A UTILIDADE DA EDUCAÇÃO EM ERASMO DE ROTTERDAM

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A UTILIDADE DA EDUCAÇÃO EM ERASMO DE ROTTERDAM
A UTILIDADE DA EDUCAÇÃO EM ERASMO DE ROTTERDAM
FAVORETO, Aparecida (UNIOESTE)
GALTER, Maria Inalva (UNIOESTE)
MANCHOPE, Elenita Conegero (UNIOESTE)
RESUMO:
O trabalho tem como objetivo apresentar a utilidade da educação na
concepção do renascentista Erasmo de Rotterdam (1460-1536) na obra De pueris
(1529). Este autor viveu numa época de grandes transformações sociais. Época em que,
imbuídos de um novo espírito, os homens ambicionam experimentar, observar,
descobrir, explorar a natureza e a capacidade humana para além dos limites
estabelecidos pelo mundo feudal; época em que eles se colocam como artífices do
próprio destino o que vai exigir também novos parâmetros para organizar a educação na
sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: educação, sociedade, transformação social
Erasmo de Rotterdam foi monge cristão ligado à Ordem dos agostinianos tendo
sido um dos pensadores mais profícuos da Europa renascentista. Sua obra caracteriza-se
pela retomada de importantes pensadores da Antigüidade, aos quais conferia agudo
senso de historicidade, de que carecia a cultura medieval envolta no ideal de
intemporalidade; pela convicção de que o mundo natural é o reino dos homens e não de
Deus; pela defesa da liberdade e da capacidade do homem de atuar sobre o mundo; pela
tolerância religiosa. Sua singularidade encontra-se no caráter crítico acerca dos
costumes, comportamentos, atitudes dos homens de sua época, principalmente dos
religiosos, sem, contudo, ter rompido com a Igreja. Tendo sido um dos precursores da
Reforma Religiosa desencadeada no século XVI, considerava que a Igreja precisava de
profundas modificações, mas não concordava com a intolerância dos reformadores aos
quais chamava de bárbaros e fanáticos.
Inúmeros fatos ou processos práticos explicam as profundas alterações ou os
conflitos que marcaram o período de transição do período feudal para a modernidade.
Desde o século XII, com o renascimento do comércio, os homens foram construindo
formas de intervenção na realidade social e no ambiente natural que cada vez mais os
distanciava da crença no poder divino para resolver os problemas humanos. Esse
distanciamento se apresenta de maneira mais notória principalmente a partir dos séculos
XV e XVI, sendo o comércio um dos seus maiores impulsionadores. Durante esse
período de expansão comercial, os homens lançam-se ao desconhecido e temido mar,
descobrindo novas terras, novos povos, novas possibilidades de organização social,
novas formas de produção e de troca de mercadorias. Descobrem que o mundo é um
espaço de trabalho e de lucratividade, não um sistema de esferas hierarquizadas como
pensava o homem medieval. Na verdade, os homens descobrem-se como construtores
do seu próprio destino.
As experiências realizadas com sucesso, e que contribuem para alterar a realidade
medieval, não favorecem a repetição de conhecimentos baseados somente na Bíblia.
Essas novas e úteis descobertas constituem manifestações das novas necessidades
criadas e, ainda que os homens não tenham plena consciência delas, as mudanças,
ocorrendo gradativamente, asseguram novas crenças, novos hábitos, novas relações
entre eles.
Erasmo viveu nessa época de grandes transformações. Época em que, imbuídos de
um novo espírito, os homens ambicionam experimentar, observar, descobrir; enfim,
explorar a natureza e a capacidade humana para além dos limites até então conhecidos.
Época em que os homens colocam-se como artífices do próprio destino. Essa nova
forma de produzir a vida vai exigir a elaboração sistemática de novos parâmetros para a
educação.
O processo de transição de uma forma de organização da produção para outra e,
conseqüentemente,
de
uma
forma
de
educação
para
outra,
não
acontece
intempestivamente. Em outras palavras, o homem não dormiu medieval e acordou
moderno. Num processo de transição, a velha e a nova forma de vida coexistem.
Coexistência esta repleta de contradições e enfrentamentos. Há uma luta constante. Nela
as formas antigas, perdendo a razão de ser, empenha-se para conservar-se; a nova
empenha-se para instituir-se. É da luta entre essas duas formas de vida que uma nova
prática social e, por conseguinte, uma nova educação vai se estabelecendo. Esse embate
pode ser constatado em diversos autores do período em que viveu Erasmo, reforçando a
idéia de que essa preocupação com uma nova forma de ser dos homens é uma
necessidade que se impõe na prática social e não uma idéia que ganha vida na cabeça de
um determinado autor.
Citamos, para exemplificar essa preocupação, autores como: Maquiavel (14691527) que, em sua obra O príncipe, revela-nos um progressivo distanciamento do
processo político medieval. Esse escrito desprendeu as normas políticas das concepções
teológicas vindas da Idade Média, para transformá-las em simples frutos da observação
direta e quotidiana, considerando a arte de governar sob um prisma exclusivamente
objetivo e realístico; Copérnico (1473 - 1543) que, ao propor a teoria heliocêntrica,
mostra-nos uma radical subversão na ordem hierarquizada do universo predominante
nas sociedades antiga e medieval. Após a descoberta de outros mundos, o sistema
geocêntrico, finito, esférico e hierarquizado de compreensão do mundo perde a razão de
ser; Thomas More (1478 -1535) que, através de sua obra Utopia, deixa entrever críticas
à forma de produção da vida dos homens, bem como à política, aos costumes, vícios e
virtudes humanas; Rabelais (1483?-1553) que, por meio de uma rica novela, Gargântua
e Pantagruel, faz uma caricatura da educação escolástica, mostrando que o homem
formado nesses ensinamentos torna-se um imbecil diante das necessidades de seu
tempo, que passam a exigir novos métodos para ensinar os homens.
Ao nos reportarmos a esses autores, não foi nossa intenção
entrarmos nas
especificidades de cada um, mas reafirmar a idéia de que a produção
de um
determinado teórico está vinculada às necessidades históricas que perpassam os mais
diferentes aspectos da vida social. Esses autores, cada um dentro de sua particularidade,
expressam o embate entre a velha forma de vida medieval e a nova forma emergente.
Todos estão preocupados em resolver os problemas postos na sociedade de sua época, a
exemplo de Erasmo que se preocupa, entre outras coisas, com a educação necessária a
esse novo tempo.
De pueris, por ter sido produzido nesse processo de transição, expressa justamente
as contradições, o embate entre a velha e a nova forma de educação. Erasmo, nesse
escrito, revela identificar-se com aqueles que se empenham para construir a nova forma.
Qual é a grande questão de Erasmo em De pueris?
Num período em que a velha maneira de viver dos homens evidência nitidamente
estar encerrando seu papel na história, diante da nova maneira que irrompe de maneira
inexorável, desorganizando os padrões, as regras, os comportamentos, as atitudes e os
costumes vigentes, a necessidade premente que se coloca para a sociedade é a de
organizar esse novo modo de viver. Erasmo, comprometido com à problemática de seu
tempo, quer justamente dar respostas, apresentar soluções para garantir a organização
social. Para isso, vai propor uma nova educação, cujos parâmetros não podem ser mais
os predominantes na velha organização social. Para garantir a produção humana e a vida
social, torna-se necessário educar o homem dentro das novas relações que estão se
constituindo, o que não se dá apenas através da vivência, mas exige uma orientação
sistemática e disciplinada, através da educação.
Essa parece-nos ser a principal
preocupação de Erasmo em De pueris.
Do estudo que realizamos, destacamos algumas características importantes que
denotam a utilidade que a educação passa a ter na época de Erasmo. Uma delas referese à secularização das questões sociais, no caso do escrito De pueris, à educação em
particular. No que toca a essa característica, destacamos as críticas que Erasmo fez à
educação ainda dominante na sociedade de sua época, dirigidas principalmente aos pais,
mas também, mordazmente aos preceptores. Interessante observar os argumentos que o
autor utiliza para fazer a crítica, pois não se apega a explicações de cunho teológico. Ele
parte dos costumes, hábitos e comportamentos existentes, ou seja, dos problemas
humanos, e busca respostas no âmbito do humano. Erasmo, como homem cristão, não
se desvencilha da crença em Deus, no entanto, relativiza sua importância perante os
homens, à medida que considera a educação (ação humana) como preponderante na
constituição da natureza humana. Para ele “A mãe natureza aparelhou com mais
recursos os animais desprovidos de fala para as funções genuínas. Todavia, não é
admirável é ter a divina Providência entregue ao único ser racional, dentre os viventes,
a maior parcela de sua natureza à educação?”1.
Ao negar a providência divina como responsável pelas atitudes do homem na
sociedade, autor demonstra que a razão humana passa a ser a
nova diretriz. No entanto, segundo Erasmo, não basta ter nascido dotado de razão para
fazer parte do gênero humano. A razão precisa ser exercitada, o que
requer intervenção humana. Para o autor, a educação é responsável pela humanização
dos homens. Essa questão fica mais evidente na passagem que abaixo transcrevemos:
Árvores crescem ao sabor da natureza improdutiva ou dando frutos silvestres.
Cavalos nascem até mesmo sem utilidade. Todavia, posso assegurar, os
homens não nascem. Eles são o resultado de uma modelagem. Os povos
primitivos, sem lei alguma, sem concúbito fixo, errantes pelas florestas, eram
antes feras que seres humanos. A razão faz o homem. Se esta capitula, o
capricho desregrado viceja à solta. Em suma, se a aparência fizesse os
homens, as estátuas seriam parte do gênero humano.2
Está ênfase dada ao uso da razão mostra o quanto o autor está percebendo as novas
necessidades que se colocam na sociedade de sua época. Afinal o alcance da inteligência
humana - razão exercitada: “ ... está, eloqüentemente, evidenciado porque, dia a dia,
1
ROTTERDAM, Erasmo. De pueris. Revista Intermeio. n. 3, p. 12. (Encarte especial).
As demais citações usadas nesse texto também referem-se a essa obra, portanto, faremos menção apenas
ao número da página.
2
p. 16.
estamos a ver máquinas engenhosas levantando pesos que, por força alguma, de outro
modo, não poderiam ser movidos”.3
Diante das mudanças que estavam se processando na sociedade de sua época,
Erasmo vai defender que não basta mais o uso da experiência prática, da experiência
enquanto vivência para resolver os problemas dos homens. Aliás, em várias passagens
de seu escrito, ele evidência essa questão, dizendo que os homens de sua época estão
atentos ao que se refere ao empenho para acúmulo de riquezas, porém, são descuidados
quando se trata da educação dos filhos. Erasmo tece vários comentários a esse respeito,
especialmente no que tange à
incompetência dos pais até mesmo na escolha do
preceptor de seus filhos.
Com efeito, embora não seja freqüente, mas é estupidez desconhecer a pessoa
a quem se entrega um cavalo ou uma propriedade rural para serem cuidados.
Por muito mais é, de todo, insensatez não avaliar a competência daquele a
quem se confia a porção mais nobre de tuas posses. Ali pões diligência para
aprender o que não tiras da tua própria experiência. Consultas alguém bem
esperto na área. Porém, aqui, pensas ser de somenos a quem confiar o filho.
Sim, a cada servo sabes, sem demora, atribuir os encargos. Avalias, e bem, o
indivíduo que vai ser encarregado do cultivo das terras ou quem vai ser
destinado para a cozinha ou incumbido de administrar seus bens. No entanto,
ao te deparar com alguém talhado para a inutilidade em qualquer função,
retardado, preguiçoso, imbecil, glutão, bem a ele é que confias a educação do
teu filho. Exatamente a tarefa que requer um artífice primoroso, fica em mãos
do menos apto dos fâmulos. Como admirar tanta coisa às canhas, se a mente
humana anda às avessas.4
Para o autor, os pais têm cautela ao escolher o responsável para ajudá-los a
administrar sua riqueza, mas não têm a mesma preocupação no que se refere à educação
do filho. A crítica de Erasmo é que não adianta acumular riquezas se não preparar
adequadamente a quem se destinam. Questiona o autor: “Para quem os pais semeiam?
4
p. 26.
Para quem aram? Para quem constroem? Para quem afadigam em angariar riquezas
por mar e por terra? Não é para seus filhos? Mas que uso e proveito hão de ter tantos
bens se aquele, a quem se destinam, não sabe como administrá-los?”5
Parece-nos que essa crítica é direcionada aos comerciantes que estão no auge da
acumulação de bens e riquezas.
Porém, temos a impressão de que Erasmo faz
considerações também aos nobres.
Indivíduos há de caráter sórdido que detestam contratar preceptor idôneo. No
entanto, pagam mais ao escudeiro do que ao educador do filho. Entrementes,
esbanjam, de roldão, com banquetes faustosos; passam noites e dias no
funesto jogo de dados, investem em caçadas e divertimentos. Mas, em face
daquele por cujo amor poder-se-iam dar por escusados pela parcimônia em
tudo o mais, aí primam pelo regateio e pela sovinice. Oxalá fossem poucos
aqueles que mais gastam com messalinas malcheirosas do que investem na
educação dos filhos.6
A insatisfação do autor para com estes homens (nobres) advém do fato de eles
gastarem muito com coisas "inúteis" e serem mesquinhos para investir na educação de
seus filhos. A crítica é também com relação ao ócio, pois neste período o que está
direcionando a sociedade é o trabalho.
Conforme já afirmamos anteriormente, as questões dos autores nesse período estão
permeadas pela luta entre a velha e a nova forma de organização da vida. Com Erasmo,
não é diferente. Por isso, faz críticas às práticas existentes, tanto aos velhos sujeitos
sociais, quanto aos novos, visto que, num processo de transição, não está claro para os
homens qual o direcionamento da vida social. Erasmo tece críticas à velha forma de ser
5
6
p. 13.
p. 26.
dos homens, mas também a certo desregramento que o novo apresenta. Para resolver os
problemas suscitados na prática social, acredita numa nova educação.
Erasmo atribui aos pais a responsabilidade pela educação, chama a atenção quanto à
dedicação que deve ser dispensada ao filho, principalmente no que se refere ao estímulo
ao uso da razão. Podemos verificar essa questão na seguinte passagem: “Para seres pai
autêntico deves dar dedicação plena ao filho por inteiro, sendo que a primazia absoluta
desse empenho recai sobre aquela parte que o sobrepõe aos animais e o aproxima bem
de perto, da semelhança com divindade”.7
Para o autor, engana-se quem pensa merecer o qualificativo de pai, apenas pelo fato
de ter gerado um filho. Para ele, ser pai implica na responsabilidade quanto ao
direcionamento da vida do filho, o que requer que, desde muito cedo, a criança “seja
iniciada nas boas letras, instruída nas melhores disciplinas assim como instruída e
formada nos salubérrimos princípios da filosofia8”. Para tanto, atribui aos pais a escolha
de bons preceptores, a aquisição de bons livros, assim como o ensino do bom
comportamento para a vida social.
Para Erasmo, o importante era fazer com que as crianças, por intermédio da
educação, aprendessem a amar e admirar o que é honesto; que tivessem horror às
torpezas e à ignorância; que atentassem para o fato de alguns serem admirados pelo bom
procedimento, enquanto outros são censurados pelos erros cometidos.
Que contemplem os exemplos daqueles que abeberaram, na fonte da
educação, glória altaneira, riqueza, altivez e autoridade. Ao contrário, vejam
os exemplos daqueles nos quais os maus hábitos esculpiram um espírito vazio
de entendimento. Isso só lhes reverteu em infâmia, desprezo, pobreza e
ruína.9
7
p. 11.
p. 09.
9
p.45-6.
8
Importante observar o que a educação representa para Erasmo: glória altaneira,
riqueza, altivez e autoridade. Também o seu contrário: infâmia, desprezo, pobreza e
ruína. Essas palavras são bastante significativas se colocadas no contexto em que viveu
Erasmo. As primeiras, podemos dizer, referem-se aos novos atributos que passam a
direcionar a vida dos homens, homens que se empenham em fazer a história a sua
imagem e semelhança. As segundas, referem-se aos atributos da velha sociedade que
ainda insiste em manter-se viva. Erasmo prima pela construção dos novos valores que,
não sendo incorporados pelos homens de seu tempo, poderiam transformá-los em
"feras" e não seres humanos. Daí a importância fundamental que esse autor atribui à
educação, pois a considera como condição para a humanização.
BIBLIOGRAFIA
JOLIBERT, Bernard. De pueris: a educação das crianças de Erasmo. Tradução: Lígia
Regina Klein e Maria Auxiliadora Cavazotti. Revista Intermeio, n. 2, p. 33- 44, (Encarte
Especial).
MACHIAVELLI, Niccolo. O príncipe. 20ª ed., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.
MORE, Thomas. A Utopia. In: Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural,
1972.
RABELAIS, François. Gargantua. São Paulo, HUCITEC, 1986, p. 85-137.
ROTTERDAM, Erasmo. De pueris. Apresentação: Fani Goldfard Figueira; Tradução:
Luiz Feracine. Revista Intermeio, n. 3, p. 1- 60, (Encarte especial).
ROTTERDAM, Erasmo. Vida e obra. In: Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril
Cultural, 1988, p. VI -XVIII.