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Era só uma piada!
Uma apreciação crítica aos limites do humor
Vinicius de Souza Faggion
Resumo
Quais são os limites do humor? Há humoristas que acreditam que o humor
não deva ter limites, já que restrições ao seu exercício cerceiam a liberdade
de expressão e prejudicam o efeito cômico. Por outro lado, alvos do humor e
parte da audiência acreditam que o humor precisa ser limitado, pois é uma
ferramenta capaz de causar danos à honra ou à dignidade de agentes ou
grupos sociais, estigmatizados por uma piada de mau gosto. Pretendo analisar
a questão dos limites aceitáveis ao humor, através de análise fornecida por
um campo interdisciplinar entre a moralidade e a estética, nomeadamente,
a ética do humor. Trabalharei sobretudo com casos comuns de humor
representados pela piada. E com tipos de piada que costumam testar os limites
do humor, ou seja, com esquetes que usam a estereotipagem de indivíduos
ou classes sociais. Meu objetivo é apontar um critério capaz de acomodar
razoavelmente a atividade cômica, sem cair em posturas extremamente
moralistas, que pretendem proibir a expressão de certos tipos de exercício
cômico. Para tanto, fornecerei noções introdutórias a respeito do que consiste
o humor, bem como apresentarei classificações úteis para avaliar tanto a
apreciação estética do humor quanto sua corretude moral. Por fim, pretendo
experimentar o padrão fornecido na apreciação de uma decisão judicial que
julgou a questão dos limites morais do humor envolvendo representantes
do stand-up comedy. O teste demonstrará como o critério é ferramenta
útil para avaliar se certo tipo de humor é lesivo e se merece algum tipo de
Vinicius de Souza Faggion
repreensão jurídica pelo Estado. A conclusão esperada é de que o humor
deve ter alguns limites, mas esses são menos impeditivos do que se imagina.
Palavras-chave:
ética
do
humor;
comédia;
estereótipos;
liberdade
de
expressão;
limites
do
piadas;
humor.
Introdução
Certa vez, ao ser questionado sobre o direito de comediantes zombarem
de religiões alheias, Rowan Atkinson, intérprete do famoso Mr. Bean,
manifestou a seguinte opinião: “o direito de ofender é muito mais importante
do que qualquer direito de não ser ofendido” 1. Ao esmiuçar a hipótese de
um controle estatal sobre a expressão artística apontou que “o problema
claro da proibição do insulto é que muitas coisas podem ser interpretadas
como tal. A crítica, o ridículo, o sarcasmo, apenas afirmar um ponto de vista
alternativo da ortodoxia pode ser visto como insulto” 2. As declarações do
comediante têm evidente inspiração na liberdade de expressão e no direito de
expressar qualquer opinião ou ponto de vista, por mais fortes que possam ser.
A opinião de Atkinson, na realidade, não serve somente
para defender a causa de comediantes, mas um direito generalizado
à expressão. Porém, tomo o teor dessas declarações para relacionálas apenas ao gênero da comédia, objeto de foco desse estudo.
O humor é um veículo de diversão, cuja manifestação típica é
representada pelo riso. Esse fator lúdico, a priori, fornece um elemento
a mais de resistência do humor quando o mesmo é acusado de causar
algum dano3 à comunidade, seja desrespeitando algum grupo social ou
injuriando a dignidade de algum cidadão. Afinal de contas, o contexto
Tradução livre de “the right to offend is far more important than any right not to be offended”. Disponível em: http://www.
telegraph.co.uk/education/3348850/Atkinson-defends-right-to-offend.html.
2
Tradução livre de “The clear problem of the outlawing of insult is that too many things can be interpreted as such.
Criticism, ridicule, sarcasm, merely stating an alternative point of view to the orthodoxy, can be interpreted as insult.”.
Disponível em: http://www.telegraph.co.uk/news/uknews/law-and-order/9616750/Rowan-Atkinson-we-must-be-allowedto-insult-each-other.html.
3
Empregarei ao longo do texto o termo “dano” e temos como “injúria” (sem necessariamente exprimir o tipo criminal),
“ultraje” ou “lesão” como sinônimos e marcadores que indicam o humor ter ultrapassado os limites do permissível,
portanto da liberdade de ser expresso sem sofrer consequências. Com isso, quero indicar que a partir do momento em que
a expressão do humor viola a margem de tolerância passa a ser legítima a provocação do Estado e do sistema jurídico para
punir a transgressão contra os alvos do dano.
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típico do exercício cômico é leve, descompromissado, e a justificativa
“era só uma piada, não pretendia ser levado a sério!” é um tipo de
resposta recorrente por aqueles que enaltecem o valor da comédia.
A justificativa mencionada logo acima é um típico subterfúgio
usado por humoristas para escapar à responsabilidade de ter manifesto
atitudes preconceituosas à religião, ao gênero, e a grupos étnicos por
meio de uma piada inconveniente. Soa comum a tendência (ao menos, por
parte dos humoristas) de imaginar o discurso humorístico como dotado
de um status especial que o torna imune à capacidade de produzir
algum ultraje, já que seu propósito é entreter ao invés de transmitir uma
informação verídica ao modo dos jornalistas. Logo, assume-se arguendo
que o humor teria uma espécie de imunidade frente ao julgamento moral.
Paul Sturges (2010, p.184-187), autor de interessante estudo
comportamental feito de entrevistas com comediantes, revela que os
interpelados geralmente têm dificuldades de ver seu trabalho em termos de
restrições e não costumam se sentir efetivamente censurados. Internalizam
as restrições apenas como recurso de julgamento do que é boa comédia, e
avaliam-na em prol do impacto que poderão produzir sobre a diversão, ao
invés de vê-las como verdadeiro impedimento sobre o humor que praticam.
Noutras palavras, a tendência revelada é a de que humoristas compreendem
a censura mais como medidor estético de suas performances criativas,
do que uma restrição normativa ao tipo de temas expressos pelo humor.
O comportamento dos humoristas entrevistados seria semelhante à
de uma atriz desinibida que está a escolher o vestido para acompanhar a
premiação do Óscar: ela possui um leque variado de indumentárias, das
mais discretas às mais extravagantes; se sua intenção for somente criar
alvoroço entre os paparazzi, escolherá o vestido mais ousado sem sentir
qualquer tipo de inibição quanto as opções que possui. Sua escolha cinge-se
dos padrões do decoro cerimonial e se restringe apenas sobre o impacto que
quer produzir na mídia, ou seja, muitas fotos, tuítes e comentários nas colunas
de celebridade. Voltando aos comediantes, ao invés de mais exposição na
mídia, a atitude motivadora é a produção de mais risos. Mas será que o
comportamento dos humoristas é compatível com essa acepção de restrição?
Talvez o impacto da restrição sobre o humor seja um pouco mais limitado,
semelhante ao caso da jovem que está a escolher o vestido para a cerimônia de
casamento. Ela possui um leque razoável de opções, mas não parece correto
que deva escolher um vestido extremamente curto ou demasiadamente
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decotado, pois a escolha do vestido é determinada, ao menos parcialmente,
pelos propósitos do cerimonial. Nesse caso, sua restrição não é somente uma
escolha entre preferências e efeitos que se pretendem produzir, mas uma
limitação externa à sua criatividade. Do mesmo modo que o casamento é fator
determinante à escolha do vestido de noiva, o público para qual o humorista
se dirige pode ser um obstáculo ao conteúdo de certos esquetes de humor.
A grande preocupação sobre a provocação do riso e as declarações
de Atkinson ilustram um aspecto à primeira vista inerente ao humor,
sua tendência à falta de padrões ou convencionalidades. Tendo esse
aspecto em vista, teria o humor um salvo conduto maior que outras
formas de expressão simplesmente por ser uma atividade que não tem a
pretensão de ser limitada ou levada à sério? Meu objetivo será colocar
em causa essa aparente “blindagem” do humor frente aos danos que
pode causar sobre os alvos da piada. Portanto, pretendo sustentar que o
humor é uma atividade que encontra restrições como qualquer forma de
expressão que ultrapasse limites razoáveis à liberdade de expressão. Tal
posição teórica torna o subterfúgio “foi só uma piada!” justificativa vazia,
que não fornece razões, muito menos desculpa a falta de sensibilidade.
Também aproveitarei a análise para evitar certos exageros atribuídos
à restrição do humor. Não farei uma crítica direta contra o humor ou defenderei
algum tipo obstinado de moralismo cômico4. Bem como não trabalharei com
argumentos que almejam censurar5 previamente o humor, apenas abordo casos
nos quais o humor já expresso foi lesivo a ponto de provocar algum tipo de
condenação. Minhas intenções buscam defender a prática do humor, mesmo
daquele que emprega estereótipos sobre gênero, raça e religião, até o ponto em
que possa ser plausivelmente mantido sem violar outros valores que conflitam
com a liberdade de expressão, como a dignidade e a honra dos alvos do humor.
Segundo Philip Percival (2005, p. 93), moralistas cômicos estão comprometidos com a ideia de que a presença de temas
moralmente controversos ou reprováveis em manifestações humorísticas comprometem ou até mesmo eliminam seu efeito
cômico, ou seja, a capacidade de uma piada ser engraçada ou até mesmo do enunciado pertencer ao domínio cômico.
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Essa forma de abordagem me faz assumir duas premissas. Primeiro uma acepção ampla da liberdade de expressão de
qualquer ideia, por mais ofensiva que possa ser. Segundo, que apesar de ampla, a acepção assumida não é ilimitada, pois
encontrará seus limites no momento em que o teor da declaração expressa for merecedor de sanção. Nesse sentido, “nós
somos de fato livres para dizer o que quisermos. [...] Um governo não pode tornar impossível dizermos certas coisas. A única
coisa que pode fazer é punir pessoas depois que disseram, escreveram ou publicaram seus pensamentos. [...] Uma análise
mais persuasiva sobre a liberdade de expressão sugere que a ameaça de sanção torne mais difícil e potencialmente mais
custoso o exercício de nossa liberdade. (trad. Livre) (MILL, David van. Freedom of Speech. In: Stanford Encyclopedia of
Philosophy, 2012. Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/freedom-speech/. Acesso em: 29 nov. 2014).
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Ao final, testarei as conclusões a respeito dos limites do humor
aplicando o critério proposto por Robin Tapley (2009) e que será exposto
oportunamente. Para o teste, serão sabatinadas duas piadas feitas por
representantes bem conhecidos do stand-up comedy nacional, Rafael
Bastos e Danilo Gentilli. Ambas repercutem na Ação Civil Pública
Nº 0100503-06, do TJ-SP julgada em 2012 pelo Juíz de Direito Tom
Alexandre Brandão. Na primeira piada, objeto da ação, “Rafinha” Bastos
foi processado pela Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais
(APAE); na segunda, o juiz utilizou a título de comparação à primeira
piada a sátira de Gentilli direcionada à comunidade judaica, alvo de
grande repercussão na mídia, acendendo o debate sobre os limites da
atividade cômica. O teste é um esforço interdisciplinar que demonstrará
a utilidade dos conceitos teóricos trabalhados para o reconhecimento do
dano produzido pelo humor, e na consequente fixação de uma punição6.
Mas antes de discutir a fundo os limites do humor, acredito ser
necessário dedicar uma sessão do trabalho para tecer alguns dados
conceituais relevantes à compreensão do objeto de discussão. Tal
esclarecimento terminológico é necessário, primeiro, porque como o
objeto de estudo é o humor, nada mais adequado que conhecer, ainda que
brevemente, elementos descritivos do que consiste o humor ou formas de
humor. Segundo, pois a introdução até aqui feita associou termos como
“humor”, “comédia”, “piadas” e “estereótipos”, que podem criar a impressão
indesejada de que identifico humor somente com piadas ou anedotas feitas
por comediantes, ou que só há humor com o emprego de estereótipos.
A seguir faço as devidas distinções, com informações colhidas da estética
ou filosofia da arte, área cuja preocupação não se limita a analisar as formas
de expressão artística, mas com teorias que pretendem fornecer um conceito da
arte e de manifestações artísticas, como é o caso de uma delas, o próprio humor.
Também apresentarei as soluções teóricas sobre a ética do humor
encontradas na literatura, e que se resumem a quatro alternativas:
amoralismo cômico; imoralismo cômico; moralismo cômico forte; e
moralismo cômico moderado. A análise das principais características
Apesar de ser uma etapa natural perquirir quais critérios e consequências jurídicas são cabíveis sobre o responsável pela
piada ofensiva, por exemplo, se o comediante deverá ser responsabilizado civil ou criminalmente, tal tarefa não fará parte
dos objetivos do estudo. O que pretendo demonstrar é que o padrão para a avaliação moral do humor pode ser uma técnica
de julgamento prévio empregada pelo juiz para considerar se o fato concreto (a piada emitida) é realmente merecedora de
sanção, portanto sujeito à uma resposta institucional do direito à ofensa produzida.
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dessa tipologia crítica será útil para determinar qual alternativa é a mais
plausível para basear o critério de limitação ao humor danoso. Além disso,
uma definição a respeito do que consiste um estereótipo será fornecida para
melhor rotular quais instâncias de humor desafiam os limites do tolerável.
Por fim, faço um pequeno alerta: utilizarei alguns exemplos sobre o
humor que têm linguagem coloquial, forte ou até mesmo chula para muitos,
e exijam certo apelo à malícia para a compreensão do humor. Não faz parte
das minhas intenções ofender qualquer leitor, sequer forçá-lo a considerar
engraçado quaisquer exemplos de piada. Apesar disso, acredito que, se
o leitor se encontrar constantemente incomodado com a maior parte do
humor reproduzido no texto, é por ser grande defensor de ideais moralistas
fortes, postura que será devidamente rebatida ao longo do trabalho.
Utilizo os exemplos apenas para o bem da construção argumentativa.
I. O que é humor? Alguns dados teóricos relevantes
Para analisar o fenômeno do humor, interessante começar
por certas considerações usuais ou intuitivas sobre o mesmo.
Primeiro, que se manifesta sobre formas canônicas de arte, como
teatro, literatura, cinema, pintura e escultura, mas também em formas não
canônicas, como é o caso de piadas contadas descompromissadamente
entre amigos, ou dos humoristas do stand-up comedy. Segundo, que
o humor não precisa de uma piada para ser produzido. Uma pessoa que
desajeitadamente se equilibra sobre o gelo até levar um tombo é situação
prática capaz de produzir riso, consequentemente humor. Portanto, há
formas involuntárias e voluntárias de humor, sendo esta, o caso das piadas.
O humor também é um fenômeno contextual, pois mesmo um
esquete engraçado não conseguirá produzir efeito cômico se a audiência
não for apropriada ou não estiver motivada para o tipo de humor que se
tem em mente. Um exemplo bizarro é o caso do comediante que conta
inúmeras piadas sobre morte para a plateia de um velório. Lafollett e
Shanks (1993, p.330) ressaltam que o caráter contextual do humor está
diretamente relacionado ao compartilhamento cognitivo de crenças ou
habilidades linguísticas entre os apreciadores do humor. Se certa pessoa
não compartilha da habilidade de reconhecer sarcasmo de enunciados
proferidos por seus companheiros – como é o caso do personagem
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Sheldon, da série Big Bang Theory – não compreenderá a intenção cômica
do falante. Logo, expressões de humor frutíferas só se reproduzem em
circunstâncias propícias, para uma plateia motivada e capaz de se entreter.
Apesar dessas intuições básicas, os filósofos da estética apontam
dificuldades em apresentar um conceito adequado do que consiste o
humor. Cohen (2005, p. 471-472) apresenta três teorias tradicionais:
Primeiro há teorias da incongruência, que sustentam que há humor
quando o riso surge de uma situação dissonante da realidade, ou que foge
da normalidade. Por exemplo, o caso de do garoto jornaleiro que distribui as
manchetes do dia pedalando sua bicicleta ergométrica em uma academia7.
Segundo há teorias da superioridade, que defendem que o humor
só é produzido quando há uma relação de superioridade entre o comediante e a
audiência, frente o alvo da piada. Essa teoria descreve o humor produzido sobre
alguém, conotando o alvo como desastrado, inato, desafortunado, etc. Esse é o
caso das piadas envolvendo, por exemplo, portugueses, judeus ou mulheres.
Por fim, o terceiro tipo consiste em teorias do alívio de tensão, que
descrevem o humor como um exaurimento espontâneo de emoção, ocorrido num
processo quase instantâneo, como num estouro de uma bexiga. Quando pessoas
se divertem com certos estados mentais que guardam consigo por serem tabus,
idiossincrasias ou atitudes reservadas, ao atingir o ápice ficam incapazes de
mantê-las preservadas, eles “estouram” através do riso, produzindo humor.
O problema das teorias abordadas é que nenhuma consegue por si
só descrever com amplitude o humor, como é o caso das duas primeiras, que
somente captam certas instâncias específicas de humor: a primeira, casos
de humor absurdo; e a segunda, casos de humor fundados em estereótipos.
Além disso, elas parecem ser ou muito ou pouco inclusivas ao caracterizarem
como humor certos casos que não produzem divertimento, já que não
parece ser o caso de que qualquer situação inesperada ou estereotipada
produzir humor. Enquanto, a terceira teoria está mais preocupada em
explicar as consequências do humor, seu efeito catártico, ao invés do
humor propriamente dito. Dessa forma, nenhuma teoria é definitiva ao
descrever as condições necessárias e suficientes para identificar o humor.
Porém, para os propósitos da discussão, não será necessário indicar
com tamanha precisão conceitual o fenômeno. Sugiro ater atenções sobre
7
Esse exemplo é encontrado no filme “A Repossuída” (1990), estrelado pelo comediante Leslie Nielsen.
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a segunda teoria do humor, levando-a em conta apenas pela instância de
humor que ela consegue explicar, ou seja, tomando-a como teoria sobre
o humor. A teoria da superioridade capta satisfatoriamente o tipo de
humor alvo de censura e de críticas contra seu exercício indiscriminado.
Desse modo, o tipo de humor estudado será o que utiliza como matériaprima os estereótipos e explora uma relação de assimetria entre a audiência e
o alvo da piada. Focarei a análise sobre as formas não canônicas e voluntárias
do humor estereotípico, como o emprego de piadas contadas por pessoas
comuns ou humoristas do stand-up comedy, para trabalhar com exemplos
mais simples de serem explorados em prosa. Além disso, apesar de ter traçado
distinções terminológicas importantes, empregarei intercambiávelmente
termos como “humor”, “piadas”, “esquetes” e “anedotas” para denotar
ações cômicas produzidas por esses veículos não canônicos e voluntários.
II. O que é um estereótipo?
De acordo com Blum (2004, p. 251), estereótipos são entidades culturais
presentes em imagens salientes de um dado grupo, ressaltando alguma
característica presente com uma valência negativa, ou seja, de forma
pejorativa. Mesmo quando a característica atribuída aparenta ser valorizada
ou valiosa, como a inteligência ou a persistência, o enaltecimento dado
pelo estereótipo geralmente acompanha um julgamento crítico acerca das
qualidades ausentes no sujeito. Um estereótipo do tipo “Joãozinho é nerd,
inteligente” é interpretado com um “mas...” que revela, de fato, que o
estereótipo faz remendos de certas características que podem estar ausentes
na pessoa estereotipada, como o fato de Joãozinho talvez não simpatizar com
a prática de esportes. Logo, outra característica implícita dos estereótipos
é capacidade de provocarem um estado de “miopia” ou “cegueira” perante
outras prováveis características que certa pessoa ou grupo possam ter. No fim
do expediente, quando alguém é alvo do estereótipo, intencionalmente o que
importa ao estereotipador é somente a característica atribuída, nada mais.
A noção de estereótipo ganha força na análise sobre os limites do
humor na medida em que são as piadas de teor étnico, de gênero e religioso
as principais responsáveis por testar a fronteira entre a liberdade de
expressão e o respeito aos alvos da sátira. Os seguintes tipos de estereótipos
geralmente são capturados pela criatividade dos humoristas de plantão:
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Uma apreciação crítica a os limites do humor
O que normalmente nós pensamos como estereótipos envolvem
não somente qualquer generalização ou imagem de um grupo, mas
imagens altamente mantidas e altamente reconhecidas de grupos
socialmente salientes – judeus como gananciosos, endinheirados e
instruídos; negros como violentos, musicais, preguiçosos, atléticos,
pouco inteligentes; mulheres como emotivas, vulneráveis, irracionais;
Américo-asiáticos e asiáticos como bons em matemática e ciências,
trabalhadores dedicados, um ‘modelo da minoridade’; Irlandeses
como ávidos bebedores; Ingleses como orgulhosos; Poloneses
como estúpidos e assim por diante” (BLUM, 2004, p. 252). 8
À lista de Blum, é possível acrescentar estereótipos tipicamente
reproduzidos entre nossos costumes, como é o caso dos portugueses e das
loiras atribuídos à parca inteligência; dos argentinos vistos como eternos
rivais de futebol (e de fronteira), alvos de troça eterna pelos brasileiros;
ou da heterosexualidade dos gaúchos associada à homossexualidade.
Já Smutz (2006) é cauteloso ao definir o conceito. Critica teóricos, que
associam a estereotipagem à atitude de causar um mal ou prejuízo à classe
generalizada. Opta por fornecer um conceito neutro a respeito do propósito
generalista do estereótipo, baseando-se no fato de que existem estereótipos
que são estatisticamente até precisos. De acordo com Smutz (2006, p.
166) “um estereótipo somente é claramente danoso, se, preservando-o,
as expectativas tornam-se tão rígidas a ponto de impedir que um sujeito
saia do modelo”. Desse modo, a valência negativa da generalização
deve ser vista como um potencial lesivo, ao invés concreta marca lesiva.
III. O que as teorias éticas (ou estéticas) do humor dizem
sobre seus limites?
Nessa seção apresento brevemente as quatro teorias que relacionam o humor
produzido com a avaliação ética de seu conteúdo. Há três tipos distintos:
Amoralismo Cômico: é teoria que defende que as alegações
a respeito das impropriedades morais do humor erram o alvo. Para seus
Tradução livre de “What we normally ,think of as stereotypes involve not just any generalization about or image of a group,
but widely-held’ and widely-recognized images of socially salient groups – Jews as greedy, wealthy, scholarly; Blacks as
violent, musical, lazy, athletic, unintelligent; women as emotional, nurturant, irrational; Asian-Americans and Asians as
good at math and science, hard working, a ‘model minority’; Irish as drinking too much; English as snooty, Poles as stupid;
and so forth.”
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adeptos é uma falha categorial submeter o humor à avaliação moral. Dizem
que o riso e o entretenimento estão além do bem e do mal (CARROLL, 2014,
p. 242). Como se vê, o amoralismo já foi um tanto discutido mais acima, e
representa os muitos comediantes que procuram escapar à responsabilização
por piadas de gosto moral duvidoso. Porém, o argumento do amoralista
pretende esconder o humor da avaliação moral do mesmo modo que se busca
esconder a nudez com um véu de seda. Uma premissa que o amoralista
defende é que o humor é uma atividade valiosa, ou seja, algo bom. Para o
amoralista o bem produzido pelo cômico é um valor de apreciação estética,
e a diversão é produzida somente em virtude da apreciação estética. Porém é
questionável como é possível haver apreciação estética sem um grau mínimo
de substância moral ao entretenimento cômico. Para que o humor exista é
preciso uma plateia mínima que não se sinta afrontada ou que ao menos seja
moralmente indiferente ao humor produzido. O argumento do amoralista não
funciona, pois tanto a apreciação estética, quanto a apreciação moral do
humor utilizam o mesmo canal de percepção, através da indução de nossas
emoções e provocação de nossa cognição. O argumento só seria convincente
se fosse possível defender que a apreciação moral e a apreciação estética são
percebidos por canais distintos, nunca relacionáveis, de modo que a percepção
negativa de um não age em demérito do segundo, o que não parece ser o caso.
Moralismo cômico: defende que o senso de humor é sensível a
considerações éticas. Noutras palavras, o fato de uma piada repousar em
estereótipos negativos ou expressar alguma atitude derrogatória demonstra
que ela não é engraçada (GAUT, 1998, p. 51). Em oposição ao amoralismo, que
não enxerga correlação entre apreciações éticas e estéticas, para o moralista
tal correlação é fundamental. A teoria comporta duas leituras: a) o moralismo
forte ou obstinado que acredita que todo conteúdo imoral expresso em
exercícios cômicos sempre prejudica o humor. E o moralismo moderado
que sustenta ser o conteúdo imoral de alguns casos de exercício cômico
prejudicial à produção de humor. Deixo para a próxima seção a discussão
dos problemas do moralismo forte contra o moralismo moderado, já que se
associam diretamente à busca por um critério sobre os limites do humor.
Imoralismo cômico: se compromete com a premissa de que o
que é insultuoso sobre a piada é precisamente o que é engraçado a
respeito dela (JACOBSON, 1997, p. 172). Considere a seguinte piada
cruel sobre judeus: como pôr cinquenta judeus dentro de um fusca?
Dois vão na frente, outros dois atrás, o restante no cinzeiro!. Essa
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Uma apreciação crítica a os limites do humor
piada, se realmente for engraçada, só o é através do conteúdo vil de sua
deixa. O humor somente é produzido pela alusão à cremação de judeus
durante o holocausto. Tal postura teórica não tornaria o imoralista pessoa
detentora de traços morais perversos? Não necessariamente. O imoralismo
cômico é um tipo de teoria, que diferente às vistas acima, não está
preocupada em aproximar (ou afastar) qualquer relação entre o humor e
sua normatividade moral. É uma teoria apenas voltada ao valor estético
potencialmente produzido. Um imoralista não entra em contradição com
sua tese caso considere a piada dos judeus acima engraçada, mas, em
simultâneo, chocantemente imoral, ultrajante e até mesmo reprimível.
Mas se o imoralismo não é teoria ética (somente estética), qual
propósito de mencioná-la num artigo cujo objetivo é fornecer um padrão ético
ao humor? A opção por relacionar a tese imoralista se deu por acreditar ser a
teoria que capta a hipótese de piadas com conteúdo moral perverso ainda serem
capazes de produzir riso e entretenimento. Segundo Jacobson (1972, 172),
de fato, há um senso óbvio no qual uma piada racista, sexista ou
outra ultrajante – uma pela qual seria errado se sentir entretido
– não é uma piada boa: é moralmente ruim. Mas disso não se
segue que a piada não seja engraçada. Piadas moralmente más
podem ser mais ou menos engraçadas; e o julgamento sobre a
ofensividade não resolve a questão a respeito do seu valor cômico...9
Além disso, a premissa imoralista serve de objeção à versões
obstinadas do moralismo, pois caso sejamos um tanto indulgentes com o
moralismo cômico, corremos o risco de considerar como pertencentes
à categoria do humor somente exercícios cômicos moralmente inertes ou
probos, ou seja, com anedotas desprovidas de referências a estereótipos.
Essa postura soa um tanto estranha, pois, se pessoas riem de piadas
moralmente duvidosas, mas essas não são engraçadas, qual seria a causa
do riso? Talvez seja preciso enquadrar tal categoria de pessoas junto
ao rol de sádicos que riem e sentem prazer com outras afeições bem
distintas do humor; ou o riso seria provocado por outra fonte que não
a própria piada, como na hipótese improvável da audiência rir da piada
moralmente controversa apenas por estar sob os efeitos involuntários do
óxido nitroso (gás hilariante). Portanto, o imoralismo cômico está correto,
Tradução livre de: “there is an obvious sense in which a racista, sexista, or otherwise offensive joke – one that it would be
wrong to be amused by – is not a good joke: it is morally bad. But that doesn’t mean the joke isn’t funny. Morally bad jokes
can be more or less funny; and the judgement that a joke is offenseive does not settle the question os its comic value...”
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ao menos quanto à observação do efeito estético proporcionado pelo riso.
Tendo feito a exposição das principais teorias éticas (e estéticas) sobre
o humor é possível apresentar com maior precisão a postura teórica que tomarei
na parte final. Reconheço como correta a teoria do imoralismo cômico, por
não destratar a hipótese de o humor ultrajante causar riso, porém adoto uma
perspectiva moralista moderada, pois apesar de concordar com a premissa
imoralista de que as vicissitudes morais de uma piada é justamente o que a
tornam engraçada, ainda acredito na existência de exercícios cômicos cujo
grau de imoralidade incitado desvirtuam o propósito de produzir diversão.
Portanto, pretendo defender que algumas instâncias de imoralidade
presentes em piadas podem distorcer seu efeito cômico sadio, ou seja, ainda
que o conteúdo imoral de certas piadas produza o riso, a lesividade causada
ainda requer repreensão.
IV. Testando os limites do humor
O humor que reproduz estereótipos consegue, como proponho, produzir
quatro qualidades de piadas: boas piadas, más piadas, piadas boas e
piadas más. Quanto às primeiras seria o caso de piadas que empregam o
estereótipo, produzem uma situação de alívio cômico ou entretenimento, sem,
contudo, causarem algum dano sobre o público-alvo. As segundas são piadas
que podem usar estereótipos e, apesar de não causarem algum dano, são
incapazes de produzir riso generalizado à plateia. As terceiras, geralmente
usam de estereótipos para produzir humor, mas são incapazes de causar uma
lesão sobre o alvo da piada. Por fim, as quartas, são as que efetivamente
causam algum dano, ou seja, ultrapassam os limites do humor; elas podem
até provocar o riso, ou serem um fracasso para o humor, mas seu aspecto
realmente saliente é a lesividade que produzem. Apresentarei exemplos de
cada tipo de piada em breve, mas antes, um novo adendo sobre o moralismo.
IV.1. Um novo alerta sobre o moralismo cômico
Como indicado anteriormente, a análise dos limites do humor será feita sobre a
perspectiva do moralismo cômico moderado. Agora, apresento motivos pelos
quais se deve evitar escolher a versão moralismo cômico forte como critério.
202
Cadernos do Seminário da Pós 2015
Era só uma piada!
Uma apreciação crítica a os limites do humor
Acredito que o moralismo forte pode ser muito sensível e
prejudique a tarefa de identificar casos de piadas más ou moralmente
reprimíveis. O moralismo exacerbado é capaz de incluir nessa categoria
tipos de piadas que sequer empregam diretamente o estereótipo para
atingir alívio cômico, apesar de ser arguível que utilizem algum grau de
imoralidade para provocar o riso. Por exemplo, considere a seguinte piada:
“What’s the difference between a pregnant women and a lightbulb?... You
can unscrew the lightbulb!” 10 (TAPLEY, 2005, p. 185)
No exemplo dado, um moralista cômico obstinado poderia condenar
o conteúdo da piada acusando-a de conter apelo sexista, posto que a piada
faz humor com a figura feminina, ainda mais uma gestante. O riso produzido
supostamente seria causado pela referência à mulher como objeto de uma
relação sexual. Porém, basta afastar o moralismo forte para ver que a crítica da
feminista é radical e não prevalece. Ao analisar a piada com mais cuidado é
possível ver que o elemento que produz humor é o jogo irônico da associação
feita pela palavra “screw” com duas situações bem distintas: o ato de enroscar
uma lâmpada e o ato sexual envolvendo uma mulher. Portanto, a causa cômica
da piada não tem qualquer relação com a postura social da mulher durante
o ato sexual, sequer alguma relação que faça chacota à gravidez. É certo que
a piada não teria qualquer efeito, caso a mulher grávida fosse substituída
por outro sujeito, mas a presença da figura feminina na piada é inofensiva.
Além do mais, é difícil associar esse tipo de piada ao apelo do estereótipo
ou com a relação de superioridade entre o alvo da piada e a audiência. Tal
piada, inclusive não é satisfatoriamente captada pela teoria sobre o humor
da superioridade. Ela soa ser uma instância de piada melhor capturada pela
teoria da incongruência. Dessa forma, esse tipo de piada não põe em xeque
os limites do humor, mas, se vista com os óculos de um moralista, o apelo
sexual da piada inadvertidamente torna-a um caso reprovável de humor.
O moralismo cômico forte ainda é capaz de produzir uma
impressão errada sobre a audiência que ri sobre piada que emprega
um estereótipo. Ronald De Sousa (1987, p. 290), adepto do moralismo
cômico – faz a seguinte asserção sobre piadas com estereótipo baseado no
gênero: “para se achar uma piada engraçada, o ouvinte deve efetivamente
Por razões evidentes, não foi possível traduzir a piada para o português, já que o humor é produzido pelo duplo sentido da
palavra “screw”. Desafortunadamente, não existe em nossa língua nativa aproximação que relacione o ato de desenroscar
uma lâmpada com a prática de uma relação sexual.
10
Conversações: Política, Teoria e Direito
203
Vinicius de Souza Faggion
compartilhar... [certas] atitudes sexistas que estão implicadas pela piada”11.
Desse modo, o sucesso da piada manifesto na audiência indica que
se todos os ouvintes riram, compreenderam o teor da piada e assim o fizeram
somente por também compartilharem preconceitos sexistas, racistas ou
profanos à religião. Porém, esse fato me parece uma generalização precipitada12,
contra a permissibilidade de piadas estereotipadas. Do fato de que posso
achar uma piada de teor sexual engraçada não se segue necessariamente
que compartilho preconceitos sexistas. Segundo Benatar (2014, p. 30) a
introspecção de uma piada sugere que pessoas têm capacidade de desfrutar
de certas piadas sem necessariamente apoiar os estereótipos reproduzidos.
Em síntese, rir de uma piada estereotípica de gosto moral duvidoso não
revela necessariamente preconceito da audiência. Logo, o critério moralista
robusto é falacioso caso fundamente a proibição de piadas estereotípicas.
IV.2 – Em que casos o humor passa os limites?
No início desse tópico me comprometi em fornecer exemplos das
quatro qualidades de piadas que listei. Os exemplos dados auxiliarão a
compreender que tipos de humor estereotipado podem ser permissíveis
e que tipos ultrapassam a fronteira da liberdade de expressão. As
qualidades de humor do tipo 1) e 2) são classificadas apenas em função
de sua apreciação estética, ou seja, através do efeito cômico produzido
sobre a audiência. Logo, são discerníveis através do imoralismo
cômico. Já as qualidades do tipo 3) e 4) são avaliadas quanto a sua
moralidade, sendo então discerníveis pelo moralismo cômico moderado.
1. Uma boa piada: essa é a piada capaz de produzir uma sensação de catarse
perante a audiência. Pode ser uma piada estereotipada, inclusive pode
ser uma piada má, ou seja, ela pode ter um conteúdo ultrajante e danoso.
O que está em jogo para uma piada ser boa é apenas sua apreciação
estética, ou seja, o impacto positivo sobre a audiência. Uma piada sobre
Tradução livre de “to find the joke funny, the listener must actually share... sexista atitudes that are implied by the joke”.
A generalização precipitada é uma falácia de argumentação caracterizada por dar um salto direto para a conclusão
deixando de lado premissas e provas importantes. A falácia ocorre quando se apresenta uma premissa com dados muito
limitados para se chegar à conclusão. Um exemplo típico dessa falácia é a tradicional conclusão de que todos os políticos
são ladrões, baseado na ocorrência de um caso de corrupção que envolveu apenas alguns parlamentares.
11
12
204
Cadernos do Seminário da Pós 2015
Era só uma piada!
Uma apreciação crítica a os limites do humor
judeus contada dentro do quartel da SS por oficiais nazistas pode levá-los
ao êxtase do divertimento, apesar de possuir um conteúdo horroroso. Para
fins práticos, e como o fato da piada boa envolver parâmetros subjetivos
da audiência que escapam a possibilidade da precisão do exemplo, lanço
uma piada estereotípica que considero engraçada sem ser injuriosa,
talvez sequer aos alvos da piada13: No balcão da Alfandega: Seu nome?
Abu Abdalah Sarafi. Sexo? Quatro vezes por semana. Não, não,
não! Homem ou mulher? Homem, mulher. Algumas vezes camelo.
2. Uma má piada: é aquela incapaz de produzir o riso ou outra
reação de divertimento. Pode-se dizer que é uma piada defeituosa,
já que não consegue produzir o efeito esperado na audiência. O
entretenimento aqui também é contextual e contingente à audiência.
Como exemplo especulativo há a conhecida piada porque a
galinha atravessou a rua? Para chegar ao outro lado!.
3. Uma piada boa: essa é a piada que intenta produzir bom entretenimento
à audiência, mas o que torna a piada boa não é o seu efetivo sucesso,
mas o valor contido na intensão do humorista. Uma piada boa é aquela
que tenciona fazer uma crítica à prática social reprovável ou um tabu
prejudicial à comunidade. Seu objetivo, além do riso, é mais valioso:
pretende produzir uma sensação de conscientização ou autocrítica sobre
a audiência que captou as intenções do humorista. Como exemplo, há
boa parte deste humor feita pelos membros do portal “Porta dos Fundos”.
Um caso paradigmático é da esquete “Negro” (2014) que narra
um boletim de ocorrência sendo lavrado por uma autoridade policial
caucasiana através dos relatos da vítima também caucasiana. Apesar da
insistência da vítima ao afirmar que fora assaltada por um bandido de
cor branca, o policial reiteradamente questiona se o assaltante não era
negro, , se não estava dirigindo o assalto com o cúmplice de cor branca,
ou se não tinha qualquer traço afrodescendente. A piada é de claro
conteúdo estereotípico, e seu conteúdo veicula ideologias patentemente
racistas, mas a intensão do humor não era desrespeitar a comunidade
Apesar da piada não mencionar explicitamente que o viajante atrapalhada é representante da cultura árabe, não é
absurdo imaginar que um árabe possa achar esse tipo de piada engraçada e divertida, ou mesmo que algum comediante
árabe faça humor com essa piada. Para funcionar, é arguível que tal piada também surte efeito substituindo a figura do árabe
por qualquer sujeito estrangeiro de uma cultura que não se conhece a fundo, já que o estereótipo necessário para a piada
funcionar não é a figura do árabe, mas de um estrangeiro cuja cultura seja bem diferente da audiência. Pode até ser o caso
desse humor em específico produzir o estereótipo de que pessoas árabes são ninfomaníacas ou zoofilistas, mas não acredito
que isto seja suficiente para concluir que a piada transmitiu algum tipo de preconceito capaz de causar um dano reprovável.
13
Conversações: Política, Teoria e Direito
205
Vinicius de Souza Faggion
afro. O objetivo da piada era destacar a figura do preconceito sobre
um estereótipo comum presente fora do humor e internalizado fora
da ficção: a generalização precipitada entre negros e a criminalidade.
Este tipo de humor pertence ao gênero da sátira, uma espécie
caracterizada pela crítica a algum vício ou forma de comportamento humano,
e que procura chamar a atenção da audiência contra tais traços prejudiciais.
A sátira, através do uso constante da ironia, tem o propósito implícito de
desencorajar atitudes moralmente prejudiciais encontradas na sociedade
(LEBOEUF, 2007, p. 3). Portanto, sua função, mais valiosa que o próprio
riso, é encorajar algum tipo de transformação social através da crítica cômica
4. Uma piada má: é a piada que pode até ser capaz de produzir
divertimento em parte da audiência, mas que também produz dano
aos alvos da piada por induzir uma crença falsa e prejudicial sobre a
audiência. O conteúdo estereotipado reproduzido pelo humor reflete
uma relação de superioridade do comediante e da audiência sobre
o alvo da piada. A exemplo do filme “Borat” (2006), estrelado pelo
comediante Sasha Baron Cohen, que retrata a pretensa cultura dos
cazaquistanezes na figura do turista Borat que ganha a oportunidade
de visitar os Estados Unidos. O malefício do humor contido na obra
cinematográfica está na retratação do estereótipo do cazaquistanês como
um sujeito cruel, rústico, incestuoso, anti-semita, racista e cafajeste.
Borat chega a caracterizar sua irmã como a quarta prostituta mais bem
ranqueada no seu país. Baron Cohen criou o estereótipo de pessoas
que conheceu no sudeste da Rússia. Segundo Morreal (2005, p. 107):
ao criar seu novo estereótipo dos Cazaquis, com atributos negativos
geralmente atribuídos aos Russos, Cohen insultou os Cazaquis
duas vezes. Ele retratou-os como se tivessem vícios que não
possuem: o anti-semitismo nunca fora disseminado no Cazaquistão,
muito menos a perseguição de ciganos; mulheres têm deveres
iguais aos homens. E, em segundo lugar, os vícios atribuídos aos
Cazaquis ele tomou de estereótipos dos seus opressores russos.14
O exemplo de “Borat” revela os danos causados pela licença
satírica. A forma com que os cazaquistanezes foram retratados pode ser um
Tradução livre de “In creating his new fictitious stereotype of Kazakhs, with negative features often attributed to Russians,
Cohen insulted Kazakhs twice. He portrayed them as having vices they don’t have: anti-Semitism was never widespread in
Kazakhstan, nor was the persecution of Gypsies; women have rights equal to men’s. And secondly, the vices he attributes to
Kazakhs he took from stereotypes of their Russian oppressors.”
14
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Cadernos do Seminário da Pós 2015
Era só uma piada!
Uma apreciação crítica a os limites do humor
construtor de crenças equivocadas. O filme distribuído mundialmente foi
capaz de introduzir traços culturais inadequados sobre os alvos da piada, que
podem ser erroneamente captados por pessoas que desconhecem a cultura
cazaquistaneza. Noutras palavras, é possível que pessoas comprem a premissa
do humor do filme, achem-no engraçado, mas fiquem com a impressão de que,
na realidade aumentada pelo fator cômico, os cazaquistanezes realmente têm
certas atitudes internalizadas em sua cultura conforme retratadas pelo filme.
IV.3. Em busca de um critério para testas os limites do
humor
Como pôde ser observado logo acima, nem todas as instâncias de
humor estereotípico são capazes de produzir algum dano que as tornem
impermissíveis. Piadas dotadas de boas intenções podem utilizar o humor
estereotípico para atacar alguma prática social indesejável. Logo, a categoria
de humor que merece maior preocupação é dos tipos de piadas más, aquelas
capazes de utilizar estereótipos somente com o objetivo de diminuir ou atacar
os alvos da piada perante o público. A categoria de piadas más também
reflete sobre as atitudes da audiência, capaz de internalizar costumes racistas
através da recepção positiva de uma piada má. Importante esclarecer que
para uma piada transmitir uma crença racista (ou mesmo sexista, ou que
ofende à religião) não é condição necessária que o comediante manifeste
ativamente crenças racistas, basta a expressão da piada racista inculcar
atitudes que provoquem o preconceito racial (BENATAR, 1999, p. 196).
Robin Tapley (2004, p. 178) indica um bom parâmetro de avaliação
à categoria das piadas más. De acordo com seu raciocínio é preciso separar
piadas que são moralmente reprováveis, de piadas que são somente
ofensivas. As primeiras são alvo da impermissibilidade e podem ser
causa de legítima retratação ou reparação de dano por parte do emissor.
As segundas, apenas causam certo clamor social quanto ao conteúdo da
piada. Portanto temos: a) humor moralmente reprovável, sujeito à
condenação ou intervenção estatal; e, b) humor ofensivo, mas tolerável.
Como caso de humor tolerável, a filósofa utiliza o exemplo da piada
que compara a mulher grávida à lâmpada. Nesse caso, um moralista pode
achar a piada de mau-gosto, mas condenar esse tipo de humor significa ir
longe demais. Já para ilustrar o caso de humor moralmente reprovável, logo
Conversações: Política, Teoria e Direito
207
Vinicius de Souza Faggion
condenável, o exemplo elegido, semelhante ao caso do filme “Borat”, é uma
piada étnica: “qual é a diferença entre um Indiano e uma aspirina?...
A aspirina é branca e funciona [trabalha]” 15. O exemplo de Tapley é
um estereótipo que contrasta a cor da etnia indiana, bem como generaliza
o fato falso de que os indianos são uma etnia sem qualquer utilidade.
O critério proposto ainda realça uma distinção útil proposta por
Benatar (1999, p. 196), entre piadas racistas ou sexistas contra piadas
raciais ou sobre gênero. As primeiras são reprimíveis, enquanto as segundas
são toleráveis. A distinção se adapta, respectivamente aos parâmetros a) e
b) trabalhados. Portanto, piadas que transmitem atitudes preconceituosas
sobre a audiência, são moralmente reprováveis e condenáveis; e
piadas que transmitem conteúdo estereotípico racial ou sobre gênero
são ofensivas e toleráveis, mesmo que tenham gosto moral duvidoso16.
A distinção entre piadas moralmente reprováveis e moralmente
toleráveis pode parecer uma linha contínua, na qual não é possível
traçar uma distinção precisa. Porém Tapley (2004, p. 188), ainda
destaca o potencial de o humor desumanizar ou degradar o alvo da
piada ou parte da audiência como elemento de contraste entre a) e b):
Para falhar ao teste de padrões da comunidade, algo deve
ser mais do que ofensivo. Ofensividade é tolerável. Devemos
permitir certas classes de atitudes, expressões e estilos de vida
de modo a se ter uma sociedade pluralista, livre e diversa.
Mera ofensa não falhará os padrões de teste da comunidade.
Entretanto, desumanizar, ou degradar, é falhar ao teste de padrões
da comunidade. É intolerável à nossa comunidade, que valoriza a
diversidade, a igualdade e a dignidade humana, retratar certos
membros como menos que humanos, ou como menos merecedores de
Tradução livre de: “What’s the difference between an Indian and an aspirin?... The aspirin is White, and it works!”
(TAPLEY, 2004, p. 185).
16
Dessa distinção, não se segue que piadas do segundo tipo nunca sejam capazes de induzir preconceito. Por exemplo,
imagine a hipótese de um humorista contar uma série de piadas étnicas. Todas têm como alvo apenas o estereótipo dos
afrodescendentes e visam desprestigiar a pequena plateia afrodescendente que está acompanhando o espetáculo. É arguível
que as piadas em sequência sejam ofensivas a ponto de indicar a incitação do racismo pelo comediante. Se, ao invés de
disso, o humorista tivesse feito humor contra variados grupos étnicos da plateia e da sociedade, as piadas étnicas contadas
não produziriam intenções racistas sujeitas à repreensão. Esse exemplo revela ao menos uma hipótese na qual piadas
étnicas, toleráveis por não conterem conteúdo racista, são capazes de ultrapassar o limite de tolerância, por transmitirem
atitudes racistas capazes de degradar, caso o alvo da piada seja constantemente retratado. Esse caso é semelhante à prática
do bullying escolar, que só é identificado mediante reiteradas provocações a um alvo específico.
15
208
Cadernos do Seminário da Pós 2015
Era só uma piada!
Uma apreciação crítica a os limites do humor
direitos humanos básicos e liberdades expressas na Constituição.17
Portanto diferença em a) e b) não é mera gradação, mas uma
distinção de tipo ou qualitativa. Nessa linha de ideias, a filósofa também
propõe uma classificação de piadas moralmente objetáveis, para casos nos
quais o humor ultrapassa os limites da tolerância. Há piadas impermissíveis
quando: “uma pessoa num grupo dominante, publica e intencionalmente
mira alguma pessoa ou grupo que se encontra em uma posição social
subordinada de um modo que degrada ou desumaniza aquela pessoa ou
grupo” 18 19 (TAPLEY, p. 180). Pode-se notar também que o padrão de avaliação
trabalhado é consistente com a teoria sobre o humor da superioridade.
Sendo assim, o humor estereotípico é moralmente reprovável
e produz dano tipicamente quando o alvo da piada é pessoa ou grupo
minoritário. O critério deve ser este, pois estereótipos perpetuados
por piadas são mais reprováveis quando eles atingem pessoas às quais
faltam poder e status, e quando esses estereótipos são parte de um
sistema social que os marginaliza e tenta colocá-los no seu devido lugar.
A vantagem desse padrão é de não conceder inadvertidamente
liberdade de expressão tão ampla ao exercício cômico, como
se o humor tivesse um salvo conduto maior que outras formas
de discurso e fosse imune a qualquer tipo de reprovação moral.
Tradução livre de: “to fail the community standards test, something must be more than offensive. Offensiveness is
tolerable. We have to allow a certain range of attitudes, expressions and lifestyles in order to be a diverse, free, pluralistic
society. Mere offense will not fail the community standards. However, to dehumanize, or to degrede is to fail the community
standards test. It is intolerable in our community, which values diversity and equality and human dignity, to depict certain
members as less than human, or as less worthy of the basic human rights and freedoms expressed in the Charter.”
18
Alguém poderia contra argumentar, por oposição, que a relação de dominância não funciona, pois seria possível de se
fazer piadas moralmente reprováveis também contra sujeitos de um grupo dominante e causar algum tipo de degradação a
tal membro. Acredito que a objeção até é plausível, mas não vejo como ela é capaz de efetivamente produzir um dano. Lyttle
(2010), por exemplo, acredita que piadas sobre membros da igreja pedófilos ou advogados dificilmente sofrem censura
ética. O uso de estereótipos de sujeitos ocupando posições dominantes surge como uma espécie de “jogo limpo” praticado
pelos humoristas que aproveitam de uma posição social privilegiada do alvo da piada para fazer humor. Morreall (2005,
p. 109) chega a ser até mais enfático, ao considerar o caso de piadas dirigidas aos advogados. Acredita que dificilmente o
estereótipo atribuído aos advogados no humor provoca o mau tratamento, insulto ou decadência da classe dos juristas. Até
mesmo advogados parecem aprovar ou mesmo tolerar o humor feito contra sua profissão. o estereótipo aplicado sobre esse
exemplo não visa desumanizar ou degradar a classe dos juristas, ressaltam um estereótipo que, apesar da valência negativa
não é suficiente para causar uma lesão. O mesmo pode ser dito sobre outros estereótipos comuns em anedotas como é o
caso dos portugueses ou das loiras.
19
Tradução livre de “a person in a dominant social position, publicly and intentionally targets some person or group who is
in a subordinate social position in a way that degrades or dehumanizes that person or group”.
17
Conversações: Política, Teoria e Direito
209
Vinicius de Souza Faggion
V. Submetendo o critério a um teste prático
Por fim, após ter discutido várias questões sobre a ética do humor que
repercutem na avaliação da permissibilidade moral de piadas e esquetes
humorísticos e ter apresentado um critério razoável para a detecção do
humor danoso, demonstrarei como o uso do parâmetro apontado pode ser útil
para avaliar a pertinência da intervenção jurídica do Estado no julgamento
de hipóteses de humor lesivo. Foi escolhida uma ação judicial, cujo teor
apresenta casos na fronteira dos limites ao humor. Apresentarei um relato
breve do caso, mencionando os tipos de humor abordados, bem como a linha
de raciocínio seguida pelo juiz para proferir seu veredito. Em sequência
avaliarei o grau de reprovabilidade das piadas mencionadas segundo o
critério proposto, bem como o posicionamento do magistrado segundo as
teses éticas do humor estudadas. A seguir, o caso, as piadas, e as opiniões:
O caso selecionado foi da Ação Civil Pública Nº 0100503-06,
do TJ-SP julgada em 2012 pelo Juíz de Direito Tom Alexandre Brandão,
proposta pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, a APAE
de São Paulo, contra o humorista Rafael Bastos. O objeto da ação foi uma
piada feita pelo comediante no show de stand-up “A Arte do Insulto”
comercializado em “DVD”. A esquete faz referência aos deficientes
mentais acolhidos pela instituição, conforme representada no acórdão: “um
tempo atrás eu usei um preservativo com efeito retardante... efeito
retardante... retardou... retardou... retardou... tive que internar
meu pinto na APAE... tá completamente retardado hoje em dia...
eu tiro ele pra fora e ele (grunhidos ininteligíveis)”. A alegação da
autora é de que o réu atingiu violentamente a dignidade daqueles que
suportam a realidade dura e triste causada pela deficiência. Como punição,
requereu indenização pelos prejuízos causados à imagem da associação, no
valor de R$ 10.000,00 para cada associado da APAE que se habilitar à
favor do dano, bem como recolhimento do DVD ou a retirada da menção
à APAE. Já o autor, em contestação argumentou que o humor é protegido
constitucionalmente pela liberdade de expressão e não é sujeito à
censura ou repressão, o único objetivo é o animus jocandi, a diversão.
No julgamento do mérito da ação, o magistrado Tom Alexandre
Brandão, ainda fez menção a outro caso polêmico, envolvendo outro humorista
do stand-up comedy Danilo Gentilli. Apesar de não ter chegado à justiça, o
210
Cadernos do Seminário da Pós 2015
Era só uma piada!
Uma apreciação crítica a os limites do humor
caso repercutiu longamente na mídia e provocou discussões sobre a imposição
de limitações à atividade cômica. Envolveu uma sátira feita pelo comediante
em tom crítico à população elitizada do bairro de Higienópolis, cuja maioria
dos moradores fazem parte de comunidade judaica, que supostamente era
contrária à estação metroviária no bairro, pois não desejavam que fosse
frequentado por classes sociais desqualificadas. A piada foi a seguinte:
“entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez
que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”.
O Exmo. Magistrado avaliou as duas piadas como permissíveis, e
não indicou que quaisquer uma delas como moralmente reprováveis ou
sujeitáveis à intervenção estatal na liberdade de expressão dos humoristas,
consequentemente o réu foi absolvido. Durante a sentença manifestou-se
ser i) “tormentoso estabelecer critérios científicos para definir e identificar
o humor”; ainda que ii) “qualquer pessoa tem capacidade de discernir,
com um pouco de boa vontade e um mínimo de inteligência, o que é
uma manifestação humorística, distinguindo-a de uma simples opinião”;
também considera que iii) “no aspecto jurídico, a expressão humorística
deve ser respeitada num grau extremamente elástico, independentemente
do tipo, da qualidade e, inclusive, do assunto tratado”; por fim afirma que
iv) qualquer piada, desde a mais singela possível, pode dar azo a
uma interpretação cruel. Ora, quem brinca dizendo que ‘mulher no
volante, perigo constante’ (minha avó fazia essa brincadeira!) pode
ser tachado de machista, sexista, insensível à igualdade dos sexos, às
conquistas das mulheres nas últimas décadas etc. Tudo isso para dizer
que uma piada é, afinal, apenas uma piada. Simples manifestação
cultural, um costume social, um atributo da inteligência humana.
Antes de avaliar as piadas, começo pelo posicionamento do
magistrado. A princípio o juiz indica em i) ser tarefa árdua fixar um
padrão de avaliação ao humor, e em ii) sugere que a opinião pública
consegue distinguir um contexto do humor de mera expressão de opinião.
A conjugação de i) e ii) sugere que o magistrado não considera
ser incumbência do seu papel analisar criticamente o teor de exercícios
cômicos. Também seu padrão de julgamento indica que o juiz não
considera a hipótese de uma manifestação humorística ser capaz
de provocar algum dano. Porém essa não soa uma boa estratégia,
pois, ao longo do artigo, demonstrou-se como tipos de humor, mesmo
manifestos em situações que causam riso e diversão produzem resultados
degradantes aos alvos da piada. Desse modo, o juiz corre elevado risco
Conversações: Política, Teoria e Direito
211
Vinicius de Souza Faggion
de não condenar instâncias de humor potencialmente preconceituosas.
Já as declarações iii) e iv) me parecem qualificar o juiz como
defensor de uma postura amoralista do humor, considerando-o como um
domínio moralmente indiscutível. Mas, se essa dedução estiver correta,
questiono como o juiz conseguirá efetivamente julgar a permissibilidade
dos casos de humor relacionados na ação se considera o humor um tipo de
atividade afastada de julgamentos normativos. A impressão que fica é de
que o juiz não desafia de frente todas as vias argumentativas que o mérito
do caso levanta, por exemplo, a hipótese plausível de uma manifestação,
ainda que humorística, ser capaz de produzir dano. Portanto, evidenciase que o juiz não adotou um critério razoável para a avaliação do caso.
O único posicionamento valioso está em iv), sobre risco da sensibilidade
exagerada ao humor gerar um moralismo cômico forte taxando várias
formas inofensivas de humor como predisposições ao preconceito.
Agora, avalio criticamente cada piada presente no acórdão:
A primeira, na qual Rafael Bastos fez alusão ao preservativo
masculino associando-o à pessoas detentoras de deficiência mental, não
soa ser tipo de piada danosa. Acredito que essa piada possa ter defeitos
estéticos, ou seja, ser má piada, pouco engraçada aos padrões de muitas
audiências, pois sua linguagem e tema de apelo sexual podem ser de mau
gosto. Bem mais árduo é considerar que a piada degradou a condição
dos deficientes mentais. Os associados da APAE não foram diretamente
atacados e o comediante não utilizou sua posição de superioridade
para tratar o alvo como menos merecedor de direitos humanos básicos
conforme a discutido por Tapley (2009). Tal piada tem certas semelhanças
à piada feita entre a gestante e a lâmpada, cuja produção do humor não
se dá pela manifestação do preconceito, mas pelo jogo de palavras entre
o “efeito retardante” do preservativo e a generalização estereotípica
de que associados da APAE são portadores de algum tipo de “retardo
mental” comparação, infelizmente, de extremo mal gosto, mas tolerável.
É piada com teor sexual e estereotípico, mas não piada de preconceito.
Já a segunda piada, foi uma sátira má-sucedida de Danilo Gentilli
contra a comunidade judaica. Ao contrário da opinião manifesta pelo
magistrado, que a comparou à primeira quanto a reprovabilidade, esta
piada pode ser atribuível dentre formas lesivas, portanto, moralmente
condenáveis. A ofensividade se manifesta no potencial que a piada possui
de degradar e diminuir o grupo judeu à vitimização sofrida pelo holocausto.
212
Cadernos do Seminário da Pós 2015
Era só uma piada!
Uma apreciação crítica a os limites do humor
Além disso, a piada feita pelo humorista foi direcionada em reprimenda aos
residentes do Bairro Higienópolis, noutras palavras, o humor possuía um
alvo determinado. Mesmo que o comediante não tenha intenção ou pregue
algum tipo de ideologia anti-semita, a piada teve por objeto um tema de
traços racistas. Conforme exposto, piadas más, de conteúdo racista, não
necessariamente carecem de dados contextuais que comprovem intensão
dirigida ao preconceito. Uma forma de tentar salvar tal piada da reprovação
moral seria enquadrá-la na categoria das piadas boas proposta, ou seja, o
gênero da sátira. Porém é um tanto implausível sustentar essa hipótese para
a piada de Gentilli, já que não há qualquer benefício discutir o tabu social do
elitismo das classes sociais de um bairro de classe média-alta com uma piada
dirigida à degradação de judeus. Muito menos a alusão ao holocausto parece
ter a intenção de fazer crítica ao preconceito direcionado aos judeus. Portanto,
a piada de Gentilli foi uma má piada, uma tentativa fracassada de satirizar
um preconceito ,que acabou por produzir mais uma fonte de preconceito.
Em síntese, o teste prático do critério sobre os limites ao humor
demonstrou ser possível submeter tipos de humor à uma avaliação dos limites
éticos de sua expressão, ao contrário do que foi professado pelo julgador
responsável. Acredito que essa modo de deliberar é a forma mais razoável e
honesta para abordar o problema, pois não torna o exercício cômico incólume
ao julgamento moral com a escusa do animus jocandi, na mesma medida
que não restringe seu exercício por ideais moralistas extremamente sensíveis.
Conclusão
O estudo feito sobre os limites morais do humor chegou a algumas conclusões
importantes.
Primeiro, que o tipo de humor que causa maior potencialidade de
dano sobre o alvo da piada, à audiência, e à opinião pública – o humor
estereotípico – não vem viciado de origem pelo simples fato da piada ter
conteúdo sexual, étnico ou contrário à religião. Se alguém condena toda
e qualquer forma de humor, então, provavelmente é um moralista forte ou
obstinado, mantenedor de postura excessivamente radical e implausível. Os
vícios do moralista cômico são duplos: a) ou seu conservadorismo o torna
insensível para distinguir piadas que utilizam generalizações estereotípicas,
cujo efeito cômico sequer tem a intensão de atacar o alvo da piada; ou b) sua
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convicção moral torna opaca a diferença entre casos de piadas estereotípicas
imorais, mas toleráveis (casos de piadas que criticam o preconceito real ou
que fazem humor sobre um grupo dominante), e moralmente reprováveis,
logo, alvos de reprimenda (casos de piadas estereotípicas que atingem
e estigmatizam pessoas ou grupos sociais em posição de fragilidade).
Segundo, que nem todo humor que utiliza estereótipos é nocivo. Muito
pelo contrário, esse tipo de humor (representado pela categoria das piadas boas) é
uma ferramenta valiosa na mão de humoristas conscientes, que podem empregálo para atacar a própria propagação de estereótipos fora do domínio cômico.
Terceiro, que no outro extremo, a dos comediantes amoralistas, a
desculpa “foi só uma piada! Não era para ser levado a sério” é uma justificativa
vazia incapaz de servir de escusa para casos em que há lesão produzida pelo humor.
Por fim, pôde-se demonstrar através da análise de uma
decisão judicial, que o critério para a avaliação moral do humor é
uma ferramenta útil para decidir se a intervenção estatal é necessária
para condenar certos tipos de humor lesivo. Também se provou que
o padrão de decisão que não considera a hipótese de o humor ser
sancionável é errônea, pois insiste na a justificativa “foi só uma piada”.
Desse modo, a conclusão ainda mantém a expressão do humor como
uma atividade prima facie boa e valiosa. O humor tem muitas características
positivas que acabam desaparecendo em uma análise sobre suas limitações.
Pode ser empregado para cutucar a ostentação e a pomposidade, suavizar os
ânimos, e ajudar às pessoas enfrentarem suas ansiedades, medos e fobias
(BENATAR, 2014, p. 35). Caso fosse censurado rígida ou previamente,
apesar de atacar o humor lesivo em sua raiz, o risco seria levar consigo
sementes de um humor sadio. A condenação ferrenha ao humor seguramente
destruiria o timing de muitas piadas inteligentes e a criatividade de
muitos comediantes, muitas risadas sadias seriam perdidas no processo.
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