais pobre e marginalizada da população brasileira;
10. A apresentação imediata da pessoa presa ao juiz é o meio de garantir que um cidadão passe o menor tempo possível preso desnecessariamente, ainda que não possua advogado constituído, circunstância que caracteriza a maior parcela da população prisional. (2013, p. 2)
O Ministro Gilmar Mendes, em voto no HC 119095 (MENDES, 2014), caso emblemático de abuso da prisão cautelar, também
ponderou as vantagens da audiência de custódia, refletindo se, no Brasil, já não seria o momento de “começar a exigir, talvez, aquilo que
está já na Convenção Interamericana de Direitos Humanos: a observância da apresentação do preso ao juiz ”.
No mesmo sentido, pondera Paiva (2014):
São inúmeras as vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, a começar pela
mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Confia-se, também, à audiência de custódia a importante missão de reduzir o encarceramento em
massa no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso, superando-se,
desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no art. 306, § 1º, do CPP, que se satisfaz com o
mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado (PAIVA, 2014).
No que tange ao direito comparado, a experiência demonstra o êxito da audiência de custódia, inclusive quanto aos fins
propostos, apesar de a simples previsão normativa não ser suficiente para eliminar por completo a prática de abusos nas detenções
(CANINEU, 2014).
Na Argentina, por exemplo, o Código de Processo Penal federal exige que, em casos de prisão sem ordem judicial, o detento
compareça perante uma autoridade judicial competente no prazo de seis horas após a prisão. No Chile, o Código de Processo Penal
determina que, em casos de flagrante, o suspeito seja apresentado dentro de 12 horas a um promotor, que poderá soltá-lo, ou apresentá-lo
a um juiz no prazo de 24 horas da prisão. Na Colômbia, o Código de Processo Penal prevê que, em casos de flagrante, o detento precisa
ser apresentado ao juiz no prazo de 36 horas. No México, para a maioria dos tipos penais, pessoas detidas em flagrante precisam ser
entregues imediatamente aos promotores, que, por sua vez, devem apresentar os suspeitos a um juiz no prazo de 48 horas ou liberá-los
(CANINEU, 2014).
² O Estado de São Paulo e do Maranhão são exemplos pontuais de Estados brasileiros que expressamente implementaram a audiência de custódia, mas isso
ainda continua sendo uma realidade remota. Em São Paulo, anota a publicação do Provimento Conjunto nº 03/2015, da Presidência do Tribunal de Justiça
e Corregedoria Geral de Justiça, em 27 de janeiro - conforme publicação do MP paulista (http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/corregedoria_geral/
Publicacoes/Minist%C3%A9rio%20P%C3%BAblico%20e%20Audi%C3%AAncia%20de%20Cust%C3%B3dia.pdf) - que “Uma vez realizada uma prisão em
flagrante, a pessoa detida deverá ser apresentada ao Juiz de Direito, em ‘audiência de custódia’, no prazo máximo de 24 horas, oportunidade em que a
autoridade judicial decidirá, após ouvido o representante do Ministério Público, sobre a legalidade da prisão e deverá converter a custódia por força do
flagrante em prisão preventiva ou conceder ao preso a liberdade provisória com ou sem imposição de medidas cautelares ou, ainda, determinar a prisão
domiciliar. Também nessa ocasião o advogado do preso ou a Defensoria Pública serão ouvidos e poderão postular medidas liberatórias ou outras em favor
da pessoa detida, bem como o preso poderá denunciar eventual excesso ou tortura a que tenha sido submetido e tais ocorrências deverão ser apuradas
de imediato. A pessoa custodiada, ainda, será entrevistada pelo Magistrado tão somente acerca de sua qualificação, condições pessoais e circunstâncias
objetivas da sua prisão, sendo vedadas perguntas que possam antecipar eventual instrução criminal de processo de conhecimento, bem como deverá se
submeter a exame de corpo de delito, havendo médicos legistas no local”.
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4. O BAIXO GRAU DE ENFORCEMENT DA NORMA INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS E O CORRELATO DANO COLETIVO
O termo enforcement pressupõe o fazer valer da norma, a garantia de sua observância e obediência. Uma norma possui alto grau
de enforcement quando conta com instrumentos que garantem sua aplicação no caso concreto.
Na acepção de Tams (2005, p. 8), o conceito de enforcement, no direito internacional, compreende formas de induzir outro
Estado a cessar sua conduta ilícita e sanar as consequências. Para o direito interno, são as providências tomadas pelo Estado para limitar
sua própria força e induzir a obediência aos diplomas internacionais que se compromete observar.
No Brasil, diversos TIDH possuem a executoriedade comprometida pelos juízes internos, que não se valem dessas normas para
resolver a demanda judicial.
Ao passo que o direito processual civil não oferece uma resposta efetiva para sua tutela, como uma ação direta que proteja essas
normas supralegais, devendo o aplicador do direito se utilizar de métodos subsidiários, como as ações coletivas, para aumentar o grau de
enforcement dos direitos humanos consagrados nos diplomas internacionais.
Na mesma esteira, a não obediência de normas previstas em TIDH, tal qual o dever de apresentação imediata ou sem demora ao
juiz de pessoa presa em flagrante ou sem mandado judicial pela polícia, pode gerar dano de ordem coletivo, autorizando tanto o manejo
de ação coletiva para sua efetiva tutela quanto o uso do controle de convencionalidade.
Os interesses³ coletivos lato sensu e os interesses individuais indisponíveis são caracterizados pela Constituição como interesse
de ordem social e pública.
Nesse sentido, não possuem titularidade determinada, pois são comuns aos grupos, classes ou categorias de pessoas que estão
ligadas por uma mesma relação jurídica ou fática.
Sua relevância jurídico-processual, no mesmo norte, reside no reconhecimento da necessidade de que o acesso coletivo é
preferível frente ao acesso individual do lesado à Justiça, de modo que “a solução obtida no processo coletivo não apenas deve ser apta
a evitar decisões contraditórias como, ainda, deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido
em proveito de todo o grupo lesado” (MAZZILLI, 2013, p. 51).
Diante disso, a CRFB/88 prescreve, no artigo 5º, o rol de direitos individuais e, destaque-se, coletivos, estabelecendo ainda, no
inciso XXXV, o acesso à Justiça não só do indivíduo, mas também de toda coletividade.
Assim, o efeito gerado por crises de direito pode ter influência tanto na ordem individual da pessoa quanto para toda a
coletividade, situação que, em tese, autoriza a parte lesada a requerer resposta judicial.
Mais ainda, qualquer ação (condenatórias, mandamentais, executivas, declaratórias e constitutivas), conforme artigo 83 do CDC,
pode se tornar coletiva, diante do caráter volátil desses direitos, pois “inexiste taxatividade de objeto para a defesa judicial de interesses
transindividuais” (MAZZILLI, 2013, p. 797-805).
Vale ressaltar, por outra via, que, no Brasil, os interesses ou direitos coletivos lato sensu (ou transindividuais) são gênero das
espécies: direito difuso, coletivo stricto sensu e direito individuais homogêneos (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2013, p. 75).
Refletindo sobre o tema, Didier Jr. e Zaneti Jr. (2013, p. 85) apontam que tais categorias de direito foram conceituadas para
facilitar a prestação jurisdicional, sendo, portanto, “conceitos interativos de direito material e processual, voltados para a instrumentalidade, para a adequação ao direito material da realidade hodierna e, dessa forma, para sua proteção pelo Pode Judiciário”.
Tais espécies se encontram previstas no artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) – Lei Federal nº. 8.078, de 11 de
setembro de 1990 – que dispõe:
Art. 81 - A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida
em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único - A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais,
de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias
de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas
entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem
comum.
³Apesar das críticas doutrinárias com relação à palavra “interesse” (e.g Didier Jr. e Zaneti Jr. [2012, p.88-94]), utiliza-se o termo indistintamente como
sinônimo de “direito” por razões didáticas. Entretanto, faz-se necessário apresentar a visão de Mazzilli (2013, p. 55), para quem a terminologia “interesse”
é utilizada como sinônimo de pretensão de direito. O direito coletivo, por sua vez, é o interesse corroborado em juízo mediante ações coletivas.
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Reforçando a definição das categorias de direitos coletivos já trazidas pelo CDC, Mazzilli (2013, p. 809) conceitua os interesses
transindividuais da forma que se segue. Há os i) interesses difusos – são aqueles “cujos titulares não são determináveis e estão ligados
por uma circunstância de fato. São indivisíveis porque, embora comuns a uma categoria de pessoas, não se pode quantificar o que cabe
a cada um lesado”. Pode-se exemplificar como interesse difuso o meio ambiente. Por outro lado, tem-se os ii) direitos coletivos strictu
sensu – ou seja, são “aqueles em torno dos quais está reunido um conjunto determinável de pessoas (grupo, categoria ou classe), ligadas
de forma indivisível pela mesma relação jurídica básica” – e.g, os membros de um sindicato. Por fim, tem-se os iii) interesses individuais
homogêneos – de origem comum e que “são compartilhados por pessoas que se encontram unidas pela mesma situação de fato. São
divisíveis, ou seja, quantificáveis em face dos titulares, como os consumidores que compram produto fabricado em série com o mesmo
defeito”.
Sendo assim, a práxis enseja a formação de novas categorias de direitos coletivos que merecem tutela do Poder Judiciário. Não
é diferente, portanto, com os direitos humanos, sobretudo os advindos de tratados internacionais que, da mesma forma que os direitos
fundamentais presentes no artigo 5º da CRFB/88, podem ser individuais ou coletivos.
Como se pode constatar, o ordenamento jurídico não especifica um rol exaustivo de interesses difusos e coletivos passíveis
de proteção pela via da ACP. Nem poderia fazê-lo, pois os direitos e interesses difusos e coletivos são a expressão jurídica de valores
historicamente situados, em permanente evolução conforme novos anseios da sociedade (STF, 2009).
Na mesma linha, pondera o Supremo no Recurso Extraordinário nº 163.231/SP (1999):
Os interesses metaindividuais, ou de caráter transindividual, constituem valores cuja titularidade
transcende a esfera meramente subjetiva, vale dizer, a dimensão puramente individual das pessoas
e das instituições. São direitos que pertencem a todos, considerados em perspectiva global. Deles,
ninguém, isoladamente, é o titular exclusivo. Não se concentram num titular único, simplesmente
porque concernem a todos, e a cada um de nós, enquanto membros integrante da coletividade.
Na real verdade, a complexidade desses múltiplos interesses não permite sejam discriminados
e identificados na lei. Os interesses difusos e coletivos não comportam rol exaustivo. A cada
momento, e em função de novas exigências impostas pela sociedade moderna e pós-industrial,
evidenciam-se novos valores, pertencentes a todo o grupo social, cuja tutela se revela necessária
e inafastável. Os interesses transindividuais, por isso mesmo, são inominados, embora haja alguns,
mas evidentes, como os relacionados aos direitos do consumidor ou concernentes ao patrimônio
ambiental, histórico, artístico, estético e cultural.” (grifo nosso)
Dessarte, como assinala Mazzilli (2013, p. 804), qualquer interesse coletivo lato sensu pode, em tese, ser defendido em juízo por
meio da tutela coletiva, tanto pelo Ministério Público como pelos demais colegitimados do artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública (LACP)
– Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 – e pelo art. 82 do CDC.
As teses aventadas pelos autores citados servem de lastro para o entendimento de que a negativa da aplicação dos TIDH de
natureza supralegal, no caso concreto, pode gerar danos de ordem coletiva.
Contextualizando a problemática, considera-se que a lei é um ato normativo abstrato e genérico por definição. A não observação
de seus preceitos de forma sistemática pelos Tribunais gera impedimento do gozo do direito atribuído por ela à toda coletividade.
Com outras palavras, seria o mesmo que dizer que, sempre que o juiz interno (ou alguma autoridade pública) se nega a aplicar
o direito previsto em uma fonte, a conjuntura implica o nascimento de uma pretensão coletiva de que são titulares todas os sujeitos
potencialmente contemplados pelo mesmo direito, mas impedidos de gozá-los pela falta de eficácia da fonte.
Assim como a lei, os TIDH, em regra, possuem as características de serem gerais e abstratos, além de que assumem posição
privilegiada no ordenamento jurídico pátrio e podem revogar a própria lei pela natureza de supralegalidade.
Como destaca Rezek (2011, p. 38), “a matéria versada num tratado pode ela própria interessar de modo mais ou menos extenso
ao direto das gentes [...]”, assim como ao direito interno.
Dessa forma, pode-se expor que o interesse coletivo surge no momento em que a norma internacional de direitos humanos
atributiva de direitos não é aplicada pelas instituições do Estado no caso concreto.
Nesse diapasão, o reduzido grau de enforcement do TIDH – que se traduz na falta de obediência ou aplicação ao caso concreto
dos dispositivos do TIDH e da jurisprudência correlata – gera a pretensão coletiva de requerer em juízo tutela jurisdicional frente à
ineficácia sistemática de suas disposições, acarretando em flagrante dano transindividual.
Para exemplificar, um tratado que versa sobre os direitos da pessoa com deficiência, com obviedade ululante, interessa à
categoria coletiva dos deficientes físicos e também a toda sociedade. Seria uma anomalia achar que seu simples desprezo no caso
concreto poderia passar despercebido pela ordem jurídica, sem qualquer forma instrumental de tutela processual.
Dessa forma, o reduzido grau de aplicação do TIDH causa prejuízo generalizado a todos os titulares de direitos subjetivos
fundados nas convenções, sejam eles direitos individuais ou coletivos, pois a não observância de normas obrigatórias resultará em
conduta ilegal das autoridade públicas e em danos transindividuais multitudinários para os destinatários da norma, que atingem não uma
só categoria de direitos coletivos, mas duas ou três.
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Com efeito, é induvidoso afirmar que “A natural proximidade entre os direitos de natureza coletiva pode levar a situações (não
raras) em que uma mesma conduta [...] viole direitos (afirmados) difusos, coletivos e individuais homogêneos” (DIDIER JR.; ZANETI JR.,
2013, p. 85).
O que se defende não é qualquer tipo de eficácia, mas de uma situação especial relacionada aos TIDH de hierarquia supralegal,
visto que a sua eficácia advém não da simples inobservância da lei, mas da preferência por leis internas de hierarquia inferior que são
aplicadas em detrimento dos TIDH com atributo de supralegalidade.
Nesse sentido, a não implementação da audiência de custódia, direito previsto na Convenção ADH e no PIDCP, pode gerar dano
de ordem coletivo, autorizando tanto o manejo de ação coletiva para sua efetiva tutela quanto o uso do controle de convencionalidade.
Ressalta-se que o exercício do controle de convencionalidade pelo juiz interno, em tal caso, poderia evitar denúncia internacional
por descumprimento de preceitos dos TIDH e qualificar a tutela jurisdicional.
5. ESFORÇOS DE CONSOLIDAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO BRASIL
Diante do baixo grau de enforcement, no Brasil, do dispositivo convencional que prevê a audiência de custódia, os legitimados
para tutela coletiva de direitos passaram a propor ações civis públicas questionando a não implementação do direito subjetivo do preso
de ser apresentado, sem demora, a um juiz, presente na Convenção ADH e no PIDCP.
Nesse deambular, o Ministério Público Federal (MPF) do Ceará, em dezembro de 2010, ajuizou a ACP n.º
00.14512.10.2010.4.05.8100, objetivando, liminarmente, compelir o Diretor Geral da Polícia Federal a instauração, em prazo razoável,
dos Procedimentos Administrativos necessários para fins de cumprimento das disposições do artigo 9º, §3º, do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos (1966), primeira parte, no que diz respeito ao direito de apresentação, sem demora, dos presos ou custodiados
aos respectivos juízos competentes.
Em decorrência desta ação, a Advocacia Geral da União (AGU) encaminhou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) uma proposta
de Resolução para implantar as audiências.
O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, autuou esta proposta de resolução no processo n. 0001731-41.2012.2.00.0000,
com o escopo de disciplinar a apresentação em juízo de toda pessoa presa, internada ou de qualquer forma mantida sob custódia do
Estado. A medida garante que a autoridade judicial possa ouvir a pessoa sobre as circunstâncias em que se realizou o ato de custódia e
decidir, imediatamente, nos termos da legislação em vigor, sobre a sua legalidade e a apuração de eventuais excessos.
Diante da conjuntura, o Ministro Ricardo Lewandowski, propôs ao CNJ o Projeto “Audiência de Custódia”, elaborado pelo Juiz
Luís Geraldo Sant’Anna Lanfredi, e dirigido pelo próprio CNJ, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e pelo Ministério da Justiça, com
o desígnio de prevenção e combate à tortura e de estabelecer um modelo de audiência de custódia a ser implantado no Fórum Criminal
da Barra Funda em São Paulo para os fins do artigo 310 do CPP.
Conforme enunciado pelo mesmo Ministro, mais de 12 (doze) Estados da federação já aderiram ao projeto de audiência de
custódia, e a previsão é que, até o final de 2015, ela seja realizada em todo o território nacional .
Cabe ressaltar que a implementação do referido instituto traz benefícios de ordem política, social e econômica, pois evita prisões
desnecessárias, contribui para a ressocialização de autores de crimes leves e representa economia de mais de R$ 4,3 bilhões por ano aos
cofres públicos, vez que a manutenção do preso custa média de R$ 3 mil mensais.
Noutro giro, com o advento da ADIN 5.240, a questão parece ter se estabilizado, haja vista o plenário do STF ter declarado
constitucional a audiência de custódia (ou audiência de apresentação), como será melhor visto posteriormente.
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=298112.
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6. O PAPEL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA CONCRETIZAÇÃO
DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Como mencionado acima, o MPF ajuizou ação civil pública – que ainda não transitou em julgado – com o propósito de ver
implementada a garantia convencional de apresentação, sem demora, do preso ao juiz, estimulando o debate pátrio tangente à garantia
da Convenção ADH e do PIDCP.
Na mesma ação, o parquet federal também requer a declaração de invalidade da Lei de Prisão Temporária (Lei 7.960, de 21 de
dezembro de 1989), por reportar incompatível com o artigo 7º da Convenção ADH, que veda a possibilidade de detenções arbitrárias.
Posteriormente, a Defensoria Pública da União (DPU), ajuizou nova ação civil pública, no Amazonas, em junho de 2014,
“cobrando do Poder Judiciário apenas a concretização de um direito previsto em Tratados Internacionais de Direitos Humanos que o
Brasil – voluntariamente – aderiu” .
No pedido principal, a DPU requer ao juiz o cumprimento da Convenção ADH (art.7º, 5) e do PIDCP (9º, 3), obrigando a União
a viabilizar a realização da audiência de custódia para todos os presos em flagrante, com a condução, no prazo máximo de 24 (vinte e
quatro) horas, do preso à presença do juiz, com prévia intimação para o Ministério Público e para a defesa.
De uma forma ou de outra, a decisão pelo provimento de qualquer das ações (em outras palavras, o exercício do controle de
convencionalidade pelo juiz) tem o condão de concretizar o dispositivo convencional violado em todo o território nacional, nacionalizando
a invalidade e concedendo enforcement a uma norma de baixa aplicabilidade no ordenamento pátrio.
Nem seria preciso, cumpre ressaltar, que o mandamento convencional estivesse regulamentado por norma legal, pois o disposto
no artigo 7º, 5 da Convenção ADH, e 9º, 3 do PIDCP, possui aplicação imediata e eficácia plena no território brasileiro.
Dessarte, nos exatos termos da ACP, anuncia o advocatus pauperum: “A Justiça Federal do Estado do Amazonas tem, aqui, uma
chance singular de nacionalizar um provimento que fará cessar mais de vinte anos de descumprimento da CADH e do PIDCP [...]”.
Frente a conjuntura referenciada, pode-se afirmar que vem se multiplicando o número de ações civis públicas veiculando pedido
de inconvencionalidade por omissão ou por incompatibilidade da norma interna em face do TIDH, ainda que com outra nomenclatura.
É de se expor que o objetivo dessas novas ações será sempre o de tutelar uma categoria vulnerável de pessoas, que têm seus
direitos coletivos violados em face da omissão do Estado ou de uma norma incompatível com o TIDH.
Com o provimento da ação civil pública, no sentido de tutelar o direito internacional violado, grande número de pessoas, em
injusto cárcere, serão beneficiadas pela coisa julgada coletiva inerente a este tipo de ação, já que exercerá efeitos em todo o País.
A referenciada ação civil pública proposta pela DPU está disponível em: https://www.scribd.com/doc/228594540/ACP-audiencia-de-custodia.
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7. ADIN 5.240
Em agosto de 2015, o plenário do STF julgou improcedente a ADIN 5.240, proposta pela Associação de Delegados de Polícia do
Brasil (Adepol/Brasil), que questionava a Portaria conjunta do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e da Corregedoria Geral da Justiça,
pela implementação da audiência de custódia em São Paulo.
Neste interim, a Associação alega que a deliberação de tais órgãos públicos viola normas de competência presente na
Constituição, já que a competência para legislar sobre Direito Penal e Processo Penal é da União (artigo 22, inciso I da CRFB/88), assim
a implementação do procedimento apenas poderia ocorrer através de lei federal dispondo expressamente sobre a matéria, e jamais por
intermédio de tal provimento autônomo.
No mesmo passo, aduzem que a norma repercutiu diretamente nos interesses institucionais dos delegados de polícia, cujas
atribuições são determinadas pela Constituição (artigo 144, parágrafos 4º e 6º).
Para o STF, o procedimento da audiência de apresentação, que consiste no direito fundamental do preso de ser levado sem
demora à presença do juiz, não inovou no ordenamento jurídico, apenas disciplinou a Convenção Americana de Direitos Humanos
(Convenção ADH), norma vigente no País desde 1992, bem como de dispositivos do CPP.
Na óptica do Supremo, trata-se, na verdade, de comandos de mera organização administrativa interna, ou seja, ato de mera
gestão do Tribunal, sem que interferisse na competência de outros Poderes.
Com isso, o STF julgou improcedente a ADIN 5.240 para declarar constitucional a audiência de custódia e a possibilidade de
sua implementação em todo o território nacional, preenchendo o comando normativo – até então desprovido de eficácia – do PIDCP e
da Convenção ADH.
Nesse sentido, o dispositivo do artigo 9º, 3 do PIDCP e do artigo 7ª, 5, da Convenção ADH passam a ter concretude no
ordenamento jurídico brasileiro, gerando benefícios de ordem econômica, política e social para o País.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A audiência de custódia é importante meio para se evitar prisões arbitrárias e o tratamento degradante de presos. Tem previsão
em TIDH internalizados pelo Brasil, inclusive com natureza jurídica de supralegalidade, sendo hierarquicamente superior a qualquer lei.
Contudo, tais atributos excepcionais não foram suficientes para que a audiência de custódia fosse realidade no Brasil,
permanecendo ignorada por mais de 20 anos, ou seja, desde da vigência da Convenção ADH e do PIDCP, em 1992.
A circunstância acarretou em dano transindividual aos presos, gerando ações civis públicas com o escopo de ver assegurado o
direito de ser apresentado em prazo razoável a juiz diante de prisão.
Nesse sentido, pode-se dizer que o controle judicial de convencionalidade das normas domésticas realizado pelos juízes internos
representa, no Direito Processual, o principal mecanismo de tutela dos direitos humanos consagrados em tratados internacionais.
Por vezes, a teoria do controle de convencionalidade auxilia as cortes internacionais e os órgãos de proteção internacional de
direitos humanos a aumentar o grau de eficácia do TIDH no direito interno, por meio do diálogo constante entre o direito internacional e
o direito do Estado.
Contudo, alguns países, como o Brasil, não dispõem de uma ferramenta processual prevista na legislação pátria com a finalidade
única de proteger efetivamente a supralegalidade do tratado frente à legislação interna, dificultando a instrumentalização do controle de
convencionalidade e levando a não aplicação das disposições dos TIDH, quando colidentes com a lei interna.
Com efeito, a violação aos direitos humanos, constantes em instrumentos internacionais, representa dano à dignidade humana
e requer resposta efetiva do Direito para sua tutela qualificada.
Nessa senda, o dano coletivo evidente gera a possibilidade de tutela interna do direito consagrado no TIDH mediante litígio
coletivo, que se convalida como litígio de interesse público e se apresenta como a principal forma de efetivar as normas internacionais de
direitos humanos no direito doméstico, com arrimo no controle de convencionalidade.
Dessa forma, assim como a audiência de custódia pôde ser fomentada no Brasil mediante controle de convencionalidade na
ação civil pública, o qual estimulou seu processo de implementação e o consequente aumento da eficácia da Convenção ADH e do
PIDCP, conclui-se que o enforcement de uma norma internacional pode ser também ampliada quando, em situações concretas, as ações
coletivas são utilizadas para o exercício do controle de convencionalidade.
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