SF0609 - Seleções em Folha
Transcrição
SF0609 - Seleções em Folha
Controvérsia? Na dúvida, contesto que exista sobrevida após a morte. O espírito é fugaz, e o meu protesto não se baseia nas versões da sorte. A verdade que em tempo, manifesto aceita que haja apenas um transporte do que fora da terra e agora é o resto de um corpo que partiu, sem passaporte. Pouco haverá no túmulo sombrio do ser humano que viveu desnudo, da mística ilusão, no calafrio. Só ficarão os ossos, se intocados. A carne, em seda, em túnica, em veludo, será banquete dos invertebrados. Walter Siqueira, Canto Funebre; em Fanal 9510 Se queres de sonetos ser autora e clássica, portanto, poetisa, sê, primeiro, gentil dominadora da silaba poética e precisa. Da moderna poética és cultora, mas as duas escolas têm divisa: na nova te fizeste superiora onde o soneto não se localiza. Se os versos seus dez silabas contém, estas são sempre assim acentuadas: a quarta, a sexta e a décima, por fim; ou quarta, oitava e décima também; ou só a sexta e à décima são dadas as tônicas, a dar final assim. Eu amo no Soneto a forma delicada, a cadência sutil que no verso resume quer o idílio inocente ou paixão sublimada, quer da aurora o rubor ou da noite o negrume. Um sorriso, uma dor, o aguilhão de um ciúme, vestem nítida cor, e na frase rimada, em perfeita medida há o toque de perfume que tantas vezes falta à forma liberada. José Paes, A Uma Sonetista Iniciante; em Fanal 9511 Rua Álvares Machado 22, 1o – Fone (0¨11) 6202-0193 01501-030 – São Paulo, SP Dorothy Jansson Moretti, Soneto; em Fanal 9510 Breve: www.haicu.sf.nom.br Ano X, Nº 9 – 2006, SETEMBRO o Assinatura até Dezembro de 2007: 15 selos postais de 1 Porte Nacional Não-comercial (R$ 0,55) ou informe seu e-mail para remessa mensal grátis. Tudo o que vibra e tange ao som dos universos transporta-se ao vigor dos seu quatorze versos, na harmonia que envolve essa eterna canção. E o Soneto, paixão do vate enamorado, há de ser para sempre a voz do seu chamado, o mais belo instrumento à sua inspiração. Una mora de Trípoli tenía una perla rosada, una gran perla: y la echó con desdén al mar un día: – “¡Siempre la misma! ¡ya me cansa verla!” Pocos años después, junto a la roca de Trípoli... ¡la gente llora al verla! Así le dice al mar la mora loca: – “¡Oh mar! ¡oh mar! ¡devuélveme mi perla!” La Perla de la Mora José Julián Martí 1853-1895, Versos en La Edad de Oro, José Martí Poesía Completa, Tomo II, Editorial Letras Cubanas, La Habana, Cuba, 1985 Só trabalho que consome pouca fala e muita ação, tira a tragédia da fome do palco de uma nação. Nas ilusões delirantes do amor que vem sem alarde, o dia amanhece antes, e a noite dorme mais tarde! O meu sonho não escondo: é transformar as veredas que a vida me vem propondo nas mais belas alamedas! Ocaso, declina o dia e vago rumor de prece sufraga a melancolia da tarde que empalidece! Oh! – literato, posudo, pascácio, de nomeada, quem pensa, que sabe tudo, é, um fátuo, não sabe nada!... Meu coração vai à luta indefeso e apaixonado como se fosse um recruta pisando em campo minado. Aurolina Araújo de Castro, 9511 Fanal: Rua Álvares Machado 22, 1o 01501-030 – São Paulo, SP Eduardo Toledo, 0608 Trovia: [email protected] Ida Dutra Sacramento, 0608 Trovalegre: Caixa Postal 181 37550-000 – Pouso Alegre, MG Neide Freire, 0609 O Patusco: Caixa Postal 95 61600-000 – Caucaia, CE Pedro Grilo, 0509 O Pitiguari: Rua Guanabara 542, 59014-180 – Natal, RN Therezinha Diegues Brisolla, 0608 Koisalinda: Rua Liberdade 182 14085-250 – Ribeirão Preto, SP Pura questão de alvedrio na hora veraz do aperto, Liberdade – um desafio entende-la com acerto. Chega às raias da demência, que o ódio e a ganância encerra, na Terra tanta violência por um punhado de terra!... Mais que a bomba que estilhaça é cruciante a mortalha do silêncio que perpassa sobre um campo de batalha. Há um delírio silencioso, que envolve a vegetação, e acorda o solo sequioso quando chove no sertão. Frustrando a ilusão que eu tinha, enredei-me na esparrela, minha terra não é minha sou eu que pertenço a ela. Graças a Deus – e a poesia, já bem próximo do fim, posso dizer que hoje em dia estou mais perto de mim. Newton Meyer de Azevedo, de seu livrete Trovas do Ano 2005 TEMAS DA SAZÃO PRIMAVERA – Ao se pôr o sol no Dia do Fazendeiro dança no paiol. No quintal vizinho, Amauri do Amaral Campos QUIDAIS DE PRIMAVERA Plantas de gladíolo. Gatos em amor num dueto prolongado. Menino assustado. Praça ensolarada! No Dia da Juventude uns jovens estudam! Cerol no linhão mortal, lá vai papagaio soltar pivetão. Desfraldada ao vento, a bandeira do Brasil. Dia da Independência. No pátio escolar crianças comemoram o Dia da Árvore. Analice Feitoza de Lima Cecy Tupinambá Ulhôa Edel Costa Fernando L. A. Soares Flávio Ferreira da Silva Helvécio Durso flores alvas, flores róseas. HAICUS Cantos e murmúrios, entre as pedras do riacho. Rio de primavera! C Reflexos de sol, no rio de primavera, Amália Marie Gerda Embaixo da ponte, o rio de primavera aumenta seu leito. O EM FOLHA brilham sobre as águas. H Pétalas flutuam no rio de primavera. Lembranças da flor. H Água em calmaria. No rio de primavera chalana subindo. A Águas coloridas. Um rio de primavera transportando flores. C Céu de nuvens baixas. Vem a chuva-de-caju! Nordestinos dançam. E Chuva-de-caju. Os catadores festejam a nova colheita. O Amália Marie Gerda Amauri do Amaral Campos Analice Feitoza de Lima Angélica Villela Santos Angélica Villela Santos Antônio Seixas A garça voando água escorrendo nas pedras rio de primavera. H Prosa animada, barbearia lotada. Dia do Barbeiro. O As gotas escorrem nas frutas coloridas. Chuva de caju. O Rama flutuando acolhe casal de pássaros. Rio de primavera. E Água benfazeja alimenta a plantação. Chuva de caju. H Gorjeta polpuda nas mãos do profissional. Dia do Barbeiro. W Antônio Seixas Cecy Tupinambá Ulhôa Cecy Tupinambá Ulhôa Cecy Tupinambá Ulhôa Darly O. Barros Darly O. Barros Darly O. Barros Com flores boiando, Empunha a navalha Flores carregadas, Águas perfumadas, com um sorriso nos lábios: com pente, tesoura e escova. curso entre luzes e sombras. margens plenas de açucenas, rio de primavera. O Dia do Barbeiro. W Fundo de quintal... Chuva de cajus maduros, colorem o chão! W Exerce sua arte passam as águas tranqüilas: Na sala espelhada, sorrisos, jornais, café... Dia do Barbeiro! H Dia do Barbeiro. H Rio de primavera.. W rio de primavera. H Djalda Winter Santos Djalda Winter Santos Elen de Novais Felix Elen de Novais Felix Flávio Ferreira da Silva Manoel F. Menendez Maria App. Picanço Goulart Dia do Barbeiro. Uma fila se formando. Corte mais barato. W As flores boiando no rio de primavera perfumam as águas. A Garota se banha no rio de primavera à luz do luar. H Chuva-de-caju. Entre as ramas do arvoredo frutos amarelos. O Sementes caindo no rio de primavera. Peixes saltitando. W Rio de primavera. Uma garça alça vôo lá na outra margem. E Rio de primavera. Refletem em suas águas flores da barranca. O Mª Marlene N. Teixeira Pinto Renata Paccola Renata Paccola Roberto Resende Vilela Roberto Resende Vilela Sérgio F. Pichorim Sérgio F. Pichorim 1. Preencher até três haicus, (veja quigos ao lado, à escolha) em uma única ½ folha de papel, com nome, endereço e assinatura. Despachá-la normalmente pelo correio com nome e endereço do remetente, até o dia 30 do respectivo mês. Pode ser usado também sinônimos corretos dos respectivos quigos – Remeter até 30.10.06, quigos à escolha: Acará-bandeira, Férias de verão, Gerânio. palavras da estação, ou seja, sinônimos referentes à natureza. 2. Posteriormente o haicuísta receberá, devidamente numerada, O haicu deve ser feito no momento da ocorrência, dando a relação dos haicus desse mesmo mês (sujeita a possíveis falhas destaque ao quigo (palavra da sazão), seu único principal motivo: no texto e sem a devida correção em tempo hábil), afim de é um instantâneo filmado em palavras. Quanto mais excluirmos selecionar 10% deles. pensamentos, explicações, conclusões, opiniões, adjetivos, 3. Sete dias após remessa do rol para escolha, o haicuísta alterações nos seus substantivos etc., mais aperfeiçoaremos sua Enviar para: Manoel Fernandes Menendez enviará seus votos numa folha, para apuração do resultado. A feitura na metragem 5-7-5 ou menos. Fazer este fácil entendido, folha conterá o nome do haicuísta selecionador (em cima e à só praticando. Não há outra opção: comece já! Praça Marechal Deodoro 439, Apto. 132 direita do papel) e, em seguida, um abaixo do outro, o número e o Num Quadro Final (análise dos votantes e votados do mês), à 01150-011 - São Paulo, SP texto de cada haicu assim escolhido. Não se escolherá haicus de parte, orientaremos sobre os tercetos de Haicus em Folha, visando ou própria lavra, pois serão anulados, bem como os que forem o aperfeiçoamento quanto a melhor percepção dos mesmos. [email protected] destinados a haicus cujo autor deixar de votar. Vamos lá, coragem! O hocu era e é a partida para o encadeamento de estrofes conhecido como haicai, e nada tem a ver com os demais tercetos ou duetos deste. O hocu (literalmente estrofe inicial), devido a sua função no encadeamento, era e é um terceto aberto. Considero o haicu com seus mesmos princípios, e contendo um corte no texto, a mais antiga poesia moderna do mundo. 4. SELEÇÕES MENSAIS FAZER E ENVIAR ATÉ TRÊS HAICUS Remeter até 30.09.06, quigos à escolha: Flor-da-noite, Presépio, Pulga. O resultado (somatório de todos os votos assim enviados), será dado por volta do dia 10 do mês seguinte. Na festa do brejo o corruíra saltita provocando o sapo. T R E V O S À Ciclamens, eretos, M O D A O C I D E N T A L E No meio do verde Na tela do espaço primavera em essência. desmanchando-se arcos tortos. Jatobá em flor. Arco-íris vernal. numa prece, erguendo as pétalas, espalham beleza. T R E V O S No colo da mãe P E R S O N A G E M Desfile e jogos. Jatobá florido – No Dia da Juventude, um louvor à Natureza: qual neném, mata saudades... só festa e alegria. encanta quem passa. Dia da Juventude. Alba Christina Amália Marie Gerda Amauri do Amaral Campos Analice Feitoza de Lima Anita Thomaz Folmann Cecy Tupinambá Ulhôa Djalda Winter Santos No velho telhado a volúpia sem pudor. Um amor felino! Lustrosa beleza das bagas de jatobá enfeitando a mesa. Faz mago pincel, de um jacarandá em flor, árvore vergel. Para mim, poesia. Alimento para a abelha. Uma flor de pereira. Planta magnífica, o jatobá majestoso. Enfeita a floresta. É Dia da Juventude. Na minha terceira idade, recordo saudoso. No Dia do Ancião há festejos na praça. Sorrisos remoçam. Elen de Novais Felix Fernando L. A. Soares Fernando Vasconcelos Franciela Silva Haroldo Rodrigues de Castro Helvécio Durso Héron Patrício Papelada à vista! No Dia da Secretária nem mesmo um abraço. O bonito choro Tico-tico no fubá, alegra vovô... Vernal arco-íris vejo da minha janela ninho de emoções! Jovens! Drogas, Nunca! No Dia da Juventude, manchete em jornais. Tome uma atitude, é o Dia da Juventude! deixe de ser rude. Grande jatobá! árvore leguminosa, também jataí. Sonhos e esperanças no Dia da Juventude: – Ver o mundo em paz! Humberto Del Maestro João Batista Serra Jorge Picanço Siqueira Leonilda Hilgenberg Justus Marcelino Rodrigues de Pontes Maria App. Picanço Goulart Maria Madalena Ferreira Ipê amarelo, ouro brasileiro. Flor do cerrado. Verde. Diabo verde. A Amazônia devastada perde-se no dia. Menino cobiça as amoras bem do alto. Cai ferido, chora. Beijando a roseira borboleta esvoaçando se oculta no espaço. Natureza em flor. Casamento da raposa. Arco-íris vernal. Celeste homenagem ao Dia da Juventude: no céu lua nova. Tumbérgia azul sobe, sobe, até o céu encontra os anjos. Nadyr Leme Ganzert Nilton Manoel Teixeira Olga Amorim Olga dos Santos Bussade Roberto Resende Vilela Santos Teodósio Suely da Silva Mendonça Por todos os lados asas perseguindo cores – tarde de setembro. Manhã de primavera – o inhame desenrolando duas folhas ao sol. O canto das águas no leito que se avoluma – rio de primavera. Sol de primavera – o pássaro abrindo as asas sossegadamente. Cortina de chuva – a primavera caindo atrás da vidraça. Campo queimado – árvore de um só galho um cacho florido. Chuva de primavera – apoiando-se um no outro seguem dois velhinhos. Teruko Oda, de Janelas e Tempo, 2003; Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda., Telefax: (0¨11) 5082-4190, E-mail: [email protected] T E S T E M U N H A O C U L A R Hilary Stevens, em Ellery Queen – Mistério Magazine, março de 1977 Dawg me viu fazendo aquilo. Eu nem sabia que ele estava por perto quando apanhei o rifle de Pete e puxei o gatilho. Não durou mais que um segundo. Pete não teve tempo nem de sair da cadeira. Ele disse “Não, Sam!”, e caiu no chão da cabana. Foi então que ouvi um suave rosnado atrás de mim. Virei-me e vi Dawg parado na frente da porta aberta, com a lua brilhando em seu pêlo prateado. Pete dizia que ele era meio cão e meio lobo, e acho que sua aparência confirmava essa afirmação. Olhos cinzentos, presas brilhantes, e uma boca que às vezes parecia sorrir. Mas nem sempre um sorriso amistoso. Pete encontrara o animal quatro anos antes, um filhote abandonado que se apegava a uma vida dura e difícil. Talvez tivesse sido abandonado pela mãe. Ou talvez a mãe tivesse morrido. De qualquer modo, Pete recolheu-o e os dois tornaram-se ótimos amigos. Eles não dependiam um do outro. Às vezes Dawg ausentava-se durante dias, mas isso não preocupava Pete, principalmente porque o animal voltava sempre bem disposto e bem alimentado. Ele sabia se cuidar, instintivamente. Ou talvez a mãe dele tivera tempo para dar-lhe algumas lições antes de deixa-lo só. Mas Pete gostava muito do animal, e às vezes, durante alguma ausência mais prolongada de Dawg, saía andando pela montanha, na tentativa de avistar algum ponto cinza-prateado movendose na paisagem. E quando Pete sentia-se sociável e me convidava para jogar cartas em sua cabana, sempre que ouvia algum uivo na noite ele erguia a cabeça, atento, para dizer em seguida. – Não, esse não é o Dawg. Mas ele pode voltar a qualquer momento, agora. Parece que Dawg também gostava de Pete. Uma das histórias preferidas do velho era sobre uma vez em que fora caçar nas montanhas, quando caiu e torceu o tornozelo, o que tornou sua volta temporariamente impossível. Dawg encontrou Pete, e durante os três dias seguintes levou esquilos e coelhos recém-caçados para seu companheiro ferido. – Ele me trazia inclusive gravetos secos pra fazer a fogueira – comentava Pete sempre que contava a história, coisa que aliás ele fazia todas as vezes que me encontrava. – Esse bicho é muito inteligente, Sam. Muito mais inteligente que a maioria das pessoas que conheço. Ele dizia isso e olhava pra mim de um modo significativo. Pete estava sempre dando indiretas a meu respeito; ele jamais fora com minha cara. Mas a culpa era minha. Eu nunca deveria ter revelado o motivo que me levara a morar na montanha. Nunca deveria ter dito que estava enojado de uma sociedade que treinava seus homens para serem soldados e depois rejeitava-os. – Mate os amarelos! Mate os amarelos! – eles diziam pra gente. Fiz o que eles mandaram e eles me puseram na cadeia. – Você matou os amarelos errados, Sam – foi tudo que eles disseram. Assim, quando fui libertado, vim morar na montanha, onde eu poderia fazer o que quisesse sem precisar ouvir nada de ninguém. Nada a não ser as indiretas de Pete, que com o tempo começaram a me irritar cada vez mais. Eu devia ter-me afastado do velhote. Não sei por que não fiz isso. A última observação que Pete fez foi a pior de todas. Estávamos jogando cartas, e eu estava reclamando de minha má sorte naquela mão. De repente, ele olhou pra mim como se estivesse diante de um peixe morto há três dias e disse: – Você está muito deprimido hoje, Sam. Acho que está precisando é de uma mulher... pra atirar nela pelas costas. Foi como se ele tivesse apertado algum botão escondido. Fui envolvido por antigos sentimentos, e não precisei pensar em nada. Fiz tudo automaticamente. O rifle de caça de Pete estava logo ali. Bem à mão. Depois fiquei um pouco surpreso. Eu não queria realmente matá-lo, mas não me sentia particularmente triste por isso. E o que está feito está feito. Assim, quando Dawg começou a rosnar para mim, virei o corpo e apontei o rifle para ele. Mas no instante seguinte ele já não estava mais lá, e a bala cravou-se no chão. Corri quase um quilometro até minha cabana – coisa difícil naquela altitude – e estava exausto quando me joguei sobre a cama. Ninguém mais além de nós dois vivia na montanha, e se alguém descobrisse que Pete fora morto a tiros eu seria considerado o Suspeito Número Um. Pensei simplesmente em enterra-lo. Ninguém iria notar sua falta por algum tempo. Ele tinha ido à cidade recentemente, para comprar as provisões de que precisava, e ninguém esperava vê-lo de novo antes do início do outono. Contudo, mais cedo ou mais tarde alguém começaria a fazer perguntas. Se eu dissesse que Pete morrera naturalmente, eles diriam que eu deveria tê-los informado e poderiam querer exumá-lo. E aí ficariam sabendo de tudo. E eu acabaria apodrecendo em alguma cadeia outra vez. Quanto mais pensava no assunto, mais me parecia claro que eu tinha de sair daquele lugar. Poderia ir para o México. Lá estaria seguro. Poderia viver de caça pelo caminho, e levaria a comida enlatada que tinha na cabana se tivesse de ficar um ou dois dias sem caça. Revirei minha despensa. Duas latas de feijão e uma lata de sopa de carne de vaca. Eu já havia planejado ir à cidade naquela semana... Aliás, eu devia ter ido junto com Pete, mas na hora não tive vontade. Alem do que eu não precisava de quase nada nessa época do ano: só de munição. Eu vivia da caça. Ora, inferno! Eu tinha de ir mesmo só com os feijões e a sopa. Joguei as latas na mochila, esvaziei uma caixa de balas no bolso, peguei meu rifle e saí pela porta. Dawg estava lá, parado na clareira, a mais ou menos 50 metros da cabana. Ele parecia um cão-fantasma sob a luz da lua, e mesmo àquela distância eu podia ouvir o seu rosnado baixo e ameaçador. Fiquei chocado. Por alguns momentos cheguei a esquecer que tinha uma arma na mão. Depois abri fogo e errei. Mas o maldito animal não fugiu. Ele dançava na minha frente como se estivesse participando de uma espécie de jogo. Atirei mais duas vezes, mas errei novamente. Que vá para o inferno, pensei. Não faz sentido ficar desperdiçando balas. Eu podia esperar até de manhã. Durante o dia seria mais fácil acerta-lo; isso se já não tivesse ido embora. Voltei para a cabana e revirei o lugar até encontrar meia garrafa de uísque. Era um uísque ordinário, quase álcool puro, mas eu precisava de um trago. Minhas mãos tremiam quando levei a garrafa à boca. Fiz alguns cálculos. Eu levaria dois, talvez três dias para sair do Estado se fosse pelas montanhas. Depois eu poderia continuar de carona, e chegaria ao México em uma semana. Ninguém iria preocupar-se com Pete durante esse tempo. Então eu estaria seguro; não tinha por que me preocupar. Esvaziei a garrafa de uísque e me senti bem melhor. Agora, pensei, vou dormir um pouco. Mas eu mal fechara os olhos quando ouvi um uivo medonho vindo de fora, de um lugar bem próximo da cabana, e por um instante senti todos os pêlos do corpo eriçados. Depois consegui me controlar. – Ele não vai continuar com isso a noite toda – murmurei, enterrando a cabeça no travesseiro. Mas não foi suficiente para abafar o som dos uivos de Dawg. Finalmente decidi acabar com a coisa. Apanhei o rifle outra vez e saí, cambaleando um pouco. Era o efeito da bebida, mas eu disse a mim mesmo que era falta de sono. Os uivos pararam quando passei pela porta, e pouco depois vi o animal correndo pela clareira. Depois ele parou e olhou para mim, me desafiando. Ergui o rifle e fiz fogo. O cão dançou e eu errei o alvo. Atirei outra vez e mais outra, e quanto mais atirava mais eu perdia a cabeça. Finalmente levei a mão ao bolso pra pegar mais algumas balas e percebi que usara toda a minha munição. Senti-me doente. Que coisa estúpida fui fazer! De alguma forma, Dawg sabia que eu não tinha mais balas, pois foi-se aproximando devagar, até ficar a não mais que dez metros de mim, sorrindo. Eu podia ver claramente seus olhos na luz do luar: havia ódio neles. Eu já tinha visto ódio nos olhos de muita gente, principalmente durante a guerra, mas aquilo num animal era diferente, era muito mais aterrorizante. Recuei até a cabana e tranquei a porta. Mas não pude dormir. Eu estava muito doente. Quando o sol surgiu no alto da montanha, senti uma violenta ressaca e muita sede. Não havia água na cabana. O riacho corria a mis ou menos cem metros dali. Olhei para fora e vi Dawg deitado na clareira, vigilante. Eu não tinha ilusões de passar por ele desarmado. Eu já vira Dawg acabar com um alce quase adulto sem nenhum esforço. Abri a lata de sopa e experimentei uma colherada. Era sopa concentrada, muito salgada, e ia apenas aumentar minha sede. Sentei-me, e comecei a pensar na minha situação. Eu não tinha água, apenas duas latas de feijão. Dawg tinha água. Ele poderia até caçar um coelho ou um esquilo, enquanto me mantinha sob vigilância. Se aquilo ia ser um teste de resistência, Dawg tinha todas as chances a seu favor. Não havia nada que eu pudesse fazer a não ser esperar. Dois dias passaram, talvez três. Era difícil saber ao certo. Eu só conseguia dormir durante curtos períodos, e depois de algum tempo não sabia mais se estava dormindo ou acordado. Pensei ter visto Dawg na janela umas duas vezes, e acabei atirando uma bota na vidraça. O ruído do vidro estilhaçado devolveu-me à realidade. Aquilo tinha sido outra tremenda estupidez. Era quase o mesmo que deixar a porta aberta para ele. Desesperado, quebrei umas das cadeiras e revistei a cabana procurando alguns Sabe o que o Jean Valjean, de Os Miseráveis, disse pro Inspetor Javert? – Larga do meu pé, chulé! pregos para consertar a janela. Foi então que achei a bala. Eu devia tê-la derrubado quando despejei a caixa no bolso, ou talvez já estivesse perdida há mais tempo. O importante era que eu tinha uma bala, e Dawg pensava que era seguro aproximar-se de mim. Carreguei o rifle e segurei-o atrás das costas quando passei pela porta. Dawg estava a uns cinco metros de distância, rosnando. Quando viu a arma, ele saiu correndo, mas era tarde demais. Acertei-o no flanco esquerdo. Dawg soltou um ganido agudo e começou a mancar. Quando chegou à clareira parou e olhou para mim. Agora ele sabia que eu não tinha mais munição. Dawg voltou mancando em minha direção, rosnando cada vez mais alto, e parou a mais ou menos três metros da porta. Percebi que meu tiro atingira alguma artéria, pois o animal sangrava abundantemente. O sol se punha no oeste, e calculei que Dawg não viveria até a manhã seguinte. Veio a noite, e de alguma forma consegui dormir. Era minha primeira noite de sono sem interrupções desde que eu matara Pete. Quando acordei, o sol já estava acima das árvores. Olhei para fora e fiquei surpreso ao perceber que Dawg fora embora. Ele sabia que sua hora havia chegado, pensei, e acabaria voltando à floresta para morrer sozinho. Todos os animais selvagens fazem isso. Depois de me certificar de que Dawg tinha mesmo ido embora, saí da cabana e fui até o riacho. Foi uma caminhada lenta e difícil. Eu estava fraco, meus joelhos tremiam, mas sabia que ficaria bem com um pouco de água e alguma comida. Creio que bebi uns dez litros de água, e me sentia melhor a cada gole. Agora o que eu tinha a fazer era ir até a cabana de Pete, pegar um pouco da sua comida, sua arma, sua munição, e dar o fora dali. Afinal, eu ia conseguir. Comecei a andar, quase tonto de alívio. Mas quando abri a porta de Pete encontrei o xerife inclinado sobre o cadáver. – O que aconteceu? – perguntei estupidamente. – Alguém matou Pete – ele respondeu. – Parece que aconteceu há alguns dias. Acho que foi morto com o próprio rifle... as impressões digitais ainda devem estar no gatilho. Ele olhou para mim e continuou: – Eu vou querer tirar suas impressões digitais. Sam. É melhor vir comigo. Dei um pulo desesperado em direção ao rifle de Pete, mas acabei encontrando o cano do revolver do xerife à minha frente. – Não faça nenhuma besteira, Sam. Depois que descemos uma parte da montanha e chegamos ao lugar onde o xerife estacionara o jipe, eu fiz uma pergunta. – Como é que o senhor veio parar aqui? Ele olhou para mim e respondeu: – Encontrei Dawg morto na frente do bar, hoje de manhã. Eu pensei em avisar o Pete. E depois de algum tempo murmurou, quase que para si mesmo: – Estranho, um animal como o Dawg... – Como assim? Um animal como ele ir morrer na cidade. Isso não é natural. Por que terá feito uma coisa dessas?