Revista Completa - Revista de Direito, Estado e Cidadania
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Revista Completa - Revista de Direito, Estado e Cidadania
O CENÁRIO PÓS-SEGUNDA GUERRA E AS DIVERSAS TRAJETÓRIAS TEÓRICAS ADVINDAS DAS TENTATIVAS DE SUPERAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO Matheus Vidal Gomes Monteiro1 Doutorando em Direito/UNESA Professor e Pesquisador – UFF RESUMO: O presente artigo tem por objetivo abordar algumas das principais trajetórias teóricas no âmbito jurídico a partir do segundo pós-guerra. Diante de tal perspectiva cronológica, ao final, serão realizadas observações quanto ao chamado neoconstitucionalismo, esclarecendo-se algumas de suas inúmeras faces no âmbito das doutrinas de língua espanhola, italiana e portuguesa (de terrae brasilis). PALAVRAS-CHAVE: direito positivo – valores – segunda guerra mundial. ABSTRACT: This article aims to address some of the main theoretical trajectories in the legal field from the post-World War II period. Faced with such a chronological perspective, the end, the observations will be made as called neoconstitutionalismo, clearing up some of its many faces within the Spanish-speaking doctrines, Italian and Portuguese (specifically Brazil). KEYWORDS: positive law - values - World War II. Sumário:1. Introdução. 2. O fim da Segunda Guerra Mundial: da refundamentação do direito ao antilegalismo. 3. De uma causa, várias trajetórias. 4. Neoconstitucionalismo(s). 5. Conclusões. 6. Referências Bibliográficas. 1. Introdução Com a queda do nazismo e as consequências dum ataque maciço ao positivismo jurídico, uma nova relação entre o direito positivo e os valores passou a ser defendida e a proporcionar profundas transformações no cenário jurídico. Entretanto, longe de se tornar uma simples tarefa, as inúmeras correntes advindas praticamente duma mesma causa e do sentimento de repulsa aos horrores vividos na Segunda Guerra Mundial tomariam rumos bastante distintos e muitas vezes divergentes entre si. Perspectivas formais, substanciais, de retorno à metafísica, etc., receberam, a partir especialmente das ideias renovadas de Radbruch, o impulso necessário seja para defendê-las, seja para rebatê-las. Contudo, sempre para discuti-las (senão vejamos os intermitentes e permanentes debates sobre a relação entre direito e moral os quais ocupam lugar de destaque nos debates acadêmicos). Inúmeras nomenclaturas surgem, até mesmo para tratardo mesmo fenômeno, e, não muito raro, sendo utilizadas por autores diversos para se referir a coisas totalmente distintas. Claro exemplo pode ser percebido no âmbito do Direito Constitucional: o fenômeno intitulado constitucionalização dos ordenamentos jurídicos. Fruto dessa nova perspectiva pós-segunda guerra, além de gerar inúmeras significações, também possui inúmeros requisitos/características para seu reconhecimento. O debate, portanto, fincase desde o final da década de 40 num eterno gerúndio sem previsões de cessar. Diante deste contexto histórico pós-bélico, abordaremos no presente trabalho as principais trajetórias doutrinárias advindas inicialmente no cenário europeu, e posteriormente ampliadas/modificadas e recebidas por inúmeros outros países, como o Brasil.Essa nova relação de fundamentação, entre o direito positivo e os valores, ao alçar - pela quase totalidade dos autores inseridos neste novo cenário - o cume da dignidade da pessoa humana possibilita, de forma não tão agressiva, um retorno a diversos fundamentos do jusnaturalismo. Por fim, teceremos algumas considerações a respeito de algumas perspectivas doutrinárias quanto ao chamado neoconstitucionalismo, tido por muitos como sendo o cenário no qual se encontram diversos países, assim como o Brasil atualmente. 2. O fim da Segunda Guerra Mundial: da refundamentação do direito a um antilegalismo Se partirmos da análise sistêmica de Losano (2010) , no período pós-Segunda Guerra Mundial, em resposta às atrocidades cometidas pelo nacional-socialismo, tivemos no âmbito jurídico o surgimento de dois caminhos: (i) um, o retorno ao positivismo sociológico de matriz comtiana, na tentativa de restabelecer o elo entre o direito positivo e os valores; (ii) outro, o pensamento jusnaturalista, que não tinha sido extinto na Alemanha, ligando também o direito a valores. O retorno às posturas/doutrinas pré-bélicas tornou-se um padrão para a realização da reconstrução pretendida, visto o potencial ataque direcionado ao positivismo jurídico e as caricatas críticas que renderam a construção do chamado fator ad hitlerum. Analisando o mesmo período histórico, Hespanha (2005, p.332-333) afirma o surgimento dum antilegalismo contemporâneo, reconhecendo, entretanto, uma pluralidade de sentidos que podem ser atribuídos ao referido termo: (i) a recusa à vontade estatal quanto à capacidade de definir critérios de justiça, bem como ao estabelecimento (de forma absoluta e sem apelo) dos conteúdos do direito – herdando a característica da indisponibilidade do direito natural de forma atualizada; (ii) o reconhecimento da artificialidade da regulação estatal perante a forçosa (e natural) 2 regulação da própria vida – reconhecendo-se princípios externos de justiça imanentes às relações sociais os quais devem ser observados pelo direito estatal; (iii) a oposição à tradição de generalidade e abstração da lei, retornando à “velha ideia do direito como prudentia, como ‘saber prático’, no qual o encontrar da solução não decorre do silogismo judiciário, mas de uma espécie de auscultação normativa do caso concreto”2; (iv) “problematizar a adequação da tecnologia disciplinar legalista-estadualista à regulação da vida social, insistindo na pluralidade, quer das situações sociais a regular quer das instâncias sociais de regulação”. Diversos posicionamentos, teorias, doutrinas, etc., podem ser em tais sentidos vinculados. Por exemplo, tanto o jusnaturalismo cristão e o laico podem ser vinculados ao primeiro sentido, apesar de serem orientações filosófico-metodológicas variadas, mas convergentes quanto à superior e impositiva ordem de valores.3 A artificialidade estatal também pode ser percebida em vieses sociologistas, institucionalistas e as ditas correntes críticas, bem como o foco centrado ao casuísmo possibilita o desenvolver dos posicionamentos de estrutura discursiva (HESPANHA, 2005, p.332-333) . Sabemos também que a experiência alemã a partir da (re)introdução teórica de Radbruch proporcionou, mais fortemente, uma “refundamentação do direito em valores suprapositivos, indisponíveis para o legislador” (HESPANHA, 2005, p.335) , e como relembra Guerra Filho (2009, p.131) , um papel especial reservou-se à dignidade humana4, tornando-se um “compromisso prioritário em grau máximo”, expresso desde as linhas iniciais da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “CONSIDERANDO que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, e também, na Carta das Nações Unidas de 1945: NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. Contudo, esse novo núcleo protegido carregaria consigo, desde o início de sua definição, uma dificultosa justificativa quanto à sua fundamentação, pois, da substituição do formalismo de matriz kantiana para a adoção uma específica referência 3 axiológica de conteúdo material, forte pressão oposta seria identificada especialmente por se tratar de tradições europeias historicamente contrárias ao reconhecimento dessa ideia. É por isso que Radbruch, mesmo sem intenção, proporcionou no início de seu retorno teórico, uma aceitação e uma difusão de correntes ligadas ao cristianismo, especificamente, o jusnaturalismo cristão (GARCIA, 2009, p.183 ; HESPANHA, 2005, p.335 ). Tendo em vista e este contexto que se surgia, mediante uma necessária lembrança e confluência de questões históricas, políticas, jurídicas, etc., aceitamos as palavras de Hespanha (2005, p.335) ao reconhecer as peculiares orientações teóricas como possibilidades de caminho para o florescer deste “novo” jusnaturalismo5, retomando-se, conforme as observações de Dimoulis (2006, p.52-53) , “as vetustas tradições do idealismo e de exaltação retórica da missão ética dos operadores do direito, na tentativa de legitimar o atual (‘nosso’) ordenamento jurídico como justo e moralmente adequado, sem indicar os fundamentos jurídicos desse ‘dever de justiça’ e sem explicitar os métodos que permitiriam encontrar a solução justa em cada caso.” Passemos, portanto, a algumas de tais orientações. 3. De uma mesma causa, várias trajetórias Continuando com a análise das trajetórias teóricas advindas dessa reaproximação narrada acima, uma que se mostrou possível a ser seguida, e que pode ser reconhecida em Ernst Bloch6 desde meados de 1961 (inspirado em Hegel), fincavase em reconhecer “aquisições ético-jurídicas irreversíveis da humanidade, ligadas, nomeadamente, a uma progressiva revelação da dignidade humana”, e quetais aquisições “não poderiam ser postas em causa pela lei positiva, constituindo antes uma medida da legitimidade desta” (HESPANHA, 2005, p.335-336) . Com Hespanha (2005, p.335-336) , podemos relembrar a consequente tendência de criação de um direito supra-estatal fincado em direitos humanos, e com Dimoulis (2006, p.51) percebemos uma (re)introdução do idealismo e da metafísica no direito claramente perceptível em solo brasileiro.7 Um rápido excurso sobre um ponto acima. Apesar do conceito filosófico de dignidade humana ter sustentado discussões desde a Antiguidade e ter sido reformatado na modernidade a partir de Kant (2007) (HABERMAS, 1997, P. 71), apenas após a Segunda Guerra Mundial tal conceito pode receber uma acepção válida8 e ser 4 introduzido nos textos do direito das gentes nas constituições em vigor. O que, também, nos remete à lembrança de que o conceito de dignidade humana, como conceito jurídico, não aparece nem nas declarações clássicas dos direitos humanos do séc. XVIII, nem nas codificações do séc. XIX9. Contudo, é possível demonstrar que a substância normativa da dignidade humana já se encontrava explicitada nos direitos humanos desde o início, a partir das condições históricas modificadas – tais como: condições sociais de vida insustentáveis, marginalização de classes sociais, etc. – as quais converteram-na em tema e tornaram consciente o que já estava implícito. Trata-se da função heurística da dignidade humana, demonstrável a cada experiência concreta violadora, e que pode nos conduzir a uma maior exploração do conteúdo normativo dos direitos fundamentais assegurados, ou, à construção de novos direitos fundamentais (HABERMAS, 2012a) . Retornando, outra trajetória, com diferentes perspectivas, pode ser percebida a partir de Kaufmann e Maihoffer10 em 1965 com a qual se apelava “para os ditames da consciência jurídica de cada um que, perante situações concretas, não podia deixar de ditar uma solução justa”. O casuísmo das situações vinculava o nascimento do direito, decorrente da natureza das coisas, que se tornavam, assim, fontes jurídicas (HESPANHA, 2005, p.335-336).11 Quanto a este fenômeno, o modelo anglo-americano do judge made law também muito influenciou a Europa ocidental que, apesar de não recebe-lo incondicionalmente e por inteiro, a partir de sua influência elaborou teorias ressaltando a tarefa criativa do juiz no âmbito das normas jurídicas positivas, contudo estendendo tal função “para além de tais normas com a ajuda de máximas da experiência e de princípios gerais” (LOSANO, 2010, p.245) . Logo, sob o título de “jurisprudência dos valores” (Wertungsjurisprudenz), encontram-se reunidas as correntes teóricas pós-1945 que “atualizaram” a jurisprudência dos interesses buscando a determinação dos valores sob os quais se fundamenta o direito, diferentemente do que proposto pelo jusnaturalismo tradicional. Alguns nomes como Esser, Larenz, Wilburg, Canaris, dentre inúmeros outros, podem ser associados a tal perspectiva.Condicionada pelo conceito de democracia pluralista previsto pelas constituições do pós-segunda guerra, tais correntes defendiam a existência de numerosos valores que, em abstrato, podiam ser o fundamento do direito, em franca oposição às perspectivas contrárias que defendiam um valor absoluto/predominante e preceptivamente indicado pelos juristas. Partindo de duas 5 frentes de ataque, criticava a jurisprudência dos interesses afirmando tais valores abstratos (LOSANO, 2010, p.249-250) . Diferentemente das duas anteriores, outra trajetória teórica, tida como consensualista12, também pode ser percebida, diferenciando-se a partir da impossibilidade de encontrarmos valores absolutos e certos que pudessem ter a função de limitar o arbítrio do legislador, vinculando-os às ideias que defendessem o livre estabelecimento do direito a partir do reconhecimento de valores "consensuais" (HESPANHA, 2005, p.337) . Com relação a tal perspectiva, é possível ainda identificarmos duas ramificações. A primeira, demonstrando-se uma "renovação do contratualismo primo-liberal, propõe que os valores suprapositivos da ordem jurídica são o produto dum contrato estabelecido entre indivíduos racionais de convivência", e "para garantir que esse contrato não seja viciado, nem pelo enviesamento de interesses particulares, nem pela desigualdade real dos contratantes [seus adeptos] estabelecem uma série de pressupostos processuais que devem presidir o contrato”: fincado em Ralws, registra “que cada contraente desconhece a sua situação real em relação aos outros (o que o leva a decidirse por princípios que não o possam prejudicar seja qual for essa situação – o famoso ‘véu da ignorância’; fincado em Habermas (1989 ; 2004 ; 2012c ; 2012b ), registra que “o diálogo que precede o estabelecimento dos princípios de convivência seja ‘transparente e igualitário’ (HESPANHA, 2005, p.337) . Nessa perspectiva, reconhece Silva (2009, p.102) – baseado em referência às propostas discursivas de Habermas e Alexy (2001 ; 2014 ) –: “Afasta-se, assim, do fundamentalismo que define o jusnaturalismo, pois a busca por critérios que definam a correção do direito e dos princípios jurídicos migra do paradigma monológico e naturalista do objetivismo ético para o paradigma dialógico e construtivista de reabilitação da racionalidade prática no direito contemporâneo”. A segunda ramificação, simplesmente naturaliza o senso comum: Isto é típico de uma época em que a massificação da cultura e da informação – quer extensivamente, ao mundializar a comunicação de massa sobre os indivíduos – reduziu drasticamente os dissensos, criando uma cultura de base, expressa pelo senso comum, suficientemente forte para poder servir de apoio a tecnologias disciplinares duras como o direito. A esta cultura superficial pertencem noções ingénuas de ‘direitos humanos’, ‘democracia’, ‘globalização’, ‘multiculturalismo’, ‘ambientalismo’, ‘terrorismo’, sobre as quais se pretende construir uma ordem indiscutida (e, frequentemente, indiscutível) (HESPANHA, 2005, p.337-338). 6 Uma terceira trajetória que pode ser relacionada à segunda, mas recebe tratamento específico e desenvolvimento peculiar no decorrer dos anos, advém duma revalorização da tópica jurídica ou teoria da argumentação (HESPANHA, 2005, p.337) , o que, na perspectiva da análise sistêmica de Losano (2010, p.248) , consiste na teoria antissistemática por excelência. Para Souza Neto e Sarmento (2012, p.178) , as diversas teorias da argumentação jurídica (relacionando-as a Perelman, Alexy, Müller, Atienza, MacCormick e Günther) advieram da busca pela legitimidade das decisões judiciais nos novos tempos do cenário jurídico pós-segunda guerra sob o reconhecimento de sociedades plurais e complexas. Reconhecem, também, que tais teorias “incorporaram ao Direito elementos que o positivismo clássico costumava desprezar, como considerações de natureza moral, ou relacionadas ao campo empírico subjacente às normas”. Por fim, da análise da perspectiva europeia13, para uma mais ampliada, mostrase possível reconhecer, como afirma Figueroa (2009, p.145) , a convergência entre um “jusnaturalismo fraco continental” (principal representante Alexy), com um “positivismo fraco anglo-americano”, desenvolvido a partir do debate Hart-Dworkin. É neste cenário que se afirma que “o ponto de encontro de ambas as direções está em processo de constitucionalização dos ordenamentos jurídicos ou na materialização da regra de reconhecimento do sistema.” Assim também em Sanchís (2009, p.125-126) ao reconhecer que esse novo modelo de Estado Constitucional de Direito advém de duas tradições constitucionais que geralmente são examinadas separadamente: a norteamericana, com sua ideia de supremacia constitucional e a garantia jurisdicional dela decorrente; a tradição nascida da Revolução Francesa com seu programa transformador incorporado num texto jurídico com supremacia. Trata-se da conjugação entre um forte conteúdo normativo e sua garantia jurisdicional. Seguindo a perspectiva (mais fortemente presente) dos autores de filosofia do direito de língua inglesa, a partir da publicação da clássica obra de Hart, e seguindo-se seu debate com Dworkin, a produção acadêmica desenvolvida também proporcionou o surgimento de outras variações teóricas, as mais conhecidas têm sido denominadas de positivismo inclusivo e exclusivo. Já quanto à perspectiva da Europa ocidental, as diversas trajetórias expostas convergem para o desenvolvimento do chamado neoconstitucionalismo, cujos traços principais serão explorados no próximo item. 4. Neoconstitucionalismo(s) 7 Neoconstitucionalismo, Contemporâneo16, novo pós-positivismo14-15, constitucionalismo, novo Constitucionalismo direito constitucional, constitucionalismo de direitos, constitucionalismo avançado, paradigma argumentativo, neorrealismo, neojusnaturalismo, neopositivismo, etc.17 Assim como essa pluralidade de nomenclaturas, as inúmeras significações que lhe podem ser atribuídas encontram-se longe de uma convergência unânime, refletindo-se, também, nas mais diversas expressões deste novo panorama jurídico fruto das transformações e trajetórias descritas acima. Resume-se na simples afirmação de Barroso (2009, p.52) sobre esse movimento: “Sabe-se que veio depois e que tem a pretensão de ser novo. Mas ainda não se sabe bem o que é. Tudo é ainda incerto. Pode ser avanço. Pode ser uma volta ao passado. Pode ser apenas um movimento circular, uma dessas guinadas de 360 graus”. Esse movimento teórico-constitucional contemporâneo tem sido comumente intitulado neoconstitucionalismo - se considerarmos a doutrina de língua espanhola e italiana principalmente, sendo as que influenciaram fortemente a doutrina brasileira. E devido à sua multiplicidade de significados – variandonão raro de forma forte, de autor para autor -, exposta em título de conhecida obra de Carbonell (2009) cujo plural lhe foi colocado intencionalmente, tem por intuito demonstrar o inconsistente terreno em que se move a produção acadêmica atual. Reconhecemos, assim, estarmos diante de um debate longe de se consolidar frente a essa nova dinâmica jurídica (MAIA, 2009; OLIVEIRA, 2009) ainda sendo cedo “para dar por encerrada a discussão acerca do declínio do positivismo - nas suas mais variadas formas - e do primado desse novo constitucionalismo" (STRECK, 2009, p.334) . Senão vejamos. A título de (uma rasa, porém inicial e necessariamente esclarecedora) exemplificação: para Moreira (2009, p.414) , o neoconstitucionalismo trata-se duma “teoria adequada às democracias ocidentais”, o que lhe proporciona escapar das discussões acerca do universalismo vs. multiculturalismo. Como para Figueroa (2009, p.147) , baseado em outros aspectos, representa “[...] teoria ou conjunto de teorias que proporcionaram uma cobertura justeórica conceitual e/ou normativa à constitucionalização do Direito em termos normalmente não positivistas.” E, para Garcia (2009, p.188-189) , já representaria [...] uma fase de renovação em que os direitos humanos se encontram em situação de total prioridade, exatamente a justificativa desse longo enfoque do Estado (soberano) para chegarmos, com Agamben, à convicção da exigência, hoje, de 'um estado de exceção permanente' e a uma indagação 8 sobre os direitos do homem. [...] O Direito contemporâneo passa, assim, pelo fio da navalha de uma renovação incontornável: uma nova onda do Constitucionalismo - movimento, processo, dinâmica - por uma visão constitucionalizada do Direito. Alguns autores, como Comanducci (2002) , Sanchís (2009) , e Figueroa (2009) , ao abordarem essa nova perspectiva, assim o fazem seguindo os passos de Bobbio (1995) , quando da análise do positivismo jurídico em sua obra clássica, trabalhando suas principais características a partir de uma divisão entre as perspectivas teóricas, metodológicas e ideológicas. Todavia, outras classificações e abordagens também são existentes, como a de Moreira (2008) , dividindo em neoconstitucionalismo teórico (normativo18) e neoconstitucionalismo total (forte19), enquadrando-as como percepções de teoria do direito, e tendo este último uma relação de continência com o primeiro, quanto às suas posturas teóricas; a de Maia (2009) , que aborda o fenômeno sob três aspectos: (i) como certo tipo de Estado de direito (forma de organização política); (ii) como teoria do direito (descrição e operacionalização desse modelo); (iii) como filosofia política ou ideologia; a de Barroso (2009) o qual procede à reconstituição do direito constitucional a partir dos marcos histórico, teórico e filosófico; dentre inúmeros outros que poderiam ser aqui descritos. Por isso que, de forma resumidamente exposta, a pluralidade de matrizes teóricas, opiniões doutrinárias, etc. – fincadas tanto nos pontos da dogmática jurídica quanto no campo empírico (NETO;SARMENTO, 2012, p.177) -existentes desde o início do estudo quanto às possibilidades de definições/características nos impedem de buscar uma uniformidade, mas tão somente, expor as características tidas como principais/essenciais e, por fim, até contingentes desse movimento teórico contemporâneo.Até porque, como nos afirmaMoreira (2008, p.244) , “o modelo neoconstitucionalista analisado (sobretudo o total) depende de fatores de aceitação jurídica e social para ser implementado”. Contudo, certa ideia convergente pode ser desenvolvida a partir da maioria das discussões teóricas que se desenvolveram em torno desse fenômeno, seja quanto às suas características, seja quanto aos seus requisitos identificadores. Trata-se da ideia de “constitucionalização do ordenamento jurídico”, encampada e desenvolvida comumente no âmbito acadêmico – nos moldes da herança descrita acima –a partir da admissão das lições de Guastini (2001, p.153) sobre sua significação: trata-se dum processo de transformação do ordenamento jurídico, no qual, ao seu final, esse ordenamento estaria “impregnado” pelas normas constitucionais, caracterizando-se por uma “Constitución 9 extremadamente invasora, entrometida, capaz de condicionar tanto la legislación como la jurisprudencia y el estilo doctrinal, la acción de los actores políticos así como las relaciones sociales”. Não se tratando, pois, de um conceito verdadeiro/falso, mas sim, duma questão de grau. E para fazer jus à diferenciação em graus, Guastini (2001, p.153) propõe uma lista (composta por sete itens), não completa/permanente, mas apenas um ponto de partida para tal diferenciação, i.e., para a identificação de um ordenamento completamente impregnado pelas normas constitucionais: uma Constituição rígida (1); a garantia jurisdicional da Constituição (2); a força vinculante da Constituição (3); a “sobreintepretação” da Constituição (4); a aplicação direta das normas constitucionais (5); a interpretação conforme as leis (6); a influência da Constituição sobre as relações políticas (7). Complementa, ainda Guastini (2001, p.154) : Deseo también señalar que las condiciones 1 y 2 son condiciones necesarias de constitucionalización, en el sentido de que la constitucionalización no es ni siquiera concebible en su ausencia. Por el contrario, cada una de las condiciones restantes, de la 3 a la 7, es una condición suficiente de un grado distinto de constitucionalización. Por otra parte, […] algunas de estas condiciones – especialmente las condiciones 3, 4 y 5 – están vinculadas entre sí de modo muy estrecho, tanto que se puede decir que, en cierta medida, en el proceso de constitucionalización ‘todo se va cumpliendo’. Nos moldes da pluralidade de perspectivas exposta acima, ainda podem ser percebidas específicas posições, como as de Souza Neto e Sarmento20 (2012, p.176) , as quais reconhecem como ínsitos à ideia convergente: a) reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito; b) rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou “estilos” mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da argumentação etc.; c) constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; d) reaproximação entre o Direito e a Moral; e e) judicialização da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário. Já em Camargo e Tavares (2009, p.358) , tais autores acrescentam duas características: “a positivação de um[a] pauta moral através de um extenso rol de direitos fundamentais [fincado em Alexy]”; “o caráter controvertido, vago e pluralista dessa mesma pauta.” Assim como podemos relembrar as conhecidas afirmações de Sanchís (2009, p.132) , quanto ao fenômeno analisado: 10 […] más principios que reglas; más ponderación que subsunción; omnipresencia de la Constitución en todas las áreas jurídicas y en todo los conflictos mínimamente relevantes, en lugar de espacios exentos en favor de la opción legislativa o reglamentaria; omnipotencia judicial en lugar de autonomía del legislador ordinario; y por último, coexistencia de una constelación plural de valores, a veces tendencialmente contradictorios, en lugar de homogeneidad ideológica en torno a un puñado de principios coherentes entre sí y en torno sobre todo, a las sucesivas opciones legislativas. Por fim, reafirmando a possibilidade de encontrarmos diferentes e profundas visões direcionadas para a mesma perspectiva teórica, vejamos em Reis (2009, p.541542) quais suas ideias quanto às características do neoconstitucionalismo: (a) a atenção dedicada à análise das relações entre valores, princípios e regras; (b) uma reaproximação entre Ética e Direito; (c) a preocupação com a eficácia, legitimação e efetividade das normas constitucionais, em geral, e dos direitos fundamentais, em particular, com o desenvolvimento de uma verdadeira Teoria dos Direitos Fundamentais, edificada sobre o grande alicerce da dignidade da pessoa humana; (d) a percepção da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais, isto é, a sua irradiação de efeitos também no âmbito das relações privadas; (e) o fenômeno da constitucionalização do Direito; (f) a revalorização do raciocínio tópico na hermenêutica jurídica, enfatizando as peculiaridades e circunstâncias de cada caso concreto específico; (g) o desenvolvimento da Teoria da Argumentação, como instrumental para a legitimação das decisões jurídicas, especialmente nos chamados 'casos difíceis'; (h) o destacado papel da jurisdição constitucional no sistema jurídico. Retornandona seara do que proposto por Guastini, reconhecemos com Möller (2011, p.30) que, se estamos diante de diferentes graus de constitucionalização e peculiaridades de diversos sistemas jurídicos, tal diversidade conduzirá à elaboração de não unânimes características e/ou requisitos necessários para a adequação de determinada hipótese ao movimento em análise.No entanto, como já visto anteriormente a partir da ideia convergente descrita, de certa maneira inicialmente orientadora, todas as características seguintes possuem um núcleo-base embrionário: a realocação da constituição como topo do ordenamento jurídico, constituindo sua superioridade hierárquica frente às demais normas jurídicas com a identificação de sua normatividade (FERRAJOLI, 2009; MÖLLER, 2011) – o que, para Pozzolo (2009, p.199) , para além duma simples alteração quanto à hierarquia normativa, proporciona uma mutação qualitativa no Direito por inteiro. Trata-se, nas palavras de Comanducci (2002, p. 97) , Guastini (2001, p.153) , Moreira (2008, p.240) , Pozzolo (2009, p.192) , dentre inúmeros outros: de uma invasão do ordenamento jurídico pela Constituição (“una constitución ‘invasora’). 11 Sob outra ótica, utilizando também nomenclatura diversa, podemos encontrar de forma convergente com os parágrafos anteriores, que essas modificações descritas proporcionaram (e vem proporcionando) o que se tem denominado de Estado Constitucional Democrático de Direito, Estado Democrático Constitucional (compromissório e dirigente) (STRECK, 2009) , Estado Constitucional de Direito (ou Estado Constitucional) (FERRAJOLI, 2009, p.14) , e inúmeras outras variações a partir do reconhecimento do fenômeno da constitucionalização. 5. Conclusões Com o presente trabalho buscamos realizar uma despretensiosa abordagem acerca das principais trajetórias teóricas advindas do período pós-segunda guerra, caracterizadas em comum diante da necessidade de superação do estrito legalismo que recebeu severas críticas pelo período descrito. Seja postulando o retorno a categorias metafísicas – como normalmente feito com a dignidade da pessoa humana e o reconhecimento da inalienabilidade inerente aos direitos humanos/naturais – seja, em outro extremo, pelas posturas ditas consensualistas, as quais buscam fugir de qualquer pretenso fundamentalismo, tais ideias são tidas como fruto das consequências advindas com o fim do nazismo e a alteração de paradigma político-jurídico que se instaurava. As citadas tópica e argumentação jurídica desenvolveram-se fortemente neste cenário, influenciando para além de uma discussão quanto à validade/reconhecimento do direito, mas também nessa nova função do Poder Judiciário e da legitimidade de suas decisões. Assim como certa convergência entre as principais ideias europeias e as anglo-americanas, estas desenvolvidasa partir do debate Hart-Dworkin. Como último tópico de abordagem, tratamos do que comumente tem se intitulado neoconstitucionalismo, demonstrando algumas de suas conceituações, características e propostas doutrinárias mais afetas à doutrina de língua italiana, espanhola e portuguesa, com foco no Brasil. Percebe-se, por este simples trabalho, o cuidado que se deve ter quando da utilização de qualquer nomenclatura ligada a determinado autor, bem como, de qualquer grupo de requisitos/características também ligados a qualquer autor, visto que, além de estarmos inseridos num contexto de discussão longe de qualquer final, as inúmeras posições que advém de tal âmbito doutrinário surgem eivadas de posições ímpares, 12 especificamente individuais, e que devem ser abordadas com cuidado sob pena de tornarem-se caricaturas de uma imagem criada por autores estrangeiros. Os debates acerca do neoconstitucionalismo encontram-se inseridos nas bases dum cenário pós-bélico, e, conforme descrito no item 2, também encontram-se num contexto de desenvolvimento de divergentes matrizes teóricas muitas vezes paradoxalmente contrastantes. Ao abordarmos uma, não nos esqueçamos das demais, nem de sua origem comum, e, especialmente, das especificidades que proporcionaram as divisões nas inúmeras vertentes para que não realizemos considerações que nada mais fazem a não ser desvincularem-se da específica tradição de cada matriz, gerando mixagens despreocupadas com o rigor científico necessário para o bom desenvolvimento do debate. Esperamos ter contribuído com este objetivo. 13 6. Referências Bibliográficas ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy. 2001. __________, Teoria Discursiva do Direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2014. BARCELLOS, Ana Paulade; BARROSO, Luís Roberto. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. A nova interpretação constitucional: Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 327-78. BARROSO, Luís Roberto. 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Mestre em BioDireito, Ética e Cidadania pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo UNISAL (2010). Doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá - UNESA. Professor Assistente da Universidade Federal Fluminense – UFF-PUVR-ICHS-VDI. E-mail: [email protected]. 2 O que, no cenário nacional, Souza Neto e Sarmento (2012, p.176) denominam de reabilitação do uso prático da razão na metodologia jurídica. 16 3 Relembra Hespanha (2005, p.340-341) que, no séc. XIX, realizou-se um “renascimento do direito natural”, a partir de uma releleitura de S. Tomás de Aquino (‘neotomismo’), sublinhando-se seus aspectos personalistas, proporcionando que a “dignificação da Pessoa seja inseparável da dignificação da Humanidade e da dignificação do Sobrenatural”. Decorre desta perspectiva, que, “em nome da dignidade da pessoa se devam corrigir os ‘excessos’ do individualismo que pudessem pôr em causa os outros dois valores”. Essa nova perspectiva fincava-se, principalmente em: (i) admitir a ideia de que existem valores éticos superiores aos quais o direito deve servir, e tais valores decorrem da dignidade da pessoa humana, da dignidade do gênero humano e da dignidade do sobrenatural; (ii) as dimensões física e espiritual da pessoa devem ser protegidas pelo Estado, redefinindo-se, portanto, tais “direitos pessoais inerentes à dignidade da pessoa humana” como direito naturais pré-estatais; (iii) a liberdade do espírito, revovada sob a “liberdade de pensamento e da sua expressão” era alçada a direito natural; (iv) em combate às correntes socialistas, a propriedade privada receberia também a mesma essência de direito natural, considerada como extensão da liberdade pessoal; (v) no plano da família, aspecto religioso aprofunda-se frente ao “fundo natural da instituição familiar”, qualificando desta forma a “indissolubilidade do casamento, a liberdade de procriar e de educar os filhos”. Especialmente no âmbito do direito público, eram defendidas (i) a limitação do Estado e do direito pela moral e direito natural; (ii) a subsidiariedade do Estado com o impedimento de sua imposição como fim da vida política; (iii) a função do Estado em limitar os excessos do individualismo e, de modo ativo, realizar ações protetivas aos mais desprotegidos (HESPANHA, 2005, p.341-342) . 4 Para Habermas (2012a, p.20) : "O conceito de dignidade humana, disponível na linguagem cotidiana, foi ele próprio transformado nesse processo de vinculação. Nesse processo, aquelas representações linguísticas correntes sobre a dignidade social, que estavam associadas a um status particular nas sociedades estamentais da Idade Média europeia e nas sociedades das corporações de ofício nos primórdios dos tempos modernos, evidentemente desempenharam um papel importante.” 5 Assim também em Souza Neto e Sarmento (2012, p.176) . 6 Hespanha (2005, p.335) reconhece tal orientação em Ernst Bloch, a partir de seu Naturrecht und menschliche Würde (Direito natural e dignidade humana), publicado em 1961. No âmbito do direito positivo, reconhece reflexos na ideia de acquis constitucional, como pano de fundo à teoria da não revisibilidade de determinados artigos da Constituição portuguesa de 1976. 7 Para conferir as diversas citações e autores, vide: Dimoulis (2006, p.43-53) . Souza Neto e Sarmento (2012, p.176) , por exemplo, reconhecem que o apelo à metafísica fez com que esse renascimento do jusnaturalismo fosse abandonado, mas causando profundas inquietações diante da crise do positivismo jurídico. Silva (2009, p.109) reconhece que “certamente, o neoconstitucionalismonão-positivista resgata e reformula – a partir de um paradigma filosófico construtivista – a intuição jusnaturalista de que há direito para além do direito positivo.” 8 Como proposto, a partir da explicitação dos direitos humanos em conceitos jurídicos universais tornou-se possível a formação de compromissos negociados, com a produção do consenso em tratados e convenções, em diversas culturas. O que, de certa forma, proporcionará também no processo de autolegislação democrática. Com isso, à luz de diversos desafios históricos - tais como: condições sociais de vida insustentáveis, marginalização de classes sociais, discriminação de minorias culturais, etc. - , os quais conferem uma função de descoberta a cada experiência violadora da dignidade humana, em cada momento como esse são atualizadas outras dimensões do sentido da dignidade humana. Por conseguinte, tal característica de "descoberta" da dignidade humana especificada em cada evento histórico, "pode levar tanto a uma maior exploração do conteúdo normativo dos direitos fundamentais assegurados, como ao descobrimento e à construção de novos direitos fundamentais". (HABERMAS, 2012a, p.14) 9 Diante do atraso na discussão acerca do conceito de dignidade humana no âmbito jurídico, pois, apenas com a exceção do exemplo alemão na metade do séc. XIX, podemos aceitar que somente após o holocausto a ideia de direitos humanos é depois carregada (e possivelmente sobrecarregada) moralmente com o conceito de dignidade humana. Neste sentido, importante se torna registrar a “assimetria temporal entre a história dos direitos humanos que remonta ao século XVII e o surgimento recente do conceito de dignidade humana nas codificações do direito das gentes, bem como nas decisões jurídicas do último século", e, que só “existe uma exceção na metade do século XIX. No contexto dos debates sobre a abolição da pena de morte e da punição corporal, afirma-se no §139 da Constituição de Frankfurt [Paulskirchenverfassung] de março de 1894: 'um povo livre deve respeitar a dignidade humana mesmo no caso de criminoso.'. Contudo, essa constituição, que foi o produto da primeira revolução burguesa na Alemanha, não entrou em vigor" (HABERMAS, 2012a, p.10) . 17 10 Hespanha (2005, p.336) reconhece tal orientação já em Max Scheler, em seu Der Formalismus in der Ethik um die materiale Wertethik, em 1927. E no período pós-guerra, em A. Kaufmann e W. Maihoffer, em Die ontologische Bergründung des Rechts, em 1965. 11 Em complemento: “[...] apelavam para os valores de que as próprias situações da vida eram em si mesmas portadoras. O direito decorreria, assim, da própria ‘natureza das coisas (Natur der Sache)’, que tanto resistiria às intenções normativas ‘artificiais’ (eventualmente, contra natura) do legislador, como seria capaz de sugerir, positivamente, soluções jurídicas adequadas (‘ajustadas’, gerechtige, ‘justas’, richtige). As ‘coisas’ tornam-se, assim, numa fonte de direito, de onde decorreriam um ‘direito natural concreto’. Em todo o caso, estas coisas a que esta corrente se refere não são as realidades sociais empíricas observáveis nos termos da sociologia descritiva. Compreendem também uma dimensão não empírica, normativa: o apelo para uma certa ordenação, uma ideia condutora, uma ‘lógica’ interna, uma expectativa de desempenho de certos papéis pelos agentes envolvidos. É isso que dá a estas ‘coisas’ uma dimensão normativa e as transforma em elementos de ordenação (e não apenas de mera reprodução da ordem existente)” (HESPANHA, 2005, p.335-336) . 12 Hespanha (2005, p.337) reconhece tal orientação em John Ralws, em seu A theory of justice, em 1972, a partir do “consenso através de uma hipotética negociação em condições de ‘igualdade de oportunidades’, e em Jürgen Habermas, em Vorstudien und Ergänzungen zu einer Theorie des kommunikativen Handelns, em 1984, com “o consenso ideal através de um hipotético ‘diálogo livre de domínio de todos com todos’. 13 Num quadro comparativo, nos esclarece Sanchís (2009, p.129) : “El constitucionalismo europeo de pos-guerra parece así haber tomado elementos de distintas procedencias, conjugándolos de un modo bastante original. Frente a la idea rousseauniana de una soberanía popular permanentemente activa, que, además de dotarse de una Constitución, querer prolongarse en la inagotable voluntad general que se hace efectiva a través del legislador, parece haber retornado más bien a la herencia norteamericana, que veía en la Constitución la expresión acabada de un poder constituyente limitador de los poderes constituidos, incluido el legislador. Pero, frente a la concepción más escueta de la Constitución como regla del juego que se reduce a ordenar el pluralismo político en la formación de la ley, una visión presente en el primer constitucionalismo norteamericano pero también en Kelsen, las nuevas Constituciones no renuncian a incorporar en forma de normas sustantivas lo que han de ser los grandes objetivos de la acción política, algo que se inscribe mejor en la tradición de la Revolución francesa. Del primero de los modelos enunciados se deduce la garantía judicial, que es método más consecuente de articular la limitación del legislador; pero del segundo se deducen los parámetros del enjuiciamiento, que ya no son reglas formales y procedimentales, sino normas sustantivas.” 14 O termo pós-positivismo tem sido comumente entregue à criação de Albert Calsamiglia, com importante repercussão no Brasil a partir da obra Curso de Direito Constitucional de Paulo Bonavides (MAIA, 2009 ; MOREIRA, 2008 ). Alguns autores como Silva (2009, p.94) , utilizam também o termo não-positivismo como sinônimo de pós-positivismo, e chegam a propor um neoconstitucionalismo não(ou pós)-positivista. Sobre o termo pós-positivismo e suas significações, algumas considerações devem ser realizadas, mesmo que suscintamente, pois sua utilização, apesar de confusamente disseminada em solo brasileiro, não encontra mesmo amparo em territórios estrangeiros (DIMOULIS, 2006, p.48) . Conhecida “auto-qualificação” teórica como pós-positivista pode ser encontrada nos adeptos da chamada teoria estruturante do direito (strukturierende Rechtslehre) de Friedrich Müller (1938), a qual reivindica a aplicação de determinada metodologia pós-positivista (nachpositivistische Methodik), diferenciando-se da metodologia juspositivista clássica acerca da interpretação das normas jurídicas. Sem abandonar as clássicas lições juspositivas sobre a validade do direito (fontes jurídicas estatais, e exclusão de interferências morais), tais adeptos consideram “que a concretização da norma deve ocorrer levando em consideração elementos históricos e sociais e exige que o intérprete desempenhe um papel ativo, atribuindo sentido ao texto da norma (Normtext) em virtude de considerações relacionadas com particularidades do caso concreto” (DIMOULIS, 2006, p.48) . O termo vem sendo adotado com um significado moralista e idealista; cronológico, no sentido pós-segunda guerra; referenciando-se ao direito como um sistema aberto de valores; como um ressurgimento da metafísica no direito (DIMOULIS, 2006, p.48) .. “Além disso, um exame detido indica que o termo ‘pós-positivismo’ não é exato nem do ponto de vista cronológico. As críticas ao positivismo jurídico não constituem um fato novo, pois estão sendo repetidas, pelo menos desde finais do século XIX. Além disso, muitas das teorias apontadas como pós-positivistas são anteriores à formulação de análises positivistas atuais das últimas décadas. Assim, por exemplo, a abordagem tópica de Theodor Viehweg, tida como pós-positivista, foi exposta em obra publicada em 1953, quase uma década antes da publicação do opus Magnum de Herbert Hart The concept 18 of law (1ª Edição em 1961) que renovou os fundamentos do positivismo jurídico e originou um amplo debate sobre o sentido dessa teoria que continua até os nossos dias.” (DIMOULIS, 2006, p.51) . 15 Para Barcellos e Barroso (2006, p.336) : “O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana.” Para Maia (2009) , também utilizando o termo pós-positivista em trabalhos anteriores, e, em posteriores escritos, ao passar a utilizar o termo neoconstitucionalismo, empregou sentido provisório à antiga denominação. Outros, como Merçon e Peixinho (2009, p.318) , diferenciam o pós-positivismo e o neoconstitucionalismo, sendo aquele, apesar de reconhecem a dificuldade de sua denominação, como o conjunto “das teorias do direito pós-kelsenianas que se dedicaram à reformulação e à renovação do positivismo formal, na filosofia e nas ciências sociais e políticas. Vinculam ao pós-positivismo Perelman, Viehweg, Recaséns e Villey, registrando a preponderância em teorias argumentativas, cujas teses relacionam-se com uma racionalidade jurídica finada em quatro pressupostos: “reabilitação da filosofia prática, enfraquecimento das fronteiras entre a hermenêutica e a filosofia analítica – esta conduz ao conceito de hermenêutica analítica -; a inclusão de aspectos sociológicos e históricos considerados relevantes para a teoria da ciência; e a reaproximação entre a filosofia analítica e a filosofia crítica.” Para Möller (2011, p.26) o neoconstitucionalismo analisado como teoria do direito é sinônimo de pós-positivismo. 16 Para Streck (2014, p.47) , para evitar mal-entendidos no que tange ao termo neoconstitucionalismo, o autor passa a utilizar em suas obras o termo Constitucionalismo Contemporâneo, consistindo no “movimento que desaguou nas Constituições do segundo pós-guerra e que ainda está presente em nosso contexto atual.” 17 Para Silva (2009) , “novo constitucionalismo” e “novo direito constitucional” constituem expressões sinônimas. Os três últimos termos - constitucionalismo de direitos, constitucionalismo avançado, paradigma argumentativo - foram utilizados por Maia (2009, p.7) . Já Figueroa (2009, p.145) , por outro lado, reconhece como um neorrealismo ou neojusnaturalismo, o resultado da convergência comum de inúmeras perspectivas teóricas diferentes. 18 Nas palavras do autor: “Neoconstitucionalismo teórico (somente como teoria do direito). (Estabelece o Direito Constitucional como o centro do ordenamento e da Teoria do Direito, em que os outros campos jurídicos são todos constitucionalizados. Afirma-se como antipositivista e antijusnaturalista.) [...] Parte da conexão entre direito e moral, embora tal medida não seja um consenso entre seus adeptos. Trabalha seu principal elemento, os princípios constitucionais, estabelecidos e a serem preenchidos, pela argumentação jurídica que já integra o direito. [...] Trabalha o direito em um sistema de regras e princípios, e o ponto de vista é o do participante interno e ativo. Trabalha o direito, com textura necessariamente aberta. O estado é visto como Estado Ponderador. [...] Trabalha uma teoria dos princípios positivados, essencial para o desenvolvimento do modelo, os quais atuam diretamente em todo o sistema, principalmente pela leitura da constitucionalização do direito.” (MOREIRA, 2008, p.243) . Reconhece como adeptos do neoconstitucionalismo teórico-normativo: Luís Prieto Sanchís, Albert Calsamiglia, Luís Roberto Barroso. 19 Nas palavras do autor: “Neoconstitucionalismo total (Faz a união entre o Direito Constitucional e a Filosofia do Direito, em que os dois estudos ocupam o ponto máximo, regendo conjuntamente o ordenamento). Aceita as premissas conquistadas no neoconstitucionalismo teórico, como ponto de partida. Diz-se antipositivista e quer chegar, ainda, a ser também vetor da filosofia do direito aplicada e da filosofia política do estado: um completo novo paradigma. [...] Faz conexão necessária entre o direito e a moral por via dos princípios e insere a política na relação e todos os seus efeitos. A moral é sofisticada pela pretensão de correção, ponto máximo da racionalidade prática que concebe também critérios argumentativos procedimentais. A pretensão de correção afasta o uso errado da moral e privilegia a racionalidade prática e o sistema de princípios jusfundamentais, todos eles os principais elementos do direito. [...] Trabalha o Direito em um sistema de regras e princípios, estes agindo pela pretensão de correção, e o ponto de vista é do participante interno, ativo e moral. A pretensão de correção emanada dos princípios constitucionais, e argumentativamente justificada, com critérios do direito como integridade (até para o pensamento internacional público) e da coerência, são os principais elementos do direito. Trabalha o direito como ele pode ser, com abertura. [...] Trabalha uma teoria dos princípios positivados que sempre podem ser utilizados e aceita o aproveitamento dos princípios implícitos, além de propor um novo modelo de teoria do direito e de filosofia do Direito, em que se utiliza, necessariamente, da argumentação jurídica. Retoma a teoria da justiça agregando suas teses formais e materiais.” (MOREIRA, 2008, p.243) . Reconhece como adeptos do neoconstitucionalismo total-forte: Alfonso Figueroa, Robert Alexy, Sastre Ariza, Manuel Atienza e Antonio Maia. 19 20 Seguindo também de forma parecida, porém utilizando outras classificações, Merçon e Peixinho (2009) 20 DIREITOS FUNDAMENTAIS,INCLUSÃO JURÍDICA E CIDADANIA COMO FERRAMENTA POLÍTICA E SOCIAL Pablo Jiménez Serranoi* Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Oriente1Cuba Daniele Mattoso Hammesii** Doutora em Sociologia Política. Economista Professora e pesquisadora do Centro Universitário Volta Redonda – UniFOA Resumo No presente trabalho discute-se a relação possível entre os construtos: cidadania e exclusão jurídica. Nesse diapasão, privilegia-se um discurso que permite uma melhor compreensão da realização dos direitos de cada cidadão, especialmente o direito a uma melhor assistência jurídica. Palavras-chave: Cidadania; Exclusão Social; Exclusão Jurídica. Resumen: En el presente trabajo se discute la relación existente entre las construcciones: ciudadanía e exclusión jurídica. Aquí, damos preferencia a un discurso que permite la mejor comprensión da realización de los derechos de cada ciudadano, especialmente el derecho a una mejor asistencia jurídica. Palabras-llave: Ciudadanía; Exclusión Social; Exclusión Jurídica. Sumário: Introdução. 1. Significação dos direitos fundamentais. 2. Cidadania e concretização dos direitos. 3. Para além de uma definição. 3.1. Expressão dos direitos dos cidadãos na sociedade contemporânea. 3.2 A problemática da exclusão social. 4. Exclusão social e democratização do acesso à justiça. 5. A tutela rápida e justa e seus instrumentos. Conclusão. Notas. Referências bibliográficas. Introdução O presente artigo visa estudar como se articulam os conceitos contemporâneos de cidadania e de exclusão jurídica, entendida como o fenômeno de ausência de instituições e instrumentos hábeis de provocação de tutela rápida e justa dos direitos básicos dos jurisdicionados no Brasil. Para tanto, aborda-se, de início, a característica da universalidade dos direitos fundamentais e a teoria da dupla dimensão, que evidenciam quer a titularidade ampla de tais direitos quanto os deveres de proteção por parte do Estado. Após, analisa-se a temática da realização da cidadania pela concretização dos direitos que foram conquistadas pela sociedade e, em seguida, o conteúdo de tais direitos, bem como o conceito-chave de dignidade humana e sua relação com o direito à assistência jurídica. Além da explicitação do direito à assistência jurídica, analisam-se, com brevidade, os pontos basilares da facilitação do acesso à justiça, com foco nos juizados especiais e na conciliação. 1 1. Significação dos direitos fundamentais Os direitos fundamentais, quer pela ótica do Direito Internacionalquando denominados direitos humanos (RAMOS, 2005, p. 179), quer pela ótica do Direito Constitucional, são universais, ou seja, na síntese do citado autor1, seus titulares são os seres humanos, sem distinção de qualquer ordem (religião, gênero, orientação sexual, convicção política, etnia, nacionalidade, entre outros). Por outro lado, cabe lembrar que a afirmação dos direitos fundamentais representou, ao longo da história, um movimento emancipatório, qualificado pela tolerância e pela natureza contramajoritária, essencial para a defesa das minorias e que permeia a história da humanidade. De fato, o reconhecimento teórico e filosófico dos direitos do homem tem antecedentes históricos remotos na Antiguidade grega e, como expoentes mais recentes, os cientistas políticos iluministas de Locke a Rousseau, cujos ensinamentos relativos à liberdade dos homens até hoje, repercutem textos normativos de direitos humanos. Para mencionar um exemplo desse legado teórico, cite-se a primeira afirmação da cinquentenária Declaração Universal dos Diretos do Homem, pela qual “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, o que é similar à frase inicial de Rousseau (1996) no clássico O Contrato Social, na qual afirmou que “o homem nasceu livre”. Após a aceitação filosófica desse rol de direitos da pessoa humana, inseriu-se tal aceitação em diversas Constituições e Declarações de Direitos. A concretização na vida cotidiana dos povos havia sido iniciada, mas trazia dentro de si a ameaça da limitação dos direitos aos direitos expressos e reconhecidos pelo Estado-nação. A universalidade, típica das teorias filosóficas do século XVIII, rendeu-se à positivação dos direitos no século XIX, com a promulgação de Constituições em cada país. Cabia ao Estado (por meio de sua Constituição) o reconhecimento e proteção de determinado direito (BOBBIO, 1992, p.30). O final do século XX, por seu turno, conheceu um novo paradigma na elaboração teórica dos direitos fundamentais que é o estudo de novas formas de implementação, de modo a concretizar, na realidade social, os direitos mencionados em textos normativos locais ou internacionais. De fato, o problema grave de nosso tempo, de acordo com a feliz expressão de Bobbio, não é mais declarar ou fundamentar os direitos humanos, mas sim de protegê-los com efetividade, ou seja, implementá-los.2 21 O principal marco teórico para esse paradigma é a teoria da dupla dimensão dos direitos fundamentais, que afirma que esses direitos possuem uma dimensão subjetiva e uma dimensão objetiva. A dimensão subjetiva consiste na dotação de direitos subjetivos aos beneficiários da proteção; já a dimensão objetiva é aquela que impõe deveres de proteção ao Estado3. Esse dever de proteção dos direitos fundamentais exige que o Estado os protejam de forma ativa contra lesões perpetradas, quer por agentes do Poder Público, quer por particulares4. Com isso, a dimensão objetiva dos direitos humanos acarreta a constatação de que eles devem ser entendidos apenas como um conjunto de posições jurídicas conferidas a seus titulares, mas também como um conjunto de regras impositivas de comportamentos voltados à proteção e satisfação daqueles direitos subjetivos conferidos aos indivíduos. A dimensão objetiva faz com que direitos humanos sejam regras de imposição de deveres, em geral ao Estado, de implementação e desenvolvimento dos direitos individuais. Esses deveres geram a criação de procedimentos e também de entes ou organizações capazes de assegurar, na vida social, os direitos fundamentais. Consequentemente, à dimensão subjetiva dos direitos humanos, adicionou-se essa dimensão objetiva, que recebeu tal denominação pelas suas características organizacional e procedimental, desvinculada das pretensões individuais.iii Entretanto, nos deveres estatais de implementação dos direitos, há indicadores de que apenas 30% da população brasileira têm acesso aos órgãos e instrumentos de assistência jurídica, o que torna quase que inviável a luta pela efetividade dos direitos e distribuição de justiça.iv Por isso, a estruturação de um sistema de assistência jurídica é peça essencial no arcabouço de deveres do Estado voltado para a implementação dos direitos fundamentais. Assim, analisaremos, a seguir, a realização da cidadania pelo direito a ter direitos. 2. Cidadania e concretização dos direitos Os direitos fundamentais se dizem em construção permanente. Por conseguinte, a procura pela melhor forma de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais 22 não se encerrou, isto é, a realização da “cidadania” continua a ser uma das principais preocupações das sociedades contemporâneas. Modernamente, discute-se acerca do reconhecimento, quer formal quer real, dos direitos de cada cidadãov, reconhecimento, muitas vezes, visto como uns dos fundamentos do chamado Estado Democrático de Direito. Todavia, fala-se da inaplicabilidade ou da ineficácia social de determinados princípios constitucionais, a saber: isonomia, erradicação da pobreza, da marginalização, da desigualdade social e da não realização social dos direitos e valores fundamentais, a saber: dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa e o pluralismo político que se sabem também reconhecidos na Constituição Federalvi. Conforme ensina Ingo Wolfgang Sarlet (2003, p. 23-25 e 80-81), tais princípios e direitos fundamentais constituem a construção definitivamente integrada ao patrimônio da humanidade; mas segue particularmente agudo o perene problema da eficácia jurídica (como precondição da própria efetividade ou eficácia social) e efetivação desses direitos, de modo especial, em face, afirma o autor, do ainda não superado fosso entre ricos e pobres. De acordo com o autor, a tese de que na base dos direitos fundamentais da Constituição de 1988 radica sempre o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, consagra a coerência interna do sistema dos direitos fundamentais que encontra justificativa para além de sua vinculação com um ou mais valores (princípios) fundamentais. Nesse sentido, continua Sarlet, assume papel relevante a norma contida no art. 5º, §1º da CF de 1988, de acordo com a qual todos os direitos e garantias fundamentais foram elevados à condição de normas jurídicas diretamente aplicáveis e, portanto, capazes de gerar efeitos jurídicos. Certamente, a Constituição Federal revela-se como um importante instrumento nas mãos de todos os cidadãos, na procura por mais igualdade e justiça social. Nesse sentido, a possibilidade legal de “reivindicar direitos” é condição do ser cidadão. Sendo assim, só existe cidadania se houver, na prática, a possibilidade de reivindicar os direitos reconhecidos constitucionalmente, isto é, de fazer valer os direitos do cidadão. Assim, o primeiro pressuposto dessa prática é que esteja assegurado o direito de reivindicar os direitos, e que o conhecimento deste se estenda cada vez mais a todaa população (MANZINI-COVRE, 2001, p. 10-11). 23 Por isso, afirma-se que a contemporânea concepção de cidadania deve abarcar justamente o “direito a ter direitos”vii. Destarte, considera-se, deve-se pensar a cidadania não somente em termos de “receber direitos”, mas de exigir o direito, isto é, a possibilidade real e não formal de exigir a proteção dos direitos. Por isso, a importância de se garantir o direito à assistência jurídica, uma vez que a inclusão social e jurídica é condição ou premissa fundamental para a realização da cidadania num Estado Democrático de Direito. 3. Para além de uma definição. O conceito de “cidadania” parece significar a mais alta expressão dos direitos dos cidadãos. Assim, ser cidadão é ter uma vida digna (ou minimamente decente para a sobrevivência). De qualquer forma, a questão da cidadania encontra-se profundamente enraizada na discussão de proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, na medida em que não se deve falar em cidadania se não puder falar em acesso efetivo a direitos fundamentais da pessoa humana. Dessa forma, pensar a situação das exclusões sociais é pensar como a cidadania está sendo negada a muitos. É pensar como a cidadania mora apenas no discurso descompromissado coma a causa pública(BITTAR, 2004, p. 19). Do ponto de vista da sua compreensão e uso, o conceito “cidadania” preside todo e qualquer discurso político, intelectual ou acadêmico, sendo verdadeiramente o cerne dos maiores conhecidos debates sobre democracia e justiça social. Todavia, a cidadania se expressa em termos de direitos e deveres civis, políticos e sociais. Como exemplo da nãocidadania, geralmente se coloca a falta de “dignidade”, a falta de “justiça social” e a “exclusão social”, mas também de consciência e responsabilidade social conceitos inter-relacionados que serão mais bem estudados nos seguintes tópicos. 3.1. Expressão dos direitos dos cidadãos na sociedade contemporânea. Assim como em outros países e sistemas jurídicos,cidadania, no Brasil, concebese, geralmente, a cidadania como conjunto de direitos civis, políticos e sociais, a saber: a) Direitos civis, (ex.: direito de locomoção, segurança etc.) Destarte, como exemplo da não-cidadania, coloca-se a própria exclusão social; b) Direito sociais, que dizem 24 respeito ao atendimento das necessidades humanas básicas: alimentação, habitação, saúde, educação, direito ao trabalho, a um salário decente etc. e; c) Direitos políticos, que incluem, por exemplo o direito e o dever de votar, ser votado, exercer cargo público etc. Sobre a natureza de tais direitos, afirma José Afonso da Silva (2004, p. 151) existir certa corrente que os concebe não como verdadeiros direitos, mas como garantias institucionais, negando-lhes a característica de direitos fundamentais. A doutrina mais consequente, continua o autor, vem refutando essa tese, e reconhece neles a natureza de direitos fundamentais, ao lado dos direitos individuais, políticos e do direito à nacionalidade. São direitos fundamentais do homem-social: uma categoria de direitos fundamentais que constituem um meio positivo para dar um conteúdo real e uma possibilidade de exercício eficaz a todos os direitos e liberdades. Justamente pelo fato de os direitos sociais terem por objeto prestações do Estado diretamente vinculadas à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens materiais, aponta-se com propriedade, para sua dimensão economicamente relevante. Percebe-se que as normas relativas aos direitos sociais do art. 6º da CF exercem a função precípua de explicitar o conteúdo daqueles. No caso dos direitos à saúde, previdência e assistência social, tal condição deflui inequivocamente do disposto no art. 6º da CF: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Ademais, poderia referir-se mais uma vez a íntima vinculação entre os direitos a saúde, previdência e assistência social e os direitos à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, renunciando, nesse particular, a outras considerações a respeito desse aspecto. De fato, cabe recordar que a Constituição de 1988 estipulou ser a dignidade da pessoa humana verdadeiro fundamento do Estado democrático de direito (art. 1º, III)viii. O princípio da dignidade da pessoa humana consagra um espaço de liberdade, no qual todo tratamento degradante é suprimido, bem como são asseguradas condições materiais mínimas de existência. Assim, a qualidade da dignidade humana possui relação quer com a autonomia do indivíduo como com sua sobrevivência material. Os direitos fundamentais, com isso, podem ser descritos como verdadeiras emanações da dignidade inerente a cada indivíduo. 25 Por outro lado, percebe-se que alguns desses direitos fundamentais sociais (salário mínimo e assistência social) como direitos dependentes de lei e, portanto, positivados como normas de eficácia limitadaix. Por conseguinte, todas as normas que reconhecem direitos sociais, ainda quando sejam programáticas, vinculam os órgãos estatais, pois, como já reconheceu o Supremo Tribunal Federal, no tocante ao direito à saúde, “o poder público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconseqüente”x. Mas, a questão central do presente estudo está no reconhecimento do valor do conceito de“dignidade” da pessoa humana, conceito que, de acordo com alguns autores, é o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional, servindo a “isonomia” para gerar equilíbrio real, visando concretizar o direito à dignidade. Contudo, se afirma que, para começar-se a respeitar a dignidade da pessoa humana, tem-se de assegurar concretamente os direitos sociais previstos no artigo 6º da Carta Magna, e relacionados ao caput do artigo 225. De fato, não há como falar em dignidade se os direitos sociais não estiverem garantidos e implementados concretamente na vida das pessoas (NUNES, 2005, p.24). É a dignidade da pessoa humana, de fato, o principal princípio constitucional que diz dos direitos formalmente garantidos nos artigos 1º, III; 226 § 7º (da CF). Todavia, no texto constitucional, prescrevem-se, entre outros direitos, a assistência aos desamparados, na forma estabelecida na Constituição. Por outro lado, em todo discurso sobre “justiça real” costuma-se invocar o artigo 3º, inciso I, da Constituição Federativa do Brasilxi. Conforme ensina Aldaíza Sposati (2006, p. 16-18, 20) trata-se, pois, do atendimento à população carente como “um ato moral, ético, isto é, humanitário, destituído, porém da dimensão econômica e política pela qual a sociedade se organiza. Põe-se em questão a concepção ético-social ante a econômica-política contida no exame da assistência social. Dessa forma, a noção de direito se restringe ao plano ético e humanitário. A fragilização dos direitos sociais se estende à política dos benefícios sociais no âmbito mesmo das empresas privadas, sendo que, a relação de competência entre público e privado não fica plenamente clara”. Como se observa a justiça social está efetivamente interligada ao efetivo acesso à assistência social e jurídica. Daí, falar de justiça social é falar da consecução da 26 realização (implementação) dos direitos que envolvem o conjunto de garantias e princípios formalmente reconhecidos (como visto: dignidade da pessoa humana, redução das desigualdades sociais e regionais, erradicação da pobreza e a marginalização etc.) esforço que desemboca na justiça social. Contudo, falar de justiça social é deixar de privilegiar a elegância e o tecnicismo de todo e qualquer discurso acadêmico, moral, político e legal. É contribuir para a objetivação da eficiência, a eficácia e aplicabilidade de princípios e normas vigorantes, que são portadores de dos valores. Eis que a “exclusão social” compreende a exclusão de todos esses direitos: à educação, à saúde, à habitação, ao lazer, à assistência social e, mais especificamente, à assistência jurídica, aspecto que aqui mais nos interessa, fato pelo qual, a seguir, privilegiamos. 3.2 A problemática da exclusão social. A proteção social é um fator inegável de justiça social. A idéia dessa justiça é a base das garantias sociais. Decorre dessa afirmação que toda teria da justiça social tenha por objeto determinar o conjunto de princípios que regem a definição e a distribuição equitativa dos direitos e deveres entre os membros da sociedadexii. Sobre a negação de tais direitos, estudos contemporâneos mostram um cenário de violação. Diz-se de uma nova exclusão ou underclass,que na versão norte-americana, revela algo mais complexo e profundo do que a velha exclusão (tradicional) que se caracteriza muito mais por problemas de imigração, baixa escolaridade, privação absoluta, diferencias raciais, entre outros motivos. Em síntese, a exclusão social manifesta-se crescentemente como um fenômeno transdisciplinar que diz respeito tanto ao não acesso a bens e serviços básicos como à existência de certos segmentos sociais, passando pela exclusão dos direitos humanos, da seguridade e segurança pública etcxiii. Tais questões têm uma extraordinária repercussão teórica e prática, se observamos que, durante a interpretação normativa e a resolução de problemas sociojurídicos a dignidade, a justiça social e a não-exclusão social são conceitos decisivos para a integração das normas constitucionais e infraconstitucionais a cada caso concreto, procurando-se, com isso, a melhor forma de garantir a harmonia social (paz social), finalidade também reconhecida no preâmbulo constitucional e almejada por todos. 27 4. Exclusão social e democratização do acesso à justiça A problemática derivada da exclusão social e jurídica é, de fato, uma questão preocupante que se sabe integrar o rol dos direitos fundamentais da Constituição, tendo sido expresso que: “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (vide artigo 5º, inciso LXXIV da CF). Dessa forma, a assistência jurídica gratuita passou a ser uma obrigação do Estado e um direito fundamental de todo aquele que dela necessite. Isso sem contar que outros dispositivos constitucionais também revelam a existência do dever do Estado em prover a assistência jurídica gratuita, como o princípio do acesso à justiça (artigo 5º inciso XXXV) e também o princípio da igualdade. De fato, é evidente que o acesso à justiça ficaria comprometido, caso não fosse disponibilizado também o acesso ao advogado e sua capacidade de traduzir a demanda de uma pessoa em uma provocação técnica da jurisdição. Por outro lado, a igualdade prevista no artigo 5º dependerá, em última análise, que todos possam se socorrer dos remédios judiciais, sem o que haverá disparidade injustificável de tratamento e, consequentemente, exclusão social. Assim, por exemplo, o Estado brasileiro tem dificuldade de fazer cumprir o mandamento constitucional da assistência jurídica gratuita. De acordo com pesquisa realizada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANDP), para cada 100 mil pessoas há apenas 1,8 defensor público no país. As consequências são amplas: boa parte da população não conhece ou não consegue reivindicar seus direitos, o que motivou parte da sociedade organizada a estruturar alternativas de acesso à justiça, não dependentes diretamente do Estado.xiv Ora, partindo do contexto brasileiro atual de exclusão jurídica, deve-se estudar o acesso à Justiça a partir da perspectiva dos direitos humanos, objetivando, por meio de resultados concretos (significação de conceitos, formulação de novas conclusões e modelo estrutural de Assistência Jurídica), contribuir para o fortalecimento da “democracia” e, por conseguinte, para o bom exercício da cidadania. Atualmente, novas diferenças estão associadas ao acesso à tecnologia, à informação e aos recursos financeiros. Nenhum desses elementos está disponível em condições de igualdade entre os países e, por isso, geram desigualdades. Mais: as regras da democracia e os ordenamentos jurídicos nacionais, ou seja, a política e o direito 28 estatais, não estão habilitados a oferecer prestações consistentes nesses campos (CAMPILONGO, 2000, p. 127). Visando-se instituir a “assistência jurídica gratuita”, cada Estado da Federação brasileira tem o dever de prestar tal assistência, sem qualquer custo ao beneficiado. Todavia, a criação de uma instituição responsável pela prestação gratuita desses serviços igualmente foi prescrita na Constituição de 1988. A Defensoria Pública, de fato, seria o órgão pensado para garantir, nessas circunstâncias, o acesso à “Justiça”, permitindo-se aos cidadãos que, comprovadamente, não possam pagar, serem representados por advogados especializados na tutela e procura de seus direitos. Por outro lado, alternativas foram pensadas, a fim de minimizar a problemática que aqui se apresenta e assegurar, com responsabilidade, a assistência judiciária em todo o território nacional. Citam-se como exemplos: a Defensoria Pública, Faculdades de Direito, Advocacia Pro Bono, Ministério Público com a interposição de Ações Civis Públicas e Coletivas etc. Por mais diversificada que seja a gama daqueles que atuam para viabilizar o acesso à justiça, cabe tecer algumas considerações sobre os instrumentos processuais e extraprocessuais ora existentes, que viabilizam – ou não – a prestação jurisdicional do Estado justamente ao mais vulnerável. 5. A tutela rápida e justa e seus instrumentos Se, por um lado, a Constituição de 1988 e o Estado Democrático de Direito incumbiram diversos entes com a missão de prestar ou facilitar o acesso à justiça como vimos acima, por outro lado, há preocupante lentidão no que tange ao aperfeiçoamento dos instrumentos processuais e extraprocessuais que possibilitem o acesso material à Justiça, ou seja, à tutela rápida e justa. A grande inovação no que tange a simplificação de procedimento e novos princípios processuais é ainda o juizado especial cível, quer na esfera estadual (Lei 9.0099/95) ou na esfera federal (Lei 10.259/01). Sadek (2007) chega a afirmar que representam:“uma revolução no Poder Judiciário, desde que ele foi concebido e instalado no País até hoje, essa revolução se deu com a criação dos juizados de pequenas causas e, posteriormente, com a sua consagração como Juizados Especiaisxv.”O recente Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em seu relatório anual de atividades do ano de 2005, salientou que o futuro do Juizado Especial Cível é ser um " instrumento de pacificação social capaz de provocar a mudança de comportamento da 29 sociedade, de forma a estimular o cumprimento voluntário das próprias obrigações e o respeito ao direito do próximo, contribuindo para a recuperação da imagem do Poder Judiciário e para o resgate da cidadania.” Para tanto, o CNJ prega que se deve “garantir o amplo acesso, a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional nas causas de competência dos Juizados Especiais com simplicidade e informalidade”.xvi Todavia, a importância dos juizados e do objetivo de atacar a "litigiosidade contida" (demanda existente e desestimulada pela lentidão e custo dos procedimentos tradicionais), lentamente seu funcionamento é dificultado pelo excesso de causas, insuficiência de investimentos e dificuldade em aferição de metas e de extração de marcos de produtividade de seus funcionários, juízes em especialxvii. Assim, é necessário um resgate dos juizados especiais, com foco no comprometimento e motivação dos servidores e juízes que atuam nos Juizados, evitando-se a sensação de “desvalorização” e “discriminação” por atuarem em causas de menor complexidade e valor. Tal sentimento já foi insinuado em pesquisas com juízes, como assinala Neide de Sordixviii. Além disso, cabe mencionar a necessidade de investimento maciço na virtualização do procedimento, com o fim dos autos físicos e no incentivo à comunicação eletrônica dos atos processuais. Para Sérgio Renato Tejada Garcia (2007), o processo virtual ataca a delonga excessiva que parece contaminar já os juizados especiais, com prazos de mais de ano para o trânsito em julgado de um feitoxix. Por outro lado, a demanda reprimida pela efetivação de direitos não pode ser enfrentada somente pela via judicial tradicional. É digno de encômios, então, o estímulo ao desenvolvimento da justiça consensual levado a cabo nos últimos dois anos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em especial pela via da conciliação. Tal via consiste na concretização de acordos tanto nos processos já em trâmite quanto nos litígios prévios aos processos judiciais. Para o “Movimento pela Conciliação – Conciliar é legal”, patrocinado pelo CNJ, tal atividade deve ser realizada por intermédio de conciliadores voluntários oriundos das próprias comunidades, atuantes quer nos fóruns e unidades judiciais (na conciliação no processo), quer em centros comunitários (na atuação pré-processual, sob a supervisão do Judiciário, do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil). Como assinalam Marco Aurélio Buzzi e Mariella Nogueira (2007),“trata-se de boa alternativa que concorre para a melhoria do Sistema, constituindo-se em um instrumento que possibilita o real acesso de grandes 30 contingentes populacionais excluídos, da nação, aos serviços, à tutela e à proteção do Estado Jurisdiçãoxx.” Conclusão Argumenta-se que assistência jurídica no Estado Democrático de Direito deve estar conectada à cada vez maior complexidade social que acaba por ter que problematizar a existência de novas demandas que permeiam o direito contemporâneo. Esse é o caso, por exemplo, de demandas em que o próprio Estado é o principal “adversário” no âmbito judiciário, como o direito à saúde, à educação, à previdência social, à assistência social, à moradia, parcela do direto do consumidor, entre outros ramos do direito. Em tais demandas, fica evidenciada a necessidade de independência funcional e autonomia administrativa das Defensorias Públicas. Portanto, em um contexto em que se admite que o Estado seja um possível transgressor de direitos individuais, causa estranhamento o fato de que os serviços de assistência jurídica serem prestados por órgãos, como as Procuradorias Estaduais, responsáveis pela defesa e consultoria jurídica do Estado (CAMPILONGO, 2000, p. 127). Todo discurso sobre cidadania e justiça social deve ter como cerne a realização efetiva da assistência social e jurídica. Daí, aconselha-se abordar a cidadania e, especificamente, o problema da exclusão jurídica pela moral e pelo direito, dimensões onde a justiça predomina sobre os demais conceitos. O direito e a moral são conceitos distintos; mas, na prática, a inter-relação de ambos os termos pode ser de extrema utilidade para a solução dos problemas sociais que se dizem vinculados ao conceito de cidadania. Como bem indica Perelman (2005, p. 7-8), a justiça que, de um lado, é uma virtude entre as outras, envolve, do outro, toda a moralidade. É tomada neste último sentido que a justiça, contrabalançando todos os outros valores, governa o mundo, natureza e humanidade, ciência e consciência, lógica e moral, econômica política, política, historia, literatura e arte. A justiça é o que há de mais primitivo na alma humana, de mais fundamental na sociedade, de mais sagrado entre as noções e o que as massas reclamam hoje com mais ardor. 31 Bibliografia ALVES, Cleber Francisco. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: o enfoque da Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar. 2001. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo, Cia das Letras, Rio de Janeiro, 1997. AYALA, Patrick de Araújo. “O direito internacional dos direitos humanos e o direito a ter direitos sob uma perspectiva de gênero”. In Revista de Direito Constitucional e Internacional, n. 36, p. 07-34. BARCELLOS, Ana Paula de. 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Professor e pesquisador do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São PauloUNISAL. Professor e pesquisador do Centro Universitário de Volta Redonda – UniFOA. Professor e pesquisador do Centro Universitário de Barra Mansa – UBM. ii **Doutora em Sociologia Política. Economista. Licenciatura em História. Mestre em Ciência Política. Professora e pesquisadora do Centro Universitário Volta Redonda – UniFOA 1 Ver em PECES-BARBA, Gregório et al. Curso de DerechosFundamentales. Teoria General. Madri : Universidad Carlos III e Boletín Oficial del Estado, 1999, p. 299. 2 De acordo com Bobbio, “Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.”Ver in BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho,Rio de Janeiro : Ed. Campus, 1992, p.25 3 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra: Livraria Almedina, 1983. Ver também MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, em especial p. 152 e seguintes. 4 SARMENTO, Daniel. "A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria" in MELLO, Celso D. de Albuquerque e TORRES, Ricardo Lobo (coords). Arquivos de Direitos Humanos nº 4. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2002, pp. 63-102. iii Para Willis Santiago Guerra Filho, “A dimensão objetiva é aquela onde os direitos fundamentais se mostram como princípios conformadores do modo como o Estado que os consagra deve organizar-se e atuar”. Ver in GUERRA FILHO, Willis Santiago. “Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade”, in GUERRA FILHO, Willis Santiago. Dos Direitos Humanos aos Direitos Fundamentais. Porto Alegre : Ed. Livraria dos Advogados, 1997, p.13. Ver também HÄBERLE, Peter. La libertàfondamentalinelloStatocostituzionale. Trad. Alessandro Fusillo e Romolo W. Rossi, Roma, La NuovaItaliaScientifica, 1996, p. 115 e 116. iv Ver o Diagnóstico da estrutura e funcionamento dos Juizados Especiais Federais, elaborado pelo Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, Secretaria de Pesquisa e Informação Jurídicas. Brasília : CJF, 2003, em especial p. 7. v Veja-se Preâmbulo da Constituição Federal: “Nos, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o 34 exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”. vi Artigo 1º da CF: A República Federativa do Brasil formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal; constituí-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo Único - Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição.(grifos dos autores) vii Hannah Arendt cunhou a conhecida expressão “direito a ter direitos” remetendo-o ao direito à cidadania e denunciando a prática totalitária de retirada da nacionalidade como forma de exclusão social. Ver mais em AYALA, Patrick de Araújo. “O direito internacional dos direitos humanos e o direito a ter direitos sob uma perspectiva de gênero” in Revista de Direito Constitucional e Internacional, n. 36, p. 0734. viii Ver, entre outras obras, SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006. SILVA, José Afonso da. ‘A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia” in Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 212, p. 89-94, abr./jun. 1998. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. ALVES, Cleber Francisco. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: o enfoque da Doutrina Social da Igreja.Rio de Janeiro: Renovar. 2001. ix Ver em SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. ver. atual. eampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, em especial p. 274 e pp. 301-303. x Ver RE Agr. 271286 / RS, Relator Min. Celso de Mello, j. 12/09/2000. Ver, sobre a efetividade dos direitos sociais a obra de KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado.Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2002. xi Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:I- construir uma sociedade livre, justa e solidária; II- garantir o desenvolvimento nacional;III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (grifo dos autores) xii EUZÉBY Alain. Proteção Social, pilar da Justiça Social. In SPOSATI Aldaíza (Org.). Proteção social de cidadania: inclusão de idosos e pessoas com deficiência no Brasil, França e Portugal.São Paulo: Cortez, 2004, p. 12. xiii CAMPOS, André de, et al. Atlas da exclusão social no Brasil: dinâmica e manifestação territorial, 2003, v. 2, p. 33, apud, BITTAR, Eduardo C. B. Ética, educação e direitos humanos: estudos filosóficos entre cosmopolitismo e responsabilidade social.Barueri, SP: Manole, 2004, p. 18 xiv Conferir em MARANGONI, César Malta. “Alguns dados sobre a Defensoria Pública e a relevância social da instituição” in http://www.anadep.org.br/artigos/dadosdp.htm, acesso em 25 de setembro de 06. Ver também o estudo do Ministério da Justiça “Estudo Diagnóstico - Defensoria Pública no Brasil” in http://www.mj.gov.br/reforma/pdf/publicacoes/Diag_defensoria.pdf, acesso em 25 de setembro de 06. xv SADEK, Maria Teresa. "Palestra no I Encontro Nacional dos Juizados Especiais Estaduais e Federais" in http://pyxis.cnj.gov.br/encontro1/Palavra_Professora_Maria_Tereza_Sadek.pdf, acesso em 23 de fevereiro de 2007. xvi Ver CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, "Relatório Anual de 2005" in http://pyxis.cnj.gov.br/arquivos/downloads/RelatorioAnualCNJ.pdf, em especial p. 39, acesso em 23 de fevereiro de 2007. xvii Ver o Diagnóstico da estrutura e funcionamento dos Juizados Especiais Federais, elaborado pelo Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, Secretaria de Pesquisa e Informação Jurídicas. Brasília : CJF, 2003. xviii Ver SORDI, Neide. "Apresentação no I Encontro Nacional dos Juizados Especiais Estaduais e Federais" em http://pyxis.cnj.gov.br/encontro1/Apresentacao_da_Doutora_Neide_de_Sordi-CJF.pdf, acesso em 23 de fevereiro de 2007. xix GARCIA, Sérgio Renato Tejada. "Processo virtual: uma solução revolucionária para a morosidade" in http://www.cnj.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=50&Itemid=129, acesso em 23 de fevereiro de 2007. 35 xx BUZZI Marco Aurélio e NOGUEIRA, Mariella, "Conciliar é legal" in http://www.cnj.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=51&Itemid=129, acesso em 23 de fevereiro de 2007. 36 TRAÇOS COLONIAIS EM UM CONFLITO DE TERRAS REPUBLICANO (FREGUESIA DE SÃO TIAGO DE INHAÚMA, RIO DE JANEIRO, BRASIL, 1896-1912) Rachel Gomes de Lima1* Doutoranda em História – UFF. Professora da Universidade Cândido Mendes. Bolsista Capes Resumo: A ausência de um Código Civil Brasileiro até 1916 e 1917 (ano de criação e promulgação respectivamente) permitiu que os conflitos de terras fossem decididos por uma mescla de legislações coloniais, imperiais e republicanas até as primeiras décadas da Primeira República.Ao analisarmos um conflito de terras entre duas famílias proprietárias no Campo de Bonsucesso, área leste da freguesia rural de São Tiago de Inhaúma (Rio de Janeiro, Brasil) que se confrontavam judicialmente com o objetivo de garantir a posse sobre suas propriedades, percebemos que a visão da fronteira entre essas duas terras não coincidia para as partes em litígio que apresentavam em seus discursos variadas provas documentais privadas, tais como testamentos, inventários, partilhas amigáveis, escrituras de compra e venda, além de documentos públicos de arrematação de hipotecas. Completando a trama processual, uma série de legislações coloniais e imperiais estruturavam os discursos em plena era de Primeira Republica brasileira. Palavras chave: Conflitos de Terra; Legislação Colonial; Legislação Imperial; Brasil República. Abstract: The absence of a Civil Code until 1916 and 1917 (year of creation and promulgation respectively) allowed the land disputes were decided by a mix of colonial laws, imperial and republican until the first decades of the First Republic. When analyzing a conflict of land between two owner families in Bonsucesso Course, an area east of the rural parish of St. James of Inhaúma (Rio de Janeiro, Brazil) who confronted in court in order to ensure ownership of their properties, we realize that vision of the border between these two countries did not coincide for litigants who had in his various speeches private documentary evidence, such as wills, inventories, friendly shares, purchase and sales deeds, and public documents of mortgage auction. Completing the procedural plot, a number of colonial and imperial legislation structured discourse in the era of First Brazilian Republic. Keywords:LandConflicts; Coloniallegislation;Imperiallegislation;BrazilRepublic. Sumário: 1. Introdução; 2. Legislações e suas implicações em um processo de 1912. 3. Fontes e Referências Bibliográficas. 1. Introdução O conflito que foi por nós esquadrinhadoem dissertação de mestrado2, iniciou-se, no ano de 1896, com a abertura de um protesto judicial feito por Luiz Gonzaga de Sousa Bastos contra João Teixeira Ribeiro Junior que supostamente tentava vender parte das terras de sua propriedade no Campo de Bonsucesso a terceiros. João Teixeira Junior, por sua vez, afirmando ser proprietário das terras abriu no mesmo ano um contra protesto alegando que a parte a ser vendida era de sua propriedade3. Em 1898, o Dr. Luiz Gonzaga de Sousa Bastos, juntamente com o senhor Sizernando Luiz dos Santos e outros conseguiram a imissão de posse de terras da casa número 2 da Fazenda Bonsucesso, contra João Teixeira Ribeiro Júnior e Francisco Rebello4. Já no ano de 1899, o Alferes João Torquato de Oliveira e sua mulherabriram processo de “manutenção de posse” contra Luiz Gonzaga de Souza Bastos alegando que a parte de sua irmã, D. Leonor Francisca de Oliveira Ribeiro, e sobrinho, João Teixeira Ribeiro Junior, eram de sua responsabilidade e estava sendo perturbada por Luiz Gonzaga Bastos que, além disso, ameaçava expulsar seu inquilino para vender aquelas terras5. Em 1912 houve um novo processo aberto pelo filho do Alferes João Torquato, João Torquato de Oliveira Júnior6, sua mãe D. Luiza Maria de Mesquita Oliveira e sua tia D. Leonor Francisca de Oliveira Ribeiro onde reivindicaram as terras perdidas nos processos anteriores para o Dr. Luiz Gonzaga de Sousa Bastos que devido a sua morte estavam em posse de seu filho, o Doutor Guilherme Maxwell de Sousa Bastos, não por hereditariedade, mas sim por ter comprado um crédito hipotecário cujo pagamento eram as terras de seu pai que estavam em litígio. Este último processo foi o mais complexo em termos de retórica jurídica e foi neste que percebemos a complexidade legislativa que trabalharemos neste artigo. Os membros da família Oliveira se julgavam injustiçados por terem “perdido” a parte de seu terreno, alegando serem proprietários das terras que naquele momento pertenciam a Guilherme Maxwell e desejavam não apenas a nulidade das decisões jurídicas anteriores, como também a reintegração da parte que então lhes caberia segundo o testamento de D. Leonor de Oliveira Mascarenhas (proprietária das terras até meados do século XIX) e inventários de outros membros da família. Utilizavamo “mito fundador” da gênese da propriedade alegando que tais terras estavam na propriedade da família desde o século XVIII quando pertenciam ao Sargento Mor José Dias de Oliveira e que sempre e principalmente naquele momento (final do século XIX e início do século XX) a família realizava grande papel no desenvolvimento da região. Durante mais ou menos dezesseis anos7 duas famílias se dispuseram a pleitear um “pedaço” de propriedade, a localização de uma fronteira, uma divisa, em frente à Estação férrea de Bonsucesso. Cada parte tinha uma história própria da origem de sua “posse”8, prática comum para tentar provar a posse de boa fé por várias gerações e, com base nestas, somavam o discurso do que estaria em disputa e modificavam detalhes deste ao longo dos processos. Ao explicarem a origem da ocupação de cada parte, o embasamento documental que tinham para prová-la e a acusação à parte oposta, os advogados utilizavam também palavras de juristas diversos e de diversos direitos, tais como o romano, o Regulamento 737 do Código Comercial ou as Ordenações Filipinas ainda no ano de 1912. Somado a estas legislações estava um corpo documental apresentado como prova e composto de testamentos, inventários, partilhas amigáveis, escrituras de compra, recibos de pagamento de impostos, etc. O fato é explicado pela ausência de um Código Civil Brasileiro ainda neste início de século XX e pelas brechas sempre existentes nas 37 diversas legislações agrárias. Por isso as defesas eram articuladas na intenção de convencer os juízes, de persuadir com a “sua verdade” aquele que detinha o poder público entre os dois discursos privados. 2. Legislações e suas implicações em um processo de 1912. (...)Não há duvida, portanto, de que o Aggravante, pelos documentos que exhibe, é legitimo senhor e possuidor dos terrenos descriptosno acto judicial que o investio dessa qualidade e na phrase da VELHA E SABIA Ord. L. 4.º, T.6º,§3º e da Lei de 3 de Novembro de 1768, pr. – “possue bem quem possue por autoridade da justiça”.- (...)”9 O trecho acima poderia ser facilmente interpretado como algum discurso jurídico do final de século XVIII ou início do XIX, se não o tivéssemos retirado de um conflito de terras na Fazenda Bonsucesso, freguesia rural de Inhaúma, na cidade do Rio de Janeiro, em 1912. Como dissemos anteriormente, a falta de um Código Civil brasileiro até 1917 permitia a utilização de legislações da época colonial, como as Ordenações Filipinas e a Lei da Boa Razão citadas no trecho acima, até as primeiras décadas da República. Enquanto colônia, o Brasil possuía as mesmas leis de sua metrópole. No século XVIII, estas eram principalmente as Ordenações Filipinas10 (1603-1867) e a Lei da Boa Razão editada pelo Marquês de Pombal que pretendia reprimir a grande recorrência aos textos de direito Romano ou a textos doutrinais, sendo proibido invocar a autoridade de algum escritor quando houvesse disposição em contrário às Ordenações, nos usos do reino ou nas leis pátrias. Os textos romanos só poderiam ser utilizados em casos de lacunas na legislação permitida11. As Ordenações Filipinas serviram aos letrados coloniais de guia jurídico, pela falta de um corpus de leis pátrias. Porém, tal legislação não conseguiria solucionar problemas que surgiriam no cotidiano colonial. A produção legislativa no Brasil se iniciou com a chegada e estabelecimento da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro em 1808 e consequentemente houve a continuidade dos trabalhos administrativos desta. Entre 1808 e 1821, o Brasil possuía numerosas formas de legislar, tais como as já citadas Ordenações Reais ou Filipinas, além de Decretos, Alvarás, alvarás com força de Lei ou em forma de Lei, Cartas de Leis e Leis, Provisões, Regimentos e Resoluções, dentre outras12. Após a Independência Brasileira foi promulgada a Lei de 20 de Outubro de 1823, que determinou a continuidade do vigor de todas essas legislações promulgadas pelos reis de Portugal até 25 de abril de 1821, até que se criasse o Código Civil Brasileiro. A necessidade da criação 38 deste Código Civil e também de um Código Criminal foi salientada já na Primeira Constituição do Império Brasileiro de 182413. O Código Criminal foi promulgado em 1830 com a influência elitista e da formação jurídica portuguesa, atendendo, de acordo com Gizlene Neder, às forças políticas escravistas e retrógradas e fingindo atender os setores liberais radicais14. O Código Civil, contudo, esperaria até o ano de 1917 para ser promulgado, sendo as Ordenações Filipinas utilizadas como Código Civil até esta data15. Tais fatos demonstram o elemento de continuidade com relação à tradição jurídica portuguesa herdada dos tempos coloniais, porém o recente Estado Brasileiro buscaria regulamentar várias legislações privadas e se separaria, neste ponto, das tradições jurídicas portuguesas: “(...) Enquanto a antiga metrópole, a partir de 1822, sofrerá uma forte influência do pensamento liberal (...) a antiga colônia continuará a aplicar a velha legislação herdada dos tempos coloniais sem proceder a grandes e radicais rupturas, adaptando-a as tradições específicas dos brasileiros, à cultura jurídica em formação e, sobretudo, aos interesses econômicos das elites agrárias brasileiras.”16 O Brasil caracterizar-se-ia, desde o início do Império por uma “flexibilidade” conveniente e por uma adaptabilidade oportuna. Um exemplo disso seria a própria demora na formulação de um Código Civil. De acordo com Marina Machado e Sarita Mota, alguns autores defendem que a ausência de um Código explica-se pela manutenção da escravidão no país enquanto outros destacam o papel e o poder dos terrratenentes na dificuldade em instituir o Código que definisse tanto a posse, quanto a propriedade de bens17. Ou seja, esta adaptabilidade transcorria tranquilamente até as primeiras décadas da Primeira República, como observado no processo de Reintegração de Posse de 1912 (no trecho do início desta sessão). Neste conjunto jurídico, a questão e a discussão sobre a propriedade seriam muito atingidas. No período colonial a sesmaria foi implementada no Brasil com a intenção legislativa de promover o cultivo de terras ligadas à necessidade da colonização do território. Desta forma, a doação se baseava no cumprimento da exigência do cultivo, além da medição e demarcação das terras doadas18. Segundo Carmem Alveal e Márcia Motta, as tentativas da Coroa de regularizar o sistema de sesmarias na colônia brasileira foram em vão19: mesmo com a obrigatoriedade do cultivo, da medição e demarcação das áreas não foi possível deter o processo de expansão dos sesmeiros e outros agentes sociais sem permissão da Coroa. Outra questão foi o surgimento de novas categorias sociais estranhas aos sesmeiros, tais como os arrendatários que após arrendarem parte ou a totalidade das sesmarias ainda sublocavam as mesmas à pequenos lavradores. Estas novas categorias, dentre outros motivos, foram responsáveis por conflitos de difícil solução para a burocracia colonial. A complexidade dos conflitos fundiários motivados pelo sistema de 39 sesmarias ocasionou a suspensão da concessão destas pela lei de 17 de julho de 1822 durante a regência de D. Pedro I. A criação de outra lei capaz de “solucionar” a questão de terras no Brasil só surgiria 28 anos depois com a Lei de Terras. De acordo com Jose Luiz Cavalcante, foi no período entre 1822 e 1850 que a posse se tornou a única forma de aquisição de domínio sobre as terras, ainda que apenas de fato, ficando o período conhecido, portanto, como “fase áurea do posseiro”20. A perda do controle da distribuição das terras gerou um caos para a organização política do país, motivando muitos debates que culminariam na Lei de Terras. A Lei de Terras ou Lei n°601 foi promulgada no dia 18 de setembro de 1850 e regulamentada em 30 de janeiro de 1854. Possuía nove capítulos, 108 artigos e tinha como objetivo abranger diversas situações relacionadas à ocupação das terras, dentre elas a repartição das terras públicas e como poderiam ser medidas, a revalidação e legitimação das terras particulares, preocupações com as terras devolutas, com aldeamentos indígenas e normas para os registros das terras. Para a conservação, divisão, administração, descrição e medição das terras devolutas foi criada a Repartição Geral das Terras Públicas que faziam também os registros das terras possuídas. Estes registros eram obrigatórios para todos os proprietários de terras e os vigários de cada freguesia ficavam responsáveis para receber as declarações necessárias para a produção dos registros21. Tais declarações deveriam ter duas cópias iguais contendo o nome dos proprietários, a freguesia onde se localizava a terra, o nome desta propriedade (se o tivesse), a extensão da mesma (se a tivesse) e os limites. A Lei de Terras é considerada por muitos historiadores uma definidora da terra como mercadoria. É uma lei que mercantiliza a terra e foi interpretada como expressão única da classe dominante e um instrumento que faz com que o ato da compra seja o único e o novo meio da apropriação da terra. Murilo Marx, um dos defensores desta idéia afirma que: “A Lei de Terras de 1850 inaugurou um novo sistema geral de obtenção e de transmissão de terras entre nós. Tal sistema, significativamente, muito tardou, tem sido o de sesmarias suspenso uma geração antes, porém não substituído até o seu advento. A Lei de Terras estabeleceu como única forma possível de adquirir ou de transmitir a outrem que não os herdeiros a compra e venda de terras (...)”22. A interpretação de Murilo Marx leva em consideração a existência de um mercado de terras somente criado em 1850. A partir deste momento a única possibilidade de se adquirir terras do Estado seria pelo meio da compra, não existindo mais a concessão pública. Entretanto, há autores que discordam desta posição de Marx e também de José de Souza Martins, documentada e inaugurada em “O Cativeiro da Terra”23, que afirmam que o mercado fundiário foi estabelecido 40 após a Lei de Terras. Dentre os autores discordantes destacamos Cristiano LuisCristillino24 que defende que o mercado de terras não poderia ser reduzido a um único fator ou marco legal. Deste modo, Cristillino afirma que a Lei de Terras de 1850 fracassou em seus objetivos e não criou o mercado fundiário no Brasil25. Outra interpretação desta Lei de 1850 e sua regulamentação de 1854 é que ambas tinham como objetivo uma regularização da estrutura fundiária no país. Sem dúvida a Lei foi um instrumento que tranquilizou alguns conflitos entre posseiros e proprietários, por exemplo, e arbitrou sobre a questão das terras devolutas do Estado. Todavia o que se percebe é a variedade de interpretações desta lei por parte dos proprietários da época, o que muitas vezes podia gerar novos tipos de conflitos entre eles. Isto derruba as visões tradicionais que acreditam que ela seja apenas uma expressão jurídica da classe dominante26. Até porque muitos membros desta classe não gostavam da ideia de demarcar as suas terras, pois “fazenda demarcada é propriedade finita, expansão dificultada; a indefinição dos limites da propriedade é aposta no futuro, esperança de usurpação do público e do alheio” 27. Assim, para um senhor de terras a posse sobre seu território está atrelada à capacidade do exercício de poder sobre seus domínios, suas terras e homens que trabalhavam nela, fossem escravos, moradores ou homens livres. A possibilidade de “expandir a cerca” de suas terras ocupando áreas devolutas ou pertencentes a outros, possibilitaria também a expansão de seu domínio. Para Motta os senhores “resistiam em medir e demarcar suas terras porque tal limitação territorial implicava um limite ao exercício de seu poder sobre vizinhos e posseiros e uma subordinação ao poderexterno representado pela Coroa”28. Este fenômeno foi observado, por exemplo, por Maria Sarita Mota em sua tese de doutorado onde analisou a estrutura fundiária da freguesia de Guaratiba. De acordo com Sarita Mota, os senhores das maiores propriedades na freguesia de Guaratiba não registraram suas terras no livro do vigário29. Porém, o mesmo não ocorreu na freguesia de Inhaúma, por exemplo, onde foi possível perceber que os proprietários das maiores propriedades existentes entre 1855 e 1863 registraram suas terras, tendo alguns registros as delimitações e confrontações, o que interpretamos como um meio de “proteção” a sua ocupação30. No entanto, a legislação básica que aparece no processo por nós trabalhado (em 1912) é um regulamento de outra lei, também instaurada no ano de 1850: O Código Comercial e seu regulamento 737, como podemos perceber a seguir: “(...) que estando o excepiente de posse dos ditos terrenos, por si e por seus antecessores, há perto de 60 annos, por força das sentenças referidas no inventario de D. Leonor de 41 Oliveira Mascarenhas (doc. Junto sob n.5), no inventario de Antonio Lobo de Souza Bastos (doc junto sob o n.4) e de escripturaspublicas de compra e venda (doc. Juntos sob ns. 1,2 e 3), tem os seus direitos de senhor perfeitamente resguardados e ao abrigo de qualquer contestação e os de possuidor até por força da usucapião; Entretanto que, quando assim não fosse, a acção dos exceptos deveria ser proscripta da tela judiciária por força da regra universal de direito “- Res jurídica pro veritatehabetur” – em virtude da qual os interpretes do Direito Romano, os civilistas em geral e as legislações dos povos cultos dão á cousa julgada dupla feição- positiva e negativa -, positiva, porque, actopublico, emanado de um dos poderes constitucionaes, por ninguém pode ser impugnado: firma definitivamente o facto, que passa a ter, adversus omnes, a feiça de verdade - ; negativa, porque, apresentando-se regularmente em juízo sob a forma de excepção, impede a reprodução da demanda – Vid. João Monteiro Pr. Civil e Comm. – Vol. 3, §§ 236 e 237; masque o nosso direito adjectivo exige para a legitimidade da excepção de cousa julgada o requisito de identidade de cousa, causa e pessoa mandando, porem, regular esta identidade pelo direito civil – (Reg.n. 737, de 25 de Novembro de 1850. Art: 92);”31 Criado no mesmo ano que a Lei de Terras e a Lei Eusébio de Queirós, o primeiro código comercial Brasileiro foi instaurado pela lei n° 556, de 25 de junho de 1850 depois de 15 anos tramitando no Congresso Nacional Brasileiro, passando por pelo menos três comissões de debate, em 1833, 1843 e 1848. A primeira comissão formada por Limpo de Abreu, Ignascio Ratton, Guilherme Midosi, Laurence Westin e Visconde de Cairú, se baseou nos existentes Códigos Comerciais francês (1808), espanhol (1829) e portugês (1833)32. A criação do Código Comercial brasileiro se deu pela necessidade de se consolidar a ordem capitalista em um mercado interno em expansão, mas dotado de características arcaicas. Pretendia assim, racionalizar e normalizar as atividades econômicas no Império, além de regulamentar as relações comerciais entre pessoas, relações estas que envolviam bens, efeitos, obrigações ou convenções celebradas por meio de normas que as regiam. Destinava-se, portanto, a sistematizar a confusa legislação anterior de característica colonial, dotando estas relações de uma legislação eficaz e uniforme. Dividia-se em três partes: “Comércio em Geral” (com 18 Títulos), “Comércio Marítimo” (com 12 Títulos) e “Quebras” (com 8 Títulos), e antecipava diversas matérias do Direito Civil ao tratar de 33 mandatos, trocas, locação, finanças, hipotecas, penhoras e depósitos . Os criadores do Código Comercial Brasileiro, bem como seus diversos membros das comissões, eram integrantes da classe senhorial e além de suas atividades com a agricultura possuíam ligações diretas ou indiretas com as atividades comerciais. Sua criação permitiu a ampliação dos interesses da classe mercantil e comprovou a importância dos comerciantes junto ao Estado Imperial, constituindo alianças políticas para viabilizar seus projetos34. Cinco meses depois foram publicados os Regulamentos 737 e 738 ambos de 25 de novembro de 1850, com o objetivo de entrarem em vigor juntamente com o Código Comercial. 42 De acordo com Júlio Bentivoglio, o Regulamento 737 foi tão importante quanto o próprio Código, pois tratava da execução processual e permaneceu inalterado por mais tempo35. Este correspondeu a um verdadeiro Código de processo Civil permitindo regulamentar as relações comerciais entre pessoas, que envolviam bens, efeitos, obrigações ou convenções celebradas, por meio de normas que permitiam estas relações. O Código Comercial supria também, de certo modo, inexistência de uma lei de hipotecas naquele momento, mas não extinguia conflitos existentes36 ou a utilização de outras leis. O Regulamento 737 do Código Comercial pode ter sido escolhido como base do discurso de defesa de Guilherme Maxwell, em 1912, pelo fato de tratar dos casos de hipotecas comerciais e civis, já que uma das causas pela qual respondia o processo era de ter se tornado um credor hipotecário de seu próprio pai que teria dado como garantia de hipoteca terras que não seriam suas. Outro motivo é que o Código também era considerado uma “prévia” do Código Civil Brasileiro e vinculava juntamente às Ordenações. Apesar na instauração do Código Comercial e seus Regulamentos, havia a necessidade de constituir um Código Civil, sendo montada uma Comissão encarregada de rever a consolidação das leis civis, ainda nesta década de 1850. Destacamos a escolha de um importante jurisconsulto convocado, o Advogado Augusto Teixeira de Freitas. Segundo Márcia Motta, a trajetória de Teixeira de Freitas mostra que de fato ele poderia fazer jus à tarefa de escrever o Código Civil: nascido na Bahia no ano de 1816, formado em Direito na Academia de Ciências Sociais e jurídicas de Olinda, foi nomeado, em 1845, um dos advogados do Conselho de Estado e foi também membro fundador do Instituto de Advogados Brasileiros em 1843. Antes de elaborar um Código Civil, Teixeira de Freitas salientou a importância de fazer uma Consolidação das Leis Civis existentes, antes de se elaborar uma nova legislação37.No entanto, suas intenções de formular o Código Civil, foram distintas dos interesses de diversos setores da sociedade, fato que adiou por décadas a promulgação do mesmo38. Um exemplo disto eram aqueles que não viam com bons olhos a promulgação de um novo Código Comercial submetido ao que ele procurava estabelecer como seu Código Civil. Freitas criticava as formas como o Código Comercial e a Lei Hipotecária, promulgada na década seguinte, eram utilizados como meio de produzir títulos de propriedade. A Lei Hipotecária (Lei 1237) foi instaurada em 24 de setembro de 1864 e seu Regulamento em 26 de abril de 1865, com o objetivo de “estabelecer as bases das sociedades de crédito real”39. Em seu regulamento foi criado o Registro Geral de Imóveis onde deveriam ser registrados todas as transmissões de domínio do adquirente ou do credor, como constava na 43 própria lei. Pedro Parga Rodrigues salientou em sua dissertação de mestrado os debates parlamentares que discordavam quanto ao fato do registro de transmissão de imóveis e de hipotecas teriam ou não força para comprovar o domínio do adquirente ou credor sobre a propriedade. Discussões que existiam pelas constantes disputas sobre a propriedade foram intensificadas pela Lei Hipotecária e ligavam-se às questões de propriedade e de formação do Estado Nacional.40 A Lei de Terras de 1850 não foi capaz de solucionar conflitos ou impedir a expansão das cercas que limitavam as propriedades. Ela era acionada de diversas formas de acordo com a dinâmica da disputa agrária de cada região e também de acordo com o estabelecimento de redes de solidariedade estabelecidas. Por ser realizado através de declarações dadas pelos próprios proprietários, Pedro Parga afirma que o Registro Paroquial de Terras, executado por ordem da Lei 601, se aproximava mais de um cadastro do que de um registro público de fato. Como regularização não conseguiu atingir a sua finalidade e os títulos continuavam com pouco valor de troca, sendo a propriedade um bem não tão confiável em garantia de empréstimos. Mas mesmo assim, alguns senhores apresentavam seus registros de terra como uma prova de domínio de particulares sobre terras, em sua maioria devolutas41. A referida legislação mantinha a diferença entre o direito obrigacional e o real, característico das Ordenações e Alvarás portugueses, segundo o historiador42. Teixeira de Freitas foi um daqueles que contestou a transcrição das transmissões de imóveis e as inscrições de hipotecas como prova de domínio e pregava que estes registros deveriam ser obrigatoriamente realizados. Distanciava-se das opiniões dos grandes fazendeiros que desejavam que o Registro Geral de Imóveis tivesse caráter comprobatório e afirmava que para que o registro viesse a assumir esse papel, não poderia ser apenas uma transcrição, mas deveria ocorrer juntamente a uma depuração para se descobrir a quem realmente pertencia este domínio. Juntamente a este processo das transmissões, precisava ocorrer também uma regulamentação fundiária43. Como afirmamos anteriormente, apesar da causa da abertura do processo de Reivindicação de Posse pelos membros da família Oliveira, em 1912, que contestava o domínio de Guilherme Maxwell adquirido por uma compra de crédito hipotecário onde seu pai era devedor e supostamente teria dado terras que não eram suas como base para a hipoteca, não encontramos no processo a utilização desta Lei Hipotecária como base principal de discurso. Porém, Maxwell se vale da arrematação deste crédito como título de seu domínio no processo, 44 demonstrando que a duplicidade de interpretações sobre o caráter da Lei estavam presentes ainda no século XX. A utilização do Código Comercial como Código Civil também foi criticada por Teixeira de Freitas, pois o Comercial não se adequava à realidade do Império e da terra e invadia, segundo o jurisconsulto, os domínios da Legislação Civil. Freitas chegou a enumerar matérias que deveriam sair do domínio do Código Comercial, por se tratarem de questões ligadas a outros ramos do direito, dentre elas a própria hipoteca que deveria obedecer a Lei Hipotecária 1237 de 1864, e não mais o Código Comercial de 185044. A questão da regularização fundiária teria um debate ainda mais intenso com a Proclamação da República. A primeira medida normativa tomada neste regime para enfrentar os problemas herdados desde o fracasso da política fundiária do Império veio seis meses após a Proclamação da República sob a forma do Decreto N. 451-B de 31 de maio de 1890, que estabeleceu o Registro e Transmissão de Imóveis pelo Sistema Torrens. A medida pretendia resolver as legitimações das posses, as revalidações das sesmarias e seus registros e a discriminação, a arrecadação e a venda das terras devolutas no Estado, sobre as quais os processos de posse e ocupação aceleraram-se na segunda metade do século XIX, apesar da proibição expressa na Lei de Terras N. 60145. A proposta de Robert Torrens para por fim à confusão em matéria de títulos de domínio, transferências e aquisições da propriedade móvel na Austrália através de um registro, foi originalmente “apropriada” por Rui Barbosa e outros políticos como solução para se legalizar e reparar as posses não fundadas em perfeito título de propriedade e visava fazer um “acerto de contas” com o passado, tendo o mérito de representar um caminho seguro para a modernização do Brasil. A matrícula dos imóveis seria feita mediante a satisfação de certos requisitos prescritos na nova legislação. O projeto possuía 85 artigos e objetivava consolidar um mercado de terras (ao instituir a hipoteca sobre a terra e não sobre os seus frutos), e também pretendia definir os limites dos domínios, o que minimizaria, ao menos em tese, a prática recorrente de invasão das terras devolutas e sua transformação em propriedade privada, tal como instituído ao arrepio da lei de 1850”46. O projeto Torrens visava à reorganização do espaço, definindo as terras privadas representando, neste sentido, “uma ruptura radical com o passado agrário brasileiro: a rejeição dos interesses fundiários como hegemônicos, a intangibilidade da propriedade fundiária e a subalternização do capital”47. No entanto a primeira constituição republicana de 1891 contradisse 45 semelhantes esforços, transferindo para os governos estaduais a responsabilidade pela discriminação das terras devolutas. Ao analisarem tal fato, Márcia Motta e Sônia Mendonça afirmaram que a República representou um rearranjo dos segmentos dominantes agrários no sentido de obstaculizar qualquer política que significasse uma reformulação da estrutura fundiária vigente, consolidando-se em nome de uma ruptura realizada (a República) uma continuidade com o passado, onde os conflitos fundiários e as expansões desenfreadas continuariam.48 Alberto Silva Jones afirma que o registro Torrens apresentava duas peculiaridades importantes. A primeira era por ser um registro facultativo, apesar de possuir vantagens para quem optasse por tal. A segunda é que era instituído de forma paralela e ao mesmo tempo que ao Registro Imobiliário existente. Para o sociólogo, esta duplicidade de alternativas para o registro de Imóveis, sobretudo os rurais, poderia gerar a oportunidade do surgimento de processos de expropriação por via registral, ou seja, de grilagem especializada49. Podemos assim afirmar que “dada à extraordinária elasticidade dos textos, que vão por vezes da indeterminação ao equívoco, a operação hermenêutica de declaratio dispõe de uma imensa liberdade”50. Paralela a estas novas legislações republicanas e falta de resoluções de problemas, ainda não havia sido promulgado o Código Civil Brasileiro. Loren Dutra Franco afirma que com a proclamação da República uma das primeiras medidas tomadas pelo Governo com relação ao processo civil foi que se aplicassem ao processo, julgamento e execução das causas cíveis em geral, as disposições do Regulamento 737 de 1850. Entretanto, manteve-se em vigor as disposições que regulavam os processos especiais, não compreendidos pelo referido Regulamento51, uma característica ainda colonial baseada na Lei da Boa Razão de Pombal, que previa a utilização de outras leis, para que não houvesse lacunas ou omissões nos julgamentos das causas52. Tal medida parece nos esclarecer o motivo do advogado de Guilherme Maxwell, o senhor Abelardo Saraiva da Cunha Lobo, utilizar em seus processos o Regulamento 737 do Código Comercial de 1850 e demais legislações coloniais e imperiais, principalmente, debatidas neste trabalho como base de defesa deste litígio. 46 Fontes -Arquivo Nacional. Protesto. Pretoria do Rio de Janeiro,13. Luiz Gonzaga de Souza Bastos e João Teixeira Ribeiro Junior. Ano 1896, n° 191, maço 2879, galeria A. -Arquivo Nacional. Manutenção de Posse. Tribunal Civil e Criminal do RJ. Alferes João Torquato de Oliveira e Luiz Gonzaga de Sousa Bastos. Ano 1899, n°5022, maço 271. -Arquivo Nacional. Reintegração de Posse. Documentos do Judiciário. 3A Vara cível do Rio de Janeiro. Leonor de Oliveira Mascarenhas, David Semeão de Oliveira Mascarenhas. Ano 1912. Número 772. Maço 3009 Gal. ª Seção de Guarda Codes. (Documento Incompleto). -Lei n. 1237 de 24 de Setembro de 1864. Disponível em: http://arisp.files.wordpress.com/2007/11/lei-1237-24-de-setembro-de-1864.pdf último Acesso: 30/12/2011. Referências Bibliográficas ALVEAL, Carmem & MOTTA, Márcia. “Sesmarias”. IN:Márcia Motta. (Org). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. BENTIVOGLIO, Júlio. Elaboração e Aprovação do Código Comercial Brasileiro de 1850: Debates Parlamentares e Conjuntura Econômica (1840-1860). Revista do Memorial do Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Justiça & História. Volume 5, número 10, 2005. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 13ª Edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. CAVALCANTE, José Luiz. A Lei de Terras de 1850 e a reafirmação do poder básico do Estado sobre a terra. Histórica - Revista Eletrônica do Arquivo do Estado de São Paulo. Edição nº. 2. Junho de 2005. Disponível em: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao02/materia02/Último Acesso: 15/ 04/2009. CRISTILLINO, Cristiano Luís. 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Revista Eletrônica História em Reflexão. Vol. 5 n. 9 – UFGD - Dourados jan./jun. 2011 MACHADO, Marina & MOTA, Sarita. Legislações e Terras. IN: MOTTA, Márcia & GUIMARÃES, Elione. Propriedades e Disputas – fontes para a História do Oitocentos. Guarapuava: Unicentro, 2011. Niterói: Eduff, 2011. MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. São Paulo: HUCITEC, 1986 MARX, Murilo. Cidade no Brasil, terra de quem? São Paulo: Edusp/Nobel,1991. MOTA, Maria Sarita. “Nas Terras de Guaratiba: Uma aproximação Histórico-Jurídica às definições de Posse e Propriedade de Terra no Brasil entre os séculos XVI – XIX”. Tese de doutorado. Seropédica, UFRRJ - CPDA, 2009 MOTTA, Márcia. Posse. IN: MOTTA, Márcia (Org.). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. _________. Nas Fronteiras do Poder: Conflito e Direito a terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998. _________. Teixeira de Freitas: da posse e do direito de Possuir. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI – N. 7. Dezembro de 2005. _________. MENDONÇA, Sonia Regina de. Continuidade nas rupturas: Legislação Agrária e Trabalhadores Rurais no Brasil, de Inícios da República. IN: Revista Brasiliense de Pós Graduação em Ciências Sociais. Ano VI. Brasília. Katacumba Editores, 2002. NEDER, Gizlene. História da cultura jurídico-penal no Brasil Império: os debates parlamentares sobre pena de morte e degredo. In: Ribeiro, Gladys Sabina, Neves, Edson Alvisi Neves e Ferreira, Maria de Fátima Cunha Moura (org.). Diálogos entre Direito e História:Cidadania e Justiça, Niterói: EdUFF, 2009. RODRIGUES, Pedro Parga. Império das Leis e a Jurisprudência sobre a Propriedade. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2009. 2 LIMA, Rachel Gomes de. Ciranda da Terra: A dinâmicaAgrária e seusConflitosnaFreguesia de São Tiago de Inhaúma (1850-1915). Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, março de 2012. 48 3 Pretoria do Rio de Janeiro,13. Luiz Gonzaga de Souza Bastos e João Teixeira Ribeiro Junior. Ano 1896, n° 191, maço 2879, galeria A. Arquivo Nacional. 4 As informaçõesdesteprocesso de 1898 chegaram a nósapenaspelocontato com o processo do ano de 1912 que tem o de 1898 comouma das bases de sustentação. Nãoencontramos, porém, esteprocessonosarquivosacessados e optamos, porisso, nãotrabalhar o processoprofundamente. Arquivo Nacional. Documentos do Judiciário. 3A Varacível do Rio de Janeiro. Leonor de Oliveira Mascarenhas, David Semeão de Oliveira Mascarenhas. Ano 1912. Número 772. Maço 3009 Gal. ª Seção de Guarda Codes. (DocumentoIncompleto). 5 Tribunal Civil e Criminal do RJ. AlferesJoãoTorquato de Oliveira e Luiz Gonzaga de Sousa Bastos. Manutenção de Posse. Ano 1899, n°5022, maço 271. Arquivo Nacional. 6 Nota-se esteserneto do DoutorJoãoTorquato de Oliveira e filho do AlferesJoãoTorquato de Oliveira. 7Baseamo-nos no espaço de tempo entre o primeiroprocesso que encontramos – 1896 – e o último – 1912. 8Falamos no sentido de possuir, de deter poder, não de se apossar do que não era seu. 9Processo de Reivindicação de Posse de 1912. Pág. 166-167. A funçãoemitálico e negritofoirealizadapornós. A parte sublinhadaestátalqual o original. 10 As Ordenações Filipinas ouOrdenações e Leis do Reino de Portugal, foramrecopiladaspelo Rei Phillipe I, que tevevigênciaem 1603, durante o período da UniãoIbérica. Sucedeu as OrdenaçõesAfonsinas (1446-1521) e Manuelinas (1521-1603), encerrandotodososinstitutosanteriores, baseados no Direito Romano que entãoprevaleciasobre o DireitoCanônico. Criavam-se leis, para organizar e administrar o vastoimpério e suaspossessõesultramarinas, modificaroumesmoderrogarcertos costumes locais e para produzirnovasnormas de direto. As Ordenaçõeseramcompostaspor 5 livros. MACHADO, Marina & MOTA, Sarita. Legislações e Terras. IN: MOTTA, Márcia& GUIMARÃES, Elione. Propriedades e Disputas – fontes para a História do Oitocentos. Guarapuava: Unicentro, 2011. Niterói: Eduff, 2011.Pág. 255. 11 FONSECA, Ricardo Marcelo. A CulturaJurídicaBrasileira e a Questão da Codificação Civil no século XIX. IN: NEDER, Gizlene (org.). História&Direito: Jogos de encontros e transdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2007. Pág. 112. Outrasdocumentações, taiscomo cartas régias, alvarás, decretos, leis provisõesregimentos, etc., determinadaspeloreinotambémeramutilizadas. 12 MACHADO, Marina & MOTA, Sarita. Legislações e Terras. Op. Cit. Pág. 254. 13 FONSECA, Ricardo Marcelo. Op. Cit. Pág. 114. 14 NEDER, Gizlene. História da culturajurídico-penal no BrasilImpério: os debates parlamentaressobrepena de morte e degredo. In: Ribeiro, Gladys Sabina, Neves, Edson AlvisiNeves e Ferreira, Maria de Fátima Cunha Moura (org.). Diálogos entre Direito e História:Cidadania e Justiça, Niterói: EdUFF, 2009. Pág. 315. 15 MOTTA, Márcia. Posse. IN: MOTTA, Márcia (Org.). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2005. Pág. 369. 16 FONSECA, Ricardo Marcelo. Op. Cit. Pág. 115. 17 MACHADO, Marina & MOTA, Sarita. Op. Cit. Pág. 261. 18A “sesmaria” era um instituto de origemportuguesa que pressupunha a doação de terrasmediante a comprovação do cultivo das mesmas. O sistemafoicriadoemfinais do século XIV, em Portugal, com o objetivo de solucionar o problema da crise de gênerosalimentícios no país. ALVEAL, Carmem& MOTTA, Márcia. “Sesmarias”. IN:Márcia Motta. (Org). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2005. Pág. 472. 19 Idem. Pág. 429-430. 20 CAVALCANTE, José Luiz. A Lei de Terras de 1850 e a reafirmação do poder básico do Estado sobre a terra. Histórica - Revista Eletrônica do Arquivo do Estado de São Paulo. Edição nº. 2. Junho de 2005. Disponível em: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao02/materia02/ Último Acesso: 15/ 04/2009. 21 Pedro Parga Rodrigues afirma que oRegistrofeitopelovigário é um indício de clientelismo local. RODRIGUES, Pedro Parga. Império das Leis e a Jurisprudênciasobre a Propriedade. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2009. Capítulo 2. 22 MARX, Murilo. Cidade no Brasil, terra de quem? São Paulo: Edusp/Nobel,1991. Pág. 143. 23 MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. São Paulo: HUCITEC, 1986. 24 CRISTILLINO, Cristiano Luís. Litígios ao Sul do Império: A Lei de Terras e a consolidação política da Coroa no Rio Grande do Sul (1850-1880). Tese de Doutorado em História. Niterói: UFF, 2010. 25 Idem. Pág. 196. Márcia Motta faz um pequeno debate sobre a Lei de Terrasem um verbetepresente no Dicionário da Terra. MOTTA, Márcia. Lei de Terras. IN: ________.(Org.) Dicionário da Terra. Op. Cit. Pág. 279. 26 MOTTA, Márcia. Nas Fronteiras do Poder: Conflito e Direito a terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998. 27 CHALHOUB, Sidney. IN: Motta, Marcia. NasFronteiras do Poder. Op. Cit. 1998, Pág. 11. 49 28 Motta, Márcia. Nas Fronteiras do Poder. Op. Cit., 1998. Pág. 38. Esta citação da historiadora é referente ao sistema de sesmarias, mas percebemos que a não medição de terras também ocorre em alguns registros de terras em Inhaúma após 1850. 29MOTA, Maria Sarita. “NasTerras de Guaratiba: Uma aproximaçãoHistórico-Jurídicaàsdefinições de Posse e Propriedade de Terra no Brasil entre osséculos XVI – XIX”. Tese de doutorado. Seropédica, UFRRJ - CPDA, 2009. 30 LIMA, Rachel Gomes de. Contribuição a História da Freguesia de Inhaúma: Elites, Usos e Formas de Apropriação das Terras, RelaçõesSociais e Econômicas. RevistaEletrônicaHistóriaemReflexão. Vol. 5 n. 9 – UFGD Douradosjan./jun. 2011. 31Grifossublinhadossão do original, osdemaisforamfeitospornós. Reintegração de Posse. 3A Varacível do Rio de Janeiro. Leonor de Oliveira Mascarenhas, David Semeão de Oliveira Mascarenhas. Ano 1912. Número 772. Maço 3009 Gal. ª Seção de Guarda Codes. (DocumentoIncompleto). Pág. 55 e 55v. 32Tendotambémumainfluência do CódigoBelga. 33 BENTIVOGLIO, Júlio. Elaboração e Aprovação do CódigoComercialBrasileiro de 1850: Debates Parlamentares e ConjunturaEconômica (1840-1860). Revista do Memorial do Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Justiça&História. Volume 5, número 10, 2005. Pág. 1-23. 34 Idem. Pág. 15. 35Ibidem. Pág. 19. O CódigoComercialainda é utilizado, porémjátevealgunsartigosrevogados. Aúltimarevogaçãofoifeitaemsuaprimeira parte (Título I – dos Comerciantes) pela Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Vide:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L0556-1850.htm. ÚltimoAcesso: 30/12/2011. 36 BENTIVOGLIO, Júlio. Op. Cit. Pág. 20. 37 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Teixeira de Freitas: da posse e do direito de Possuir. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI – N. 7. Dezembro de 2005. Pág. 249-270. Pág.252. 38 Idem. Pág. 267. 39 Lei n. 1237 de 24 de Setembro de 1864. Disponível em: http://arisp.files.wordpress.com/2007/11/lei-1237-24-de-setembro-de-1864.pdf último Acesso: 30/12/2011. 40 Rodrigues, Pedro Parga. Op. Cit. Pág. 62. 41 Idem. Pág. 68-70. Márcia Motta apresenta um casoonde um senhor de terras se baseiaemseuRegistro de Terras para garantirsua posse no mesmoartigo que trabalha Augusto Teixeira de Freitas. MOTTA, Márcia. Teixeira de Freitas: da posse e do direito de Possuir. Op. Cit. 42 RODRIGUES, Pedro Parga. Op. Cit. Pág. 72. 43 RODRIGUES, Pedro Parga. Op. Cit. Pág. 78. 44 Idem. Pág. 90 e 93. 45 JONES, Alberto da Silva. Direito e Apropriação de Terras no Brasil. (Parte I) – Portal Vermelho, 29 defevereiro de 2004. Disponívelem: www.fmra.org/archivo/Direito1.pdf. ÚltimoAcesso: 12/06/2011. E tambémem: www.vermelho.org.br (segundoCurrículo Lattes do autor) 46 MOTTA, Márcia Maria Menendes. MENDONÇA, Sonia Regina de. Continuidadenasrupturas: LegislaçãoAgrária e TrabalhadoresRurais no Brasil, de Inícios da República. IN: RevistaBrasiliense de PósGraduaçãoemCiênciasSociais. Ano VI. Brasília. KatacumbaEditores, 2002. Pág. 129-130. 47 Idem. Pág. 131. 48Ibidem. Pág. 133. 49 JONES, Alberto Silva. Op. Cit. 50 BOURDIEU, Pierre. O PoderSimbólico. 13ª Edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. Pág. 223. 51FRANCO, Loren Dutra. Processo Civil: Origem e Evolução Histórica. Revista Eletrônica de Direito Dr. Romeu Vianna. Ano II – N. 2 – 2005. http://www.viannajr.edu.br/revista/dir/doc/art_20002.pdf . Último Acesso: 30/12/2011. 52 Como vimos o últimotrechoretirado do Processo de Reintegração de Posse de 1912 apresentadonestetrabalho, o advogado de Guilherme Maxwell de Sousa Bastos tambémutilizava o Direito Romano, legislações dos “povoscultos” e diversosjuristas para solucionar a existência de lacunas nalegislação e estruturarseudiscurso de defesa. 50 Introito para o século XXI: uma breve historiografia da educação desde o Brasil Colonial LudmillaElyseu Rocha*i Professora Adjunta em Direito Privado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/UFRRJ Doutora em Educação UFRJ/PPGE Resumo: a história do Direito e a história da educação podem ser afastadas por uma cadeia natural de eventos, por lacuna institucional, por adoção política, bem como por interrogações pontuais, porém, a despeito da semântica dos tempos históricos, ou da irracionalidade de suas forças, admitir que tal separação implica fragilidade na formação cidadã, social, bem em nível de base de Estado. Assim, a reflexão sobre o diálogo ou dialética histórica entre o Direito e a educação instaura a necessidade de compreender com mais clareza, a partir da narrativa e estudo destes temas em linhas preliminares. Palavras-chave: história, educação, Direito. Abstract:Summary: The history of lawand historyeducationcan beremovedby anaturalchain of eventsby institutionalgapforpolicyadoption, as well as specificquestions, however, despite the semantics ofhistorical times, ortheirrationalityof theirforces, admitthat such separationimpliesweakness incivic, social,andinstate-based level.Thus, thereflection on thehistoricaldialogue ordialecticbetween lawand educationestablishesthe need to understandmore clearly,from thenarrativeandstudythese subjectsin primarylines. Keywords:history, education, law Sumário: 1. Introdução. 2. Instrução pretensamente elaborada. 3. Liames entre o reino e a colônia. 4. Lacunas e normas. 5. Bibliográfia. 1. Introdução É impróprio discorrer sobre Educação no período Colonial, porque, naquela época, não se podia falar em Educação brasileira propriamente dita. A herança social portuguesa e a formação europeia humanista se fazem pertinentes para que se possa entender que falar de Educação no Brasil desse tempo é reeditar um modelo educacional português, transplantados do Reino para uma colônia de proporções continentais o que, definitivamente, tornou-se impossível de se realizar como deveria. O Brasil passou a fazer efetivamente parte do Império Português, sob a ótica jurídica, com o Regimento de 17 de dezembro de 1548, o qual continha a designação de um Governador-Geral (Tomé de Sousa) que, através da Carta Régia de 7 de janeiro de 1549, representava o Rei de Portugal na Colônia no que diz respeito à administração e ao seu desenvolvimento, pois o sistema de Capitanias não logrou o êxito esperado. Com o novo Governador Geral, vieram os padres da Companhia de Jesus para catequizar os1 gentios. Conforme muito bem salienta FREIRE (2001), assim 1 chegaram os jesuítas, com a tarefa determinada de instruir e catequizar o índio (...) com o fim de reafirmar o medievalismo e perpetuar os dogmas e crenças da Igreja Católica (p. 26). Essa Companhia, criada Ad Majorem Dei Gloriam (Para a Maior Glória de Deus) e fundada pelo espanhol Ignácio de Loyolla, em 1534, foi aprovada pelo Papa Paulo III e reconhecida através da bula Papal de 1540, RegiminiMilitantisEcclesiae (Regulamento dos Militares a Serviço de Deus). Em virtude da filosofia dessa instituição, seus integrantes faziam voto de obediência ao sumo pontífice e ingressavam nos diversos agrupamentos criados com base geográfica e linguística, levando a metodologia e pedagogia dos jesuítas a todos os locais, onde se dedicavam à missão de educar. Em colégios e universidades na Europa, tinham no ensino a consagração de suas pregações, e aqui, na Colônia, esmeravam-se na evangelização dos indígenas nas regiões recém-descobertas. Ao chegar ao Brasil, em meados de 1549, a Companhia de Jesus trouxe renomados representantes da Ordem, como os padres Manuel da Nóbrega, Leonardo Nunes, João de Azpilcueta Navarro, José de Anchieta e outros. A ideia do Rei de trazer a Ordem Jesuítica para o Brasil foi, bastante positiva, pois era muito respeitada na Europa. Entre seus muitos objetivos, os jesuítas combateram a doutrina protestante, através do ensino católico, já que a citada Reforma, aos olhos da Igreja Católica, despertava preocupações no sentido de desviar os fiéis de uma religião para outra. Não foi à toa a escolha dos padres jesuítas para ensinar na Colônia Portuguesa no Brasil. Seu fundador, Inácio de Loyolla, por ser um ex militar, tinha regras rígidas de conduta, fato que, entre outros fatores, não o qualificava ao ensino da aristocracia em Portugal, justamente pela rigidez aplicada aos seus discentes, o que não era muito bem aceito pela elite, por não se sentirem à vontade em sujeitar-se aos seus princípios militares. Inicialmente, não era uma Ordem Religiosa propriamente dita. Seus adeptos eram soldados de Cristo o que, após análise de ABICHT (1984), preleciona RUCKSTADER (2008), que a Ordem que defenderia a milícia eclesiástica era estruturada de forma militar (...). A autoridade de Deus, exercida pelo Papa, era delegada ao Superior Geral e, através dele, para os superiores Nacionais, Regionais e Locais. Obediência incondicional é um dos primeiros preceitos para o funcionamento da Ordem (p. 106) 52 2 . Seus adeptos arvoravam-se em soldados de Cristo, dando um cunho militar à mesma. Misturavam-se, na sociedade, com intuito de cooptar as pessoas que desagradavam à Igreja Católica. Tendo como missão inicial o ensinamento aos mais humildes, a educação para o jesuíta, acabava sendo uma obra de caridade, pois visava atender aos ignaros como era considerada a maioria cultural e politicamente marginalizada. Como não poderia deixar de ser, sobretudo sob o aspecto jurídico, os jesuítas necessitaram de uma regra, na qual pudessem se basear, para efetivar os trabalhos nas terras onde deveriam levar as normas cristãs, bem como as diretrizes traçadas pela Coroa portuguesa. Nasce o RatioStudiorum3, que era a base legal da doutrina jesuítica, encerrando orientações tanto administrativas como didático pedagógicas. A divisão curricular seguia o modelo europeu, tendo duas seções distintas: inferiores e superiores, chamadas classes. Pelo fato de o estudo ser voltado para cultura clássica greco latina, passou-se a denominar "clássico".O RatioStudiorumfoi um método de ensino, composto de várias regras que orientavam os mestres desde a organização escolar, até ao aprendizado para sujeição à doutrina católica. Composta de uma coletânea de normas, englobava tanto a parte administrativa de uma escola, como toda a pedagogia teológica de aprendizado da doutrina cristã, bem como regras de conduta social. Entre outras diretrizes, também encerrava, como prática pedagógica de estudo, a repetição no sentido de se tornar mais fácil a catequização, já que, neste contexto, a educação era apenas para catequese e evangelização e não para o aprendizado em si mesmo. Este tipo de educação, preconizada pelo Ratio, tinha como objetivo não a formação do cidadão, se é que, nessa época, poderia cogitar-se tal abrangência e profundidade do instituto, mas sim o de formar um ser humano ‘perfeito’ sob a ótica eclesiástica da época, cuja orientação era a de ser um bom cristão. Era um privilégio, em virtude das circunstâncias da Colônia extrativista de latifúndio e patriarcado, a educação ser direcionada para a elite colonial que atendia aos interesses da Coroa Portuguesa e da Igreja. De fato, segundo SANGENIS (2004) (...) os jesuítas empreenderam no Brasil uma significativa obra missionária e evangelizadora, especialmente fazendo uso de novas metodologias, das quais a educação escolar foi uma das mais poderosas e eficazes. Em matéria de educação escolar, os jesuítas souberam construir a sua hegemonia. Não apenas organizaram uma ampla ‘rede’ de escolas elementares e colégios, como o fizeram de modo muito organizado e contando com um projeto pedagógico uniforme e bem planejado, sendo o RatioStudiorum a sua expressão máxima (p. 93). Os jesuítas tiveram como um dos principais objetivos educacionais, no Brasil, a evangelização de crianças e jovens, sendo que, no início da colonização, foram criados apenas três colégios: o colégio da Bahia, o colégio do Rio de Janeiro e o de Pernambuco. Esses colégios professavam uma filosofia humanística, de caráter acentuadamente retórico, de acordo com os dogmas cristãos e não a divulgação do saber fora do academicismo jesuítico. O método do Ratio, na verdade, foi adaptado às necessidades locais desde o momento da inauguração dos colégios, tanto que o ensino profissional foi introduzido para atender à demanda de construções das casas de vila, de igrejas e de colégios entre outros. Não havia mão de obra especializada, tampouco era levada em consideração a necessidade do novo país que se descortinava. BORTOLOTI (2008), ao analisar o Ratioin LEITE (1954), chama a atenção para uma pequena parte do conteúdo de uma das Cartas dos PrimeirosJesuítas no Brasil que demonstra, apenas a título de exemplo, a real situação dos que aqui estavam com o desabafo de que, [n]esta terra, por falta que há de autoridades legitimadas, a carência nos obriga a aprender todos os ofícios, porque afirmo que, devido aos ofícios que nesta terra tenho aprendido para que possa sobreviver, Cristo Nosso Senhor nos faz bem aprender e executar a uma perfeição, para que nossos trabalhos e serviços sejam aceitos. E para que isso ocorra, meus irmãos em Cristo, nunca esqueçam de lembrar de nós em vossos sacrifícios e orações (p. 267)4. Havia diferenças entre o ensino ministrado pela Companhia de Jesus no Brasil e em Portugal. Apesar de público e gratuito, inicialmente na metrópole e na Colônia, a proibição aos padres de acrescentar qualquer forma de riqueza material a Ordem no sentido de cumprir o voto de pobreza, não se vergavam ao cumprimento da norma estabelecida pelo Ratiocomo um todo, o que denota uma despreocupação com a sociedade local e os seus costumes. 52 Os seminários, criados pelos jesuítas, com o objetivo de garantir a formação de novos padres, mas que, na verdade, acabaram se tornando importantes estabelecimentos de ensino, atendendo aos filhos dos latifundiários que concluiriam seus estudos na Europa, desvirtuaram-se do seu projeto original de educar os nativos. 2. Instrução pretensamente elaborada A rigor, sob o proclamado discurso de assegurar instrução mais elaborada, viu-se criado um nível de ensino direcionado à parcela da sociedade detentora do poder político-econômico. E a termo, representou a base formativa da classe privilegiada que iria assumir a liderança da então sociedade colonial, em estreita sintonia com os interesses da Corte, mantendo vivo o espírito de Colônia. Para que se possa entender esta faceta da sociedade colonial brasileira, no que diz respeito à importância dada à educação para a elite, é necessário relembrar os meios pelos quais se organizou o Brasil Colônia, sob os aspectos socioeconômico e político cultural. O Brasil estruturou-se através de uma economia agrária, latifundiária e escravista. Este modo de organização teria como meta o enriquecimento da Metrópole, da Coroa portuguesa, e não dos gentios aqui encontrados. Estabeleceu-se, segundo FREIRE (2001), a estrutura de produção no Brasil sobre o tripé: escravidão negra, latifúndio e regime colonial (p. 25). O que ocorreu, desde o início, foi um desvio de objetivos em relação à educação que, na Colônia, era para ser direcionada, como menciona NOVAES (2004), ... [a]os filhos de pessoas de menor qualidade [que] aprendem em troca de sustento e criação, [pois] às pessoas de maior qualidade não se podia obrigar a aprender um ofício mecânico (pág. 352). Esse quadro denota uma situação em que as regras de convívio social e jurídicas atendiam à elite dominante que, na maioria das vezes, usava-as em seu próprio benefício. Segundo CAMARA (1964), não havia, no tocante ao ultramar, qualquer regulamentação. Imperavam os maiores abusos, irregularidades, desordens e arbitrariedades de toda sorte (pág. 66). O letramento da população passava ao largo, já que seu enfoque era a manutenção, como já foi sinalizado, da submissão à Metrópole. 53 Em que pese a importância do Ratiocomo regra de organização educacional, o fato de, na Colônia, não haver condições para que as pessoas a ela tivessem acesso como norma, transformou o direito em um luxo não acessível ao povo. Isto abriu espaço para atos totalitaristas, como as várias proibições aos que aqui estavam, no sentido de controlar, administrar ou mesmo centralizar a comunicação da cultura como, por exemplo, o Alvará de 20 de março de 1720, a cercear as letras impressas no Brasil; a Carta Régia de 26 de abril de 1730, que proibia o correio por terra no Brasil; e o Alvará de 16 de dezembro de 1794, ao proibir o despacho de livros e papéis para o Brasil, entre muitos outros atos cerceadores do saber. Apesar de atenderem, inicialmente, às determinações da Coroa Portuguesa, os jesuítas não escaparam da Reforma Pombalina que os excluiria da educação, a ponto de se extinguir a ação da Ordem jesuítica no país, por anos, trazendo um enorme hiato para o letramento do povo brasileiro. Com o tempo, os jesuítas, notoriamente cultos, foram considerados como ameaça à hegemonia. Ao dominarem o sistema de ensino em Portugal e nas Colônias, e, ao gozarem do privilegiado livre acesso e respaldo de Roma, começaram a ser vistos como concorrentes ao domínio absolutista de então que queria a Igreja controlada pelo Estado. A ameaça de dominação paralela, somada à ideia de suposta posse de extenso e rico patrimônio aqui adquirido pelos religiosos desde a época do Padre Manuel da Nóbrega, resultaram em um poderoso pretexto para o Marquês de Pombal em sua persecutória campanha antijesuítica. Segundo LIMA (1974) o papel de Pombal foi reforçar os controles monopolistas (p. 21), o que foi, em relação aos jesuítas, fundamental para sua perseguição. Com a edição e publicação da obra Dedução Cronológica e Analítica em 17975, Pombal inicia uma perseguição implacável, com várias acusações como: a resistência dos jesuítas à aplicação do Tratado de Madrid, celebrado entre Portugal e Espanha que delimitava as fronteiras na América do Sul; a oposição, no Brasil setentrional, às leis que regulavam a administração das aldeias de índios; o exercício de atividades comerciais proibidas a religiosos; a difamação no estrangeiro do então Rei de Portugal, D. José I da Dinastia de Bragança, que governou no período de 1714 a 1777; a participação, pelo menos moral, no atentado contra este; e a revolta popular na cidade do Porto, em Portugal, ocorrida em 1757, entre outras. Em 1759, foram banidas do 54 território brasileiro e proibidas todas as obras jesuítas, até a posterior extinção oficial da Companhia de Jesus, ocorrida em 1773, pelo Papa Clemente XIV. No entanto, até a sua expulsão, os jesuítas que tiveram o monopólio da Educação a eles destinado, desde o início, conforme apontado por FRANÇA (2007), detinham o direito exclusivo de ensinar Latim e Filosofia no Colégio de Artes [em] curso preparatório obrigatório para ingresso nas faculdades da Universidade de Coimbra [e] no Brasil, [pel]os colégios jesuíticos [que] ofereciam, quase com exclusividade, a educação secundária (p. 107). Verifica-se que, a expulsão dos jesuítas, sem qualquer outro substitutivo, deu lugar a um inimaginável vácuo, na claudicante Educação brasileira que, até então, bem ou mal, houvera se beneficiado de uma das mais bem conceituadas ordens de ensino religioso da Europa. Os habitantes do Brasil Colônia, politicamente privados da continuidade do princípio educacional aqui instituído, passaram a vivenciar mais claramente multiplicadas as tantas desigualdades a eles antes naturalmente imputadas, tamanho o aviltamento aos direitos, como o não acesso à escolaridade, a desigualdade de oportunidades e a não garantia de permanência aos bens de cultura, como a Educação entre outros, todos considerados aspectos potencializadores de um solo fértil, facilitador para a reinância do descaso com a Educação, a burla de regras autoritárias e desiguais para usufruto de direitos básicos fundamentais tornou-se um costume historicamente comprovado. A lei, sob a ótica da ordem jurídica, segundo CAMARA (1973), com seus postulados, é um resultado de fatores históricos nem sempre relevantes na sua aparência, conquanto essenciais no seu desenvolvimento sucessivo. Quanto mais nítida nos seus fundamentos mais proveitosa àqueles que a concebem como imprescindível à vida social, como meio para solução de conflitos, como norma de conduta, (...) (p. 01). Mas, para que ela se torne pública, é necessário um sistema educacional voltado para a formação do ser humano integral, no sentido de este ter conhecimento para saber fazer dela o uso adequado. Para SODRÉ (2003),no percurso histórico brasileiro, muitas situações concorreram para a não-valorização da noção da lei (p. 37), evidenciando-se o fato de, no Brasil, a cultura do colonizado ter sido formada fora da realidade que se impunha, contraposta às origens do colonizador, com um legado de leis e costumes incorporados. 55 O colonizador, por sua vez, ao invés de estendê-las ao colonizado, cuidava de privá-las de seu acesso – pela janela que lhe aprazia permitir – o letramento, o saber, a Educação. O passado colonial brasileiro guarda nítidas peculiaridades ao se considerar um ilustrativo paralelo com o processo de colonização dos Estados Unidos da América. Neste, povoado sob os princípios do pioneirismo, voltado a deitar raízes à terra, havia todo um sentido espiritualizado de agregação do pioneiro ao “Novo Mundo”, com uma finalidade precípua de ocupação do território, de espírito nacional, de amor ao patrimônio adquirido, fundamentado em uma verdadeira vontade de se estabelecer e fixar raízes. No Brasil, em vez do pioneiro, teve lugar o bandeirante, de finalidade puramente exploratória e extrativista, potenciais conquistadores protagonistas de razias, destinados a eviscerar a terra, trazendo, sublinhando MOOG (2005), um sentido predatório, extrativista e quase só secundariamente religioso na formação brasileira (p.106). Segundo HOLLANDA (2005), essa exploração dos trópicos não se processou (...) por um empreendimento metódico e racional (...), fez-se antes com desleixo e certo abandono (p. 43), provocando o nascimento de um sentimento singular em relação ao patriotismo, pretensão ao exercício de direitos, ou qualquer outro que criasse um vínculo do homem à terra, ou seja, não havia interesse em se criar leis que fossem adequadas, pois a ideia não era chegar e deitar raízes, mas explorar e retornar ao mundo ‘civilizado’. Os primeiros conquistadores, embora adotassem práticas jurídicas tradicionais consuetudinárias, trouxeram-nas do seu país de origem que já estavam sob influência romana, como sendo o verdadeiro Direito. No entanto, ao chegarem e se estabelecerem nas povoações, verificaram que a lei em vigor na Metrópole chamada de Ordenações do Reino6, apesar de ter eficácia, não teria a mesma efetividade em um local tido como exótico e inóspito, veladamente marcado pelo quadro da anomia e do abandono. 3. Liames entre o reino e a colônia Mesmo assim, no Brasil colonial foram aplicadas as mencionadas Ordenações do Reino, compilações de leis nascidas por determinação do governante de cada época em que eram editadas, adequando-se às necessidades do povo português. Três foram as Ordenações que levaram o nome dos reis de cada época em que surgiram. A primeira, no ano de 1447, chamava-se Afonsina; a segunda, datada de 1521, era Manuelina; e a 56 última de 1583 denominava-se Filipina. A despeito da importância desta legislação para o Direito Brasileiro, há que se ressaltar a dissonância entre as motivações de sua origem, lá na metrópole, e sua inaplicabilidade na terra recém-descoberta, aqui, no Brasil Colônia. O que torna pertinente a menção, principalmente, das duas últimas Ordenações é o fato de o Brasil ter sido justamente colonizado no período de transição da vigência em Portugal entre as Ordenações Manuelinas e as Filipinas. Há que se levar em conta, conforme salienta CAMARA (1973), que o soberano, considerado em face de seu caráter sagrado e infalível, era a única fonte de norma positiva (p. 115). Lá, na metrópole, o poder de mando, independentemente da necessidade social, vinha sempre de cima, ou seja, de um Rei que, na maioria das vezes, estava alijado das necessidades sociais. O mesmo mandonismo absoluto da Coroa, transplantado para a Colônia ultramarina ganhou aqui matizes de exibicionismo bizarro de poder como pode ser observado quando é descrito, entre tantos fatos, por WILKEN (2008), que à frente da carruagem de D. João iam os acompanhantes reais, que abriam caminho com brusquidão, obrigando os que estavam à beira da estrada a tirarem o chapéu. Dona Maria circulava com uma escolta cujo trabalho era obrigar todos os transeuntes a cumprirem a etiqueta real. Oscavaleiros tinham de apear, e quem estivesse de carruagem era forçado a parar, descer e se ajoelhar à beira do caminho, com a cabeça curvada, até a rainha passar. Quanto a D. Carlota, seus batedores chegavam a chicotear os transeuntes que não exibiam o respeito apropriado (p. 118). A importância das determinações das Ordenações, no que diz respeito a qualquer ato que significasse acesso ao saber e, por consequência, à lei, transformavam aquelas em ponto de partida ideal para o estudo do Direito no Brasil colonial e o papel da Educação neste acesso. O Brasil viveu, no campo jurídico, entre tantos outros, como entre tantas outras colônias, o desígnio de sofrer, conforme constata CAMARA (1964), (...)uma transplantação pura e simples do Direito metropolitano, mero enxerto (p. 34), praticamente integral, das dinâmicas institucionais jurídicas de Direito Público e de Direito Privado existentes na Corte lusitana. Em consequência, a aplicação de instituições jurídicas no Brasil, como delineadas nas leis portuguesas, resultou em enfrentamentos até então impensados, tamanho o ostracismo reinante na sociedade aqui embrionária e, sobretudo, ignara de seus direitos. 57 O acesso à escolaridade passava ao largo, deixando espaço para os desmandos e a flagrante alienação da sociedade ‘comum’ em relação ao direito à Educação e à legitimação do Direito como garantismo institucional básico para formação de Cidadania que à época, rudimentarmente, já despontava na Europa. FREIRE (2001) chama a atenção para o fato de que (...) a preocupação pela educação [somente ter surgido] como meio capaz de tornar a população dócil e submissa, atendendo à política colonizadora portuguesa determinada pelo Regimento do Rei D. João III (p. 32). Um rei distante e uma legislação descontextualizada em um país que lograva nascer no cenário de um Novo Mundo imperialista, segundo BOSI (2003), ao chegar com uma transposição de comportamento e linguagem [obviamente daria] resultados díspares (p. 31). Impotente para resolver o problema a curto prazo e ameaçado de perder o novo domínio, o Rei de Portugal tomou a decisão que repercutiria até o século atual, com o envio de degredados para as terras brasileiras, no sentido de povoar e defender a Colônia. Pela distância, pelo medo do desconhecido, pela falta de infra estrutura, o Brasil logo se transformou em destino forçado como apenação de certos infratores da Coroa, como pontua CÂMARA (1973), que em ordenação explícita atendendo el-reia que muitos vassalos, por delitos que cometem, andam foragidos, e se ausentam para reinos estrangeiros, sendo aliás de grande conveniência que fiquem antes no reino e senhorios, e sobretudo que passem para as capitanias do Brazil, que se vão de novo povoar, há por bem declará-la couto7 e homizio8 para todos os criminosos que nelas quiserem ir morar, ainda que já condenados por sentença até em pena de morte, excetuados somente os crimes de heresia, traição, sodomia e moeda falsa (p. 97/98). Com os degredados estabelecendo-se em um local onde não havia uma legislação que os enquadrasse, sob determinação e chancela da autoridade mor para aqui se fixar e abrigar-se na terra que lhe fora destinada, muito pouco se sabe que meios usaram para garantir o seu latifúndio nas terras de além-mar, avessos a todo mandamento legal, cujo algoz de pouco ou nenhum exemplo dispunha para oferecer aos gentios colonizados. Segundo CAMARA (1973), imperavam abusos, irregularidades, desordens e arbitrariedades de toda sorte (p. 66). 58 4. Lacunas e normas Por falta de normas de conduta social, o Brasil não haveria de sucumbir, como profetizava a Igreja Católica. Ainda que de mérito restrito a ideais veladamente políticos, difundia como ‘regras’ de conduta moral, a exemplo do Concílio de Trento (1545-1563), entre outros eventos, as diretrizes eclesiásticas a serem seguidas por todos os países católicos e pelas ordens religiosas. Em decorrência, no Brasil colonial, surgiu um dos primeiros documentos jurídicos de sua história, com a finalidade de adaptar as regras determinadas pelo Concílio mencionado, bem como as da sociedade em geral, incluindo as de cunho educacional, documento este sendo denominado ‘Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia’. As Constituições9 Primeiras do Arcebispado da Bahia são, como afirma MAGALHÃES (2007), as verdadeiras raízes do nosso ordenamento jurídico (p. VII)10.Sua primeira publicação deu-se no ano de 1707 e, alguns anos após, em 1853, foram republicadas. Esta norma dá um panorama da legislação da época do Brasil Colônia, que teve alcunha determinada pelo fato de a Bahia ser a capital, na época, do Império Português. Aqui já se verificam dois dos exemplos do monopólio do saber. O primeiro pela Igreja Católica, e o segundo, pelo ‘grande centro urbano’, pois quem nele residia, ou a ele tinha acesso, mais fácil se instruía e se atualizava. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, ao serem publicadas em 1707, pelo Arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide em substituição às Constituições de Portugal que vigiam na época, tinham a finalidade de cumprir o determinado pelo já citado Concílio de Trento à Igreja católica. Como Portugal era uma monarquia cristã, o Brasil foi obrigado a adequar-se. Esta adequação era extremamente necessária pelo fato de a legislação portuguesa, as Ordenações do Reino, não se adaptarem mais à sociedade e aos costumes locais, em virtude da necessidade de regulamentação religiosa e social da mão de obra escrava entre outros fatores. Em virtude da própria natureza de legislação eclesiástica, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia tinham por finalidade traçar diretrizes jurídicas, ideológicas, religiosas e pedagógicas. Isso significava garantir a perpetuidade do quadro 59 social de subserviência antes inculcado pelos jesuítas e pela elite social que, no Brasil, se estruturou de forma que o escravo, com a nova legislação, apenas teria o privilégio da diminuição das crueldades. Composta de cinco livros, também chamados volumes, essas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia discorrem sobre a vida na colônia, voltadas para os costumes ditados pela Igreja católica e Corte portuguesa. As ideias pedagógicas aí contidas, sempre voltadas à manipulação do saber no sentido de educar para a subserviência, eram transmitidas através de “sermões”, tornando-se então um Direito Eclesiástico Constitucional, vigorando até o fim do século XIX. A título de exemplo, pode ser citado o Título II, n° 4, Livro Primeiro que determina Como são Obrigados os Pais, Mestres, amos e Senhores a Ensinar, ou Fazer Ensinar a Doutrina Christã aos Filhos, Discípulos, Criados e Escravos, verbis: [m]andamos a todas as pessoas, assim Eclesiásticas, como seculares, [que] ensinem ou fação a Doutrina Christã à sua família, e especialmente a seus escravos, que são os mais necessitados desta instrução pela sua rudeza, mandando-os à Igreja, para que o Parocho lhes ensine os Artigos da Fé, para saberem bem crer; o Padre Nosso, e Ave Maria, para saberem bem pedir; os Mandamentos da Lei de Deos, e da Santa Madre Igreja, e os peccadosmortaes para saberem bem obrar; as virtudes para que as sigão; e os sete Sacramentos, para que dignamente os recebão, e com elles a graça que dão, e as mais orações da Doutrina Christã, para que sejam instruídos em tudo, o que importa a sua salvação (grifo nosso). Na verdade, esse capítulo, apesar de versar sobre questões doutrinárias e administrativas dos sacramentos, era voltado para a obrigação que tinham os pais, mestres, amos e senhores de educar ou fazer ensinar a doutrina cristã à sua família, incluindo-se entre esses os escravos, assegurando-se por essa via a submissão à Igreja.Não se mencionava uma alfabetização, ou incentivo à leitura, para que se pudesse enriquecer o conhecimento no sentido de divulgar a cultura. Era mero documento institucionalizador da repetição de dogmas eclesiásticos que formavam os esperados “bons cristãos”. No Livro Terceiro, em seu Título XXXII, sob a rubrica da Obrigação que os Parochos tem de Fazer Práticas Espirituaes e Ensinar a Doutrina Christã aos seus Fregueses, determinam-se as diretrizes doutrinárias a serem aplicadas na orientação daqueles que deveriam ministrar o ensino na Colônia, ou seja, os catequistas e missionários. Neste mesmo título, no nº 579, criou-se um modelo de doutrina chamada 60 de Breve Instrucção dos Mystérios da Fé, Accomodada ao Modo de Fallar dos Escravos do Brasil, para Serem Cathequizados por Ella o que demonstra a preocupação em usar o linguajar do escravo para conseguir estritamente incutir-lhe o ideário doutrinário, sem qualquer preocupação com a instrução propriamente dita. Essas Constituições que mandavam e ordenavam os pais e os padres a “ensinarem” aos escravos, colonizadores e gentios, criaram fórmulas de uma “educação” voltada puramente para o aprendizado de uma doutrina cristã de subserviência. O princípio básico, o cerne da significação cidadã, passava ao largo desta doutrinação restritiva de cultivo à subsistência através da religião. O Brasil colônia era um local inóspito, a escravidão pungente e, acima de tudo, como bem salienta NOVAES (2004) a atitude em face do trabalho, decisiva em qualquer formação social, fica[va] marcada pelo estigma insuperável que identifica trabalho com servidão, lazer com dominação (p. 30), a educação era para elite e a diferença entre classes marcadamente fixava o que se repercutiria no século atual nas disparidades sociais. A importância de se saber a respeito do cenário apresentado no Brasil colonial é o suscitar de questionamentos a respeito de seus reflexos no século atual. Não em termos constitucionais, pois a evolução é notável mas, sim, em relação ao acesso do povo à educação; a grande maioria populacional que hodiernamenteainda tem que enfrentar dificuldades de acesso e, os que já tem o ensino garantido, tem que labutar em face do fantasma da manipulação política dos cortes e ajustes de verbas que ainda se repetem. O importante é saber que lamentavelmente não há novidades na essência da educação brasileira. Infelizmente reiteram-se ajustes políticos em prol de classes dominantes com a educação como moeda de troca. Mas a grande questão que permeia este cenário é: até quando? 5. Bibliografia ABICHT, L. Loyola, Lenin and the Road to Liberation. In: Monthly Review. New York, vol. 36, n. 5. p. 24-41, October, 1984. BORTOLOTI, Karen Fernanda da Silva. O RatioStudiorum e a missão no Brasil. Disponível em www.anpuh.uepg.br/historia-hoje/vol1n2/ratio.htm. Acesso em 15/04/2008. 61 BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2003. CÂMARA, José Gomes B. Subsídios para História do Direito Pátrio. Tomo I a IV. Rio de Janeiro: Editora Livraria Brasiliana. 1973. FRANCA, Leonel. O Método Pedagógico dos Jesuítas:o “RatioStudiorum”. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1952. _______________________. História da Companhia de Jesus. Rio de Janeiro: CJS/Petrobrás, 2005. FREIRE, Ana Maria Araújo. Analfabetismo no Brasil. 3ª Edição. São Paulo: Editora Cortez, 2001. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª Edição. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1995. KOOGAN/HOUAISS. Enciclopédia e Dicionário. Rio de Janeiro: Edições Delta, 1994. LEITE, S. (org.) Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. Vol. 1. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954. LIMA. Lauro de Oliveira. Estórias da Educação no Brasil: de Pombal a Passarinho. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Brasília, 1974. MAGALHÃES, José Luiz Quadros de Direitos humanos: evolução histórica. São Paulo: Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1992. MOOG, Vianna. Bandeirantes e Pioneiros. 19ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Graphia, 2000. NOVAES, Fernando A.História da Vida Privada no Brasil. V. 1. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2004. RUCKSTADTER, Cézar Arnaut e MARTINS, Flávio Massami. 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Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/PPGE - Programa de Políticas Públicas e Gestão Educacional - UFRJ/RJ (2008). Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho - UGF/RJ/Linha de Pesquisa: Estado e Cidadania (2000). Bacharel em Direito pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal AEUDF (1987). Diretório de pesquisa CNPQ dgp.cnpq.br/dgp/espelhorh/0805331812181999. 2 “The Order that would defend the Ecclesia militanswas structured in a military way. God’s authority, exercised by the Pope, was delegated to the General Superior of the Order and, through him, to the national, regional and locals superiors. Unconditional obedience is one of the first preconditions for the functioning of the Order. This absolutism, however is moderate by a remarkably high degree of input and discussion, considering the time” 3 O RatioStudiorum, ou Plano de Estudos, era o método pedagógico dos jesuítas. 4 En esta tierra, por falta que ay de officialles, la necessidad nos haze aprender todos los officios, porque yo os digo que, por los oficios que en esta terra tengo aprendido podria yo vivir, Chisto Nuestro Señor nos haga bien aprender y obrar el officio de la perfectión, para que nuestros trabajos y serviços le sean aceptos. Y para esto, hermanos mios en Chisto, nunca os olvideis de tener continia memoria de nós en nuestros sacrificios e oraciones (pág 267). 5Deducçãochronologica, e analytica. Parte primeira, na qual se manifestão pela successiva serie de cada hum dos reynados da Monarquia Portugueza, que decorrêrão desde o governo do Senhor Rey D. João III até o presente, os horrorosos estragos, que a Companhia denominada de Jesus fez em Portugal, e todos os seus dominios... até que foi delleproscripta, e expulsa pela... Ley de 3 de Setembro de 1759/ dada á luz pelo Doutor José de Seabra da Sylva, Desembargador da Casa da Supplicação, e Procurador da Coroa de S. Magestade... 6 Ordenações eramatos emanados do Poder Executivo (Rei) que, na Península Ibérica Medieval, regulavam a vida em sociedade. 7 CÂMARA (1973) Coutos significavam certa jurisdição particular; eram lugares em que alguém neles se refugiava sob a proteção do senhor a quem pedia guarida, ficando livre da perseguição da justiça (p. 98). 8 Op. Cit.Homizio era o comportamento daquele que, perseguido, buscava um refúgio, ocultando-se em coutos e beetrias. Estas, eram núcleos, agregados, povoações de certa importância, que se podiam escolher, livremente como senhorios, quando bem quisessem (...) (p. 98/99). 9 O termo ‘Constituição’ aqui empregado é no sentido lato, ou seja em sua origem, na língua latina, através da aglutinação do prefixo cum e o sufixo stituto, significando constituto, constituere(constituir, edificar, formar, organizar). 10 Apresentação da Edições do Senado Federal, volume 79, referente às Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. 2008. 63 CADASTRO NACIONAL DE AÇÕES COLETIVAS E DE TERMOS DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA: PERSPECTIVAS ATUAIS E SUGESTÕES PARA SUA IMPLEMENTAÇÃO LARISSA CLARE POCHMANN DA SILVA i* Doutoranda em Direito – UNESA bolsista CAPES/PROSUP. Professora da UCAM RESUMO. O presente trabalho objetiva analisar o Cadastro Nacional de Ações Coletivas e de Termos de Ajustamento de Conduta, destacando a relevância de sua efetiva implementação. Para isso, inicia destacando o papel do Cadastro de Processos Coletivos e, em seguida, passa a analisar algumas perspectivas do direito estrangeiro. Por fim, destaca seu histórico no Brasil e traz sugestões, de lege ferenda, para sua implementação. PALAVRAS-CHAVE. Ações Coletivas; Cadastro Nacional de Processos Coletivos; Brasil. ABSTRACT. This work aims to analyze the National Register of Class Actions and Terms for the Adjustment of the Conduct, trying to show the relevance of its effectively implementation. In order to do this, it starts highlighting the role of the Register of Collective Procedures and, then, it analyzes some perspectives of the foreign law to finally mention the history of the National Register in Brazil. In the end, it brings some suggestions for the implementation of the National Register in the country. KEYWORDS. Class Actions; National register for Collective Procedures; Brazil. SUMÁRIO: Introdução. 1. A Relevância de um Cadastro Nacional para as Ações Coletivas e Termos de Ajustamento de Condutas. 2. A Perspectiva do Direito Estrangeiro. 3. A Perspectiva Brasileira: Propostas para a Implementação. Conclusão. Referências Bibliográficas. Introdução O presente trabalho pretende, a partir de uma análise doutrinária e de cadastros de processos já existentes no direito estrangeiro, demonstrar a relevância da efetiva implementação de um Cadastro de Processos Coletivos no Brasil. Para isso, inicia apontando a relevância de se criar um Cadastro de Processos Coletivos, contendo tanto as ações coletivas como os registros dos termos de ajustamento de conduta. Em seguida, traça um panorama do tema no direito estrangeiro, verificando a experiência do cadastro em outros países do continente americano e do continente europeu e, por fim, a partir do registro do histórico do Cadastro no Brasil, delineia algumas perspectivas para a sua implementação, para que estejam efetivamente disponíveis de forma pública e gratuita as informações sobre a tutela coletiva. 1. A Relevância de um Cadastro Nacional para as Ações Coletivas e Termos de Ajustamento de Condutas As ações podem ser caracterizadas como coletivas por dois prismas: o objeto de tutela e a legitimidade. No direito brasileiro, a ação coletiva é o direito apto a ser legítima e autonomamente exercido por pessoas naturais, jurídicas ou formais, conforme previsão legal, de modo extraordinário, a fim de exigir a prestação jurisdicional, com o objetivo de tutelar interesses coletivos, assim entendidos os difusos, coletivos em sentido estrito e os individuais homogêneos (MENDES, 2014, p. 32). Porém, considerando os diferentes modelos de ações coletivas existentes hoje, pode-se afirmar que o objeto das ações coletivas é a exigência da prestação jurisdicional com o objetivo de tutelar interesses coletivos, assim entendidos os difusos, os coletivos em sentido estrito e os individuais homogêneos. A proteção de direitos difusos e coletivos 2 é admitida em diversos países, seja por meio de leis – esparsas ou não –, seja pela relevância da atuação dos tribunais, tanto para efetivação dos direitos coletivos, como para, diante da omissão legislativa, realizar a regulamentação do procedimento (SILVA, 2013, p. 7-41). Todavia, a proteção de direitos individuais homogêneos não foi pacificamente admitida ao longo da história do processo coletivo de diversos países, sendo algumas vezes incentivada, outras rechaçadas, ao fundamento de que seria necessário aferir a indenização individual de cada vítima de um dano de origem comum. Atualmente, prevalece sua admissão, sem a imposição de empecilhos para que haja a análise da questão comum no processo coletivo, sendo prolatada, quando necessário, uma sentença genérica (MENDES, 2014, p. 287-288), e, posteriormente, haja a quantificação dos danos individuais. Em relação à legitimidade, não há um único modelo de atribuição de legitimidade no processo coletivo (HENSLER, 2009, p. 14), podendo atuar no processo coletivo, dependendo do modelo adotado, o indivíduo, o setor público e as associações, sendo que, em geral, os modelos admitem mais de um legitimado ou distinguem os legitimados por setores de atuação, trazendo, por exemplo, legitimados para a defesa do 66 meio ambiente e a previsão de outros legi1timados para a tutela dos direitos do consumidor e da concorrência (SILVA, 2013, p. 83-195). Também não há um único modelo em relação aos efeitos à vinculação na ação coletiva e aos efeitos da coisa julgada. No primeiro caso, há sistemas de opt in, de opt out e sistemas mistos (HENSLER, 2009, p. 15), e, no segundo caso, embora prevaleça o sistema pro et contra para os efeitos das ações coletivas na maioria dos países, ainda há a divergência, nos diversos modelos adotados, se a ação coletiva pode servir apenas para beneficiar os que estejam nela vinculados ou se seu julgamento também pode impedir o ajuizamento de ações individuais caso seja contrário. Diante da pluralidade de modelos e da difusão desse mecanismo para a tutela dos direitos coletivos em sentido amplo, com o aumento do número de processos coletivos em tramitação, é essencial a ampla publicidade das ações coletivas e dos termos de ajustamento de conduta em andamento. Exclui-se apenas o inquérito civil da referência porque, nesse caso, em determinadas hipóteses, o sigilo pode ser fundamental para a conclusão se ocorre ou não a violação a um direito coletivo. Por exemplo, ao ter conhecimento de que está sendo investigado, um réu poderá cessar a violação e ocultar as provas da provável lesão aos direitos coletivos que pode ter ocasionado. O cadastro permitirá, em primeiro lugar, evitar que novas ações coletivas sejam propostas se já houver uma em tramitação, evitando-se a proliferação de ações idênticas, ou, caso seja proposta, que seja identificada a litispendência (MENDES, 2014, p. 272273), para a reunião de processos, a fim de que se previnam decisões contraditórias. Essa redução das demandas coletivas tem sua expectativa de ocorrência na medida em que, cientes de uma ação coletiva proposta, os demais legitimados poderão ingressar como litisconsortes ou assistentes litisconsorciais, dependendo do momento processual, em vez de ingressarem com novas demandas por desconhecimento de que a questão já é discutida. Além disso, aqueles que não possuem o seu day in court (NAGAREDA, 2007, p. 7) no processo coletivo, em vez de ingressarem com ações individuais, muitas vezes por desconhecerem que a questão já é debatida na esfera coletiva, poderão já acessar e consultar o que é objeto de tutela coletiva naquele momento. Ainda, a existência de um cadastro permitirá a aferição da representatividade adequada do legitimado, uma preocupação da tutela coletiva em diversos países. Em 68 que pese alguns modelos permitirem a análise, pelos juízes e tribunais, da representatividade adequada3 - alguns permitindo até mesmo que o Poder Judiciário destitua o legitimado, caso não considere adequado, e que outro legitimado assuma o polo ativo da demanda4 -, há países, como o Brasil, que adotam uma presunção de legitimidade adequada. A existência do cadastro, em que conste a informação do procedimento e das partes, bem como da tramitação processual, permitirá identificar se o legitimado atua representando adequadamente os interesses da classe. Por fim, o cadastro poderá, ainda, facilitar o acesso dos interessados ao resultado daquele procedimento, de forma a assegurar maior efetividade ao seu cumprimento. Por exemplo, a publicidade permitirá que qualquer interessado possa aferir o cumprimento de um Termo de Ajustamento de Conduta firmado e que possa denunciar eventual descumprimento, bem como que as execuções de ações coletivas se iniciem em um intervalo menor de tempo após o trânsito em julgado da sentença – ou até mesmo de forma provisória5 -, assegurando a efetividade dos instrumentos para a proteção de direitos coletivos lato sensu, através da efetivação do que restou firmado ou julgado em âmbito coletivo. 2. A Perspectiva do Direito Estrangeiro No direito estrangeiro, o cadastro de ações coletivas não é estranho a alguns países. No Canadá, por exemplo, considerando que quase todas as províncias possuem uma legislação sobre ações coletivas6, além do país ter uma legislação federal, em 2007 foi implementado um projeto piloto, inicialmente em teste durante dois anos, para a criação de um cadastro nacional de processos coletivos, vinculado à Ordem dos Advogados Canadenses, para o acesso às informações sobre as ações coletivas e sua tramitação, sem custo. O cadastro se fortaleceu e, atualmente, em caráter permanente e constante aperfeiçoamento, é monitorado e atualizado por seus funcionários, através de um mecanismo de busca no endereço eletrônico dos diversos tribunais, mas os advogados que atuam nas ações coletivas também fornecem as informações atualizadas, através de um formulário, remetido por e-mail, sendo que os funcionários do cadastro verificam a veracidade da informação transmitida e se está atualizada. Foi constituído, ainda, um 69 grupo de trabalho para acompanhar o funcionamento do cadastro e verificação de possíveis melhorias para seu aperfeiçoamento. A existência do referido cadastro, a nível nacional, pode ser consultada por qualquer interessado através da Base de Dados sobre Ações Coletivas, disponibilizada pela Associação dos Advogados Canadenses na internet7. Não obstante um cadastro nacional, as províncias podem, ainda, manter o seu próprio cadastro, com informações detalhadas a nível local. A província de Quebec8, por exemplo, mantém seu próprio cadastro, criado em 10 de setembro de 2010 - portanto, posteriormente ao cadastro nacional -, que permite consultar as partes envolvidas, seus advogados e os provimentos do tribunal, além da especificação dos documentos disponibilizados nos autos. Nos Estados Unidos, não há um cadastro a nível nacional para as ações coletivas, restando o registro de ações coletivas feito pelos advogados ou por acadêmicos e disponibilizados na internet para acompanhamento em determinadas áreas, como na defesa do consumidor9 e na defesa dos valores mobiliários10. Existe no país apenas um registro oficial para os casos do Multidistric Litigation (MDL), sendo que há uma informação pública dos casos admitidos, dos que já foram julgados e dos que ainda estão pendentes de julgamento11, mas a visualização mais detalhada de cada procedimento está acessível apenas aos advogados, que necessitam fazer previamente um cadastro no endereço do procedimento12. Na Argentina, o cadastro de processos coletivos está em criação. O cadastro já tinha previsão no art. 21 da Lei do Mando de Segurança Coletivo, denominado amparo no país. Foi com essa inspiração que sua criação, na província de Buenos Aires, ocorreu por determinação da Suprema Corte de Justiça da Província, através da Acordada 3660/2013. A criação do cadastro foi considerada um imperativo, diante do aumento do número de ações coletivas na província13. O registro criado pelo tribunal, porém, foi mais amplo do que o previsto em lei, já que a determinação abrange todos os processos que discutam interesses de incidência coletiva – incluindo os mandados de segurança coletivos -, salvo os habeas corpus, indicando sua tramitação e as decisões. As informações para alimentação do cadastro na província devem ser enviadas pelo tribunal por e-mail, criado para essa finalidade (arts. 5 e 7 da Acordada) e seu conteúdo será livre e gratuito (art. 9). Juízes, tribunais e indivíduos poderão exigir relatórios das informações contidas no cadastro (art. 10). O registro é criado com o 70 objetivo de facilitar a reunião de processos coletivos em um mesmo juízo, prevenindo decisões contraditórias. Em agosto de 2014, através do Acuerdo nº 3721 foi regulamentado o Cadastro de Processos Coletivos no âmbito da província de Buenos Aires, constando que, se já houver ação coletiva registrada, a autoridade responsável pelo registro deverá comunicar ao solicitante do registro do novo processo e determinando a elaboração de um formulário padrão para a comunicação da ação coletiva. Posteriormente, através da Acordada 39/2014, em outubro de 2014, a Suprema Corte Argentina, considerando um aumento do número de processos coletivos em todo o país, ampliando o risco de decisões contraditórias, propôs, com base no art. 43 da Constituição Argentina, que trata da publicidade, a criação de um Cadastro de Processos Coletivos em âmbito nacional, de caráter público e gratuito, hospedado no endereço eletrônico da própria Suprema Corte, abrangendo todas as ações de caráter coletivo, incluindo o habeas corpus e o habeas data, mediante o fornecimento de dados pelos tribunais de cada província, através de convênios, indicando todas as etapas de tramitação do processo. No Reino Unido, não havia, até o momento de conclusão deste artigo, um cadastro de ações coletivas - que devem ter um significativo avanço significativo com Código do Consumidor aprovado -, mas o cadastro que existe e que possui perspectiva de ser mantido é em relação ao mecanismo de solução coletiva de litígios Group Litigation Order14. O GLO pode ser instaurado a requerimento das partes ou de ofício pelo tribunal. Para o pedido de instauração, o advogado deve consultar o Law Society’s Multi-Party Action Information Service, verificando se há outros casos com questões de fato ou de direito comuns ao mérito da demanda (ANDREWS, 2001, p. 258). O pedido deve incluir uma síntese do litígio, a natureza da reclamação, as partes envolvidas, as questões comuns de fato ou de direito esse existem reivindicações distintas dentro do grupo. Na Alemanha, o registro se refere, na esfera coletiva, a uma lista nacional, sob a incumbência do Ministério da Administração Pública, ou a uma lista internacional, editada internacionalmente pela Comissão da Comunidade Europeia, a partir das informações fornecidas pelos Estados Membros, para que as associações possam atuar como legitimadas na tutela coletiva para a defesa do consumidor, mas não há um cadastro para as ações coletivas em tramitação. Na referida lista serão registradas, com 71 fulcro na alínea (2) do §4 da UKlaG, mediante requerimento, as associações devidamente constituídas há pelo menos um ano, cujos estatutos prevejam a defesa dos consumidores, quando possuírem, como seus integrantes no mínimo 75 pessoas naturais (MENDES, 2014, p. 118-122). Há, ainda, no país, um registro para as demandas repetitivas, no mecanismo de solução de conflitos coletivos, o procedimento-padrão Mustervarfahren. O requerimento do procedimento-padrão admitido deve ser registrado no órgão oficial (Bundesanzeiger), com a indicação dos principais dados e será, ainda, objeto de inscrição em um registro eletrônico e gratuito. A comunicação deve conter a descrição das partes litigantes e dos seus representantes legais, dos investidores e acionistas interessados no procedimento-padrão, o órgão judicial, o número do processo e a data de inserção no registro (Klageregister). Os requerimentos que tiverem fundamento comum deverão ser registrados na mesma sequência, não havendo necessidade de repetição da comunicação ao órgão oficial. O Ministério da Justiça alemão possui a incumbência de regulamentar e controlar o cadastro (registro) dos procedimentospadrão, cabendo zelar pelo cumprimento das normas referente ao tratamento de dados e banco de informação, bem como da segurança do sistema, com responsabilidade pela correção e veracidade dos dados do cadastro. Os dados serão excluídos do cadastro após a inadmissibilidade ou a conclusão do julgamento-padrão (MENDES, 2014, p. 126128). Nessa perspectiva, o cadastro no direito estrangeiro se refere tanto às ações coletivas, como aos procedimentos-padrão, bem como aos legitimados, mas todos os registros são de acesso público, gratuito e atualizados eletronicamente. 3. A Perspectiva Brasileira: Propostas para a Implementação No Brasil, a tentativa de implementação de um Cadastro de Processos Coletivos ocorreu mediante previsão no Código Brasileiro de Processos Coletivos (MENDES, 2007, p. 16-32), para o aprimoramento de normas pertinentes à tutela coletiva, inspirado no Código de Processo Civil Inglês que, a partir do ano de 2000, previu a criação de um cadastro para os GLOs (Group Litigation Orders). Foram elaboradas duas versões, a partir dos anos de 2004 e 2005, de Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, respectivamente nos âmbitos dos Programas de Pós72 Graduação da Universidade de São Paulo, sob a coordenação de Ada Pellegrini Grinover, e das Universidades do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Estácio de Sá (UNESA), sob a coordenação de Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, encaminhadas ao Ministério da Justiça (MENDES, 2008, p. 89-132). Posteriormente, em 2009, o Projeto de uma nova Lei da Ação Civil Pública, com a proposta de transformá-la, na verdade, em uma Lei Geral dos Processos Coletivos, incorporou a previsão já existente no Código Brasileiro de Processo Coletivo, de criação dos Cadastros Nacionais de Processos Coletivos, sob a responsabilidade do Conselho Nacional de Justiça, e de Inquéritos Civis e Compromissos de Ajustamento de Conduta, no âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público (MENDES, 2014, p. 209-210). O projeto de uma nova Lei da Ação Civil Pública recebeu, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, parecer favorável quanto à constitucionalidade, mas votação em contrário em relação ao mérito. Foi, então, apresentado e admitido recurso para que o mérito fosse reapreciado pelo Plenário da Câmara dos Deputados, estando o projeto pendente de apreciação. No entanto, a proposta de criação de um cadastro não se esgotou nos projetos. No dia 07 de junho de 2011, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução para instituir um cadastro nacional de ações coletivas, inquéritos e termos de ajustamento de conduta, medida que foi aprovada pelo Conselho Nacional do Ministério Público uma semana depois. A ideia era a implementação de um cadastro alimentado de forma eletrônica, por meio das informações colhidas na tabela de numeração única já implantada em quase todos os tribunais, reunindo informações sobre processos coletivos em tramitação no país, como ações civis públicas e ações populares, bem como os termos de ajustamento de conduta firmados pelo Ministério Público e os inquéritos civis em tramitação em todo o território nacional15. Em 21 de junho de 2011 foi, então, editada a Resolução Conjunta nº 2/2011, do CNJ e CNMP16, com previsão de implementação do cadastro até 31 de janeiro de 2011. Alguns anos aos, atualmente, o Cadastro de Ações Coletivas ainda não foi efetivamente implementado, restando a consulta às ações coletivas em tramitação através do sítio de cada tribunal, que apresentam diversos e, muitas vezes, até mesmo difíceis, critérios de busca. 73 Em 2012, em uma perspectiva de reforma do Código de Defesa do Consumidor, foram elaborados três projetos, com enfoques distintos: o PLS 281/2012, versando sobre Comércio Eletrônico; o PLS 282/2012, versando sobre ações coletivas e o PLS 283/2012, sobre superendividamento do consumidor. Dentre outros enfoques, o PLS 282 reproduziu, em seu art. 90-A, a previsão de um cadastro de ações coletivas. O referido projeto, porém, acabou arquivado ao final da legislatura. Em 13 de março de 2013, foi implementado o Portal de Direitos Coletivos pelo Conselho Nacional do Ministério Público. O endereço eletrônico17 permite a pesquisa de dados relativos a inquéritos civis e TACs em tramitação nos estados da federação, no Distrito Federal, além dos Ministérios Públicos Federal, Militar e do Trabalho. Apesar do grande avanço a sua implementação, o referido cadastro não apresenta todas as informações sobre os procedimentos relevantes para a tutela coletiva nos âmbitos da federação e, mais ainda, não é alimentado em tempo real. Sua alimentação extemporânea pode gerar informações que não estejam de acordo com a real tramitação quanto ao momento da consulta. Apesar de não implementado o Cadastro para Ações Coletivas, o Novo Código de Processo Civil, Lei nº 13.105, de 2015, que entrará em vigor a partir de março de 2016, prevê um Banco de Registro dos Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas. A intenção é a de que as demandas submetidas ao mecanismo de solução coletiva de conflitos possuam a mais ampla e específica divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça, com o registro não apenas da instauração do incidente, como também o registro das teses jurídicas fixadas no julgamento. É inegável a relevância do cadastro de processos para as demandas repetitivas. O Banco de Registro dos Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas permitirá a identificação dos processos submetidos ao incidente de resolução de demandas repetitivas, através do registro de sua instauração, bem como a tese fixada no julgamento. Contudo, ainda é necessário avançar em relação ao Cadastro de Ações Coletivas e Termos de Ajustamento de Conduta. Urge sua efetiva implementação, que não pode ser suprida e é independente da também necessária implementação do registro de processos submetidos ao incidente de resolução de demandas repetitivas, quando esse instituto estiver em vigor no ordenamento jurídico brasileiro. Não basta o cadastro 74 disponibilizado pelo Portal de Direitos Coletivos, pelo Conselho Nacional do Ministério Público, porque, apesar da brilhante iniciativa, esse não abrange as ações coletivas, além de não ter, até o momento da consulta para o presente trabalho, a inclusão de todos os Compromissos de Ajustamento de Conduta firmados no país e possuir uma alimentação extemporânea. É preciso aperfeiçoar a iniciativa do Portal de Direitos Coletivos, de forma que o cadastro possa abranger também as ações civis públicas e inclua todas as informações em âmbito nacional, abrangendo a esfera federal e as estaduais, além de se implementar um sistema com alimentação direta, através da internet, dos dados de cada legitimado, de forma que as informações estejam disponíveis em tempo real. Para esta implementação, pode-se utilizar de algumas lições do direito estrangeiro. Tal como foi determinado na Argentina, o Cadastro poderia figurar através de um espaço hospedado na página dos Tribunais, reunindo todos os registros, e, tal como implementado no Canadá, a sociedade civil pode e deve colaborar para a sua implementação, até mesmo porque, uma vez implementado, devido a seu relevante papel já destacado, beneficiará a todos, permitindo a ampla divulgação dos feitos em tramitação. Nessa perspectiva, pode-se cogitar da própria advocacia – pública e privada - , das promotorias e das defensorias já colaborarem com o envio, através de e-mail, das informações que atualizadas que possuírem, de modo que essas sejam conferidas com as coletadas diretamente de forma virtual, construindo um cadastro atualizado e confiável. Conclusão Urge a implementação de um Cadastro, de âmbito nacional, de Ações Coletivas e Compromissos de Ajustamento de Conduta, com informações atualizadas, sem prejuízo do Cadastro do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas previsto pelo novo Código de Processo Civil. O referido cadastro permitirá evitar que novas ações coletivas sejam propostas se já houver uma em tramitação, evitando-se a proliferação de ações idênticas, ou, caso seja proposta, que seja identificada a litispendência; que os indivíduos possam ter ciência das ações coletivas em tramitação; permitirá a atuação do legitimado, para aferição de sua representatividade adequada e que seja possível acompanhar o cumprimento de um Termo de Ajustamento de Conduta firmado - ou denunciar 75 eventual descumprimento- , bem como que as execuções de ações coletivas se iniciem em um intervalo menor de tempo após o trânsito em julgado da sentença – ou até mesmo de forma provisória -, assegurando a efetividade dos instrumentos para a proteção de direitos coletivos lato sensu. Apesar de, no continente europeu, os cadastros existentes versarem sobre legitimados ou sobre as demandas submetidas aos mecanismos de solução coletiva de conflitos, o próprio continente americano pode trazer boas lições para a implementação no Brasil, que, há algum tempo, tem um histórico de tentativa de implementação do registro, sem que isso tenha efetivamente ocorrido. É necessário aperfeiçoar a excelente iniciativa do Cadastro de Termos de Ajustamento de Conduta, de forma que haja um registro capaz de abranger as ações coletivas, realizando, em tempo real, através da internet, sua alimentação. Tal como a lição argentina, não precisa se deixar ao Conselho Nacional de Justiça o ônus de sua hospedagem, podendo essa ocorrer no site de um tribunal, reunindo todos os registros, nem mesmo ao Conselho Nacional do Ministério Público e ao Conselho Nacional de Justiça a tarefa de, sozinhos, implementarem o sistema. É preciso um trabalho cooperativo, a exemplo do que ocorre no Canadá, com a participação de toda a sociedade civil, de forma que cada um que atue na tutela coletiva – partes, advogados públicos ou privados, defensores públicos e membros do Ministério Público – possam transmitir suas informações, assim como os tribunais seus acórdãos, de forma que seja possível conferir com as informações coletadas virtualmente, criando um cadastro completo e confiável, para que seja possível organizar o trabalho e aprimorar os papéis da tutela coletiva. Referências Bibliográficas ANDREWS, Neil. Multi-Party Proceedings in England: Representative and Group Actions. Duke Journal of Comparative & International Law. Carolina do Norte: Duke Law School, 2001, vol. 11, n. 2, p. 249-268. CAPACCIO, Jeremías; VERBIC, Francisco. La Suprema Corte de Justicia de la provincia de Buenos Aires innova con la creación y reglamentación de un Registro de Procesos de Incidencia Colectiva. 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DJ: 12/03/2013. 6 Na atualidade, apenas uma província canadense (Prince Edward Island) e três territórios (Nunavut, Yukon e Northwest Territories) não possuem uma legislação sobre ações coletivas. 7 A referida base de dados pode ser acessada em http://www.cba.org/classactions/main/gate/index/. Acesso em 6 out. 2014. 8 O referido cadastro pode ser acessado em http://www.barreau.qc.ca/en/public/acces-justice/recourscollectifs/. Acesso em 20 out. 2014. 9 Disponível em http://www.consumer-action.org/lawsuits/. Acesso em 20 out. 2014. 10 Disponível em https://www.law.stanford.edu/organizations/programs-and-centers/securities-classaction-clearinghouse-scac. Acesso em 20 out. 2014. 11 Disponível em http://www.jpml.uscourts.gov/panel-orders. Acesso em 20 out. 2014. 78 12 Disponível em http://www.jpml.uscourts.gov/panel-orders. Acesso em 20 out. 2014. CAPACCIO, Jeremías; VERBIC, Francisco. La Suprema Corte de Justicia de la provincia de Buenos Aires innova con la creación y reglamentación de un Registro de Procesos de Incidencia Colectiva. Disponível em https://www.academia.edu/6129379/La_Suprema_Corte_de_Justicia_de_la_provincia_de_Buenos_Aires _innova_con_la_creacion_y_reglamentacion_de_un_Registro_de_Procesos_de_Incidencia_Colectiva. Acesso em 20 out. 2014. 14 O referido cadastro está disponível em https://www.justice.gov.uk/courts/rcj-rolls-building/queensbench/group-litigation-orders. Acesso em 23 out. 2014. 15 A referida informação pode ser obtida em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/14715-cadastro-unicodara-agilidade-as-acoes-coletivas. Acesso em 15 out. 014. 16 A referida resolução pode ser encontrada em: <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-dapresidencia/567-resolucoes-conjuntas/14836-resolucao-conjunta-n-2-de-21-de-junho-de-2011>. Acesso em 15 out. 2014. 17 O endereço eletrônico é http://www.cnmp.mp.br/direitoscoletivos/. Acesso em 15 out. 2014. 13 79 A CONTROVERSA ATUAÇÃO JURISDICIONAL NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS Mariana Devezas Rodrigues Murias de Menezes1 Doutoranda em Sociologia e Direito – UFF Professora – UFF Mario Augusto Murias de Menezes Junior2 Mestrando em Direito e Sociologia Advogado CEF Resumo: A crescente velocidade contemporânea com que surgem novas variações de direitos e bens jurídicos a serem preservados tem evidenciado um déficit diretamente proporcional de atuação executiva e legislativa em diversos países do centro e da periferia do capitalismo. Tanto os legisladores como os órgãos de administração do Estado, seja por próprias dificuldades em acompanhar as evoluções técnico-científicas e socioeconômicas, seja por divergências político-partidárias, ou ainda, como no Brasil, por enfrentarem sérias crises decorrentes de atos de corrupção e da adoção de modelos de gestão retrógrados e excessivamente burocráticos, vêm demonstrando sua incapacidade de prever e se antecipar ao surgimento de conflitos e necessidades. Neste complexo contexto que apresenta constantes desafios ao princípio constitucional de separação de poderes, a figura do juiz adquire importante atuação positiva para a busca do equilíbrio social e para a efetivação de políticas públicas que atendam às demandas dos cidadãos, especialmente das classes econômicas mais depauperadas. Por meio de ações constitucionais e coletivas que proliferam nos principais tribunais, tem-se exigido do Poder Judiciário, muito mais do que simplesmente dirimir conflitos, que venha a se imiscuir na escolha da aplicação dos recursos públicos, sopesando interesses igualmente assegurados pelas cartas magnas. Palavras-chave: Direitos sociais. Atuação jurisdicional. Judicialização. Abstract: The growing contemporary speed at which new variants arise legal rights and assets to be preserved has shown a directly proportional deficit of executive and legislative actions in various countries of the center and the periphery of capitalism. Both legislators and the state administration bodies, either by own difficulties in following the technical-scientific and socio-economic developments, either by partisan political differences, or, as in Brazil, are facing serious crises resulting from acts of corruption and adoption of backward management models and overly bureaucratic, have demonstrated their inability to predict and anticipate the emergence of conflicts and needs. In this complex context that presents constant challenges to the constitutional principle of separation of powers, the judge's figure acquires important positive role for the pursuit of social balance and the effective implementation of public policies that meet the demands of citizens, especially the most impoverished economic backgrounds. Through constitutional and collective actions that proliferate in the major courts, it has required the judiciary, much more than simply resolving conflicts that come to interfere in the choice of use of public funds, weighing interests also ensured by cartas magnas. Keywords: Social Rights. Jurisdictional action. Legalization Sumário: 1. Introdução. 2. O equilíbrio dos poderes e a atuação positiva do judiciário 3. A Constitucionalização promovida pela Carta Magna de 1988 e seu reflexo na Judicialização das Relações Sociais. 4. Judicialização e ativismo judicial. 5. Conclusão. 1. Introdução Diversas críticas são apresentadas quanto ao fato de se aquiescer que um magistrado ultrapasse os limites da equidade integrativa para inovar no mundo jurídico, estabelecendo regras de forma arbitrária, sem contar com o a outorga de um mandato conferido pela expressão democrática da vontade popular, enquanto tanto o legislativo abstém-se de estabelecer regras gerais e abstratas sobre questões sociais como o executivo permanece inerte às demandas públicas. Isso porque, não sendo possível a utilização de regras ainda que indiretamente criadas pelo povo, a quase completa liberdade de julgamento certamente ocasionaria decisões conflitantes e grande insegurança jurídica. Ademais, o exercício do poder jurisdicional para além de suas atividades próprias, na mesma medida em que serviria para ocultar a incompetência e inoperância das atividades executiva e legislativa, bem como a desconfiança popular dos outros poderes que estariam cedendo lugar à livre atuação do juiz, certamente contribuiria para evidenciar uma grave crise institucional do Estado Democrático de Direito. Bastante pertinentes e atuais configuram-se, pois, questões relativas à legitimidade de uma postura ativa do juiz para a efetivação de direitos sociais em uma democracia representativa, e, também, sobre qual seria a zona limítrofe da atuação jurisdicional a respeito da tripartição de poderes. 2. O equilíbrio dos poderes e a atuação positiva do judiciário Os Estados modernos, surgidos de uma forma muito peculiar na época das chamadas monarquias nacionais, sofreram transformações drásticas até chegar ao atual Estado Democrático de Direito, cuja realização plena é obstaculizada por alguns fatores sociais. Para Marcelo Neves3 o Estado de Direito é uma necessidade funcional, ao mesmo tempo em que consiste em pretensão normativa da sociedade. Retoma o autor o Welfare State no que diz respeito ao inchaço das funções públicas, burocratização que tornou o cidadão dependente do Estado e, ao passo que este último instituiu políticas em prol da 81 igualdade, acabou por restringir a liberdade que enseja a propagação de uma cidadania ativa passível de, por si só, promover a criação das normas que irão nortear-lhes a vida. Assim, os cidadãos são reféns não só das políticas instituídas pelo Estado como também pela vontade do legislativo em votar e aprovar leis condizentes com a realidade social, de que são exemplos, dentre vários outros, o acesso das crianças ao ensino fundamental, no que a maioria dos Municípios tem se omitido, e a regulação do direito de greve dos servidores públicos federais, tema sobre o qual o Congresso Nacional resiste em legislar. Por conseguinte, os cidadãos recorrem ao Judiciário, a fim de que esse assuma a tarefa de gerir serviços públicos essenciais a partir da análise de cada caso concreto, em razão da omissão estatal, o que não traduz em verdadeira vantagem, já que a transferência de atribuições dentro de órgãos que na verdade são braços do próprio Estado ao invés de enxugar os gastos, só faz acrescer custos à já “capenga” economia pública. Para José Adércio Leite Sampaio4, um dos principais argumentos justificativos do destaque do judiciário brasileiro seria a necessidade de reequilibrar os poderes constitucionais no Welfare State, pois o surgimento deste trouxe mais atribuições para o Estado, principalmente para o legislativo e executivo. Esse novo contorno estatal foi moldado, inicialmente, pelo próprio legislador, mas cresceu tão vertiginosamente que acarretou em maior atuação da máquina burocrática do Executivo. Isto porque o legislativo dava sinais de incapacidade de atender às demandas do Estado–Providência, já que ou era muito vagaroso no acompanhamento das crescentes demandas, entregando, por conseguinte, normas obsoletas e incompatíveis com a realidade social, ou quanto mais tentava se imiscuir em detalhes técnicos, as normas acabavam, além de atrasadas, confusas e ineficazes. O declínio do legislativo, para Bobbio5, deu-se em decorrência do fenômeno que chamou de “Revanche dos Interesses”, que significa que os políticos passaram a se preocupar mais em agradar a sua “clientela eleitoral” do que efetivamente em dar soluções adequadas aos problemas da coletividade. E, ainda, leve-se em consideração que não raro grupos de apoio a candidatura de determinado político tornam-se mais tarde, quando este é eleito, em grupos de pressão para criação de leis que lhes sejam favoráveis. Assim, afirma José Adércio que 82 “O que era para ser Estado-Providência transformou-se em EstadoAdministração. Com seu aparato burocrático, além de controlar a vida dos súditos, desenvolveu vontade e interesse próprios, diversos daqueles a que fora chamado para cumprir, ou seja, vontade e interesse públicos. Na salvaguarda do princípio da divisão de poderes ocorreu uma redefinição de papéis e importância do judiciário, que escapou de mero árbitro das relações privadas”. Há uma incômoda sensação, entretanto, de que na verdade em cada período histórico há um poder com preponderância e destaque no contexto político-social, depositário da confiança popular para definir questões a um só tempo pragmáticas e relevantes da sociedade, pois sempre esta atribuição acaba em instituições autocráticas, sem respaldo popular direto. Não se vê com freqüência incentivo para a participação do povo nas decisões que lhe interessam. É ultrapassado, entretanto, falar hoje de participação popular apenas no que tange ao sistema eleitoral, à democracia representativa, posto que outros mecanismos existem, embora venham sendo usados de maneira tímida, como o referendo, a iniciativa popular para elaboração de leis, participação das associações no controle das verbas públicas em parceria com o executivo. Para Marcelo Neves ocorre um impasse diante da complexidade social, que exige uma maior atuação do Estado, o que implica em legalização, burocratização e justicialização. Por outro lado, a mesma complexidade desafia a capacidade regulatória do direito. Luís Roberto Barroso6 traz interessante reflexão a respeito da difusa atribuição das políticas públicas no contexto atual, ao afirmar que “A questão do controle das políticas públicas envolve, igualmente, a demarcação do limite adequado entre matéria constitucional e matéria a ser submetida ao processo político majoritário. Por um lado, a Constituição protege os direitos fundamentais e determina a adoção de políticas públicas aptas a realizá-los. Por outro, atribuiu as decisões sobre o investimento de recursos e as opções políticas a serem perseguidas a cada tempo aos poderes legislativo e executivo. Para assegurar a supremacia da Constituição, mas não a hegemonia judicial, a doutrina começa a voltar sua atenção para o desenvolvimento de parâmetros objetivos de controle de políticas públicas”. Para Habermas7 a Constituição não deve conter direitos fundamentais, mas procedimentos que garantam construção do direito de maneira igualitária. Para o autor, o 83 seguimento linear dos direitos propostos por Marshall, como bem explicita Luiz Werneck Vianna8, não seria fundamento à democracia, uma vez que tanto os direitos civis de primeira geração, consistindo estes em uma liberdade negativa do Estado, quanto os direitos sociais de terceira geração, que pressupõem liberdade positiva do mesmo Estado, poderiam ser concedidos de forma “paternalística” pelo Poder Público. Isto quer dizer que a qualquer momento também poderiam ser negados ou retirados por quem os concedeu. A concessão gratuita de benesses pelo Estado implica no risco da retirada brusca como manobra política de controle da dependência social. Somente um processo de participação ativa do cidadão, o que sugere Habermas a ser realizada em um espaço público de discussão, legitimaria a conquista de direitos pelo corpo social. A implementação prática desta proposição, entretanto, é de extrema complexidade, muito embora se viva na era da informática e da comunicação, há um paradoxal afastamento das pessoas, tendentes a um processo contínuo de individualização e busca dos próprios interesses, sem a vontade de perquirir em conjunto conquistas que sejam benéficas a todo o corpo coletivo. Não existe uma fórmula ideal para a separação absoluta dos três poderes, todos fundamentais em uma sociedade democrática, no entanto parece que o equilíbrio se encontra em resguardar o debate político das questões relevantes para os corpos legislativos, procuradores da vontade popular e, ao judiciário combater os déficits do processo político e legislativo, garantindo a participação igualitária de grupos minoritários no processo político. Quer significar que a democracia não é sinônimo de regime pertencente à maioria, tendo como resultado grupos sociais minoritários subjugados pelos interesses sempre vencedores daqueles. Tanto os que se apresentam numericamente menos expressivos como também aqueles que não possuem chance de acessar cargos públicos devem ser respeitados, cabendo ao judiciário exercer o controle de inclusão das minorias nos processos decisórios da sociedade. Para José Adércio “por outro lado, não se pode fazer do tribunal um palanque para revanche de uma luta política perdida para a maioria do parlamento. O judiciário deve intervir sempre que a ala majoritária desrespeitar os direitos e prerrogativas das minorias, monitorando o processo político”. 84 John Hart Ely sintetiza de forma muito feliz um ideal de equilíbrio entre os poderes legislativo e judiciário, sendo sua idéia colocada por José Adércio no sentido de estabelecer que “a conciliação do constitucionalismo com a democracia exige que se distribuam adequadamente as tarefas entre legislativo e judiciário, cabendo àquele, pela força de seu poder representativo da maioria, identificar, sopesar e acomodar os valores fundamentais da comunidade e ao Judiciário, a missão de garantir o funcionamento do processo político de maneira a permitir que seus canais estejam sempre abertos a todos”. 3. A Constitucionalização promovida pela Carta Magna de 1988 e seu reflexo na Judicialização das Relações Sociais É visível o inchaço de atribuições que estão sendo transferidas ao Judiciário brasileiro, sobretudo nas últimas duas décadas, após o advento da Carta Constitucional de 1988. Tal fenômeno tem sido chamado de judicialização das relações sociais, em que principalmente muitos assuntos de cunho político têm sido transferidos para a alçada judiciária lhe dar tratamento diante de um caso concreto, com caráter definitivo, ou até abstratamente, com o controle concentrado, como se pode exemplificar pelo fato de questões como reforma da previdência e do próprio judiciário integrarem a pauta do Supremo Tribunal Federal. Luis Roberto Barroso9 afirma que “A vida brasileira se judicializou (...) Nesse ambiente, juízes e tribunais passaram a desempenhar um papel simbólico importante no imaginário coletivo. Isso conduz a um último desenvolvimento de natureza política”. Assim, instâncias do executivo e do legislativo foram sendo transferidas paulatinamente para o judiciário, tendo como marco o fim da segunda guerra e um fenômeno mundial de reconstitucionalização, que foi incrementado no Brasil, sobretudo nos últimos anos. Para o professor, tal fenômeno possui três causas: o processo de redemocratização do país, com conquistas intrínsecas à cidadania; a constitucionalização abrangente e analítica de novos direitos que ensejam, portanto, advento de novas ações; e o modelo brasileiro de controle de constitucionalidade, que combina o modelo incidental difuso com o controle concentrado, o que possibilita qualquer matéria relevante no Brasil chegar ao 85 conhecimento do Supremo Tribunal Federal, principalmente através de Ação Direta, com o judiciário controlando a norma abstratamente para dizer se é condizente com o sistema jurídico constitucional do país, ou seja, controle judicial sobre a atuação legislativa, tendente a aparentar supremacia daquele poder sobre este. Para José Adércio, no entanto, há dois riscos para a democracia brasileira neste modelo, quais sejam a de ocorrer entrelaçamento entre a maioria parlamentar e a maior parte da composição do Tribunal Constitucional, por um lado, que pode ser reflexo do próprio processo de escolha dos membros deste tribunal, ocasionando uma aliança dominante sem espaço para a minoria se fazer representar e pleitear seus interesses. Por outro lado, pode-se ter divergência tal que enseje o “controle do controlador”, já que o legislativo pode reagir ao controle judicial utilizando seu poder de emenda, tornando praticamente sem fim a contenda sobre determinado assunto, cujos maiores prejudicados serão, certamente, os cidadãos, que viverão movimento pendular em direções opostas dependendo do momento decisório em que se encontre a questão, seja anulada pelo tribunal, inválida, ou inserta novamente no ordenamento pelo legislativo, válida. Após a Constituição de 1988 o judiciário passa a ser um poder político que ocupa espaço e disputa autoridade e influência dentro da soberania nacional. Houve a constitucionalização de diversos direitos, além de previsão da Defensoria Pública, aumento de força e de independência do Ministério Público, com avanço da proteção de diversos direitos coletivos, através, inclusive, de substituição processual. Para Barroso Constitucionalizar significa judicializar, ou seja, tirar do mundo político e passar para o direito, uma vez que tudo o que integra o corpo da Carta Magna pode ser base para futura demanda judicial. Acrescenta que “Recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento técnico especializado e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o legislativo e o executivo. Tal circunstância acarretou uma modificação substantiva na relação da sociedade com as instituições judiciais, impondo reformas estruturais e suscitando questões complexas acerca da extensão de seus poderes. O conjunto desses fatores, como constitucionalização de direitos, aumento da demanda por justiça e ascensão institucional do Judiciário, verificou-se no Brasil uma expressiva judicialização de questões políticas e sociais, que passaram a ter nos tribunais a sua instância decisória final”. 86 Luiz Werneck Vianna10 assevera que “A linguagem e os procedimentos do direito (...) mobilizam o Poder Judiciário para o exercício de um novo papel, única instância institucional especializada em interpretar normas e arbitrar sobre sua legalidade e aplicação, especialmente nos casos sujeitos à controvérsia”. Já dizia Tocqueville11 que “Não existe praticamente questão política nos Estados Unidos que não seja resolvida cedo ou tarde como se fosse uma questão judiciária”. Este fenômeno também tem sido visto no Brasil, já que hoje os grandes debates realizados na sociedade de questões relevantes são proporcionados pela divulgação na mídia de processos judiciais polêmicos, capazes de deixar os cidadãos em estado de alerta durante semanas, quando então é substituído por outro objeto litigioso processual de grande repercussão. A atuação do juiz moderno não se verifica apenas adstrita à mera inércia de condução do processo quando provocado pelas partes para tanto, mas também age a fim de garantir que ao final o provimento jurisdicional seja concedido conforme os valores sociais e, como bem diz Mauro Cappelletti, a decisão deve apenas depender dos méritos jurídicos relativos às partes litigantes, sem relação com diferenças estranhas ao direito e que sejam tendentes a legar-lhes quaisquer modificações. Para Nelson Finotti Silva12 “O juiz é um cidadão e como tal é partícipe da sociedade, devendo conhecer de perto os valores por ela desejados, não pode deixar de discutir suas idéias, nem fechar os olhos às desigualdades e aos problemas sociais existentes. Portanto, um juiz ativo é imprescindível para a concretização dos direitos e garantias fundamentais, o papel do juiz moderno no processo não é de mero espectador ou um "mero convidado de pedra", na democracia participativa deve se preocupar em dar o rumo ao processo de modo que todos devam dele participar com as mesmas oportunidades”. 4. Judicialização e ativismo judicial Muito embora possam a judicialização e o ativismo judicial parecer quase sinônimos, o que não são, há que se reconhecer uma estreita relação entre ambos. Em se tratando de judicialização, diz-se da incorporação pelo ordenamento jurídico, principalmente na Constituição, de direitos e garantias aos cidadãos que outrora estiveram 87 aquém do controle do judiciário. Ou seja, é um fato decorrente, sobretudo, do modelo Constitucional. Já o ativismo diz respeito ao modo de agir dos magistrados, a uma postura pró-ativa diante das questões que lhes são apresentadas. Importante lembrar que, embora desempenhe um papel político, o judiciário possui características diversas dos outros poderes, como a forma de acesso de seus cargos e por possuírem seus membros garantias que lhe afirmam a imparcialidade de julgamento. Afirma Garapon que “é sob a forma do direito e do processo que o cidadãos das democracias realiza sua ação política. Eis por que a questão do ativismo judiciário é mal colocada. Não se trata da ação esporádica de alguns juízes desmiolados que querem brigar com o poder político, mas de uma evolução de expectativas quanto à responsabilidade política. (...) O aumento de poder da justiça não deve ser entendido como uma transferência da soberania do povo para o juiz, porém como uma transformação do sentimento de justiça”. De acordo com Juan Carlos Cassagne impossível prever todas as condutas, então cabem ao juiz criar direito e integrar normas quando diante de questões de mais alta complexidade ainda não tratadas exaustivamente pelo direito. Há que ser cuidadosamente sopesado, no entanto, dentro do panorama da inserção do Judiciário na intervenção de áreas tradicionalmente afetas aos poderes legislativo no Brasil, como a de formular e executar políticas públicas, de natureza social e econômica que existe uma medida certa do controle judicial para que se mostre compatível com a democracia. É preciso ter em mente a percepção de que o judiciário não pode ser protagonista do sistema em um contexto democrático, embora não se possa resumir a democracia num modelo exclusivo de representação eleitoral, onde a razão sempre esteja presente ao lado da maioria. Demanda-se em matéria de judicialização e ativismo, enfim, de atuação judicial latu sensu, que o equilíbrio seja o norteador desta atuação, para que não seja um risco para a legitimidade democrática nem haja problemas de imparcialidade política. A politização do direito só é um risco se for mal versada pelo legislador. Quanto ao juiz, este não tem vontade política própria, interpreta a lei, mas conduzido pelos valores éticos e morais que a 88 mais moderna concepção de justiça tendem a tornar fundamentais para sua atuação, que não é mais focada em um conceito mecânico positivista de mero de aplicador da lei13. O equilíbrio da atuação jurisdicional se encontra exatamente em o juiz não presumir demais de si mesmo e ultrapassar os limites da legitimidade democrática, utilizando-se de conceitos abertos para agir sem a razoabilidade e respeito com os demais poderes e, ainda, não se furtar de promover a realização também democrática das garantias fundamentais que sua função exige. 5. Conclusão Independentemente da esfera de domínio em que se encontre, toda concentração de poder político é nociva à sociedade. Um dos grandes paradoxos da democracia brasileira contemporânea, entretanto, é o fato de que, assim como as demais democracias de países da América Latina, só consegue subsistir graças à concentração de poder político dos governos eleitos, pois, caso contrário, o menor esforço do mercado financeiro poderia derrubar governantes escolhidos pelo voto da população. Mesmo que se possa, em tese, justificar tal concentração, é inconcebível que esta se traduza em autorização expressa para constituição de ditaduras internas promovidas seja pelo legislativo, pelo executivo ou pelo judiciário. Muito embora seja visível que o legislativo venha se mostrando inerte e o executivo realize políticas públicas aquém das expectativas e necessidades funcionais da sociedade, a pretensão democrática exige que haja um equilíbrio no papel do judiciário quando do controle ou da intervenção indireta nas funções dos outros poderes. A judicialização das relações sociais é uma realidade, não se pode negar. A constitucionalização de direitos é uma forma adotada com o fito de tentar evitar a insurgência de novos governos totalitários, não há dúvida. O contexto social presente não mais permite que o juiz seja um mero condutor do processo, esperando-se dele um papel mais ativo frente aos abusos cometidos, sobretudo, pelo Poder Público quando do tratamento de questões que atingem a toda ou pelo menos parcela significativa da sociedade, isso é certo. 89 O que não se sabe ainda, exatamente, mas não se pode ignorar, no entanto, é o limite que deve ter a atuação judicial condizente com a legitimidade democrática e com a tripartição de poderes. Por outro lado não se pode conceber que a democracia representativa seja o único instrumento de participação do cidadão na vida política do país. Se a via judicial é uma forma que hoje responde às expectativas sociais para garantir seus direitos e interesses mais fundamentais, não se pode deixar de ter este cenário como paliativo, já que em um sistema democrático não se pode permitir seja o juiz protagonista, este deve ser sim guardião de garantias, mas não em substituição ao regular processo político pertinente em uma democracia. É de fundamental importância a produção de estudos acerca do ponto de equilíbrio que deve existir entre a atuação e inércia dos três poderes. O debate das questões reflexas, como supremacia da Constituição, direitos e garantias que devem integrar o texto desta, bem como a extensão das funções integrativa e interpretativa promovidas pelo judiciário em detrimento de decisões gerais corporificadas através de processo político majoritário, são de suma importância dentro de um contexto democrático, e não se pode permitir que fatores como a prolixidade de textos legais ou da própria constituição, assim postos com fulcro a sopesar interesses político-partidários de forma a não contrariar a “clientela eleitoral”, e a crise de legitimidade que envolve o executivo e o legislativo, façam parecer que a tarefa de tornear o dito equilíbrio seja mais complexa do que na realidade o é. O Judiciário tem sido chamado a ocupar um vácuo deixado pelo Legislativo e, em muito maior extensão, pelo Executivo, como se fosse capaz de, por si só, mitigar as desigualdades e mazelas da sociedade brasileira. Não virá do Judiciário a solução definitiva dos problemas de infraestrutura do País, e seria profunda demonstração de ignorância, ou de má-fé, atribuir-lhe tal responsabilidade. Todavia, em situações diversas em que tem sido chamado a garantir o exercício de direitos mínimos à existência, o Judiciário não tem se omitido, e vem prestando significativa contribuição, na medida de suas forças. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 90 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 3.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987. GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Volumes I e II. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1997. NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006. RIGAUX. François. A lei dos juízes. Tradução: Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2003. SARMENTO, Daniel et alii. O controle de constitucionalidade e a lei 9.868/99. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002. TOCQUEVILLE, Aléxis de. De la démocratie em Amérique, Paris: Garnier, 1981. VIANNA, Luiz Werneck et alii. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 1 Professora Assistente da Universidade Federal Fluminense. Doutoranda e Mestre em Sociologia e Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF). Especialista em Direito Processual Civil (UFF). 2 Advogado da Caixa Econômica Federal. Mestrando em Direito e Sociologia pelo Programa de PósGraduação em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF). Especialista em Direito Público e Privado (EMERJUNESA). 3 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 4 SARMENTO, Daniel et alii. O controle de constitucionalidade e a lei 9.868/99. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002. 5 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 3.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987. 6 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. 7 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Volumes I e II. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1997. 8 VIANNA, Luiz Werneck et alii. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 9 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. 10 VIANNA, Luiz Werneck et alii. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 11 TOCQUEVILLE, Aléxis de. De la démocratie em Amérique, Paris: Garnier, 1981. 91 12 Disponível artigo em http://jus.com.br/revista/texto/4356/um-juiz-mais-ativo-no-processo-civil – consulta realizada em 20/05/12. 13 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. 92 O papel do Conselho Nacional de Justiça no Poder Judiciário brasileiro: Excesso de poder? The role of the National Council of Justice in Brazil Judiciary: Too much power? Rodolfo Noronha1 Doutor em Sociologia e Direito – UFF Professor Adjunto da - UNIRIO Luanda Silva de Assis2 Graduada em Direito pelo UniFOA Resumo:O Conselho Nacional de Justiça tem como finalidade a realização do controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura, contribuindo para que a prestação jurisdicional seja realizada com moralidade, eficiência e efetividade. Por ser um órgão de controle é que desde a sua criação tem sido alvo de oposições e resistências. Assim, analisaremos o papel deste órgão no Poder Judiciário, verificando se ele tem atuado com excesso de poder e ilegalidade. Palavras-chave: Conselho Nacional de Justiça; Excesso de Poder; Poder Judiciário. Abstract: The National Council of Justice (“Conselho Nacional de Justiça”) target the administrative and financial control of the judiciary, contributing for an adjudication with more morality, efficiency and effectiveness. Being an institution of control since its inception, he has been the target of opposition and resistance. Thus, we analyze the role of this institution in the judiciary, verifying if it has acted with abuse of power and lawlessness. Keywords: National Council of Justica; Abuse of Power; Judicial Power. Sumário: 1. Introdução. 2. Conselho Nacional de Justiça; 1.1 Aspectos gerais; 1.2 O Conselho Nacional de Justiça e a ADI 3367; 1.3 Composição; 1.4 Competências; 2. O Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal: Excesso de poder? 4. Conclusão; Referências bibliográficas. 1. Introdução Este artigo busca analisar a forma de atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ou seja, se o órgão está atuando dentro dos limites de suas competências, nos moldes da legalidade, e, independentemente disto, como os seus atos estão repercutindo na sociedade, se negativa ou positivamente. Para isto iremos analisar a composição e a competência do Conselho Nacional de Justiça, a Resolução nº 135, de 13 de Julho de 2011, que dispõe sobre penalidades aos Magistrados e os casos em que estas se aplicam, a ADI 4638, e a Decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a referida ADI. 1. Conselho Nacional de Justiça 1.1. Aspectos gerais O Conselho Nacional de Justiça foi criado através da EC nº. 45/2004, que tratou da Reforma do Poder Judiciário, e introduzido na nossa Constituição Federal, no artigo 92, inciso IA, como um órgão do Poder Judiciário. Tem sede em Brasília e possui atuação em todo território nacional, sendo um órgão voltado para o controle e transparência administrativa e pessoal do Poder Judiciário, que visa, mediante ações de planejamento, à coordenação, ao controle administrativo e ao aperfeiçoamento do serviço público na prestação da Justiça, tendo como missão a contribuição para que a prestação jurisdicional seja realizada com moralidade, eficiência e efetividade, para o benefício da sociedade. Sua meta é ser um instrumento efetivo de desenvolvimento do Poder Judiciário (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2011). 1.2. O Conselho Nacional de Justiça e a ADI 3367 Desde sua criação o Conselho Nacional de Justiça foi alvo de muitas críticas e resistências, sendo, inclusive, matéria de Ação Direta de Inconstitucionalidade. A discussão se dava pelo receio do Judiciário ver mitigada a sua independência, garantida pela Constituição de 1988, visto que esta era necessária para o exercício de sua função. A ADI 3.367, datada de 0912-2004, questionava, em especial, a criação do órgão. O autor da Ação foi a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que afirmava ser o CNJ um órgão de formação heterogênea com a finalidade de exercer o controle externo do Poder Judiciário, dizendo, entre outros argumentos, que a criação do referido Conselho “violava o princípio da separação e da independência dos poderes, garantido no artigo 2º da CRFB/88, de que são corolários o autogoverno dos tribunais e a sua autonomia administrativa, financeira e orçamentária, uma vez que trata-se de órgão de composição heterogênea e híbrida, com membros não apenas do Judiciário, mas também do Poder Executivo e do Poder Legislativo” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2005). O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, em 13-04-2005, por maioria de votos, não acolheu a tese da AMB, julgando totalmente improcedente a ADIN e considerando 94 constitucional a formação do CNJ, esclarecendo que a natureza do órgão é meramente administrativa, sendo um órgão de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura, sem poder jurisdicional. 1.3. Composição Conforme especifica o artigo 103-B, após redação dada pela EC 61/09, o Conselho Nacional de Justiça é composto por quinze membros, oriundos de diversas áreas, com mandato de dois anos, admitida uma recondução. Todos os membros do Conselho devem ser nomeados pelo Presidente da República após aprovada a escolha por maioria absoluta do Senado Federal, com exceção do Presidente do Supremo que já ocupa a cadeira de Presidente automaticamente. É o que entendemos com a leitura do § 2º do artigo 103-B. O Conselho será presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal e, nas suas ausências e impedimentos, pelo Vice-Presidente deste Tribunal, conforme § 1º, junto ao mesmo oficiarão o Procurador-Geral da República e o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, nos temos do § 6º. Prevê, ainda, o § 7º que a União, inclusive no Distrito Federal e nos Territórios, deverá criar ouvidorias de justiça, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça. 1.4. Competências Com a leitura do artigo 103-B, § 4º entendemos que compete, precipuamente, ao Conselho Nacional de Justiça o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Somada a esta atribuição, outras podem lhe ser conferidas pelo Estatuto da Magistratura, além dos deveres já previstos nas alíneas deste parágrafo. Assim sintetiza Flávia Bahia Martins (2011, p. 446): Das suas atribuições constitucionais, presentes no art. 103-B, § 4º, observamos que o referido Conselho poderá, de ofício, ou mediante provocação, desconstituir ou rever os 95 atos administrativos (mas não jurisdicionais) praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, sem prejuízo da competência do Tribunal de contras. Poderá, ainda, de acordo com a disposição constitucional em, referência, avocar processos disciplinares em curso e rever (em favor ou contra o acusado) os processos disciplinares de juízes e membros de Tribunais julgados há menos de 1 (um) ano. Cabe então ao Conselho Nacional de Justiça: • zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; • zelar pela observância do artigo 37, CRFB e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; • receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; • representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; • rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano; • elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; • elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar 96 mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa. Com isso percebemos que o Conselho Nacional de Justiça não exerce função jurisdicional, mas apenas administrativa. Neste sentido, Pedro Lenza: A competência do CNJ se restringe ao âmbito administrativo, não podendo adentrar na análise dos atos jurisdicionais, nem rever o conteúdo da decisão judicial. Para tanto, a parte deve se valer dos meios processuais estabelecidos pelo sistema recursal. Assim, posiciona-se o STF: Conselho Nacional de Justiça: competência restrita ao controle de atuação administrativa e financeira dos órgãos do Poder Judiciário a ele sujeitos.3 (MS 25879 – AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, J 23 08 2003. DJ de 08 09 2006) O Conselho Nacional de Justiça, embora integrando a estrutura constitucional do Poder Judiciário como órgão interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura - excluídos, no entanto, do alcance de referida competência, o próprio Supremo Tribunal Federal e os seus Ministros (ADI 3.367/DF) -, qualifica-se como instituição de caráter eminentemente administrativo, não dispondo de atribuições funcionais que lhe permitam, quer colegialmente, quer mediante atuação monocrática de seus Conselheiros ou, ainda, do Corregedor Nacional de Justiça, fiscalizar, reexaminar, interferir e/ou suspender os efeitos decorrentes de atos de conteúdo jurisdicional emanados de magistrados e Tribunais em geral, sob pena de, em tais hipóteses, a atuação administrativa de referido órgão estatal - por traduzir comportamento “ultra vires” - revelar-se arbitrária e destituída de legitimidade jurídico-constitucional. 4 Doutrina. Precedentes (MS 27148 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, J 11 05 2011. DJ 24 05 2011.) Por fim, vale observar que para a realização de suas competências o Conselho Nacional de Justiça utiliza-se de várias ferramentas. Uadi Lammêgo Bulos (2010, p. 1318) nos diz quais são elas: O Conselho Nacional de Justiça exerce a sua competência constitucional por meio de moções, atas, resoluções, portarias, notas técnicas, recomendações, enunciados administrativos e termos de cooperação técnica. [...]. 2. Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal: Excesso de poder? Instalado em 2005, até a presente data, com intuito de combater a irregularidades e organizar o Judiciário, o CNJ já realizou várias investigações, tomou várias medidas disciplinares, afastou juízes, elaborou recomendações, editou resoluções, entre outros atos, todos visando aperfeiçoar e defender o funcionamento do Poder Judiciário. 97 Dentre as resoluções, a título de exemplo, destacamos algumas, como as que: • Regulamentou sobre a prática do nepotismo no Judiciário: Resolução nº 7/05; • Regulamentou sobre a exigência de no mínimo três anos de exercício de atividade jurídica que deve ser devidamente comprovada, onde não se computará o tempo de estágio, para os cidadãos que desejam participar de concurso público da magistratura: Resolução nº 11/05; • Regulamentou sobre a fixação de um teto para o subsídio dos membros do Poder Judiciário: Resolução nºs 27/06 e 42/07, entre outras Contudo, apesar do plausível desempenho deste órgão, muitas vezes seus atos são levados à discussão no Supremo Tribunal Federal, quando, a parte que se sente prejudicada, pleiteia seus direitos sob o fundamento de que o Conselho Nacional de Justiça agiu fora da legalidade, uma vez que é de competência do Pretório Excelso o controle destes atos. Esta procura pelo STF, no entanto, foi aumentando consideravelmente. Como podemos observar o CNJ vem tomando atitudes um tanto desconfortáveis aos magistrados. Estes por sua vez, ao verem-se insatisfeitos, buscam, e muitas vezes encontram, guarida no Supremo Tribunal Federal. Assim, quando o Supremo entende que a medida adotada pelo CNJ é desprovida de legalidade julga em seu desfavor. Apesar de várias de suas ações terem sido alvo de discussão no Supremo, o CNJ permaneceu em seu propósito e editou ainda a Resolução nº 135/11, que regulamenta sobre a aplicação de penalidades aos magistrados, isto corroborou para a insatisfação destes, instituindose então no Supremo um grande debate sobre os limites de atuação do Conselho Nacional de Justiça. Há uma forte tendência defendendo que este órgão está evocando para si poderes que não recebeu da Constituição e que correspondem à outra seara que não a do Conselho. Fato é que ainda não se conseguiram determinar o que seria de fato atividades jurisdicionais, que cabe ao judiciário, e atividades de administração e controle, que cabe ao CNJ. Como exemplo, podemos citar a decisão do Ministro Luiz Fux, que conheceu da liminar para suspender os efeitos da Resolução nº 130 que previa horário de funcionamento de atendimento uniforme para o Poder Judiciário brasileiro. Esta resolução estaria tratando de assunto 98 administrativo, entretanto foi suspensa. Qual seria então os limites de atuação do CNJ? Seria, os atos por ele praticados até o momento, cumprimento de obrigação ou excesso de poder? Esta é a questão que foi enfrentada no Supremo Tribunal Federal. Como já vimos, é bem verdade que vários atos do CNJ foram passíveis de ações no Supremo, e a que atualmente causou mais repercussões foi a ADI 4638, cujo objeto é a Resolução nº 135, de 13 de Julho de 2011, já citada. Eis o que versa alguns trechos da referida Resolução: RESOLUÇÃO Nº 135, DE 13 DE JULHO DE 2011. [...] I- Disposições gerais [...] Art. 3º São penas disciplinares aplicáveis aos magistrados da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho, da Justiça Eleitoral, da Justiça Militar, da Justiça dos Estados e do Distrito Federal e Territórios: I - advertência; II - censura; III- remoção compulsória; IV - disponibilidade; V - aposentadoria compulsória; VI – demissão. [...] Art. 4º O magistrado negligente, no cumprimento dos deveres do cargo, está sujeito à pena de advertência. Na reiteração e nos casos de procedimento incorreto, a pena será de censura, caso a infração não justificar punição mais grave. Art. 5º O magistrado de qualquer grau poderá ser removido compulsoriamente, por interesse público, do órgão em que atue para outro. Art. 6º O magistrado será posto em disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, ou, se não for vitalício, demitido por interesse público, quando a gravidade das faltas não justificar a aplicação de pena de censura ou remoção compulsória. Art. 7º O magistrado será aposentado compulsoriamente, por interesse público, quando: I - mostrar-se manifestamente negligente no cumprimento de seus deveres; II - proceder de forma incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções; III - demonstrar escassa ou insuficiente capacidade de trabalho, ou apresentar comportamento funcional incompatível com o bom desempenho das atividades do Poder Judiciário. II Investigação preliminar 99 [...] Art. 12. Para os processos administrativos disciplinares e para a aplicação de quaisquer penalidades previstas em lei, é competente o Tribunal a que pertença ou esteja subordinado o Magistrado, sem prejuízo da atuação do Conselho Nacional de Justiça. Parágrafo único. Os procedimentos e normas previstos nesta Resolução aplicam-se ao processo disciplinar para apuração de infrações administrativas praticadas pelos Magistrados, sem prejuízo das disposições regimentais respectivas que com elas não conflitarem.5 A ADIN foi proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros, que entende não ser de competência do Conselho Nacional de Justiça dispor sobre aplicação de penalidades, visto que, quanto às penas de advertência e censura, a Constituição Federal resguarda aos próprios Tribunais a elaboração de seus Regimentos Internos, que por sua vez preverão o procedimento para apuração de faltas puníveis com estas penalidades. É o que se percebe com a leitura do artigo, 96, I, a, da CRFB/88 juntamente com o artigo 48 da Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN – Lei Complementar nº 35/1979), respectivamente descritos abaixo: Art. 96. Compete privativamente: I – aos Tribunais Eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos[...] dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos. Art. 48. Os Regimentos Internos dos Tribunais estabelecerão o procedimento para a apuração de faltas puníveis com advertência ou censura. E quanto às penas de remoção, disponibilidade e aposentadoria, estas seriam de competência do legislador complementar: Da mesma forma, a leitura da EC 45/2005 não permite a interpretação de que a competência exclusiva do legislador complementar prevista no art. 93, caput, VIII e X, da Constituição, e disciplinada no art. 27 da LOMAN -- ao estabelecer o processo para aplicação das penas de remoção, disponibilidade e aposentadoria -- teria sido atribuída, agora, ao Conselho Nacional de Justiça.6 (ADI 4638, Rel. Min. Marco Aurélio) Defende ainda a AMB que as medidas de correição e disciplina são de competência das Corregedorias, que funcionam no respectivo tribunal e possuem a competência de fiscalização e controle dos atos dos juízes de primeiro grau. Com efeito, se levarmos em consideração que o Brasil adota o sistema positivista centrado na aplicação (aquele que observa a lei em sua forma escrita e formal, aplicando-a ao 100 caso concreto, mas também reconhece outras formas de direito, integrante dos fatos, como por exemplo, as jurisprudências), veremos, com base nos escritos acima, que os argumentos da AMB contra o CNJ merecem prosperar, visto que, no aspecto legal, o CNJ de fato está extrapolando em suas competências. Entretanto, temos de um lado a imposição do sistema legal brasileiro, que exige a observância das leis positivadas, porém, sob este aspecto, nem sempre é possível se alcançar a justiça desejada. E, de outro lado, temos o interesse social, as necessidades da sociedade, que esperam por um tipo ideal e satisfatório de direito, um direito que busca efetivar e concretizar aquilo que é essencial e imprescindível ao homem. Assim, por mais corporativista que seja o sistema, este corporativismo não pode ser elevado em detrimento às necessidades da sociedade, visto que o Conselho Nacional de Justiça atua em benefício desta, que tem o direito, garantido pela Lei Maior, de acesso a uma justiça transparente, sadia e célere. Como evidência de que é positiva a atuação deste órgão, trazemos a lume o noticiário publicado no site do Supremo Tribunal Federal: Decisões do CNJ em 2010 mostram atuação firme no combate a irregularidades Criado em 2004 e instalado em junho de 2005 para garantir o controle e a transparência administrativa e processual dos órgãos do Poder Judiciário brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) encerrou os trabalhos de 2010 com bons resultados. Nesse ano, além de dar continuidade aos projetos de ampliação do acesso à Justiça e aperfeiçoamento dos serviços jurisdicionais, o Conselho atuou de forma decisiva no que se refere a punições de juízes. Muitos deles foram afastados por suspeita de fraudes, aposentados compulsoriamente por irregularidades e condenados após a apuração de denúncias de improbidade administrativa. No dia 9 de novembro, por exemplo, os conselheiros aprovaram a disponibilidade compulsória do juiz Edilson Rodrigues, da Comarca de Sete Lagoas (MG), que em 2007, ao proferir sentença em processo que tratava de violência contra a mulher, utilizou declarações discriminatórias de gênero, afirmando, por exemplo, que “o mundo é masculino e assim deve permanecer”. Além da sentença, o magistrado ainda manifestou a mesma posição em seu blog na internet e em entrevistas à imprensa. Seis conselheiros também votaram pela censura ao magistrado e pela realização de teste para aferir sua sanidade mental. Cartórios O Plenário do CNJ também foi responsável por proferir decisões que atingem diretamente a sociedade, com reflexos na qualidade e transparência da prestação dos serviços jurisdicionais. No dia 16 de dezembro, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram (MS 28279) manter decisão do Conselho de exigir concurso público de provas e títulos para ingresso na atividade notarial e de registro, conforme estabelece, expressamente, a Constituição Federal de 1988. 101 Oficiais de Justiça Por entender que o trabalho de oficial de Justiça não exige conhecimento de nível superior e que tal definição em termos nacionais extrapola a competência do CNJ, o Plenário do Conselho decidiu, no dia 28 de setembro, revogar sua Resolução nº 48, que estabelecia a conclusão de curso superior como requisito para ingresso no cargo. Os conselheiros entenderam que a definição sobre o tema deve ser dada pelos tribunais ou pelo poder Legislativo de cada estado, para atender às peculiaridades locais. Além disso, conforme a decisão do Plenário, a obrigatoriedade do diploma universitário para ingresso no cargo pode prejudicar o funcionamento do Judiciário em localidades menos desenvolvidas, ou naquelas em que houver problema orçamentário. Alvará de soltura Na sessão plenária do dia 20 de abril, o CNJ determinou que os juízes responsáveis pela liberdade dos presos provisórios e condenados deverão acompanhar a expedição e o cumprimento do alvará de soltura, que deve ser concluído no prazo máximo de 24 horas. A determinação está prevista na Resolução nº 113 do Conselho, que visa inibir o cumprimento de pena em excesso, situação detectada em vários estados pelos mutirões carcerários promovidos pelo órgão. Caso o alvará não seja cumprido no prazo previsto na norma, o caso deve ser informado à Corregedoria Geral de Justiça do tribunal para apuração da irregularidade e adoção de providências. Além disso, o caso será encaminhado ao Ministério Público para verificação da responsabilidade criminal. Precatórios Com o objetivo de fazer cumprir o pagamento das dívidas contraídas pelo Estado, o CNJ aprovou, no dia 9 de novembro, modificações na sua Resolução nº 115, que trata do pagamento dos precatórios, para tornar possível o cumprimento da Emenda nº 62/2009. A principal mudança é a fixação do prazo de 15 anos para a quitação dos precatórios, independentemente do regime de pagamento escolhido pelo ente devedor (mensal ou anual). Antes da modificação, a norma deixava espaço para que o prazo de 15 anos não fosse cumprido pelos credores que optassem pelo regime mensal. Processo eletrônico Por estarem entre as diretrizes do CNJ a modernização tecnológica do Judiciário e a ampliação do acesso à Justiça, na sessão plenária do dia 5 de outubro, os conselheiros estabeleceram que os tribunais brasileiros devem divulgar na internet, com amplo acesso à população, os dados básicos de todos os processos em tramitação, incluindo o inteiro teor das decisões. Além do acesso às informações, a divulgação dos dados tem o intuito de prestar contas à sociedade. A medida foi implantada por meio da Resolução nº 121. Juizados nos aeroportos Por orientação da Corregedoria Nacional de Justiça, foram instalados, no dia 23 de julho, juizados especiais nos cinco principais aeroportos do país (Galeão e Santos Dumont, no Rio de Janeiro, Congonhas e Cumbica, em São Paulo e Juscelino Kubitschek, em Brasília). As novas unidades foram criadas para atender passageiros que enfrentaram problemas como atraso de voos, extravio de bagagens, overbooking e falta de informações. Cada unidade conta com uma equipe formada por funcionários e conciliadores, sob a orientação de um juiz. Quando o problema não é resolvido por meio do acordo, o passageiro pode apresentar pedido simplificado, oral ou escrito, para dar início a um processo judicial.7 102 Além disso, temos ainda os princípios norteadores do nosso Direito, como a dignidade da pessoa humana, o direito de acesso à justiça, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, da supremacia do interesse público, entre outros, que se colocados lado a lado com o caráter, a natureza e a efetividade de que se ocupa o órgão de controle, corroboram com a tese de que se deve reforçar seu poder de atuação e não limitá-lo. Sob este aspecto, é nítido que o CNJ não está extrapolando os limites de sua atuação, visto que se preocupa em suprir as necessidades sociais, pois, se buscamos a justiça e a excelência na prestação jurisdicional não haverá como concebê-la se caminharmos presos a puras normas, vez que a sociedade evolui. Outrossim, levando em consideração a atual conjuntura de nosso país, reconhecemos que, embora existam muitos juristas compromissados com a sua missão, há também aqueles que, de certo modo, não honram com suas obrigações, agindo, muitas vezes, desleixadamente, sem se importar com as necessidades sociais, ou ainda, fechando os olhos para os problemas da justiça de que sofre o Brasil. O CNJ age, então, de maneira a filtrar o Poder Judiciário, compelindo, de certa forma, a atuação destes juízes. Sabemos que não há como se exercer um controle se não for concedido ao órgão controlador ferramentas para tal, e que todo controle causa ao órgão controlado algum desconforto e indignações. Entretanto, a sociedade brasileira não pode ficar à mercê de certas vaidades, pois anseia e necessita de uma boa prestação jurisdicional. Importante ressaltar que a sociedade, em busca da ordem, outorgou seus poderes ao Estado, e, em se tratando do Poder Judiciário, este recebeu a missão de, visando o bem social, dirimir conflitos de interesses, o que se espera, seja feito da forma mais integra e eficiente possível. Ora, se a sociedade outorgou poderes ao Estado em busca da ordem, é incoerente agora tentar-se frear um órgão que se fundou justamente nesta premissa, qual seja, a de buscar meios para o aprimoramento do Poder Judiciário. Seria descabido sobrepormos a lei, que foi criada com vistas à pacificação, às necessidades e interesses da sociedade, visto que por esta e para esta é que tais leis existem. Assim, fica evidente que o CNJ deve possuir todos os meios que possibilitem a ele cumprir com seus desígnios, que resume-se basicamente na organização e aperfeiçoamento da justiça. 103 Desta forma, por mais que a Lei fria penda para o lado de que não foi concedido ao CNJ certas liberdades para atuar, se levarmos esta concepção ao extremo veremos que traduzirá uma negação ao espírito solidário do homem em sociedade, espírito este que acima das normas positivadas deve conseguir perceber as mazelas que permeiam a atuação não só do Poder Judiciário, como também dos demais Poderes e que deixam a sociedade sem o devido amparo. Esta foi a questão enfrentada pelo STF. 5. Conclusão Como não poderia deixar de ser, o Supremo Tribunal Federal decidiu em favor do Conselho Nacional de Justiça, determinando que o CNJ pode iniciar investigação contra magistrados independentemente da atuação da corregedoria, tendo em vista que “quando a Constituição confere ao CNJ a competência de fiscalizar a atuação administrativa do Poder Judiciário concede os poderes necessários para o exercício eficaz dessa competência”.8 Quanto as medidas de correição, vale destacar o exposto pelo Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, onde diz que “com o advento da EC n. 45/2004, os tribunais passaram a compartilhar com um órgão nacional centralizado, o CNJ, esse poder correcional e disciplinar de seus magistrados. O que antes era exercido no âmbito da autonomia administrativa e normativa dos diversos órgãos do Poder Judiciário, conforme as referidas normas constitucionais (art. 96 e 125 da Constituição), passou a ser exercido também por um órgão correcional central, cuja competência abarcou todo o Poder Judiciário nacional”9. Assim, em uma decisão digna de aplausos, com o referendo da Corte Suprema, será possível ao CNJ a instauração direta de processos disciplinares contra magistrados, o que ajudará na construção de uma justiça mais eficaz, visto que as corregedorias dos tribunais não tem sido rigorosas nesta fiscalização. 104 6.Referências bibliográficas BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Sobre http://www.cnj.jus.br/sobre-o-cnj. Acesso em: 22 set 2011. o CNJ. Disponível em: ________________________________________. Resolução nº 135, de 13 de julho de 2011. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-dapresidencia/resolucoespresidencia/15087-resolucao-n-135-de-13-de-julho-de-2011. Acesso em: 01/10/2011 MARTINS, Flavia Bahia. Direito constitucional. 2. ed. rev., ampl. e atual. Niterói: Impetus, 2011 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Decisões do CNJ em 2010 mostram atuação firme no combate a irregularidades. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=169651&caixaBusca=N. Acesso em: 08 out 2011. ________________________________________. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=AC&docID=392184. Acesso em: 22 set 2011. ________________________________________. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiro Teor.asp?id=624811. Acesso em: 08 out 2011 ________________________________________.Decisões do CNJ em 2010 mostram atuação firme no combate a irregularidades. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=169651&caixaBusca=N. Acesso em: 08 out 2011 ________________________________________. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adi4638GM.pdf. 21.08.2012 Acesso em 11 Mestre e doutor em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF); professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). 2 Graduada em Direito pelo UniFOA – Centro Universitário de Volta Redonda. 3 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=AC&docID=392184. Acesso em: 22 set 2011. 4 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiro Teor.asp?id=624811. Acesso em: 08 out 2011 5 CONSELHO NACINAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 135, de 13 de julho de 2011. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/resolucoespresidencia/15087-resolucao-n-135-de-13de-julho-de-2011. Acesso em: 01/10/2011. 6 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, op cit. 7 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Decisões do CNJ em 2010 mostram atuação firme no combate a irregularidades. Disponível em: 105 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=169651&caixaBusca=N. Acesso em: 08 out 2011. 8 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adi4638GM.pdf. Acesso em 21.08.2012 9 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ibidem. 106 O CONCEITO DE AUTONOMIA E O FUNDAMENTO DO CONSENTIMENTO ESCLARECIDO Dalmir Lopes Jr. Doutor em Bioética pela UFRJ (PPGBIOS – UFRJ/ENSP/UERJ/UFF). Professor da Universidade Federal Fluminense – UFF (ICHS/PUVR)* RESUMO: O artigo tem por objetivo tratar da autonomia como núcleo fundamental da noção de consentimento esclarecido. Há certo consenso ético-doutrinário sobre o fato de que é a autonomia o valor central que fundamenta a prática do consentimento esclarecido. Afinal, ter ingerências sobre fatos e ações que podem afetar substancialmente a vida e o modo como ela transcorre é intuitivamente condizente daquilo que se supõe ser a autonomia. Não entanto, esse consenso limita-se a uma dimensão intuitiva; não há consenso racional sobre o fundamento da autonomia; também não há consenso acerca da autonomia ser a única noção apta a fundamentar o direito de autodeterminação do paciente no âmbito clínico ou se este seria uma extensão de seu direito de privacidade – direito de decidir sobre seu próprio corpo – ou um exercício de seu direito de liberdade. Nesse artigo sustenta-se que a noção de autonomia deve ser condizente como o pluralismo moral das sociedades contemporâneas e com as diversas formas de vida digna. Para tanto adotou-se o modelo conceitual de autonomia desenvolvido por Gerald Dworkin. Palavras-chave: Autonomia; consentimento esclarecido; liberdade; relação médico-paciente ABSTRACT: The article aims to address the autonomy as a fundamental core of the notion of informed consent. There are certain ethical and doctrinal consensus on the fact that autonomy is the core value that underlies the practice of informed consent. After all, having interference on facts and actions that may substantially affect the lives and the way it unfolds is intuitively consistent of what is supposed to be autonomy. Not However, this agreement is limited to an intuitive dimension; there is reasonable consensus on the basis of autonomy; There is no consensus on autonomy be the only notion able to support the patient's selfdetermination right in the clinical setting or if this would be an extension of your right to privacy - the right to decide over her own body - or exercise its right to freedom. This paper argues that the notion of autonomy should be consistent as the moral pluralism of contemporary societies and the various forms of dignified life. For this we adopted the conceptual model of autonomy developed by Gerald Dworkin. Keywords: Autonomy; informed consent; freedom;doctor-patient relationship Sumário: 1. Introdução. 2. A liberdade e sua relação com a autonomia. 3. Liberdade, autonomia como conceito global e identidade moral. 4. O conceito de autonomia segundo a teoria de Gerald Dworkin. 5. Autonomia como conceito estreito versus autonomia como conceito material. 6. O valor da autonomia. 1. Introdução Neste artigo, discute-se o núcleo central que fundamenta o consentimento esclarecido. O consentimento esclarecido é um paradigma contemporâneo que serve de fundamento éticojurídico para a relação estabelecida entre médicos e pacientes. O paradigma do consentimento esclarecido sucedeu a forma de medicina hipocrática, a qual perdurou por séculos e se caracterizou pelo predomínio das decisões do profissional de saúde em detrimento dos interesses primários dos pacientes. Por isso é consenso que enquanto o paradigma hipocrático gira em torno de imperativos morais centrados na benevolência e na não-maleficência, o consentimento esclarecido está fundamentado no direito do paciente de ter acesso as informações sobre seu quadro clínico, sobre um prognóstico e de poder participar em todas as etapas que envolvam decisões médicas que lhes afetem. Por isso que é intuitivo e não totalmente errôneo que a noção da consentimento esclarecido guarda correlação com muitos valores, como a autonomia, a liberdade, a confiança e até a privacidade. Em seu trabalho, Gerald Dworkin apresenta diversas definições, de fontes variadas, para demonstrar que não existe um consenso sobre o núcleo fundamental do consentimento esclarecido. Essas definições são retiradas tanto de decisões judiciais como da literatura especializada sobre o tema: Em nossa visão, o direito do paciente tomar sua própria decisão [self-decision] molda os limites do dever de revelar […]. E, para salvaguardar o interesse do paciente de conseguir sua própria determinação no tratamento, a lei deve definir o padrão para a divulgação adequada. (1) O direito constitucional de privacidade inclui o direito de um adulto competente de recusarse a aceitar as recomendações médicas que podem prolongar sua vida e que, pelo menos para uma terceira pessoa, parece estar em seus melhores interesses. (2) O direito anglo-americano começa com a premissa da completa autodeterminação. Daí se segue que cada homem é considerado dono de seu próprio corpo, e ele pode, se possuir uma mente sã, proibir expressamente a realização de cirurgia para salvar sua vida. (3) A exigência do consentimento informado tem duas partes, sendo que ambas devem ser atendidas antes que seja dada uma permissão para uma intervenção médica: a primeira, que a informação passada ao paciente seja suficiente para chegar a uma opinião inteligente e, segundo, que o paciente esteja de acordo com a intervenção a ser executada. Este último aspecto, em particular, reflete a preocupação, tradicional nas sociedades ocidentais de que a autonomia da pessoa deve ser respeitada […] Autonomia é centralmente associada com a noção de responsabilidade individual. A 1liberdade de tomar decisões por si mesmo, traz consigo a obrigação de responder pelas consequências dessas decisões. (4) O princípio de um consentimento informado é uma declaração de fidelidade entre o homem que realiza procedimentos médicos e o homem em quem eles são realizados. […] O princípio de um consentimento informado é o cânone dos homens de fidelidade unidos na prática médica e de investigação. (5) É possível atestar a existência de um direito positivo de consentimento informado tanto para a prática terapêutica como experimental. […] Donde provém esse direito? Surge a 2 partir do direito que cada um de nós possui de ser tratado como pessoa. (6) As concepções acima expõem uma variedade de fontes valorativas que acabam por conduzir a noção para uma zona cinzenta da moral. Não que cada uma delas não expresse, a seu modo, uma forma de contemplar o fenômeno, mas as bases são tão diversas que se torna impossível identificar um núcleo comum nessas definições. Elas se referem ao direito constitucional à privacidade, à autodeterminação sobre o próprio corpo, ao direito de ser informado para tomar uma decisão ponderada, à fidelidade recíproca entre médico e paciente e ao direito de ser respeitado como pessoa. 107 Gerald Dworkin é mais econômico em sua definição, para este autor, o núcleo do consentimento reside apenas na autonomia. Essa visão precisa ser mais bem compreendida, pois a autonomia guarda correlação com outros valores, os quais servem inclusive para traçar um limite ao próprio exercício da autonomia e, consequentemente, estabelecem exceções à prática do consentimento esclarecido. O primeiro ponto a ser considerado diz respeito à relação entre autonomia e liberdade. Pois, como assevera esse autor, é muito tentador unir os dois conceitos como se fossem coisas indistintas. Contudo, há diferenças importantes que precisam ser trazidas à tona a fim de compatibilizar a noção de autonomia com as diversas concepções acerca do bem. 2. A liberdade e sua relação com a autonomia Embora haja uma série de definições sobre o consentimento esclarecido a partir dos mais diversos fundamentos, há certo consenso de que a autonomia é valor central do direito de autodeterminação. A defesa da autonomia é o que justifica o respeito à preferência dos pacientes. Contudo, muitas vezes a noção de autonomia é apresentada em associação com outros valores morais. Uma das formas de obter uma definição de uma noção complexa como a autonomia, é traçar limites de aplicação, diferenciar de outras noções e buscar associações. Um dos autores contemporâneos que se dedicou a esta tarefa foi Gerald Dworkin. Além de trazer uma teoria da autonomia que é coerente e compatível com o pluralismo requerido nas sociedades ocidentais modernas, o autor procurou identificar o núcleo da noção, distinguindo-a em relação aos demais valores que estão associados a ela. E é a partir da tarefa de distinção argumentativa que, nesse momento inicial, se abordará a estrutura de seu pensamento. G. Dworkin argumenta que de todas as noções que se confundem com a autonomia, a liberdade é a mais plausível e tentadora. O dicionário de filosofia de Lalande define autonomia como uma noção superposta à de liberdade. Com base na ética formal kantiana, a autonomia é definida como expressão de uma vontade pura, uma vez que é determinada apenas pela forma universal da lei moral. Nestes termos autonomia é a liberdade moral, na medida em que ela se opõe, por um lado, à escravização dos impulsos [liberdade negativa kantiana]; e de outro, à obediência acrítica de regras sugeridas por uma autoridade externa. Esta servidão que os homens nomeiam heteronomia; ela se opõe, sob o nome de autonomia, à liberdade do homem que, por esforço de sua própria reflexão, dá a si mesmo, seus princípios de ação (LALANDE, 1988, Vol I, p. 101, tradução nossa). 108 O trecho acima reproduz o conceito de autonomia segundo a lógica kantiana. Opensamentokantiano opera uma distinção dual em muitos aspectos e que começa pela própria visão acerca da natureza humana que habita omundofenomenaleomundonoumenal (Cf. KANT,[193-],p.149ess.). Essadicotomiamarcatodasuaconcepçãoética.Omundofenomenaléadimensãosensível,que “aparece” aossentidos,omundoemqueosujeitoestáconscientedesuacontingência,explicaadimensãodecomoosho mensconhecemascoisasexteriores – eaprópriavisãoquepossuemdesimesmos – pormeiodassensaçõesedasrepresentações.Enquantoouniversointeligível,omundonoumenal(nous)trad uzadimensãodoconhecimentodascoisasemsi,oconhecimentoquepodeserordenadopelarazãopura – umavezquesuaorigemestáligada,inelutavelmente,àexperiência.3 Essadicotomiaestendeseaoutrosconceitosdateoriakantiana:liberdadenegativa/liberdadepositiva,arbítriobruto/arbítriolivre,v ontadeboa/vontadedirigidaafins,razãopura/razãoprática,etc.Acompreensãodessemundocindido, onde, em um deles, oshomensagem por influênciasexternas que afetam a racionalidade,eoutro,noqualarazãodeterminaoprincípiopeloqualasaçõessedevempautar,éfundamental paracompreenderaideiakantianadeautonomia. Assim enuncia Kant: Comoserracionaleportanto,pertencenteaomundointeligível,nãopodeohomemintuirsenãosoba ideiadaliberdade,poisaindependênciadascausasdeterminantesdomundosensível(indepen dênciaquearazãodevesempreatribuirseasimesma)éliberdade.Comaideiadeliberdadeseacha,contudo,inseparavelmenteunidoocon ceitodeautonomia,ecomesteprincípiouniversaldemoralidade,queservedefundamentoàideiad etodasasaçõesdeseresracionais,domesmomodoquealeinaturalservedefundamentoatodososfen ômenos (KANT, [193-], p. 152-153). Kantdistinguealiberdadenegativadapositiva.Avontadelivreéavontadesubmetidaaleismora is4equeestáintimamenteligadaàideiadeboavontade.5Liberdadeéoexercíciodoarbítriolivreseminclinaçõ esnaturais,ouporexclusivointeresseindividual,porumsentimento,eetc.Aboavontadeéoquedefineserlivr e:umagircomocontroleracional.Ofundamentodoagiréfrutoexclusivodavontaderacionaldoagentequese auto-atribuiesseagircomodever. Serautônomoéagirpordeverenãoporinclinaçãonatural,éoagirpautadoemumavontadeboa,n ãodirigidaafins,porqueliberdadeéindependênciadoarbítrio.Kantchegaaessanoçãodedever,atravésdaco nsideraçãodetrêsproposiçõesao “considerar oconceitodedever, que contém odeumaboavontade”.6 G. Dworkin sugere uma reflexão um pouco mais detida sobre a distinção entre autonomia e liberdade. Sustenta esse autor que o núcleo do consentimento esclarecido reside apenas na noção de autonomia e não na de liberdade. 109 Liberdade pode ser definida como “a capacidade de uma pessoa para fazer o que ela deseja e ter opções significativas que não estão bloqueadas ou simplificadamente restringidas pela ação de outros agentes ou pelo funcionamento das instituições sociais” (DWORKIN, G. 2001, p. 105, tradução nossa). Quando um médico (ou as instituições sociais) obriga um paciente, testemunha de jeová, a receber uma transfusão de sangue de forma coativa, está interferindo diretamente com sua liberdade. Contudo, como isso acaba interferindo também no plano de ação traçado pelo paciente para seu tratamento, isto é, com sua autonomia, a associação entre as duas noções parece inevitável. Então uma questão que pode ajudar na delimitação da noção de autonomia, e consequentemente na de consentimento esclarecido, consiste em saber qual a relação existente entre autonomia e liberdade. Ambas as noções estariam ligadas de forma necessária? São duas noções distintas ou são apenas sinônimos? Se distintas, haveria uma relação de hierarquia entre elas? Dworkin parte de um exemplo dado por John Locke para demonstrar que se pode interferir sobre a autonomia sem que isso implique uma interferência sobre a liberdade. Uma pessoa é colocada em uma cela de prisão e é informada que as portas estão fechadas, os guardas, inclusive, simulam o movimento de fechamento das portas para criar a falsa representação de trancamento, mas, na verdade, o prisioneiro poderia, simplesmente, abrir a porta e sair. No entanto, pelo fato de não estar ciente disso, o prisioneiro permanece em sua cela. Sua representação dos fatos o leva a acreditar que se encontra preso, pois suas alternativas de ação foram deliberadamente manipuladas pelos guardas, a tal ponto que a opção de sair da cela não representa uma alternativa disponível para a ação. “Este exemplo demonstra que a autodeterminação pode ser limitada, sem limitar a liberdade” (idem, p. 105, tradução nossa). O exemplo acima demonstra que há outras formas de atuação sobre o processo de escolha que não implicam necessariamente uma interferência sobre as ações primárias de uma pessoa. Esse tipo de interferência é de ordem superior, haja vista que se inserem num momento anterior à ação; caracteriza-se pela interferência no processo de deliberação sobre as opções disponíveis ou sobre as preferências de segunda ordem – preferências sobre as preferências. Beauchamp e Faden também utilizam esta distinção, ainda que não adiram à tese de G. Dworkin, quando tratam distinguem as categorias do controle sobre a vontade como uma forma diferente de interferência em relação às influências. Assim, um médico que manipula uma informação interfere de um modo próprio sobre a autonomia do paciente, pois ainda que este decida ao cabo de um processo de diálogo e autorize um tratamento, sua decisão será livre, mas não será de fato uma decisão autônoma, do mesmo modo que ocorre no exemplo lockeano. Agora, se uma interferência sobre a autonomia não constitui necessariamente uma 110 violação à liberdade, o contrário parece que não se sustenta, ou seja, toda interferência sobre a liberdade parece conduzir a uma interferência sobre a autonomia. Afinal, quando se impede uma pessoa de fazer o que deseja, não haveria uma interferência sobre a capacidade de fazer escolhas? Não se interfere com as escolhas necessárias para moldar sua vida? G. Dworkin afirma que embora isso pareça inicialmente plausível, não é verdadeiro. Quando se considera essa indagação, via de regra, se parte de exemplos em que a pessoa deseja estar livre de interferências e se ressente quando sua liberdade é retirada ou restringida. Então, Dworkin propõe outro caso ideal para demonstrar a visão oposta. Dworkin cita o exemplo de Ulisses, personagem da Odisseia de Homero que, para não para atirar seu navio contra as rochas sob a influência do canto das sereias, solicita à tripulação que o amarre no mastro do navio e que recuse qualquer ordem posterior que venha a dar. Restringir sua liberdade significa sua sobrevivência e de seus homens. No momento em que ele ouve o canto, não possui liberdade, mas sua decisão de não ser livre foi autônoma. No exemplo lockeano há uma situação em que o comportamento é livre, mas não autônomo, no de Ulisses o oposto. Neste caso, Ulisses expressa “uma preferência sobre as suas preferências, um desejo de não atuar sob certos desejos” (idem, p. 106, tradução nossa). Ulisses compreende que o desejo de conduzir seu barco para as rochas não corresponde aos seus melhores interesses, logo restringir sua liberdade, de acordo com sua vontade, não impede seus esforços de definir os contornos de sua vida. Faz-se necessário ressaltar que no exemplo de Ulisses há um interesse do agente em que sua conduta seja restringida. A limitação do comportamento é um ato de autonomia e serve para demonstrar que não existe uma relação de necessariedade entre ser livre e ser autônomo. Pode pensar-se em situações quotidianas diversas, como o caso de alguém que prefere trabalhar sob pressão, pois outra pessoa que exige o cumprimento de prazos é fundamental para que se mantenha o ritmo necessário para sua produção; alguém que abre mão de sua liberdade para viver pelos dogmas de uma religião; ou de uma pessoa dependente de drogas que decide se internar para superar o vício. Em todas essas situações, abrir mão da liberdade, voluntariamente, é uma expressão de autonomia. Obviamente isso não ocorre nos casos em que pacientes, testemunhas de jeová, são submetidos à transfusão de sangue involuntária. Essa diferenciação ocorre porque autonomia e liberdade são noções distintas, mas estão relacionadas de forma contingente e não-contingente (Cf. idem, p.18). De forma não-contingente, quando as pessoas desejam agir livremente, mas são impedidas. Então, o que interfere com a liberdade de uma pessoa também interfere com os modos pelos quais ela quer ser motivada e com o tipo de pessoa que ela deseja ser, isto é, com sua autonomia. Entretanto, uma pessoa que deseja ser restringida em seu comportamento, não é, por 111 conta disso, menos autônoma. Aqui a liberdade é um valor contingente na avaliação da autonomia. Com isso, pode dizer-se que Liberdade, poder, controle sobre importantes aspectos da vida de uma pessoa não são a mesma coisa que a autonomia, mas condições necessárias para os indivíduos desenvolverem os seus próprios objetivos e interesses e para tornarem efetivos os valores que desejam pautar a sua existência. (idem, p. 18, tradução nossa). Quando G. Dworkin afirma que a autonomia é um processo de deliberação crítica sobre as preferências e que estas são escolhidas conforme os objetivos, interesses e valores individuais, não há como dissociá-la de certa noção de identidade ou de integridade. A primeira coisa que se faz necessário entender, segundo G. Dworkin, é que intuitivamente os juízos sobre a motivação de uma ação tendem a considerar apenas os desejos de primeira ordem. Porém, ao empreender tal juízo, ignoramos aspectos substanciais acerca das pessoas e de sua capacidade de refletir e adotar atitudes em relação aos seus desejos e intenções. Uma pessoa pode identificar-se com as influências que a motivam; pode assimilá-las como suas; ver a si mesmo como o tipo de pessoa que deseja ser sob estas circunstâncias particulares. Não é, explica Dworkin, a identificação da pessoa com suas preferências primárias que é crucial para definir uma atitude autônoma, mas a capacidade de se identificar ou rejeitar as razõespor que se atua no presente. A autonomia é um conceito global e não local (contextual),7 está vinculada a um modo de viver e somente pode ser avaliada ao considerar a história de vida de uma pessoa, sua associação com a identificação de preferências primárias leva a um juízo contextual e desprendido das interações pregressas de uma pessoa. Isso porque uma pessoa que delibera a partir de informações incompletas ou de circunstâncias manipuladas, não sofre interferência no processo de identificação do que quer, sua decisão final representa exteriormente aquilo que ela deseja no momento, mas só porque sua habilidade de realizar ou rejeitar tais identificações foi prejudicada. Uma pessoa pode igualmente adotar certa posição moral ou um comportamento com o qual não se identifique. Uma forma de modificar essa situação consiste em reformular suas preferências de segunda ordem: “eu não quero mais atuar da maneira como sempre atuei…”; “hoje penso diferentemente, prefiro isto a aquilo…”. Compreender a autonomia como um processo de deliberação crítica sobre as preferências (de primeira ordem) implica igualmente entender que ela é constitutiva de nossa identidade e de nossa história interacional. Isso requer entender que a autonomia não é definida por uma ação específica, isolada ou contextual; ela está intimamente ligada à ideia de pessoa.8 112 3. Liberdade, autonomia como conceito global e identidade moral Essa noção global de autonomia é defendida por filósofos tanto da tradição liberal como Ronald Dworkin como por comunitaristas como Charles Taylor. Este último, buscando uma explicação histórica para a construção da identidade moderna, critica as teorias da moralidade que colocam a ênfase sobre o justo em detrimento de uma reflexão mais profunda acerca daquilo que deve constituir o bem (TAYLOR, 1997, p. 15). Por essa razão, explica Taylor, que boa parte da filosofia moderna tem ignorado a dimensão importante que nossa consciência e crenças morais possuem, “chegando ao ponto de descartá-las como algo confuso e irrelevante” (idem, p. 18), mas essa dimensão é crucial para entender a fonte de nossos juízos morais. Na época moderna, explica Taylor, a compreensão do universo moral não pode ficar restrito a análise de ideias e de quadros descritivos acerca do respeito pelo outro, mas deve igualmente alicerçar nossas noções de vida plena. Para este autor, a vida cotidiana ganhou grande importância na modernidade, nela reside não só a fonte do respeito que se deve ter pelo outro, como também é responsável pela compreensão daquilo que se julga ser uma vida digna. Quando Taylor se refere ao respeito, está utilizando esta noção em sentido moral amplo e não apenas no sentido jurídico de violar/não-violar direitos. Respeito significa pensar acerca do que é o bem para os outros e até mesmo de admirar a diferença. O que fica implícito na linguagem comum quando se diz que “alguém tem o nosso respeito”. Já a dignidade está ligada ao conjunto de representações que alguém tem sobre si mesmo no interagir humano dentro do espaço público (idem, p. 30-31). A dignidade consiste na representação que alguém tem de si mesmo, como chefe de família, como detentor de uma profissão, como provedor de seus dependentes e etc., e que lhe fornece o sentido próprio de dignidade. A construção tayloriana de identidade retrata o conjunto de valores que se coaduna e participa do processo de decisões autônomas de uma pessoa. Na modernidade filosófica,9 o sentido que as pessoas atribuem ao que constitui uma vida digna é fragmentado. A dissipação de nosso sentido de cosmos, como ordem significativa e unificadora de valores, não existe mais. O processo de desencantamento do mundo produziu a realidade de que nenhuma configuração de sentido é partilhada por todos (cf. idem, p. 32). Destarte, a configuração que se busca para o sentido de uma vida plena assume contornos distintos para diferentes pessoas. De um ponto de vista ontológico e sem buscar recurso explicativo no desenvolvimento histórico, Ronald Dworkin argumenta que as questões morais sobre a vida digna se apresentam de forma dicotômica. Por um lado, persistem teses que sustentam que a vida possui um valor intrínseco, sagrado. Por outro lado, há aqueles que compreendem que a vida possui um valor pessoal (cf. DWORKIN, R., 2003, p. 101 e 275). 113 Para R. Dworkin, os argumentos que sustentam que a vida possui um valor em si, expressam certo sentido de dignidade que impõe um respeito incondicional como princípio, com isso se procura estabelecer que a vida é valorosa porque existe (idem, p. 102) e não porque se pode, a partir dela, obter outros bens. Essa visão moral conduz à ideia de que o respeito à dignidade reside na manutenção da vida a todo o custo. R. Dworkin tem uma passagem digna de ser elevada a um aforismo. Sustenta que o maior insulto que se pode ter contra a santidade da vida é a indiferença ou a preguiça diante de toda sua complexidade (idem, p. 343). Para este autor, o sentido de santidade que se atribui à vida humana não pode estar descontextualizado dos interesses críticos que cada um possui. Quero agora sugerir que o direito de uma pessoa ser tratada com dignidade é o direito a que os outros reconheçam seus verdadeiros interesses críticos: que reconheçam que ela é o tipo de criatura cuja posição moral [torna] intrínseca e objetivamente importante o modo como sua vida transcorre (idem, p. 337). Para R. Dworkin, entender que a dignidade está diretamente atrelada aos interesses críticos de uma pessoa consiste numa espécie de reformulação da máxima kantiana de não tratar os outros como um meio para fins particulares. Esse princípio exige que as pessoas nunca sejam tratadas de maneira que se negue a importância evidente de suas próprias vidas (idem, p. 339). Arremata seu argumento dizendo que boa parte da noção daquilo que constitui dignidade ou indignidade é socialmente construída, mas existe uma dimensão da dignidade que não estaria sujeita à convenção, que é o direito que todos têm de que a sociedade em que vivem reconheça a importância de suas vidas em sentido pessoal ou subjetivo. O respeito à vida humana de forma incondicional, muitas vezes, implica juízos sobre o agir alheios consoantes nosso próprio sentido daquilo que é a dignidade. Por isso, afirma R. Dworkin, que uma verdadeira apreciação da dignidade conduz a sustentar a liberdade e não a coação, isto é, os valores fundamentais para uma vida digna não podem ser impostos pela ordem estatal, senão que devem partir de uma escolha pessoal responsável, devem ser uma expressão de nossa identidade e conviver harmonicamente com o valor das outras pessoas na ordem social. Assevera o autor que: “[…] o fato de viver de acordo com nossa liberdade é tão importante quanto o fato de a possuí-la. A liberdade de consciência pressupõe uma responsabilidade pessoal de reflexão e perde muito de seu significado quando essa responsabilidade é ignorada” (idem, p. 343). A autonomia é o processo de deliberação crítica acerca do conjunto de valores, objetivos e interesses de uma pessoa; noção que não está dissociada da própria ideia de identidade, por isso que uma violação à autonomia constitui uma ofensa à dignidade. 114 4. O conceito de autonomia segundo a teoria de Gerald Dworkin Gerald Dworkin define autonomia como sendo a capacidade de segunda ordem para refletir-se criticamente sobre os desejos e preferências de primeira ordem, bem como a habilidade de se identificar com essas preferências e desejos ou de alterá-los à luz de preferências ou valores de ordem superior. Ao exercer tal capacidade definimos nossa natureza, damos sentido e coerências as nossas vidas e assumimos a responsabilidade pelo tipo de pessoa que somos (DWORKIN, G., 2001, p. 108, tradução nossa). Explica o autor que o tema da autonomia é central para muitas teorias políticas e éticas contemporâneas. No âmbito da teoria política John Rawls, por exemplo, a noção de autonomia é central10. A existência de uma concepção política de justiça requer um certo ideal de pessoa, que é pedra angular do edifício moral de princípios e a característica central dessa ideia é a noção de autonomia.11 O conceito possui fundamental importância para muitas teorias políticas liberais, como a de Ronald Dworkin e a de Bruce Ackerman. Essas referências servem para ilustrar que a noção de autonomia é peça chave para a construção de uma ordem social justa, equitativa e democrática. Contudo, quando se analisa as diversas concepções de autonomia, é possível ver que elas se assentam em fundamentos muito diversos. Por isso, é preciso compreender uma noção de autonomia que seja compatível tanto com as concepções liberais de um estado democrático como para as relações pessoais que afetam a biomedicina. Para Dworkin, uma teoria sobre a autonomia deve compreender seis requisitos básicos na sua estrutura: 1º consistência – isso significa que o conceito de autonomia concebido no seu interior, não pode estar em contradição com outros conceitos coligados e igualmente consistentes; 2º – deve ser empiricamente viável – isso significa que uma teoria que exija pressupostos ideais irrealizáveis, que torne impossível ou extremamente improvável definir um sujeito concreto como autônomo ou apenas sob certas condições teóricas exigentes, não é viável. Por exemplo, uma teoria que pressuponha que um sujeito somente é autônomo quando suas decisões não sofrem nenhum tipo de influência, é uma teoria empiricamente inviável; 3º – deve apresentar também condições de valor na sua realização – isto é, deve estar apta a explicar porque as pessoas acreditam que ser autônomo ou atuar autonomamente é algo desejável. Por sua vez, no que concerne à tese de Dworkin, a teorização sobre a autonomia não pode apresentar uma incompatibilidade lógica com outros valores significativos, isto é, uma pessoa autônoma não pode ser restringida, por razões puramente conceituais, de manifestar virtudes ou de agir conforme a justiça, o que é necessário para 115 definir os contornos e limites para uma ação autônoma legítima; 4º – a teoria deve ser ainda ideologicamente neutra – não pode servir apenas a uma concepção particular de justiça ou a uma determinada visão moral particular, mas, ao contrário, deve propiciar uma base valorativa para diferentes perspectivas ideológicas; 5º – deve possuir relevância normativa – isso significa que a teoria deve ser capaz de oferecer um juízo de razão prática, de tal modo que torne possível a partir dela sustentar a defesa de outros valores importantes e, ao mesmo tempo, permita traçar uma fronteira para as possíveis ações violadoras da autonomia; por último, 6º – a teoria da autonomia deve possuir uma relevância avaliativa –, isto é, deve ser compatível com as diversas realidades que a circunscrevem ou com suas concepções particulares. Neste sentido, o conceito de autonomia, inclusive para atender os critérios de consistência e eficácia empírica, deve cingir as noções teórica, normativa e empírica. Com esse último requisito, Dworkin pressupõe que o conceito possa expressar, de forma abrangente, uma realidade complexa. Por exemplo, do ponto de vista teórico, sua análise deve permitir a compreensão de que a autonomia é um conceito gradativo e não um “tudo ou nada”, quer dizer, a ideia teórica deve admitir graus de autonomia variantes; do ponto de vista normativo, o conceito deve ser operacional, por que permite, por exemplo, traçar uma fronteira entre o que é uma decisão autônoma e o que é uma ação paternalista, entre o que é legítimo e o que é inaceitável, já que essas distinções, por vezes, podem ensejar uma análise complexa e difícil; do ponto de vista empírico, o conceito de autonomia deve propiciar o conhecimento dos elementos básicos de sua constituição, pois se a capacidade é um elemento fundamental para a validade do consentimento, um meio de tornar as pessoas autônomas é propiciar estímulos sucessivos e reiterados para que possam decidir dentro de suas possibilidades, como no caso dos menores, tornando-se progressivamente mais responsáveis. 5. Autonomia como conceito estreito versus autonomia como conceito material O conceito de autonomia de G. Dworkin não possui um conteúdo valorativo material e isso aparentemente o torna, por assim dizer, menos atrativo em termos morais. Afinal, uma deliberação crítica sobre preferências não aponta para algo como “a disposição de agir livremente”, “ser senhor de seu próprio destino”, “o exercício racional de uma vontade pura-prática” e etc., em vez disso, simplesmente a autonomia aparece como uma aptidão que as pessoas possuem, em maior ou menor grau, de deliberar sobre suas preferências, identificar-se com elas e de poder modificá-las. Um conceito estreito (thin) demais para parecer expressar algum valor. No entanto, é justamente esse conteúdo estreito que o autor identifica na autonomia que torna sua teorização compatível com o pluralismo moral. Para explicar essa concepção estreita, G. 116 Dworkin se vale de uma situação hipotética. Suponha que uma pessoa não tenha sido submetida a qualquer tipo de pressão externa em suas deliberações – posto que tal situação é puramente ideal. Essa pessoa decide então guiar-se pela seguinte máxima: farei de tudo que minha mãe, meus amigos ou meu pastor disser que devo fazer. A questão a ser examinada é: essa pessoa é autônoma? Sustenta o autor que se o conceito de autonomia requer uma independência substantiva, a pessoa acima não pode ser considerada autônoma. O problema é que tal exigência é incompatível com muitos valores sociais que as pessoas consideram importantes como a lealdade, o comprometimento, a benevolência e etc.. Para ilustrar essa incompatibilidade, G. Dworkin transcreve dois conceitos, o primeiro de Robert Paul Wolf e o segundo de James Rachels. Na primeira assertiva, Wolf afirma que um homem autônomo, quando recebe uma ordem ou um comando externo e atua conforme essa determinação, ele perde sua autonomia. O mesmo acontece quando há uma promessa de cumprir a vontade da maioria, pois o indivíduo deve abdicar de sua autonomia.12 Por sua vez, Rachels afirma que ser autônomo é poder autodeterminar-se. Nesse sentido, aquele que se entrega a uma autoridade moral externa que passa a direcionar o seu agir, perde o poder de autodeterminação e deixa de ser autônomo, como ocorre nas situações em que alguém passa a adotar regras de uma religião.13 Essas posições morais exigem que a autonomia se dê com uma total independência de juízo. Assim, uma pessoa cujo comportamento seja motivado por uma obrigação jurídica, por um respeito a dogmas religiosos, por uma prática tradicional, não pode ser autônoma. Essas posições criam um dilema para o caso hipotético enunciado por G. Dworkin. A pessoa que decide agir conforme o que sua mãe quer, não pensa e nem decide por si só de acordo com suas preferências, desejos e crenças, porque ela não seria capaz de formar juízos independentes sobre seu próprio agir. Se para agir, ela precisa consultar sua mãe, como pode ser autônoma? De outro ângulo, saber o que a mãe quer ou deseja, não é suficiente, diz G. Dworkin, para prever a ação dessa pessoa. E, ao se considerar as ações praticadas por ela, será necessário avaliar a intenção de sua ação para verificar se o desejo de sua mãe é sua causa motivadora. Então, se há uma intenção no agir, sua ação não foi tomada livremente e fundamentada por determinadas razões? Ainda que essas razões sejam o atuar para o contentamento da mãe? Ao agir com essa intenção livre e refletida, a pessoa não fez do contentamento de sua mãe o desejo motivador de seu agir? Para G. Dworkin, a pessoa aqui está agindo conforme deseja, está vivendo sua vida da forma que considera adequada viver. Como pode não ser autônoma? (cf. DWORKIN, 2001, p. 23). O mesmo se pode argumentar em relação ao cumprimento de obrigações jurídicas. A vertente kantiana é tradicionalmente a fonte de fundamentação para explicar as distinções entre o agir conforme a norma e o agir moral, havendo um agir ético apenas quando a pessoa internaliza, 117 por assim dizer, a regra exterior e faz dela uma máxima para o seu agir. Mas é ilusório, e não se enquadra na condição de valor, pensar que toda obrigação jurídica deva ser internalizada para aduzir a autonomia do indivíduo. O pagamento de impostos dificilmente poderia ser internalizado como uma máxima do agir, muitas pessoas compreendem a exigência do pagamento como um ônus e poucos internalizam essa exigência como uma máxima para o agir moral. Pode-se valer do exemplo socrático para se questionar essa visão dicotômica. Sócrates faz do agir pelo dever, que incluiu o respeito às leis do Estado, um agir necessário, cuja violação colocaria em xeque o valor que as leis possuem na manutenção da vida social.14 Com destaque a célebre passagem final do diálogo Fédon em que Sócrates, momentos antes de morrer, solicita a Críton que pague sua dívida: “Críton, somos devedores de Asclépios, devemos-lhes um galo, pois bem, paga minha dívida, não te esqueça” (PLATÃO, 1993, p. 191). Para Sócrates, uma vida alheia ao dever, seria desprovida de um senso necessário para a vida em comunidade, e se tal fato é um exagero à luz da racionalidade moderna, não se pode deixar de considerar que seu agir é autônomo com base nos valores que considerava caros para o seu tempo e para o seu bem viver. Pode-se pensar também, diz Dworkin, na dicotomia existente entre uma pessoa egoísta e outra generosa. Não é plausível que a egoísta seja mais livre que a generosa, na medida em que aceita que seu comportamento seja determinado apenas por aquilo que lhe interessa, sem se preocupar com os interesses dos outros? Pode-se então concluir que a pessoa egoísta é mais autônoma que a generosa? Uma concepção teórica de autonomia que requeira uma total independência de juízo pode levar a esse tipo de conclusão. O que dizer então de uma pessoa que se compromete com um amigo e assume um compromisso, seja ele qual for. A pessoa que se compromete com um amigo, aceita o fato de que suas ações e até mesmo os seus desejos fiquem, em certa medida, condicionados pelos desejos e necessidades do outro. Sua liberdade de fazer o que quer está, na medida de seu compromisso, limitada; então o ato de comprometer-se com alguém, tão corriqueiro na vida cotidiana, não seria compatível com a autonomia? Eis que o conceito de autonomia como completa independência de referenciais externos é incompatível com muitos valores importantes para a vida em sociedade, inclusive com os da liberdade política. G. Dworkin ilustra esse fato com a existência de determinadas leis que controlam o livre mercado. As sociedades em geral possuem, em maior ou em menor grau, leis de controle econômico. Em uma sociedade hipotética onde as leis permitem que uma pessoa possa ganhar tanto dinheiro quanto puder sem nenhuma contrapartida, poderia gerar grandes desigualdades econômicas e sociais. Nesse sentido, a restrição à liberdade que se impõem com algumas leis de distribuição de renda não torna incompatível os valores da liberdade e da igualdade; essa restrição é contextual e não total. Uma restrição ao agir imposta pelo Estado limita a autonomia, uma vez que restringe a 118 liberdade de escolha dos cidadãos, mas isso não significa uma incompatibilidade entre o valor da autonomia com os outros valores da ordem social; tais restrições podem ser justificadas no âmbito da esfera pública a partir de outros valores importantes para a vida em sociedade. 6. O valor da autonomia O conceito estreito de autonomia expressa algum valor útil e digno de proteção? Quando o conceito de autonomia é concebido a partir de um conteúdo material, a própria definição já incorpora um ou mais valores dignos de proteção, mas a concepção estreita é um tanto quanto formal e seu conteúdo indefinido; então, como justificá-la em termos morais? A afirmação de que a concepção estreita de autonomia permite a coexistência de visões acerca do bem, embora seja um argumento importante, não pode ser o único. Por isso se faz necessário buscar outras bases argumentativas para sustentar essa visão. A primeira delas está relacionada com a possibilidade de compatibilizar concepções morais distintas. A adoção de um conceito estreito de autonomia é capaz de aglutinar posições morais que aparentemente são divergentes e, por vezes, até antagônicas. Isso porque todas as teorias morais têm alguma preocupação, maior ou menor, em tratar as pessoas de modo igualitário. O utilitarismo, por exemplo, considera o interesse de cada pessoa no cálculo da utilidade, de tal modo que as ações moralmente boas são aquelas que produzem a maior felicidade para o maior número possível de pessoas. Isso fica nítido quando se considera a fórmula final de Stuart Mill em que a felicidade de cada um dos afetados pela ação deve possuir igual valor no cálculo da utilidade.15 Para os teóricos jusnaturalistas, a natureza humana é idêntica, de tal forma que a igualdade aparece como uma noção imanente. Pela teoriade Kant, a noção de igualdade decorre de uma das reformulações do imperativo categórico.16 Segundo G. Dworkin, “todas essas teorias compartilham a visão de que o que estamos autorizados a fazer, deve refletir, de alguma forma, a preferência daqueles que são afetados por aquilo que fazemos” (2001, p. 30, tradução nossa). O que torna um indivíduo a pessoa particular que ele é, é justamente seu plano de vida, seus projetos. Na “busca pela autonomia”, define-se a própria vida, construindo o que fornece sentido para a existência particular. A pessoa autônoma dá sentido a sua vida. Se isso é verdadeiro, então a autonomia em sentido estreito (thin), sem conteúdo, é mais adequada para lidar com as diversas formas de vida digna porque: primeiro, não existe uma maneira única de fornecer sentido à vida. As pessoas dão sentido as suas vidas de maneiras diferentes. Segundo, qualquer recurso para refletir-se moralmente deve ser compartilhado por todos, mas ao se adotar uma noção substantiva de autonomia isso se torna impossível. A concepção 119 estreita de autonomia trata os interesses e valores das pessoas, o cerne de sua identidade, sem sobrepor uma concepção de vida sobre outra, e, nesse ponto, ela expressa uma grande preocupação com a ideia de igualdade. A autonomia é, portanto, a aptidão que todos possuem – e os incapazes em menor grau – de poder determinar o destino e o plano de suas vidas, reformulando-o ou abandonando-o por completo, a partir de uma reflexão crítica sobre a própria identidade. Isso não significa afirmar que toda e qualquer ação seja legítima conforme um plano de ação traçado pelo indivíduo. É um erro pressupor que a noção de autonomia deva ser absoluta. Ainda que a autonomia possua um papel relevante e quase prioritário para a moral e para o direito, existem outros aspectos da personalidade e outros valores sociais que são limitadores do querer individual, porque para além da autonomia há questões importantes que precisam ser ponderadas. Em continuidade à indagação inicial, se o conceito de autonomia em sentido estreito possui valor, é possível considerar a concepção a partir de dois pontos de vista, um instrumental e outro intrínseco, pois quando se assume que determinada ação é valorosa, o juízo é estabelecido a partir da ação em si ou do resultado que com ela se obtém. Do ponto de vista instrumental, pode sustentar-se que a concepção estreita permite definir as próprias escolhas e valores pessoais que uma pessoa preza; e isto é o próprio sentido daquilo que se considera uma vida boa. Esse argumento tem forte apelo liberal ao considerar que as pessoas são, por assim dizer, os melhores juízes de seus próprios interesses. Ressalvando, é claro, que a autonomia, embora primordial, não é o único valor que a sociedade procurar preservar. Um equilíbrio entre o querer individual e as imposições de ordem pública é sempre necessário, mas tal fato não torna a autonomia, nos termos definidos por essa acepção, menos importante de ser preservada como um ideal nas relações sociais. Como bem sublinha John Harris (2001, p. 199), a autonomia, como total ausência de influências externas e como perfeito controle sobre as informações que chegam ao agente, é um conceito ideal e inalcançável. Mas, a autonomia, como muitas coisas que são igualmente importantes e desejáveis, não deixa de ser algo pelo qual se valha a pena lutar para que se tenha cada vez mais. Do ponto de vista intrínseco, pode dizer-se que a capacidade de autodeterminação é valiosa não só pelo que se pode com ela obter, senão que a própria satisfação que as pessoas sentem em ditar os caminhos de suas próprias vidas, em si, já é considerado um valor. As pessoas, em geral, veem como algo importante a capacidade de autodeterminação, sem a qual não há como construir sua própria identidade enquanto pessoas. Como diz G. Dworkin, “[n]ós desejamos ser conhecidos pelos outros como o tipo de criatura capaz de determinar nosso próprio destino” (2001, p. 112, tradução nossa) e não apenas como seres viventes, mas como pessoas que possuem histórias de vida próprias, erigidas por valores e interesses particulares. 120 REFERÊNCIAS BEAUCHAMP, Tom L. Autonomy and Consent. In: MILLER, Franklin G. e WERTHEIMER, Alan. The ethics of consent. Theory and Practice. Nova Iorque: Oxford, 2010, p. 55-78. ______ e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. 2a. ed. Tradução de Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2011. ______ e FADEN, Ruth R. Informed consent. In: STEPHEN, Gerrard Post. (ed.). Encyclopedia of Bioethics. Vol. I (A-C). Nova Iorque: Thomsom Gale, 1995, p. 1271-1289. ______ . A history and theory of informed consent. 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Vol I. Paris: Puf, 1988. PLATÃO. Diálogos – Eutífron. Apologia de Sócrates. Críton. Fédon. São Paulo: Nova Cultural, 1996. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______ . Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 121 TAYLOR, Charles. As fontes do Self – a construção da identidade moderna. Tradução de Adail U. Sobral e Dinah de A. Azevedo. São Paulo: Loyola, 1997. STUART MILL, John. O utilitarismo. Tradução de Alexandre B Massella. São Paulo. Iluminuras, 2000. ______ . On liberty. London: John W. Parker and Son., 1859. 1 2Citações retiradas de (DWORKIN, 2001, p. 101-102, traduções nossas): (1) EUA. Canterbury v. Spencer, 464 F. 2D (D. C. Cir) at 786; (2) In re Yetter, 62 Pa. D&C 2d 619 at 623; (3) Nathanson v. Kline, 186 Kan. 396 at 406; (4) CAPRON, A. M. Informed consent in catastrophic diasease research and treatment. University of Pennsylvania Law Review, n. 123, Dezembro de 1974, p. 365; (5) RAMSEY, P. The patient as person. New Haven: Yale University Press, 1970, p. 5; (6) FREEMAN, B. A moral theory of consent. Hasting Center Report. Agosto de 1975, p. 32. 3“Não resta dúvida de que todo nosso conhecimento começa na experiência; efectivamente, que outra coisa poderia despertar em pôr em acção a nossa capacidade de conhecer senão os objetos que afectam os sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa faculdade intelectual e levamna a compará-las, ligá-las ou separá-las, transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento que se denomina experiência?”. Mas completa que, embora “[…] todo conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência. Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento por experiência ser um composto do que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em acção por impressões sensíveis) produz por si mesma […]” (KANT, 1989, p. 36). 4“‘A vontade é, em todas as ações, uma lei de si mesma’, caracteriza tão somente o princípio de não agir segundo nenhuma outra máxima que não seja a que possa ser objeto de si mesma como lei universal. Esta fórmula é justamente a do imperativo categórico e o princípio da moralidade; assim, pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são a mesma coisa” (KANT, [193-], p. 140). 5“A boa vontade não é boa pelo que efetivamente realize, não é boa pela sua adequação para alcançar determinado fim a que nos propusemos; é boa somente pelo querer, digamos, é boa em si mesma. Considerada em si própria é, sem comparação, muito mais valiosa do que tudo o que por meio dela pudéssemos verificar em proveito ou referência de uma inclinação e, se quiséssemos, da suma de todas as inclinações” (Idem, p. 37). 6 Idem, p. 42. 7 No original: “[…] autonomy seems intuitively to be a global rather than a local concept. It is a feature that evaluates a whole way of living one´s life, whereas identification is something that may be pinpointed over short periods of time” (DWORKIN, G., 2001, p. 15-16). 8 “I am not trying to analyze the notion of autonomous acts, but of what it means to be a autonomous person, to have a certain capacity and exercise it” (idem, p. 20). Isso porque um processo reflexão deve traduzir uma certa independência procedimental, mas se não houve manipulação nem coação, ainda que não tenha uma perfeita identificação com o que foi decidido, a decisão não deixa de ser fruto da autonomia. 9Explica Alan Renaut (1998, p. 10) que “(…) o que define intrinsecamente a modernidade é, sem dúvida, a maneira como o ser humano nela é concebido e afirmado como fonte de suas representações e de seus atos, seu fundamento (subjectum, sujeito) ou, ainda, seu autor: o homem do humanismo é aquele que não concebe mais receber normas e leis nem da natureza das coisas, nem de Deus, mas que pretende fundá-las, ele próprio, a partir de sua razão e de sua vontade”. 10Na obra Uma teoria da justiça, o autor parte da ideia de que para a existência de uma sociedade bem-ordenada (wellordered society) – entendida como uma sociedade democrática em que os princípios de justiça são operacionais e unificadores – há uma preocupação em promover o bem de seus membros e uma concepção política de justiça. Nessa concepção há princípios de justiça que são capazes de ser aceitos por todos e as instituições sociais básicas geralmente satisfazem esses princípios. A adoção de uma política pública de justiça, nestas bases, torna possível que as pessoas com interesses diversos compartilhem um vínculo necessário para uma convivência cívica (Cf. RAWLS, 2002, p. 5). Neste sentido, uma concepção política de justiça deve respeitar as liberdades individuais, sem privilegiar uma visão particular acerca do bem, mas sem que isso signifique relativismo ou ceticismo, para isso adota a visão de que uma teoria da justiça é procedimental e não substantiva, de tal modo que todos estariam dispostos a aceitar, em uma situação ideal de igualdade (veil of ignorance), os princípios básicos de justiça que são: a igualdade de oportunidade e acesso sobre liberdades e direitos básicos e que as regras de acesso e oportunidade possam criar condições de igualdade para os membros mais desfavorecidos da sociedade. 11“As deliberações racionais dos parceiros na posição original servem de método de seleção entre concepções de justiça promissoras, tradicionais ou não. […] a posição original não é uma base axiomática (ou dedutiva) a partir da 122 qual se extrairiam princípios, mas sim um procedimento para selecionar os princípios mais bem adaptados à concepção da pessoa mais difundida, pelo menos implicitamente, numa sociedade democrática moderna. Por via das deliberações dos parceiros, operamos uma espécie de cálculo e esperamos assim atingir uma clareza e rigor suficientes em teoria moral. De fato, é difícil imaginar uma relação mais direta entre a concepção que trata as pessoas como livres e iguais e os princípios de justiça que não aquela permitida por essa construção. Porque aqui as pessoas assim concebidas e movidas por seus interesses superiores são elas próprias, em suas deliberações racionalmente autônomas, os agentes que selecionam os princípios que vão governar a estrutura básica da vida social. Que relação poderia ser mais estreita que essa” (RAWLS, 2000, p. 139-140). 12 “The autonomous man […] may do what another tells him, but not because he has been told to do it. […] By accepting as final the commands of the others, he forfeits his autonomy […] a promise to abide by the will of the majority creates an obligation, but it does so precisely by giving up one's autonomy.” (WOLF, Robert P. In defense of anarchism. New York: Harper & Row, 1970, p. 14 e 41 Apud DWORKIN, G. Op. cit., p. 22). 13 “[T]o be a moral agent is to be an autonomous or self-directed agent […]. On this view, to deliver oneself over to a moral authority for directions about what to do is simply incompatible with being a moral agent […] [There is] a conflict between the role of worshipper, which by its very nature commits one to total subservience to God, and the role of moral agent, which necessarily involves autonomous decision making.” (RACHELS, James. God and human attitudes. Religious Studies 7 (1971), p. 334 Apud DWORKIN, G. op cit., p. 22). 14As referências podem ser obtidas de diversos textos platônicos, mas, em especial no diálogo Críton ou do dever (Cf. PLATÃO, 1996, p. 101-113). 15“Esse princípio [da utilidade ou da Maior Felicidade] será uma mera forma verbal desprovida de sentido racional se a felicidade de cada pessoa não contar tanto quanto a de outra, sempre que essa felicidade for de igual grau (com as devidas ressalvas segundo a qualidade). Satisfeitas essas condições, a máxima de Bentham ‘cada um deve contar por um e ninguém por mais que um’, poderia ser inscrita sob o princípio de utilidade como um comentário explicativo” (STUART MILL, 2000, p. 91-92). 16“Agora eu afirmo: o homem, em geral todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não só como um meio para qualquer uso desta ou daquela vontade; em todas as suas ações, deve, não só nas dirigidas a si mesmo, como também as dirigidas aos demais seres racionais, ser considerado sempre ao mesmo tempo como um fim. […] os seres racionais se denominam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, isto é, como algo que não pode ser usado como meio, e, portanto, limita nesse sentido todo o capricho (e é um objeto do respeito). […] O imperativo pratico será, pois, como segue: age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca somente como um meio.” (KANT, [193-], p. 101-103). 123 DOSTOIÉVSKI, NIETZSCHE, A VIRULÊNCIA DO RESSENTIMENTO E A EXCELSA IDIOTIA Renato Nunes Bittencourt Doutor em Filosofia pelo PPGF- UFRJ Professor da FACC-UFRJ RESUMO: Neste artigo veremos de que maneira Dostoiévski e Nietzsche descrevem o mecanismo psicológico do ressentimento nas suas obras, e de que maneira é possível encontrarmos convergências entre ambos acerca do problema do ressentimento na existência humana, demonstrando a decadência existencial que tal distúrbio ocasiona na vida, na criação de valores e no âmbito cultural, pois impede o florescimento da saúde e de uma compreensão mais afirmativa da realidade. Nessas condições, uma saída plausível para o envenenamento psíquico do ressentimento encontrar-se-ia na experiência sagrada da idiotia, tal como apresentada por Dostoiévski em O Idiota e por Nietzsche em O Anticristo: a beatitude do homem livre dos traços degenerativos do ressentimento no âmago, afirmando assim uma vida plena, eternamente conectada ao âmbito divino. Palavras-Chave: Ressentimento; Decadência; Inocência; Psicologia; Beatitude. ABSTRACT:In this article we will see how Dostoevsky and Nietzsche describes the psychological mechanism of resentment in his works, and how you can find convergences between the two on the problem of resentment in human existence, demonstrating the existential decay that causes disturbance in life, as in the creation of cultural values and under, because health and flourish prevents a more understanding of reality in the affirmative. Under these conditions, a plausible exit to the psychic poisoning of resentment would find yourself in the sacred experience of the idiocy as set by Dostoyevsky in The Idiot and by Nietzsche in The Antichrist: the beatitude of man free from of components degenerates of resentment at the core traits, stating so a full life, forever connected to the divine. Keywords: Resentment; Decay; Innocence; Psychology; Beatitude. Sumário: 1. Introdução; 2. As agruras do ressentimento. 3. O sublime idiota. 4. Consideraçções finais. 1. Introdução Dostoiévski pode ser considerado como um dos mais penetrantes “escritoresfilósofos” de toda nossa história literária; a densidade psicológica e existencial na qual o romancista russo delineia as suas narrativas são dignas das mais exaustivas exegeses sem que se esgote o manancial de tamanha magnitude criadora. Nietzsche encontrou na obra de Dostoiévski um valiosíssimo ponto de interlocução para as suas análises acerca da subjetividade do homem moderno, destroçado por um sistema social degradante, promotor da decadência dos instintos vitais e da virulência do ressentimento, grande mal-estar da cultura ocidental. Por conseguinte, a temática do ressentimento na obra de Nietzsche é marcadamente influenciada pela obra de Dostoiévski (em especial Memórias do Subsolo), e no decorrer do presente artigo veremos o quanto o filósofo alemão é devedor da genial escrita do romancista russo. Contudo, cabe destacar ainda que essa relação tão frutífera não se encerra no problema do ressentimento, manifestando-se também na psicologia crística delineada por Dostoiévski em O Idiota e Nietzsche em O Anticristo, a partir do fenômeno sagrado da “idiotia”, na sua acepção mais pura: ausência de aspirações políticas, manutenção radical da vida privada, íntima, em detrimento da sociabilidade; compreensão da existência por um viés extramoral. Dessa maneira, a leitura comparada das obras de Dostoiévski e Nietzsche acerca das questões do ressentimento e da idiotia se caracteriza como um inestimável exercício filosófico acerca das entranhas da alma humana. Cabe ainda ressaltar que, no tocante a Dostoiévski, foram utilizadas, conforme as conveniências argumentativas, diversas colocações de pensadores que abordaram de maneira aguçada algumas questões de sua magistral obra, tais como Thomas Mann, Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin e Luigi Pareyson; no caso de Nietzsche foram privilegiados renomados intérpretes/comentadores de sua filosofia. 2. As agruras do ressentimento Podemos afirmar que o processo psicofisiológico do ressentimento ocorreria da seguinte maneira no psiquismo humano: um indivíduo, ao sofrer a impressão de uma força externa, sente imediatamente esse contato, cuja afecção gera imediatamente uma intensa experiência psíquica. Todavia, em circunstâncias peculiares, uma impressão exterior pode gerar um efeito reativo e negativo em nossa afetividade, debilitando assim a força expansiva de nosso próprio psiquismo em decorrência de uma espécie de embotamento das capacidades criativas pessoais, pois ocorre uma espécie de “envenenamento psicológico” das disposições existenciais e valorativas do indivíduo envolvido por esse processo turbulento. O protagonista de Memórias do Subsolo é sem dúvida uma encarnação literária do tipo “ressentido”, e Dostoiévski, por sua agudeza psicológica, é capaz de até mesmo descrever as reações psicossomáticas que a erupção do ressentimento causa nessa pessoa atormentada, incapaz de dar vazão aos seus ímpetos rancorosos e vingativos1; melhor ainda, o “homem do subterrâneo” é de digeri-los psiquicamente, eliminando assim todo traço de tensão em sua interioridade: “Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não ao certo, do que estou sofrendo” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 15). Inclusive, o protagonista da obra confessa se ofender com facilidade, circunstância que evidencia a sua fragilidade psíquica, a sua suscetibilidade nervosa e a sua extrema dificuldade existencial em lidar com as situações ásperas do cotidiano: Sou desconfiado e me ofendo com facilidade, como um corcunda ou um anão, mas, realmente, tive momentos tais que, se me acontecesse receber um bofetão, talvez até me alegrasse com o fato. Falo a sério: com certeza, eu saberia encontrar também nisso uma espécie de prazer – naturalmente o prazer do desespero, mas é justamente no desespero que ocorrem os prazeres mais ardentes, sobretudo quando já se tem uma consciência muito forte da própria condição. E, no caso do bofetão, isso sim, fica-se comprimido pela 125 consciência do mingau a que nos reduziram (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 2021). O “homem do ressentimento” tal como representado cruamente em Memórias do Subsolo vivia em constante estado de agitações nervosas, características psicofisiológicas de um organismo degenerado pelas paixões violentas do ódio contra a vida: “Tinha paixõezinhas agudas, ardentes, em virtude de minha contínua e doentia irritabilidade. Vinham-se impulsos histéricos, com lágrimas e convulsões” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 61-62). Quer desprezando, quer colocando as pessoas acima de si, o protagonista baixava os olhos diante de quase todos que encontrava (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 57). Essa disposição atormentada se origina a partir do estabelecimento de uma nova ordem da realidade própria da modernidade e o advento de uma burguesia burocratizada, despojada de aspirações existenciais superiores, e Dostoiévski, em sua inestimável perspicácia psicológica, percebeu claramente tais tendências e as representou cruamente em seus escritos. Para René Girard, Homem cativo e doentio, o herói do subsolo pertence, para sua infelicidade, a essa classe burocrática pretensiosa e lamentável, cuja mentalidade o escritor julga extremamente significativa e mesmo, sob certos aspectos, profética da sociedade que naquele momento mesmo está em gestação (GIRARD, 2011b, p. 46-47). Em um dado momento da narrativa, o ressentido protagonista da novela se encontra numa típica taberna russa, assistindo avidamente ao desenrolar de uma partida de bilhar. No entanto, ele se posicionara de modo tão inconveniente ao longo da jogatina que atrapalhava de forma considerável aos que estavam envolvidos na atividade. Um oficial, atento ao incômodo causado pelo protagonista, resolve afastá-lo bruscamente da mesa, para que ele não estorve mais a atenção dos jogadores. O modo deselegante como o oficial desloca o protagonista como se esse fosse um objeto insignificante transtorna-o profundamente, e essa personalidade ressentida se sente profundamente humilhada por essa vexatória situação: Fui tratado como uma mosca: Aquele oficial era bem alto, e eu sou um homem baixinho, fraco. A briga, aliás, estava em minhas mãos. Bastava protestar e, naturalmente, seria posto também afora [da taberna onde ocorreu o incidente]. Mas eu mudei de opinião e preferi... apagar-me, enraivecido (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 63). A incapacidade de reação do “homem do ressentimento” ao ato humilhante decorre de sua desordem psíquica, de maneira que o ato de não reagir ao desagravo do 126 oficial foi motivada não por covardia, mas por sua confusão mental. René Girard, ao comentar essa questão, salienta que “os sintomas apresentados pelo herói do subsolo não são novos para nós, mas inscrevem-se num quadro existencial ampliado. Não é de inferioridade sexual que ele sofre, mas de inferioridade generalizada” (GIRARD, 2011a, p. 74). Essa decadência interior decorre da própria massificação axiológica promovida pelo espírito reativo do ressentimento, incapaz de afirmar a potência de agir constituinte de cada figuração pessoal em sua inerente interação com a realidade externa. Em outro comentário esclarecedor, René Girard destaca que O orgulho do subsolo, o orgulho subterrâneo, surpreendentemente, é um orgulho coletivo. O mais vivo sofrimento provém do fato de o herói não conseguir distinguir-se concretamente dos homens que o rodeiam. Pouco a pouco toma consciência do fracasso. Percebe que está rodeado de pequenos funcionários que têm os mesmos desejos e sofrem as mesmas derrotas. Todos os indivíduos subterrâneos creem-se tanto mais únicos quando são, de fato, parecidos (GIRARD, 2011b, p. 51-52). O protagonista reconhece a superioridade corporal do oficial, mas não foi tal circunstância que bloqueou o fluxo de sua ação revanchista, mas a sua própria impotência psicológica de reagir adequadamente ao estímulo externo. Em decorrência de tal incapacidade, o protagonista se ressente por sua fraqueza existencial, passando a elaborar na sua mente uma série de sentimentos rancorosos contra a pessoa do oficial, ansiando infatigavelmente por uma reparação, a qual, no seu entender, é absolutamente “justa”. O personagem cogita então diversas possibilidades revanchistas, tais como um assassinato, um duelo, mas, no entanto, muito brevemente desiste destes intentos, considerando os transtornos que poderiam acarretar na sua vida. Enquanto isso, a degenerativa mordedura do ressentimento fere cada vez mais a sua estrutura afetiva, pois, na medida em que o tempo avança (cerca de dois anos de espera por sua mórbida reparação), mais o protagonista sofre com a incapacidade de concretizar satisfatoriamente a tão desejada vingança, e esse “homem do ressentimento” dedica uma esclarecedora reflexão em uma circunstância anterior da narrativa: Já foi dito: o homem se vinga porque acredita que é justo. Quer dizer que ele encontrou a causa primeira, o fundamento: a justiça. Isto é, como ele está tranqüilizado por todos os lados, vinga-se calmamente e com êxito, convicto de que pratica uma ação honesta e justa. Mas eu não vejo nisso justiça nem qualquer espécie de virtude; se começar a vingar-me, será unicamente por maldade (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 30). Após diversas elucubrações, o atormentado protagonista descobre uma 127 possibilidade muito curiosa para que finalmente consiga efetivar a revanche contra seu “inimigo”: ele se recorda do local público no qual a elite da sociedade de São Petersburgo comumente passeia diariamente, a Avenida Nevski, em que há um trecho no qual, por sua estreiteza, se torna praticamente impossível que duas pessoas possam se cruzar confortavelmente ao mesmo tempo. O protagonista aguarda apreensivamente por tal evento, objetivando jamais ceder sua vez para ao “rival”. Cabe ao protagonista, neste “momento-limite”, efetivar o seu curioso e extenuante intento de vingança. O oficial, altaneiro e alheio aos seus circundantes se dirige a sua direção. Porém, no momento derradeiro, o protagonista vacila, de maneira que novamente o oficial conquista a suposta vitória no embate contra esse homem atormentado psicologicamente pela ruminação dos seus afetos rancorosos. Esse fracasso lhe motiva uma reação psicossomática, através dos acessos de febre. Contudo, numa nova tentativa, o protagonista resolve perseverar no seu extravagante intento. Deparando-se mais uma vez com o oficial pela passagem estreita, o protagonista, desta vez, não fraqueja, passando de igual para igual, chegando inclusive a esbarrar com uma intensidade de força considerável no flanco do oficial, que sente esse choque sem que sequer seja capaz de entender o sucedido (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 62-70). O decadente homem do ressentimento está momentaneamente redimido de seu implacável sofrimento moral. Mediante essas explanações sobre os efeitos deletérios do ressentimento na valoração humana e o seu vínculo intrínseco com as disposições vingativas do indivíduo assolado por esse mal-estar psicológico, não poderíamos deixar de aproveitar a descrição de Dostoiévski acerca da personalidade do “homem ressentido”, incapaz de digerir afetivamente as suas experiências existencialmente desagradáveis: Ali, no seu ignóbil e fétido subsolo, o nosso camundongo, ofendido, machucado, coberto de zombarias, imerge logo num rancor frígido, envenenado e, sobretudo, sempiterno. Há de lembrar, quarenta anos seguidos, a sua ofensa, até os derradeiros e mais vergonhosos pormenores; e cada vez acrescentará por sua conta novos pormenores, ainda mais vergonhosos, zombando maldosamente de si mesmo e irritando-se com a sua própria imaginação. Ele próprio se envergonhará dessa imaginação, mas, assim mesmo, tudo lembrará, tudo examinará, e há de inventar sobre si mesmo fatos inverossímeis, com o pretexto de que também estes poderiam ter acontecido, e nada perdoará. Possivelmente, começará a vingar-se, mas de certo modo interrompido, com miuçalhas, por atrás do fogão, incógnito, não acreditando no direito nem no êxito da vingança e sabendo de antemão que todas essas tentativas de vindita vão fazê-lo sofrer cem vezes mais que ao objeto de vingança, pois este talvez não precise sequer coçar-se. No seu leito de morte, há de tornar a lembrar tudo com os juros acumulados em todo esse tempo e... (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.23-24) 128 A descrição realizada por Dostoiévski neste trecho acerca do problema do ressentimento na existência atribulada do homem decadente fisiologicamente evidenciam os motivos que levaram Nietzsche a considerar o escritor russo como um dos mais profundos “psicólogos” já existentes, capaz de conhecer as coisas mais entranhadas numa mente perturbada pelos afetos reativos (NIETZSCHE, 2006, p. 95).2 Para Nietzsche, o “espírito de ressentimento” inicia o seu processo de degeneração da vitalidade da cultura ocidental quando ocorre a inversão dos valores que eram até então preconizados como os mais elevados pela prática de vida da jubilosa civilização greco-romana, a dizer, virilidade, a força, a coragem e a sensualidade (NIETZSCHE, 1999, p. 28-29). A partir do advento da moralidade teológica da religião cristã, esses valores imanentes são transformados em manifestações do apego ao corpo, ao mundo sensível, sendo, por isso, vilipendiadas como pecaminosas. No lugar das virtudes corporais que enaltecem a saúde e a imanência da realidade, são inseridas, pelos adeptos da nova perspectiva moral, as virtudes da consciência, da interioridade, alçadas como as instâncias maiores da vida humana. O homem “virtuoso” se torna aquele que desenvolve plenamente as suas faculdades do espírito em detrimento da imanência da corporeidade. Conforme Nietzsche, esse processo de perversão dos instintos, dos valores imanentes do corpo e da sensibilidade em prol dos valores da alma e do puramente inteligível se inicia na filosofia socrático-platônica, tal como ele denuncia de forma incisiva (NIETZSCHE, 1993, p.84-87; NIETZSCHE, 2006, p. 1719). Entretanto, podemos afirmar que o grande problema dessa situação não decorre da legitimação das virtudes da consciência na vida humana, mas sim, do intolerante projeto de se renegar asperamente as virtudes do corpo, da saúde. Afinal, certamente tanto as virtudes do corpo como as da consciência poderiam conviver entrelaçadas nas disposições de ânimo de um indivíduo. Contudo, os idealizadores dessa nova perspectiva moral, insatisfeitos com a existência dos valores da vitalidade, se esforçaram de todas as formas para que fossem consolidadas como as virtudes mais elevadas aquelas que estivessem associadas somente ao plano inteligível, suprassensível, em detrimento do âmbito corporal. Nietzsche considera que A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um 129 “não-eu” – e este não é seu ato criador. Essa inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação (NIETZSCHE, 1999, p.28-29). A reviravolta radical dos valores consiste, portanto, na subversão da qualidade da ideia de virtude e dos parâmetros acerca da avaliação do “bom” e do “ruim” para a constituição da vida do indivíduo. Segundo a interpretação genealógica feita por Nietzsche, os valores que eram imputados como “bons” na cultura greco-romana (como a beleza ou a força corporal), passam a ser estigmatizados como “maus” no decorrer da consolidação da moral cristã na civilização ocidental (NIETZSCHE, 1999, p. 30-31). Podemos dizer, de acordo com a perspectiva de Nietzsche, que essa inversão de premissas decorre da incapacidade do indivíduo sectário da moralidade cristã de conviver com as dificuldades cotidianas da existência, assim como de desenvolver, ao longo de sua existencial, a capacidade necessária para a ampliação de sua potência, a partir da contínua superação das suas limitações intrínsecas. Essa limitada disposição psíquica, por impedir que o indivíduo consiga externar satisfatoriamente a sua força vital através da busca de novas interações, acaba por voltar essa potência engendradora para o seu próprio íntimo, circunstância que motiva o declínio de sua vitalidade psicofisiológica, mediante uma doentia interiorização afetiva: Todos os instintos que não se descarregam pra fora, voltam-se para dentro – isto é o que eu chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua “alma”. Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora (NIETZSCHE, 1999, p.73). A fraqueza da vitalidade na existência de um homem afetivamente ressentido, decorrente da sua dificuldade em assimilar as suas experiências afetivas recolhidas ao longo da sua conduta cotidiana, gera essa inversão do fluxo de sua capacidade para a ação. Ao invés desse tipo decadente de homem se empenhar em agir, em elaborar novos modos de valorações comprometidos com a ampliação das suas forças criativas, ele focaliza seu olhar na obscuridade dos elementos mais sombrios de sua vida psíquica, enfatizando especialmente tudo aquilo que existe de passível de se vir a sofrer do envenenamento afetivo do rancor. Nietzsche considera que Os sofredores são todos horrivelmente dispostos e inventivos, em matéria de pretextos para seus afetos dolorosos; eles fruem a própria desconfiança, a 130 cisma com baixezas e aparentes prejuízos, eles revolvem as vísceras de seu passado e seu presente, atrás de histórias escuras e questionáveis, em que possam regalar-se em uma suspeita torturante, e intoxicar-se de seu próprio veneno de maldade – eles rasgam as mais antigas feridas, eles sangram de cicatrizes há muito curadas, eles transformam em malfeitores o amigo, a mulher, o filho e quem mais lhes for próximo (NIETZSCHE, 1999, p. 117). É importante esclarecer, todavia, que a questão da potência e da fraqueza no âmbito da conjugação das forças vitais do ser humano, no contexto da interpretação nietzschiana, não se fundamenta segundo princípios axiológicos estanques: uma pessoa contém na sua afetividade tanto as disposições ativas (fortes e assimiladoras de vivências) como as reativas (virulentas e depressivas), sendo “nobre” quando consegue fazer prevalecer as suas disposições ativas, e sendo “fraca” quando são as disposições reativas que coordenam as suas valorações pessoais. No decorrer da vida prática, a pessoa incapacitada de descarregar os seus instintos para o exterior se constitui como “fraca”, e ao perceber que outros homens são capazes de fazer tal ato, se revolta intimamente contra estes, motivado pela inveja e pelo rancor diante da manifestação da saúde, da beleza e de toda plenitude. Afinal, a expansão da vitalidade do corpo no seu processo criativo decorre das naturezas individuais bem constituídas, cujas estruturas fisiológicas, segundo a acepção nietzschiana, funcionam adequadamente, pois são capazes de assimilar sem grandes dificuldades as impressões afetivas cotidianas, principalmente as consideradas desagradáveis, pois estas, numa personalidade “fraca”, se tornam o regalo de seu ressentimento e rancor contra o que é forte e bem organizado sob uma perspectiva vital. Esse estado de aversão do “homem fraco” em relação ao que manifestam livremente a sua vitalidade decorre justamente da manifestação da virulência do espírito de ressentimento diante da saúde e da boa resolução das interações afetivas. Dessa maneira, a criação de uma série de valores que enalteçam a quietude e a passividade decorre do anseio existente da parte do indivíduo “fraco” em ver o “homem forte”, que se caracteriza pela afirmação da sua potência, reprimir os seus instintos vitais; o homem ressentido é um homem invejoso, incapaz de aceitar a existência da diferença de qualidades e características, assim como da beleza e saúde manifestada por pessoas criativas, que conseguem superar suas limitações individuais, ampliando o nível de potência de agir em suas estruturas orgânicas. Conforme argumenta Roberto Machado, “o ressentimento é o predomínio das forças reativas sobre as forças ativas. O ressentido é alguém que nem age nem reage realmente; produz apenas uma vingança imaginária, um ódio insaciável” (MACHADO, 131 2001, p. 61). Para a tipologia da fraqueza axiológica e afetiva, somente a paralisia e a conservação das forças vitais são enaltecidas, pois nivelam existencialmente os homens por baixo, impedindo assim qualquer tipo de manifestação de forças pautada pelas instâncias competitivas. O “homem fraco” não é capaz de assimilar a ideia de que a vida se constitui pela superação dos limites pessoais, sendo contrária a um dos mais vigorosos lemas nietzschianos: “Da Escola de Guerra da Vida – o que não me mata me fortalece” (NIETZSCHE, 2006, p. 10). É digno de nota destacar ainda que, em uma perspectiva completamente oposta aos parâmetros morais da disposição reativa da valoração “escrava”, a tipologia da “nobreza” tal como compreendida por Nietzsche se caracteriza pela legitimação da disputa como possibilidade de ampliação da vitalidade do corpo; afinal, através da emulação o homem desenvolve ao máximo as suas qualidades, em prol da obtenção da vitória em uma dada circunstância, sinal da marcante influência da Boa Éris de Hesíodo, tal como narrada em OsTrabalhos e os Dias (vs. 20-26) no desenvolvimento do pensamento de Nietzsche: O “homem nobre”, ciente da necessidade e importância da competitividade para a vida, de forma alguma permite a perpetuação de um vencedor no certame, pois a hegemonia por um longo período de tempo paralisa as forças criativas dos indivíduos envolvidos em uma luta. Nietzsche, no ensaio A Disputa de Homero, dedica importantes considerações sobre a agonística grega e os seus desdobramentos na vida cultural do antigo mundo grego, evidenciando o quanto somos herdeiros de tal disposição axiológica, pois ela favorece o contínuo aprimoramento existencial mediante a superação dos limites estabelecidos (NIETZSCHE, 1996, p. 71-86). Na perspectiva dos “homens fortes”, a hegemonia somente pode ser momentânea, de maneira que, após uma conquista, novas configurações de força são elaboradas, para que todos os competidores envolvidos na justa possam desenvolver ao máximo suas respectivas potências. Tal medida é tomada para se evitar que um homem, ao vencer continuamente os seus rivais, retire destes o genuíno sentido da disputa, pois derrotas contínuas podem excluir o espírito de competitividade dos participantes das contendas, desmotivando-os existencialmente. O homem “nobre” e “forte” segundo a perspectiva nietzschiana não coaduna de forma alguma com o exercício tirânico do poder e com o controle coercitivo que impede o florescimento de novas perspectivas valorativas; pelo contrário, a sua “nobreza” axiológica se manifesta justamente a partir da possibilidade de surgirem novas perspectivas. Conforme comenta Oswaldo Giacóia Júnior sobre essa questão, 132 Nos termos dessa teoria nietzscheana do ativo e do reativo, forte não é aquele que é capaz de sujeitar o outro pela violência, ou de impor de modo impiedoso e desconsiderado seus apetites de poder, seus interesses. Em sentido próprio, forte é aquele que possui uma força plástica de esquecimento e assimilação mais inteira, mais organicamente sadia (GIACÓIA JÙNIOR, 2001, p. 84-85). Esse projeto de superação dos limites e da ampliação da vitalidade pela prática agonística é considerado pelo indivíduo afetado pelo ressentimento uma circunstância enfadonha e “imoral”, recebendo então as suas mais virulentas críticas, pois os signos da saúde e da vitalidade não fazem parte de sua visão de mundo. Contudo, na verdade esse homem em estado de declínio vital também gostaria de participar destas disputas, mas abdica deste intento, pois teme ser avassalado pelos demais, assim como teme perder a taxa mínima de vitalidade que porta nas suas disposições de ânimo, na sua estrutura fisiológica. De acordo com a interpretação de Maria Rita Kehl acerca dessa questão apontada por Nietzsche, “a má consciência é o afeto negativo que os fracos querem despertar nos fortes a partir dessa derrota, culpando-os pelo uso da força” (KEHL, 2004, p. 88). O “homem fraco”, ao tentar destilar o sentimento de culpa na consciência do “homem forte”, pretende que este abdique de sua instintiva capacidade de agir, fato este que, caso posto em prática, motivaria o declínio da sua saúde e de sua potência plástica de criação, posto que, nas naturezas fisiologicamente bem constituídas, a ação decorre de uma necessidade instintiva (NIETZSCHE, 1999, p. 36). No âmbito tipológico do homem reativo, “fraco”, compreende-se a disputa justamente na sua acepção distorcida e negadora da vida, como supremacia constante, que impede a rotatividade dos vencedores, não sendo, portanto, capaz de discriminar as peculiaridades da má disputa e da boa disputa; é precisamente essa última que valoriza as capacidades de cada competidor, impedindo que exista por meio da emulação o uso das forças vitais para fins opressores e destrutivos, circunstância que suprimiria o processo de superação de si. Na acepção positiva da disputa, o indivíduo vê o rival como um amigo amado, necessário para que ele próprio obtenha dignidade e valor. Afinal, a inexistência de um rival valoroso para que possa ocorrer uma relação agônica, o tipo “nobre” permanece com a sua potência de agir estática, sem possibilidades de desafios que favoreçam a ampliação constante das suas forças corporais. Tal como enuncia Nietzsche, 133 Poder ser inimigo, ser inimigo – isso pressupõe talvez uma natureza forte, é em todo caso condição de toda natureza forte, é em todo caso condição de natureza forte. Ela necessita de resistências, portanto busca resistência: o pathosagressivo está ligado tão necessariamente à força quanto os sentimentos de vingança e rancor à fraqueza. (...) – a força do agressor tem na oposição de que precisa uma espécie de medida; todo crescimento se revela na procura de um poderoso adversário – ou problema: pois um filósofo guerreiro provoca também os problemas ao duelo. A tarefa não consiste em subjugar quaisquer resistências, mas sim aquelas contra as quais há que investir toda a força, agilidade e mestria das armas – subjugar adversários iguais a nós... Igualdade frente o inimigo – primeiro pressuposto para um duelo honesto. Quando se despreza não se pode fazer a guerra; quando se comanda, quando se vê algo abaixo de si, não há que fazer a guerra (NIETZSCHE, 2001a, p. 31-32) Uma vez que tal homem adquire sua saúde e bem-estar justamente através da competição, a inexistência deste evento impede momentaneamente a expansão da sua força intrínseca. Para Scarlett Marton, Querendo-vir-a-ser-mais-forte, a força esbarra em outras, que lhe opõem resistência, mas o obstáculo constitui um estímulo. Inevitável, trava-se de luta – por mais potência. Não há objetivos a atingir; por isso ela não admite trégua nem prevê termo. Insaciável, continua a exercer-se a vontade de potência. Não há finalidades a realizar; por isso ela é desprovida de caráter teleológico. A cada momento, as forças relacionam-se de modo diferente, dispõem-se de outra maneira; a todo instante, o combate entre elas faz surgir novamente outras formas, outras configurações (MARTON, 2001, p. 97-98). A tipologia do “homem nobre”, para concretizar os seus objetivos saudáveis necessita viver na linha da temeridade, experimentando continuamente as situações mais perigosas possíveis. Conforme argumenta Nietzsche, Homens preparatórios – Eu saúdo todos os sinais de que se aproxima uma época mais viril, guerreira, que voltará a honrar acima de tudo a valentia! Ela deve abrir caminho para uma época ainda superior e juntar as forças que de que ele precisará – a época que levará heroísmo para o conhecimento e travará guerras em nome dos pensamentos e das conseqüências deles. Para isto são agora necessários muitos homens preparatórios valentes, que certamente não podem surgir do nada – muito menos da areia e do lodo da atual civilização, e educação citadina; homens que, silenciosos, solitários, resolutos, saibam estar satisfeitos e ser constantes na atividade invisível; homens interiormente inclinados a buscar, em todas as coisas, o que nelas deve ser superado; homens cuja animação, paciência, singeleza e desprezo das grandes vaidades seja tão característico quanto a generosidade na vitória e a indulgência para com as pequenas vaidades dos vencidos; homens de juízo agudo e livre acerca dos vencedores e do quinhão de acaso que há em toda vitória e toda glória; homens com suas próprias festas, dias de trabalho e momentos de luto, habituados e seguros nos no comandar e também prontos no obedecer, quando for o caso, igualmente orgulhosos nas duas situações, igualmente servindo a própria causa; homens mais ameaçados, fecundos e felizes! Pois, creiam-me! – o segredo para colher da vida a maior fecundidade e a maior fruição é: viver perigosamente! (NIETZSCHE, 2001b, p. 192). 134 Não podemos esquecer, todavia, que mesmo a pessoa que se associa aos caracteres da tipologia axiológica da “nobreza” também pode vir a sofrer de efeitos do ressentimento na sua afetividade, mas tal estímulo psíquico é rapidamente assimilado pela sua estrutura psicofisiológica, favorecendo assim o estímulo para a realização de novas experiências na dinâmica social das relações, pois a personalidade que estabelece valorações afirmativas é capaz de esquecer os efeitos deletérios das impressões mais turbulentas (NIETZSCHE, 1999, p. 47-48). Esclarecendo esse grande problema da psicologia do ressentimento, Vânia Dutra de Azeredo pondera: O que faz com que o ressentimento no senhor não envenene é o pleno funcionamento da faculdade ativa do esquecimento que, ao impedir a fixação na consciência de toda e qualquer vivência, permite-lhe determinar a ação pela dominação. No escravo, diferentemente, a faculdade do esquecimento não funciona, fazendo com que ele desenvolva uma extraordinária memória. Ele manifesta uma impossibilidade de esquecer, que inclusive determina a sua percepção do inimigo como mau (AZEREDO, 2000, p. 81). Justamente por ser incapaz de esquecer, o tipo “escravo” sofre continuamente com a recordação dolorosa das suas experiências desagradáveis. Nessa situação de declínio afetivo e fisiológico, gera-se um asfixiante círculo vicioso, pois, quanto mais o indivíduo “fraco” se ressente, por causa da sua incapacidade de transformar o seu estado de inércia numa atividade efetiva, mais ele se entristecerá, degradando-se moralmente por tal circunstância. Para Nietzsche: E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido – para os exaustos é esta certamente a forma mais nociva de reação: produz um rápido consumo de energia nervosa, um aumento doentio de secreções prejudiciais, de bílis no estômago, por exemplo. O ressentimento é o proibido em si para o doente – seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação. – Isso compreendeu aquele profundo fisiólogo que foi Buda. Sua “religião”, que se poderia designar mais corretamente como uma higiene, para não confundi-la com coisas lastimáveis como o cristianismo, fazia depender sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar a alma dele – primeiro passo para a convalescença. “Não pela inimizade termina a inimizade”; isto se acha no começo dos ensinamentos de Buda – assim não fala a moral, assim fala a fisiologia. - O ressentimento, nascido da fraqueza, a ninguém mais prejudicial do que ao fraco mesmo – no outro caso, em que se pressupõe uma natureza rica, um sentimento supérfluo, um sentimento tal que dominá-lo é quase a prova da riqueza (NIETZCHE, 2001a, p.30-31). O “homem fraco” dissimula para si mesmo a sua própria decadência psicofisiológica, pois finge que a sua derrota é motivada pelo “outro”, de maneira que o “externo” deve ser imputado como o responsável pela sua queda, enquanto que, na verdade, o próprio indivíduo que deixa prevalecer os afetos reativos seria o responsável 135 por esse estado de declínio vital, e a memória hipertrofiada potencializa esse efeito destrutivo. Segundo Valéria Wilke, O assombroso poder da memória torna o ressentido (o escravo) impermeável ao inesperado. Por somente viver na vigência daquilo que se empedrou como sendo o que é, passa ao largo do devir, fazendo minguar o poder da criação. Esquecendo-se da possibilidade da mudança que designa a vida, realizase desde o horizonte cristalizado da vida. Contudo, não a gera. Estancou-se como fonte geradora de vida. Deixou de ser força grávida de futuro (WILKE, 2000, p. 157). Na moral religiosa de caráter normativo e transcendente, o homem do ressentimento manifesta a sua aversão pela diferença através da dissimulação de seu rancor pelos seus rivais na elaboração de um conjunto de preceitos morais proclamados como os desígnios divinos para os adeptos de um determinado credo. Nesse caso, o espírito de ressentimento se encontra associado aos legisladores morais, os quais, para maior controle do povo, impõem aos seus membros uma série de regras, cujos fundamentos motivacionais a grande massa dos seguidores desconhece. Em tempos remotos, quando um indivíduo transgredia um mandamento imposto pelos condutores do povo, ele sofria sanções físicas, para que a sua mácula fosse devidamente purgada (NIETZSCHE, 1999, p.52-54). Todavia, com o aprimoramento das instituições sociais, esse indivíduo transgressor, ao invés de sofrer uma punição concreta, recebe o repúdio de seus pares, sendo então discriminado por tempo indeterminado, até o momento em que se arrependa de suas faltas contra a sua comunidade religiosa. Devemos ressaltar que tais “faltas” são consideradas na sua acepção abstrata, brotando desse modo a noção de pecado, a impureza da alma decorrente da realização ação considerada inadequada pela ordem moral estabelecida. Para que o indivíduo possa se livrar do pecado, ele deve se penitenciar, isto é, se submeter aos ditames da casta sacerdotal (NIETZSCHE, 2007, p. 33). Em uma radicalização muito mais intensa da moral do ressentimento, cria-se, como forma de refrear a iniquidade do indivíduo, a ameaça de uma punição muito pior: a da alma, condenada por toda a eternidade aos martírios infernais. Essa vontade de vingança busca encontrar um culpado, algum responsável pela existência de um mundo que é ressentido intrinsecamente como ruim. Nessas condições, podemos considerar que a elaboração da ideia de Inferno decorre da afirmação máxima do sentimento de vingança do homem ressentido contra os seus rivais e desafetos. “Sem crueldade não há festa; é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem – no castigo também há algo 136 de festivo” (NIETZSCHE, 1999, p. 56). É a partir de tal perspectiva que Nietzsche ironiza o fato de Dante Alighieri ter colocado no portal do “Inferno” de sua Divina Comédia a inscrição “Também a mim criou o eterno amor” (“Inferno”, III, vs. 5-6), quando na verdade seria mais justificado dizer “Também a mim criou o eterno ódio” (NIETZSCHE, 1999, p. 40). Conforme argumenta Maria Rita Kehl, O ressentimento é uma doença que se origina do retorno dos desejos vingativos sobre o eu. É a fermentação da crueldade adiada, transmutada em valores positivos, que envenena e intoxica a alma, que fica eternamente condenada ao não esquecimento (KEHL, 2004, p. 93-94). De acordo com Nietzsche, podemos dizer que esse desenvolvimento do sentimento de reparação por uma ação qualificada como prejudicial aos interesses da coletividade decorreria de uma sofisticação do sentimento de vingança dos homens fracos, posto que, com o temor de sofrer uma punição perpétua, a pessoa submetida aos parâmetros de uma moral religiosa de caráter coercitivo vislumbra adequar de todas as formas as suas disposições individuais aos valores estabelecidos pelo código normativo no qual se baseiam os adeptos dessa visão de mundo. Esse medo exerce grande influência sobre a vida prática do “homem de rebanho”, pois quem aceita seguir os mandamentos morais impostos pela casta religiosa acredita que, se porventura ele infringir as regras estabelecidas, ele terá que prestar contas por essa ação numa dada circunstância. Para Nietzsche, a moralidade, de uma forma geral, se caracteriza pela massificação dos tipos humanos, anulando todas as diferenças existenciais: Instinto de rebanho - Onde quer que deparemos com uma moral, encontramos uma avaliação e hierarquização dos impulsos e atos humanos. Tais avaliações e hierarquizações sempre constituem expressão das necessidades de uma comunidade, de um rebanho: aquilo que beneficia este em primeiro lugar – e em segundo e terceiro – é igualmente o critério máximo de valor de cada indivíduo. Com a moral o indivíduo é levado a ser função de rebanho e a se conferir valor apenas enquanto função. Dado que as condições para a preservação da comunidade eram muito diferentes daquelas de uma outra comunidade, houve morais bastante diferentes, e, tendo em vista futuras remodelações essenciais dos rebanhos e comunidades, pode-se profetizar que ainda aparecerão morais muito divergentes. Moralidade é o instinto de rebanho no indivíduo (NIETZSCHE, 2001b, p. 142). Um dos principais aspectos da visão de mundo da religião cristã que teria prevalecido ao longo de seu processo histórico seria o do sentimento de reparação, ou seja, o anseio da parte do fiel devoto em punir a todo custo o indivíduo que porventura viesse a cometer atos imputados como pecaminosos contra os mandamentos morais redigidos, sobretudo no que diz respeito à relação prática entre os homens seguidores da fé cristã. Tal dispositivo pode ser considerado, sob uma perspectiva aparente e 137 superficial, como uma espécie de legitimação concreta do sentimento de justiça, mas que, nas disposições afetivas mais terríveis da consciência do cristão, demonstra um virulento anseio de vingança camuflada em afirmação da justiça, pois evidencia a destilação do sentimento de ódio e rancor da parte do cristão devoto para com o “pecador”. Inclusive, essa punição moral em todas as circunstâncias, posto mesmo quando nenhuma pessoa toma conhecimento do seu “pecado”, essa punição será exercida, caso o indivíduo não se arrependa sinceramente, pois existe um Deus punidor que tudo vê, pronto para castigar aquele que não segue os seus preceitos morais. Essa situação é um tanto lamentável para o desenvolvimento de uma vivência religiosa saudável para a existência, pois se fundamenta no estabelecimento de um relacionamento do homem para com a divindade pautado não no genuíno sentimento de amor, mas de temor. Tanto pior, ocorre a distorção axiológica da práxis evangélica de Jesus, que se sustentava por uma valoração destituída de ressentimento e de critérios moralizantes de conduta. Com efeito, Nietzsche destaca que A vida do Redentor não foi senão essa prática – sua morte também não foi senão isso... Ele não tinha mais necessidade de nenhuma fórmula, de nenhum rito para o trato com Deus - nem mesmo oração. Acertou contas com toda a doutrina judaica da penitência e reconciliação; sabe que apenas com a prática de vida alguém pode sentir-se ‘divino’, ‘bem-aventurado’, ‘evangélico’, a qualquer momento um ‘filho de Deus’. Não a “penitência”, não a oração pelo perdão’ é um caminhos para Deus: somente a prática evangélica conduz a Deus, ela justamente é Deus – O que foi liquidado com o evangelho foi o judaísmo dos conceitos “pecado”, “perdão dos pecados”, “fé”, “redenção pela fé” – toda a doutrina eclesiástica judia foi negada na “boa nova” (NIETZSCHE, 2007, p. 40-41). Contudo, os “seguidores” do legado evangélico de Jesus não compreenderam a sua perspectiva beatífica, inserindo traços reativos, moralistas e teleológicos no discurso “extra-moral” do Nazareno, negando assim a autenticidade e a inocência sagrada dos Evangelhos. Conforme Nietzsche argumenta, - O destino do evangelho foi decidido com a morte – foi pendurado na “cruz...” Somente com a morte, essa morte inesperada, ignóbil, somente a cruz, geralmente reservada para a canaille [canalha] – somente esse horrível paradoxo pôs os discípulos ante o verdadeiro enigma: “quem foi esse? O que foi isso?.” – O sentimento abalado e profundamente ofendido, a suspeita de que tal morte poderia ser a refutação de sua causa, a terrível interrogação “por que justamente assim?” – é um estado que se compreende muito bem. Tudo aí tinha de ser necessário, ter sentido, razão, suprema razão; o amor de um discípulo não conhece acaso. Apenas então o abismo se abriu: “quem o matou? quem era seu inimigo natural?” – essa questão irrompeu como um raio. Resposta: o judaísmo dominante, sua classe mais alta. Nesse instante sentiram-se em revolta contra a ordem, entenderam Jesus, em retrospecto, como em revolta contra a ordem. Até ali faltava, em seu quadro, esse traço 138 guerreiro, essa característica de dizer o Não, fazer o Não; mais até, ele era o contrário disso. Evidentemente, a pequena comunidade não compreendeu o principal, o que havia de exemplar nessa forma de morrer, a liberdade, a superioridade sobre todo sentimento de ressentiment [ressentimento]: - sinal de como o entendia pouco! Jesus não podia querer outra coisa, com sua morte, senão dar publicamente a mais forte demonstração, a prova de sua doutrina... Mas seus discípulos estavam longe de perdoar essa morte – o que teria sido evangélico no mais alto sentido; ou mesmo de oferecer-se para uma morte igual, com meiga e suave tranqüilidade no coração... Precisamente o sentimento mais “inevangélico”, a vingança, tornou a prevalecer. A questão não podia findar com essa morte: necessitava-se de “reparação”, “julgamento” (- e o que pode ser menos evangélico do que “reparação”, “castigo”, “levar a julgamento”!). Mais uma vez a expectativa popular de um Messias apareceu em primeiro plano; enxergou-se um momento histórico: o “reino de Deus” como ato final, como promessa! Mas o evangelho fora justamente a presença, a realização, a realidade desse “reino de Deus”... Pela primeira vez carrega-se todo o desprezo e amargor contra fariseus e teólogos para o tipo do mestre – tornando-o assim um fariseu e teólogo! Por outro lado, a frenética veneração dessas almas totalmente saídas dos eixos não mais tolerou a evangélica identificação de cada um como filho de Deus, que Jesus havia ensinado: sua vingança foi exaltar extravagantemente Jesus, destacá-lo de si: assim como os judeus de outrora, por vingança contra os inimigos, haviam separado de si e erguido às alturas o seu. O único Deus e o único filho de Deus: ambos produtos do ressentiment... (NIETZSCHE, 2007, p. 4648). Podemos dizer que o caráter axiológico mais elevado da prática crística não depende da ocorrência de eventos escatológicos que sirvam de confirmação da autoridade sagrada de Jesus, procedimento tão bem articulado pelo discurso teológico cristão, mas da capacidade de viver efetivamente na sua esfera sagrada, prenhe de beatitude interior. Segundo Nietzsche, - A partir de então houve um problema absurdo: “como podia Deus permitir isso?” A perturbada razão da pequena comunidade deu-lhe uma resposta assustadoramente absurda: Deus deu seu filho em sacrifício para o perdão dos pecados. De uma só vez acabou-se o evangelho! O sacrifício expiatório, e em sua forma mais bárbara e repugnante, o sacrifício do inocente pelos pecados dos culpados! Que pavoroso paganismo! – Jesus havia abolido o próprio conceito de “culpa” – ele negou todo abismo entre Deus e homem, ele viveu essa unidade de Deus e homem como sua “boa nova”... E não como prerrogativa! – A partir de então entra no tipo do Redentor, passo a passo, a doutrina do julgamento e do retorno, a doutrina da morte como uma morte sacrificial, a doutrina da ressurreição, com a qual é escamoteado o conceito de “beatitude”, a única realidade do evangelho – em prol de um estado posterior à morte!... Com a insolência rabínica que sempre o caracteriza, Paulo racionalizou esta concepção, esta obscenidade de concepção, da seguinte forma: “Se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, é vã a nossa fé” [1 Coríntios, 15,14], - E de uma só vez o evangelho se tornou a mais desprezível das promessas não realizáveis, a desavergonhada doutrina da imortalidade pessoal... O próprio Paulo ainda a ensinava como recompensa!... (NIETZSCHE, 2007, p. 48). Nessas circunstâncias, a morte de Jesus na cruz se torna uma dívida metafísica a ser aplicada ao devoto cristão, que deve se submeter piamente ao ensinamento 139 sacerdotal que exige penitência abnegação, a fim de que o sofrimento de Cristo seja justificado. Conforme comenta Deleuze, Examine-se aqui o que o Cristianismo chama “remissão”. Não se trata de modo algum de uma libertação da dívida, mas de um aprofundamento da dívida. Não se trata de modo algum de uma dor pela qual se paga a dívida, mas de uma dor pela qual nos vinculamos a esta, pela qual nos sentimos devedores para sempre (DELEUZE, 2001, p. 211-212). A experiência moralista da culpabilidade estabelecida pelos primeiros teólogos cristãos desemboca na negação por excelência da vivência evangélica., plena de amor e da força plástica capaz de perdoar. “Deus” crucificou o seu filho por amor; responderemos a este amor na medida em que os sintamos culpados, culpados por essa morte, e a reparemos acusando-nos, pagando os juros da dívida. Sob o “amor de Deus”, o sob o sacrifício do seu filho, toda a vida se torna reativa (DELEUZE, 2001, p. 231). A extramoralidade de Jesus foi substituída pela moralidade da figura do “Crucificado”. 3. A sublime idiotia No ponto presente de nossa argumentação, mais uma vez se torna de grande importância que façamos uma articulação valorativa entre Dostoiévski e Nietzsche, mais precisamente acerca da elaboração da tipologia psicológica de Jesus. O romancista russo, n’O Idiota, através do personagem Míchkin, o nobre protagonista da obra, cria uma espécie de avatar moderno de Jesus, dotado de inocência moral e, portanto, desprovido de qualquer consciência de culpabilidade, circunstância que impede o envenenamento existencial de seu psiquismo perante um ambiente social grotescamente vicioso. Vejamos como Dostoiévski narra uma interpelação de Míchkin a um ofensor: Eu devo observar ao senhor, Gavrila Ardaliónovitch – disse subitamente o príncipe -, que antes eu realmente era uma pessoa tão sem saúde que de fato era quase um idiota; mas hoje estou restabelecido há muito tempo e por isso acho um tanto desagradável quando me chamam de idiota na cara (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 114). Míchkin é o indivíduo “quase criança”, que não gosta de estar com adultos prenhes de preocupações insanas, com pessoas volúveis, com os “grandes”, vivendo assim em uma “inocente menoridade”, salutar para a manutenção de sua paz interior, mas terrivelmente destrutiva para um homem que se encontra forçado a comungar da sociabilidade cotidiana com indivíduos degenerados. O príncipe é incapaz de compreender e adquirir domínio cabal sobre as vicissitudes externas que o rodeiam 140 (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 74). Inclusive, é apenas na presença das crianças, inocentes e livres de disposições egoístas, que Míchkin é capaz de vivenciar um genuíno estado de paz interior: O que quer que eles conversem comigo, por mais bondosos que sejam comigo, mesmo assim a companhia deles é sempre pesada para mim sabe-se lá por que, e eu fico terrivelmente feliz quando posso sair o mais rápido possível para a companhia dos companheiros, e meus companheiros sempre foram as crianças, não porque eu sempre fui uma criança e sim porque as crianças sempre me atraíram (DOSTOIÉVSKI 2002, p. 382).3 Com agudeza psicológica perspicaz, Walter Benjamin, ao analisar O Idiota, salienta que retorna sempre claramente em Dostoiévski a ideia de que o nobre desdobramento da vida humana a partir da vida popular emerge somente a partir do espírito da criança (BENJAMIN, 2011, p. 79). Esse espírito de inocência presente no âmago de Míchkin é uma espécie de frágil proteção áurea contra toda iniquidade social, corruptora das naturezas mais brutas, tendência que, surpreendentemente, é incapaz de envenenar um indivíduo puro de coração. Luigi Pareyson aponta que Ele compreende tudo, lê no coração dos homens, advinha a malevolência e o engano, porém, indulgente e paciente, não opõe resistência alguma e se encontra completamente exposto às ofensas que ele, previu e, antecipadamente, perdoou, com uma mansidão e uma generosidade, tanto mais desarmante quanto maior era, nele, a possibilidade, voluntariamente não aproveitada, de evitar tanta astúcia (PAREYSON, 2012, p. 111). Por conseguinte, a pressão social da maldade acaba por violentar aquele que vive na esfera do amor inocente. Desse modo, deslocado das valorações egoístas da sociedade e da maldade dos seus interlocutores, Míchkin se torna uma presa fácil diante do jogo mesquinho dos circundantes. Conforme salienta Mikhail Bakhtin: “Essa exclusão de Míchkin das relações comuns da vida, essa permanente inconveniência de sua personalidade e de seu comportamento são de caráter integral, quase ingênuo, daí ele ser um ‘idiota’” (BAKHTIN, 2010, p. 200). Por outro lado, o príncipe é diversas vezes descrito como um indivíduo do mais circunspecto juízo e um refinado observador dos sentimentos mais profundos que afetam aqueles que o cercam; apesar dessa argúcia psicológica, ainda assim seus interlocutores são capazes de o considerarem como alguém pueril, o que sempre os surpreende. Para Luiz Felipe Pondé, 141 O que caracteriza o Príncipe Míchkin, e que se pode perceber logo nas primeiras páginas de O Idiota, quando ele está chegando à Rússia, é a forma como ele responde às perguntas que lhe são feitas: não está nem um pouco preocupado com o que vão pensar do que ele diz ou se vão se aproveitar do que ele fala. Por isso ele parece um indivíduo sem “eu”, parece uma pessoa sem personalidade, totalmente perdido, mas nem um pouco preocupado (PONDÉ, 2003, p. 219). Como declara o personagem Keller sobre Míchkin em um dado momento da narrativa: “Um jeito tão simplório, tamanha ingenuidade que não se via nem na idade de ouro, e de repente penetra o homem de cabo a rabo como uma seta, com uma psicologia tão profunda na observação” (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 348).4 A associação entre Míchkin e o homem inocente da beatífica “idade de ouro” evoca um dos grandes mitos da formação de nossa cultura ocidental, tal como narrado em Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo, era magnífica em que os homens viviam “tendo despreocupado coração” (HESÍODO, Os Trabalhos e os Dias, v. 112); podemos pensar ainda em uma analogia entre Míchkin e o homem adâmico quando era ainda livre da mácula do pecado original, conforme o arquétipo judaico-cristão (Gênesis 2, 1-25). Conforme salienta George Steiner, “Míchkin é uma figura compósita, chegamos a discernir nele aspectos de Cristo, Dom Quixote, Pickwick, e dos grandes santos bobos da Igreja Ortodoxa” (STEINER, 2006, p. 113).5 O caráter de “homem-privado”, apolítico, próprio do tipo “idiota” em sua concepção grega originária, é perfeitamente exemplificado pela completa falta de tato, de compreensão do valoroso príncipe a respeito das picuinhas e das maquinações do mundo dos “grandes”. Como sentencia a generala Iepántchina a seu respeito em um dado momento da narrativa: “Em primeiro lugar, esse principezinho é um idiota doente, em segundo um imbecil, não conhece nem a sociedade, não tem nem um lugar na sociedade” (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 574).6Isso se dá pelo fato de que o seu condicionamento psicofisiológico o impede de interagir com a efetividade do mundo que o rodeia, de entender as necessidades materiais do homem público e da estrutura social que este constrói e habita: um mundo axiologicamente artificial, regido pelo desejo arrivista de progresso material incondicional. Sufocado em uma viciosa atmosfera social marcada pelo oportunismo dos indivíduos e pelo ímpeto destes em fazer imperar os seus desejos egoístas, a mescla de inocência e sublimidade de Míchkin se tornam instrumentos que se voltam contra ele mesmo, ocasionando o seu infortúnio final.7 Entretanto, apesar da vitória social dos 142 mesquinhos, permanece como símbolo incólume a graciosidade do excelso príncipe. Luiz Felipe Pondé destaca que Míchkin não apresenta qualquer preocupação com o seu eu. Aliás, chama a atenção o fato de que ele parece não saber quem é, não ter plena consciência de si mesmo. De alguma forma, é como se sua essência permanecesse um mistério para ele mesmo. [...]. Ele é, por definição, não categorizável: não segue nenhuma fórmula, não se enquadra, é uma espécie de míssil no ego de todos os personagens do livro (PONDÉ, 2003, p. 252). A esse sublime tipo de homem dedica Dostoiévski a estima mais profunda, pois representa o homem verdadeiramente belo do “paraíso perdido”, cujo grande amor deve tornar-se neste mundo a sua loucura e crucificação existencial, porque ele não julga nem resiste àquilo que é do âmbito da malignidade; aliás, em verdade, talvez o tipo idiota sequer reconheça a existência do mal no mundo.8 René Girard aponta que No Príncipe Míchkin, o domínio de si não provém, em princípio, do orgulho, mas da humildade. A ideia original do príncipe é a do homem perfeito. A substância do seu ser, a essência de sua personalidade, se define pela humildade, enquanto o orgulho, ao contrário, define o fundo mesmo, a essência da personalidade subterrânea (GIRARD, 2011a, p. 100). Míchkin é um personagem que sofre de epilepsia, e tal distúrbio antigamente era associado a uma espécie de doença sagrada, na qual o portador vivenciava por uma determinada extensão de tempo outra realidade de consciência, em um átimo no qual se alcança maravilhosamente o sentido maior da existência, talvez até mesmo uma interação extática com a dimensão divina. Eis como Dostoiévski descreve uma dessas experiências insólitas: A mente, o coraçãoforam iluminados por uma luz extraordinária; todas as inquietações, todas as suas dúvidas, todas as aflições parecem apaziguadas de uma vez, redundaram em alguma paz superior, plena de uma alegria serena, harmoniosa, e de esperança, plena de razão e de causa definitiva [...]Qual é o problema se essa tensão é anormal, seo próprio resultado, seo minuto da sensação lembrada e examinada já em estado sadio vem a ser o cúmulo da harmonia, da beleza, dá uma sensação inaudita e até então inesperada de plenitude, de medida, de conciliação e de fusão extasiada e suplicante com amaissublime síntese da vida? [...]. Se naquele segundo, isto é, nomais derradeiro momento de consciência perante o ataque ele arranjasse tempo para dizer com clareza e consciência a si mesmo: “Sim por esse instante pode-se dar a vida toda!” – então, é claro, esse momento em si valia a vida toda (DOSTOIÉVSKI 2002, p. 261-262).19 O tipo “idiota” está imediatamente associado ao plano da vivência evangélica originária, ao contrário da falsa consciência devota “cristã”, que prega um Cristianismo 1 143 deformado, repleto de calúnia e deturpado axiologicamente, ou seja, um verdadeiro “Anticristo”, conforme afirma apaixonadamente Míchkin aos seus aturdidos interlocutores diante dessa revelação desconcertante: O ateísmo também prega o nada, mas o Catolicismo vai além: prega um Cristo deformado, que ele mesmo denegriu e profanou um Cristo oposto! Ele prega o anticristo, eu lhe juro, eu lhe asseguro! Esta é uma convicção minha e antiga, e ela mesma me atormentou... O Catolicismo romano acredita que sem um poder estatal e mundial a Igreja não se sustenta na Terra e grita: ‘Non Possumus!’ A meu ver, o Catolicismo romano não é nem uma fé mas, terminantemente, uma continuação do Império Romano do Ocidente, e nele tudo apoderou-se da Terra, do trono terrestre e pegou a espada; desde então não tem feito outra coisa, só que à espada acrescentou a mentira, a esperteza, o embuste, o fanatismo, a superstição, o crime, brincou com os próprios santos, com os sentimentos verdadeiros, simples e fervorosos do povo, trocou tudo, tudo por dinheiro, pelo vil poder terrestre. Isso não é uma doutrina anticristã? (DOSTOIÉVSKI 2002, p. 606). Tal indagação somente encontra força retórica e justeza argumentativa pelo fato de ter sido pronunciada por uma pessoa que, vivendo na órbita de valorações extramorais, compreende precisamente o quão deletério é para a vida humana a luta contra a beatífica “idiotia” existencial promovida pela moralidade instituída teologicamente. Para Luigi Pareyson, O príncipe Míchkin, incompreensível para os homens tenebrosos, mas claríssimo para as almas cândidas e para as crianças, é aquele que compreende todos e que revela cada um a si mesmo. Ele é clarividente e sabe resolver o enigma de cada um; melhor, essa é a tarefa à qual ele se devotou. Em torno dele comprimem-se obscuras paixões, todos se sentem atraídos por ele, mas quase ninguém compreende quem ele é e que coisa fará; daí a extraordinária dinâmica do grande romance (PAREYSON, 2012, p. 35).10 Baseado na elaboração dostoievskiana da figura singular do príncipe Míchkin, Nietzsche aproveitará o conceito de “idiota” para compreender a personalidade de Jesus, intuindo psicologicamente a essência espiritual de um indivíduo cujo nome, obra e doutrina receberam uma série de acréscimos e decréscimos na sua hagiografia: Eu conheço apenas um psicólogo que viveu num mundo onde o Cristianismo é possível, onde um Cristo pode surgir a qualquer momento. É Dostoievski. Ele adivinhou Cristo: - e ele permaneceu instintivamente protegido da representar esse tipo com a vulgaridade de Renan (NIETZSCHE, KSA XIII, Fragmento Póstumo 15 [9] da primavera de 1888).11 A idiotia em sua instância mais genuína representaa disposição psicológica do indivíduo que é instintivamente indiferente aos valores sociais instituídos e, por 144 conseguinte, ao âmbito da moralidade coercitiva (NIETZSCHE, 2007, p. 35-36). Tal como argumenta Marco Vannini: Por isso não há dúvida que a pesquisa fisiológica (e psicológica) sobre Jesus que termina na definição de ‘idiota’, subentenda uma avaliação positiva sua, em estreito paralelismo com o significado dostoievskiano da palavra – tão positiva que o próprio Nietzsche acaba identificando-se com essa figura de Jesus – Idiota (VANNINI, 2003, p. 512). Contudo, a moralidade cristã vai corromper, a nível teológico, a “idiotia” de Jesus, tornando-o o “Cordeiro de Deus” por cuja morte sacrificial toda a humanidade é redimida, desde que o devoto cristão se incline existencialmente aos ditames morais estabelecidos pela casta sacerdotal, que inocula novamente na consciência dos fiéis os traços tristonhos, depressivos, reativos e ressentidos que Jesus, por meio de sua práxis beatífica, havia dissolvido de forma satisfatória, ao realizar a unicidade imanente com “Deus” (NIETZSCHE, 2007, p. 41-42). A teologia cristã, distorcendo as valorações evangélicas da práxis crística, torna o ressentimento o impulso condutor em seu processo de submissão da vida do devoto. De acordo com essa disposição reativa e decadente infiltrada na conduta doutrinária cristã, para que o homem não sofra dos efeitos da cólera divina, ele deve necessariamente direcionar a sua singularidade aos códigos morais estabelecidos. Todavia, esse problema da “invenção” de uma dimensão suprassensível na qual o indivíduo pecador deverá expiar suas faltas, decorreria, segundo a compreensão de Nietzsche, da legitimação de uma causa imaginária associada ao instinto de vingança do tipo ressentido, o qual, para normatizar a diversidade dos indivíduos, projeta na ideia de Deus caracteres vis e passionais da mais grotesca vulgaridade; “o homem do ressentimento faz da ideia” de um ser divino uma mera projeção dos afetos vingativos contra todo partidário de uma valoração diferente (hábitos religiosos, perspectivas doutrinárias etc.). Uma vez que não é mais possível que se exerça uma violência física contra o homem imputado como “pecador”, por causa das mudanças no modo de tratamento aos divergentes da moralidade religiosa, elege-se uma dimensão metafísica como local de punição para os homens que transgrediram os mandamentos sagrados. Segundo Nietzsche, Psicologicamente, em toda sociedade organizada em torno ao sacerdote os “pecados” são imprescindíveis: são autênticas alavancas do poder, o sacerdote vive dos pecados, ele necessita que se peque... Princípio supremo: “Deus perdoa quem faz penitência” – em linguagem franca: quem se submete ao sacerdote. - (NIETZSCHE, 2007, p. 33). 145 Na prática normativa da religião moral, a pena, que outrora era aplicada no corpo do indivíduo, adquire um estatuto simbólico, “espiritualizando-se”, tornando-se uma sanção moral a ser sofrida pela alma no decorrer da eternidade.Dessa maneira, os homens tolos e crédulos, desprovidos de um nível significativo de senso crítico, acreditam nesses impropérios que aviltam a possibilidade de formulação de uma saudável experiência religiosa, pautada no sentimento de amor e respeitabilidade para com o outro. Para a compreensão deste problema do sentimento de vingança existente na moralidade teológica do Cristianismo institucionalizado, é importante destacar que Nietzsche (1999, p.39-43) enumera alguns exemplos do espírito de ressentimento na teologia cristã, citando os casos de Tertuliano, Padre de Igreja, e de São Tomás de Aquino: Mas restam outros espetáculos, aquele último e perpétuo dia do juízo, aquele dia não esperado pelos povos, dia escarnecido, quando tamanha antigüidade do mundo e tantas gerações serão consumidas num só fogo. Quão vasto será então o espetáculo! Como rirei! Lá me alegrarei! Lá exultarei, vendo tantos e tão grandes reis, de quem se dizia estarem no céu, gemendo nas mais fundas trevas, junto ao próprio Júpiter e suas testemunhas. Do mesmo modo os líderes, perseguidores do nome do Senhor, derretendo-se em chamas mais cruéis do que aquelas com que eles maltrataram os cristãos! E também aqueles sábios filósofos, que diante dos seus discípulos tornam-se rubros ao se consumirem no fogo, juntamente com eles, a quem persuadiam que nada pertence a Deus, a quem asseguravam que as almas ou não existem ou não retornarão aos corpos antigos! Do mesmo modo os líderes (os governadores das províncias), perseguidores do nome do Senhor, derretendo-se em chamas mais cruéis do que aquelas com que eles maltrataram os cristãos! E também aqueles sábios filósofos, que diante dos seus discípulos tornam-se rubros ao se consumirem no fogo, juntamente com eles, a quem persuadiam que nada pertence a Deus, a quem asseguravam que as almas ou não existem ou não retomarão aos corpos antigos! Os poetas também, a tremer, não diante do tribunal de Radamanto ou de Minos, mas daquele do Cristo inesperado! Então se escutará melhor os trágicos, a saber, melhor serão ouvidas as suas vozes (melhor a voz, maiores os gritos) em sua própria desgraça; então serão conhecidos os histriões, mais dissolutos [tradução alternativa: mais desenvoltos] no fogo, então se verá o auriga, todo rubro no carro flamejante, então se contemplarão os atletas, não no ginásio, mas no fogo lançando seus dardos, a não ser que eu nem queira esses espetáculos, e antes prefira dirigir um olhar insaciável àqueles que maltrataram o Senhor: ‘Eis’, direi, “o filho do artesão e da prostituta, o destruidor do Sábado, o Samaritano, o que tem o demônio. Eis aquele que comprastes de Judas, eis aquele que foi golpeado com a vara e com bofetadas, que foi humilhado com escarros, a quem foi dado de beber fel e vinagre. Eis aquele que os discípulos roubaram às escondidas, para que se dissesse que havia ressuscitado, ou aquele a quem o hortelão arrastou, para que suas alfaces não fossem machucadas pelo grande número de passantes”. Tais visões, tais alegrias, que pretor, ou cônsul, ou questor, ou sacerdote, te poderia oferecê-las, da sua própria generosidade? E no entanto, de certo modo já as possuímos mediante a fé, representadas no espírito que imagina. De resto, como são aquelas coisas que nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem subiram ao coração do homem? (1 Cor. 2,9) Creio que são mais agradáveis que o circo, que ambos os teatros, e todos os estádios(TERTULIANO, De spectaculis, cap. 30). 146 [Et ideo, ut beatitudo sanctorum eis magis complaceat, et de ea uberiores gratias Deo agant, datur eis ut poenam, impiorum perfecte intueantur [Por tanto, para que a beatitude dos santos lhes satisfaça mais, e por ela dêem graças mais rendidas Deus, se lhes concede que vejam perfeitamente a pena dos ímpios] (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Suplemento, Questão 94, artigo 1). Tais citações demonstram o comprometimento dessa instituição religiosa com o adoecimento moral do ser humano que se mantém submisso moralmente aos seus ditames, pois tal mecanismo repressivo é utilizado como forma de melhor dominá-lo, castrando os seus impulsos singulares mediante as ameaças da perdição eterna. A elaboração desse sistema coercitivo na moral religiosa deriva do ódio dos detentores da autoridade teológica perante tudo aquilo que é belo e sensual, posto que, impossibilitados de desfrutarem da saúde e da exuberância da vida, manifestam aversão por tudo que venha a demonstrar apreço pela beleza decorrente da afirmação jubilosa da existência. Os adeptos dessa moralidade castradora, portanto, sofreriam, de acordo com a terminologia empregada por Nietzsche, de distúrbios fisiológicos, que impedem uma compreensão saudável da vida. Tanto pior, por causa dessa degenerescência, sentem repulsa pela expressão da alegria daqueles que são afetivamente saudáveis, como se estes indivíduos fossem os culpados pela decadência vital dos fracos, quando, na verdade, eles mesmos é que seriam os responsáveis por essa situação de declínio. O adepto da moral do ressentimento tende a transferir sua própria culpa para fora de si, para o “outro”, estigmatizando a este como o iníquo, o culpado pelos seus males existenciais. Como aqueles que se encontram sob a égide da moral do ressentimento negam incondicionalmente os signos da beleza e da saúde vital, eles elaboram uma compreensão dicotômica da realidade, na qual tudo aquilo que é associado ao corpo e ao mundo material, por estar sujeito ao acaso e ao jogo de transformação, é considerado como inferior, elegendo assim uma esfera suprassensível como verdadeira morada do ser. O devir, na perspectiva do homem ressentido, é interpretado como um evento negativo e triste, recebendo da parte desse indivíduo decadente a mais completa aversão. Essa atitude decorre da incapacidade do tipo fraco de aceitar a mutabilidade contínua e necessária da realidade, de maneira que ele vislumbra então a ideia da existência do mundo suprassensível, puramente inteligível, como dimensão pura, livre de qualquer acidente ou transformação. 147 Uma vez que o corpo se encontra sujeito aos efeitos cíclicos da natureza, o indivíduo elege a alma como a sua parte constituinte que permanecerá existindo numa outra vida, considerada como a verdadeira realidade. Podemos dizer que a elaboração dessa compreensão dualista do mundo contém elementos do olhar ressentido sobre a vida, uma vez que o “homem decadente”, por ser incapaz de conviver com a ideia de finitude do mundo, acima de tudo anseia pela permanência dos aspectos que, segundo sua crença, não sofreriam a ação transformadora do tempo. Como o seu corpo, material, é por natureza corruptível, o “homem decadente” postula suas aspirações superiores no plano metafísico, considerando que os elementos sutis que lhe constituem estão livres da ameaça da decomposição. Aliás, a valoração desse tipo de indivíduo, em nome de uma pretensa dignidade moral da condição humana, considera que seria uma contradição que a vida do indivíduo se restringisse apenas ao momento da existência física, postulando a existência do indivíduo enquanto ente suprassensível, para que a aventura humana na Terra, com os seus constantes percalços, sejam adequadamente justificados. Para que a condição humana tenha algum sentido, aquilo que ele possui de excelente e puro deve permanecer, transferido no além-vida para uma dimensão postulada também como perfeita. 4. Considerações Finais Neste artigo vimos de que maneira dois grandes pensadores fundamentais para a constituição da intelligentsia moderna, Dostoiévski e Nietzsche, apresentam contribuições valiosíssimas para o desenvolvimento da “psicologia das profundezas” e a análise criteriosa dos processos de erupção do ressentimento na vida humana. Como contraponto a tal estado de degradação existencial, tanto Dostoiévski como Nietzsche apresentam a personalidade caracterizada pela “idiotia”, um estado psíquico que rompe sutilmente qualquer paradigma civilizatório regido pelos signos da moral e da culpabilidade. Jesus de Nazaré, unificado imanentemente ao âmbito divino, representou em sua sublime existência a “idiotia” como uma expressão sagrada transfiguradora de toda vida regida pela normatividade. Séculos e séculos de edificação de uma civilização ressentida que se revelou, de um modo geral, incapaz de vivenciar plenamente a doutrina evangélica de Jesus em sua plenitude. Contudo, a vitória da beatitude sobre toda imprecação reativa contra a vida é uma das mais extraordinárias manifestações do amor evangélico de Jesus, cuja obra sagrada, a despeito de todos os acréscimos e decréscimos anódinos operados pelos teólogos, serve de exemplo para todos aqueles 148 que se inspiram na prática evangélica do Nazareno como uma interlocutora eficaz na ação religiosa de estabelecimento do júbilo sagrado na vida. Referências AZEREDO, Vânia Dutra de. Nietzsche e a dissolução da Moral. São Paulo: Discurso Editorial, 2000. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense, 2010. BENJAMIN, Walter. “O Idiota de Dostoiévski” In: Escritos sobre mito e linguagem. Trad. de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2011, p. 75-80. BÍBLIA DE JERUSALÉM. Direção Editorial de Paulo Bazaglia. São Paulo: Paulus, 2002. DANTE ALIGHIERI. A Divina Comédia. Trad. de Ítalo Eugênio Mauro. 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Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 14). 2 Vejamos o comentário de René Girard sobre Nietzsche e sua descoberta da obra de Dostoiévski: “Podese imaginar sua emoção quando o acaso de uma vitrine de livraria colocou em suas mãos um exemplar de Memórias do Subsolo. Reconheceu nelas uma pintura magistral daquilo que chama de ressentimento” (GIRARD, 2011b, p. 67). Esse episódio extraordinário para o delineamento da psicologia do ressentimento em Nietzsche através da poderosa influência da obra de Dostoiévski é narrado na carta de 23 de fevereiro de 1887 a Peter Gast, compilada no Vol. VIII da Kritische Studienausgabe sämtlicher Briefe (KSB), p. 27-28. 3 Acerca da experiência da extramoralidade própria da vivência infantil, podemos estabelecer comparações com duas circunstâncias do mundo antigo: 1) Na narrativa evangélica sobre Jesus: “Traziam-lhe até mesmo as criancinhas para que as tocasse; vendo isso, os discípulos as reprovavam. Jesus, porém chamou-as, dizendo: ‘Deixai as criancinhas virem a mim e não as impeçais, pois delas é o Reino de Deus. Em verdade vos digo, aquele que não receber o Reino de Deus como uma criancinha, não entrará nele” (Lucas 18, 15-17); 2) No relatosobre a vida de Heráclito de Éfeso apurado por Diógenes Laêrtios: perguntado por seus conterrâneos por qual motivo ele brincava com as crianças, ele retrucara energicamente se não era melhor brincar com as crianças do que fazer política com os canalhas (Cf. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, IX, Cap. 1, § 3). 150 4 Benjamin apresenta um valioso comentário que salienta tal questão: “A sua mais perfeita modéstia, sua humildade mesmo, faz com que esse homem permaneça inteiramente inabordável, e sua vida irradia uma ordem, cujo centro é sua própria solidão, amadurecida a ponto de desaparecer. Com isso ocorre, de fato, algo muito estranho: por mais distantes que possam estar em relação a ele, todos os acontecimentos são atraídos para sua órbita, e é esse gravitar de todas as coisas e pessoas na direção de um único ser que constitui o sentido do livro” (BENJAMIN, 2011, p. 77). 5 Pareyson argumenta: “Esse é, portanto, o desígnio de Dostoiévski ao criar a extraordinária, enigmática e dificílima figura do príncipe Míchkin: representar um homem inteiramente bom, com a plena consciência do risco do cômico, que parece inerir necessariamente a tal empresa, e, ao mesmo tempo, com o deliberado propósito de não cair nele. A solução que Dostoiévski encontrou para este árduo problema – solução genial no plano artístico, mas de uma incomparável profundidade nos planos religioso e filosófico – foi o único modo de não cair no cômico, ou seja, de não criar um novo Dom Quixote: fez do príncipe Míchkin o símbolo do Cristo” (PAREYSON, 2012, p. 109). 6 “Do ponto de vista da lógica comum da vida, todo o comportamento e todas as emoções do Príncipe Míchkin são inconvenientes e extremamente excêntricas” (BAKHTIN, 2010, p. 200). 7 “O Idiota, romance que Dostoiévski queria luminoso, revela-se o mais negro de todos, o único que termina com uma nota de desespero. Esforço supremo em criar uma perfeição puramente humana e individualista, o romance volta-se, em suma, contra sua própria ideia” (GIRARD, 2011b, p. 75). 8 Vejamos o comentário de Thomas Mann no ensaio “Dostoiévski, com moderação”: “Os paradoxos sofridos que o “herói” de Dostoiévski lança contra os seus adversários positivistas, no entanto, por mais anti-humanas que possam soar, são ditos em nome da humanidade e por amor a ela, em favor de uma nova humanidade mais profunda e não retórica, que passou por todos os infernos, do sofrimento e do conhecimento” (MANN, 2011, p.132-133). 9 “A divergência entre os dois aspectos do príncipe, a saber, por um lado, a doença, que o torna tão ingênuo e desarmado, e, por outro lado, sua concentração espiritual, que o torna tão elevado e superior, atesta não só a compatibilidade desses aspectos, mas a sua indissociabilidade, e indica, em tal indissociabilidade, o próprio significado da figura do príncipe, isto é, a sua natureza simbólica. A vida do príncipe Míchkin tem, de fato, dois aspectos: por um lado é uma vida terrestre, uma vida extraordinária, imprevisível, mas completamente humana; por outro lado, tem uma ressonância ultraterrena porque, em todos os seus eventos, se bem que mínimos e irrelevantes, alude a um sentido ulterior e remete a um superior” (PAREYSON, 2012, p. 110). 10 Vejamos o seguinte trecho dos Evangelhos: “Traziam-lhe até mesmo as criancinhas para que as tocasse; vendo isso, os discípulos as reprovavam. Jesus, porém chamou-as, dizendo: ‘Deixai as criancinhas virem a mim e não as impeçais, pois delas é o Reino de Deus. Em verdade vos digo, aquele que não receber o Reino de Deus como uma criancinha, não entrará nele” (Lucas 18, 15-17). 11 Nietzsche demonstra continuamente uma grande aversão pela obra de Renan, conforme podemos ver em Crepúsculo dos Ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, § 2, onde Nietzsche diz: “Renan – Teologia, ou a corrupção da razão pelo pecado original”. Todavia, é justo ressaltar que Nietzsche reflete nas suas críticas tardias ao Cristianismo alguns pontos cruciais da historiografia renaniana, mas é justamente essa fixação do historiador francês pelas categorias de “herói” e “gênio”, esses grosseiros erros do “bufão” in psychologicis (O Anticristo, § 29), que motivam as irônicas diatribes nietzschianas. Uma leitura atenta da Vida de Jesus de Renan nos permite constatar a sua extrema competência na narrativa historiográfica da gênese do movimento cristão e, mais ainda, Renan elabora uma compreensão da natureza histórica de Jesus que apresenta rupturas com o quadro teológico estabelecido, e foram essas intuições que influenciaram positivamente a formulação nietzschiana da “psicologia crística”, ainda que o filósofo tenha manifestado publicamente apenas a sua aversão aos ditos erros de interpretação de Renan. 151