Aula 5 . 1o de abril A narrativa de ficção e suas particularidades

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Aula 5 . 1o de abril A narrativa de ficção e suas particularidades
Aula 5 . 1o de abril
A narrativa de ficção e suas particularidades
Bibliografia requisitada:
VERNET, Marc. Cinema e narração. In: AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995. p. 89-134.
Filmografia para exercício prático:
Ilha das flores; direção e roteiro de Jorge Furtado; 13min, cor, 1989 (Brasil).
1o, a Narrativa
cinema não-narrativo existe?
O cinema narrativo
Quando se vai ao cinema, se vai pensando em ver uma história. Certo? Ocorre que o cinema foi,
primeiro, concebido como meio de registro, como bem nos diz Marc Vernet (1995). Mas cinema e
narração acabaram unindo esforços e isso se deu por três razões principais:
1. REPRESENTAR UM OBJETO RECONHECÍVEL é dizer algo sobre esse objeto
Os objetos já significam algo dentro da sociedade em que estão reconhecíveis mesmo
antes de serem “narrados”. Eles já carregam uma semente de DISCURSO. Um objeto
não é um objeto, mas tudo o que ele significa, simboliza, a que está relacionado em
nossa memória, nosso imaginário e nossos usos sociais e culturais;
2. Como IMAGEM EM MOVIMENTO, o filme exige o TEMPO
A imagem que o cinema representa é uma imagem em devir, em promessa de
transformação. Ela está inscrita na duração exigida pelo movimento;
3. Para se LEGITIMAR como arte, o cinema PASSOU A NARRAR...
Assim como o teatro e o romance, que era reconhecidos como grande arte (artes
nobres) quando o cinema nasceu e era tido como “invenção sem futuro”.
E o cinema não-narrativo? Ele é possível? Existirá? Por um lado, há que se considerar que em um filme
não há narrativa em todos os momentos se considerarmos narrativa e representatividade como
equivalentes. Isso quer dizer que imagens não-representativas também fazem parte do cinema narrativo
com propósitos específicos (ligações, passagens, etc.). Por outro, muitos dos auto-nomeados filmes
não-narrativos farão uso de elementos do cinema narrativo. Dito isso, é preciso esclarecer que muito do
que se diz cinema não-narrativo é, na verdade, um projeto experimental que tenta não parecer com o
cinema clássico. Daí a confusão entre cinema narrativo e cinema clássico. Mesmo sem personagens
ou intrigas, o filme pode, como dirá VERNET (1995), conservar o princípio básico de dar ao espectador
a possibilidade de perceber lógica e uma construção que direciona a um encerramento.
UM FILME NÃO NARRATIVO SERIA, portanto, NÃO-REPRESENTATIVO, ou seja, onde não se possa
reconhecer nem objetos, nem relações de tempo, sucessão ou causalidade. Para narrar no cinema,
não é necessário narrar nos moldes hollywoodianos.
O filme de ficção
Segundo Marc Vernet, “qualquer filme é um filme de ficção” (1995, p. 100). Por
que ele diz isso? Vejamos:
Representar algo imaginário é a característica do filme de ficção. Esse
representado diz respeito à “história” que o filme apresenta, a qual é “real” nos
documentários, mas “baseada no real” ou simplesmente criada, imaginada, na
ficção. Porém a representação em si – as imagens em movimento, o enquadramento
sobre essas imagens, a montagem dessas imagens em uma seqüência lógica – é,
tanto para filmes de ficção quanto para os documentários, uma representação
“ficcional”, ainda que o cinema proporcione uma grande fidelidade entre o
representado e a representação (o movimento é responsável por isso). Isso seria
equivalente a afirmarmos que, mesmo no cinema documental, o filme em si é uma
criação sobre o real (porque o enquadra, o impressiona em suporte técnico, o
reproduz quando, onde e como quer, o monta de todas as formas possíveis). É por
isso, portanto, que VERNET (1995) faz a afirmação de que todos os filmes são filmes
de ficção.
Um dos motivos pelos quais o autor afirma tal coisa com tanta propriedade é a
característica do filme de ser uma representação “em ausência”. Aquilo que um
filme registra está ausente no tempo e no espaço quando o filme é projetado.
VERNET (1995) vai adiante e afirma que mesmo o representado, no cinema, é
fictício (e quando diz cinema, inclui, aí, os documentários, claro). Essa afirmação
pode ser contestada, mas se analisarmos que qualquer representação do real não é
mais “aquele” real, mas uma criação de alguém sobre aquele real, veremos o quão a
complexa afirmação do autor é certa e bastante simples de ser compreendida.
VERNET (1995) também aborda “a preocupação estética” imputada ao filme de
ficção como algo que não está longe da realização documental. Portanto, se formos
diferenciar documental e ficcional, melhor não fazê-lo por essa via, pois o cinema
documental, eventualmente, também lança mão da criatividade e da estética para
construir seu discurso. Tampouco é certo dizer que o cinema documental não recorre
a elementos tipicamente pró-narrativos para organizar aquilo que mostra.
Dito isso, vamos convencionar que filmes de ficção são aqueles a que estamos
acostumados a chamar de ficção (mesmo os baseados em fatos/histórias reais).
Como bem afirma VERNET (1995), em um filme de ficção, quando vemos um gato,
ele não tem como referente um gato específico, mas a categoria de gatos. No ato da
filmagem, quando se faz uma tomada do gato, este gato é específico, é particular,
mas no momento em que se atribui um referente à imagem, ele é um conceito de
gato, a categoria de gatos ali representada. Isso significa que ele é, para mim, a
Pipoca, gata de uma amiga que convive com passarinhos e enxerga fantasmas; ou
um gato de que me lembro da infância; ou é o gato da vizinha do lado. É o
espectador, portanto, que vai dar a esse gato um sentido particular. Se fosse um
gato em um documentário, o espectador jamais ousaria fazer essa criação, porque
aquele documentário mostra-nos um gato particular.
Muito antes da criação de um referente para as imagens de ficção que o espectador
faz, há um referente para todas as coisas ali representadas no filme de ficção, o qual
é atribuído pela instância narrativa. Não é aquela pessoa (Uma Thurman
interpretando Beatrix Kiddo) que é filmada que é referente no filme de ficção, mas
um conceito de heroína criado a partir de uma idéia de mulher forte que um dia
sofreu uma traição e quer vingança. O subúrbio norte-americano onde Kiddo vai
matar Vernita Green (representada por uma atriz chamada Vivica Fox) tem como
referente
um
conceito
de
subúrbio,
o
nosso
imaginário
(primeiro
o
do
diretor/roteirista, depois o do espectador) de subúrbio (mesmo que o cenário seja um
subúrbio de verdade, para a situação da tomada aquele é um cenário).
Narrativa, narração e diegese
A narrativa é o enunciado em sua materialidade. É um enunciado apresentado como discurso (pois
implica enunciador e espectador/leitor/ouvinte) fechado (é limitado materialmente, mesmo que a história
seja aberta). Para que a narrativa fílmica funcione, existem alguns elementos organizados no filme:
1. ela respeita uma “gramática” para que o filme seja legível;
2. ela possui coerência interna (um exemplo clássico é o Superman que voa);
3. ela dá um caminho para que o espectador faça sua leitura.
A narração diz respeito ao ato narrativo. Dentro dela três “sujeitos” precisam ser distingüidos:
1. o autor (o conceito de um criador da obra, que serve apenas em casos como “cinema
de autor”);
2. a instância narrativa/o narrador (instância assumida por uma equipe, que é quem
constrói a narrativa e sua história – está sempre fora de quadro);
3. personagem narrador (um ou mais personagens que existe(m) dentro da ficcionalidade
da narrativa e conduz(em) a história).
A diegese (ou, como é chamada comumente, a história) é o conteúdo narrativo, que é independente da
narrativa. É o universo fictício do filme e tudo o que esse universo evoca para o espectador.
A narrativa e a diegese relacionam-se entre si por meio da ordem (o que é sequencial na diegese não
necessariamente será dentro da narrativa, como o caso do flashback), a duração (uma coisa é o tempo
suposto na diegese e outra é o que lhe concede a narrativa) e o modo (ou ponto de vista segundo o qual
a narrativa conta a história).
Dois códigos modulam o desenvolvimento de um filme de ficção: a intriga de predestinação
(sintetização, no início do filme, do problema e sua solução) e a frase hermenêutica (os entraves à
solução do problema posto inicialmente). Situações, personagens e modalidades de filmes de ficção
podem variar, mas as funções são iguais em todos os filmes. O que muda é a forma de serem
cumpridas essas funções. Os personagens também podem ser em número infinito, mas suas funções
dentro da trama são pré-estabelecidas. Esses personagens foram chamados “actantes” pelo
semioticista A.-J. Greimas (VERNET, 1995) e suas funções seriam as de: sujeito, objeto, destinador,
destinatário, oponente, adjuvante. Vários personagens podem desempenhar uma função, assim como
um mesmo personagem pode desempenhar duas ou três funções.