SF0609 - Seleções em Folha

Transcrição

SF0609 - Seleções em Folha
Controvérsia? Na dúvida, contesto
que exista sobrevida após a morte.
O espírito é fugaz, e o meu protesto
não se baseia nas versões da sorte.
A verdade que em tempo, manifesto
aceita que haja apenas um transporte
do que fora da terra e agora é o resto
de um corpo que partiu, sem passaporte.
Pouco haverá no túmulo sombrio
do ser humano que viveu desnudo,
da mística ilusão, no calafrio.
Só ficarão os ossos, se intocados.
A carne, em seda, em túnica, em veludo,
será banquete dos invertebrados.
Walter Siqueira, Canto Funebre; em Fanal 9510
Se queres de sonetos ser autora
e clássica, portanto, poetisa,
sê, primeiro, gentil dominadora
da silaba poética e precisa.
Da moderna poética és cultora,
mas as duas escolas têm divisa:
na nova te fizeste superiora
onde o soneto não se localiza.
Se os versos seus dez silabas contém,
estas são sempre assim acentuadas:
a quarta, a sexta e a décima, por fim;
ou quarta, oitava e décima também;
ou só a sexta e à décima são dadas
as tônicas, a dar final assim.
Eu amo no Soneto a forma delicada,
a cadência sutil que no verso resume
quer o idílio inocente ou paixão sublimada,
quer da aurora o rubor ou da noite o negrume.
Um sorriso, uma dor, o aguilhão de um ciúme,
vestem nítida cor, e na frase rimada,
em perfeita medida há o toque de perfume
que tantas vezes falta à forma liberada.
José Paes, A Uma Sonetista Iniciante; em Fanal 9511
Rua Álvares Machado 22, 1o – Fone (0¨11) 6202-0193
01501-030 – São Paulo, SP
Dorothy Jansson Moretti, Soneto; em Fanal 9510
Breve: www.haicu.sf.nom.br
Ano X, Nº 9 – 2006, SETEMBRO
o
Assinatura até Dezembro de 2007: 15 selos postais de 1 Porte Nacional
Não-comercial (R$ 0,55) ou informe seu e-mail para remessa mensal grátis.
Tudo o que vibra e tange ao som dos universos
transporta-se ao vigor dos seu quatorze versos,
na harmonia que envolve essa eterna canção.
E o Soneto, paixão do vate enamorado,
há de ser para sempre a voz do seu chamado,
o mais belo instrumento à sua inspiração.
Una mora de Trípoli tenía
una perla rosada, una gran perla:
y la echó con desdén al mar un día:
– “¡Siempre la misma! ¡ya me cansa verla!”
Pocos años después, junto a la roca
de Trípoli... ¡la gente llora al verla!
Así le dice al mar la mora loca:
– “¡Oh mar! ¡oh mar! ¡devuélveme mi perla!”
La Perla de la Mora
José Julián Martí 1853-1895, Versos en La Edad de Oro,
José Martí Poesía Completa, Tomo II,
Editorial Letras Cubanas, La Habana, Cuba, 1985
Só trabalho que consome
pouca fala e muita ação,
tira a tragédia da fome
do palco de uma nação.
Nas ilusões delirantes
do amor que vem sem alarde,
o dia amanhece antes,
e a noite dorme mais tarde!
O meu sonho não escondo:
é transformar as veredas
que a vida me vem propondo
nas mais belas alamedas!
Ocaso, declina o dia
e vago rumor de prece
sufraga a melancolia
da tarde que empalidece!
Oh! – literato, posudo,
pascácio, de nomeada,
quem pensa, que sabe tudo,
é, um fátuo, não sabe nada!...
Meu coração vai à luta
indefeso e apaixonado
como se fosse um recruta
pisando em campo minado.
Aurolina Araújo de Castro, 9511
Fanal: Rua Álvares Machado 22, 1o
01501-030 – São Paulo, SP
Eduardo Toledo, 0608
Trovia: [email protected]
Ida Dutra Sacramento, 0608
Trovalegre: Caixa Postal 181
37550-000 – Pouso Alegre, MG
Neide Freire, 0609
O Patusco: Caixa Postal 95
61600-000 – Caucaia, CE
Pedro Grilo, 0509
O Pitiguari: Rua Guanabara 542,
59014-180 – Natal, RN
Therezinha Diegues Brisolla, 0608
Koisalinda: Rua Liberdade 182
14085-250 – Ribeirão Preto, SP
Pura questão de alvedrio
na hora veraz do aperto,
Liberdade – um desafio
entende-la com acerto.
Chega às raias da demência,
que o ódio e a ganância encerra,
na Terra tanta violência
por um punhado de terra!...
Mais que a bomba que estilhaça
é cruciante a mortalha
do silêncio que perpassa
sobre um campo de batalha.
Há um delírio silencioso,
que envolve a vegetação,
e acorda o solo sequioso
quando chove no sertão.
Frustrando a ilusão que eu tinha,
enredei-me na esparrela,
minha terra não é minha
sou eu que pertenço a ela.
Graças a Deus – e a poesia,
já bem próximo do fim,
posso dizer que hoje em dia
estou mais perto de mim.
Newton Meyer de Azevedo, de seu livrete Trovas do Ano 2005
TEMAS DA SAZÃO PRIMAVERA –
Ao se pôr o sol
no Dia do Fazendeiro
dança no paiol.
No quintal vizinho,
Amauri do Amaral Campos
QUIDAIS DE PRIMAVERA
Plantas de gladíolo.
Gatos em amor
num dueto prolongado.
Menino assustado.
Praça ensolarada!
No Dia da Juventude
uns jovens estudam!
Cerol no linhão
mortal, lá vai papagaio
soltar pivetão.
Desfraldada ao vento,
a bandeira do Brasil.
Dia da Independência.
No pátio escolar
crianças comemoram
o Dia da Árvore.
Analice Feitoza de Lima
Cecy Tupinambá Ulhôa
Edel Costa
Fernando L. A. Soares
Flávio Ferreira da Silva
Helvécio Durso
flores alvas, flores róseas.
HAICUS
Cantos e murmúrios,
entre as pedras do riacho.
Rio de primavera! C
Reflexos de sol,
no rio de primavera,
Amália Marie Gerda
Embaixo da ponte,
o rio de primavera
aumenta seu leito. O
EM FOLHA
brilham sobre as águas. H
Pétalas flutuam
no rio de primavera.
Lembranças da flor. H
Água em calmaria.
No rio de primavera
chalana subindo. A
Águas coloridas.
Um rio de primavera
transportando flores. C
Céu de nuvens baixas.
Vem a chuva-de-caju!
Nordestinos dançam. E
Chuva-de-caju.
Os catadores festejam
a nova colheita. O
Amália Marie Gerda
Amauri do Amaral Campos
Analice Feitoza de Lima
Angélica Villela Santos
Angélica Villela Santos
Antônio Seixas
A garça voando
água escorrendo nas pedras
rio de primavera. H
Prosa animada,
barbearia lotada.
Dia do Barbeiro. O
As gotas escorrem
nas frutas coloridas.
Chuva de caju. O
Rama flutuando
acolhe casal de pássaros.
Rio de primavera. E
Água benfazeja
alimenta a plantação.
Chuva de caju. H
Gorjeta polpuda
nas mãos do profissional.
Dia do Barbeiro. W
Antônio Seixas
Cecy Tupinambá Ulhôa
Cecy Tupinambá Ulhôa
Cecy Tupinambá Ulhôa
Darly O. Barros
Darly O. Barros
Darly O. Barros
Com flores boiando,
Empunha a navalha
Flores carregadas,
Águas perfumadas,
com um sorriso nos lábios:
com pente, tesoura e escova.
curso entre luzes e sombras.
margens plenas de açucenas,
rio de primavera. O
Dia do Barbeiro. W
Fundo de quintal...
Chuva de cajus maduros,
colorem o chão! W
Exerce sua arte
passam as águas tranqüilas:
Na sala espelhada,
sorrisos, jornais, café...
Dia do Barbeiro! H
Dia do Barbeiro. H
Rio de primavera.. W
rio de primavera. H
Djalda Winter Santos
Djalda Winter Santos
Elen de Novais Felix
Elen de Novais Felix
Flávio Ferreira da Silva
Manoel F. Menendez
Maria App. Picanço Goulart
Dia do Barbeiro.
Uma fila se formando.
Corte mais barato. W
As flores boiando
no rio de primavera
perfumam as águas. A
Garota se banha
no rio de primavera
à luz do luar. H
Chuva-de-caju.
Entre as ramas do arvoredo
frutos amarelos. O
Sementes caindo
no rio de primavera.
Peixes saltitando. W
Rio de primavera.
Uma garça alça vôo
lá na outra margem. E
Rio de primavera.
Refletem em suas águas
flores da barranca. O
Mª Marlene N. Teixeira Pinto
Renata Paccola
Renata Paccola
Roberto Resende Vilela
Roberto Resende Vilela
Sérgio F. Pichorim
Sérgio F. Pichorim
1. Preencher até três haicus, (veja quigos ao
lado, à escolha) em uma única ½ folha de
papel, com nome, endereço e assinatura.
Despachá-la normalmente pelo correio com
nome e endereço do remetente, até o dia 30 do
respectivo mês. Pode ser usado também
sinônimos corretos dos respectivos quigos –
Remeter até 30.10.06, quigos à escolha: Acará-bandeira, Férias de verão, Gerânio.
palavras da estação, ou seja, sinônimos
referentes à natureza.
2. Posteriormente o haicuísta receberá, devidamente numerada,
O haicu deve ser feito no momento da ocorrência, dando
a relação dos haicus desse mesmo mês (sujeita a possíveis falhas
destaque ao quigo (palavra da sazão), seu único principal motivo:
no texto e sem a devida correção em tempo hábil), afim de
é um instantâneo filmado em palavras. Quanto mais excluirmos
selecionar 10% deles.
pensamentos, explicações, conclusões, opiniões, adjetivos,
3.
Sete dias após remessa do rol para escolha, o haicuísta
alterações nos seus substantivos etc., mais aperfeiçoaremos sua
Enviar para: Manoel Fernandes Menendez
enviará seus votos numa folha, para apuração do resultado. A
feitura na metragem 5-7-5 ou menos. Fazer este fácil entendido,
folha conterá o nome do haicuísta selecionador (em cima e à
só praticando. Não há outra opção: comece já!
Praça Marechal Deodoro 439, Apto. 132
direita do papel) e, em seguida, um abaixo do outro, o número e o
Num Quadro Final (análise dos votantes e votados do mês), à
01150-011 - São Paulo, SP
texto de cada haicu assim escolhido. Não se escolherá haicus de
parte, orientaremos sobre os tercetos de Haicus em Folha, visando
ou
própria lavra, pois serão anulados, bem como os que forem
o aperfeiçoamento quanto a melhor percepção dos mesmos.
[email protected]
destinados a haicus cujo autor deixar de votar.
Vamos lá, coragem!
O hocu era e é a partida para o encadeamento de
estrofes conhecido como haicai, e nada tem a ver
com os demais tercetos ou duetos deste. O hocu
(literalmente estrofe inicial), devido a sua função no
encadeamento, era e é um terceto aberto. Considero
o haicu com seus mesmos princípios, e contendo um
corte no texto, a mais antiga poesia moderna do
mundo.
4.
SELEÇÕES MENSAIS
FAZER E ENVIAR ATÉ TRÊS HAICUS
› Remeter até 30.09.06, quigos à escolha: Flor-da-noite, Presépio, Pulga. š
O resultado (somatório de todos os votos assim enviados), será dado por volta do dia 10 do mês seguinte.
Na festa do brejo
o corruíra saltita
provocando o sapo.
T R E V O S
À
Ciclamens, eretos,
M O D A
O C I D E N T A L
E
No meio do verde
Na tela do espaço
primavera em essência.
desmanchando-se arcos tortos.
Jatobá em flor.
Arco-íris vernal.
numa prece, erguendo as pétalas,
espalham beleza.
T R E V O S
No colo da mãe
P E R S O N A G E M
Desfile e jogos.
Jatobá florido –
No Dia da Juventude,
um louvor à Natureza:
qual neném, mata saudades...
só festa e alegria.
encanta quem passa.
Dia da Juventude.
Alba Christina
Amália Marie Gerda
Amauri do Amaral Campos
Analice Feitoza de Lima
Anita Thomaz Folmann
Cecy Tupinambá Ulhôa
Djalda Winter Santos
No velho telhado
a volúpia sem pudor.
Um amor felino!
Lustrosa beleza
das bagas de jatobá
enfeitando a mesa.
Faz mago pincel,
de um jacarandá em flor,
árvore vergel.
Para mim, poesia.
Alimento para a abelha.
Uma flor de pereira.
Planta magnífica,
o jatobá majestoso.
Enfeita a floresta.
É Dia da Juventude.
Na minha terceira idade,
recordo saudoso.
No Dia do Ancião
há festejos na praça.
Sorrisos remoçam.
Elen de Novais Felix
Fernando L. A. Soares
Fernando Vasconcelos
Franciela Silva
Haroldo Rodrigues de Castro
Helvécio Durso
Héron Patrício
Papelada à vista!
No Dia da Secretária
nem mesmo um abraço.
O bonito choro
Tico-tico no fubá,
alegra vovô...
Vernal arco-íris
vejo da minha janela
ninho de emoções!
Jovens! Drogas, Nunca!
No Dia da Juventude,
manchete em jornais.
Tome uma atitude,
é o Dia da Juventude!
deixe de ser rude.
Grande jatobá!
árvore leguminosa,
também jataí.
Sonhos e esperanças
no Dia da Juventude:
– Ver o mundo em paz!
Humberto Del Maestro
João Batista Serra
Jorge Picanço Siqueira
Leonilda Hilgenberg Justus
Marcelino Rodrigues de Pontes
Maria App. Picanço Goulart
Maria Madalena Ferreira
Ipê amarelo,
ouro brasileiro.
Flor do cerrado.
Verde. Diabo verde.
A Amazônia devastada
perde-se no dia.
Menino cobiça
as amoras bem do alto.
Cai ferido, chora.
Beijando a roseira
borboleta esvoaçando
se oculta no espaço.
Natureza em flor.
Casamento da raposa.
Arco-íris vernal.
Celeste homenagem
ao Dia da Juventude:
no céu lua nova.
Tumbérgia azul
sobe, sobe, até o céu
encontra os anjos.
Nadyr Leme Ganzert
Nilton Manoel Teixeira
Olga Amorim
Olga dos Santos Bussade
Roberto Resende Vilela
Santos Teodósio
Suely da Silva Mendonça
Por todos os lados
asas perseguindo cores –
tarde de setembro.
Manhã de primavera –
o inhame desenrolando
duas folhas ao sol.
O canto das águas
no leito que se avoluma –
rio de primavera.
Sol de primavera –
o pássaro abrindo as asas
sossegadamente.
Cortina de chuva –
a primavera caindo
atrás da vidraça.
Campo queimado –
árvore de um só galho
um cacho florido.
Chuva de primavera –
apoiando-se um no outro
seguem dois velhinhos.
Teruko Oda, de Janelas e Tempo, 2003; Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda., Telefax: (0¨11) 5082-4190, E-mail: [email protected]
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Hilary Stevens, em Ellery Queen – Mistério Magazine, março de 1977
Dawg me viu fazendo aquilo. Eu nem sabia que
ele estava por perto quando apanhei o rifle de
Pete e puxei o gatilho. Não durou mais que um
segundo. Pete não teve tempo nem de sair da
cadeira. Ele disse “Não, Sam!”, e caiu no chão da
cabana.
Foi então que ouvi um suave rosnado atrás de
mim. Virei-me e vi Dawg parado na frente da
porta aberta, com a lua brilhando em seu pêlo
prateado. Pete dizia que ele era meio cão e meio
lobo, e acho que sua aparência confirmava essa
afirmação. Olhos cinzentos, presas brilhantes, e
uma boca que às vezes parecia sorrir. Mas nem
sempre um sorriso amistoso.
Pete encontrara o animal quatro anos antes, um
filhote abandonado que se apegava a uma vida
dura e difícil. Talvez tivesse sido abandonado
pela mãe. Ou talvez a mãe tivesse morrido. De
qualquer modo, Pete recolheu-o e os dois
tornaram-se ótimos amigos.
Eles não dependiam um do outro. Às vezes
Dawg ausentava-se durante dias, mas isso não
preocupava Pete, principalmente porque o animal
voltava sempre bem disposto e bem alimentado.
Ele sabia se cuidar, instintivamente. Ou talvez a
mãe dele tivera tempo para dar-lhe algumas lições
antes de deixa-lo só.
Mas Pete gostava muito do animal, e às vezes,
durante alguma ausência mais prolongada de
Dawg, saía andando pela montanha, na tentativa
de avistar algum ponto cinza-prateado movendose na paisagem. E quando Pete sentia-se sociável
e me convidava para jogar cartas em sua cabana,
sempre que ouvia algum uivo na noite ele erguia
a cabeça, atento, para dizer em seguida. – Não,
esse não é o Dawg. Mas ele pode voltar a
qualquer momento, agora.
Parece que Dawg também gostava de Pete.
Uma das histórias preferidas do velho era sobre
uma vez em que fora caçar nas montanhas,
quando caiu e torceu o tornozelo, o que tornou
sua volta temporariamente impossível. Dawg
encontrou Pete, e durante os três dias seguintes
levou esquilos e coelhos recém-caçados para seu
companheiro ferido.
– Ele me trazia inclusive gravetos secos pra
fazer a fogueira – comentava Pete sempre que
contava a história, coisa que aliás ele fazia todas
as vezes que me encontrava. – Esse bicho é muito
inteligente, Sam. Muito mais inteligente que a
maioria das pessoas que conheço.
Ele dizia isso e olhava pra mim de um modo
significativo. Pete estava sempre dando indiretas
a meu respeito; ele jamais fora com minha cara.
Mas a culpa era minha. Eu nunca deveria ter
revelado o motivo que me levara a morar na
montanha. Nunca deveria ter dito que estava
enojado de uma sociedade que treinava seus
homens para serem soldados e depois rejeitava-os.
– Mate os amarelos! Mate os amarelos! – eles
diziam pra gente. Fiz o que eles mandaram e eles
me puseram na cadeia.
– Você matou os amarelos errados, Sam – foi
tudo que eles disseram.
Assim, quando fui libertado, vim morar na
montanha, onde eu poderia fazer o que quisesse
sem precisar ouvir nada de ninguém. Nada a não
ser as indiretas de Pete, que com o tempo
começaram a me irritar cada vez mais. Eu devia
ter-me afastado do velhote. Não sei por que não
fiz isso.
A última observação que Pete fez foi a pior
de todas. Estávamos jogando cartas, e eu estava
reclamando de minha má sorte naquela mão. De repente,
ele olhou pra mim como se estivesse diante de um peixe
morto há três dias e disse: – Você está muito deprimido
hoje, Sam. Acho que está precisando é de uma mulher...
pra atirar nela pelas costas.
Foi como se ele tivesse apertado algum botão escondido.
Fui envolvido por antigos sentimentos, e não precisei
pensar em nada. Fiz tudo automaticamente.
O rifle de caça de Pete estava logo ali. Bem à mão.
Depois fiquei um pouco surpreso. Eu não queria
realmente matá-lo, mas não me sentia particularmente
triste por isso. E o que está feito está feito.
Assim, quando Dawg começou a rosnar para mim, virei o
corpo e apontei o rifle para ele. Mas no instante seguinte
ele já não estava mais lá, e a bala cravou-se no chão.
Corri quase um quilometro até minha cabana – coisa
difícil naquela altitude – e estava exausto quando me
joguei sobre a cama.
Ninguém mais além de nós dois vivia na montanha, e se
alguém descobrisse que Pete fora morto a tiros eu seria
considerado o Suspeito Número Um.
Pensei simplesmente em enterra-lo. Ninguém iria notar
sua falta por algum tempo. Ele tinha ido à cidade
recentemente, para comprar as provisões de que precisava,
e ninguém esperava vê-lo de novo antes do início do
outono. Contudo, mais cedo ou mais tarde alguém
começaria a fazer perguntas.
Se eu dissesse que Pete morrera naturalmente, eles
diriam que eu deveria tê-los informado e poderiam querer
exumá-lo. E aí ficariam sabendo de tudo. E eu acabaria
apodrecendo em alguma cadeia outra vez.
Quanto mais pensava no assunto, mais me parecia claro
que eu tinha de sair daquele lugar. Poderia ir para o
México. Lá estaria seguro. Poderia viver de caça pelo
caminho, e levaria a comida enlatada que tinha na cabana
se tivesse de ficar um ou dois dias sem caça.
Revirei minha despensa. Duas latas de feijão e uma lata
de sopa de carne de vaca. Eu já havia planejado ir à cidade
naquela semana... Aliás, eu devia ter ido junto com Pete,
mas na hora não tive vontade. Alem do que eu não
precisava de quase nada nessa época do ano: só de
munição. Eu vivia da caça.
Ora, inferno! Eu tinha de ir mesmo só com os feijões e a
sopa. Joguei as latas na mochila, esvaziei uma caixa de
balas no bolso, peguei meu rifle e saí pela porta.
Dawg estava lá, parado na clareira, a mais ou menos 50
metros da cabana. Ele parecia um cão-fantasma sob a luz
da lua, e mesmo àquela distância eu podia ouvir o seu
rosnado baixo e ameaçador.
Fiquei chocado. Por alguns momentos cheguei a
esquecer que tinha uma arma na mão. Depois abri fogo e
errei. Mas o maldito animal não fugiu. Ele dançava na
minha frente como se estivesse participando de uma
espécie de jogo. Atirei mais duas vezes, mas errei
novamente.
Que vá para o inferno, pensei. Não faz sentido ficar
desperdiçando balas. Eu podia esperar até de manhã.
Durante o dia seria mais fácil acerta-lo; isso se já não
tivesse ido embora.
Voltei para a cabana e revirei o lugar até encontrar meia
garrafa de uísque. Era um uísque ordinário, quase álcool
puro, mas eu precisava de um trago. Minhas mãos tremiam
quando levei a garrafa à boca.
Fiz alguns cálculos. Eu levaria dois, talvez três dias para
sair do Estado se fosse pelas montanhas. Depois eu poderia
continuar de carona, e chegaria ao México em uma
semana. Ninguém iria preocupar-se com Pete
durante esse tempo. Então eu estaria seguro; não
tinha por que me preocupar.
Esvaziei a garrafa de uísque e me senti bem
melhor. Agora, pensei, vou dormir um pouco.
Mas eu mal fechara os olhos quando ouvi um uivo
medonho vindo de fora, de um lugar bem próximo
da cabana, e por um instante senti todos os pêlos do
corpo eriçados. Depois consegui me controlar.
– Ele não vai continuar com isso a noite toda –
murmurei, enterrando a cabeça no travesseiro. Mas
não foi suficiente para abafar o som dos uivos de
Dawg.
Finalmente decidi acabar com a coisa. Apanhei o
rifle outra vez e saí, cambaleando um pouco. Era o
efeito da bebida, mas eu disse a mim mesmo que era
falta de sono.
Os uivos pararam quando passei pela porta, e
pouco depois vi o animal correndo pela clareira.
Depois ele parou e olhou para mim, me desafiando.
Ergui o rifle e fiz fogo. O cão dançou e eu errei o
alvo. Atirei outra vez e mais outra, e quanto mais
atirava mais eu perdia a cabeça. Finalmente levei a
mão ao bolso pra pegar mais algumas balas e
percebi que usara toda a minha munição.
Senti-me doente. Que coisa estúpida fui fazer! De
alguma forma, Dawg sabia que eu não tinha mais
balas, pois foi-se aproximando devagar, até ficar a
não mais que dez metros de mim, sorrindo. Eu podia
ver claramente seus olhos na luz do luar: havia ódio
neles. Eu já tinha visto ódio nos olhos de muita
gente, principalmente durante a guerra, mas aquilo
num animal era diferente, era muito mais
aterrorizante.
Recuei até a cabana e tranquei a porta. Mas não
pude dormir. Eu estava muito doente. Quando o sol
surgiu no alto da montanha, senti uma violenta
ressaca e muita sede.
Não havia água na cabana. O riacho corria a mis
ou menos cem metros dali. Olhei para fora e vi
Dawg deitado na clareira, vigilante. Eu não tinha
ilusões de passar por ele desarmado. Eu já vira
Dawg acabar com um alce quase adulto sem
nenhum esforço.
Abri a lata de sopa e experimentei uma colherada.
Era sopa concentrada, muito salgada, e ia apenas
aumentar minha sede.
Sentei-me, e comecei a pensar na minha situação.
Eu não tinha água, apenas duas latas de feijão. Dawg
tinha água. Ele poderia até caçar um coelho ou um
esquilo, enquanto me mantinha sob vigilância.
Se aquilo ia ser um teste de resistência, Dawg
tinha todas as chances a seu favor.
Não havia nada que eu pudesse fazer a não ser
esperar.
Dois dias passaram, talvez três. Era difícil saber ao
certo. Eu só conseguia dormir durante curtos
períodos, e depois de algum tempo não sabia mais se
estava dormindo ou acordado. Pensei ter visto Dawg
na janela umas duas vezes, e acabei atirando uma
bota na vidraça. O ruído do vidro estilhaçado
devolveu-me à realidade. Aquilo tinha sido outra
tremenda estupidez. Era quase o mesmo que deixar a
porta aberta para ele. Desesperado, quebrei umas das
cadeiras e revistei a cabana procurando alguns
Sabe o que o Jean Valjean, de Os Miseráveis, disse pro Inspetor Javert? – Larga do meu pé, chulé!
pregos para consertar a janela. Foi então que achei a
bala.
Eu devia tê-la derrubado quando despejei a caixa
no bolso, ou talvez já estivesse perdida há mais
tempo. O importante era que eu tinha uma bala, e
Dawg pensava que era seguro aproximar-se de mim.
Carreguei o rifle e segurei-o atrás das costas
quando passei pela porta. Dawg estava a uns cinco
metros de distância, rosnando. Quando viu a arma,
ele saiu correndo, mas era tarde demais. Acertei-o
no flanco esquerdo. Dawg soltou um ganido agudo e
começou a mancar. Quando chegou à clareira parou
e olhou para mim. Agora ele sabia que eu não tinha
mais munição.
Dawg voltou mancando em minha direção,
rosnando cada vez mais alto, e parou a mais ou
menos três metros da porta. Percebi que meu tiro
atingira alguma artéria, pois o animal sangrava
abundantemente. O sol se punha no oeste, e calculei
que Dawg não viveria até a manhã seguinte.
Veio a noite, e de alguma forma consegui dormir.
Era minha primeira noite de sono sem interrupções
desde que eu matara Pete. Quando acordei, o sol já
estava acima das árvores. Olhei para fora e fiquei
surpreso ao perceber que Dawg fora embora.
Ele sabia que sua hora havia chegado, pensei, e
acabaria voltando à floresta para morrer sozinho.
Todos os animais selvagens fazem isso.
Depois de me certificar de que Dawg tinha mesmo
ido embora, saí da cabana e fui até o riacho. Foi uma
caminhada lenta e difícil. Eu estava fraco, meus
joelhos tremiam, mas sabia que ficaria bem com um
pouco de água e alguma comida.
Creio que bebi uns dez litros de água, e me sentia
melhor a cada gole. Agora o que eu tinha a fazer era
ir até a cabana de Pete, pegar um pouco da sua
comida, sua arma, sua munição, e dar o fora dali.
Afinal, eu ia conseguir. Comecei a andar, quase
tonto de alívio.
Mas quando abri a porta de Pete encontrei o xerife
inclinado sobre o cadáver.
– O que aconteceu? – perguntei estupidamente.
– Alguém matou Pete – ele respondeu. – Parece
que aconteceu há alguns dias. Acho que foi morto
com o próprio rifle... as impressões digitais ainda
devem estar no gatilho.
Ele olhou para mim e continuou: – Eu vou querer
tirar suas impressões digitais. Sam. É melhor vir
comigo.
Dei um pulo desesperado em direção ao rifle de
Pete, mas acabei encontrando o cano do revolver do
xerife à minha frente.
– Não faça nenhuma besteira, Sam.
Depois que descemos uma parte da montanha e
chegamos ao lugar onde o xerife estacionara o jipe,
eu fiz uma pergunta. – Como é que o senhor veio
parar aqui?
Ele olhou para mim e respondeu: – Encontrei
Dawg morto na frente do bar, hoje de manhã. Eu
pensei em avisar o Pete.
E depois de algum tempo murmurou, quase que
para si mesmo: – Estranho, um animal como o
Dawg...
– Como assim?
Um animal como ele ir morrer na cidade. Isso não
é natural. Por que terá feito uma coisa dessas?