anais dos grupos de trabalho

Transcrição

anais dos grupos de trabalho
Ricardo Marcelo Fonseca
Luis Fernando Lopes Pereira
Ivan Furmann
Organizadores
ANAIS DOS GRUPOS DE TRABALHO
DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE
HISTÓRIA DO DIREITO
Curitiba
2013
Créditos dos Anais.
Organização e recebimento dos textos: Ricardo Marcelo Fonseca e Luís Fernando Lopes
Pereira
Formatação, Layout e Editoração gráfica: Ivan Furmann
Crédito da Capa: Afresco de Ambrogio Lorenzetti (c. 1290 - c. 1348). Alegoria do Bom
Governo (c. 1337-1340). Afresco, 296 x 1398 cm. Siena, Palazzo Pubblico, Sala dei Nove.
Arte da Capa: Carina Furmann
V CONGRESSO BRASILEIRO DE
HISTÓRIA DO DIREITO
As Formas do Direito
Ordem, Razão, Decisão
Experiências jurídicas antes
e depois da modernidade
Com a concessão do título de Doutor “Honoris Causa” da Universidade
Federal do Paraná ao Professor Paolo Grossi
Realizado entre os dias 29/08/2011 e 02/09/2011
Auditório da Reitoria da UFPR
Curitiba – Paraná – Brasil
DIRETORIA DO IBHD (2009-2011)
COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO
Diretor Presidente
Ricardo Marcelo Fonseca
Presidência do IBHD e da Comissão
Organizadora
Ricardo Marcelo Fonseca (UFPR)
Diretor Vice-Presidente de Assuntos
Institucionais
Antonio Carlos Wolkmer
Diretor Vice-Presidente de Assuntos
acadêmicos
Arno Dal Ri Junior
Secretário Geral
Andrei Koerner
Tesoureiro
Luis Fernando Lopes Pereira
Conselho fiscal
Martonio Montalverne Barreto Lima
Airton Cerqueira Leite Seelaender.
DIRETORIA DO IBHD (2011-2013)
Diretor Presidente
Ricardo Marcelo Fonseca
Diretor Vice-Presidente de Assuntos
Institucionais
Arno Wheling
Diretor Vice-Presidente de Assuntos
Acadêmicos
Samuel Rodrigues Barbosa
Secretário Geral
Airton Cerqueira Leite Seeaender
Tesoureiro
Christian Lynch
Conselho fiscal
Luis Fernando Lopes Pereira
Cristiano Paixão.
Comissão Científica
Airton L. Cerqueira Leite Seelaender (UFSC)
André Peixoto de Souza (UFPR)
Andrei Koerner (UNICAMP)
Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)
Arno Dal Ri Júnior (UFSC)
Giberto Bercovici (USP)
Luis Fernando Lopes Pereira (UFPR)
Samuel Rodrigues Barbosa (USP)
Sergio Said Staut Junior (UFPR)
Walter Guandalini Junior (UFPR)
Comissão executiva
Anderson Paz
Andressa Regina Bissolotti dos Santos
Breezy Miyazato Vizeu
Danielle Wobeto Araújo
Douglas da Veiga Nascimento
Guilherme Amintas
Ivan Furmann
João Paulo Arrosi
Juliano Rodriguez Torres
Liliam Ferrarese Bighente
Luize Navarro
Mauricio Galeb
Oriana Balestra
Ozias Paese Neves
Michael Dionisio de Souza
Paulo Drummond
Priscila Soares Crocetti
Raphael Moraes
Rebeca Fernandes Dias
Sonia Martins de Oliveira
Vanessa Massuchetto
Thais Pinhata de Souza
Thayse Fedalto
Thiago Hoshino
SUMÁRIO
Grupo de Trabalho: Teoria e Metodologia da História do Direito ........................................... 10
Grupo de Trabalho: Filosofia da História do Direito ............................................................. 140
Grupo de Trabalho: Ensino e Cultura Jurídica ....................................................................... 245
Grupo de Trabalho: Justiça, Administração e Governo ......................................................... 394
Grupo de Trabalho: Direito e Práticas Punitivas .................................................................... 613
Grupo de Trabalho: Direito e Trabalho .................................................................................. 726
Grupo de Trabalho: Iniciação Científica ................................................................................ 776
Apresentação
Esta publicação é fruto da apresentação de trabalhos ao V Congresso Brasileiro de
História do Direito, ocorrido em Curitiba entre 29 de agosto e 30 de setembro de 2011, na
Universidade Federal do Paraná, promovido pelo Instituto Brasileiro do História do Direito
(IBHD), ocasião em que o professor Paolo Grossi recebeu o título de doutor honoris causa da
instituição. Novamente contando com a presença de pesquisadores europeus e nacionais de
alto nível, pertencentes a instituições prestigiadas e tradicionais nas áreas de Teoria e História
do Direito, o evento refletiu a intensificação dos diálogos e o crescimento significativo que a
área tem tido junto aos pesquisadores brasileiros.
Há que se destacar como fator determinante para tal, as ações da Instituição promotora.
Não somente o Congresso, mas também da publicação de seus anais. O núcleo de
historiadores do Direito formado ao redor do IBHD tem se caracterizado como a base de
sustentação de uma proliferação de pesquisas dos mais diversos matizes teóricos e com as
mais variadas contribuições para a área histórico jurídica. Isso fica perceptível aqui nessa
coletânea de ensaios.
Neles encontramos uma linha dada pelos pesquisadores do IBHD que são bastante
referenciados pelos autores dos textos que seguem, fundamentando suas pesquisas em diálogo
com um acúmulo construído por professores como Ricardo Marcelo Fonseca, Antônio Carlos
Wolkmer, Airton Cerqueira Leite Seelaender, Cristian Lynch, Arno Wehling, Samuel
Rodrigues Barbosa e Gilberto Bercovici, para ficar nos exemplos mais evidentes. Ainda, os
textos apontam para um uso bastante significativo dos autores que tem dialogado não apenas
nos Congressos do IBHD, mas em várias outras iniciativas criadas pela área, no Brasil, na
Alemanha, Espanha, Portugal e Itália. Entre os autores mais citados estão Paolo Grossi,
António Hespanha, Pietro Costa, Massimo Meccarelli e Carlos Petit, além de clássicos como
Mario Sbricoli, Franz Wieacker, John Glissen e Reinhart Koselleck.
Percebemos nesse diálogo a maior solidez metodologica verificada nos trabalhos aqui
apresentados, que tem tido maior clareza em perceber os caminhos a serem trilhados na
construção de uma relativa autonomia para a área de pesquisa histórico jurídica. Isso exige a
melhor definição das particularidades da disciplina em relação a história geral, grande
contribuição de todos os autores acima citados e que são utilizados pelos pesquisadores aqui
apresentados como referência precisamente para tais procedimentos. Assim, percebe-se a
contribuição particular de um campo de pesquisa, que ao calibrar o enfoque de forma mais
precisa consegue desvelar faces ignoradas por outras perspectivas historiográficas que não
focam no fenômeno jurídico. A percepção, recepcionada pela história grossiana
prioritariamente, de uma dimensão específica do jurídico e sua busca ficam evidentes nos
trabalhos aqui apresentados, mesmo os que não fezem explícita referência a tal questão. Com
isso a história do Direito não pretende se arvorar como a detentora de uma verdade histórica
diversa daquela da história geral e combater aquela visão. Trata-se, ao contrario, de tornar a
pesquisa histórica mais complexa porque atenta a um fenômeno que tem sido negligenciado,
mas que tem se demonstrado (nas pesquisas aqui apresentadas, por exemplo) como elemento
estruturante da sociedade. Inserir o jurídico é complexificar o olhar historiográfico e revelar
seus ângulos desprivilegiados. A maturidade acadêmica revelada nos trabalhos que se seguem
demonstram uma maior segurança da área das pesquisas e maior ousadia na ampliação de
fontes e na pluralidade de enfoques e temas.
Podemos ter um bom quadro desse debate a partir da leitura dos trabalhos aqui
apresentados, divididos em seis grupos (Teoria e Metodologia da História do Direito;
Filosofia da História do Direito; Ensino e Cultura Jurídica, Justiça, Administração e Governo;
Direito e Práticas Punitivas e Direito e Trabalho) e um esecífico para a Iniciação Científica
que demonstra a inserção da área já entre os alunos pesquisadores de graduação.
Mas, de outro lado, não se faz aqui a velha história do Direito, talvez excessivamente
autônoma e mesmo pouco historicizada, meramente laudatória a juristas e ao meio social dos
operadores do Direito. Os trabalhos aqui revelam também a utilização de instrumentais
historiográficos de forma adequada, visando garantir de certa forma, uma coerência científica
para as pesquisas, que fazem uso requintado e profundo de instrumentais e ferramentas
ofertadas pelo diálogo com clássicos da historiografia como Marc Bloch, Le Roy Ladurie,
Jacques Le Goff, Fernand Braudel (todos da historiografia francesa dos Annales,
predominante nos referenciais). Embora tenham desprestigiado o Direito, metodologicamente
são os mais utilizados, em particular na busca daquilo que se consolida como jurídico na
longa duração e em seu teor crítico em relação ao positivismo histórico.
Há que se destacar também o uso de autores ingleses como Perry Anderson, Edward
Thompson e Eric Hobsbawm. Embora de raiz marxista, os autores relativizam o determinismo
econômico e defendem a autonomia relativa da superestrutura, sendo adequados ao uso em
um estudo que centra em um objeto pertencente a superestrutura, como o Direito. Mas o uso
desses autores também se intensificou pelo debate cultural, o que remete a outros clássicos
citados como Carlo Ginzburg, Roger Chartier, Michel de Certeau, Michel Foucault, Robert
Darnton, Walter Benjamin, Pierre Bourdieu e Mikhail Bakhtin.
O diálogo entre esses autores e os historiadores do direito acima citados permitiu a
apresentação de temas complexos e variados que englobam debates dos mais atuais no campo
da historiografia, como a questão do estatuto da verdade histórica, o papel da narrativa, a
crítica ao testemunho, a questão da experiência jurídica, o conceito de cultura jurídica e suas
utilizações, a história das representações, o pensamento jurídico, o moderno e a modernidade,
a relação entre o juiz e o historiador, a relação entre história do direito e história da cidade,
etc.
Merece destaque também o uso feito nos trabalhos apresentados de farta bibliografia
nacional, de clássicos antigos e novos da historiografia brasileira ou de brasilianistas, como
Emilia Viotti da Costa, José Murilo de Carvalho, Ronaldo Vainfas, Nelson Werneck Sodré,
Thomas Skidmore, Nicolau Sevcenko, Lilia Moritz Schwarcz, Boris Fausto, Sérgio Buarque
de Holanda, Roberto Damatta, Charles Boxer e Lenine Nequete. A partir deles, temas da
história jurídica nacional foram problematizados, seja para a desconstrução das visões
tradicionais e meramente elogiosas, como nas análises sobre Sílvio Romero, Tobias Barreto e
Campos Sales, ou temas mais gerais como a problematização acerca do papel dos intelectuais
e jusristas na construção da cultura jurídica brasileira do século XIX, a relação entre Estado e
História, o bacharelismo e as representações políticas. Ou recortes mais específicos de
análises que problematizam o discurso fundador do direito civil, as deposições de
governadores na República Velha, os debates acerca do Código Civil de 1916, a Doutrina de
Segurança Nacional, o Estado de Exceção de 1964, a relação entre Ditadura e Ensino e entre
juristas e ditadura, além da questão da ordem na Primeira República, a relação entre juristas e
medicos na criminologia do início do século XX, a Almotaçaria, a reforma judiciária de 1841,
o direito lusitano e brasileiro no início do XIX, além do Iluminismo penal.
De outra lado, seguindo a tentativa de resgate de excluídos da história e de uma história
do direito vista de baixo, a recuperação do tratamento jurídico dado aos escravos nas
Ordenações, a educação das mulheres no Império, a cultura jurídica abolicionista, a política
indigenista da Coroa Portuguesa, os direitos territoriais indígenas de João Mendes Junior, a
justiça do Trabalho, a gênese do direito administrativo brasileiro, o etc.
É perceptível também nos trabalhos a ampliação das fontes históricas utilizadas. De um
lado, o uso de fontes doutrinárias tradicionais para, em uma leitura a contrapêlo, a
desconstrução dos mitos erguidos pela historiografia celebratória; de outro, a busca de novas
fontes que revelem facetas menos evidentes da cultura jurídica, como os processos judiciais,
as revistas jurídicas e mesmo uma história do livro jurídico e sua difusão e uso no século XIX.
Temas que resvalam de uma mameira ou de outra no eixo central do Congresso:
Experiências jurídicas antes e depois da modernidade.
Prof. Dr. Luís Fernando Lopes Pereira
Grupo de Trabalho: Teoria e Metodologia da
História do Direito
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
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CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA
DE E. P. THOMPSON
FIVE POINTS FOR A CRITICAL HISTORY OF LAW FROM THE WORK OF E. P.
THOMPSON
Adailton Pires Costa*
Resumo: A partir do pensamento do historiador E. P. Thompson, em especial de sua lógica histórica proposta no
livro Miséria da Teoria, pretende-se analisar cinco pontos que contribuem para a realização de uma História
crítica do Direito. O objetivo é demonstrar como a prática da História do Direito está acompanhada de
pressupostos teóricos, filosóficos e metodológicos que explicitam se a pesquisa histórica é oficial e tradicional
ou é uma pesquisa crítica. Busca-se, a partir desses cinco pontos, denunciar os limites de uma história do Direito
oficial e hegemônica na cultura jurídica e, por outro lado, anunciar a possibilidade de uma outra história vista a
partir de baixo, a contrapelo, crítica.
Palavras-chave: Lógica histórica, E.P. Thompson, História Crítica do Direito, História do Direito oficial.
*
Graduado em Direito pela UFSC. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal de Santa Catarina, Área de Concentração em Teoria, Filosofia e História do Direito, e bolsista do CNPQ.
Endereço eletrônico: [email protected].
12 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P.
THOMPSON
Introdução
Raramente a distância entre reflexão metodológica e prática historiográfica efetiva
foi tão grande nos últimos decênios. (Carlo Ginsburg, 2002)
A herança bacharelesca no Brasil insiste em requisitar a presença em cada monografia,
dissertação e tese de Direito, como ornamento retórico, do famigerado “Breve escorço
histórico”. Sabido é que esse fato apenas legitima uma História oficial, tradicional e acrítica e
que, às vezes, por mais crítico que possa ser o trabalho, a História oficialesca está ali, na
introdução da pesquisa, como eterno resgate às origens da fundação de Roma.
Não obstante essa realidade, existem esforços de combate a esse discurso tradicional da
História. Para contribuir nesses combates em defesa de uma História do Direito com um viés
crítico, utilizar-se-á a obra de Edward Palmer Thompson, em especial o livro “A Miséria da
Teoria”. Particularmente no capítulo VII, Thompson apresenta uma análise a partir do
materialismo histórico sobre Teoria da História, apontando 8 proposições para o que ele
denomina de lógica histórica.
Entretanto, deve-se ressaltar que Thompson nunca foi um autor de consensos teóricos,
pois ele sempre foi um a(u)tor da prática, seja da prática histórica ou da política.1 Em sua vida
inteira, evitou ao máximo fazer teorizações e esteve sempre em confronto com o
academicismo abstrato, com a ortodoxia marxista filosófica e com as teorias da História
oficialesca. Por isso, falar em teoria da História em Thompson é falar não em um conjunto de
dogmas ahistóricos, mas em métodos próprios da disciplina História que permitam realizar a
pesquisa historiográfica efetiva. Logo, para esse historiador, Teoria da História sem prática
histórica é um engodo. Contudo, isso não significa que seja um adepto de um empirismo sem
mais. Pelo contrário, ele reconhece as contribuições da teoria, principalmente a marxista – faz
exatamente uma defesa do materialismo histórico2 - e exatamente por isso se propõe, num
debate dentro da tradição marxista, expor um conjunto de proposições teóricas de utilidade
para a reflexão crítica e prática de todo historiador.
É a partir das proposições da lógica histórica apresentada por Thompson que se
pretende desenvolver cinco pontos necessários para a realização de uma História crítica do
Direito que permita, por um lado, criticar e denunciar os pressupostos da história oficial e
tradicional do Direito e, de outro lado, desenvolver outros pressupostos teóricos e
metodológicos para a realização de uma história vista a partir de baixo, a contrapelo, crítica.
1 A História como tribunal da verdade histórica: em defesa da verdade
na História e da especificidade da lógica histórica
Agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho [...] Agora
conheço em parte [...].
(I Coríntios 13:12)
A partir da obra de E. P. Thompson, o primeiro ponto para se caracterizar uma “História
Crítica do Direito” refere-se aos pressupostos do conhecimento histórico, ou seja, sobre o
posicionamento em relação à verdade na História e à especificidade do método histórico, que
Thompson define como “Lógica Histórica”.
Para os cultores da história oficial, a verdade é tudo ou nada: “tudo” diz a história
positivista, que ainda é a predominante na prática da academia, com a crença de um acesso
1 Thompson destaca que a lógica histórica é uma disciplina central para a prática do historiador e reconhece que
a variedade de entendimento sobre essa temática é tão grande que fica difícil “apresentar qualquer coerência
disciplinar” (THOMPSON, 1981, p. 47-48).
2 Para Thompson, o que diferencia o materialismo histórico de outros métodos é a característica específica de
seus conceitos e hipóteses (e procedimentos) articulados em torno de uma totalidade conceitual. (THOMPSON,
1981, p. 54 e 61)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
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neutro, avalorativo, completo e objetivo ao conhecimento; “nada”, falam os historiadores pósmodernos (herdeiros de um historicismo cético), que, num relativismo extremo, tornam
narrativa fictícia toda história, negando qualquer verdade histórica. De um lado, os
positivistas identificam conhecimento histórico com conhecimento científico, submetendo
esses ao crivo da lógica empírica da ciência natural para verificar toda a verdade dos fatos
históricos; por outro lado, os pós-modernos, combinando as “lógicas” da filosofia e da
literatura, sepultaram, por meio de teorias, a verdade histórica, na acusação de que a verdade
em si mesma não existe, é uma ficção “histórica”.
Distante desses absolutos de ambas as correntes da história oficial, Thompson destacará
que a mediação da práxis histórica só permite acessos provisórios (parciais) a um passado que
existiu e que é verdadeiro e, por isso, tem um status ontológico da verdade. Para o historiador,
os processos acabados da mudança histórica, com sua complicada causação,
realmente ocorreram, e a historiografia pode falsificar ou não entender, mas não
pode modificar, em nenhum grau, o status ontológico do passado. O objetivo da
disciplina histórica é a consecução dessa verdade da história. (THOMPSON, 1981,
p. 51).
Afirma ainda que
o historiador está autorizado em sua prática a fazer, uma suposição provisória de
caráter epistemológico: a de que a evidência que está utilizando tem uma existência
‘real’ (determinante), independente de sua existência nas formas de pensamento, que
essa evidência é testemunha de um processo histórico real, e que esse processo (ou
alguma compreensão aproximada dele) é o objeto do conhecimento histórico. Sem
tal suposição, o historiador não pode agir: deve sentar-se numa sala de espera à porta
do departamento de filosofia por toda a sua vida. (THOMPSON, 1981, p. 37- 38)
No livro “Miséria da Teoria”, Thompson apresenta 8 proposições que compõem a
Lógica Histórica, sendo que na quinta proposição o historiador marxista inglês assevera: “[...]
o objeto do conhecimento histórico é a história ‘real’” (THOMPSON, 1981, p. 50),3 que é
depurada não por métodos filosóficos ou científicos, mas por um método próprio da História,
denominado de Lógica Histórica4. Na primeira proposição, ainda ratifica que “o objeto
imediato do conhecimento histórico [...] compreende ‘fatos’ ou evidências certamente dotados
de existência real, mas só se tornam cognoscíveis segundo maneiras [procedimentos] que são
e devem ser a preocupação dos vigilantes métodos históricos.” (THOMPSON, 1981, p. 49)
Ou seja, as evidências só se tornam cognoscíveis pelos métodos históricos.
Ademais, afirma Thompson que a
relação de conhecimento entre o real e o real” pode ainda perfeitamente ser uma
relação real e determinante, isto é, uma relação da apropriação ativa por uma parte
(pensamento) da outra parte (atributos seletivos do real) e essa relação pode ocorrer
não em quaisquer termos que o pensamento prescreva, mas de maneiras que são
determinadas pelas propriedades do objeto real: as propriedades da realidade
determinam tanto os procedimentos adequados de pensamento (isto é, sua
3 Thompson elogia Marc Bloch (“formidável praticante do materialismo histórico”), pois, com robusta
confiança, o historiador francês afirmou o caráter objetivo de seu material: “O passado é, por definição, um dado
que nada no futuro modificará”. (THOMPSON, 1981, p. 28-29). Ao escrever essa passagem, M. Bloch continua
com a seguinte afirmação “Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se
transforma e aperfeiçoa”. (BLOCH, 2001, p. 75). De outro marco, Carlos Ginsburg, numa crítica aberta ao
relativismo céptico dos pós-modernos, afirma que “As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam
os positivistas, nem muros que obstruem a visão como pensam os cépticos: no máximo poderíamos compará-las
a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer fonte implica já um elemento construtivo.
Mas a construção [...] não é incompatível com a prova” (GINSBURG, 2002, p. 44-45).
4 Sobre a caracterização da História como uma ciência, Thompson entende “que a tentativa de designar a
história como ‘ciência’ sempre foi inútil e motivo de confusão.” (THOMPSON, 1981, p. 50)
14 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P.
THOMPSON
‘adequação’ ou ‘inadequação’) quanto seu produto. Nisto consiste o diálogo entre a
consciência e o ser. (THOMPSON, 1981, p. 26)
Por conseguinte, verifica-se, então, que o objeto da História impõe as suas propriedades
e a sua lógica ao historiador, enquanto que o historiador impõe suas “ferramentas mentais”,
suas habilidades e sua concepção, modelo, teoria.
Portanto, consoante o autor, a lógica da História é de um tipo diferente, distinta de todas
as outras. Ela não se enquadra nos critérios de verificação experimental da lógica da física,
nem nos critérios da lógica analítica da filosofia. A diferença é que na História se analisam
fenômenos reais humanos5 que estão sempre em movimento, com manifestações
contraditórias, “cujas evidências particulares só podem encontrar definição dentro de
contextos particulares”. (THOMPSON, 1981, p. 48) Assim, compreendemos que, em
Thompson, o material por excelência do historiador é a evidência (não é um fato isolado) de
comportamento (regularidade particular) acontecendo (processual–não estático) no tempo.
Em resumo, o historiador marxista define a lógica histórica como “um método lógico de
investigação adequado a materiais históricos, destinado, na medida do possível, a testar
hipóteses quanto à estrutura, causação, etc., e a eliminar procedimento autoconfirmadores
(‘instâncias’, ‘ilustrações’)”. (THOMPSON, 1981, p. 49). Na oitava proposição da lógica
histórica, Thompson conclui que “A história em si é o único laboratório possível de
experimentação e nosso único equipamento experimental é a lógica histórica.” (THOMPSON,
1981, p. 58) As conseqüências práticas dessa conclusão é que o historiador deve verificar
empiricamente (perante as evidências), na prática histórica, se o seu modelo analítico é
sustentável. No referir do autor,
Na medida em que uma noção é endossada pelas evidências, temos então todo o
direito de dizer que ela existe ‘lá fora’, na história real. [...]. O que estamos dizendo
é que a noção (conceito, hipótese relativa a causação) foi posta em diálogo
disciplinado com as evidências, e mostrou-se operacional; isto é, não foi
desconfirmada por evidências contrárias, e que organiza com êxito ou ‘explica’
evidências até então inexplicáveis. Por isto, é uma representação adequada (embora
aproximativa) da sequência causal, ou da racionalidade, desses acontecimentos, e
conforma-se, (dentro da lógica da disciplina histórica) a um processo que de fato
ocorreu no passado. Por isso, essa noção existe simultaneamente como um
conhecimento ‘verdadeiro’, tanto como uma representação adequada de uma
propriedade real desses acontecimentos. (THOMPSON, 1981, p. 54)
Percebe-se, então, que esse processo de experimentação no laboratório da História exige
uma autocrítica permanente, chamado de “Tribunal de recurso disciplinar”. Para Thompson,
o “tribunal de recursos final da disciplina” não é uma teoria pré-dada que determina o que é
ou não é verdade histórica, mas é, na verdade, a evidência sob uma forma probatória. Cabe
salientar que também não é a evidência em si mesma, mas sim a lógica histórica, ou seja, é a
evidência interrogada pelos métodos dessa lógica. (THOMPSON, 1981, p. 49). Além da
forma probatória de verificação das evidências6, o Recurso disciplinar ainda pode tomar uma
forma teórica “referente à coerência, adequação e consistência dos conceitos, e a sua
congruência com o conhecimento de disciplinas adjacentes” (THOMPSON, 1981, p. 55).
Contudo, “ambas as formas de recurso, porém, só podem ser encaminhadas dentro do
vocabulário da lógica histórica” (THOMPSON, 1981, p. 55).
5 Thompson vai afirmar que “o diálogo entre a consciência e o ser torna-se cada vez mais complexo [...] quando
uma consciência crítica está atuando sobre uma matéria prima feita de seu próprio material: artefatos
intelectuais, relações sociais, o fato histórico” (THOMPSON, 1981, p. 27).
6 Para Thompson, “o falso conhecimento histórico está, em geral, sujeito à desconfirmação.” (THOMPSON,
1981, p. 50)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
15
Vê-se, então, que Thompson se utiliza de uma linguagem figurada para explicar que as
novas pesquisas historiográficas (os recursos) se tornam um resgate aproximado da verdade
histórica, na prática empírica da disciplina historiográfica (experimentos no laboratório da
História), por meio de métodos de pesquisas próprios (lógica histórica). E nesse “laboratório”
é possível uma multiplicidade mesma dos “experimentos” e uma congruência mútua; contudo,
por ser histórico, possui uma parte negativa: um elemento contingente negligenciado pode
alterar completamente os resultados (THOMPSON, 1981, p. 59).
Aplicado ao Direito, a lógica histórica de Thompson afronta tanto a versão positivista da
historiografia jurídica que pretende revelar cristalinamente, como “fatos sobre a mesa”
(THOMPSON, 1981, p. 49), o que foi o Direito no passado, quanto a versão pós-moderna que
torna ficção e ilusão toda tentativa de aproximação da verdade histórica.
Portanto, a História Crítica do Direito deve realizar uma história que, ao explicitar e
problematizar seus pressupostos teóricos e seus procedimentos metodológicos, se posicione
em defesa da verdade histórica. Da mesma forma, a prática da historiografia crítica no Direito
deve apontar a especificidade empírica da lógica histórica, desmitificando a completude do
discurso oficial no Direito que tenta impingir o caráter definitivo do passado histórico nas
evidências – transitórias e incompletas - do conhecimento desse mesmo passado.
2 Explicitação do método (lógica histórica) e superação da divisão
entre relações sociais e normas jurídicas (O que é o Direito?)
Uma prática freqüente na história oficial do Direito é a ocultação do método de pesquisa
utilizado que oculta e nega seus valores e pontos de vista, impróprios, porém inevitáveis, que
permeiam toda pesquisa. Não raro, o historiador até faz um discurso crítico na sua escrita da
história, entretanto, na sua pesquisa empírica o verdadeiro método é oculto e a história
apresentada é, na verdade, a visão oficial do Direito na História.
Contra essa versão oficial, a história crítica deve, então, não somente aplicar a lógica
histórica, mas também explicitá-la. Sobre essa exigência, Thompson faz a seguinte ressalva:
As operações efetivas dessa lógica não são visíveis, passo a passo, em cada página
do historiador. Se o fossem, os livros de história esgotariam qualquer paciência. Mas
essa lógica deveria estar implícita em cada confronto empírico, e explícita na
maneira pela qual o historiador se posiciona ante as evidências e nas perguntas
propostas. (THOMPSON, 1981, p 61-62).
Portanto, segundo o autor, explicitar o método histórico é explicitar a relação do
historiador com as evidências e com as perguntas propostas. Na sua sexta proposição da
lógica histórica, Thompson entende a investigação da História como processo, como
‘desordem racional’, que acarreta “noções de causação, de contradição, de mediação e de
organização (por vezes estruturação) sistemática da vida social, política, econômica e
intelectual” (THOMPSON, 1981, p. 53). Nota-se, então, que, embora exista diferença entre o
método de análise e o método de exposição, o pesquisador deve expor as mediações,
causações, organizações e contradições presentes no diálogo entre as perguntas propostas e as
evidências existentes durante a prática histórica.
Segundo o historiador inglês, a lógica histórica é composta de evidências de causas
necessárias, mas nunca suficientes, pois está sempre suscetível às contingências do processo
social e econômico (THOMPSON, 1981, p. 48). A História não é governada por regras, não
trata de absolutos e não pode apresentar causas suficientes. (THOMPSON, 1981, p. 60-61).
Assim, essa constante provisoriedade do conhecimento histórico, conformada pelos processos
sociais e econômicos, tem que ser explicitada como uma das características do método
histórico.
16 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P.
THOMPSON
Diante desse entendimento, por óbvio que o historiador do Direito também não pode
omitir o contexto social e econômico que permeia as evidências jurídicas. A historiografia
deve ir para além da simples norma, superar a divisão positivista entre relações sociais e
normas jurídicas, demonstrando o Direito como expressão de fontes de juridicidade não
desvinculados das outras esferas do social como a política, a economia, a cultura, as classes
sociais etc.7 A história do Direito não pode ser realizada nos limites das fontes oficiais do
Direito. Para explicar a “sequência particular de causação” (THOMPSON, 1981, p. 57) que
forma e define o fenômeno histórico, a história do Direito não pode limitar a pesquisa nas
“fontes históricas” apenas aquelas “fontes oficiais do Direito” - lei, doutrina, jurisprudência pela qual a cultura jurídica oficial diz que provém o Direito. À contrapelo dessa versão
tradicional das “fontes do direito”, deve-se resgatar as experiências não-oficiais de expressão
de juridicidade.8
Na análise das fontes da história e, principalmente, das fontes do direito, é preciso
verificar o “diálogo” necessário, presente na lógica histórica de E. P. Thompson, entre o ser
social e a consciência social, representado na experiência humana. Para o historiador, a
experiência de classe é “determinada em grande medida pelas relações de produção”
(THOMPSON, 1987, p. 10), enquanto que a consciência de classe (que é um subtipo de
experiência) é a “forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas
em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece
como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe” (THOMPSON, 1987, p.
10). Assim, Thompson (1981B, p. 405-406) afirma que “a experiência é um conceito de
junção, o que realiza a ligação entre a cultura e a não-cultura, estando metade dentro do ser
social, metade dentro da consciência social”. Nesse sentido, distingue dois níveis de
experiência: a experiência I – a experiência vivida – e a experiência II – a experiência
percebida,
A experiência I está em eterna fricção com a consciência imposta. Quando ela
irrompe, nós, que lutamos com todos os intricados vocabulários e disciplinas da
experiência II, podemos experienciar alguns momentos de abertura e de
oportunidade, antes que se imponha mais uma vez o molde da ideologia.
(THOMPSON, 1981B, p. 406).
Assim, a partir da noção de experiência, é possível compreender homens e mulheres
como sujeitos com relativa autonomia e voz na História. Contudo, ressalva Thompson,
[...] não como sujeitos autônomos, ‘indivíduos livres’, mas como pessoas que
experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades
e interesses e como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua
consciência e sua cultura [...] e em seguida [...] agem, por sua vez, sobre sua situação
determinada. (Thompson, 1981, p. 182)
7 Para Pashukanis “o direito, enquanto conjunto de normas, não é senão uma abstração sem vida” [...] “a escola
normativa, liderada por Kelsen, nega completamente a relação entre os sujeitos, recusando considerar o direito
sob o ângulo da sua existência real e concentrando toda a sua atenção sobre o valor formal das normas.”
(PACHUKANIS, 1988, p. 47)
8 Estas experiências são encontradas, inclusive, nas falas não explicitadas dos documentos escritos. Mikhail
Bakhtin fez os historiadores se voltarem para a percepção das várias vozes não explícitas existentes nos
documentos históricos, concentrando-se em compreender a polifonia que estes carregam. Ver: BAKHTIN,
Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São
Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. Da UnB. 1987._____; Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12ª Edição. São
Paulo: HUCITEC, 2006.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
17
Desse modo, pela introdução da idéia de “experiência”, Thompson supera o
determinismo a-histórico do marxismo ortodoxo e transmuda a “estrutura material” em
processo histórico, reinserindo o sujeito, a classe e sua cultura dentro da História.
Na história oficial do Direito, verifica-se que a cultura e as relações sociais das pessoas
reais são omitidas na caracterização do que é o Direito. Essa omissão é feita por uma
depuração que limita e naturaliza as fontes do Direito às fontes normativas oficiais. Essa
depuração da realidade jurídica, feita especialmente pelo monismo estatal positivista, afasta o
Direito da história social. Ao reproduzir, na prática histórica, essa divisão dogmática e
estanque entre relações sociais e normas jurídicas, a história oficial já pré-conceitua sua noção
de Direito. Portanto, a História oficial do Direito, ao mesmo tempo em que omite seu método
próprio, nega a possibilidade de pesquisa de “fontes do Direito” não tradicionais - separando o
Direito da vida real, congelando a realidade no monismo legalista.
Contra essa versão tradicional, a história crítica deve demonstrar que a pesquisa do
Direito não se limita às leis, aos juristas e aos Tribunais, ela abarca também outras expressões
da realidade do Direito como: formas de juridicidade não-estatais, os atores atingidos pelas
normas e seus valores, as ideologias contraditórias do e sobre o Direito, etc. A essa altura, a
pergunta inescapável surge ao leitor: então, o que é o Direito?
Acompanha-se Thompson. Para o marxista inglês, no livro “Senhores e Caçadores”
(THOMPSON, 1987B, p. 358), o Direito na História se apresenta essencialmente sobre duas
dimensões: como lei, por meio de “regras e procedimento formais” e como ideologia,
enquanto campo de conflito, mediação, arena central de luta social. A primeira dimensão
(como lei) pode ainda ser dividida em dois aspectos: como instituição e seus agentes (“os
tribunais com seus teatros e procedimentos classistas” e “os juízes, os advogados e os Juízes
de Paz”) (THOMPSON, 1987B, p. 350); e como regras e procedimentos próprios (a lei
enquanto lei, exprimindo sua lógica interna). (THOMPSON, 1987B, p. 351)
Normalmente, a História do Direito se limita a analisar o Direito como Lei. Thompson
afirma que essa abordagem do Direito não é a que mais lhe interessa. (THOMPSON, 1987B,
352). Essa discordância decorre da pesquisa histórica feito pelo Autor do papel do Direito na
Inglaterra do século XVIII, em que ele verifica uma outra dimensão histórica do Direito
existente no século XVIII, a dimensão ideológica. Ele questiona, então, tanto a concepção
liberal do Direito que vê um “Rule of Law” consensual, quanto a concepção do marxismo
ortodoxo que reduz o Direito a um mero instrumento da classe dominante.9 Em resumo, não
aceita nem a versão liberal oficial de um “Rule of Law” imparcial nem a versão marxista
ortodoxa de “Rule of Class” Tout Court.
Assim, para além do Direito como Lei e do Direito como instrumento de classe,
Thompson resgatará, pela análise histórica, a existência de uma dimensão ideológica
costumeira (não consensual) do Direito. Em primeiro lugar, ressalta que essa ideologia (que
não é falsa consciência, mas sim prática cultural, político-social)10 não se restringe à
9 Na contracorrente da tradição marxista hegemônica, para Thompson existe uma enorme diferença entre o
“Rule of Law” e o “poder extralegal arbitrário”. (THOMPSON, 1987, p. 356-357). Inclusive, para espanto de
alguns marxistas, ele considera a restrição ao poder imposta pelo “Rule of Law” um “bem humano
incondicional”. (THOMPSON, 1987, p. 357).
10 A noção de Ideologia utilizada por Thompson é próxima da utilizada por A. Gramsci para definir ideologia
necessária. Para o marxista italiano, as ideologias são realidade objetivas “na medida em que são historicamente
necessárias, as ideologias tem uma validade que é uma validade ‘psicológica’: elas ‘organizam as massas
humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem ciência de sua posição, lutam,
etc”. (GRAMSCI, 1978, p. 62-63).
18 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P.
THOMPSON
ideologia da classe dominante (THOMPSON, 1987B, p. 352).11 Logo, nega essa dimensão
do Direito como simples mediação ideológica legitimadora das relações de classe
(THOMPSON, 1987B, p. 354). Afirma que o Direito tem “suas características próprias, sua
própria história e lógica de desenvolvimento independente.” (THOMPSON, 1987B, p. 353).
Por aceitar essa dimensão histórica do Direito para além das determinações da classe
dominante, o historiador visualiza a existência de “normas alternativas [...] dos habitantes das
florestas” (THOMPSON, 1987B, p. 352) como um espaço de conflito que, ao invés de
simples mecanismo de consenso, constitui-se no próprio campo social onde o conflito se
desenvolve. (THOMPSON, 1987B, p. 358) Assim, concebe uma dimensão ideológica do
Direito em que as pessoas confrontam o Direito legal oficial com um Direito de práticas
costumeiras desde tempo imemoriais, que se tornam insurgentes num espaço de confronto de
classes. Assim, na obra “Senhores e Caçadores”, Thompson verificou que “o Direito
costumeiro não-codificado inglês”, ofereceu uma notação alternativa de Direito no séc. XVIII
inglês. (THOMPSON, 1987B, p. 359)
Ademais, o historiador marxista destaca a complexidade paradoxal do Direito como
campo de conflito (THOMPSON, 1987B, p. 361), pois, de forma contraditória, no processo
histórico, pode gerar tanto um acúmulo de conquistas sociais no âmbito do “Rule of Law”
(THOMPSON, 1987B, pp. 355, 356, 358), quanto relegitimar o poder desse próprio sistema,
reproduzindo o “Rule of Class”. (THOMPSON, 1987B, p. 356) Ademais, salienta que as
“formas e a retórica da lei adquirem uma identidade distinta que, às vezes, inibem o poder e
oferecem alguma proteção aos destituídos de poder”. (THOMPSON, 1987B, p. 358).
Conclui-se, então, que para realizar uma História crítica do Direito são necessárias a
explicitação do método histórico e a ultrapassagem da divisão, na pesquisa jurídica, entre
relações sociais e normas jurídicas (lei, doutrina, jurisprudência), o que leva ao
posicionamento do historiador sobre o que é o Direito. Ao contrário da história oficial, que
naturaliza o método histórico e separa a história social da história das normas, ocultando a sua
concepção de Direito, a história crítica do Direito deve explicitar seus pressupostos
metodológicos da prática histórica e deve, ainda, superar a utilização apenas de fontes
tradicionais do Direito, tendo como conseqüência a exposição de uma concepção de Direito
crítica, imbricada nas relações sociais, que não se limite à norma estatal, revelando práticas
históricas de juridicidade plurais, alternativas, insurgentes.
3 “A História não conhece verbos regulares”: reconhecimento da
incompletude e dos limites do conhecimento histórico
Que é história? [...] se constitui de um processo contínuo de interação entre o
historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre o presente e o passado.
(Edward Hallet Carr)
Como visto anteriormente, a história oficial, ao limitar a pesquisa do conhecimento
histórico do Direito às fontes “jurídicas” oficiais, determina, de antemão, a completude da
história do Direito nos limites da lei, doutrina e jurisprudência, o que elimina a verificação
dos reais limites do conhecimento histórico do Direito em outras fontes do direito e, por
conseqüência, em outras fontes da história. Por isso, a história oficial do Direito geralmente
esconde-se na falsa completude do Direito monista estatal atual e limita-se unicamente às
evidências das fontes jurídicas oficiais.
11 Thompson concorda que o Direito pode ser visto “instrumentalmente como mediação e reforço das relações
de classe existentes e, ideologicamente, como sua legitimadora.” Entretanto, ressalta que “devemos avançar um
pouco mais em nossas definições”. (THOMPSON, 1987p. 353)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
19
Contra essa abordagem, uma História crítica do Direito deve partir do pressuposto de
que a pesquisa da realidade histórica não deve estar limitada e se completar nas fontes oficiais
do Direito e da História; deve, portanto, reconhecer outras fontes jurídicas e históricas,
fazendo com que o conhecimento histórico se apresente, diante destas últimas, como
incompleto, provisório, limitado e seletivo (porém, não inverídico). Na sua segunda
proposição da lógica histórica, Thompson expressa exatamente esse raciocínio:
O conhecimento histórico é, pela sua natureza, (a) provisório e incompleto (mas não,
por isso inverídico), (b) seletivo (mas não, por isso, inverídico), (c) limitado e
definido pelas perguntas feitas à evidência (e os conceitos que informam essas
perguntas), e, portanto, só verdadeiro dentro do campo assim definido.
(THOMPSON, 1981, p. 49)
Da mesma forma, salienta, na quinta proposição da lógica histórica, que “o objeto do
conhecimento histórico é a história ‘real’, cujas evidências devem ser necessariamente
incompletas e imperfeitas”. (THOMPSON, 1981, p. 50). Portanto, visto que o conhecimento
histórico “[...] é provisório e aproximado, com muitos silêncios e impurezas” (THOMPSON,
1981, p. 61), a relação entre interrogação e resposta no método histórico deve ser como um
diálogo mutuamente determinante, mediado pelo historiador. Nesse diálogo, a incompletude
e os limites do conhecimento histórico aparecem em face das perguntas do interrogador (num
determinado tempo) dirigidas a determinadas evidências (disponíveis em certa época). Para o
historiador inglês, os
termos gerais de análise (isto é, as perguntas adequadas a interrogação da evidência)
raramente são constantes e, com mais freqüência, estão em transição, juntamente
com os movimentos do evento histórico: assim como o objeto de investigação se
modifica, também se modificam as questões adequadas. (THOMPSON, 1981, p. 48)
Assim, o princípio basilar do método histórico deve ser o diálogo entre o conceito e a
evidência, a hipótese e a pesquisa empírica, o conteúdo da interrogação e o interrogado, a
pergunta e a resposta, as teorias e as fontes. E, nesse diálogo entre a interrogação e o
interrogado, o interrogador é a própria lógica histórica utilizada pelo pesquisador.
Esse é, na verdade, o segundo diálogo do método histórico apresentado por Thompson
(o primeiro foi analisado no ponto anterior), visto que o conhecimento histórico na obra do
historiador marxista inglês é o resultado de um duplo diálogo “a partir dos quais se forma o
nosso conhecimento: primeiro, o diálogo entre o ser social e a consciência social, que dá
origem a experiência; segundo, o diálogo entre a organização teórica (em toda a sua
complexidade) da evidência, de um lado, e o caráter determinado do objeto [que é a própria
evidência], do outro.” (THOMPSON, 1981, p. 42)
Na segunda parte de sua quarta proposição, reitera que “A interrogação e a resposta
são mutuamente determinantes e a relação só pode ser compreendida como um diálogo”.
(THOMPSON, 1981, p. 50). Dessa forma, no âmbito da prática histórica, toda análise teórica
deve ser apreendida na prática do “agir humano” e na medida do diálogo entre conceito
(modelo) e evidência (prova). E, “na medida em que uma tese (o conceito, ou hipótese) é
posta em relação com suas antíteses (determinação objetiva não-teórica) e disso resulta uma
síntese (conhecimento histórico), tem-se o que poderia chamar de dialética do conhecimento
histórico”. (THOMPSON, 1981, p. 54, grifo nosso)
Nessa dialética, o conceito é uma categoria não-estática e histórica, com generalidade e
elasticidade, mais como expectativa do que como regra. (THOMPSON, 198, pp. 56-7). Um
exemplo disso na obra de Thompson é a historicidade vista na análise do conceito “classe
social” na obra “A Formação da Classe Operária Inglesa”. Para ele, o “conceito” (sinônimo de
hipótese) na história, é definido como uma “organização conceptual das evidências para
20 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P.
THOMPSON
explicar determinados episódios de causação e relação”. (THOMPSON, 1981, p. 22112).
Portanto, o conceito não surge de forma abstrata da cabeça do pesquisador, ele já retira as
suas hipóteses de pré-pesquisas em fontes históricas, que apresentam evidências preliminares.
Sendo assim, todo conceito, por mais abstrato que seja, surge de um diálogo empírico com as
evidências. Nesse sentido, destaca Thompson que
Toda noção, ou conceito, surge de engajamentos empíricos e por mais abstratos que
sejam os procedimentos de sua auto-interrogação, esta deve ser remetida a um
compromisso com as propriedades determinadas da evidência, e defender seus
argumentos ante juízes vigilantes do ‘tribunal de recursos’ da história.
(THOMPSON, 1981, p. 54)
O limite do conceito está nas propriedades determinadas do objeto histórico,
descobertas no diálogo da pesquisa, pois, “o ‘pensamento (se é ‘verdadeiro’) só pode
representar o que é adequado às propriedades determinadas de seu objeto real, e deve operar
dentro desse campo determinado” (THOMPSON, 1981, p. 27).
Por outro lado, já os limites das evidências só serão descobertos na própria análise
empírica dessas evidências em confronto com “o diálogo, proposto pela lógica histórica, com
o conceito” e com outras pesquisas.
Na prática da história oficial do Direito esses dois limites acima expostos não são
verificados. A naturalização e a falsa completude dos conceitos utilizados pelo Direito estatal
moderno impedem um diálogo ilimitado (como propõe Thompson), por causa da aridez
formal dos conceitos jurídicos. Da mesma forma, a limitação das fontes de juridicidade às
tradicionais do direito moderno estatal também impede o diálogo histórico das evidências. Por
isso, a falsa noção de completude do direito oficial não permite que sejam verificados os reais
limites do conhecimento histórico – limites estes que não são conhecidos a priori, mas na
aplicação prática da lógica histórica.
Em confronto com essa completude normativa da história oficial, a história crítica do
Direito tem que conceber o conhecimento histórico como um diálogo em que nem no
conceito/hipótese, nem nas evidências/fontes (históricas ou jurídicas) sejam impostos falsos
limites pela carapuça do direito moderno estatal.
Portanto, no diálogo da pesquisa critica do Direito, as perguntas/hipóteses são definidas
(limitadas), sim, mas o seu limite último não é definido (numa falsa completude) pela
disciplina acadêmica “Direito” ou “História do Direito” e suas fontes jurídicas oficiais. O
limite das hipóteses é paulatinamente conhecido na prática histórica (no Direito ou fora dele)
diante da impossibilidade, verificada empiricamente, de se pensar outras hipóteses/conceitos
naquele tempo histórico. Igualmente, as evidências são, sim, limitadas, mas não unicamente
pelas fontes históricas oficiais, mas em decorrência da disponibilidade das evidências
históricas em um determinado período. Desse modo, o limite último da fonte possível para a
pesquisa histórica não é o rol completo de fontes (jurídicas ou históricas) determinado pelo
discurso oficial, mas sim pelas repetidas aproximações da descoberta do que é o objeto
“Direito” na História.
4 Desvinculação da História aos objetivos do direito oficial do presente
e desmitificação da História isolada no passado
[...] os fatos não podem falar enquanto não tiverem sido interrogados.
(E.P. Thompson)
12 Refere-se à nota de rodapé nº 42 do livro.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
21
[...] eu penso que nunca segui um comportamento histórico que não tivesse como
ponto de partida uma questão colocada pelo presente. (Philippe Áries)
Na história oficial do Direito, os interesses institucionais do presente determinam a
pesquisa do passado. Por meio da historia-narração, a pesquisa tradicional tenta demonstrar
como o direito atual é resultado lógico e coerente do Direito na história. Nela, utiliza-se a
forma narrativa para vincular o passado aos interesses do presente de duas formas: pela
história das fontes do Direito, pela qual é descrita no tempo uma mera sequência de normas;
pela historia da dogmática, na qual se apresenta uma sequência coesa de teorias jurídicas
interligadas. (HESPANHA, 1982, p. 11-13) Assim, na história oficial, embora seu discurso
aponte no passado seu amparo, as determinações do conhecimento histórico está nos
interesses institucionais do presente.13.
Contra essa abordagem evolucionista da história oficial, pode-se apontar o que diz
Thompson na primeira parte da quarta proposição de sua lógica histórica:
a relação entre o conhecimento histórico e seu objeto não pode ser compreendida em
quaisquer termos que suponham ser um deles função (inferência de, revelação,
abstração, atribuição ou ‘ilustração’) do outro. (THOMPSON, 1981, p. 50).
Assim, os interesses institucionais do presente não podem condicionar os objetos
históricos do passado.
Todavia, quando a história oficial não vincula o passado ao presente, faz o erro
contrário: isola “ilhas do passado” em relação ao presente, como se fosse possível resgatar o
tempo passado “isento” das escolhas feitas acerca dos problemas do presente. Esse erro foi
muito bem apontado por Marc Bloch que, em seu método regressivo, já alertava para o fato de
que os temas do presente condicionam e delimitam o retorno, possível, ao passado. Segundo
Bloch, “a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez
não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente”.
(BLOCH, 2001, p. 65). Destarte, os problemas do presente influenciam, sim, na pesquisa
histórica.
Os Historiadores que viram as costas para os problemas do presente normalmente se
escondem atrás das fontes históricas para justificar uma história conservadora, tradicional, que
limpa do campo de visão os problemas e as pessoas reais que foram vítimas ontem e são
vítimas hoje do poder. Geralmente, o historiador tradicional se exime do papel de agente coconstituiente do conhecimento, arrogando às fontes históricas a direção da pesquisa. Contra
essa visão positivista, Thompson afirma que “A evidência histórica existe, em sua forma
primária, não para revelar seu próprio significado, mas para ser interrogada por mentes
treinadas numa disciplina de desconfiança atenta” (THOMPSON, 1981, p. 38)14. Consoante
Bloch (2001, p. 79), “os textos e os documentos arqueológicos, mesmo os aparentemente mais
claros e mais complacentes, não falam senão quando sabemos interrogá-los.”
13 O sociólogo e pesquisador do ISEB, Álvaro Vieira Pinto, já observava a “pressurosa atenção com que se volta
para os institutos e órgãos do ensino superior a solícita e generosa colaboração das fundações estrangeiras, o
oferecimento e envio de missões e especialistas para reorganizar o nosso ensino, o despacho de pedagogos para
os nossos institutos de pesquisa educacionais e tantas outras modalidades de infiltração imperialista, todas com o
fim de impedir que as nossas universidades adquiram a única autonomia pela qual nunca se interessaram, a de
ser expressão dos exclusivos interesses da cultura e da economia brasileira”. (PINTO, 1986, p. 45)
14 Thompson afirma que as evidências podem ser interrogadas de seis maneiras diferentes (discurso da prova):
1) como evidências sujeitas à confirmação de suas credenciais como fatos históricos: “como foram registrados?
Com que finalidade? Podem ser confirmados por evidências adjacente?”; 2) como evidências portadoras de
valorações (cultura); 3) como evidências isentas de valor (estatística) ; 4) como elos numa série linear de
ocorrências (narrativa) [diacronia]; 5) como elos numa série lateral (comparação dos fatos sociais do passado
entre si) [sincronia]; 6) como evidências (a espécie fatos isolados) que sustentam uma estrutura maior.
(THOMPSON, 1981 p. 38-39)
22 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P.
THOMPSON
Portanto, para Thompson, as preocupações de cada geração têm um conteúdo
normativo, valorativo, que influencia as perguntas (THOMPSON, 1981, p. 51). Contudo,
alerta que, ao reconstituir o processo histórico, os historiadores apontam mutuamente suas
falhas e devem (dentro das possibilidades da disciplina histórica) controlar seus próprios
valores. (THOMPSON, 1981, p. 52) Mas, uma vez constituída essa história, tem-se a
liberdade de oferecer nosso julgamento a propósito dela. Mas esse julgamento deve estar ele
mesmo sob controles históricos e mister ser adequado às propriedades determinadas das
evidências. (THOMPSON, 1981, p. 52). Assim, após a reconstituição do processo histórico,
O que podemos fazer é nos identificar com certos valores aceitos pelos atores do
passado, e rejeitar outros. [...] estamos dizendo que esses valores, e não aqueles, são
os que tornam a história significativa para nós, e que esses são os valores que
pretendemos ampliar e manter em nosso próprio presente. (THOMPSON, 1981, p.
53)
O marxista inglês sintetiza a necessidade de desvinculação da História aos objetivos dos
interesses da ordem oficial do presente sem, por outro lado, mitificar a história isolada em
ilhas do passado, por meio do seguinte excerto:
Não deveríamos ter como único critério de julgamento o fato de as ações de um
homem se justificarem ou não, à luz da evolução posterior. Afinal de contas, nós
mesmos não estamos no final da evolução social. Podemos descobrir [no passado],
em algumas das causas perdidas do povo da Revolução Industrial, percepções de
males sociais que ainda estão por curar. Além disso, a maior parte do mundo ainda
hoje passa por problemas de industrialização e de formações de instituições
democráticas, sob muitos aspectos semelhantes a nossa própria experiência durante a
Revolução Industrial. Causas que foram perdidas na Inglaterra poderiam ser ganhas
na Ásia ou na África. (THOMPSON, 1987, p. 13)
A historiografia oficial julga a História pelo discurso da “evolução até o presente”.
Contra esse modelo, Thompson reformula a função da História ao apontar que causa perdidas
no passado poderiam ajudar a resolver os problemas “encontrados” no presente. Conforme
afirma o professor José Reinaldo de Lima Lopes, “Uma história crítica mostra que as coisas
foram diferentes do que são e podem ser no futuro também muito diferentes” (LOPES, 2000,
p. 20). No mesmo sentido, o marxista inglês aponta que “Qualquer processo histórico é ao
mesmo tempo resultado de processos anteriores e um índice da direção de seu fluxo futuro.
(THOMPSON, 1981, p. 58). Continua ao afirmar que “A explicação histórica não revela
como a história deveria ter se processado, mas porque se processou dessa maneira e não de
outra” (THOMPSON, 1981, p. 61). Ou seja, a História mostra uma possibilidade de
alternativa para o futuro ao relativizar ou estranhar a ordem social do presente com exemplos
do passado.
Não obstante essa relação entre História e os problemas do presente, ressalva o autor
que “o processo não é arbitrário, mas tem sua própria regularidade e racionalidade; que certos
tipos de acontecimentos [...] relacionaram-se não de qualquer maneira [...] mas de maneiras
particulares e dentro de determinados campos de possibilidades”. (THOMPSON, 1981, p. 61).
Em sua terceira preposição da lógica histórica, consigna que “A evidência histórica tem
determinadas propriedades. Embora lhe possam ser formuladas quaisquer perguntas, apenas
algumas serão adequadas” (THOMPSON, 1981, p. 50). Em outra passagem, afirma que a
disciplina histórica supõe que
o historiador está empenhado em algum tipo de encontro com uma evidência que
não é infinitamente maleável ou sujeita a manipulação arbitrária, que há um sentido
real e significante no qual os fatos ‘existem’, e que são determinantes, embora as
questões que possam ser propostas sejam várias e elucidem várias indagações.
(THOMPSON, 1981, p. 40)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
23
Em resumo, para Thompson, o historiador, embora possa (e deva) exprimir o anseio
pelo resgate daqueles que não tem voz na História, tem que trabalhar para ouvir a voz dos
fatos e seus atores e não a sua própria voz (de historiador), “mesmo que aquilo que podem
‘dizer’ e parte de seu vocabulário seja determinado pelas perguntas feitas pelo historiador”.
(THOMPSON, 1981, p. 40) Logo, ao mesmo tempo em que a pesquisa histórica não pode ser
um busca de “ilhas de história” isoladas no passado, também não se pode vincular a pesquisa
diretamente aos problemas da realidade do presente, pois uma pesquisa crítica não pode
subsistir nem no “leito de origem” nem no “leito de procusto”.
Desse modo, para evitar os dois perigos acima expostos, uma historicidade crítica no
Direito tem que se utilizar do diálogo exposto pela lógica histórica, no qual nem as perguntas
do presente determinam as evidências do passado, nem as evidências do passado definem
completamente quais perguntas serão feitas pelo historiador do presente.
5 História vista a partir de baixo (ponto de vista dos vencidos) em
contraponto à História dos vencedores
Os becos sem saída, as causas perdidas e os próprios perdedores são esquecidos.
(E. P. Thompson)
A história vista a partir de baixo (“History from below”)15 é maneira de fazer história
pelo qual Thompson ficou conhecido. Obviamente que essa é uma proposta de história
engajada, comprometida com o resgate de experiências dos explorados, oprimidos, excluídos,
em suma, das vítimas do capitalismo.
Nesse sentido, o objetivo de uma História do Direito a partir de baixo é, por um lado,
denunciar o passado de exploração e os silêncios não escritos pela história oficial do Direito e,
por outro lado, ouvir a cultura dos vencidos (pessoas reais que pensaram a sua realidade) por
suas próprias vozes e anunciar ao presente a existência de um passado de práticas jurídicas
insurgentes, mais justas e igualitárias.16 Thompson explica que em cada época, ou cada
praticante
pode fazer novas perguntas à evidência histórica, ou pode trazer à luz novos níveis
de evidência. Nesse sentido, a ‘história’ (quando examinada como produto da
investigação histórica) se modificará, e deve modificar-se, com as preocupações de
cada geração ou, pode acontecer de cada sexo, cada nação, cada classe social. Mas
isso não significa absolutamente que os próprios acontecimentos passados se
modifiquem a cada investigador, ou que a evidência seja indeterminada.
(THOMPSON, 1981, p. 51)
Então, fica explícito que as preocupações dos “de baixo”, dos vencidos, modifica a
compreensão da história, pois joga uma nova luz sobre as evidências. Obviamente que isso
não modifica o que é a verdade histórica, mas sim o nosso conhecimento sobre ela. Fica claro,
também, que, fazer história do ponto de vista dos vencidos, não gera uma fragmentação da
própria História (do objeto real), pois “embora os historiadores possam tomar a decisão de
selecionar essas evidências, e escrever uma história de aspectos isolados do todo [...] o objeto
real continua unitário” (THOMPSON, 1981, p. 50).
Diante desse desafio de fazer uma história vista de baixo, ressalta Carlo Ginsburg que
15 Thompson cunhou a expressão “History from bellow” no artigo de mesmo nome publicado em 1966 no The
Times Literary Supplement, 7/4/1966, pp. 278-80. Esse artigo foi traduzido para o português e publicado no
seguinte livro: NEGRO, Antonio Luigi e SILVA, Sergio (orgs.). As Peculiaridades dos Ingleses e outros
artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
16 Marc Bloch afirmava que “A ignorância do passado não se limita a prejudicar a compreensão do presente;
compromete no presente a própria ação.” (BLOCH, 2001, p. 63)
24 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P.
THOMPSON
[...] ao avaliar as provas, os historiadores deveriam recordar que todo ponto de vista
sobre a realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, depende das
relações de força que condicionam, por meio da possibilidade de acesso a
documentação, a imagem total que uma sociedade deixa de si. Para ‘ escovar a
história ao contrário’ (die Geschichte gegen den Strich zu bürsten), como Walter
Benjamin exortava a fazer, é preciso aprender a ler os testemunhos às avessas,
contra as intenções de quem os produziu. (GINSBURG, 2002, p. 43)
Dessa forma, em contraponto à história oficial vista de cima, dos grandes eventos e dos
vencedores, uma história crítica deve buscar realizar uma história a contrapelo para, assim,
conhecer a história dos vencidos. No Direito, o objetivo é escutar a atuação jurídica dos
oprimidos e as dimensões do Direito destruídas pela cultura dos vencedores. Assim, ao invés
da história dos grandes juristas, busca-se escutar a história das pessoas desconhecidas (ou não
reconhecidas) que viveram o Direito ou a falta dele. Por exemplo, uma história crítica do
Direito no Brasil tem que se lembrar das juridicidades não-oficiais nos quilombos, nas tribos
indígenas, nas missões, nas colônias anarquistas, nas organizações operárias e camponesas.
Destarte, em busca de uma historiografia crítica no Direito, relacionemos a história da
burocracia colonial com a história das juridicidades indígenas e das reduções jesuíticas;
conectemos as instituições do império português com o direito extra-oficial dos quilombos
dos ex-escravos; compreendamos as regras das colônias anarquistas diante das leis penais que
as desconstituíram; esqueçamos um pouco o mito da relação entre a Carta Del Lavoro e a
CLT e nos lembremos da formação em meio a greves do “direito operário” e do papel dos
trabalhadores na conquista dos direitos sociais e na criação “sui generis” da Justiça do
trabalho.
No mesmo sentido, Thompson (1987, p. 13) declarou no prefácio do livro “A formação
da classe operária inglesa”:
estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro ludista, o tecelão do
“obsoleto” tear manual, o artesão “utópico” e mesmo o iludido seguidor de Joanna
Southcott, dos imensos ares superiores de condescendência da posterioridade. Seus
ofícios e tradições podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao novo
industrialismo podia ser retrógada. Seus ideais comunitários podiam ser fantasiosos.
Suas conspirações insurrecionais podiam ser temerárias. Mas eles viveram nesse
tempo de aguda perturbação social, e nós não. Suas aspirações eram válidas nos
termos de sua própria experiência; se foram vítimas acidentais da história,
continuam a ser, condenados em vida, vítimas acidentais.
No âmbito do Brasil e da América Latina, resgatar a história dos vencidos está também
estritamente vinculado ao resgate da história das vítimas da modernidade ocidental européia,
o que leva à necessidade da realização de uma denúncia ao colonialismo na história da
América Latina. Enrique Dussel é um dos pesquisadores latinoamericanos que tentam resgatar
a história dos Outros encobertos pelo descobrimento, os oprimidos das nações periféricas que
pagaram com sua morte a acumulação do capital e desenvolvimento dos países centrais
(DUSSEL, 1993). Em seu livro “Política de la liberacion: historia mundial y critica”
(DUSSEL, 2007, p. 11-13), Dussel aponta sete limites que impedem a realização de uma
história realmente autônoma que expresse a realidade latinoamericana: helenocentrismo (no
Direito, pode-se chamar romanismo), ocidentalismo, eurocentrismo, periodização européia
(no Brasil, podemos falar periodização portuguesa), colonialismo mental e relato equivocado
da modernidade.
Portanto, tomar em conta a “peculiaridade” latinoamericana da História Geral e do
Direito é uma das pré-condições de uma pesquisa crítica de História do Direito no Brasil, que
tenha como ponto de vista os de baixo, os vencidos, os colonizados pela modernidade
européia.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
25
Conclusão
Pelo estudo da Teoria e Metodologia da História proposta por Thompson na sua Lógica
Histórica, buscou-se compreender como a prática da História do Direito está acompanhada de
pressupostos teóricos e metodológicos que explicitam se a pesquisa histórica é oficial e
tradicional ou é uma pesquisa crítica.
Verificou-se, portanto, que, em combate à história oficial do Direito que se propõe
realizar um “relato descritivo dos fatos jurídicos do passado”, uma história crítica deve propor
uma pesquisa problematizadora das expressões de juridicidade do homem no tempo que
promova um duplo movimento: de um lado, uma denúncia (pelo auscultar as vítimas) das
práticas, discursos, conceitos, instituições e atores que fizeram o Direito opressor no processo
histórico passado e das falsas ilhas de juridicidades que são criadas pelo historiador oficial do
presente; por outro lado, um anúncio das insurgências, vozes, edificações e povos que
tentaram juridicidades insurgentes de libertação no processo histórico passado e das ilhas de
crítica ao Direito presente feitas pelos historiadores comprometidos com a transformação
social hoje.
Assim, a partir da obra de E. P. Thompson, pretendeu-se apresentar cinco pontos que
contribuem para a realização de uma História crítica do Direito que reconstitua, explique e
compreenda a história real, mas que também se proponha a: problematizar o conhecimento do
processo histórico passado para compreender e transformar a realidade do presente; explicitar
a existência de posicionamentos do historiador na realidade do presente que interferem na
compreensão da realidade do processo histórico passado; e desmitificar a versão oficial da
História do Direito, “relativizando-a”, para criar alternativas que superem o discurso oficial
do Direito presente.
Em suma, o principal objetivo da apresentação desses cinco pontos foi explicitar a
existência de alguns pressupostos que possibilitam a superação dos limites teóricos e
metodológicos da história oficial, permitindo a realização de uma história crítica do Direito
que faça uma crítica-denúncia permanente à historiografia oficial e, ao mesmo tempo, anuncie
e reescreva a existência de Outra História vista de baixo.
Referências
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2001.
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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
27
HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A
NARRATIVA DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO
HISTORY, TRUTH AND TESTIMONY:THE LIMITS OF REPRESENTATION AND THE
VICTIMS’ NARRATIVE ON PERIODS OF OPPRESSION
Claudia Paiva Carvalho*
Resumo: O presente trabalho pretende investigar as relações entre história, verdade e testemunho, com enfoque
na utilização dos relatos das vítimas na reconstrução histórica de períodos de opressão, como as experiências
totalitárias e autoritárias do século XX. Dedica-se, num primeiro momento, aos limites de representação e ao
estatuto da verdade no trabalho histórico. Para tanto, a relação entre história e ficção, ou história e literatura, é
analisada a partir dos debates sobre a capacidade cognitiva da história. Num segundo momento, problematiza-se
o estatuto da prova na operação historiográfica e, mais especificamente, a contribuição que os testemunhos das
vítimas podem oferecer ao trabalho de análise e reconstrução de passados traumáticos, levando em consideração
a necessidade de uma crítica do testemunho e a possibilidade de explorar os fragmentos e os detalhes contidos
nos relatos dos sobreviventes a partir do paradigma indiciário (GINZBURG). Por fim, coloca-se em questão o
papel da história de lutar contra o esquecimento, aproximando-se da memória e valendo-se das narrativas das
vítimas para confrontar as versões oficiais com aquilo que elas deixaram de lado, ignoraram ou ocultaram.
*
Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do grupo de
pesquisa Percursos-Fragmentos-Narrativas – História do Direito e do Constitucionalismo (Plataforma LattesCNPq). Email: [email protected].
28 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA
DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO
“Tornam-se-me odiosas as coisas verossímeis quando elas me são apresentadas
como infalíveis. Gosto das palavras que adoçam e moderam a temeridade das nossas
afirmações: ‘talvez’, ‘de certo modo’, ‘algum’, ‘diz-se’, ‘eu penso’ e outras
semelhantes.” Ensaios – Montaigne
“Fatos que povoam o espaço e que chegam ao fim quando alguém morre podem
maravilhar-nos, mas uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada
agonia, a não ser que exista uma memória do universo, como conjecturam os
teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que viram Cristo; a
batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. O que
morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou perecível o mundo
perderá?” A testemunha – Jorge Luis Borges
Introdução
Pensar a função do testemunho e sua contribuição para o conhecimento histórico é uma
tarefa complexa e, no mínimo, difícil, que suscita questões teóricas e metodológicas as mais
relevantes. Ainda mais complicada é a tarefa quando se tem por objeto períodos de opressão,
como foram os regimes totalitários na Europa e as ditaduras militares na América Latina ao
longo do século XX, e quando o testemunho é dado pelas vítimas que sobreviveram a
perseguições e violências praticadas nos campos de concentração e centros de tortura.
Reinhart Koselleck vai dizer que todo documento, todo texto sobre o passado é
encarado pelo historiador como um testemunho de algo que está para além do próprio texto e
remete aos fatos em si, alcançados apenas indiretamente. Em seu debate com Gadamer,
Koselleck defende que a história não se confunde com a linguagem e não pode ser tratada
como “um subcaso da hermenêutica” porque existem categorias metahistóricas e
metalinguísticas que dizem respeito às condições de possibilidade do conhecimento histórico,
abrigadas pela Historik (KOSELLECK, 1997, 70). Além disso, muitos eventos históricos não
são apreensíveis por meios linguísticos ou captáveis pelo léxico, seja pela falta de consciência
dos atores de determinada época sobre o significado de suas experiências, seja pelo caráter
inenarrável de alguns acontecimentos. Isso tem relação com o debate aqui proposto, que
tematiza a capacidade da história de representar o passado, bem como os limites e
possibilidades do testemunho enquanto fonte histórica.
Não obstante essa opção de considerar toda fonte histórica como um testemunho de algo
que aconteceu, o presente trabalho se direciona ao papel dos testemunhos na história enquanto
relatos daqueles que sobreviveram a experiências de opressão. Vale a pena relembrar
brevemente os sentidos que a ideia de testemunha pode expressar. Segundo Giorgio
Agamben, a testemunha pode ser tomada como tertis, isto é, um terceiro em relação a certo
conflito ou disputa, capaz de exprimir um juízo imparcial a seu respeito; como superstes,
aquele que sobreviveu a algo e é capaz de referi-lo aos outros; e enquanto auctor, no sentido
daquele que integra um ato imperfeito preexistente, que precisa ser convalidado ou certificado
por outro para ter força ou realidade (AGAMBEN, 2008, 150). Agamben trabalha com esse
último sentido a fim de chamar atenção para o papel ético dos sobreviventes dos campos de
concentração de falar em nome daqueles que não podem nem poderão testemuhar mas que,
paradoxalmente, são a testemunha autêntica ou integral do que aconteceu: os muçulmanos,
que viveram a fundo a experiência do campo e, por isso mesmo, não sobreviveram a ela.
O sentido adotado aqui é da testemunha enquanto superstes, voltando o olhar para o
relato das vítimas que sobreviveram à repressão sofrida de diferentes maneiras. Uma primeira
questão que se coloca é aplicável, todavia, a qualquer testemunha, e mais amplamente, à
própria história, na medida em que problematiza a pretensão veritativa da narrativa
testemunhal, mas também da narrativa histórica como um todo. A primeira pergunta,
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
29
portanto, é se a história pode conhecer o passado, se é capaz de alcançar alguma verdade
sobre o que se passou, ou se, aproximando-se da literatura, pode apenas oferecer metáforas e
ficções, mas nunca a realidade.
Em um segundo momento, pergunta-se como o relato dos sobreviventes pode contribuir
na reconstrução de períodos traumáticos, marcados por violações de direitos humanos e
também por mentiras “oficiais”, sustentadas por discursos hegemônicos. Esse momento se
desdobra em dois: o primeiro busca explorar as dificuldades de narração de eventos
considerados, por excelência, singulares e inacessíveis à fala, bem como as possibilidades de
os relatos testemunhais, marcados pelo caráter individual e concreto, contribuírem com as
investigações históricas, sem descurar, mas antes valendo-se da crítica do testemunho; o
segundo visa enfatizar o papel do testemunho das vítimas na incorporação de vozes que foram
silenciadas ou ignoradas pelas versões dominantes, num movimento de aproximação entre
história e memória que se mantêm, contudo, como domínios separados.
As teses centrais que o trabalho busca enunciar são, primeiramente, a capacidade
cognitiva da história, apta a fazer uma reconstrução – o mais fiel possível – do que aconteceu
no passado (que é, em si, inalcançável), mas atenta aos limites da representação, que muitas
vezes diluem as “certezas históricas” em “possíveis” e “prováveis”, e também à historicidade
do próprio discurso histórico. Em segundo lugar, propõe-se que o testemunho das vítimas de
períodos de opressão pode oferecer uma contribuição específica e servir para iluminar
fenômenos históricos mais amplos do que a própria experiência individual dos sobreviventes,
além de abrir o horizonte da pesquisa para perspectivas até então excluídas da narrativa
histórica.
Duas reflexões se entrelaçam, portanto, e remetem às duas epígrafes que abrem o
trabalho. A primeira refere-se ao potencial cognitivo da narrativa histórica, que se afirma
contra os relativismos epistemológicos e contra a transformação do “verossímil” em
“infalível”, tida como “odiosa” para Montaigne. A segunda trata do estatuto da prova na
investigação histórica e aborda a qualidade da testemunha, assinalada por Borges, de poder
falar do que seus olhos viram, tendo em conta os limites da representação do passado,
especialmente quando traumático, e o valor da perspectiva das vítimas para a construção de
uma narrativa que desafie a história dos vencedores.
1 Debates entre história e ficção: o estatuto da verdade na
representação do passado
História e literatura se relacionam de diferentes maneiras: ambas se apresentam sob a
forma linguística, a história conta com elementos de ficção, e a literatura pode conter
componentes de realidade. Dentre outros autores, Koselleck discorre sobre o percurso de
aproximação entre a res factae e a res fictae, partindo da oposição entre poesia e história que
predominou até o século XVII, com a valorização de um campo em detrimento do outro.
Enquanto para alguns a história teria mais valor porque traduzia a verdade, enquanto a poesia
induzia à mentira, para outros, com apoio em Aristóteles, a poesia teria primazia porque se
aproximava da filosofia, visando o possível e o geral, enquanto a história estaria presa aos
fatos crus, muitas vezes aleatórios (KOSELLECK, 2006, 247).
As divisas entre os campos se diluíram a partir do século XVIII e do movimento
iluminista, com o surgimento do conceito reflexivo de história, que passa a se expressar por
meio de um singular coletivo, tornando-se, a um só tempo, sujeito e objeto (KOSELLECK,
2004, 143). Do lado dos poetas e romancistas em especial, a referência à realidade histórica
passou a ser um importante recurso de atração e convencimento. Do lado do historiador,
30 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA
DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO
passou-se a exigir que extraísse unidade e sentido da história, valendo-se, para tanto, de
teorias, fundamentações e hipóteses (KOSELLECK, 2006, 248). Ou seja, para conferir
sentido à confusa realidade histórica, opaca e não raro contraditória, o historiador se viu
impelido a usar de recursos fictícios.
Este movimento em direção à imaginação histórica coloca em questão a própria
possibilidade de um conhecimento científico sobre a realidade. Vale lembrar que foi para
combater o predomínio de uma história literária, afeiçoada à literatura e particularmente aos
romances históricos, que a chamada escola metódica se destacou pela defesa da história como
ciência. Grandes representantes dessa escola, em fins do século XIX, Langlois e Seignobos
enfatizaram a importância do rigor metodológico no processo de conhecimento, visando
demonstrar como se poderia fazer história cientificamente. Para tanto, os autores buscaram se
distanciar das filosofias da história, marcar a diferença da história com relação a outras
ciências sociais que tratavam com leis e regularidades e, ainda, separar a história do gênero
literário (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1944, 5-14). Com todas as críticas a que foi
submetida1, a escola metódica teve o mérito de contribuir significativamente para a
consolidação da história como campo científico autônomo, para a profissionalização do
historiador e para a crítica aos documentos, então inaugurada.
Mas a relação entre história e literatura não ficou no passado. Para Koselleck, a mistura
entre ficção e facticidade decorre de dois movimentos crescentes na modernidade: a
estetização e a consciência histórica da necessidade da teoria e da impossibilidade de acessar
o que de fato aconteceu. Seguindo Chaldenius, o passado não pode ser capturado por
nenhuma representação, mas apenas reconstruído (KOSELLECK, 2006, 248). Mas foi,
sobretudo, a percepção de um tempo genuinamente histórico que aproximou a res factae da
res fictae ao inserir a força da perspectiva na análise histórica, que se torna condicionada ao
tempo, na medida em que é sempre de novo rearticulada e remete a um passado que já
desapareceu (KOSELLECK, 2006, 250)2.
Este entrelaçamento entre história e ficção traz, como dito, fortes consequências do
ponto de vista epistemológico e vai animar vivos debates ao longo das décadas de 80 e 90.
Dois grandes protagonistas destes debates são Carlo Ginzburg e Hayden White, que assumem
posicionamentos contrários. Em Meta-história, White procura elementos artísticos na
historiografia realista oitocentista, analisando as obras de Michelet, Ranke, Tocqueville e
Burckhardt (WHITE, 1995). Ressaltando o núcleo fabulatório presente em tais narrações,
pretensamente científicas, White considera as obras analisadas como exemplos de
“imaginação histórica”, recusando-lhes a pretensão de verdade. Nesse sentido, o fato de o
discurso histórico se estruturar verbalmente como uma narrativa em prosa condicionaria não
só a forma como também o conteúdo do que é dito. Com isso White busca “estabelecer os
elementos inconfundivelmente poéticos presentes na historiografia e na filosofia da história
em qualquer época que tenham sido postos em prática” (WHITE, 1995, 13). Em última
análise, a leitura de White suprimi a diferença entre narração histórica e ficcional, retirando da
história a possibilidade de conhecer a realidade.
Contra esse relativismo epistemológico presente em White, Ginzburg vai defender que o
reconhecimento da dimensão literária é compatível com o caráter científico da historiografia
1 A escola dos Annales, aderindo à crítica iniciada pelas ciências sociais a partir de François Simiand, ataca
diversos supostos da escola metódica, como o insulamento da história como se fosse um campo que se
sustentasse sozinho, o tratamento das fontes com uma pretensa neutralidade, a ênfase na história événementielle
e o não reconhecimento da historicidade do próprio discurso histórico. A este respeito, vide (BLOCH, 2001).
2 A este respeito, nas palavras do autor: “O intervalo temporal força o historiador a fingir a realidade histórica,
sem falar do ‘acontecer’ de alguma coisa. Ele está obrigado a servir-se basicamente dos meios linguísticos da
ficção para apoderar-se de uma realidade cuja atualidade já desapareceu” (KOSELLECK, 2006, 251).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
31
(GINZBURG, 1989, 194). Não há, para Ginzburg, no campo histórico, uma contraposição
entre o verdadeiro e o inventado, de modo que o inventado ou imaginado historicamente
viesse a impedir a cientificidade do discurso.3 A narração histórica trata, isso sim, da
integração entre realidade e possibilidade, o que traz à tona o apelo de Montaigne aos
“talvez”, “de certo modo” e “diz-se”.
Ou seja, o que a historiografia não pode afirmar como verdadeiro, sustentado em
provas, ela pode apresentar como verossímil, pautado em possibilidades, guardando a
preocupação de distinguir aquilo que é narrado enquanto algo certo ou real daquilo que é
induzido e é, portanto, conjectural (GINZBURG, 1989, 183)4. Esse caráter conjectural de
parte do conhecimento indireto sobre o passado torna inevitável uma dose de plausível e
provável, confirmando a limitação do conhecimento histórico que lida, de forma constante e
inafastável, com o erro5. Mas o diálogo mantido com as fontes e o objetivo de buscar o real,
seja narrando ou conjecturando, impedem que se confunda história com ficção.
Para Ginzburg, portanto, White procura convergir as narrações literária e histórica “no
plano da arte e não no da ciência” (GINZBURG, 1989, 194). Como consequência, White
assume uma postura relativista que coloca em xeque a possibilidade cognitiva da
historiografia. No entanto, ao reduzir a complexa operação historiográfica à ação do
imaginário histórico, White ignora a possibilidade de se avaliar e questionar, a partir das
provas, o grau de correspondência da narração com a realidade. Assim resume Ginzburg:
Um controlo das pretensões à verdade inerentes às narrações historiográficas
implicaria a discussão de problemas concretos ligados às fontes e às técnicas de
investigação que cada historiador utilizou no seu trabalho. Quando se descuram
estes elementos, como faz White, a historiografia identifica-se com um puro e
simples documento ideológico. (GINZBURG, 1989, 195).
A afirmação do princípio da realidade, ainda que entrelaçado com a ideologia e com a
projeção de problemas do presente para o passado ao longo de todo o trabalho historiográfico,
é indispensável nas investigações e reconstruções históricas de períodos de repressão. A se
reduzir a história à imaginação ou mesmo à opinião dos autores, estar-se-ia abrindo espaço
para teses revisionistas que intentam negar a ocorrência das atrocidades perpetradas pelos
Estados sob regimes totalitários ou autoritários. Contra a ideia preconizada por White de que
não há fatos, mas apenas metáforas, a capacidade cognitiva da história possibilita a rejeição
de versões ou reconstruções do passado que não resistam a um controle filológico ou de
provas mais rigoroso.
Aqui se anuncia a importância do estatuto da prova na investigação histórica. O passado
é tirano daqueles que o investigam, vai dizer Marc Bloch, na medida em que determina o que
dele é-lhes dado conhecer (BLOCH, 2001, 75). Por isso o acesso ao passado é apenas
3 Segundo Henrique Espada Lima: “Ginzburg afirma com suas investigações o exato oposto daqueles que
gostariam de diluir a história na literatura, abolindo de ambas qualquer relação com a realidade: ao contrário, ele
reivindica que uma maior consciência da dimensão narrativa não implica uma atenuação das possibilidades
cognitivas da historiografia, ao contrário, sua intensificação” (LIMA, 2007, 111).
4 É bastante enfática, nesse sentido, a citação que Ginzburg traz de Manzoni: “Faz parte da miséria do homem o
não poder conhecer mais do que fragmentos daquilo que passou, mesmo no seu pequeno mundo; e faz parte da
sua nobreza e da sua força o poder conjecturar para além daquilo que pode saber”, e continua: “a história
abandona então a narrativa, mas para se ajustar, da única maneira possível, àquilo que é objeto da narrativa.
Conjecturando ou narrando, tem sempre em mira o real: aí reside a sua unidade” (MANZONI apud
GINZBURG, 1989, 197).
5 Estabelecendo a diferença do erro para o historiador e para o juiz, de um lado, Ginzburg fala de erros fecundos
no trabalho histórico, que levam a pesquisa a se aprofundar e se imergir no contexto em que ocorrem os fatos ou
eventos estudados. Já na perspectiva judiciária, o erro representa uma falha irremediável na prestação da justiça
no caso concreto submetido a julgamento.
32 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA
DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO
indireto, por meio dos fragmentos, vestígios e rastros deixados. No entanto, não obstante essa
subordinação ao passado, o mesmo Bloch afirma que, no fim das contas, conseguimos saber
dele muito mais do que ele julgara sensato nos dar a conhecer, e arremata: “é, pensando bem,
uma grande revanche da inteligência sobre o dado” (BLOCH, 2001, 78).
Uma das pistas encontradas quando se analisa um passado recente são as testemunhas
que vivenciaram aquele período, agora objeto de estudo, com todas as dificuldades impostas à
história contemporânea, que troca o distanciamento pela proximidade, apresenta um narrador
diretamente implicado nos fatos ou nos seus efeitos e lida, não raro, com “passados
presentes”. Passo, com isso, ao tópico seguinte, que versa sobre a contribuição dos
testemunhos para a reconstrução de passados traumáticos referentes a períodos de repressão
política.
2 Crítica e potencialidade do testemunho: o estatuto da prova na
investigação histórica
Principalmente a partir das experiências catastróficas do século XX, em que o homem
praticou e foi submetido a um nível até então inimaginável de violência, passa-se a falar do
compromisso da história não com a realidade, mas com o real, entendido como aquilo que
não se diz e que resiste a toda representação. Assim ficaram marcadas as experiências
traumáticas nos campos de concentração e centros de tortura: como inenarráveis,
irrepresentáveis, inimagináveis. É a aporia de Auschwitz descrita por Agamben como “uma
realidade que excede necessariamente os seus elementos factuais” (AGAMBEN, 2008, 20).
Neste contexto, a verdade se desencontra dos fatos, e “a verdade inteira é muito mais trágica,
ainda mais espantosa” (LEWENTAL apud AGAMBEN, 2008, 20).
Diante desses limites da representação é que Adorno vai afirmar a “impossibilidade de
se escrever poesia após Auschwitz”. Isso porque os conceitos de arte, estética ou beleza
seriam incompatíveis com a barbárie do genocídio, com o terror do holocausto. Na medida em
que se concede existir expressões artísticas do holocausto do povo judeu, a própria memória
da Shoah estaria sendo transgredida ou violada porque não admitiria ser objeto de qualquer
prazer estético (FAINGOLD, 2009). Por trás disso está a oposição de Adorno à transformação
da cultura em objeto de consumo e, mais especificamente, à mercantilização da memória do
holocausto, o que enseja sua manipulação ideológica e a distorção do real significado da
experiência de horror que foi a Shoah, que acaba sendo minimizada, quando não banalizada.
Sob tais considerações, os sobreviventes enfrentam o difícil “dilema entre o imperativo
de testemunhar, de preservar a memória, ética e politicamente fundamentado, e o veto à
representação do Holocausto, estetica e filosoficamente motivado” (KIRSCHBAUM, 2007)6.
Mas seja pelo compromisso ético-político ou pela necessidade psicológica de falar7, o fato é
que diversas memórias sobre o holocausto e os campos de concentração foram narradas e
publicadas em diferentes intervalos temporais. Algumas memórias foram lançadas quase
6 Nesse mesmo sentido, (FAINGOLD, 2009): “À primeira vista, ambos os conceitos, poesia e Auschwitz,
parecem excludentes. Se há poesia não há morte. Ou seja, proibir a arte e, ao mesmo tempo, perpetuar a memória
são atitudes excludentes. A representação do Holocausto do povo judeu está enquadrada em dois conceitos
paradoxais, sustentados por pilares irreconciliáveis: a obrigação de lembrar e a proibição de representar.”
7 Vale lembrar que o ato de contar a experiência traumática aos outros é sentido pelas vítimas como algo
necessário para superar a violência e reestabelecer as pontes com o mundo e com os outros. Inclusive, Primo
Levi descreve em É isto um homem? o sonho que tinha – e que depois descobriu ser partilhado por vários
prisioneiros – em que retornava para casa e sentava-se à mesa com os seus, ansioso por contar o que havia
acontecido, mas o interlocutor se levantava da mesa e saía, deixando o narrador sozinho e desesperado por ser
ouvido.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
33
imediatamente, como Primo Levi em É isto um homem?, outras demoraram quase meio
século para sair, como as de Ruth Klüger em Paisagens da Memória. Estes dois exemplos são
também representativos do fenômeno de literalização do trauma, ao qual se opunha Adorno,
mas pelo qual o recurso à arte e à literatura se tornou recorrente como forma de expor aquilo
que a narrativa convencional não alcançava, o que remonta às relações história x ficção e
história x linguagem já mencionadas.
Na contramarcha da afirmativa de Adorno, também Agamben vai convocar a discussão
e o enfrentamento desses períodos sombrios, sustentando que o silêncio poderia surtir o efeito
perverso de dar apoio às teses revisionistas. Nas palavras do autor:
Dizer que Auschwitz é “indizível” ou “incompreensível” equivale a euphamein, a
adorá-lo em silêncio, como se faz com um deus; portanto, independente das
intenções que alguém tenha, contribuir para a sua glória. Nós, pelo contrário, “não
nos envergonhamos de manter fixo o olhar no inenarrável”. Mesmo ao preço de
descobrirmos que aquilo que o mal sabe de si, encontramo-lo facilmente também em
nós. (AGAMBEN, 2008, 42)
Em todo caso, é indiscutível a dificuldade ou mesmo impossibilidade com a qual as
vítimas se debatem para narrar os acontecimentos traumáticos e contar o inimaginável. Mas
ainda assim elas narram, e ainda assim o relato é considerado verdade. Por questões até
mesmo éticas ou morais, não se questiona o conteúdo do que é dito pelas vítimas, não se
desconfia da veracidade do seu relato. No entanto, para além do campo da memória, ou
mesmo do campo jurídico, já que as vítimas foram muitas vezes testemunhas em julgamentos
contra agentes repressivos, há que se perguntar qual o papel que esses testemunhos exercem
na construção da narrativa histórica, estejam eles na forma literária, como depoimentos dados
em tribunais ou coletados em entrevistas.
Beatriz Sarlo demonstra uma postura crítica relativamente ao aproveitamento dos
relatos testemunhais das vítimas de repressão pela disciplina histórica, e a primeira
consideração que opõe é justamente o status de verdade que a narrativa testemunhal ostenta e
que, para Sarlo, seria aceitável enquanto utilizada nos julgamentos, servindo aos princípios de
reparação e justiça, mas não poderia ser transposta para o campo histórico, que não se
coaduna com uma espécie de fonte protegida por uma “blindagem interpretativa” (SARLO,
2009, 46-48). Para a autora argentina, as prerrogativas de confiança e intangibilidade dos
testemunhos das vítimas deveriam se restringir à esfera dos julgamentos, pois, na medida em
que se aciona a disciplina histórica, não há e não pode haver uma fonte imune à crítica.
Com efeito, não se deve assumir as narrações dos sobreviventes automaticamente como
“verdades históricas” e nem é essa a contribuição que se espera dos testemunhos para a
história. Segundo Kirschbaum (2007), “é inegável que a distância temporal borra os contornos
dos eventos, se não os próprios eventos; em princípio, isso não tem maior importância, uma
vez que estamos, os leitores, não em busca da verdade dos fatos, mas da verdade das
vivências”. Ou seja, os testemunhos fornecem algo para além dos fatos, e os fatos – muitas
vezes suficientemente conhecidos por outras fontes – não dão conta daquela experiência
histórica em sua plenitude. Portanto, o valor do testemunho de vítimas da repressão é menos a
verdade que carrega do que a própria vivência partilhada que, com todos os particularismos e
efeitos do tempo, contribui para se representar uma imagem mais completa desses eventos
traumáticos. Corroborando essa ideia:
Diante do realismo das imagens explícitas, a testemunha da Shoah, mais do que
representar, evoca um momento. Fazendo oposição à dramatização dos fatos, a
testemunha aparece como se estivesse participando de um encontro com suas
pegadas, sua resistência e seu presente. (...) O depoimento do sobrevivente se situa
no meio do caminho entre a história e a literatura, entre a memória e a arte. Essa
34 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA
DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO
ambivalência entre objetividade e expressividade, entre literal e poético, constitui a
força para se tentar compreender a realidade do Holocausto. (FAINGOLD, 2009)
Nada obstante, Sarlo chama atenção para outras características da retórica testemunhal
que a afastariam ou até incompatibilizariam com a disciplina histórica. Se o testemunho,
enquanto discurso em primeira pessoa, pretende narrar o que aconteceu, apoiando-se para
isso na memória e na subjetividade, a história, por seu turno, dedica-se a explicar e
compreender (SARLO, 2009, 49). Daí afirmar que o relato individual não pode ocupar o lugar
da análise. Aceita a ponderação, ela não impede, entretanto, a utlização dos testemunhos
como fonte de provas e possibilidades para a investigação histórica. Inclusive, o próprio
Primo Levi vai dizer: “ter estado implicado pessoalmente não me oferece elementos de
explicação; posso proporcionar dados, mas razões não” (apud FERNÁNDEZ, 2008, 66). Isso
reafirma a ideia de que não se espera dos testemunhos que contenham a verdade nem que
ofereçam explicações bem amarradas do que aconteceu. Ao contrário, como vai dizer
Kirschbaum (2007), apoiado nas memórias de Klüger, “as vivências, em sua forma bruta, não
explicam o que aconteceu; pelo contrário, podem levar à perda da razão”; o que não quer
dizer, em absoluto, que percam importância por isso.
Afora este limite às pretensões da narração testemunhal, Sarlo sublinha que o
testemunho se estrutura num modo realista-romântico que estabelece de antemão um sentido
teleológico à narrativa, à qual se acomodam a profusão de detalhes incluídos no relato. O
discurso testemunhal se ancora no particular e concreto, girando em torno do indivíduo e sua
experiência, contrapondo-se em tudo à preocupação da disciplina história com o específico,
que não corresponde a um “simples detalhe verossímil”, mas sim a um “traço significativo”
“que pode compor a intriga” (SARLO, 2009, 51). Nessa perspectiva, embora Beatriz Sarlo
reconheça que “a verdade está no detalhe” (SARLO, 2009, 52), não parece enxergar
contribuições efetivas a partir dos relatos testemunhais, que não poderiam passar de “fatos de
memória” para “interpretação da história” sem se submeterem à crítica e à interpretação.
Neste ponto, é de se indagar se os testemunhos oferecem, junto ou por meio das
vivências das vítimas, elementos para a construção do saber histórico sobre essas experiências
traumáticas, o que Sarlo enxerga com ceticismo, ou mesmo descrédito. Se, por um lado, as
vivências narradas permitem-nos aprofundar no que foi a experiência de proximidade com a
morte, as relações entre os prisioneiros e entre vítima-carrasco, por exemplo, por outro lado,
coloca-se em questão até que ponto um relato concreto, particular e pormenorizado, como
enfatiza Beatriz Sarlo, também dá margem a uma análise histórica, contribuindo para a
reconstrução do passado traumático.
Em primeiro lugar, reitera-se que os relatos testemunhais não devem se inserir no
domínio da história como verdades inquestionáveis, nem podem ser tomados como se
exprimissem a realidade. Vale lembrar a afirmação de Croce de que “O homem que age é um
fato. E o homem que conta é outro fato. [...] Todo depoimento dá testemunho apenas de si
mesmo, do seu momento, da sua origem, do seu fim, e de nada mais” (apud GINZBURG,
2007, 272). Assim, o fato de os testemunhos serem afetados pelo passar do tempo, pelas
lembranças alheias, pela visão parcial ou pelos acontecimentos posteriores não os
desautorizam naquilo que exprimem em si, nem impedem que eles conservem fragmentos e
rastros que auxiliem na reconstrução do passado.
Mas é certo que, tomado como fonte histórica, uma crítica do testemunho é necessária e
pode se valer de diferentes artifícios, como contrastá-lo com outros testemunhos e com outras
fontes, a fim de constatar erros ou mentiras; requerer sua reiteração após certo intervalo de
tempo para identificar o que ficou marcado mais fortemente e o que se transformou no relato;
distinguir depoimentos voluntários e involuntários, atentando ao que se narra de forma
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
35
espontânea, às vezes até inconsciente; dentre outros (RICŒUR, 2008, 173-174; PROST,
2008, 59; BLOCH, 2001, 92; POLLAK, 1992, 206; CATROGA, 2001, 45). A este respeito,
Michael Pollak desenvolveu um trabalho importante sobre o uso e a credibilidade da história
oral e chegou a resultados no mínimo interessantes sobre os desvios das memórias e relatos
dos que viveram ou foram afetados por certos acontecimentos com relação aos dados
objetivos da história (POLLAK, 1992).
Em segundo lugar, com relação ao caráter individual e concreto dos relatos
testemunhais que, para Sarlo, os distancia de uma preocupação genuinamente histórica,
recorro ao paradigma indiciário trabalhado por Carlo Ginzburg para demonstrar como, a partir
de testemunhos de experiências particulares, é possível a compreensão de fenômenos mais
amplos, e como, a paritr de detalhes narrados pelas vítimas, aparentemente banais ou sem
maior importância, é possível se extrair uma realidade mais profunda.
O paradigma indiciário aparece como um método que, ao invés de olhar para o todo e
visar uma sistematização generalizante, se volta para o individual e para o que, à primeira
vista, seria uma particularidade insignificante, na busca de uma chave explicativa mais útil.
Ginzburg expõe como esse método passa do campo artístico, com Morelli, que o empregava
na atribuição de obras de arte, para as técnicas indutivas de investigação dos romances
policiais de Sherlock Holmes, chegando na psicanálise médica em Freud e na medicina
semiótica (GINZBURG, 1989). Nesse percurso, alcançará as ciências humanas e a história,
em particular.
Duas ideias centrais estão na base do paradigma indiciário: o reconhecimento de que a
realidade não é acessível ou experimentável diretamente e a proposta de que o conhecimento
dela deve ser travado a partir das pistas, rastros e fragmentos encontrados. Parte-se do
pressuposto de que “quando as causas não são reproduzíveis, só resta inferi-las a partir dos
efeitos” (GINZBURG, 1989, 169). E a investigação desses efeitos ou sintomas demonstra que
alguns indícios mínimos são reveladores de fenômenos mais gerais. A própria psicanálise, diz
Ginzburg, se constitui “em torno da hipótese de que pormenores aparentemente
negligenciáveis pudessem revelar fenômenos profundos de notável alcance” (GINZBURG,
1989, 178).
Dentro dessa perspectiva, os testemunhos das vítimas ganham um novo espaço na
análise histórica, na medida em que, o que antes era considerado um detalhe secundário ou
uma minúcia desimportante, agora merece uma atenção mais detida porque pode indicar uma
realidade mais ampla, como a visão de mundo das vítimas e sua interpretação dos fatos (que
extrapola os fatos em si). Assim, o relato de uma experiência individual, afetado pelo efeito
corrosivo do tempo e impregnado de outras lembranças, pode servir ao trabalho histórico
naquilo que contém de mais marginal e periférico, pois são as pistas, talvez infinitesimais, que
vão permitir captar de forma mais profunda o que aconteceu.
O mundo das vítimas em suas particularidades também é de interesse da micro-história,
que reduz a escala de observação para enfocar fenômenos de alcance mais restrito que, à
primeira vista, poderiam não corresponder à condição de um “traço significativo” que possa
“compor a intriga”, como afirmado por Beatriz Sarlo. A partir dos relatos, é possível analisar,
por exemplo, em que medida as experiências das vítimas correm paralelamente às estruturas
mais amplas dos aparelhos de repressão, e em que medida elas se encontram. Não se trata de
analisar fragmentos isolados, desconectados do contexto, mas antes, como assinala Ginzburg,
a dificuldade e riqueza da micro-história está em reconhecer que “a realidade é
fundamentalmente descontínua e heterogênea” (GINZBURG, 2007, 269) e que “não se
podem transferir automaticamente para um âmbito macroscópio os resultados num âmbito
microscópio (e vice-versa)” (GINZBURG, 2007, 277). Com isso, os testemunhos das vítimas
36 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA
DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO
abrem novos horizontes de investigação que podem explorar novos nexos e relações causais,
mais representativos da complexidade da realidade.
Por fim, o testemunho das vítimas tem a prerrogativa específica de dar a palavra àqueles
que, submetidos à repressão e à violência, tiveram suas vozes emudecidas por relatos e
memórias oficiais que ocultaram ou ignoraram os episódios e experiências mais sombrias do
passado traumático. A seguir, levanta-se a possibilidade do testemunho dessas vozes
silenciadas servir à luta contra o esquecimento, partindo da relação entre história e memória.
3 O testemunho das vozes silenciadas: a relação entre história e
memória
O trabalho com o testemunho das vítimas desperta na história uma outra dimensão pela
qual, sem negar, mas aliando-se à função cognitiva, ela assume o papel de redimir ou libertar
o passado, ao dar voz aos que foram oprimidos e excluídos da narração. É uma tarefa, diz
Jeanne-Marie Gagnebin, polêmica, controversa e constrangedora esta do historiador: ele deve
lutar contra o esquecimento e a denegação (GAGNEBIN, 2006, 44). Por meio dos relatos das
vítimas que sobreviveram, a história pode se abrir aos brancos e buracos, ao esquecido e ao
recalcado, “para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve
direito nem à lembrança nem às palavras” (GAGNEBIN, 2006, 55).
Benjamin vai dizer que “nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido
para a história” (BENJAMIN, 1994, 223). Encarna, nesse sentido, uma postura contra a
reificação do passado, que deve manter-se aberto a reconstruções e às evocações da memória
que desejam transformar o passado para acabar o que nele ficou inacabado. O anjo da história
de Benjamin, narrado na célebre tese nona do ensaio Sobre o Conceito da História, encara
com espanto e horror as ruínas que se amontoam sob seus pés enquanto ele segue em direção
ao futuro, impelido por uma tempestade que nada mais é que o progresso (BENJAMIN, 1994,
226). Essas ruínas são constituídas pelos mortos e pelos fragmentos que ficaram para trás, e
permanecem invisíveis aos olhos de narrativas que, preocupadas com o continuum da história,
não hesitam em se omitir sobre seus próprios escombros e destroços.
Essas narrativas apresentam a perspectiva dos vencedores e revelam o antigo privilégio
que eles tinham de contar a história à revelia das vítimas, como explica Todorov:
Se sabe que la Historia siempre ha sido escrita por los vencedores, pues el derecho
de escribir la Historia era uno de los privilegios que concedía la victoria. Durante
nuestro siglo se ha pedido, a menudo, que en vez de o, al menos, junto a esta historia
de los vencedores, figure tambiém la de las víctimas, la de los sometidos, la de los
vencidos. Esta exigencia es más que legítima en el plano estrictamente histórico,
puesto que nos invita a conocer grandes jirones del pasado antes ignorado.
(TODOROV, 2002, 171).
Com relação a essa exlcusão das vítimas, Kirschbaum comenta a percepção de Ruth
Klüger de como os que não viveram o pesadelo concentracionário tentam silenciar os
sobreviventes e preservar depoimentos e monumentos devidamente esterilizados por um
discurso hegemônico (KIRSCHBAUM, 2007). Aqui se coloca de forma insofismável o
problema da apropriação da memória da Shoah, que se aplica a outras memórias traumáticas,
em que se impõe a exclusão dos sobreviventes e a transformação dos campos em museus,
lançando mão de comemorações e de abusos da memória, que subvertem e sujeitam essa
mesma memória a manipulações ideológicas, usos estratégicos e instrumentais, como já havia
advertido Adorno e como alertam os trabalhos de autores como Ricœur (2007) e Todorov
(2002).
A relação entre história e memória apresenta-se, portanto, com contornos imprecisos e
consequências díspares conforme o uso/abuso da rememoração sirva ao propósito de resgatar
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
37
o que ficou esquecido no passado ou confirmar interpretações hegemônicas que passam ao
largo da perspectiva dos que sofreram e foram excluídos. Para não cair no risco de confunfir
memória e história, a despeito de reconhecer paralelismos entre elas8, importa fazer algumas
distinções. A memória tem, de um modo geral, uma formação mais espontânea e emotiva,
guiada por aspectos que se inscrevem de forma mais profunda na mentalidade de um grupo ou
da sociedade, e que constituem parte da sua identidade coletiva (POLLAK, 1992, 204). Já a
história se preocupa com a objetividade do relato, com a busca do real e com o preenchimento
de lacunas e buracos, ainda que conviva com todas as fragilidades presentes no esforço de
representação de um passado que desapareceu, como já abordado nos tópicos anteriores.
Sob outra perspectiva, por um lado, a memória pode ser objeto de pesquisa do
historiador que, tomando-a como fonte histórica ou como fenômeno histórico, pode trabalhar
uma “história da memória” ou uma “história social da recordação” (FERNÁNDEZ, 2008, 49).
Por outro lado, o historiador sofre pressões e influência da memória9 e, neste ponto, é
importante garantir que a memória institucional compartilhe o espaço público com uma
pluralidade de memórias sociais que podem entrar em competição direta com ela
(FERNÁNDEZ, 2008, 58; POLLAK, 1992, 209).
Nesse último sentido, o testemunho das vítimas serve para pressionar a história a
incorporar o que foi ocultado, deixado de lado ou ignorado. Não significa que a narrativa
histórica deva assimilar acriticamente os relatos das vítimas, mas abrir-se a versões diferentes
que desafiam uma história oficial que sacraliza ou naturaliza o passado. O testemunho dos
sobreviventes deve permitir uma leitura da história a contrapelo, que pretende reanimar o
passado para cuidar das ruínas que nele se acumularam (BENJAMIN, 1994, 225). Enquadrase neste propósito a figura do narrador sucateiro pensada por Benjamin, que Gagnebin
descreve como aquele que “não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito mais
apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que
parece não ter importância nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer”
(GAGNEBIN, 2006, 54).
Para além do que é deixado de lado, a narrativa das vítimas serve para desmistificar
muitas interpretações oferecidas pela história oficial, pautada em mentiras cuidadosamente
costuradas a fim de esconder os reais propósitos, métodos e amplitude da opressão. Embora se
trate de episódios sombrios e odiosos da história de um país, uma sociedade, e da humanidade
como um todo, a tarefa de lembrar serve para atuar no presente e evitar repetições no futuro.
Catroga fala da importância de lembrarmos, muitas vezes, aquilo que queremos esquecer, e
afirma, sobre o historiador:
Ética e deontologicamente, ele não deve recusar partir à procura dos esqueletos nos
armários da memória, apesar de saber que, ao fazê-lo, corre o risco de estar a
ocultar, mesmo inconscientemente, alguns dos que transporta dentro de si. Apesar
disso, a sua missão tem de ser análoga à do remembrancer, designação atribuída ao
funcionário inglês que, nos finais da Idade Média, tinha a odiosa tarefa de ir, de
aldeia em aldeia e nas vésperas do vencimento dos impostos, lembrar às pessoas
aquilo que elas desejavam esquecer (CATROGA, 2001, 66).
8 Nesse sentido, (SILVA FILHO, 2010, 208-209): “a historiografia contemporânea se distancia do enfoque
cientificista e se aproxima da memória, na medida em que ambas compartilham importantes características. Em
primeiro lugar, as duas possuem pretensões veritativas, o que as diferencia da mera imaginação. Além disso, são
seletivas e manipuláveis nas suas tentativas de representar o passado. Assim como a memória, a historiografia é
filiada às tropas que combatem o esquecimento”.
9 Jacques Le Goff afirma, a este respeito, que “toda a evolução do mundo contemporâneo, sob pressão da
história imediata em grande parte fabricada ao acaso e pela media, caminha na direção de um mundo acrescido
de memórias coletivas e a história estaria, muito mais que antes ou recentemente, sob a pressão dessas memórias
coletivas” (LE GOFF, 1990, 474).
38 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA
DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO
Intenta-se, com isso, realizar o que Benjamin anunciou como um trabalho de
solidariedade com relação aos que foram oprimidos, buscando saldar as dívidas com o
passado. Em suas palavras, “só à humanidade redimida o passado pertence inteiramente”
(BENJAMIN, 1994, 223). Essa libertação não pode prescindir da participação ativa dos que
sofreram e que têm direito de ser ouvido, de fazer ecoar sua narração para não admitir que
versões oficialescas privatizadas por determinados grupos escamoteiem o que aconteceu,
abrandando a violência e a repressão, desvirtuando a resistência, distorcendo o projeto
político subjacente aos regimes de força, criando tramas e causalidades que não existiram. E a
história tem responsabilidade sobre a forma como vai absorver e interpretar esses relatos das
vítimas que devem encontrar, acima de um sentimento de compaixão, que pode esconder um
repúdio que conduz ao silenciamento e à exclusão, uma interlocução efetiva por parte dos que
ouvem.10
4 Conclusão
Ao final de períodos de opressão, com a normalização política e o retorno das garantias
individuais, as demandas de uma justiça de transição emergem com exigências de verdade,
justiça e reparação. A primeira dessas exigências foi o tema do presente trabalho, mas a
própria possibilidade da verdade – que se assume histórica e incompleta, incapaz de alcançar
o passado em si e de se reduzir a uma versão unilateral – depende de se afastar postulados
pós-modernos que se apoiam em ceticismos e relativismos epistemológicos para dizer que não
há verdade, não há conhecimento efetivo do passado que possa ser oferecido pela história; o
que há são apenas metáforas, ficções, imaginação, invenção.
Busquei defender, nessas breves reflexões, que a história não se confunde com o gênero
literário porque ela se guia por um princípio de realidade que perpassa toda a pesquisa e
permite que uma investigação histórica e sua crítica se encontrem no diálogo com as fontes.
Não é possível que o historiador trabalhe apenas com fatos certos e determinados pautados em
provas, mas ele deve lidar também com conjecturas, com possibilidades que lhe permitem
emitir um juízo de verossimilhança sobre o que provavelmente aconteceu, não mais que isso.
Esse limite ínsito à representação do passado que, pela própria semântica, consiste em tornar
presente algo ausente, não significa, contudo, nenhum prejuízo à cientificidade ou ao
compromisso da história com o real.
A diluição da história na literatura se torna ainda mais perigosa quando se trata de
períodos de opressão, marcados pela prática de atrocidades e das violações mais bárbaras
contra a pessoa humana, atingindo níveis de violência, degradação e dessubjetivação nunca
antes imaginados. É mais perigosa porque tende a equiparar quaisquer versões que se
apresentem sobre os fatos, podendo dar acolhida a teses revisionistas e negacionistas que se
manifestam em diferentes níveis ou graus. A capacidade cognitiva da história é essencial,
portanto, para se desconstruir narrativas que criam verdadeiros mitos e caricaturas sobre esses
passados traumáticos, sem nenhum respeito à memória política, muito menos à memória das
vítimas.
E a contribuição das vítimas, justamente, com seus testemunhos, foi outra parte central
desse artigo. Pretendi demonstrar como os relatos testemunhais constituem uma fonte rica a
ser explorada pelo historiador. Antes disso, no entanto, a elaboração dos relatos das vítimas se
esbarra novamente em um limite da representação e religa outra vez história e literatura.
10 Ruth Klüger fala dessa angústia por que passam os sobreviventes: “Mas as pessoas não querem ouvir, ou
somente o fazem com uma certa pose, uma certa atitude, não como interlocutoras e sim como pessoas que se
submetem a uma tarefa desagradável, em uma espécie de reverência que facilmente se transforma em
repugnância, duas sensações que em todo caso se complementam. Pois tanto o objeto da reverência, como o da
repugnância, é sempre mantido a distância”. (KLÜGER, 2005, 102).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
39
Muitas das experiências traumáticas são inalcançáveis pela linguagem; talvez só o silêncio as
possa expressar. Não obstante, as vítimas sentem-se impelidas em repartir suas memórias, seja
em nome de um dever ético e político, seja em razão de uma necessidade psíquica de falar.
Neste ato de memória, elas recorrem com certa frequência a recursos literários, embora alguns
defendam que apenas o silêncio pode dar conta do que não se pode dizer ou que as memórias
traumáticas deveriam ser reconstituídas apenas por meio dos discursos de sobriedade,
utilizando fotografias reais e palavras em sentido literal, ao invés de pintura, arte e poesia,
para narrar o que aconteceu. Voltando às manifestações das vítimas, elas se apresentam sob
diferentes formatos, mas sempre como atos de fala e, enquanto tais, tem seu lugar no estudo
da história.
Assim, abertas as falas das vítimas, seu testemunho pode servir à história enquanto
fonte das vivências daqueles que sofreram a repressão, mas também como fonte de detalhes e
minúcias, aparentemente marginais e sem importância, mas que são potencialmente
reveladores de realidades mais amplas e profundas, como trabalhado pelo paradigma
indiciário e pelos estudos da micro-história. Desse modo, encarado como aquilo que é em si
mesmo, o testemunho das vítimas pode auxiliar na reconstrução dos períodos de opressão.
Finalmente, para além dessas possibilidades de investigação, as narrativas testemunhais
têm a prerrogativa de possibilitar ao historiador o acesso – sempre indireto – às ruínas do
passado sobre as quais o presente se ergueu. Num gesto de solidaridade com os oprimidos e
excluídos que se perderam nessas ruínas, a história tem o papel, controvertido porque adentra
no âmbito cívico e político, de impedir o esquecimento (que não raro incide sobre o que, de
fato, não se quer lembrar). Este papel é sintoma (ou causa) de uma aproximação entre história
e memória: de um lado, a história pode ser instrumentalizada por abusos da memória, por
outro, a história pode ser oxigenada por exercícios de memória, como os que fazem as
vítimas. Neste caso, é importante se explorar os depoimentos das vítimas, valendo-se da
devida crítica do testemunho, a fim de desconstruir as mentiras criadas e sustentadas pelos
discursos hegemônicos.
Entrecruzaram-se, no presente trabalho, problemas de ordem teórico-metodológica,
ética, estética, política e moral. Não há como, efetivamente, uma ciência que trata do passado,
dos homens e do tempo, fugir de questionamentos complexos que ativam debates não menos
complicados porque concernem a nossa maneira de agir, de lidar com o outro, com o passado,
e de usá-lo no presente. Não se pode esperar da história que supere seus limites de
representação, que se esbarram na própria irreversibilidade do tempo e no passado
desaparecido; mas não se deve, tampouco, subestimar sua força de transformação do presente
e de abertura para novos futuros.
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WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. 2ª ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1995.
42
A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA
EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA
A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO: A SUPERAÇÃO
DA EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA
LEGAL MODERNITY AND MODERN NATURAL LAW: THE OVERCOMING OF
MEDIEVAL EXPERIENCE AND THE CONSTITUTION OF A NEW PARADIGM
Felipe de Faria Ramos*
Resumo: O presente artigo tem por objetivo indicar a relação da doutrina contratualista – aqui visceralmente
ligada ao jusnaturalismo moderno – com o processo de centralização do Estado durante a Idade Moderna,
apontando que tal movimento, fungível do ponto de vista político, é um dos primeiros passos para, na penosa
superação do direito plural característico do medievo, a constituição de um direito objetivo e racionalizado,
advindo completa e soberanamente da entidade estatal.
Palavras-Chave: História do Direito. Contratualismo. Direito Natural. Centralização Política. Ordem Jurídica
Medieval. Modernidade.
Abstract: This article aims to indicate the relation of Contractualist theory – this doctrine is intrinsically
connected to the modern Natural Law – with process of centralization of the state during Modernity. Then, here
we point out that movement, fungible in political terms, contributed to - considering the painful overcoming of
plural Law, typical in Middle Ages - the establishment of a streamlined and objective Law, that arises from the
state entity, completely and sovereignly.
Keywords: Legal History. Contractualism. Natural Law. Political Centralization. Medieval Legal Order.
Modernity.
*
Mestre em Direito (PPGD-UFSC), pesquisador do grupo de pesquisa História da Cultura Jurídica
(CNPq/UFSC).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
43
Introdução
A chamada Idade Moderna – período compreendido, linhas gerais, entre o século XV e
XVIIII – é visto como entretanto em que, no campo político, o Estado toma efetivo corpo,
vindo a desenvolver-se e centralizar-se numa espiral ascendente. Consequência desse
processo é a figura do Estado Moderno, construção teórica que, num primeiro momento, se
relaciona com o absolutismo monárquico, em que a figura do rei toma para si o poder político,
enfeixando em suas mãos tarefas que, reflexo direto do que se hodiernamente entende por
soberania, variavam entre o comando do exército, a distribuição de justiça, o decreto da
legislação, a arrecadação de tributos etc.
O presente artigo tem por fim indicar que esse caráter absoluto com que é desenhada a
figura estatal da época – nas oscilações que encontrou segundo variações de tempo e lugar
durante aqueles três séculos – não tem arrimo, no exagero com que inadvertidamente é
talhado, nas fontes históricas.
Mais do que isso: tencionam estas linhas apontar, diante de um quadro sociopolítico
desfavorável à penetração do ente estatal, para o papel da doutrina contratualista nesse esforço
levado a efeito pelo grande Leviatã para efetivamente fazer-se presente na realidade políticosocial da época, para a qual ele era figura absolutamente estranha, excêntrica mesmo para os
padrões então vigentes.
Assim, quer este trabalho enxergar na doutrina específica de Hobbes e Locke –
verificação perfeitamente transponível para autores contratualistas como Grotius, Puffendorf
ou Rousseau (evidentemente que, em cada um deles, em maior menor medida) - certa
“estratégia política” (acentuada, aqui, em seu teor) que acaba por justificar teoricamente a
figura do Estado perante a longa tradição medievalista que em nada lhe era favorável,
processo este que mais tarde haverá de possibilitar a constituição de um direito embasado
somente na vontade legislativa estatal, verdadeiro traço central da Modernidade Jurídica.
Se, num campo mais estrito, o intento deste pequeno trabalho desenha-se pontual
(revelar como o discurso da doutrina contratualista serviu historicamente às pretensões do
Leviatã no seu movimento de consolidação durante a Idade Moderna), vistas em maior escala,
estas páginas pretendem alinhar-se com determinada postura epistemológica que, desconfiada
da neutralidade dos conceitos, visa a mostrar o papel político por eles desempenhado,
indicando ainda como as interpretações que são feitas de tal ou qual teoria, longe da
imparcialidade, têm, sim, direta relação com os interesses postos em jogo no conflito político
social.
2. Desenvolvimento
2.1 O Jusnaturalismo Moderno e a Varredura da Ordem Jurídica Medieval
O processo de centralização do poder ocorrido durante a Idade Moderna1, somente
quando encarado de forma idealizada, pode ser enxergado como uma tarefa de fácil execução.
1 Processo este do qual a Revolução Francesa, longe de ser uma ruptura, representa verdadeiro apogeu: “A
própria centralização foi o sinal e o começo da revolução. E acrescentaria ainda que, quando um povo destruiu a
aristocracia, ele persegue, por si próprio, a centralização. Nessas circunstâncias, é preciso muito menos esforço
para precipitá-lo sobre este plano inclinado que para impedi-lo de cair. Em seu seio, todos os poderes tendem
naturalmente para uma unidade e só com muita habilidade se pode mantê-lo divididos. A revolução democrática
embora destruísse tantas instituições do antigo regime, deveria, deste modo, consolidar a centralização, pois esta
encontrava seu lugar de modo tão natural na sociedade que a revolução havia criado que se poderia tomá-la
facilmente como uma de suas obras”. (TOCQUEVILLE. Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Coleção
44
A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA
EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA
Não é todo desarrazoado dizer que o quadro social e político legado pela Idade Média – que
vai perdurar na Europa, segundo variações geográficas, até o século XVIII2 – em nada
colaborava com as pretensões de um Estado que se pretendia absoluto e supremo perante o
quadro social de então.
O primeiro dado que merece menção é a precariedade do aparelho institucional com
que, naquela época, contava a entidade estatal. A imprensa ainda incipiente3, a grande
distância entre a corte e as províncias (sobretudo as ultramarinas), a falta de representantes do
soberano nas localidades4, e a própria ausência de um aporte financeiro apto a respaldar o
fortalecimento estatal, tudo isso fazia do rei alguém distante, de limitado poderio frente a
instituições que, tradicionais, tinham seu vigor embasado no longo costume advindo do
medievo.
A pluralidade de ordenamentos espraiados por toda a Europa de então5 – consequência,
também ela, da tradição medieval – fazia por atrapalhar o direito pretensamente posto pelo rei
através das nada sistemáticas ordenações.
De fato, a precariedade dessa forma de legislar (de duvidosa capilaridade) via-se
ladeada pelo Direito Romano6, vicejante por toda a Europa através do movimento da
Os pensadores. Seleção de textos de Francisco C. Weffort. trad. Leônidas de Gontijo de Carvalho et al. 2. ed.
São Paulo: Abril Cultural. 1979. p. 342/343, grifo nosso).
2 É o caso de países da Península Ibérica, em que, por força da tradição da Igreja Católica (refratária aos ideais
liberais), tardou a chegar o pensamento fundante dos movimentos revolucionários que invadiram Inglaterra e
França durante os séculos XVII/XVIII. Nesse sentido, admoestação de PEREZ VALIENTE endereçada a
acadêmico de Valência em 1749: “Tambíen tú debes conmoverte y destruir esa falsa opinión publicando tus
libros, cuyo estilo es tan elegante y adaptado a las reglas de la verdadera latinidad, que me parece Haber leído
los escritos de Ciceron sobre las leyes. Enriquecidos de ellos, nuestros españoles no tienen por qué envidiar su
Gravina a los italianos y su Hugon a los franceses. No hablo de Pudendorf y Hobbes, que escribieron de
derecho natural y de gentes no para enqirquecimiento de la relublica, sino para su perturbación e subversion, ni
de quien há escrito em estos últimos años um libro titulado De l’esprit d´lois (El Espíritu da Las Leyes), del que
no se te oculta cuáles y cuan grandes errores lo llenan y que, buscado com avidez e aplauso, podrá penetar em
nuestras fronteras no sin detrimento de nuestros costumbres” (PÉREZ VALIENTE. Pedro José. Derecho
Público Hispânico. Madrid: CEC, 2000. p. 38).
3 LADURIE, não é à toa, vai indicar a forma por que a mídia, à época escrita, teve papel importante nas
atividades de que se valeu a Monarquia no processo de penetração social: “As novas mídias sustentam a difusão
de um saber universitário, colegial e mesmo primário; ele é indispensável para a formação dos funcionários da
categoria; e para a dos agentes modestos, às ordens do Estado ou das comunidades. O número desses homens,
nos mais diversos níveis, vai aumentar. [...] Certas necessidades são irredutíveis: a realeza, do século XVI ao
XVIII, faz amplo uso do pequeno cartaz com inúmeros exemplares, da circular e do formulário administrativo,
os três saídos das prensas e das oficinas. Não há função pública, sobretudo real, que não tenha seus inoressores,
oficiais ou oficiosos”. (LADURIE. Emmanuel Le Roi. O Estado Monárquico. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994. p. 35/36).
4 “Por certo, esse monarca e mesmo seus sucessores ou subordinados tiveram a pretensão, por momentos, à
onipotência. Mas, apesar do culto da personalidade que cerca os soberanos e compensa de fato as reais fraquezas
de seu poder, a monarquia clássica permanece objetiva e subjetivamente descentralizada, em todo o caso
nitidamente menos centralizada que os sistemas políticos que a lesa sucederão no século XIX” (ibid, p. 16).
5 Quanto ao conceito de Pluralismo Jurídico, consulte-se: HESPANHA. Antônio Manuel. Cultura Jurídica
Européia: Síntese de um Milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 161. Em pormenor, já agora numa
analise pormenorizada da Ordem jurídica medieval: GROSSI. Paolo. El Orden Jurídico Medieval. trad.
Francisco Tomás y Valiente y Clara Álvarez. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 50/58
6 Na experiência portuguesa, observe-se trecho da Lei de 18 de agosto de 1769, lei da Boa Razão surgida na Era
Pombalina, em que se bradava contra a tradição romanística ainda vicejante: “mando que as glossas, e opiniões
dos sobreditos Accursio, e Bartholo não possão mais ser alegadas em juízo, nem seguidas na prática dos
julgadores; e que antes muito pelo contrário em hum, e outro caso, sejam sempre as boas razões acima
declaradas [...referia-se antes que seguindo somente meus tribunais e magistrados seculares nas materias
temporaes e de sua competencia as leis pátrias, e subsidiarias, e os louváveis costumes e estylos legitimamente
estabelecidos, na forma que por esta lei tenho determinado...], e não as auctoridades daquelles, ou de outros
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
45
Recepção,7 pela força do Direito Canônico e principalmente por um vigoroso direito
consuetudinário local – iura propria8 - que dava suporte às ordens locais.
Em seus rigores, essas últimas, embasadas na tradição feudal, mantinham de pé os
privilégios estamentais sempre avessos ao reconhecimento de uma normatização alienígena,
descompassada com aquilo que, então, era entendido por Direito.
Aliás, a própria concepção de Direito então vigente em nada colaborava com o
programa de instalação da entidade estatal. É que, longe de ser expediente de modificação do
status quo, o Direito, como legado pela Idade Média, é entendido como reflexo de uma ordem
natural predeterminada9, como algo que deve espelhar o que já está disposto naturalmente no
campo social. O dever-ser, em termos mais atuais, devia então identificar-se com o ser, de
forma que a atuação do Direito, sempre pontual, teria de limitar-se aos casos em que, por
alguma razão, aquela ordem predeterminada fosse acintosamente desobedecida.
Assim – identificando o direito com uma natureza manifestada pelo social –, a
concepção medieval de direito reservava-lhe aplicação para os casos de desordem, de ameaça
àquela ordenação preestabelecia. Direito bom, então, era sinônimo de direito tradicional,
cabendo ao rei medieval o papel do juiz conservador da ordem jurídica advinda de uma
sociedade regrada natural e espontaneamente (HESPANHA, 2005, p. 162).
Tal concepção do Direito – que, prolongando-se, ultrapassa a Idade Média – fazia por
barrar as pretensões de um ente que, trazendo consigo propostas absolutamente inovadoras,
ainda não tinha aporte na tradição, nem naquilo que, entendido como estabelecido
espontaneamente de forma natural, grassava do bojo social.
Por fim, vale citar ainda que o próprio direito do Estado – e suas concepções – não tinha
espaço nas academias de então. Vale dizer, a formação dos juristas da época era calcada não
na legislação emitida pelo soberano, mas nas antigas fontes romanas – tidas por
universalmente aplicáveis. Intuitivo, pois, que a prática levada a efeito por aqueles de
formação jurídica resistisse à aplicação das ordenações que, somente mais tarde, tiveram vez
nos currículos das universidades de direito10.
semelhantes doutores da mesma escola, as que hajão de decidir no foro dos casos ocorrentes...”. (Ordenações
Filipinas, 663,65 - III, LXIV)
7 Interessante perceber, por outro lado, como o próprio Direito Romano, em passagens sobretudo advindas do
império, também foi utilizado pelos teóricos da soberania – defensores de um estado absolutista – como
expediente legitimador da uma monarquia onde o rei seria a lei viva, ou na qual o rei estaria acima/fora da lei.
8 Confira-se, igualmente, outro excerto da mesma Lei da Boa Razão, agora contra o costume: “e reprovando
como dolosa a supposição notoriamente falsa de que os Principes Soberanos são ou podem ser sempre
informados de tudo que passa nos foros contenciosos em que transgressão das suas leis, para com esta
supposição se pretextar a outra igualmente errada, que se presume pelo lapso do tempo o consentimento, e
approvação, que nunca se estendem ao que se ignora; senod muito mais natural a presumpção, de que os
sobreditos Príncipes castigarão antes os transgressores das suas leis, se houvessem sido informados das
transgressões dellas nos casos ocorrentes” (Ordenações Filipinas, 663,65 - III, LXIV).
9 Nesse sentido, nos aconselhamentos ao príncipe quanto ao modo por que se deve governar, SAAVREDA
FAJARDO, após indicar que a multiplicidade das leis é muito danosa à República e que a complacência seria
uma qualidade do monarca diante do castigo a ser imposto ao súdito, lecionara: “se pudieran remediar los dos
excesos dichos: el primero, el de tantos libros de jurisprudencia como entran em España, prohibiéndolos;
porque ya más son para sacar el dinero que para enseñar, habiéndose hecho trato y mercancís ls imprenta. Com
ellos se confunden los ingenios, y queda embarazado y dudoso el judicio. Menores daños nascerán de que
cuando faltan leyes escritas com que decidir alguna causa, sea ley viva la razon natural, que buscar la justicia
em la confusa noche de las opiniones de los doctores , que hacen por la uma y outra parte , com que es
arbitraria y se da lugar al soborno y a la pasion” (SAAVREDA FAJARDO. Diego de. Empresas Políticas.
Barcelona: Planeta. 1988. p. 145).
10 “De certo modo, o currículo universitário e o apego às fontes tradicionais tenderiam até a desprestigiar, na
prática jurídica e na doutrina, os direitos não letrados, as normas de “polícia” urbana e mesmo o direito legislado
46
A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA
EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA
Na precariedade com que era levada ao conhecimento da comunidade jurídica,
principalmente daquela afastada da Corte, a falta de sistematização das ordenações verdadeiro depósito da legislação emitida pelo rei - também não colaborava para formação de
um corpo de textos jurídicos que pudesse ser analisado de modo mais sistematizado, segundo
as feições acadêmicas11 acostumadas até então com a suposta lógica de que dotada a
experiência jurídica canônico-romana.
Destarte, claras parecem ser as dificuldades encontradas em diversos flancos pelo
Estado Moderno para fazer-se efetivamente soberano diante daquelas concepções que,
calcadas na experiência do período medieval, reduziam as possibilidades de penetração dessa
ainda incipiente experiência político-jurídica.
2.2 A superação da experiência jurídica medieval
Diante desta grande pluralidade de ordenamentos, dessa imensa gama de ordens
jurídicas existentes, o embasamento com que contava o Direito tinha variadas faces: poderia
ser justificado na tradição, na história por todos aceita e jamais negada (às vezes elevada em
seu status por eventual ligação que tivesse com os textos romanos); poderia ainda vir de um
Direito Natural ainda ligado à religião; ou então poderia ter por estribo a própria ordem local
em seus privilégios ratificados pela experiência feudal.
Nesse passo, algo é certo: somente de forma subsidiária é que poderia um jurista
tradicional da época conceber que o Direito tivesse por sustentação a lei posta pelo Estado.
Ou seja, a própria fundamentação do Direito – majoritariamente ao largo do legislado pelo
soberano – tinha por fonte instâncias outras que não a vontade do rei, o que sobremaneira
impedia que o direito estatal superasse aquelas outras ordens jurídicas12.
E é justamente nesta luta por saber quem é que dá sustentação ao Direito – se o
costume/tradição/história, ou se o direito emanado pelo monarca – que a doutrina
contratualista, partindo do Jusnaturalismo Moderno13, exerceu importante papel em favor dos
pelos reis. [...] Na Espanha, a resistência passiva das faculdades ainda inviabilizou, por volta de 1713, o plano de
lhes impor o ensino do direito pátrio. [...] Somente nos anos 70, porém, é que começariam a surgir espaços
curriculares próprios para o ensino das leis reais. Na França, a criação das cátedras correspondentes se deu só em
1679 – não por acaso em pleno reinado de Luís XIV, o ativo rei-legislador das Ordonnances. Em Portugal, a
Universidade de Coimbra ainda rejeitava, em 1623, a proposta da Coroa de ali se instituir o ensino do direito
pátrio. A matéria só foi introduzida em 1772, ou seja, no mesmo período em que o corpo docente tradicionalista
era desmantelado pela Reforma Pombalina”. (SEELAENDER. Airton Cerqueira Leite. O Contexto do texto:
notas introdutórias à história do direito público na idade moderna. Seqüência: estudos jurídicos e políticos.
Florianópolis: Fundação Boiteux. Ano XXVII, n. 55, dez. de 2007. P.257/258).
11 Panorama esse que, relativizado, contudo, em países como a França, se revela pontual em Portugal, na
Espanha e nos territórios alemães onde vicejara o movimento da contrarreforma.
12 Conturbada, nesse sentido, a já indicada relação existente entre o costume e o direito posto pelo soberano.
Afinal, – inapto a derribar as práticas consuetudinárias o poderio monárquico - mantinham-se elas de pé por sua
força própria? Ou, era por concessão do monarca que elas subsistiam? a resposta que se pretenda dar a dito
questionamento terá direta relação com a concepção – se alinhada a concepções realistas, ou não – que se tenha
da realidade jurídica de então.
13 Se o caráter laico - para além da célebre frase de Grotius: “o que acabamos de dizer [...manifestava-se sobre o
direito de natureza, ou seja, o direito da natureza humana...] teria lugar [...] mesmo quando Deus não existisse”
(GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Coleção Clássicos do Direito Internacional. trad. Círio
Mioranza: Ijuí, 2004, p. 39/40. Tomo I) - não é incontroversamente uma marca capaz de apartar o jusnaturalismo
de que ora se trata daquele antigo/medieval – já que “o Direito Natural é profano desde nascença, desde
Aristóteles” (VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. trad. Cláudia Berliner. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 648) -, justifica-se o adjetivo “moderno” ao menos como forma de acentuar que,
para o jusnaturalismo de que se cuida, o direito natural pertence ao indivíduo em si, decorrendo deste último em
sua essência, de modo absolutamente despregado de qualquer outra coisa senão da própria existência individual.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
47
interesses do ente estatal que, como se viu, ainda se defrontava com os ordenamentos
consuetudinários que então se espalhavam por toda a Europa.
Ora, ao conceber a existência de um direito naturalmente existente – deveras divorciado
de um chão historicamente verificável14 – e, mais do que isso, ao entender que todo aquele
direito natural deve ser agora posto para dentro da lei do Estado (não é outra a função dela
senão defendê-lo até mesmo do soberano), o contratualismo enquanto teoria política – nas
gradações existentes em cada um dos autores daquela corrente – fez justamente por
estabelecer que nenhuma outra sustentação pode ter o direito senão o ordenamento estatal.
É a partir do contratualismo que o Estado – entendido em maior ou menor medida como
ente artificial criado por um consenso existente entre os homens – passa a ser entendido como
o único – único! – ente capaz de fazer respeitar por meio de sua legislação – até mesmo contra
a figura do monarca – o verdadeiro direito pertencente naturalmente aos homens.
Advindo embora da metafísica “natureza humana”, esse direito, cujo exercício a
ninguém pode ser negligenciado, passa a ter por campo de proteção somente a normatização
estatal, e nenhuma outra ordem jurídica pode ser invocada, seja para confrontá-lo, seja para
enunciá-lo. O Direito Natural passa a ser protegido exclusivamente por dentro dos textos
legais advindos do Estado, e tudo quanto refuja a este último cadinho não goza do status de
Direito15.
O paradigma sustentado pelos autores contratualistas – ou seja, existência de um núcleo
de prerrogativas advindas da essência própria do homem (independentes, pois, do Estado)
cuja proteção é o motivo da existência da legislação artificialmente pelos homens -, dito
modelo faz por varrer qualquer alinhavo de ordenamento que busque legitimidade em outra
instância que não naquele Direito Natural.
Dessa forma, tal arranjo conceitual – ao tonar abstrato o fundamento último do Direito,
reservando-lhe proteção apenas através do ordenamento estatal – acaba por abrir espaço na
teoria jurídica para essa legislação estatal, ainda em estágio inicial naquele momento
histórico.
2.3 A fungibilidade do Direito Natural
Antes de prosseguir, importante firmar neste passo certeira premissa: a concepção
contratualista, permeada que está pelo Direito Natural, não carrega consigo necessariamente a
defesa de interesses antirrealistas ou (à falta de melhor designação) protoliberais.
É que, ainda que seja impossível negar o aspeto revolucionário desta teoria16, essa
concepção serviu de forma ambígua tanto para aqueles alinhados às concepções realistas
14 De fato, expediente abstratamente concebido, é na figura de espécie de pressuposto teórico que o estado
natural é visto na obra contratualista, conforme se fará vera adiante nas obras específicas de Hobbes e Locke (ver
nota 34).
15 É que se lê, v.g., do preâmbulo da Constituição Francesa de 3-9-1791, ao vedar que títulos de nobreza, ordens
de cavalaria, corporações ou condecorações pudessem dar base a distinção entre homens, a partir de entçao
concebidos como iguais – não distintos – em essência (GOEDECHOT. J. (org). Les Constitutions de la France
depuis 1789. Paris. Garnier, 1993, p. 35).
16 De fato, se comparada às teorizações que enxergam no poder do monarca, simplesmente, a vontade de Deus,
as idéias contratualistas – mesmo as vindas de Hobbes – trazem consigo notável diferencial, na elaborada
concepção artificial do pacto que, entregando ao soberano o poder da espada, se volta à proteção de direitos
naturais (naquele autor, aliás, o plural utilizado não se justifica, porque, em Hobbes, a esfera de resistência ao
soberano com base num suposto direito natural, além de mínima, goza de pouca relevância prática como se verá
adiante). É propriamente esse corte de finalidade – com os olhos voltados a um Direito que, natural, tem por
origem a individualidade mesma do homem – que aparta a doutrina cá destrinçada das posições teóricas que,
então, intentavam justificar o poder político.
48
A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA
EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA
quanto para aqueles de idéias mais “liberais”. Vale dizer, firme em que esse arranjo teórico
teve certeira participação no movimento de fortificação da entidade estatal perante as ordens
consuetudinárias17, não é possível conferir dali posições que rumem necessariamente veredas
antimonarquistas18.
Com efeito, na criação de uma espécie de “tábula rasa política” – parte-se doravante de
um Direito Natural universalmente válido sem resquícios histórico-sociais –, o que passa
importar não é tanto o conteúdo da ordem jurídica artificialmente engendrada para proteção
daquelas pretensões naturais, nem a elasticidade destas últimas – daí a defendida
fungibilidade (STOLLEIS, 2008, p. 341) -, antes o que enfeixa relevância é seu caráter de
exclusividade para aqueles fins de resguarde daqueles direitos.
Somente tendo por foco essas premissas, é que se poderão ladear teorias tão antípodas
como a de Hobbes e a de Locke, cabendo aqui algumas comparações pontuais a fim de
estabelecer as discrepâncias existentes entre a posição de ambos os autores.
2.3.1 Um pacto de conteúdo vário, uma só consequência jurídica
A fim de indicar de modo mais preciso o que está neste ponto sendo exposto, serão aqui
indicados alguns aspectos que, na obra de dois conhecidos autores igualmente contratualistas Hobbes19 e Locke20 –, se mostram claramente contraditórios.
O núcleo firme de direitos a respeito dos quais a ninguém, até mesmo ao soberano, é
dado malferir é evidentemente diferente em extensão nos dois autores, mostrando-se
claramente mais alargado em LOCKE (1978, § 135, p. 87), muito embora seja impossível
desconsiderá-lo, ainda que em seu teor mínimo, em HOBBES21.
É à proteção desses direitos22 que se presta o pacto firmado entre os homens –
realizado este último não em razão de uma força externa (natureza humana, vontade divina e
17 Não é outra a interpretação que ora se propõe: enxergar na doutrina contratualista, sim, um movimento de
centralização de poderes em torno da figura estatal, sem ligá-la de forma determinante a pensamentos políticos
pré-determinados.
18 De fato, “Sia l' assolutismo che i suoi oppositori - ceti, città, confessioni - si sono serviti del suo arsenal e
hanno legittimato e criticato l´autorità sempre partendo de ciò che consideravano li ‘diritto naturale’ nella
particolare situazione politica. Nè l'ideologia né la critica all'ideologia poterono fare a meno del topos
suggestivo nella ‘natura’” (STOLLEIS. Michael. Storia del Diritto Pubblico in Germania. trad. Cristina
Ricca. Milano: Giuffrè Editore, 2008. p. 351).
19 HOBBES. Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Os
pensadores. trad. João de Paulo Monteior et al. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
20 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Coleção Os Pensadores. trad. E. Jacy Monteiro et al. 2.
Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
21 “Há alguns direitos que é impossível admitir que algum homem, por quaisquer palavras ou outros sinais,
possa abandonar ou transferir. Em primeiro lugar, ninguém pode renunciar ao direito de resistir a quem o ataque
pela força para tirar-lhe a vida, dado que é impossível admitir que através disso vise a algum benefício próprio”.
(p. 115). “[...] O consentimento de um súdito ao poder soberano está contido nas palavras eu autorizo como
minhas, todas as suas ações, nas quais não há nenhuma espécie de restrição a sua antiga liberdade natural.
Porque ao permitir-lhe que me mate não fico obrigado a matar-me quando ele mo ordena. Uma coisa é dizer
mata-me, ou a meu companheiro, se te aprouver; e outra coisa é dizer matar-me-ei, ou a meu companheiro.
Segue-se, portanto, que ninguém fica obrigado pelas próprias palavras a matar-se a si mesmo ou a outrem
[...]”.(HOBBES, 1997, p. 176, grifo no original)
22 O fim último, causa dos desígnios dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os
outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com
sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita”. (op. cit., p. 41). A seu turno, em Locke: “Essas
circunstâncias [referia-se à incerteza existente no estado de natureza quanto à fruição dos direitos garantidos pela
natureza humana...] obrigam-no [...o homem...] a abandonar uma condição que, embora livre, está cheia de
temores e perigos constantes; e não é sem razão que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros
que já estão unidos, ou pretendem unir-se, para mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens a que chamo
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
49
quejandos), mas por causa da vontade dos homens mesmos, de um cálculo racional entre
meios e fins. (HOBBES, 1997, p. 143; LOCKE, 1978, § 99, p. 72).
Neste passo, parece evidente que quanto menor for a extensão de direitos naturais maior
será o campo de intervenção do soberano; bem assim, quanto mais terrível for o estado de
natureza, mais fáceis parecem ser justificativas da maior elasticidade do poder sobrenado
(sempre tendo por limite, naturalmente, aqueles prerrogativas inerentes à condição
humana23).
Hobbes, vendo como inato à natureza humana somente o direito à autodefesa, faz
derivar todos os outros direitos – incluída aí a propriedade (HOBBES, 1997, p. 148) – do
próprio poderio estatal arquitetado por sobre aquele mínimo direito natural. É certamente esse
‘exagero’24 que lhe possibilita, dentro de uma visão contratualista, defender serem do
soberano tão amplos poderes.25
Aliás, é na doutrina hobessiana – a fazer derivar do soberano prerrogativas
tradicionalmente justificadas pelo costume26 – que se vê a clara substituição das ordens
consuetudinárias advindas do medievo pelo poder estatal, na esteira do que defende
pontualmente este artigo.
Por sua vez, Locke, em sua tendência protoliberal (vencedora historicamente, bem se
sabe), torna bem mais diminutos e teleologicamente direcionados27 os direitos enfeixados
[...note-se aqui a amplitude do conceito....] propriedade. O objetivo grande e principal da união dos homens em
comunidade, colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade”. (LOCKE, 1978, §§ 123, 124 p.
82, grifo nosso).
23 Em Hobbes, as misérias do estado de natureza - retoricamente descritas para chegar à conclusão de que em tal
condição “não há sociedade” (HOBBES, 1997, p. 109) – são aptas, pois, a justificar qualquer eventual incômodo
político que se possa ter perante o soberano: “Mas poderia aqui objetar-se que a condição de súdito é muito
miserável, pois se encontra sujeita aos apetites e paixões irregulares daquele ou daqueles que detêm em sua mão
um poder tão ilimitado. [...] E isto sem levar em conta que a condição do homem nunca pode deixar de ter uma
ou outra incomodidade, e que a maior que é possível cair sobre o povo em geral, em qualquer forma de governo,
é de pouco monta quando comparada com as misérias e horríveis calamidades que acompanham a guerra civil,
ou aquela condição dissoluta de homens sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar
suas mãos, impedindo a rapina e a vingança” (ibid., p. 151).
24 Confira-se a nota 24, na qual se vê que para o autor a própria sociedade deriva do poder soberano.
25 Tão necessária é a figura do soberano que, mesmo nos casos de desrespeito à lei de Deus, não é dado ao
súdito resistir: “[...] e está fora de controvérsia que a mesma obediência é devida nos assuntos temporais, até por
um súdito cristão, a qualquer príncipe que não seja cristão; mas, nos negócios do espírito, isto é, naquelas coisas
que se referem ao culto de Deus, ele deverá seguir uma doutrina cristã. [...] Mas, então, devemos resistir aos
príncipes, quando não pudermos obedecer a eles? Certamente que não, porque isso será contrário ao pacto civil.
Então, o que devemos fazer? Ir a Cristo pelo martírio. E, se isso parecer muito duro a alguém, então é certíssimo
que ele não acredita de todo o coração que Jesus é o Cristo vivo (pois, se acreditasse, ele desejaria ser dissolvido,
para estar com Cristo), porque fingindo a fé cristã ele bem será capaz de faltar com a obediência que prometeu
submeter-se à cidade”. (HOBBES. Thomas. Do Cidadão. Coleção Clássicos. trad. Renato Jeanine Ribeiro. São
Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 376).
26 Como, por exemplo, a magistratura - o juiz nada mais faz senão “representar” a pessoa do soberano
(HOBBES, 1997, p. 148/149 e 192/193), e as condecorações e títulos nobiliários (ibid., 149).
27 “Embora os homens quando entram em sociedade abandonem a igualdade, a liberdade e o poder executivo
que tinham no estado de natureza, nas mãos da sociedade, para que disponha deles por meio do poder legislativo
conforme o exigir o bem dela mesma; entretanto fazendo-o cada um apenas com a intenção de melhor se
preservar a si próprio, à sua liberdade e à sua propriedade – pois que nenhuma criatura racional pode supor-se
que troque a sua condição por uma pior – o poder da sociedade ou o legislativo por ela constituído não se pode
nunca supor se estenda mais além do que o bem comum, mas fica na obrigação de assegurar a propriedade de
cada um [...] E assim sendo, quem tiver o poder legislativo ou o poder supremo de qualquer comunidade obrigase a governá-la mediante leis estabelecidas, promulgadas e conhecidas pelo povo, e não por meio de decretos
extemporâneos; por juízes indiferentes e corretos, que terão de resolver as controvérsias conforme essas leis; e a
empregar a força da comunidade no seu território somente na execução de tais leis [...]” (LOCKE, 1978, § 131 p.
83/84). Neste passo, diante de um legislativo tirânico, cabe, sim, - ao contrário do martírio aconselhado por
50
A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA
EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA
pelo soberano diante das prerrogativas mais infladas possuídas universalmente pelos homens
desde o estado de natureza28.
Realmente, ao entender um pouco menos miserável a condição humana no estágio
anterior à estatalidade,29 a constituição da entidade estatal por meio de um pacto passa a ser
entendida, sem os arroubos hobbesianos, como ajustadora das inaptidões30 que o estado de
natureza possui para fins de proteção da propriedade, objetivo mor da constituição da
sociedade por meio do pacto.
Contudo, também o Locke propulsor de idéias nada absolutistas31 faz por apagar a
tradição que se ponha para além do poderio estatal, porque em sua teoria, exatamente nos
moldes contratualistas já indicados, tudo quanto não esteja apoiado no indicado pelo
legislativo, poder cuja extensão tem por fim a proteção dos já indicados direitos naturais, não
goza de status jurídico32.
De fato, ao propugnar o caráter supremo do legislativo – sempre vinculado aos fins por
que estatuído o Estado –, logo se percebe que o autor, também ele, faz por desautorizar
Hobbes - a deposição daqueles que se comportam contra os fins perseguidos pelo estabelecimento do Estado:
“[...] sendo o legislativo um poder somente fiduciário destinado a entrar em ação para certos fins, cabe ainda ao
povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que age contrariamente
ao encargo que lhe confiaram. Porque, sendo limitado qualquer poder concedido com encargo para conseguir
certo objetivo, por esse mesmo objetivo, sempre que se despreza ou contraria manifestamente esse objetivo, a ele
se perde o direito necessariamente, e o poder retorna às mãos dos que o concederam, que poderão colocá-lo onde
o julguem melhor para garantia e segurança próprias.” (ibid.,§ 149, p. 93).
28 “Não é, nem poderia ser [o poder legislativo] absolutamente arbitrário sobre a vida e a fortuna das pessoas,
porquanto, sendo ele simplesmente o poder em conjunto de todos os membros da sociedade, cedido à pessoa ou
grupo de pessoas que é o legislador, não poderá ser mais do que essas pessoas tinham no estado de natureza
antes de entrarem em sociedade e o cederem à comunidade; porque ninguém pode transferir a outrem mais poder
do que possui, e ninguém tem poder arbitrário absoluto sobre si mesmo ou sobre outrem, para destruir a própria
vida ou tirar a vida ou a propriedade de outrem” (LOCKE, 1978, § 135. p. 86/87).
29 Para Locke - longe de constituir-se o estado de natureza como o estado hobbesiano da guerra de “todos os
homens contra todos os homens” (HOBBES, 1997, p. 109) - ambos os conceitos (estado de natureza e estado de
guerra) não se confundem (LOCKE, 1978, § 19. p. 41).
30 Pontuando que “O objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidade, colocando-se
eles sob governo, é a preservação da propriedade”, Locke atenta a que no estado de natureza não há (a) uma lei
“estabelecida, firmada, conhecida, recebida e aceita mediante um consentimento comum, como padrão do justo e
injusto e medida comum para resolver quaisquer controvérsias entre os homens”, sem que exista (b) “um juiz
conhecido e indiferente com autoridade para resolver quaisquer dissensões, de acordo com a lei estabelecida”, na
ausência, outrossim, de um (c) “poder que apóie e sustente a sentença quando justa, dando-lhe a devida
execução” (LOCKE, 1978, §§ 124, 125 e 126, p. 82).
31 “[...] É evidente que a monarquia absoluta, que alguns consideram o único governo no mundo, é, de fato,
incompatível com a sociedade civil, não podendo por isso ser uma forma de governo civil, por que o objetivo da
sociedade civil consiste em evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza que resultam
necessariamente de poder cada homem ser juiz do próprio caso, estabelecendo-se uma autoridade conhecida para
a qual todos os membros dessa sociedade podem apelar por qualquer dano que lhe causem ou controvérsia que
possa surgir, e à qual todos os membros dessa sociedade terão de poder estabelecer. Onde quer que existem
pessoas que não tenham semelhante autoridade a que recorrerem para decisão de qualquer diferença entre eles,
estarão tais pessoas no estado de natureza; e assim se encontra qualquer príncipe absoluto em relação aos que
estão sob seu domínio” (LOCKE, 1978, § 90. p. 68).
32 “A primeira lei positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder legislativo;
como a primeira lei natural fundamental que deve reger até mesmo o poder legislativo consiste na preservação da
sociedade e, até o ponto em que seja compatível com o bem público, de qualquer pessoa que faça parte dela.
Esse poder legislativo não é somente o poder supremo da comunidade, mas sagrado e inalterável nas mãos em
que a comunidade uma vez o colocou; nem pode qualquer edito de quem quer que seja, concebido por qualquer
maneira ou apoiado por qualquer poder que seja, ter a força e a obrigação da lei se não tiver sanção do legislativo
escolhido e nomeado pelo público; porque sem isto a lei não teria o que é absolutamente necessário à natureza de
lei: o consentimento da sociedade sobre a qual ninguém tem o poder de fazer leis senão por seu próprio
consentimento e pela autoridade dela recebida” (§ 134. p. 86).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
51
qualquer outra espécie de normatividade que retire sua legitimidade de uma fonte não estatal
(LOCKE, 1978, § 141, p. 90).
Logo se vê, por isso, que, em ambos os autores, o Estado soberano é a fonte exclusiva
do Direito, posição teórica essa que, sem dúvida, possibilitou ao direito estatal, agora com
sustentação teórico-política, flanco de atuação capaz de fazer frente a toda a experiência
jurídica pré-estatal, a qual, doravante, haverá de ser desconsiderada.
2.4 Um novo quadro político, um novo paradigma do Direito
Destruídos eventuais marcos jurídicos histórica e socialmente determinados anteriores à
estatalidade (de fato, o que antecede o ente estatal é a abstrata noção de um estado de
natureza)33, o contratualismo passou a possibilitar o pensamento de um novel quadro
político, cujos rigores, justificados embora por uma concepção que entende universais certos
direitos, haverão de ser concretizados numa realidade normativa de ordem absolutamente
contingente, emanada simplesmente do acordo de vontades dos cidadãos, e derivada
diretamente de cada um dos Estados, à época em franca ascensão .
Esse novo paradigma há de possibilitar que cada Estado possa repensar, a partir de um
marco inicial desgarrado de tudo quanto até então era entendido por Direito, sua própria
normatização; o quadro político, a partir de então, é alterado, como exata conseqüência das
modificações operadas nas fontes do Direito34.
Com efeito, ao reunir nas mãos do soberano, limitada que se encontra pela existência de
um ‘direito natural’, toda a prerrogativa de criar Direito – agora a ser arranjado em sua
completude de modo sistematizado dentro de uma codificação -, mostra-se evidente a
sistematização da atividade jurídico-normativa que o contratualismo implica.
Não mais se trata de analisar o fundamento do direito com base em origens tão
contraditórias (ordem estamental, leis fundamentais, costumes etc), cuida-se em verdade de
um novo Direito, canal de veiculação tão-só da vontade soberana única expressada numa lei,
tida por completa (fora dela Direito não existe), objetivamente clara (a ninguém é dado alterála por meio de expedientes interpretativos) e destituída de contradições (afinal ela é
conseqüência da vontade de uma só pessoa35).
Os meios por que esse processo vai tomar rumo histórico, complexos nas veredas que
percorridas, passam pelo movimento de codificação, pela redução do objeto de conhecimento
do jurista (entendido cada vez mais exclusivamente como a norma posta pelo Estado), pela
interligação lógica operada entre os textos de lei e os conceitos jurídicos (pressuposto de um
sistema fechado em si, destituído de lacunas e contradições) num arranjo teórico capaz de
fazer do fenômeno jurídico algo visceralmente coligado ao marco da legalidade.
Esse desenrolar histórico certamente não seria possível sem que, neste primeiro passo,
os rigores contratualistas fizessem superar a tradição jurídico-medievalista, dando angustos
limites ao que, dali em diante, passaria a ter status jurídico.
33 Em Hobbes: “Poderá porventura pensar-se que nunca existiu tal tempo nem condição de guerra como esta, e
acredito que jamais tenha sido assim no mundo inteiro; [...] seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de
vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair numa
guerra civil” (HOBBES, 1997, p.110). Em Locke: “Pergunta-se muitas vezes como objeção relevante: ‘Onde
estão ou onde estiveram alguns dias esses homens em tal Estado de natureza? ’ Ao que pode bastar por enquanto
como resposta que, como todos os príncipes e governantes de estados independentes por toda a parte do mundo
se encontram em um estado de natureza, claro que o mundo nunca esteve, nem nunca estará, sem ter muitos
homens nesse estado” (LOCKE, 1978, § 14. p. 39).
34 Veja-se ainda: STOLLEIS, 2008, p. 351.
35 Em Hobbes tal panorama fica claro em: HOBBES, 1997, p. 210.
52
A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA
EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA
Nesse sentido, as idéias contratualistas fizeram, sim, por colaborar com a empreitada
estatal, fazendo com que, ainda quando limitado o poder do soberano por ditos direitos
naturais, a centralidade política se centrasse na figura do Estado, independentemente do
conteúdo da ordem legal a ser erigida.
3 Conclusão
Nas dificuldades de inserção enfrentadas pelo Estado por entre aquela dificultosa teia
dos vários ordenamentos medievais, indicou-se ser o contratualismo um dos expedientes
teóricos que, já no campo concreto das relações de poder, fez por colaborar para introdução
do Estado e seu direito na ordem jurídica de então.
À proporção que apagavam de sua teoria a tradição em que embasado o que constituía o
jurídico de então, autores como Locke e Hobbes, fazendo de um abstrato Direito Natural o
fundamento último de qualquer norma jurídica, colocaram todo o conteúdo do Direito dentro
da legislação estatal, agregando aportes teóricos para fazer do Estado, em menoscabo de
qualquer outra instância, o único centro de criação do Direito.
Assim – em colaborando nesse processo de centralização do qual a Revolução Francesa
foi o verdadeiro ápice –, serviu a doutrina dos autores indicados como espeque para a
formulação de uma sistematização racionalizada do direito, cujos rigores, advindos doravante
de uma só fonte, estão aptos a ser objeto de um método específico, sem indesejáveis
interferências externas que ultrapassem o nexo necessário entro o jurídico e o legal.
Nesse trilhar histórico, a doutrina contratualista pode ser entendida como um dos
primeiros passos, um engatinhar fundamental que fez esquecer a ordem jurídica do medievo
entregando ao Estado a exclusividade na constituição do jurídico, a romper de forma
revolucionária com os paradigmas jurídicos de então.
Na fungibilidade de seu discurso, é certo que dita doutrina serviu como expediente de
centralização política, mesmo quando estivesse a propugnar limites à pessoa do Soberano, o
qual passa a ser, então, fonte estúltima única do Direito, a varrer todo o conteúdo jurídico do
direito até então concebido segundo ideias pré-modernas.
Referências
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________, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e
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LADURIE, Emmanuel Le Roi. O Estado Monárquico. São Paulo: Companhia das Letras,
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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
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do direito público na idade moderna. Seqüência: estudos jurídicos e políticos. Florianópolis:
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STOLLEIS, Michael. Storia del Diritto Pubblico in Germania. trad. Cristina Ricca. Milano:
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PÉREZ VALIENTE, Pedro José. Derecho Público Hispânico. Madrid: CEC, 2000.
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. trad. Cláudia Berliner.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.
54 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO
ESTILO FLORENTINO
O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A
JURIDICIDADE NO ESTILO FLORENTINO.
THE LEGAL THOUGHT AND IT’S “SPECIFIC HISTORY”: THE LAW IN THE
FLORENTINE STYLE.
Fernando Cáceres*
Resumo: A “historiografia jurídica”, assim como o pensamento jurídico como um todo, tem passado por
mudanças de estatuto teórico no todo relevantes para a atual “compreensão de direito”, de modo que suas
inferências têm condão de contribuir tanto ao desenvolvimento crítico da “história do direito” propriamente dita
quanto para os estudos de “teoria do direito”. O presente trabalho pretende enfrentar algumas questões pontuais
da historiografia jurídica hodierna. A intenção é desenhar a arquitetônica da proposta hermenêutica que vai
inserta no estilo florentino de fazer história do direito. Para tanto, lançaremos mão em nossa caminhada do mapa
teórico de que nos prime Pietro Costa. Intentaremos, com isso, esclarecer algumas de suas categorias básicas,
como as de “textos jurídicos” e de “historiografia particular”. Como veremos, superada a “leitura global” que se
firma com as assim chamadas “grandes narrativas”, as “historiografias particulares” ganham centralidade na
compreensão histórica, despontando dentre elas também a historiografia jurídica. Os problemas que a partir daí
se abrem, mormente no que toca a metodologia da análise histórica, são vários. O que pretendemos aqui – sem
intento de exaurirmos sua discussão – é enfrentar alguns deles sob o olhar do marco teórico (hermenêutico)
referido.
*
Mestrando em Teoria do Direito e Filosofia do Direito no Curso de Pós-graduação da Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Paraná; e-mail: [email protected]
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
55
Introdução
O discurso do jurista e o pensamento no horizonte do qual o direito ocorre, isto é, o
pensamento jurídico, há muito se percebem a auferir outro estatuto teórico que não aquele que
tradicionalmente lhe fora conferido. A certeza de que o fenômeno jurídico não se realiza em
sua prática histórica sem a participação reflexiva (também histórica) daqueles que nele são
iniciados parece mesmo uma premissa banal 1. A história do direito nos atesta, entretanto, que
tais inferências não se encontram, ainda hoje, no todo assentadas. Em verdade, ao que parece,
grande parte dos “estudos jurídicos” – seja em suas frentes mais dogmáticas, seja ainda nos
espaços mais afeitos à reflexão crítica, ou seja, atentos aos “fundamentos do fenômeno
jurídico” – não apreenderam ainda quanto à premência de se admitir, e quiçá de uma vez por
todas, que o direito decorre do próprio trabalho dos juristas: não é raro ouvirmos a asserção,
ainda de uma cultura cognitivista e normativista, de que o direito é um “objeto” (o direitoobjeto) diante do qual o pensamento jurídico, porque verdadeira ciência, coloca-se à
interpretação objetiva e distanciada.
Acontece que há muito isso deixou de ser uma “verdade verdadeira”. Os influxos
causados pela nova hermenêutica, mormente em sua disposição filosófica, bem como pelos
mais coevos “estudos epistemológicos” asseguram que na “relação sujeito-objeto” o segundo
não persiste em-si sem que os olhos do primeiro se mantenham abertos. Assim também com o
direito, de sorte que não haveria falarmos em direito-objeto não fosse a persistência de um
direito-pensamento. Como já adiantado, a intenção deste trabalho é perquirir a arquitetônica –
não a fim de exauri-la, haja vista as dimensões destes escritos – que corresponde à proposta
historiográfica do estilo florentino de fazer história do direito. Para tanto, pretendemos
caminhar com um guia-mapa bastante específico, qual seja o historiador do direito italiano
Pietro Costa e sua proposta hermenêutico-historiográfica dos textos jurídicos.
As contribuições que daí decorrem podem ser alocadas ou estruturadas no âmbito
daquilo que se chama genericamente de Metodologia Jurídica, e, mais especificamente, no
que tange já propriamente a historiografia jurídica, traz também contributos centrais ao
desenvolvimento crítico da assim chamada “metodologia de análise da história do direito”.
Em suma, está em questão a própria “historiografia jurídica”, seu campo e seu instrumental de
trabalho, bem como o seu ator ou artífice fundamental, o historiador do direito. Lançaremos
mão, nessa benfazeja empreitada, de alguns “conceitos-chave”, os quais, porque
verdadeiramente esclarecedores do texto que se segue, merecem citação desde logo: a “grande
narrativa” que, no entanto, se nos mostrará superada e hoje substituída por um olhar atento à
miríade de “narrativas particulares”; a historiografia jurídica, portanto, como “historiografia
particular”; o “objeto” de análise histórica já não mais assente qual se um simples e objetivo
“fato da realidade” fosse, mas como “textos interpretáveis”. Em resumo, o historiador do
direito nos aparecerá como verdadeiro intérprete dos textos jurídicos, assim demarcados por
aquilo que se chamara de standard de juridicidade, cuja aferição hermenêutica não abrirá mão
de um diálogo atento com a semiótica e, por conseguinte, com a pragmática.
Dessarte, ao final assenta-se que as preocupações hodiernas com a historiografia
jurídica não podem deixar de dar atenção também à metalinguagem da história, de sorte que
se faz forçoso admitirmos que a linguagem por meio da qual a história se expressa – como nos
1 “È infatti difficile immaginare il funzionamento di un ordine giuridico, in qualsiasi reatà sociale relativamente
complessa, senza ipotizzare l’intervento di un discorso di sapere: alla creazione degli apparati normativi e
instituzionali, all’interpretazione e all’applicazione delle norme, alla formazione di un ceto giuridico
professionale il sapere giuridico affre un stromentario insostituibile.” COSTA, Pietro. Semantica del potere
politico nella pubblicistica medievale (1100-1433). In. IURISDICTIO. Milano: Giuffrè Editore. 2002, p. XCIV.
56 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO
ESTILO FLORENTINO
ensina Pietro Costa 2 – é no toda delimitada pelas teorias e pré-compreensões (as “visões de
mundo”) que o historiador carrega consigo e que opte por adotar no enfrentamento com o seu
objeto. Essa, afinal, a “dimensão hermenêutica” infungível da história do direito. Lidar com
ela é sem dúvida trabalho árduo, o qual, todavia, não pode o historiador do direito deixar de
lado, sob pena de falhar-se metodologicamente na apreensão da alteridade com que o passado
jurídico nos atinge.
1 O caráter hermenêutico da historiografia: da “grande narrativa” às
“narrativas particulares”.
É hoje notória a “dimensão dogmática” que foi conferida aos saberes sociais no
desenrolar do século XIX – e prevalente ainda em grande parte do século XX – com a
crescente especialização das disciplinas e respectivas frentes de atuação no âmbito das ditas
“ciências sociais” 3. Com a historiografia, e mais especificamente com a historiografia
jurídica que ora nos toca perquirir, não ocorreu de forma diferente. Balizada pelo ambiente
cultural então predominante, também ela se viu abreviada em suas investigações, restando às
voltas com pesquisas carregadas de análise documental e de pretensão densa de objetividade
(como cientificidade) ante o “fato histórico”. Embora o horizonte teórico pressuposto não
parecesse abrir qualquer vazão às reflexões e aos questionamentos de que a filosofia nos
prime 4– e isso sobretudo em razão da densificação daquela “dimensão dogmática” –, esse
mesmo horizonte como que preparava e estendia um pano de fundo conceitual que garantia
aos pesquisadores, ante aos seus específicos objetos de análise, a legitimidade (cientificidade)
de seu labor 5.
É a isso que se dá o nome de “grande narrativa” dos saberes humanos. Os saberes
sociais, que em verdade se encontram no todo abertos às experiências várias que o devir da
sociabilidade enceta, encontravam seus mapas de trabalho, em cada uma de suas frentes
2 Essa diferenciação será tratada de forma mais pontual no correr do trabalho, mas é interessante percebermos
desde logo que: “Il metalinguaggio, insomma, non è che un programma di operazioni; il suo rapporto con il
linguaggio-oggeto si spiega secondo una logica rigorosamente operazionale (...).” COSTA, Pietro. Semantica del
potere politico nella pubblicistica medievale (1100-1433). Op.Cit., p. 57.
3 No âmbito dos estudos jurídicos, essa “dimensão dogmática” é exemplificada com a relativa redução do
material normativo tido como “material jurídico”. Especificamente, trata-se de retirar um tanto da autonomia
normativa da doutrina jurídica, no que toca as decisões jurídicas, para vincular esta última a partir do direito do
Estado. Como diz Manuel Hespanha: “A doutrina continua a ser, de facto, a principal fonte inspiradora das
decisões judiciais; em todo caso, não lhe costumava ser reconhecida uma força normativa autónoma, já que, no
plano de uma certa teoria do direito, estabelecida e dominante a partir dos inícios do séc. XIX, os jurisconsultos
elaborariam as suas construções com base nos dados do direito posto pelo Estado. HESPANHA, A. Manuel. O
caleidoscópio do direito. O direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra: Almedina, 2007, p. 43.
4 Daí a sentença crítica de Ginzburg: “Normalmente, os historiadores não se mostram muito interessados em
explorar as implicações teóricas do seu trabalho. (...) Por outro lado, as reflexões sobre metodologia, mesmo
dirigidas por historiadores contemporâneos, parecem às vezes ingénuas ou confusas a espíritos filosoficamente
formados. Este divórcio entre a prática e a teoria explica porque certas discussões sobre conceitos tais como
causalidade, narração, etc., são – com algumas excepções – um pouco decepcionantes.” GINZBURG, Carlo.
Ekphrasis e citação. In. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989.
5 “Ello implica en sustancia una teoría fuerte del conocimiento científico y una teoría débil de la subjetividad.
Por lo que se refiere al conocimiento científico, en efecto, ello incluye al menos los siguintes corolarios: a)la
ciencia, es, aunque sea a modo de asíntota, productora de verdad porque es capaz de conocer la realidad
<<objetivamente>>, por lo que es; b) el conocimiento científico es objetivo en la medida en que se fundamenta
em procesimientos de la lógica y en laobservación de los hechos; c) los hechos se ofrecen ante cualquiera como
directamente observables y constatables. En lo que respecta al papel al papel del sujeto em el proceso
cognoscitivo, en cambio el paradigma positivista impone la desaparición de la subjetividad apenas se abre el
discurso de la ciência.” COSTA, Pietro. Discurso jurídico e imaginación. In. Pasiones del jurista. Amor,
memória, melancolía, imaginación. PETTI, Carlos (org.). Madrid: centro de Estudos Constitucionales, 1997, p.
165.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
57
especializadas, já previamente demarcados por essa “grande narrativa”. Concebida como
espécie de “enciclopédia geral” do conhecimento científico, cada uma daquelas frentes via-se
então projetada como um seu capítulo, isto é, como mais “um momento” ou tópico daquela
“grande narrativa” firmada como compreensão teórica global da realidade social. Nas
palavras de Pietro Costa:
É no horizonte de uma visão global da sociedade que o historiador de um modo
geral concebeu e praticou sua profissão. As filosofias sociais totalizadoras forneciam
ao historiador dois importantes instrumentos de orientação: de um lado, ofereciamlhe um repertório lexical e conceitual empregável no trabalho de revelação,
sistematização e narração dos dados; de outro, e respectivamente, assinalavam à sua
disciplina um local preciso no mapa do saber, legitimando-a como componente de
uma “enciclopédia” geral.6
Pontue-se que quando falamos aqui em “grande narrativa” não nos é permitido ler tal
expressão no singular, em verdade se impondo que falemos também aí no plural, e, portanto,
em grandes narrativas, uma vez que é do embate de amplos e tradicionais modelos de análise
social que se está a falar. Daí que se diga que a cultura (teórica) do século XIX e de grande
parte do século XX seja o resultado dos influxos desses grandes embates, ora prevalecendo
um olhar, ora outro 7. De qualquer maneira, o que se percebe comum a essas “grandes
narrativas” é a intenção de elaboração de um conhecimento global, coerente e de abrangência
total, crentes ainda no possível “progresso da história” 8. Acontece que a atualidade das
discussões em torno da epistemologia em seus debates mais coevos atesta-nos acerca da
impossibilidade de seguirmos às cegas com projetos ou modelos globais de compreensão do
social: uma micro-análise se faria afinal infungível 9. Não é à toa que, no tocante à
historiografia e à Escola dos Annales, aquilo que hoje se considera como a sua “terceira fase”
salienta principalmente a desintegração daqueles grandes modelos, bem como a necessidade
de um olhar mais “minimalista” e do resgate do indivíduo ou do evento histórico na análise
historiográfica.
O que cai por terra com as atuais contendas epistemológicas é, primordialmente, a
referência à cisão categórica (inabalável na tradição oitocentista) entre o “objeto” de análise e
o “sujeito” do conhecimento, com o que também a noção tradicional de “método” se vê
prejudicada. Nesse contexto, porque não se admite atualmente uma tal “cisão absoluta”,
aceitando-se mesmo o sujeito sempre perpassa o objeto de análise, carreando-o com isso de
sentidos e interpretações pré-instaladas em sua “subjetividade”, o caráter hermenêutico do
conhecimento humano ganha centralidade indiscutível. Também assim na historiografia geral
6 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Curitiba: Juruá Editora, 2010, p. 17.
7 “Entre essas grandes narrativas, é o marxismo que provavelmente manteve até os nossos dias, mais que os
outros velhos concorrentes, o fascínio de uma compreensão teórica global da realidade social. Mas também esta
grande narrativa entrou, em anos recentes, em uma crise significativa: uma crise que certamente não é a primeira
em seu mais que centenário percurso, mas, que é, entretanto, particularmente relevante, ligada provavelmente
não apenas (como se repetiu demasiadamente) à mudança do cenário internacional, mas também à percepção da
impotência, não apenas pragmática, mas igualmente de “diagnóstico”, da teoria freten à complexidade da
realidade. É, em fim, uma crise sobre a qual pesa uma difusa e crescente desconfiança com relação às “grandes
narrativas”.” COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento
jurídico. Op.Cit., p. 18.
8 Na verdade, não obstante se tratasse mesmo de embates teóricos entre grandes modelos, cada qual trazendo
suas especificidades analíticas e teóricas, eles compartilhavam esse otimismo do conhecimento humano, da
ciência humana. É, porém, justamente esse otimismo que hoje se vê sob o fogo cruzado das discussões
epistemológicas e hermenêuticas, como logo veremos.
9 Para um estudo acerca da micro-análise no âmbito da historiografia, conferir: GINZBURG, Carlo. A microhistória e outros ensaios. Op.Cit. e, do mesmo autor: GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica,
prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
58 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO
ESTILO FLORENTINO
e na historiografia jurídica, como parece percebê-lo o assim chamado estilo florentino de
fazer história do direito.
Embora a demarcação desse caráter hermenêutico da historiografia jurídica não almeje
desamparar de objetividade suas análises, até porque no que toca o estilo florentino
propriamente dito nós veremos se delinear um espaço bastante específico para esse trabalho,
fato é que a confiança na “pureza do fato histórico” já não se sustenta. No trabalho do
historiador não se colhe o “fato” em sua límpida objetividade, como se fosse possível mantêlo isento de qualquer quadro pré-figurativo da compreensão do analista. Esse trabalho sempre
opera, em verdade, alguma seleção analítica, como que a fazer mediar em suas pesquisas de
campo (na análise dos “fatos”) alguma camada de linguagem prévia, a dimensão cultural em
que se insere o pesquisador, as teorias que este estuda e toda uma miríade de informações que
inevitavelmente se inscreverá no resultado do conhecimento histórico.
A historiografia, portanto, não é a descrição de coisas ou estado de coisas, mas
atribuição de sentido; portanto, interpretação. Uma relação entre historiografia e
hermenêutica é uma relação de espécie e gênero: aquela operação intelectual que
chamamos historiografia é compreensível enquanto reconduzível à lógica da
interpretação. Não toda interpretação é historiografia, mas toda operação
historiográfica, como decifração de textos, testemunhos, sinais, como reconstrução
de um “sentido”, é interpretação: refletir sobre a historiografia significa então colher
dela os essenciais significados hermenêuticos, na linha de uma tradição que, a partir
de Schleiermacher, tematiza o nexo entre interpretação e historiografia. 10
Dessarte, se nos é possível concluir algo, ainda que provisoriamente, deve-se salientar
que o historiador não está em seu trabalho simplesmente a “descrever fatos”, mas a interpretálos e dar-lhes sentido. Na esteira da proposta de uma historiografia de inspiração
hermenêutica, como ensina Pietro Costa, essa interpretação deve recair, ademais, sobre textos
e não propriamente sobre “fatos”: de modo que o historiador, além de não descrever a
realidade em sua facticidade plena, antes mediando-a hermeneuticamente (dando-lhe assim
sentido histórico), não interpreta quaisquer objetos, mas especificamente o que ele faz é
interpretar textos. Como o historiador do direito italiano salienta, com isso não se está a
resolver ou dar cabo aos problemas epistemológicos da historiografia como instância crítica
de “acesso ao mundo”, mas tão-só fazendo-os emergir de forma mais clara e precisa. A
dificuldade que a partir daí se abre ao trabalho do historiador é de fato imensa e merece não
ser ignorada, mormente porque esses textos não se nos dispõem de forma categórica, contínua
ou retilínea, como se poderia crer. Eles surgem, entrementes, como pontos de vista
fragmentados e descontínuos, tal qual uma miríade de possíveis testemunhos 11. De outro
lado, não se deve perder de vista que a interpretação deles possível dificilmente será unívoca,
afirmando-se aí uma inevitável “mutabilidade da verdade histórica”.
Esclareça-se, todavia, que sob o espectro hermenêutico-historiográfico não se colocará a
questão epistemológica da verdade do texto, interessando primacialmente o seu
“funcionamento concreto” e a normatividade social que venha a estabelecer. Daí dizer-se que
a historiografia assim compreendida mais se aproxima das indagações da semiótica do que
propriamente da epistemologia: não está em questão, portanto, a representação da realidade
enquanto tal, mas a dimensão pragmática que esses testemunhos históricos atingem. A
10 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Op.Cit., p. 21.
11 “Uma característica atual do conhecimento histórico é, de fato, de ser não um objeto, mas um ponto de vista:
todo aspecto da realidade humana pode ser objeto do conhecimento histórico. (...) Cada uma dessas
historiografias afronta aspectos específicos da experiência e deve, portanto, dispor de conhecimentos adequados
à compreensão do seu objeto.” COSTA, Pietro. O conhecimento do passado: dilemas e instrumentos da
historiografia. Curitiba: Juruá Editora, 2007, p. 09.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
59
questão fulcral do historiador, diante disso, diz com o conteúdo e a forma dessas narrativas,
bem como com os efeitos e ações sociais que elas operam, em suma, com as transformações
sócio-comportamentais que elas determinam. Assim,
Pensar em termos hermenêuticos a historiografia significa dar um passo atrás da
realidade ao texto: a historiografia não se debruça diretamente sobre a realidade, mas
trabalha indiciariamente sobre os textos. Renunciar às grandes teorias
onicompreensivas impõe proceder na pesquisa sabendo não dispor de uma visão
sistemática e predeterminada da realidade para acomodar as peças do mosaico
isoladas cansativamente recolhidas. Deste ponto de vista, pensar hermeneuticamente
a historiografia é um exercício da socrática consciência de não saber: não sabemos a
priori em qual capítulo da “grande narrativa” os textos interpretados se inserem
porque não dispomos mais de nenhuma “grande narrativa”. A realidade não aparece
mais disposta em uma ordem da qual conhecemos a trama geral, faltando-nos
justamente a consciência aproximada dos particulares: a realidade se apresenta como
um entrelaçamento, uma confusão de ações e interações cuja complexidade não é
reduzir por uma teoria geral. 12
Note-se que com essa fragmentação da textualidade da história o que está em verdade a
ocorrer é o abandono daquela “grande narrativa” (como instância de legitimação), cujo
desmonte ou desmembramento desemboca numa sua substituição categórica: seu discurso
como grande texto (ou grande livro) ideológico e ordenador do conhecimento e da verdade,
que estava a atingir toda a “rede de conhecimentos sociais”, vê-se então substituído por
inescapável miríade de textos. Diante disso, importa percebermos que essa miríade de textos,
como testemunhos práticos, aparece-nos como que a representar a “contra-face” daquela visão
global e até então dominante. Grosso modo, a “grande narrativa” sai do palco da história para
que entrem em ação outras formas de narrativas, como expressão de testemunhos mais locais
e comunitários, as assim chamadas “narrativas particulares”.
2 Uma “narrativa particular”: a compreensão da juridicidade no
pensamento jurídico.
Cada uma dessas diferentes e específicas narrativas particulares, como resultados de
concretas operações historiográficas, destina-se a interpretar a um diferente tipo de texto e
eles orientam diferentes questionamentos: elas formam assim suas diferentes visões de
mundo. É isso que garantirá a especificidade de cada uma delas frente às demais. Problema
central a um arranjo mais global dessas diversas historiografias particulares refere-se à
dificuldade de se redesenhar sua relação, antes assegurada pelas grandes narrativas. Se é que
ainda se poderá falar em “historiografia geral”, isso não poderá perder de vista que, uma vez
assentada sua dimensão hermenêutica, bem como a certeza de que aquela grande narrativa
não está mais legitimada a assentar a cientificidade global dessas diferentes “visões de
mundo”, nenhum texto ou nenhuma textualidade é hoje vista, a priori, como detentora de
melhor perspectiva explicativa.
Os textos a que se destina o historiador não têm “valor em-si”. Eles valem, em verdade,
por aquilo que dizem frente ao jogo de perguntas que o historiador lhe infere, ganhando aí o
seu sentido histórico. Com isso, o que se quer salientar é que não há como se determinar
previamente ao diálogo com os próprios textos qual é aquele que melhor explica dada
realidade, sobretudo porque – numa visão hermenêutica da historiografia – o sentido de cada
texto é conquistado sempre a posteriori. Diante disso, não há se falar que a “historiografia x”
explica melhor a realidade social do que a “historiografia y”, se elas têm cada uma um
diferente objeto de análise: “a história do arado não explica mais, ou menos, que a história da
12 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Op.Cit., p. 26.
60 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO
ESTILO FLORENTINO
metafísica ocidental e a história das receitas de cozinha não é uma história necessariamente
“menor” (mas nem “maior”) que as histórias das batalhas.” 13 Cuida-se de perceber, portanto,
que com o desmantelamento da “grande narrativa” aboliram-se, em ato contínuo, quaisquer
níveis hierárquicos pretensamente insertos na operação historiográfica.
É tendo isso mente que importa considerarmos algumas especificidades da
“historiografia jurídica”, ora percebida como mais uma dentre tantas outras historiografias
possíveis: como mais uma “historiografia particular”, a historiografia jurídica não se
diferencia das demais “visões de mundo” (as “narrativas particulares”) em termos de se
assumir como uma “melhor ou pior” forma de compreensão da realidade social, senão que
somente pelo tipo de textos sobre os quais deita suas atenções. Saliente-se, dessa forma, que é
a textualidade de cada historiografia particular que lhe garantirá sua especificidade frente às
demais, de modo que – sob esse enfoque – a historiografia jurídica não tem condão de
produzir narrativas mais ou menos importantes do que as “narrativas particulares” que se
produzem por qualquer outra historiografia. O trabalho que então se impõe ao historiador do
direito, mormente àquele que tenciona uma compreensão e uma escrita propriamente jurídica
da realidade social, sem que com isso se anule as demais pretensões historiográficas, é o de se
voltar aos modos como a própria história do direito tem se representado o seu próprio trabalho
correr dos tempos: trata-se, como ensina Pietro Costa, de lançar um olhar para si mesmo, a
fim de perceber as mudanças internar do seu esforço historiográfico, seja vinculado aos
grandes modelos, seja deles liberto.
Nesse movimento compreensivo de “autorepresentação da história do direito”, Pietro
Costa aponta como ponto de partida obrigatório, concebendo-o como verdadeira arché, o
pensamento jurídico de Friedrich Von Savigny:
Savigny criou, por assim dizer, um idioma próprio do historiados do direito: um
idioma que se enriqueceu e complicou no curso do tempo, mas que continuou a ser
falado, em alguma medida, até a tempos recentes. É singular, pois, que o idioma
savigniano goze de uma tal duração como dialeto, não como língua: quero dizer,
sem metáfora, que, enquanto a imagem savigniana do desenvolvimento histórico em
geral teve uma sorte, tudo somado, modesta (pense-se ao contrário, por contraste, no
historicismo hegeliano e em todas as sucessivas revisitações), o modo savigniano de
pensar o direito, o pensamento jurídico e a sua história assinalaram verdadeiramente
uma longa estação da historiografia jurídica. 14
O que aqui importa restar claro, e especificamente com essa passagem, não é tanto a
escolha do autor-jurista e do pensamento jurídico referenciado pelo historiador do direito
(como o modo savigniano de pensar o direito), mas a metodologia à qual se está a chamar
atenção. Cuida-se de um olhar que recai sobre as “continuidades normativas” que o próprio
pensamento jurídico estabelece a cada tempo como necessárias: “o pensamento jurídico se
desenvolve no tempo, mas não procede por saltos e fraturas, mas por continuidade e
acumulação progressiva” 15. Uma historiografia jurídica atenta – sob esse olhar – é aquela
que, assumindo o espaço do pensamento jurídico como seu ambiente próprio de trabalho,
volta-se àquelas reflexões e respectivos “modos de pensar o direito” que ganharam vulto
13 É por isso que: “É necessário individualizar, no entrelaçamento não dominável de “todos” os textos, um
grupo de textos que possa cada vez aparecer relativamente homogêneo; e é necessário, respectivamente,
formular as perguntar “corretas”, determinar os critérios de uma leitura que dê sentido ao texto valorizando-lhe a
coerência. Trata-se em resumo, de ajustar os instrumentos lingüístico-conceituais em torno aos quais organizar a
própria narrativa.” COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento
jurídico. Op.Cit., p. 28.
14 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Op.Cit., p. 29.
15 Ibidem, p. 29.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
61
normativo no âmbito desse mesmo pensamento jurídico 16. Com isso não se ignora, ao
mesmo tempo, a possibilidade de um estudo que se destine àqueles “modos de pensar” que,
diferentemente, não galgaram tal continuidade 17. E, nessa esteira, uma historiografia
jurídico-brasileira que assuma essa como sua metodologia caminha no espaço que se abre
com o pensamento jurídico brasileiro, em sua formação própria. Ainda assim, não se elimina a
possibilidade de se intentar conectar com o pensamento jurídico estrangeiro que também aqui
conquistou aquela continuidade.
A referência a Savigny e ao “historicismo hegeliano” é tomada, no texto transcrito,
como exemplos de “modos de pensar” que podem, ou não, ser considerados pelo historiador
do direito. Não nos toca, aqui, fazer uma análise detida do “modo de pensar savigniano”, mas
convém transcrevermos mais uma passagem de Pietro Costa a ele referente, uma vez que
esclarece a centralidade metodológica que se dá ao pensamento jurídico:
Um tema importante é a convicção da substancial absorção do direito no
pensamento jurídico. Estou ressaltando as tintas por comodidade de exposição. Não
quero dizer que Savigny ignorasse modalidade do jurídico diversas do pensamento
dos juristas: basta pensar nos costumes e em sua relação romântica “íntima” com o
Volk. Quero dizer apenas que toda a sua representação da experiência jurídica se
alavancava não sobre a legislação, não sobre a jurisprudência, nem ao menos sobre
os costumes, mas sobre o jurista como produtor de textos de saber: é em torno a isso
e graças a isso que os outros elementos tornaram-se inteligíveis como forças
operantes do ordenamento. É o pensamento jurídico, é a obra de reflexão e de
elaboração empreendidas pelo jurista que recolhe para si, concentra e exalta a
unidade da experiência jurídica. 18
É o pensamento jurídico e a tradição reflexiva da qual ele é partícipe que então
aparecem como “campo de trabalho” orientado a uma historiografia propriamente jurídica 19:
no que toca especificamente a proposta savigniana, é sabido que sua intenção de harmonizar
de forma plena direito e história – espécie de perfeito harmonia entre teoria jurídica e história
do direito – fora logo rechaçada, “mas o espelho no qual a história do direito reflete a própria
imagem é ainda o espelho de Savigny.” 20 Trata-se do “mesmo espelho” porque, embora os
modelos subseqüentes, dentre eles aquele que mais ganhou vigor teórico, o positivismo
16 “É claro que quem fala de pensamento jurídico, não por mera ocasião retórica, mas conscientemente, afirma
implicitamente que não tem nada a partilhar nem com uma visão redutiva do direito, nem com uma concepção
positivista da ciência jurídica e do jurista. O direito não pode, sob essa ótica, ser reduzido a instrumento do poder
político ou a um acumula normativo mais ou menos ordenado sistematicamente; e a ciência jurídica, alforriada
de toda servidão exegética, liberada do condicionamento necessário da vontade do legislador, é individuada
como intérprete no significado mais intenso do termo, não como tecedeira de argumentações lógicas no interior
de um sistema fechado que ela não contribui a construir e do qual ela simplesmente sofreu incidência, mas sim
como mediadora entre as exigências sociais e culturais gerais e a cultura jurídica.” GROSSI, Paolo. Pensamento
Jurídico. In. Crítica Jurídica Revista latinoamericana de política, filosofia y derecho, Curitiba> Unibrasil, 2005,
p. 16.
17 “A rigor, portanto, existem não a história do direito, mas tantas histórias do direito quanto são as narrativas
historiográficas que a cada vez se redigem: a história do direito não é o espelho de uma experiência já definida e
em si mesma fechada, mas simplesmente um contraponto linguístico capaz de contrapor todas aquelas narrativas
historiográficas (diversas entre si, ainda que incomparáveis) que se organizam em torno de algum standard de
juridicidade, mesmo que compreendida”. COSTA, Pietro. Ibidem., p. 36.
18 Ibidem, Idem.
19 Fique claro desde logo que admitir essas continuidades, as quais em última análise configuram aquilo que se
tem como tradição no âmbito de cada disciplina jurídica, não desemboca na obrigatoriedade de um tratamento
dogmático e repetitivo dessa mesma tradição. Daí Pietro Costa falar da necessidade de uma “pitada de
anarquismo metodológico”: “significa olhar os textos disciplinares jurídicos sem se pôr necessariamente dentro
da tradição, sem inserir-se no bettiano processo circular que transcorre do presente ao passado na inalterável
unidade da ciência jurídica e do seu circular desenvolvimento.” Ibidem, p. 40.
20 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Op.Cit., p. 30.
62 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO
ESTILO FLORENTINO
oitocentista, tenham optado por operar uma descontinuidade nessas reflexões, encontrando de
fato outros e novos espaços para a reflexão jurídica, tal opção se faz no âmbito do próprio
pensamento jurídico. São as próprias descontinuidades que se operam dentro do pensamento
jurídico – e pensemos aqui no deslocamento positivista das atenções de um direito como
“pensamento” para um direito como “objeto” – que em verdade garantem a sua continuidade.
Seja assumindo-se numa perspectiva autônoma, seja aderindo a uma “grande narrativa”, quem
está aí a seguir num ou noutro caminho é, ainda, o próprio pensamento jurídico. Daí a
“metáfora do espelho” vir bem a calhar: o reflexo da realidade social, sob o olhar de uma
historiografia jurídica – que, como já se salientou, não é mais ou menos adequada do que
qualquer outra historiografia particular –, adere, de uma forma ou de outra, no espelho do
pensamento jurídico.
O uso da dogmática hodierna é, assim, instrumento de intelecção do direito passado:
mas, gostaria de dizer, um instrumento de intelecção no sentido forte. O pensamento
jurídico não vale para o historiador do direito simplesmente como um critério de
seleção dos textos, um repertório de perguntar, um léxico empregável na própria
“narrativa”; a dogmática hodierna serve ao jurista para compreender historicamente
aquela que é a verdadeira e própria essência do objeto “direito”, tanto no presente
quanto no passado. A dogmática hodierna serve, assim ao historiador do direito para
compreender os elementos essenciais, os significados ocultos da experiência jurídico
do passado: a dogmática jurídica é o “nome” melhor para “coisa” jurídica do
passado.21
Mais à frente, referindo-se a diferenciação aqui já referida entre um “direito-objeto” e
um “direito-pensamento”, assim prossegue Pietro Costa:
Ora, que a história do direito assuma o direito como seu objeto parece uma
tautologia banal. Vendo-se bem, entretanto, a tautologia é mais aparente que real:
quando a historiografia jurídica obstina-se em fundar a própria identidade referindose ao objeto “direito”, ela, via de regra, pressupõe uma asserção teórica muito
complexa, ainda que subentendida; pressupõe que “direito” valha como uma
estrutura da experiência, capaz de a identificar na sua objetividade e unidade.
Ora, creio que uma história do direito de inspiração hermenêutica, que tente se
pensar além da crise dos “grandes” modelos omniexplicativos, possa duvidar da
necessidade (e demonstrabilidade) de tal pressuposição. O historiador não se
encontra, na realidade, frente ao direito como frente a um bem delimitado setor da
experiência, que ele antes compreende em sua objetividade e unidade e depois, se
quiser, insere no contexto social global, domínio de competência do historiador
geral. O historiador do direito, como qualquer outro historiador, se encontra
simplesmente frente a diferentíssimos tipos de textos: o problema comum, ao
historiador do direito como a qualquer outro é historiador, é compreender que coisa
diz o texto e como o texto diz aquilo que diz. A juridicidade não é uma estrutura do
texto (e tanto menos obviamente uma estrutura da realidade), uma qualidade que o
intérprete constata decidindo consequentemente se o texto em questão é tarefa sua
ou é de competência do colega. O intérprete atribui um significado ao texto e nos
conta o texto, constrói uma narrativa através do texto e sobre o texto; esta narrativa
tem uma coerência e inteligibilidade na medida em que fala de alguma coisa, na
medida em que tem um tema e coordena os próprios enunciados em torno a ele; se o
tema em questão é definível como jurídico em qualquer significado que esta
21 “A dogmática jurídica, portanto, exprime a essência da experiência jurídica em todo o arco de seu
desenvolvimento e torna possível o diálogo entre presente e passado sob a insígnia da continuidade da tradição;
respectivamente, a história do direito se move a partir do saber jurídico enriquecendo-o com os outros aportes da
tradição por ela revisitada e reconstruída.” COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de
história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 33.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
63
expressão possa assumir no nosso hodierno léxico teórico, a narrativa pode dizer-se
uma narrativa histórico-jurídica. 22
Não se pode perder de vista, tanto no âmbito dos estudos historiográficos voltados ao
direito quanto nos estudo nos estudos propriamente filosóficos da juridicidade (com o que se
incluem os estudos de “teoria do direito”), esta premissa central: a intenção objetividade do
direito, como que a estabelecer a “paisagem jurídico” como objeto, também ela demanda um
pensamento jurídico. Não é possível que se queira crer, ainda hoje, num trabalho estritamente
descritivo no campo jurídico. Sobretudo porque o direito não se nos apresenta como uma
objetividade em-si, quando se pretende inferir um tal direito-objeto, por trás há,
inescapavelmente, um direito-pensamento (como pensamento jurídico) que assim o concebe
23.
3 A homogeneidade no texto jurídico.
Como, a rigor, não há tão-só uma história do direito, senão uma miríade de possíveis
análises, tudo a depender das narrativas historiográficas que pretendam assumir-se como
jurídicas, e assim assumam o standard da juridicidade, impõe-se saber quando é que essa
assunção garante alguma homogeneidade aos textos jurídicos 24. Em suma, impõe-se saber
quando é que se atinge esse “standard da juridicidade”. Essa problemática ganha, ainda, em
complexidade quando tomamos conta de que, como dito, a “experiência jurídica” não
representa uma unidade sistematicamente reunida no “objeto direito”. Estando a “experiência
jurídica” no todo aberta às orquestras que as mais variadas teorias ou simplesmente
fragmentos de teorias jurídicas lhe venham imputar, de modo tal que a história do direito não
pode limitar o seu trabalho a referir-se a um “objeto unitário”, essa homogeneidade textual
não pode ser identificada em termos estruturais, mas de temática.
Embora cada pesquisa se coloque questões distintas e com isso produza diferentes
“leituras textuais”, não é equivocado inferir que – no âmbito de uma historiografia jurídica –
os textos referenciados pelos interpretes não são absolutamente ou no todo diferentes. Ainda
que sejam múltiplos, verdadeira miríade de possíveis caminhos, não têm eles tamanha
diferença que os impeça de ser elencados ou coligados entre si como que num mesmo “grupo
reflexivo”. Como já dissemos, as variadas historiografias se diferem em razão dos “tipos de
textos” de que tratam: não está em questão, todavia, identificar uma “estrutura” que fosse a
eles semelhante, mas antes perceber que, quando analisados de perto, esses textos indicam
uma temática comum 25. É aí que os textos interpretandos conquistam aquele “caráter
22 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Op.Cit., p. 35.
23 “La iuspublicística, também y precisamente la iuspublicística como <<ciência>> rigurosa, no describe el
Estado como el resultado objetivo de una seria de normas simplesmente constatadas, sino que construye el
Estado, convierte el Estado en tema a través de una tupica red de metáforas, lo ritiene dentro del círculo mágico
del mito y de este modo, en términos a un mismo tiempo analítico y metafórico, descriptivo y valorativo,
<<científicos>> y <<míticos>>, lo asume como campo teórico propio. El saber jurídico, en un momento
<<alto>> de tensión cogoscitiva, se organiza como discurso eficaz em la medida en que conduce por un mismo
cauce metáforas, imágenes, esquemas rigorosamente lógicos: en resumidas cuentas, en la medida en que
construye e imagina el próprio objeto en el momento en que pretende describilo. ” COSTA, Pietro. Discurso
jurídico e imaginación. Op.Cit., p. 182.
24 “(...) es con esta atribuición de sentido, es con esta operación interpretativa como se atribuye al texto, si se la
atribuye, el carácter de la juridicidad. La juridicidad no es una cualidad objetiva del texto, sino un standard
atribuido a um texto en mitad de un intrincado itinerario interpretativo.” COSTA, Pietro. Discurso jurídico e
imaginación. Op.Cit., p. 177.
25 “O que torna estes textos homogêneos? Antes de tudo, a organização da mensagem e a sua destinação: são
textos que produziram e nos comunicam um saber; não nos dizem o que devemos fazer ou não fazer; não querem
simplesmente divertir-nos ou nos informar; propõem-se como textos capazes de aumentar os nossos
conhecimentos. O que os torna, em termos gerais, homogêneos é o seu componente essencialmente cognitivo, o
64 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO
ESTILO FLORENTINO
homogêneo”, isto é, quando se encontram às voltas – e cada qual com o seu olhar e sua leitura
própria – com as problemáticas de uma mesma temática 26.
Dessarte, são textos especializados e voltados a questões imanentes ao desenrolar das
disciplinas jurídicas em suas especificidades que então se impõe cunharmos de textos
jurídicos: nesse sentido, deve ser sublinhado o caráter também funcional desses textos, posto
serem eles elaborados e destinados à resolução de “problemas concretos”, tanto teóricos
quanto práticos.
“Indagar sobre a matriz de uma disciplina significa em substância tentar
individualizar naqueles elementos que permitem a uma disciplina existir e funcionar:
antes de tudo a definição de objeto teórico da disciplina, do tema central sobre o
qual os vários textos disciplinares convergem, o ponto de vista sobre a realidade que
a disciplina intenciona transmitir por esta via; e depois o método recomendado pela
disciplina em função da resolução dos concretos problemas que ela vem
enfrentando; enfim, o estilo argumentativo adotado e as escolhas de valor imanentes
na tradição disciplinar.” 27
Assim como os demais textos aos quais se atentam outras historiografias, os textos
referidos na historiografia jurídica representam uma “visão de mundo”, uma compreensão da
realidade social como que “consolidada” pelos membros de cada uma dessas disciplinas.
Interessa notar que com isso não se formam apenas as interpretações ou os pontos de vista
divididos comunitariamente (comunidade formada por aqueles membros), mas também
estratégias de um específico grupo social, de cuja institucionalização teórica, por meio da
tradição, desdobra-se sua “autoridade”. Não se pode perder de vista, portanto, que estamos a
tratar de textos que – como salientado de início – atingem relevante grau de “normatividade
social”, modificando comportamentos com suas informações e seus saberes especializados.
Não à toa que se fala do homo juridicus como alguém “iniciado”: diferentemente do que
ocorre com nossos familiares e “amigos desde sempre”, o direito demanda uma iniciação, isto
é, requer que aquele que queira conhecê-lo a fundo e em suas especificidades (sua
juridicidade) passe por “estágios de apresentação” sem os quais dificilmente saberá do que
está a falar 28. Aqui afinal a tão temida “górgona do poder”, intrínseca mesmo à “ocorrência
jurídica” 29:
(...) põe-se com urgência, como para os textos de saber jurídico, o problema dos seus
efeitos pragmáticos; põe-se, isto é, a exigência de compreender de que modo um
texto de saber “faz coisas com palavras”, modifica os comportamentos, legitima ou
deslegitima coalizões de interesses e estratificações de poder. O saber-poder de
foucaultiana memória, o saber que inclui necessariamente um momento de poder,
adquirida, pelos textos de saber jurídico, uma capacidade de sugestão e uma
persuasividade particular, em muitos direções, seja pensando-se na relação entre os
seu organizar-se em cadeias argumentativas e demonstrativas em função da “verdade”.” COSTA, Pietro.
Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 37.
26 “Dentro destes textos de saber, portanto, formam-se ulteriores ligames de afinidade e respectivas marcas de
diferença: alguns textos se coligam preferivelmente a outros textos, reclamam-se um ao outro, formam no curso
do tempo uma espécie de longa cadeia, vêm a construir uma específica tradição. Dentro delas, os tendem com
maior freqüência a reclamar-se, a coligar-se um ao outro, vindo a constituir, por assim dizer, os pontos de uma
linha ininterrupta. A conduzir o leitor ao longo desta linha estão os mesmo textos, através do jogo cominado de
citações abertas e algumas remições dissimuladas; e o que deles impressiona é a sua “área de família”, a intuitiva
reconhecibilidade de traços comuns, apenar de neles distinguirem-se alguns aportes individuais, nas mudanças
das modas e dos usos.” Ibidem., Idem..
27 Ibidem, p. 38.
28 DA CUNHA, Paulo Ferreira. Introdução à Teoria do Direito. Porto: Résjurídica, 1988.
29 Górgona do poder essa da qual tentou fugir o normativismo jurídico, cuja arquitrave teórica é sem dúvida a
teoria pura do direito, mas não conseguiu, como salienta MARIO LOSANO. Nesse sentido, Cfr.: LOSANO,
Mario G. Sistema e Estrutura no Direito, Volume 1, São Paulo: Martins fontes, 2010, pp.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
65
textos de saber e a comunidade disciplinar, seja pensando-se na relação entre o
jurista e os seus vários, inevitáveis comitentes políticos. 30
Colocado diante de seus textos, o historiador do direito pergunta-se – sob o olhar da
historiografia ora aventada – de que modo esse saber funcionou na realidade social, como ele
produziu efeitos, se de fato os produziu, como afinal enfrentou e resolveu os problemas a que
se destina, qual a sua compreensão da realidade social, dentre outras perguntas cuja dimensão
pragmática deve ser salientada. Nesse trabalho, ele não adere a uma ou outra teoria ou
doutrina, de modo que não se lhe impõe dizer acerca da “verdade” (do acerto) ou não das
teorias em questão. Como um “entomologista” que segue o caminho de suas abelhas, o
historiador do direito diligentemente persegue, com certo distanciamento, as teorias e
doutrinas que se embatem a cada novo problema, sem deixar de perquirir qual delas teve sua
propulsão concretamente realizada.
4 Os textos jurídicos e a opção hermenêutica.
Como visto, o estilo florentino – aqui representado por Pietro Costa – admite a
historiografia como operação contínua de compreensão hermenêutica de textos, de sorte que
cada “historiografia particular” se volte aos seus específicos textos. Nessa esteira, a histórica
do direito decorre da interpretação de textos jurídicos, estes prenhes, portanto, de uma suposta
“natureza jurídica”. Quando se coloca a questão acerca de um “critério” que nos indique essa
natureza e, por conseguinte, esses textos, duas são as abordagens possíveis: de um lado, há
uma possível abordagem objetivista, cuja premissa basilar diz quanto à necessidade de se
considerar “o texto em si”, como que a apostar numa “essência estrutural” do próprio texto a
identificar sua natureza jurídica; de outro lado, há também a possibilidade de uma abordagem
subjetivista, a salientar a inevitabilidade do sujeito e sua história naquela identificação. É com
essa segunda abordagem que se desenrola o olhar hermenêutico-historiográfico ao qual
estamos chamando atenção:
O intérprete de um texto é um indivíduo historicamente confinado. Ele não é um
espírito puro nem um eco passivo do texto, como se o texto fosse um arca cheia de
significados fixos e predeterminados. O texto é uma estrutura flexível, aberta a um
indefinido número de significados, e ´r o intérprete quem atribui sentido ao texto e o
reescreve. A interpretação é um discurso de segundo nível, um discurso sobre um
discurso. O discurso interpretativo que construo é composto de linguagem, valores e
expectativas que compartilho com a sociedade, os grupos, a comunidade profissional
a que pertenço. Essas são as pressuposições culturais que em uníssono determinam e
permitem cada discurso interpretativo.31
O “processo hermenêutico”, na atualidade sobremaneira referido como círculo
hermenêutico, já não é estranho ao jurista do nosso século: diz ele, em suma, que nossas
pressuposições e pré-compreensões existenciais são condição infungível para o nosso contato
com o mundo, bem como com os textos e signos aos quais nos dirigimos, firmando-se desde
sempre um momento prévio e interpretativo ao conhecimento objetivo. O passado que assim
nos chega impresso em textos não se descola, portanto, dessa “condição infungível”. Sua
leitura pressuporá, desde sempre (o “immer schon” heideggeriano), uma sua antecipação préteórica, isto é, no momento mesmo em que o historiador a ele se volta sua leitura é antecipada
por uma série de pré-compreensões nele insertas.
Assim também se dará na identificação dos ditos “textos jurídicos”. Dizer o que é e o
que não é um texto jurídico implica, entrementes, uma leitura hermenêutica, um “filtro
30 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Op.Cit., p. 40.
31 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Op.Cit., p. 44.
66 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO
ESTILO FLORENTINO
cultural” mínimo que nos assegure estarmos, ou não, diante de um texto jurídico. Ademais, é
aqui que ganha centralidade metodológica a noção já referida de “tradição”: é mesmo a
“tradição jurídica” – que de modo algum merece ser confundida com certo “tradicionalismo
jurídico” – que nos apontará se estamos ou não frente a textos jurídicos 32. De mesma forma
que quaisquer outros “tipos de textos” necessitam, para serem identificados como “políticos”,
“filosóficos” ou “literários”, de alguma tradição que assim os epigrafe, assim também os
textos jurídicos serão assim considerados por alguma tradição jurídica. Interessante perceber
que essa tradição não acorre como critério de forma neutra ou meramente descritiva, tendo
função verdadeiramente prescritiva ou normativa no interior do pensamento jurídico.
Assim, é a tradição que, atuando como uma de nossas pressuposições culturais, nos
diz qual texto é ou não jurídico. Os textos jurídicos não o são por possuírem
quaisquer propriedades estruturais; textos jurídicos são aqueles que uma tradição
denota como tais. A tradição é apenas um critério de reconhecimento de textos. 33
Dito isso, não se deve perder de vista a possibilidade de considerarmos também outros
textos, que não aqueles assim considerados pela tradição, como verdadeiros textos jurídicos.
Isso abre vazão para caminhos e perspectivas críticas no campo da historiografia jurídica, não
obstante seus passos e olhares devam ainda incidir no âmbito do pensamento jurídico: ao que
parece, a aposta de uma visão crítica, nessa toada, deve tentar trabalhar com essa categoria
central (pensamento jurídico), ora ampliando-o ora dinamizando-o materialmente. É porque a
hermenêutica ensina a percebermos que o conhecimento (como metalinguagem) está desde
sempre aberto ao correr dos tempos que tal intento não pode ser ignorado, e tampouco poderá
ser rejeitado em termos metodológicos. Daí a conclusão de Pietro Costa:
Podemos escolher entre diferentes metalinguagens, mas não podemos evitar a
escolha de uma delas. Não podemos ficar sem uma linguagem que nos permita
contar nossa narrativa e entender a linguagem das fontes históricas, nossa
linguagem-objeto: não podemos evitar traduzir a linguagem do passado na
linguagem (em uma ou outra linguagem) do nosso presente. Podemos adotar as
categorias que as tradições dominantes nos recomendaram e entregaram, ou tentar
construir nossa metalinguagem de outra forma. Um passo necessário da pesquisa
histórica é, contudo, a formulação e o emprego de uma linguagem através da qual a
compreensão e a tradução do discurso passado em nossa cultura presente se tornem
possíveis.
A história como linguagem (objeto) e a história como metalinguagem (analista)
compõem juntas, e dialeticamente, a expressão histórica. Certamente, a aparição da históriaobjeto é no todo dependente – a ponto de se fazer forçosa a premissa de que “não há uma
história, mas sim uma miríade de possíveis histórias” – da história que o analista pretende
estudar e contar. Isso quer dizer, em última análise, que a linguagem da história não se
32 Perceba-se que a “tradição jurídica” não merece ser confundida com um “tradicionalismo jurídico” porquanto
aquela categoria não está a referir qualquer necessidade de “tomada de posição” política ou teórica no âmbito do
pensamento jurídico. A “tradição” compõe, em verdade, o vocabulário de uma filosofia hermenêutica, em nada
se confundindo com qualquer tradicionalismo. Assim como a tradição nos indica quais são os textos jurídicos,
assim também a tradição nos indicará quais são os textos filosóficos, literários ou políticos. Trata-se de um filtro
cultural que tem aqui caráter metodológico.
33 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Op.Cit., p. 45. Na página seguinte, assim prossegue o historiador do direito italiano: “A tradição funciona como
qualquer outra pressuposição hermenêutica: ela fornece ao intérprete aquilo de que precisa, ou seja, alguma idéia
prévia de direito, com base na qual possa atribuir uma qualidade jurídica a um texto. Se recorremos à tradição,
atribuímos -lhe a tarefa de determinar a idéia prévia de direito que nos permite construir um corpus de textos
cuja pertinência a uma pesquisa jurídico-histórica pode ser presumida.” (...) “Não podemos evitar o recurso a
algumas lentes, a alguma idéia de direito, mas nada nos compele a adotar exatamente as lentes fornecidas pela
tradição dominante, e nada nos impede de desenvolver um instrumento diferente, de determinar livremente nosso
ponto de partida, nossa ideia inicial de direito.”
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
67
expressa por si só senão que por meio de uma (sendo por ela mediada) metalinguagem. A
importância desta última é de fato fulcral. Daí a necessidade de o historiador se manter atento
às suas “visões de mundo” quando colocado diante do seu objeto: perceba-se que, em última
análise, quem cria o objeto de análise (a própria “linguagem da história”) é, sob um enfoque
metodológico hermenêutico, o analista e a teoria que este venha a adotar em suas pesquisas (a
“metalinguagem da história”).
5 A tensão essencial da historiografia contemporânea: a alteridade do
passado frente à “propulsão normativa” que o presente impõe.
Nesse contexto, o papel dos “estudos historiográficos” ganha vulto talvez até então
inimaginável. Na medida, porém, em que se admite (como verdadeira “inevitabilidade
epistêmica”) o historiador como intérprete ativo e criativo da linguagem histórica, como que a
revelá-la em sua própria historicidade, isto é, dando sentido contemporâneo ao passado a
partir do seu próprio “tempo”, é posta em xeque a possibilidade de uma compreensão do
passado e da apreensão de sentido e valor autônomos. Se o historiador sempre “vai às coisas
nelas mesmas” – parafraseando o adágio hermeneuta heideggeriano –, de modo que o sentido
e o valor do passado são aqueles que o presente do historiador lhes imputa, coloca-se em
dúvida a “necessidade” ou simplesmente “objetividade” do trabalho historiográfico.
Sem dúvida tocamos num dos pontos mais incômodos da hermenêutica. Por um
lado, o intérprete compreende o passado na medida em que se movimenta desde o
mundo cultural e linguístico de seu presente e pressupõe os padrões conceituais que
compartilha com a sociedade e os grupos profissionais a que pertence. Por outro
lado, o intérprete-historiador apenas atua como tal se é sensível às sugestões de
textos diferentes e distantes, e tenta respeitar e perceber sua alteridade. Nessa
perspectiva, o processo hermenêutico é uma ponte (por mais estreita e frágil que
seja) entre o presente e o passado. Mas a existência real da ponte é questionável. 34
Porque não é necessário seguir o “caminho desconstrucionista” 35– a pretender anular o
passado no presente, como se não houvesse qualquer autonomia ao “texto interpretando” –
que abre mão da linguagem histórica para subsumi-la no todo em sua metalinguagem, a
proposta metodológica da qual estamos a tratar não ignora uma intencionalidade própria do
texto histórico. Com isso, embora sob um olhar hermenêutico e historicizante, não se abre
mão da tarefa específica do historiador, como tentativa constante de compreensão do
significado dos textos objeto de apreciação no âmbito contextual historicamente demarcado
36. Assume-se assim que a adequada atenção ao passado, considerado em sua alteridade
frente o devir do presente, é condição indispensável da compreensão histórica: de sorte que a
própria metalinguagem da história perderia sentido não fosse pensada com olhos à sua
linguagem, isto é, ao passado como alteridade.
Se é, entretanto, uma condição necessária, não é suficiente. Porque a historiografia
envolve um trabalho hermenêutico, não é possível que se limitem os questionamentos
34 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Op.Cit., p. 48.
35 Sobre esse caminho, que aqui não será trilhado, conferir: COSTA, Pietro. O conhecimento do passado:
dilemas e instrumentos da historiografia. Op.Cit., p. 13 e seguintes.
36 “O problema com que nos preocupamos é principalmente a história dos textos jurídicos como tais. Estas duas
áreas de pesquisa não se encaixam perfeitamente, porque textos dedicados à formulação e transmissão de
conceitos jurídicos (e políticos) básicas constituem apenas uma subclasse entre as várias classes possíveis de que
textos jurídicos são compostos. Mesmo se essas duas áreas se sobrepõem, podemos extrair algumas sugestões
gerais de seus pontos de junção. A principal mensagem que podemos obter dos últimos trinta anos de debate
sobre a história intelectual, além da variedade de abordagens, é o reconhecimento intrínseco do passado.”
COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p.
52.
68 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO
ESTILO FLORENTINO
metodológicos quanto à “linguagem histórica”, desconsiderando sua “metalinguagem”. Com
efeito, se assim fosse, estar-se-ia a falhar metodologicamente. O relacionamento entre o
“intérprete” e o “objeto” do processo hermenêutico não deixa de expor, sobretudo quando
apreendido como processo criativo, haver aí não um, mas dois momentos. Assim como não é
passível de se deixar de lado a consideração da alteridade da linguagem histórica, da mesma
forma não se pode perder de vista a arquitetônica que dele visa dar conta. Tão importante
quanto a assunção daquela alteridade, é a admissão de que não há história sem alguém para
lhe contar: não é tarde para lembrarmos que o historiador não é um espectador passivo.
Dessarte, o historiador não está a considerar de forma absolutamente exterior as redes e
os jogos de linguagem que o passado simplesmente dispõe à análise, como se o objeto saltasse
por si só à sua frente, antes compreendendo-os a partir do presente e do próprio contexto
linguístico (e teórico) em que está inserido. Como um “tradutor”, o historiador traduz em sua
linguagem (presente) aquela que para ele é uma “outra linguagem”, prenhe de alteridade, a
linguagem do passado. Assim:
Não é suficiente que respeitemos a natureza histórica do texto que tentamos
entender. Devemos nos assegurar de que nossa linguagem esteja bem equipada para
seu trabalho. O objetivo, ou menor, o desafio do historiador é também manter um
equilíbrio difícil e incerto entre os dois mundos diferentes, entre o presente e o
passado, a linguagem através da qual ele fala e a linguagem sobre a qual ele fala. O
trabalho do historiador pressupõe um relacionamento fundamental, ou de preferência
uma tensão, ente o presente e o passado. Se abolimos um desses termos, sugerimos
uma visão parcial e incompleta da historiografia. Devemos, pelo contrário, reforçar a
relação entre passado e presente. Como podemos caminhar sobre esta trave
escorregadia? 37
6 Ensaio de conclusão-encaminhamentos: o que é afinal manter-se
atento à metalinguagem do historiador?
De início, dito o que se disse, não se deve ignorar o fato de que a metalinguagem da
história tem um papel estritamente instrumental, a ser assumido como filtro por meio do qual
se apreende o objeto de análise, e como fim em si mesmo. De qualquer maneira, sob um olhar
hermenêutico, a teoria que então será adotada – e no âmbito de uma historiografia jurídica, a
perspectiva de direito que se adote – ganha mesmo centralidade. Uma vez, todavia, que a
hermenêutica aqui cumpre um “papel subserviente”, a teoria seguida não poderá ser tão rígida
e inflexível a ponto de tomar conta, em sua totalidade, do horizonte analítico do que parte o
historiador: perceba-se que, adotando-se uma teoria excessivamente rígida e sistemática,
pouco espaço sobra para a “aparição do passado”, de sorte que, nesse caso, a história resta
escravizada na própria teoria.
Lembremos que a história somente se apresenta ao historiador nos limites permitidos
pela teoria adotada, daí sua instrumentalidade. Nas palavras de Pietro Costa:
(...) os instrumentos conceituais e lingüísticos que utilizamos (e não podemos evitar
utilizar) de modo a compreender o passado e falar sobre ele devem ser redefinidos e
utilizados em uma perspectiva operacional. Em outras palavras: quando nós,
historiadores, usamos a linguagem do presente, não buscamos teorias verdadeiras,
simplesmente buscamos a melhor maneira de formular questões. Em minha opinião
o historiador se beneficia de um pouco de ceticismo: é aconselhável que coloque
entre parênteses o problema da verdade, o problema do valor cognitivo dos
enunciados conceituais que utiliza. O historiador não é o campeão de uma teoria
37 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Op.Cit., p.53. E, categoricamente, na página anterior: “Devemos estar conscientes não apenas da linguagemobjeto, a linguagem sobre a qual falamos, mas também da metalinguagem, a linguagem através da qual
falamos.”
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
69
filosófica, mas um experto em propor questões. (...) Podemos imaginar a ponte
hermenêutica entre presente e passado como um diálogo, em que o historiador
propõe para o passado questões às quais os textos do passado são respostas (suas
respostas). 38
Daí Pietro Costa propor, sob o influxo da filosofia lingüística e da etnometodologia,
uma definição do estatuto dos enunciados metalingüísticos utilizados na pesquisa
historiográfica como “locuções indexicais”. Trata-se de locuções cujo significado varia de
acordo com o contexto, espaço-temporal, em razão de sua indeterminação semântica. Diante
disso, o problema passa a ser “como” utilizar as categorias do presente para a compreensão de
uma alteridade que se distancia no tempo: em termos não mais temporais, como uma
alteridade apenas antropológica, também pode se utilizar de tal ferramenta. Assim, o “direito
como categoria indexical” surge ao historiador como termo ou categoria flexível que admite
uma série de diferentes leituras 39. Diante dessa miríade de possíveis leituras, o historiador
trabalha como que a unir materiais e sugestões no mais das vezes no todo distintos, como um
verdadeiro bricoleur. Daí a expressão “historiador-bricoleur”, também referenciada na
proposta historiográfica de Pietro Costa, no “estilo florentino”, e a enfatizar um arranjo
analítico que não se organiza mais por sobre as tradicionais e sólidas bases do cientismo 40,
mas tampouco, no labor em torno da juridicidade, com respaldo numa estrita doutrina jurídica
sistemática e tida como “verdadeira”.
Não é por outro motivo que se fala que o historiador, nesse contexto, inventa e reinventa
sua metalinguagem não num feitio teorético ou filosófico, ou simplesmente epistemológico.
Antes ele a pensa (em sua “reescrita analítica”) como ferramental adequado temporariamente,
utilizável em sua empreitada pessoal. Identificado o espaço de atuação do historiador, por
exemplo, o direito, o seu “escrever a história do direito” deve ser percebido como verdadeiro
escrita através do direito: assim também “a história da sociedade, liberdade ou cidadania é, ao
mesmo tempo, uma história através da soberania, liberdade ou cidadania” 41. O que se
enfatiza com isso é que as formulações do historiador levam consigo algumas definições
infungíveis, definições prévias referentes a esses termos (ou textos), de modo que a narrativa
que decorrerá de sua análise escreverá uma história marcada a ferro por sua metalinguagem.
Em suma, é a definição (prévia) estabelecida no plano da metalinguagem o que de fato
sustentará e guiará a pesquisa empírica: perceba-se, para finalizarmos em definitivo, que se
assim se dá no âmbito próprio da história do direito e da historiografia jurídica, da mesma
forma se dá nos estudos jurídicos como um todo.
Chegados até aqui, gostaríamos de concluir este texto – e para tanto pedimos licença ao
leitor – com uma derradeira transcrição daquele que foi nosso guia e assim nos permitiu esta
38 Ibidem, p. 54.
39 “Quais são as principais características de tal uso do termo “direito”? Primeiramente, devemos abandonar
uma visão holística do direito e enfatizar apenas alguns aspectos específicos do fenômeno complexo que
chamamos de “direito”. em segundo lugar, precisamente porque os aspectos ressaltados do direito não exaurem o
fenômeno jurídico como tal, podem ser usados de forma conjuntiva ou disjuntiva e gerar muitas questões
diferentes e específicas. Em terceiro lugar, as definições empregadas devem ter um caráter formal e aberto, de
modo que possam ser aplicadas a diferentes contextos.” Ibidem, p. 56.
40 Sobre o cientismo e o positivismo nos estudos jurídicos, conferir: HESPANHA, Manuel. Cultura Jurídica
Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Editora Boiteux, 2005, pp. 373 e seguintes.
41 Para o estudo do conceito de cidadania, conferir o impressionante trabalho de Pietro Costa: COSTA, Pietro.
Civitas. Storia della cittadinanza in Europa. 1. Dalla civilta comunale as settecento. Italia: Editori Laterza,
1999. E, transcrevendo passagem sensacional, à p. 21: “E ancora: civitas, soprattuto per i giuristi, è tanto questa
città quanto la città, sta ad indicare sia gli ordinamenti particolari che l’ordinamento universale, l’Impero, che
costituisce il fondamento di validità di quelli; ed ecco allora che, puntualmente, il termine ‘patria’ accompagna
l’intero dispiegarsi dei significati di civitas: la città sarà patria singularis, distinta da una possibile patria
communis e Roma in particulare, la città universale, il simbolo dell’Inpero, varrà come patria di tutti.”
70 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO
ESTILO FLORENTINO
“experiência do vocabulário florentino”. E isso porque, depois de tudo o que se disse,
poderíamos afinal perguntar-nos de que vale tudo isso. Não querendo crer que a Faculdade de
Direito – no feitio acadêmico e universitário – possa ser extinta ou simplesmente substituída
por cursos cujo primado da “técnica pela técnica” se imporia a serviço de alguma “engenharia
social”, acreditamos que o direito tem ainda hoje, e talvez sobretudo hoje, um papel
importante a se cumprir ante as empreitadas que com ele concorrem a fim de substituí-lo:
trata-se de com o direito assumirmos a possibilidade, senão necessidade, de um projeto
humano alternativo frente à frieza que as redes de poder (político-econômico) hoje impõem
42. E, para tanto, um jurista atento será, certamente, chave central 43. Concluamos, portanto,
com os dizeres de Pietro Costa:
Poderíamos, quando muito, perguntarmo-nos se é inevitável cairmos no primado da
técnica e na atitude que torna o direito uma engenharia. É certo que neste ponto
todos os jogos devam ser jogados? Deveríamos talvez discutir mais a fundo não
apenas sobre o currículo do futuro jurista, mas também sobre sua identidade
intelectual. Deveríamos, em suma, decidir qual seja o nosso jurista ideal do futuro:
um jurista conformado à lógica de Humpty Dumpty (para quem as palavras
significam aquilo que o patrão quer), ou então um jurista interessado em alargar o
leque das possibilidades e em imaginar alternativas. Se olhássemos para este último
tipo de jurista, poderíamos, sim, confirmar que a história não serve para nada; mas
poderíamos acrescentar que é exatamente a sua inutilidade que a torna
indispensável.44
Referências
AROSO LINHARES. A. Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo. Coimbra:
Policopiado. (no prelo).
COSTA, Pietro. Semantica del potere politico nella pubblicistica medievale (1100-1433).
In. IURISDICTIO. Milano: Giuffrè Editore. 2002.
COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do
pensamento jurídico. Curitiba: Juruá Editora, 2010.
COSTA, Pietro. O conhecimento do passado: dilemas e instrumentos da historiografia.
Curitiba: Juruá Editora, 2007.
COSTA, Pietro. Civitas. Storia della cittadinanza in Europa. 1. Dalla civilta comunale as
settecento. Italia: Editori Laterza, 1999.
COSTA, Pietro. Discurso jurídico e imaginación. In. Pasiones del jurista. Amor,
memória, melancolía, imaginación. PETTI, Carlos (org.). Madrid: centro de Estudos
Constitucionales, 1997.
42 AROSO LINHARES. A. Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo. Coimbra: Policopiado. (no
prelo).
43 Dito isso, não nos esqueçamos: “Paolo Grossi coloca o historiador do direito como um jurista (jurista teórico)
que deve estar em diálogo permanente com os demais juristas práticos, como aquele que desempenha um papel
de consciência crítica dos que se afundam na cotidianeidade prática. Aqueles das disciplinas aplicadas – desde
que tenham sensibilidade cultural para tanto – são chamados a participar de um diálogo a partir de uma
linguagem de fundo comum. Grossi nos ensina que o estabelecimento de uma dualidade – como se vê tanto aqui
no Brasil – entr disciplinas formativas ou propedêuticas de um lado, e disciplinas “aplicadas” de outro, é
procedimento culturalmente artificial e que pode levar a conseqüências esterelizantes para o conhecimento.”
MARCELO, Ricardo. Laudatio. In. Doutorado Honoris Causa a Paolo Grossi. Curitiba: UFPR, 2011, p. 16/17.
44 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico.
Op.Cit., p. 78.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
71
DA CUNHA, Paulo Ferreira. Introdução à Teoria do Direito. Porto: Résjurídica, 1988.
GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.
GINZBURG, Carlo. Ekphrasis e citação. In. A micro-história e outros ensaios. Lisboa:
DIFEL, 1989.
GROSSI, Paolo. Pensamento Jurídico. Trad. MARCELO, Ricardo. In. Crítica Jurídica
Revista latinoamericana de política, filosofia y derecho, Curitiba: Unibrasil, 2005.
HESPANHA, Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis:
Editora Boiteux, 2005.
HESPANHA, A. Manuel. O caleidoscópio do direito. O direito e a justiça nos dias e no
mundo de hoje. Coimbra: Almedina, 2007.
LOSANO, Mario G. Sistema e Estrutura no Direito, Volume 1, São Paulo: Martins fontes,
2010.
MARCELO, Ricardo. Laudatio. In. Doutorado Honoris Causa a Paolo Grossi. Curitiba:
UFPR, 2011.
72
CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E
CONEXÕES
CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA:
RAÍZES E CONEXÕES.
CONSTITUTIONALISM, TYRANNY AND COUNTERMAJORITARIAN DIFFICULTY:
BASES AND CONNECTIONS.
Gabriela Carneiro de A. B. Lima*
Resumo: O presente trabalho se insere no campo da teoria da constituição, buscando compreender os
fundamentos do constitucionalismo norte-americano a partir das raízes do federalismo e da dificuldade
contramajoritária. Para tanto, mobiliza estudos historiográficos já realizados sobre o tema, de maneira a delinear
grandes molduras temporais, através do desenvolvimento de uma trajetória conceitual relativa à construção das
percepções quanto à necessidade de um governo central. Da mesma forma, abordam-se pensamentos em torno da
criação de um novo desenho institucional, destinado a controlar a danosa atuação dos grupos facciosos. Por
último, investiga as conexões entre a afirmação do judicial review e a ascendência do criticismo
contramajoritário, assim como os obstáculos à afirmação da soberania nacional.
Abstract: The present work, encompassed by the scholar field of constitutional theory, aims at understanding
the foundations of north-american constitutionalism from the bases of federalism and countermajoritarian
difficulties. For that purpose, it makes use of earlier historiographical studies developed about the topic in order
to outline great temporal frames through the development of a conceptual path relevant for the construction of
perceptions concerning the necessity of a central government. Similarly, this study intends to approach ideas
about the creation of a new institutional design, meant to control the jeopardizing action of factious groups. At
last, the connections between the affirmation of judicial review and the ascendency of counter-majoritarian
criticism are investigated, as well as the obstacles to the affirmation of national sovereignty.
*
Gabriela Carneiro de Albuquerque Basto Lima. Mestranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito na
Universidade do Estado de São Paulo – FD-USP. Graduou-se em Direito pela Universidade Federal Fluminense
– FD-UFF. [email protected]
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
73
Introdução
Trata-se, o presente trabalho, de uma síntese dos principais argumentos e dados
levantados em sede de monografia de fim de curso de graduação em Direito, na Universidade
Federal Fluminense (UFF-2010). Orientada pelo professor Rogério Dultra dos Santos, a
pesquisa envolveu compreender aspectos teóricos fundamentais que envolvem a fundação
constitucional norte-americana, e os ciclos históricos seguintes.
Desse modo, o trabalho buscou investigar as raízes e conexões de dois pilares centrais
da teoria constitucional estadunidense, quais sejam, federalismo e dificuldade
contramajoritária. Para tanto, primeiramente, desenvolveu uma abordagem à luz do judicial
review realizado pela Suprema Corte, elencando conflitos a ela submetidos ou relacionados,
de maneira a alcançar uma moldura conceitual. Buscou, em seguida, analisar a extensão das
relações forjadas entre a trajetória da afirmação da supremacia da revisão judicial e o
nascimento da dificuldade contramajoritária, tal como a concorrência entre as disputas
federativas e a oscilação do criticismo alimentado frente à jurisdição constitucional.
Pretendeu-se demonstrar, assim, que a história da ascensão da dificuldade
contramajoritária esteve diretamente interligada à questão da supremacia judicial para revisão
das leis. Constatou-se, por exemplo, que quando as decisões judiciais não são supremas,
podem ser ignoradas, não atraindo para si grande criticismo, enquanto que, sendo supremas,
não podendo ser ignoradas portanto, passam a tornar-se alvo mais frequente de crítica.
No que diz respeito ao suscitado criticismo, em livro publicado em 2004, Larry Kramer,
sobre a atualidade dessa questão constitucional, sentencia “In politics, the people rule. But
not in the Law.”1. Tal crítica, direcionada aos arranjos contramajoritários, hoje sedimentados
na interpretação realizada pelos tribunais, não é de todo nova. A pesquisa envolveu perceber
como, desde a decisão da Corte Marshall em Marbury vs. Madison, inseriu-se o Judiciário em
uma larga e inacabada disputa política, permeada por discussões que vão desde a sua
legitimidade, ou ausência de, à percepção de como se devem comportar os Poderes em uma
democracia.
Por outro lado, ao virarmos o eixo de atenção para a realidade brasileira, é possível
constatar uma relevante guinada no papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal após
o advento da Constituição de 1988. Dessa forma, sendo-lhe atribuído a função de Corte
Constitucional, além de tribunal superior, em um contexto de redemocratização e de
aprofundamento do fenômeno ao qual convencionou-se chamar por judicialização da política,
tem-se popularizado cada vez mais os temas de sua pauta, e o teor de seus julgamentos.
A respeito dessa difusão, e das múltiplas divergências existentes, o tribunal tem buscado
amparo no postulado contramajoritário como fundamento de sua legitimidade. Todavia, o
presente trabalho partiu do pressuposto de não existir no Brasil uma transferência abrangente
do debate correlacionado, sendo o mesmo assimilado de maneira seletiva, e
descontextualizada.
E, ainda, além da seletividade com que se costuma tratar os debates constitucionais
exógenos, cuja transferência merece cautela, o trabalho parte ainda da crença na necessidade
de se dispensar maior atenção às peculiaridades do Estado brasileiro, cujo federalismo, de
tendência centralizadora, possui desafios próprios. Assim propusemo-nos a investigar,
justamente, a complexidade do debate acima apresentado, e de algumas de suas variáveis,
1 KRAMER, Larry D. The People Themselves: Popular Constitutionalism and Judicial Review, New York,
NY: Oxford University Press, 2004.
74
CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E
CONEXÕES
comprometendo-nos com o enriquecimento do campo da teoria constitucional, e oferecimento
de subsídio àqueles que porventura pensem os fundamentos do constitucionalismo.
Para a realização desse objetivo, o trabalho foi desenvolvido em torno de três eixos
principais. O primeiro buscou apreender o contexto da revolução e da pós-revolução norteamericanas, procurando investigar o sentido do federalismo defendido, especialmente, por
Madison e Hamilton. Esse primeiro eixo destinou-se, ainda, a delinear a preocupação
manifestada, no Federalista de nº 10, quanto ao temor das facções, potencialmente tirânicas e,
contra elas, a utilidade da União como elemento de salvaguarda.
Já num segundo momento, em continuidade ao inicial, buscou-se encarar
especificamente a trajetória da questão federativa à luz do judicial review, destacando os
conflitos entre centralização e descentralização, supremacia nacional e soberania dos estados.
Foi pesquisada e elencada, assim, uma série de decisões e de acontecimentos relevantes a
respeito do tema, sendo promovido um esforço, pela autora, na busca da construção de uma
narrativa que delineasse os arranjos conceituais estruturados conforme as já estabelecidas
grandes Eras, sem ignorar as permanências e as interrupções porventura ocorridas. O capítulo
buscou adotar, por fim, uma perspectiva interna, priorizando as interpretações realizadas pela
Corte.
Num terceiro momento, procurou-se fechar o ciclo proposto e, após apresentação dos
temas federalismo, facções e judicial review, desenvolver os aspectos pertinentes à
dificuldade contramajoritária. Desse modo, buscou-se não apenas definir o seu conceito mas,
sobretudo, apresentar as múltiplas faces assumidas pela oscilante tensão entre a vontade do
povo, ou sua maioria concreta, e a Suprema Corte, e sua interpretação, ao longo da história
estadunidense.
Por fim, é apresentada a conexão entre os tópicos em questão: federalismo, temor às
facções, supremacia do judicial review, soberania da União.
Como é possível observar, o trabalho não teve por objetivo promover uma investigação
historiográfica específica mas, a partir de narrativas já consolidadas (com especial destaque
para os trabalhos de Lêda Boechat Rodrigues e Barry Friedman), a partir de “histórias
longas”, perceber as oscilações teóricas acima mencionadas. Assim sendo, as páginas que se
seguem ambicionam apresentar uma síntese dos principais argumentos desenvolvidos ao
longo da pesquisa e, não sendo possível apresentar todas as eras investigadas (cerca de dois
séculos, cinco eras), optei, motivada pelo rigor científico, a trabalhar, neste artigo, com apenas
uma era (a Roosevelt, momento-chave tanto para a afirmação da supremacia do judicial
review quanto para a ascensão do criticismo contramajoritário).
1. Federalismo: o problema das facções e a necessidade da União como
salvaguarda
É notória a importância assumida, historicamente, pelos momentos da independência e
da pós-independência norte-americanas. Especialmente, no que se refere aos debates que
precederam a ratificação2 de uma nova e inédita Constituição, de conteúdo federalista, a criar
um novo liame político-jurídico entre os Estados até então confederados.
O grande debate, que pode ser apresentado de maneira didática através da oposição
entre federalistas e antifederalistas, defensores da centralização e da descentralização,
envolveu diversos aspectos que acabaram por tornar-se clássicos, e cujas divergências não se
2 Dentre os principais temas debatidos, sublinhamos as questões relativas ao comércio e às dificuldades
militares. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. American State Papers – The Federalist.
Chicago: William Benton, 1952.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
75
extinguiram no nascedouro. Em vista disso, tais aspectos têm se desdobrado através dos dois
últimos séculos e permanecido objeto de grande disputa, assim como exercido grande
influência sobre os movimentos constitucionalistas, com especial destaque para os ocorridos
na América Latina3.
Assim sendo, reconhecida a relevância da founding era4 e dos fouding fathers, e
desejando-se conhecer o pensamento dos federalistas, destacam-se duas fontes: As atas dos
debates constituintes, realizados a portas fechadas, e os artigos de autoria de John Jay,
Alexander Hamilton e James Madison, reunidos em “O Federalista” – publicados
originalmente com o objetivo de convencer a cidadania nova-iorquina da necessidade de
ratificar a Constituição (GARGARELLA, 2006, p. 174).
Dentre outras preocupações desenvolvidas na última obra, há uma específica, sobre a
qual se debruça uma importante tradição da teoria constitucional e política, qual seja: A
necessidade de serem construídas, e oferecidas, garantias frente ao risco da tirania5.
Dessa maneira, a primeira etapa da pesquisa, destinada a delinear conceitualmente a
questão federalista e o problema das facções, estruturou-se basicamente em torno de quatro
eixos principais. O primeiro buscou abordar o conflito pós-independência entre Confederação
e Estados, cujas tensões teriam alimentado uma generalizada sensação de crise, pelas elites
revolucionárias, e percepção de saturação do modelo vigente.
O segundo demonstrando como, dessa insatisfação, derivaram uma série de novas
propostas, que podem ser divididas de maneira didática entre federalistas e antifederalistas, a
orbitar entre dois pólos principais - centralização e descentralização. Tal percepção de
desgaste, aliada à emergência de novos desenhos institucionais, culminará na realização da
Convenção da Filadélfia, e nos debates que precederam a ratificação de seu texto
constitucional.
A partir daí, para o terceiro ponto, investigou-se a perspectiva federalista, e a
preocupação central de Madison no artigo nº 10, a defender a vantagem de uma União frente
aos riscos da tirania e da anarquia decorrentes da livre atuação das facções. Objetivou-se
demonstrar o perfil garantista da suscitada teoria a partir, principalmente, da comparação com
a então controversa anexação de uma Bill of Rights.
Por último, servimo-nos da conclusão de Madison sobre a natureza desafiadora do
controle das facções, principal tarefa, em sua visão, das legislaturas modernas. Portanto, além
da relevância da problemática, descortina-se, ainda, a perene fragilidade com que se comporta
o desejado equilíbrio entre o resguardo dos bens públicos e dos direitos privados; da
manutenção do espírito, e da forma, popular de governo.
3 GARGARELLA, Roberto. Em nome da constituição. O legado federalista dois séculos depois. In: Filosofia
política moderna. De Hobbes a Marx Boron, Atilio A. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas,
USP, Universidade de Sao Paulo. 2006.
4 Trata-se a noção de Fouding Era, ou “Era da Fundação” em português, de conceito-chave para os estudos de
Teoria da Constituição e de Ciência Política norte-americanos.
5 Nesse primeiro momento, a pesquisa se debruçou, essencialmente, sobre três obras. Com o objetivo de
compreender o contexto da independência, e dos sentimentos por ela alimentados, primeiramente utilizou-se o
estudo de Gordon S. Wood, professor de história da Brown University, Rhode Island, intitulado A Revolução
Americana.(WOOD, Gordon S., A Revolução Americana: história breve. Lisboa: Círculo de Leitores, 2004).
Num segundo momento, em busca da importância do movimento federalista, e de seu legado para a Teoria
Constitucional contemporânea, utilizamos algumas reflexões desenvolvidas por Roberto Gargarella. Por último,
mas central, investigamos a teoria desenvolvida por James Madison no papel federalista nº 10, cuja imediata
preocupação diz respeito à ameaça dos grupos facciosos em uma República.
76
CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E
CONEXÕES
Desse modo, na visão do pai fundador, sendo o grupo faccioso formado por uma
minoria, poderá criar instabilidades, contudo não estará capacitado a derrubar a Constituição,
não ameaçando sua integridade. Entretanto, sendo a facção composta por uma maioria, poderá
acabar por sacrificar o bem público, ou os direitos de outros cidadãos.
From this view of the subject it may be concluded that a pure democracy, by which I
mean a society consisting of a small number of citizens, who assemble and
administer the government in person, can admit of no cure for the mischiefs of
faction. A common passion or interest will, in almost every case, be felt by a
majority of the whole; a communication and concert result from the form of
government itself; and there is nothing to check the inducements to sacrifice the
weaker party or an obnoxious individual. Hence it is that such democracies have
ever been spectacles of turbulence and contention; have ever been found
incompatible with personal security or the rights of property; and have in general
been as short in their lives as they have been violent in their deaths. (MADISON,
1952, p. 60)
Assim sendo, diante da questão sobre os meios a serem utilizados para fins de combate
às facções, em um novo desenho institucional então em vias de elaboração, o pensamento
federalista renegou qualquer possibilidade de serem erigidas garantias morais ou religiosas,
pois, diante da oportunidade e do assédio, seu fracasso seria inevitável. Na visão de Madison,
inclusive, seria essa a principal causa de instabilidade e de derrocada das chamadas
“democracias puras” (MADISON, 1952, p. 60).
A salvaguarda contra as facções, por conseguinte, poderá dar-se apenas numa
República, a diferenciar-se do modelo democrático puro, principalmente por:
1)
Delegação do governo a uma minoria eleita e
2)
Maior abrangência do mesmo devido à maior extensão territorial.
É possível afirmar, portanto, inclusive à luz de outros arranjos presentes na pauta
federalista, tais como o sistema de freios e contrapesos e o bicameralismo legislativo, que a
democracia ideal, na visão dos estudados teóricos, possui estrita ligação com a estabilidade do
sistema político (GARGARELLA, 2006, p. 181).
2. Federalismo e judicial review
Nos seus longos anos de existência, descontados os onze iniciais em que, carente de
liderança, viveu uma vida apagada e descolorida, a Suprema Corte é uma peça
fundamental da engrenagem política americana. Louvada ou destratada, defendida
ou atacada, ela esteve, quase sempre, na crista dos acontecimentos internos mais
importantes, e conseguiu superar numerosas crises sofrendo danos relativamente
diminutos.6
A princípio, a atividade do controle de constitucionalidade realizada pelo judiciário
poderia despontar como uma consequência lógica, e natural, de sua atividade jurisdicional
fim7. Afinal, e quanto a esse aspecto parece não existir grande controvérsia, destina-se a
tutela jurisdicional justamente à interpretação das leis, em sua ampla e sistêmica estrutura.
Dessa forma, antes mesmo do advento da Suprema Corte norte-americana, pode-se
constatar o difundido exercício da revisão judicial das leis pelas cortes estaduais, à luz de suas
constituições locais (WOOD, 2004, p.141-152).
6RODRIGUES, Lêda B. A Corte de Warren (1953 – 1969): A Revolução Constitucional. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1991.
7 CAPPELLETTI, Mauro. Judicial Review in Comparative Perspective. California Law Review,Vol. 58, nº 5.
pp. 1017-1053. 1970. Neste caso, pressupõe-se o texto constitucional como rígido.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
77
A respeito das razões históricas para o controle difuso realizado nos Estados Unidos,
Mauro Cappelletti demonstra como as colônias britânicas, em contraste ao espírito francês
(CAPPELETTI, 1970, p. 1028), já possuíam um Judiciário comprometido com a defesa dos
direitos individuais de liberdade contra eventuais investidas opressoras promovidas pelo
Governo: “(...) most retained a residual feeling that the long established principles of the
common law were in some way superior to statutory innovations.” (CAPPELETTI, 1970, p.
1029). Em conformidade, se posiciona relevante parte da tradição teórica constitucional norteamericana, que enxerga, em seu judiciário, um antigo defensor dos direitos individuais frente
ao arbítrio do governo8.
Capelletti demonstra ainda, em seu estudo sobre o poder de revisão judicial, como a
existência de regulamentos comerciais expedidos pela Coroa vinculava a interpretação
realizada pelo Judiciário da Colônia sobre toda legislação local, de maneira inclusive a anulála em caso de inconformidade. Tal cultura, na visão de Cappelletti, será tão enraizada que
acabará por ensejar as múltiplas criações de Constituições estaduais após a independência.
Todavia, muitos seriam os obstáculos percorridos pela Corte Constitucional na busca
pela afirmação da supremacia de seu judicial review, cuja pedra fundamental será lançada em
Marbury vs. Madison.
Por conseguinte, a questão federativa estará intimamente relacionada a esse percurso,
seja através dos conflitos submetidos a sua jurisdição, seja através de sua inserção política
como mais um ator, nesta complexa dinâmica entre governos locais e federal, interesses
públicos e privados.
Lêda Boechat Rodrigues, em sua investigação historiográfica acerca das raízes do
direito constitucional norte-americano, e a Suprema Corte9, separa, didaticamente, a
apresentação de seus períodos em quatro, aos quais, considerando a publicação do livro no
ano de 1958, optei por adicionar mais um, subsequente. Cada período engloba um perfil de
jurisdição constitucional próprio, sendo inclusive, muitas vezes, denominados como Eras pela
teoria constitucional e pela ciência política
Utilizou-se, portanto, sua organização para sublinhar aspectos concernentes à relação
entre a trajetória do judicial review e a construção da percepção dos arranjos federalistas. No
que diz respeito ao presente artigo, cujo objetivo é indicar os principais apontamentos do
trabalho, como anunciado na introdução, optei por selecionar o período que vai de 1937 a
1957 como parâmetro, por tratar-se de um momento chave tanto para a afirmação da
supremacia do judicial review quanto para a ascendência do criticismo contramajoritário.
2.1 A Era Roosevelt
Sabe-se, que após a grande depressão de 1929, há uma importante guinada nos rumos
do pensamento econômico. Eleito em 1932, reeleito em 36, 40 e 44, Franklin Delano
Roosevelt viria, através de seu New Deal, a refundar as bases do governo norte-americano. De
maneira oposta ao amplo liberalismo até então praticado, será seu governo o responsável por
promover o Welfare State, ou Estado de bem-estar social, cujos compromissos sociais
demandavam larga intervenção estatal.
Desse modo, à luz da tradição hermenêutica anteriormente estabelecida pela Suprema
Corte, caracterizada pelo laissez faire, não surpreenderá o choque ocorrido entre essa e a
transformadora ideologia propagada pelo New Deal.
8 MCILWAIN, Charles. Constitutionalism: ancient and modern. Indianapolis: Amagi, 2007.
9 RODRIGUES, Lêda B. A Corte Suprema e O Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: Forense,
1958.
78
CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E
CONEXÕES
Assim, é interessante notar que, onde a presidência via benefícios sociais, a Suprema
Corte enxergava inconstitucionalidade, à luz de seus paradigmas interpretativos, bloqueando
diversos projetos de iniciativa da presidência de Roosevelt. Em 1937 é apresentado, então, o
plano de reorganização judiciária que viria a ser conhecido como Pack the Court ou, em
português, “lotear a corte”, destinado, em princípio, a reorganizar toda magistratura federal
mas cujo maior alvo, sabe-se, mirava justamente a Suprema Corte.
Entretanto, apesar de o projeto não ter frutificado, encontrando resistência no Senado,
casa à qual fora apresentado após recusa dos líderes da câmara dos deputados, virá a ocorrer ,
na mesma Corte, progressiva mudança nas interpretações por ela realizadas, cujas decisões
passariam a encontrar maior harmonia com a doutrina praticada pela Administração.
É abandonado o Laissez faire constitucionalista em prol de uma interpretação alargada
dos direitos fundamentais (novas concepções de igualdade, por exemplo, e inclusão de outros,
como os trabalhistas); sendo substituída ainda a doutrina do federalismo dual, estática, por
uma mais dinâmica, que virá a ser conhecida como federalismo cooperativo.
A) West Coast Hotel vs. Parrish (1937)
É justamente em West Coast Hotel vs. Parrish que restaria caracterizada a referida
reviravolta jurisprudencial e o fim da denominada era Lochner10, cuja defesa da liberdade de
contrato fora levada a problemáticos extremos.
Assim, apresentado o conflito empregado-empregador à Suprema Corte, estando em
jogo a liberdade de contrato entre os mesmos, indagou-se ao tribunal se a remuneração abaixo
do mínimo legal de algum modo ofendia aos preceitos constitucionais do devido processo
legal e da liberdade. Do seguinte modo pronunciou-se a Corte, através do juiz Hughes
“What is this freedom? The Constitution does not speak of freedom of contract. It
speaks of liberty and prohibits the deprivation of liberty without due process of law.
In prohibiting that deprivation, the Constitution does not recognize an absolute and
uncontrollable liberty. Liberty in each of its phases has its history and connotation.
But the liberty safeguarded is liberty in a social organization which requires the
protection of law against the evils which menace the health, safety, morals, and
welfare of the people. Liberty under the Constitution is thus necessarily subject to
the restraints of due process, and regulation which is reasonable in relation to its
subject and is adopted in the interests of the community is due process.” 11
Em vista disso, marca-se uma grande reviravolta nos entendimentos realizados pela
Corte a respeito da dinâmica federativa. Desponta, dessa maneira, uma nova compreensão do
direito constitucional de liberdade, agora contrabalançado a outro, trabalhista, de cunho
social.
B) A concepção cooperativista: United States VS. Darby
Em relação ao “redesenho” do federalismo norte-americano, cuja interpretação dualista
viria a ser substituída por uma progressiva concepção cooperativista, e dinâmica, pode-se
identificar seu grande precedente em United States vs. Darby onde, rompendo-se com o
estabelecido em Hammer vs. Dagenhart, conclui-se que a edição de normas regulatórias, em
matéria de comércio, pela União, não reflete inconstitucionalidade.
10 Trata-se de precedente onde a Suprema Corte decidiu pela liberdade de contrato em detrimento da
regulamentação laboral aprovada pelo estado de Nova York.
11 Íntegra disponível em: <http://caselaw.lp.findlaw.com/cgi-bin/getcase.pl?court=us&vol=300&invol=379>.
Acesso em 02 de nov. de 2011.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
79
O caso dizia respeito à legislação trabalhista promulgada pelo Congresso em 1938,
orientada à garantia de salários mínimos, regulação de turnos de trabalho e proibição de
trabalhos infantis “opressivos”.
Sendo multada uma empresa do estado da Geórgia, a mesma recorreu à Corte,
reclamando pela inconstitucionalidade da lei congressual. Dessa forma, é estabelecido novo
paradigma federativo, à luz do judicial review, cujo último intérprete redefinia suas molduras
da seguinte maneira12
“Hammer v. Dagenhart has not been followed. The distinction on which the decision
was rested that Congressional power to prohibit interstate commerce is limited to
articles which in themselves have some harmful or deleterious property-a distinction
which was novel when made and unsupported by any provision of the Constitutionhas long since been abandoned. (…)The conclusion is inescapable that Hammer v.
Dagenhart, was a departure from the principles w hich have prevailed in the
interpretation of the commerce clause both before and since the decision and that
such vitality, as a precedent, as it then had has long since been exhausted. It should
be and now is overruled”.
Assim, inicia-se a superação do modelo predominante, cuja separação entre as esferas
da União e dos Estados era, relativamente, mais rígida. Não foram poucos os teóricos,
segundo Lêda, que viram nesse movimento um sintoma de declínio do federalismo
(RODRIGUES, 1958, p. 128).
3. A ascensão do criticismo e da dificuldade contramajoritária
Conceito delineado por Bickel13, a chamada dificuldade contramajoritária surge
primeiramente como um sentimento no entre-guerras para, depois, entre as décadas de 40 e
70, ganhar corpo e adesão teórica.14 Caracteriza-se pela percepção de que, às vezes, para
promover anseios democráticos, seja necessário bloquear a vontade da maioria, pressupondo-a
como potencialmente tirana ou facciosa.
Em The least dangerous branch, ou, em livre tradução, “O poder menos perigoso”,
Bickel inicia a obra citando passagem do artigo 78 federalista, de autoria de Alexander
Hamilton, onde o Poder Judiciário é comparado aos demais (BICKEL, 1986. p. vi)
“Whoever attentively considers the different departments of power must perceive,
that, in a government in which they are separated from each other, the judiciary,
from the nature of its functions, will always be the least dangerous to the political
rights of the Constitution; because it will be least in a capacity to annoy or injure
them. The Executive not only dispenses the honors, but holds the sword of the
community. The legislature not only commands the purse, but prescribes the rules
by which the duties and rights of every citizen are to be regulated. The judiciary, on
the contrary, has no influence over either the sword or the purse; no direction either
of the strength or of the wealth of the society; and can take no active resolution
whatever. It may truly be said to have neither FORCE nor WILL, but merely
judgment; and must ultimately depend upon the aid of the executive arm even for
the efficacy of its judgments.”
O momento em que Bickel redige seu texto é o do final da década de 1950, onde a
ordem do dia incluía a busca de novos fundamentos para o judicial review, preocupação essa,
12
Justice
STONE,
íntegra
da
decisão
disponível
em:
<http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?navby=CASE&court=US&vol=312&page=100>. Acesso em 2
de nov. 2010.
13 A noção de dificuldade contramajoritária apresenta-se na obra de BICKEL, Alexander. The Least
Dangerous Branch. 2 ed. New Haven: Yale University Press, 1986.
14 WHITE, Edward G. The arrival of history in constitutional scholarship. Virginia Law Review. 88(3):485633, 2002.
80
CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E
CONEXÕES
por sua vez, derivada de sua incessante busca por legitimidade. Assim, a emergência do
conceito da função contramajoritária, a ser realizada pela jurisdição constitucional, teve
nascimento a partir das inquietudes decorrentes de sua natureza não democrática.
Dessa maneira, no que diz respeito à ascendência da questão contramajoritária, a
pesquisa envolveu cinco pontos principais, servindo como linha mestra do estudo as
investigações realizadas por Barry Friedman acerca da trajetória do referido criticismo,
percebendo como sua emergência estará intrinsecamente relacionada aos ataques políticos
sofridos pela Suprema Corte.
Primeiramente pretendeu-se apresentar a problemática entre a aplicação do postulado e
a plena realização da democracia, além das manifestações preocupadas com a legitimidade
política das cortes constitucionais. Também se buscou indicar como a essência do criticismo
esteve vinculada à corrente percepção de governança democrática.
Num segundo ponto, foi apresentado o primeiro período histórico, desde 1800 até a
Guerra Civil, apontando a relação entre a afirmação do judicial review e o movimento de
centralização da República, além dos conflitos ocorridos entre a presidência de Jefferson e a
Corte, e as mudanças ocorridas na transição para a era Jackson.
No período seguinte, procurou-se delinear o lapso que vai desde a guerra civil até o
New Deal de Roosevelt, cujo precedente Lochner, como destacado no item anterior, será o
maior representante do laissez faire constitucionalista que viria a dominar a Corte da virada
do século. Em sequência, sobre a terceira época, buscou-se apresentar finalmente a maior
tensão vivida entre a Suprema Corte e a Presidência, entre as percepções da legitimidade da
jurisdição constitucional e a vontade do povo, ou sua maioria. Finalmente floresce, portanto,
de maneira intensa, a dificuldade contramajoritária, durante o rearranjo institucional
promovido por Roosevelt.
Porém, o criticismo passará a apresentar conteúdo diverso do anterior, praticado na Era
Lochner. Assim, ao invés de considerar-se a revisão judicial como algo essencialmente
usurpador, e ilegítimo, a crítica passará a focar a interpretação realizada, sugerindo existir
formas corretas possíveis.
Desse modo, a partir de 1935 um grande debate será provocado pelas sucessivas
declarações de inconstitucionalidade, pela Suprema Corte, de legislações de conteúdo
regulatório aprovadas pelo Congresso, ou pelas legislaturas estaduais, compreendendo-se a
controvérsia, inclusive, como o grande tema editorial, pela imprensa, do ano.15
Assim, dá-se uma transformação na percepção do conceito de democracia, e da relação
entre povo e governo, ocorrida na era Roosevelt. Marcada pelas conseqüências da grande
depressão de 1929, constata-se a concessão de grande poder ao governo central, com objetivo
de alcançar uma rápida solução dos problemas sociais e econômicos existentes. O conceito de
democracia deixa de ser visto sob o fundamento de uma mais abstrata vontade do povo para
passar a ganhar similitude com uma mais concreta majoritariedade16.
3.1 O choque
Em março de 1937, após a apresentação do projeto que buscava refundar a estrutura das
cortes norte-americanas, principalmente a da corte constitucional que, como vimos no
15 FRIEDMAN, Barry. The History of the Countermajoritarian Difficulty, Part Four: Law’s Politics, 148 U. Pa.
L. Rev. 971 (2000). pp. 991-993. Ref.: Nota de rodapé nº 83 Biggest News Rose in Supreme Court, N.Y.
TIMES, Dec. 26, 1935, at 19
16 A respeito, destacamos a elaboração da Emenda Constitucional n° 17, cujo conteúdo versa sobre as eleições
diretas para o Senado, adotada em 1913.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
81
capítulo anterior, no tópico referente ao período que vai de 1937 a 1957, mais tarde viria a
fracassar no Senado, Roosevelt:
“Last Thursday I described the American form of Government as a three horse team
provided by the Constitution to the American people so that their field might be
plowed. The three horses are, of course, the three branches of government – the
Congress, the Executive, and the Courts. Two of the horses are pulling in unison
today; the third is not.”17
O criticismo passará a focar, portanto, o sentido da interpretação realizada pelas Cortes,
apontando sua necessidade de adequação aos novos tempos, e não mais caracterizando-a
como, necessariamente, ou essencialmente, ilegítima. Grande enfoque será dado, então, pela
crítica, por exemplo, à avançada idade dos juízes. Nas palavras do Senador Norris, em 1937:
“Our Constitution ought to be construed in the light of the present-day civilization instead of
being put in a straitjacket made more than a century ago” (FRIEDMAN, 2000, p. 1020)
Todavia, após a reorientação jurisprudencial ocorrida na Corte, citada no item 2 desse
artigo, pelo precedente Coast Hotel Co. vs. Parrish, tendente inserir a pauta dos direitos
sociais em sua interpretação, afastando o outrora papel prioritário da liberdade de comércio e
de contrato, diminuirá a pressão crítica que sobre a mesma pairava e, por tabela, a necessidade
da reforma defendida por Roosevelt.
4. O temor
Será, entretanto, a partir do maior enfrentamento ocorrido entre o Governo e o
Judiciário norte-americanos que irá emergir, com vigor, o espírito contramajoritário da
interpretação constitucional.
Se, inicialmente, no período, já se pode constatar a embrionária preocupação, pela
opinião pública, da garantia de independência aos juízes, posteriormente, principalmente com
o advento dos regimes nazi-fascistas europeus, tal preocupação se aprofundará.
“No people ever recognize their dictator in advance. He never stands for election on
the platform of dictatorship. . . . Since the great American tradition is freedom and
democracy you can bet that our dictator, God help us! will be a great democrat,
through whose leadership alone democracy can be realized. And nobody will ever
say 'Help to him or 'Ave Caesar' nor will they call him 'Führer' or 'Duce.' But they
will greet him with one great big, universal, democratic, sheeplike blat of 'O. K.,
Chief! Fix it like you wanna, Chief! Oh Kaaay!” (FRIEDMAN, 2000, p. 1045).
Desse modo, difunde-se o temor a uma eventual guinada totalitária do governo de
Roosevelt, despontando a Corte como um necessário mecanismo de proteção à opressão.
Preocupação essa que se consubstanciará, ainda, através do cuidado dispensado pela Corte à
proteção dos direitos das minorias, inclusive religiosas.
Observa-se, assim, a coexistência de sentimentos ambíguos diante da interpretação
constitucional. Se por um lado, é desaprovado o teor de suas decisões, por outro, resiste-se à
sua modificação, rejeitando-se o plano apresentado por Roosevelt.
Na verdade, a essas impressões tem-se atribuído suas raízes no medo, generalizado, de
que a concentração de poderes de governo pudesse facilitar uma ditadura. A Corte aparece,
portanto, como uma maneira de contrabalançar essa possibilidade, ou, ainda, como uma
espécie de última trincheira no que se refere à defesa da liberdade.
Tal mudança, contudo, não se deu sem motivos. A maior abrangência da proteção aos
direitos civis pode ser vista, também, como fruto, resultado, da sua incessante busca pela
17 Íntegra do dirscurso, transcrita e em áudio. Disponível em <http://www.hpol.org/fdr/chat/>. Último acesso: 2
de nov. de 2011.
82
CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E
CONEXÕES
construção de sua legitimidade, em um jogo político onde atuam diversos atores, sob regras
em perene tensão.
Da seguinte maneira, portanto, em julgamento símbolo da guinada, pronunciava-se a
Corte:
Employees in industry have a fundamental right to organize and select
representatives of their own choosing for collective bar gaining, and discrimination
or coercion upon the part of their employer to prevent the free exercise of this right
is a proper subject for condemnation by competent legislative authority. (…) But we
are not at liberty to deny effect to specific provisions, which Congress has
constitutional power to enact, by superimposing upon them inferences from general
legislative declarations of an ambiguous character, even if found in the same statute.
The cardinal principle of statutory construction is to save, and not to destroy. We
have repeatedly held that, as between two possible interpretations of a statute, by
one of which it would be unconstitutional and by the other valid, our plain duty is to
adopt that which will save the act. Even to avoid a serious doubt, the rule is the
same.18
Dessa forma, pode-se notar a drástica mudança ocorrida na orientação interpretativa
realizada pela Suprema Corte norte-americana. De um tribunal pautado pelo liberalismo,
passará a assumir progressivamente, no período, uma postura claramente comprometida com
realização de direitos entendidos como sociais, a despeito dos até então hegemônicos,
relativos à propriedade e à liberdade de contrato. Assumirá ainda, no período do New Deal de
Roosevelt, uma declarada preocupação frente ao perigo das maiorias facciosas, firmando de
vez o pilar do postulado contramajoritário.
Conclusão
Por fim, após o exposto nos parágrafos anteriores, parece possível apontar algumas
conclusões.
Primeiramente, destaque-se, restou confirmada, ao longo da pesquisa, a íntima conexão
entre as trajetórias da ascensão dificuldade contramajoritária, da afirmação da supremacia do
judicial review e da soberania da União. Reitera-se, assim, a constatação de que, não
possuindo a Suprema Corte supremacia em sua revisão, o criticismo alimentado contra a sua
atuação tenderá a diminuir, posto que suas decisões poderão ser ignoradas. Todavia,
firmando-se como competente último para anular as leis, os ataques tenderão a aumentar.
Desse modo, quanto mais forte a União, e mais ampla a jurisdição constitucional por ela
promovida, maior será o criticismo fundado na vontade popular.
Nesse sentido, considerando-se a teoria de Madison quanto à necessidade de se
estabelecerem garantias frente ao risco das facções, despontam as maiorias tirânicas como o
grupo de maior potencial ofensivo à integridade da Constituição. Não será surpreendente,
portanto, a consolidação, cerca de um século e meio após a fundação norte-americana, do
postulado contramajoritário pelas Cortes, de maneira a se tentar resguardar os direitos
individuais frente a eventuais assédios populares.
Todavia, pode-se observar que tais orientações, assumidas pela corte constitucional ao
longo de sua história, não foram sempre assimiladas de maneira consensual pela opinião
pública, ou acadêmica, estadunidenses. Em vista disso, sua trajetória estará marcada pelo
recebimento de duros ataques, cuja dialética virá a construir o sentido de sua legitimidade.
Em relação a isso, outras questões se apresentam. No campo da incessante discussão
quanto à legitimidade do exercício da jurisdição constitucional, há vasto debate sobre, por
18
NLRB
vs.
Jones
&
Laughlin
Steel
Corp.
(1937)
<http://supreme.justia.com/us/301/1/case.html> último acesso 2 nov 2011.
íntegra
disponível
em
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
83
exemplo, a natureza, e as razões, da investidura dos juízes de uma corte constitucional. É
interessante observar que, se de um lado a cidadania deseja comandar o seu governo, e não
submeter-se a decisões que supõe arbitrárias, por outro, não vê sentido em abdicar da garantia
de independência oferecida à atuação dos juízes.
Dessa forma, pode-se dizer que a maioria dos cidadãos gostaria de viver em um mundo
onde a política fosse separada da justiça, sendo a independência dos juízes um dos principais
pilares da teoria da separação dos poderes. Todavia, o que a história da interpretação
constitucional revela é que, se tal pressuposto já encontra obstáculos para sua plena realização
no pequeno dia-a-dia da justiça, maior dificuldade ainda encontrará no campo da interpretação
constitucional. Em razão disso, é possível afirmar que, além das recíprocas determinações
provocadas entre os campos da política e do direito, tal interação se realizará de maneira mais
intensa, e sensível, no campo da Constituição, tendo em vista sua notável ambivalência
jurídico-política.
Desse modo, à luz dos aspectos abordados, conclui-se que a discussão encontra-se,
ainda, diretamente relacionada à percepção de como deve operar a democracia, e o papel a ser
desempenhado pelo Judiciário nela. Tal debate, conforme apontado ao longo do trabalho, não
se iniciou hoje, remontando suas raízes à época da fundação norte-americana. Além disso,
por mais que se deseje justificar a atividade da revisão judicial das leis do ponto de vista
lógico, e assim se tentou legitimar muitas vezes a corte, parece inafastável a tensão natural
entre o controle de constitucionalidade e a abstrata vontade do povo já que, em um argumento
bastante simples, derivam as leis, em tese, de um congresso constantemente renovado, através
de eleições.
84 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO
BRASILEIRO
O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA
O DIREITO BRASILEIRO
THE MYTH OF ROMAN LAW: SEARCHING FOR A FOUNDING DISCOURSE FOR
BRAZILIAN CIVIL LAW
Giscard Farias Agra*
Resumo: Quando se fala em direito privado no Brasil, a referência ao direito romano parece ser inevitável. O
Código Civil de 1916 era cantado pelos nossos civilistas como tendo influência direta do direito romano em mais
de 80% dos seus dispositivos, na clássica conclusão a que chegou Abelardo Lobo. Alguns de nossos atuais
juristas, como José Cretella Júnior e José Carlos Moreira Alves, enfatizam que a influência dos institutos
romanísticos continuou no Código Civil de 2002, fazendo a clara defesa da necessidade dos estudos de direito
romano em nossas faculdades como meio de perceber a íntima ligação entre o nosso ordenamento do século XXI
e normas romanas da Antiguidade Clássica, há pelo menos quinze séculos. Se isto parece ser lugar comum
majoritário no campo jurídico, no campo historiográfico, percebe-se uma forte crítica a essa postura, que exporia
não uma verdadeira relação direta de influência e continuidade, mas uma construção histórica discursiva pautada
em uma série de elementos teóricos que não encontram mais respaldo na própria historiografia desde o início do
século XX, ou seja, tal relação estaria baseada em pressupostos teóricos historiográficos que a própria história já
rejeitou há décadas, e que encontra ainda legitimidade tão somente na tradição dogmática da história do direito
que, apesar de supostamente estabelecer um encontro entre as duas áreas, em geral, assim não o faz, analisando a
história a partir de concepções oitocentistas. Desta maneira, no presente texto, pretendo analisar criticamente a
construção desse lugar na história jurídica brasileira tradicional, utilizando-me das ferramentas metodológicas
que os novos domínios da historiografia me possibilitam, em destaque, os domínios da História dos Discursos,
da História das Ideias e da História dos Conceitos, bem como de alguns pensadores do campo do direito que, por
aceitarem estabelecer um real diálogo com os novos domínios do campo historiográfico, aproximam as
metodologias e os enunciados produzidos em cada um, sendo responsáveis pela produção de uma nova história
do direito, menos presa aos dogmas tradicionais, mais crítica e mais consciente.
Palavras-chave: Renovação historiográfica. Mitologia jurídica. Direito Romano.
*
Professor assistente do curso de Direito, campus Santa Rita, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), é
mestre e doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
85
Introdução
O papel do Direito Romano na formação do ordenamento jurídico brasileiro já é
estudado por nossos juristas há décadas. Enfatizam, eles, que é imprescindível compreender
as noções civilistas cunhadas pelos antigos romanos para que possamos compreender o que
somos hoje. Afirmam que somos herdeiros da riqueza cultural produzida pelos romanos,
tendo dado continuidade a, pelo menos, doze séculos de evolução jurídica que estaria
consubstanciada na divisão entre direito público e direito privado, nos campos normativos de
direito das pessoas, direito das coisas, direito das sucessões, etc., na preservação de institutos
como o usucapião, a posse, a detenção, e assim por diante.
Para os romanistas brasileiros, não há dúvida do importante papel que o Direito Romano
exerce na gênese de nosso direito civil nacional, tendo sido dele que extraímos todos os
modelos de pensar as questões privatísticas, preservando, inclusive, os nomes e as categorias
dos institutos originalmente criados pelos juristas romanos. A conclusão a que chegou, no
início do século XX, Abelardo Lobo – de que cerca de 80% dos dispositivos do Código Civil
brasileiro eram direta ou indiretamente influenciados pelas normas do Direito Romano –, é
propagada ainda hoje em nossas doutrinas e, mesmo com a entrada em vigor de um novo
Código Civil em 2002, a afirmação persiste. Chega-se a afirmar que, entre o Código de 1916 e
o de 2002, existe um elo de continuidade de maneira tal que, mesmo que ainda não se tenha
feito uma investigação mais profunda, já se pode afirmar de antemão que o novo Código
preservou a influência do Direito Romano (ALVES, 2007).
Em seu livro de Direito Romano, o nomeado civilista brasileiro José Cretella Júnior,
tentando justificar o porquê da necessidade de se estudar o direito dos antigos italianos, afirma
... numerosos institutos do direito romano não morreram: estão vivos, ou exatamente
como foram, ou com alterações tão pequenas que se reconhecem, ainda, nos
modernos institutos de nossos dias que lhes correspondem. Para dar exemplos,
apenas no campos das obrigações, podemos citar diversos tipos de contratos (a
compra e venda, o mútuo, o comodato, o depósito, o penhor, a hipoteca), ainda
existentes nos sistemas jurídicos de hoje (CRETELLA JÚNIOR, 2009, p. 08).
Tal orientação, entretanto, não se refere apenas à experiência jurídica brasileira, mas
refere-se a um conjunto de Estados que vinculam a origem de seus direitos positivos locais à
influência, em menor ou maior grau, do direito dos romanos. Nestes países, especialmente
Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, o estudo de Direito Romano nas faculdades jurídicas
ainda permanece enquanto disciplina obrigatória, tal qual era durante o período das
monarquias modernas da Europa, apesar de um histórico recente de contestações em torno
desta permanência. René David utiliza o conceito de “Família Romano-Germânica” para
referir-se ao conjunto de países que basearam a sua produção jurídica a partir das noções
inventadas pelos romanos (DAVID, 1998).
Este posicionamento utiliza a história para se justificar: os países de direito da família
romano-germânica são países que produziram o seu direito tendo por base o pensamento
jurídico das universidades que, partindo de Bolonha, na atual Itália, a partir do século XII, e
espalhando-se pelos demais territórios europeus até o século XIV, fizeram “renascer” o
Direito Romano por meio do resgate, da leitura, da exegese e da interpretação da principal
compilação de normas jurídicas romanas, o Digesto de Justiniano, propondo, a partir daí,
modelos normativos baseados no estilo romano de pensar o direito, construindo ordenamentos
jurídicos romanísticos que se expandiram para além da Europa por meio da conquista e da
colonização das Américas, da África, da Ásia e da Oceania, entre os séculos XV e XX.
Entretanto, se passarmos a pensar este movimento por um viés mais crítico,
possibilitado pelos novos modelos de produção do conhecimento historiográfico, a construção
86 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO
BRASILEIRO
teórica dos parágrafos anteriores não se sustenta. Diz respeito, por outro lado, bem mais a
uma relação inventada, a uma tradição produzida, a uma construção ideológica interessada, a
uma história manipulada, do que a uma experiência historicamente demonstrável.
O que pretendo discutir neste artigo diz respeito exatamente a este objetivo: desconstruir
a ideia de continuidade que estabelece essa relação necessária entre o Direito Romano do
passado e o Direito Civil contemporâneo, especificamente no contexto da experiência
brasileira.
1. Tradição
Analisando o papel do direito romano na formação dos juristas contemporâneos, o
historiador português António Manuel Hespanha identifica dois argumentos usados como
justificativas do estudo dogmático da disciplina direito romano nas faculdades: o da perfeição
do direito romano e o da importância do seu legado ainda no direito atual.
Pelo caráter de perfeição, os romanistas tentam estabelecer que os romanos, por terem
sido governantes de praticamente todo o mundo conhecido de então, e por terem tido que
encontrar soluções jurídicas tanto para os próprios cidadãos quanto para peregrinos que
habitassem o seu território, acabaram produzindo pensamentos jurídicos não próprios de uma
única sociedade, mas de vários povos diferentes, chegando mais próximos da elaboração de
um conceito universal de justiça.
Por outro lado, o legado costumeiramente citado que o direito romano teria deixado ao
direito atual diz respeito a um suposto ininterrupto movimento de interpretação dos institutos
de direito romano cristalizados especialmente na compilação produzida pelo Imperador
Justiniano, na primeira metade do século VI, e que teria sido trazida novamente à tona no
século XII pela ação das universidades. Teria sido por meio da interpretação de tais institutos,
presentes no Digesto de Justiniano, que as universidades teriam podido produzir, entre os
séculos XIII e XV, um pensamento teórico jusfilosófico comum a toda a Europa continental
que iria paulatinamente influenciando a produção de leis positivas internas a cada reino, até a
eclosão do período das grandes codificações do século XIX, onde todos os institutos de direito
passaram a necessariamente compor os códigos legais de cada Estado a fim de que fossem
reconhecidos pelos julgadores. Institutos, esses, diretamente baseados naquela produção
jurídica europeia que deitava raízes no que “de melhor havia” do direito romano, preservado
pela compilação do imperador Justiniano.
No caso brasileiro, essa herança romana teria vindo por intermédio da colonização
portuguesa iniciada no século XVI, que para esse país teria trazido administração colonial,
exploração econômica e culturas linguística, religiosa e jurídica. A tradição jurídica
portuguesa, por sua vez, produzida em meio às discussões universitárias da Europa
continental do final da Baixa Idade Média, consubstanciava-se nas Ordenações do Reino, em
suas versões Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), que, transpostas ao
Brasil desde o início de sua colonização, foram tendo alguns de seus dispositivos revogados
pela produção de certos códigos nacionais, como o Código Criminal de 1830 e o Código de
Processo Criminal de 1832, mas foram apenas plenamente revogadas com a entrada em vigor
do Código Civil de 1916. Esta codificação cível brasileira, apesar de revogar as Ordenações
do Reino de Portugal, não teria rompido com a tradição romanística aí presente, e repetiria a
influência dos dispositivos de direito romano que influenciaram as codificações europeias ao
longo da modernidade. É clássica a análise do Código de 1916 realizada pelo romanista
Abelardo Lobo, de que
se passarmos em revista os 1.807 artigos do nosso Código Civil, verificaremos que
mais de quatro quintos deles, ou seja, 1.445, são produtos de cultura romana, ou
diretamente aprendidos nas fontes da organização justinianéia, ou indiretamente das
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
87
legislações que ali foram nutrir-se largamente, como aconteceu a Portugal, a
Alemanha, a França e a Itália, que fizeram do Direito Romano o manancial mais
largo e mais profundo para mitigar sua sede de saber (LOBO, 2006, p. 17).
Esse enunciado, produto de uma investigação realizada por Abelardo Lobo, passou a ser
repetido à exaustão pelos romanistas brasileiros, como forma de utilizar essa pesquisa como
legitimadora da pretensão da ligação do direito brasileiro com o direito romano,
demonstrando a suposta continuidade que este estabelecia com aquele. Usos, estes, nem
sempre muito cuidadosos, como é possível ser visto nesta passagem extraída da obra da
historiadora Flávia Lages de Castro:
Em um sentido mais objetivo, a importância do estudo do Direito Romano faz-se
óbvia quando comparamos o Direito Romano com nosso Direito Civil. Nada menos
que oitenta por cento dos artigos de nosso Código foram confeccionados baseandose direta ou indiretamente nas fontes jurídicas romanas (CASTRO, 2009, p. 78)
A autora, especificamente, termina a sua fala indicando, em nota de rodapé, a leitura da
obra de Abelardo Lobo de onde ela teria retirado os “dados objetivos” apresentados.
Entretanto, esquece-se que a passagem citada do jurista maranhense refere-se ao Código Civil
de 1916, e não ao Código de 2002, contexto no qual ela reproduz acriticamente a fala que
Lobo elaborou para o Código anterior. Outro jurista, José Carlos Moreira Alves, é mais
cuidadoso ao utilizar o enunciado citado acima. Reconhece a herança do romanismo no
Código de 1916 mas reconhece que ainda não há estudos aprofundados sobre o Código de
2002 que possam levar à conclusão da mesma herança neste novo documento legislativo
(ALVES, 2009).
O papel do direito romano na formação dos juristas, desta maneira, baseia-se nos dois
pilares apontados por Hespanha, consubstanciando-se na tradição jurídica privatística
ocidental. Entretanto, quando se passa o olhar sobre tais argumentos, percebe-se que a
tradição não se sustenta, que o ideal de perfeição já foi abandonado há algumas décadas nos
estudos das humanidades, e que a noção da importância do legado do direito romano não se
deu de maneira direta, mas a partir de uma série de fraturas, de acidentes, de interrupções e
reinterpretações ao longo da história.
2. O ideal de perfeição
A ideia de que os romanos teriam produzido um direito mais próximo da perfeição
baseia-se na pretensão de estabelecer que há uma verdade universal, atemporal e imutável,
comum a todos os povos humanos, e os antigos romanos, por terem expandido seu território
por todo o mundo conhecido de então, chegaram o mais próximo do que seria essa verdade
coletiva (HESPANHA, 2003).
Tal pensamento foi basilar na produção da filosofia antiga da Grécia, politicamente
oposta ao pensamento produzido pelos sofistas, que afirmavam não existir a possibilidade de
alcançar a verdade absoluta, então seria papel do intelectual retoricamente construir seus
argumentos e convencer os outros de suas verdades, sem estarem presos a nenhum elemento
fora do discurso. A filosofia grega nasce, desta maneira, como preocupação ética e política de
limitar a possibilidade de produção de discursos, condenando a elaboração irrestrita de
verdades e estabelecendo que o limite ao discurso se encontrava na Natureza, no Cósmos.
Apesar das diferentes visões que a filosofia ocidental lançou às suas questões
fundamentais, a base platônico-aristotélica manteve-se presente nas elaborações posteriores,
impondo o limite à produção do conhecimento como sendo a Verdade, possível de ser
encontrada por meio da Filosofia, num primeiro momento, e da Ciência, num segundo
momento.
88 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO
BRASILEIRO
Isto posto, pelo argumento dos romanistas, o direito romano representaria exatamente a
produção jurídica de um povo que, ao expandir o seu território por todo o mundo então
conhecido, entrou em contato com culturas as mais diversas, o que o possibilitou a produzir
um ordenamento que, congregando juridicidade sobre povos de diferentes origens – patrícios,
plebeus, clientes, equites, latinos, peregrinos, etc. –, refletisse a cultura jurídica não de apenas
uma sociedade militarizada expansionista como era a romana, mas que contivesse valores
jurídicos comuns a várias sociedades, aproximando o direito romano, especialmente o campo
denominado IVS GENTIVM, de valores universalmente válidos ou, em outras palavras, de
ideias essenciais, atemporais, a-históricas – verdadeiras, no sentido platônico, por excelência
(HESPANHA, 2003).
Observa-se, entretanto, que tal pensamento embasa-se na tradição ocidental, que
estipula a possibilidade de se atingir a verdade absoluta, desde que sejam utilizados os
métodos científicos de investigação. Essa tradição, por sua vez, passou a ser radicalmente
contestada em suas premissas a partir do século XIX, inicialmente dentre do campo filosófico,
espalhando-se, num segundo momento, aos vários campos das chamadas Ciências Humanas,
No século XIX, tecendo severas críticas à crença de que a Filosofia e a Ciência seriam
capazes de revelar a Verdade, Nietzsche afirmou que toda verdade era fruto de uma
convenção humana, não tendo nenhuma relação natural com o elemento do mundo concreto
que fazia representar. Para o filósofo alemão, todo enunciado nasce de processos consecutivos
de metaforização do mundo concreto: sua transformação em impulso, imagem mental
abstrata, sons, símbolos, signos linguísticos, palavras escritas, conceitos, enunciados. A
relação existente, desta maneira, não é natural, mas estética, não havendo uma
correspondência inescapável entre o enunciado e a realidade concreta que ele representa, mas
tão somente uma vinculação construída pelos humanos como forma de dar inteligibilidade e
organizar o mundo ao redor (NIETZSCHE, s.d.; FOUCAULT, 2002).
Diferentemente da tradição platônica, portanto, em que os conceitos existiriam como
verdades absolutas no Mundo Inteligível e que o conhecimento se daria por meio do
reconhecimento das coisas do mundo sensível com aquelas ideias perfeitas, na tradição que
nasce com Nietzsche os conceitos seriam produtos de atribuição humana arbitrária,
convencionados histórica e socialmente por grupos de poder, havendo produção de
conhecimento quando os conceitos previamente elaborados fossem usados como constitutivos
de novos conceitos, por meio do estabelecimento de novas relações entre as coisas. Toda a
produção de conhecimento, portanto, numa visão nietzscheana, é relativa e frágil, pois
depende das condições sociais, políticas, econômicas, religiosas e culturais, e baseia-se na
crença de que o instrumental conceitual anterior, usado para o estabelecimento das novas
relações, seja, em si, verdadeiro. Havendo a negação a um dos pressupostos básicos de
laboração de conhecimento, pode todo um sistema de pensamento vir a ruir.
Por outro lado, Nietzsche critica ainda a postura tradicional da filosofia que, na
pretensão de fazer crer que esse conhecimento não seja relativo nem temporário, mas absoluto
e permanente, leva ao apagamento da historicidade da produção das verdades, fazendo com
que os enunciados, ao repetirem-se à exaustão, consolidem-se no tempo, naturalizando-se e
tornando-se inquestionáveis. Com o apagamento desses rastros, o enunciado, validado pelos
grupos de poder, passa a ser visto como única possibilidade possível, historicamente
comprovada, visto que teria resistido ao tempo e se imposto devido à própria racionalidade de
sua constituição, quando, em verdade, o que havia antes era uma pluralidade de projetos
possíveis dos quais apenas um conseguiu prevalecer perante os outros por motivos os mais
diversos possíveis, não implicando necessariamente num caráter maior de verdade para com
os outros, mas em interesses nem sempre restritos ao campo das ciências, mas também
político, econômico, religioso, etc (JAY GOULD, 1999).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
89
Pela abordagem nietzscheana, que não ficou restrita apenas a esse pensador, mas foi
restaurada a partir da década de 1960 por filósofos, historiadores e antropólogos, tais como
Michel Foucault, Michel de Certeau, Gilles Deleuze, Paul Veyne, Clifford Geertz, etc., devese considerar que toda verdade é uma convenção social e humanamente produzida e
legitimada por grupos de poder. Não há, portanto, a possibilidade de se pensar em uma
verdade que seja atemporal ou universalmente válida. As verdades, desta forma, têm histórias,
não são elementos desencarnados, válidos pela sua essencialidade ou pela sua perfeição, mas
são válidas porque socialmente se convencionou que assim o fossem. Da mesma maneira,
quando perderem sua validade perante a sociedade que a construiu, serão descartadas como
moeda que perde o seu valor (NIETZSCHE, s.d). Cada sociedade, por sua vez, convenciona
diferentes verdades, não implicando em que uma esteja mais próxima de uma pretensa
“verdade essencial” – categoria, nesta abordagem, abandonada – do que outras, mas tão
somente que esses valores sejam produzidos a partir dos interesses próprios que cada
formação humana tenha na sua enunciação.
Repondo, agora, a questão do direito romano segundo essa perspectiva, deve-se
considerar que o ordenamento dos antigos romanos consistiu de normas, regras, decisões,
julgados, etc., produzidos em um momento histórico determinado, para responder a
necessidades específicas, a partir de valores próprios de uma cultura que se desenvolve desde
os primeiros tempos, no séc. VIII a. C., quando os romanos não passavam de pequenos grupos
de camponeses politeístas tentando sobreviver em suas terras, até os derradeiros, no séc. V d.
C., quando haviam se tornado militares imperialistas cristãos.
Crer que o ordenamento produzido por esse povo tenha chegado mais próximo da
perfeição jurídica, portanto, seria crer na existência de valores universalmente válidos, o que
hoje é um posicionamento em grande parte rejeitado pelos estudos nos campos das
humanidades. Compreender o direito romano em sua condição de cultura jurídica, como
propõe Hespanha, é compreendê-lo antropologicamente, como elemento em fluxo, em
constante (re)elaboração a fim de se adequar aos tempos no qual é usado. As necessidades
jurídicas dos romanos em seus primórdios constitutivos da Realeza não são as mesmas de
seus tempos finais de Império, muito menos aquelas de seu período áureo de expansão militar
republicano. Para cada momento histórico, os romanos produziram uma série de normas
jurídicas a fim de acompanhar as suas necessidades de ordenação de então. O direito,
portanto, produzido pela IVRISPRVDENTIA romana, não pretendia buscar regras gerais,
universalmente válidas, essencialmente perfeitas; pretendia, tão somente, conseguir se
adequar à lógica cultural de cada período histórico, casuisticamente responder às questões que
se impunham.
O caráter generalista que se conhece do direito romano, por sua vez, não provem dele
mesmo, mas provem da leitura que sobre ele se impôs a partir do século XII, quando do
fenômeno denominado “renascimento do direito romano”, que foi menos um “renascimento”
do que a invenção de um novo direito romano, que funcionará como mito de origem e legado
para os ordenamentos jurídicos europeus e latino-americanos.
3. O legado para o Ocidente
O papel de Roma na constituição jurídica dos Estados ocidentais é exemplar de uma
abordagem altamente problemática da história da qual ainda hoje muitos de nossos juristas
fazem uso acrítico. Historicamente, houve sociedades que se constituíram sob o discurso
sacralizador de Roma, legitimando-se enquanto continuadoras do “legado romano”, fosse este
cultural, político, religioso, linguístico ou mesmo jurídico: Bizâncio buscou se estabelecer
enquanto a parte do Império romano que não havia sucumbido aos germânicos no século V;
depois de sua queda para os otomanos em 1453, o papel de “terceira Roma” passou para
90 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO
BRASILEIRO
Moscou; o Sacro Império Romano de Carlos Magno se instituiu enquanto o renascimento do
Império Romano por meio da ação unificadora dos francos; já o Sacro Império RomanoGermânico de Oto I se colocou como sucessor do Império Carolíngio e, portanto, continuador
de Roma; os reinos cristãos da Península Ibérica, que iriam originar Portugal, no século XII, e
Espanha, no século XV, insistiam na ideia de que cabia a eles a responsabilidade de levar
adiante a cultura religiosa que havia nascido no Império e da qual eles, por terem sido
constituídos por povos federados aliados a Roma, eram legítimos descendentes. Legitimandose enquanto herdeiros do legado romano, tais povos também se legitimavam na busca por
tentar “recuperar” os territórios “perdidos”, então ocupados por outros povos. Isto levou,
dentre outras consequências, à expansão territorial de tais povos e a batalhas entre francos e
bizantinos, visigodos e suevos, cristãos e muçulmanos.
Por sua vez, os reinos da Península Itálica justificavam-se no elemento territorial para
ligar o seu presente ao passado romano. E foi aí, em território italiano, que, no século XII,
outro fator passou a compor a lista de elementos que eram alegados para ligar as duas
temporalidades: o nascimento das universidades fez com que o direito romano “renascesse”
pelo trabalho acadêmico da universidade de Bolonha, liderada por Irnério (DAVID, 1998).
O direito romano, enquanto elemento que está na base dos ordenamentos de vários
Estados nacionais da contemporaneidade, estava bem distante de representar o direito que era
experienciado em Roma. O direito romano que “renasce” no século XII em Bolonha é, de
fato, uma representação do direito positivo que vigorava em Roma elaborado e alterado por
ordem do imperador bizantino Justiniano, entre 529 e 533, compilado em quatro livros e
posteriormente denominado de Corpus Juris Civilis.
O principal livro denomina-se Digesto, que reúne uma série de pareceres proferidos
pelos jurisconsultos da época clássica do direito romano (entre os séculos II a. C. e III d. C.).
O trabalho de compilação de tais pareceres, que ficou a cargo de um grupo de jurisconsultos
bizantinos liderados por Triboniano, estabeleceu recortes drásticos no direito positivo de
Roma a que os jurisconsultos de Justiniano tiveram acesso: houve uma seleção dos prudentes
que iriam compor o Digesto, daí uma seleção dos pareceres dos jurisconsultos e, por fim, a
interpolação de trechos presentes nesta última seleção, com a subtração, o acréscimo ou a
alteração de certas palavras do texto original. Isto fez com que o Digesto não representasse
uma compilação do direito romano, mas com que ele se constituísse como um olhar, uma
representação, do Império do Oriente sobre o direito positivo do Império do Ocidente que
estava em vigor séculos antes de sua fragmentação política. Ou seja, as universidades da
Baixa Idade Média não estudavam o direito romano enquanto experiência histórica vivida,
mas nomearam de “direito romano” aquela série de pareceres que estavam presentes na
imagem que Justiniano havia produzido sobre o direito positivo do Ocidente, que há muito já
deixara de ser experienciada.
Por sua vez, o que as universidades fizeram desde então foi elaborar estudos sobre o
direito romano justinianeu buscando nele justamente aquilo a que ele não se prestava: o
estabelecimento de regras gerais abstratas. Cada escola que se seguiu, dentre elas, a dos
Glosadores (sécs. XII-XIII), a dos Comentadores (sécs. XIV-XV), a Escola Humanista (séc.
XVI), o Jusnaturalismo racionalista (séc. XVII), a Escola Histórica (séc. XVIII) e o
Juspositivismo (séc. XVIII), utilizando como principal base o Corpus Juris Civilis, mas
também outros documentos e outras leis que foram sendo paulatinamente recuperados da
experiência romana e comparados com o que se tinha no Digesto, foi elaborando uma nova
imagem de direito romano, que não era igual às imagens anteriores, nem mesmo igual ao
texto de Justiniano, nem também igual à complexidade do direito vivido enquanto experiência
em Roma, mas era um direito romano novo, completamente distorcido e alterado, produto do
olhar lançado a ele pelos novos pensadores.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
91
Sobre tais alterações na trajetória do direito romano no Ocidente, na tentativa de
adequar o Digesto aos novos tempos, afirma René David que já nos sécs. XIV e XV “(...)
ensina-se, sob o nome de usus modernus Pandectarum, um direito romano profundamente
deformado” (DAVID, 1998, p. 35).
Já no Oriente, local onde o Digesto havia sido produzido no séc. VI, o desenvolvimento
do pensamento jurídico que se seguiu à compilação justinianeia levou à elaboração de várias
interpretações à obra do Imperador Bizantino, desta vez, adequando-as à experiência da
cultura de Constantinopla, de base grega e cristã ortodoxa, dentre elas, as mais importantes
consistiram na Écloga Isáurica, de Leão Isáurico (740); no Próchiron, de Basílio I (879); e
nos Basiliká, de Leão VI (séc. X), além de vários elementos reformadores presentes nestas
obras (chamados de “escólios”) que faziam com que o direito experienciado em Bizâncio se
distanciasse cada vez mais das soluções romanas contidas no Digesto (LOSANO, 2007).
Analisando a interpretação de “direito romano” contida nos Basiliká, Mario Losano
afirma: “a compilação justiniana, as intervenções de Triboniano, as versões gregas, os
escólios: a essa altura, nessa obra encontra-se apenas uma sombra do direito romano clássico”
(LOSANO, 2007, p. 44).
Desta maneira, a justificação do legado do direito romano que estaria contido nos
ordenamentos jurídicos europeus e latino-americanos, supostamente oriundo de uma
continuidade jurídica no tempo que teria levado a que o direito romano clássico tivesse
permanecido incólume pelos séculos que separam o fim do período clássico (século III d. C.)
ao tempo das codificações (século XIX), também não se legitima.
O direito romano, enquanto experiência e cultura histórica, morreu com os antigos
romanos. O direito clássico, entendido como o tempo de maior apogeu da
IVRISPRVDENTIA romana, já havia sucumbido desde a crise do século III que levou ao fim
do Principado e ao início do Dominato imperial. A tentativa de “salvar” o direito clássico,
empreendida na campanha de Justiniano na Península Itálica não fez outra coisa senão
produzir um outro direito, diferente do direito romano clássico – até mesmo porque não havia
condições de compilar tudo do direito positivo de Roma de três séculos antes, muito havia
sido perdido com os constantes saques à cidade que se sucederam ao longo do século V. Crer
que o Digesto, elaborado no séc. VI, conseguiu preservar o que de mais rico juridicamente
Roma havia produzido entre os séculos II a. C. e III d. C. é ignorar todos os conflitos militares
que levaram à queda do Império do Ocidente entre o fim do período clássico e a ocupação
bizantina, e pensar que os documentos jurídicos passarem incólumes a tais eventos.
O percurso que o ordenamento produzido em Roma seguiu após o fim do Império do
Ocidente abriu-se para caminhos diferentes: de um lado, o Oriental, Justiniano realizou a
“compilação” e os seus sucessores produziram atualizações dessa obra, adequando as suas
normas à realidade e à temporalidade bizantina dos séculos que se seguiram, levando a um
distanciamento cada vez maior da obra de Justiniano para com o que se passou a produzir no
Império do Oriente, como atestado por Losano; do lado Ocidental, o direito romano
paulatinamente se fundiu ao direito dos povos dominadores, chamados genericamente de
“germânicos”, produzindo novas e múltiplas versões de ordenamentos jurídicos, resultados
das misturas de direito romano com direito germânico. O pluralismo jurídico aí gestado foi
reflexo da própria situação política dos territórios do Império do Ocidente, fragmentado em
múltiplos reinos sob o comando de povos germânicos – francos, burgúndios, ostrogodos,
visigodos, suevos, vândalos, anglos, saxões, etc.
No Ocidente, foi apenas no século XII que o direito romano presente no Digesto passou
a ter alguma importância perante o pensamento jurídico. Serviu como modelo de pensamento
jurídico na tentativa de superação do pluralismo jurídico europeu e invenção de um direito
92 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO
BRASILEIRO
comum da Europa Continental, ou Jus Commune. Entretanto, para realização de tal
empreendimento, os dispositivos do Digesto precisaram passar por diversas adequações e
atualizações, o que levou as universidades a produzirem um pensamento jurídico que, apesar
de afirmar ser oriundo dos pareceres da obra de Justiniano, afastava-se em muito dela, pois
distorcia o sentido buscando interpretações mais gerais e universais, pretensões que
extrapolavam o conteúdo daquela obra.
Michel Villey, estudioso da história e da filosofia do direito, analisando a produção do
Digesto e a ação das universidades em sua interpretação, afirma:
Infelizmente esses filósofos [da Baixa Idade Média] as interpretaram [as definições
do Digesto] de maneira progressivamente falsa. O idealismo substituiu a ciência
jurídica romana por uma outra ciência, uma outra linguagem, apresentadas como as
únicas racionais, e impostas de uma vez por todas pela razão pura. Os romanistas
caíram na armadilha. Expõem-nos as soluções romanas transpondo-as para as
categorias modernas de propriedade, de contrato, de direito, de lei, de justiça etc.;
perdem o essencial e o mais útil (VILLEY, 2008, p. 89).
Para Villey, assim como para Hespanha, o grande problema no estudo do direito
romano é a tentativa de transpô-lo para as mesmas categorias de nossos dias, como se séculos
houvesse passado, sem que o direito produzido pelos romanos tivesse sido alterado, mas
tivesse permanecido em nossos ordenamentos. Tanto Hespanha quanto Villey propõem uma
análise menos idealista, insistindo na perspectiva culturalista de análise de um ordenamento
jurídico – compreender a cultura romana da antiguidade e as formas de inteligibilidade que os
romanos davam ao mundo, dentre elas, os sentidos de palavras como propriedade, escravidão,
lei, justiça, a fim de não naturalizá-las, pensando possuírem os mesmos sentidos que essas
mesmas palavras possuem hoje.
Compreender a historicidade dos conceitos, os diversos sentidos dados às palavras ao
longo do tempo e as maneiras como os homens organizavam o seu mundo a partir desses
significados – tal é a proposta que ambos os autores fazem, com o fito de compreender o quão
diferentes, e não mais iguais, somos dos romanos; o quanto nos distanciamos do ordenamento
produzido pela Roma antiga. Não negam, entretanto, que ainda hoje utilizamos certas palavras
e institutos semelhantes, mas, na medida em que respondem a anseios e valores diferentes,
eles próprios se diferenciam dos seus homônimos do passado, visto que a continuidade das
palavras não implica na continuidade das práticas ou dos significados atribuídos a institutos
semelhantes (HESPANHA, 2003; KOSELLECK, 1999). A obra de Paolo Grossi sobre a
propriedade é um dos exemplos possíveis que posso citar nesse direcionamento mais crítico
de análise cultural dos significados dos institutos jurídicos (GROSSI, 2006).
A não compreensão dessa historicidade, por sua vez, implica em uma leitura
metodologicamente viciada, acrítica, tomando a história ou como um discurso progressista
unilinearmente evolutivo e, portanto, conformador, ou idealizador dos dogmas e da tradição
do passado e, portanto, conservador, romantizado (MACIEL & AGUIAR, 2008). Nesta
posição, encontram-se muitos de nossos romanistas pátrios, ao idealizarem o direito romano e
tentarem vincular o Direito Civil brasileiro do século XXI ao direito romano da antiguidade
clássica de mais de quinze séculos atrás, idealizando uma “idade de ouro” do direito
privatístico (GIRARDET, 1987), estabelecendo relações de continuidade e permanência para
com este período, como foi visto pelas citações presentes no início deste texto.
Considerações Finais
O Império Romano, desde a sua dissolução política data de 476, ocupou em vários
espaços culturais o lugar de autoridade na construção de mitos legitimadores em campos os
mais diversos, como político, religioso e jurídico.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
93
Politicamente, houve sociedades que utilizaram da autoridade do Império para
estabelecer conexões com esse passado e legitimarem-se enquanto continuadoras de uma
tradição subitamente desaparecida; religiosamente, o cristianismo, religião oficial do último
século imperial, fez com que a sua preservação parecesse ser a continuação da própria cultura
latina romana, autorizando sociedades a estabelecerem-se enquanto continuidade desse traço
cultural; já juridicamente, a produção de normas jurídicas para organizar as sociedades da
Idade Média e da Idade Moderna, supostamente colocando o Digesto como livro a partir do
qual tais normas puderam ser pensadas, mesmo com a maior parte dos autores hoje admitindo
que as novas produções legislativas se distanciavam cada vez mais das soluções contidas na
obra de Justiniano, tanto no Oriente quanto no Ocidente, e o que foi produzido tendo como
“base” aquele livro continha tão somente esparsas sombras do que havia sido, um dia, “direito
romano”.
Historicamente, percebe-se muito essa tentativa de estabelecimento de uma
continuidade como meio de autorizar a produção social em vários reinos e Estados modernos.
Entretanto, essa legitimação pela autoridade do Império consegue ser vista ainda nos dias de
hoje, e em sociedades que nunca fizeram parte de Roma, mas que buscam afirmar a ligação de
maneira retórica, pelo estabelecimento de laços que aproximem uma sociedade a outra,
mesmo que temporalmente uma tenha sido constituída apenas mais de um milênio depois da
queda da outra. Refiro-me, especificamente, ao contexto brasileiro.
Estabelecer essa ligação com Roma e o seu legado jurídico serviu e serve ainda hoje
como elemento que legitima certos espaços de fala. Acriticamente, existem autores, dentre
eles juristas e mesmo historiadores, que exaltam o papel e o esplendor de Roma e estabelecem
a ligação para com esta civilização por meio da tradição jurídica. No Brasil, já foi muito forte
essa postura que, apesar de problematizada nas últimas décadas, é encontrada ainda hoje em
vários discursos da jusprivatística, discursos que circulam nas academias e nos livros de
história do direito.
Exemplo disso é o trecho que segue, extraído do livro História do Direito Geral e
Brasil da historiadora Flávia Lages de Castro, que ressalta a suposta ligação entre brasileiros e
romanos, entre ordenamento brasileiro e direito positivo romano, fazendo inclusive uso de
reticências num tom até mesmo nostálgico.
A História de Roma é a história de todos nós... história que perpassa todo o ocidente
e nos faz oriundos dos mesmos pais... Latinos, antes de tudo. Isto com todos os
defeitos e qualidades que possam ser atribuídos à latinidade. Isto com todas as
formas dos seres humanos, iguais a nós, que conquistaram o mundo inteiro de
então... (...)
Somos romanos até quando falamos, nossa língua é filha do latim, somos romanos
na nossa noção urbana, somos romanos em nossa literatura, somos romanos mesmo
quando temos uma noção de patriotismo. Somos romanos quando falamos em
Direito, quando fundamos nossa sociedade em um Estado de Direito. Direito este
sistematizado pelos romanos antigos (CASTRO, 2009, p. 77).
Roma, portanto, aos romanistas brasileiros, parece dar um ar de legitimidade e
importância ao direito nacional. Pelo nosso direito civil, de base, conforme eles insistem,
romanística, parecemos estar mais próximos do “grande legado cultural” que foi o legado
jurídico romano. Tal ligação parece legitimar o nosso ordenamento, dar-lhe uma importância
histórica, mostrar-nos enquanto continuidade daquela tradição. O que faz, entretanto, é negar
a possibilidade de enxergarmos a diferença, a autenticidade, a originalidade de nossas
respostas. Nega a experiência histórica brasileira que possibilitou que o ordenamento nacional
fosse constituído de tal maneira, e não de outra. Ao atrelar-se o direito brasileiro ao direito
romano, submete-se aquele a este, constrói-se o direito romano enquanto elemento que irá
94 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO
BRASILEIRO
fornecer as respostas às lacunas do brasileiro, enquanto elemento que coordena a própria
formação deste último.
Tal discurso conscientemente ignora todo o movimento histórico que separa o direito de
Roma na antiguidade do direito do Brasil no século XXI. Fazer crer que o direito teria sido
preservado incólume por dois mil anos é desconhecer todas as alterações feitas a ele, desde
aquelas feitas no próprio espaço da Roma antiga àquelas que levaram à produção do Digesto,
continuando daí para frente com as várias interpretações das várias universidades ocidentais
que se sucederam, transformando um emaranhado de pareceres casuísticos romanos em um
sistema ordenado e generalista de direito romano. É, por sua vez, ignorar também todas as
demais culturas jurídicas que incidiram na formação social brasileira durante os cinco séculos
de história que este país teve desde a ocupação portuguesa (dentre elas, as influências alemã,
espanhola, francesa, holandesa, italiana, polonesa, portuguesa e, até mesmo, de ordenamentos
não vinculados à tradição romano-germânica, como o direito inglês). E é também, por fim,
ignorar a própria autonomia jurídica brasileira, que, como toda cultura estrangeira, foi forjada
no seio de uma pluralidade de influências estrangeiras, mas que soube apropriar-se de tais
influências ativa e criativamente, lendo-as a partir da tradição local e dando funcionalidades
específicas a tais questões, não as recebendo passivamente, mas usando-as ativamente
(CHATIER, 1990; CERTEAU, 1994).
A complexidade da experiência vivida, possibilitadora da formação original de um
direito novo que descende de uma série de relações entre povos os mais diversos que
contribuíram em maior ou menor medida para a atual situação, simplesmente é negada e
simplificada quando metodologicamente continua-se a pensar o direito atual como evolução
contínua e linear de um passado sacralizado, idealizado e mitológico.
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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
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96 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO
EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA
DO DIREITO
EXPERIENCES AND LEGAL ANTHROPOPHAGY: A DISCUSSION WITH LEGAL
HISTORY
Gustavo Silveira Siqueira*
Resumo: Neste artigo o autor tenta propor um conceito de experiências jurídicas que possa ser utilizado em uma
história do direito plural e problematizante. Discutindo com pensadores que tradicionalmente escreveram sobre o
tema, a intenção foi demonstrar uma inadequação destes conceitos tradicionais de experiência jurídica e propor
um conceito aberto e plural. No mesmo patamar é introduzido o conceito de antropofagia jurídica, como um
pensar crítico e questionador das doutrinas importadas e aplicadas sem uma discussão e uma “digestão” para seu
uso no Brasil.
Abstract: In this article the author tries to propose a concept of legal experience that can be used in a plural and
problematizing legal history. Discussing with thinkers who have traditionally written about the subject, the
intention was to demonstrate an inadequacy of traditional concepts of legal experience and propose a concept
opened and plural. At the same time is introduced the concept of legal anthropophagy, as a critical thinking of
the doctrines imported and applied without a discussion and a “digestion” for the use in Brazil.
*
Doutor em Direito pela UFMG. Professor Adjunto da UERJ. E-mail: [email protected]
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
97
“É, a gente quer viver pleno direito
A gente quer é ter todo respeito
A gente quer viver uma nação
A gente quer é ser um cidadão
(…)
A gente quer viver a liberdade
A gente quer viver felicidade
É…”
Gonzaguinha, “É”
Introdução
O presente texto discute um conceito de experiências jurídicas que atenda às
pluralidades e multiplicidades do direito e de uma história crítica e problematizante desse. A
intenção é construir um conceito provisório, falho, mas que possa auxiliar a compreensão do
direito e suas experiências, evitando os rótulos de “integral”, “unitário” ou “fechado.” Buscase aqui uma pluralidade de elementos, que juntos, nas suas diferentes proporções e medidas,
podem contribuir para as diversas experiências jurídicas (termo utilizado sempre no plural)
coexistentes na história do direito.
Nesse mesmo sentido, também será discutido como a antropofagia, na sua utilização
política dada por Oswald de Andrade, pode contribuir para essa pluralidade de experiências,
percebendo como os conceitos jurídicos devem ser pensados para realidades distintas e,
essencialmente, problematizados.
1 Experiências jurídicas plurais
A palavra experiência tem origem na palavra latina experientia, que significa ensaio,
prova ou tentativa. Línguas como português, italiano, espanhol, catalão e o inglês possuem
esse vocábulo com um significado semelhante (SILVEIRA SIQUEIRA, 2011, p. 1444):
Contemporaneamente a palavra experiência é relacionada ao ato de experimentar, a
um ensaio, uma tentativa, mas também ao conhecimento adquirido pela prática,
estudo ou observação ou ao conhecimento das coisas da vida, da vivência humana
nos mais variados ramos. Ter experiência é ter vivido, é ter vivências .
As experiências serão utilizadas como sinônimos de vivências jurídicas, para deixar
claro que tanto as vivências jurídicas como suas experiências são múltiplas.
É necessário um conceito de experiências jurídicas que possa conhecer as múltiplas
vivências jurídicas coletivas e individuais, pois são destas que existe e se alimenta a história
do direito. A partir do momento que a história do direito passa a acrescentar os mais diversos
elementos para o debate dos fenômenos jurídicos, cresce a necessidade de agregar, dentro das
experiências jurídicas, todos esses elementos. Daí a importância de entender a história do
direito como um complexo de relações entre as diversas experiências jurídicas existentes em
um determinado período histórico.
Experiências que podem se contradizer, negarem-se, mas que fazem parte de um imenso
complexo de vivências que são as experiências jurídicas. Tão imenso que seu conhecimento
será sempre parcial, limitado, pois é sempre reconstrução de um passado que já foi.
E se o contraste explica, ajuda a entender, como lembra Arthur José Almeida Diniz
(DINIZ, 1979, p. 443), a tentativa é dissertar sobre um conceito de experiências jurídicas
discutindo com autores que trabalharam o tema de formas diferentes, mas que comparados,
podem ajudar na compreensão da tese que aqui se pretende desenvolver. Não se propõe um
98 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO
conceito melhor, nem pior, mas apenas diferente que possa contribuir para as discussões sobre
o direito.
É na consciência e na vontade de agir, conforme determinada orientação do indivíduo,
que Giuseppe Capograssi funda a experiência. Esta, para o italiano, é o resultado e a
existência da tensão entre o agir e a consciência do indivíduo. O pensar, a vontade e a ação
são a experiência (CAPOGRASSI, 1959, pp. 10-11). As ideias que regulam e que influenciam
as ações, constituem a experiência do sujeito do mundo (CAPOGRASSI, 1959, p. 38-224).
Capograssi consegue captar a pluralidade de ideias e ações que podem constituir a existência
do sujeito no mundo, suas experiências. E, nesse sentido, o direito é percebido, antes de tudo,
“como experiências, isto é, como dimensão da vida” (GROSSI, 2005, pp. 35-36).
Por outro lado, busca-se problematizar a experiência jurídica para que ela possa
perceber as múltiplas experiências possíveis, pois elas são, além de individuais, coletivas. As
experiências devem conter as ações coletivas, mesmo pensadas de diversas formas e
construídas de diversas maneiras pelos seus integrantes. Sendo assim, as experiências nunca
são apenas individuais, elas são individuais e coletivas, e existem, relacionando umas com as
outras. As experiências jurídicas individuais são sempre compartilhadas com o outro e a
experiências coletivas são sempre compostas de indivíduos.
Nesse patamar as experiências não são apenas o indivíduo que de “fronte ao mal” não se
abate1 ou a ação para preservar o sujeito dentro do sistema (CAPOGRASSI, 1959, p. 12-13),
as experiências também são a violação, a violência, o crime, o abuso, o desvio. Elas são todas
as experiências dos sujeitos nada está fora das experiências tudo pode ser um elemento para
sua construção e sua discussão.2
Miguel Reale acredita que o conceito de experiência jurídica de Capograssi constitui
“instrumento na totalidade da vida orgânica” e que essa e “compreensão unitária e
problemática são conceitos que se exigem reciprocamente” (REALE, 1968, p. 34). Para Reale
“reconhece-se na experiência jurídica a polaridade de ser e dever ser”, sendo a “experiência
jurídica uma forma de experiência cultural”, de tutela do que é valioso, “um instrumento de
civilização” (REALE, 2000, p.128,218-219). Percebe-se que o autor aproxima-se do conceito
de Capograssi, acreditando ser a experiência jurídica um elemento de resguarde dos valores
da sociedade, da “civilização.”
A presente intenção não é definir a experiência jurídica como um conceito total (como
apresentado), integral ou unitário. Experiências não constituem um todo orgânico, mas são
diversas, contraditórias, opostas e críticas umas das outras. Um conceito integral exige a
dilaceração de uma parte, do que aqui se entende como elemento também constitutivo das
experiências jurídicas. Integralizar pode ser um argumento para negar elementos da vida
jurídica como elementos de direito, é retirar as incongruências e as contradições tão comuns e,
muitas vezes, esquecidos da vida humana.
E se é possível aproveitar a lição de Paolo Grossi, entendendo que a experiência jurídica
de Capograssi “nada mais é do que a história, um passado que se faz presente e em um
presente que se faz futuro” (GROSSI, 2010, p. 142), utiliza-se essa para perceber uma
concepção diferente de experiência.
1
“Tutta l’esperienza è la dimostrazione profonda e perpetua che il soggetto di fronte al male invece di lasciarsi
abbattere e distruggere afferma che non sarà sommerso, afferma che la vita sará salvata.” (CAPOGRASSI, 1959,
p. 12)
2
Capograssi situa no plano da Ciência Jurídica as lacerações e duplicidades que as experiências jurídicas podem
conter. Para o autor, aquela é a esfera de luz na qual se pode ver manifesta a vida obscura e intima que rege a
experiência. (CAPOGRASSI, 1937, pp.233-236.)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
99
Reinhart Koselleck afirma que “a experiência é o passado atual, aquele no qual os
acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados” (KOSELLECK, 2006, p. 309).
Koselleck acredita que na experiência se fundem elaborações conscientes e inconscientes,
sendo “a história [é] sempre a de experiências vividas e de esperas dos homens que agem e
sofrem” (REIS, 1994, p.82). As histórias são as experiências vividas e percebidas pelos
homens. Logo, elas podem ser revistas, recolhidas (KOSELLECK, 2006, p. 311) e
reconstruídas. As experiências não são dados estanques, “mas categorias de conhecimento
suscetíveis de ajudar a fundar possibilidades de uma história” (REIS, 1994, p. 82).
Assim, percebe-se aqui, as experiências jurídicas como categorias transitórias, mutáveis,
que ajudam e permitem a construção de um entendimento da história do direito. Elas são
elementos base da história do direito, ao passo que pode-se afirmar que a história do direito
são as experiências vividas em determinado período. As experiências não são a história, mas
um grupo de experiências constituem esta. O passado constitui elemento da experiência
jurídica atual, mas ele pertence essencialmente à experiência jurídica anterior. O passado
continua existindo, mas diferentemente, ele é um passado-presente, percebido de uma outra
forma. O que foi, já não é, mas pode (ou não) influenciar (não determinar) a experiência
jurídica atual. Por isso essas devem ser sempre testadas, criticadas, pois só assim podem ser
compreendidas. As experiências jurídicas não são dados exatos ou imutáveis.
Para Guido Fassò, toda a história é cheia de juridicidade, a história é o direito, o direito
concreto, vivido, verdadeiramente natural, logicamente e historicamente anterior ao direito
abstrato, que é traduzido em imperativo das leis (FASSÒ, 1953, p. 97). Mas é claro que não é
possível reduzir a história apenas ao direito, nem aceitar piamente que o direito é natural,
absolutamente necessário ou indisponível. O direito é uma constatação na história, uma
construção histórica, mas que não pode ser encarado como um absoluto ou determinante, pois
as experiências jurídicas poderão demonstrar o quanto esse pode ser manipulável,
contraditório e oposto aos ideais teóricos.
A história do direito3 é composta de diversas experiências jurídicas, que juntas podem
ajudar a compor um quadro com muitas cores, com vários formatos de uma, dentre as várias
possíveis, histórias do direito. E se os “tempos históricos são plurais, como são plurais as
sociedades” e “cada época mantém relações diferentes com seu passado e seu futuro, cada
presente constrói ritmos históricos diferenciados”, deve, qualquer noção de experiências
jurídicas, preparar-se para as diversas manifestações que se apresentam, se contradizem e
dialogam (REIS, 1994, pp.83-84).
É nesse sentido que o direito pode ser visto não apenas como instrumento de civilização
mas também como instrumento de barbárie (BENJAMIM, 1986). O direito e suas
experiências (como aqui se pretende entender) não estão alheios ao desvalor, “ao injusto”, a
violência que a norma também pode conter. Essas são experiências jurídicas possíveis pois o
limite do direito e de suas experiências são as ações humanas.
É por isso que as experiências jurídicas também serão entendidas aqui como a
incoerência humana4, como as contradições da vida e das suas ações. O crime, a violação a
3
Guido Fassò relaciona experiência jurídica e história do direito. Para italiano, a experiência jurídica está
integralmente imersa na história e entende o direito como forma necessária e natural na história. Baseando-se nos
conceitos de Capograssi e Cesarini Sforza, Fassò procura entender como a experiência jurídica como experiência
humana está imersa dentro da experiência histórica (FASSÒ, 1953, p. 12 e 96).
4
Em outro sentido apresenta-se Capograssi:“Dell’esperienza giuridica, che non è altro che l’azione umana
rivelata nella sua sostanza, realizzata nella sua profonda volontà unitaria e coerente com tutta la vita del soggetto,
sviluppata concretamente e esplicitamente in tutto il movimento delle sue esigenze e dei suoi fini vitali”
(CAPOGRASSI, 1959, p. 116).
100 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO
lei, os sentimentos de justiça (e de injustiça), para além do direito positivo, também fazem
parte das experiências jurídicas de uma sociedade. Experiências jurídicas são todas as
manifestações individuais e coletivas, que tem relação com um sentimento de juridicidade.
Não são apenas os sentimentos relacionados com o cumprimento da lei, do bem (acredita-se
aqui que bem e mal, antes de tudo, são dois pontos de vista, que podem se alterar de acordo
com o observador), da conduta socialmente aceita ou da doutrina. É tudo isso e mais.
Dessa forma o conceito de experiência jurídica apresentando aqui aproxima-se do
conceito desenvolvido por Wadir Cesarini Sforza. Para ele a experiência jurídica é um ato de
vontade ou um ato legislativo, que acontece dentro da fórmula normativa. Mas um ato que
não se exaure dentro dessa fórmula (como nos artigos da lei), mas se identifica com a
multiplicidade de atos normativos, ou seja, com as manifestações concretas da vontade dos
homens de tornarem jurídicas o mundo das ações humanas (CESARINI SFORZA, 1958, p.
65). Assim, a experiência jurídica que é o efetivo desenvolvimento da vida do direito no
cotidiano das relações humanas e percebe que cada ato normativo ou imperativo faz surgir
uma relação concreta (CESARINI SFORZA, 1958, p. 108).
Sforza entende que a manifestação dos homens de tornarem suas ações jurídicas,
percebendo o direito no cotidiano, constitui base essencial do direito e conteúdo especial da
experiência jurídica.
A diferença entre os conceitos se percebe, pois, Cesarini Sforza, tal qual os teóricos que
o influenciaram, como Capograssi e Enrico Opocher, foca a experiência jurídica na ação do
individuo, no sentimento que o mesmo tem ou na sua ação, ao passo, que aqui as experiências
jurídicas são os complexos de todas as relações jurídicas humanas. Esses autores focam a
experiência do homem que age, aqui o foco é no conjunto das relações humanas, obviamente,
sem desprezar o homem, elemento essencial, muito bem percebido por esses autores.
O direito é um componente das experiências jurídicas. Essa afirmação pode ser levada a
cabo mesmo nos diversos conceitos sobre que é direito. Direito natural, direito positivo,
redução do direito às leis positivas ou as decisões judiciais, todos esses conceitos de direito,
podem ser percebidos dentro de um conceito de experiências jurídicas, se tomar-se como
base, que nessas, podem coexistir todos os elementos que possuem o “sentimento de
jurídico.” Independentemente do que se pensa que é direito, esse pode estar dentro, junto com
outros elementos, nas experiências jurídicas.
Para as experiências jurídicas, esse sentimento é perceptível quando os atores sociais
reivindicam ou agem acreditando que esses anseios e desejos, são jurídicos. O que caracteriza
um elemento que passa a fazer parte das experiências jurídicas, não é o elemento em si, mas a
utilização jurídica que é feita dele. Um objeto passa a fazer parte das experiências jurídicas
quando sua propriedade é regulada, reivindicada (torna-se objetivo de luta ou defesa) ou
simplesmente tutelada. A definição sobre o que é jurídico ou não para sua inserção dentro das
experiências jurídicas, depende da observação de uma sociedade, dos sentimentos, das suas
lutas e vivências cotidianas. É o direito sentido no cotidiano, na vida das pessoas, como
leciona António Manuel Hespanha (HESPANHA, 2009). A experiência (e consequentemente
a juridicidade) deixa de ser algo dado, concreto, imutável ou constante, e passa a ser
entendida como uma construção de cada sociedade, nas suas diversas realidades.
O conceito de experiências jurídicas passa a ser um conceito aberto, passível de aceitar
novas interpretações sobre antigos objetos históricos. Assim, fica preparado para uma história
plural, interdisciplinar e em constante (re) construção.
E se foi possível afirmar que a experiência jurídica era situada como uma experiência
histórico-social de natureza ética, normativa e que tem “como valor fundante o bem social da
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
101
convivência ordenada, ou o valor do justo” (REALE, 2000, p. 273), a tentativa é subverter
esse conceito, percebendo que a experiência histórico social pode conter o que não é ético, a
violação a norma, sentimentos de jurídicos não positivados e desvalores que caminham junto
com os mais diversos valores. Até porque os valores do justo e do injusto mudam
constantemente e ambos podem coexistir: “dialeticamente, no interior da vida e além dela, a
justiça e suas percepções plurais se (re) constroem cotidianamente, como possíveis horizontes
de sentido, referenciais normativos escolhidos, buscas provisórias de agir e pensar de modo
justo” (BARROS, 2009, p. 135). Expõe Juliano Napoleão Barros:
A ausência de fundamentos definitivos não admite nem nega por completo toda e
qualquer fundamentação da justiça: exige o compromisso cotidiano de (re)
construção recíproca de suas diferentes fundamentações. Desse modo, o
reconhecimento do caráter relativo das perspectivas sobre a justiça precisa coincidir
com o reconhecimento do caráter universal da justiça (ou, ao menos, da busca de seu
sentido). Em decorrência, as perspectivas e a justiça – na interação em que
reciprocamente se constituem – não podem ser satisfatoriamente interpretadas
mediante um enfoque relativista ou universalista. É preciso reconhecer a tensão
permanente entre a pluralidade histórica das perspectivas e a justiça que,
universalmente, as transcende. Reconhecer a relatividade – sem ser relativista – e a
universalidade – sem ser universalista. (BARROS, 2009, p. 25)
Marcelo Cattoni lembra que:
Em Derrida já se pode falar, da perspectiva da justiça como desconstrução ou
possibilidade permanente de desconstrução, não apenas numa justiça por vir, no seu
caráter hiperbólico, extra-vazador e insaturável, mas também num direito por vir.
Um direito cujo fundamento não está simplesmente deslocado do passado para o
futuro, mas aberto ao por vir, sem condições. Um direito que somente terá sentido
no futuro se for presença de uma ausência, e a justiça, como permanente
possibilidade de desconstrução, que não se esgota em si mesma, se for evanescente.
(CATTONI DE OLIVEIRA, 2011, p. 2011)
Assim não é possível pensar na justiça, nem nas experiências jurídicas como conceitos
eternos ou imutáveis. A justiça e o direito são construções e reconstruções constantes, são
objetos históricos culturais que se alteram no tempo e espaço. Não se deve compreender uma
experiência jurídica com valores unitários, pois as sociedades são plurais, os valores são
plurais. Os valores de propriedade dos senhores de escravos não comungavam com os valores
de liberdade dos escravos. São experiências jurídicas diferentes que conviveram em tensão.
Deve-se perceber que as experiências jurídicas são essas tensões, esses diversos valores,
normas e culturas que existem em uma sociedade. Qualquer tentativa de reduzi-las, é reduzir
os elementos das vivências jurídicas, das múltiplas formas do direito se manifestar em uma
sociedade.
3. A Experiência jurídica pré-categorial
Para Capograssi, o direito e suas experiências jurídicas vêm da vida. As experiências
jurídicas vêm das experiências sociais. O que qualifica, para o italiano, essas experiências
como jurídicas é a juridicidade (o sentimento do que é direito, certo, correto, bom) usualmente
tutelada na lei. Aqui se pretende qualificar o jurídico com o emprego, com o uso que é dado a
determinado objeto ou sentimento (que não necessariamente é a lei). O sentimento de jurídico,
independentemente do “certo ou errado”, “ruim ou bom,” qualifica um objeto como jurídico.
Já as experiências jurídicas serão as múltiplas relações com o que é jurídico: negando,
afirmando ou contradizendo esses sentimentos.
É possível perceber uma ressonância entre a lei e a experiência jurídica em Capograssi:
“a lei deve entrar em toda experiência jurídica e ali coexistir” (GROSSI, 2010, p. 153), a
experiência para ele é o sentimento do jurídico, do cumprimento das regras, muitas vezes
102 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO
capitaneadas, positivadas em lei: “a lei poderá e deverá ser respeitada somente se na
verificação da experiência jurídica demonstra ser portadora dos valores assumidos pela
experiência na sua fundação” (GROSSI, 2010, p. 153) A experiência é a conduta que deve ser
seguida e a lei deve ser correspondente a essa conduta. É assim que “a velha e obtusa
legalidade se torna um princípio geral de juridicidade, ou seja, de conformidade dos princípios
que estão na base da ordem jurídica” (GROSSI, 2010, p.153).
Esse sentimento, essa captação, é de extrema importância, mas ela não pode deixar de
apagar os outros diversos sentimentos de juridicidade, muitas vezes não comuns, não
pacíficos, mas existentes na sociedade. Para Capograssi esse sentimento que constitui o
jurídico constitui a experiência jurídica. Por outro lado, aqui se utiliza o sentimento de
jurídico como um elemento da experiência jurídica, que convive suas outras visões e até
mesmo outras interpretações do que ele é.
Por outro lado, a positivação é apenas um fator que não exclui as experiências jurídicas
não positivadas e não reguladas pelo direito. Criar uma categoria como a experiência précategorial (defendida por Reale, na qual os elementos anteriores a positivação são préjurídicos - REALE, 1968, p. 47), é retirar das experiências jurídicas aquilo que não é do
direito positivo ou é anterior a ele.
Aqui se defende que as experiências jurídicas não positivadas são elementos
constitutivos e essenciais das experiências jurídicas de uma época. A não positivação de um
direito não impede que esse exista nas formas plurais da sociedade, nem impede que o mesmo
faça parte das experiências jurídicas de um período. A discussão de uma lei, a fundamentação
da sua positivação, seus recortes, seus vetos e votos contrários fazem parte das experiências
jurídicas de um período.
Assim, se para Capograssi a experiência jurídica são as ações que influenciam os
indivíduos ao agir para o “bem”, para o “justo”, aqui as experiências jurídicas são as diversas
percepções (e suas diversas decorrências) do jurídico (mesmo que essas se contradigam) em
uma sociedade.5
3.1 Experiências jurídicas, o Estado e a lei
Sobre a experiência jurídica Miguel Reale assevera que ”o momento dogmáticonormativo é parte essencial, integrante e constitutivo, mas não até ao ponto de eliminar os
demais fatôres, sem os quais, aliás, perderia êle a sua consistência ôntica e seu significado
axiológico” (REALE, 1968, p.06).
Giuseppe Capograssi acredita que é na formulação legislativa que se realiza a totalidade
das determinações jurídicas, reportando a experiência jurídica necessariamente a uma verdade
que é a lei, (CAPOGRASSI, 1959, PP. 143-144 e 158) sendo essa o momento central daquela
(ZACCARIA, 1976, p. 90). Nesse sentido, o imperativo jurídico seria o princípio da
experiência e seu próprio conteúdo e a posição típica da experiência jurídica é a sua posição
como lei (CAPOGRASSI, 1959, pp. 164-165).
5
Nesse sentido aproxima-se do que Widar Cesarini Sforza percebeu na teoria de Enrico Opocher, que o direito
não se revolve na norma (positiva ou ideal), nem nas relações jurídicas, nem nas instituições ou condutas legais,
o direito como experiência é tudo isso junto, tudo que possa se observar na realidade da vida (CESARINI
SFORZA, 1984, p. 483). Ocorre que Enrico Opocher vê a experiência jurídica como filosofia do direito. O foco
da experiência jurídica é o pensamento sobre o jurídico, seu exercício de pensamento, não o entendimento da
experiência jurídica como um complexo de relaçãos jurídicas em um tempo histórico. Dessa forma, Opocher, de
certa forma tem uma aproximação com o conceito de Capograssi que pode ser percebida em OPOCHER, 1983,
pp. 16-17.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
103
O conceito de experiências jurídicas defendida nessa tese se afasta do pensamento
desses autores. Aqui a lei não é vista apenas como a totalidade das determinações jurídicas,
nem como a grande protetora das ações humanas, ela pode ser isso, mas também pode ser
corrupta, violenta, criminosa. A tentativa é possibilitar a verificação de que a lei – como em
alguns momentos ela é – pode existir em oposição à alguns sentimentos jurídicos. A lei não
necessariamente condiz com o sentimento jurídico de uma maioria ou de partes da sociedade.
O fato de ser lei positiva não garante a sua adequação os preceitos de uma época, esse precisa
ser testado, problematizado. Até porque os preceitos, os sentimentos de uma época, são
múltiplos.
Por outro lado, a lei é uma parte importante das experiências jurídicas, isso não pode ser
negado, mas a sua relação com as outras experiências também é de singular importância.
A diferença de pensamento com os autores citados se estabelece, pois aqueles acreditam
que a experiência jurídica são os sentimentos, os valores que influenciaram a positivação da
lei e pautarão a conduta dos cidadãos. Aqui defende-se que as experiências jurídicas não são
apenas as ações que ocorrem dentro do imperativo da lei ou dos sentimentos positivados por
elas. Defende-se que as experiências jurídicas são todas as relações possíveis com o
sentimento de jurídico (incluindo suas violações e interpretações contraditórias), para além
das leis e para além dos valores e sentimentos positivados (ou não) por elas. Não se pretende
negar esses valores, nem a importância das leis para as experiências jurídicas históricas, mas
simplesmente afirmar que elas são elementos que convivem com outros em uma pluralidade.
Por exemplo, para Capograssi, se um agente que tem um dever de agir e nega esse
imperativo, toda a experiência jurídica é negada (CAPOGRASSI, 1959, p. 168). Aqui se
pensa diferente: se um agente nega uma lei, nega um dever jurídico, essa não é a negação da
experiência jurídica, mas uma das experiências jurídicas possíveis. As violações e as leis
fazem parte dessas experiências.
É por esse motivo que o Estado não pode ser aceito como “verdadeira posição ou
verdadeira vontade comum” (CAPOGRASSI, 1959, p. 141). ou “verdadeira formação da
experiência jurídica” (CAPOGRASSI, 1959, p. 142). 6 O Estado é um lugar privilegiado da
experiência jurídica. São sobre suas regulações, leis, fóruns e palcos de discussão que muitas
experiências ocorrem. Mas há de se afirmar que ele não é o único palco ou o único autor das
experiências jurídicas. Nem mesmo a “verdadeira vontade comum,” porque existem várias
vontades comuns e várias verdades. O Estado possui verdades que vivem em tensão e em
embate. As verdades, dentro e fora do Estado, são muitas.
A ação do Estado também pode ser negação da vontade comum e negação dos
sentimentos jurídicos de uma parte da sociedade. Ele pode ser deturpado, criminoso e negar o
seu próprio direito positivo. Mas nem por isso suas ações deixam de fazer parte das
experiências jurídicas.
Pode-se dizer que o Estado guarda as liberdades, mas não se deve esquecer que ele,
muitas vezes, também as viola. Um conceito de experiências jurídicas deve ser capaz de
perceber as contradições nas ações estatais, que são ações humanas. E se a filosofia do direito
não é apenas um pensamento abstrato, mas um desenvolvimento, um pensar crítico sobre a
6
Por outro lado Giuseppe Zaccaria, pôde perceber, em escritos de Capograssi, posteriores de Declaração
Universal dos Direitos Humanos, uma crítica ao monismo do Estado e a uma percepção da sua insuficiência em
resolver todos os problemas emergentes, descrevendo Zacarria, de certa forma, um pluralismo jurídico no
pensamento de Capograssi. ZACCARIA, 1976, pp. 173-174. Por outro lado Paolo Grossi afirma que, na
experiência atual do direito, o monismo dominante deverá tornar-se pluralismo dando plena efetividade a
soberania popular. GROSSI, 1997, pp. 175-191.
104 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO
experiência jurídica (CONTU, 1988, p. 74), deve a filosofia do direito estar preparada para as
multiplicidades de experiências jurídicas que podem existir em sociedade.
Sendo assim, qualquer tentativa de representar o Estado com a unidade, integralidade ou
a totalidade da experiência jurídica (CAPOGRASSI, 1959, p. 165) é uma experiência falha,
pois despreza os valores marginais, paralelos e não-majoritários, que muitas vezes um Estado
“violento”, “ditatorial” ou “democrático” pode combater ou violar.
3.2 Experiência jurídica e valores
Miguel Reale afirma que experiência jurídica ou direito como experiência “significa
concretude de valoração do direito”, sendo suas “normas deontológicamente inseparáveis do
solo da experiência humana” (REALE, 1968, p. 31). Nesse sentido o direito como “realidade
histórico cultural” estaria “presente à consciência em geral”, acolhendo valoração e
comportamentos, “atribuindo-lhes um significado suscetível de qualificação jurídica no plano
teorético, e correlatamente, o valor efetivo das idéias, normas, instituições e providências
técnicas vigentes em função daquela tomada de consciência teorética e dos fins humanos a
que se destinam” (REALE, 1968, p.31). Dessa forma a experiência jurídica seria concebida
“como um processo de concreção axiológica-normativa” no qual “já está implícita a sua
exigência de unidade e totalidade.” (REALE, 1968, pp.31-32).
Sim, o direito estabelece normas comportamentais e as valora. Mas isso não significa
que esses valores correspondam os anseios ou a “consciência em geral.” O direito (positivo,
por exemplo) pode também ser reflexo da positivação de um desvalor, pode ser um
instrumento de violência, de imoralidades. Aqui não se pretende negar o fator político que
pode estar mascarado na instituição de normas positivas, nem ser inocente ao acreditar que o
direito é sempre liberdade, valor ou consciência geral. O direito é o reflexo de uma sociedade,
com seus vícios e máculas. Não é um Deus perfeito do Olimpo, nem uma estátua de ouro para
ser glorificada. Ele tem em si a sociedade e os homens que o constrói e qualquer tentativa de
entender o direito nas múltiplas faces que ele pode apresentar, deve ser munida de conceitos
preparados para perceber essas multiplicidades. Quiçá que o direito fosse perfeito, mas ele
não é! A análise aqui é do ser, para a discussão, partindo desse, de como fazer o “dever-ser”.
Como as experiências jurídicas são partes das experiências sociais, são dessas que
aquelas colhem seus elementos. Mas isso não significa que exista uma fronteira precisa entre
elas. O que existem são vários formatos de relações, que estão em constante transformação,
modificação, esses vários formatos permitem diversas formas de migração através de pontes,
muros ou abismos. As fronteiras retas não existem, a imprecisão, a indeterminação do limite
exato é a característica das relações entre as ciências. A interdisciplinaridade, a relação entre
as disciplinas, fomentam essa multiplicidade de fronteiras e as plurais formas de relações
entre elas.
É por isso que não é possível falar em unidade ou totalidade das experiências jurídicas e
de seus valores, pois os valores, como as vivências do direito e suas formas de manifestação,
são plurais, não estão pré-determinadas, muitas vezes se contradizem, se opõe e constroem, a
cada dia, um direito diferente, nascente no seio de cada sociedade.
E se a experiência jurídica pôde ser pensada como integração entre fato, norma e valor7,
é necessário, em comunhão com o que se defende aqui, acrescentar-se o desvalor, a violação
da norma, as normas não positivas, os sentimentos de justiça, a aplicação na norma… para
comporem-se as diversas experiências jurídicas.
7
Para Miguel Reale: “fato, valor e norma se dialetizam, a meu ver segundo a dialética de complementaridade e,
não a de oposição aplicada por Hegel” (REALE, 2003, p. 49).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
105
Assim, a experiência jurídica não deve conhecer apenas a integração entre esses fatores,
mas também a percepção da desintegração e da oposição entre eles. Pois toda tentativa de
integralização ou de totalização (como alguns autores apresentam) é uma exclusão de uma
parte de sentimentos jurídicos e de normatividades. A história do direito não pode aceitar
essas totalidades ou integralidades, ela deve se pautar em conhecer as pluralidades, as
contradições, as tensões e, especialmente, aquilo que não foi conformidade, pacífico ou
consensual. O que aqui pretende-se conhecer são os obscuros, as violências não contadas, as
experiências sentidas em silêncios, os mundos ocultos nos subterrâneos da história.
3.3 Experiências jurídicas e a História do Direito
Se “a história do direito é o ramo do saber que se ocupa do passado jurídico”
(FONSECA, 2010, p. 33), pretende-se afirmar que a esse passado são as experiências
jurídicas vividas em um momento histórico.
E por mais que isso possa parecer um extremo subjetivismo histórico, são justamente
essas incertezas que tornam maravilhosa a vida humana. E é nesse momento que se prefere
substituir o termo subjetivismo, por intersubjetividade, por diálogo.8 A faculdade de duvidar,
criticar, tudo que está posto, a abertura a um diálogo constante, enriquece as ciências e a vida
em sociedade.
E se como lembra Paolo Grossi:
Ao historiador, sempre serão repugnantes isolamentos e compartilhamentos, porque
a vida – a vida jurídica em um momento histórico determinado – revela-se antes de
tudo como um emaranhado intrincado de relações e correlações. Múltiplas e
diversas, manifestam-se também as dimensões de uma experiência jurídica, mais
precisamente como manifestações diferentes e particularizadas que afundam suas
raízes em uma sólida substância unitária. (GROSSI, 2005, pp. 39-40)
Cresce dessa maneira a necessidade de não se isolar a história do direito, de não reduzila. Fomenta-se ainda mais a consciência de mantê-la em contato com outras disciplinas e com
conceitos que podem permitir o diálogo interdisciplinar.
E se falar de experiêncisa jurídicas significa estar atento – aproveitando-se de termos
que Paolo Grossi usa para descrever a experiência jurídica, influenciado por Capograssi –
para todas as forças como as econômicas e sociais que cercam a vida do direito, significa
também perceber que as experiências jurídicas não são estáticas, que estão em constante
movimento e transformação, como a sociedade e o direito (GROSSI, 1968, pp. 04-06). Assim
é possível compreender as experiências jurídicas nas suas plurais dimensões que não são
apenas (mas também) sociais e históricas (SCHILLACI, 2009, p. 04).
É nesse patamar que as ciências dialogam. A antropologia, a sociologia e a história do
direito se misturam, quebram barreiras e problematizam, cada vez mais, as realidades
humanas.
3.4 Antropofagias jurídicas.
Oswald de Andrade deu, no manifesto antropofágico, uma conotação política e
ideológica à antropofagia (ANDRADE, 2011) O ato do canibal que come seu inimigo para
ganhar suas qualidades é reconstruído. A antropofagia transforma-se em uma ação cultural no
8
Gonçal Mayos descreve esse sentido: “Hemos visto las dificultades de hablar rigurosamente en términos de
subjetivo y objetivo, especialmente respecto a los fenómenos históricos o culturales. Es mejor hablar en términos
de intersubjetividades en diálogo y de las condiciones bajo las cuales estas son definidas” (MAYOS, 2007, p.
23).
106 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO
mundo político. Não são mais os homens que são comidos, mas as culturas: “é a partir da
deglutição e devoração desse estranho que faremos algo diferente” (SILVA, 2011).
Publicado em 1928 o manifesto antropofágico era uma tentativa de construir uma
tradição nacional que pudesse dialogar com as vanguardas européias (BITARÃES NETO,
2004, p. 16), levantando-se “contra todos os importadores de consciência enlatada,”
(ANDRADE, 2011)9 contra a inibição do pensamento crítico e digestivo dos homens.10 Sem
capacidade de assimilar de forma crítica as teorias estrangeiras, o Brasil, para o autor, era um
corpo enfermo (BITARÃES, 2004), que simplesmente ingeria as teorias, culturas e doutrinas.
A antropofagia seria uma forma de unir o povo, um reconhecimento das raízes (“Só a
antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente)” (ANDRADE, 2011)
e um questionamento de uma realidade (e também de uma história e cultura) dada,
determinada, muitas vezes comprada de outras culturas, sem a devida digestão.
Assim, o manifesto é uma tentativa de crítica, mas essencialmente de consciência, de
uma sociedade que viveu e vive nos contrastes, nos conflitos, nas violências: “o texto não
pretende resolver as questões, mas colocá-las a nu sob uma nova perspectiva, ou chave
interpretativa. Podemos afirmar sem temor que a antropofagia é uma teoria do conflito”
(MOTA, 2011). E nada mais interessante para analisar uma sociedade que seus conflitos, suas
contradições, seus opostos, para compreender as diversas realidades existentes.
O Manifesto Antropofágico é uma forma de “reciclagem, ampla e abrangente de todas
as culturas e crenças possíveis para a estruturação de uma cultura de caráter nacional,”
(SOUZA, 2009, p. 07) é aceitação do que pode ser utilizado após sua digestão (crítica) e a
rejeição daquilo que não interessa, daquilo que não condiz com as realidades do país.
Aqui a intenção também é uma pequena subversão, agora do conceito de Oswald de
Andrade. A tentativa é discutir, partindo das premissas acima, uma antropofagia para o
direito, uma antropofagia jurídica.11
Nesse sentido, busca-se perceber que fazer uma antropofagia do direito é também
digerir criticamente o direito: “perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu
que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias.
Comi-o” (ANDRADE, 2011). Fazer antropofagia do direito é criticar o direito, suas doutrinas,
suas experiências e não simplesmente engoli-lo. É por o direito a prova das diversas
realidades que o cercam.
Dessa forma, procura-se lembrar, que para a construção de qualquer teoria crítica e
problematizante do direito, exigem-se a ingestão de conceitos, de histórias, de teorias, com a
9
“Não se trata, evidentemente, da negação xenofóbica do ‘exterior’, e da retomada da idéia de originalidade.
Antes, a proposta é de substituir a transplantação integral – leia-se, imitação – de culturas ‘estrangeiras’ pela
apropriação crítica delas (NODARI, 2007, p.13).
10
“Não adianta ignorarmos o que está acontecendo e fingir que somos donos de verdades e certezas. Não
podemos ficar desatentos (as) às mudanças que estão ocorrendo, pois são elas que nos indicarão os caminhos a
serem seguidos. Cada caminho é único, e à medida que ele vai se revelando, temos que ir criando alternativas
para ‘lidar’ com os desafios apresentados. A cópia de modelos que deram certo no percurso de um caminho nem
sempre dará certo no outro, porém não precisamos ignorar o que já nos é conhecido, mas, sim, devorá-lo e, a
partir da ‘fusão’ do velho e do novo criarmos algo próprio” (SILVA, 2011).
11
O Ministro do STF Eros Roberto Grau usa antropofagia jurídica, sem promover uma grande discussão sobre
seu significado, no voto proferido na Reclamação 4335-5 (Acre): “Sei bem do perigo da importação de doutrinas
jurídicas e exemplos estrangeiros para o e no debate sobre o direito brasileiro. Tenho insistido em que não existe
o direito, existem apenas os direitos. E o nosso direito é muito nosso, próprio a nossa cultura. A ponto de
afirmarmos a necessidade de uma antropofagia jurídica, à moda de OSWALD DE ANDRADE.” Disponível em
http://www.jurisciencia.com/pecas/reclamacao-4335-5-acre-voto-vista-do-ministro-eros-grau/82/ Acesso em 08
de Agosto de 2011.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
107
consciência crítica. Não basta engolir, é preciso digerir, é “através desse diálogo devorativo,
feito sobre a realidade de cada espaço, que surge a ‘gosma antropofágica’ resultante desse
processo” (SILVA, 2011). É através desse processo que surge o novo, o (re) criado, o
antropofágico.
A metáfora ajuda a entender: “para Oswald, o canibalismo, como metáfora, insere o
homem na cultura, já que ele absorve através de uma ‘devoração’ crítica” (BITARÃES, 2004,
p. 55). A “maior prova da selvageria” é utilizada para levar o homem “a civilização.” Daí
percebe-se que civilização e a barbárie coexistem no mesmo homem, coexistem na mesma
sociedade, o direito é a civilização e a barbárie, é o certo e o errado. 12 A antropofagia exige
essa percepção, essa sensibilidade ao mundo multicultural, pluralista.
A antropofagia é a aceitação do outro como diferente e também igual, é a aceitação das
pluralidades de realidades, das diversas experiências jurídicas, das diversas realidades
humanas.13 Mas é também uma crítica a história: “contra as histórias do homem que começam
no Cabo da Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César”
(ANDRADE, 2011).
Sim, o mundo é mais do que os imperadores e os grandes feitos históricos. O direito é
mais do que as leis positivas e suas histórias precisam sempre ser objeto de antropofagia.
Percebendo isso, pode a história do direito evitar a “reificação da significação dos valores,
categorias ou conceitos”, percebendo que esses sofrem (e devem sofrer) “permanentes
modificações do seu sentido (contextual)”(HESPANHA, 2005, p. 40). Pode a história do
direito perceber a mudança constante dos conceitos, das sociedades e dos direitos.
No direito a antropofagia vira a necessidade de não simplesmente engolir as teorias, as
doutrinas nacionais (e estrangeiras), mas sim de problematizá-las, criticá-las, pensá-las diante
do mundo em que se vive. É a necessidade de opor os conceitos, os paradigmas, os
pressupostos das teorias, às realidades nas quais se pretende aplicá-la. É tentar colocar o
direito em alteridade, em intimidade com a sociedade, ao mesmo tempo em que também pode
ser autocrítica do direito, autofagia da sua própria essência.
Para tanto, a antropofagia jurídica dialoga com as teorias da recepção, pois o discurso
também deixa de ser entendido apenas no sentido desejado pelo autor e passa a ser dado
também pelo leitor (JAUSS, 1993, p.47). E tal qual a antropofagia teve o manifesto de
Oswald de Andrade, a teoria da recepção tem a obra “Literatura como provocação” de Hans
Jauss, como um manifesto. Muito a teoria da recepção pode acrescentar aos objetivos da
antropofagia jurídica, pois recorda a necessidade de perceber para “quem o autor escreve.” O
destinatário do texto, percebido através de referências, exemplos, obras citadas, é essencial
também para entender o texto, tal qual a análise do autor e a interpretação do leitor. Os textos
passam a ser entendidos nas suas construções e interpretações. A “vontade do autor” (e do
legislador, para o caso jurídico) perde certa autonomia para uma realidade que bate a porta e
refresca os textos. Esses passam a ser interpretados de acordo com os contextos em que foram
escritos e que serão aplicados. Os escritos e seus entendimentos, tornam-se plurais, múltiplos.
Teorizando sobre a história da literatura e sobre as obras de arte, Jauss pôde perceber
que uma obra vive enquanto ela pode receber uma multiplicidade de significações, não sendo
12
Não se pode esquecer das palavras de Walter Benjamin, escritas nas Teses sobre o conceito de História e
imortalizadas no seu túmulo em Portbou: “Todo documento de cultura, é também um documento de barbárie.”
13
“Por isso (a antropofagia), não se trata de xenofobia ou ufanismo, não é justificativa em uma essência, uma
pureza, mas é ainda a partir da contribuição das diferenças culturais ou da aceitação da mestiçagem que devemos
criar uma maneira de estar-no-mundo: numa filosofia do encontro, da alteridade, porque todo povo é mestiço”
(PINTO, 2011).
108 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO
ela um objeto determinado, certo, perfeito, mas oferecendo a cada observador, a cada
momento, uma diferente aparência (JAUSS, 1993, p.47 e 62).
É nesse sentido que o “processo de produção e recepção” se tencionam (JAUSS, 1993,
pp. 62-63). E a teoria da recepção pode aqui contribuir. Uma obra, uma teoria, uma história,
devem ser abertas “à maior participação do receptor,” buscando um “processo interativo entre
o público e obra” (MIRANDA, 2007, p. 11), contra aqueles que acreditavam “que o
significado de um texto era direito exclusivo do autor” (MIRANDA, 2007, p. 18). A tentativa
da antropofagia jurídica é uma aproximação entre realidade e teoria pelo intérprete, entre
sociedade e doutrina… percebendo que o leitor não é simplesmente passivo, ele também
constrói as doutrinas quando as aplica (com sua interpretação) no mundo da vida. O texto
passa a existir em um processo dialético de produção e recepção, no qual o leitor também
participa do processo de construção de sentido, interagindo com o texto, interagindo com a
sua interpretação, com o que ele pensa, com o que ele critica e entende do que foi escrito
(HOLUB, 1992). Nesse sentido as experiências jurídicas que são compartilhadas, também
podem ser interpretadas, reconstruídas e vivenciadas de formas diferentes.
Deve-se verificar quando as teorias podem ser utilizadas em “contextos” diferentes
daqueles que elas foram pensadas. A questão não é apenas entender, mas problematizar o
texto, as doutrinas. A aceitação passiva de teorias fracassou e a missão da antropofagia
jurídica é uma mensagem ao “jurista sonâmbulo,” conclamando-o a criticar os direitos, que
foram abandonados ou que jamais foram aplicados (ou que aplicados “corretamente não
funcionam”) e que tanto incomodam quando confrontados com a realidade (NODARI, 2007,
p. 149). Assim a antropofagia Jurídica é a consciência da falibilidade das doutrinas e da
necessidade do constante (re) pensar das mesmas de acordo com os contextos históricos,
sociais, econômicos… e, fundamentalmente, é a consciência que o direito é humano,
demasiadamente falho, contraditório e humano, passível de eternas críticas e digestões.
Resta destacar a antropofagia jurídica como elemento interno da história do direito pelos
movimentos sociais. Aquela reforça um olhar crítico (e que pensa o Brasil) sobre os conceitos
e teorias utilizados para o construir histórico. A antropofagia jurídica permite ao pesquisador
problematizar os métodos e teorias utilizados para fazer as pesquisas e discutir a influência
desses nas análises das experiências jurídicas, nos resultados das pesquisas. Permite pensar as
teorias para o Brasil, antes de pensar o Brasil com essas teorias.
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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
111
CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA
JURÍDICA ABOLICIONISTA
CROSSING DISCOURSES: THEORY AND METHOD FOR DISCLOSURE OF
ABOLITIONIST LEGAL CULTURE
Luiz Gustavo Vieira Santos*
Resumo: O A partir da análise de diferentes discursos, que se alimentam, criando uma circularidade polifônica,
tem-se a conformação de uma determinada cultura, a qual pode ser exposta em diferentes textos e suportes ou
por meio de uma única narrativa detentora de toda essa pluralidade. Essa abordagem é possível também quando
se trata da cultura jurídica, pois o discurso jurídico não é conjunto semântico exclusivo dos bacharéis, não se
limita ao corpo institucional proveniente das academias de direito, ao contrário, permeia a sociedade de forma
abrangente, exprime-se por meio de diferentes falas, demonstra e fomenta os embates de seus interlocutores.
Essa interação é uma das formas viáveis de se construir a história, sobretudo, a história de um pensamento, no
caso, jurídico e, assim, revelar a cultura jurídica de um recorte espaço-temporal. Para a investigação discursiva
que se propõe, e conseqüente culminação no feitio da cultura jurídica de uma época, elege-se o final do século
XIX, do qual se extraí a questão abolicionista, sobretudo exposta pela análise do conjunto das nove primeiras
crônicas da série Bons Dias!, de Machado de Assis, publicadas em abril e maio de 1888, e do periódico em que
se insere, o jornal Gazeta de Notícias. A ampla cultura jurídica abolicionista é, enfim, perquirida por meio de
falas múltiplas existentes tanto nas crônicas, quanto no suporte em que se inserem.
*
Mestrando em História do Direito – Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. [email protected]
112 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA
ABOLICIONISTA
“Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
– Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai
Khan.
– A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra –
responde Marco –, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois
acrescenta:
– Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
– Sem pedras o arco não existe.”
Italo Calvino. As cidades invisíveis
Apresentação
A análise que se apresenta é fruto do trabalho final desenvolvido para a disciplina
“Metodologia da História do Pensamento Jurídico”, do Programa de Pós-graduação stricto
sensu em Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, do qual faz parte o pesquisador.
Pretende-se tomar a História dos Discursos – e todo o seu arcabouço filosófico, pautado
no estudo da linguagem – como matriz teórica para a pesquisa previamente proposta junto ao
Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito.
Para que fique clara a adoção da teoria e do método explorados no projeto de mestrado a
partir também da bibliografia elencada na disciplina, é necessário apontar algumas
características do projeto inicial, indicando o percurso pelo qual passou até essa fase.
Esboçado inicialmente como um estudo interdisciplinar entre direito e literatura, o
projeto (cuja temática central é a análise de nove crônicas abolicionistas da série Bons Dias!
publicadas, anonimamente, por Machado de Assis, no periódico Gazeta de Notícias entre abril
e maio de 1888) privilegiava, em sua origem, a crítica literária de Antônio Cândido e Roberto
Schwarz. A partir da análise da estrutura textual, propunha-se entender a irônica narrativa
machadiana como subversiva do discurso dominante e denunciadora do desleixo como se
dava a questão abolicionista, tangenciando, assim, o debate jurídico sobre o tema.
Muito embora a proposta tenha sido aprovada e recebida com interesse pelo orientador,
foram apontados problemas teóricos e metodológicos no projeto. Tanto por escapar a
fundamentação teórica de matrizes caras ao universo jurídico, quanto por não ter sido
especificada a metodologia plausível para se chegar ao objetivo do projeto, foi remetido o
pesquisador a buscar a história do discurso, mais especificamente, John Greville Agard
Pocock, para que reformulasse as bases do projeto acadêmico.
Tido o primeiro contato com o autor, sentiu-se o pesquisador debilitado quanto às raízes
do pensamento exposto por Pocock, bem como carecedor de outras formas de história para
que elegesse qual seria o tipo de estudo e conseqüente método compatível com a idéia original
do projeto. Nesse momento, inscreve-se para o curso sobre Metodologia da História do
Pensamento Jurídico, onde procurava encontrar – e de fato ocorreu – as bases perquiridas.
Fomentado pelos debates do curso e com o orientador, chegou-se à idéia do projeto
como um mapeamento de discursos e de seus cruzamentos, dos quais resulta a cultura jurídica
da época estudada.
Recebidas as premissas filosóficas sobre a relação entre linguagem e direito, o
pesquisador passa a permear diferentes campos (direito, história e literatura) com mais rigor,
tornando a interdisciplinaridade possível sem desrespeitar os limites do programa de mestrado
em que se insere, mas, também, sem deixar de trazer elementos, sobretudo referentes à crítica
literária, pouco explorados nas academias de direito.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
113
O presente trabalho é, portanto, uma breve e inicial incursão nos estudos da linguagem e
no discurso político no intuito de aplicá-los ao projeto de mestrado do pesquisador, mais
especificamente, como referência e base para confecção dos capítulos atinentes à matriz
teórica e metodológica da dissertação de mestrado.
Introdução
É comum imaginar que o discurso jurídico é produzido por bacharéis, uma verdade. No
entanto, a cultura jurídica não tem como sujeito apenas o indivíduo imerso nas academias de
direito, já que permeia a sociedade de forma mais abrangente. Tem-se, assim, uma produção
discursiva, em âmbito jurídico, também a partir dos leigos.
A História do Pensamento Jurídico ocupou-se, tradicionalmente, da cultura jurídica
letrada, sobretudo bacharelesca. Isso porque é o direito uma instituição com linguagem
própria, que gera um corpo social que o domina e o produz, aliás, raro estrato da população
que é responsável por sua gênese e oficial difusão, elite detentora do poder e formadora de
“uma ilha de letrados num mar de analfabetos” concentrada na “formação jurídica” como já
demonstrava José Murilo de Carvalho em A construção da ordem1. No entanto, todo esse
discurso (letrado e bacharelesco) pode ser recepcionado pela sociedade em sentido amplo,
possuidora de idéias próprias de direitos, o que causa aproximações, apropriações e também
descompassos.
Nesse sentido, a pesquisa procura não apartar os diferentes discursos, mas descobrir a
circularidade, a interação entre diversas falas que compõem a cultura jurídica.
Toma, pois, como referência, a produção de Susan S. Silbey, que analisa como é
trabalhado o direito pela sociedade, expondo um julgamento crítico, porque independente da
autoridade e de interesses das instituições legais. Nas palavras da pesquisadora estadunidense:
“Law is not merely a resource or tool but a set of conceptual categories and schema that
produce parts of the language and concepts people use for both constructing and
interpretating social interactions and relantionships.” (SILBEY, 2003: 862).
Uma das dificuldades para elaboração da história do pensamento jurídico dos leigos é
que, em tese, não deixaram escritos sistematizados. Esse pensamento pode ser buscado
através de documentos da época estudada, tais como produções de bacharéis nas quais
repercutiam o pensamento não-especializado (desde que expressamente o fizessem), ou
produções de leigos que não são do gênero literário em que se inserem os manuais de direito.
Periódicos e outros gêneros literários em que constavam discursos de leigos, bem como
de bacharéis, com temática jurídica, são fontes que possibilitam o estudo da cultura jurídica
de uma época. Assim como também é possível essa leitura a partir de documentos
burocráticos, produzidos por não-bacharéis (embora se tenha em mente que, via de regra os
quadros burocráticos sempre foram preenchidos por letrados advindos das academias de
direito de Portugal, São Paulo e Pernambuco), conforme realizado por Sidney Chalhoub, que
trabalhou com o pensamento abolicionista na obra de Machado de Assis a partir de
documentos elaborados pelo escritor enquanto atuou na Secretaria da Agricultura à época da
Lei do Ventre Livre (CHALHOUB, 2003).
A pesquisa possui, como fonte primária, o jornal Gazeta de Notícias dos meses de abril
e maio de 1888, tendo como fonte nuclear nove crônicas de Machado de Assis da série Bons
1 O assunto é tratado por diversos historiadores, mas sempre com foco no privilegiado e dominante ambiente
jurídico, considerado detentor da “alta cultura juíridica” (LOPES, 2010), no qual circulavam os detentores do
poder e seus herdeiros. Conferir: CARVALHO, 2003; DUTRA, 2004; HESPANHA, 2006; LOPES, 2010.
114 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA
ABOLICIONISTA
Dias!, que foi publicada e anotada por John Gledson, na década de 1990, que inclusive
aponta:
As primeiras nove crônicas da série são, na verdade, o seu cerne, e expõem os
argumentos centrais do autor. Constituem um processo em que as questões mais
importantes são tratadas, desenvolvidas, e finalmente chegam a um clímax, embora,
claro, nunca sem ironia. (GLEDSON, 2009: 28).
A partir dessa escolha, reconstruimos o pensamento abolicionista (e também o contrário
às reformas servis) que permeava a sociedade brasileira no final do século XIX. Trata-se,
portanto, de uma investigação baseada não em apenas um determinado rastro, mas num
conjunto de pistas, de caminhos que se cruzam e originam o mapeamento da cultura jurídica
brasileira no que tange à abolição do regime escravocrata: uma encruzilhada discursiva.
Várias falas compõem as crônicas e o jornal em que são publicadas e o conjunto dessa
pluralidade resulta em uma única cultura jurídica.
A pesquisa, a partir da metodologia que será exposta, por meio da análise das fontes,
angaria dados para discutir a questão da passagem de um regime escravocrata para um modo
de produção gerador de dependentes, numa falsa tentativa de ilustrar (baseada nas luzes que
vinham do além-mar) o conservador comportamento brasileiro, conforme elucida Roberto
Schwarz, quando fala que “Esta complementariedade entre instituições burguesas e coloniais
esteve na origem da nacionalidade e até hoje não desapareceu por completo.” (SCHWARZ,
2008b: 38) e Sidney Chalhoub:
a concentração do poder de alforriar exclusivamente nas mãos dos senhores fazia
parte de uma ampla estratégia de produção de dependentes, de transformação de exescravos em negros libertos ainda fiéis e submissos a seus antigos proprietários. (...)
Machado está enfatizando aqui a continuação da exploração, a abolição como um
não fato do ponto de vista das relações sociais.(CHALHOUB, 2011: 122).
GLEDSON não diverge em sua interpretação acerca dos movimentos da sociedade: “A
abolição não é um movimento da escuridão para a luz, mas a simples passagem de um
relacionamento econômico e social opressivo para outro.” (GLEDSON, 2009:31).
Ao contrário de GLEDSON – que discorreu plenamente sobre o conjunto de crônicas em
análise – e de CHALHOUB – que explora a historicidade de algumas das crônicas –, SCHWARZ
não deu, em sua produção, atenção específica a essa série machadiana. No entanto,
características apontadas pelo autor, ao se referir a Machado, ou, mais especificamente, ao
romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, encaixam-se perfeitamente à leitura que se
propõe das crônicas, sobretudo porque tratam não só da obra, mas da narrativa machadiana
como espelho (mesmo que distorcido) da sociedade oitocentista2, razão pela qual seus
ensinamentos serão também parâmetro para essa pesquisa.
Em suma, o projeto sustenta-se sobre um mosaico de referências, amalgamadas pela
temática discursiva. Em SILBEY, temos a base para explorar a ampla conformação da cultura
jurídica a partir de vários discursos (abandonando, assim, dicotomias como alta vs. baixa;
2 A tese de SCHWARZ que melhor cabe às crônicas diz respeito à volubilidade da narrativa como resultado da
discricionariedade da classe dominante. Inicia a exposição sobre a obra machadiana considerando que “É claro
que não se tratou aqui de escrever uma história do Brasil, mas de expor com brevidade o travejamento
contraditório da experiência que seria figurada e investigada pela literatura de um grande autor.” ( SCHWARZ,
2008b: 40) e explica que “O móvel da volubilidade é imediato e personalista. Seu primado impede que a norma
burguesa vigore, embora não a prive de prestígio. Este é indispensável à idéia civilizada que a volubilidade
machadiana faz de si, também para mostrar aos outros. [...] Se não erramos, Machado elaborava um
procedimento literário cuja constituição objetiva punha a vida do espírito em coordenadas compatíveis com a
realidade nacional, independentemente de convicções a respeito desta ou daquela doutrina.” (SCHWARZ, 2008b:
57).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
115
letrados vs. não-letrados etc.); em CHALHOUB, SCHWARZ e GLEDSON, encontramos a
perspectiva de Machado como atento intérprete de sua época, fazendo aqueles autores a ponte
para transformar a narrativa machadiana em discurso político passível de análise; e, por fim,
temos na proposta de estudo discursivo de POCOCK (que será explorada à frente) o alicerce
metodológico para viabilizar a demonstração de interações discursivas e ideológicas.
O estudo proposto justifica-se pela necessidade de entender a cultura jurídica como um
corpo valorativo plural, conformado por diferentes atores e opiniões, para então jogar luz na
produção de pensamento de não-bacharéis com vistas à melhor compreensão da sociedade, já
que é formada, em sua maioria, por indivíduos que não freqüentaram as academias, mas que
são também os destinatários do debate jurídico e que demonstram em seu discurso
(consciência, para SILBEY) uma postura de recepção ou resistência3.
Os discursos sob análise não são especificados, num primeiro momento, como
pertencentes a esta ou aquela categoria. Apenas a partir da análise da narrativa e de seu
suporte é que se pode apontar a quem pertence um determinado discurso. No caso das
crônicas machadianas, não é assinalada sua autoria – já que, à época, eram anônimas –, mas
anotados os diversos discursos nelas contidos. A mesma leitura se faz do suporte em que se
inserem: de quem eram aqueles discursos?
A escolha do suporte é abonada por serem os periódicos o veículo de informação por
excelência na época sob análise4. Os jornais foram o espaço de exposição tanto de atos
oficiais, quanto de manifestações (contrárias ou favoráveis), razão pela qual são a fonte
primária deste trabalho, que não deixará de contemplar fontes outras 5 para elucidar a
concepção das crônicas consideradas, inclusive de acordo com a metodologia eleita para esta
pesquisa.
O Gazeta de Notícias é periódico que muito contribui para a análise pretendida. É de
fácil acesso6, possuía grande circulação no período, com uma tiragem de 24.000 exemplares
(a segunda maior entre os principais jornais da época: Jornal do Commercio, O País e o
próprio Gazeta de Notícias) e vendido de forma avulsa, o que facilitava sua distribuição, e era
3 “Legal consciousness traces the way in wich law is experienced and interpreted by specific individuals as they
engage, avoid or resist the law and the legal meanings.” (SILBEY, 2001: 8626) e “The study of legal
consciousness emerges out of, even as it shapes, social structures contested in ideological struggles or subsumed
in hegemonic practices. The study of legal consciousness is the search for the forms of participation and
interpretation through which actors construct, sustain, reproduce, or amend the circulating (constested or
hegemonic) structures of meanings concerning law.” (SILBEY in JACOBS, 2005: 330). Esse entendimento vai ao
encontro das teorias utilizadas nessa pesquisa acerca da história da linguagem e da história do discurso, no que
tange à mudanças paradigmáticas a partir da inovação na linguagem.
4 Ainda são importantes espaços de divulgação, no entanto, com o advento de novas mídias (rádio, televisão e
internet) e maior alcance da indústria editorial, não se pode dar à imprensa impressa a exclusiva importância que
tinha à época da abolição.
5 A busca por diários, cartas e até material de trabalho de Machado, estudo que já foi feito e reconhecido
(conferir CHALHOUB, 2003), será demanda constante ao longo da pesquisa, que os utilizará à medida de sua
pertinência ao estudo. A importância dessa investigação justifica-se pela tentativa de escape ao círculo
hermenêutico, como elucida POCOCK: “Quanto mais provas o historiador puder mobilizar na construção de suas
hipóteses acerca das intenções do autor, que poderão então ser aplicadas ao texto ou testadas em confronto com o
mesmo, maiores serão as suas chances de escapar do círculo hermenêutico, ou mais círculos desse tipo seus
críticos terão de construir na tentativa de desmontar essas hipóteses.” ( POCOCK, 2003: 27).
6 Os jornais estão disponíveis tanto na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, quanto no arquivo Edgard
Leuenroth da Unicamp, através de microfilmes (localização: MR/0967 e MR/0968. Pesquisa através do endereço
http://segall.ifch.unicamp.br/site_ael/), o que facilitou o acesso ao conteúdo objeto deste projeto. As imagens
microfilmadas foram digitalizadas e gravadas em formato PDF e então impressas, no intuito de auxiliar a leitura
dos periódicos.
116 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA
ABOLICIONISTA
um jornal de ideologia liberal/abolicionista, o que pode explicar o espaço reservado às
crônicas de Machado (GLEDSON, 2009: 14).
Bons Dias! são crônicas ímpares na produção literária do autor. É uma série anônima de
Machado, em virtude da busca7 por maior liberdade em expressar sua opinião acerca da
abolição, e iniciou-se em período imediatamente anterior à Lei Áurea, tornando-se, assim,
legado do discurso político8 da época.
A temática abordada nas crônicas também auxilia na descoberta do cruzamento de
discursos, ou de sua circularidade na composição da cultura jurídica da época, uma vez que a
abolição foi discussão política que afetou diretamente o cotidiano da sociedade, de bacharéis e
leigos, de senhores e escravos.
Não se pode deixar de abrir parênteses, neste ponto, para retomar a questão da
incongruente sociedade da época: admiradores das ideologias mais liberais e avançadas, os
que balizavam a política nacional continuavam a refutar reformas mais drásticas e a conservar
o regime já decadente da escravidão; conforme sintetiza SCHWARZ: “as idéias liberais não se
podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartáveis.” (SCHWARZ, 2008:26).
A opção por Machado justifica-se pela ampla bibliografia produzida e disponível,
inclusive com estudos sobre a questão intertextual em crônicas, dos quais destacamos a
contribuição permanente de John Gledson para a divulgação da obra machadiana: “[as
crônicas] têm uma percepção aguda dos eventos – em si muito importantes – que
acompanham; e exploram a relação do cronista com o leitor, ao expandi-la e até subvertê-la”
(GLEDSON, 2009: 13).
Entretanto, ainda não há estudos sistematizados no que tange à contribuição de
Machado para a história do discurso ou da cultura jurídica da época. Nesse sentido,
poderemos observar o subsídio machadiano à formação da cultura jurídica, já que suas
crônicas representam a circularidade discursiva (tanto nelas contidas, como na interação com
o suporte) que se defende como composição ideológica de uma época. Dessa maneira,
apresenta-se uma nova abordagem, a partir de um programa da área do direito, já que “um
trabalho novo sobre o jornalismo, principalmente no caso de um escritor tão estudado quanto
Machado de Assis, precisa justificar o que poderia parecer, à primeira vista, simples
repetição.” (GRANJA, 2000: 18).
A literatura específica acerca das crônicas sob análise, sobretudo John Gledson; e a
respeito da leitura abolicionista, mormente pela obra de Sidney Chalhoub, são imprescindíveis
7 John Gledson indica que “É impossível exagerar a importância desse verdadeiro anonimato para a série; não se
trata apenas de um novo pseudônimo [...]. Parece claro que Machado ia dizer coisas duras, mesmo sob a capa da
ironia, e queria poder dizer essas coisas com uma margem extra de liberdade, sem sofrer consequências mais
imediatas.” (GLEDSON, 2009: 20). Há, em outros autores, diferentes considerações sobre o anonimato, mas que,
em virtude de serem acompanhadas por análises das quais não se compartilha no que tange ao papel político de
Machado na abolição, não são privilegiadas neste momento da pesquisa. Não se trata, por outro lado, de Lúcia
Granja, que diz: “...as crônicas de Machado são, no mínimo, surpreendentes, pelo desvelamento do homem e do
escritor, pelo compromisso que implicam com o cotidiano da vida social, política e cultural do país, pela
verdadeira militância que traduzem em face os problemas da época...” (GRANJA, 2006: 386); além de autores que
começaram a traçar a importância da narrativa machadiana para a questão abolicionista, como MAGALHÃES
JÚNIOR, 1970; E BROCA, 1983.
8 POCOCK salienta que ao falar de linguagens, seriam “retóricas mais do que linguagens no sentido étnico” e que
“Esses idiomas ou jogos de linguagem variam também na origem e, consequentemente, em conteúdo e caráter.
Alguns terão se originado nas práticas institucionais da sociedade em questão: como os jargões profissionais de
juristas [...] e todos aqueles que se tornaram reconhecidos como integrantes da prática política e entraram para
o discurso político.” (POCOCK, 2003: 31, grifo meu). Nesse último nicho, encontra-se Machado.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
117
para o desenvolvimento do projeto e possibilitaram sua feitura desde sua concepção. Os
próprios autores comentam as produções:
O livro de Gledson (...) demonstra de forma convincente que o romancista comentou
intensamente as transformações sociais e políticas do seu tempo. A crônica sobre a
alforria do bom Pancrácio aparece no texto de Gledson para reforçar o argumento de
que Machado percebia a abolição da escravidão como uma questão muito relativa,
pois o que estaria ocorrendo era simplesmente a passagem de um tipo de
relacionamento social e econômico injusto e opressivo para outro. ( CHALHOUB,
2011:118-9).
Enfim, além de estudos acerca da cultura jurídica – sobretudo suas novas perspectivas,
para além do ambiente elitizado –, aspectos inerentes à interpretação da produção
machadiana, como a estrutura narrativa, a contextualização e a importância historiográfica
constituem fundamento da pesquisa.
Apresentado o trabalho e feita a introdução à pesquisa desenvolvida pelo discente,
expõem-se, adiante, as bases teóricas e o método eleito para a jornada acadêmica.
Bases teóricas: direito como linguagem
As bases teóricas que serão apresentadas restringem-se à parte da pesquisa que
tangencia a formação de um discurso e sua colocação como realidade institucional. Um outro
arcabouço teórico, que não é o objeto nuclear deste trabalho – e por isso não explorado
devidamente neste momento – e que será tangenciado ao longo da exposição, relaciona-se à
conformação da cultura jurídica no país. Passa-se ao exame das primeiras premissas teóricas.
Para além de sua restrita concepção como preceito legal, é examinada a natureza do
direito para encaminhar o estudo desenvolvido na pesquisa. Ou seja, busca-se, a partir de
pressupostos filosóficos, contornar o objeto de estudo, no caso, o direito como linguagem,
parte constitutiva de fatos. Isso porque o direito é prática social expressa por linguagem
própria, o que leva ao direito como realidade institucional, que abriga diferentes
manifestações e linguagens, conjunto que é o verdadeiro objeto do estudo histórico.
John Rogers Searle, filósofo da linguagem, é um dos pressupostos deste trabalho, já que
disseca o trajeto entre fato real e fato institucional, em que são presentes elementos como
intencionalidade e razão.
A partir da soma da intencionalidade intrínseca a um fato (ontologicamente subjetiva e
independente de observadores), com a linguagem pela qual tal intencionalidade é expressada,
tem-se a intencionalidade derivada, dependente de observação alheia, que, por seu turno,
quando em conjunto com a expressão de outros indivíduos, forma a intencionalidade coletiva,
considerada como fato social. Ao lhe ser atribuída função específica (função de status, que
pressupõe teleologia), a manifestação introduz normatividade e conforma uma realidade
institucional. A partir da reiteração de realidades institucionais e interação entre elas, tem-se
uma poderosa estrutura institucional. No caso da pesquisa, o direito e os discursos que o
compõem.
Esse percurso sucintamente exposto é apenas uma base para entendermos o direito
como produto da relação entre objeto (fato/realidade), linguagem, institucionalização e poder
(SEARLE, 2000: 105-125). Tendo em mente a gênese da relação entre linguagem e poder,
pode-se avançar na trajetória a respeito do discurso.
Robin George Collingwood, filósofo e historiador, trabalha, na mesma linha de SEARLE,
com a distinção entre pensamento inconsciente e consciente (reflexivo); e interior e exterior
de eventos, sendo o exterior a ação (ou discurso) e o interior a tradução de pensamento, o
qual, por seu turno, é objeto da história, ou melhor, da filosofia da história. Ou seja, para além
118 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA
ABOLICIONISTA
de mero conhecimento filológico, a partir de “seu próprio espírito” o historiador “re-presenta”
a experiência de um agente, chegando ao conhecimento histórico. Discute-se a argumentação
em si. A partir desse método, passa a tratar do assunto da história, que é a experiência, embora
essa não seja, como tal, objeto do conhecimento filosófico (e sim o pensamento, que é mais
do que consciência, é autoconsciência, a qual, contínua, recebe o nome de pensamento).
Não é qualquer ato de pensamento que é objeto da história e sim o ato de pensamento
reflexivo (é a consciência do ato mental que faz dele o que é: objeto da história), o qual é,
assim, intencional, levando a uma atividade prática: “não se pode existir história de nada que
não seja pensamento” (COLLINGWOOD, 1967: 282-315). 9 A pesquisa busca utilizar a narrativa
machadiana sobre a abolição para desvelar a cultura jurídica da época, já que “os
acontecimentos da história não são nunca meros fenômenos, nem meros espetáculos para
serem contemplados, antes são coisas para as quais o historiador não olha, mas sim através
das quais olha, para descobrir o pensamento que dentro delas existe.” (COLLINGWOOD, 1967:
308).
Toma-se, a partir das considerações feitas, como matriz para o trabalho a história da
linguagem política [ou história dos discursos], com referencial teórico na produção de Oxford
e Cambridge10, cuja linhagem de representantes desenvolveu uma teoria baseada no “speech
act”, que privilegia o sentido do discurso. Tem-se, desta forma, o discurso jurídico como
objeto da história. No caso da pesquisa que se desenvolve, os discursos sobre abolição do
final do século XIX, por meio de diferentes falas.
A utilização das palavras pensamento (quando se fala em história do pensamento
jurídico) ou discurso (ao se dizer história do discurso) é importante para que não se confunda
o objeto deste trabalho com consciência11 jurídica (para qual pode ser atribuída natureza
psicológica) ou com meras ações (fatos brutos). O discurso é depurado para se chegar ao
sentido, já que o sentido é o permanente do discurso.
Esse percurso interpretativo será teoricamente baseado, inicialmente, na junção entre
método e história (na verdade, análise historiográfica) elaborada por Quentin Skinner12, união
que ilumina o presente, já que seu trabalho envolve três eixos: (i) interpretação de textos
históricos; (ii) levantamento da formação ideológica e suas mudanças; e (iii) análise do que
representa a relação entre ideologia e ação política, já que não há dualidade entre mundo das
ideias e mundo real, uma vez que vivem no mesmo horizonte.
Skinner utiliza, para tanto, a fala e a escrita, as quais compreendem duas formas de
ação: (i) o encadeamento de palavras, frases, argumentos e teorias com um significado
proposital; e (ii) a força intentada pelo autor ao falar ou escrever. A primeira é o “significado
locucionário”; a segunda, a “força ilocucionária”, que é imprescindível para o entendimento
do discurso, já que esse faz parte de um pensamento contextualizado.
A teoria de Skinner dá sequência aos estudos de COLLINGWOOD no que tange à
importância do pensamento e dos padrões de linguagem num determinado contexto,
invocando o significado histórico do texto (intencionalidade) ao re-descrever e caracterizar o
9 Da mesma forma, Peter Winch considera que o comportamento humano só nos interessa “se e na medida em
que o agente ou agentes associam um sentido subjetivo (sinn) a ele”. (WINCH: 47-68).
10 Essas teorias foram desenvolvidas em linhagem advinda das escolas de Oxford e Cambridge, em que
destacamos os seguintes filósofos e historiadores: AUSTIN, COLLINGWOOD, SEARLE, WITTGENTEIN, SKINNER E
POCOCK.
11 Importante apontar que Susan S. Silbey, socióloga norte-americana que também é basilar na pesquisa, utiliza
a expressão consciência jurídica para especificar o pensamento jurídico dos leigos, ou melhor, o discurso
jurídico no cotidiano.
12 Conferir a compilação de textos de Skinner e que lhe são dirigidos em TULLY, James. Meaning an Context –
Quentin Skinner and his Critics. Princeton: Princeton University Press.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
119
ato linguístico a partir de sua ideologia. Nesse momento, é necessário termos atenção ao
conjunto de obras da época, sobretudo às obras menores, que nem sempre participam do
gênero do objeto histórico (no caso, o discurso jurídico, razão pela qual se elege o conjunto de
crônicas machadianas).
Busca-se, assim, elucidar o processo de formação das crônicas, verdadeiro diálogo de
Machado – que passa de autor de crônicas a leitor do jornal no qual se inserem – com os atos
normativos, notícias e opiniões exarados à época. Identificar a linguagem machadiana exposta
não como reflexo da sociedade mas, como resposta à dificuldade de expressão diante da nova
experiência prática, como “oportunidade para a performance de novos atos de fala por parte
do leitor, quando se torna autor” (POCOCK, 2003: 44).
O jornal Gazeta de Notícias, de abril e maio de 1888, abriga diferentes falas que,
cruzadas, servem de base para a criação de um discurso plural dentro das crônicas
machadianas. O cronista apreende uma linguagem para reproduzi-lo de forma irônica,
criando, assim, uma nova linguagem. GLEDSON (2009) já apontou que Machado usava notícias
do jornal para compor as crônicas, o que é recorrente nesse gênero literário.
Com o intuito de trazer as interpretações13 de GLEDSON, SCHWARZ e CHALHOUB para o
campo jurídico (político), o método que se propõe tem como referencial a história do
discurso, sobretudo os estudos de POCOCK, que esclarece o papel da linguagem no discurso e
ressalta o contexto da fonte analisada.
Nas palavras do autor: “Agentes atuam sobre outros agentes, os quais, por sua vez,
efetuam atos em resposta aos deles, e quando ação e resposta são efetuados através do meio
da linguagem, não podemos absolutamente distinguir a performance do autor da resposta do
leitor.” (POCOCK, 2003: 42).
A importância dessa reconstrução está em mostrar que o discurso (jurídico, mesmo que
leigo) serve para esclarecer uma discussão posta em determinado momento. Esse esforço
interpretativo, mormente pela metodologia que será sucintamente exposta, elucida a alteração
de uma ideologia (ou, pelo menos, a contraposição à ideologia dominante) pela colocação de
novos discursos, novos sentidos. Busca-se a manobra ideológica do texto. É essa aspiração à
mudança de convenção que se mostra essencial para o debate jurídico. Mais uma vez, Pocock,
fala como se dá esse esclarecimento, através de perlocuções:
“A história do discurso está interessada nos atos de fala que se tornam conhecidos e
que evocam respostas, em elocuções que são modificadas à medida que se tornam
perlocuções, conforme a maneira como os receptores respondem a elas, e com
respostas que tornam a forma de novos atos de fala e de textos em resposta. O
próprio leitor se torna um autor, e é exigido do historiador um complexo típico
Rezeptionsgeschichte.” (POCOCK, 2003: 44)
13 Contribui para o método histórico a interpretação crítica da literatura, como apresentado nas obras de
GLEDSON, SCHWARZ E CANDIDO. : “A alternativa encontrada por Machado é desvendada pelo crítico através do
conceito de ‘realismo enganoso’, um procedimento pelo qual o artista, por um lado, representa a realidade
através das convenções doutrinárias da estética realista dominante, enquanto, pelo outro, solapa, suspende e
compromete todas elas ao mesmo tempo. O resultado não é a ausência ou a negação do referente, mas o desafio
para que o leitor o encontre lendo os textos a contrapelo da narrativa, buscando seu lapsos, seus atos falhos, suas
hesitações, suas referências cifradas e seu substrato histórico.” ( SEVCENKO, 2003: 15)
“A partir da perspectiva da Análise do Discurso, especialmente da idéia de polifonia cunhada por Bakhtin,
demonstra que a subversão do texto é prática do discurso machadiano, que viola fronteiras enunciativas. Por esse
caminho, segundo analisa o autor, joga-se luz novamente sobre os fatos como matéria narrativa das crônicas e
como ‘veículos que conduzem a todo um jogo de vozes contido no texto’ [ CRUZ JÚNIOR, 2002] e, na esteira das
idéias de Antonio Candido e Roberto Schwarz, á captação da dinâmica do funcionamento da sociedade
brasileira.” (GRANJA, 2006: 395).
120 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA
ABOLICIONISTA
Isso posto, o trabalho pretende concluir que as crônicas de Machado são verdadeiras
perlocuções em relação ao discurso jurídico dominante da época. Ao esclarecer e subverter,
através de sua narrativa, os acontecimentos institucionais, Machado contribui para a formação
da cultura jurídica abolicionista.
Método: cruzando discursos
A partir dos alicerces apontados, pode-se desenvolver um método que atente às
particularidades do caso estudado, proporcionando, assim, a conclusão almejada: diferentes
discursos compõem a cultura jurídica. Mais especificamente, no caso das crônicas
machadianas, a conclusão é pretensa no sentido de ser sua narrativa uma forma denunciante
dos acontecimentos e ideologias predominantes da época.
Para evidenciar a intencionalidade particular e subjetiva do discurso analisado, deve-se
recorrer à investigação da biografia, de documentos periféricos, cartas, etc. Enfim, não basta
só o texto e sim seu sentido (o que faz o autor ao escrever: ter consciência desse ato).
Pautados nesse método que dissecaremos os discursos sob apreciação. Essa proposta tem
como referência o trabalho de Sidney Chalhoub em “Machado de Assis historiador”14.
Quanto às fontes da pesquisa, a escolha do suporte é abonada por serem os periódicos o
veículo de informação por excelência na época sob análise. Os jornais foram15 o espaço de
exposição tanto de atos oficiais, quanto de manifestações leigas (contrárias ou favoráveis),
razão pela qual são a fonte primária da pesquisa, que não deixa de contemplar fontes outras16
para elucidar a concepção das crônicas consideradas, inclusive de acordo com a metodologia
que se expressa em leituras cruzadas.
A Gazeta de Notícias é periódico que muito contribui para a pesquisa. É de fácil
acesso17, possuía grande circulação no período e era um jornal de ideologia
liberal/abolicionista, o que pode explicar o espaço reservado às crônicas de Machado.
Bons Dias! são crônicas ímpares na produção literária do autor. É uma produção
anônima de Machado, em virtude da busca18 por maior liberdade em expressar sua opinião
acerca da abolição, e iniciou-se em período imediatamente anterior à reforma servil, quando
essa já era inevitável, tornando-se, assim, legado do discurso político19 da época.
14 Obra em que são interpretados romances de Machado de Assis e analisados pareceres exarados pelo escritor
enquanto burocrata do Império.
15 Ainda são importantes espaços de divulgação, no entanto, com o advento de novas mídias (rádio, televisão e
internet) e maior alcance da indústria editorial, não se pode dar à imprensa impressa a exclusiva importância que
tinha à época da abolição.
16 A busca por diários, cartas e até material de trabalho de Machado, estudo que já foi feito e reconhecido
(CHALHOUB, 2007), será demanda constante ao longo da pesquisa, que os utilizará à medida de sua pertinência
ao estudo. A importância dessa investigação justifica-se pela tentativa de escape ao círculo hermenêutico, como
elucida POCOCK: “Quanto mais provas o historiador puder mobilizar na construção de suas hipóteses acerca das
intenções do autor, que poderão então ser aplicadas ao texto ou testadas em confronto com o mesmo, maiores
serão as suas chances de escapar do círculo hermenêutico, ou mais círculos desse tipo seus críticos terão de
construir na tentativa de desmontar essas hipóteses.” (POCOCK, 2003: 27).
17 Os jornais estão disponíveis, embora em precário estado de conservação, tanto na Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro, quanto no arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp, através de microfilmes (localização: MR/0967 e
MR/0968. Pesquisa através do endereço http://segall.ifch.unicamp.br/site_ael/, acessado em 2.4.2011), o que
facilitou o acesso ao conteúdo objeto deste projeto.
18 John Gledson indica que “É impossível exagerar a importância desse verdadeiro anonimato para a série; não
se trata apenas de um novo pseudônimo [...]. Parece claro que Machado ia dizer coisas duras, mesmo sob a capa
da ironia, e queria poder dizer essas coisas com uma margem extra de liberdade, sem sofrer consequências mais
imediatas.” (GLEDSON, 2009: 20)
19 Pocock salienta que ao falar de linguagens, seriam “retóricas mais do que linguagens no sentido étnico” e que
“Esses idiomas ou jogos de linguagem variam também na origem e, consequentemente, em conteúdo e caráter.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
121
A temática abordada nas crônicas também auxilia na descoberta do cruzamento de
discursos, uma vez que a abolição foi discussão legislativa que afetou diretamente o cotidiano
da sociedade, de leigos e bacharéis, de escravos e senhores.
A opção por Machado justifica-se pela ampla bibliografia produzida e disponível,
inclusive com estudos20 que abraçam a questão intertextual em crônicas, sobre a relação entre
o escritor e a realidade constante no suporte que as publicava, além da literatura específica
sobre as crônicas sob análise, sobretudo John Gledson, e sobre a questão abolicionista,
mormente pela obra de Sidney Chalhoub.
Todos esses elementos auxiliam na composição que se busca e são passos para se
chegar à conclusão pretendida: identificar a ideologia do jornal, dos autores que nele
escrevem, das notícias nele trazidas; revisar a crítica a respeito de Machado, em que são
apontadas características peculiares do autor; e reconstituir o cenário e os interlocutores da
época.
Assim, será necessário contato com outros documentos que serão considerados como
fontes paralelas, tais como outras obras de Machado e documentos pessoais e profissionais, na
medida em que se tornarem pertinentes para a pesquisa.
É nuclear, na pesquisa, a leitura conjunta das crônicas e do suporte em que se inserem.
Busca-se interpretar os documentos em questão da seguinte forma: (1) reconhecer
linguagens do discurso político, de acordo com o contexto (para tanto, é necessária a leitura
da literatura da época, entendendo como interpretar, identificar tendências ideológicas e
questionar o círculo hermenêutico; trata-se, enfim, de “sustentar que tal ou tal ‘linguagem’
existia como recurso cultural para determinados atores da história – e não como mero
resultado da ação de seu olhar interpretativo” (POCOCK, 2033: 33); (2) identificar as
possibilidades da linguagem através de sua recorrência; e (3) determinar se o emprego da
linguagem pelo autor era incomum, se trazia novidade – o que se pretende demonstrar no caso
das crônicas sob análise.
Enfim, identificar o uso de uma linguagem crítica pelo autor, que revelará, assim, um
discurso próprio, necessário para apreensão do debate jurídico da época pesquisada.
Conclusão
Anunciada a pluralidade de discursos como objeto de estudo e o cruzamento dessas
respectivas falas como produtor da cultura jurídica, foi exposta a base filosófica – direito
como linguagem – sobre a qual se ergue a metodologia desenvolvida – leitura sistemática e
comparativa a partir do suporte escolhido como fonte histórica.
Tendo em mente esses pressupostos, pode-se concluir que o universo jurídico, espaço
construído e transitado pela sociedade em geral, é semelhante a uma ponte arcada, sustentada
por diferentes pedras. Distintos discursos compõem uma mesma linguagem, formam uma só
cultura. O exame dessas falas e o estudo do amálgama, atrito ou sobreposição que lhes
relacionam é que instigam o pesquisador, e também o cidadão, a questionar de que forma se
produz uma cultura jurídica, não bastando apenas identificá-la.
Alguns terão se originado nas práticas institucionais da sociedade em questão: como os jargões profissionais de
juristas [...] e todos aqueles que se tornaram reconhecidos como integrantes da prática política e entraram para o
discurso político.” (POCOCK, 2003: 31). Creio que, nesse último nicho, encontra-se Machado.
20 No entanto, as pesquisas até agora compiladas possuem abordagem estritamente literária, não havendo ponte
com o discurso e cultura jurídicos, razão pela qual se tem a novidade neste estudo.
122 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA
ABOLICIONISTA
A partir da análise do material angariado, mormente com base nas teorias de Skinner e
Pocock, é possível esse questionamento, essa desconstrução discursiva e imagética da cultura
jurídica, ponte sustentada e atravessada pela diversidade.
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124 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO
DIREITO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
LAW MAGAZINES AS OBJECTS AND AS SOURCES FOR HISTORY OF LAW: SOME
THEORETICAL AND METHODOLOGICAL REMARKS
Mariana de Moraes Silveira *
Resumo: As revistas jurídicas vêm, nos últimos anos, recebendo atenção cada vez maior dos historiadores do
direito, seja como fontes, seja como objetos de seus estudos. É raro, entretanto, que as pesquisas da área
estabeleçam um diálogo com o domínio de estudos a que se convencionou chamar de história dos livros, das
edições e da leitura. É justamente essa aproximação que tentamos realizar neste texto, buscando ressaltar como
um olhar atento a elementos que extrapolam o conteúdo estritamente textual dos impressos pode ser frutífero e
instigante. Para tanto, realizamos, inicialmente, uma discussão teórico-metodológica sobre o estudo histórico das
revistas em geral. Interessa-nos, em especial, seu papel na difusão e na circulação de ideias. Em seguida,
analisamos algumas especificidades dos periódicos jurídicos, situando historicamente o momento de seu
surgimento e destacando cuidados especiais que devem pautar o trato com essas fontes. Finalmente, esboçamos
um breve panorama dos trabalhos já realizados a respeito das revistas de direito, buscando apontar direções ainda
a explorar.
Palavras-chave: Revistas jurídicas; Imprensa; Circulação de ideias.
Abstract: Law magazines have been, in the past few years, receiving a growing attention from law historians,
both as objects and as sources for their studies. It is quite rare, however, that researches in that area establish a
dialogue with the domain of studies known as history of books, of publishing and of reading. It is exactly this
approach that we try to develop in this text, seeking to emphasize how an attentive regard to elements that go
beyond the strictly textual contents of printed material can be fruitful and stimulating. We do so by initially
proposing a theoretical and methodological discussion about the study of magazines in general. The role they
play in disseminating ideas and making them circulate is of particular interest. We then analyse some
particularities of law periodicals, placing their moment of emergence in a historical perspective and putting in
relief special precautions that need to be taken when dealing with these sources. Finally, we outline a brief
overview of the works already made about law magazines, seeking to point out directions yet to be explored.
Keywords: Law magazines; Press; Circulation of ideas.
*
Mestranda da linha de pesquisa História e Culturas Políticas do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista do [email protected]
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
125
Introdução
Os impressos jurídicos vêm, nos últimos anos, ganhando uma atenção crescente por
parte dos historiadores do direito. No caso das revistas, isso se verifica com especial
intensidade desde o pioneiro colóquio La “cultura” delle riviste giuridiche italiane,
organizado por Paolo Grossi em 19831. A partir de então, encontros com objetivos
semelhantes e estudos, monográficos ou de maior fôlego, que atribuem ao periodismo jurídico
papel de protagonismo se multiplicaram por todo o mundo. As revistas deixaram de ser vistas
como meros repositórios de informações para estudos de teor variado e adquiriram estatuto
próprio, na condição de verdadeiros objetos de pesquisa e não mais apenas de fontes de onde
se retiram dados com outros propósitos. Reconheceu-se, ainda, sua centralidade na produção e
na difusão de ideias, a ponto de se poder dizer com bastante segurança que nenhuma história
do pensamento jurídico a partir do século XIX estará completa se ignorar os debates
desenvolvidos no interior desses impressos.
As reflexões teórico-metodológicas são, contudo, frequentemente deixadas de lado por
aqueles que se aventuram na área. Em especial, as contribuições do domínio de estudos a que
se convencionou chamar de história dos livros, das edições e da leitura são, se não ignoradas,
ao menos pouco visitadas ou subutilizadas pelos juristas2. Essa abordagem historiográfica,
que se consolidou principalmente a partir da França e que vem ganhando força desde, ao
menos, os anos 1980, trouxe avanços consideráveis para a compreensão das relações entre os
mais diversos artefatos editoriais, seus artífices, seus distribuidores e seus receptores – em
suma, todos os atores que se inserem no que Robert Darnton (1990, p. 113) chamou de
“circuito das comunicações”. De maneira extremamente sucinta, podemos dizer que esse
campo de estudos chamou atenção para o caráter limitado dos trabalhos que se restringiam a
discussões do conteúdo dos textos, ressaltando a importância de trabalhar com os suportes dos
impressos, a sua materialidade, e também com as redes sociais que os circundam, da produção
até a recepção. Desenvolveu-se, assim, uma visão mais sofisticada a respeito de uma série de
questões, sobretudo os trânsitos de ideias3.
Não se pode perder de vista, por outro lado, que também os historiadores dos livros
mantiveram notável distância em relação ao direito. Em artigo significativamente intitulado
Form and content in early modern legal books: Bridging the gap between material
bibliography and the history of legal thought, António Manuel Hespanha (2008) mostrou
como nem mesmo grandes obras de síntese sobre a imprensa na Europa dedicaram a atenção
devida às publicações de direito, vazio que o autor português se pôs a preencher com
indagações sobre os significados para o pensamento jurídico de mudanças materiais nos livros
1 As atas desse colóquio, voltado mais para o diálogo com os então editores de periódicos italianos que para
estudos propriamente historiográficos, foram publicadas em forma de livro ainda no mesmo ano. Ver: GROSSI
(org.), 1983.
2 Uma notável exceção é o trabalho que o professor Samuel Rodrigues Barbosa vem desenvolvendo com livros
jurídicos publicados no período imperial brasileiro. O título de sua comunicação neste V Congresso Brasileiro de
História do Direito já demonstra seu bom trânsito pela historiografia dos livros, da leitura e das edições:
Materialidade da comunicação jurídica. Também o texto de Sylvio Normand (1993) sobre as revistas de direito
do Québec, que será comentado em maiores detalhes oportunamente, apresenta uma tentativa de diálogo com
essa tradição historiográfica. No trabalho deste autor, é interessante destacar, desde já, a constatação que faz de
que muitos trabalhos de historiadores do direito acabaram por adotar métodos similares aos dos historiadores dos
impressos, sem, contudo, estabelecer um diálogo explícito com essa área do conhecimento (NORMAND, 1993,
p. 155).
3 Dois autores considerados clássicos da área são o francês Roger Chartier e o supracitado norte-americano
Robert Darnton. São boas introduções ao tema os artigos, do primeiro, Do livro à leitura (2000), mais focado na
questão da recepção dos textos, e, do segundo, O que é a história dos livros? (1990), onde se encontra detalhada
a mencionada discussão a respeito do circuito das comunicações. Para uma introdução mais sucinta e
pragmática, ver o pequeno livro de André Belo, História & Livro e Leitura (2002).
126 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
da área. Com este trabalho, pretendemos igualmente contribuir para essa aproximação,
refletindo sobre os usos historiográficos das revistas jurídicas a partir do instrumental da
história dos livros, das edições e da leitura. Não deixamos de ver razão no conselho de Grossi
a um grupo de estudiosos argentinos e espanhóis reunidos em Buenos Aires com o intuito de
discutir a produção periódica dos dois países, ao ressaltar que a busca de um caminho
metodológico perfeito para cercar tal objeto é contraproducente e que é fundamental recorrer
à empiria (in ANZOÁTEGUI [org.], 1997, p. 374). Consideramos, entretanto, que a reflexão
teórica somente tem a acrescentar aos estudos, podendo torná-los mais profundos e até mesmo
ajudar a evitar alguns percalços no caminho da pesquisa, o que justifica o esforço
empreendido neste texto. Não pretendemos, evidentemente, apresentar uma espécie de
“receita” de como trabalhar com revistas, mas tão somente apontar alguns caminhos e
levantar alguns questionamentos.
Em um primeiro momento, tecemos considerações sobre a teoria e a metodologia do
estudo histórico das revistas de uma forma geral. No interior do vasto “universo dos
impressos”, esses periódicos ocupam um lugar peculiar. Trata-se de um gênero de definição
por vezes difícil, que se configura como uma espécie de “meio-termo” entre a efemeridade do
jornal e a estabilidade do livro, abrangendo uma infinidade vertiginosa de formatos e de
conteúdos – o que torna indispensável uma reflexão mais detida a seu respeito. Em seguida,
discutimos algumas particularidades dos periódicos jurídicos e cuidados específicos que
devem pautar seus usos historiográficos. Procuramos, também, explicitar a historicidade desse
setor especializado da imprensa, discutindo o momento de seu surgimento e as transformações
por que passou o gênero ao longo do tempo. Finalmente e à guisa de conclusão, esboçamos
um breve panorama de alguns trabalhos que se dedicaram às revistas ligadas ao direito ou que
delas trataram de alguma forma, buscando apontar direções no debate e possibilidades ainda
por explorar.
1 Sobre o estudo histórico das revistas em geral
A primeira – e apenas aparentemente elementar – indagação que um historiador que se
propõe a trabalhar com revistas deve fazer é: o que é uma revista? Embora não tenhamos
dificuldades para, intuitivamente, visualizar um exemplo desse tipo de periódico, estabelecer
critérios objetivos para o definir e o diferenciar de outros impressos não é tarefa simples. Uma
primeira dificuldade se impõe por nem todo artefato da imprensa que traz o substantivo
“revista” em seu título o ser efetivamente, ao mesmo tempo em que muitas publicações feitas
sob denominações diversas (boletim, arquivos, anais, jornal...) acabam por se aproximar do
que podemos definir, ainda que precariamente, como revista.
Michel Leymarie, tendo em vista a insuficiência da presença do termo, propõe que uma
definição mais consistente do gênero leve em conta quatro aspectos: o formato, o conteúdo, a
periodicidade e a paginação. A partir desses elementos, o autor ressalta que uma primeira
distinção deve ser feita em relação ao jornal, pois ele e a revista são marcados por ritmos
diversos e não guardam a mesma relação com o tempo. De maneira geral, a grande imprensa
cotidiana se proclama neutra e busca dar conta dos acontecimentos que se sucedem
diariamente, enquanto as revistas propõem uma reflexão mais aprofundada e pautada na
opinião de seus colaboradores (LEYMARIE, 2002, p. 11). Em sentido semelhante, Ilka Stern
Cohen sustenta que, no caso brasileiro, consolida-se no início do século XX uma
diferenciação entre o jornal e a revista:
ao primeiro, normalmente diário e vespertino, caberia a divulgação da notícia, o
retrato instantâneo do momento, abrangendo desde as disputas políticas até o
descarrilamento do trem de subúrbio. À revista reservava-se a especificidade de
temas, a intenção de aprofundamento e a oferta de lazer tendo em vista os diferentes
segmentos sociais: religiosas, esportivas, agrícolas, femininas, infantis ou
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
127
acadêmicas, essas publicações atendiam a interesses diversos não apenas como
mercadorias, mas ainda como veículos de divulgação de valores, ideias e interesses.
(COHEN, 2008, p. 105)
Ana Luiza Martins destaca outros traços que permitem separar jornais e revistas: a existência,
nas últimas, de uma capa e da formulação de um programa, “divulgado no artigo de fundo,
que esclarece o propósito e as características da publicação” (MARTINS, 2008, p. 46)4.
Certa hierarquia de conteúdos pode ser observada entre os componentes do “universo
dos impressos”, em que a revista é colocada em uma posição de superioridade face ao jornal.
A afirmação de Georges Sorel, em carta endereçada a Edouard Berth em 1907, é emblemática
nesse sentido: “Os jornais fazem jornalismo; as revistas fazem cultura; não se pode deixar
confundir os papéis” (apud LEYMARIE, 2002, p. 11). A revista é percebida, entretanto, como
um artefato inferior ao livro, e não é raro que versões preliminares ou parciais de obras de
maior fôlego sejam publicadas inicialmente em suas páginas. Tendo em vista essas questões, e
retomando os elementos destacados por Leymarie, podemos, ainda que precariamente, definir
a revista como um impresso de formato intermediário (“entre o jornal e o livro”), com
conteúdo que enfatiza aspectos culturais, em textos, geralmente, mais profundos que os dos
jornais, com periodicidade regular, mas não cotidiana, e paginação relativamente extensa,
sobretudo em comparação com os jornais (mas em regra mais curta que a dos livros)5.
Mesmo traçada essa definição (ou outra que se adeque melhor a um contexto específico
de estudos), o historiador que se debruça sobre as revistas ainda encontra dificuldades em
função da grande variedade de temáticas, formatos e títulos. No amplo estudo que dedicou às
revistas paulistas do início da República, por exemplo, Ana Luiza Martins, classificando-as
segundo suas temáticas, identifica publicações “agronômicas”, pedagógicas, institucionais,
esportivas, religiosas, femininas, operárias, teatrais, cinematográficas e infantis (MARTINS,
2008, pp. 273-412). Ilka Stern Cohen ressalta, entre outros ramos específicos, as revistas de
variedades, as humorísticas, as de informação (COHEN, 2008, pp. 103-130). Michel
Leymarie sintetiza bem alguns pontos dessa diversidade das revistas: “As formas que elas
tomam são, com efeito, múltiplas, os assuntos tratados muito diferentes, os atores mais ou
menos numerosos, o público restrito ou amplo, o financiamento aleatório ou assegurado, a
relação com os editores variável, a duração de sua vida bem diversa” (LEYMARIE, 2002, p.
12). Essa grande diversidade remete à dinâmica de segmentação que acompanha o gênero
revista, tornando-se mais marcada e importante à medida que se expandem as tiragens e a
oferta de títulos. Compreender a segmentação é, segundo Martins, uma tarefa metodológica
essencial para o historiador que se dedica à imprensa, pois permite “inferir o público para o
qual [a revista] se dirige, identificando interesses, valores e técnicas de cooptação de
mercado” (MARTINS, 2003, p. 62). Isso faz com que as funções desempenhadas por cada
impresso sejam, por vezes, profundamente díspares, merecendo cada uma delas as devidas
reflexões.
Nesse sentido, embora pensada para o caso francês e devendo passar por adaptações
para poder ser aplicada ao Brasil, a tipologia feita por Thomas Loué nos parece bastante
operacional, permitindo estabelecer certa ordem em meio a essa vastíssima variedade. Esse
autor identifica três grandes polos entre as publicações: “erudito”, voltado para o
conhecimento acadêmico e científico e para aspectos institucionais, “estético”, ligado a
movimentos artísticos e de existência instável, e “geral”, onde estariam inseridas revistas que
4 O segundo aspecto, porém, pode ser relativizado, uma vez que, mesmo que ela não seja explícita, os jornais
também adotam uma linha editorial, não sendo o estabelecimento de um “programa”, portanto, uma
exclusividade da revista.
5 Para uma discussão um pouco diversa da definição do termo “revista”, iniciada com recurso a dicionários, ver
MARTINS, 2008. pp. 45-46.
128 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
procurariam atender a demandas sociais de maneira mais direta e que se focariam em assuntos
literários e políticos (LOUÉ, 2002, p. 58). No último polo, Loué está claramente se referindo
ao modelo das revistas de cultura instituído pela Revue des Deux Mondes, publicação
francesa lançada em 1829, que circulou intensamente em todo o mundo – inclusive no Brasil,
onde teria influenciado o formato de publicações como a Revista do Brasil, a Revista
Brasileira e a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (cf. MARTINS,
2008, pp. 75-77) – e que, sobretudo na segunda metade do XIX, era considerada leitura
obrigatória para os homens cultos. Talvez devêssemos acrescentar a essa tipologia as revistas
populares (ainda que a distinção entre “popular” e “erudito” seja alta e justamente criticável),
voltadas para um público ampliado, pensadas como leituras leves e rápidas, com frequente
recurso à ilustração, que, face aos baixos índices de alfabetização, viveram um momento de
especial vitalidade no Brasil do início do século XX (cf. LUCA, 2006, p. 121).
Ultrapassadas essas questões de definição e classificação, é preciso atentar para aspectos
mais propriamente teórico-metodológicos que devem ser mobilizados para pensar
historicamente as revistas. Tania Regina de Luca, em um feliz jogo de palavras, destacou as
possibilidades de se fazer história dos, nos e por meio dos periódicos, a partir da superação do
desprezo pela imprensa, que era vista como fonte capciosa e pouco confiável, em vigor até o
advento da chamada Nova História (LUCA, 2006, pp. 111-153). Especificamente sobre as
potencialidades dos usos historiográficos das revistas (mas, também, apontando para alguns
problemas que os envolvem), afirmou Ana Luiza Martins:
Fonte preferencial para pesquisas de teor vário, a revista é gênero de impresso
valorizado, sobretudo por “documentar” o passado através do registro múltiplo: do
textual ao iconográfico, do extratextual – reclame ou propaganda – à segmentação,
do perfil de seus proprietários àquele de seus consumidores (MARTINS, 2008, p.
21).
Trata-se, como a própria autora destaca, de uma visão ingênua, não devendo o historiador
prescindir do cuidado fundamental no trato com qualquer fonte: as revistas trazem uma versão
dos fatos, uma representação sobre o que aconteceu, não os acontecimentos em si ou uma
versão fiel deles. Devem, portanto, ser lidas como produções culturais, que jamais serão
neutras. Essa dimensão é especialmente relevante quando se leva em conta que as revistas
são, por excelência, lugares de trânsito de ideias e, por isso, estão comprometidas com a
difusão de determinados valores e visões de mundo.
Para uma análise plenamente frutífera das revistas no campo da história, além disso, não
é suficiente ater-se a seus índices ou ao conteúdo expresso nos textos que as compõem. É
preciso mobilizar o instrumental da história dos livros, das edições e da leitura, de forma a
entendê-las como artefatos editoriais e a compreender que a produção de sentidos que elas
engendram ultrapassa a literalidade de seus textos, abrangendo seus aspectos materiais, a
organização interna, seu projeto gráfico, as estratégias editoriais para sua difusão, entre
diversos outros fatores. Ana Luiza Martins sinaliza no sentido do caráter problemático dos
estudos que se limitam a citar trechos de textos de revistas, sem propor uma análise de
elementos que os extrapolam (e sem os quais é impossível obter uma verdadeira
compreensão):
A constância do uso de revistas como fonte histórica vem revelando que frases e
imagens de periódicos pinçadas aqui e acolá, descosturadas do mergulho em seu
tempo – vale dizer, no imaginário construído ao seu tempo – não iluminam
suficientemente o passado. A pertinência desse gênero de impresso como
testemunho do período é válida, se levarmos em consideração as condições de sua
produção, de sua negociação, de seu mecenato propiciador, das revoluções técnicas
a que se assistia e, sobretudo, da natureza dos capitais nele envolvidos (MARTINS,
2008, p. 21).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
129
De maneira semelhante, Olivier Corpet adverte:
Por sua complexidade, sua multidimensionalidade, uma revista requer uma
abordagem qualitativa extremamente fina, que não esqueça jamais que sua história
não pode se reduzir à análise de seus sumários e de seus índices; com efeito, existe
em todo projeto de revista uma dimensão própria à sua fabricação que impõe a
necessidade de considerar cada revista particular como um fato editorial total.
(CORPET, 2002, p. 7).
Os usos historiográficos das revistas se tornam, assim, mais instigantes e mais
completos quando é dada atenção à materialidade, à circulação e à recepção desses impressos.
Também se podem mostrar especialmente frutíferos estudos que busquem compreender as
relações entre os diferentes títulos, tentando descrever como eles se estabelecem uns face aos
outros, que disputas os permeiam e como eles se influenciam reciprocamente. Nesse sentido,
Thomas Loué fala, distorcendo intencionalmente a célebre expressão de Pierre Bourdieu, em
uma “ilusão monográfica” que poderia prejudicar trabalhos dedicados a títulos isolados
(LOUÉ, 2002, p. 58).
Preocupação semelhante pautou o recentemente publicado trabalho de Tania Regina de
Luca a respeito da Revista do Brasil, em suas diversas fases desenvolvidas entre 1916 e
1944, que não se limitou ao estudo de sua fonte-objeto, mas procurou apreendê-la na relação
com outros títulos que eram publicados no mesmo momento, de modo a explicitar “algumas
escolhas que um leitor contemporâneo poderia fazer no interior do universo das revistas
culturais e literárias” (LUCA, 2011, p. 8). Também o trabalho de Ana Luiza Martins (2008),
já amplamente citado neste texto, propondo-se a compor um vasto panorama das publicações
de São Paulo nas primeiras décadas republicanas, demonstrou o potencial altamente
esclarecedor de estudos que se dedicam à dinâmica editorial do gênero revista, e não a um
título isolado. Mesmo que se opte por trabalhar com esta última opção (o que, dadas as
limitações materiais que enfrenta a pesquisa, é frequentemente a atitude mais prudente), é
importante não perder de vista sua inserção em uma dinâmica editorial que envolve também
outras publicações.
Em meio a todas as questões que podem ser estudadas a partir desses periódicos, vêm
florescendo, em especial, trabalhos associados à história intelectual e a indagações sobre as
dinâmicas de circulação de ideias. As revistas são fundamentais para compreender as redes de
relações que se estabelecem entre os diferentes membros de grupos de intelectuais, bem como
para esclarecer a sua atuação no espaço público. Nesse sentido, afirma Jean-François Sirinelli:
As revistas conferem uma estrutura ao campo intelectual por meio de forças
antagônicas de adesão – pelas amizades que as subentendem, as fidelidades que
arrebanham e a influência que exercem – e de exclusão – pelas posições tomadas, os
debates suscitados, e as cisões advindas. Ao mesmo tempo que um observatório de
primeiro plano da sociabilidade de microcosmos intelectuais, elas são aliás um lugar
precioso para a análise do movimento das ideias (SIRINELLI, 1996, p. 249).
Carlos Altamirano também ressalta a importância das revistas como forma de conectar
os intelectuais, entendidos por esse autor como homens cuja arena se situa no domínio da
cultura (ALTAMIRANO, 2008, p. 14). Estudar os periódicos pode ser, ainda, a partir das
polêmicas que se instauram em suas páginas, uma maneira de perceber a atividade dos
homens de letras como uma “luta cultural, por meio da qual os intelectuais se definem uns em
relação aos outros ou uns contra os outros”, conforme propôs Christophe Charle (2001, p. 25).
Uma última consideração a respeito das revistas em geral, que é de especial importância
para refletir acerca de seu papel na história intelectual, remete-nos a um aspecto problemático
das pesquisas da área. Trata-se da questão das fontes a serem empregadas além dos
periódicos. Sabe-se que, em princípio, toda fonte histórica é capciosa e que, portanto, cruzar
130 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
as informações nela contidas com outras fontes pode ajudar a esclarecer muitas questões e
mesmo a desfazer equívocos. Se encontrar séries completas de alguns títulos já é tarefa árdua,
contudo, obter acesso aos arquivos das publicações é ainda mais difícil, praticamente
impossível em caso de revistas que não são mais editadas6. O recurso a tais arquivos pode
fornecer pistas preciosas sobre a fabricação da revista (por meio de contratos com tipógrafos e
livreiros, por exemplo), sobre sua recepção (cartas de leitores) e sobre as redes de
sociabilidade intelectual nela subentendidas (correspondências com colaboradores, outros
documentos referentes à atuação dos editores e redatores). O acesso à documentação própria
das revistas pode ser parcialmente suprida por outros acervos, como, no caso das publicações
jurídicas, os de faculdades de direito e aqueles que conservam material referente a literatos –
categoria em que se inseriam com grande frequência os juristas brasileiros até, ao menos,
meados do século XX. De toda forma, uma leitura minuciosa das próprias revistas,
preocupada com o formato da página, com as construções tipográficas empregadas, com sua
estrutura interna (e a consequente atribuição de importâncias relativas aos diferentes
conteúdos), com os elementos iconográficos, com os diversos nomes nelas envolvidos, já
pode representar significativos avanços face a estudos que se ocuparam pura e simplesmente
de seus textos. Feitas todas essas considerações genéricas, passamos agora a discutir as
especificidades e possibilidades de estudo do periodismo jurídico.
2 O periodismo jurídico: especificidades
As publicações ligadas ao direito ocupam, dentro do amplo espectro das revistas que
delineamos brevemente, uma posição muito particular. Para começar a compreendê-la, é
preciso atentar para o momento de sua emergência e para as transformações por que o gênero
passou ao longo do tempo, o que permite apreender essas publicações em sua historicidade
própria7. Os primeiros sinais de um esforço editorial continuado com foco no direito podem
ser vistos na França das últimas décadas do século XVIII, quando surgiram diversas coleções
dedicadas à publicação de causas célebres. Títulos mais completos e com uma crescente
preocupação teórica surgiram de maneira quase simultânea nas duas vertentes dos Alpes e nas
duas margens do Reno, ao longo das primeiras décadas do oitocentos.
De maneira, à primeira vista, contraditória, nota-se que os impulsos para o
florescimento dessa literatura foram bastante distintos. Na França, as publicações pioneiras
estabeleceram um importante diálogo com o movimento de codificação, fato que se tornaria
uma constante na história das revistas jurídicas, que, sobretudo a partir de meados do século
XIX, assumiriam importante papel na escrita de novas legislações e, de maneira
complementar, teriam sua expansão estimulada nessas conjunturas8. Na Alemanha, ao
contrário, o periodismo jurídico surge em aberta oposição ao movimento codificador, tendo
6 Nesse sentido, cabe mencionar a espécie de lamento de Victor Tau Anzoátegui, nas palavras introdutórias do
colóquio que organizou acerca das revistas jurídicas argentinas e espanholas: “Tampouco obtivemos a
colaboração ativa das principais revistas jurídicas argentinas atuais, cujas raízes se fundam no lapso examinado
neste Seminário. Permito-me assinalá-lo com franqueza: mais que o orgulho por mostrar suas ilustres origens,
prevaleceu em alguns o temor de abrir seus arquivos aos estudiosos.” (ANZOÁTEGUI, 1997, p. 17)
7 Não é nosso objetivo traçar um histórico detalhado do surgimento e do desenvolvimento dos periódicos
jurídicos aqui mencionados, mas apenas obter uma noção geral sobre os motivos que levaram a seu aparecimento
e as transformações por que passaram ao longo do século XIX e das primeiras décadas do século XX.
Explicações mais detalhadas ou mais específicas sobre cada país podem ser encontradas nos diversos trabalhos
citados neste trecho e descritos sucintamente no item 3, infra.
8 Ver os comentários de Antonio Serrano Gonzalez (1997, pp. 84-87) sobre o impulso dado às então recémnascidas revistas jurídicas espanholas com o advento do Código Penal de 1848, que foi vivamente debatido em
suas páginas. Também no Brasil das décadas de 1930 e 1940 isso se observa, tendo em vista que se tratou de um
momento em que se desenvolveram amplas reformas legislativas, que privilegiaram o modelo do código, e
também um contexto de significativa expansão na oferta de periódicos jurídicos.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
131
como título principal a Zeitschrift für Geschichtliche Rechtwissenschaft, lançada por Savigny
em 1815 como verdadeira tribuna para a sua Escola Histórica do Direito9. A aparente
contradição se desfaz, entretanto, quando se identifica o traço comum de ambos os
movimentos: a busca, de raízes iluministas, pela racionalização e pela secularização do
direito, presente tanto no esforço de escrever uma lei sistemática com pretensões de
completude quanto na proposta de seu estudo a partir de circunstâncias históricas. Nesse
sentido, é muito significativo que Savigny, embora se constitua em um crítico da lei escrita,
utilize-se com empenho da palavra escrita para difundir suas ideias10.
Portugal, Espanha, Argentina e Brasil apresentam histórias bastante semelhantes quanto
ao surgimento das revistas jurídicas, que ocorreu em todos esses países de maneira mais
tardia, nas décadas de 1830 ou 1840, momento em que os debates acerca da codificação, bem
como as iniciativas de organização profissional, intensificam-se, de maneira geral, em todos
esses territórios nacionais11. Quanto ao caso argentino, merece atenção a periodização
estabelecida por Alberto David Leiva, que buscou compor uma visão de conjunto da trajetória
da imprensa jurídica do país até cerca de 1950, identificando quatro momentos distintos. O
primeiro deles, que durou da fundação do periodismo rio-platense em 1801 até meados da
década de 1830, seria marcado pela inserção de conteúdos jurídicos em publicações de escopo
mais geral, notadamente com a publicação de colunas nos jornais de maior circulação. O
momento seguinte, por ele chamado de “periodismo forense”, teria sido marcado por
tentativas ainda incipientes de separação da imprensa genérica e por publicações pouco
reflexivas, constituídas, não raro, pela mera transcrição de julgados. Esta fase teria durado até
o final da década de 1850, quando a emergência de publicações com preocupações
doutrinárias mais explícitas, que passaram a ser verdadeiros lugares de debates programáticos,
levou a Argentina a ingressar na era das revistas jurídicas propriamente ditas. O seguinte e
final passo seria dado apenas no alvorecer do século XX, por meio do “triunfo da
especialização”. Atestando a “maturidade dos estudos jurídicos” nos país, surgiu um volume
crescente de títulos dedicados exclusivamente a ramos específicos do direito, sem que para
isso deixassem de emergir empreendimentos com pretensões mais gerais, como a Revista
Jurídica Argentina La Ley, fundada em 1936 e ainda hoje editada (cf. LEIVA, 1997, pp. 5775). Acreditamos que essa trajetória, feitas as devidas adaptações a cada caso histórico
concreto, pode ser encontrada de maneira semelhante em outros países e, assim, ajudar na
compreensão do percurso das revistas jurídicas para muito além das fronteiras portenhas.
No Brasil, o nascimento do periodismo jurídico propriamente dito se deu, como
sugerido acima, em 1843, com a Gazeta dos Tribunais, publicada no Rio de Janeiro pelo
Conselheiro Francisco Alberto Teixeira de Aragão, que se utilizaria das páginas impressas
para militar a favor da criação do Instituto dos Advogados Brasileiros, o que efetivamente
ocorreu ainda no mesmo ano (cf. FORMIGA, 2007, p. 108). Não se pode perder de vista,
entretanto, que já havia, anteriormente, como no caso argentino, publicações com teor jurídico
em meios de comunicação de escopo mais geral, sobretudo em jornais. Essas colunas davam
ênfase à legislação e às decisões judiciais, trazendo raramente textos de caráter teórico. É
digna de nota, nesse sentido, a seção oficial do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro,
durante muito tempo um valioso instrumento de trabalho para os bacharéis brasileiros.
9 Agradeço ao professor Airton Seelander pela observação a respeito da atuação de Savigny como editor de uma
pioneira revista alemã feita no debate após a minha exposição, o que me levou a rever a afirmativa que havia
inicialmente formulado, estabelecendo uma apressada e falsa ligação estreita entre o surgimento dos periódicos
jurídicos e a codificação.
10 Ver o significativo texto de apresentação da Zeitschrift für Geschichtliche Rechtwissenschaft, reproduzido
com a devida tradução em GONZALEZ, 1997, p. 79.
11 Para todo o esboço histórico acima, salvo menção em contrário, cf. CHORÃO, 2002, pp. 36-62; FORMIGA,
2010, pp. 35-45; RAMOS, 2010, pp. 64-67
132 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Tampouco podem ser esquecidas as publicações oficiais, iniciadas por diversos órgãos de
governo com o intuito primordial de dar publicidade às normas que elaboravam, mas que
cediam eventual espaço para atos de cunho jurídico, como comunicados de Tribunais,
decisões judiciais consideradas importantes e editais (cf. FORMIGA, 2010, pp. 50-51). Ainda
que constituam antecedentes importantes, é necessário demarcar a diferença entre esses
impressos e aquilo que estamos chamando de periodismo jurídico: está ausente naqueles a
intenção de se dedicar exclusivamente a uma área de conhecimento (no caso, o direito) e de
contribuir para seu desenvolvimento que é constitutivo do surgimento destas publicações.
Ao longo da segunda metade do século XIX, o gênero se expandiu e se consolidou,
embora tenham sido muitos os títulos de existência efêmera ou de publicação irregular. Em
1881, o catálogo da célebre exposição de história do Brasil realizada pela Biblioteca Nacional
listava ao menos 17 periódicos relacionados ao direito, publicados no Rio de Janeiro, em São
Paulo e no Recife12. Do inventário composto por Armando Soares de Castro Formiga (2010),
constam 53 títulos lançados entre 1843 e 1900 por todo o país. De uma maneira geral (e
novamente semelhante ao caso argentino), as seções de doutrina eram, inicialmente,
rarefeitas. Somente se expressou uma preocupação científica mais explícita, dando ensejo a
revistas compostas quase que exclusivamente por artigos teóricos, no início da República,
quando a reforma dos cursos de direito empreendida por Benjamin Constant permitiu a
fundação de faculdades livres, com a obrigatoriedade de produção de revistas por suas
congregações (cf. FORMIGA, 2010, p. 51).
Embora não disponhamos de informações específicas sobre as três primeiras décadas do
século XX, tudo leva a crer que a expansão e a consolidação do periodismo jurídico
prosseguiram e se aprofundaram. Sinal claro disso é o fato de dois dos principais títulos
brasileiros da área, ainda hoje publicados e altamente respeitados, além de terem dado origem
a bem sucedidos empreendimentos editoriais, haverem sido fundados nesse contexto: a
Revista Forense, em Belo Horizonte (1904; a redação se muda para o Rio de Janeiro em 1936,
onde continua a ser sediada), e a Revista dos Tribunais, em São Paulo (1912). Na passagem
da década de 1930 para a de 1940, há uma nítida expansão do setor, com diversos novos
títulos sendo ofertados13 e um notável aumento na paginação de muitos dos já existentes, ao
menos até o advento das dificuldades no acesso ao papel impostas pela guerra europeia.
Dois fatos são dignos de nota nesse contexto. O primeiro deles é o surgimento de uma
série de publicações oficiais das seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, que acabara
de ser organizada por força de um decreto de dezembro de 1930, após fortes reivindicações
que remontam, ao menos, até a fundação do Instituto dos Advogados Brasileiros – e, portanto,
ao momento de surgimento do periodismo jurídico no país. O segundo remete-nos à trajetória
desse setor da imprensa como definida por Alberto David Leiva (1997) para o caso argentino,
mais especificamente à sua etapa final, por ele chamada de “o triunfo da especialização”, sinal
da maturidade do conhecimento jurídico, sobretudo em sua matriz mais acadêmica. Ao
contrário do que ocorre no país vizinho, em que já nas décadas de 1900 e 1910 começam a se
multiplicar títulos dedicados a setores específicos do direito (cf. LEIVA, 1997, pp. 72-75),
somente na década de 1930 essa barreira será rompida no Brasil, com títulos como a Revista
de Direito Penal, lançada em 1933 por iniciativa da Sociedade Brasileira de Criminologia14.
12 Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. v. IX, 1881-1882. pp. 422-447.
13 Em levantamentos ainda preliminares que estamos realizando sobre os anos de 1936 a 1943, encontramos
mais de 50 títulos sendo editados no Brasil, cifra que se equipara à quantidade de revistas encontrada por
Armando Soares de Castro Formiga (2010) em um recorte temporal de quase 60 anos. Isso dá uma boa medida
da expansão da imprensa jurídica nessa conjuntura.
14 Embora tenha surgido em 1906 uma publicação intitulada Revista de Direito Civil, Comercial e Criminal, não
podemos considerá-la uma revista especializada, tendo em vista que abarcava os três grandes ramos do direito
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
133
Desconhecemos trabalhos que tratem da trajetória do periodismo jurídico nacional nos
anos subsequentes, mas um breve olhar para os atuais catálogos de periódicos correntes
permite perceber que essa especialização se aprofundou, a ponto de ser praticamente
impossível, hoje, encontrar uma área jurídica tida como autônoma (ao menos nos currículos
dos cursos superiores de direito) ou que tenha aspirações de ser considerada como tal que não
disponha de uma publicação própria. Por outro lado, não se podem negligenciar as
transformações que as inovações tecnológicas, notadamente a internet e o crescente uso de
suportes digitais para a difusão de textos, impuseram à imprensa em geral e às revistas
jurídicas em particular. Uma das funções primordiais destas, a de compilar julgados
empregáveis em peças redigidas no exercício da advocacia, foi em grande medida substituída
pelas quase instantâneas buscas de jurisprudência disponibilizadas online pelos Tribunais de
Justiça. Isso não implicou, entretanto, o ocaso completo das revistas jurídicas, que souberam
se adaptar (muitas delas migraram para o formato digital ou, ao menos, passaram a ser
editadas também eletronicamente) e sobrevivem, por vezes até mesmo com a chancela oficial,
como ocorre com aquelas que são consideradas repositórios autorizados de jurisprudência15.
Retomando a questão da especialização, é importante perceber como ela nos remete à
utilidade de estabelecer tipologias para estudar esses periódicos16, o que pode ajudar a
alcançar uma compreensão tanto do conjunto quanto da segmentação das revistas jurídicas.
Armando Soares de Castro Formiga propõe, para os periódicos publicados no Brasil
oitocentista, uma classificação baseada em dois critérios distintos: quanto às pessoas que
realizaram o projeto e quanto à linha editorial adotada. Em relação à primeira categoria, os
títulos poderiam ser projetos que resultaram da livre iniciativa editorial; projetos científicos
ou publicações oficiais das faculdades de direito; projetos acadêmicos, empreendidos pelos
estudantes de direito; projetos associativos, constituídos como órgãos oficiais de grupos
diversos. Quanto ao segundo critério, haveria: gazetas, dedicadas primordialmente à
publicação oficial dos tribunais e dos atos normativos; títulos doutrinais, focados nos artigos
teóricos; revistas jurisprudenciais, dedicadas unicamente à divulgação de julgados;
publicações completas, que reuniam doutrina, jurisprudência e legislação, além de resenhas
noticiosas e bibliográficas (FORMIGA, 2010, p. 52).
Para o contexto dos anos 1930 e 1940, que temos estudado em maior detalhe,
arriscamo-nos a propor uma classificação mais sucinta, semelhante aos grandes “polos”
identificados por Loué nas publicações francesas. A nosso ver, a consolidação do gênero no
Brasil no período tornou um tanto redundantes algumas das categorias de Formiga, que
podem ser agregadas sem prejuízos analíticos. Mencionemos dois exemplos: a quase
integralidade de títulos que se dedicam preponderantemente à doutrina está ligada a
faculdades ou a associações de juristas; ao longo do tempo, a distinção entre títulos
jurisprudenciais e doutrinais tendeu a se diluir, de forma que até mesmo as publicações mais
centradas nas decisões judiciais, como a Revista Brasileira de Jurisprudência e a Revista dos
Tribunais contavam com seções, ainda que bastante restritas, de artigos teóricos.
Propomos, assim, que a tipologia se resuma a publicações institucionais, revistas
especializadas e revistas jurídicas de informação geral. O primeiro grupo, marcado por uma
preocupação precípua em fortalecer a associação responsável pela publicação, era composto
então existentes e reproduzia, em verdade, conteúdos atinentes às mais diversas questões jurídicas. Prova de seu
caráter generalista é o fato de ser frequentemente citada em outras publicações apenas como Revista de Direito.
15 Ver, por exemplo, o artigo 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil (Lei 5.869, de 11 de janeiro de
1973).
16 Não tomamos as tipologias como “camisas de força” ou como categorias estanques, mas como instrumentos
analíticos que podem auxiliar na compreensão do fenômeno histórico em estudo, sem ignorar que as fronteiras
entre cada um dos termos da classificação são, muitas vezes, fluidas.
134 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
inicialmente pelos já mencionados e pioneiros títulos que se relacionaram ao Instituto dos
Advogados Brasileiros e por revistas ligadas a faculdades de direito. Ao longo da década de
1930, outras instituições começaram a publicar seus próprios periódicos, como a Associação
Paulista do Ministério Público, que apresentou o primeiro número de Justitia em 1939, e a
então recém-fundada Ordem dos Advogados do Brasil, que esteve, por meio de suas
diferentes seccionais, ligada a uma já mencionada profusão de publicações. As revistas
especializadas, por sua vez, dedicavam-se a ramos específicos do direito e, como já
mencionado anteriormente, tiveram surgimento tardio no Brasil, ganhando força justamente
nas décadas de 1930 e 1940. Um caso significativo é o da Legislação do Trabalho, fundada
em 1937, e que, a exemplo das revistas Forense e dos Tribunais, ainda hoje é publicada e deu
origem a um bem-sucedido empreendimento editorial. As revistas jurídicas de informação
geral, finalmente, são aquelas que buscam, em suas páginas, dar conta de todos os assuntos
relacionados ao direito (ou, ao menos, da maior quantidade possível deles), não se
restringindo a preocupações institucionais ou a áreas específicas do conhecimento jurídico.
Na classificação proposta por Loué, as revistas jurídicas podem ser inseridas sem
grandes dificuldades no “polo erudito”, tendo em vista sua relação com uma área específica
do conhecimento – e uma área em que a “cultura geral” e as habilidades retóricas são
profundamente valorizadas –, mas é preciso atentar para o caráter pragmático, de fonte
imediata de renda, de que se revestem. Isso se deve, em grande medida, ao protagonismo que
os atos da leitura e da escrita assumem na atividade de todos aqueles que, de alguma forma,
lidam com o direito. A profissão dos advogados é, segundo António Manuel Hespanha,
“basicamente ler e escrever”, uma “produção industrial de textos”. Os juristas, em sua
atividade comunicativa, “compartilham intensivamente os dois universos do manuscrito e do
impresso, tanto como escritores quanto como leitores” (HESPANHA, 2008, p. 27). É preciso,
portanto, compreender o direito como uma ramificação da “economia escriturística”, para
utilizar a expressão de Michel de Certeau (1990) – e as revistas jurídicas são dispositivos
intelectuais essenciais para o fazer, na medida em que representam reuniões e seleções desses
textos industrialmente produzidos, colocados em relação uns com os outros segundo lógicas
estabelecidas por seus editores.
As revistas jurídicas assumiam – e ainda assumem, embora em menor escala, em função
da já mencionada disponibilidade, hoje, de ferramentas para realizar pesquisas de decisões
judiciais na internet –, portanto, um papel central na vida profissional daqueles que a
adquiriam, estando dotadas de uma finalidade prática mais imediata que comumente se
observa nas revistas de disciplinas científicas. O advogado, o juiz, o promotor de justiça,
enfim, aquele que lida com o direito busca nessas páginas, antes de tudo, subsídios para a
ação. No interior dos periódicos jurídicos, os mais variados operadores do direito encontram
meios diretamente empregáveis na prestação de serviços a clientes. Desenvolver
adequadamente as atividades no foro pressupõe conhecer não só as leis, mas também se
colocar a par das últimas decisões proferidas pelos tribunais, bem como das interpretações
mais autorizadas da lei, emanadas dos jurisconsultos. É justamente esse universo plural do
direito que as revistas buscam reunir, organizar e levar a conhecer tanto para aqueles que se
dedicam a seu estudo especulativo quanto para os que lhe buscam conferir traduções práticas.
Não por acaso, os títulos, principalmente aqueles que têm a pretensão de apresentar
informações gerais sobre o direito, costumam se organizar em torno de uma espécie de
“trilogia estrutural” do direito: a legislação, a doutrina e a jurisprudência.
O desempenho dessas importantes funções profissionais permitiu que muitos dos títulos
adquirissem uma estabilidade notável, muito diversa da efemeridade que marcou, por
exemplo, diversas publicações ilustradas do início do século XX. Essa estabilidade permitiu,
em muitos casos, a adoção de uma paginação extensa e que a publicação fosse feita de
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
135
maneira absolutamente regular17. Além disso, tendo em vista a relação muito peculiar que o
direito estabelece com o tempo, uma vez que é um discurso que busca assegurar a estabilidade
das relações sociais (ou, em termos mais próprios a essa área do conhecimento, a “segurança
jurídica”), há um mercado significativo de segunda mão para essas revistas, que foram até
mesmo reeditadas em alguns momentos posteriores, muito em função da tentativa,
especialmente forte em faculdades de direito, de estabelecer coleções completas. Por esse
motivo, a atenção a aspectos que extrapolam o texto, como carimbos de bibliotecas,
assinaturas e anotações de leitores, notas da tipografia, pode ser especialmente reveladora
para o historiador, dando-lhe pistas da circulação ou mesmo da recepção dessas revistas. É
preciso estar atento, também, aos diferentes contextos em que um mesmo texto, embora
produzido em um momento histórico definido, foi lido e apropriado.
Jean-Paul Barrière estuda as revistas jurídicas francesas da Belle Époque a partir de uma
perspectiva profissional, qualificando-as como “um gênero à parte”. Nessa perspectiva, traça
distinções entre revistas técnicas, ligadas mais propriamente a uma “dimensão prática”,
especializadas, que seriam mais abrangentes e interessariam tanto aos profissionais quanto aos
particulares, e profissionais, primordialmente relacionadas às questões internas ao ofício
(BARRIÈRE, 2002, p. 270). Ana Luiza Martins insere publicações paulistas como a Revista
da Faculdade de Direito de São Paulo entre os periódicos institucionais (MARTINS, 2008,
pp. 324-329). Os aspectos técnico-científicos, profissionais ou institucionais dos periódicos
ligados ao direito são, contudo, em muitos momentos, insuficientes para sua compreensão. No
caso brasileiro, tendo em vista que, ao menos até o início da República, ainda que não
atuassem propriamente em seu âmbito, inúmeros “homens de letras” eram bacharéis em
direito – e é comum encontrar nomes célebres por sua produção em outras áreas, como a
literatura, o pensamento social ou mesmo a história, entre os autores dos textos das revistas
jurídicas –, parece-nos que a divisão entre os aspectos técnico, especializado e profissional
das revistas feita por Barrière não se aplica. A atuação intelectual ampliada dos nossos
bacharéis torna razoável supor que os periódicos jurídicos brasileiros desempenharam, ainda
que em diferentes graus, as três funções simultaneamente.
Isso se reforça pelas atribuições que os juristas foram, ao longo do tempo, chamados a
assumir na construção de projetos de Estado, em sua organização legal e na implantação de
políticas públicas, o que torna o conteúdo político dessas revistas um fator que não pode ser
negligenciado. Por outro lado, os indivíduos com formação em direito foram também
responsáveis por importantes críticas aos excessos da autoridade estatal, principalmente
quando rompidos valores a eles muito caros, como a legalidade. Embora seja inegável que a
linguagem por vezes impenetrável do direito restringe, em grande medida, o público desses
impressos, não se pode, contudo, lançar a eles um olhar muito estreito. As páginas dos
periódicos jurídicos são lugares que permitem acompanhar não só os rumos do conhecimento
jurídico propriamente dito, mas tomadas de posições face às grandes questões discutidas no
espaço público, atuações as mais diversas junto às instâncias do poder e até mesmo
concepções de história, de sociedade, de Estado.
Todos esses fatores que procuramos destacar nos levam a perceber como as revistas
jurídicas podem ser uma fonte-objeto de grande valia para as mais diferentes questões da
história do direito. Antes de tudo, elas são um observatório privilegiado do pensamento
jurídico. Tendo em vista sua temporalidade específica, mais curta que a dos livros, porém
mais longa que a dos jornais, o que possibilita, simultaneamente, reflexões relativamente
17 Isso não se observa, entretanto, nas revistas mais propriamente institucionais, menos voltadas para a atuação
profissional dos juristas. É o caso, por exemplo, da Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, marcada por
diversas descontinuidades, um formato irregular e muitos atrasos em suas publicações.
136 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
aprofundadas e respostas rápidas, são os lugares por excelência das polêmicas intelectuais.
Além disso, as revistas permitem explorar tensões políticas, trânsitos de ideias, reivindicações
de uma área específica do conhecimento, a especialização das diferentes áreas jurídicas, a
organização de uma profissão... Trata-se de um vasto campo de estudos, rico em direções
ainda por explorar, apesar da crescente produção bibliográfica a seu respeito.
3 Historiografia e revistas jurídicas: estudos e possibilidades
Optamos por não dar a este texto uma conclusão em moldes tradicionais, mas sim por
encerrá-lo compondo um breve panorama dos trabalhos que, de diversas formas, trataram das
revistas jurídicas nos últimos anos. Muitos deles já foram repetidas vezes citados nesta
exposição, porém consideramos que um esforço de síntese, ainda que inevitavelmente
incompleto e precário, pode ajudar a perceber lacunas e caminhos que ainda merecem ser
seguidos. Esperamos, também, contribuir para que pesquisadores que começam a se
embrenhar pelo cipoal das revistas jurídicas se sintam menos perdidos na busca por
bibliografia específica18.
Conforme sugerimos no início deste texto, o colóquio La “cultura” delle riviste
giuridiche italiane, organizado por Paolo Grossi em Florença em 1983, pode ser considerado
uma espécie de momento fundador do interesse dos historiadores do direito pelas revistas
jurídicas. Suas atas foram publicadas em forma de livro ainda no mesmo ano, como o volume
13 da Biblioteca per la storia del pensiero giuridico moderno. Apesar do caráter pioneiro
que lhe é atribuído, esse encontro não foi propriamente historiográfico, mas mais voltado para
a reflexão acerca do gênero e de suas relações com a cultura. Em 1987, a revista do centro de
estudos comandado por Grossi, Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico
moderno, dedicou a integralidade de seu volume 16 a uma série de estudos sobre as
publicações especializadas italianas entre 1865 e 194519. No ano seguinte, a França ganhava
uma coletânea semelhante, intitulada La culture des revues juridiques françaises e
organizada por André-Jean Arnaud. Em 1994, era a vez de juristas argentinos e espanhóis se
reunirem em Buenos Aires com o intuito de discutir a produção dos dois países. As atas desse
encontro somente tomariam a forma de livro (La revista jurídica en la cultura
contemporanea) em 1997, sob a direção de Victor Tau Anzoátegui. Deve-se mencionar,
ainda, a ampla iniciativa de digitalização de periódicos jurídicos do Max-Planck-Institut für
europäische Rechtsgeschichte, que também vem incentivando pesquisas na área20.
Em outra vertente, desenvolveram-se alguns estudos individuais que buscaram sintetizar
a produção de um país ou de uma região, notadamente ao longo do século XIX. É o caso de O
periodismo jurídico português do século XIX, de Luís Bigotte Chorão (2002), de
Periodismo Jurídico no Brasil do Século XIX, de Armando Soares de Castro Formiga
(2010; obra assumidamente inspirada na primeira) e do artigo Profil des périodiques
juridiques québécois au XIXe siècle, de Sylvio Normand (1993). Este último merece
destaque por ser um dos poucos trabalhos que encontramos que estabelece um diálogo direto
com a história dos livros, das edições e da leitura e que se faz efetivamente influenciar por
essa corrente historiográfica, o que se nota já na divisão do texto: “a produção”, “a
confecção”, “a difusão”. Também pode ser classificada entre os empreendimentos mais
18 Excluímos as referências completas desta seção para facilitar sua leitura. Todas as obras mencionadas estão,
contudo, devidamente citadas ao fim do texto.
19 Ambas as obras encontram-se disponíveis para download na página do centro: http://www.centropgm.unifi.it.
20 Barreiras de caráter linguístico nos impedem de tecer considerações mais precisas acerca da produção desse
instituto. Ver, porém, o texto de apresentação do projeto de digitalização, disponível também em inglês:
http://www.rg.mpg.de/en/bibliothek/digitalisierung-zeitschriften/
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
137
abrangentes a tese de doutorado de Jefferson de Almeida Pinto, defendida em 2011 na
Universidade Federal Fluminense, que estudou as relações entre a religião e as ideias jurídicas
nos periódicos mineiros editados entre 1890 e 1955. Na mesma instituição, Henrique César
Monteiro Barahona Ramos defendeu em 2009 dissertação sobre um título específico: O
direito, publicação iniciada no Rio de Janeiro em 1873. Também merecem menção dois
artigos franceses: Un genre à part: les revues juridiques professionelles, de Jean-Paul
Barrière, e L’impossible projet d’une revue de la Belle Époque. L’émergence d’un juriste
scientifique, de Fatiha Cherfouh
Além de todos esses trabalhos que tomaram as revistas jurídicas como objetos centrais,
devem ser mencionados os empreendimentos, sobretudo de historiadores de métier, que se
utilizam desses impressos como fontes. Isso se observa, por exemplo, no estudo que Joseli
Maria Nunes de Mendonça (2007) produziu sobre Evaristo de Moraes, em que são analisados
diversos textos publicados por ele em periódicos jurídicos, bem como sua efêmera experiência
como editor do Boletim Criminal Brasileiro. Outro uso dos impressos jurídicos pode ser
visto investigação sobre a noção de moralidade sexual na primeira metade do século XX
empreendida por Sueann Caulfield (2000), que se vale de uma vasta gama de revistas
jurídicas. Em Pajens da Casa Imperial, de Eduardo Spiller Pena, encontram-se muitos dos
títulos pioneiros de nossa produção jurídica especializada, inclusive a inaugural Gazeta dos
Tribunais. Mencionemos, finalmente, a breve discussão que Ana Luiza Martins faz a respeito
de títulos como a Revista da Faculdade de Direito de São Paulo e São Paulo Judiciário no
capítulo “O saber científico e as revistas institucionais” de seu Revistas em Revista (2008,
pp. 324-339).
Como se pode ver, as possibilidades de estudos são múltiplas e diversas. Afirmamos
com relativa segurança que, ainda que já se tenham passado quase três décadas desde o
inaugural colóquio convocado por Grossi, as revistas jurídicas estão, felizmente, longe de seus
últimos suspiros historiográficos. Uma reflexão teórica consistente, levando a um efetivo
diálogo com o instigante domínio da história dos livros, da leitura e das edições – o que aqui
não fizemos mais que esboçar – poderá trazer grandes contribuições a essa historiografia. É
muito provável que, entre composições tipográficas e corpos editoriais, escondam-se segredos
que os textos, teimosamente, insistem em guardar. Ao historiador do direito, incumbe a nem
sempre fácil, mas muitas vezes gratificante tarefa de decifrá-los.
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Direito
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
141
SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA
INQUISITORIAL SYSTEM AND THE INFLUENCE IN THE FORMATION OF
CRIMINOLOGY
Fernanda Martins*
Resumo: O presente trabalho pretende traçar um perpasso histórico sobre a construção do Sistema Inquisitorial
como uma forma processual, cuja influência alcançou a América e a produção intelectual brasileira, através da
inserção da criminologia positivista. Visa também demonstrar como a política excludente e preconceituosa do
processualismo inquisitorial na sua formação medieval determinou para o desenvolvimento da atualmente
conhecida Criminologia Lombrosiana. É válido, ainda, determinar que o presente artigo aborda a postura do juiz
inquisidor como uma marco teórico para a construção da figura dos magistrados atuais.
*
Pós-graduanda em Ciências Penais – Universidade Anhanguera – LFG. Graduada em História pela
Universidade Federal de Santa Catarina e em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí. Atualmente exerce a
profissão de advogada criminalista. E-mail: [email protected]
142
SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA
Introdução
O presente artigo propõe identificar a expressão “juiz inquisidor” a partir da sua
construção histórica, abordando uma construção conceitual pautada, sobretudo, na História do
Direito, a qual identificará sobre o que se tratava o processo inquisitorial no contexto da sua
existência, ou seja, no período medieval.
Após uma conceitualização abrangente no tocante ao sistema inquisitorial como forma
processual, identificaremos a inserção no Brasil desse método de desenvolver o processo, a
partir das visitações da Inquisição às colônias portuguesas, trabalhando, ainda, com os
porquês de terem sido necessárias tais intervenções católicas no Brasil.
Será também demonstrado o surgimento da criminologia como resposta a essa forma
processual, já que os primeiros estudos criminológicos focavam na segregação e na
identificação do outro como meio de constituir uma razão ao problema da criminalidade.
Finalizaremos o presente estudo com a explanação sobre a função do juiz inquisidor e
sobre os atos por este praticados como inerentes a essa titulação.
O Processo Penal e o Direito Penal, na forma que se conhece atualmente, são resultados
de um processo histórico, cuja influência é proveniente de diversos movimentos jurídicos
ocorridos ao longo dos séculos na parte Ocidental do mundo. Entre eles, podemos citar a
Retórica grega, o Direito germânico regido pelo jogo de prova, o Inquérito grego, a renovação
do Inquérito medieval e a Reforma Iluminista de se pensar o Direito e o desenvolvimento do
sistema liberal jurídico (FOUCAULT, 2003, p. 53 a 78).
Abordaremos aqui o Inquérito medieval como fonte de análise para se entender o
Sistema Inquisitorial1, o qual começa a se consagrar a partir da Alta Idade Média, e cuja
formação provém de um movimento modificador dos costumes, de consciência e do processo
judiciário em si durante o medievo, como também será objeto de análise o processo histórico
que permeou a construção desse sistema.
1 A formação do Sistema Inquisitorial como formação de sistema
processual
Foucault identifica que “guerra, litígio judiciário e circulação de bens fazem parte ao
longo da Idade Média, de um grande processo único e flutuante” (FOUCAULT, 2003, p. 64),
o que se compreende no sentido que durante esse período começam a se formar poderes
constituídos que passam a ser agregados nos mesmos indivíduos. Trata-se de mudança
significativa, pois se falava da Baixa Idade Média como uma sociedade que até então possuía
diversos polos de poder dispersos, o que caracterizava o momento chamado de Feudalismo
(FOUCAULT, 2003, p. 65).
Para que a constituição dessa nova perspectiva de poder se acumulasse definitivamente
nas mãos de uns poucos, o processo judiciário foi determinante.
É evidenciado por Foucault que:
1 O Sistema Inquisitorial era uma vertente processual que tinha como finalidade a solução de conflitos. Essa
forma de solução abrangia desde as questões que se referiam desde os campos procedimentais da área
administrativa, civil e penal. Seu surgimento se deu originariamente no continente Europeu. Todavia, sua
atuação seguiu o movimento das monarquias que se constituíam e dos impérios e futuras colônias que iriam se
formar. O Sistema Inquisitorial teve como base uma formação jurídica conectada ao clero e à nobreza,
modificando-se, entretanto, ao longo do tempo para um sistema propriamente processualista, cuja vigência
ocorreu até pouco tempo atrás.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
143
a acumulação da riqueza e do poder das armas e a constituição do poder judiciário
nas mãos de alguns é um mesmo processo que vigorou na Alta Idade Media e
alcançou seu amadurecimento no momento da formação da primeira grande
monarquia medieval, no meio ou final do século XII. (FOUCAULT, 2003, p. 65)
E é diante desse momento que se desenvolve uma justiça completamente distinta da até
então evidenciada durante o período feudal e das épocas antecedentes.
A autora Samyra Haydée Naspolini, ao traçar historicamente o surgimento e o
desenvolvimento do Sistema Inquisitorial, identifica que durante a Baixa Idade Média o poder
clerical vigia sobre toda a sociedade ocidental e que o poder da nobreza estava diretamente
vinculado com a aceitação do clero sobre a figura dos “novos” reis, podendo o poder clerical
consagrar ou excomungar um nobre, como desejasse.(NASPOLINI, 2003, p. 241)
O início da Inquisição se deu na Baixa Idade Média e o foco desse procedimento estava
voltado para o combate das heresias, ou seja, das práticas que contestavam os dogmas
católicos (NASPOLINI, 2003, p. 41). Para que se concluísse se havia sido ou não praticadas
condutas hereges, deveria ocorrer um processo, no qual a peça-chave era o Inquérito.
O Inquérito teve seu processo de “recriação” a partir do século XII, quando em
momentos de conflitos “os representantes do soberano tinham de solucionar um problema de
direito, de poder, ou uma questão de impostos, de costumes, de foro ou de propriedade”
(FOUCAULT, 2003, p. 68) e buscavam em “algo perfeitamente ritualizado e regular”, o que
era chamado de “inquisitio, o Inquérito” (FOUCAULT, 2003, p. 68). O Inquérito veio com a
proposta de ser um método jurídico para a obtenção da verdade, o qual foi classificado como
um processo de dupla origem, uma com uma base na forma administrativa e outra na forma
religiosa.
A forma administrativa consistia num questionamento aos “notáveis”, pessoas de
conhecimento notório e de reputação ilibada, sobre os fatos controversos, cujo objetivo era
sempre a obtenção da “verdade real”. Tal forma de inquérito estava ligada ao surgimento do
Estado e ao exercício do poder em si. No entanto, a outra forma, a eclesiástica, consistia num
inquérito vinculado aos dogmas clericais, e nesse método buscava-se também a dita “verdade
real”, todavia, o foco era a ocorrência de crimes religiosos e/ou heresias. (FOUCAULT, 2003,
p. 69 a 71)
O Inquérito é, por Aury Lopes Junior, no tocante a sua forma religiosa, dividido em
duas fases, na qual “a primeira fase (geral) estava destinada à comprovação da autoria e da
materialidade, e tinha um caráter de investigação preliminar e preparatória com relação à
segunda (especial), que se ocupava do processamento (condenação e castigo).” (LOPES Jr.,
2006, p. 168)
As novas regras e novos personagens dessa “nova justiça” que vem a se formar no
período medieval são indicados por Foucault (2003, p. 65 a 67) como os seguintes:
1. Uma justiça que não é mais contestação entre indivíduos e a livre aceitação por
esses indivíduos de um certo número de regras de liquidação, mas que, ao contrário,
vai-se impor, do alto, aos indivíduos, aos oponentes, aos partidos. [...] Os indivíduos
então não terão mais o direito de resolver, regular ou irregularmente, seu litígios;
deverão submeter-se a um poder exterior a eles que se impõe como poder
judiciário e poder político.2
2. Aparece um personagem totalmente novo sem precedentes no Direito Romano: o
procurador. Esse curioso personagem, que aparece na Europa por volta do século
XII, vai se apresentar como o representante do soberano, do rei ou do senhor.
Havendo crime, delito ou contestação entre dois indivíduos, ele se apresentar com
2 Grifos da autora.
144
SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA
representante de um poder lesado pelo único fato de ter havido um delito ou um
crime. [...] O soberano, o poder político vêm, desta forma, dublar e, pouco a pouco,
substituir a vítima. Esse fenômeno, absolutamente novo, vai permitir ao poder
político apossar-se dos procedimentos judiciários. O procurador, portanto, se
apresenta como representante do soberano lesado pelo dano.
3. Uma noção absolutamente nova aparece: a infração. [...] A partir do momento em
que o soberano ou seu representante, o procurador, dizem “Também fui lesado pelo
dano”, isto significa que o dano não é somente uma ofensa de um indivíduo ao
outro, mas também uma ofensa de um indivíduo ao Estado; [...]. A infração não é
um dano cometido por um indivíduo contra o outro; é uma ofensa ou lesão de
um indivíduo à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano.
4. Há ainda uma última descoberta, uma última invenção tão diabólica quanto a do
procurador e da infração: o Estado ou melhor, o soberano (já que não se pode falar
de Estado nesta época) é não somente a parte lesada mas a que exige reparação. [...]
Vai-se exigir do culpado não só a reparação do dano feito a um outro indivíduo, mas
também a reparação da ofensa que cometeu contra o soberano, o Estado, a lei.
Esses novos mecanismos vão se tornar determinantes para a compreensão dos princípios
que regerão o Sistema Inquisitorial e que determinarão o fortalecimento e a manutenção do
poder nas mãos do clero e da nobreza, ao longo do medievo.
Salo de Carvalho atribui o surgimento do Sistema Inquisitorial na forma medieval e a
sua afirmação como sistema válido e vigente nesse período como resultado também da
necessidade de “ampliação da malha repressiva” (CARVALHO). Com base em Levack, o
referido autor determina como processo histórico significante para a consolidação deste
sistema a
“redescoberta” do Direito Romano, sobretudo com a revitalização do “Corpus Iuris
Civilis” no século XII pela Universidade de Bolonha e a posterior inserção das
glosas, o clero instiga a formalização e a mudança nos procedimentos – “a Igreja se
aproveita do texto do corpus iuris civilis para escorar sua própria organização e
desenvolver mecanicamente sua teocracia radical”. (CARVALHO, 2008, p. 58)
Tal processo garantiu certas vantagens, no que entende o autor, dentre as quais se
destacam:
(a) o caráter público das denúncias, não mais restritas à vítima ou aos seus
familiares, aliada (b) ao sigilo da identidade do delator; (c) a inexistência de
separação entre as figuras de acusador e julgador, sendo lícito a este realizar a
imputação, produzir a prova e julgar o acusado; (d) o sistema tarifado de provas e
sua graduação na escala da culpabilidade, recebendo a confissão o máximo valor
(regina probatio), e (e) a autorização irrestrita da tortura como mecanismo idôneo
para obtenção de confissões. (CARVALHO, 2008, p. 58)
É diante dessas vantagens que se começa a compreender o porquê da consolidação de
tal estrutura, e é também com base nas mesmas que se desenvolve o Sistema Processual
Inquisitorial mais conhecido a partir da modernidade.
Aury Lopes Jr., ao identificar a institucionalização do Processo Inquisitorial como
forma processual vigente, determina que tal consolidação é proveniente de um processo
de substituição dos defeitos da inatividade das partes, levando à conclusão de que a
persecução criminal não poderia ser deixada nas mãos dos particulares, pois isso
comprometia seriamente a eficácia do combate à delinqüência. Era uma função que
deveria assumir o Estado e que deveria ser exercida conforme os limites da
legalidade. (LOPES Jr., 2006, p. 166 a 167)
O Sistema Inquisitorial surgiu, a partir da compreensão de Coutinho, como “uma
resposta defensiva contra o desenvolvimento daquilo que convencionou se chamar de
‘doutrinas heréticas’.Trata-se, sem dúvida, do maior engenho jurídico que o mundo conheceu;
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
145
e conhece”(COUTINHO, 2001, p. 18). Para o autor, tal sistema permaneceu vigente durante
tanto tempo, e ainda vige, às vezes veladamente e outras vezes nem tanto, porque a Inquisição
“veio com a finalidade específica e, porque serve – e continuará servindo, se não acordarmos
– mantém-se hígido.” (COUTINHO, 2001, p. 19)
O Sistema Inquisitorial era, e pode-se dizer que ainda é, instituído através de uma
“máquina repressiva” (CARVALHO, 2008, p. 60), caracterizado pela “exclusão do
contraditório, pela ausência de ampla defesa e pela inversão da presunção de inocência”
(CARVALHO, 2008, p. 61).
O processo inquisitorial ou causa, como é chamada por Eymerico3, poderia começar de
três modos: “por acusação, por delação e por pesquisa” (EYMERICO, 2001, p. 16). O método
da acusação se dava quando alguém do povo acusava o réu, sendo que nesta forma de causa
deveria o delator provar o que afirmava sobre o acusado, e ele mesmo deveria ser o
responsável pela persecução penal. Ou seja, o acusador enfrentaria o acusado pessoalmente e
caso não se provasse os fatos incursos ao réu, aquele quem acusara sofreria sanções severas
(EYMERICO, 2001, p. 16).
Já no que se aborda à delação, o delator deveria contar ao juízo competente o motivo da
acusação, mas não seria ele quem deveria provar tais alegações, e jamais seria confrontado
com o acusado, devendo o acusador de oficio ser responsável pelo trâmite processual
(EYMERICO, 2001, p. 17).
Destarte, a terceira forma tratava-se da pesquisa, cuja utilização ocorria quando não
havia nem delator, nem acusador. A pesquisa poderia ocorrer de duas maneiras:
uma geral, que é uma pesquisa de hereges que, de quando em quando, mandam fazer
os inquisidores em um bispado ou em uma província. [...] A outra espécie de
pesquisa se faz quando por voz pública chega aos ouvidos dos inquisidores que
fulano ou sicrano disse ou fez alguma coisa contra fé, o que faz com que o
inquisidor cite testemunhas e lhes tome declarações acerca da má fama do acusado.
(EYMERICO, 2001, p. 17 a 18)
Ambas as formas de pesquisa possibilitavam o início do processo de ofício pelo
inquisidor.
Como base fundamental dessa “forma processual”, observamos a “gestão da prova”
(COUTINHO, 2001, p. 24) e a figura do juiz como acusador e julgador, objetos que serão a
frente tratados mais afundo quando for abordada a figura do juiz inquisidor. Todavia, no que
trata desta perspectiva, vale ressaltar que a gestão probatória trazia valorações para as provas
evidenciadas ao longo do “processo” e que o dinamismo processual ocorria sempre em
virtude da busca da verdade.
As provas eram divididas entre “diretas, indiretas, manifestas, imperfeitas, provas
plenas, indícios próximos e indícios longínquos” (NASPOLINI, 2003, p. 248). Para Samyra
Haydêe Naspolini (2003, p. 249), as “provas plenas poderiam acarretar qualquer condenação;
as semiplenas, ensejar suplícios, mas nunca a pena capital; e os indícios bastavam para
declarar um suspeito e iniciar as investigações”. A combinação dessas formas probatórias
criava o que a autora chama de “aritmética penal”, devendo, entretanto, ao longo do processo,
sempre se buscar a confissão, já que esta era a única maneira de “provar” efetivamente que o
indivíduo cometera crimes de heresias que não deixavam vestígios.
3 “Nicolau Eymerico foi um teólogo católico romano e Inquisidor Geral da Inquisição da Coroa de Aragon, no
final da metade do século XIV. Ele é mundialmente conhecido pela autoria da obra Manual da Inquisição, haja
vista a sua repercussão e notoriedade quanto aos procedimentos inquisitoriais”. Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Nicholas_Eymerich>. Acesso em 11 set. 2010.
146
SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA
Para Alexandre Morais da Rosa (2006, p. 135), entre as características do Sistema
Inquisitorial se encontram a tarifação das provas e a acusação de ofício, como exposto, porém
adicionam-se outros pontos fundantes desse sistema, tais como a presença de um único
julgador, o poder de julgar, acusar e direcionar a ordem do processo nas mãos do magistrado e
a realização de um processo escrito e secreto.
A perspectiva de Salo de Carvalho sobre as características de tal sistema permeia a
mesma abordagem de Alexandre Morais da Rosa, já que aquele expõe que se destacam no
método inquisitorial:
(a) o caráter universal das denúncias, ou seja, não mais restritas à vítima ou aos seus
familiares e interessados; (b) o sigilo da identidade do delator (noticiante); (c) a
inexistência de separação entre as figuras de acusador e julgador, sendo lícito ao
magistrado realizar a imputação, produzir a prova e decidir o caso; (d) o sistema
tarifado de provas, com a conseqüente graduação da culpabilidade, na qual a
confissão recebe valor supremo (regina probatio); e (e) a autorização irrestrita para
o uso da tortura como mecanismo idôneo de obtenção da verdade. (CARVALHO,
2008, p. 59)
A incessante meta de alcançar a verdade na estrutura inquisitorial admitiu as maiores
barbáries “processuais” conhecidas ao longo dos tempos. Ao valorar a confissão como a
rainha das provas se permitiu que em sua busca ocorresse a tortura como método lícito e
científico de extração desta.
Aury Lopes Jr. também entende que essa busca pela verdade é o que determinou a
crueldade do sistema, quando diz:
a lógica inquisitorial está centrada na verdade absoluta e, nessa estrutura, a heresia é
o maior perigo, pois atacava o maior núcleo fundante do sistema. Fora dele não
havia salvação. Isso autoriza o “combate a qualquer custo” da heresia e do herege,
legitimando até a mesmo a tortura e a crueldade nela empregada. (LOPES Jr., 2006,
169)
As regras para a utilização do “tormento”, como também é chamada a tortura, estão
tratadas no Manual dos inquisidores. É evidenciado que para a aplicação do tormento, o réu
reputado como herege deveria ter cometido “um testemunho de vista, um mau comportamento
em matéria de fé, um indício veemente, uma só não basta, duas são necessárias e bastantes
para dar tormento” (EYMERICO, 2001, p. 46).
Identifica-se também a possibilidade do uso da tortura quando:
após ter sido apurado, sem frutos, todos os demais meios para se averiguar a
verdade, porque, muitas vezes, basta para fazer com que confesse o réu apenas os
bons modo, a manhã, suas próprias reflexões, as exortações de sujeito bem
intencionados e o desconforto do cárcere.(EYMERICO, 2001, p. 47).
É fato tão notório que a confissão tinha um poder predominante sobre os outros métodos
probatórios que Eymerico (2001, p. 39), no Manual dos Inquisidores, identifica que “quando
confessa um acusado o seu delito pelo qual foi preso pela inquisição, é diligência inútil
outorga-lhe defesa, sem que obste que nos demais tribunais não seja bastante a confissão do
réu, quando não há corpo delito formal”.
No tocante ao crime religioso, é explanado também que “em se tratando de heresia, a
confissão do réu basta por si só para condená-lo, porque como a heresia é um delito da alma,
muitas vezes não pode haver dela outra prova que não a confissão do acusado” (EYMERICO,
2001, p. 39).
Destarte, percebemos que a tortura era utilizada como mecanismo para “arrancar” a
verdade na forma em que se desejava. A utilização de tal “instrumento” traduz uma
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
147
perspectiva própria do Sistema Inquisitorial, sendo essa a percepção de que o poder
determinava não somente a verdade, mas também como obtê-la, identificando-se aí o
exercício do poder, na compreensão pura do que ele significa.
2 O Sistema Inquisitorial no Brasil
O Sistema Inquisitorial foi um processo de mudança de mentalidade e construção
dogmática basicamente originado na Europa, contudo, trata-se de um processo
exclusivamente Ocidental. Esse sistema foi estabelecido de forma mais fortificada e
duradoura na Espanha e em Portugal e teve a sua consolidação como um sistema processual
em meio a uma estrutura jurídica e de uma finalidade penal.
A estrutura referida acima se tratava da organização do Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição, posteriormente reconhecido apenas como Inquisição, e a finalidade do mesmo
tratava do fim punitivo desse sistema representado pela aplicação de uma pena ao condenado.
O processo histórico pelo qual passou Portugal está vinculado ao fortalecimento da
nobreza e da vinculação desta com o clero. A Expansão Marítima, a colonização e exploração
do continente americano, a exploração do continente africano e as demais repercussões
históricas da modernidade trazem consigo o movimento jurídico e religioso da Inquisição.
O Brasil teve como vertente primária, aos olhos de Portugal, a perspectiva exclusiva de
Colônia de Exploração. A partir de tal consciência, era de suma importância para os Estados
colonizadores que se extraíssem todas as matérias primas e fontes de riqueza que fosse
possível da localidade, de forma que não houvesse qualquer preocupação mais precisa com
aqueles que faziam tal extração.
Porém, as descobertas provenientes da exploração (e outros diversos acontecimentos
históricos) traçaram para o “Brasil” um caminho distinto daquele inicialmente planejado à
Colônia. Descobriu-se nas terras americanas a solução para alguns problemas sociais dos
povos europeus, e foi nela, principalmente, que Portugal encontrou a possibilidade de
enriquecer.
Ao focar nessa visão, a Metrópole observou que para o funcionamento da Colônia seria
necessário estabelecer hierarquias, e para que se consolidasse o poder e o domínio territorial
seria necessário colonizá-la. Assim, a colonização requereu da Metrópole um cuidado com a
população que se encontrava na Colônia e o devido controle desta.
O exercício de poder vem, então, mediante as primeiras manifestações da presença da
Inquisição no Novo Mundo: as visitações.
A estrutura do Sistema Inquisitorial era formada pela existência de alguns tribunais
fisicamente instituídos em “Lisboa, Coimbra, Évora, Lamego, Tomar e Porto” (CIDADE,
2001, p. 22), todos devidamente estabelecidos em Portugal. Outros locais tiveram estruturas
inquisitoriais, entretanto, é mais relevante ao objetivo deste trabalho o reconhecimento da
Inquisição em Portugal, já que foi ela a responsável pela implementação dessa forma
processual no Brasil (CIDADE, 2001, p. 22).
As visitações foram o resultado de um processo de “sedentarização” da justiça tanto no
âmbito do poder clerical quanto do poder monárquico. As visitações religiosas consistiam
numa
inspeção periódica, que, por determinação do Conselho Geral do Santo Oficio,
realizava um delegado seu para inquirir do estado das consciências em relação à
pureza da fé e dos costumes. Um patrulha de vigilância. Oferecia misericórdia aos
confitentes, e, ao mesmo tempo, sob ameaça, incitava os denunciantes. Um
148
SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA
levantamento geral do momento dos espíritos. Uma operação de coleta de material
para alimentação da máquina da Justiça do Santo Ofício. (SIQUEIRA, 1978, p. 183)
As terras brasílicas não se viram livres das Visitas do Tribunal do Santo Ofício
(NOVINSKY). Entendem alguns historiadores que a escolha das localizações pelas quais
passariam as visitações se dava de acordo com a importância econômica da região.
A motivação real do surgimento das visitações foi proveniente de um movimento de
compreensão sobre a realidade das colônias. É percebida por Portugal a necessidade do
controle sobre as pessoas e sobre a realidade encontradas em suas terras distantes, e vê-se,
dentro da composição do Tribunal do Santo Ofício, que a figura apropriada para tal repressão
seria os visitadores.
A composição orgânica da Inquisição se dava através de uma organização judiciária, na
qual inicialmente era composta pelas figuras dos
Inquisidores, dos Notários, do Meirinho, de outros funcionários de uma importância
mais técnica como os médicos e ainda os guardas e porteiros para garantir a
segurança e também os Visitadores das Naus. (CIDADE, 2001, p. 22).
A figura dos Visitadores das Naus surge
devido ao desenvolvimento do comércio e da navegação. Em virtude desses fatores,
multiplicavam-se os contatos com outros povos e a criação dessa função deve-se à
consciência de perigo que o contato com os estrangeiros representava em relação à
integridade da fé católica (CIDADE, 2001, p. 25).
Era ele um antecessor da figura do Visitador das Colônias. O Visitador de Naus era o
responsável pela investigação de uma navegação quando esta, ao voltar dos mares, aportava
nas cidades portuguesas, sendo necessário para o Tribunal do Santo Ofício que se averiguasse
a origem e as intenções daquelas novas pessoas que chegavam às terras de Portugal.
O desenvolvimento das navegações e do processo migratório e colonizador nas terras
americanas criaram, assim, a necessidade de verificação também sobre as intenções e sobre a
origem daqueles que fossem habitar as novas terras portuguesas. Assemelhando-se em função
e finalidade, foram criados os Visitadores das Colônias, os quais eram responsáveis pela
averiguação do “caráter e da conduta” daqueles que lá se instalassem.
As visitações ocorreram como um reflexo do desenvolvimento de Portugal e de suas
conquistas. Assim, no que se refere à localização dessas visitações, percebemos esse mesmo
reflexo, já que a razão da escolha dos locais onde estas iriam ocorrer também derivava do
desenvolvimento da região em importância econômica e política perante a Metrópole.
Oliveira, baseando-se na autora Anita Novinsky, entende que:
o envio da visitação está ligado à vigilância das terras mais prósperas da colônia –
sobretudo as capitanias da Bahia e Pernambuco – bem como a manutenção da ordem
e da fé católicas, ou seja,para Novinsky a instalação das visitas do Santo ofício ao
Brasil estão intimamente ligadas a uma real necessidade de uma vigilância ativa
sobre as áreas de maior prosperidade colonial, onde se encontrava uma grande
parcela dos cristãos novos saídos do reino.(OLIVEIRA, p. 1)
Todavia, há autores que entendem que as localizações não estão relacionadas
diretamente com o desenvolvimento econômico, mas com o crescimento populacional e a
necessidade de se cristianizar tais indivíduos (OLIVEIRA, p. 2), pois o objetivo maior das
visitações era de encontrar cristãos-novos e integrar o Brasil ao mundo cristão. (OLIVEIRA,
p. 2)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
149
As primeiras visitações ocorreram inicialmente em Pernambuco e na Bahia entre os
anos de 1591 e 1595. O objetivo principal dos visitadores em terras brasílicas era o de
encontrar principalmente práticas judias provenientes dos cristãos-novos.
Os cristãos-novos eram um grupo de judeus que foram compulsoriamente convertidos
em novos cristãos em consequência do
decreto real em 1496-7 e que viveriam, a partir de 1536, constantemente ameaçados
de prisão e confisco pelo Tribunal do Santo Oficio da Inquisição, cujo mote
principal era a punição dos cristãos-novos “judaizantes”, ou seja, que continuavam
a praticar ocultamente o judaísmo. (VIEIRA, 2006)
Os cristãos-novos estiveram muito presentes nas colônias portuguesas, principalmente
nas encontradas no continente americano, pois ao fugirem da Inquisição fortemente
estabelecida no Velho Mundo, encontraram nas terras ultramar a possibilidade de praticarem
ocultamente as suas filosofias religiosas e de buscarem uma ascensão econômica através do
domínio de terras. (VIEIRA, 2006)
Outra finalidade evidente da vinda das visitações, além do combate das práticas de
heresias, foi a de extinguir os crimes contra a moral. Os focos de pesquisa do Santo Ofício, no
tocante às práticas imorais, foram sobre os atos homossexuais e sodomíticos.
Destarte, sobre as condutas homossexuais entendia-se que:
estes tipos de práticas seriam recorrentes entre as sociedades indígenas; tanto de
homens, em que alguns efeminados viviam entre as mulheres, como de índias que
viviam entre os homens, casavam e guerreavam, fazendo questão de serem tomadas
por machos. O primeiro caso a ser registrado pela Inquisição aqui no Brasil foi o do
negro Francisco denunciado em 1591, na Bahia. Praticante do “pecado nefando” foi
denunciado por se recusar a vestir roupas de homem. Na própria Península Ibérica
este tipo de delito seria comum entre os membros da Igreja, chegando a ser
conhecido como o “vício dos clérigos” (OLIVEIRA, p. 4)
A segunda visitação ao Nordeste brasileiro ocorreu em 1618, na qual visitadores do
Santo Ofício percorreram novamente as mesmas regiões buscando os mesmos delitos e as
mesmas práticas hereges. Ocorreram também visitações em 1627 no Nordeste, 1606 e 1627
no Sul e em 1763 no Pará.
Numa perspectiva geral podemos entender que as Visitações do Santo Ofício vieram
com o propósito de controle, conforme entende Oliveira, que percebe que:
a visita do Santo Oficio é a tentativa de controle da ordem e vigilância acerca dos
“desvios” da fé católica, em um novo lugar e em uma nova realidade seria nada mais
natural o surgimento de outros tipos de “desvios”, de práticas ditas “erradas”, de
sincretismos e de adaptações de elementos da fé oficial às realidades peculiares
existentes na colônia. Vemos nas Santidades a mistura da hierarquia católica a
elementos da religiosidade Tupinambá, percebemos também nos casos de práticas
criptojudaicas a tentativa de conservação e manutenção da religiosidade outrora
praticada por antepassados. A lógica Inquisitorial consistia em seguir valores e
atitudes ditas corretas, desvalorizando o diferente, geralmente visto como errado e
desviante. Nos caminhos trilhados pela Inquisição em terras basílicas, é vista uma
realidade nova e multifacetada, através de um centro de significado, caracterizado na
figura da fé oficial, percebemos o controle das práticas dos colonos através da
intolerância da fé, misturada com a fé da intolerância. (OLIVEIRA, p. 4 a 5)
Assim, a partir da premissa da Inquisição, no Brasil e no mundo, e de identificação da
normalidade, vê-se uma construção do outro como punível. A exclusão e a determinação de
certas práticas e condutas como aceitáveis à sociedade passa a ser vista como situações
formadoras do conceito de Criminologia, a qual vai coexistir ao longo da história brasileira
com o conceito de Sistema Penal, mais propriamente aqui identificado pelo Inquisitorial.
150
SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA
A busca incessante pela condenação do diferente numa sociedade tão mestiça como a
que existia nos anos da modernidade no Novo Mundo caracteriza a relação de segregação que
vai resultar dessa mentalidade construída sob a influência da vigilância da Inquisição.
3 A Criminologia e o Sistema Inquisitorial
Aparentemente pode ser difícil identificar a relação que há entre o Sistema Inquisitorial
e o estudo da Criminologia. Ao nos depararmos, contudo, com a relação de indivíduos e
acusados no processo penal, começamos a traçar uma conexão entre o estudo do crime e as
relações de poder que determinam quem é o criminoso.
Faz-se presente uma relação que permeia os dois conceitos, o objetivo existente nos dois
momentos: ambos possuem um objetivo segregador. Khaled Jr. discorre sobre esse objetivo
expondo que:
apesar da diferença aparente de foco, um objetivo comum aproxima os dois saberes:
a tentativa deliberada de erradicar a diferença e anular o outro. A pretensão de
homogeneização do corpo social efetivamente permite a percepção de continuidade
entre uma prática dogmático-religiosa e a constituição de um campo de saber
científico. De fato, a própria elaboração de uma Criminologia oitocentista que tinha
– por excelência – o homem como objeto, se vale dos pressupostos inquisitórios em
alguma medida, ainda que de forma velada. O que muda, essencialmente, é o padrão
desejável de indivíduo e o que é considerado uma ameaça para a funcionalidade do
sistema e da estrutura de poder dominante. (KHALED Jr.)
A Inquisição focava sua atenção nos hereges e, como observado acima, a Igreja, como
órgão regulador da Santa Inquisição, segregava aqueles que pensavam ou criam de forma
diferente daquela que era imposta por ela. Verificamos, então, a partir do conceito de herege o
surgimento da identificação do outro como “anormal”, como perigoso, como aquele que é
diferente do desejado, traços que serão determinantes para o conceito contemporâneo de
criminoso.
Como expõe Foucault (2003, p. 85):
Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que
fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que
podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão
na iminência de fazer.
Assim, a grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a
escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noção de
periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao
nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das
virtualidades de comportamentos que elas representam.
A partir do conceito de Criminologia explorado por Foucault sobre a construção do
sujeito criminoso e sua periculosidade, podemos abordar, sem o receio de cometer
anacronismo, que a figura do sujeito “perigoso” está presente na construção do conceito de
”herege”, palavra importantíssima dentro do Sistema Inquisitorial.
Salo de Carvalho, ao trabalhar com as perspectivas de criminologia diante da
Inquisição, aborda que o livro Malleus maleficarum (Martelo das feiticeiras) iniciou a
formação do conceito de Criminologia. O autor evidencia que Heinrich Kramer e James
Sprenger, escritores do livro citado, constroem ao longo do texto uma nova percepção, a qual
aborda o crime através do criminoso ao identificar certos indivíduos como propensos a prática
de delitos. Explana Salo de Carvalho (2008, p. 64):
no âmbito criminológico, estabelece (a Inquisição) discurso etiológico plurifatorial
baseado na potencialização da gravidade do delito, na inferioridade do homo
criminalis (dos homens infames, dos degenerados sexualmente e das mulheres) e na
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
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predestinação ao crime. Em relação ao discurso penal, submete-o de forma
extremada aos modelos de autor – inaugurando a lógica do direito penal da
periculosidade -, estabelecendo amplo conjunto de signos que permitem identificar o
crime no criminoso.
No contexto contemporâneo da criminologia percebemos estudiosos que visam
identificar no movimento social exatamente a relação entre o crime e o criminoso, observando
mais especificamente a periculosidade do mesmo.
Como resposta a esse movimento conhecido como criminologia, vemos acadêmicos de
diversas áreas, como antropólogos, médicos e juristas que formularam no fim do século XIX
uma tese de dosimetria da pena, na qual a pena a ser estipulada ao criminoso deveria ser
medida proporcionalmente com a sua “temibilidade” (DARMON, 1991, p. 143), termo esse
definido por Darmon (1991, p. 143) como “a quantidade de mal que podemos temer da parte
do criminoso em razão da sua pervesidade”.
A Criminologia Clássica, trabalhada principalmente por Beccaria ao longo do século
XVIII, rompeu com as tradições medievais. Essa nova perspectiva do crime abordava uma
proposta que desassociava a pena dos castigos corpóreos e analisava o crime sob a ótica do
livre arbítrio, no qual o homem tinha condições e discernimento necessários para decidir
sobre a prática do delito. Era também característica dessa escola criminológica ter como foco
de estudo a pena em si e as suas consequências sociais.(BECCARIA, 1996)
Contudo, a partir do século XIX, houve uma modificação nas reflexões sobre o fato
ilícito, tornando o centro das atenções novamente o criminoso e não mais a punibilidade até
então presente na Escola Clássica. Com a abordagem do criminoso e dos conceitos que
permeavam suas condutas, percebeu-se um retorno às formas inquisitoriais de se identificar o
delinquente.
Essa proposta criada no século XIX de periculosidade e de análise do infrator é
proveniente principalmente de Cesare Lombroso4, considerado precursor da Criminologia
positivista e ditador de personalidades essencialmente “normais” e “morais”.
O citado autor fundou uma nova perspectiva para a criminalidade, afastando o crime da
lente objetiva e colocando sob esta o criminoso, os quais eram interpretados sobre três fatores
“phisicos, anthropologicos e sociais” (SCHWARCZ, 2005, p. 166), os quais distinguiam o
sujeito normal do anormal.
Para esta interpretação:
O tipo físico do criminoso era tão previsível que seria possível delimitá-lo de forma
objetiva. Lombroso, por exemplo, criou uma minuciosa tabela, subdividida em:
“elementos anathomicos” (assimetria cranial e facial, região occipital predominante
sobre a frontal, fortes arcadas superciliares e mandíbulas além do prognatismo);
“elementos physiologicos” (tato embotado, olfato e paladar obtusos, visão e audição
4 Carlos Martins Júnior apresenta um texto no qual identifica Cesare Lombroso como “Professor catedrático da
cadeira de Medicina Legal da Faculdade de Turim, Cesare Lombroso (1836-1906) é considerado o fundador da
antropologia criminal italiana. Sua principal obra, O Homem Delinquente, publicada em Milão, em 1876, expõe
as concepções sobre o criminoso nato que, segundo ele, estaria predisposto ao crime desde o nascimento em
razão de fatores biológicos atávicos, os quais podiam ser identificados em algumas características físicas e
psicológicas do indivíduo. Segundo Lombroso, o correspondente feminino do delinquente nato seria a prostituta,
figura que recebeu dele um estudo no livro A Mulher Criminosa e a Prostituta, publicado em 1895, considerado
o principal trabalho até então escrito sobre a condição da meretriz. LOMBROSO, Cesare – L´ Uomo
Delinquente. 2ª edição. Turim : Livraria Boca, 1878. LOMBROSO, Cesare e FERRERO, Guilaume – La Femme
Criminelle et la Prostitutée. 2ª edição. Paris: Felix Alcan, 1896.” (MARTINS JÚNIOR, Carlos. Mulheres
“honestas” e mulheres “impuras”: uma questão de Direito. Disponível em: <http://www.anpuh.uepg.br/xxiiisimposio/anais/anais.html>. Acesso em 12 fev. 2010.)
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SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA
ora fracas ora fortes, falta de atividade e de inibição); e “elementos sociológicos”
(existência de tatuagens pelo corpo) (SCHWARCZ, 2005, p. 166).
O crime feminino também foi bastante abordado por Lombroso e Ferrero, e por eles é
visto “como uma dupla exceção”, pois a mulher se torna um monstro (VENERA, 2003, p.
57). Nessa perspectiva de dupla exceção, observamos que a transgressão à ordem pela mulher
é vista como um crime que “vem duplamente: por estar (a mulher) saindo da ordem e por ser
uma mulher saindo da ordem, e por ser um sujeito biologicamente imprevisto para ser
criminoso.” (VENERA, 2003, p. 57)
Para os autores acima citados, o senso de justiça da mulher também não era confiável,
pois
Relativamente a nós [homens] a mulher é um ser imoral. Ela está sempre de um e de
outro lado da justiça; ela não tem nenhuma inclinação para o equilíbrio dos deveres
e dos direitos que fazem a preocupação do homem; sua consciência é antijurídica
como seu espírito é antifilosófico. Sua inferioridade moral junta-se a sua
inferioridade física e intelectual como conseqüência necessária. (Lombroso apud
SOIHET , 1989, p. 112)
Mesmo quando os autores abordavam a “normalidade” feminina não se tratava de algo
benéfico, mas, sim, como se a mulher, por natureza, fosse diferente pelo simples fato de não
ser homem. Lombroso (Lombroso apud SOIHET , 1989, p. 112) assim descrevia:
A mulher normal, em resumo, tem muitas características que a aproximam do
selvagem e da criança e em conseqüência do criminoso (irascibilidade, vingança,
ciúme, vaidade) e outras diametralmente opostas que neutralizam as primeiras, mas
que a impedem entretanto de se comparar ao homem no equilíbrio entre direitos e
deveres, o egoísmo e o altruísmo que é o termo supremo da evolução moral.
Como modelo estrutural para a formação do conceito de condutas normais, se utilizava
o termo padronizador “homem médio” (VENERA, 2003, p. 42), sendo que esse homem não
cometeria homicídios, não roubaria, não praticaria infrações, pois as práticas que
extrapolassem o limite das imposições destinados ao “homem médio”, tratar-se-iam de
condutas de “pura infração ou anormalidade” (VENERA, 2003, p. 42).
Assim, é a partir desses conceitos formulados por Lombroso que podemos identificar a
relação existente entre a Criminologia nos padrões da contemporaneidade, com a perspectiva
de crime e criminosos estabelecida pelo Sistema Inquisitorial.
No Sistema Inquisitorial, tinha-se como objeto máximo de fragilidade diante da
possibilidade de a mulher cometer uma heresia. Esse conceito volta, como demonstrado,
predominando no discurso dos juristas criminológicos do século XIX.
Destarte, visa-se a percepção em ambos os momentos de uma segregação de certos
grupos e certos indivíduos, identificando aí a relação que se tem da criminologia positivista,
que até hoje vige veladamente sobre o judiciário quando a relaciona com o Sistema
Inquisitorial de análise do processo, o qual também vige sobre o judiciário, entretanto, não tão
veladamente assim.
4 O papel do juiz inquisidor
Um sujeito muito singular no sistema inquisitorial é o juiz. A sua função como julgador
de conflitos identifica uma das características mais próprias desse sistema: a unificação do
acusador e do julgador em uma única pessoa.
A persecução jurídica vem configurada na pessoa do juiz, assim como a própria
resolução do conflito. Tal fato traz, como já foi evidenciado, a razão determinante de ser do
Sistema Inquisitorial. Devido a essa junção de funções, é possível observar a inexistência de
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garantias protetoras ao acusado, tais como a ampla defesa, o contraditório e a presunção de
inocência.
Essa aglomeração de funções num único indivíduo foi uma das razões para ocorrência
reiterada das torturas e a intensidade das mesmas, haja vista a possibilidade de se buscar a
verdade a qualquer custo, não havendo, assim, limites processuais para a obtenção de provas
favoráveis à condenação. A partir dessa gestão probatória percebemos o poder real de
controle do processo nas mãos no julgador proveniente dessa união que havia na figura do
magistrado.
Para Jacinto Coutinho, o Sistema Inquisitorial tem como característica principal a gestão
das provas. O autor identifica que:
a característica fundamental do sistema inquisitório, na verdade, está na gestão da
prova, confiada essencialmente ao magistrado que, em geral, no modelo em análise,
recolhe-a secretamente, sendo que “a vantagem (aparente) de uma tal estrutura
residiria em que o juiz poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade
dos factos – de todos os fatos penalmente relevantes, mesmo que não contidos na
‘acusação’ - , dado o seu domínio único e omnipotente do processo em qualquer das
suas fases. (COUTINHO , 2001, p. 24)
O Manual do inquisidor é um livro escrito por Nicolau Eymerico no século XIV, cuja
função era determinar e identificar as práticas da Santa Inquisição com intuito de direcionar
os inquisidores ao caminho mais eficiente para “livrar o mundo dos hereges”. É nesse manual
identificado qual o papel do juiz na perseguição dos acusados e quais os procedimentos que
deveriam ser adotados para que se “conquistasse” o maior número de confissões e,
consequentemente, condenações.
O juiz, nos termos do livro exposto, deveria, para obter a “verdade real” dos fatos, fazer
o papel de interrogador e, através de seis formas distintas, buscar a confissão do réu sem a
necessidade dos suplícios (EYMERICO, 2001, p. 36). Essas formas eram identificada por
Eymerico como “artes e manhas que usarão os inquisidores para saber a verdade pela boca
dos hereges, gratiose, sem usar mão do potro5” (EYMERICO, 2001, p. 36).
Entre essas formas, podemos citar o fingimento do inquisidor em se tratar ele mesmo de
um herege para obter a confiança do acusado, ou a multiplicidade de interrogatórios e
perguntas até levar o réu à exaustão ou ameaçar de mantê-lo preso por tempo indeterminado
(EYMERICO, 2001, p. 30 a 38).
Fica assim evidenciado que o juiz “atua como parte, investiga, dirige, acusa e julga”
(LOPES Jr., 2006, p. 168) e que no decorrer do processo “ele e os demais oficiais do tribunal
assumiam a investigação dos crimes e determinavam a culpabilidade ou não do réu”
(NASPOLINI, 2003, p. 12), o que determinava exatamente o que hoje chamamos de
cerceamento de defesa.
Outra perspectiva do cerceamento de defesa no processo inquisitório está no segredo
que envolvia o procedimento, tanto ao público quanto ao acusado. Foucault (2001, p. 35)
discorre que:
todo o processo criminal, até a sentença, permanecia secreto: ou seja, opaco não só
para o público, mas para o próprio acusado. O processo se desenrolava sem ele, ou
pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os
depoimentos, as provas [...] era impossível ao acusado ter acesso às peças do
processo, impossível conhecer a identidade dos denunciadores, impossível saber o
sentido dos depoimentos antes de recusar as testemunhas, impossível fazer valer, até
os últimos momentos do processo, os fatos justificativos, impossível ter um
5 Cavalo de madeira em que se torturavam os acusados ou condenados.
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advogado, seja para verificar a regularidade do processo, seja para participar da
defesa.
Quanto à figura do advogado é também relevante identificar que o mesmo deveria ser
indicado pelo próprio inquisidor do processo e que não haveria qualquer garantia de paridade
entre os sujeitos processuais.
Eymerico (2001, p. 36) discorre que:
O advogado há de ser um homem justo, douto e zelador da fé. Nomeia-o o
inquisidor e lhe toma juramento de defender o réu conforme a verdade e o direito, e
de guardar como inviolável o quanto vir e ouvir. Será seu principal esmero exortar
seu cliente a declarar a verdade e pedir perdão do seu delito se for culpado.
Responderá o acusado de palavra ou por escrito, de acordo com o seu advogado e se
passará a sai resposta ao fiscal do Santo Oficio. O preso não se comunicará com o
advogado sem a presença do inquisidor.
Percebemos, desse modo, que não há qualquer chance para o acusado nesse sistema,
ficando este à margem do poder discricionário do juiz e das imposições da Inquisição, visto
que toda a linha “processual” é voltada para a condenação.
Fica também evidenciado que o personagem do magistrado no sistema inquisitório
trata-se da figura principal, haja vista a importância que o mesmo possui perante o processo
da Inquisição.
Ao agregar funções e ser o sujeito que dita todas as regras do jogo processual, o juiz
rege o ritmo do processo e decide de antemão a culpabilidade do acusado, passando desta
convicção para busca das provas, o que caracteriza aí o manuseio probatório da forma que
convém ao juiz (LOPES Jr., 2006, p. 168).
Outra perspectiva importante desse sujeito é a subjetividade com que o magistrado vem
a trabalhar no sistema inquisitório, já que fica à disposição dele a possibilidade de decidir da
forma que achar mais conveniente sobre todos os fatos presentes no processo.
O livre convencimento do juiz permitia desde então que houvesse um caráter
discricionário e subjetivo do juiz quanto aos seus sentimentos e “intuições” em relação ao
acusado, demonstrando-se aí mais um artifício de poder atribuído ao magistrado nesse sistema
(LOPES Jr., 2006, p. 168).
Podemos, assim, concluir que o sistema inquisitorial em si é uma máquina de poder,
desde a construção do inquérito, da seleção dos acusados até a determinação do juiz sobre a
culpabilidade do mesmo e da discricionariedade com que o magistrado trabalha na gestão das
provas.
Vê-se na Inquisição a identificação do fim da Idade Média e do poder determinante que
teve a Igreja nesse período, entende-se nela a construção da mentalidade repressora que está
até então agregada ao Sistema penal e ao processo penal. Percebe-se o quão relevante a figura
do juiz é a partir do autoritarismo exercido por ele e quão vulnerável fica o réu quando se
encontra sem qualquer garantia, diz-se então que o papel do juiz no Sistema Inquisitório é o
de domínio completo sobre o processo e o seu procedimento.
Considerações finais
A forma inquisitória é possível de ser identificada quando se demonstra a ausência dos
direitos processuais do contraditório, de ampla defesa e da evidência absoluta da presunção de
culpa do acusado, cabendo ao mesmo o ônus probatório quanto a sua inocência. Outras
características atribuídas ao sistema inquisitorial são a tarifação das provas e a acusação de
ofício, todavia, o ponto crucial para a identificação do mesmo é a unificação dos poderes de
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julgar e acusar nas mãos dos magistrados. Os juízes inquisitoriais são aqueles que colhem as
provas, efetivam a acusação e julgam o processo.
A mais significativa peculiaridade do sistema inquisitório fica a cargo da possibilidade
da tortura como meio de alcançar a verdade processual. Ficou demonstrado, diante do exposto
por Eymerico, que a prática de tormentos além de ser algo inerente a essa forma processual,
tratava-se de uma obrigação do inquisidor, já que eram tarefas suas a obtenção dos indícios
probatórios para acusar o indivíduo e a efetiva condenação do mesmo.
O Sistema Inquisitorial é uma construção processual do Ocidente, surgido no Velho
Mundo, entretanto, devido às colonizações e ao processo expansionista dos países europeus,
ele atingiu várias outras localidades, entre elas o Brasil.
Demonstra-se, então, a chegada da inquisição ao Brasil, identificando-a como resultado
de um processo proveniente da necessidade que Portugal teve em controlar seus colonos e
suas práticas.
Numa sociedade distante e sem os olhares diários do rei e da Santa Inquisição, Portugal
percebeu que tal realidade possibilitava uma liberdade de conduta distinta da que a Metrópole
vivia no século XVI e XVII, o que permitia práticas religiosas e sexuais que eram abolidas em
terras portuguesas. Para controlar o que ocorria na Colônia, o Santo Ofício foi mandado ao
Brasil para identificar e punir tais comportamentos inaceitáveis, segregando, assim, certos
grupos de indivíduos e seus costumes, visto que os comportamentos tidos como inaceitáveis
eram costumeiramente aqueles praticados pelas minorias já excluídas na Europa, e que
rumaram ao Novo Mundo em busca de liberdade para a manifestação dos seus hábitos.
Como resposta a essa segregação, ficou demonstrado a relação do Sistema Inquisitorial
com a construção da Criminologia positivista surgida no final do século XVII. Na
identificação do que é conceituado como “normal”, vê-se uma construção do outro “anormal”
como aquele punível. A exclusão e a determinação de certas práticas e condutas como
aceitáveis à sociedade passa a ser vista como situações formadoras do conceito de
Criminologia, haja vista a necessidade que a Criminologia deste período possui em determinar
o que desenvolve o criminoso, e não propriamente, o crime.
O surgimento desse discurso de indivíduos diferentes e anormais no Brasil deve-se
principalmente à divulgação da teoria da criminologia lombrosiana efetuada pela Faculdade
de Direito de Recife através das suas publicações acadêmicas, que tinham como foco
principal compreender o crime através da pessoa do criminoso e de suas características de
periculosidade. Foi, assim, identificado por essa abordagem criminológica que em
determinadas pessoas a criminalidade era produto de atributos naturais derivados de uma máformação biológica desses indivíduos, e era diante de um determinismo biológico que a teoria
identificava o porquê das transgressões.
Destarte, evidencia-se a figura principal dentro da realidade inquisitorial, o juiz
inquisidor. As atribuições funcionais e as práticas inerentes a esse personagem são analisadas
como a razão que constitui em si o processo inquisitório.
A junção das funções de acusar e julgar, a possibilidade das torturas para a obtenção da
“verdade real” e a decisão com ausência de quaisquer fundamentações identificavam
exatamente a liberdade dos juízes inquisidores, possibilitando, assim, que estes praticassem
atos absurdos como meio de obter condenações, caracterizando, dessa forma, a realidade do
sistema processual inquisitório.
Desta forma, percebe-se que o processo histórico do sistema inquisitorial, assim como o
seu conceito em si, e o avanço desta forma processual ao Brasil construíram as raízes
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necessárias para desenvolver o processo criminológico que explodiu no meio intelectual nos
séculos XIX e XX, visto que os conceitos de anormalidade e de outro são provenientes do
período inquisitório.
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159
A CRÍTICA DE TOCQUEVILLE AO DIREITO ADMINISTRATIVO FRANCÊS.
TOCQUEVILLE’S CRITIQUE OF THE FRENCH ADMINISTRATIVE LAW
Ig Henrique Queiroz Gonçalves*
Resumo: Tocqueville não foi propriamente um jurista, o que não o impediu nem de criticar o direito vigente
nem de pensar um dever ser para o Estado e para o direito público nas eras democráticas. O autor observava a
centralização administrativa francesa na perspectiva crítica tendo como contraponto a descentralização
administrativa da democracia americana. As soluções legais e institucionais para o problema da liberdade
política nas democracias passariam, segundo ele, pelo uso que os legistas fariam do seu poder normativo, no
sentido de favorecer a participação do cidadão em assuntos da administração pública. Neste trabalho
exploraremos a crítica de Tocqueville ao livro Cours de Droit aministratif de Macarel.
*
Mestre em teoria, filosofia e história do direito pelo programa de pós-graduação em direito da Universidade
Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Atualmente é professor de Direito Processual Civil na Universidade
Uniban-Brasil.
160
A CRÍTICA DE TOCQUEVILLE AO DIREITO ADMINISTRATIVO FRANCÊS
1 A construção do direito administrativo como ramo autônomo do
direito público (1815-1848).
Desde as últimas décadas do Antigo Regime tentou-se sustentar que a administração
pública estaria sujeita a regras jurídicas distintas das regras do direito comum1.
Se as inovações administrativas napoleônicas contribuíram para acentuar esta tendência,
foi principalmente durante a Restauração que o problema da autonomia do direito
administrativo se revelou de maneira mais clara. Duas circunstâncias, em especial,
concorreram, durante o período, para a emergência de um direito próprio para a administração
pública: a mudança da função do Conseil d’État, consolidando-se como um órgão de
jurisdição própria para os assuntos administrativos, e a progressiva elaboração de uma ciência
do direito administrativo estabelecendo definitivamente seu lugar entre os ramos jurídicos2.
Após a queda de Napoleão mudaram-se as atribuições do Conselho de Estado (Conseil
d’État).
Durante o Império a instituição tinha a função política de conselheira do governo. Com
a Restauração e o receio das reminiscências do Império Bonaparte, a instituição passou a ser
vista com maus olhos. Luís XVIII, que mais a tolerava que a apreciava, preferiu destituí-la da
função de conselheira política, rebaixando-a a mero órgão consultivo e de tribunal
administrativo.
Esta redução da função política do Conselho de Estado, e a sua conseqüente
concentração nas novas funções jurisdicionais, evidenciaram a necessidade de um direito
próprio capaz de legitimar esta nova jurisdição3. A nova atribuição do Conselho de Estado
como órgão prioritariamente jurisdicional era uma das peças que faltavam para o nascimento
do direito administrativo como ramo autônomo.
A outra peça, que finalmente iria consagrá-lo como uma disciplina jurídica autônoma,
foi o oferecimento, pela Faculdade de direito de Paris, da disciplina enseignement de droit
administratif a partir do terceiro ano do curso. Esta determinação foi proferida pelo presidente
da Commission de l’instruction publique, o doctrinaire Royer-Collard. Como destaca
François Burdeau, “apesar da supressão temporária da disciplina pela reação ultramonarquista de 1822, a cátedra foi reabilitada em 1828, sob o governo moderado de
Martignac”. Mas o que merece aqui ser destacado é que, a partir desta data o direito
administrativo possuía uma cátedra específica que tinha por objeto o estudo da administração
pública 4.
Apesar da preocupação com a organização e entendimento das regras da administração
pública ser mais antigas que a Restauração, “nem o Antigo Regime, nem a Revolução, nem o
Império” promoveram a organização que a doutrina de direito administrativo produziu neste
período. Os primeiros especialistas do ramo tiveram “organizar incontáveis textos legislativos
e regulamentos, além de analisar as decisões tomadas pelo Conselho de Estado no exercício
1 Sobre a tentativa de criar então um “direito de polícia” autônomo, separado do direito privado e aplicável à
esfera estatal, Cf. BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années
1970). Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 1995; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite. A polícia e
o rei legislador. In: BITTAR, E. História do direito brasileiro. São Paulo: Atlas, 2003, p.91-108; STOLLEIS,
Michael. Storia del diritto pubblico in Germania – I (1600-1800). Traduzione di Cristina Ricca. Milano: Giuffrè
editore. 2008.
2 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). Paris:
Presses Universitaires de France (PUF), 1995. p.89.
3 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p.106.
4 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p.105-106.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
161
da função contenciosa”, que, pouco a pouco, foi estabelecendo um conjunto substancial de
regras jurisprudenciais administrativas”5.
Não por acaso, a “tríade fundadora” do direito administrativo foi composta por homens
familiarizados com as altas esferas da administração francesa - Barão Joseph-Marie de
Gérando (1772-1842), Louis-Antoine Macarel (1790-1851) e Louis de Cormenin (17881868). O primeiro era maître des requêtes e conselheiro de Estado desde o Império,
mantendo-se no cargo até sua morte. Macarel só ingressaria no Conselho de Estado sob a
Monarquia de Julho, mas já conhecia muito bem seus procedimentos, por ter advogado
durante algum tempo perante o órgão. Enfim, Cormenin, nomeado auditor em 1810, tornou-se
depois maître des requêtes e termina sua vida como conselheiro de Estado, após um longo
afastamento em virtude de atividades políticas, desenvolvidas entre 1830 e 18496.
A doutrina administrativa francesa do período foi dominada pelas publicações destes
três autores. Gérando publicou Institutes de droit admistratif em quatro volumes entre os anos
de 1828 e 1830. Macarel é autor de três obras importantes: Eléments de la jurisprudence
administrative (2 vol.,1818); um tratado Des tribunaux administratifs ou Introduction à
l’étude de la jurisprudence administrative (1828) e, mais tarde, um Cours de droit
administratif em quatro volumes (1842-1846)7. Cormenin publicou Du Conseil d’État
envisagé comme conseil et comme juridiction dans notre monarchie constitutionnelle (1818),
além de Questions de droit administratif (1822)8.
Foi a partir destas obras pioneiras que se deu início ao desenvolvimento de uma
literatura jurídica especializada9. Os primeiros escritos sobre direito administrativo revelaram
uma dupla hereditariedade: a primeira raiz provinha dos estudos sobre a Polícia dos séculos
XVII e XVIII; a outra, do culto à lei, consagrado pela Revolução10.
François Burdeau observa que a literatura jurídica produzida sobre a administração nos
anos pós-revolucionários apresentava um inegável tradicionalismo. Percebem-se nela
características típicas dos tratados de Polícia, como os inventários legislativos e a
sobreposição de temas desconexos em volumosos compêndios. Alguns anos se passaram até
que pioneiros como Macarel se aventurassem na inexplorada jurisprudência do Conselho de
Estado, mudando o foco de análise e modernizando o estudo sobre a administração. A
percepção da importância do estudo das decisões contenciosas do Conselho foi, sem dúvida
alguma, um passo decisivo na construção deste novo ramo da ciência jurídica11.
Para colocar-se definitivamente como um novo ramo do saber, era necessário que o
direito administrativo evidenciasse os limites do seu objeto e afirmasse sua singularidade em
relação a duas outras disciplinas autônomas próximas: a ciência da administração (science de
l’administration) e o direito comum (droit commun)12.
A ciência da administração era mais abrangente que o direito administrativo, tendo
herdado sua enorme área de interesse da antiga ciência da Polícia. Concentrando suas
atenções no aspecto sócio-político da administração, estudava as melhores formas de
5BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p.107-108.
6 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 108.
7 Este último será objeto da crítica de Tocqueville, de que trataremos a seguir no ponto 3.3.2.
8 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 108.
9 Sobre o desenvolvimento desta literatura ver BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la
Révolution au début des années 1970). p. 108 e ss.
10 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 111.
11 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 114.
12 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 118.
162
A CRÍTICA DE TOCQUEVILLE AO DIREITO ADMINISTRATIVO FRANCÊS
promover não apenas o controle e a ordem, mas também a prosperidade das sociedades,
estabelecendo o papel do poder público nesta construção.
A ciência da administração abarcava em si um amplo leque de disciplinas auxiliares.
Estas disciplinas auxiliares tinham por objeto aspectos da administração, tais como a sua
dimensão histórica, econômica, estatística e técnica burocrática. O direito administrativo
surgia, neste quadro, como mais um conhecimento específico requerido ao bom
administrador. Sua singularidade em relação aos ramos próximos era a abordagem
exclusivamente jurídica13.
Macarel diferenciava a “ciência da administração” do “direito administrativo”, dizendo
que “a ciência da administração é do domínio da especulação enquanto a ciência do direito
administrativo está ligada a esfera do positivo”14.
Definido o campo de interesse puramente jurídico em face de outras preocupações em
torno da administração, faltava ainda diferenciá-lo do direito comum. Em outras palavras, era
preciso responder as perguntas: Por que o direito administrativo deve ser tratado de forma
diferente do direito comum? O que justifica sua autonomia? O que justifica uma jurisdição
própria?
Como explica Burdeau, estas questões não tiveram respostas satisfatórias neste primeiro
momento. De qualquer modo, houve quem tentasse solucioná-las. Gérando afirmava que “o
direito administrativo se separa essencialmente do direito comum, tanto civil como criminal”.
Para Cormenin, bastava observar a natureza “da legislação, da jurisprudência, do ensino, dos
seus recursos e tratados” para concluir que “o direito administrativo é de fato uma science
véritable et compléte”15. Ducrocq posicionou o direito administrativo como um ramo do
direito público composto por princípios próprios essencialmente diferentes dos princípios de
direito privado.
Mas o que de fato ocorreu foi que o direito administrativo não conseguiu desenvolver
uma teoria jurídica coerente sobre o poder público, capaz de unificar seus princípios em
contraponto aos princípios do direito privado. Pelo contrário, mesmo depois desta primeira
geração de juristas, o direito administrativo seguiu com problemas para delimitar seu campo.
Continuou valendo-se amplamente das técnicas de direito privado, ao mesmo tempo em que
assimilava influências da teoria política liberal e do individualismo em suas regras e decisões.
Apesar do esforço dos fundadores do direito administrativo, estes tiveram na realidade mais
dificuldades que sucessos em fundamentar teoricamente a autonomia do direito
administrativo. O ramo nascia com claras influências do direito individualista privado e com
extrema dificuldade em justificar teoricamente sua especificidade como ramo da ciência
jurídica16.
2 A crítica de Tocqueville a obra de Macarel.
O modelo do direito administrativo francês foi “o arquétipo de direito administrativo no
continente europeu”17.
13 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 118120.
14 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 120.
15 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 120.
16BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 122.
17Rebuffa na obra La formazione del diritto amministrativo in Italia, trata de explicar esta influência francesa no
direito administrativo continental, em especial na Itália, chamando atenção para o atraso com que a crítica
tocquevilliana ao direito admistrativo chegou ao seu país Cf. REBUFFA, Giorgio. Le tendenze del diritto
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
163
Tocqueville foi um analista político, não um jurista. O que não o impediu nem de
criticar o direito vigente nem de pensar um dever ser para o Estado e para o direito público
nas eras democráticas.
O autor observava a centralização administrativa francesa na perspectiva da sua teoria
política sobre liberdade. E, como se sabe, destacou de maneira exemplar a dimensão política
da administração pública. As soluções legais e institucionais para o problema da liberdade
política nas democracias passariam, segundo ele, pelo uso que os legistas fariam do seu poder
normativo, no sentido de favorecer a participação do cidadão em assuntos da administração
pública.
Tocqueville mostrava desde a graduação em direito, um desprezo pelo dogmatismo em
matéria jurídica. A lei, para o autor, podia ser boa ou ruim, mas não deveria ser celebrada só
por ser lei. Tocqueville criticava o direito vigente, pois imaginava um direito melhor.
Um direito, por exemplo, que possuísse a aptidão de despertar o interesse dos cidadãos
pelos assuntos públicos.
Segundo ele,
Não depende das leis reavivar as crenças que se extinguem, mas depende das leis
interessar os homens pelo destino de seu país. Depende das leis despertar e dirigir
esse instinto vago da pátria que nunca abandona o coração do homem e, ligando-o
aos pensamentos, às paixões, aos hábitos de cada dia, transformá-lo num
sentimento refletido e duradouro. E não venham dizer que é tarde demais para tentálo: as nações não envelhecem da mesma maneira que os homens. Cada geração que
nasce em seu seio é como um outro povo que vem se oferecer à mão do legislador 18.
Para Tocqueville, como legista, as leis de direito público, não deveria entregar a
administração pública inteiramente a um corpo de funcionários. Na sua perspectiva, isso seria
fatal para o futuro da liberdade política. Para ele, pelo contrário, o problema da administração
pública não era centrado na questão da eficiência, mas sim nos efeitos políticos que esta
poderia promover ou barrar na sociedade.
Admitirei de resto, se quiserem, que as cidadezinhas e os condados dos Estados
Unidos seriam mais utilmente administrados por uma autoridade central situada
longe deles e que lhes permanecesse estranha, do que por funcionários recrutados
em seu seio. Reconhecerei se exigirem, que reinaria mais segurança na América, que
se faria um uso mais inteligente e mais judicioso dos recursos sociais, se a
administração de todo o país fosse concentrada em uma só mão. As vantagens
políticas que os americanos extraem do sistema de descentralização ainda me fariam
preferi-lo ao sistema contrário19.
Para o autor, a França de seu tempo era constituída por um povo de administrados. Já a
democracia americana por verdadeiros cidadãos.
Tocqueville diferenciava o cidadão americano do administrado francês. O cidadão era
um homem ativo com uma vida política; o administrado francês, um homem que recebia de
forma passiva as ordens de um tutor.
Como vemos, antes de receber a tarefa de apresentar uma resenha da obra de Macarel à
Académie des Sciences morales em 1846, Tocqueville já possuía uma postura crítica bem
amministrativo continentale e la loro influenza in Italia In: La formazione del diritto amministrativo in Italia.
Bolonha: Società editrice il Mulino, 1981. p. 11-32.
18TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2001. v.1. p. 106-107. TOCQUEVILLE, Alexis de.
De la démocratie en Amérique. v.1. p. 159-160.
19 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2001. v.1. p. 104. TOCQUEVILLE, Alexis de. De la
démocratie en Amérique. v.1. p. 157.
164
A CRÍTICA DE TOCQUEVILLE AO DIREITO ADMINISTRATIVO FRANCÊS
desenvolvida sobre o tema da administração pública20. Especialmente no que tange o tema da
centralização administrativa.
No relatório (Rapport) sobre o Cours de Droit aministratif, Tocqueville reconheceu o
mérito do livro de Macarel. Segundo o autor, “constitui um verdadeiro código
administrativo”, dando conta de organizar mais de oitenta mil leis e ordenanças. Oferecendo
ao público um “quadro racional e completo” do sistema administrativo francês, Macarel teria
conseguido extrair das disposições legislativas e dos fatos uma teoria que constituiria a
essência do livro21. Este faria uma descrição minuciosa da estrutura, composição e
funcionamento do edifício administrativo francês, narrando em detalhes os trâmites da
burocracia administrativa e os direitos e deveres dos funcionários públicos22.
Os elogios ao talento descritivo paravam, no entanto, por aí. Tocqueville passava então
a ironizar as passagens sobre a história da frança no livro, dizendo que “nada é mais instrutivo
que perceber nascer, crescer e desenvolverem-se” cada um dos diferentes poderes desta
administração centralizada que, “por toda a parte, encerra a existência individual dos
cidadãos”23.
A crítica de Tocqueville não se centrava nem contra Macarel, nem no direito
administrativo em si, mas sim na celebração da administração pública centralizada, sem a
devida atenção ao papel prejudicial que esta apresentava para o desenvolvimento da liberdade
política na França.
M. Macarel se abstém completamente de qualquer julgamento; não faz mais que
descrever. Ele limita assim, voluntariamente, seu horizonte; ele se refere
estritamente ao que é (ce qui est), sem jamais tentar descobrir o que deveria ser
(devrait être). Sempre nos pareceu que a principal meta de um professor que se
propusesse a ensinar esta nova ciência seria contestar o nosso direito
administrativo24.
Porém M. Macarel gastava todo o seu tempo descrevendo e explicando nos mínimos
detalhes a máquina administrativa francesa. Ignorava completamente que “a maioria das
instituições” que descrevia e comentava eram agora, na França, “objeto das mais vivas
críticas”25.
No entanto, o problema mais grave, segundo Tocqueville, não seria tanto a falta de
espírito crítico em Macarel, mas sua tentativa de extrair das descrições da atual administração
20 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre
de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. publiées par
Mme de Tocqueville [et Gustave de Beaumont] , Études économiques, politiques et littéraires – Tome IX.
1866.p.66-75.
21 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie dês sciences Morales et politiques (1846), sur le livre
de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.62.
22 Segundo Tocqueville, “M. Macarel nous fait descendre pas à pás l’echelle immense sur laquelle se placent les
uns au-dessous des autres, sans confusion, mais presque sans fin, la multitude des fonctionnaires qui composent
parmi nous la hiérarchie administrative, depuis le roi jusqu’au dernier agent de a l’autorité. A chaque degré,
l’auteur s’arrête, il dit comment chaque foncionnaire est nommé, quels rapports nécessaires existent entre lui et
ceux qui sont placés plus haut et plus bas, quel est le champ de son action, quels sont sés devoirs et sés droits, à
quelle époque, comment et pourquoi il a été créé. [...]”.TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie
des sciences morales et politiques (1846), sur le livre de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In:
Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.62.
23TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences Morales et politiques (1846), sur le livre
de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.62.
24TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre
de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.65.
25 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre
de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.65-66.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
165
axiomas do direito e princípios gerais. Estes, apesar de totalmente equivocados, seriam muito
perigosos.
O axioma mais perigoso e que constituiria a grande novidade do livro de Macarel,
segundo Tocqueville, seria “a regra geral e absoluta de competência que ele funda na França:
existem agora duas espécies de jurisdições ordinárias (deux espèces de justice ordinaire)26.
Aqui Tocqueville concentra a crítica fundamentalmente em três pontos. I) no
contencioso administrativo, por criar um direito e uma jurisdição de exceção ao direito
comum (tribunaux exceptionnels27); II) na tendência à nomeação direta para cargos de chefia
pelo Executivo, muitas vezes deixando a administração do país nas mãos de um funcionário; e
III) na tendência à desresponsabilização dos funcionários, em especial por estes serem
julgados por um tribunal administrativo ao invés da jurisdição comum.
Quanto à pretensão de Macarel de transformar estes fatos em axiomas, Tocqueville
advertia: “estes não são, meus Senhores, ouso dizer, os axiomas do direito de nenhum povo
livre, diria mais, nenhum povo civilizado daria a forma geral e absoluta que M.Macarel os
conferiu”28.
Tocqueville, ao final do relatório-crítico, reclamava aos publicistas franceses um
trabalho de direito administrativo que conseguisse conjugar - o que M.Macarel não fizera - o
direito administrativo com as críticas políticas à centralização. Deveria ser pensado um direito
administrativo novo, “compatível com a Monarquia constitucional e o governo
representativo”. Não cabia celebrar o direito vigente nesta matéria.
Tocqueville nunca teve a intenção de escrever este tratado de direito administrativo.
Mas, por outro lado, apresentou uma crítica substancial contra a formação deste direito. E fez
sugestões para a construção de “um outro” direito, mais compatível com a liberdade política.
Analisando-se o destino histórico do Conselho de Estado e do contencioso
administrativo francês, percebe-se, mais uma vez, que também neste aspecto o discurso
tocquevilliano saiu derrotado. Muito embora, como destaca Lucien Jaume, “muitos problemas
enfrentados pela França para estabelecer a liberdade política passassem por questões que
haviam sido colocadas pelo autor já neste momento”29. Especialmente quanto à necessidade
de explorar a dimensão política “democrática” da administração pública.
Conclusão
Para Tocqueville, a administração pública nas democracias deveria ser descentralizada
para que pudesse estimular os homens a se auto-organizarem para resolver problemas
comuns.
Portanto, era, também, papel dos estudos de direito administrativo desenvolver este
direito democrático30. O dever ser político da administração pública era estimular a
participação do cidadão na esfera pública, e não impor por todo o lado a atividade burocrática
da administração centralizada.
26 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre
de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p. 66.
27TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre
de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.67-68.
28 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre
de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p. 67.
29 JAUME, Lucien. Tocqueville face au theme de la “nouvelle aristocratie”: la difficile naissance des partis en
France. Paris: Revue française de science politique, vol. 56, n. 6, décembre, 2006, p.982.
30 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre
de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p. 71-75.
166
A CRÍTICA DE TOCQUEVILLE AO DIREITO ADMINISTRATIVO FRANCÊS
Para o autor, a centralização administrativa deveria ser desarticulada e não promovida
pelos legistas.
Macarel e os outros fundadores do direito administrativo francês fizeram o que
Tocqueville temia. O Conselho de Estado consolidou-se, especialmente a partir de 1870, sob
o Segundo Império, como um órgão de jurisdição própria, também graças a contribuição
destes primeiros trabalhos, pioneiros na descrição do imenso Estado “tutelar” a que a
modernidade deu origem.
O dever ser do direito administrativo desejado por Tocqueville ficou nas páginas da
história como um discurso derrotado. E grande parte do prestígio do direito administrativo
francês, durante o século XIX, deu-se, justamente, pelo alto grau de desenvolvimento das
instituições administrativas francesas no sentido da centralização.
O Conselho de Estado, ainda hoje, é uma instituição fundamental do Estado francês31.
O contencioso administrativo que se construía à época de Macarel tornou-se um sólido fato.
Os prejuízos à liberdade política provocados por esta jurisdição administrativa centralizada a
qual Tocqueville chegou a chamar de “justiça de exceção”, fogem do limite do nosso
trabalho.
Nos restringimos aqui a apresentar a crítica de Tocqueville à centralização
administrativa francesa. Além de algumas das idéias tocquevillianas sobre descentralização,
democracia e liberdade política. Idéias que desenvolveu em seus textos, desejando influenciar
os legistas franceses para que articulassem em suas leis os novos direitos políticos e
administração pública, visando, com isso, estabelecer um lugar apropriado para o cidadão
exercitar a soberania então nascente democracia.
31 Sobre a atual composição do Conseil d’État, sua história e banco de dados da sua jurisprudência
administrativa, ver site oficial: http://www.conseil-etat.fr/cde/.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
167
O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO
THE PROBLEM OF NECESSITY IN THE SANTI ROMANO’S THOUGHT
João Paulo Arrosi*
*
Doutorando em direito pela Universidade Federal do Paraná e mestre pela mesma instituição. Foi bolsista do
CNPq e atualmente é bolsista da CAPES/PROEX (Programa de Excelência). Professor da Faculdade de Direito
de Curitiba (UniCuritiba).
168
O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO
Em 28 de dezembro de 1908, um terremoto de magnitude jamais vista irrompe ao
sul da península itálica e assola as províncias de Messina e Reggio-Calábria e todo o seu
entorno1. A catástrofe parece superar em destruição e horror mesmo a antiga lembrança de
devastação do monte Etna.
No ano seguinte, Santi Romano, “um jurista que exerceu extraordinária influência
sobre o pensamento jurídico europeu entre as duas guerras”2, publica um ensaio por
ocasião do terremoto calábrico-sículo a respeito dos decretos-lei e do próprio estado de
sítio3 declarado por questões de ordem pública – para fazer face, sobretudo, às ondas de
vandalismo e pilhagem que se seguiram à tragédia.
O respectivo decreto real, promulgado em 3 de janeiro de 1909, menciona como
fatores da declaração do estado de sítio “a necessidade e a urgência improrrogável de
prover a todos, imediatamente, os serviços públicos mínimos”, a “ordem e segurança
pública” e ainda exara “que cessou de fato a jurisdição ordinária e que é impossível
reconstruí-la de imediato”, uma vez que “o cataclismo telúrico ocorrido (...) criou uma
situação – dado certos efeitos – idêntica e – devido a outros – mais grave que aquela
verificada nos territórios em estado de guerra”4.
No ensaio, Romano procura demonstrar que, embora extralegal, o fenômeno da
necessidade – que seria o fundamento do estado de sítio – é produtor do direito e,
enquanto tal, fonte sua primária e originária:
necessitas legem non habet. A necessidade da qual nos ocupamos deve conceber-se
como uma condição de coisas que, ao menos de regra e de modo completo e
praticamente eficaz, não pode ser disciplinada por normas precedentemente estáveis.
Mas se ela não possui lei, faz lei, como diz uma outra expressão usual; o que quer
dizer que constitui ela mesma uma verdadeira e própria fonte de direito. E note-se
bem que o seu valor não é restrito ao caso especial dos poderes de urgência do
Governo, mas é bem mais amplo e possui manifestações bem mais importantes e
gerais. Pode-se dizer que a necessidade é a fonte primeira e originária de todo o
direito, de maneira que, no que diz respeito a ela, as outras [fontes] hão de ser
consideradas de certo modo derivadas.5
Segundo Romano, é na necessidade que se “deve procurar a origem e a legitimação
do instituto jurídico por excelência, vale dizer, do Estado, e em geral de seu ordenamento
constitucional, quando instaurado por um procedimento de fato, por exemplo, através da
revolução”:
E o que se verifica no momento inicial de um determinado regime pode também se
repetir, se bem que em linha excepcional e com caracteres mais atenuados, também
quando este tenha firmado e regulado as suas instituições fundamentais. (...) é um
1
As crônicas da época mencionam o pior terremoto de que se tem memória nos últimos dois mil anos. A
intensidade da força sísmica, que produziu ainda um maremoto, atingira entre XI e XII graus na escala de
Mercalli (correspondentes a atuais 7,1 graus na escala Richter). A devastação pôs abaixo noventa por cento das
construções e edificações de Messina e produziu cerca de cento e quarenta mil vítimas entre mortos e
desaparecidos. Eram 05h21min da manhã quando começou o tremor que, segundo relatos de sobreviventes,
durara “intermináveis” trinta e sete segundos. Além disso, as réplicas de menor intensidade se repetiram até fins
de março de 1909.
2
AGAMBEN, Giorgio. Stato di eccezione. Torino: Bollati Boringhieri, 2003, p. 37.
3
‘Sui decretti-legge e lo stato di assedio in occasione del terremoto di Messina e di Reggio-Calabria’. Rivista di
diritto pubblico, Milano, 1909 (republicado em Scritti minori, vol. 1. Milano: Giuffrè, 1950, pp. 287-310).
4
Ibid., p. 288.
5
Ibid., p. 297-298.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
169
fato que, por sua natureza, apresenta-se com as características do direito, é a
necessidade, primeira fonte deste último. 6
Santi Romano adverte, porém, que a noção de necessidade não significa “um resíduo
das teorias de direito natural”, direito este que, enquanto tal, consistiria sempre em normas
racionais dedutíveis e estaria já sempre concebido. A necessidade, por outro lado, se
impõe e se materializa “não como uma exigência da razão, mas como um comando
inteiramente prático e, sobretudo, traduz-se em institutos e normas tornados válidos pelos
órgãos estatais. Estamos, assim, sem dúvida, no campo do direito positivo mais estrito e
próprio”7.
Mas se é o próprio Estado que faz valer aqueles institutos e normas que, por razões
práticas e concretas e mesmo para a conservação da própria estrutura estatal, até então não
estavam – ou não estavam de todo – delineados e delimitados, o que se vê então é uma
espécie de indeterminação originária entre a esfera do jurídico e aquela do político.
Ainda em 1909, Santi Romano profere o discurso inaugural do ano acadêmico da
Universidade de Pisa, sob o título Lo stato moderno e la sua crisi. Não é um acaso que o
jurista siciliano faça menção às instituições políticas enquanto fenômenos (conquanto de
difícil descrição e de aspectos variados e fugazes) também governados pela lei estatal:
Toda ciência encontra na sua própria natureza e nos procedimentos que lhe são
próprios algumas causas particulares e específicas de erros. Mas talvez nenhuma
esfera do conhecimento humano concentre em si copiosas e perenes fontes de ilusão
como aquela que possui por objeto o estudo das instituições políticas. Trata-se de
fenômenos cuja simples descrição é dificílima, seja porque a forma frequentemente
oculta e transvia a substância, seja porque, resultando da luta contínua e jamais
harmonizada de princípios irreconciliáveis, apresentam-se sob aspectos ao mesmo
tempo múltiplos e fugidios. (...). Mas também tais fenômenos são governados pelas
leis, em cujo ápice está aquela pela qual o direito e a constituição de um povo
representam sempre o genuíno produto da sua vida e da sua íntima natureza. 8
É certo que alguns anos antes Santi Romano havia já tocado, ainda que ligeiramente,
o tema da necessidade ao estudar, primeiro, a instauração de fato de um ordenamento
constitucional e sua respectiva legitimação; e, num segundo momento, ao tratar dos
limites da função legislativa no direito italiano. No primeiro estudo, que Romano
considera como um ensaio “de direito” no sentido estrito do termo, se “indaga o momento
supremo em que um direito positivo assimila e absorve com a sua potência de atração
aquilo que lhe é estranho ou também hostil; o momento em que um direito positivo por
necessidade de fato cai para dar lugar a outro”9. No outro ensaio, composto, segundo o
título, de “observações preliminares” no que tange aos limites da função legiferante,
Romano já apresenta, por outro lado, alguns contornos bastante nítidos sobre o que
entende por necessidade:
(...) aquela necessidade que é a fonte primeira do direito, daquele direito que brota
imediatamente e diretamente das forças sociais, de modo assim categórico, explícito,
certo, a não permitir que entre as necessidades sociais [bisogni sociali] mesmas que
determinam a norma jurídica e a descoberta e a declaração desta última se
6
Ibid., p. 298.
Ibid., p. 298-299. Mais à frente Romano afirmará ainda: “Que a necessidade possa prevalecer sobre a lei deriva
de sua própria natureza e de seu caráter originário, assim como do ponto de vista lógico quanto do histórico. Há
normas que ou não podem ser escritas ou não é oportuno que o sejam; outras que não podem ser determinadas
senão quando se verifica o acontecimento ao qual devem servir” (p. 299-300).
8
In Scritti minori, ob.cit., p. 311.
9
‘L’instaurazione di fatto de un ordinamento costituzionale e sua legittimazione’. In Archivio giuridico, LXVIII,
Modena, 1901 (republicado em Scritti minori, vol. 1. Milano: Giuffrè, 1950, p. 108).
7
170
O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO
interponha a atividade racional dos órgãos competentes a esta declaração. A
necessidade, assim entendida, não é um pressuposto da regula iuris, mas é ela
mesma direito, no sentido de que este é seu produto imediato e, por assim dizer, de
primeiro grau; (...). Compreende-se como nesta matéria se está nos extremos confins
da norma jurídica, que não pode ter uma rigidez e uma precisão absoluta: o grau da
necessidade, a sua natureza, os confins dentro dos quais se deve obtemperar com
relação a ela, não podem ser determinados com critérios a priori.10
Quase duas décadas após esses escritos, Romano publicará aquela que talvez seja
sua obra mais significativa, L’ordinamento giuridico, surgida entre 1917 e 1918 nos
Annali delle Università toscane e, em seguida, publicada por uma casa editorial de Pisa. A
peculiaridade dessa obra parece estar no fato de Romano colocar-se a pergunta radical
concernente à própria juridicidade do ordenamento, assim como procurar respondê-la a
partir do âmbito mesmo do fenômeno jurídico.
Nessa obra, Romano explicitamente polemizará com Hans Kelsen, mas também,
entre outros, com Léon Duguit, por reduzirem o fenômeno jurídico simplesmente a
normas. A controvérsia entre Kelsen e Romano prosseguirá e se exasperará até o final da
vida deste. Consoante se observa da segunda edição, de 1945, Romano anota de modo
resoluto não ser possível conceituar adequadamente as normas compreendidas no
ordenamento “sem antepor o conceito unitário deste último, assim como não se pode ter
uma ideia exata dos vários membros do homem ou das rodas de um determinado carro, se
não se sabe antes o que seja o homem ou aquele carro”11:
Em outros termos, o ordenamento jurídico, assim compreensivamente entendido, é
uma entidade que se move, em parte, segundo as normas, mas, sobretudo, move as
normas mesmas, quase como peças num tabuleiro, que assim representam menos um
elemento de sua estrutura do que, principalmente, o objeto e o meio de sua
atividade.12
Essa constatação, do ponto de vista lógico, implica que “o direito não é ou não é
somente a norma posta, mas a entidade mesma que a põe”13. Assim, Romano concebe o
direito como aquilo que, “antes de ser norma, antes de concernir a uma simples relação ou
a uma série de relações sociais, é organização, estrutura, postura [posizione] da sociedade
mesma na qual se desenvolve e que o constitui como unidade, como ente por si existente”.
Vale dizer, o direito é ordenamento.
Mas se o direito é a própria organização ou estrutura que o constitui em um todo e
em uma unidade, se é postura e afirmação da própria sociedade onde se desvela e se torna
existente por si, Romano chega àquilo que será o cerne de sua reflexão – o conceito de
instituição:
Se assim é, o conceito que nos parece necessário e suficiente para propiciar em
termos exatos o [conceito] de direito, como ordenamento jurídico considerado no
seu complexo e na sua unidade, é o conceito de instituição. Todo ordenamento
jurídico é uma instituição e, vice-versa, toda instituição é um ordenamento jurídico:
a equação entre os dois conceitos é necessária e absoluta. 14
10
‘Osservazioni preliminari per una teoria sui limiti della funzione legislativa nel diritto italiano’. In Archivio del
diritto pubblico, I, Roma, 1902 (republicado em Scritti minori, vol. 1. Milano: Giuffrè, 1950, pp. 194-195).
11
L’ordinamento giuridico. 2. ed. Firenze: Sansoni, 1945 (ristampa 1951), p. 12.
12
Ibid., pp. 15-16.
13
Ibid., p. 19.
14
Ibid., p. 27.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
171
À pluralidade de instituições corresponderá, portanto, a pluralidade de ordenamentos
jurídicos. Não é à toa que toda a segunda parte de L’ordinamento seja dedicada à
pluralidade dos ordenamentos jurídicos e às relações entre si.
Para Romano, a instituição provém, antes de tudo, de um factum. “A sua origem não
é um procedimento regulado por normas jurídicas; é, como repetidamente se pôs em
evidência, um fato”:
O direito não pode ser somente a norma posta pela organização social, como
frequentemente se diz, mas é a organização social que, entre outras manifestações
suas, põe também a norma. Se é verdade que o caractere jurídico desta é dado pelo
poder social que a determina ou, ao menos, a sanciona, segue-se que este caractere
deve já encontrar-se na instituição, que não poderia atribuí-lo à norma se ela mesma
já não o possuísse.15
A despeito de conceber a instituição como um ente vinculado de modo primário e
originário à facticidade, Romano, contudo, não mencionará em parte alguma de seu
L’ordinamento aquela noção de necessidade – ou mesmo o termo em si – que havia
apresentado no ensaio de 1901 e, sobretudo, no de 1909 a respeito do terremoto sículocalábrico.
Em setembro de 1944, porém, período em que a Itália enfrentava uma profunda
guerra civil – de um lado, as repúblicas de resistência (repubbliche partegiane) e, de
outro, a República Social Italiana fundada há exato um ano por Mussolini –, Santi
Romano volta a se preocupar com situações de fato geradoras de direito, especialmente
com o tema da revolução, e detém-se sobre um de seus últimos escritos, Rivoluzione e
diritto. (Após este ensaio, publicado postumamente, Romano apenas escreverá outros
dois, além da segunda edição de L’ordinamento giuridico, concluída em novembro de
1945).
Nesse ensaio é apresentada uma fórmula aparentemente paradoxal: “a revolução não
pode ser, por definição, mais que um estado de fato, antijurídico, mesmo quando é
justo”16. A legitimidade ou justiça do movimento revolucionário, assim como de suas
ações, diria respeito apenas e tão só à sua economia interna e à forma de se autodefinir, ao
passo que, em relação ao ordenamento jurídico (estatal) contra o qual se dirige, a
revolução seria inteiramente antijurídica.
Que, por sua vez, Giorgio Agamben tenha visto em tal fórmula e no modo como
Romano concebe a revolução uma retomada do “problema da necessidade” 17, é algo que
precisa ser observado mais de perto e com alguma cautela, já que o próprio Romano não
aborda o tema da necessidade no ensaio.
Não aborda, mas parece, por outro lado, fornecer uma pista valiosa logo no seu
início, ao fazer referência expressa – e em termos opostos à interpretação feita por
Agamben – à necessidade, para depois, ao longo de todo o texto, não mais sequer
mencioná-la:
Trata-se evidentemente de dois fenômenos de natureza análoga: uma guerra é uma
revolução da comunidade internacional, e uma revolução, mesmo se não assume as
proporções e as formas de guerra civil, é uma guerra na comunidade estatal. E,
talvez, sejam ambos índices de uma patologia análoga. Sem intenção de generalizar,
o que seria demasiado simplismo, pode-se considerar que frequentemente recorrem à
15
Ibid., p. 51.
‘Rivoluzione e diritto’, in Frammenti di un dizionario giuridico, Milano: Giuffrè, 1947, p. 222.
17
Stato di eccezione, op. cit., p. 39.
16
172
O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO
guerra como à revolução não impostas pela inelutável necessidade os povos que não
sentem em si a força de construir a sua história com a serena paciência, concedida
somente pela fé na própria perenidade e nos próprios destinos, e se iludem que as
improvisações mais ou menos efêmeras dos movimentos violentos possam substituir
a solidez de uma gradual e natural evolução.18
Ainda que Santi Romano não tenha tratado e vinculado propriamente a necessidade
– que outrora havia concebido como fonte primária e originária do direito – às análises
que fizera sobre o tema da revolução, mas, pelo contrário, tenha feito questão de expressar
que ali estava pressupondo sua assimetria, parece que, de todo modo, algum lugar
proeminente ainda era reservado à “inelutável necessidade”. Não por outra razão o próprio
fato de explicitar aquela pressuposta desvinculação.
É certo que Romano não queria generalizar suas considerações, o que permite supor
que o então velho jurista evidentemente sabia que guerras ou revoluções eventualmente
poderiam ser impelidas por necessidades inelutáveis, conquanto não fosse esse o mote e a
preocupação do ensaio. Mas, então, qual a relação que Romano tinha em mente entre fato
e necessidade no preâmbulo desse último escrito? E qual a relação entre necessidade e a
origem fática e institucional do direito no seu L’ordinamento?
A segunda edição de L’ordinamento foi publicada em 1946 e lê-se no prefácio,
escrito em Roma seis meses após a rendição nazifascista, que Romano considerou
oportuno que a segunda edição viesse conforme o texto originário, sem qualquer
modificação, “apenas algumas notas (...) para levar em conta a literatura posterior sobre
vários argumentos por mim tratados e, muito sobriamente, algumas críticas mais
importantes que me foram dirigidas”. As notas são várias, mas não infirmam ou põem em
dúvida um argumento sequer do bojo do texto. E permanece, portanto, límpida a
afirmação de que a origem do ordenamento jurídico, do direito ou da instituição –
conforme a define Romano – “não é um procedimento regulado pelas normas jurídicas; é
(...) um fato”19. Ou, como aparece, no sumário, no título do parágrafo respectivo (§ 16), “o
surgir de uma instituição”.
A propósito, é significativo que Alberto Romano, atual catedrático de direito
administrativo da Universidade “La Sapienza” de Roma, considere que “um livro
intimamente conectado com O ordenamento” seja “os Frammenti di un dizionario
giuridico”20, justamente a compilação que contém o ensaio de 1944 sobre a revolução.
Pois bem. A hipótese maior deste ensaio – que se esboça aqui como projeto de
investigação – é a de que o problema da necessidade, ainda que sob certo aspecto
implícito, está na base da edificação do pensamento de Santi Romano sobre a teoria do
direito, isto é, constitui o pressuposto tácito de toda a economia de L’ordinamento, assim
como informa e perpassa sua obra de direito público como um todo.
Mas também, implicada nesse contexto, está a própria problemática da relação entre
fato e direito – vale dizer, a separação e a articulação entre quaestio iuris e quaestio facti,
entre juridicidade e facticidade no pensamento de Santi Romano.
De resto, será conveniente analisar duas outras hipóteses laterais ou secundárias que
se mostram, de algum modo, atreladas àquela maior. A primeira diz respeito à importância
18
‘Rivoluzione e diritto’, op. cit., pp. 220-221. Sem grifo no original.
Op. cit., pp. 50-51.
20
Nota Bio-bibliográfica sobre Santi Romano. In O Ordenamento Jurídico. Trad. Arno Dal Ri Júnior.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008, p. 55.
19
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
173
da teoria do ordenamento jurídico de Santi Romano – e, por certo, o problema da
necessidade aí implicado – para as concepções do jurista alemão Carl Schmitt como, por
exemplo, a relação entre necessidade em Romano e decisão em Schmitt.
É sabida a influência da obra de Romano sobre o pensamento de Schmitt,
especialmente no que se refere ao conceito de instituição daquele. O pensamento de Santi
Romano – simplificado e homogeneizado pela nomenclatura “institucionalismo” –
costuma ser classificado entre as teorias consideradas não-formais, como também alocado
no gênero dos pluralismos jurídicos. São conhecidas na doutrina, ademais, outras
formulações acerca do conceito de instituição, principalmente a de Maurice Hauriou; o
próprio Romano, de resto, reserva todo um capítulo de seu L’ordinamento para “os
precedentes doutrinários do conceito de instituição”.
Carl Schmitt, igualmente, apresentará sua própria concepção de instituição – e é
preciso ter em vista, aqui, os influxos exercidos pelo pensamento de Romano. Pois, como
diz Giorgio Agamben, “com toda probabilidade, Schmitt, que se refere várias vezes a
Santi Romano em seus escritos, conhecia a tentativa deste de fundar o estado de exceção
na necessidade como fonte originária do direito. A sua teoria da soberania como decisão
sobre a exceção concede ao Notstand uma posição realmente fundamental, sem dúvida
comparável àquela que lhe reconhecia Romano ao fazer dele a figura originária da ordem
jurídica”21. Além disso, Schmitt “compartilha com Romano a ideia de que o direito não se
exaure na lei (não é um acaso que ele cite Romano justo no contexto de sua crítica ao
Rechtsstaat liberal)”22.
A semelhança entre a noção de Romano sobre ordenamento jurídico (e sua
pluralidade) e como Schmitt o concebe fica, igualmente, visível quando este afirma que
“todo e qualquer ordenamento, também o ‘ordenamento jurídico’, está vinculado a
conceitos normais concretos que não são derivados de normas genéricas, mas geram tais
normas a partir do seu próprio ordenamento e com vistas a ele”23.
E um exemplo, ademais, decisivo da influência de Romano sobre as reflexões de
Schmitt não é outro senão a explícita e aquiescente menção ao L’ordinamento quando
tratara dos três tipos de pensamento jurídico:
No seu livro L’ordinamento giuridico, Santi Romano afirmou com razão que não é
correto falar do direito italiano, francês etc. e pensar a propósito apenas em uma
soma de regras, ao passo que na verdade esse direito é constituído em primeiro lugar
pela organização complexa e diversificada do Estado italiano ou francês enquanto
ordenamentos concretos, pelas muitas instâncias e vinculações de autoridade pública
ou poder de Estado que produzem, modificam, aplicam e garantem as normas
jurídicas, mas não se identificam com elas. (...)24. Com razão ele acrescenta que uma
alteração da norma é mais consequência do que causa de uma alteração do
ordenamento.
(...)
Somente nas últimas décadas a distinção aqui desenvolvida entre pensamento da
norma e do ordenamento apareceu com contornos nítidos e foi tornada consciente.
21
Stato de eccezione, ob. cit., p. 41.
Ibid.
23
SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos de pensamento jurídico. Trad. Peter Naumann. In MACEDO Jr., Ronaldo
Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do direito. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 177.
24
Neste instante Schmitt então transcreve o trecho da obra de Romano reproduzido supra, correspondente à
nossa nota 19.
22
174
O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO
Em autores mais antigos praticamente não encontraremos uma antítese como a da
passagem antes citada de Santi Romano.25
Parece ainda conveniente – agora no que concerne à segunda hipótese lateral –
perscrutar as relações, os pontos de encontro e as dessemelhanças entre o problema da
necessidade em Santi Romano e o instituto jurídico-penal do estado de necessidade nas
suas matrizes italiana e alemã.26
Uma vez que a figura da necessidade parece dizer respeito a um limiar
indeterminado e fronteiriço entre fato e direito, ou ainda, a um fator metajurídico, então se
afigura intrigante que justo um fator assim se mostre sob a forma de um instituto jurídico
no interior de um ramo do direito. É, pois, significativo que haja um escalonamento de
hipóteses de fato (Tatbestände, fattispecie) que o direito penal procura delinear para poder
apreender a situação de necessidade, incluí-la no ordenamento jurídico e regrá-la através
dele.
Por sua vez, são indicadas as matrizes italiana e alemã do direito penal moderno
porque são precisamente essas as mais representativas e influentes do direito penal
moderno, bem como são as recepcionadas pela legislação e pela doutrina brasileiras no
tocante ao instituto do estado de necessidade. No nosso Código Penal atual, a previsão do
estado de necessidade (art. 24) segue justamente a fórmula do Código Rocco de 1931, em
relação à qual se costuma falar de uma “teoria unitária” do estado de necessidade. De
outro lado, em nosso Código Penal Militar, os dispositivos referentes ao estado de
necessidade (arts. 39 e 43) adotam a chamada “teoria diferenciadora”, herança direta e
imediata da legislação e da doutrina penais alemãs. De resto, a doutrina brasileira sobre o
referido instituto tradicionalmente trata ambas as teorias fundamentais para a interpretação
do artigo 24 do Código Penal.
Quanto à última teoria, o penalista alemão talvez mais importante da primeira
metade do século passado, Hans Welzel, a delineia em breves palavras: “La acción en
estado de necesidad es antijurídica cuando no es el médio adecuado para el fin adecuado,
pero se le exculparia por inexigibilidad de la conducta conforme a derecho. Así, la ‘teoria
dominante de la diferenciación’ (justificación sólo bajo las condiciones del estado de
necesidad supralegal, en caso contrario sólo exculpación).”27. Vale dizer, na teoria
diferenciadora tem-se tanto o estado de necessidade justificante, em que há sacrifício de
bem de menor valor jurídico em prol daquele de valor superior, quanto o estado de
necessidade exculpante – sacrifício de bem de igual ou maior valor jurídico, e cuja razão
para a exculpação está na inexigibilidade de comportamento conforme ao direito dada à
anormalidade da situação ou circunstâncias de fato. Em ambos os casos, trata-se de
conflito ou colisão de direitos ou interesses.
Em monografia acerca do problema dos conflitos de deveres (ou direitos),
Alessandro Baratta esclarece que “o problema é, em geral (...), tratado pela moderna
doutrina tedesca sob o título do estado de necessidade, em particular do estado de
necessidade supralegal. Conquanto substancialmente já contido na sentença de 11 de
março de 1927 (...), o conceito de estado de necessidade supralegal (übergesetzlicher
25
SCHMITT, Sobre os três tipos de pensamento jurídico, op. cit., p. 178.
O instituto moderno do estado de necessidade no direito civil também se insere nesse contexto, porém, como
ele se desenvolve na esteira de seu correlato jurídico-penal, é conveniente ao menos nesta sede e por ora
enfatizar com primazia este último.
27
WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Trad. Juan Bustos Ramírez y Sergio Yánez Pérez. 4.ed. Santiago:
Editorial Juridica de Chile, 2002 (11.ed. alemana, 1969), p. 212.
26
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
175
Notstand) foi usado explicitamente pela primeira vez pelo Reichsgericht (Strafrecht) na
sentença de 21 de fevereiro de 1928”28. Que o estado de necessidade justificante seja
chamado de “supralegal” é algo no mínimo sugestivo. Mais ainda: no estado de
necessidade exculpante, por outro lado, a ação necessária permanece antijurídica perante o
ordenamento ao mesmo tempo em que seu agente, por sua vez, é isento de “culpa” e,
consequentemente, de punição.
Mas na Itália igualmente teremos a problemática da colisão de deveres no cerne da
discussão sobre a necessidade, porém unicamente enquanto fator de exclusão da
antijuridicidade da ação. Enrico Ferri menciona que o “estado de necessidade é uma
hipótese de colisão jurídica elaborada especialmente pelos criminalistas alemães –
começando com a obra de Strickius, De iure necessitatis, Halle, 1783”29. O penalista
mantuano ainda esclarece que “é certo que ‘a necessidade não possui lei’ e ‘ad imposibilia
nemo tenetur’; por isso, aquele que age apenas por ter sido constrangido pela necessidade
a qual não lhe foi possível subtrair-se naquele momento, atua de modo legítimo e não
comete delito algum”30. Giuseppe Bettiol, por sua vez, começa explicando o instituto do
seguinte modo: “Necessitas legem non habet. Stato di necessità – Conforme a primeira
parte do art. 54 [do Código Penal italiano] ‘não é punível quem cometeu o fato por ter
sido constrangido pela necessidade de salvar a si ou outros de perigo atual de um dano
grave à pessoa, perigo não voluntariamente causado, nem de outro modo evitável, sempre
que o fato seja proporcional ao perigo’. Este é o estado de necessidade.”31
E, do mesmo modo, Guglielmo Sabatini: “O princípio: necessitas non habet legem,
remonta ao direito canônico [Codice, 4 X de regula iuris], e é notória a definição sobre a
necessidade oferecida por Strichio: vis compulsiva et cogens id facere quod aliter non
faceremus [De iure necessitatis, VI, pág. 14, 5 X, pág. 27]”.32 O penalista Giuseppe
Maggiore, por outro lado, questiona-se: “O que se há de entender por ‘necessidade’? Por
perigo inevitável (a necessitas inevitabilis dos práticos). Mas inevitável se deve entender
de modo relativo, não de modo absoluto. Por isso na legítima defesa a lei não menciona o
inevitável perigo, como o faz ao tratar do estado de necessidade.”33
Ora, mas as referências feitas pelos penalistas italianos – influenciados em certa
medida pelo desenvolvimento alemão do tema da colisão de direitos, como indicara Ferri
– a fórmulas como necessitas legem non habet, “a necessidade faz lei”, inevitável
necessidade (necessitas inevitabilis), não são precisamente aquelas que Santi Romano
emprega34 para tratar de temas como o estado de sítio em face do terremoto em Messina e
Regio-Calábria, a instauração de fato de um ordenamento, os limites da função legislativa,
a revolução?
***
28
BARATTA, Alessandro. Antinomie giuridiche e conflitti di coscienza. Contributo alla filosofia e alla critica
del diritto penale. Milano: Giuffrè, 1963, p. 11, nota 6.
29
FERRI, Enrico. Principios de derecho criminal. Trad. Jose-Arturo Rodriguez Muñoz. Madrid: Reus, 1933, p.
442.
30
Ibid., p. 432-433.
31
BETTIOL, Giuseppe. Diritto penale. 7.ed. Padova: CEDAM, 1969 (1.ed. 1945), p. 306.
32
SABATINI, Guglielmo. Istituzioni di diritto penale. Parte generale. vol. 2. 4.ed. Catania: Casa del libro, 1948,
p. 108.
33
MAGGIORE, Giuseppe. Diritto penale. 5.ed. vol. 1. Bologna: Zanichelli, 1951-1952, p. 413.
34
É certo que, quanto à última locução, necessitas inevitabilis, Romano empregará, na verdade, um equivalente
seu, “inelutável necessidade”.
176
O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO
Santi Romano foi um dos juristas mais influentes da primeira metade do século XX.
Como escrevera recentemente Paolo Grossi, “aos nossos olhos, Romano, mais do que
qualquer outro jurista italiano, é aquele que se torna intérprete da (...) grande crise entre os
dois séculos, com a tentativa – conseguida – de dar a esta um vulto técnico, de tentar
resolvê-la utilizando as ideias, o léxico, a armadura técnica da ciência jurídica.”35
A importância de se proceder a uma investigação sobre a obra de Santi Romano e,
em especial, sobre o problema da necessidade como núcleo implícito fundamental para
sua estruturação, se faz sentir em toda a extensão da teoria e da história do direito, uma
vez que não se trata apenas de abordar o tema em chave historiográfica – levantando
dados e contextos imprescindíveis e precisos de um período ou de uma conjuntura – mas
também de tratá-lo segundo suas relações com outros âmbitos do direito, seja o jurídicopolítico de Carl Schmitt, seja o jurídico-penal no que se refere ao instituto do estado de
necessidade.
O pensamento de Santi Romano e, especialmente, seu conceito de instituição
influenciarão (ainda que numa tentativa de crítica e superação) a chamada corrente neoinstitucionalista representada pelos teóricos do direito Neil MacCormick e Ota Weinberg,
surgida em meados dos anos oitenta36.
Portanto, a obra e o pensamento de Romano apresentam não apenas um capítulo
nada desprezível da história jurídica do início do século passado, mas continuam a
exercer, mediata ou imediatamente, seus efeitos sobre a discussão e a construção da esfera
do jurídico na atualidade.
35
Introdução. In ROMANO, Santi. O Ordenamento Jurídico. Trad. Arno Dal Ri Júnior. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2008, p. 11.
36
Cf. MAcCORMICK, D. Neil e WEINBERG, Ota. An Institutional Theory of Law. New approaches to legal
positivism. London: Reidel, 1986; WEINBERG, Ota. Law, Institution and Legal Politics. Fundamental Problems
of Legal Theory and Social Philosophy, London: Kluwer Academic Publishers, Reidel, 1991; ______. Les
théories institutionnalistes du droit. In Controverses autour de l’ontologie du droit. (org.) AMSELEK, P. et
Grzegorczyk, C. Paris: PUF, 1989.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
177
ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA
HISTÓRIA
STATE AND HISTORY: THE STATE POLICY AS THE PHILOSOPHY OF HISTORY
SUBJECT
José de Magalhães Campos Ambrósio*
Resumo: O presente ensaio tem como objetivo revistar a Filosofia da História reinserido-a no debate
contemporâneo da historiografia. Enfatizaremos nossa análise em dois dos filósofos mais notáveis da Filosofia
da História: Giambattista Vico e Georg Willhem Friedrch Hegel. Nos dois autores buscaremos o status
epistemológico da História conjugando com duas dimensões: a Razão e a Ordem na História. Razão que se
expressa na projeção humana – ser racional – na realidade em uma ambiente que propicia a congregação de
horizontes de vida; Ordem que pressupõe o ambiente unificador do sentido coletivo de um povo. Ambas as
dimensões, portanto, só se juntam, para os dois autores em questão, na política estatal. A História do Estado é
aquela apta a ser apreendida e elevada ao plano filosófico, pois é nela que encontramos os elementos essenciais
para a revelação de uma razão e sentido: 1) autores racionais, que nos permitem averiguar os fundamentos e a
inteligibilidade histórica; 2) longa duração, que possibilita o pleno desenvolvimento das conseqüências do
evento histórico; negatividade, que mostra o caráter não-linear e aberto do processo histórico; 3) liberdade, que
torna impossível a apreensão do futuro e possibilita a atuação do individual no coletivo, construindo e
reconstruindo-o; 4) O Estado existe pois é pensado pela vontade e pela criatividade humanas, sendo uma
entidade plenamente cultural. Enfim, reabilitar a Filosofia da História passa pelas seguintes etapas: deve ser uma
História do Estado calcada em uma historiografia rigorosa, ou seja, uma Filosofia embasada por uma Ciência.
*
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Assistente da Universidade Federal de
Uberlândia. E-mail: [email protected]
178 ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA
Introdução
Este é um ensaio sobre Filosofia da História do Direito e do Estado. Nas páginas que se
seguem advogamos uma História perpassada com “fortes cores filosóficas” (HORTA, 2011,
p. 22), isto porque, pensamos que Filosofia e História se implicam, como ensina Benedetto
Croce:
(...) mas história, ou, o que vem a dar no mesmo, filosofia na medida em que é
história e história na medida em que é filosofia – ‘filosofia-histórica’, cujo princípio
é a identidade do universal e do individual, do intelecto e da intuição, e que encara
como arbitrária e ilegítima qualquer separação desses dois elementos, sendo eles na
realidade um único elemento. (CROCE, 2006, p. 50-51)
Se a Filosofia faz parte da história que contamos, cabe-nos mostrar em que sentido isso
se realiza e que influência terá em nosso objeto de estudo. Em primeiro lugar, como premissa,
não se trata de buscar a verdade na história, mas mostrar que “a história é que é verdadeira.”
(AQUINO, 2007, p. 2)
Para tanto, colorir o trabalho de filosofia significa perscrutar dois estatutos básicos para
a História e que se correlacionam: 1) sua racionalidade e; 2) sua ordem, ou sentido. Um dos
objetivos dessa introdução é esclarecer que a História possui essas duas características e que
ambas se relacionam com a realidade estatal.
São duas tarefas aparentemente difíceis, visto que a historiografia contemporânea
condena uma história filosófica1 sem estar calcada nas premissas cientificistas que professam;
postura que só demonstra o autoritarismo metodológico que nos é imposto.
Uma história pode ser filosófica sem perder o rigor científico. Além disso, já está bem
solidificado que o saber filosófico tem em sua base os saberes científicos, como já salientava
Hegel:
A relação da ciência especulativa [filosofia] com as outras ciências só existe
enquanto a ciência especulativa não deixa, como de lado, o conteúdo empírico das
outras, mas o reconhece e utiliza; e igualmente reconhece o universal dessas ciências
– as leis, os gêneros, etc. – e o utiliza para seu próprio conteúdo; mas também, além
disso, nessas categorias introduz e faz valer outras. (HEGEL, 1995, p. 49.)
de modo que o desenvolvimento da Ciência Histórica estará na fundação da Filosofia da
História; sendo essa totalizante, busca mais que o fio, quer toda a trama.
Assim, para realizarmos nossa tarefa, buscaremos em dois dos pilares da Filosofia da
História – Vico e Hegel – a estrutura do pensamento histórico e os contrastaremos com que há
na historiografia contemporânea.
1 A racionalidade da História.
Vamos à primeira tarefa: desvendar a racionalidade imanente à realidade histórica.
Em primeiro lugar, por que a História pode ser racional se empiricamente vemos tantos
acasos? A resposta é simples: ela não é obra da natureza, tem um artífice racional: o homem.
É o sujeito que, na projeção do pensamento, constrói o fio do tempo: “Através de suas obras
ele [o sujeito] confere a esse fluxo puramente empírico um sentido.” (VAZ, 2002, p. 304)
1 É assim que procedem os historiadores da famosas Escola de Annales, como bem afirma um dos seus
expoentes atuais: “Partilho a desconfiança da maior parte dos historiadores de ofício perante essa filosofia da
história tenaz e insidiosa, cuja tendência, nas suas diversas formas, é levar a explicação histórica à descoberta ou
à aplicação de uma causa única e original, substituir o estudo pelas técnicas científicas de evolução das
sociedades, sendo essa evolução concebida como abstração baseada no apriorismo ou num conhecimento muito
sumário dos trabalhos científicos.” (LE GOFF, 2003, p. 20)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
179
É por essa razão que o homem pode olhar para a História e compreendê-la, descrevê-la
e criticá-la; sem o vetor racional o historiador – defronte do seu objeto de estudo – é como um
cego dentro de um labirinto: tateia, tropeça, chega a encruzilhadas e se desespera por não
enxergar o caminho. Só conhecemos a História porque a razão que é nela é a mesma
estruturante do pensar.
É num pensador italiano que encontramos uma das chaves interpretativas para a nossa
compreensão: Giambattista Vico. O filósofo coloca as bases para as Ciências Humanas em
geral, mas especialmente para a História.
Vico advoga que somente a junção da Filosofia (ciência do verum, do verdadeiro) e da
Filologia (ciência do factum, do fato) constrói o conhecimento humano.
“[138] A filosofia contempla a razão, donde provém a ciência do verdadeiro; a
filologia observa a autoridade do arbítrio humano, donde provém a consciência do
certo. [139] Esta dignidade, na sua segunda parte, define serem filólogos os
gramáticos, historiadores, críticos, que se ocuparam da cognição da línguas e dos
factos dos povos, tanto em casa, como são os costumes e as leis, como fora, tal como
são as guerras, as pazes, as alianças, as viagens, os comércios. [140] Esta mesma
dignidade demonstra terem ficado no meio do caminho tanto filósofos, que não
acertaram as suas razões com a autoridade dos filólogos, como os filólogos, que não
cuidaram de certificar a sua autoridade com a razão dos filósofos; o que, se o
tivessem feito, teria sido mais útil às repúblicas e ter-nos-ia prevenido o meditar
desta Ciência.” (VICO, 2005, p. 110)
A gnosiologia vichiana é conhecida como verum et factum convertuntur (o verdadeiro e
o feito se implicam) – que, se opondo ao racionalismo cartesiano e ao empirismo inglês,
afirma que o que pode ser conhecido pelo homem só pode ser aquilo criado por ele; para
Vico, afirma Collingwood, “nada pode ser conhecido, a não ser que já tenha sido criado.”2
(COLLINGWOOD, 1981, p. 89)
Definitivamente, para VICO, Ciências Humanas e Ciências da Natureza não poderiam
partir do mesmo método. Afinal, a “verdade no mundo do homem não é estática, é dinâmica,
não é descoberta, mas construída, não é consciência, mas ciência.”3 Ora, a natureza não é obra
do homem, é obra de DEUS. Sendo obra do divino, somente a ele é dado seu conhecimento
pleno (seu verum); ao homem fica apenas a certeza, ou seja, um saber incompleto. (VICO,
2005, p. 172)
Em Vico, podemos dizer com Reale, que a verdadeira ciência é “o resultado final de um
processo, de uma elaboração espiritual, em que fato e idéia se convertem reciprocamente.”
(REALE, 2000, p. 115)
Dentro da perspectiva do verum-factum há um conhecimento verdadeiramente
apreensível pelo homem: a História, “rainha de todos os estudos dedicados à realidade e ao
conhecimento do que existe no mundo” (BERLIN, 1982, p. 40), ou como afirma Vico, “a
natureza das coisas não é senão o seu nascimento em certos tempos e em certas circunstâncias
que, sempre que são tais, as coisas nascem tais e não outras” (VICO, 2005, p. 113) Como
criador do universo histórico, o conhecimento deste pelo homem é qualitativamente idêntico
ao conhecimento divino da natureza, porque é ambiente de ações livres e, “idealizando-o,
recria sua própria criação, ficando assim a conhecê-lo plenamente,” (LÖWITH, 1991, p. 128)
R.G. Collingwood afirma:
2 É esclarecedora a passagem de CROCE: “to know the cause is to be able to realize the thing, to deduce it from
its cause and create it. In other words, it is an ideal repetition of a process which has been or is being practically
performed. Cognition and action must be convertible and identical.” (CROCE, 1913, p. 5)
3 No original: “the truth attained in the world of man was not static but dynamic, not a discovery but a product,
not consciousness but science. (CROCE, 1913, p. 27)
180 ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA
Conclui-se do princípio do verum-factum que a história – que é algo feito
enfaticamente pelo espírito humano – está especialmente apta a ser objecto do
conhecimento humano. Vico considera o processo histórico como um processo,
através do qual os seres humanos elaboram sistemas de linguagem, costumes, leis,
governos, etc.: isto é: considera a história como a história da gênese e do
desenvolvimento das sociedades humanas. (COLLINGWOOD, 1981, p. 109-110)
Prefaciando a edição brasileira da Ciência Nova, LucchesI ensina:
O homem conhece a história. Pode figurá-la internamente. Definir a parte e o todo.
Imaginar-lhe as formas. Intuir o primórdio da sociedade humana. A história como
lugar em que a ciência e a consciência radicalmente se entrelaçam, supera o
programa cartesiano, pois unifica o verum e o certum, conforme o método vichiano,
cujo edifício repousa nas colunas da filologia e da filosofia. 4 (LUCCHESI, 1999, p.
III)
É assim que a História é racional. De toda forma, a projeção ideal do sujeito não fica
estacionada no puro eu; para alcançar a universalidade necessária é preciso inserir a
construção individual no movimento objetivo do Espírito. (VAZ, 2002, p. 304) Ou seja, é
preciso que a atividade subjetiva se mostre objetivamente no plano da cultura (HEGEL, 1995,
p. 275), tornando-se patrimônio apto por se desdobrar; é assim que a História é objeto
privilegiado do pensar humano. Para Vico, essa História é desenvolvimento cíclico do Mundo
das Nações, para Hegel, é o desdobrar do Espírito Objetivo em seu momento mais efetivo: o
Estado.5
Aqui se mostra a tensão fundamental para a tessitura da História: a necessidade da
participação do particular no universal. Quando o homem se descobre como Espírito6, isto é,
quando idéia suprassume7 a Natureza em uma reflexão sobre si mesmo, o tempo do sujeito
deixa de ser direto, linear, para ser tempo do Espírito, ou seja, História.
Se for assim, nenhuma figura que o Espírito assume pode ser desprezada, por isso a
necessidade do individual no sentido espiritual do termo: a consciência.8 Ela segue a mesma
lógica do aparecer do Espírito; se intenciona ao mundo para conhecê-lo e exprime-o (portanto
recria-o) para si. Não sendo a consciência absoluta - solus ipse - esse processo só pode
ocorrer gradualmente na participação das consciências na luta pelo reconhecimento, ou seja, o
caminho da consciência passa necessariamente pela intersubjetividade, isto é, pelo
entrecruzamento dos horizontes dos sujeitos e funciona mais perfeitamente no nível teórico da
consciência, quer dizer, quando o pensamento confere ao mundo uma totalidade de sentido
apto a ser compartilhado.9 Isso significa, ao mesmo tempo, conhecer a visão de mundo de
outra consciência e a consciência mesma.
Tudo isso não faria o menor sentido para o trabalho se não fosse seu efeito sobre a
realidade histórica. Henrique Cláudio de Lima Vaz não poderia ter dito melhor:
Se o tecido mais profundo da história é urdido pela comunicação das consciências, e
esta não é mais do que a captação de um sentido comum no qual os homens de
4 LUCCHESSI, Marco, Monumental afresco da história. [Prefácio]. IN: VICO, Giambattista. A ciência nova.
Rio de Janeiro: Record, 1999.
5 Para todo o caminho do conceito de Espírito V. (HEGEL, 1995, vol. III)
6 É o trajeto que Hegel re-constrói na Fenomenologia. (HEGEL, 2007)
7 Suprassumir (do alemão Aufheben) na linguagem hegeliana significa suprimir conservando, indicando o
próprio movimento dialético: negação-conservação-elevação. (MENESES, 2007). In: (HEGEL, 2007, p. 9)
8 “Consciência é o conceito que permite ‘definir o homem enquanto oposto ao mundo, e, por isso mesmo,
relacionado dialeticamente com o mundo’. [...] Assim tentamos a compreensão dinâmica de sua essência, a
compreensão do movimento mesmo em que ele é e se manifesta como ser histórico.” (VAZ, 2001, p. 247-48)
9 Os outros níveis de anteriores são: empírico, momento do puro acontecer factual em que a consciência somente
capta os fragmentos do mundo; e racional, no qual a consciência estabelece conexões inteligíveis como causa e
efeito. (VAZ, 2001, p. 249-251)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
181
determinado grupo humano, ou que se constitui tal pela comunidade de uma mesma
cultura, compreendem sua situação no mundo e se reconhecem homens dentro desta
situação. (VAZ, 2001, p. 262)
Está claro, portanto, que a comunicação intersubjetiva só toma forma histórica quando
inserida em uma estrutura que é ao mesmo tempo delas e superior a elas: a comunidade.
Recorrer a Lima Vaz é novamente necessário:
Na medida em que as consciências individuais se movem dentro de um sentido
global, mesmo refratando ao infinito suas linhas fundamentais, elas participam da
consciência histórica da sua época (VAZ, 2001, p. 264)
É nesse sentido que a consciência histórica, corporificada na comunidade e enriquecida
de todos os sentidos espirituais da consciência – a arte, a religião, a filosofia como expressões
absolutas; a ciência, as instituições ou mesmo a vivência difusa dos indivíduos (VAZ, 2001,
p. 264) – é a razão na e da História. É razão na História quando proporciona a inteligibilidade
do passado, é razão da História quando elabora a re-construção do mundo.
O Ocidente só conhece um espaço espiritual capaz de 1) promover o existir empírico da
consciência como tal; 2) proporcionar a comunicação das subjetividades em um ambiente
cultural; 3) situar o homem no mundo e 4) projetar a consciência acima dela, tornando-a
fundamento do existir histórico: o Estado. Mas o que entendemos do Estado é espiritual, é,
antes de tudo, o ambiente e o efervescer de tudo o que é o homem e sua obra, ou seja, uma
organização de liberdade.
Defendemos que o Estado é uma realidade espiritual; por essa razão, não podemos
defini-lo através de fenômenos materiais, sob pena de não apresentarmos o seu conceito. O
pensamento analítico fica satisfeito quando decompomos os elementos essenciais do Estado povo, território, soberania, regras, finalidades (DALLARI, 1998, 29-41) - como se a adição de
todos eles traduzisse a própria estatalidade. Na verdade, esses elementos são conseqüências da
realidade histórica estatal, são as categorias existenciais do corpo espiritual que é o Estado.
Nesse sentido, Georges Burdeau:
Ele não é território, nem população, nem corpo de regras obrigatórias. É verdade que
todos esses dados sensíveis não lhe são alheios, mas ele os transcende. Sua
existência não pertence a fenomenologia tangível: é da ordem do espírito. O Estado
é, no sentido pleno do termo, uma idéia. Não tendo outra realidade além da
conceptual, ele só existe porque é pensado. (BURDEAU, 2005, p. X)
Se o fosse da ordem factual, qualquer contingência colocaria em risco a existência
estatal: um erro judicial, um ato de corrupção, a incompetência administrativa. Mas por ser da
ordem do pensamento, por exprimir toda a realidade objetiva enraizada - por que não pela
crença? – no indivíduo, que o “Estado dura enquanto os governos passam.” (BURDEAU,
2005, p. XIII)
O Estado é a expressão objetiva da consciência de um povo. É o momento em que a
vontade se torna substancial e plenamente racional; só nele é possível a unidade da “unidade e
da diferença”, ou seja, ele “é o regulador da luta de que é móbil,” (BURDEAU, 2005, p. XIV)
é um único poder que engloba as exigências de uma coletividade diversificada (BURDEAU,
2005, p. XV); enfim, é o que traz o ético para a vida social. Parece-nos insuperável a
definição de Hegel:
§ 257 - O Estado é a realidade em ato da Idéia moral objetiva, o espírito como
vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e
realiza o que sabe e porque sabe. No costume tem o Estado a sua existência
imediata, na consciência de si, no saber e na atividade do indivíduo, tem a sua
existência mediata, enquanto o indivíduo obtém a sua liberdade substancial ligandose ao Estado como à sua essência, como ao fim e ao produto da sua atividade.
182 ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA
[...]
§ 258 - O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta
adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si:
esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o
seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os
indivíduos que, em serem membros do Estado, têm o seu mais elevado dever.
(HEGEL, 2000, p. 216-217)
Como realidade histórico-cultural que é (REALE, 2005, p. 376), a promoção estatal da
substância ética de um povo toma diferentes formas ao longo do tempo que, ao mesmo tempo,
procede da vontade substancial: como fato, a idéia moral existe sob a aparência de Poder (ou
governo), suas funções, sua legitimidade, sua organização; como norma, o ético aparece com
total verdade ao atualizar e revelar o conteúdo da eticidade estatal.10
Enfim, o Estado é uma organização de Poder posto diante de uma exigência axiológica
– universalização do indivíduo, realização da liberdade, convivência das consciências - que se
traduz em um sistema de normas.
Só assim podemos conceber a Razão no tempo: a História sendo a História do Estado.
(HEGEL, 1999, p. 39). Somente no movimento que vai do subjetivo ao objetivo e sua
reflexão é que se tece a racionalidade histórica. Portanto, a História não é o caminhar
unilateralizado da subjetividade ou da objetividade, é a união dialética dos dois momentos.
Assim ensina-nos LIMA VAZ:
A racionalidade assim definida não deve, no entanto, ser pensada como atributo
extrínseco ao sujeito racional. A relação entre ambos é a da identidade na diferença,
conforme o axioma ‘a verdade é o todo’. Sua diferenciação se faz no interior do
todo, aqui entendido como a própria ação. A pressuposição lógica assegura a
coerência fundamental da ação. A ação histórica é real enquanto racional,
]compreendendo as diferentes formas de racionalidade que constituem o corpo
histórico do Espírito objetivo. A pressuposição antropológica está subjacente ao
para-si da ação, ou seja, à sua refletividade na consciência do ator histórico. (VAZ,
2002, p. 204)
Racionalidade da história que, por fim, revela o elemento essencialmente humano do
percurso: a liberdade, que denota que tudo o que é espiritual – e na História tudo o é – é
criação do homem, ou seja, nasceu do engenho do homem para si mesmo, o que incluiu,
obviamente, as criações humanas que limitam ou até mesmo suprimem a liberdade. Por isso,
para Croce, “a liberdade é a criadora eterna da História e ela própria é o tema de toda a
História” (CROCE, 2006, p. 85), de modo que, quando falamos que a História é a história do
Estado, dizemos que o próprio Estado é a forma e o conteúdo da liberdade.
Acreditamos que, assim, podemos traçar as linhas gerais para uma racionalidade da
História e, desta forma, passamos para o segundo momento que uma história filosófica
necessita: a ordem ou sentido.
2 A ordem histórica.
Se, ao construirmos a racionalidade da História, chegamos ao Estado como conclusão
necessária desse status, quanto ao sentido histórico inverteremos os papéis: O Estado é
premissa, só o político pode conferir ordem na História.
10 É bom ressaltar que avançamos sobre o pensamento de REALE ao integrar nesse momento da norma o
pensamento de SALGADO, para quem o direito revela o melhor do conteúdo ético do momento histórico cultural
de um Estado, por isso, para nós, o estudo da História do Estado não será desvinculado do Direito. V.
(SALGADO, 2007, p. 10) Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo: fundamentação e
aplicação do Direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 10.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
183
Por essa razão, quando o historiador busca a história da cultura material, das
mentalidades, do homem natural, do imaginário, o que de resto faz a escola de annales ( LE
GOFF, 2005); não pode denotar um sentido nem – como pretendem ser – uma totalidade.11
Ora, o status de totalidade só pode ser dado pelo pensamento unificador da realidade; quando
se compartimenta a História em várias frentes, o que encontramos, no máximo, é uma história
enciclopédica contada em migalhas (DOSSE, 2003) que, na verdade, nada mais é do que a
justaposição dos fragmentos.12 Isso não significa que esse tipo de escrita – dita
historiográfica – seja inútil, por certo que não, ela é mesmo necessária; no entanto, a
historiografia ligada a esse tipo de concepção revela tanto uma racionalidade quanto uma
ordem precárias na história, carentes, portanto, de uma filosofia unificadora – ou até mesmo
de um ambiente unificador.
A conseqüência extrema desse tipo de historiografia é a conclusão de que o acaso reina
no tempo. Afinal, a apresentação de uma multidão de fatos esparsos no tempo, fragmentados,
estéreis e sem aparentes razões, pode levar uma mente mais desavisada à conclusão de que a
História é uma sucessão de eventos no tempo.13 No entanto, nem a historiografia cética (mas
séria) a uma filosofia da história admite tamanha aberração. (LE GOFF, 2006, p. 44-46)
A ordem na História é uma exigência que vem, em primeiro lugar, do caráter racional
que ela possui e do qual já falamos. O primeiro erro é justamente a historiografia do evento; o
evento é tão interessante quanto superficial; sem suas complexas conexões com o antes e com
o depois, torna-se completamente sem sentido.14 A verdadeira realidade histórica é aquela
contada na longa duração; só nela a força do pensamento pode penetrar e produzir resultados.
Assim, a história vai além da vida tal como vivida, a fim de apresentá-la sob a forma de
conhecimento. (CROCE, 2006, p. 29)
11 “Toda forma de história nova é uma tentativa de história total” (LE GOFF, 2005 p. 34)
12 Ao se dirigir para além da conclusão de DOSSE, JOSÉ CARLOS REIS analisa o processo de construção de
annales para afirmar que sua terceira geração pulveriza totalmente o conhecimento histórico. (REIS, 1999, p. 7686) Para resumir as fases de Annales com BURKE: “Esse movimento pode ser dividido em três fases. Em sua
primeira fase, de 1920 a 1945, caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma guerra de
guerrilhas contra a história tradicional, a história política e a história dos eventos. Depois da Segunda Guerra
Mundial, os rebeldes apoderaram-se do establishment histórico. Essa segunda fase do movimento, que mais se
aproxima verdadeiramente de uma ‘escola’, com conceitos diferentes (particularmente estrutura e conjuntura) e
novos métodos (especialmente a ‘história serial’ das mudanças na longa duração), foi dominada pela presença de
Fernand Braudel. Na história do movimento, uma terceira fase se inicia por volta de 1968. É profundamente
marcada pela fragmentação. A influência do movimento, especialmente na França, já era tão grande que perdera
muito das especificidades anteriores. Era uma ‘escola’ unificada apenas aos olhos de seus admiradores externos
e seus críticos domésticos, que perseveravam em reprovar-lhe a pouca importância atribuída à política e à
história dos eventos. Nos últimos vinte anos, porém, alguns membros do grupo transferiram-se da história
socioeconômica para a sociocultural, enquanto outros estão redescobrindo a história política e mesmo a
narrativa.” (BURKE, 1997, p. 12-3)
13 É o que pensa o historiador PAUL VEYNE: “A História é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso.;
O campo da História é, pois, inteiramente indeterminado, com uma única exceção: é preciso que tudo o que nele
se inclua tenha, realmente, acontecido. [...] uma página da Revolução francesa tem uma trama suficientemente
cerrada para que a lógica dos acontecimentos seja compreensível e para que um Maquiavel ou um Trotsky
tivessem podido tirar dela toda a arte da política; Uma vez que causa superficial não significa causa menos eficaz
que outra, não se pode descobrir grandes linhas de evolução. [...] Compreender a história não consiste, pois, em
saber discernir grandes correntes submarinas por baixo da agitação superficial: a História não tem profundezas.”
(VEYNE, 2008, p. 18; 25; 93)
14 Esse é o plano A da historiografia de acordo com BRAUDEL: “Um plano A, o da história tradicional, da
narração habitual, que passa rapidamente de um acontecimento ao acontecimento seguinte, como o cronista de
ontem ou o repórter de hoje. Mil imagens são assim apreendidas ao vivo em compõem logo uma história
multicor, tão rica de peripécias quanto um romance de aventuras. Contudo, apagada logo depois de lida, essa
história nos deixa com muita freqüência insatisfeitos, incapazes de julgar ou de compreender.” BRAUDEL,2004,
p. 31)
184 ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA
Dessa maneira, explica Fernand Braudel, é possível reconhecer aquilo que permanece, o
que penetra na espessura da História:
Os movimentos artificiais de que falávamos há pouco, os acontecimentos e os
próprios homens apagam-se então aos nossos olhos, enquanto se destacam grandes
permanências ou semipermanências, ao mesmo tempo conscientes e inconscientes.
São os ‘fundamentos’, ou melhor, as ‘estruturas’ das civilizações.
[...]
Só aqueles a quem pertence a duração e que se confundem com uma realidade
longamente vivida contam na grande história da civilização. Assim se encontram, para
lá de uma história familiar, como em transparência, as coordenadas secretas do longo
tempo para o qual precisamos agora nos dirigir. (BRAUDEL, 2004, p. 48)
A longa duração é ideal para a escrita da filosofia-história; em primeiro lugar, porque
nos permite compreender como o passado constrói o presente; o tempo longo faz com que o
pensamento consiga promover a vitalidade do antes no agora, deixando claro ao homem o que
ele acumulou no decorrer de muitos anos, o que faz Croce afirmar que “toda história é história
contemporânea.” (CROCE, 2006, p. 30) Isso significa dizer que todo historiador parte do
presente, de alguma realidade atual do pensamento, para compreendê-lo em uma perspectiva
histórica.
Em segundo lugar porque torna possível aquela necessária conciliação entre o universal
e o particular da qual já falamos, ou seja, somente com o horizonte histórico alargado é que é
possível perceber a dialética imanente no tempo; aí sim, vê-se com clareza o trabalho do
negativo.
O negativo é o que impele o processo histórico para frente e permite que o evento
irradie uma série de outros processos que proporciona a abertura do momento finito ao
horizonte infinito de realizações históricas (HEGEL, 1995, p. 163); “é o ácido corrosivo de
toda fixidez.” (SANTOS, 2007, p.80) Isso implica dizer que em todo evento subsiste uma
racionalidade latente (em-si) que só se revela posteriormente (para-si) e, assim, podendo ser
compreendida pelo pensamento em sua plenitude (em-si e para-si). Ensina-nos Hegel:
(...) percebemos que, na história universal, resulta das ações humanas algo além do
que foi intencionado. Por meio de suas ações os seres humanos conseguem o que
querem de imediato. Porém, ao concretizar os seus interesses, eles realizam algo
mais abrangente. (HEGEL, 1995, p. 31)
E mais à frente, ao falar das ações individuais:
O interesse particular da paixão é, portanto, inseparável da participação do universal,
pois é também da atividade do particular e de sua negação que resulta o universal. É
o particular que se desgasta em conflitos, sendo em parte destruído. Não é a idéia
geral que se expõe ao perigo na oposição e na luta. Ela se mantém intocável e ilesa
na retaguarda. A isso se deve chamar astúcia da razão: deixar que as paixões atuem
por si mesmas, manifestando-se na realidade, experimentando perdas e sofrendo
danos, pois esse é o fenômeno no qual uma parte é nula e a outra afirmativa. O
particular geralmente é ínfimo perante o universal, os indivíduos são sacrificados e
abandonados. A idéia recompensa o tributo da existência e da transitoriedade, não
por ela própria, mas pelas paixões dos indivíduos. (HEGEL, 1999, p. 35)
Assim o pensamento histórico-filosófico de longa duração precisa voltar ao começo
para salvar a contingência e elevá-la ao patamar de necessidade. Assim, o negativocontingencial acontece ao mesmo tempo em que desvanece, dando lugar ao positivo que
irrompe reiniciando o processo dialético. O momento particular isolado nunca conduz à
verdade histórica. (SANTOS, 2007, p. 42)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
185
Ainda nesse sentido, através de um espectro histórico amplo, é possível percebermos
melhor a relação do passado e presente, a fim de concebermos que o fim já estava no começo
da história; o pensamento dialético permite conceber uma cumulatividade de compreensão
para percebermos que nosso tempo desenvolve a racionalidade precária dos tempos passados.
O segundo erro do historiador é procurar uma ordem querida por ele que, se não
encontrada, conduz ao inevitável juízo negativo do evento histórico, absolutizando a
desordem. Henri Bergson, ao tratar da dicotomia ordem/desordem traz uma interessante
reflexão:
E é incontestável que, comumente, quando falamos de desordem, pensamos em algo.
Mas em que pensamos? Veremos o quanto é difícil determinar o conteúdo de uma
idéia negativa e a que ilusões se é exposto, em que inextricáveis dificuldades a
filosofia cai por esse exame não ter sido empreendido. Dificuldades e ilusões
prendem-se normalmente ao fato de aceitarmos como definitivo um modo de
exprimir essencialmente provisório. Prendem-se ao fato de transportarmos para o
domínio da especulação um procedimento feito para a prática. Se escolho, ao acaso,
um volume em minha biblioteca, posso, após tê-lo espiado, recolocá-lo na prateleira
dizendo: ’não são versos’. Seria realmente o que eu percebi ao folhear o livro? Não,
evidentemente. Eu não vi, não verei nunca a ausência de versos. Vi prosa. Mas como
é poesia que eu desejo, exprimo o que eu encontro em função daquilo que eu
procuro e, em vez de dizer ‘eis prosa’, digo ‘não são versos’. De modo inverso, se
me vem a cisma de ler prosa e me deparo com um volume de versos, me exclamarei:
‘não é prosa’, traduzindo assim os dados da minha percepção, que me mostra versos,
na língua de minha expectativa e de minha atenção, que estão fixadas na idéia de
prosa e só querem ouvir falar dela. (BERGSON, 2005, p. 241-42)
A realidade não se dobra ao medo do entendimento15 em enfrentar o negativo, assim,
novamente com Hegel:
O espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no
dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que se afasta do
negativo – como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e
passamos outro assunto. Ao contrário, o espírito é essa potência enquanto encara
diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico
que converte o negativo em ser. (HEGEL, 2007, p. 44)
O terceiro erro é considerar que a ordem seria dada por um a priori (provavelmente
escatológico) situado fora do processo histórico que o conduz a um destino infalível e
predeterminado; como é inverificável, é inverídico.16 A primeira resposta que damos a isso é
que se existe um a priori conduzindo a História, é ele próprio construído no tempo; a
segunda, mais substancial, mostra que a condução do processo histórico só pode ter uma
fonte: a liberdade. Lembremos que essa liberdade não é licença, arbítrio, mas além e incluindo
isso, liberdade organizada na comunidade que, por ser dialética, inquieta-se para desenvolver
novas formas da liberdade, impossibilitando sua previsibilidade. Com o princípio do Espírito
livre, portanto, uma filosofia-história não faz previsão do futuro, nem coloca uma meta a
atingir: a meta é o próprio processo de permanente criatividade. (BERGSON, 2007, p. 260)
Assim, desaguamos no quarto erro, qual seja o de associar o conceito de ordem a um
necessário automatismo histórico, caindo no velho erro do entendimento que procura efeitos
15 Entendimento é um momento da Razão que mantém fixas as diferenciações da realidade, produzindo
separações irreconciliáveis. No campo histórico, o entendimento não consegue captar a mobilidade-contínuidade
da totalidade histórica. (HEGEL, 1995,p. 159-162)
16 É o que defende KARL LÖWITH, ao afirmar que “a filosofia da história está, no entanto, na total dependência
da teologia da história, em particular do conceito teológico na história como um história de realização e
salvação.” (LÖWITH, 1991, p.15)
186 ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA
únicos para causas fixas17; obviamente a História não funciona assim. A ordem da história,
dentro da visão previamente expressa, é uma ordem que tem sua origem na vontade que
projeta o futuro no presente. (HEGEL, 1999, p. 27)
A política é mais uma vez chamada para integrar a projeção da vontade; de um lado, ela
reúne a tradição inteligível (ethos)18 de um povo; (VAZ, 2002, p. 252) de outro, ela é
chamada a liderar o próprio processo histórico por força da sua racionalidade essencialmente
teleológica, ou seja, direcionada a um fim. (VAZ, 2002, p. 253)
No entanto, a ordem voluntária é tortuosa, enfrenta imensas dificuldades, sofre o
trabalho do negativo e passa pelo árduo reconhecimento. O encontro de consciências que
projeta razão e ordem na história não é um momento de celebração feliz (HEGEL, 1999, p.
30). Ensina Lima Vaz:
Vê-se que na dialética da comunicação das consciências pela mediação do mundo
não permite conceber a história e o seu desenrolar nem segundo o modelo linear da
sucessão dos fenômenos naturais, nem como o desenvolvimento necessário de uma
Idéia na série de suas implicações. O encontro das consciências pela mediação do
mundo é também afrontamento, uma luta pelo reconhecimento. (VAZ, 2001, p. 258259)
Salgado (1996, p. 255-267) afirma que o reconhecimento possui dois elementos: a luta e
o trabalho. O momento da luta é aquele em que é posta a desigualdade das consciências, pois
uma não se reduz a ser objeto da outra; assim elas iniciam uma luta de vida e de morte pelo
reconhecimento recíproco do status de livre. O momento do trabalho é o médio posterior
desse reconhecimento em que uma das consciências subjuga a outra e atua no mundo através
dela; a conseqüência disso é que a consciência subjugada mira sua liberdade perdida naquela
que a oprime e quer ser reconhecida como igual, negando a sua negação de liberdade. Esse
desenrolar só será suprassumido em um ambiente que propicie a universalização do
indivíduo: o Estado.19
Aqui podemos concluir sobre a possibilidade de ordem na História: a longa duração que
torna clara os elementos racionais, dialéticos, criativos e voluntários do processo histórico em
um ambiente unificador que é o Estado.
Ao fazer a História do Estado, já se parte do todo mas que, por exigência filosófica,
pressupõe a parte. Ora, como afirma René Remond ao reivindicar a importância da história
política:
“O político é o lugar de gestão da sociedade global, ele dirige em parte as outras
atividades, define seu status, regulamenta seu exercício. [...] é o ponto para onde
conflui a maioria das atividades e que recapitula os outros componentes do conjunto
social.” (RÉMOND, 2003, p. 447)
Conclusão
Concluímos, portanto, que uma história que ao mesmo tempo é filosofia só pode ter
como conteúdo a sociedade política organizada no Estado.
Isto porque o Estado exerce uma força gravitacional de todas as práticas, tensões,
valores e normas que existem em uma determinada sociedade. Tudo apto a ser racionalizado e
17 Explica que BERGSON que se queremos ordem automática, que busquemos no mundo físico. (BERGSON,
2007, p 253)
18 Ethos é a palavra grega que indica a morada do homem (com eta inicial) que nunca é dado ao homem e sim
construído por ele; em outro sentido, ethos (com épsilon inicial) que significa costume do momento histórico
social de um povo. (VAZ, 2004, p. 12-15)
19 Salgado afirma que esse é mesmo o “começo exterior e fenomenal dos Estados, mas não do seu princípio
substancial.” (SALGADO, 1996, p. 267.)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
187
ordenado converge, é avaliado, absorvido ou eliminado e posto a prova no âmbito estatal para
sobreviver ao decurso do tempo
Assim, a História do Estado não se faz separada da história do seu povo; é o próprio
devir da consciência que um povo vai tomando de si mesmo, sem nunca se concluir ou
satisfazer.
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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
189
A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO
XIX E AS PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO
HISTORICISTA
LAW HISTORICAL SCHOOL: THE FIRST TWO DECADES OF NINETEENTH CENTURY
AND THE WEIGHTINGS OF SAVIGNY ON HISTORICIST JUSRATIONALISM
Luiz Henrique Maisonnett*
Resumo: As duas primeiras décadas do século XIX foram fortemente marcadas pelas ponderações de Savigny
sobre o racionalismo iluminista e pela conseqüente criação da Escola Histórica do Direito. A ordem natural,
ligada a idéia de direito natural, passara, com as críticas iluministas do século XVIII, a ter sua origem
considerada ligada à razão. Foi uma transição de uma crença em um direito natural de origem divina, que
dominou a Idade Média, para uma crença em um direito natural de origem racional. Esse historicismo antiiluminista, típico do início do século XIX, adquiriu especial evidência com o desenvolvimento da escola
histórica, que redirecionou os esforços dos juristas germânicos para o estudo dos textos romanos e dos direitos
consuetudinários. Esta nova maneira marcará uma grande ruptura metodológica na história do direito na
Alemanha no final do século XIX e início do XX e que se espalhará por diversos outros países.
Palavras-chave: Racionalismo iluminista; historicismo; Escola Histórica do Direito.
*
Professor titular de História do Direito e Direito Internacional da Universidade Comunitária da Região de
Chapecó-UNOCHAPECÓ. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina –
UNISUL e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, sob orientação do Prof. Dr.
Arno Dal Ri Junior. E-mail: [email protected]
190 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E AS
PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO HISTORICISTA
Introdução
O presente estudo tem como objetivo analisar as duas primeiras décadas do século XIX
e as ponderações de Savigny sobre o racionalismo iluminista e a conseqüente criação da
Escola Histórica do Direito.
No mundo contemporâneo se torna imprescindível analisar alguns aspetos históricos da
evolução das ciências jurídicas, bem como seu amadurecimento e a contribuição que alguns
juristas de grande conhecimento, como Savigny, deram para essa processo.
O objetivo desse estudo foi analisar quais foram as ponderações de Savingy sobre o
direito presente das duas primeiras décadas do século XIX e qual foi o motivo ou impulso
para a criação da Escola Histórica, bem como, como esta contribuiu para a formação do
direito contemporâneo.
A Escola Histórica do Direito
Até quase o final do século XIX, a Alemanha e a Itália, nações que ocupavam lugares
centrais no panorama do saber jurídico europeu, não conheciam a figura de um Estado
nacional. Apesar da privação de identidade política, a consciência nacional manifestou-se de
forma mais intensa e marcou fortemente todas as áreas da cultura, reagindo contra a ideia de
que o “Estado” e seu direito codificado pudessem ser a única forma de manifestar a identidade
política e jurídica de uma nação.
Até então, a cultura ocidental pautava-se na certeza da existência de duas ordens
jurídicas: uma natural e outra positiva. A ordem natural, ligada a idéia de direito natural,
passara, com as críticas iluministas do século XVIII, a ter sua origem considerada ligada à
razão. Foi uma transição de uma crença em um direito natural de origem divina, que dominou
a Idade Média, para uma crença em um direito natural de origem racional. Mas esta ciência
jurídica profundamente jusracionalista, apoiada no racionalismo kantiano1, vai ter seu caráter
1 Quando o homem do renascimento produziu uma inversão antropocêntrica na compreensão do mundo, vendoo a partir de si mesmo, e não mais a partir de Deus, o tratamento do problema da justiça sofreu uma marcante
inflexão. A concepção do jusnaturalismo teológico foi, gradativamente, substituída, a partir do século XVII, em
face do processo de secularização da vida social, por uma doutrina jusnaturalista subjetiva e racional, buscando
seus fundamentos na identidade de uma razão humana universal. O jusnaturalismo racionalista consolida-se com
o advento da ilustração, despontando a razão humana como um código de ética universal e pressupondo um ser
humano único em todo o tempo e em todo espaço. Os iluministas acreditavam, assim, que a racionalidade
humana, diferentemente da providência divina, poderia ordenar a natureza e vida social. Este movimento
jusnaturalista, de base antropocêntrica, utilizou a idéia de uma razão humana universal para afirmar direitos
naturais ou inatos, titularizados por todo e qualquer indivíduo, cuja observância obrigatória poderia ser imposta
até mesmo ao Estado, sob pena do direito positivo corporificar a injustiça. É com a obra de Kant que a proposta
de racionalização do jusnaturalismo atinge um maior grau de profundidade e sofisticação intelectual. O
criticismo transcendental de Emmanuel Kant procura conciliar o empirismo e o idealismo, redundando num
racionalismo que reorienta os rumos da filosofia moderna e contemporânea. Para ele, o conhecimento só é
possível a partir da interação a experiência e as condições formais da razão. Promove uma verdadeira revolução
copernicana na teoria do conhecimento, ao valorizar a figura do sujeito cognoscente, o que nos ajuda a
compreender sua discussão ética. Kant preocupa-se em fundamentar a prática moral não na pura experiência,
mas em uma lei inerente à racionalidade universal humana, o chamado imperativo categórico – age só, segundo
uma máxima tal, que possas querer, ao mesmo tempo, que se torne uma máxima universal. Aqui a razão prática é
legisladora de si, definindo os limites da ação e da conduta humana. O imperativo categórico é único, absoluto e
não deriva da experiência. A ética é, portanto, o compromisso de seguir o próprio preceito ético fundamental, e
pelo fato de segui-lo em si e por si. O homem que age moralmente deverá fazê-lo, não porque visa à realização
de qualquer outro algo, mas pelo simples fato de colocar-se de acordo com a máxima do imperativo categórico.
O agir livre é o agir moral. O agir moral é o agir de acordo com o dever. O agir de acordo com o dever é fazer de
sua lei subjetiva um princípio de legislação universal, a ser inscrita em toda a natureza. Sendo assim, revela-se a
preocupação kantiana de superar o plano empírico no qual se defrontavam tais contrastes, a fim de atingir uma
regra de justiça de validade universal. Algo de novo surgia, com Kant, na dramaturgia da justiça, alçando-se ele
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
191
científico duramente contestado especialmente durante as duas primeiras décadas do século
XIX, pois, ao invés de normas racionais universais, cada vez mais o que se via era a
fragilidade de normas que mudavam a cada novo governo ou ante a presença de cada novo
interesse.
Esse historicismo anti-iluminista, típico do início do século XIX, adquiriu especial
evidência com o desenvolvimento da escola histórica de Gustav Hugo (1764-1844), que
redirecionou os esforços dos juristas germânicos para o estudo dos textos romanos e dos
direitos consuetudinários. (HESPANHA, 1998, p. 179 e ss.) Em seus fundamentos inaugurais,
o historicismo via o direito como produto da cultura de cada nação, um direito orgânico, vivo
e sempre em evolução, de modo que ele nasce avesso a qualquer codificação, uma vez que via
nos códigos uma espécie de mortalha jurídica. (DEL VECCHIO, 1959, p. 209)
Com a valorização das formas tradicionais e espontâneas de organização política,
presentes na tradição nacional (HESPANHA, 1998, p. 181), a Escola Histórica do Direito,
tendo como seu principal representante Friedrich Karl von Savigny (1779-1861), professor da
Universidade de Berlim, enfatizando a necessidade de se conhecer o direito do passado para
que se pudesse buscar a tradição jurídica de cada povo como base de sustentação e
justificativa de um direito próprio de cada nação. Tal pensamento foi manifestado pela
primeira vez em uma disputa doutrinal travada com o professor de Direito Romano da
Universidade de Heidelberg, Anton Friedrich Justus Thibaut (1772-1840), que ficou
conhecida na Alemanha como disputa sobre codificação, em alemão Kodifikationsstreit.
O movimento pela codificação, de inspiração abertamente iluminista, marca o período
de transição para o século XIX, propondo a positivação do direito natural através de um
código posto pelo Estado, representante de um direito universal. Rejeita, assim, o direito
consuetudinário, por ter como base o irracionalismo da tradição, contrário aos princípios da
civilização. Sustentado num racionalismo extremado, este pensamento foi plenamente
recebido pela escola da exegese francesa, e cristalizou-se através do Código Napoleônico,
cuja influência se fará presente em praticamente todos os movimentos codificadores dos
demais Estados ocidentais.
A Alemanha foi um dos países europeus que mais tardiamente formulou um Código
Civil, em razão não apenas do ambiente cultural existente, mas também devido à sua
fragmentação territorial. A sua situação político-social era obviamente bem diversa da
francesa, de modo que a defesa de princípios como o da igualdade formal entre todos os
cidadãos, era uma postura bastante inovadora para uma sociedade que ainda manifestava
características feudalistas, como a distinção da população entre nobreza, burguesia e
campesinato. Destarte, a proposta de se criar um direito único, inspirado nos moldes do
Código de Napoleão, irá gerar inúmeras controvérsias entre os alemães, tendo como exemplo
o debate entre Thibaut e Savigny.
ao plano transcendental, no qual a justiça se impõe como um imperativo da razão, segundo duas regras que se
complementam: age de modo a tratar a humanidade, na sua como na pessoa de outrem, sempre como fim, jamais
como simples meio, bem como age segundo uma máxima que possa valer ao mesmo tempo como lei de sentido
universal. Somente assim, a seu ver, poderá haver um acordo universal de liberdade, base de uma comunidade
universal. Não cuida Kant de definir a justiça, ao contrário do que faz com o direito, preferindo inseri-la no
sistema de sua visão transcendental da vida ética, o que vem, mais uma vez, confirmar a tese de que a justiça
somente pode ser compreendida em uma visão abrangente de valor universal. Deste modo, com o jusnaturalismo
racionalista moderno, o conhecimento jurídico passa a ser um construído sistemático da razão, conforme o rigor
lógico da dedução, e um instrumento de crítica da realidade, ao permitir a avaliação crítica do direito posto em
nome de padrões éticos contidos em princípios reconhecidos pela razão humana. SOARES, Ricardo Maurício
Freire. Reflexões sobre o jusnaturalismo: o direito natural como direito justo. Disponível em:
<http://www.scribd.com/doc/70599770/Reflexoes-Sobre-o-Jusnaturalismo> Acesso em: 12 abr. 2011
192 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E AS
PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO HISTORICISTA
Thibaut defendia acodificação, alegando que a positivação permitiria superar a confusão
de conceitos e as obscuridades presentes no direito alemão. Alegava ainda, que tal ordenação
sistemática configuraria um passo decisivo para a futura unificação da Alemanha, de forma
que suas vantagens seriam não apenas jurídicas, mas também políticas. Savigny
compartilhava com os defensores da codificação a exigência de formular-se um direito mais
sistemático para por ordem ao caos jurídico, todavia, Savigny afirmava que as condições
político-culturais da Alemanha não eram propícias ao desenvolvimento de uma codificação,
de modo que a melhor solução para sanar tais defeitos estaria na própria ciência do Direito:
Eu recolho agora, em suma, os pontos em que minha opinião concorda com a defesa
de um código, e pontos de discordância. Em ordem andam juntos: queremos o
fundamento de um direito não duvidoso, a salvo da usurpação do arbítrio, do
assaltado da injustiça, este direito igualmente comum a toda a nação, e a
concentração de esforços científicos da lei. Para este fim, eles querem um código,
que, no entanto, apenas causaria a unidade esperada para a metade da Alemanha ,
enquanto a outra metade seria cada vez mais separada. Para mim, vejo uma meia
verdade em uma organizada e progressiva ciência do direito, a qual pode ser comum
2
à nação inteira. (SAVIGNY, 1968, p. 201-202)
Por meio da escola histórica, a teoria alemã ergueu-se contra a concepção naturalista e
legalista que lhe buscava suprimir toda relevância e ofereceu como resposta um imenso
desprezo pela lei, a tal ponto que o código prussiano passou a ser quase ignorado enquanto
fonte do direito, embora ele tenha sido vigente durante praticamente todo o século XIX.
(WIEACKER, 1960, p. 380)
Conforme afirma Bobbio, a escola histórica do Direito é, portanto, eminentemente antiracionalista, opondo-se à filosofia iluminista através de uma dessacralização do direito
natural. (BOBBIO, 1999, p. 45)
Impulsionado pelas teorias de Hegel, que insistia no fato de que o sujeito da história
eram os indivíduos, Savigny e sua escola foram os primeiros a criarem, no plano das idéias
jurídicas, uma consistente refutação do direito natural. A escola histórica apresenta-se como
reação à escola do direito natural racional, como ficou conhecida a corrente iluminista.
Savigny discorda do racionalismo kantiano e nega a existência autônoma do Direito
(BARCHET, 1996, p. 44) ao mesmo tempo em que refuta a crítica que afirma ser a validade
do direito mero apêndice da vontade do legislador. Para Savigny o direito encontra sua
legitimação na história.
Note-se que Savigny não ataca o racionalismo em si, mas sim uma determinada espécie
dele, o racionalismo jusnatural iluminista do século XVIII. Ele duela contra aquele
racionalismo buscando um outro racionalismo ou, uma outra base racional para o direito.
Savigny passa então a apontar para a historicidade como resposta à contestação da
cientificidade do direito, surgindo então um jusracionalismo historicista.
Este historicismo jurídico ou jusracionalismo historicista vem mudar as bases do
racionalismo jurídico, até mesmo porque já não era fácil sustentar o caráter científico de uma
ciência cujas regras podiam ser modificadas por uma simples expressão da vontade do
2 Raccolgo ora, in breve, i punti, sui quali la mia opinione s’accorda con quella de’caldeggiatori di un codice, e
i punti su cui discordamo. Nello scopo andiamo di concerto: noi vogliamo il fondamento di un diritto non
dubbio, sicuro dalle usurpazioni dell’arbitrio, e dagli assalti dell’ingiustizia, questo diritto egualmente comune
a tutta la nazione, e la concentrazione degli sforzi scientifici di lei. Per questo scopo essi desiderano un codice,
il quale però a una metà soltano della Germania arrecherebbe la bramata unità; chè l’altra metà resterebbe
vieppiù separata. Per me, io veggo il verace mezzo in un’ organizzata progressiva scienza di diritto, la quale
può esser comune all’ intera nazione.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
193
legislador ou capricho do governante. Deste modo o direito socorre-se da história para
reafirmar seu ameaçado status de ciência.
Para os adeptos da visão histórica, o direito não decorre de uma razão universal válida
para todo o gênero humano e expressa através de codificações gerais aplicáveis em todos os
países e épocas. Segundo esta escola, a evolução histórica é determinada pela presença do
espírito do povo, em alemão o Volksgeist, ou a opinião da nação, conhecida como Meinung
der Natioti. O Volksgeist marca todas as manifestações de uma nação, encontrando-se
também na origem do sistema jurídico.
Ao invés de indagar o que deveria ser o direito, esta corrente dedicou-se a estudar a sua
formação na sociedade. Enquanto produto histórico, o direito foi relacionado com a idéia de
nacionalidade e com as particularidades de cada povo. Assim sendo, os representantes desta
escola rejeitaram as tentativas de uma codificação do direito segundo modelos racionais,
considerados muitas vezes como artificiais. Na opinião de Savigny, o espírito do povo revelase através do direito costumeiro, dos trabalhos de intelectuais nacionais que se dedicam a
estudar as raízes do direito e sistematizam as suas tendências, e, finalmente, através de obras
literárias, que exprimem e preservam o espírito popular.
Como bem aponta Lima, é conquista definitiva da Escola Histórica a noção de caráter
social dos fenômenos jurídicos, com seus dois elementos essenciais: continuidade e
transformação. A escola mostrou que os fundamentos do direito se encontram na vida
social. Eram esses fundamentos que as teorias precedentes iam buscar na razão. (LIMA,
1996, p. 276)
Nessa época, Savigny sustentava que o direito era uma ciência que se deveria elaborar
histórica e filosoficamente. A esses dois termos, porém, atribuía um significado muito
diverso do que eles têm no discurso atual. Ao afirmar que o direito deveria ser filosófico, não
queria Savigny dizer que o direito deveria subordinar-se às noções filosóficas de justiça nem
se ater ao jusnaturalismo dominante, mas simplesmente que a ciência jurídica deveria ser
elaborada de forma sistemática, por meio de conceitos organizados, constituindo um campo
de conhecimentos com unidade e organicidade. Portanto, o conhecimento do direito não
poderia reduzir-se a uma mera exposição fragmentária do sentido das normas, mas deveria ser
capaz de organizar sistematicamente todos os conceitos jurídicos.
Quanto ao elemento histórico da ciência jurídica, Savigny não o assinalava para indicar
a relatividade de toda construção jurídica nem a necessidade de que os juízes adaptassem o
sentido das normas à realidade histórica de seu tempo, ao contrário, a afirmação de
historicidade era um elemento na busca de uma interpretação objetiva, historicamente
determinada pelo momento em que a lei havia sido elaborada. Não se tratava, pois, de um
historicismo atualizador ou prospectivo, mas de um historicismo retrospectivo e conservador,
que ligava o direito às raízes históricas de sua criação, impedindo as tentativas de adaptar as
soluções jurídicas às condições históricas do momento da aplicação do direito. Esse caráter
conservador das idéias historicistas de Savigny, que se opunha firmemente às inovações
trazidas pela Revolução Francesa e pelo Code civil, é essencial para a compreensão de sua
teoria, na qual o elemento histórico funcionava como um critério que poderia dar maior
objetividade à aplicação do direito.
Para, Savigny, o Estado era fruto da necessidade humana de haver um limite para a
arbitrariedade de uns contra os outros, limite este que deveria ser estabelecido pela lei do
Estado, por isso, entendia que os juízes deveriam interferir nos conflitos como terceiros
imparciais, para determinar em que limite as liberdades de uns cederiam às liberdades dos
outros e, para evitar que os juízes agissem de forma arbitrária,
194 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E AS
PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO HISTORICISTA
[...] seria melhor que existisse algo totalmente objetivo, algo de todo independente e
distante de toda convicção individual: a lei. [...] A lei deveria, pois, ser
completamente objetiva, conforme sua finalidade original, isto é, tão perfeita que
quem a aplique não tenha nada a agregar-lhe de si mesmo. (SAVIGNY, 1994, p. 67)
Savigny defendia, pois, a existência de uma interpretação objetiva, que possibilitasse a
identificação do verdadeiro sentido da lei, e é nessa medida que ele afirma que a ciência
jurídica é histórica, pois o sentido correto da lei é um dado histórico e “chama-se saber
histórico todo saber de algo objetivamente dado; por conseguinte, todo o caráter da ciência
legislativa deve ser histórico”. (SAVIGNY, 1994, p. 7)
Quanto ao sentindo objetivo da norma, como os demais hermeneutas de seu tempo,
Savigny filiava-se à corrente que identificava na busca da vontade do autor3 o núcleo da
interpretação legislativa, afirmando que,
[...] toda lei deve expressar um pensamento em forma tal que valha como norma.
Quem interpreta, pois, uma lei, deve investigar o conteúdo da lei. Interpretação é
primeiramente: reconstrução do conteúdo da lei. O intérprete deve colocar-se no
ponto de vista do legislador e, assim, produzir artificialmente seu pensamento.
(SAVIGNY, 1994, p. 13)
Savigny reconhecia como uma meia verdade a afirmação de que, na interpretação, tudo
depende da vontade do legislador, pois, segundo ele, não bastava que o legislador tivesse uma
vontade, mas era preciso que ele a evidenciasse na lei para que essa sua intenção vinculasse o
intérprete, de tal forma que ele define interpretação não apenas como identificação da vontade
do legislador, mas como “reconstrução do pensamento (pouco importa se claro ou obscuro)
expressado na lei, enquanto seja cognoscível a partir da lei.” (SAVIGNY, 1994, p. 14)
Essa especial relevância da literalidade das normas, contudo, não fez com que Savigny
se limitasse aos aspectos gramaticais da interpretação, sendo que ele afirmava que, na
reconstrução do pensamento do legislador, o intérprete deveria realizar uma tríplice atividade,
inserindo uma terceira espécie de interpretação (a histórica) no antigo modelo bipartido que
diferenciava a interpretação em lógica e gramatical. Com isso, a interpretação deveria
constituir-se em uma atividade dividida em três partes: primeiramente uma parte lógica, que
consiste na apresentação do conteúdo da lei em sua origem e apresenta a relação das partes
entre si. É também a apresentação genética do pensamento na lei. Mas o pensamento deve ser
expresso, motivo pelo qual é preciso também que haja normas de linguagem, e disso surge a
segunda parte, a parte gramatical, uma condição necessária da parte lógica. Também se
relaciona com a parte lógica, a terceira, a parte histórica. A lei é dada em um momento
determinado, a um povo determinado; é preciso conhecer, pois, essas condições históricas
para captar o pensamento da lei. A compreensão da lei só é possível pela compreensão do
momento em que a lei existe. (SAVIGNY, 1994, p. 13)
Desta forma, percebe-se que Savigny inseriu o elemento histórico na hermenêutica
como uma forma de garantir que a interpretação deveria observar as condições históricas do
momento da elaboração da lei, pois toda lei é fruto de determinadas circunstâncias históricas,
e não para afirmar que a lei deveria ser interpretada de forma a adaptar-se aos valores
históricos do momento em que ela fosse aplicada. Trata-se, pois, de uma utilização
3 Isto de modo algum significa que Savigny seja um partidário da teoria subjetivista da interpretação, centrada
na vontade do legislador. Da mesma forma, apesar de sua primeira fase ser marcada por um viés mais
racionalista, vinculada ao sentido expresso da norma, também aqui não é possível identificar plenamente seu
pensamento com a teoria objetivista, centrada na vontade da lei. Tanto o conceito psicológico de vontade do
subjetivismo quanto o conceito realista e racionalista do objetivismo são produtos do positivismo, que surge na
Alemanha em um momento posterior ao historicismo.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
195
conservadora do elemento histórico, na medida em que vincula o sentido da lei ao momento
de sua elaboração.
Apesar das intenções iniciais dos membros da Escola de Savigny, o historicismo acabou
por abandonar o organicismo que o inspirou, que buscava no direito vivo a manifestação do
Volkgeist. (DEL VECCHIO, 1959, p. 209) Contudo, o povo de cuja vontade Savigny fala não
é a população real dos reinos germânicos, pois o Volksgeist não é apreendido por meio de uma
análise sociológica dos anseios da nação. É preciso estar atento para o fato de que o “[...] povo
não é, para Savigny, de modo algum a realidade política e social de uma nação histórica, mas
um conceito cultural ideal, a comunidade espiritual ligada por uma cultura comum”.
(WIEACKER, 1960, p. 448) Dessa forma, embora fale em espírito do povo, o interesse de
Savigny é dogmático e não sociológico, volta-se para o direito dos juristas, ou seja, para a
cultura jurídica tradicional, construída com base na experiência dos juristas germânicos em
desenvolver um sistema jurídico a partir do estudo do direito romano e dos costumes. Essa
postura fez com que Savigny se contrapusesse a qualquer elaboração artificial do direito,
especialmente aos códigos de inspiração jusnaturalista e liberal, pois, em sua opinião, o
verdadeiro direito não deve ser construído abstratamente, mas,
[...] vem daqueles usos e costumes, que por consentimento universal é dado
frequentemente, embora não com grande precisão, o nome do direito
consuetudinário, isto é, que o direito é criado primeiro pelos costumes e pelas
crenças populares, e em seguida pela lei, sempre, portanto, em virtude de uma força
interior, e tacitamente ativo, jamais em virtude do arbítrio de nenhum legislador.
4
(SAVIGNY, 1975, p. 48)
A noção de sistema é essencial para Savigny, principalmente no que diz respeito à
interpretação das leis. Todavia, cabe ressaltar que existem dois momentos no pensamento
deste autor: o de sua juventude, até aproximadamente 1814, e o de sua maturidade, após esta
data, quando o elemento sistemático torna-se objeto de maior atenção.5
Em seus primeiros trabalhos, Savigny tomava como objeto da interpretação tão somente
a reconstrução do pensamento expresso na lei, passível de ser extraído apenas a partir da
própria norma, demonstrando certo teor positivista-legalista em suas concepções. Rejeita,
pois, qualquer interpretação que amplie (extensiva) ou limite (restritiva) o sentido da letra da
lei, assim como nega a possibilidade de uma interpretação teleológica, uma vez que o dever
do juiz se resume a executar a lei, e não aperfeiçoá-la de modo criador, tarefa esta que cabe
tão somente ao legislador. Todavia, em sua maturidade, Savigny irá rever algumas de suas
concepções, passando a admitir, de forma limitada, o uso de uma interpretação extensiva ou
restritiva, com o objetivo de retificar uma expressão defeituosa do texto. Aqui o Direito não é
mais visto como um mero somatório de normas rigidamente delimitadas por sua literalidade,
mas como um conjunto de institutos jurídicos presentes no espírito do povo, conforme já
mencionado, cuja apreensão pressupõe uma intuição do jurídico, e não um mero racionalismo
dedutivo.
Embora Savigny defendesse a existência de um Direito espontâneo, baseado no
Volksgeist, notas-se que, no tocante à influência exercida pelo autor no pensamento jurídico
4 [...] tiene su origen en aquellos usos y costumbres, a los cuales por asentimiento universal se suele dar,
aunque no con gran exactitud, el nombre de Derecho consuetudinario; esto es, que el derecho se crea primero
por las costumbres y las creencias populares, y luego por la jurisprudencia; siempre, por tanto, en virtud de una
fuerza interior, y tácitamente activa, jamás en virtud del arbitrio de ningún legislador.
5 Esta distinção é feita não apenas por Karl Larenz na obra Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de
José Lamego. 3a ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p.9 e ss., como também por Tércio Sampaio Ferraz
Júnior na obra Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3a tiragem. São Paulo: Atlas, 1991,
p. 241.
196 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E AS
PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO HISTORICISTA
alemão subsequente, o fator sistemático e cientificista de sua teoria termina por prevalecer
sobre o fator historicista, permitindo com isso o desenvolvimento do formalismo jurídico na
Alemanha através da jurisprudência dos conceitos, conhecida em na língua alemã como
Begriffsjurisprudenz, tão bem representada por Friedrich Georg Puchta (1798-1846), antigo
discípulo de Savigny, e por Rudolf von Jhering (1818–1892), em sua primeira fase.
Devido a sua forte formação romanista, Savigny seguiu suas pesquisas no caminho da
redescoberta do direito romano histórico (WIEACKER, 1960, p. 453), que era considerado
uma parte fundamental da própria tradição jurídica alemã. Porém, houve dentro da Escola
Histórica quem percorresse outro caminho. Alguns se integraram ao conhecido como ramo
germanista da Escola, que acreditavam firmemente que o passado jurídico alemão baseava-se
essencialmente na tradição consuetudinária germânica e que esta continha muito mais que o
direito romano. (BARCHET, 1996, p. 51) Esta dissidência germanista do historicismo
jurídico, cuja figura de máxima expressão foi Rudolf von Ihering, que se recusa
veementemente o romanismo e continua a estudar o direito como derivado da experiência
humana, buscando sobrepor critérios históricos aos jurídicos. Também conhecidos como
histórico-empiristas, os germanistas seguiam acreditando que o verdadeiro direito germânico
encontrava-se mais nos costumes e tradições ancestrais do povo alemão e não só no direito
romano. (WIEACKER, 1960, p. 454)
De uma forma comparativa, os germanistas, ao invés de mergulharem
fundamentalmente em antigos livros e doutrinas escritas, como faziam os romanistas,
basearam suas pesquisas largamente no método histórico-comparativo e no método históricofilológico, lastrado em um minucioso estudo do contexto econômico e geográfico. Esta nova
maneira marcará uma grande ruptura metodológica na história do direito na Alemanha no
final do século XIX e início do XX e que se espalhará por diversos outros países.
A corrente romanista elegeu o direito romano como uma forma jurídica perfeita e tinha
como certo que estava lidando com um direito superior a ser resgatado e imitado. Assim,
apesar de divulgarem ser a história sua base científica, os romanistas tendiam a sobrepor os
aspectos jurídicos aos aspectos históricos e a ver no direito romano a coluna mestra de toda a
cultura jurídica civilizada. São tidos, assim, como dogmático-formalistas. Como metodologia
de pesquisa seus primeiros cultores utilizavam–se do chamado Método Histórico Estrito, o
qual tinha um fundo dedutivo-analítico e pelo qual se acreditava ser possível penetrar em cada
matéria até a raiz e descobrir seu princípio orgânico, separando o que ainda tem vida daquilo
que deve ser eliminado por estar morto e pertencer, conseqüentemente, ao passado.
(BARCHET, 1996, p. 45) Mas, este método acabou por levar esta parte dos jushistoricistas a
quererem ressuscitar velhas práticas e conceitos jurídicos por enxergarem neles algo
supostamente mais racional. (WIEACKER, 1960, p. 430-454)
Considerações Finais
Mesmo com estas rupturas internas, a Escola Histórica seguirá sendo um marco
importantíssimo para uma compreensão mais detalhada da racionalidade jurídica
contemporânea de modo bastante geral, pois pela primeira vez utilizou-se uma metodologia
de pesquisa que intencionava deliberadamente ser racional e objetiva, a partir de onde se
buscou saber exata e materialmente quais eram as origens verdadeiras do direito nacional
alemão e como este direito havia sido no passado, para que se pudesse realçar e restabelecer
vigorosamente um espírito jurídico fundado em raízes próprias do povo. Observa-se que o
historicismo jurídico coincide, na Alemanha, com a eclosão do romantismo literário e
ideológico, tendo como exemplo as obras de Goethe, de cujo ideal romântico compartilha.
(BARCHET, 1996, p. 47)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
197
Hespanha afirma, que a originalidade de Savigny não foi a de afirmar a historicidade do
direito, o que já havia sido proclamado pela escola humanista (HESPANHA, 1998, p. 137),
nem a de evidenciar o seu caráter sistemático, o que já havia sido defendido pelo
jusracionalismo, mas a de proporcionar uma peculiar síntese desses dois aspectos, articulando
a natureza histórico-cultural do direito com um adequado sistema de exposição, o que ele fez
no Sistema de Direito Romano Atual, sua obra de maturidade. Nessa obra, embora aceite as
regras jurídicas como um dado histórico-cultural de validade objetiva (que devem ser aceitas
em vez de questionadas com base nos ideais jusracionalistas), Savigny não se limita a propor
uma descrição tópica e fragmentária das regras tradicionais, mas propõe uma reelaboração
científica do material recebido, ordenando-o em função de pontos de vista unitários e, assim,
criando as bases de uma ciência jurídica ao mesmo tempo sistemática e historicista.
(MENEZES CORDEIRO, 1989, p. 83)
Analisando o direito historicamente construído, o jurista deveria identificar os
princípios gerais, evidenciar e corrigir as lacunas e contradições, elaborar os conceitos
fundamentais para o desenvolvimento de uma visão unitária do direito. Assim, o historicismo
de Savigny não era mera descrição de fatos e normas, não era mera divagação a respeito dos
costumes, mas uma extensão a todo o direito da pretensão pandectística alemã, de uma
descrição unitária e sistemática, embora objetiva e neutra, do direito romano.
Referências
BARCHET. Bruno Aguilera. Introducción Jurídica a la Historia del Derecho. Madri:
Civitas, 1996.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de
Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1999.
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Coimbra: Armênio Amado Editor,
1959.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,
dominação. 3a tiragem. São Paulo: Atlas, 1991.
HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica européia.
Publicações Europa-América, Lda. Portugal, 1998.
LARENZ, Karls. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3a ed.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.
LIMA, Hermes. Introdução a ciência do direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996.
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Introdução a: Canaris, Claus-Wilhelm.
Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1989.
SAVIGNY, Friedrich Carl von. De la vocación de nuestro siglo para la legislación y la
ciencia del derecho. Buenos Aires: Atalaya, 1975.
SAVIGNY, Friedrich Karl von. La Vocazione del nostro Secolo per la Legislazione e la
Giurisprudenza. Bologna: Forni, 1968, p. 201-202.
SAVIGNY, Frierich Karl Von. Metodologia jurídica. Buenos Aires: De Palma, 1994.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Reflexões sobre o jusnaturalismo: o direito natural
como direito justo. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/70599770/Reflexoes-Sobreo-Jusnaturalismo> Acesso em: 12 abr. 2011
198 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E AS
PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO HISTORICISTA
WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1967.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
199
AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA
RETÓRICA ARISTOTÉLICA
ISOCRATES AND PLATO’S CONTRIBUTIONS TO THE FORMATION OF ARISTOTLE’S
RHETORIC
Luiza Ferreira Campos*
Resumo: O período entre os séculos V e IV a.C. é considerado como marco do nascimento da retórica
(rhetoriké) enquanto ramo do conhecimento estruturado, é dizer, da sua transmutação de arte ou técnica do
discurso e do convencimento, ensinada pelos sofistas do séc. V a.C, em teoria retórica concebida com espírito
científico, tal como verificado na obra de Aristóteles. O artigo propõe-se a investigar as condições e fatores
envolvidos nesse processo, lançando mão da análise da obra de três nomes-chave: Platão (diálogos Górgias e
Fedro), Isócrates (discurso Anti-sofistas) e Aristóteles (Livro I da Retórica). Assim, identificou-se o atrelamento
do surgimento da rhetoriké tanto à sofística, quanto ao pensamento totalizante e abstrato da filosofia e, antes
disto, à revolução grega da escrita que permitiu a transcendência das limitações da oralidade e a maior
racionalização do discurso. Demonstrou-se, ainda, que, ao menos dois aspectos primordiais da construção da
retórica aristotélica já se encontravam presentes, ainda que de forma incipiente, nas obras platônicas: a defesa da
necessidade de “moralização” da retórica que se desdobrou no destacamento do ethos como um de seus
fundamentos; e o reconhecimento da impossibilidade de se prescindir da retórica diante da própria constituição e
organização da vida humana em sociedade. Em seguida, o artigo destaca as contribuições do pensamento de
Isócrates para esse processo, que consistem na inserção do “conteúdo” ético na retórica na condição de valores
“reais” e cívicos e não mais ideais e no entendimento da retórica enquanto filosofia. Conclui-se, portanto, pela
existência de contribuições isocráticas e platônicas, ainda que indiretas, para a genealogia da retórica na
Antiguidade grega.
*
Mestre em Filosofia do Direito pela UFPE. Leciona da Faculdade da Cidade do Salvador e na Faculdade
Unyahna. Email: [email protected]
200 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA
ARISTOTÉLICA
Introdução
O período entre os séculos V e IV a.C. é considerado como marco do nascimento da
retórica enquanto ramo do conhecimento estruturado e sistematizado, em uma palavra,
retórica enquanto rhetoriké.
De arte ou técnica do discurso, ensinada por sofistas do séc. V a.C. e composta por
conhecimentos que explicavam como conduzir um discurso, por quantas partes este seria
formado e o que deveria ser exposto em cada uma delas, quais as possibilidades de utilização
das palavras e dos gestos, enfim, que ensinavam a arte do convencimento, a retórica
transmuta-se em um saber organizado que, mais tarde, para alguns, daria origem a um dos
troncos da Filosofia, as filosofias retóricas em oposição às ontológicas (ADEODATO, 2008,
p. 01).
Como foi possível tal movimento? Quais as condições que determinaram o seu
surgimento e quais os principais nomes envolvidos, intencionalmente ou não, em tal
acontecimento? Estes são os questionamentos centrais que servem de norte para o presente
trabalho.
Diante da revalorização e ressignificação do saber retórico e da construção de teorias
contemporâneas de cunho argumentativo, faz-se necessário o aprofundamento nos conceitos
envolvidos. Para tanto, é fundamental o estudo e a contextualização das obras dedicadas à
retórica que remontam à Antiguidade, em especial Aristóteles.
Com o intuito de elucidar as condições teóricas e filosóficas para a construção da
rhetoriké, o presente artigo, após breve explanação sobre os antecedentes primeiros que
constituíram o ambiente propício para a formação tanto da filosofia quanto da arte retórica,
destaca três nomes-chaves para entender a passagem em questão.
O primeiro é o de Platão (428 a 347 a.C.) – e com ele o Sócrates-platônico. Alicerce de
toda filosofia-ontológica, Platão mantinha considerável distância da retórica e da oratória, não
as incluindo sequer no conteúdo programático de sua escola. Todavia, sua crítica contra a
sofística e contra a retórica praticada por estes e pelos oradores e logógrafos levantava
questões que, mais tarde, reverberariam no estudo empreendido por Aristóteles, desdobrandose em formulações que alterariam profundamente a constituição da retórica.
Isócrates (436 a 338 a.C.), além da crítica à sofística e à filosofia dialética socrática,
assumiu uma postura positiva frente à retórica, reivindicando para essa a condição de
filosofia, de saber pragmático capaz de orientar a vida em comunidade, real e não ideal; a
retórica era, portanto o centro gravitacional de seu programa pedagógico, conhecimento chave
para a educação do homem grego e continuidade e aprimoramento de sua civilização.
Por fim, Aristóteles (384 a 322 a.C.) que, reconhecendo como inegável o valor prático
da arte retórica, lançou um novo olhar sob esta, partindo tanto da “cientificidade” e
sistematicidade da tradição filosófica jônica quanto do abstracionismo e da valoratividade da
filosofia ontológica e da ética.
O estudo empreendido restringiu-se, fora a bibliografia indireta, à análise dos diálogos
platônicos Górgias e Fedro, o discurso Anti-sofistas de Isócrates e os três primeiros capítulos
do Livro I da Retórica de Aristóteles.
1 Condições antecedentes da rhetoriké: a revolução escrita, a poética, a
arte retórica ou techné, a oratória, a sofística e a filosofia
O momento da retomada da escrita na Grécia remonta ao século VIII a.C., final da Idade
das Trevas e início do Período Arcaico (séc. VIII ao VI a.C.), tendo forte influência do
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
201
alfabeto fenício. As primeiras manifestações escritas – ao menos entre aquelas que resistiram
ao tempo – estão consubstanciadas na obra de Homero e Hesíodo (LESKY, 1995, p. 20).
A “literatização” deu-se de forma lenta e gradual. A tradição da oralidade ainda é
extremamente marcante no Período Arcaico. O conhecimento era transmitido por canções,
escritas ou não; o que hoje se entende por cantor e poeta estavam reunidos em uma mesma
figura. Havia, apenas, por um lado, a “música” (aoidê), as “rimas” (hymnoi) e o “cantor”
(aoidos), e, por outro, a eloqüência das “palavras” (epea) do basileus1 nas assembléias. As
palavras poiêsis, poêtês e rhêthor ainda não existiam, só vindo aparecer no século V a.C.;
poiêtikê e poiêma – ambas designando a “poesia” surgem apenas no séc. IV a.C. (WALKER,
2000, p. 4).
Com a escrita, a poesia e a prosa heróica, materializadas nos papiros, foram ganhando,
aos poucos, autonomia e importância. As histórias deixavam de ser cantadas, para serem
declamadas e contadas2.
Este é o primeiro aspecto fundamental que pode ser destacado como pressuposto para a
formação da rhetoriké, pois é a partir dessa “literatização” dos discursos que surge a arte
retórica dos sofistas e primeiros oradores, e com ela os primeiros manuais que remontam ao
séc. V a.C.
Michel Gagarin (2004, p. XI) aponta para meados deste século como período inicial do
estudo da retórica como art ou techné, identificando o trabalho de Corax e seu pupilo Tisias,
na Sicília, como o primeiro manual de arte retórica. Nesse mesmo sentido, lecionam Jefrey
Walker (2000, p. 02) e George Kennedy3 (1980, p. 21).
Se de início, em especial nos séculos VIII e VII a.C., os discursos eram elaborados de
forma intuitiva e, de certa forma, sem muita preparação prévia, como lembra o Sócratesplatônico em Fedro, com o decorrer do tempo, o incremento da vida política, a difusão da
escrita e o refinamento dos jogos de poder exigiram uma reflexão sobre a oratória. A
grandiosidade do século V a.C. e a hegemonia ateniense constituíram, portanto, o cenário
ideal para o desenvolvimento da arte do discurso.
De mero aglomerado de comunidades agrícolas, o mundo grego, a partir do séc. VI a.C.,
passou por inúmeras transformações provocadas pela expansão comercial e o intercâmbio
com outros povos. A urbanização e a formação das poleis alteraram profundamente o mundo
grego (WALKER, 2000, p. 17). A constituição de espaços públicos para a discussão e decisão
dos caminhos da polis, entre os cidadãos livres, fazia nascer a necessidade de aprimoramento
da oratória4. A organização social e política das cidades-estado gregas e o apogeu da
democracia constituíram, desta forma, outro pressuposto para a formação da arte do discurso.
É nesse cenário que o manual de retórica escrito por Corax, ao alcançar Atenas, ganha
recepção e acolhimento, sendo sua utilidade prontamente reconhecida. Logo, outras tantas
1 Muito recorrente na obra de Homero, esta palavra é, muitas vezes, traduzida como rei. No entanto, é mais
apropriado falar líder ou príncipe (de clãs ou tribos gregas).
2 Todavia, importa destacar que a marca desse passado “melódico” permanece não só na poesia como também
nos discursos proferidos nas assembléias e tribunais: a métrica e a harmonia nos discursos, por exemplo,
figuravam como elementos essenciais nos ensinamentos da arte da retórica pelos sofistas.
3 Este coloca a probabilidade de Tísias e Córax serem a mesma pessoa.
4 Por certo que a tradição da oratória remete a tempos muito mais remotos: “Desde Homero, (e, sem dúvida,
muito mais cedo) os gregos atribuem significativo valor ao discurso eficaz (...) Líderes atenienses do século
sexto e quinto, como Sólon, Temístocles e Péricles, eram todos bem sucedidos oradores”. “From as early as
Homer (and undoubtedly much earlier) the Greeks placed a high value on effective speaking. (...) Athenian
leaders of the sixth and fifth centuries, such as Solo, Themistocles and Pericles, were all accomplished orators”.
(GAGARIN, p.XI, tradução nossa).
202 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA
ARISTOTÉLICA
obras sobre a arte do discurso começaram a ser escritas e a formulação de métodos de
argumentação tornava-se cada vez mais premente. Deu-se, assim, uma profunda amplificação
da prática oratória.
No século por volta de 420 a 320, dúzias – talvez centenas – de oradores e
logógrafos, hoje desconhecidos, devem ter composto discursos que se perderam,
mas apenas dez desses homens foram selecionados para preservação e estudo pelos
escolásticos antigos e apenas trabalhos coletados sob a autoria desses dez foram
preservados5. (GAGARIN, 2004, p. XIV, tradução nossa)
A literatura, todavia, possibilitada pela escrita, não contribuiu apenas para o surgimento
da poesia e da prosa epidídica, heróica. Ela também teve papel fundamental para a
emergência da filosofia no final da época Arcaica, o segundo pressuposto fundamental da
formação da rhetoriké.
É a partir da escrita que o pensamento grego começa a ganhar certa sistematicidade.
Albin Lesky (1995, p. 191) identifica Mileto como local de nascimento da filosofia. Cidade
jônica6 que contava com um vasto número de colônias e acolhia as contribuições das terras
distantes, em especial, as vindas do Oriente7, foi o berço dos filósofos Tales, Anaximandro e
Anaxímenes e, consequentemente da filosofia da natureza, por volta do séc. VII a.C.
Nas palavras de Werner Jaeger (2001, p. 145, tradução nossa),
Sem embargo, há algo de novo na maneira adotada pelos gregos de pôr a serviço de
seu problema último, relativo à origem e à essência das coisas, as observações
empíricas que absorveram do Oriente e enriqueceram com suas próprias, assim
como no modo de submeter ao pensamento teórico e causal o reino dos mitos,
fundado na observação da realidade aparentes do mundo sensível, os mitos relativos
ao nascimento do mundo. Neste momento assistimos ao nascimento da filosofía
científica. Esta é talvez a façanha histórica da Grécia. Verdade que sua liberação dos
mitos foi apenas gradual. […] A conexão do nascimento da filosofía naturalista com
Mileto, a metrópole da cultura jónica, resulta clara se se pensa em seus três
primeiros pensadores, Tales, Anaximandro e Anaximenes viveram no tempo da
destruição de Mileto pelos persas no começo do século V” 8.
5 “In the century from about 420 to 320, dozens – perhaps even hundreds – of now unknown orators and
logographers must have composed speeches that now are lost, but only ten of these men were selected for
preservation and study by ancient scholars, and only works collected under the names of these ten have been
preserved” (GAGARIN, 2004, p. XIV). Os dez são: Aeschines (395-322 aC); Andocides (440-390 aC);
Antiphon (480-411 aC); Demosthenes (384-322 aC); Dinarchus (360-290 aC); Hyperides (390-322 aC); Isaeus
(415-340 aC); Isocrates (436-338 aC); Lycurgus (390-324 aC); Lysias (445-380 aC).
6 A cultura jônica é apontada como responsável pelo acolhimento do pensamento oriental, suas preocupações
com o conhecimento a partir da experiência, em oposição ao ocidente grego mais tendente ao misticismo.
7 Admite-se, nos dias de hoje, a imensa contribuição da cultura oriental para a formação da civilização grega.
Segundo Jaeger (2001, p. 14; 17), a peculiaridade do povo grego frente aos orientais é a concepção humanística.
O foco da tradição oriental era o homem-deus, retratado nas pirâmides egípcias, nos monumentos orientais. A
massa dos homens comuns era absolutamente ignorada. Aqui está um dos principais pontos de separação entre
Ocidente e Oriente, aquele que faz da Grécia antiga o “berço” da civilização ocidental. Essa valorização do
homem vai ter continuidade no Cristianismo, com a valorização da alma individual humana e, mais tarde, na
autonomia espiritual do indivíduo a partir do Renascimento.
8 “Sin embargo, hay algo fundamental nuevo em la manera que tuvieron los griegos de poner al servicio de su
último problema, relativo al origen y la esencia de las cosas, las observaciones empíricas que aceptaron del
Oriente y enriquecieron mediante las suyas propias, así como en el modo de someter al pensamiento teórico y
casual el reino de los mitos fundado en la observación de las realidades aparentes del mundo sensible, los mitos
relativos al nacimiento del mundo. En este momento asistimos al nacimiento de la filosofia científica. Ésta es tal
vez, la hazaña histórica de Grecia. Verdade es que su liberación de los mitos fue sólo gradual. [...] La conexión
del nacimiento de la filosofia naturalista con Mileto, la metrópoli, de la cultura jónica, resulta clara si se piensa
en que sus tres primeros pensadores, Tales, Anaximandro y Anaxímenes vivieron al tiempo de la destruición de
Mileto por los persas I comienzo del siglo V”. (JAEGER, 2001, p. 145, tradução nossa)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
203
As perguntas sobre os fenômenos físicos, a constituição, origem e funcionamento do
mundo são a marca desta fase inicial da filosofia que só será alterada a partir de Parmênides e
Heráclito, com o advento da filosofia do ser. Segundo Lesky (1995, p. 240), Parmênides irá
buscar a verdade para além dos limites do mundo sensível, encontrando-a no Ser, uno e único.
Temos aqui já o embrião da separação mundo sensível e mundo ideal que será,
posteriormente, trabalhado por Platão e absorvido definitivamente pela tradição Ocidental.
Toda essa revolução intelectual irá se concentrar em Atenas no Período Clássico (séc. V
e IV a.C.). Em seu apogeu, Atenas constituía o centro da cultura grega e ali a filosofia jônica
irá transmutar-se, assumindo a feição do que hoje é, comumente, denominado de filosofia da
Antiguidade grega.
A permanência de diversos filósofos de formação jônica no início do séc. V na cidade,
entre eles Anaxágoras9, pôs os atenienses diante de uma nova forma de vida devotada à
contemplação e à busca por respostas.
Paralelamente, outro movimento, de imensa proporção e conseqüências inimagináveis,
ganhava forma: a sofística. Em meados do séc. V a.C., homens como Protágoras de Abdera –
apontado como fundador do movimento – e Górgias de Leontini passaram a percorrer o
mundo grego oferecendo seus serviços para aqueles que pudessem pagar por eles. O ensino
era prioritariamente oral e o conteúdo consistia em conhecimentos práticos que auxiliassem o
discípulo nas atividades da polis, concernentes à posição de cidadão, e viabilizassem um
melhor posicionamento na engrenagem política através de um melhor desempenho nas
assembleias e tribunais (LESKY, 1995, p. 373).
Ao contrário do que usualmente difundido, os sofistas não eram meros “comerciantes”
de conhecimentos retóricos que já vinham sendo compilados nos manuais e estudos sobre a
arte do discurso. O fundamento primeiro da atuação deste movimento era a concepção de que
“o verdadeiro não era susceptível de ser conhecido nem expressado” (LESKY, 1995, p. 381) e
que talvez nem sequer existisse, devendo ser substituído pelo provável. O poder na sofística
era atribuído à palavra, e, portanto, ao logos10, em uma de suas acepções. Assim, o condão da
oratória era falar com beleza e vigor, captando o assentimento do auditório pela magia do
verbo.
Coexistiam, portanto, dois movimentos poderosos: de um lado a filosofia ontológica
que tinha em Platão seu representante e porta-voz máximo, herdeira da tradição de
Parmênides e, antes deste, dos filósofos da natureza; de outro a sofística nascida da
necessidade cotidiana da vida na polis, cujo conteúdo era resultado da sedimentação de
conhecimentos e aspectos existentes desde muito tempo na poética e na oratória e da
observação e reflexão da atividade política.
É da confluência desses dois movimentos que nasce a rhetoriké, é dizer, a retórica
enquanto disciplina, enquanto pensamento organizado em abstrações e voltado para a
descoberta dos princípios que regem o seu objeto: o homem e suas possibilidades de se fazer
entendido e ter suas idéias aceitas e adotadas pelos demais.
9 Sobre Anaxágoras, Lesky (1995, p. 364) especula que “Os Atenienses devem ter se sentido muito distanciados
do homem que os colocava perante uma nova forma de vida, totalmente entregue à contemplação (...) para quem
o Sol era uma massa de pedra incandescente, muito maior do que o Peloponeso, e que também explicava os
demais fenômenos da natureza de forma totalmente racional”
10 O termo logos, usualmente, traduzido como “razão” e, portanto, ligado à idéia de pensamento racional, tinha
em verdade duas acepções na Grécia Antiga. A primeira era como “pensamento” (e aqui não há qualquer
menção ao adjetivo “racional”), e a segunda como “palavra” ou “fala” (LESKY, 1995, p. 381).
204 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA
ARISTOTÉLICA
Assim, o surgimento da rhetoriké está intimamente atrelado tanto à sofística e, portanto,
à tradição política dos oradores e à tradição poética, quanto ao pensamento totalizante e
abstrato da filosofia; e, antes disto, à revolução da escrita que permitiu a transcendência das
limitações da oralidade e a maior racionalização do discurso. Em um primeiro momento,
todavia, não haverá confluência entre essas duas tradições, mas sim um profundo choque
muito bem retratado nos diálogos platônicos.
2 A crítica platônica à sofística como primeiro passo em direção à
rhetoriké: a busca pelo melhor homem e pelos valores ideais
O divino poder da direção das almas
é o caminho vivo, claro, distinto e
harmonioso da verdade.
Platão
A condição da eloqüência é o saber.
Platão
A relevância da obra de Platão (428 a 347 a.C.) para a formação da retórica reside na
crítica desenvolvida por este contra a sofística e no que esta desencadeou. Apontada como
uma censura impiedosa, cujo eco ainda pode ser ouvido em nossos dias – note-se a carga
pejorativa atrelada a palavras como sofista ou retórico – em verdade esta constitui elemento
fundamental para a transmutação de uma técnica oratória em um sistema de conhecimentos
estruturado e fundamentado.
A obra platônica tem início no decênio seguinte à morte de Sócrates, provavelmente por
volta de 380 a.C. Ampla e constituída, eminentemente, por diálogos nos quais Sócrates
aparece como principal interlocutor, Platão trata, prioritariamente, sobre a filosofia do ser,
lançando as bases mais sólidas da ontologia e constituindo o fundamento primeiro de toda
filosofia ocidental.
Os principais diálogos dedicados à temática da sofística ou, ainda, da retórica, são
Protágoras, Górgias e Fedro, sendo essa a provável ordem cronológica destes.
É possível afirmar que toda a crítica platônica à sofística tem sua raiz na diversidade
entre a concepção de educação platônica e a educação capitaneada pelos sofistas. A
condenação da cobrança pelos ensinamentos constitui aspecto meramente superficial da
divergência. Em verdade, a concepção da educação platônica divergia radicalmente da prática
sofística11.
O ensino, segundo Platão, deveria ter como meta não a formação de cidadãos, homens
capazes de atuar na vida prática da polis em seus diversos âmbitos, como julgavam os
sofistas. A verdadeira razão da educação estaria na formação de filósofos, ou seja, na
formação do melhor homem possível, pois só estes seriam capazes de governar de forma
moralmente e tecnicamente satisfatória.
Enquanto os sofistas restringiam-se aos conhecimentos técnicos e práticos, Platão estava
interessado em moldar o homem ideal, não só porque estes seriam os únicos capazes de
conduzir e governar a República, mas, e antes disso, porque só esse caminho era capaz de
garantir o melhor destino para a alma humana.
11 Não se tratava de mera discussão sobre sistema ou método de ensino, mas sim sobre ideal de vida pensado ou
ainda, no ideal de formação do homem grego – estudado profundamente por Werner Jaeger em “Paideia”. De um
lado o ideal do poder (a preparação técnica orientada à condução das massas), do outro a moralidade e a
educação como valores supremos; a educação como manifestação do melhor que há no homem.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
205
Essa preocupação com o destino da alma fica bastante clara no diálogo Fédon. Sócrates,
ao ser questionado sobre como permanecia tão calmo na iminência da morte, responde
expondo sobre a imortalidade da alma e defende que a filosofia a purifica, pois a liberta da
prisão do corpo. Assim, o homem que, em vida, dedicou-se às coisas corpóreas e aos prazeres,
ao mundo sensível portanto, ao morrer permaneceria preso a este mundo; já o filósofo que
procurou se distanciar dos sentidos e do corpo, buscando adquirir através da alma a verdade e
a inteligência, ao morrer dirigir-se-ia ao Hades, onde alcançaria, por fim, a inteligência em
sua pureza. (PLATÃO, 1997, p. 147-149; 166-168). E, assim, conclui achar “(...) natural, no
homem que tenha passado realmente a vida entregue à filosofia, a coragem na hora da morte e
a boa esperança de desfrutar lá embaixo os maiores bens depois de morrer.” (PLATÃO, 1997,
p. 144).
No mesmo sentido, ao final do Górgias, Sócrates narra o mito escatológico sobre o
julgamento da alma e a decisão do seu destino: àqueles que viveram a vida com justiça,
estaria reservada a Ilha dos Bem-Aventurados, onde gozariam da completa felicidade, já os
ímpios seriam mandados ao Tártaro, o cárcere da punição e da pena. Por acreditar na
veracidade de tal narrativa, declara seu esforço para
apresentar-me diante do juiz com a alma tão limpa quanto possível. (...)
empenhando-me na busca da verdade, procurei tornar-me o melhor possível
enquanto viver, e assim também morrer, quando chegar a minha hora. Exorto
também os demais homens, na medida das minhas forças, a fazerem o mesmo”
(PLATÃO, 1997, p. 77).
É essa a busca de Platão, e por isso só a Verdade, a Justiça e o Belo lhe interessavam. O
plausível, o provável, a doxa, o persuasivo, nada disso era capaz de purificar a alma e muito
menos de construir a sociedade que almejava.
Parecia-lhe absolutamente detestável a prática de persuadir a outrem a respeito de
determinada assertiva sem que antes soubesse sê-lo realmente verdadeiro. Utilizar-se apenas
da força das palavras para convencer e não da verdade do que defende é algo condenável na
visão platônica. No Górgias, tal idéia fica bastante clara, no momento que Sócrates aponta
para a necessidade de convencer através da verdade contida na assertiva e não por meio da
força das palavras; seria preciso, portanto, conhecer, previamente, as coisas em si, ou seja,
saber o que é justo ou injusto, feio ou bonito, bom ou mau (PLATÃO, 1989, p.34).
Esta crítica é, de certa forma, inconciliável tanto com a sofística quanto com a retórica,
pois ambas estão constituídas sobre o fundamento de que, como acima exposto, o verdadeiro
não é passível de ser conhecido ou, até mesmo, na sua não existência.
No entanto, se, no Górgias, Platão (1989, p.42) nega a condição de arte para a Retórica,
qualificando-a como uma rotina para produzir prazer e satisfação, em Fedro, o tratamento
dispensado já é completamente diverso. Aqui, o Sócrates-platônico fala em uma “retórica
verdadeira”, sendo que esta só pode ser praticada por aquele que possui o conhecimento da
verdade, ou seja, por um filósofo. Distingue, assim, a arte retórica da mera atividade retórica,
pois “quem não conhece a verdade, mas só alimenta opiniões, transformará, naturalmente, a
arte retórica numa coisa ridícula que não merece o nome de arte” (PLATÃO, 1999, p. 166).
O entendimento acerca da possibilidade de se alcançar a verdade continua o mesmo, a
diferença está no reconhecimento de uma arte que, apesar de não servir para o descobrimento
da verdade, pode ser utilizada por aqueles que já a possuem para convencer os demais, para
demonstrar a veracidade de suas idéias, ou seja, para persuadir ou ensinar.
Platão (1999, p. 175), então, prossegue estabelecendo quais os passos a serem trilhados
por aquele que deseja praticar a arte retórica: o artista retórico deve entender a alma humana e
identificar o que pode influenciá-la; deve classificar os gêneros de discursos e correlacioná-
206 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA
ARISTOTÉLICA
los com cada tipo de alma; e, antes de tudo isso, deve conhecer a fundo os objetos sobre os
quais fala: deve estudar o Universo, defini-lo e classificá-lo.
Ao final do diálogo, Platão nega que a “verdadeira retórica” esteja relacionada com as
regras artificiais dos oradores e dos sofistas, ao contrário, identifica-a como a arte do
pensamento, com a dialética. Esta era um órganon, é dizer, um discurso dos discursos12. Na
visão platônica, todos os discursos precisam de um órganon que estabeleça a conexão do
logos com o objeto essencial, ideal, compreendido nele mesmo. A função da dialética,
portanto, era garantir a validade das definições e a correção dos processos dedutivos,
relacionando os enunciados com seus objetos (RACIONERO, 1994, p. 25)
A retórica como instrumento político auxiliar, a serviço da filosofia, deveria guardar a
mesma devoção para com a legitimidade dos processos dedutivos, pois apenas os discursos
verdadeiros eram verdadeiros discursos.
Um Platão mais amadurecido é o que encontramos em Fedro13. Se não pôde mais negar
a aplicabilidade e validade da retórica dada a sua força e expansão entre os atenienses, tratou,
então, de defender a reserva da legitimidade de sua prática apenas para os filósofos, ou seja,
para aqueles que sorvessem os ensinamentos da Academia.
Mas este não é o aspecto importante para o presente estudo. O ponto a ser destacado é a
atribuição da necessidade de conhecimentos mais abstratos e menos técnicos para a prática da
retórica, é dizer, Platão aponta para a necessidade de um saber atrelado a uma prática e, mais
do que isso, inicia a reflexão sobre o conhecimento retórico. Ao apontar as falhas e os limites,
prepara o terreno para aqueles que iriam refletir positivamente sobre a retórica, entre eles seu
discípulo Aristóteles.
Nesse sentido,
Aqui (em Fedro), Platão vai muito além das sugestões de Górgias sobre o papel
positivo da retórica; ele prepara o alicerce para as características básicas da Retórica
aristotélica e integra retórica de forma filosófica de uma forma ainda não intentada
em lugar algum.14 (KENNEDY, 1980, p. 67, tradução nossa)
A retórica como mero aglomerado de regras oratórias não era digna de um filósofo, era
preciso transformá-la, então.
3 A defesa isocrática da retórica enquanto filosofia: a busca pelo
melhor homem possível e pela conciliação entre os valores e as condições
materiais disponíveis
O antagonismo entre esses dois homens
[Platão e Isócrates] é o antagonismo entre
a Filosofia e a Retórica (a que eles deram
início e que se estende através dos séculos),
12 O conceito de dialética na Antiguidade é complexo e controverso. Não sendo possível elaborar um estudo
aprofundado acerca do tema no presente trabalho sem afastar-se em demasia de seu ponto central, optou-se por
tratá-lo de forma tangencial.
13 A anterioridade cronológica de Gorgias em face de Fedro não é aceita pacificamente: negada por Quintín
Racionero (1994, p. 24) e sustentada por George Kennedy, “Fedro é um dos diálogos platônico do grupo
intermediário, provavelmente composto dez ou quinze anos depois de Górgias”. (KENNEDY, p. 66, tradução
nossa) – “Phaedrus is one of the middle group of Platonic dialogues, probably composed ten or fifteen years
after Gorgias”.
14 Here [em Fedro] Plato goes significantly beyond the suggestions of Gorgias about the positive role of
rhetoric; he lays the foundation for basic features of Aristole’s Rhetoric, and he integrates rhetoric into his other
philosophical in a way not attempted elsewhere. (KENNEDY, 1980, p. 67)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
207
que disputam entre si a educação do jovem,
e é o fenômeno mais importante da história
da cultura neste período.
Albin Lesky
A figura de Isócrates (436 a 338 a.C.) é extremamente controversa. Apontado muitas
vezes como mais um sofista com pouco talento oratório, tendo, por isso, se dedicado mais à
escrita de discursos políticos15, vem sendo, atualmente, re-significado como educador de
importância central no século IV a.C.
Nascido em uma família abastada, tornou-se logógrafo, após a perder a fortuna na
Guerra do Peloponeso (431 a 404 a.C.). Somente por volta de 390 a.C., já com cerca de 40
anos, é que dá início a sua atividade como professor, fundando uma escola em Atenas.
A “school of logon” (HASKINS, 2004, p. 04) era a principal rival da Academia
platônica. Seu programa educacional era voltado para a formação dos estudantes como
cidadãos atuantes. Segundo Albin Lesky (1995, p. 619), Isócrates
quis influir nos seus contemporâneos e transformar os seus discípulos em homens de
êxito por meio do estímulo e do cultivo das suas capacidades oratórias. Precisamente
desta maneira, punha em execução o programa dos sofistas, porém já não como
mestre ambulante, mas sim como chefe duma escola rapidamente florescente.
Mas esta não é a única distinção entre Isócrates e os sofistas. O foco da educação
isocrática não se restringia apenas ao provimento dos conhecimentos úteis para a atuação
política de seus alunos. Isócrates, como Platão, tinha um ideal de paidéia, e trabalhava na
formação do homem grego, não do melhor homem, mas sim do melhor homem possível.
Enquanto Platão preocupava-se em formar sábios e filósofos, Isócrates mirava a
formação de cidadãos virtuosos que conduzissem a polis da melhor forma, e considerava a
filosofia platônica alheia à vida (LESKY, 1995, p. 623). Seu programa educacional estava,
portanto, inseparavelmente atrelado a uma idéia de vida cívica, prática e real.
Havia uma clara preocupação com o cultivo de valores mais elevados, mas sempre
tendo como parâmetro a realidade, pois, em sua visão, era insensato e infrutífero pretender
alcançar o inalcançável: o ideal de Justiça e de Bem. Em suas palavras,
Que ninguém pense, no entanto, que na minha opinião a prática da justiça
(dikaiosyne) possa ser ensinada. Em geral, julgo, que não há nenhuma arte capaz de
inspirar a sabedoria e a justiça naqueles que a natureza não dispôs para a virtude
(areté); contudo, creio que o estudo dos discursos políticos muito pode ajudar a
estimular e exercitar essas qualidades. (ISÓCRATES, 2008, p.07)
Em Contra os sofistas, encontra-se uma sucinta síntese do pensamento isocrático. Neste
discurso, é possível identificar as críticas aos sofistas, aos erísticos e aos retóricos forenses, e,
ainda, uma exposição, em linhas gerais das concepções isocráticas acerca da verdade, da
educação e da justiça.
Os primeiros a serem criticados são os erísticos, ou seja, aqueles que se utilizavam da
dialética, a arte retórica da pergunta e resposta, seja para vencer uma competição ou para
descobrir a verdade (aqui, incluídos, portanto, na segunda categoria, os socráticos). As
15 “Comparado com a análise sistemática dos meios da persuasão, gêneros retóricos e projetos estilísticos de
Aristóteles, Isócrates emerge apenas como um professor de oratória e seu escrito revela um amontoado de
discursos, panfletos políticos, endereçados para e em nome de poderosos patronos” (HASKINS, 2004, p. 02,
tradução nossa). “Judged against Aristotle’s systematic analysis of the means of persuasion, rhetorical genres,
and stylistics devices, Isocrates emerges merely as a teacher of oratory, and his record reveals a mixed bag of
display speeches, political pamphlets, and addresses to and on behalf of powerful patrons”.
208 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA
ARISTOTÉLICA
promessas do ensino da virtude, da sabedoria e da felicidade eram, na visão de Isócrates,
nitidamente enganadoras.
Já a retórica ensinada pelos sofistas, além de ser marcada pela falta de preocupação com
os valores envolvidos na atuação política, ainda pecava por desconsiderar aspectos
fundamentais para o êxito da prática da arte do discurso, como, por exemplo, a experiência
(empeiria) e as qualidades naturais do discípulo (phisis) (ISÓCRATES, 2008, p. 05).
Apesar de ser enfático ao defender a importância da retórica para a sua paideia, de
reconhecer a insuficiência das regras compendiadas nos manuais e se preocupar em descobrir
possibilidades contidas na arte retórica, Isócrates permanece muito distante da elaboração de
uma espécie de teoria geral sobre a retórica, não oferecendo um estudo sistematizado sobre o
assunto.
Em sentido oposto, leciona Ekaterina Haskins, segundo a qual Isócrates não teria sido
um mero precursor de Aristóteles no campo da Retórica. A autora identifica uma
descontinuidade entre a obra de ambos e, ainda, a existência e autonomia de uma “teoria do
discurso própria de Isócrates”. Haveria, assim, a presença de “um conjunto de princípios ou
critérios que podem qualificar uma teoria implícita da retórica”16 (HASKINS, 2004, p. 03,
tradução nossa) no bojo da obra isocrática.
Não há, contudo, elementos suficientes para tal conclusão. Apesar de evitar e até atacar
a cultura oral, suas obras escritas, ao menos o que restou preservado, não apresentam muito
mais do que propagandas de sua própria escola, ataques a seus adversários ou defesas de
pontos de vista políticos. Não há uma exposição pormenorizada de suas idéias.
No entanto, havia a pretensão, por parte de Isócrates, de capitanear a verdadeira
filosofia – em oposição à platônica – concebendo-a, segundo Quintín Racionero (1994, p. 22,
tradução nossa), como a “‘cultura geral’ que torna os homens capazes de um juízo sereno e
que resolve tecnicamente – enquanto arte ou paradigma do saber – na posse dos meios
adequados para persuadir sobre a maior conveniência de cada decisão”17.
Fundada na idéia de que o conhecimento absoluto estaria vedado ao homem por via de
sua própria natureza e que o êxito deveria ser assegurado em cada caso particular com base na
justa opinião, a filosofia isocrática tinha como eixo central a formação retórica dos alunos.
Esta seria responsável por preparar o homem para a sagacidade na vida, pois “o caminho da
palavra justa é o mesmo que conduz à ponderação correta e ao correto agir” (LESKY, 1995,
p. 623).
Segundo Albin Lesky, o elemento ético encontra-se contido nessa concepção isocrática
de retórica, de acordo com a análise do uso lingüístico grego. Assim, à idéia metafísica
platônica do Bem se opõe, em Isócrates, a exigência de se adaptar sabiamente às
circunstâncias da vida, das quais também fazem parte os postulados éticos (LESKY, 1995, p.
624).
O centro de sua doutrina, portanto, não é constituído por valores metafísicos, mas sim
pelo homem real, daí ser possível identificar em sua obra elementos de um humanismo
orientado para a eloqüência, sendo que o domínio da palavra era o elemento que distinguia os
homens dos animais e os gregos dos bárbaros.
16 “Isocrates’ own theory of discourse”; “a set of principles or criteria that can qualify an implicit theory of
rhetoric” (HASKINS, 2004, p. 03)
17 “que hace a los hombres capaces de un juicio sereno y que se resuelve técnicamente – en cuanto arte o
paradigma de saber – en la posesión de los medios adecuados para persuadir sobre la mayor conveniencia de
cada decisión” (RACIONERO, 1994, p. 22)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
209
A importância de Isócrates para a constituição da Retórica, para além de sua crítica à
retórica sofística atrelada à crítica à filosofia ontológica, consiste, principalmente, na defesa
da sua philosophía18: o estudo do conhecimento como possível entre os prováveis, das
convenções sociais, da opinião experimentada na comunidade humana.
A retórica isocrática, como disciplina central na formação do cidadão ateniense virtuoso
– a virtude não poderia ser ensinada, mas estimulada pelo estudo dos discursos políticos –
constitui um entrelaçamento entre o fundamento sofístico e o horizonte filosófico e lança
bases para uma nova concepção de verdade. Isócrates se autodenominava um truth seeker
(HASKINS, 2004, p. 15), mas essa verdade não pairava acima dos homens, era vivenciada e
construída cotidianamente na polis.
4 Aristóteles: o impulso do salto filosófico da retórica e a construção de
seus primeiros alicerces
A filosofia de Aristóteles (384 a 322 a.C.) traz consigo uma forte tradição jônica: o
interesse pelos assuntos cosmológicos e o olhar voltado para o mundo sensível, atrelados à
tradição ontológica herdada de Platão e ao rigor analítico e proto-metodológico que adotava
em seus estudos, produziram uma obra vasta e profunda que pretendeu explicar e conhecer
tudo que havia no mundo até então.
A retórica ocupava, na Atenas do séc. IV a.C., papel de destaque tanto na vida política e
nos tribunais, quanto na educação dos atenienses. Aristóteles não deixaria, portanto, de versar
sobre tal assunto. Além de incluir a retórica como uma das disciplinas ministradas no Liceu –
ao contrário do que ocorria na Academia – legou uma fundamental obra escrita sobre esta,
tida como base primordial das correntes retóricas que lhe seguiram até os dias atuais.
O diálogo Grilo, apontado como sua primeira obra, que, infortunadamente, não resistiu
ao final da Antiguidade – tudo que se sabe a respeito é fruto de comentários em obras de
terceiros – fora escrito ainda sob forte influência platônica. Sabe-se que guardava muita
semelhança estrutural com os diálogos de seu mestre e que consistia em uma crítica à sofística
e à retórica, bem ao estilo de Platão.
Teria sido uma reação à profusão de elogios dedicados a Grilo, filho de Xenofonte,
morto na batalha de Mantinea, por volta de 362 a.C. Na opinião de Aristóteles, os elogios
tinham como real fundamento não a comoção pela perda do jovem guerreiro, mas a intenção
de agradar seu pai, importante figura com poder e influência na Atenas da época.
Assim, Aristóteles “reproduzia a tese do ‘Górgias’ acerca do caráter meramente
adulador da retórica”19 (RACIONERO, 1994, p. 23, tradução nossa), considerando-na como
simples praxis, afastada das regras morais, e não como arte ou técnica. Seus principais alvos
eram Isócrates, sua retórica e, principalmente, o novo gênero desenvolvido por este, o elogio
retórico. A posição aristotélica aqui é de clara reafirmação dos valores do platonismo e de
defesa da paideia praticada na Academia.
18 “Isócrates evita o termo rhetorikê e escolhe, em seu lugar, a palavra philosophia para descrever aquilo que
professa defender: uma concepção ampla de educação discursiva em oposição à estreita noção platônicaaristotélica de retórica. (HASKINS, p. 3, tradução nossa) – Isocrates shuns the term rhêtorikê and instead
chooses the word philosophia to describe what he professes to defend: a broad conception of discursive
education over against a narrow Platonic-Aristotelian notion of rhetoric.”
19 “reproducía la tesis del ‘Gorgias’ acerca del carácter meramente adulador de la retórica” (RACIONERO,
1994, p. 23)
210 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA
ARISTOTÉLICA
Por sua vez, os três livros da Retórica, que datam da alta maturidade de Aristóteles20,
são apontados como o grande marco na constituição da retórica como teoria sistematizada e
não mais como coleção de regras práticas.
Qual o caminho percorrido entre o Grilo e a Retórica? De que forma se deu o abandono
da mera repetição das críticas elaboradas contra a retórica e o início da reflexão profunda
sobre esta e, posteriormente, a construção de sua teoria? No presente trabalho, serão
levantados alguns aspectos que, pretende-se, sejam capazes de auxiliar no esclarecimento
dessas questões.
A própria leitura da Retórica fornece algumas análises interessantes a respeito. O
primeiro ponto a ser destacado é o convencimento de Aristóteles acerca da utilidade da
retórica. O discurso “científico”, ou ainda, filosófico ontológico21, não seria adequado para as
multidões, mas apenas para o ensino, para o esclarecimento de uma parcela reduzida da
população. Apenas a eloqüência seria capaz de persuadir a multidão a respeito da verdade e
do que parece ser verdadeiro, e aqui se nota, claramente, a influência platônica, em especial
do quanto sustentado em Fedro.
Essa indispensabilidade da Retórica traz consigo a necessidade do seu estudo, e da sua
“moralização”. Se ela é algo inerente à vida, deve ser submetida a certos fundamentos que a
afastem da manipulação sofística, “pois não se deve persuadir do mal”22 (ARISTÓTELES,
1994, p.170, tradução nossa). Assim, a retórica deve possibilitar a prevalência da verdade e da
justiça, vez que são “mais fortes do que seus contrários”23 (ARISTÓTELES, p. 169, tradução
nossa).
De certa forma, portanto, a retórica aristotélica permanece em conexão com a verdade
pelo fato de orientar o seu propósito, e não mais no sentido platônico de identidade entre
Dialética e Retórica. Apesar de aparentar ser apenas um sutil giro de ângulo de visão, tal
mudança tem profundas implicações. A subordinação da retórica à moral torna-se um
problema exclusivamente ético e político, não tendo nenhuma implicação na retórica
enquanto técnica. O discurso não deixa de ser discurso por não ser verdadeiro, como defendia
Platão.
Desta forma, simultaneamente à conservação/alteração da conexão com a verdade, há a
sua libertação “técnica”, identificáveis em passagens como “entendemos por retórica a
faculdade de teorizar sobre o que é adequado em cada caso para convencer”24
(ARISTÓTELES, 1994, p. 173, tradução nossa) e “a retórica, parece que pode estabelecer
teoricamente o que é convincente em – por assim dizer – qualquer caso que se proponha”25
(ARISTÓTELES, 1994, p. 174, tradução nossa).
Mais do que simples coincidência, o fato de Aristóteles iniciar o Primeiro Livro da
Retórica distinguindo os campos da dialética e da retórica aponta para o afastamento da teoria
platônica que os identificava em Fedro, é dizer, para uma nova tomada de posição.
20 Em verdade, sofreram muitas alterações através de um longo período de tempo, sendo a versão final datada já
do final de sua vida.
21 A distinção entre episteme ou scientia e sofia ou sapientia não gozava da mesma força e clareza na
Antiguidade como a partir da Idade Moderna.
22 “pues no se debe persuadir de lo malo” (ARISTÓTELES, 1994, p.170)
23 “más fuertes que sus contrarios” (ARISTÓTELES, p. 169)
24 “Entendamos por retórica la facultad de teorizar lo que es adecuado en cada caso para convencer.”
(ARISTÓTELES, 1994, p. 173)
25 “La retórica, sin embargo, parece que puede establecer teóricamente lo que es convincente en – por así
decirlo – cualquier caso que se proponga [...]”(ARISTÓTELES, 1994, p. 174)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
211
Segundo Aristóteles, a retórica é uma antístrofa26 da dialética. Nenhuma das duas
constitui uma episteme, uma ciência determinada com objeto próprio, mas sim “métodos” que
podem ser aplicados a diversas questões. Enquanto a dialética investiga como alcançar a
verdade, a retórica estaria a serviço da persuasão e, portanto, não poderiam jamais ser
igualadas como o fez Platão.
Identificada a utilidade da Retórica, seu estudo deveria estar em consonância com a
mesma. Não fazia sentido, portanto, restringir-se ao ensino das regras do bem falar ou à
formação de oradores vitoriosos, como em outras escolas27. O domínio e interesse
aristotélico não eram na prática da eloqüência, mas sim no estudo dos processos dessa arte:
quais aspectos envolvidos, quais os caminhos e possibilidades da persuasão.
Aristóteles (1994, p. 172, tradução nossa) ao afirmar que a tarefa da Retórica “não
consiste em persuadir, mas em reconhecer os meios de convicção mais pertinentes para cada
caso, tal como ocorre com todas as outras artes”28 distancia-se dos estudiosos da eloqüência,
da oratória e, até mesmo, da retórica enquanto aglomerado de regras técnicas.
Concretiza-se, em sua obra, o processo de transmutação da retórica em um ramo do
conhecimento destinado aos estudos teóricos das causas capazes de gerar persuasão, sendo,
portanto, alçada à condição de meta-conhecimento.
Assim, no dizer de Albin Lesky (1995, p. 601), Aristóteles “oferece uma teoria retórica,
concebida com espírito científico, movida pelo propósito de determinar e expor com rigor
lógico as normas que também neste terreno se ocultam por detrás dos fenômenos”, apesar de,
ainda, versar sobre pontos, claramente, afins à retórica escolar típica dos sofistas e da tradição
isocrática, especialmente no Livro III, onde trata do estilo, do ritmo oratório e das partes do
discurso – o exórdio, a narração e a peroração.
Somado a isto, o destaque do elemento ethos na retórica tem importantes conseqüências
para a constituição desse novo saber. De acordo com Aristóteles (1994, p. 193), três são os
gêneros ou espécies de retórica, cada um correspondendo a um componente do discurso –
aquele que fala, aquele que ouve e o que se fala – e ao tipo de prova persuasiva respectiva.
Assim, a persuasão pode se dar em função do ethos do orador, ou seja, pelo caráter
moral daquele que fala e que inspira confiabilidade; em função do phatos, é dizer, através do
despertar de sentimentos, da paixão no auditório por meio dos discursos; e, por fim, em
função do logos, do conteúdo do discurso quando “mostramos a verdade, ou o que parece ser,
a partir do que é convincente em cada caso”29 (ARISTÓTELES, 1994, p. 177, tradução
nossa).
De tal construção é possível destacar, entre tantos outros, três pontos interessantes.
Primeiro, a não exclusão ou condenação da persuasão através do phatos, mas, sim, a crítica da
restrição exclusivista a este gênero por parte dos sofistas e retóricos anteriores.
26 De acordo com Racionero, o termo é de difícil tradução, mas corresponde à idéia de identidade e oposição
simultâneas entre Retórica e Dialética. As traduções geralmente optam por analogia, correlação e
correspondência.
27 A crítica a tal postura fica claro quando declara que os autores de artes retóricas permaneciam fora do
assunto, ao fornecer inúmeras regras e fixar qual deva ser o conteúdo do exórdio, da narração e de cada uma das
partes do discurso. (ARISTÓTELES, 1994, p. 163)
28 “no consiste en persuadir, sino en reconocer los medios de convicción más pertinentes para cada caso, tal
como también ocurre con todas las otras artes” (ARISTÓTELES, 1994, p. 172)
29 “mostramos la verdad, o lo que parece serlo, a partir de lo que es conviciente en cada caso” (ARISTÓTELES,
1994, p. 177).
212 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA
ARISTOTÉLICA
Segundo, o esclarecimento da própria concepção de retórica que pode ser extraído da
assertiva citada acima sobre a persuasão através do logos. Aqui, delinea-se que o âmbito do
estudo da arte retórica é a descoberta do que é convincente em cada caso e, portanto, de como
demonstrar a verdade e, sobretudo, o que parece ser. Novamente, identifica-se a conexão com
a verdade, mas, de forma alguma, a sua submissão, pois caso o discurso seja construído de
forma tal que convença o auditório da verdade de suas afirmações, a arte retórica terá
alcançado seu êxito, independente da certeza dessa verdade.
Finalmente, a persuasão observando e concedendo relevância ao ethos do orador vem na
esteira da crítica platônica aos retores que se fixavam, exclusivamente, nos recursos de estilo
à margem de qualquer consistência moral. Todavia, Aristóteles (1994, p. 176) ultrapassa a
crítica ao fixar o ethos no discurso e não à margem deste pois “[se persuade] por el talante,
cuando el discurso es dicho de tal forma que hace al orador digno de crédito”.
A nota de Quíntin Racionero (1994, p. 176, tradução nossa) a esta passagem, esclarece
que
Aristóteles guarda, sem dúvida, esta herança [do Górgias platônico] – que é a que
desemboca na auctoritas latina – mas a transforma no sentido de que a persuasão
pelo falante deve ser um resultado do discurso e não do juízo prévio sobre o orador.
[...] tudo consiste em que o orador faça uso dos procedimentos retóricos oportunos, a
partir dos quais o auditório seja convencido de que está diante de um homem ‘digno
de crédito em virtude’ (hic y 66ª29)30.
Assim, Aristóteles não fica preso à moralidade platônica, mas, apesar de defender o seu
uso de forma ética, reconhece a capacidade do discurso de convencimento a respeito da honra
do orador, independente de conclusões anteriores, mas com base no próprio discurso.
Todo esse arcabouço teórico resulta em algo muito além de uma arte. Ao versar sobre a
retórica enquanto techne formal, fora da ciência pura, ou seja, enquanto arte retórica,
Aristóteles fincava os primeiros fundamentos da retórica que, mais tarde, delinear-se-ia
enquanto filosofia retórica em oposição à filosofia ontológica31, correspondendo às
dicotomias essencialismo versus retórica e verdade versus conjetura.
Ao tratar sobre a existência, organização e autonomia da arte retórica (2º nível),
ultrapassando as regras do discurso (1º nível), Aristóteles galga a um terceiro nível que seria
herdado e desenvolvido por toda uma tradição não-ontológica posterior que agregando as
contribuições do humanismo, historicismo e ceticismo (ADEODATO, 2008, p. 5-8)
arremataria o processo de formação da retórica, da rhetoriké.
Conclusão
Diante das ideias apresentadas e das hipóteses levantadas, é possível concluir,
heuristicamente, que, pelo menos, dois aspectos primordiais da construção da retórica
aristotélica já se encontravam presentes, de forma incipiente e problematizada, nas obras
platônicas.
O primeiro consiste na defesa da necessidade de “moralização” da retórica que se
desdobrou no destacamento do ethos como um dos fundamentos retóricos. O segundo, refere30 “Aristóteles recoge, sin duda esta herencia [do Górgias platônico] – que es la que desemboca en la auctoritas
latina – pero la transforma en el sentido de que la persuasión por el talante debe ser un resultado del discurso y
no del juicio previo sobre el orador. [...] todo consiste, en efecto, en que el orador haga uso de los
procedimientos retóricos oportunos, a partir de los cuales el auditorio quede convencido de que se halla ante um
hombre ‘digno de crédito en virtud’ (hic y 66ª29)” (RACIONERO, 1994, p. 176)
31 Conforme João Maurício Adeodato (2008, p. 01), não é pacífico o entendimento de que a retórica constitua
uma vertente da filosofia. Ottmar Balleweg, v.g., separa retórica e filosofia por conceituar a segunda como a
busca pela verdade, conceito excluído da retórica.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
213
se ao reconhecimento da impossibilidade de se prescindir da retórica diante da própria
constituição e organização da vida humana em sociedade, que resultou na superação da idéia
de persuasão como mera prática política e cotidiana. Na condição de veículo da produção e
divulgação de conhecimento (doxa e epistheme, respectivamente), a persuasão torna-se
merecedora de estudo especializado, de uma arte que verse sobre as normas que investigue
teoricamente as causas do êxito na persuasão.
A contribuição isocrática, por sua vez, consiste também em dois pontos principais. A
inserção do “conteúdo” ético na retórica na condição de valores “reais” e cívicos e não mais
ideais e o entendimento da retórica enquanto filosofia que, apesar de não aceito por
Aristóteles – e não corresponder à concepção atual – agrega valor à retórica praticada à época
e abre caminho para a reflexão sobre a própria arte que seria empreendida por Aristóteles.
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214 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA
ARISTOTÉLICA
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p. 3-6; 17-20.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
215
O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS
MODERNITY: A GLANCE TO THE ROOTS TO GET THE CONSCIOUSNESS OF THE
FRUITS
Raphael Greco Bandeira *
Resumo: A modernidade é, antes de tudo, uma nova forma de vida. Sem sombra de dúvida é dialética no sentido
hegeliano, porque histórica. Daí a denominação dessa alvorada como a “Era das Revoluções” nas palavras de
Eric Hobsbawm. Nela há o rompimento da visão medieval do mundo sacralizado e que transitava entre uma
cidade de Deus e outra cidade dos homens. O direito divino dos reis tenta disputar, mas a hipóstase do contrato
social foi burguesa. O catolicismo não mais sustenta o fundamento metafísico do mundo, com o progressivo
deslocamento para o plano da individualidade religiosa. Esvaece-se o poder divino em substituição ao poder
temporal puro. O moderno é um sujeito, como quer Voltaire, que transforma o “supérfluo em necessário”, ou,
como em Hobbes, cuja felicidade é quantitativa no movimento de acumulação. É importante notar que a
subjetividade, em Kant, teve uma visão da identidade transcendental nítida. Mas a partir da fenomenologia de
Heidegger isso estremece e articulam-se as aparências para expressar o sentido no mundo ao questionar a
essencialidade do ser. Ora, o direito, como conquista da burguesia, será materializado na lei. O esquecimento do
“povo” levou às revoluções sociais e à União Soviética. A incompletude do moderno, rabiscado na minuta de
contrato social burguesa, privilegiou a propriedade. Porém, ao “povo” efetivo, então, deixou-se um vácuo aberto
para pressões e para o surgimento de novos direitos dos quais chamam atenção o ecológico e o dos
consumidores. Direitismo, esquerdismo e outros “ismos” já não foram derrotados pela história do capitalismo? O
Estado Democrático de Direito, pugnado por nossa “Constituição Cidadã”, acontece no diálogo e na legitima
abertura ao debate. Por meio da dignidade humana e dos direitos fundamentais são possíveis fissuras contra a
biopolítica.
*
Doutorando em Direito/UNB. E-mail: [email protected]
216
O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS
1 Introdução
No presente estudo, pretende-se aprofundar a respeito do conceito de modernidade, uma
vez que as origens dos problemas da contemporaneidade se encontram em um momento
histórico relativamente definido, que precisa ser compreendido como premissa metodológica
de discussões que formulem hipóteses a respeito dos problemas atuais. Desse modo, não basta
atacar conceitos e figuras jurídicas em suas discussões mais recentes, sob pena de fracassar
pela superficialidade e ausência de objetividade. A compreensão, assim, dos institutos e
instituições hodiernas, se desprendidas de um mínimo de definição retrospectiva, levam a uma
insuficiência e repetição reiteradas de discussões em que se cai numa teia de argumentações
falaciosas onde um cita o outro num giro de superficial que não conclui absolutamente nada,
mas apenas repete e faz surgir um resultado inverso ao da consciência, ou seja: ao invés de
promover a compreensão, faz surgir a dogmatização dos institutos que se tornam verdadeiros
com base nos argumentos de autoridade.
A metodologia aplicada na pesquisa é hermenêutica, para desvendar o conceito de
modernidade a partir do ponto de vista do paradigma do humano e seu significado jurídico e
democrático, a partir da leitura teórica contrapondo, reflexiva e criticamente, a realidade
econômica, filosófica, cultural e suas repercussões nas formas jurídicas criadas desde as
revoluções burguesas que, desde um movimento inicialmente eurocêntrico, caminha para uma
extensão do domínio global, sentido na biopolítica, ao qual se chega nos atuais momentos de
crise econômica do capitalismo tardio, posterior à década de setenta.
Nesse sentido, será visto no momento inicial o gérmen econômico da discussão, com o
início do capitalismo associando-se ao conceito de modernidade e fazendo surgir, com isso, o
conceito de subjetividade dentro de uma concepção kantiana de “revolução copernicana”. Ao
mesmo tempo, o surgimento do Estado de Direito, com base na forma legal, irá apresentar um
sentido histórico para a coletividade entendida como povo. O sistema representativo, será,
então, uma demonstração da operatividade do sistema político com base na díade direitaesquerda, a fim de canalizar as vontades populares. Estas, por sua vez, não serão
suficientemente amarradas nas teias institucionais, porém, tal insuficiência será observada
desde as revoluções sociais e suas atuais formas de discussões neo-políticas como no sentido
do discurso ecológico e de direito do consumidor.
Por fim, o Estado Democrático de Direito é a forma que, contemporaneamente, permite
a expressividade da subjetividade não compreendida na sua satisfação prometida com as
revoluções burguesas para o povo, através do conceito de dignidade da pessoa humana.
2 Algumas razões econômicas e não econômicas da modernidade.
O tronco, a que se denomina modernidade, em verdade, corresponde ao processo de
consolidação de raízes burguesas no cenário político europeu, em suas bases, que se
expandem para todo o globo paulatinamente até o surgimento de conceitos como
globalização.
Enrique Dussel (DUSSEL, 2011), pretendendo quebrar a visão eurocêntrica de história,
abusa do conceito de “moderno” ao afirmar que a Espanha é a primeira nação moderna, a
partir de um ponto de vista mundial, com o mercantilismo e a descoberta da América em
1492. De um lado, é preciso que tenhamos, de fato, uma maior atenção para os problemas da
América Latina e que valorizemos o mais interessante dentro de paradigmas culturais
peculiares. Certamente esse é o esforço de Dussel. Creio que um aspecto fundamental a que
chama atenção o autor decorre do fato de que se estabeleceu uma dominação econômica em
sentido planetário nesse período, ao mesmo tempo que, em filosofia, o homem passou a
descobrir que seu pensamento descolava-se do divino com Descartes e seu “Penso, logo sou”.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
217
Ou seja, no sentido de que o “ego cogito” cartesiano foi antecipado pelo “ego conquiro”, no
mundo centro-periferia. De fato, o mercantilismo, o imperialismo, o mundo bipolar e a
globalização são notas de uma só melodia; provavelmente uma sonata de Mozart ouvida em
nobres salões.
Esse breve recurso metafórico faz sentir que, maior do que simplesmente uma questão
econômica, houve, também, e creio que isso seja mais drástico, um aspecto não puramente
material de domínio. Certamente, no momento inicial do capitalismo, as críticas marxistas são
voltadas ao aspecto do materialismo e da dominação dos meios de produção, críticas essas
apenas séculos mais tarde foram organizadas, em torno de uma dialética burguesia vs.
proletariado. Enfim, o historiador Karl Marx com a visão retrospectiva orientou suas
considerações filosófico-hegelianas. Há, todavia, uma outra dimensão que se sente
contemporaneamente, na constituição de um determinado imaginário, que se pretende não
metafísico-religioso, arquitetado em novos modelos e paradigmas. Assim, não há como
discordar de autores como Habermas de que os acontecimentos históricos centrais são a
Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa acontecidos na Europa.
A modernidade, portanto, apresenta um imaginário novo, que, se não compreendido,
pode ser metafísico. Voltaire apresenta uma visão a respeito de metafísica bastante
esclarecedora.
Segundo o autor francês, que consolidou sua definição a partir de calorosos debates
entre Clarke, discípulo direto de Newton, e Leibniz, em nada o ser humano distingue a sua
racionalidade de um animal, exceto pelas inúmeras possibilidades em especular muitas idéias
na satisfação de suas necessidades.
A nossa racionalidade apresenta a nossos sentidos incontáveis formas de como
administrar a saciedade de nossos interesses no mundo da vida. Podemos ter diversas idéias a
respeito de como fazer algo. Se somos aprisionados por nossos sentidos, no mundo físico,
através das necessidades corporais que nos surgem, então a forma como iremos solucionar
esses problemas práticos será diante das idéias que tivermos. A metafísica será, então, a
multiplicidade e diversidade na determinação dos quereres por meio de idéias especulativas.
Assim, o ser humano, tem a possibilidade de articular de infinitas maneiras os
instrumentos de satisfazer suas necessidades. Sua condição existencial é maximamente ampla
em razão de um ponto inicial racional-metafísico infindável. É bem verdade que Voltaire não
define como tais idéias surgem em nosso espírito, mas sua concepção de metafísica apreende
que nossa ação não é desvinculada de uma razão. Nunca. Nem mesmo em um jogo de par ou
ímpar. Porque uma idéia de par ou de ímpar se apresenta ao espírito antes de nossa ação.
Desse modo, retomando o conceito de moderno, se, de um lado, o aspecto material do
domínio econômico e da consolidação da burguesia deu-se desde o mercantilismo e séculos
mais tarde com o imperialismo, a noção de modernidade possui uma acepção mais ampla,
reverberando até os dias de hoje, não sepultados em conceitos que ficaram no passado como o
metalismo. O sentido, portanto, refere-se mais amplamente a uma dimensão não puramente
materialista, mas espiritual, sem com isso negar as suas reminiscências capitalísticas.
3 Revolução copernicana da subjetividade? Descoberta do imaginário.
A modernidade é, antes de tudo, uma nova forma de vida. Sem sombra de dúvida é
dialética no sentido hegeliano, porque histórica. Portanto, dentro de uma conflitividade de
derrubada da classe social da nobreza e do clero em ascensão da burguesia, daí a
denominação dessa alvorada como a “Era das Revoluções” nas palavras de Eric Hobsbawm;
e, sobretudo, que acontece conferindo um novo sentido imaginário à história. Nela há o
218
O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS
rompimento da visão medieval do mundo sacralizado e que transitava entre uma cidade de
Deus e outra cidade dos homens.
Atribuir a alguém o que não lhe é devido, dentro do mundo medieval, constitui
injustiça, já o devido decorre da vontade de Deus acima da vontade humana. Estabelecida a
justiça, o religioso volta ao cenário das relações humanas, porque o injusto não era de deus. O
político estaria rompido se a atuação ilegítima dos “injustos” acontecesse. Assim, de maneira
metafísico-religiosa, a justiça ficou distante da prática. Deslocada do mundo, a justiça torna-se
um conceito vazio, o que foi notado mais a frente na história por Hobbes. Porém, mantendose no contexto histórico que se expõe, a justiça afirma-se como a espada do mais forte. Assim,
o direito será orientado pelas ordálias. Por exemplo, o campeão do rei luta, contra aquele que
se diz ao lado de deus e, quem morrer, não tem a razão. Os nobres, então, no período da Idade
Média, passam a guerrear entre si em nome da autoridade divina. A vontade de deus poderá,
assim, ser escrita com tintas de sangue.
Ao final da Idade Média, a tônica centra-se no catolicismo não mais sustentar o
fundamento metafísico do mundo, com o progressivo deslocamento para o plano da
individualidade religiosa. Esvaece-se o poder divino em substituição ao poder temporal puro.
A rigor, a compreensão mais profunda da modernidade revela que nessa nova
forma de vida, o humano sempre se encontrou amarrado e, desse modo, controlado pelo
Estado por meio do imaginário, fosse ele moderno ou medieval. Não existe um sentido
histórico, de rompimento de racionalidade para um progresso, como poderia afirmar algum
discípulo de Hegel. Mais justo seria falar em “restart”.
Podemos extrair na leitura do professor António Hespanha, ser apenas por meio de
interpretações superficiais tornar possível a leitura da “autoevidência” de uma “verdade”
histórica; ou seja, de uma apreensão de inspiração hegeliana do real. Em suas palavras: “o
aspecto insólito, exótico, bizarro e perturbador do imaginário social na doutrina jurídica é
omitido e sacrificado no altar da perene continuidade do ‘direito ocidental’.(HESPANHA,
2010: 41)”. Não existe progresso. Não existe ordem histórica. Nem é preciso invocar uma
ausência de racionalidade de índole pós-moderna, refratária à meta-narrativas. Basta, apenas,
notar que a cada momento histórico existe sua ambiência.
Em primeiro lugar, é interessante a colocação do professor António Hespanha, ao
afirmar que “irracionais ou coisas podiam ser sujeitos dos mesmos direitos e faculdades
jurídicas reinvindicados por seres humanos” (ibidem: 42). Seria possível cogitar de uma
“pan-jurisdição do mundo no senso comum” (ibidem: 43). Relata que mesmo os animais
seriam responsabilizados a sanções criminais por ferimentos que causassem. Para ilustrar,
revela que o próprio Cristo, em seu momento final em Jerusalém afirmou que mesmo que os
apóstolos silenciassem as próprias “pedras” o proclamariam. De maneira que o mundo seria
ordenado por uma linha indistinta entre sujeitos e objetos. De outro lado, a modernidade
implicou no império da vontade como fonte da ordem social.
Em segundo lugar, expõe que a vida emocional tinha uma arquitetura rígida, seguindo
a determinados padrões psicológicos, de maneira que havia uma “relação de necessidade
entre atitudes externas e emoções” (ibidem: 47). As afeições políticas do monarca eram
promovidas por atos já conhecidos e previsíveis, de maneira que a vontade ou paixões das
pessoas seguiam uma objetividade. Cita como exemplo de demonstração de intimidade no
“quebrar o protocolo” (porém sem sair do esperado) no seguinte cerimonial: “Sempre que o
Rei de Espanha desejasse alçar um cortesão ao grau de Grande, solenemente convidaria o
nobre, na presença da Corte, a cobrir sua cabeça com um chapéu”(ibidem, loc. cit). O
direito, como sustenta o professor, poderia cobrar uma determinada “etiqueta”, sob pena de
ser passível de processo judicial, de modo que eram regulados o “beijar, curvar-se, ajoelhar-
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
219
se, ou mesmo relação sexual” (ibidem: 48). Havia no direito uma confiança na possibilidade
de controlar a alma. Se havia uma Ordem universal, como um amor de Deus às criaturas, o
direto poderia corrigir eventuais déficits dessa ordem natural.
Por fim, em terceiro lugar, a vontade e o direito eram reunidos ao serem intermediados
pela “prudência”. De modo que a “vontade” seria cega, se não houvesse a sua devida
compreensão, ou submetida aos imperativos da razão prática. A vontade, enquanto “ato da
mente”, somente poderia ser levada a sério na qualidade de execução do direito, que precede a
vontade do sujeito, por meio de reto julgamento da razão. A lei de Deus age em nossas mentes
do mesmo modo que o direito positivo, pois, após ser editado, deve ser crivado pelo correto
julgamento da razão. Assim, pode-se notar, até o “triunfo do individualismo na filosofia
social da metade do século XVIII, a irrelevância da vontade livre na imaginação da interação
social” (ibidem: 52).
No contexto desse imaginário, tanto a noção de indivíduos como de coisas estava
relacionado com as funções e não com a sua essência isolada e voluntarística de caráter mais
moderno. A sociedade era um conjunto de “status” ao invés de um conjunto de indivíduos,
contrariamente ao que se sucedeu com a diversidade moderna de papéis e funções sociais.
Como resultado de suas análises, conclui o professor António Hespanha, que uma
antropologia histórica do direito apenas torna-se possível de ser articulada com as seguintes
considerações: primeiro, a avaliação da equidade e justiça por meio da percepção da
sociedade combinadas em uma global e harmônica hermenêutica cultural a partir de modelos
e paradigmas de apreensão da realidade; segundo, esse paradigma, seja ele do imaginário
medieval como do moderno, abarcará uma multiplicidade de discursos normativos das mais
variadas índoles morais, teológicas, econômicas e políticas; terceiro, apesar de existir uma
dimensão atemporal nas “categorias jurídicas”, como se encontra na purificação kelseniana do
discurso jurídico, ou, ao revés, no pensar o direito como fundamentado numa permanente
“axiológica” em continuidade histórica que seria conduzida por uma racionalidade, propõe-se,
ao revés, uma leitura de recuperação do sentido da diferença histórica, liberando o
cronocentrismo e o etnocentrismo, em prol de um pluralismo, recriando ambientes culturais e
locais extintos, de modo que imagens, crenças e valores dão sentido às diversas decisões
concretas da vida quotidiana.
Portanto, o imaginário encontra-se desprendido de qualquer sentido de progresso.
Troca-se um imaginário por outro, simplesmente.
3.1 A concepção ética da burguesia nos primórdios da modernidade.
O moderno é um sujeito, como quer Voltaire, que transforma o “supérfluo em
necessário”. Ou, como em Hobbes, cuja felicidade é quantitativa no movimento de
acumulação, de maneira que a felicidade estará atenta para os desejos dos seres humanos de
vida fácil e prazer sensual; em suas palavras:
O sucesso contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos em tempos os
homens desejam, quer dizer, o prosperar constante, é aquilo a que os homens
chamam felicidade; refiro-me à felicidade nesta vida. Pois não existe uma perpétua
tranqüilidade de espírito enquanto aqui vivemos porque a própria vida não passa
de movimento e jamais pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como não pode
deixar de haver sensação. (HOBBES, 2000: 64)
Para ilustrar, com leve ironia, não por acaso, uma demonstração do homem moderno
“quantitativo” foi a Casa dos Tudor na Inglaterra, com a reforma anglicana e a separação de
Henrique VIII de Catarina de Aragão, que o permitiu seguir em seus seis casamentos
subsequentes.
220
O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS
Assim, desde Hobbes, pressupõe-se que desde nosso estado da natureza agimos por
interesse, sendo esse “mensurável”, de modo que a sua ética entende a felicidade como uma
constante acumulação de propriedade regulada pelo Estado. Além disso, o soberano, Absoluto
na metáfora do “Leviatã”, define o justo, ao nos retirar do estado beligerante para articular os
interesses entre as pessoas.
Nisso articular-se a nova ética-econômica moderna sem o pressuposto religioso.
Com essas premissas, então, é possível o surgimento do sujeito moderno diante de um
novo imaginário ético. Esse estilo de vida será defendido por Adam Smith no novo paradigma
sistêmico do liberalismo que, muito embora de índole patrimonial, o seu pano de fundo é
inconfessadamente moral e modulado por paradigmas. A partir daí constitui-se um novo
sentido antropológico do homem econômico, como comenta Karl Polanyi:
Um pensador do quilate de Adam Smith sugeriu que a divisão do trabalho na
sociedade dependia da existência de mercados ou, como ele colocou, da ‘propensão
do homem de barganhar, permutar e trocar uma coisa pela outra’. Esta frase
resultou, mais tarde, no conceito de Homem Econômico. (POLANYI, 2000: 62-63)
Segundo o professor escocês de ética, o homem não está em busca da santidade
religiosa, mas é considerado de uma maneira muito mais interesseira. Por exemplo, se um
cãozinho acaricia a mãe para obter benefício, o mesmo aconteceria com o homem, em “servil
e bajuladora atenção” (SMITH, 2010: 24ss), com seus interesses. Barganhar é “mostrar-lhes
que é para seu próprio benefício fazer aquilo que está exigindo deles” (ibidem). O
relacionamento humano não se dá, mais, com base nas necessidades, mas nas vantagens.
Havia uma nova vida econômica no período moderno. Não mais baseada na moderação
aristotélico-tomista, mas na acumulação quantitativa de riqueza mediada pelo Estado como se
defendia desde Hobbes. Segundo Hegel o “egoísmo” dos indivíduos transforma-se numa
contribuição para a satisfação das carências de todos os outros, reciprocamente; em suas
palavras: “Há uma mediação do particular pelo universal, como movimento dialético, de
modo que cada um, ao ganhar e produzir para sua fruição, ganha e também produz para a
fruição dos outros” (HEGEL, 1997: 177).
É importante notar que a subjetividade, em Kant, teve uma visão da identidade
transcendental nítida. O imperativo categórico orientará a universalidade das condutas de
maneira categórica. A vida humana dependerá de uma consolidação de sua potência em ato
causalístico final, crivada por um teste de máximas racionais, que prescindem de qualquer
tipo de imaginário religioso. A validade kantiana, portanto, afasta do domínio da ética a
necessidade de questionamento para além do teste de forma lógica pura. A virtude fica
canalizada para a esfera da vida individual, pois no domínio público da razão é necessária a
virtude da ética-formal. A ética, ocupando o espaço do religioso, limita-se a um juízo de
máximas kantiano, genuinamente privado. Slavoj Žižek apresenta ferrenhas críticas a uma tal
dualidade, ao exemplificar com as noções de bourgeois e citoyen, na figura de Berlusconi,
diante desta cisão entre o homem público e o homem privado:
O que torna o primeiro-ministro italiano tão interessante como fenômeno político é o
fato de que, como político mais poderoso do país, ele age de forma cada vez mais
desavergonhada: além de ignorar ou neutralizar politicamente as investigações
jurídicas a respeito das atividades criminosas que promovem seus interesses
comerciais particulares, Berlusconi também solapa de modo sistemático a dignidade
básica de chefe de Estado. A dignidade política clássica baseia-se em sua elevação
acima do jogo de interesses particulares da sociedade civil: a política é ‘alienada’ da
sociedade civil, apresenta-se como esfera ideal do citoyen, em contraste com o
conflito de interesses egoísticos que caracteriza o bourgeois. Berlusconi aboliu essa
alienação: na Itália atual, o poder estatal é exercido diretamente pelo burgeois vil
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
221
que, de forma declarada e impiedosa, explora o poder estatal para proteger seus
interesses econômicos. (ŽIŽEK, 2011: 8)
Mas a partir da fenomenologia de Heidegger isso estremece e articulam-se as aparências
para expressar o sentido no mundo ao questionar a essencialidade do ser. As categorias,
assim, do imaginário, por mais que se pretendam abarcar a completude do ser, não conseguem
pela lógica e razão pura satisfazer a essa pretensão. Desse modo, para uma concepção
hermenêutica, não é suficiente a compreensão racional, mas sim com a vivência, além do
campo científico, a fim de ter-se a abertura necessária da significação antropológica.
4 As formas jurídicas e o moderno.
Traçado, até o presente momento, uma dimensão mais propriamente filosófica e
histórica da modernidade, sem perder esse enfoque, pretende-se considerar a sua manifestação
em aspecto mais afeto à forma jurídica. Ora, o direito, como conquista da burguesia, será
materializado na lei.
Se, de um lado, temos a visão kelseniana em filosofia do direito na vertende
juspositivista que se afasta do jusnaturalismo, por outro lado, passa-se a ter uma resposta que,
como ensina Karl Larenz a partir das repercussões da modenidade na primeira metade do
século XX, trará novas afirmações seja de historicidade no direito, seja do jusnaturalismo.
Três correntes irão destacar-se no paradigma científico-filosófico do direito: (a) um
neokantismo; (b) um neohegelianismo; (c) um fenomenologia jurídica.
Em primeiro lugar, Larenz conceitua o neokantismo como a condução para uma
unidade ou “uma reunião entre si de conteúdos singulares da consciência num modo de
pensamento de validade geral. A toda maneira ou modo geral de determinar unitariamente as
particularidades de certo conteúdo da consciência” (LARENZ, 1997: 101). A premissa de
um kantismo remete à validação, ou composição remissória a um imaginário formal, que
ordena a matéria. Cita como um de seus maiores defensores no direito como sendo Stammler,
em que destaca a sua distinção entre o perceber, atrelado a uma noção de causalidade
ulterior, e o querer, numa racionalidade meio-fim anterior. Trata-se de um momento da
consciência que precede a sensação, dentro de uma validade “a priori”, condicionando o
pensamento jurídico ao ato, de maneira que a ciência jurídica encontra-se modernamente
ordenada como ciência final. Outro imaginário formalista que pode ser lembrado é o de
Puchta, que acreditava na possibilidade de uma jurisprudência dos conceitos, deduzindo os
inferiores dos superiores como se existissem em relação a uma essência. Todavia, com
Stammler é possível notar uma dimensão de justiça, pois a “justeza” de ajuste a uma unidade
abarcará todas as consciências imagináveis. Em seu ideal, abarca-se o abstrato e dispensa-se o
aspecto histórico.
É interessante, nesse momento, contrapor o pensamento de um autor do final do século
XX, de fundamental importância para a filosofia do direito norte-americana, que foi John
Rawls. Postulando sua teoria a partir de um procedimentalismo, ao afirmar o consenso
sobreposto em estruturação de tolerâncias recíprocas no nível das individualidades, restringese ou cerceia as escolhas no nível político e público de justiça prévio. O idealismo afirma o
indivíduo. Sua razão poderá ser “plena”, desde tenha sido, antes, “razoável”. Há precedência
do justo ideal ao sujeito. A unidade da razão subjetiva é possível desde um ponto de vista
formal estruturante existente na posição original. Em outras palavras, se a posição original
existe antes mesmo da convenção contratualista constitucional, então a sua forma institucional
prévia que recorta, delimita ou, em nas palavras do autor, cerceia a capacidade especulativa
humana. Restringe, assim, os quereres humanos. Ora, em que pese o influxo histórico sensível
na obra rawlsiana, é de se questionar até que ponto autores que até a contemporaneidade
influenciam o direito constitucional, se efetivamente romperam com o jusnaturalismo ao ser
222
O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS
cotejado com o jusnaturalismo de Stammler. A meu ver, não, porque, ao situar-se com este
apriorístico kantiano do imaginário, possui uma imersão metafísica questionável para um
pensamento que se pretende kantiano e anti-metafísico, como livre diante de uma forma
procedimental pura.
Um segundo paradigma, agora crivado pela historicidade, em filosofia do direito
lembrado por Karl Larenz, será lembrado inicialmente por Rickert, quando as pessoas
constituem-se me figuras únicas, diante das escolhas do historiador que diante da massa de
singularidades, escolhe e descobre aquelas essências, separando do não-essencial. Ao ponto
de Kaufmann sustentar a possibilidade de um “reino de valores absolutos”. Será com Binder,
no entanto, que esta perspectiva histórica tomará um corpo mais propriamente hegeliano, em
que reúne no sentido “a priori” o direito positivo ou histórico. Assim, condensa a proposta
lógico-fomal com a histórico-teleológica a uma idéia de direito.
Por fim, em terceiro lugar, a fenomenologia procura compreender o “apriorístico” não
como uma forma para o entendimento, mas como uma estrutura essencial, imanente e
material. Como afirma Reinach, as figuras jurídicas possuem um ser, de modo extra-temporal
e anterior ao direito. Na concepção de Gerhart Husserl, as “figuras” do direito positivo são
realizações e particularizações de possibilidade apriorísiticas dadas, como uma espécie de
núcleo de sentido pleno de conteúdo. Segue, portanto, a filosofia de seu pai, Edmund Husserl,
que procurava estabelecer uma compreensão e conferência de “sentido”, diante da consciência
dos fatos intencionados nos quais se depara diante de si. O sentido pleno no direito é uma
epistemologia que promove o preenchimento das lacunas numa integração. Em suas palavras:
Um julgamento que se limita a uma simples presunção, se é passado na consciência
à evidência correlativa, ajusta-se às coisas e aos “fatos” em si. Essa passagem tem
um caráter especial pela qual a simples intenção vazia se “preenche” e se
“completa”; ela assume o caráter de uma síntese pela recuperação exata da intuição e
da evidência correspondente, a uma intuição evidente de que essa intenção, até então
“distanciada da coisa” é exata. (HUSSEL, 2001: 28)
É interessante que, apesar de E. Husserl entender que seu modelo de pensamento
fenomenológico fosse neocartesiano, a rigor, Descartes era um racionalista puro e a intuição
não se direciona a uma forma anterior e plena. Ao revés, basta o pensamento dedutivo a partir
da verdade intuída puramente pela lógica do res cogitans (ou ser pensante). Não existe uma
vivência no mundo da vida, mas uma distinção com a res extensans. O pensamento cartesiano
é solipsista e sua intuição não passa pelo conceito de vivência. Como se extrai de sua 3ª regra,
em sua obra Regras para a Direção do Espírito:
Entendo por intuição, não o testemunho flutuante dos sentidos, nem o juízo
enganador de uma imaginação de composições inadequadas, mas o conceito do
espírito puro e atento, tão fácil e distinto, que não fique absolutamente dúvida
alguma a respeito daquilo que compreendemos, ou o que é a mesma coisa, o
conceito do espírito puro e atento, sem dúvida possível, que nasce apenas da luz da
razão, e que, por ser mais simples, é mais certo que a mesma dedução, a qual,
todavia, não pode ser malfeita pelo homem, conforme vimos acima. Assim, cada
qual pode intuir com o espírito, que existe, que pensa que o triângulo está
determinado somente por três linhas; a esfera, por uma só superfície e outras coisas
semelhantes, que são muito mais numerosas do que muitos crêem, porque
desdenham deter-se em coisas tão fáceis. (DESCARTES, 2002: 78)
A legalidade, portanto, ao longo do século XX, passa por apropriação de uma
formatação de uma idéia de justiça desde um neokantismo, um historicismo e uma
fenomenologia, que, como delineia Karl Larenz, incorporam uma proposta jusnaturalista.
Uma proposta que, contemporaneamente, supera uma noção específica em filosofia do
direito, sem necessariamente passar pela historicidade ou pelo jusnaturalismo, é a noção
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
223
sistêmica de Niklas Luhmann. Certamente outras formas jurídicas poderiam ser trazidas para
reflexão, porém esta é diferenciada no sentido de apresentar um fundamento sociológico, de
modo empírico. A forma de unidade também é aqui sentida, de maneira que a “própria
sociedade como um sistema social diferenciado pressupõe uma teoria geral dos sistemas
sociais” (LUHMANN, 1994: 3). É um modelo que pensa o direito sem uma perspectiva de
justiça, mas, de um lado, em sua dimensão operativamente fechada, apto a dizer o que é ou
não o caso de seu processamento (gnosiologia) e, de outro lado, cognitivamente aberto a
revelar uma autonomia relativa com outros sub-sistemas sociais fora de uma relação de
causalidade a que conceitos como de justiça ou história inevitavelmente induzem. O que
importa para o direito é a sua auto-reprodução, ou autopoiésis, permitindo a construção da
realidade social. O sentido moderno que se pode aqui encontrar decorre do processamento de
expectativas normativas dentro de códigos operativos do direito. Porém, retira o
posicionamento do sujeito como na essencialidade do direito. A noção de sistema não é
natural, mas um artifício, que não pode encontrar auxílio dentro de um jusnaturalismo. A
justiça, aqui, se é que assim pode ser lida, será como a possibilidade de processar o sistema.
As formas jurídicas, assim, evidenciam que tanto o jusnaturalismo, como o
juspositivismo, nos mais diversos matizes, encontram-se a serviço do direito como sistema. A
legalidade promove a ordenação e a previsibilidade do espírito humano auto-reprodutivo em
qualquer das leituras de suas formas. A subjetividade, desde a modernidade entendida como
povo e cidadã nas Cartas Constitucionais, passa a ser regulada pela nova ética moderna
conforme os sub-sistemas sociais e as expectativas normativas determinam a realidade.
O Estado de Direito, com o “Pacto Social” como seu primeiro contrato, para inúmeros
contratos lucrativos “a posteriori”, tem como contratado o povo e como contratante o “povo
soberano”. Estranho? Seria mais honesto falar em “petit-comité”. À moda de Wittgeinstein do
Tratactus Lógico-Philosophicus, reinventa-se o jusnaturalismo racional para chegar ao
positivismo kelseniano, que encontra a sua razão de ser na norma hipotética fundamental, não
posta, mas pressuposta, isto é: o capitalismo histórico.
5 A ética capitalista “amorfa” da subjetividade e algumas ponderações
das insuficiências no projeto moderno.
A burguesia passa a conquistar o mundo. Seu braço forte é uma “forma jurídica” desessencializada.
A ética, depois de assumido “o tipo capitalista” de vida, pode ser qualquer um. O
capitalismo possui um ethos próprio que transcende a qualquer estilo de vida individual ou de
visão de mundo religiosa. Como define Weber, existe uma “vocação” para o homem moderno
capitalista, orientado para o sucesso, cujo gérmen encontrava-se na religiosidade. O controle
da vida humana, seja a memória de seu passado, seja as suas atitudes futuras, encontram-se
presos na rede de expectativas éticas para a obtenção de um bom “nome na praça”. Não
entende no egoísmo do capitalismo selvagem como típico do moderno, mas sim o “egoísmo
light”, orientado para um sucesso. Antes da modernidade, o homem devotava seu trabalho,
por meio da religião, à Deus. Com a noção de homem moderno, adota-se a forma do lucro
como padrão de vida, conforme o espírito do capitalismo, a partir de princípios burgueses dos
quais são referência Benjamin Franklin. O sucesso e a disputa pelo melhor na empresa, ou o
mais vocacionado, gera a seleção e a competição. É preciso despertar a “vocação” no
aprendizado de virtudes: “Tal atitude, todavia, não é absolutamente um produto da natureza.
Ela não pode ser provocada por baixos salários ou apenas salários elevados, mas somente
por ser produto de um longo e árduo processo de educação.”(WEBER, 2001: 48-49). A
validade sociológica do pensamento capitalista ocorreu desde a ascese protestante, com a
perspectiva de acumulação e poupança ocasionadas pelo puritanismo, galgada no paradoxo:
224
O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS
de um lado, a capitalização do lucro diante da obstinada devoção ao trabalho dedicando o
talento dado por Deus contrariamente à pecaminosa vadiagem e, de outro lado, pelo não
consumismo ou permissividade de prazeres sensoriais e materiais, porque a riqueza
proporcionava a possibilidade de tentação e ruína no plano espiritual. De toda sorte, o
capitalismo passou a gerar uma indiferença com as visões de mundo compreensivas, uma vez
que o utilitarismo e o lucro foram “naturalizados” em Weber. Como discorre o sociólogo:
Tais pessoas, dominadas pelo espírito do capitalismo tendem hoje a ser indiferentes,
se não hostis para com a Igreja. A idéia do piedoso aborrecimento do paraíso
exerce pouca atenção sobre sua natureza ativa; a religião apresenta-se-lhes como
um meio de afastar as pessoas do trabalho neste mundo. Se lhes perguntarem qual o
sentido de sua atividade ininterrupta, o porquê da sua constante insatisfação com o
que tem, dando assim, a impressão de ser tão desprovida de sentido para qualquer
concepção de vida puramente mundana, a resposta, se soubessem de alguma, talvez
fosse ‘para o futuro dos filhos e dos netos’. (ibidem: 55)
Nota-se a subjetividade dentro de uma ética própria do capitalismo, cujas visões de
mundo podem variar ou mesmo tomar contornos políticos de variados vieses. Ser de direita ou
de esquerda é ultrapassado. Direitismo, esquerdismo e outros “ismos” já não foram derrotados
pela história do capitalismo? Em nossa história, vale refletir, não foram poucos os casos de
isolamento de personagens que se conduziram por idéias e, concretamente, não puderam
tomar atitudes. Seja um liberalismo de Mauá, seja uma proposta moralização “das
vassourinhas” de Jânio Quadros.
Retome-se um ponto. O esquecimento do “povo” levou às revoluções sociais e à União
Soviética. Uma baforada nas elites burguesas. Nada que o Estado de Direito não possa
controlar, como afirmou Foucault, de modo panóptico e disciplinar e, atualmente, venha
Negri a encontrar isso na biopolítica da sociedade globalizada. Entre nós, para não ficarmos
apenas na Norte do globo, pode-se ilustrar com Vargas ao abrir um pouco esta panela para
soltar a pressão com os direitos trabalhistas. Ou, cite-se Roberto Lyra Filho, que achou os
esquecidos na rua. Voltando à Europa, o movimento 15-M, da atual Espanha, demonstra que
as disputas democráticas ainda estão na agenda do dia.
A incompletude do moderno, rabiscado na minuta de contrato social burguesa,
privilegiou a propriedade. Porém, ao “povo” efetivo, então, deixou-se um vácuo aberto para
pressões e para o surgimento de novos direitos dos quais chamam atenção o ecológico e o dos
consumidores. Habermas, no projeto moderno, pretende satisfazer tais insuficiências. Dentro
da concepção de Jürgen Habermas, é possível dentro do paradigma da linguagem, a obtenção
procedimental da validade para a fim de promover a inclusão da subjetividade dentro do
processo democrático. De maneira a preencher a lacuna moderna que deixou o “povo” de
lado. Assim, contemporaneamente, dentro de uma dimensão normativa da modernidade,
pretende assumir a forma de unidade do mundo da vida de modo pragmático e
destrancendentalizado no mundo da vida; em suas palavras:
A ‘objetividade’ do mundo significa que este mundo é ‘dado’ para nós como um
mundo ‘idêntico para todos’. De mais a mais, é a prática lingüística – sobretudo o
uso dos termos singulares – que nos obriga à suposição pragmática comum de um
mundo objetivo comum. O sistema de referência construído sobre a linguagem
natural assegura a qualquer falante a antecipação formal de possíveis objetos de
refência. (HABERMAS, 2002: 39).
Assim, existe um entendimento para fora do mundo dos fenômenos, dentro da noção de
unidade no mundo e apreensível pelo discurso racional. Um mundo “ideal” do qual não
podemos conhecer “em si”, de modo que a verdade obtém, na comunicação, uma função
regulativa e ordenadora de modo transcendental, para além de nossas experiências. De
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
225
maneira que, atendida a pretensão de correção presuntiva, procedimental, é possível alcançar
o resultado lingüístico democrático.
A unidade, no projeto moderno-habermasiano de democracia, ocorre com o “todo” do
mundo da vida, validado pelo discurso racional. Não é possível assumir-se um risco, a esse
nível, de produção de qualquer resultado dentro de um respeito “a priori” das condições de
fala do agir comunicativo. Dentro de uma perspectiva sociológica, como acentuado tanto em
Weber como em Luhmann, haverá uma expectativa de comportamento regulada, o que se nota
na ética de Benjamin Franklin conforme o capitalismo como unidade. Os resultados, ainda
que extremos, encontram, ao fim e ao cabo, a unidade social, o que é visto dentro de uma
postura marxista, como passível de um posicionamento crítico, como se depreende de Slavoj
Žižek:
No marxismo autêntico, a totalidade não é um ideal, mas uma noção crítica; situar
um fenômeno em sua totalidade não significa ver a harmonia oculta do Todo, mas
incluir em um sistema todos os seus “sintomas”, seus antagonismos e
inconsistências, como partes integrantes. Nesse sentido, liberalismo e
fundamentalismo formam uma “totalidade”, porque sua oposição se estrutura de
modo que o próprio liberalismo gera seu oposto. Então onde se encontram os
valores centrais do liberalismo (liberdade, igualdade etc.)? O paradoxo é que o
liberalismo não é suficientemente forte para salvar seus valores centrais do ataque
fundamentalista. Não consegue se manter de pé sozinho: falta alguma coisa no
edifício liberal. Em sua própria noção, o liberalismo é “parasítico”, conta com uma
rede pressuposta de valores comunitários que ele mesmo solapa no decorrer de seu
desenvolvimento. O fundamentalismo é uma reação – falsa e mistificadoras, é claro
– contra uma falha real e inerente ao liberalismo, e por isso o fundamentalismo é
gerado, mais uma vez, pelo liberalismo. (ŽIŽEK, 2011: 71)
A modernidade, orientada por uma lógica de unidade formal ideal, racional e
ordenadora, promove a devoção ao sistema capitalista. Com isso, os paradoxos, por exemplo,
com polêmicas de “burka”, reclamam uma inclusão de pretensões subjetivas antagônicas,
proporcionando a arena racional como instância que valida a si própria procedimentalmente.
6 Estado Democrático de Direito: uma questão de dignidade!
Na verdade, nossa história está em seu devir. A democracia radical, anunciada por
Mangabeira Unger, parece consistir em cidadãos que olham a burguesia como igual. Não mais
se contentam em assistir do palco das instituições representativas previstas no direito
constitucional.
Na visão de Giorgio Agamben, institucionalidade nos contornos do conceito de
soberania, encontra-se no controle biopolítico de totalidade existencial do indivíduo, até sua
vida nua. O soberano, como nos campos de concentração, é aquele que define a possibilidade
de vida ou de morte. É interessante lembrarmos que esse conceito de soberania não possui
afinidade com a concepção moderna, no que se poderia citar Thomas Hobbes, para quem a
retirada do estado natural que nos deixa em risco de morte – o que se poderia assemelhar com
uma pulsão de morte freudiana – acontece justamente quando o soberano erge-se como um
super poder político por meio do contrato social, evitando a “guerra de todos contra todos”.
Contudo, para Agamben, a decisão política, tendo por inspiração o pensamento schmittiano,
situa-se no momento da definição política que define e articula as possibilidades ontológicas
do indivíduo. Assim, mais do que uma pretensão de vigilância, o filósofo italiano entende
como a possibilidade de matar o sujeito como o próprio fundamento da política. De maneira
que, assim, todo o imaginário ocidental, na definição do conteúdo político, estaria ordenado a
partir da possibilidade de morte sobre o indivíduo.
226
O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS
É preciso, no entanto, ter cuidado a respeito do que se pensa sobre a possibilidade de
radicalização democrática. O “estado de emergência” pode ser uma resposta, cita Žižek,
“aceita como medida necessária para garantir o curso normal das coisas” (ibidem: 49). O
filósofo-psicanalista adverte que nossos tempos são “interessantes”, definindo interessante
como “períodos de agitação, guerra e luta pelo poder, em que milhões de espectadores
inocentes sofrem as conseqüências” (ibidem: 7). Invoca, assim, a necessidade de utopias,
como o exemplo de Kravchenkos que estimulava e financiava projetos de produção coletiva
na Bolívia. O citado “herói” suicidou-se diante do fracasso de sua empreitada. Ora, não é esse
modelo ou exemplo que se pode esperar para novas utopias. Sistemas que nos levem ao
precipício ou a um “estado de emergência” em que se reduzem as liberdades e garantias
fundamentais contra o Estado Abusivo. O modelo, ao contrário, é do “curto-circuito” entre
Hegel e o Haiti, de Susan Buck-Morss, em que os escravos proclamavam os ideais da
Revolução Francesa de “liberdade, igualdade e fraternidade”, contrariamente aos exércitos de
Napoleão que foram enviados para restaurar a escravatura e foram pegos de surpresa com
cantos: “os soldados supuseram que fosse algum tipo de canto de guerra tribal; contudo,
quando se aproximaram, perceberam que os haitianos cantavam a ‘Marselhesa’ e, em voz
alta, perguntavam aos soldados se eles não estavam lutando do lado errado”(ibidem: 98).
O Estado Democrático de Direito, pugnado por nossa “Constituição Cidadã”, acontece
no diálogo e na legitima abertura ao debate. Por meio da dignidade humana e dos direitos
fundamentais são possíveis fissuras contra a biopolítica. O diálogo, no Haiti, não se consumou
como deveria. Ou seja, o resultado institucional que deliberou pelo envio de tropas para
sufocar a rebelião, longe de emancipar, afastou a própria possibilidade de democracia. Havia,
naquele momento, uma manifestação de um poder constituinte, “o povo”, para uma coerência
lingüística de mútua dignidade. Nessa eficácia de proteção de direitos e garantias individuais,
é possível pensar-se num “comum” compartilhado por cidadão que pretendem uma ordem
constitucional que os proteja e assim estabeleça laços de união. O constitucionalismo não
deve ser um paradoxo de acirramento de liberais e fundamentalistas, mas de uma pacificação
estruturada no indivíduo em sua condição humana.
No pecado original, Eva precipita-se e come a maçã proibida, aquilo que não possuía e,
numa espécie de fetichismo, queria. Pretendia ser mais do que era e colocar-se acima da
divindade acreditando na possibilidade de conhecimento pleno e de que assim poderia ter uma
satisfação de seu desejo de poder. A modernidade rompe com o ideal místico da religiosidade,
com instituições como o Estado, dentro de dimensões procedimentais. Não se cumpriram, no
entanto, os pretendidos desejos de liberdade e igualdade. Antes o homem queria ser Deus,
agora quer menos, apenas ser livre e igual. Não quer mais tanto a maça, mas pode ser uma
torta com sabor de maça. O problema é que nada garante que um projeto de democracia
radical, necessariamente nos levará para algo melhor. De maneira que se deve ter cuidado
para não se piorar o estado constitucional atual.
O sujeito, que orienta essa dignidade e esses direitos, nessa dinâmica, comeu
ferozmente a torta da modernidade e esqueceu o sabor da maça prometida.
Será que o desejo indômito de morder a maça não nos destruiu?
Conclusão
A modernidade promoveu um rompimento, não simplesmente econômico, porém mais
amplo, com uma fundamentação de mundo religiosa. Porém, tal não significou o afastamento
de uma concepção unitária, seja sob a forma de uma unidade jusnaturalística, histórica,
sistêmica ou lógico-positivista. Isso somente tornou-se possível desde uma ética burguesa e
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
227
capitalista, que passou a ser pressuposta acima das plurais visões compreensivas de mundo,
inclusive naquelas paradoxais que procedimentalmente afirmam o capitalismo.
As insuficiências da modernidade, colocando o “povo” de lado das conquistas
promovidas, representam uma potencialidade de conflitos que devem ser buscadas através de
um diálogo na ordem Constitucional, porém não podem perder-se na comunicatividade a
justificar a perigosa e odiosa instituição de um “estado de emergência”.
Portanto, embora a Constituição não promova a efetividade imediata do que se pretende
de uma ordem emancipatória, a Carta Magna agrega expectativas e protege, minimamente, da
tirania. As novas utopias devem reclamar um diálogo que não se entenda “a priori” diante do
respeito às pressuposições normativas, mas “a posteriori” com resultados de satisfação mútua,
não como um desejo pelo novo ou pelo radical, mas com a parcimônia necessária para a
constante construção da liberdade e dignidade.
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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
229
DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO
LAW AND EVOLUTION - A STUDY OF SÍLVIO ROMERO'S WORK
Renato Matsui Pisciotta*
*
Professor de História e Filosofia do Direito na Faculdade Unida de Suzano - UNISUZ. Doutorando em História
Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
230
DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO
1. Introdução
A maioria dos debates jurídicos contemporâneos versam a respeito de rupturas com
entendimentos estabelecidos e/ou alterações na interpretação de institutos consagrados do
Direito. Os exemplos recentes são variados: o concubinato e a homoafetividade, para ficar
apenas no campo do Direito de Família, evidenciam modificações na Justiça impensáveis em
outros tempos.
Significa que a reflexão sobre a mutação do Direito está na ordem do dia. Em tempos de
globalização alteram-se as atribuições do Estado, emergem novas formas de direitos da
coletividade, redimensionam-se problemas ambientais, econômicos e de convivência
planetária.
A reflexão sobre a transformação do Direito se faz necessária. Nisto, entretanto,
devemos estar atentos. O discurso jurídico da modernidade construiu uma narrativa evolutiva
linear sobre a historicidade do Direito. Tal procedimento tem dois grandes problemas, afirma
Ricardo Marcelo Fonseca (2009). Em primeiro lugar, pela transformação da História do
direito em discurso legitimador da ciência jurídica atual, na medida em que o instituto jurídico
passa a pertencer à natureza das coisas. Em segundo lugar, é problemático porque transforma
o Direito atual no ápice de um processo acumulativo, reforçando o progresso como ideologia
justificadora (FONSECA, 2009, p 62-63).
Nosso objetivo neste trabalho é apresentar a historicidade do conceito de evolução e de
História. E faremos isto buscando evidenciar como a modernidade cria o Direito-lei ao
mesmo tempo em que constrói a grande narrativa histórica totalizante do progresso da
humanidade.
Para tanto, seguiremos três passos. Em primeiro lugar faremos uma reflexão geral sobre
a construção da História, com base em Koselleck. Na sequência, apresentaremos o nascimento
de um Direito que se move, de um Direito histórico. Isto será feito através do exame das
reflexões de Savigny e Ihering. Por fim, examinaremos como se constrói um discurso sobre
Evolução e Direito no Brasil, com fulcro na obra de Sílvio Romero.
2. Idéias de História e Evolução
O eminente historiador alemão Reinhart Koselleck (2006) afirma a historicidade do
nosso conceito de História, termo abrangente capaz de albergar o caminhar de todo o gênero
humano em uma única narrativa. Este transcorrer do tempo homogêneo e unido por uma
seqüência de eventos é característico do século XVIII, surgindo mais especificamente no
interior do ideário iluminista.
Portanto, nem sempre existiu a concepção desta "grande História". Entre os antigos
gregos, por exemplo, sequer havia o conceito de autonomia de uma ordem humana frente à
natureza (LENOBLE, 1990). Assim, o tempo humano se confundia com o do universo. É
comum deste momento imaginar o tempo cíclico. Em períodos de milhares de anos, o Sol, a
Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno estariam de determinada maneira e isto
indicaria o reinício de um ciclo. Acreditava-se que neste haveria período de inundação e
chuvas, correspondente a um "grande inverno", e um outro de destruição pelo fogo, um
"grande verão" (MORRIS, 1998, p 36). Pitágoras inclusive acreditava que os mesmos eventos
se repetiriam em cada ciclo. A Guerra de Tróia aconteceria novamente e os mesmos
acontecimentos se sucederiam. Assim, um acontecimento é tanto passado como futuro,
situação difícil de digerir para nossa mente contemporânea.
A Idade Média também conheceu formas de encarar o tempo histórico distintas da
contemporânea. Para melhor entendermos o tema, é preciso notar que o longo período entre o
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
231
IV e o XII caracteriza-se pela lenta expansão do catolicismo na Europa. O paganismo
permaneceu vivo em segmentos variados da sociedade medieval e a pouca difusão das letras
contribuiu para a má formação do clero e da cristandade em geral. Neste universo iletrado
predominavam os raciocínios analógico e dualista, típicos do pensamento mágico da cultura
oral e mágica. Assim, "a sociedade viveu - mais mal do que bem - sobre um modelo ideal, a
Cidade de Deus. O essencial era que a cidade terrena, apesar das suas imperfeições, não
tombasse para o lado do Diabo, para o lado do mal" (LE GOFF, 1993, p 251)
Este mundo dividido em duas forças frequentemente personalizadas em figuras como
Deus e Satanás é também impreciso quanto ao tempo e o espaço, pelo menos aos olhos
modernos. Na geografia qualitativa que então prevalecia as pessoas que habitassem as Índias,
por exemplo, seriam mais vagarosas porque localizadas no primeiro clima. Crosby (1999, p
47) salienta que os próprios pontos cardeais eram qualitativos. O sul é quente e representa a
paixão de cristo, o leste sagrado porque apontava para o Éden, obrigando as igrejas a se
orientarem pelo vetor leste-oeste, o primeiro indicando a posição do altar.
Neste universo de substâncias e objetos imbuídos de qualidades, o transcorrer do tempo
se dará de maneira diferente do mecanicismo, que fabricou uma temporalidade homogênea,
linear e desprovida de encantamento. Nas sociedades medievais prevaleceram, grosso modo,
as "histórias" de cunho escatológico e edificante. Em algum momento, nem sempre preciso, o
mundo vai acabar. A cristandade, unida, deve rezar e buscar a salvação da alma. A própria
Igreja fomenta essa imprecisão temporal. "O fim do mundo só é um fator de integração
enquanto permanecer não determinável, do ponto de vista histórico e político"
(KOSELLECK, 2006, p 26).
Reinhart Koselleck afirma ainda que Cicero cunha um topos conceitual de História. Este
está subsumido na expressão Historia Magistra Vitae. Significa que a História pode servir
como exemplo edificante. Nela podemos colher situações e aprender com os erros. Trata-se de
uma maneira de fazer aflorar a verdade, a boa conduta, através do estudo do fato passado.
Esta maneira de perceber a História perdura até o XVIII, quando entram em cena as doutrinas
da História movimento, a História como grande narrativa humana.
Esta, decerto, não surge como novidade total. Desenhou-se aos poucos ao longo dos
séculos até ganhar corpo. O período em torno do século XII, por exemplo, representa um
momento de mudança na percepção temporal. O dinamismo citadino e comercial que toma
conta de algumas regiões da Europa, notoriamente Itália e Holanda, vai modificar algumas
concepções de Homem e de Cosmos que vicejavam até então. Uma maior exatidão e
concretude no trato com o espaço-tempo vai se verificar. Trata-se do período que assiste a
adoção dos algarismos arábicos, dos estudos cartográficos, do uso do relógio mecânico e do
desenvolvimento das práticas contábeis, entre outros fatores. Paulatinamente formam-se ilhas
de raciocínio quantitativo em meio ao imenso mar medieval de qualidades.
O medievo deixa como um legado um certo pessimismo temporal. Trata-se da metáfora
da morte, exemplificada por Saturno. À frente, não o progresso moderno, mas sim a corrução
e a deliqüescência. Talvez por isso o sucesso de algumas nostalgias de uma era passada. A
própria expressão "Renascimento" parece indicar isto.
E o período renascentista vai mesmo reelaborar a noção de tempo e História. Agora, "O
tempo resulta da ação concertada dessas três potências: recebe seu ritmo geral da natureza,
sua direção e diretrizes da providência, da fortuna seus impulsos e caprichos" (DUBOIS,
1995, p 126). Natureza, providência e fortuna modelam a temporalidade. Está aberto o
caminho para um novo conceito de História, como o de Bodin.
232
DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO
No contexto dos confrontos religiosos do século XVI, Bodin erige um novo conceito de
soberania calcado no poder monárquico. A pluralidade de confissões é a grande questão do
momento. Ela rompe com a noção de cristandade medieval e impõe toda uma ordem de
problemas que irá desembocar na elaboração de um novo paradigma sócio-político. Assim,
Bodin busca redefinir os papéis de Igreja e Estado. O rei deve se encarregar da liderança do
Estado e da Sociedade, evitando a cisão. Trata-se da "defesa da política contra os partidos"
(LOPES, 2007, p 78). Significa que o rei passa a ser a fonte da lei e a religião deixa de ser
elemento organizador do Estado, agora ligado a fins terrenos como ordem e paz social.
A concepção de História de Bodin é inovadora para o período. Não se trata mais de
contar a vida de um rei, de repetir o exemplo de vida heróica ou a narrativa edificante de um
modelo político cristão medieval. Os estudiosos franceses da época acreditavam fazer uma
Histoire Nouvelle, denominada "História Perfeita". Esta realiza uma transformação no foco
adotado e também no uso das fontes. A necessidade do rigor na análise está aliada ao conceito
de que a razão humana pode conhecer o passado. E isto está ligado à tentativa de descoberta
do direito natural. Assim, o olhar histórico sobre as instituições revelaria a ordem subjacente
ao caos, revelando as estruturas sólidas de um direito de caráter universal.
Para tanto, Bodin separa a história sacra, a história humana e a história natural
(KOSELLECK, 2006, p 28). Com isto, deixa de existir a política medieval da cristandade, que
pressupunha a escatologia. Nesta, a comunidade cristã rumava ao fim dos tempos e o governo
significava ser condutor de um rebanho, ser um pastor de almas. Agora, para os eruditos do
XVI francês, é formatado um novo conceito de soberania, vinculado à ação humana. E isto é
indissociável da existência de uma história humana, dimensão na qual reina a inteligência e o
voluntarismo dos Homens.
Mas é o XVIII que efetivamente significaria uma alteração profunda nas representações
de História. Em primeiro lugar, está em curso uma modificação na maneira como se vê o
Homem. Até então, a individualidade é vista como tendo centro na alma. A partir do
Setecentos, cada vez mais a pessoa tem como centro de si a mente (MARTIN, 2004). Existe,
portanto, uma construção da idéia de identidade física concreta. Essa humanidade concebida
em sua concretude, apartada da dimensão metafísica da alma, gera também o conceito de
possibilidade de uma história humana em si, separada da sacralidade e da natureza.
Forma-se, então, todo um topos do humano, que passa a ter uma centralidade peculiar.
O tempo linear em direção ao fim dos tempos deixa de ser exclusivo do tempo sacro e natural.
Agora vai se integrar ao Homem de maneira estrutural e compor a ideologia do progresso. E,
no cerne deste processo, surge aquilo que Foucault denomina de modo histórico de produção
do saber, revelador da maneira como agora se organizam os discursos de poder e ciência em
torno da pessoa.
A partir deste momento, portanto, não predominam mais os sistemas jurídicos estáticos
e lógicos do jusnaturalismo moderno. Hugo Grócio e Pufendorf saem de cena para a chegada
das Escolas Históricas de Direito.
3. Direito e Evolução
Se os séculos XVII e XVIII foram marcados pelo paradigma jurídico geométrico e
axiomático, o XIX terá como plataforma os feitos da história natural. Esta, ao lado do
desenvolvimento da Ciência Política, da Economia e da Sociologia, vai marcar as diretrizes
básicas do desenvolvimento do Direito durante o século. Ao mesmo tempo, o Positivismo vai
marcar de maneira indelével os rumos das reflexões jurídicas, legado com o qual ainda hoje
nos defrontamos.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
233
A partir do final do século XVIII e início do XIX teremos um elemento novo na
problemática jurídica: a idéia de que o ideal de Justo pode mudar e, portanto, que o ideal de
progresso pode se inscrever na ordem natural das coisas, não ficando restrita ao mundo do
conhecimento humano. Esta modificação é introduzida pela adoção da História Natural como
plataforma adequada para pensar o Direito.
Na seqüência apresentaremos dois grandes momentos da introdução destas idéias no
âmbito jurídico. Ambas tem lugar na Alemanha e possuem caráter bastante distinto uma da
outra. A primeira, elaborada pelo jurista Savigny, chega à História Natural de forma mais
discreta, através do pensamento romântico de Schelling. A Segunda, elaborada por Ihering,
adere efetivamente à teoria da Evolução de Darwin, ainda que em uma perspectiva muito
própria, sofrendo influência do utilitarismo inglês e da teoria econômica clássica.
3.1 A Escola Histórica de Direito
3.1.1 Contexto:
A Alemanha do século XIX é marcada, de várias formas, pela Revolução Francesa.
Quando cai a Bastilha, os jovens Schelling, Hölderlin e Hegel, então estudantes em um
seminário de Tübingen, decidem comemorar o fato: plantam uma árvore que chamam de
“árvore da liberdade”. Hegel viu na Revolução uma “nova aurora” e toda a sua reflexão
filosófica estava apoiada na “ruína do mundo existente (SALIBA, 1991).
Essa sensação de liberdade e novidade, porém, não durou muito. As invasões
napoleônicas trouxeram um sentimento de humilhação e de alteridade para com a cultura da
França revolucionária. A partira daí,
“Bonaparte encarnava o aspecto menos desejável da Revolução, sua roupagem
romana, seu aspecto latino-geométrico dos Códigos cartesianos, seu centralismo
tirado dos Césares da sempre odiada Roma, antítese de tudo o que sempre fora a
Germânia”(DE CICCO, 2006, p 211)
O oxigênio mental desta geração de intelectuais alemães estava imbuído de um forte
caráter reacionário contra as revoluções política e industrial do período. É o fértil período de
Fichte, Schelling, Hegel, Schlegel e Schleiermacher, entre muitos outros. Muitos revalorizam
temas do passado, como a Monarquia, a religiosidade, a aristocracia e uma herança cultural
germânica que estaria em risco frente às transformações em curso (HERMAN, 2001, p 4748).
Todas as tensões do período transparecem nas obras destes autores: o desejo de unidade
frente à fragmentação do mundo, o sentimento de pertencer a uma cultura/nacionalidade, o
drama da existência solucionado pela transcendência mística, a valorização do eu individual.
É neste contexto que toma assento a Escola Histórica, um dos grandes momentos do
pensamento jurídico que tem como iniciador Gustav von Hugo e encontra sua maior
expressão em Friedrich Carl von Savigny. Merecem menção Georg Friedrich Puchta1, Johann
Friedrich Göschen e Karl Friedrich Eichhorn. Entre a segunda metade e o final do século XIX
o movimento se espalha e tem como principais nomes Henry Maine, na Inglaterra, e
Raymond Saleilles, na França (HERKENHOFF, 2002, cap 3).
3.1.2 Características gerais
1
Puchta foi discípulo de Savigny e é majoritariamente considerado um integrante da Escola Histórica.
Entretanto, há aqueles que enxergam em sua obra contribuições novas o suficiente para desvinculá-lo do mestre.
Quem assim acredita o insere na Escola da Jurisprudência dos Conceitos.
DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO
234
De forma muito ampla e desconsiderando as diferenças entre seus integrantes, podemos
indicar algumas características gerais da Escola História alemã (AGUILAR, 1999, p 82):

oposição ao Iluminismo e suas vertentes jurídicas, encaradas como portadoras de
um contratualismo artificial e de uma racionalidade fria e distante da realidade vivida
pelo povo;

influência de Vico, no sentido de ver o direito como portador de um
desenvolvimento orgânico em um ambiente particular;

simpatia por E. Burke;

aquilo que até então se entendia como direitos naturais eram uma miragem da
razão. É Gustav Hugo que formula a idéia de que estes direitos pretensamente naturais
são, na realidade, históricos.
O ápice da Escola Histórica vem com os debates em torno da codificação ou não da lei
alemã. Como vimos, o movimento codificador é tributário da idéia de que a razão é a
principal fonte do Direito. Esta posição era defendida na Alemanha por Thibaut, um jurista
alemão de origem huguenote francesa. Para ele, era essencial a criação de códigos de leis
fundados na razão e capazes de regular todas as sociedades, não importando as circunstâncias
locais ou históricas.
A ele se opõe Savigny, também de origem huguenote francesa. Em seu célebre “Da
vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência”, este jurista vai propor a
impossibilidade de um código naquele momento sem que se conheçam as realidades de todas
as regiões alemãs. Ou seja, o direito não está calcado na razão, mas sim sobre a História e a
tradição.
Em Savigny, a sociedade é um organismo vivo e o Direito faz parte do Volksgeist.
Acredita, portanto, que as manifestações jurídicas desenvolvem-se espontaneamente como
produto da consciência nacional e das tradições locais. Assim, os costumes devem ser as
fontes principais das leis, que devem sim existir. Não se trata de uma recusa da organização
de um sistema legal. É apenas que este não deve ser artificial, produto da razão. É necessário
que o legislador seja porta-voz das regras consuetudinárias, consolidando-as em leis.
3.2 Schelling e Savigny:
Com se nota, Savigny tem muito do romantismo nacionalista alemão. Nisso é muito
influenciado pelo cunhado e poeta Clemens Brentano, tio de Franz Brentano. Através dele, é
significativamente marcado por Novalis e, sobretudo, por Schelling (DE CICCO, 2006, p
211). Neste ponto, uma ressalva. Embora iremos salientar a proximidade de Savigny com o
contexto romântico, ele não deve ser visto como um literato ou artista. Savigny tem diante de
si um problema jurídico, que é a "renovação da ciência jurídica através da superação das
abstrações acríticas" (WIEACKER, 2004, p 450). O que está posto, portanto, é uma questão
de método e renovação do Direito.
Jovem de inteligência prodigiosa, aos 23 anos Schelling é levado por Goethe para
lecionar na Universidade de Iena. Reconhecido como um professor prodigioso, sua filosofia
da natureza vai se espraiar pelo ambiente intelectual alemão(HELFERICH, 2006, p 265). O
seu sucesso se deve, sem dúvida, ao fato de ter sido porta-voz das aspirações românticas de
seu tempo.
Schelling tinha profundo conhecimento teórico da ciência. Famoso como filósofo e
teólogo, também realizou incursões no âmbito da matemática, ciências naturais e medicina.
Interessou-se particularmente pelas descobertas no campo da eletricidade, magnetismo e
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
235
energia. Influenciado pela “doutrina da excitação”, do médico escocês John Brown, e pela
“doutrina do desenvolvimento”, do biólogo alemão Carl F. von Kielmeyer, Schelling passa a
desenvolver a idéia de um princípio imanente na natureza, recusando o mecanicismo das
relações causais exteriores (GONÇALVES, 2006, p34-35).
Nicolai Hartmann assim apresenta a filosofia da Natureza de Schelling:
“Na Natureza existe uma organização prevalecente, organização que não se pode
conceber sem uma força produtiva. Tal força necessita, por sua vez, dum princípio
organizador. Este não pode ser um princípio cego de realidade, tem de ter
produzido teleologicamente a adequação contida nas suas criações. Portanto, só um
princípio espiritual pode ser capaz disto, quer dizer, um espírito exterior ao nosso
espírito. Mas, já que não podemos admitir uma consciência fora do Eu, o espírito
que cria a Natureza há de ser um espírito inconsciente”(HARTMANN, 1983, p
135)
Schelling, portanto, vê no mundo natural um princípio espiritual. A partir daí, busca
repensar a separação entre res extensa e res cogita, ou seja, entre natureza e sujeito. A
Natureza não é apenas um objeto inerte e geometrizável, como na concepção mecanicista. É
agora um sujeito que, além das características já mencionadas, é portador de história. Assim
se explicam as transformações que observamos na natureza, sejam biológicas ou geológicas.
Neste contexto, “(...) nós, seres humanos, livres e autoconscientes, somos não apenas parte
ou fim último dessa sua história, mas o meio pelo qual ela é finalmente
revelada”(GONÇALVES, 2006, p 37)
Aqui temos outra faceta do pensamento schellinguiano: o monismo que encerra em si o
mundo natural e o homem reflexivo, este cada vez mais descobridor das finalidades do
universo.
É exatamente nesta concepção monista que encontramos Savigny e a Escola Histórica.
A importância de Schelling é tão grande neste campo que autores como Claudio de Cicco
afirmam que “seria impossível Savigny sem a base que foi Schelling” (DE CICCO, 2006, p
214). O jurista teutônico encampa os conceitos de totalidade, unicidade e transformações
auto-reveladoras do espírito universal. E faz isto tudo tendo por base a valorização do
germanismo e da vida comunitária do mundo de língua alemã.
Acompanhemos o raciocínio de Savigny:
“Nos tempos mais antigos as quais se estende a história autêntica, verifica-se que a
lei já havia alcançado um caráter fixo, peculiar ao povo, como a sua língua,
costumes e religião. Mais ainda, esses fenômenos não têm existência separada; são
apenas as tendências e faculdades particulares de um povo, inseparavelmente
unido, e apenas mostram a nossos olhos a aparência de atributos
distintos”(SAVIGNY, 2002, p 289).
Aqui apresenta-se a idéia de unicidade, de totalidade e comunhão dos diversos
fenômenos da vida social. O Direito, assim como a “língua, costumes e religião” faz parte do
volksgeist. Não podemos, portanto, pensar o fenômeno jurídico apartado das outras
dimensões de uma mesma sociedade.
Neste sentido, a respeito da codificação, Savigny afirma que:
“O Código, então, como está planejado para ser a única autoridade-lei, deve conter
de fato, por previsão, uma decisão pra cada caso que possa surgir. (...) Mas quem
quer que tenha estudado casos jurídicos com atenção, verá logo que esse
empreendimento deve falhar, porque positivamente não há limites para as
variedades das reais combinações de circunstâncias”(SAVIGNY, 2002, p 291)
Ou seja, a racionalidade da lei iluminista é uma abstração. E, como tal, é um artifício
que não dá conta das inúmeras situações da vida real. A combinatória de tudo que ocorre e
236
DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO
que tenha significado jurídico escapa da razão legal. Trata-se da oposição entre a palpitante
vida das comunidades e a frieza das racionais fórmulas impostas pela legislação. A solução
para este problema se dá pelo historicismo.
“A história, mesmo na infância de um povo, é sempre uma nobre professora; mas,
em tempos como o nosso, ela tem ainda um outro dever mais sagrado a cumprir.
Porque só por meio dela se pode manter uma ligação viva com o estado primitivo
do povo; e a perda dessa ligação deve tirar de todo povo a melhor parte de sua vida
espiritual”(grifo nosso) (SAVIGNY, 2002, p 298)
A História é a ponte que liga um povo ao seu estado primitivo. E esta ligação é
responsável pela espiritualidade de uma sociedade. Daí a importância das tradições, dos
costumes. É no nosso encontro com o passado que nos revigoramos. É neste encontro com os
antepassados da comunidade que podemos sentir a presença do espírito de uma nação. No
caso, trata-se da afirmação de uma espiritualidade alemã, de uma mentalidade germânica
elaborada em oposição às culturas industriais e racionalistas da França, notoriamente, mas
também da Inglaterra.
A polêmica de Savigny e Thibaut repete, grosso modo, aquela entre Goethe e o jovem
Schiller. Savigny era aristocrático e preso aos valores da terra, viu com maus olhos o
terremoto revolucionário francês.
3.3. Ihering:
Um dos grandes opositores da Escola Histórica será o jurista Rudolf von Ihering.
Ihering se torna famoso no Brasil por ter sido inspirado e conhecido diretamente os
intelectuais do grupo da Escola de Recife, notoriamente Sílvio Romero. De fato, o sergipano
convidou-o a conhecer a Faculdade de Direito de Recife, o que realmente ocorreu, e gabavase de ser o introdutor de suas idéias em nosso país.
A obra de Ihering é um bom exemplo da recepção da teoria da Evolução no meio
jurídico. Influenciado, entre outros, por Darwin, o jurista alemão vê o Direito de certa forma
ligado à História Natural. O título de sua principal obra já é um indicativo de seus conceitos:
“A luta pelo direito”. Basicamente, afirma que todo ser humano vive em função de algum
interesse. O motor da sociedade é então a busca egoística da satisfação pessoal:
“A autopreservação e a propagação do indivíduo são ... condições necessárias para
a realização da finalidade da natureza. Como ela atinge essa finalidade?
Despertando o egoísmo. Ela realiza isso, oferecendo-lhe um prêmio caso faça o que
deveria, a saber, prazer; e ameaçando com punição se não fizer o que deveria, a
saber, sofrimento”(IHERING, 2002, p 401)
Neste excerto está implícita a idéia de competição entre indivíduos que perseguem seus
interesses individuais. Mais que isso, é através deste mecanismo que encontramos as
“condições para a realização da finalidade da natureza”. Trata-se da transposição do ideário
darwinista para o mundo do liberalismo do século XIX.
O próprio Ihering confirma isto ao mostrar que neste jogo de interesses surge a idéia de
contrato e comércio: “comércio é a organização da satisfação assegurada das necessidades
humanas, que se baseia na alavanca da recompensa”(IHERING,2002, p 405). Há, portanto,
uma curiosa ligação entre a competição natural, o egoísmo-interesse e direito privado.
Ihering, entretanto, não vai se deixar levar pela corrente darwinista até as últimas
consequências. Nesse sentido, não se pense que o papel do Estado é esquecido:
“O Estado é o único competente, bem como o único proprietário da força coercitiva
social – o direito de coagir constitui monopólio absoluto do Estado. Toda
associação que deseja realizar seus direitos sobre seus membros, por meio de
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
237
coerção mecânica, depende da cooperação do Estado, e o Estado tem o poder de
fixar as condições sob as quais garantirá tal ajuda” (IHERING, 2002, p 412)
De um lado temos o Estado, único ente com poder coercitivo em sociedade. De outro
temos as pessoas e seus interesses. Nesse quadro, Ihering vê o Direito como o garantidor e
equilibrador dessas esferas individuais egoísticas. Aí está uma dimensão de Ihering que se
opõe ao darwinismo social. Aqui não se fala em "sobrevivência do mais apto", mas sim na
possibilidade de garantia do mais fraco pelo Direito.
Existe um espaço aberto, portanto, para um Direito com fundamento social. Assim,
muitos autores enquadram Ihering como precursos das teorias sociológicas do fenômeno
jurídico. Ihering, entretanto, não chegou a finalizar suas reflexões. Ele morre enquanto debatia
o assunto, que permanece uma faceta inacabada de sua obra.
De qualquer forma, o conceito de Direito que emerge daí é profundamente diferente
daquele de Savigny. Para o jurista da Escola Histórica existe uma transformação harmônica
do mundo legal, fruto do espírito que anima aquele povo. É um conceito que visa a
comunhão, a harmonia, a transformação lenta feita ao longo dos tempos. Como a língua, o
direito seria algo natural e espontâneo.
Ao aderir a Darwin, do utilitarismo inglês e da teoria econômica clássica, Ihering vai se
opor a esta perspectiva. Para ele, o Direito é sinônimo de interesse, de luta. E as
transformações das leis não são harmônicas, espontâneas. São fruto de choques de diferentes
interesses na selva das relações humanas.
4. Escola de Recife e Sílvio Romero
Para José Murilo de Carvalho (2003) a elite cultural sempre fora homogênea no Brasil.
No geral eram egressas da Universidade de Coimbra, o que lhes garantia formação similar.
Após a Independência, aos poucos começam a aparecer os formados nas academias militares
e nas faculdades de Direito nacionais. Ainda que de vagarosamente, isto começa a mudar a
partir de meados do XIX. Alguma diversidade começa a se formar a partir daí. Os diferentes
centros intelectuais começam a ter sotaques regionais. Nesta formação de redes locais em
torno dos pólos de saber está a atuação das oligarquias. De acordo com WOLKMER (2009, p
96-97) aí está uma das características do liberalismo brasileiro: era mais voltado para os
interesses de uma elite do que aos ideais democráticos.
Em 1827 são fundadas as primeiras faculdades de Direito do Brasil, localizadas em São
Paulo e Olinda. Esta última posteriormente foi transferida para Recife, onde amadurece,
transformando-se em um dos grandes centros intelectuais do século XIX em nosso país.
Habitualmente afirma-se que São Paulo fica marcada pela preeminência do positivismo de
Comte, ao passo que Recife caracteriza-se pelo cientificismo, pelo germanismo e pelo
evolucionismo.
A expressão "Escola de Recife" é cunhado apor Sílvio Romero em "Prioridade de
Pernambuco no movimento espiritual brasileiro", artigo escrito em 1879 no meio da
escaramuça intelectual contra parte dos eruditos fluminenses. Ali, escreve Sílvio Romero que
"de todos os centros intelectuais do Brasil, se é que neste país os há, a cidade de Recife, nos
últimos anos, é a que tem levado a palma aos outros na iniciativa das idéias" (apud MORAES
FILHO, 1985, p 43). A afirmativa levou à réplica de Carlos de Laet, que denominou o grupo
de "escola teuto-sergipana".
Sílvio Romero possuía uma certa tendência a enxergar "escolas". Em sua "História da
Literatura Brasileira" encontramos menção à presença de uma Escola Baiana e uma Escola
Mineira de Literatura, respectivamente, no primeiro e segundo momento de formação de
nossas letras (ROMERO, 1949). Evaristo de Moraes Filho repudia a denominação "Escola de
238
DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO
Recife" para o grupo que se formou a partir e em torno da figura de Tobias Barreto. Este não
possuiria "singularidade e originalidade" com relação a outros centros de erudição no Brasil.
Positivismo, naturalismo e evolucionismo, entre outras tendências, não seriam exclusividade
do grupo pernambucano. Além disso, as dissenções teóricas no interior do próprio grupo de
Recife não eram desprezíveis.
Tobias Barreto, por exemplo, parece não ter levado muito a sério o termo "escola".
Além disso, no cerne do seu pensamento estava a noção de que inexistiria uma cultura
humana global, mas sim uma pluralidade de sociedades. Essa descrença em um conceito geral
de humanidade contrapõe-se à crença de Sílvio Romero de que é possível uma ciência social,
a sociologia.
Entretanto, se adotarmos o termo "Escola" como comunhão de interesses ou de atitudes,
o termo pode sim se aplicar ao grupo. Neste sentido, a expressão "escola de Recife" é
utilizada por MACHADO NETO (1969) e MARTINS (1979), entre outros. Em um restrito
universo de duas academias de Direito, não seria difícil elencar os traços distintivos entre elas.
E SCHWARZ (2007) afirma que as diferenças são maiores que as semelhanças. A faculdade
do Largo de São Francisco tendeu a aderir ao liberalismo conservador que vicejou no pós
revolução francesa. A isso somou as teorias evolucionistas e a defesa irrestrita da ação do
Estado. Com isso, "não só tendeu a legitimar a vigência de um Estado autoritário e claramente
manipulador, como procurou na teoria evolucionista a certeza de sua origem e de um futuro
certo" (SCHWARZ, 2007, p 182).
Em Recife, de acordo com Machado Neto, predominaram os monismos evolucionistas
de Spencer, Noiré e Haeckel, este último não de forma duradoura. O germanismo foi a nota
distintiva da escola, com destaque para a figura de Tobias Barreto, que chegou a fundar um
jornal escrito em alemão no Nordeste do século XIX. COSTA (1987) afirma que o
germanismo chega ao Brasil substituindo um espiritualismo eclético, fato que efetivamente se
nota em Recife.
As diferenças entre as duas academias podiam ser notadas no dia a dia. Em São Paulo
predominava o ensino do direito civil, cadeira que ensina o direito de propriedade e a
regulação dos contratos. Exigia-se o inglês como língua e a ênfase estava no ensino de caráter
filosófico. O objetivo era a formação de "burocratas do Estado". Recife, por sua vez, exigia o
conhecimento do inglês, italiano e alemão. O italiano servia para a leitura de Lombroso e
demais autores de sua escola criminológica, muito em voga na época. Já o alemão destinavase aos autores do darwinismo social. O foco era o direito penal ou, mais especificamente, a
"antropologia criminal" e suas muitas variantes: a antropologia física, a frenologia, o
determinismo racial. O fulcro era a ciência e, mas propriamente, a biologia. Menos que
quadros profissionais, a escola de Recife visava a formação de "homens de ciência"
(SCHWARZ, 2007, p 183-184).
MACHADO NETO divide divide a trajetória da Escola de Recife em etapas. Passado o
primeiro momento, de caráter literário, ali se desenvolveram fases intelectuais distintas. Em
uma primeira, até 1875, a característica é a iniciação algo eclética no positivismo e nos vários
modelos de evolucionismo. A tônica geral era o embate contra o jusnaturalismo católico
imperante no pensamento jurídico de então.
Um segundo momento tem início em 1875, com a áspera dissensão entre Sílvio Romero
e Coelho Rodrigues, por ocasião da defesa de tese do primeiro. Romero escandaliza a
congregação ao afirmar a morte da metafísica e abandona a defesa. Daí, até por volta de 1885
teremos uma fase de abandono do positivismo. Eleito deputado, muda-se para o Rio e publica
"A Filosofia no Brasil", em 1878, obra na qual critica a intelectualidade fluminense e enaltece
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
239
a figura de Tobias Barreto. Inicia, em 1881, o magistério de Filosofia no Colégio Dom Pedro
II, obtido em memorável concurso.
Em uma terceira fase da Escola de Recife, que perdura até o final do século, teremos a
morte de Tobias Barreto, em 1889, e a oposição firme ao Positivismo, característico do Sul do
Brasil. O monismo de Haeckel também é objeto de debate. Neste período, Sílvio Romero
publica "História da Literatura Brasileira" (1888) e "Ensaio de Filosofia do Direito"(1895),
entre outras obras. Em 1894, em "Doutrina contra Doutrina", fica clara a sua adesão ao
evolucionismo de Spencer. A última fase da Escola vai até a morte de Romero, em 1914, e
assiste à dissolução do ímpeto que a caracterizou até então.
Sílvio Romero também se insere nesta geração de "modernistas de 1870". SCHNEIDER
(2005, p 23) afirma que a sua adesão à perspectiva sociológica é ao mesmo tempo "riqueza e
miséria". Diferentemente de Tobias Barreto, Romero acreditava na possibilidade da ciência
social. Mais concretamente, questionava como construir a modernidade e a civilização em um
país como o Brasil. Este é o eixo que agrupa e orienta as várias atividades intelectuais às quais
se dedicou.
Em nome deste ideal de modernização, Sílvio Romero
aderindo ao naturalismo e ao universalismo cientificista. A sua
naturalismo de forma determinista, em um primeiro momento.
turbulento, com vasta gama de interesses (DIMAS, 2009). Com
acuidade o que ganha em visão de conjunto.
combate o Romantismo,
sociologia está ligada ao
Romero é um polemista
isso, por vezes perde em
Sua preocupação prática era o estudo da literatura e da ciência como forma de
compreensão do Brasil. Assim o seu ideário de progresso poderia se concretizar. De forma
geral, podemos afirmar que Sílvio Romero via a mestiçagem e a natureza como condições
particulares do nosso país. Além delas está a Ciência, que é ideal universal e fator de evolução
(SCHNEIDER, 2005, p 41).
Tendo em vista esse eixo fundador de seu pensamento, Romero vai produzir copiosa
obra em vários campos do saber. Sociologia, Filosofia, Literatura, Folclore e Direito, são
alguns dos ramos do saber que lhe interessam. Pode-se mesmo afirmar que seu trabalho é
seminal na Sociologia e na crítica literária.
Sílvio Romero reconhece não ser adepto de uma filosofia fechada. "O meu systema
philosophico reduz-se a não ter systema algum", afirma, "porque um systema prende e
comprime sempre a verdade" (apud MACHADO NETO, 1969, p 99). A linha de suas
reflexões alterou-se com o decorrer de sua vida. A tônica geral de suas reflexões pode,
entretanto, ser traçada. Ao longo de sua vida, os seus principais mentores intelectuais são
Littré, Buckle, Taine, Haeckel, Spencer.
MELLO E SOUZA (1945) comenta que muitas das leituras científicas de Romero vem
de livros com explanação genérica acerva de múltiplos teóricos. Nesse sentido, a "História da
Criação", de Haeckel, expunha Kant, Lamarck, Goethe, Lyell e Darwin e "deveria ser um
tesouro" para ele, a rigor, bacharel mal formado nas ciências naturais. "Força e Matéria", de
Buchner, deve ter tido efeito similar.
O período de embate intelectual no Rio de Janeiro é marcado pela crítica às "idéias
antigas", tidas como ornamentais e pouco científicas. Para Romero, o "romantismo foi um
fenômeno de importação, incapaz de cuidar da nossa realidade" (MELLO E SOUZA, 1945, p
61). Em um prefácio intitulado “A poesia de hoje”, Sílvio Romero assim se manifesta:
“Estes nomes [Darwin, Comte, Spencer, Buckle, etc] exprimem a grande
transformação das ciências da natureza, invadindo a esfera das ciências do homem.
Todos sabem que a religião, a linguagem e a história, o direito, a política e a
240
DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO
literatura são agora tratados por método bem diverso daquele por que o eram há
trinta anos (...)
Nesta altura, sua [da arte] primeira obrigação, entre nós, há de ser o completo
abandono de meia dúzia de célebres questões, que hão sido o eterno martelar dos
autores brasileiros. Por este modo, esquecer-se-á de índios e de lusos para lembrarse da humanidade; não indagará se é nacional para melhor mostrar-se humana (...)
Procuram-se hoje as leis de uma sistematização exata de nossa vida pensante. Sabese agora que não somos um povo de alta cultura, não porque nos faltassem frases,
que nos sobram; mas por faltar-nos a ciência; não por falharem os trovadores, mas
porque não se encontram os artistas” (apud MARTINS, 1979, p 36)
Na "Filosofia no Brasil", de 1878, Romero afirma seguir Littré, acompanhando Comte
apenas em linhas gerais. Afirma também acompanhar o "transformismo de Darwin",
buscando a sua união com Littré. A leitura darwinista das raças no Brasil é certamente um dos
aspectos mais criticados no seu pensamento. Em "Folclore Brasileiro", por exemplo,
encontramos o seguinte excerto:
"Das três raças, que constituíram a atual população brasileira, a que um rastro
mais profundo deixou foi pro certo a branca, segue-se a negra e depois a indígena.
À medida, porém, que a ação direta das duas últimas tende a diminuir (...), a
influência européia tende a crescer, com a imigração e com a tendência de
prevalecer o mais forte e o mais hábil" (ROMERO, 1954, p 19)
Sílvio Romero claramente desenvolve a idéia de que a raça branca é a "mais forte", a
"mais hábil". O dilema aqui é modernizar uma nação mestiça. Embora exista uma aceitação
da realidade, Romero não esconde um certo pessimismo:
" a nossa tese, pois, é que a vitória definitiva na luta pela vida e pela civilização,
entre nós, pertencerá no futuro ao branco; mas que este, para esta mesma vitória,
atentas as agruras do clima, tem necessidade de aproveitar-se do que de útil as
outras duas raças lhe podem fornecer" (ROMERO, 1954, p 22)
Trata-se do período dos grandes monismos: Hegel, Marx, Spencer, Haeckel. Spencer é
autor extremamente popular nas últimas décadas do século XIX. Ideólogo do socialdarwinismo, Spencer usava o bordão “sobrevivência do mais apto” no contexto social. Assim,
gozava de apreço no mundo anglo-saxão e norte-americano, uma vez que naturalizava as
conquistas destes países (LEWONTIN, 1984, p 26). A evolução seria fruto deste movimento
competitivo. Pessoalmente, Darwin mostrou-se reservado na aplicação de sua teoria à
sociedade. Entretanto, variações de Hobbes, Malthus e Spencer se tornam muito populares
associadas ao darwinismo no século XIX e início do XX. Haeckel, por sua vez, elabora a
posteriormente denominada "teoria da recapitulação". De acordo com esta, "a ontogenia
recapitula a filogenia", ou seja, o desenvolvimento das estruturas morfológicas de um
embrião, por exemplo, seguiria os passos evolutivos da espécie.
À medida que se inclina para o evolucionismo, Romero irá se afastar do Positivismo.
São marcos deste período a "História da Literatura Brasileira" (1888), "Doutrina contra
doutrina" (1894), que representa a adesão a Spencer e "Ensaio de Filosofia do Direito" (1895).
De forma geral, podemos afirmar que a publicação do "Ensaio" significa período de
depuração do evolucionismo spenceriano, da elaboração de restrições a Haeckel e da
passagem das preocupações filosóficas para as sociológicas (MELLO E SOUZA, 1945, p
119)
No âmbito do Direito, permanecem as demais características da obra de Romero. Ele
procurou combater a metafísica e aproximou o jurídico de uma ordem natural materialista.
Há, portanto, um caminhar em direção ao monismo. Neste ponto Romero toma o darwinismo
biológico e o aplica à sociedade. Sem aderir ao determinismo, sua leitura de Darwin vem
através de Haeckel, a quem critica nesta fase.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
241
Romero apresenta a lei de heterocronia, de Haeckel, da forma como definida por
Spencer:
“da mesma forma que, no embrião de uma animal superior, vêem-se partes
importantes de diversos órgãos aparecerem fora da ordem primitiva, por
antecipação, por assim dizer, de igual modo, para com o corpo em geral, acontece
que os órgãos completos que, na série de fenômenos da gênese primitiva do tipo
(filogênese) aparecerem relativamente tarde, vêm relativamente cedo na evolução
do indivíduo (ontogênese). Esta antecipação, chamada pelo professor Haeckel
hetereocronia (...)” (ROMERO, 2001, p 86).
Trata-se, portanto, de fator importante na evolução de uma espécie. Os caracteres
adquiridos evolutivamente ficam registrados no espécime, podendo ser recapitulados. Os
novos organismos gerados após a modificação evolutiva, por exemplo, tendem a antecipar a
mutação. Esta tendência é a heterocronia. Há, portanto, relação entre a marca do indivíduo de
uma espécie e a lei de evolução em geral.
À época, muitos procuravam aplicar a heterocronia às sociedades. É neste ponto que
Romero vai se insurgir contra Haeckel e Spencer. Este último ensina que, “os organismos
sociais novos recapitulam e reproduzem as mesmas fases e metamorfoses dos organismos
sociais que os geram, como ainda que naqueles organismos novos se verifica a lei paralela da
repetição acelerada e antecipada” (ROMERO, 2001, p 87).
Os Estados Unidos seriam um exemplo desta teoria. No oeste ignoto e desabitado já
surgiriam estações de trem, estruturas comerciais e estatais ainda que em meio ao nada.
Assim, a nação mãe, a Inglaterra, aos poucos se veria reproduzida e de forma antecipada.
Neste ponto dos “Ensaios”, Romero faz ampla demonstração histórica da inveracidade desta
proposição. Cita exemplos de colônias cuja feição e destino não se assemelhava aos de suas
“genitoras”: Tiro e Cartago, gregos e Marselha, etc.
A ontogenia social de Greef também é criticada. De acordo com esta, uma sociedade, ao
entrar em contato com outra mais avançada, deveria reproduzir todas as etapas anteriores.
Mas, pergunta Romero ironicamente, "onde foi que já se deu essa maravilha?"(ROMERO,
2001, p 89)
Aqui já está delineada uma tendência do pensamento de Romero que já estava visível
nos "Princípios de Sociologia", de 1891. Afirma MELLO E SOUZA (1945, p 126) que a
partir daqui os autores naturalistas são deixados para trás e encontramos agora citações de
sociólogos: De Greef, Giddings, Tarde, Vaccaro, Gumplovicz. É por isso que se afirma tratar
do momento no qual Romero começa a passar da Filosofia para a Sociologia.
Ocorre também um abrandamento do determinismo naturalístico dos primeiros tempos.
A identidade entre ciências da natureza e do homem permanece. Mas, se o homem é cultural,
é também natural. Romero concebe as sociedades como um subconjunto do conjunto maior
do meio e da raça. O Direito, na forma como aparece no "Ensaio", é produto da cultura que,
como afirmado acima, é natural. Então não há mais o determinismo direto da natureza sobre o
fenômeno jurídico (ou outros). Existe uma mediação pelo social, fato inexistente nas
primeiras obras.
Ao tratar especificamente da evolução do Direito, Romero é spenceriano. Assim, a
História do Direito seria vista sob a perspectiva da ação humana evolutiva e teria passado por
fases:
1 - instinto naturalístico;
2- início da consciência moral a partir de soluções produzidas pela "superior
inteligência dos chefes";
242
DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO
3 - imitação dessas soluções;
4- formação dos costumes;
5- transformação dos costumes em leis escritas gerais;
6- "comunismo" antigo;
7 - solução deste comunismo em direção ao individualismo, processo que prossegue nas
democracias modernas.
A linha evolutiva do Direito, portanto, tem um aspecto naturalístico. Romero fala em
"instinto" e "inteligência", em outras partes menciona "família", sempre neste viés de cunho
biológico. Não é difícil inferir que boa parte do debate sobre sua obra vai recair no binômio
natureza X cultura.
Sobre o tema, Romero afirma que existem "elementos naturais e biológicos no Direito",
no sentido de Spencer, Ihering e Tobias Barreto, mas que "há os outrossim culturais" como
também querem Fröbel, Tobias Barreto e Ihering (ROMERO, 2001, p 165). Mais claramente,
afirma:
"Sendo o Direito uma disciplina prática, esta varia conforme os meios, as
circunstâncias históricas, políticas, econômicas, sociais. Por isso cada povo tem o
seu Direito peculiar, como tem a sua arte que lhe é própria, a sua política que lhe
assenta.(...)
Todas as criações de um povo, poesia, religião, literatura, mitos, lendas, línguas,
refletem-lhe o caráter. Seria um milagre histórico que só o Direito se furtasse a essa
lei geral" (ROMERO, 2001, p 165)
Novamente, percebemos aqui o abandono do determinismo naturalístico e a presença da
mediação social e cultural. Entretanto, não esqueçamos que, para Sílvio Romero, permanecem
as índoles das raças e o peso do meio.
5. Conclusão
É frequente, nos manuais jurídicos, a referência a uma História linear e progressiva do
Direito. Entretanto, a análise da historicidade em Savigny, Ihering ou Sílvio Romero revelam
que a própria narrativa do tempo oscilou de forma significativa, mesmo na tradição liberal.
A elaboração do "Absolutismo Jurídico", expressão cunhada por Paolo Grossi (2006, p
123-137) e acertadamente festejada, implica na construção do Direito simplesmente enquanto
lei, fato que mitiga o voluntarismo do governante e caracteriza as democracias liberais. O
registro que fica é este. Que a partir das revoluções liberais a razão humana, livre e soberana,
constrói um ordenamento jurídico racional destinado ao governo democrático.
Pretendemos mostrar aqui que essa História do Direito enquanto história da razão
humana progressiva em direção ao império da lei não foi a única elaboração ideológica do
mundo capitalista ocidental. Período de colonialismos, foi também o momento das teorias da
evolução e darwinismo social.
Os monismos evolucionistas, quando aplicados ao campo jurídico, inserem o Direito no
âmbito da ordem natural. E naturalizam a teoria e os institutos jurídicos não através da
História racional humana, mas usando o argumento do fundamento científico. E, claro, a
partir daí também elaborou um certo conceito de História calcado na evolução biológica do
Homem.
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Grupo de Trabalho: Ensino e Cultura Jurídica
246 JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS
JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS
INDÍGENAS
JOÃO MENDES JUNIOR Y LA CONSTRUCCIÓN DEL LOS DERECHOS TERRITORIALES
INDÍGENAS
Adriana Biller Aparicio*
Resumo: A primeira defesa dos povos indígenas da América foi desenvolvida com base no ideal jusnaturalista
cristão do século XVI, visando preservá-los da escravização deliberada. No final do século XIX, as políticas
indigenistas republicanas de inspiração positivista tomaram a cena pública viabilizando a territorialização do
Estado nacional brasileiro e, ainda, a expropriação das terras indígenas. Neste contexto, o jurista paulista João
Mendes Junior retoma a tradição jusnaturalista para elaborar a defesa dos direitos territoriais indígenas com base
nos “direitos originários”. Sua construção é consagrada até hoje como fundamento jurídico dos direitos
territoriais indígenas na doutrina brasileira. O presente trabalho objetiva contextualizar seu argumento indicando
que, em face da perspectiva trazida pelos “novos” direitos indígenas, faz-se necessária a busca de novos
fundamentos a partir da visão do pluralismo jurídico.
Palavras-chave: Jusnaturalismo. “Novos” direitos indígenas. Território Indígena.
Resumen: La primera defensa de los pueblos indígenas en América fue desarrollada con base en el ideal
jusnaturalista cristiano al largo del siglo XVI, teniendo por objetivo preservarlos de la esclavitud desenfrenada.
Al final del siglo XIX, las políticas indigenistas republicanas tenían inspiración positivista y entraran en escena
proporcionando la territorialización del Estado nacional brasileño, y aún, la expropiación de las tierras indígenas.
En este contexto, el jurista de São Paulo, João Mendes Junior remonta a la tradición jusnaturalista para elaborar
la defensa de los derechos territoriales indígenas con base en “derechos originarios”. Su construcción es
consagrada hasta hoy como fundamento jurídico de los derechos territoriales indígenas en la doctrina brasileña.
El presente trabajo tiene por objetivo contextualizar su argumento indicando que, ante la perspectiva de los
“nuevos” derechos indígenas, es necesaria la búsqueda de nuevos fundamentos desde la visión del pluralismo
jurídico.
Palabras-llaves: Jusnaturalismo. “Nuevos” derechos indígenas. Territorio Indígena.
*
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidade
Pablo de Olavide de Sevilla e Doutoranda pela mesma Instituição. (UPO). Professora do Curso de Direito da
Unidade Ensino Superior Dom Bosco, São Luís (MA). Email: [email protected].
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
247
Introdução
O presente artigo trata da contribuição do pensamento do jurista João Mendes Junior na
construção do fundamento jurídico dos direitos territoriais indígenas na legislação e doutrina
brasileira. Desde um ponto de vista da crítica na história do direito busca contextualizar seu
pensamento para verificar a necessidade da elaboração de novos fundamentos jurídicos e
políticos para os direitos territoriais indígenas na atualidade.
A defesa da tese dos direitos originários em Mendes Junior foi exposta em conferência
realizada na Sociedade de Etnografia e Civilização dos Índios em 1902, com posterior
publicação na obra Os indígenas do Brazil: seus direitos individuaes e políticos, sendo esta a
principal fonte aqui utilizada.
Os direitos dos povos indígenas foram pensados, desde a colonização, sob a ótica da
assimilação, quer seja na defesa de sua cristianização, quer seja na busca por "progresso",
lema expressado na bandeira positivista no começo da República. O paradigma da assimilação
presidiu toda a discussão sobre a política indígena dele não escapando a teoria desenvolvida
por Mendes Júnior no começo do século XX.
Com o aumento da espoliação do território indígena decorrente da aprovação da Lei de
Terras e do avanço dos estados sobre aquelas consideradas “devolutas”, Mendes Junior
construiu uma ponte teórica com o pensamento jusnaturalista para defender que os povos
indígenas teriam direitos originários. Este argumento “cristalizou-se” na doutrina e teve
consagração na Constituição Federal de 1988 não encontrando ainda hoje um substitutivo
teórico. Ocorre que a legislação indigenista atual segue novo paradigma do outrora existente,
tratando de reconhecer os povos indígenas em sua diferença, sendo a terra uma garantia para
realização de sua identidade cultural.
Neste sentido, o presente trabalho analisará, em primeiro plano, a discussão teórica dos
teólogos-juristas no século XVI, de fundamentação jusnaturalista que inspiraram o jurista
Mendes Junior em sua defesa indígena.
Será apresentado como, o pensamento
“protecionista” defendia os povos, mas ao mesmo tempo, legitimava sua dominação sob o
pretexto da religião.
Após esta análise, passa-se em segundo momento a contextualizar o pensamento
indigenista no quadro do evolucionismo social do final do século XIX e a cuidar das idéias de
Mendes Junior sobre o tratamento destinado aos povos indígenas dentre as corrrentes
existentes à época. Verificados os pressupostos de seu pensamento, o objeto de análise será
focado na sua argumentação teórica sobre os direitos originários dos povos indígenas.
Considerando o novo paradigma dos direitos territoriais indígenas firmados a partir da
participação destes povos na construção de seus direitos, será considerado, ao final, a
necessidade de novos argumentos com base numa visão pluralista do direito.
1 Direito indígenas no jusnaturalismo cristão
A construção teórica sobre os direitos territoriais dos povos indígenas tem início no
século XVI com o debate sobre a legitimidade da anexação da América pelos povos ibéricos.
Os teólogos-juristas da Escola Clássica do Direito Natural, ou Segunda Escolástica,
discutiram a condição jurídica e política dos indígenas, bem como as razões pela qual os
espanhóis poderiam ou não se assenhorar de suas terras. (WOLKMER, 2006, p.124).
Estes pensadores eram representantes do jusnaturalismo cristão, que partia de uma
pressuposta ordem sobrenatural para a solução de questões políticas e jurídicas, mas também
recebiam influências do humanismo, reconhecendo o homem como sujeito de sua história.
(RANGEL, 2005, p.51).
248 JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS
Francisco de Vitoria (1998, p.96), precursor do direito internacional moderno e maior
representante da escola salmantina, argumentava que os espanhóis não poderiam apropriar-se
das terras indígenas ou submetê-los à escravidão, pois o Imperador ou Papa não poderiam ser
considerados senhores de todo o universo:
El Papa no es señor civil ni temporal de todo el orbe, si entendemos el dominio y la
potestad civil en sentido propio.[..].Y si Cristo no tuvo el dominio temporal, como
antes hemos defendido como lo más probable, y también de acuerdo con la sentencia
de Santo Tomás, mucho menos lo tendrá el Papa, que es su vicario.
Ao responder se os índios deveriam ser considerados donos de suas terras por não serem
dotados de racionalidade, Francisco de Vitória afirma que eles detinham, ainda que a seu
modo, o uso da razão, posicionando-se, portanto, a favor dos direitos indígenas.
De acordo com George Thomas (1982, p.69) o jusnaturalismo cristão da Escola de
Salamanca ressoou em Portugal na segunda metade do século XVI por meio do intercâmbio
na vida cultural, uma vez que seus teólogos também lecionavam no Colégio de Artes em
Coimbra e na universidade jesuítica de Évora. Neste sentido, Portugal também conferia, de
forma esparsa e casuística, ao longo do período colonial, proteção legislativa aos povos
indígenas.
O pensamento jusnaturalista cristão aceitava a prédica do evangelho como justificativa
para a presença dos povos ibéricos na América. Francisco de Vitoria (1998, p.41-42)
considerava a catequização como um direito dos espanhóis, que poderiam lançar contra os
nativos a “guerra justa”:
Si los bárbaros, tanto los señores mismos, como el pueblo, impidieran a los
españoles anunciar libremente el Evangelio, éstos pueden predicar aun contra la
voluntad de aquellos, dando antes razón de ello para evitar el escándalo, y pueden
procurar la conversión de aquellas gentes, y si fuera necesario aceptar la guerra o
declararla por este motivo, hasta que den oportunidad y seguridades para predicar el
Evangelio.
O princípio da guerra justa abriu caminho para legitimação da escravização dos índios,
“debaixo da aprovação real e sob a benção da religião”, segundo ensina Beozzo. (1985, p.15).
A base da formação cultural colonial brasileira foi a catequese da Companhia de Jesus e o
humanismo escolástico, inspirando os contornos da sociedade: senhorial, católica e
conservadora. (WOLKMER, 2000, p.43).
Por sua vez, o regime de ocupação territorial no Brasil obedeceu ao sistema de
sesmarias que transpôs o imenso território para as mãos da Coroa portuguesa e para a
jurisdição da Ordem de Cristo. (LIMA,1990, p. 15).
Paralelamente à ocupação de terras mediante o regime de sesmarias, diversos autores
apontam que havia, de acordo com a tradição jusnaturalista, um certo reconhecimento de
direitos territoriais indígenas pela metrópole.
A Lei de 26 de julho de 1596 estabelecia que os religiosos deveriam convencer os índios
para juntar-se nos aldeamentos pelos "bons meios", declarando aos gentios que seriam livres e
senhores de sua fazenda como o são na serra (BEOZZO, 1983, p.100).
Manuela Carneiro da Cunha (1987, p. 58) aponta as Cartas Régias de 30 de julho de
1609 e 10 de setembro de 1611 como documentos fundamentais no que tange ao
reconhecimento das terras indígenas:
Hei por bem que os ditos gentios sejam senhores de suas fazendas nas povoações em
que morarem, como o são na serra, sem que lhe possam ser tomadas, nem sobre elas
se lhe possa fazer moléstia [...] e o Governador com o parecer dos ditos religiosos,
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
249
aos que vierem da serra, assinalará lugares para neles lavrarem e cultivarem [...]
como por suas doações são obrigados e das capitanias e lugares que lhe forem
ordenados não poderão ser mudados por outros contra sua vontade (THOMAS,
1982, p.227-228).
No entanto, é sobre o Alvará Régio de 1º de abril de 1680 que o jurista João Mendes
Junior, no início do século XX, construiria a tese do reconhecimento dos direitos dos povos
indígenas sobre suas terras. Por meio desta lei, a Coroa Portuguesa esclarecia que as
sesmarias concedidas não atingiriam os direitos originários dos povos indígenas. (CUNHA,
1987, p.59).
Se por um lado a tradição jusnaturalista desenvolvida pelos teólogos-juristas assegurava,
retoricamente, o direito dos povos indígenas, influenciando a legislação; por outro, a Coroa os
submetia ao regime colonial, com base na justificativa da evangelização.
2 Política indigenista e o contexto evolucionista
A defesa dos povos indígenas durante a colonização baseou-se no jusnaturalismo
cristão, que afirma os direitos indígenas, porém justificava sua presença na América visando a
catequização. No final do século XIX, a defesa indígena passou a ser feita sob a influência do
paradigma evolucionista que tinha por objetivo a integração dos índios aos padrões da cultura
ocidental.
O evolucionismo social, em pleno apogeu no período em questão, derivava da revolução
darwiana na biologia e entendia os fatos sociais com base numa visão de relação "simplescomplexo", no qual a humanidade passaria por estágios evolutivos progressivamente até
atingir o ápice civilizatório. Schwarcz (1995, p.57) pondera que "civilização" não era pensada
como um conceito específico de uma determinada sociedade, mas como um modelo universal
a ser atingido.
A partir de uma visão etnocêntrica, os povos indígenas representariam o estágio
primitivo da humanidade por não se constituírem em sociedades com órgãos estatais,
centralizados e por serem povos sem escrita. Segundo Colaço (1999, p.12) "a crença na
superioridade e na onipotência do modelo da sociedade cristã-ocidental não permitia aos
europeus perceber outra verdade além da sua”.
A influência das teorias racistas do final do século XIX conduziriam a diversas posições
sobre a viabilidade do progresso da nação, variando desde um exacerbado romantismo com
relação a composição mestiça, quanto ao pessimismo da teoria da degeneração da raça.
(SCHWARCZ, 1995).
Manuela Carneiro da Cunha (1998, p.136) demonstra que, em guerra aberta aos índios
considerados “bravios”, a autoimagem que o Brasil queria fazer de si mesmo era do elemento
indígena extinto na literatura e na pintura, afirma a autora: “[...] é o índio bom e,
convenientemente, morto”.
No plano fático, o início da República é marcado por inúmeros confrontos entre índios e
não-índios, principalmente no oeste paulista e em Santa Catarina, com a intensificação da
expansão da fronteira agrícola. (GAGLIARDI, 1989, p.63-68).
É neste contexto que surge o debate sobre a política a ser aplicada aos povos indígenas,
o que irá resultar na criação, na estrutura do Ministério da Agricultura, em 1911, do primeiro
órgão estatal centralizado para tratar a questão indígena o SPILTN —Serviço de Proteção ao
Índio e Localização de Trabalhadores nacionais, posteriormente conhecido por SPI.
Apesar da questão indígena não se separar completamente da questão de mão de obra,
no século XIX passa a ser, principalmente, uma questão de terras. (CUNHA, 1998, p.133). A
250 JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS
Lei 601 de 1850 transforma o regime de terras no Brasil, colocando-as dentro da realidade
capitalista, normatizando a situação de terras devolutas e posses, passando a exigir a
formalidade do registro como legitimidade de domínio. (GASSEN, 1994).
Diante da necessidade da expansão sobre o território indígena, cientistas como o diretor
do Museu Paulista Hermann von Ihering, em 1908, chegavam a propor o extermínio dos
índios Kaingang como meio mais adequado para lidar com esta questão.
Esta posição de defesa do aberto extermínio gerou diversos protestos, colocando em
destaque o pensamento positivista, cujos adeptos recorriam às experiências do Rondon e aos
ideais de José Bonifácio para defender uma atitude "fraterna" frente aos índios.
(GAGLIARDI, 1989, p.74).
Os seguidores do positivismo defendiam que a civilização dos índios deveria ser feita de
forma laica, pois "[..] a tarefa consistia em elevar o indígena do estado fetichista em que se
encontrava para o estado positivo, poupando-lhe a transição pelo estado teológico”.
(GAGLIARDI, 1989,p.176).
No contexto da polêmica sobre o melhor meio para a catequização dos índios, se
missionário ou leigo, a Sociedade de Etnografia e Civilização dos Índios, da qual era membro
João Mendes Junior, coloca-se ao lado da Igreja.
As conferências proferidas por Mendes Junior em defesa dos povos indígenas naquela
Instituição coincidem com o momento de construção do discurso indigenista oficial no país e,
sua publicação na obra Os indígenas do Brazil: seus direitos individuaes e políticos, com o
surgimento do SPI, o órgão estatal de proteção aos índios.
Na abertura desta obra, Mendes Junior (1912, p.3), declarando-se favorável ao regime
monárquico e fazendo ressalvas à doutrina do positivismo, tecia críticas favoráveis ao impulso
que Rodolpho Miranda, Ministro da Agricultura, dera à catequese e civilização dos indígenas:
“[..] isso foi o despertar da consciência do Governo na obrigação de proteger os primarios e
naturaes possuidores do territorio nacional”.
De fato, a "salvação científica" dos índios defendida por positivistas, que visavam a
ação exclusivamente estatal neste campo não agradava ao autor católico:
Entendo mesmo que os leigos podem tambem concorrer ao serviço da civilização,
certos, entretanto, de que, não só para a Religião, como para outras cousas que
exigem tenacidade de sacrificios, sem um lucro pessoal immediato, essas Ordens são
insubstituiveis, posto que não devam ser dispensadas de assistencia e
inspecção.(ALMEIDA JUNIOR, 1912, p.72)
Em meio ao universo de teorias racistas, o catolicismo de João Mendes (1912,p.51)
colocava-o contrário aos argumentos antropológicos da época, pelo qual a raça determinaria
as virtudes intelectuais e caracteres morais:
A capacidade mental e o vigor das raças não podem ser deduzidas desses methodos
fundados em hypotheses e observações não verificadas, cada uma dellas concluindo
arbitrariamente quer do peso, quer do volume, quer das formas dos craneos.
Com respaldo na doutrina tomista, o jurista de São Paulo, a exemplo dos teólogos
espanhóis da Segunda Escolástica, defendia a humanidade do índio:
[..] occorre que propriamente a potencia intellectual não se transmitte pela virtude
seminal, mas por uma causa externa [..] e a doutrina catholica, deduzida da geogonia
mosaica, confirma aquela observação do Philosopho, affirmando que a alma
intelleciva, em cada individuo é uma criação direta de Deus.(ALMEIDA JUNIOR,
1912,p.51).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
251
Ao mesmo tempo em que o autor buscava afastamento do cientificismo reinante da
época, não deixava de defender características ligadas a raça e, conforme a corrente romântica
da época, exaltava a riqueza da miscigenação:
A alma do descendente de indigena cruzado com europeu, é tão vigorosa, e às vezes
mais vigorosa do que a alma do puro europeu ou do puro indigena; e tem a vantagem
de unir a ambição do europeu à longanimidade do indigena, temperando uma pela
outra.(ALMEIDA JUNIOR, 1912, p.51.)
Para entender o ecletismo de seu pensamento, Wilson Martins (1977, p.496) em sua
Historia da inteligência brasileira engloba tanto a obra do positivista Pedro Lessa quanto de
João Mendes Junior nesta sua análise:
[..] em 1912, as tendências espirituais parecia inclinar-se, mesmo em matéria
filosófica, para um tipo de pensamento mais científico do que místico, por isso
mesmo claramente laicizante.
Martins (1977, p.461) trata deste período como sendo um momento de modernização
mental, no qual se celebra o "tipo nacional". Aponta que diversos autores levantavam-se a
favor da mestiçagem como solução para a questão racial, dentre eles o diretor do Museu
Nacional, o médico João Batista de Lacerda.
É de se destacar, ainda, a filiação de Mendes Junior entre os intelectuais que trabalham a
construção da identidade paulista buscando as remotas raízes indígenas do povo do planalto,
segundo Monteiro (2001,p.118):
Se, por um lado, os homens livres recém egressos do regime de administração
particular ou das aldeias apagavam suas raízes indígenas, as principais famílias
paulistas caminhavam num sentido inverso, buscando remotas raízes nativas –
sempre localizadas no distante século XVI, nas primeiras uniões luso-tupis –
consolidava a imagem dos paulistas enquanto povo diferenciado, constituído por
famílias antigas de longa genealogia, pelo menos longa o suficiente para diluir os
rastros de uma origem indígena.
É possível observar este compromisso de Mendes Junior (1912, p.73), em diversas
passagens de suas conferências, sempre pródiga em elogios as personalidades oriundas desta
localidade, atribuindo aos paulistas uma missão especial na catequese indígena: "São Paulo
foi o Apostolo das Gentes; o Estado de S.Paulo não pode deixar de ter a mesma missão
providencial em relação o gentio das nossas florestas".
Inserido seu pensamento no contexto global da discussão sobre a política indígena da
época, interessa agora percorrer em Mendes Junior a construção dos fundamentos dos direitos
territoriais com base no instituto do Indigenato.
3 A construção teórica de Mendes Junior
A obra Os indígenas do Brazil: seus direitos individuaes e políticos é composta por três
conferências proferidas por Mendes Junior junto à Sociedade de Etnografia e Civilização dos
Índios, em 1902.
Nas duas primeiras conferências o autor trata, em linhas gerais, do status jurídico dos
indígenas na Federação, fazendo uma comparação com as relações estabelecidas entre os
índios e o governo da América do Norte, pleiteando a sua autonomia, dentro de uma
concepção evolucionista.
A terceira conferência, principal foco do presente trabalho, diz tratar da situação dos
índios depois da independência, mas irá muito além do que sugere o autor e acaba
252 JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS
construindo, com base no estudo aprofundado da legislação colonial, a legitimação jurídica
dos direitos territoriais indígenas.
Marco Antonio Barbosa (2001, p.66-67) pondera que a obra Mendes Junior "[..] é ainda
hoje operacional no sentido de resguardar direitos indígenas", apontando decisões judiciais
contemporâneas que se fundamentam no instituto do indigenato, exposto por aquele jurista no
início do século XX.
A fonte de legitimidade dos direitos territoriais indígenas, previsto em nossa
Constituição, segundo José Afonso da Silva (1993, p.48), é o Indigenato:
[…] uma velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que deita suas raízes
já nos primeiros tempos da Colônia, quando o Alvará de 1 de abril de 1680,
confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, nas terras
outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e
naturais senhores delas.
É no contexto gerado a partir da Lei 601/1850 (Lei de Terras) no qual os denominados
"grileiros" pretendiam ocupar terras indígenas mediante a exibição de registro, que Mendes
Junior elabora sua construção teórica. (SILVA, 1993, p.48).
José Reinaldo Lima Lopes (2002, p.77) aponta ainda que as conferências de Mendes
Junior são proferidas no contexto da transferência das terras devolutas para o domínio dos
estados federados, no que estes passaram a incorporar as terras indígenas como sendo terras
devolutas por pressão dos grupos econômicos.
Em meio a conflituosa situação fundiária, Mendes Junior defende que os direitos
territoriais indígenas fundamentam-se no instituto do Indigenato, pelo qual a posse das terras
é um direito originário e congênito.
O conceito de "direito originário" ou "direito congênito" pode ser melhor apreendido em
sua obra O processo criminal, na qual assinala que na divisão de direitos do homem, seriam
desta natureza o direito de vida, liberdade, defesa, habitação e locomoção. Seriam adquiridos
os direitos de propriedade, família, obrigações.(ALMEIDA JUNIOR, 1959, p.10).
Na obra Direito judiciário brasileiro, Mendes Junior (1954, p.16) traça a diferença na
legitimação dos direitos congênitos e adquiridos:
Nos direitos congênitos, a natureza e a existência do homem já são os títulos dos
seus direitos à vida e ao movimento para conservação e aperfeiçoamento do seu ser;
nos direitos adquiridos, o título é um sempre um fato estabelecido pelo homem [..]
do qual resultam direitos e obrigações.
Mendes Junior tem o mérito de ter sido o primeiro a pensar os direitos territoriais dos
povos indígenas no contexto do sistema jurídico imposto pelo conquistador aos conquistados.
Dentro do sistema implementado por Portugal — o regime das sesmarias, defende o
autor que o Alvará de 1º de abril de 1680 já reservava os direitos originários dos índios. Em
1822, ficam proibidas as concessões de sesmarias e somente a Lei nº 601 de 1850 vem regular
as terras possuídas, devolutas e reservadas, sempre resguardando a posse indigenata.
(ALMEIDA JUNIOR, 1912, p.54-68).
O autor defende que a Lei nº 601 de 1850, que institui o regime de registro de terras
como título legítimo de aquisição não se aplica aos índios, que são possuidores a título
primário, congênito e pondera sobre o fato social criado pelo novo sistema:
Ora, os indios, principalmente os que moram em terras longinquas e até
desconhecidas, não podiam, como é natural, praticar esses actos para o processo de
legitimação e registro. Os sertanejos bons e prudentes não os hostilisavam; mas, os
outros que descobriam as suas arranchações e terras, foram creando posses e
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
253
formando registros, e, tanto quanto lhes foi preciso, foram invadindo e até
expellindo á força os aldeados. D`ahi muitas luctas e carnificinas.(ALMEIDA
JUNIOR,1912, p.56-57)
A solução jurídica para os conflitos de terra entre índios e posseiros para Mendes Junior
não se resolveria com base em registro de posse, mas em fatores como cultura, morada
habitual indígena, pois suas terras seriam direitos reconhecidos desde o Alvará de 1º de abril
de 1680, que as reservara do sistema de sesmarias, imposto pelo colonizador.
Seu pensamento é construído com base na legislação e também no instituto do
Indigenato, próprio da Conquista, pelo qual se resguardam os direitos dos povos originários,
assim esclarece:
Os proprios Romanos, que se constituiram por conquista e que davam tanta
importancia ao dominium ex jure quiritium, tiveram de reconhecer estes efeitos [..].
As leis portuguezas dos tempos coloniaes apprehendiam perfeitamente estas
distincções: dos indios aborigenes, organisados em hordas, póde-se formar um
aldeamento mas não uma colonia; os indios só podem ser constituidos em colonia,
quando não são aborigenes do lugar, isto é, quando são emigrados de uma zona para
serem immigrados em outra.(ALMEIDA JUNIOR, 1912,p.58).
Com base nesta definição conceitual, Mendes Junior entende que a exemplo do Alvará
de 1680, a Lei de terras reservara do sistema das terras devolutas as originárias dos índios
(Indigenato), que não se confundem com as devolutas destinadas para sua colonização
(aldeamento).
É assim que ao tratar das limitações do índio na sua relação de domínio em razão de sua
condição jurídica de órfão diferencia: "[..] seja, porém, como fôr, não podem ser applicadas ás
terras de posse indigenata as mesmas regras applicaveis ás terras reservadas parar colonisação
[..]". (ALMEIDA JUNIOR, 1912, p.60).
É importante observar que na construção da defesa dos direitos territoriais, sem perder a
perspectiva assimilacionista, o autor reconhece a autonomia indígena e a existência, nesta
cultura, de um sistema de direito. (ALMEIDA JUNIOR, 1912, p.28-31).
A partir deste importante trabalho, o instituto do Indigenato é tomado como fundamento
jurídico dos direitos territoriais indígenas até os dias atuais. A Constituição Federal de 1988,
em artigo 231, na esteira da construção de Mendes Junior, os reconhece como "direitos
originários”.
4 Terras indígenas e sua legitimação jurídica
A principal inovação da Constituição de 1988 não está no reconhecimento dos direitos
territoriais indígenas, vez que já eram reconhecidos em cartas anteriores, mas com relação a
definição do sejam as terras indígenas. De acordo com artigo 231, no parágrafo primeiro:
[..] são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis
à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
A Constituição Federal abraça uma concepção antropológica de terras indígenas, para
reconhecer além das necessidades de reprodução, também os aspectos culturais e simbólicos.
(SANTILLI, 1999, p.26).
José Afonso da Silva (1993, p.47) esclarece que na definição de terras indígenas deve ser
considerada a sua cosmovisão sobre seu território. Neste sentido é que se revela que o termo
“tradicional” está intimamente ligado ao modo de ocupação da terra indígena, não se referindo a
uma dimensão temporal, ou imemorial de ocupação.
254 JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS
Igualmente a Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o
Brasil é signatário, protegeu as terras indígenas de forma ampla, reconhecendo a importância
dos aspectos simbólicos e espirituais da territorialidade. Assim dispõe sobre o tema:
Artigo 13. 1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos
deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais
dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com
ambos, segundo os casos que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e,
particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.
2. A utilização do termo terras nos artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de
territórios, o que cobre a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados
ocupam ou se utilizam de alguma outra maneira.
A mudança de percepção sobre o que deva ser considerado terra indígena é uma
realidade que adveio do protagonismo dos povos indígenas na cena pública, reivindicando
seus direitos étnicos-culturais.
José Bengoa (2000) informa que o processo de organização indígena que começou na
década de 1980 alcançou quase todos os países da América Latina, havendo uma verdadeira
“reinvenção” das demandas, cujo componente identitário ganha centralidade.
Diversas constituições latino-americanas passaram, com a abertura democrática dos
anos 90, a reconhecer o caráter pluriétnico de seus povos, dentre elas: a Constituição
colombiana (1991), a Constituição mexicana, com as reformas de 1992, a Constituição
paraguaia (1992), a Constituição reformada da Bolívia de 1994 e a Constituição peruana
(1993). (SANTILLI, 2005, p.83).
Portanto, a discussão sobre os direitos territoriais indígenas deve ser pensada na
atualidade dentro da mudança do paradigma da assimilação dos povos indígenas para o
reconhecimento de seus direitos culturais. Neste sentido, a doutrina prefere apresentá-los no
quadro dos “novos” direitos. (COLAÇO, 2003, p.75-97).
Além da aproximação interdisciplinar com a antropologia – disciplina que cuida da
tradução cultural – é imprescindível o protagonismo dos povos indígenas na concretização de
seus direitos. Para tanto, a teoria jusnaturalista dos direitos originários deve ser substituída
por uma visão que reconheça centralidade dos povos indígenas na produção normativa.
Neste sentido, o pluralismo jurídico de base comunitário-participativa apresenta-se
como um novo horizonte cultural para o direito, vislumbrando um deslocamento dos modelos
teóricos centrados no Estado para a práxis cotidiana dos atores sociais. (WOLKMER, 2001).
Sem desconsiderar a importância da tese construída por Mendes Junior no começo do
século XX – o desenvolvimento do presente estudo demonstra o contrário – reconhece-se suas
limitações diante do novo paradigma e propugna-se, portanto, a necessidade do
desenvolvimento de estudos interdisciplinares – históricos, sociológicos e antropológicos –
visando uma nova fundamentação dos direitos territoriais indígenas, na qual a participação
destes povos é imprescindível.
Conclusão
No presente trabalho verificou-se que os direitos territoriais dos povos indígenas tem
seu fundamento jurídico embasado na construção teórica elaborada pelo jurista João Mendes
Junior no começo do século XX.
Em meio a expropriação de terras indígenas no começo do período republicano, que
tinha inspiração nos ideias positivistas de progresso, Mendes Junior posicionou-se favorável à
proteção destes povos, que deveriam ser civilizados pela catequese dos missionários.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
255
Afastando-se do posicionamento positivista, Mendes Junior buscava na doutrina católica
e no jusnaturalismo cristão fundamentos para reconhecer a racionalidade e autonomia dos
povos indígenas, bem como o direito “originário” sobre as terras ocupadas.
Ainda que instrumental na defesa judicial de direitos, a teoria do Indigenato foi
elaborada em meio ao ideal evolucionista das ciências e submetia o território indígena ao
quadro do desenvolvimento civilizatório da humanidade.
Os direitos territoriais indígenas previstos, portanto, desde a colonização até antes da
Constituição de 1988 buscavam a descaracterização dos povos indígenas, uma vez que eram
pensados dentro de um paradigma assimilacionista.
Verificou-se que na atualidade os direitos indígenas estão no campo dos “novos”
direitos pois apresentam uma dimensão de reconhecimento de direitos étnicos-culturais e
suas terras devem servir de suporte para a realização de sua identidade.
Assim, conclui-se pela inadaptação do fundamento jurídico de Mendes Junior na
atualidade, apontando-se a necessidade de um diálogo interdisciplinar, e principalmente, no
marco do pluralismo comunitário-participativo, trazer centralidade aos povos indígenas na
concretização de seus direitos.
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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
257
CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS
JURISTAS ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
Alexandre Veronese*
Resumo: O presente trabalho é derivado da pesquisa em andamento, realizado na Fundação Casa de Rui
Barbosa, sobre o processo de construção da codificação civil. Ele analisa as críticas endereçadas por Rui Barbosa
ao projeto original, bem como as respostas de Clóvis Beviláqua e de Carneiro Ribeiro. A conclusão é que houve
um debate jurídico subjacente e que a maior contribuição de Rui Barbosa ao processo foi determinar a
necessidade de revisões de estilo para a produção de textos legislativos.
Palavras-chave: História; Direito; Codificação; Código Civil; 1916; Cultura Jurídica; Comunidade jurídica
*
Professor Assistente de Direito Público da Faculdade de Direito da UFF e Pesquisador Associado da Fundação
Casa de Rui Barbosa. Mestre em Sociologia e Direito (UFF) e Doutor em Sociologia (IESP, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, UERJ).
258 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS
ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
1. Introdução1
Existem duas grandes tradições jurídicas especificamente no mundo ocidental: a
romano-germânica e a “Common Law”2. A última, derivada da cepa originária inglesa, é
marcada pela inovação institucional que foi a sua aclimatação nos Estados Unidos da
América. A tradição jurídica inglesa se amoldou para os usos e necessidades daquele país,
todavia ainda reiterando uma ponte de historicidade em relação aos costumes insulares.
Já a denominada tradição do direito romano-germânico reivindica origens bem mais
antigas, com o direito romano. É claro que essa relação passa uma reconstrução conceitual na
modernidade que lhe aduz feição completamente diversa. Nesse sentido, o direito romano,
como raiz do direito civil da nossa tradição é uma obra de completa reconstrução. Todavia, há
uma mitologia fundadora que é acalentada pelos juristas em suas obras e que subsiste nas
crenças dos juristas de nosso tempo.
O mais interessante sobre tal construção mitológica é apreendido a partir de uma
perspectiva externa, mesmo que intentada por juristas alienígenas. Nesse sentido, os autores
comparatistas de língua inglesa tratam o direito continental europeu como “Civil Law”, em
oposição à sua “Common Law”. É claro que eles são cientes da peculiaridade da reconstrução
do direito romano. Entretanto, ela não lhes aparenta tão evidente quanto nos discursos
internos do mundo continental.
Existe uma forte tradição de estudos históricos no seio do direito civil brasileiro. Essa
intencionada construção é baseada na tentativa de fixação da legitimidade histórica do direito
privado, enquanto construção racional secular. Nesse contexto, a necessidade de estruturar um
código surge como uma tentativa de estruturar um quadro normativo com referencial claro e
dotado de lógica intrínseca.
A evolução do direito privado brasileiro pode ser dividida em vários estágios. No
entanto, o primeiro estágio está certamente cingido à recepção do direito português pela
sociedade colonial e sua adaptação aos usos e costumes locais. A primeira grande transição
das instituições jurídicas brasileiras ocorre com a institucionalização do sistema judiciário,
apartado de Portugal. Essa obra é montada inicialmente com a vinda da família real
portuguesa ao Brasil. No entanto, somente se completa com o aumento da densidade
institucional que vai ocorrer ao longo do Segundo Império. Faltava capacidade de formar
quadros próprios pela ausência de faculdades de direito, por exemplo. Com o funcionamento
dos cursos jurídicos de São Paulo e de Olinda, começa a ser paulatinamente modificado esse
panorama3. É óbvio que os juristas dessa reconstrução jurídica nacional – no primeiro
momento – tiveram formação na antiga metrópole, em especial na Universidade de Coimbra.
Mas o exemplo de Rui Barbosa traz um exemplo da mudança de ares que é possibilitada pela
1
O presente artigo tem origem na pesquisa individual selecionada pela Fundação Casa de Rui Barbosa, que está
sendo realizada sob a orientação da Profa. Christiane Laidler. Agradeço aos comentários e apoio na sua
orientação, bem como às sugestões indicadas por Otavio Luiz Rodrigues Jr. (Universidade Federal Fluminense,
UFF) e Christian Lynch (UFF, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Uni-Rio, e Universidade
Gama Filho). Eventuais equívocos, todavia, restam tão somente sob minha responsabilidade.
2 O livro clássico sobre o tema: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo:
Martins Fontes, 2002. Esse autor, francês, figura como um dos fundadores do direito comparado atual. O italiano
Mario Guiseppe Losano também é outra referência, recentemente vertida ao português: LOSANO, Mario. Os
grandes sistemas jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Cf. também: MERRYMAN, John Henry e
PÉREZ-PERIDOMO, Rogelio. The civil law tradition: an introduction to the legal systems of Europe and
Latin America. 3 ed. Stanford, California: Stanford University Press, 2007.
3 O livro clássico sobre a história das instituições educacionais, na área de direito: VENANCIO FILHO, Alberto.
Das arcadas ao bacharelismo: cento e cinquenta anos de ensino jurídico no Brasil. São Paulo: Perspectiva,
1977.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
259
formação nacional. A sua referência acerca de instituições jurídicas de direito pública é
notadamente inglesa e norte-americana, por exemplo.
Os juristas brasileiros, a partir do momento da emancipação colonial, começam a
acalentar mais um projeto de afirmação da nacionalidade por meio do quadro jurídico: a
produção de um código civil brasileiro. Esse movimento vinha ocorrendo nas várias excolônias americanas. A Argentina também havia se engajado em projeto semelhante, assim
como os demais países do Cone Sul4.
No Brasil, a formação do quadro constitucional apareceu como o primeiro passo nessa
ordem de prioridades jurídicas, como seria razoável supor. Todavia, essa primeira construção
foi seguida pela necessidade de fixar instituições penais e comerciais. O grande projeto de
substituição das Ordenações aplicáveis às relações cíveis é paulatinamente posto em marcha
com a contratação de Teixeira de Freitas para o desenvolvimento do encargo.
2 A busca pela codificação civil no Brasil – período do debate e síntese
As polêmicas relacionadas à aprovação legislativa do Código Civil de 1916 podem ser
separadas em três períodos. O primeiro pode ser rotulado como uma fase de antecedentes. Ele
deve ser compreendido pelo amadurecimento intelectual e político do campo do direito, no
qual a idéia de uma codificação civil é acalentada. Certamente, este período de antecedentes é
marcado pelo erguimento de uma ideologia de Código Civil, tal como ela ocorria no restante
mundo ocidental: definidor do espírito nacional e justificativa da autonomia do país em
relação ao seu passado colonial. Certo é que tal momento foi marcado por diversas tentativas
de formulação de legislações projetadas. Todavia, o momento histórico não foi frutífero
sequer em formular um projeto coeso e completo do ponto de vista jurídico e, quanto mais,
justificável para servir de base para um Código aprovado pelo parlamento.
O segundo período corresponde ao momento de formulação e posterior apresentação do
projeto de Clóvis Beviláqua. Ele corresponde ao mandato presidencial de Campos Sales
(1898-1902). Esse momento histórico é conhecido pela polêmica que envolveu Clóvis
Beviláqua, Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro. O centro da pesquisa está focado nesse
período.
Por fim, o terceiro período corresponde à tramitação legislativa do projeto de Clóvis
Beviláqua até a sua aprovação pelo parlamento e sanção pelo Presidente Venceslau Brás, em
1916. O quadro abaixo sistematiza os três períodos enfocados, com dados sobre os projetos
intermediários de Código Civil.
É relevante indicar uma síntese da pesquisa realizada.
Foi realizada a análise histórica dos antecedentes da codificação empreendida por
Clóvis Beviláqua. É bastante evidente que o projeto cuja tramitação foi até o fim, acabou por
guardar inspiração nas tentativas anteriores. Foi dada especial atenção à formatação do marco
teórico relacionado com a História dos Conceitos. Os trabalhos de Reinhard Koselleck5 estão
na base dessa delimitação. A partir da demarcação, notou-se que seria imprescindível acessar
fontes primárias para a justaposição de um acervo teórico. Não havia sentido utilizar uma
teoria relacionada com a História e com a Ciência Política sem que a metodologia de pesquisa
– especialmente quanto à coleta de dados – não fosse utilizada. Foram coletadas informações
4 Nesse sentido, cf. BRITO, Alejandro Guzmán. La codificación civil en iberoamerica: siglos XIX y XX.
Santiago, Chile: Editorial Jurídica de Chile, 2000.
5 Por mais que a metodologia não seja um tópico a ser descrito nesse momento, vale indicar que o acesso ao
problema da definição conceitual foi empreendido por dois trabalhos: JASMIN, JASMIN, Marcelo G. História
dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São
Paulo, v. 20, n. 57, fev. 2005. p. 27-38; KOSELLECK, Reinhart.
260 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS
ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
específicas sobre a tramitação do projeto objetado por Rui Barbosa, bem como acessada toda
a amplitude do debate específico, com foco no Parecer de Rui Barbosa, na Resposta de
Carneiro Ribeiro, na Réplica e na Tréplica. Vale consignar que o Parecer e a Réplica estão
publicados no conjunto das obras completas. Todavia, a Resposta às críticas e a tréplica
configuram documentos de difícil acesso. Ainda, foram acessados os volumes publicados pela
Imprensa Nacional no governo de Venceslau Brás quando da sanção presidencial da Lei nº
3.071/16 (Código Civil). Outra obra lida e consultada foi o livro “Em Defesa do Código
Civil”, de Clóvis Beviláqua, publicado em 1902. Um trecho deste livro é dedicado a criticar o
Parecer do Senado, construído por Rui Barbosa.
Cronologia da Codificação do Direito Civil no Brasil (1840-1916).
Antecedentes
(1840 – 1901)
Projeto de Código Civil – Francisco
Inácio de Carvalho Moreira (Barão de
Penedo)6.
Arrazoado apresentado em 1840, quando
dos debates para formulação do Código
Comercial (1850).
Consolidação das Leis Civis – Augusto
Teixeira de Freitas (1858).
Sistematização preliminar dos institutos
jurídicos vigentes no Brasil, recebidos
pelas Ordenações. Teve relevante uso
doutrinário no Império.
Esboço do Código Civil – Teixeira de
Freitas
Segunda proposta. A primeira foi
abandonada pelo próprio autor, já que ele
buscava a unificação do Direito
Comercial com o Direito Civil num único
Código.
Arrazoado de Código Civil – Conselheiro
José Tomás Nabuco de Araújo.
Tentativa de aproveitamento dos esforços
anteriores. Infrutífera pelo falecimento do
autor. Apontamentos publicados em 1882
pela Tipografia Nacional, juntamente com
o trabalho posterior.
Projeto de Código Civil – Senador
Joaquim Felício dos Santos (1882-1891).
Material inicial publicado em 1882.
Objeto de debates até a formulação de um
projeto publicado em 1886 e, depois, em
1891.
Projeto de Código Civil – Antônio
Coelho Rodrigues7.
O trabalho frutificou da revisão do
Projeto anterior. Este projeto novamente
buscava a unificação do Código
Comercial com o projetado Código Civil.
Projeto
de Projeto de Código Civil – Clóvis Após a rejeição dos projetos anteriores, o
trabalho de codificação foi entregue a
Código
e Beviláqua (1901)
Clóvis Beviláqua. O seu projeto foi
debate com
celeremente preparado, tendo sido objeto
Rui Barbosa
(1901-1902)
de algumas críticas. Todavia, a maior
crítica foi realizada por Rui Barbosa e
tinha o seu centro dirigido à forma e não
ao conteúdo do projeto.
6 BENTIVOGLIO, Julio. Elaboração e aprovação do Código Comercial Brasileiro de 1850: debates
parlamentares e conjuntura econômica (1840-1850), mimeo.
7 CHRYSIPPO DE AGUIAR, Antonio. Direito Civil: Coelho Rodrigues e a ordem de silêncio. Teresina:
Halley, 2006.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
261
Cronologia da Codificação do Direito Civil no Brasil (1840-1916)
Tramitação
legislativa
final
(1902-1916)
Código Civil (1916)
A crítica de Rui Barbosa foi bem
sucedida, pois proporcionou a diminuição
no ritmo da tramitação e possibilitou que
fossem submetidas muitas emendas no
Senado; quadro diverso que ocorreu na
Câmara, onde o projeto foi aprovado
rapidamente.
Uma hipótese central da pesquisa está em vias de ser justificada por meio da análise da
tramitação do projeto de Código Civil no Senado. Com a ruidosa oposição de Rui Barbosa, o
projeto original sofreu uma grande quantidade de emendas. Um dos motivos da forte crítica
de Rui Barbosa estava centrado na velocidade que o governo buscava imprimir ao processo
legislativo. Indicava o senador que seria um texto legal pouco debatido e, portanto, sujeito a
impor maiores dificuldades na vida prática do direito brasileiro. Como mencionado no projeto
original, parte da doutrina do direito civil abarca uma tese pouco validada por dados, que
considera a oposição de Rui Barbosa estar precipuamente centrada em considerações de
ordem pessoal. Na medida em que os dados vão sendo desnudados, nota-se que a ação política
de Rui Barbosa surtiu efeitos desejados, já que obrigou a realização de um debate mais
aprofundado sobre o projeto original, ao invés de permitir um fluxo célere e pouco refletido.
A movimentação de críticas pode ser acessada por uma bibliografia, sintetizada no quadro
abaixo.
3 Uma nota sobre a tentativa preliminar de Teixeira de Freitas e de
Nabuco de Araújo.
A história dos trabalhos de Teixeira de Freitas é bem documentada pela historiografia
nacional8. Vale indicar que as marchas e contramarchas daquele trabalho repercutiram muito
no imaginário dos juristas brasileiros, onde a figura dele é reverenciada como visionária. O
trabalho empreendido por ele pode ser considerado, portanto, um sucesso conceitual –
abstrato e ideal – porquanto tenha sido um fracasso prático. A contratação de Teixeira de
Freitas foi empreendida e garantida pela notável figura de Nabuco de Araújo, durante o
Segundo Império. Vale rever as informações escritas pelo seu filho sobre o projeto:
O nome de Nabuco está ligado à primeira tentativa de codificação entre nós
por nós dois títulos indisputáveis: o primeiro, porque foi ele quem contratou a
codificação de nossas leis sob a forma da Consolidação, 1855, que até hoje
nos serve de código civil, e quem, depois, 1859, primeiro contratou o Código;
o segundo, porque foi ele quem suscitou e em todo o tempo sustentou o seu
grande êmulo, Teixeira de Freitas, quem o escolheu para uma e outra
empresa, quem redigiu o parecer da comissão especial, aprovando a
Consolidação, e a consulta do Conselho de Estado para que se permitisse ao
ilustre jurisconsulto realizar o seu novo plano conforme entendesse [...] 9
8 As referências virão nas próximas notas.
9 Nesse trecho, segue-se, como indicado a narrativa de NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império, 5 ed. v.
2. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 1051 e seg. Cf. também: GOMES, Orlando. Memória justificativa do
anteprojeto de Reforma do Código Civil. In: Códigos Civis do Brasil: do Império à República. Brasília:
Senado Federal, 2002. (CD-ROM). Além disso, o mesmo autor citado produziu o texto referencial sobre o tema:
GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
262 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS
ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
Na narrativa da vida de Nabuco de Araújo é descrito o deslinde do trabalho de Teixeira
de Freitas10. Após a entrega do esboço, o autor começa a observar o trabalho em curso com
outra avaliação. Em 1867, ou seja, após oito anos de decurso do segundo contrato, ele
demonstra seu intento com missiva ao Conselho de Estado. Ao invés de pretender a existência
de um código civil para viger em paralelo ao já aprovado Código Comercial de 1850, ele
postula que deve ser formada uma codificação privada única, denominada de “Código Geral”.
Ao passo em que a postulação de alteração conceitual do projeto de Teixeira de Freitas é
modificada, torna-se insustentável sua situação. O que havia sido encomendado como um
trabalho em duas fases tornou-se o inatingível objetivo de construção de uma codificação que
abarcasse todo o direito privado brasileiro. É claro que os objetivos de Teixeira de Freitas não
puderam ser alcançados.
Após a consulta de Teixeira de Freitas sobre a possibilidade de mudança nos planos
iniciais, são iniciadas várias discussões no governo sobre a sua viabilidade. De acordo com a
narrativa do filho de Nabuco de Araújo, o seu pai teria efetivado a defesa de Teixeira de
Freitas, por conta do seu parecer na Seção de Justiça do Conselho de Estado. Na continuidade
da narração, ele indica que Duarte de Azevedo deu voz ao pensamento de muitos outros, de
dentro do governo, liquidando o pleito de Teixeira de Freitas, passando o projeto ao encargo
do próprio Nabuco de Araújo.
Existe dúvida historiográfica sobre essa afirmação exatamente pelo fato de que o projeto
foi atribuído ao conselheiro. Vale indicar que essa dúvida talvez seja mais doutrinária do que
historiográfica, propriamente. Uma parcela dos autores de Direito Privado brasileiro sempre
defenderam que o modelo italiano de um Código Privado seria melhor do que a produção
legislativa do Direito Privado em dualidade. Vale indicar que o Código Civil de 2002 esposou
essa tese, ainda que de forma mitigada, já que o direito privado brasileiro há muito já estava
esfacelado numa enorme quantidade de leis esparsas e especiais.
Volte-se ao caso da primeira tentativa de codificação. Em conseqüência do problema
relacionado com Teixeira de Freitas, o encargo de finalização dos esforços em prol do código
civil recaiu sobre Nabuco de Araújo, acrescido de um prazo exíguo de cinco anos. Ele se
debruça sobre o trabalho e, desde os primeiros momentos, certifica ao Ministério que terá
graves dificuldades para o sucesso porque a tarefa era imensa. Note-se que ele já se
encontrava debilitado pela moléstia que o vitimará. A impossibilidade de consecução da obra
é descrita como um naufrágio pela narrativa de seu filho.
A justificativa encontrada para ambos seria que tanto Teixeira de Freitas, quanto
Nabuco de Araújo, não conseguiria realizar o intento porque essa seria uma tarefa que deveria
ter sido atribuída a um conjunto de pessoas, dirigidas por uma outra. A metáfora aludida pelo
filho é que o projeto do código civil deveria ser entendido como o erguer de uma catedral, que
mobiliza aquele que planeja e dirige os que a produzem em sua estrutura e, também, com
atenção aos detalhes. Ele traça, ao fim, um interessante paralelo sobre a conceituação
substantiva interna dos dois projetos (de Teixeira de Freitas e Nabuco de Araújo):
Que código teria entretanto feito Nabuco? Muitas vezes me pergunto,
folheando as suas notas, indecifráveis, por não saber se a idéia era para ser
apropriada, repelida ou vertida em outra. O que se pode dizer é que teria sido
um código mais diverso do de Teixeira de Freitas, porque as suas faculdades
predominantes não eram as mesmas. Nabuco era um político, um estadista,
10 Outra obra possui descrição sobre o caso: MENEZES, Raimundo; UBALDINO DE AZEVEDO, Manoel.
Clóvis Beviláqua: jurista filósofo. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1960. Em especial, a
quarta parte, p. 219 e seg.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
263
um administrador, um juiz, ao mesmo tempo que um jurisconsulto; Teixeira
de Freitas era somente um jurisconsulto [...]11
Avulta à imaginação. O paralelo construído pela análise do filho é que o hipotético
código civil de Teixeira de Freitas seria uma codificação acadêmica, plena de correção
científica e conceitual. O trabalho empreendido por Nabuco de Araújo geraria um produto
pleno de praticidade. Um código que não teria o mesmo rigor mas que, porém, seria melhor,
já que infenso aos rigorismos e minudências. Há a curiosa menção de que o trabalho
inconcluso dele seria realista, ao passo em que o esforço de Teixeira de Freitas, pleno de
abstração.
Essa dualidade imaginativa vai conservar-se durante muito tempo nos espíritos dos
juristas, não somente com atenção ao código civil. Mas com atenção ao trabalho jurídico de
uma forma geral. Basta pensar na demolidora crítica de Oliveira Viana à Constituição
Republicana de 189112, cotejada com o discurso de posse de Rui Barbosa no Instituto dos
Advogados Brasileiros, em 191413. Essa crise em relação ao direito pode ser sintetizada por
uma díade entre um idealismo institucional, por um lado, e uma postulação pragmática com a
realidade social e política, por outro.
Ao final do século XIX, o país caminhava para o final da monarquia com o advento da
República. A tarefa de produção de um código civil fica postergada para o novo momento
histórico e político nacional. Assim, o diagnóstico de Nabuco sobre o esforço de Teixeira de
Freitas, bem como de seu pai, é que tal obra não seria alcançável por um indivíduo somente.
O fato foi que tentativa de um produto de tal envergadura havia passado aos cuidados de dois
juristas, sem que houvesse êxito para a empreitada.
4 Uma nota sobre as tentativas posteriores: Coelho Rodrigues e Felício
dos Santos.
É certo que outras tentativas de menor alcance ocorreram.
As fontes mais ricas destes debates preliminares têm sido encontradas no Congresso
Nacional. Os Anais da Câmara dos Deputados, bem como os debates do Senado Federal têm
sido uma excepcional fonte primária que não foi mobilizada nos estudos históricos sobre a
codificação civil no Brasil. Um bom exemplo é o discurso de 10 de setembro de 1891,
proferido por Francisco Coelho Duarte Badaró, constituinte e deputado, que criticava o
projeto de Coelho Rodrigues:
O atual encarregado da confecção do código é um notável romanista, um
homem mais culto do que talentoso, muito digno sem dúvida, mas vítima de
certos preconceitos, como aquele de ter medo dos homens de ‘cabelo louro e
olhos azuis’ (risos), e que já se vai deixando arrastar por essa onda em que
navegam certos radicais. (...) O orador assegura à Câmara que o legislador
prudente deve estudar o estado cerebral da sociedade, como diz um moderno
escritor, porque sem o seu assentimento toda a reforma será vã. O Código
Civil vai sair um aleijão feito nas escarpadas montanhas da Suíça. (...) O
orador afirma à Câmara que pode repetir com Gladstone que este país não
11 NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império, 5 ed., v. 2. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 1051 e seg. O
trabalho produzido por Teixeira de Freitas é disponível: TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das
Leis Civis. Brasília: Senado Federal, 2003. TEIXEIRA DE FREITAS. Código Civil: Esboço. Brasília:
Ministério da Justiça, 1983.
12 VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. 2 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939 [1927].
13 BARBOSA, Rui. O supremo tribunal federal na constituição brasileira. In: __________. Pensamento e ação
de Rui Barbosa: seleção de textos pela Fundação Casa de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, 1999, p.
157 e seg.
264 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS
ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
quer boas leis; o que ele quer são suas próprias leis. (Apoiado. Muito bem.
Diversos deputados cumprimentam o orador ao descer da tribuna) 14.
O deputado comentava que a proposta de Coelho Rodrigues começava mal. Para
realizar a empreitada, o jurista do Piauí decidiu que precisava fazê-la na Europa, num retiro
intelectual, distante da política e do cotidiano do Brasil. Ele ainda defendia o redator do
projeto anterior, Joaquim Felício dos Santos, que teria produzido seu projeto em território
nacional, assim como teria ocorrido com Teixeira de Freitas e Nabuco de Araújo. Arrematava
que aquele projeto havia sido injustamente tratado pelo Senado, nomeando-o como algoz da
proposta.
Outro exemplo pode ser dado pela indicação feita pelo Deputado Carlos Ottoni, sobre a
concessão de uma pensão à viúva do Senador Joaquim Felício dos Santos, que redigiu um dos
projetos de código civil:
Tal era a reputação do Dr. Joaquim Felício, o filho ilustre de Diamantina, que
o preclaro Sr. Lafayette incumbiu de escrever o projeto de Código Civil,
prometendo-lhe remuneração condigna desse trabalho. [aparte do Deputado
Pereira Lira elogiando o trabalho]. Muito folgo desse juízo de V. Exa., que é
um dos mais competentes. Para a confecção do Código, ele fechou o
escritório – uma dos mais procuradores – e retirando-se à sua residência nas
Bicas, dedicou-se dia e noite à elaboração do seu projeto, obra magnífica e
para revisão do qual foi nomeada uma grande comissão de jurisconsultos,
composto de Ribas, Ferreira Vianna, Justino de Andrade e Coelho Rodrigues.
(...) Senhores, nós que cultivamos o estudo da ciência do direito e labutamos
na vida forense, temos acompanhado com máximo interesse todas as
tentativas para dotação de um código à nação brasileira. Vimos que Teixeira
de Freitas recebeu remuneração pelo seu trabalho, insuficiente embora em
face de seu alto valor, tendo-nos deixado a notável Consolidação das Leis e o
Esboço do Código Civil. Vimos que Nabuco – o Péricles brasileiro – recebeu
remuneração de 100:000$ pelo trabalhou que apresentou. Coelho Rodrigues
também notável jurisconsulto recebeu cerca de 100:000$ para a redação do
seu projeto. (...) O Sr. Clóvis Beviláqua também tem recebido remuneração.
O único que não recebeu um só real dos cofres públicos foi o Senhor Dr.
Joaquim Felício dos Santos que, no entanto, matou-se estudando o
formulando o Código e fazendo os seus brilhantes comentários, ficando a
viúva em circunstâncias de penúria15.
Em síntese, a leitura atenta dos debates da Câmara dos Deputados gera a possibilidade
empreender uma classificação de discursos que permite entrever, principalmente, as questões
políticas e institucionais, relacionadas ao processo legislativo. A perspectiva futura do projeto
é realizar a classificação dos debates havidos na Câmara dos Deputados e no Senado até a
entrada em vigência do Código Civil, em 1916.
5 A empreitada de Clóvis Beviláqua e a crítica de Rui Barbosa.
A necessidade de um código civil continua evidente no imaginário dos juristas. Mas é
apenas com a República que o sistema jurídico nacional pôde ser acrescido de uma nova
legislação com tal finalidade. O trabalho foi entregue para Clóvis Beviláqua por Epitácio
Pessoa, Ministro da Justiça do Presidente Campos Sales. Clóvis Beviláqua desenvolveu seu
produto de forma bastante célere, se tomado tal trabalho em contraste com aquele que foi bem
empreendido por Teixeira de Freitas. Em pouco tempo, o projeto de Clóvis Beviláqua é
14 BRASIL: Congresso Nacional. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 10 set. 1891. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1891, p. 202-203.
15 BRASIL: Congresso Nacional. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 31 jul. 1901. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1901, p. 325-326.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
265
apresentado às elites políticas e jurídicas, bem como ao público em geral16. O projeto
acabado se tornou um ponto de grande orgulho para o seu patrocinador político, como pode
ser visualizado na sua biografia17.
Para visualizar o debate em perspectiva, é relevante conferir a cronologia dos debates
acerca do Código Civil de 1916.
Cronologia do Debate do Código Civil de 1916 (1901-1906).
Fase inicial
dos debates
(1901 – 1902)
O Projeto Primitivo do Código Civil de Clóvis Beviláqua é
apresentado à Câmara dos Deputados em 1901. Após a
formação de uma Comissão Revisora, o mesmo recebe várias
emendas de alteração. A Comissão indica Ernesto Carneiro
Ribeiro para realizar a revisão do vernáculo e do estilo do
projeto. O Projeto Revisto é encaminhado, junto com uma
mensagem presidencial do Presidente Campos Sales. Nesta fase
inicial, diversas críticas são dirigidas ao projeto.
Após o término dos trabalhos na Câmara dos Deputados, o
Senador Rui Barbosa organiza uma Comissão Especial para
tratar da tramitação do mesmo no Sendo Federal. Ele produz um
longo parecer no qual critica fortemente o projeto e,
principalmente, certo açodamento em sua tramitação. Existem
críticas jurídicas. Todavia, o parecer ficou conhecido como uma
peça de crítica relacionada ao estilo e ao uso da língua
portuguesa.
Há movimentação no sentido de defender o Projeto Revisto das
críticas de Rui Barbosa, bem como do conjunto de outros
críticos. São encomendados pareceres de outros juristas, para
contraposição das críticas, dentre os quais se destaca o parecer
de Silvio Romero. No campo filológico, o revisor do português
da obra, Ernesto Carneiro Ribeiro produz uma peça na qual
defende das opções em relação à redação. O debate jurídico é
diminuído aos olhos da opinião pública, sendo referido
primordialmente ao estilo.
Ainda em 1902, Rui Barbosa produz um dos seus textos mais
demolidores, que é conhecido como “A Réplica”. Neste texto,
ele critica veementemente às opções de estilo e, em especial, a
resposta de Ernesto Carneiro Ribeiro. É possível considerar que
este texto possui o simbolismo de postergar a aprovação
legislativa do Código Civil por mais de dez anos.
16 BEVILÁQUA, Clóvis. Observações para esclarecimento do Código Civil brasileiro. In: Códigos Civis do
Brasil: do Império à República. Brasília: Senado Federal, 2002. (CD-ROM). Cf. também: BEVILÁQUA,
Clóvis. O problema da codificação do direito civil brasileiro. Recife: Papelaria Americana, 1896.
17 CAMPOS SALES, Manuel. Da propaganda à presidência. Brasília; Editora da UnB, 1983. (Coleção temas
brasileiros, v. 29). Cf. também: GUANABARA, Alcindo. A presidência Campos Sales. Brasília: Senado
Federal, 2002.
266 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS
ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
Cronologia do Debate do Código Civil de 1916 (1901-1906).
Fase final dos
debates
(1905 – 1906)
Tanto Ernesto Carneiro Ribeiro, quanto
Clóvis Beviláqua produzem respostas à
Réplica. Esses textos foram publicados
em momento posterior ao rugir do debate
(1906). No caso de Clóvis Beviláqua, o
livro se compõe de trabalhos coligidos ao
longo do período.
Existem vezes em que o silêncio é mais eloquente do que a sonoridade. É de se ressaltar
que o presidente Campos Sales sequer dedicou uma linha ao combate travado por Rui
Barbosa contra o projeto de código civil quando ele chegou ao Senado. Ele apenas termina o
capítulo dedicado ao código, parte de seu livro autobiográfico, com a menção de sua
felicidade em ver que o projeto seria aprovado em breve. O livro foi publicado em 1908. O
código só teve vigência em 1916.
É inolvidável que o maior jurista do início da República já havia sido afirmado pouco
antes. Rui Barbosa foi alçado a tal título não somente como advogado. Mas, também, como
tribuno e estadista. Os anos posteriores à apresentação do projeto de Clóvis Beviláqua são
marcados pelo embate fomentado pelas críticas de Rui. Uma parte da historiografia valida que
Rui teria ficado enciumado pelo projeto ter sido entregue aos cuidados de Clóvis Beviláqua,
motivo pelo qual teria produzido uma demolidora crítica que não teria fundamento jurídico:
Em 1902 veio a oportunidade para um notável reerguimento de Rui Barbosa.
Em abril chegou ao Senado, em regime de urgência, o projeto de Código
Civil já aprovado na Câmara. Rui era o relator da Comissão Especial do
Senado que deveria analisar o projeto. Ora, Rui tinha pelo menos duas razões
pessoais para se opor a ele. Primeiramente, a urgência era devida à vontade
de Campos Sales de ter o código aprovado ainda em sua gestão, que
terminaria em novembro. Em segundo lugar, o orgulho de Rui como jurista
ficara ferido quando fora preterido a Clóvis Beviláqua como o indicado pelo
governo para escrever o anteprojeto do código. Beviláqua, além de ter uma
perspectiva jurídica bem distinta de Rui – sendo fortemente influenciado pelo
pensamento alemão –, era mais jovem e menos famoso que ele18.
Tal ponto de vista é também afirmado por Augusto Magne, na introdução que produziu
ao Parecer do Rui Barbosa – publicado nas obras completas – sobre o Projeto do Código Civil
da Câmara dos Deputados:
Constitui um mistério para o historiador o fato de Rui, ao submeter a exame
rigoroso o Projeto de Código Civil, se ter preocupado antes com o aspecto até
certo ponto acessório da forma, de preferência à substância do conteúdo
jurídico, suscetível de emendas que poderiam alterar-lhe e até mesmo
remover de todo os dispositivos. Que ele não julgasse isenta de defeitos a
própria estruturação jurídica do Projeto, prova-o o Parecer jurídico que lhe
consagrou19.
Note-se que o segundo motivo aludido pela historiografia seria político. Já que Rui
Barbosa teria utilizado o ataque ao projeto de código civil para estorvar o governo Campos
18 GONÇALVES, João Felipe. Rui Barbosa: pondo as idéias no lugar. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 103 e
seg.
19 MAGNE, Augusto. Prefácio. In: BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, v. XXIX. (1902). Rio
de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949, t. 01, p. XIII.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
267
Sales, cuja oposição era-lhe ferrenha. Para esses autores, é possível ler as intenções de Rui
Barbosa de forma negativa, dando pouco crédito ao conteúdo de suas críticas:
Assim, Rui pôs os obstáculos que pôde ao projeto do novo código, propondolhe mais de mil emendas. Era uma espécie de oposição inusitada ao
presidente Campos Sales, que sofrera a oposição de Rui desde que arrogara a
seu governo a tarefa de fazer o código. As emendas se reduziram basicamente
a correções estilísticas e gramaticais, já que as atribuições de Rui o
impossibilitaram-no de propor mudanças profundas no espírito do projeto.
Trabalho de grande erudição e coalhado de citações, o parecer apresentado
por Rui Barbosa causou generalizada surpresa e admiração 20.
O próprio Rui Barbosa justifica que as críticas atribuídas à má redação seriam
impossíveis de polir pelos gramáticos e filólogos. Pondera que a apenas a visão do jurista
poderia identificar os problemas relacionados com a expressão dos conceitos jurídicos: “É da
redação, e crasso, o erro cometido. Mas quem havia de corrigi-lo? A gramaticologia? A
filologia? Não: a intuição técnica do jurista, que o professor de línguas não podia ter” 21. No
mesmo sentido:
Para bem redigir leis, de mais a mais, não basta gramaticar proficientemente.
A gramática não é a língua. O alinho gramatical não passa de condição
elementar nos exames de primeiras letras. Mas o escrever requer ainda outras
qualidades; e, se se trata de leis, naquele que lhes der forma se hão-de juntar
aos dotes do escritor os do jurista, rara vez aliados na mesma pessoa.22
De certo modo, o que Rui Barbosa estava a defender era que os conceitos jurídicos
requeriam uma expressão literária que fosse elegante, com vistas à clareza e à compreensão
com minoração das ambiguidades:
São as codificações monumentos destinados à longevidade secular; e só o
influxo de arte comunica durabilidade à escrita humana, só ele marmoriza o,
papel e transforma a pena em escopro. Necessário é, portanto, que, nessas
grandes formações jurídicas, a cristalização legislativa apresenta a
simplicidade, a limpidez e a transparência das mais puras formas da
linguagem, das expressões mais clássicas do pensamento. Dir-se-á que ponho
demasiado longe, alto em demasia, a meta, que a sublimo a um ideal
praticamente irrealizável. Mas um não exijo que igualemos essa perfeição
custosa e rara. Basta que, ao menos, dela nos acerquemos, não a podendo
alcançar: que a lei não seja imprecisa, obscura, manca, disforme, solecista.
Porque, se não tem vernaculidade, clareza, concisão, energia, não se entende,
não se impõe, não impera: falta às regras da sua inteligência, do seu decoro,
de sua majestade23.
Outro ponto importante, no qual se justificava Rui Barbosa, era a necessidade de incluir
um debate sobre estilo em relação à produção legislativa:
Mercê deste precedente descerrou-se a porta aferrolhada, mostrou-se que as
questões de elegância e ouvido literário não são indignas do parlamento, nem
subalternas ao feito de um código civil, e deu-se a ver quanto neste sentido
não teria feito aquela assembleia, se lhe deixassem lazer à competência e ao
gosto. No trabalho, a que a este respeito me dei, pois, outra coisa não se faz
que trilhar o caminho pela Câmara solenemente aberto e implicitamente
recomendado. Seria fácil aduzir outros documentos de com a própria
comissão não reputava intangível a revisão extraparlamentar, que
20 Idem. Vale indicar que o parecer está publicado na coleção de obras completas. Cf. BARBOSA, Rui. Obras
Completas de Rui Barbosa, v. XXIX. (1902). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949, t. 01-05.
21 BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, v. XXIX. (1902). Rio de Janeiro: Ministério da
Educação e Saúde, 1949, t. 01, p. 12.
22 Idem, p. 4.
23 Idem, p. 3-4.
268 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS
ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
encomendara, e de como a Câmara, se lhe deixaram folga, teria mundificado
o seu projeto de muitas das nódoas, que lhe desfeiam a linguagem. (...)
Infelizmente a poucos casos desse gênero se limitou a energia depuradora. O
projeto saiu da última prova, na assembleia, quase intacto nos seus defeitos
de textura.
Desde o Parecer, a crítica dele sempre se apoiou no fato de que teria havido insurgência
já na Câmara dos Deputados, na forma de emendas; porém, que a satisfação plena da
necessidade em realizar retificações somente poderia ser frutífera, com um prazo um pouco
mais dilatado. De fato, a crítica substantiva de Rui Barbosa é dirigida ao produto – projeto
revisto; mas o problema central era o açodamento:
A mesma Câmara, de mais a mais, nos acaba de ensinar, pelo exemplo, o zelo
nas miudezas do apuro literário e da eufonia. Notória é a economia de tempo
com que procedeu aquela assembleia na discussão do projeto. Delegou [não
lho censuro] à sua comissão especial poderes arbitrais sobre as emendas
formuladas. Destas abraçou a comissão apenas cinquenta e oito, recusando
cento e quarenta e três. A Câmara subscreveu-lhe, sem uma só discrepância, a
sumária sentença. Pois bem: das emendas que tiveram prestígio bastante, para
sobrenadar ao dilúvio daquela severidade, impondo-se à comissão e à
Câmara, uma é a que suprimiu ao art. 763 [hoje 762] a contração nele, outra a
que do art. 372 [agora 371] riscou o adjetivo uma, que da palavra mulher não
toava bem aos nobres deputados. Ambos esses levíssimos senões tinham
escapado à revisão extraparlamentar, destinada a por termo à questão
literária, fechando-lhe a porta com os selos de uma grande autoridade. A
minha própria revisão, mais paciente, não dera pelo primeiro. Mas, graças à
iniciativa de um membro daquela casa, a comissão dos vinte e um e a Câmara
fizeram decotar ao projeto, mediante duas emendas, as quatro sílabas
malsoantes.
Por fim, Rui Barbosa criticou com ênfase a questão da pressa na tramitação. É fácil
entender que ele foi vitorioso no seu ponto de vista, já que a tramitação do código civil foi
colocada em marcha bem mais lenta, ao atingir o Senado Federal.
O parecer ofertado por Rui Barbosa foi contraditado por um texto produzido pelo
revisor de português do trabalho apresentado por Clóvis Beviláqua. O dado mais curioso do
embate que se seguir foi que a crítica gramatical e filológica ao Parecer foi produzida por
aquele que havia sido, também, seu professor no colegial. Rui Barbosa produziu uma dura
Réplica, de cunho fortemente filológico, que se tornou uma de suas obras-primas24. Vale
indicar que a revisão do debate, com uma análise detida do anteprojeto, do parecer e da
réplica, faz ser esse tema muito frutífero para um estudo no campo da história das ideias.
Em princípio, pode-se crer que a leitura sobre a crítica de Rui Barbosa possui alguns
problemas, se cotejada com a teoria do direito, assim como com a história das ideias. Parece,
por tal leitura superficial, que a falta de resignação de Rui Barbosa com o anteprojeto de
Clóvis Beviláqua era somente fundado em elementos pessoais. Pode até ser que tais motivos
existam, apesar de que esta seria certamente uma motivação trânsfuga. Inegável que a crítica
foi dura. Afinal de contas, Clóvis Beviláqua enunciou a seguinte opinião sobre a crítica de Rui
Barbosa, lançada contra o seu projeto:
Avara na resposta aos pontos litigiosos; e pródiga em considerações estranhas
ao assunto em debate. Tal se mostra a Réplica, ao menos na parte que mais de
perto me toca. E não tanto por nos ter dado um farto volume de filologia,
24 Toda a continuidade do debate – assim como a Réplica – pode ser analisada a partir da Coleção de Obras
Completas que possui acesso na Internet: http://www.docvirt.no-ip.com/ObrasRui/STF_Biblioteca.htm. Outra
ref. acessível: BARBOSA, Rui. Réplica às defesas da redação do projeto de código civil brasileiro, na
câmara dos deputados – 1904. Rio de Janeiro: Conselho Seccional da OAB/RJ e Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1980. (reedição)
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
269
após outro pouco menos volumoso, com inesperado exórdio de um debate
jurídico, e sim principalmente por achar sempre meios de trazer para o pleito
o que melhor seria que permanecesse fora dele25.
Todavia, o mais grave foi que a imprensa anuiu e amplificou críticas acerca da
impropriedade no uso da língua pátria. Nesse tocante, a crítica de Rui Barbosa foi realmente
muito poderosa e fez Clóvis Beviláqua considerá-la, portanto, bastante injusta:
Entre os defeitos que me tornam impróprio para realizar a assoberbante
empresa de redigir um Projeto de Código Civil, salientava a Imprensa, como
prefacial a ignorância da língua. “Falta-lhe um requisito primário, essencial,
soberano, para tais obras: a ciência da sua língua, a casta correção do
escrever”. Eis aí: para elaborar um código civil, o saber jurídico é requisito
secundário e subordinado; o essencial, o indispensável, o soberano, a
qualidade primária é “a casta correção do escrever”. Sobre essa idéia original
tem sido construída toda a crítica ao Projeto atual. O Parecer e a Réplica são
desdobramentos lógicos desse pensamento primordial. E somente por uma
inconseqüência, como há muitas na Réplica, acha censurável o egrégio
senador Rui Barbosa que a comissão da Câmara tenha pedido ao Dr. Ernesto
Carneiro, profundo conhecedor da língua e elegante escritor, o auxílio valioso
da sua competência. Se para codificar é bastante possuir a casta correção do
escrever, porque exigir conhecimentos jurídicos de quem fora chamado
exclusivamente para dizer sobre a linguagem? O pregão da minha
incompetência tem sido martelado sobre esta base. "Bem se vê que vive fora
do idioma em que se exprime", diz a Réplica a chasquear. E a cada passo a
obsessão se revela, lampejando às vezes numa frase rápida, espraiando-se,
outras vezes, em exclamações emocionantes, transpondo mesmo, em certo
momento, os limites do que me parece o terreno próprio de discussões como
esta26.
O mesmo estupor pode ser depreendido da Tréplica, resposta de Ernesto Carneiro
Ribeiro à Réplica de Rui Barbosa. Logo, nas considerações iniciais, o autor rebate a crítica
que foi dirigida ao projeto, nos artigos 1011, 1017 e 1534, sobre o instituto da compensação
de créditos e débitos. O gramático coteja a redação dos seus três artigos com a reformulação
realizada por Rui Barbosa para concluir que não houve grandes modificações; vai além e
considera que as alterações não são substanciais e demonstram a injustiça da crítica:
Se, pois, nos três artigos do Projeto, indicados pelo ilustre e sábio
jurisconsulto, divisa ele ‘errado quináo de linguagem’, havendo aos demais,
como assevera, uma ‘erronia jurídica’, que vicia o texto do primeiro, porque,
emendando os mesmos artigos, coservou em todos eles as locuções, de que
nos vem agora increspar. Como pactuar assim com a ‘erronia jurídica’, que
estigmatiza e repele? Não é muito que nós, de todo o ponto leigos na ciência
do direito, cometamos, na redação de um trecho, uma ‘erronia jurídica’; mas
subscrever o Dr. Rui Barbosa, com o elevado prestígio de seu nome, a esse
‘erronia jurídica’, abrir-lhe praça e sancioná-la com a sua alta autoridade de
jurista, coisa é que custa a conceber. Entretanto é esta a verdade. Leiam as
emendas do Dr. Rui Barbosa, feitas ao Projeto depois da revisão, e fácil será
de ver que o eminente censor, nos artigos que ora argüi de ‘errado quináo de
linguagem’, sendo até, ao seu aviso, tocado um deles de ‘erronia jurídica’,
conservou exatamente, no que respeita as locuções que refuta e repele agora
nas generalidades da Réplica, a mesma redação que encontrou, quando lhe
chegou às mãos o Projeto27.
25 BEVILÁQUA, Clóvis. Em defeza do Projecto de Codigo Civil Brazileiro. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves, 1906, p. 467 e seg. Adaptei o português do texto ao coloquial contemporâneo.
26 Idem, p. 494 e seg.
27 CARNEIRO RIBEIRO, Ernesto. Tréplica: a redação do projeto do Código civil e a réplica do Dr. Rui
Barbosa. 3 ed. Salvador: Livraria Progresso, 1951, p. 25.
270 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS
ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
No artigo 1011, Rui Barbosa trocou o vocábulo “exigíveis” pela palavra “vencidas”. É
evidente que corrigiu um erro jurídico. Da mesma forma, indicou que a desistência se refere à
ação e não ao pedido. Outro erro. Ele modificou, também, o artigo 1534 para incluir a
remissão direta aos artigos relacionados com o instituto, ao invés de manter uma menção
genérica (artigos antecedentes). Vale visualizar o cotejo e noto que mantive o português da
época no trecho28:
Artigos
Projeto (Ernesto Carneiro Ribeiro) Réplica (Rui Barbosa)
1011
A compensação effeitua-se entre A compensação effectua-se entre
dividas liquidas, exigiveis e de coisas dividas liquidas, vencidas e de coisas
fungiveis.
fungiveis.
1017
Não pode realizar-se a compensação, Não pode realizar-se a compensação,
havendo renuncia previa de um dos havendo renuncia previa de um dos
devedores.
devedores.
1534
Não se applicarão as penas dos
artigos antecedentes, sempre que o
autor desistir do pedido antes da
contestação da lide.
Não se applicarão as penas dos
artigos 1532 e 1533, quando o autor
desistir da acção antes de contestada
a lide.
É curioso que a Tréplica insista em que a própria revisão de Rui Barbosa teria
corroborado os pontos de vista da redação de Carneiro Ribeiro. Até porque a sua crítica
aprova a revisão empreendida por Rui Barbosa que, certamente, colaborou com a produção do
texto final. Bem se visualiza que a crítica de Carneiro Ribeiro mantém a tecla já apertada por
Clóvis Beviláqua. Foi ele que fortaleceu a concepção de que o Parecer – e a Réplica – era
singelo no que concernia aos conceitos jurídicos; porém, impiedoso no tocante ao estilo. Um
exemplo é a crítica à proposta de Rui Barbosa à redação do art. 17, do Código Civil, que
excluiria o direito internacional privado do horizonte do sistema do direito civil. Assim, na
lógica da explicação de Clóvis Beviláqua, a proposta substitutiva de Rui Barbosa impediria a
integração no Brasil de direitos pessoais, oriundos de ordenamentos jurídicos estrangeiros29.
Outra reclamação, relacionada com a Réplica foi o pouco espaço dado ao debate jurídico.
Clóvis pugnava por ampliar esta discussão, como fez em relação a diversos outros críticos.
Era personalidade pública afeita ao debate e à circulação das ideias.
Entretanto, no prisma da história das idéias, os pesquisadores são levados a desconfiar
de tal gênero de narrativas, baseadas precipuamente na disputa de egos30. Afinal, no Parecer
lançado por Rui Barbosa, as críticas apesar de serem duras, não são desarrazoadas. No introito
do Parecer do Senado, se indica que houve certo açodamento na aprovação na câmara baixa e
que imperfeições foram mantidas. Porém, são traçados elogios aos juristas:
Já se vê que nesta iniciativa não tenho em mente desfazer nos serviços da
comissão legislativa, que nos precedeu. Não participo da indignação ou do
desprezo, com que muitos os têm fulminado. Antes me parece que como base
à revisão, por que vai passar nesta casa do congresso, nos merecem toda a
28 Idem, p. 24.
29 BEVILÁQUA, Clóvis. Em defeza do Projecto de Codigo Civil Brazileiro. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves, 1906, p. 454 e seg.
30 A pesquisa científica nessa área indica a necessária desconfiança analítica das fontes. Cf. JASMIN, Marcelo
G. História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, São Paulo, v. 20, n. 57, fev. 2005. p. 27-38.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
271
estima e respeito. Entre vários outros colaboradores de alto merecimento,
duas culminantes sumidades jurídicas, representando, aliás, tendências
opostas, o Sr. Clóvis Beviláqua e o Sr. Andrade Figueira, impuseram o cunho
de seu saber ao projeto; e, bem que ambos saíssem malcontentes de uma
solução, que não podia satisfazer cabalmente a um e outro, força é que de tal
cooperação resultassem valiosos frutos. Se daquele antagonismo entre os dois
principais colaboradores houverem derivado contradições, cumprirá corrigilas. Mas uma codificação não pode ser expressão absoluta de um sistema,
vitória exclusiva de uma escola. Toda obra de legislação em grande escala há
de ser obra de transação31.
Por ora, vale estender a ilação sobre a teoria do direito. Uma hipótese para a existência
de contradições nessa suposição historiográfica seria que é impossível deslindar a crítica
jurídica de Rui Barbosa das críticas lingüísticas que são realizadas no parecer e na réplica.
Nesse prisma, os enunciados que formam a expressão de normas jurídicas fixadas em lei
ocorrem por meio do vernáculo. De tal maneira, a crítica lingüística também é uma crítica de
cunho jurídico.
Um exemplo prático. Se a crítica diz respeito à má escolha de palavras para expressão
de uma obrigação como aquela referida à indenização por atraso na entrega de coisa (mora), o
objetivo pode fortemente se relacionar com a necessária busca pela diminuição de
ambigüidades que poderiam atrapalhar o processo de interpretação do direito em sua
realização prática. Em termos de juros fixados judicialmente, veja-se que até hoje existe
polêmica sobre tal tema nos tribunais. A diferença entre o conceito de juros moratórios e de
juros compensatórios é um bom exemplo. A possibilidade de cálculo combinada de ambos e a
ancoragem jurídica para eles em situações diferentes, é outra evidência.
6 Considerações finais.
Um dos mais graves problemas da historiografia é a construção de interpretações sobre
o passado, a partir dos interesses e dos ideais de hoje e do futuro. O anacronismo pode dar azo
a leituras sobre litígios como se eles estivessem impregnados por questões atuais.
É claro e óbvio que havia uma disputa política relacionada com a aprovação de uma
nova codificação civil para o Brasil, em substituição às Ordenações, e ao uso prático da
Consolidação de Teixeira de Freitas. Esta obra era usada como uma fonte doutrinária
relevante para a tarefa de interpretar o direito. No entanto, a redução do diálogo havido entre
Rui Barbosa e Clóvis Beviláqua a uma guerra de egos entre dois juristas contribui pouco para
desvelar o real significado do que estava em jogo naquele momento histórico. Certamente,
havia um enorme respeito entre os dois homens públicos, reconhecido pelas menções mútuas
em diversos trabalhos.
Um exemplo. Em 1931, a Faculdade de Direito de Niterói recebeu Clóvis e Amélia
Beviláqua para duas conferências casadas32. O tema escolhido por Clóvis foi a formação
constitucional do Brasil. Assim, a sua preleção versou sobre a divisão de poderes, a
democracia, o federalismo e a organização estatal. Na conferência, ele lembrou com grande
gentileza a importância de Rui Barbosa e a sua índole humanista e liberal. Se alguma nota
pode ser retirada deste debate entre Clóvis Beviláqua e Rui Barbosa é que ele existiu. Na
tradição acadêmica – e política – brasileira, o comum é a omissão. Logo, não é a nota de
rodapé crítica e enfática. É o fingir que o dissenso não existe. É, enfim, negar a palavra do
31 BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, v. XXIX. (1902). Rio de Janeiro: Ministério da
Educação e Saúde, 1949, t. 01, p. 02 e seg.
32 BEVILAQUA, Amélia de Freitas; BEVILAQUA. Divagações sobre a consciência – Formação
constitucional do Brasil (duas conferências). Rio de Janeiro: Oficina Borsoy, 1931.
272 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS
ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
outro. Clóvis Beviláqua sempre debateu e reconheceu o outro, já que não poderia ter dúvidas
acerca do que aceitou empreender.
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da comissão revisora, mensagem do Presidente da República, exposição de motivos,
projeto revisto), v. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
BRASIL: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Código Civil Brasileiro: trabalhos
relativos à sua elaboração (modificações no regimento da Câmara, pareceres de
faculdades de Direito, de tribunais dos Estados, de jurisconsultos e de membros do
Instituto dos Advogados, atas das reuniões da comissão especial do Instituto dos
Advogados, respostas do autor do projeto, Sr. Clóvis Beviláqua, emendas enviadas à
Mesa da Câmara, nomeação da primeira comissão especial, trabalhos preliminares da
comissão, pareceres parciais dos membros da comissão), v. 2. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1918.
BRASIL: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Código Civil Brasileiro: trabalhos
relativos à sua elaboração (discussão e votação, na comissão especial, do título
preliminar e titulo preliminar e da parte geral, discussão da parte especial), v. 3. Rio de
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274
DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO
HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA
PROBLEMATIZAÇÃO HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
DEMOCRACY, PARTICIPATION AND POPULAR SOVEREIGNTY: A HISTORICAL
PROBLEMATIZATION OF THE POLITICAL REPRESENTATION
Douglas da Veiga Nascimento*
Resumo: No decorrer dos séculos XVIII e XIX, a democracia moderna, precocemente definida por Rousseau,
declinou na forma da representação e o papel do cidadão ficou restrito à escolha de seus representantes por meio
do voto. Sua função não era a participação direta nas decisões políticas ou na gestão pública. Surge nesse
contexto a democracia representativa, formal e indireta. Nesse modelo de democracia, na medida em que exerce
seu direito ao voto, o cidadão assume um papel eminentemente passivo diante de uma política centrada na figura
dos representantes. O sucesso da democracia representativa, nesse período, está diretamente ligado à introdução
do sufrágio universal como mecanismo de legitimação do governo. Nesse sentido, sua função é bastante efetiva,
mas, por outro lado, acarretou uma baixa participação dos cidadãos e um reduzido interesse pela fiscalização dos
processos de decisão e gestão governamentais. Refletindo sobre a democracia, Rousseau rechaçava o sistema da
representação política, isso porque ela seria absolutamente incompatível com a ideia da soberania popular que
ele defendia. A teoria e a prática da representação política era alvo na teoria política Rousseauniana por conta de
seu caráter alienante em relação à posição do cidadão. A representação era vista como um mecanismo de
consenso político que violava a autonomia individual, como dignidade do cidadão, que se realizaria através do
exercício direto da soberania popular. A oposição de Rousseau ao regime representativo nasce de uma
consciência da soberania popular mais profunda do que aquelas presentes nas democracias do séc. XIX.
*
Douglas da Veiga Nascimento, mestrando em História do Direito no Programa de Pós-graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná (E-mail: [email protected])
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
275
Introdução
As impressões dos cidadãos a respeito da palavra “democracia”, em regimes mais ou
menos democráticos, não são necessariamente produtos de uma participação direta na gestão
pública ou nas decisões políticas de caráter administrativo, judicial e legislativo. A sua
posição é sempre distanciada, como um espectador passivo e, na maioria das vezes,
desinteressado. Mas esse lugar comum, que poderia ser chamado de acondicionamento ou
alienação, não é nada mais do que uma condição histórica e, portanto, reversível. No
cotidiano de cada cidadão, no plano das sociabilidades mais elementares como família e
trabalho, acaba não havendo espaço para representações críticas e debates comuns, que sejam
capazes de transformar uma ideia, como a participação política, em algo mais significativo. A
massa dos cidadãos acaba sendo levada por uma espécie de pré-compreensão “cotidiana” a
respeito desse termo, sem que haja condições para que maiores problemas sejam levantados.
Na verdade, as ideias que brotam quase que espontaneamente quando nos referimos à
democracia não são propriamente fruto da experiência direta e participativa em uma ordem
política democraticamente estabelecida. Essas ideias estão espalhadas numa dimensão
planetária ou numa atmosfera global em que circulam alguns significados, principalmente
através das mídias de massa. Nesse sentido é possível falar em um “senso comum” sobre a
democracia que é produzido por alguns centros de comunicação que reforçam esse
distanciamento histórico dos cidadãos da esfera política.
Nesse contexto global, a democracia tornou-se uma impressão vazia, incerta e pouco
factível no universo do cotidiano dos cidadãos. Essa relação vulgar e abstrata com a
democracia não nasce, propriamente, de uma experiência política. Mas por qual razão a
democracia não é uma experiência substancial na vida de um cidadão, sobretudo num regime
que se declara democrático? Muitos poderiam encontrar a resposta para essa dissociação entre
os cidadãos e a esfera política na falta de interesse, tempo e condições materiais para que cada
um deles pudesse participar, debater e deliberar sobre cada questão política e jurídica no
âmbito da república.
Para além dessas inspirações imediatas, amplas e pouco suscetíveis de uma
contextualização espacial e temporal, é preciso reconhecer que a palavra “democracia” está
inserida numa longa e antiga reflexão que parte da Grécia, sobretudo de Platão, Aristóteles,
Heródoto e Tucídides e atinge a totalidade da cultura ocidental. Mesmo o aspecto “positivo”,
tão familiar, que perpassa atualmente as pré-compreensões sobre a democracia são bastante
recentes. Nem sempre a democracia teve um sentido “positivo”, muito pelo contrário, durante
muito tempo ela foi alvo de um descrédito fundado, sobretudo, na ideia de que seria um
regime desequilibrado, no qual os muitos, pertencentes às classes subalternas, governariam os
poucos, ricos e aristocratas1. Mas até em que medida a democracia é vista hoje com um
aspecto positivo, sobretudo quando se trata da democracia direta?
A partir da reflexão medieval, retomando a obra Política de Aristóteles, a ideia de que
os poucos, virtuosos e mais sábios devem governar os muitos tornou-se um axioma repetido
incessantemente ao longo da história. A base desse argumento assumia que os muitos
estariam sempre expostos ao risco de se transformarem numa massa incontrolável e
anárquica, como uma “multitudo bestialis”. Num regime em que muitos governassem,
acreditava-se que a ordem permaneceria em constante risco, pois a maioria poderia, num
1 COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: Ensaios de história do pensamento jurídico.
Curitiba: Juruá, 2010, p. 239.
276
DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO
HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
lance de irracionalidade, prejudicar a si mesma, ou melhor, a democracia poderia se aniquilar
por um fulgor da maioria2.
Atualmente, no contexto das discussões sobre constitucionalismo e democracia, esse
mesmo axioma medieval aparece em pleno vigor. O próprio fundamento de base que legitima
o discurso da necessidade de uma constituição como mecanismo jurídico-político para se
impedir que a democracia seja consumida por ela mesma, parece seguir essa mesma premissa
medieval da “multitudo bestialis”. Mas há um grave problema na transposição desse axioma
para a justificação da limitação de uma democracia por meio de uma constituição
contemporaneamente.
A reflexão político-jurídica medieval, retomando Aristóteles, pensava em uma
democracia direta, formada por cidadãos que poderiam atuar sem instâncias intermediárias no
debate e na deliberação pública. O constitucionalismo democrático, atualmente, parece
reforçar essa mesma problemática tendo como foco, no entanto, uma democracia indireta ou
representativa. É pouco provável que o risco num regime democrático decorra atualmente da
participação de todos. Muito pelo contrário, o problema não está na democracia direta e na
sua suposta essência anárquica, mas sim no sistema representativo previsto pelas constituições
como instrumento de contenção das supostas irracionalidades das massas politicamente
desorganizadas.
O constitucionalismo democrático conservador e defensor da democracia formal e
procedimental, na medida em que teme os efeitos radicais de uma democracia direta, não
reforça apenas a necessidade de se limitar a democracia através de instâncias não
democráticas como o judiciário, mas também fortalece a tese da necessidade de uma
democracia de poucos, mais sábios e preparados, para os assuntos da república. Se o problema
nasce do temor de um consenso irracional e destrutivo do regime por meio da deliberação de
uma maioria absoluta dos cidadãos, o constitucionalismo deveria se preocupar mais com a
ampliação da participação da população do que defender a formação de uma elite política e
jurídica que pode muito mais facilmente chegar a um consenso devastador. Nesse caso,
aqueles que deveriam ser os guardiães da democracia e da constituição seriam aqueles que
mais facilmente poderiam corrompê-la.
Diante da crise de legitimidade da democracia representativa, ela, atualmente, passa por
grandes transformações. Na virada do século XX para o XXI, houve uma expansão
extraordinária de modelos de democracia denominados de alternativos ou contrahegemônicos. A preocupação central dessas novas democracias é a de promover uma
participação direta da população na formação da decisão política. Trata-se, portanto, de
medidas que pretendem retomar, num sentido positivo, as concepções de democracia direta,
na qual cada cidadão possa participar e deliberar sobre os assuntos públicos sem a
intermediação de representantes, partidos, instituições, os meios de comunicação
centralizados e poderes constituídos, como o judiciário. Isso pelo fato de que democracia já
não é mais sinônimo de eleições periódicas. Ela não pode ser confundida com o princípio
republicano da elegibilidade e periodicidade dos mandatos. A sua base é constituída por um
processo de participação popular que permita um controle civil dos poderes políticos. E o
principal meio para realização desse controle depende de um espaço que possa integrar todos
os cidadãos3.
Nas discussões contemporâneas sobre a democracia, é preciso ir muito além daquilo que
nos oferece o modelo de democracia representativa. Mas, mais do que isso, é preciso
2 COSTA, P. Idem, ibidem.
3 FARACO, Alexandre Ditzel. Democracia e regulação das redes eletrônicas de comunicação: Rádio,
televisão e internet. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 11.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
277
despertar para o fato de que a democracia é um tema que não pertence a uma área ou outra.
Tão pouco pode ser considerada como um mecanismo procedimental estabelecido pelas
constituições e que, no âmbito das discussões jurídicas, tomam a cena de tal forma que
dificilmente se consegue vislumbrar, no âmbito do direito, um modelo de democracia que
esteja para além dos procedimentos e formas estabelecidas por ela. Os debates atuais sobre a
democracia transcendem esses aspectos, eles surgem de problematizações de práticas sociais
que estão constantemente alterando o jogo clássico entre democracia, cidadania e
representação.
1 As semânticas clássicas da democracia: A democracia dos antigos e a
dos modernos
O termo “democracia” é atualmente um elemento vital na retórica política. O seu
horizonte histórico de significação é extremamente amplo e não pode ser separado dos
contextos histórico-culturais radicalmente diversos entre si nos quais ele se apresenta
concretamente. Portanto, quando se trata da democracia, é necessário ter em mente que “a
linha de seu desenvolvimento histórico-conceitual é recortada, ou até fragmentada”4. De
nenhum modo se pode aceitar a democracia como uma expressão dotada de um sentido linear
e homogêneo, inserido num plano abstrato ou distante de um contexto histórico. Isso porque
ela envolve uma diversidade de problemas dentre os quais se destacam as questões sobre a
legitimidade do poder político e o modo ou os instrumentos para o seu exercício. Dentre as
diversas semânticas de democracia, aquilo que sobressai é um esforço permanente e constante
para se oferecer uma resposta para esses dois problemas. Os eventuais impasses,
inconsistências, paradoxos, dilemas e problemas semânticos que digam respeito à democracia
não podem ser analisados prescindindo-se de uma experiência política concreta.
Uma primeira distinção fundamental na semântica da democracia, que nos oferece
modelos descontínuos de significado, corresponde à oposição clássica entre a democracia dos
antigos e a dos modernos. A democracia antiga, originada das reformas introduzidas por
Clístenes em Atenas no séc. VI a.c., era um regime no qual cada cidadão podia governar e ser
governado diretamente e sem intermediação institucional. O cidadão, pertencente ao demos,
era o agente ativo que intervinha diretamente na decisão ou na escolha política. Nesse
modelo, apesar da presença de uma sociedade hierarquizada e desigual, sobretudo pela
escravidão e pela exclusão de gênero, a democracia era tomada como o “triunfo da igualdade
dos cidadãos e de sua liberdade de palavra e ação política”5. Não se trata, nesse caso, de uma
liberdade universalizante como a dos modernos, pois todo o espaço político se restringia à
esfera da polis ou ao povo (demos) como parte intrínseca da cidade. A democracia antiga é,
portanto, “o governo de um povo que se afirma como entidade coletiva já existente, não
reduzível à mera soma dos indivíduos que a compõem”6.
Através da mediação aristotélica, sobretudo pela recepção da obra Política de
Aristóteles, a sociedade medieval recebeu do mundo antigo a democracia como uma “nova”
temática para a reflexão político-jurídica. A sua principal acepção era a de uma forma de
governo na qual se atribui ao “povo” o papel central no processo político. Nesse período, na
cultura medieval, assim como na polis da antiguidade clássica, o “povo” não era
compreendido como uma realidade instituída por um ato de vontade de um soberano, mas sim
como uma unidade espontaneamente ordenada, na qual cada indivíduo encontrava-se ligado a
uma comunidade, ordem ou corporação dentro de uma hierarquia.
4 COSTA, P. Op. cit., p. 212.
5 COSTA, P. Idem, ibidem.
6 COSTA, P. Idem, ibidem.
278
DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO
HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
No caso da democracia moderna, ao contrário da reflexão político-jurídica medieval e
antiga, em que pese as diferentes perspectivas acerca da soberania e da representação, a
ordem não é mais reconhecida como um resultado espontâneo das sociabilidades no seio da
comunidade. Ela só pode ser realizada e mantida pelo poder absoluto e centralizado de um
soberano que concederá a cada um dos sujeitos os seus direitos individuais. O ponto de
partida da democracia dos modernos, tanto em Rousseau, quanto em Hobbes e Locke, é o
indivíduo na sua relação com o soberano. É em Rousseau que se apresenta uma imagem
tipicamente moderna de democracia, na qual o conjunto dos sujeitos confunde-se com o
soberano ou com o corpo político. Para ele, o momento do nascimento dessa entidade comum,
“o povo”, ocorre no instante do pacto ou do contrato social. A ordem é, desse modo, uma
condição advinda de um ato de soberania e vontade do próprio povo7.
Democracia moderna é, nesse caso, o autogoverno do povo, como conjunto de sujeitos
iguais que decide, por meio de um contrato, instituir uma ordem política ou um corpo
soberano. É apenas após o pacto original que cada sujeito passa a existir como um cidadão
pertencente a um corpo soberano. Cada indivíduo “espera do soberano a confirmação e o
reforçamento dos seus direitos naturais”8 e a liberdade de cada cidadão é fruto de sua
participação direta na vida política.
A ideia da figura de um representante, como mediador da vontade política do cidadão,
significava a perda dessa prerrogativa ou mesmo da liberdade política, pois “o soberano é o
povo, e o povo é o conjunto dos indivíduos que se constituem como corpo soberano” 9.
Portanto, a democracia moderna estava centrada na participação direta e imediata dos
cidadãos nos assuntos públicos. A partir de uma atuação ativa, eles exerceriam a liberdade
política perante um ente soberano constituído pela vontade individual de cada um deles.
2 A democracia representativa e o nascimento das democracias contrahegemônicas
No decorrer dos séculos XVIII e XIX, a democracia moderna, precocemente definida
por Rousseau, declina na forma da representação, ou seja, “a luta pela democracia tenderá a se
concentrar sobre o tema da titularidade e do exercício do direito de voto”10. O papel do
cidadão estará restrito à escolha de seus representantes por meio do voto. Sua função não será
vista mais como a de participar diretamente das decisões políticas ou da gestão pública. Surge
nesse contexto a democracia representativa, formal e indireta.
Nesse modelo de democracia, na medida em que exerce seu direito ao voto, o cidadão
assume um papel eminentemente passivo diante de uma política centrada na figura dos
representantes. O sucesso da democracia representativa, nesse período, está diretamente
ligado à introdução do sufrágio universal como mecanismo de legitimação do governo. Nesse
sentido, sua função é bastante efetiva, mas, por outro lado, acarretou uma baixa participação
dos cidadãos e um reduzido interesse pela fiscalização dos processos de decisão e gestão
governamentais11.
A representação, na cultura político-jurídica, não é uma questão de mera técnica
constitucional para que um sujeito aja em substituição a outro ausente no espaço de
instituições como o parlamento. Trata-se, na verdade, de um conceito que está intimamente
7 COSTA, P. Idem, p. 214-215.
8 COSTA, P. Idem, p. 215.
9 COSTA, P. Idem, p. 216.
10 COSTA, P. Idem, ibidem.
11 VALENTE, Manoel Adam Lacayo. Democracia enclausurada: Um debate crítico sobre a democracia
representativa contemporânea. Brasília: Câmara dos Deputados: Coordenação de Publicaçes, 2006, p. 93.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
279
ligado a uma forma de compreensão e legitimação da ordem política12. Na medida em que ela
se concentra na legitimação da ordem, marcadamente desigual, a representação oferece
mecanismos de domínio de uma pequena parcela da população sobre uma multiplicidade de
indivíduos que se sujeitam. Em cada momento histórico distinto, a representação esteve
imersa em diversas estratégias discursivas para o reconhecimento dos grupos considerados
como a expressão da identidade política numa relação semelhante àquela do tutor e do
tutelado13.
Nas democracias representativas, o momento do protagonismo dos sujeitos concentra-se
na oportunidade do voto. Ele “é a expressão (visível e formalizada) do consenso do qual se
pretende fazer depender a legitimidade do poder; o voto é o instrumento que permite aos
representados reconhecer 'seus' representantes […]”, ou ainda, “o exercício de um poder que
incide [...] na seleção da elite política”14. Em razão da função de legitimação, o voto é
entendido como um instrumento a ser manejado por uma classe política organizada, que cria e
reforça, ainda que no plano simbólico, o vínculo político entre a elite e os indivíduos. Além
disso, nem todos os sujeitos são necessariamente titulares do direito de voto. Em diversos
momentos, o discurso da representação preocupava-se em fixar critérios censitários e
introduzir distinções de caráter excludente, como no caso das limitações de gênero ou por
meio de critérios baseados na propriedade privada, como expressão da autonomia e da
liberdade do indivíduo.
Ao longo de sua trajetória nos séculos XVIII e XIX, a representação produziu novos
paradoxos e tensões internas na velha problemática moderna da relação entre sujeitos e
soberano. Com a representação, a soberania passa a ser o resultado da concretização das
decisões tomadas pelos representantes que estão numa posição “perfeitamente” independente
dos interesses, vontades e opiniões dos cidadãos como sujeitos políticos passivos. Por meio da
representação, passa a ser possível, procedimentalmente, que muitos elejam poucos para a
tomada de assento nos estratos mais elevados da república. É, portanto, um mecanismo de
formação de consenso que legitima a unidade da ordem política15.
Com a democracia representativa, há uma nítida separação e distanciamento entre o
soberano e seus representados ainda que a legitimidade dependa da formação de um consenso.
Os movimentos de luta por uma democracia política situam-se, nos séculos XIX e XX,
justamente nesse aspecto; busca-se um reconhecimento e reformas políticas que abram espaço
para o exercício do direito do voto por classes estigmatizadas e frágeis, como as mulheres e os
não-proprietários. Trata-se de “uma luta para mudar a composição da classe dirigente e
conseguir obter as reformas econômico-sociais que dificilmente seriam concedidas por uma
classe dirigente de 'notáveis'”16. A luta pela democracia tinha como objetivo uma
aproximação entre representantes e representados, ou seja, há uma recusa de se aceitar que
uma assembleia representativa não espelhasse uma sociedade igualitária17.
No séc. XIX, a representação é desenvolvida em meio a uma tentativa de se criar
mediações entre os sujeitos e o soberano. Nesse momento, a tese da democracia moderna
fundada na relação direta entre indivíduos e soberano é superada. Há uma mudança radical na
“antropologia política”: “o referente da representação torna-se, agora, a coalizão de interesses
particulares que, para Rousseau, introduzia a gérmen da corrupção no corpo político, poluindo
12 COSTA, P. Op. cit., p. 155.
13 COSTA, P. Idem, p. 155-156.
14 COSTA, P. Idem, p. 172.
15 COSTA, P. Idem, p. 180.
16 COSTA, P. Idem, ibidem.
17 COSTA, P. Idem, p. 181.
280
DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO
HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
a clara percepção da vontade geral”18. Uma das formas de mediação propostas foi a dos
partidos. Mas, ainda que eles permaneçam por muito tempo na periferia do debate político, na
segunda metade do séc. XIX, assumem um ponto fundamental no sistema representativo. O
partido passa a ser reconhecido como um meio eficaz e necessário para uma aproximação
entre o Estado e a sociedade ou mesmo como instrumento para reforçar o papel dos
representados19.
Com um Estado de partidos “interrompe-se a fratura qualitativa entre o soberano e os
sujeitos, é colocada uma pedra no mecanismo representativo graças ao qual era possível
imputar ao Estado como tal a vontade independente das vontades dos sujeitos”20. O intenso
protagonismo dos partidos na formação da vontade estatal era um aspecto bastante estranho
aos Estados representativos “clássicos”. Os representantes, que antes gozavam de
independência perante os representados, passam a se vincular às diretivas dos partidos. É a
dissolução da independência dos eleitos ou dos representantes que provoca a crise do Estado
representativo21.
Nos séculos XIX e XX, há uma convicção bastante arraigada de que as instituições de
mediação entre os indivíduos e o Estado soberano deveriam ser necessariamente os partidos.
No entanto, além da provocação da perda da independência dos representantes, os partidos
reforçaram o primado das elites. Por meio deles, foi injetado na democracia um aspecto
eminentemente oligárquico. A partido, com seu estatuto organizado e disciplinado, começou a
controlar as massas numa democracia fundada no sufrágio universal. Nesse caso, prevalece o
domínio de poucos sobre muitos. A própria ideia de que o voto é o exercício de uma escolha
livre dos representantes deixa de fazer qualquer sentido, pois as candidaturas são controladas
por uma minoria politicamente organizada.
Nos debates constituintes do período pós-guerra, depois de um período de repentina
interrupção da representação com o fascismo e o nacional-socialismo, os direitos políticos
tornaram-se parte integrante das constituições. Foram incluídos, além disso, o sufrágio
universal, o pluralismo político-jurídico, as câmaras representativas e os partidos políticos.
Mas não se trata, necessariamente, de um retorno à democracia liberal do início do início do
séc. XX. A característica mais radical desse novo contexto histórico diz respeito, de um lado,
à “sociedade de massa” que é agregada às novas estruturas estatais, e de outro, à convicção
generalizada de que o principal meio para integração política das massas seria o partido.
Nesse caso, trata-se de partidos plurais e competitivos, muito distintos dos partidos únicos dos
regimes totalitários. É o “indispensável” sistema de partidos que mediará o Estado e a
sociedade22; “eles são o instrumento necessário de organização da vontade popular”23.
Atualmente, o discurso da representação passa por uma crise radical 24. Duas questões o
tornam bastante problemático. A primeira delas diz respeito à trajetória “moderna” da
representação e de sua vinculação com uma determinada forma de política baseada na
afirmação do Estado-nação e de sua absoluta soberania. Portanto, a representação também é
atingida pela crise do conceito de soberania. A segunda questão diz respeito à historicidade
precisa da representação vinculada às sociedades ocidentais norte-americana e europeias.
Com a globalização, a representação foi inserida em um contexto mais complexo que atinge
18 COSTA, P. Idem, p. 194.
19 COSTA, P. Idem, p. 196.
20 COSTA, P. Idem, p. 198.
21 COSTA, P. Idem, p. 199.
22 COSTA, P. Idem, p. 204.
23 COSTA, P. Idem, p. 205.
24 VIEIRA, Luiz Vicente. Os movimentos sociais e o espaço autônomo do “político”: Resgate de um conceito
a partir de Rousseau e Carl Schmitt. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 185-187.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
281
diretamente seu sentido e as possibilidades de sua transposição em contextos culturais
distintos25.
Ao longo do séc. XX, houve uma intensa disputa em torno da questão democrática
centrada em dois aspectos principais: a desejabilidade da democracia para a constituição dos
governos por meio das eleições na primeira metade do século; e o debate acerca das condições
estruturais da democracia após a Segunda Guerra Mundial26. Na segunda metade do séc. XX,
com a crise do Estado de bem-estar social acompanhada da adoção da democracia
representativa com o sufrágio universal, houve uma fragmentação entre o Estado e a
sociedade civil. Diante da ascensão dos Estados neoliberais e da perda progressiva de direitos
sociais, os cidadãos, membros dessa sociedade, acabaram não se reconhecendo como
partícipes do processo político. A concepção hegemônica de democracia a tomava e
empregava como mera prática de legitimação dos governos.
Atualmente, com a reabertura do debate estrutural sobre a democracia, estão muito
presentes as discussões sobre a sua forma e variação. Esses novos debates têm problematizado
as respostas oferecidas por uma concepção hegemônica da democracia que se caracteriza por
alguns elementos principais: como a valorização da apatia política; a ideia de que o cidadão
comum não tem interesse ou capacidade política senão para a escolha dos seus representantes;
a concentração do debate democrático nos desenhos eleitorais da democracia; a ideia de que
pluralismo decorre de uma diversidade partidária e das disputas entre as elites; e as teses e
soluções minimalistas para o problema da participação27.
A insistência nas formas clássicas de democracia, sobretudo pautada numa desconfiança
na dimensão social da política, dificulta cada vez mais as explicações das novas formas e
práticas democráticas. Diante da crise da democracia liberal representativa, surge no debate
político formas de democracia popular ou local que se apresentam como propostas de
recuperação das tradições participativas28. Ao longo da segunda metade do séc. XX, surgiu
um conjunto de concepções alternativas que podem ser denominadas de “contrahegemônicas”29. Essas novas concepções originaram-se de uma tentativa de oferecer novas
soluções que superassem as formas elitistas e homogeneizadoras da participação política da
população. Há, nessas novas matrizes, um forte reconhecimento da pluralidade humana
pautada em dois critérios distintos: “a ênfase na criação de uma nova gramática social e
cultural e o entendimento da inovação social articulada com a inovação institucional, isso é,
com a procura de uma nova institucionalidade da democracia”30.
2.1 Democracia, cidadania e os meios de comunicação de massa
Nas democracias dos séculos XIX e XX, os meios de comunicação de massa, sobretudo
de caráter jornalístico, como a imprensa, o rádio e a televisão, detinham, se não um
monopólio, um papel central no desempenho das funções de fiscalização das ações do Estado
em nome de um interesse público. Eles absorveram para si o papel de vigilantes do Estado na
esfera civil31 e acabaram assumindo uma incumbência que era própria do cidadão nas
democracias modernas. De fato, acreditava-se, sobretudo no pós-guerra, que uma mídia livre
25 COSTA, P. Op. cit., p. 207.
26 SANTOS, Boaventura de Souza; AVRITZER, Leonardo. “Introdução: Para ampliar o cânone democrático”.
In: SANTOS, Boaventura de Souza (org). Democratizar a democracia: Os caminhos da democracia
participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 39-40.
27 SANTOS, B. de S. Idem, p. 41-42.
28 SANTOS, B. de S. Idem, p. 43.
29 SANTOS, B. de S. Idem, p. 50.
30 SANTOS, B. de S. Idem, p. 51
31 GOMES, Wilson. “A democracia digital e o problema da participação civil na decisão política”. In:Revista
Fronteiras: Estudos midiáticos, VII (3), setembro/dezembro, 2005, p. 215.
282
DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO
HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
do controle e da censura do Estado era um elemento indispensável, ou até constitutivo, para a
realização dos regimes democráticos. Além disso, prevalecia a forte ideia de que esses meios
de comunicação seriam os melhores instrumentos para a educação política dos cidadãos.
Esse argumento, no entanto, de caráter liberal, conservava uma tese implícita de que os
meios de comunicação de massa, fortemente centralizados e imersos numa perspectiva
empresarial e corporativista, seriam mais capazes de promover uma fiscalização e divulgação
das políticas governamentais de forma contínua e sistemática do que o cidadão na sua
cotidianidade. É nesse momento que o cidadão será reduzido, como em nenhum outro, à
figura do telespectador passivo, apático e completamente distante da vida política que parecia
ocorrer em um universo estranho, pouco palpável no cotidiano, e a uma distância invencível.
Nessas novas configurações da cidadania, a obrigação de um cidadão “consciente”
reservava-se ao mero acompanhamento pictórico e propagandístico de um cenário no qual ele
não se reconhecia como um sujeito político ativo. A política, de fato, transformou-se em um
produto, mais ou menos pronto e acabado, oferecido pelos meios de comunicação. Essa tese
ainda está muito presente, e tomando por base as possibilidades de participação de um
cidadão num modelo representativo hegemônico de democracia, talvez ainda conserve a sua
verdade, mas é necessário destacar que esse modelo possui um aspecto incompatível com uma
sociedade do século XXI.
Nas experiências democráticas do pós-guerra, acreditava-se que os meios de
comunicação de massa, sobretudo a imprensa, tinham a incumbência de garantir o espaço de
participação civil no debate político e de oferecer mecanismos para a expressão da “opinião
pública”. Atualmente, essas expectativas encontram-se superadas, não tanto pela
impossibilidade da veiculação da informação política dentre a população, mas pelo
esgotamento da retórica política dessas esferas centralizadas da mídia que estão direcionadas
para a manipulação da “opinião pública” com base na orientação política dos controladores
desses meios32.
De fato, não se trata de uma educação cidadã promovida por esses meios de
comunicação, mas sim de um processo de formação de consenso público diretamente
compatível com a legitimação das conjunturas políticas das democracias representativas.
Sendo o voto e o sufrágio universal mecanismos de legitimação dos representantes para a
formação de uma elite política, a função dos meios de comunicação centralizados é o de
instrumentalizar ou permitir o manejo das eleições por uma classe política organizada. É
através desses meios que são fortalecidos os vínculos formais e ideológicos entre a elite
política e os cidadãos.
Se nas democracias dos séculos XIX e XX os partidos e suas cartas políticas tinham um
papel central na mediação entre sociedade civil e Estado ou entre representantes e
representados, atualmente, esse controle está centralizado nos meios de comunicação de
massa. A formação do consenso político já não pertence ao espaço dos partidos, das
campanhas eleitorais ou das propostas políticas de governo; o consenso é, na verdade,
construído por meio da retórica “interessada” dos meios de comunicação que se infiltram
nesses debates como intermediadores entre representantes e representados ou entre
governantes e governados.
Essa mediação fica ainda mais evidente quando, nos períodos de debate eleitoral, os
profissionais dessas empresas da informação tomam o assento mais autorizado na
intermediação do debate político que será televisionado para a população. Por essa razão, as
investigações acerca da mídia e da cidadania são pontos essenciais para a discussão da
32 GOMES, W. Idem, p. 215.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
283
democracia na atualidade. Se nas democracias representativas dos séculos passados os
representantes acabaram perdendo sua autonomia diante da força dos partidos, atualmente o
que se percebe é que os meios de comunicação, apesar de sua natureza elitista e corporativa,
tornaram-se os legítimos e exclusivos representantes da esfera civil numa cultura de massas.
3 Democracia, soberania e contrato social: A concepção da
participação política em Jean-Jacques Rousseau
Num nível basilar de questionamento, é preciso voltar a Rousseau e à sua teoria política
acerca da soberania e da democracia33. Rousseau delineou o corpo político como um “eu
comum” que desempenhava um papel fundamental na fundação da ordem política, composta
de indivíduos livres e iguais34. Essa liberdade estava fundada numa perspectiva fortemente
proprietária, mas não era a única forma de liberdade que fazia parte da pauta revolucionária.
Além dela, Rousseau também “discutia e celebrava a liberdade política, a liberdadeparticipação, a liberdade como expressão e exercício da pertinência do cidadão ao corpo
soberano”35.
No pensamento Rousseauniano, a vontade geral é uma exigência moral mais do que
uma realidade que só pode ser alcançada mediante uma sociedade igualitária. Para Rousseau,
o homem nasce livre, mas em toda parte ele se encontra acorrentado. Portanto, os cidadãos,
mais do que meramente obedecer, deveriam lutar pela liberdade e se livrar do jugo
permanentemente. No entanto, a ordem social é um direito sagrado que é a base de todos os
direitos, mas esse direito não vem da natureza e sim das convenções. As primeiras sociedades,
segundo Rousseau, foram a da família, no qual os membros, quando se tornavam
independentes entre si, só se mantinham unidos por uma convenção de forma voluntária. Essa
é uma liberdade originária e natural do homem. A sua lei é a preservação de si mesmo36.
Rousseau não admite que a liberdade possa ser renunciada pelo homem, pois uma vez
que o faça deixaria de ser homem. Esta seria uma forma de se abandonar os direitos e os
deveres da “humanidade”, o que seria incompatível com a natureza humana. Retirar do
homem toda liberdade de sua vontade seria o mesmo que retirar toda a moralidade de seus
atos. Portanto, em Rousseau, o ato de renúncia da liberdade ou a conivência com a escravidão
é uma convenção vazia e contraditória que estabelece para um o poder absoluto e para o outro
uma obediência ilimitada.
Enquanto os homens estão vivendo em sua primitiva independência, Rousseau
considera que não há nenhuma relação mútua estável ao ponto de constituir um estado paz ou
de guerra, ou seja, os homens não poderiam ser inimigos naturais, portanto a guerra de todos
contra todos não pode existir no estado de natureza. Mas em um determinado momento, os
homens perceberiam que a união ou a agregação seria a única forma para se criar novas forças
com a finalidade de preservação. Para que os homens, nessa nova forma de associação,
pudessem continuar tão livres quanto no estado de natureza, eles deveriam buscar uma
organização política que defendesse e protegesse, através da força comum, a pessoa e os bens
de cada associado, mas que ao mesmo tempo, cada um deles pudesse exercer sua liberdade.
Para o problema da preservação da liberdade do homem quando se submete à força
comum da coletividade, Rousseau propõe a tese do contrato social como solução. O contrato
33 SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. 5a ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 15-16.
34 COSTA, P. Op. cit., p. 240.
35 COSTA, P. Idem, p. 245.
36 MORRIS, Clarence (org). Os grandes filósofos do direito:Leituras escolhidas em direito. Tradução de
Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 211.
284
DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO
HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
social, como um momento de apresentação do derver-ser de toda ação política37, seguiria a
premissa de que cada um dos homens colocaria em comum sua pessoa e todo seu poder sobre
a direção suprema da vontade geral, e na sua capacidade de associado, cada membro receberia
uma parte indivisível do todo. De imediato, em lugar da personalidade individual de cada
contratante, o ato de associação criaria um corpo moral e coletivo, composto de tantos
membros quantos forem os votantes da assembleia, que recebe desse ato sua unidade, sua
identidade comum, sua vida e sua vontade.
A partir do contrato social, cria-se o compromisso mútuo entre o público e os
indivíduos, ou seja, o membro soberano estaria comprometido com os indivíduos, e estes
como membros do Estado, com o soberano. É nesse momento que o homem passara a viver
em sociedade e o contrato social seria um instrumento para se resolver o problema da relação
entre o direito natural subjetivo e a validade objetiva da lei civil, ou seja, resolver os conflitos
entre liberdade e autoridade38. Mas para que o contrato social não seja uma fórmula vazia, ele
deve incluir tacitamente esse compromisso; no sentido de que quem se recusasse a obedecer à
vontade geral seria forçado pelo corpo a fazê-lo. Ou seja, cada um dos membros seria
obrigado a ser livre.
O que o homem perde pelo contrato social é a sua liberdade natural e o direito ilimitado
a tudo que tenta obter, mas em contrapartida ele ganha a liberdade civil, que é limitada apenas
pela vontade geral, e a propriedade de tudo o que possui por meio de um direito positivo e não
mais pela mera força. O pacto fundamental substituiria a desigualdade natural ou física pela
igualde de todos, ou melhor, todos tornar-se-iam iguais por convenção e direito.
Para Rousseau, somente a vontade geral pode dirigir o Estado, tendo em vista o bem
comum e os objetivos para os quais foi instituído. Portanto, soberania é o exercício da vontade
geral. O soberano é o ser coletivo que representa a si mesmo. Por essa razão, a soberania é
inalienável. A soberania, segundo Rousseau, também é indivisível, porque a vontade é geral
ou simplesmente não é; ou é a vontade do conjunto do povo ou de uma mera parte dele. Além
disso, a vontade geral é sempre certa e tende para o bem comum. Mas não se deve esquecer
que as deliberações do povo nem sempre são corretas, porque o povo pode ser enganado e
levado ao que é mau. Por isso, é possível falar de uma vontade de todos e de uma vontade
geral. Esta considera apenas o interesse comum, enquanto que aquela leva em conta o
interesse privado que é a soma das vontades dos particulares. Rousseau repudia todos os
interesses particulares como a propriedade privada e os métodos ligados a ela como
propaganda e partidos (representantes de grupos de interesses de classes)39. É por essa razão
que num Estado, para que a vontade geral possa se expressar, não deve haver nenhuma
sociedade parcial, pois cada cidadão deve ter liberdade para seu próprio pensamento.
O Estado, para Rousseau, é uma pessoa moral que visa a sua própria preservação. Ele
deve ter uma força universal e coercitiva. O pacto social dá ao Estado o poder absoluto sobre
todos. Mas seu único objetivo é o bem geral dos cidadãos. Através do pacto social, o corpo
político ganha vida e existência, mas é através da legislação que ele ganha vontade e
movimento. As convenções e as leis são necessárias para se unir direitos e deveres e remeter a
justiça a seu objetivo. O objetivo das leis é sempre geral, ou seja, considera as ações em
abstrato e jamais um caso em particular. As leis são atos da vontade geral, por isso não podem
ser injustas, posto que ninguém é injusto consigo mesmo. O povo, na sociedade civil, deve ser
o autor das leis. De nenhuma forma, a função de criar leis pode ser atribuída àquele que
37 WEFFORT, Francisco C (org). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu.
Rousseau, “o federalista”. Vol. 1. 13a ed. São Paulo: ABDR, 2002, p. 195.
38 MONDOLFO, Rodolfo. Rousseau y laconciencia moderna. Buenos Aires: EdicionesImán, 1942, p. 71.
39 MONDOLFO, R. Idem, p. 72.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
285
exerce o comando pelas leis, pois elas acabariam se transformando em instrumentos das
paixões que perpetuariam injustiças. O legislador, para formular boas leis, deve estar atento à
aptidão do povo. O soberano é apenas um instrumento no Estado.
O poder legislativo, para Rousseau, pertence ao povo e só pode pertencer a ele. Por
outro lado, o poder executivo a essa mesma generalidade como legislatura e soberania, porque
consiste totalmente em atos particulares que estão fora da competência da lei. A força pública
depende portanto de um agente próprio que reúna e ponha em funcionamento a vontade geral.
Isso é o que constitui a base do governo do Estado. O governo seria um corpo intermediário
estabelecido entre súditos e soberano encarregado da execução das leis. Os membros desse
copo podem ser magistrados ou reis, ou seja, trata-se de governantes ou do príncipe.
Na democracia, aquele que faz as leis em geral é aquele também deve executá-la. Para
Rousseau, nem sempre seria adequado que os poderes executivos e legislativos estivessem
unidos. Por essa razão, nunca houve uma verdadeira democracia e jamais haverá, pois seria
muito difícil que a maioria governasse a minoria por meio de assembleias dedicadas aos
assuntos públicos. Os governos democráticos ou populares são em geral os que estão mais
sujeitos às guerras civis e agitações internas.
Refletindo sobre a democracia, Rousseau rechaçava o sistema da representação política,
isso porque ela seria absolutamente incompatível com a ideia da soberania popular que ele
mesmo defendia. A teoria e a prática da representação política era alvo na teoria política
Rousseauniana por conta de seu caráter alienante em relação à posição do cidadão. Além
disso. A representação era um mecanismo de consenso político que violava a autonomia
individual, como dignidade do cidadão, que se realizaria através do exercício direto da
soberania popular40. A oposição de Rousseau ao regime representativo nasce de uma
consciência da soberania popular mais profunda do que aquelas presentes nas democracias do
séc. XIX41.
Conclusão
Nos últimos escritos de Rousseau, o filósofo insiste que sua intenção com a reflexão
política era eminentemente teórica e que não tinha a menor pretensão de promover reformas
concretas e nem instigar revoltas populares. Ele apresente apenas um projeto para as
instituições políticas, ou seja, nunca se preocupou com as condições concretas nas quais elas
poderiam ser implementadas. Mas, sem dúvida, seu projeto político foi a base para a oposição
e a resistência ao modelo representativo de democracia e incitou reformas políticas e lutas
sociais nos sécs. XIX e XX. Princípios como o da liberdade e da igualdade são tributários da
reflexão filosófica de Rousseau.
Ao longo do século XX, com a orientação neoliberal dos Estados, a criminalização dos
movimentos sociais, a ascensão dos governos ditatoriais e o predomínio de uma lógica
internacional imposta pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional marcada por
uma orientação antidemocrática, num sentido material, houve uma redução em nível global da
participação popular no debate público. O que se pode notar é que nesse período há uma fase
bem nítida da perda da “demodiversidade”, ou seja, os diferentes modelos e práticas
democráticas perderam espaço para uma forma de democracia liberal representativa que se
tornou hegemônica no plano internacional. Esse modelo foi adotado como uma fórmula
40 CARRACEDO, Jose Rubio. Democracia o representación? Poder y legitimidad em Rousseau. Madrid:
Centro de EstudiosConstitucionaes, 1990, p. 194.
41 MONDOLFO, R. Op. cit., p. 91.
286
DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO
HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
universal para a democracia e tornou-se uma das marcas do imperialismo e da globalização
neoliberal42.
A democracia é uma experiência que se realiza a partir do debate e da deliberação. Ela
não se reduz ao exercício do direito de voto nos períodos de eleição dos representantes. Essa
configuração de democracia surge em um momento histórico no qual ela foi adotada como
meio eficaz de legitimação da ordem política. A preocupação não era a de promover uma
participação direta da população no debate público e na deliberação política. Com o termo
democracia se pretendia alcançar um grau de legitimidade para os Estados sem que para tanto
houvesse de fato uma predominância da maioria sobre os interesses de uma elite política
organizada.
O principal meio para esse tipo de controle foi através da criação de instâncias
intermediárias entre a sociedade civil e o Estado, como os partidos. Além disso, no período do
pós-guera, os meios de comunicação de massa, controlados por empresas privadas, assumiram
uma posição que era originária dos cidadãos. Nesse contexto, a política deixou de ser uma
cultura de participação pública e passou a ser oferecida como um produto acabado pelos
meios de comunicação. O papel do cidadão foi reduzido a uma posição passiva de
telespectador da política.
Referências
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Sebastián
(org)
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caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
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democracia representativa contemporânea. Brasília: Câmara dos Deputados: Coordenação de
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VIEIRA, Luiz Vicente. Os movimentos sociais e o espaço autônomo do “político”: Resgate
de um conceito a partir de Rousseau e Carl Schmitt. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
42 SANTOS, B. de S. Op. cit., 2002, p. 71-72.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
287
WEFFORT, Francisco C (org). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke,
Montesquieu. Rousseau, “o federalista”. Vol. 1. 13a ed. São Paulo: ABDR, 2002.
288 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA
EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO
EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE
GÊNERO NA EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO
EDUCATING WOMEN: ALTERNATIVES, LEGISLATION AND GENDER DIFFERENCES
IN EDUCATION OF THE BRAZILIAN IMPERIAL PERIOD
Isabela Guimarães Rabelo do Amaral*
Resumo: O presente trabalho teve como propósito observar como as questões de gênero foram retratadas nas
primeiras legislações educacionais do Brasil e de Minas Gerais durante o período imperial. Sabe-se que, por
muito tempo, a educação feminina foi deixada em segundo plano. A partir da Independência, com o interesse de
formar cidadãos para o novo Estado e construir uma identidade nacional, os olhos passaram a se voltar para as
mulheres, as primeiras educadoras de seus filhos. Embora esse discurso já viesse sendo construído
anteriormente, ele toma força nesse período e as mulheres passam a ter uma educação mais formalizada.
Contudo, é inevitável não perceber as diferenças presentes entre a educação feminina e a masculina. A análise
das primeiras legislações da época deixa transparecer o cuidado maior na construção de estabelecimentos de
ensino masculinos, a dificuldade das mulheres em frequentar a escola, seja por inexistência desta, seja por
preconceito do patriarca da família, seja pelo custo das escolas particulares e, principalmente, a diferença dos
currículos femininos, sendo patentes as restrições de disciplinas escolares e a ênfase nas tarefas domésticas. O
objetivo foi realizar uma análise e sistematização de normas do período, a fim de constatar diferenças de gênero,
bem como relatar o longo caminho percorrido pelas mulheres para ter uma alternativa de acesso à educação. Para
a elaboração do trabalho, adotou-se como marco teórico Faria Filho (1998) e seu trabalho sobre “A legislação
escolar como fonte para a História da Educação”, em que ele destaca a legislação como um corpus documental
que pode ser enfocado sob várias dimensões, sendo muito interessante como uma das faces de reconstrução da
realidade. O caminho metodológico percorrido foi o foco nas duas primeiras legislações do período, no âmbito
nacional e na província de Minas Gerais, seguida da complementação com alguns dados presentes em outros
trabalhos que servem de subsídio a este. Pôde-se perceber que a questão de gênero foi encontrada em vários
pontos das legislações analisadas, com destaque para o acesso dificultado, a separação física entre meninos e
meninas e o currículo diferenciado.
Palavras-chave: Educação – Mulher – Período Imperial– Legislação.
*
Isabela Guimarães Rabelo do Amaral, Mestranda no Programa de Pós Graduação em Direito da UFMG,
[email protected].
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
289
1 Introdução
Segundo Gilberto Freyre (2002), a mulher, no contexto do século XIX, deveria ser
generosa, devota, preocupada com a casa e a família, desinteressada dos negócios e dos
amigos políticos do marido. A mulher era destinada ao casamento e deveria ser mera
colaboradora de seu marido. Na sociedade patriarcal havia a subordinação do sexo feminino
ao patriarca da família, seja o pai, seja o marido, seja o irmão mais velho. Nesse caso,
portanto, não havia preocupações iniciais com a educação feminina, mentalidade que se altera
a partir do momento em que se percebe que educar a mulher é torná-la uma boa educadora de
seus filhos. Uma mãe ignorante só traria prejuízos para a educação deles. É o que se percebe
do trecho:
[...] Só muito aos poucos é que foi saindo da pura intimidade doméstica um tipo de
mulher mais instruída – um pouco de literatura, de piano, de canto, de francês, uns
salpicos de ciência – para substituir a mãe ignorante e quase sem outra repercussão
sobre os filhos que a sentimental, da época de patriarcalismo ortodoxo. (FREYRE,
2002, p. 140)
Contudo, a educação feminina ainda estava longe de ser o que era a masculina. E uma
análise do cotidiano escolar, por meio das normas reguladoras do ensino, seria capaz de
demonstrar essas diferenças.
Para a elaboração do trabalho, adotou-se como marco teórico Faria Filho (1998) e seu
trabalho sobre “A legislação escolar como fonte para a História da Educação”, em que ele
destaca a legislação como um corpus documental que pode ser enfocado sob várias
dimensões, sendo muito útil como um dos pontos de reconstrução da realidade. Ele afirma
que o trabalho com a legislação pode ser muito interessante, devido às várias faces que ela
pode assumir: como ordenamento jurídico, como linguagem, como prática social, como
prática ordenadora das relações sociais, como campo de expressão e construção das relações e
lutas sociais e como parâmetro comparativo. Entretanto, ele explicita que só a análise da
legislação não basta, devendo haver um intenso cruzamento de fontes. Especificamente em
relação ao tema desenvolvido no presente trabalho, Faria Filho (1998) afirma que:
[...] a legislação sobre a instrução pública pode ser útil, como fonte, para o estudo de
algumas das questões candentes na história da educação brasileira, tais como a
escolarização dos conhecimentos, da complexidade da ação docente e escolar e das
questões relacionadas às relações de gênero. (FARIA FILHO, 1998, p. 120, grifo
nosso)
A legislação sozinha, como visto, não é capaz de demonstrar a realidade tal como era,
mas não deixa de ser uma de suas faces. Por isso, foram feitos cruzamentos com dados
elaborados em outros trabalhos para que o resultado fosse mais relevante.
Afirma-se, portanto, que esse não é um trabalho completo face à realidade a ser
pesquisada, mas que cumpriu seu propósito de ser uma complementação para a análise de
outras fontes históricas referentes ao mesmo assunto. Isso porque os dados analisados podem
servir de referência e ponto de partida para questões futuras relacionadas à educação e às
relações de gênero.
O limite escolhido para a análise foi período imperial, já que, a partir daí, consolida-se o
Império brasileiro como Estado autônomo, que passará a construir suas próprias instituições e
legislar autonomamente. Em relação ao campo educacional, a Assembleia Constituinte já
discutia a questão e, em 1827, o Brasil tem sua primeira lei sobre instrução pública.
O foco do trabalho foram as primeiras legislações do Brasil e de Minas no período
imperial: a Lei de 15 de outubro de 1827 no âmbito nacional e a Lei n.13 de 28 de março de
1835 no âmbito provincial.
290 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA
EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO
2 Educação no Império
Por muito tempo, a questão da educação feminina, no Brasil, foi deixada em segundo
plano. Quando iniciada a colonização, o interesse em relação às mulheres era que cuidassem
da casa, do marido e dos filhos. A instrução se restringia aos homens, que estudavam,
normalmente, nos colégios fundados pelos jesuítas e, posteriormente, terminavam seus
estudos em universidades em Coimbra ou Paris ou nos seminários, seguindo a vocação
religiosa. Essa tradição de submissão feminina vem de toda a Europa e, principalmente, dos
árabes, que exerceram grande influência na cultura portuguesa:
Essa questão nos remete à tradição ibérica, transposta de Portugal para a colônia
brasileira: as influências da cultura dos árabes naquele país, durante quase 800 anos,
consideravam a mulher um ser inferior. O sexo feminino fazia parte do imbecilitus
sexus, ou sexo imbecil. Uma categoria à qual pertenciam mulheres, crianças e
doentes mentais. (RIBEIRO, 2000, p. 79).
Como a maioria das mulheres não sabia ler, nem escrever, foram, muitas vezes,
enganadas por homens próximos, como pai, marido e filhos. Entretanto, a situação começa a
se modificar com o surgimento na segunda metade do século XVII dos primeiros conventos
ou casas de recolhimento no Brasil. Neles, havia o ensino da leitura e de trabalhos
domésticos. Na falta de uma política educacional para as mulheres, eles se tornavam a única
opção razoável para a educação feminina. (RIBEIRO, 2000).
Os poucos lugares destinados à educação eram os recantos religiosos, grande parte sob
controle dos jesuítas:
É por demais conhecido que durante o período colonial não havia quase escolas no
Brasil. Apenas os conventos e os seminários se ocupavam em fornecer uma
instrução àqueles que os procurassem, mas seu número era insuficiente para alterar
substancialmente a costumeira indigência cultural. Se aos homens ensinava-se a ler e
a contar, às mulheres bastavam os trabalhos manuais, pois o androcentrismo da
família patriarcal se encarregava de excluí-las dos menores privilégios, reservando
aos homens os benefícios que a cultura pudesse trazer. Com a vinda da Corte, a
situação aos poucos começa a mudar. Os novos ventos trouxeram educadoras
portuguesas e francesas para as meninas das famílias mais abastadas e, lentamente,
foi deixando de ser uma “heresia social” o ato de se instruir e ilustrar alguém do
sexo feminino. (DUARTE, 2000, p. 292-293).
Nesse período em que a Igreja monopolizava o ensino, uma mudança significativa na
história da educação brasileira ocorre com a expulsão dos jesuítas, em 1759, resultado das
reformas instituídas por Pombal. Uma obra que influenciou essas reformas em Portugal foi “O
verdadeiro método de estudar” de Luís Antonio Verney. Para o autor, não era absurdo algum
que as mulheres estudassem, principalmente porque elas eram as primeiras mestras dos filhos:
Parecerá paradoxo, a estes Cantões Portugueses, ouvir dizer, que as Mulheres devem
estudar: contudo se examinarem o caso, conhecerão, que não é nenhuma parvoíce,
ou coisa nova; mas bem usual, e racionável. Pelo que toca à capacidade, é loucura
persuadir-se, que as Mulheres tenham menos, que os Homens. [...] De que nasce esta
diferença? Da aplicação e exercício, que um tem, e outro não tem. Se das mulheres
se aplicassem aos estudos tantas, quantos entre os homens, então veríamos quem
reinava.
Quanto à necessidade, eu acho-a grande, que as mulheres estudem. Elas,
principalmente as mães de família, são as nossas mestras, nos primeiros anos da
nossa vida: elas nos ensinam a língua; elas nos dão, as primeiras ideias das coisas. E
que coisa boa nos hão de ensinar, se elas não sabem o que dizem? Certamente, que
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
291
os prejuízos que nos metem na cabeça, na nossa primeira meninice; são sumamente
prejudiciais, em todos os estados da vida [...].1 (VERNEY, 1746, p. 291)
Percebe-se, portanto, que a primeira preocupação com a educação feminina não está
voltada para a figura da mulher, mas para o próprio homem. Afinal, a mulher deve agora ter
seus estudos incentivados para ser uma boa mãe e ser capaz de educar seus filhos com
sabedoria. A figura do homem permanece no centro, portanto.
2.1 Primeira legislação sobre instrução pública
Quando o Brasil se torna independente, em 1822, o novo Império passa a editar suas
próprias leis. E a educação não é excluída dos debates. Pelo contrário, ela foi colocada em
posição privilegiada, dentro do projeto de arregimentar o povo para a construção do novo país
independente. “Nessa perspectiva, a instrução como um mecanismo de governo permitiria não
apenas indicar os melhores caminhos a serem trilhados por um povo livre mas também
evitaria que esse mesmo povo se desviasse do caminho traçado”. (FARIA FILHO, 2000, p.
137). No âmbito das províncias, algumas medidas também tiveram que ser adotadas nesse
sentido, uma vez que as manifestações sociais ameaçavam a integridade do novo Império.
“No conjunto de medidas adotadas pelo governo provincial, a instrução pública serviria à
formação dos cidadãos, à produção da identidade nacional e à consolidação do sentimento de
pertencimento a uma nação”. (VIANA, 2002, p. 110).
Os discursos se centravam na questão precária do ensino e na necessidade de se
implantar novos métodos, inovar na formação dos professores, formular novos compêndios e
material didático. Também se ressaltava a importância de comissões específicas no Conselho
Geral das províncias que cuidasse do assunto. (SALES, 2008). O objetivo era cumprir a
previsão constitucional da gratuidade da instrução pública a todos os cidadãos como um
direito individual (art. 179, XXXII).
A primeira e única lei do império que trata da instrução primária no Brasil é a Lei de 15
de outubro de 1827. Essa lei traz a seguinte ementa “manda criar escolas de primeiras letras
em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do império”. O principal objetivo, pois,
era criar quantas escolas de primeiras letras fossem necessárias em todas as cidades, vilas e
lugares mais populosos.
O método de ensino indicado por tal lei era o método mútuo, também conhecido como
método lancasteriano. Um decreto de 1º de março de 1823 já elogiava esse método “pela
facilidade e precisão com que desenvolve o espírito, e o prepara para aquisição de novas e
mais transcendentes ideias.” Até então, o método de ensino era o individual. Ou seja, mesmo
que houvesse muitos alunos em sala, a professora ensinava a cada um por vez. Esse método
teve como consequência o desperdício de tempo e problemas com a disciplina dos alunos. Por
isso, o método mútuo foi muito bem recebido e considerado o mais adequado, pois seria capaz
de reduzir o tempo de aprendizado, generalizar o ensino a várias camadas da população e
diminuir custos. O método tinha como característica o auxílio aos professores dos alunos mais
adiantados que eram postos como monitores e ajudavam os demais colegas no aprendizado.
(FARIA FILHO, 2000). A vulgarização desse método em várias escolas foi muito incentivada
pelos Conselheiros em Minas Gerais. (SALES, 2008).
A lei também especificava que os castigos seriam os praticados pelo método Lancaster.
Esses castigos eram uma mescla de ofensas físicas e morais, tendo como expoente a
palmatória. O cotidiano da escola, portanto era confuso, marcado pelo barulho comum das
lições de leitura e tabuada, de rezas e cânticos realizados ao mesmo tempo, juntamente com o
temor que a simples presença da palmatória ou da vara de marmelo sobre a mesa do professor
1 Optou-se por atualizar a escrita do português, embora se tenha mantido a pontuação original.
292 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA
EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO
causava. Os alunos ainda tinham que suportar o abuso dos monitores, que, muitas vezes, não
se restringiam à sua tarefa de auxiliar o professor com as lições, mostrando-se verdadeiros
déspotas em miniatura, subjugando os colegas. (MUNIZ, 2002).
A mulher ia conquistando espaço na educação, mesmo que fosse apenas para serem
boas mães de família. Mas justamente devido a esse argumento, sua educação era sempre
diferenciada. Essa lei do império também trazia essas diferenciações. Para as meninas, não
seriam providenciadas quantas escolas fossem necessárias. Haveria escolas nas cidades e vilas
mais populosas, em que os Presidentes dos Conselhos julgassem necessário este
estabelecimento. Ou seja, providenciar escolas para mulheres seria uma questão de puro
arbítrio.
Outra grande diferença dizia respeito às disciplinas lecionadas aos meninos e meninas,
algo bem condizente com os propósitos educacionais: futuros trabalhadores para o mercado
em relação aos homens e exímias donas de casa, esposas e mães em relação às mulheres.
[...]
Art. 6o Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética,
prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria
prática, a gramática de língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina
da religião católica e apostólica romana, proporcionados à compreensão dos
meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a História do Brasil.
[...]
Art. 12. As Mestras, além do declarado no Art. 6 o, com exclusão das noções de
geometria e limitado a instrução de aritmética só as suas quatro operações, ensinarão
também as prendas que servem à economia doméstica; e serão nomeadas pelos
Presidentes em Conselho, aquelas mulheres, que sendo brasileiras e de reconhecida
honestidade, se mostrarem com mais conhecimento nos exames feitos na forma do
Art. 7º.
Pode-se perceber que a educação feminina se restringia a saber ler, escrever, resolver as
quatro operações e aprender a doutrina cristã. As mulheres não aprendiam geometria e nem
todas as questões de aritmética. A ênfase era nas prendas domésticas, porque a oportunidade
de educação para as mulheres só foi viabilizada para torná-las melhores educadoras de seus
filhos, como se percebe na afirmação de Muniz:
[...] currículos diferenciados segundo o gênero limitavam o acesso das meninas a
uma escolarização de nível primário, visto que a formação oferecida direcionava-se
exclusivamente para o desempenho das atribuições restritas à esfera privada do lar,
cerceadora de possíveis perspectivas de prosseguimento nos estudos. (MUNIZ,
2002, p. 315).
Essa precária instrução feminina levava-as a adquirir poucas habilidades para um
mercado de trabalho, restringindo sua formação a ser uma boa cozinheira, uma boa costureira
e uma boa educadora de crianças, ou seja, a perfeita dona de casa.
Embora vozes ressoassem em defesa de uma reforma na questão educacional, para que
houvesse uma maior e mais igualitária participação feminina2, sabia-se que era uma questão
muito difícil devido aos preconceitos já arraigados na sociedade. Além disso, não havia
interesse dos homens em educar as mulheres, pois sendo elas submissas, a dominação se
mostrava mais fácil.
As concepções e formas de educação das mulheres nessa sociedade eram múltiplas.
Contemporâneas e conterrâneas, elas estabeleciam relações que poderiam revelar e
2 A referência que se faz é à escritora oitocentista Nísia Floresta (Dionísia Gonçalves Pinto), autora de “Direito
das Mulheres e Injustiça dos Homens” (1832) e “Opúsculo Humanitário” (1853).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
293
instituir hierarquias e proximidades, cumplicidades ou ambiguidades. Sob diferentes
concepções, um discurso ganhava a hegemonia e parecia aplicar-se, de alguma
forma, a muitos grupos sociais a afirmação de que as “mulheres deveriam ser mais
educadas do que instruídas”, ou seja, para elas, a ênfase deveria recair sobre a
formação moral, sobre a constituição do caráter; sendo suficientes, provavelmente,
doses pequenas ou doses menores de instrução. Na opinião de muitos, não havia
porque mobiliar a cabeça da mulher com informações ou conhecimentos, já que seu
destino primordial – como esposa e mãe – exigiria, acima de tudo, uma moral sólida
e bons princípios. Ela precisaria ser, em primeiro lugar, mãe virtuosa, o pilar de
sustentação do lar, a educadora das gerações do futuro. (LOURO, 2004, p. 446-447).
Pelo menos em termos profissionais, a Lei de 15 de outubro de 1827 não estabelecia
diferenças, porque afirmava que tanto os mestres quanto as mestras receberiam os mesmos
ordenados e gratificações.
Em vários lugares houve discussões sobre a implementação da nova lei. Bernardo
Pereira de Vasconcelos, deputado da Assembleia Geral, na sua carta para os eleitores da
província de Minas Gerais, destacava a importância da vulgarização da instrução pública, que
seria capaz de aniquilar a dependência que uma classe dominante exercia sobre a outra.
Ressaltava o quanto era necessário ler, escrever, saber as operações básicas e a gramática
pátria e que a educação feminina também deveria ser considerada, abrindo-se escolas de
primeiras letras para as meninas. (SALES, 2002, p. 207-208)
Mas a realidade, muitas vezes, destoava do que era estabelecido de forma ideal nas leis.
Em 1827, na província de Minas Gerais, percebia-se que o número de mestres particulares era
ainda bem superior ao número de mestres públicos e os salários dos mestres de primeiras
letras era inferior ao das demais cadeiras (Lógica, Gramática Latina, Desenho). E ainda o
número de alunos do ensino particular era três vezes maior do que os do ensino público,
embora a Constituição do Império tenha estabelecido a educação gratuita para todos os
cidadãos. (SALES, 2008, p. 86-87).
Neste ponto, chama atenção a questão dos negros. Em todos os colégios, inclusive
públicos, até, pelo menos, a metade do século XIX, era proibida a frequência de crianças
negras, ainda que fossem livres, o que não impedia, às vezes, de serem instruídas no âmbito
das famílias abastadas em que viviam trabalhavam. (FARIA FILHO, 2000).
Entretanto, a Lei de 15 de outubro de 1827 não ficou isenta de críticas. O próprio
Bernardo Pereira de Vasconcelos, defensor da lei, pois incentivava a vulgarização da
instrução pública na província de Minas Gerais, destacou o desperdício que ocorria pela
abertura de escolas em lugar pouco populoso e o baixo salário dos professores. Para corrigir o
erro, propunha, como solução da Assembleia, a construção de escolas nos lugares mais
populosos, o aumento do vencimento dos professores e o estabelecimento de uma gratificação
para os professores que se destacassem. Ressaltou também que a culpa pelo desleixo de
muitos professores não poderiam ser imputados à Assembleia, mas aos próprios cidadãos, que
não reagiam, mesmo com direito de petição e a imprensa livre. (SALES, 2002, p. 208-209).
No período regencial, houve importante mudança na estrutura administrativa do
Império, com a descentralização promovida pelo Ato Adicional de 1834 (Lei n. 16 de 12 de
agosto de 1834). O campo da educação sofreu reflexos dessa lei, pois, de acordo com seu art.
10, § 2º, cabia agora às Assembleias Legislativas Provinciais legislar sobre instrução pública e
estabelecimentos próprios a promovê-la, exceto o ensino superior que continuava a cargo do
governo imperial. E os presidentes provinciais abusaram desse dispositivo de intervenção,
uma vez que várias províncias editaram exagerado número de leis sobre o assunto.
A descentralização do ensino que permitiria às províncias atenderem às necessidades
locais teve como resultado a multiplicação da instrução primária, secundária e
294 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA
EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO
mesmo superior, muito embora sem uma organização ainda e com realidades locais
diferenciadas. Caracterizava-se assim um ensino de graduação de escolas,
diversificado entre federal e municipal, também particular. (SALES, 2002, p. 209).
2.2 Ensino em Minas Gerais
Em Minas Gerais, a prerrogativa da Assembleia Provincial foi exercida rapidamente,
por meio dos trabalhos de elaboração de uma legislação específica. Em 1835, a província de
Minas Gerais, onde o número de escolas particulares ainda era considerável, teve sua primeira
lei de instrução pública.
Segundo essa lei, a instrução primária constaria de dois graus: no 1º se ensinaria a ler e
escrever e a prática das quatro operações aritméticas; no 2º, a ler, escrever, aritmética até as
proporções e noções gerais dos deveres morais e religiosos. As escolas de 1º grau deveriam
estar em todos os lugares em que pudessem ser habitualmente freqüentadas por vinte quatro
alunos ao menos. O Governo poderia estabelecer também escolas para meninas nos lugares
em que existissem escolas do 2º grau e em que pudessem ser habitualmente freqüentadas por
vinte quatro alunas ao menos. Nestas escolas se ensinariam, além das matérias do 1º grau,
ortografia, prosódia, noções gerais dos deveres morais, religiosos e domésticos.
A legislação da província mineira mantém a mesma orientação da lei do império. A
educação das meninas continua enfatizando as questões religiosa e doméstica. O
estabelecimento de escolas para as mulheres também é dificultada. Enquanto para os homens
a exigência era apenas ser a escola frequentada por um mínimo de vinte e quatro alunos, para
as meninas era necessário que já existissem escolas de 2º grau no local, conjuntamente com a
frequência de vinte e quatro alunas. Além disso, as meninas só poderiam cursar o chamado 1º
grau, o que demonstra o quão ínfimo era o conhecimento a que elas poderiam ter acesso.
Com a necessidade de abertura de novas escolas na província, o Governo estabeleceu,
na lei, que deveria ser fundada, o quanto antes, uma Escola Normal para a formação de
professores para a instrução.
A segregação dos escravos do sistema educacional permanece e de forma expressa na
lei. O art. 11 claramente declara que “somente as pessoas livres podem freqüentar as Escolas
Públicas, ficando sujeitas aos seus Regulamentos”.
Além da instrução pública, eram permitidas escolas particulares, independentemente de
licença do Governo, desde que os professores fossem habilitados na forma da Lei.
Há um dispositivo muito interessante nessa lei que tornava o ensino de primeiro grau
obrigatório para meninos entre oito e quatorze anos. Portanto, os pais deveriam providenciar o
ensino de seus filhos em escolas públicas ou particulares ou em sua própria casa. A infração
dessa norma poderia gerar como sanção uma multa de dez a vinte mil réis e a reincidência
dobrar a pena anterior.
Segundo Diva do Couto Gontijo Muniz (2002), a regulação do ensino esteve marcada
por muitas reformas, devido à descontinuidade dos cinquenta e nove Presidentes que
governaram Minas Gerais até 1889. A divisão em 1º e 2º graus do ensino primário foi
modificada pela Lei n. 1064 de 4 de outubro de 1860, que transformou o ensino primário em
grau único. Apesar da modalidade única, as meninas, além das matérias de leitura, escrita,
operações aritméticas, doutrina cristã, noções de moral e civilidade, também deveriam ter
aulas de trabalhos de agulha e noções de economia. As classes também deveriam ser dadas
em ambientes distintos dos meninos. A mudança mais substancial em relação às mulheres se
deu em 1878/1879, quando lhes foi facultado o ensino primário de 2º grau, que até então
esteve restrito aos homens. É o que se percebe na fala de Muniz:
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
295
Todavia, manteve o direcionamento definido para o sexo feminino, qual seja, o de
preparação para o exercício das funções de mãe e dona-de-casa, finalidade, aliás,
que se apresenta como traço característico e permanente do ensino oferecido pelas
escolas primárias, públicas, femininas.
[...]
Tal organização traduz a resposta do poder público às demandas sociais por
ampliação da escolarização feminina, bem como os seus limites. A manutenção das
“prendas domésticas” constitui uma clara definição desses limites, referendários dos
direcionamentos pensados para as mulheres em termos educacionais, circunscritos a
uma futura atuação na esfera doméstica. (MUNIZ, 2002, P. 317).
Houve um aumento de escolas públicas masculinas e femininas no final do século XIX
(DURÃES, 2002, p. 336). Mas ainda havia uma preocupação com a ampliação da rede
educacional para as chamadas “camadas inferiores” e para as mulheres, pois a presença
feminina ainda não estava a contento.
Várias explicações podem ser listadas. Uma delas é que os pais, independentemente da
condição social, ainda tinham muita resistência em enviá-las para as escolas, pois não
gostavam de tê-las em convívio com outros homens. Além disso, especificamente para as
meninas de condição social desfavorável, a necessidade de trabalhar para ajudar no sustento
de casa fazia com que muitas delas se afastassem da escola. Embora a questão do trabalho
atingisse também os meninos, ela foi mais utilizada para ratificar uma condição inferior da
mulher. Ressalte-se ainda que o trabalho doméstico fazia parte da vida da mulher desde cedo,
seja auxiliando a mãe em casa, seja trabalhando em casa de família para auxiliar nas despesas
do lar. Por isso mesmo, sua renúncia à educação foi maior, porque determinados serviços
eram rejeitados pelos meninos, como lavar, passar, cozinhar, cuidar de bebês, por serem
considerados tipicamente femininos. Como esses serviços restavam para as meninas, sua
frequência era prejudicada, quando não eram impedidas de ingressar na escola. (MUNIZ,
2002, p. 306).
No período, não havia apenas colégios masculinos e femininos. Havia também as
escolas mistas, principalmente em lugares menores, em que a fusão se fazia necessária para
redução de custos. Mas não significava que nas escolas mistas homens e mulheres
permaneciam juntos. Várias cautelas eram tomadas. Em primeiro lugar, as escolas mistas,
assim como as femininas deveriam estar sob responsabilidade de professoras e as masculinas,
sob responsabilidade de professores. As meninas, portanto, não poderiam estar sob supervisão
de um professor. Mesmo quando havia algum contato entre meninas e meninos, essa
convivência se dava de modo muito particularizado e só até os primeiros atingirem a idade de
09 ou 10 anos e com algumas precauções. “Adentrando a esse novo espaço escolar
identificamos horários alternados; alas, salas e pátios de recreio separados; biombos
separando meninos e meninas.” (DURÃES, 2002, p. 340).
Pode-se resumir a situação escolar, em relação aos sexos, com os dados da tabela que se
segue, extraída do artigo de Diva do Couto Gontijo Muniz (2002, p. 299):
296 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA
EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO
Instrução primária de 1º e 2º graus: quantitativo de escolas públicas e de matrículas, por sexo, de 1805 a 1889
Escolas
masculinas
Escolas femininas
Período
Total
Proporcionalidade das
meninas
Escolas
mistas
Escolas
Alunos/
alunas
Total de
escolas
Total de
matrículas
Nº de
escolas
Nº de
alunos
Nº de
escolas
Nº de
alunas
1805-1814
22
*
0
0
*
22
*
0%
0%
1815-1825
27
753
3
65
1
31
818
10%
8%
1826-1827
30
1.065
3
92
*
33
1.157
9%
8%
1828-1837
129
4.235
14
352
*
143
4.587
10%
7,7%
1838-1851
184
6.869
23
673
*
207
7.542
11%
9%
1852-1861
294
10.383
42
1.543
*
336
11.926
12,5%
13%
1862-1867
306
8.042
61
1.300
*
408
9.347
15%
14%
1868-1879
673
17.312
224
7.170
*
897
24.482
25%
30%
1880-1889
928
28.836
639
15.111
82
1.649
43.947
39%
34,3%
(*) Sem dados
Esse quadro mostra números não muito expressivos, mas capazes de demonstrar a
trajetória de ingresso e permanência das mulheres nas escolas.
A partir da metade do século XIX, entretanto, houve uma preocupação com a ampliação
dos moldes da educação feminina, segundo afirmação de Inácio Filho (2002, p. 54):
Na sociedade patriarcal e educação feminina restringiu-se às boas maneiras e às
prendas domésticas, porém, com o movimento crescente de urbanização e
industrialização, a sociedade passou a exigir da mulher um certo desembaraço em
decorrência da necessidade de freqüentar as festas e reuniões sociais que se tornaram
cada vez mais regulares. Assim se foram abrindo espaços para atividades
educacionais complementares, como aprendizagem de algum instrumento musical,
línguas estrangeiras, artes e aula de etiqueta social.
Repare-se, contudo, que permanece a intenção implícita de tornar a mulher uma melhor
parceira para seu esposo.
2.3 Outras opções: ensino doméstico e internatos
Mas a via da instrução pública não era a única opção. Pelo menos não para as famílias
mais abastadas. Era comum que elas contratassem governantas e preceptoras estrangeiras,
vindas da França, da Inglaterra e da Alemanha, por seu prestígio e status, conhecidas como as
mais cultas e qualificadas. (RITZKAT, 2000, p. 272). Os pais preferiam suas filhas educadas
em casa a tê-las que mandar para uma escola.
Conforme Marly Gonçalves Bicalho Ritzkat (2000, p. 280), as preceptoras ficavam
responsáveis pela educação de todos os filhos da casa. Devido à diversidade de idades,
dividia-os em duas turmas: dos “pequenos” e dos “grandes”. Contudo, os meninos só
recebiam em casa o ensino das primeiras letras, porque logo eram mandados para estudar
fora. Mas as meninas, inicialmente educadas pela mãe e, posteriormente, pela preceptora,
podiam receber toda a educação em casa, aprendendo o necessário para exercer o papel que
delas era esperado na sociedade. Mesmo porque sua permanência em escolas não era longa.
Como visto anteriormente, as meninas, durante muito tempo, puderam cursar somente o
chamado 1º grau. Então, não havia prejuízo explícito em serem educadas em casa, uma vez
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
297
que o currículo permanecia o mesmo, com o objetivo de transformá-las em exímias donas de
casa. Os homens, na verdade, temiam mulheres muito instruídas, que pudessem trazer perigo
para o lar, uma vez que se tornavam seres “menos dóceis e menos domáveis”. Por isso, de
acordo com o imaginário da época, não havia incentivo à continuação dos estudos pelas
mulheres. Mulheres muito estudadas eram raridades que chamavam atenção na sociedade.
Após o primário, com matérias de preparação para a tarefa doméstica, as mulheres já estavam
prontas para seu natural desígnio: o casamento.
Nesse período, surgem também as teses higienistas, que pregavam, dentre outras coisas,
a necessidade de espaços próprios para a atividade educacional. Os internatos se encaixavam
perfeitamente nessa perspectiva e acabaram sendo uma ótima opção para a elite em relação à
educação de sua prole.
Para adequar pais, mães, filhos e filhas ao que consideravam pertinente às normas da
saúde física, mental e moral, os higienistas combateram em várias frentes. Uma
delas foi a escola, mais particularmente os internatos, redutos de famílias mais
abastadas. Bastiões da moralidade, essas escolas deviam organizar-se para coibir
todas as modalidades de manifestação sexual inadequadas, etiologia da maioria dos
males segundo o receituário dos médicos; deviam estabelecer padrões de
alimentação, regrar horários de estudos e de atividades físicas, controlar o tempo dos
banhos, fiscalizar os dormitórios, separar meninos e meninas, enfim, uma série de
medidas higiênicas para produzir o indivíduo saudável, o cidadão decente e honesto,
o responsável pelo futuro da nação. As escolas deviam fazer aquilo que a família –a
colonial e a colonizada – era incapaz: educar segundo os saberes oriundos da
ciência. (CUNHA, 2000, p. 453).
A educação em internato encontrava respaldo em teorias pedagógicas da época que
afirmavam ser a criança propensa ao mal, devendo, pois, ser educada em um lugar isolado e
seguro, para evitar o pecado. Especificamente no século XIX, a teoria fundamental era de que
o mundo estava em crise, ameaçado pelo mal vindo de todos os lados. Uma boa educação,
portanto, seria aquela em que a criança permanecesse isolada de todo o mal, a fim de
consolidar sua formação moral e poder se defender sozinha do mundo corrupto que a
esperava. (SANTOS, 2008, p. 457). A escola em regime de internato seria a protetora das
crianças. Quando se tratava das mulheres, então, o esforço era redobrado, pois elas eram mais
propensas ao pecado; vide o exemplo de Eva nas Sagradas Escrituras.
As normas eram rígidas e as meninas deveriam se submeter ao regimento próprio do
estabelecimento. Elas permaneciam a maior parte do tempo sob vigilância, porque a intenção
era que o mundo exterior deixasse de influenciar na vida das alunas. A ênfase era dada em
práticas educativas que buscavam o ideal de mulher. Por isso, havia mais destaque nas normas
e práticas definidoras de valores do que no conhecimento que ia ser ensinado. (INÁCIO
FILHO, 2002, p. 59). As normas e regras internas eram feitas para modelar a mulher: seu
corpo, seus gestos, sua linguagem, seu comportamento.
Eram comuns, nesse período, os internatos femininos sob coordenação de ordens
religiosas. O ensino era rígido e a questão da moral cristã, supervalorizada. Mas a opção de
internatos se restringia às classes mais abastadas, pois o custo era muito alto; não só o relativo
às mensalidades, como também do enxoval que deveria ser cuidadosamente preparado. É o
que se ratifica no trecho de Muniz:
Para as meninas dos setores mais favorecidos dessa sociedade, ela [experiência
feminina da escolarização] se deu, inicialmente, no espaço enclausurado dos
recolhimentos e, depois, predominantemente, no interior das instituições religiosas
de ensino, sob o regime de internato e externato. Incluiu, ainda, a experiência nos
“colégios” femininos, laicos [...]. Para aquelas de seus segmentos médios e
inferiores a experiência escolar de alfabetização ocorreu nas escolas primárias de
298 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA
EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO
instrução pública, cujo acesso lhes foi aberto, de forma lenta e gradual. (MUNIZ,
2002, p. 305).
2.4 Aproximação da República
Em fins do século XIX, havia uma disputa entre a formação cristã das mulheres, por
meio dos colégios e internatos religiosos e as novas concepções, ligadas às ideias positivistas
e cientificistas de reforçar a questão materna, por meio de novidades da ciência, da qual se
pode citar a incorporação de disciplinas como a puericultura e a psicologia nos cursos
normais. Independentemente da vertente que se seguia, o resultado acabava por ser o mesmo:
continuar o mesmo discurso, já comum no período imperial, de que a maior justificativa para
a defesa da educação feminina era torná-la uma ótima educadora para seus próprios filhos. “A
educação da mulher seria feita, portanto, para além dela, já que sua justificativa não se
encontrava em seus próprios anseios ou necessidades, mas em sua função social de educadora
dos filhos ou, na linguagem republicana, na função de formadora dos futuros cidadãos”.
(LOURO, 2004, p. 447).
O que se percebe é que mesmo estando já nas décadas finais do século XIX, às vésperas
da proclamação da República, ainda persistia o mesmo pensamento. Numa pesquisa realizada,
em 1881, com vários pesquisadores, na cerimônia comemorativa da inauguração de aulas para
mulheres no Imperial Liceu de Artes e Ofícios, num total de 127 entrevistados: 9
consideraram que a educação só tinha o objetivo de preparar a mulher para o lar, não devendo
ter qualquer relação com a emancipação intelectual e profissional femininas; 16, afirmaram
que a educação deveria consistir apenas na formação moral e cristã da mulher; 63
expressaram que educar a mulher era colaborar com a dignificação da família, da nação e do
mundo; 23 disseram que a educação tinha relação com a emancipação feminina. Outros nove
deram respostas evasivas. (DUARTE, 2000, p. 301). Constância Lima Duarte (2000, p. 301)
considera em relação a tal contexto que “a grande maioria das respostas aponta, como se pode
perceber, para uma educação permeada pela religião e pela moral, que aperfeiçoasse ainda
mais a mulher e a tornasse naturalmente devotada ao lar, à família e às tarefas domésticas.”
3 Conclusão
Durante o período imperial, quando se começa a dar atenção para a educação feminina,
é possível observar avanços. Entretanto, nota-se que o discurso por trás do incentivo à
educação feminina permaneceu o mesmo durante todo o período, qual seja, a mulher deve
estudar para ser boa mãe e educadora dos filhos.
A questão de gênero é perceptível nas legislações analisadas. Chama atenção o cuidado
que havia nas escolas mistas em organizar as aulas de meninos e meninas em horários
distintos, promovendo a separação física entre eles. Outro indício é a frequência dos homens a
essas escolas só até certa idade, período em que era considerado “sexualizado”, devendo ser
afastado do convívio feminino. A preferência pela construção de escolas para o sexo
masculino antes das do sexo feminino demonstra como a preocupação maior era com a
educação masculina em detrimento da feminina, principalmente nas classes mais baixas.
A principal diferença, contudo, presente em todas as legislações pesquisadas é a
curricular. Além da mulher ser privada de algumas matérias, deveria sempre ter trabalhos de
agulha, com ênfase na costura, e economia doméstica.
Pode-se dizer, portanto, que houve avanço em relação ao ensino feminino, mas o
discurso que o embasava desde o império permaneceu durante os primórdios da República,
não se podendo olvidar a maior dificuldade das mulheres para chegarem à sala de aula e seu
ensino diferenciado, voltado para as questões do lar.
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
299
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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
301
SIGNIFICADOS DO CÓDIGO CIVIL NO DISCURSO DE JURISTAS DA PRIMEIRA
REPÚBLICA: PEQUENA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA COMPREENSÃO CRÍTICA DA
CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA
MEANINGS OF THE CIVIL CODE WITHIN THE DISCOURSE OF 1ST REPUBLIC
LAWYERS: A SMALL CONTRIBUTION TOWARDS A CRITICAL UNDERSTANDING OF
BRAZILIAN LEGAL CULTURE
Juliano Rodriguez Torres*
*
Juliano Rodriguez Torres,
[email protected]
bacharel
em
direito
e
mestrando
no
PPGD/UFPR.
E-mail:
302 SIGNIFICADOS DO CÓDIGO CIVIL NO DISCURSO DE JURISTAS DA PRIMEIRA REPÚBLICA:
PEQUENA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA COMPREENSÃO CRÍTICA DA CULTURA JURÍDICA
BRASILEIRA
Em busca de significados
À primeira vista, o tema do presente artigo pode não parecer digno de uma investigação
acadêmica. Por um lado, grande parte dos "práticos" do direito da atualidade tenderão a
acreditar que o "universo mental" dos juristas há cerca de uma centena de anos seja algo que
já não importa, e que o "legado" das gerações passadas "já está aí" como um patrimônio
incorporado, um conjunto de "descobertas" pronto a ser simplesmente aproveitado - e nunca
repensado - no cotidiano jurídico (ou, inversamente, que se trate apenas da sombra de um
paradigma superado, de cujo peso já nos livramos); por outro lado, haverá sempre quem possa
questionar a relevância histórico-social de uma pesquisa que dirige suas lentes para uma
"idéia", um "conceito" ou uma "representação", tendendo a identificá-la, equivocadamente,
com a velha prática de uma "história das idéias" que, distanciada da realidade social, parte do
"mundo das idéias" para dele não mais sair.
Se estes são os riscos, antes de falarmos dos "significados do Código Civil" no discurso
de juristas da primeira república brasileira, devemos deixar registrado, em primeiro lugar, que
se quisermos adequadamente compreender os fenômenos jurídicos do presente (FONSECA,
1995, p. 249), e com isso contribuir para a solução de problemas do presente (HESPANHA,
2009, s/n), o passado jurídico não pode permanecer "mumificado" pelo "sono do jurista" cujo
senso comum permanece assentado "na crença difusa de conquistas últimas e eternas, na
fixação de uma dogmática imobilizadora, na indiscutibilidade de certas categorias" (GROSSI,
2004, p. 7) e na convicção acrítica de "que o direito atual, o direito moderno, é o ápice de
todas as elaborações jurídicas de todas as civilizações precedentes, já que é a única ungida
com a água benta da 'racionalidade'" (FONSECA, 2009, p. 23); daí porque apostarmos na
força crítica e relativizadora da história do direito (FONSECA, 2009, p. 36), como saber
vocacionado a auxiliar-nos a "adquirir plena consciência da historicidade e relatividade de um
ideário jurídico que se assenta sobre nossas costas" (GROSSI, 2004, p. 9), na medida em que
"desvela aquilo que no fenômeno jurídico antes estava encoberto" (FONSECA, 2009, p. 22).
Em segundo lugar, aos que possam pensar que estamos a tratar de "velharias", as quais
já não nos afetam, caberá sempre a advertência marxiana de que "os homens fazem a sua
própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias
de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas
pelo passado" (MARX, 1984, s/n)1; no que diz respeito à realidade jurídica, deve-se
acrescentar a esse "peso estruturante das circunstâncias" a consciência (ou a suspeita) de que a
história do direito "não é apenas a singela sombra do que se passa noutro lado" (HESPANHA,
1978, p. 7), e relembrar, como arremate para o bom entendedor, a imagem mítica segundo a
qual aquele que tenta manipular forças que desconhece está sujeito a armadilhas, das quais
talvez não consiga escapar2.
1
Nesta riquíssima passagem, tão conhecida quanto desprezada, do "18 Brumário", Marx observa que até mesmo
os esforços de criação revolucionária de novas bases para as relações sociais precisam se expressar na linguagem
das gerações passadas, invocando, em favor das transformações, suas tradições e seus símbolos; essa rede tecida
por "memórias", "ideais", "paixões", "ilusões" e "formas de arte" tomadas de empréstimo dos mortos - o que é
inevitável - captura os homens dentro de seus limites, além dos quais somente se pode ir após um intenso
exercício de autoconsciência e de autocrítica. Aqui se coloca o problema da relação entre passado e presente,
mas também todo o problema da relação entre "ser social" e "consciência", que precisa ser compreendida em sua
inteira complexidade, para além de todo reducionismo mecanicista ou linear. Michel Vovelle (2004, p. 11/12),
ao discutir a ligação entre "ideologia" e "modo de produção", lembra o desabafo de Engels, para quem "o fator
determinante é, em última instância, a produção e reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu jamais afirmamos
mais do que isso. Se, mais tarde, alguém torce essa proposição, fazendo-a dizer que o fator econômico é o único
determinante, transforma-a em uma frase vazia abstrata e absurda..."
2
Este, aliás, é um dos grandes temas da literatura fantástica oitocentista, a exemplo do “Frankenstein” de Mary
Shelley, sobre o qual vale reproduzir o comentário de Harold Bloom: “Victor Frankenstein, though he possesses
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
303
Por fim, embora a esta altura isso já pareça claro, adverte-se que a nossa premissa
básica é a de que não haverá "texto", "idéia" ou "conceito" sem contexto, seja porque "os
saberes também fazem parte do jogo de forças que compõe o mundo histórico em que
vivemos" (FONSECA, 2009, p. 22), seja porque uma compreensão histórico-crítica do
pensamento e do discurso implica a "escavação" (ou, quem sabe, a "escovação", a contrapêlo)
de dimensões qualitativas que não apenas desmentem a sua "impermeabilidade" ao processo
histórico-social circundante, como também revelam seus pressupostos "extra-técnicos":
ideologias, atitudes, imaginários, sensibilidades, etc., que também podem emergir de uma
"leitura participante" dos textos, "por de cima do ombro daqueles que os escreveram"
(HESPANHA, 2005, p. 61). E porque isso é importante? Justamente porque "não podemos
conceber nenhuma forma de ser social independentemente de seus conceitos e expectativas
organizadores, nem poderia o ser social reproduzir-se por um único dia sem o pensamento"
(THOMPSON, 1981, p. 16): a experiência "vivida" depende das questões, das problemáticas,
dos desafios e das expectativas emergentes de uma reflexão sobre a própria experiência vivida
(e poderíamos acrescentar, depende de uma sensibilidade que a interpreta). Para uma história
da cultura jurídica, esse caráter "estruturante" (ao mesmo tempo que "estruturado") do
pensamento e do discurso e tão mais crucial quanto mais se compreenda o direito como um
produto social que, além de "produto", é também momento do "processo" e,
conseqüentemente, ele mesmo um processo social3.
Ao pensarmos em "conceitos e expectativas organizadores da experiência" ou, mais
amplamente, na dimensão ordenadora da "consciência social", temos de levar em conta o
papel dos símbolos como algo mais que "representações" mecânicas de objetos exteriores ao
pensamento, atentando para a sua "riqueza incomum de sentido" (DARNTON, 2010, p. 345) e
tomando a sério seus "poderes especiais" no âmbito da cultura (Id., Ibid.): em outras palavras,
a compreensão adequada de um "processo cultural" exige-nos enxergar no jogo entre
"significantes" e "significados" a presença de efeitos bem mais do que meramente
"descritivos". Uma pista interessante nesse sentido é oferecida por Darnton (2010, p.
344/345):
(...) nós pensamos no mundo da mesma maneira que falamos sobre ele,
estabelecendo relações metafóricas. (...) Não se podem conceber essas relações sem
referência a um conjunto de categorias que servem como um crivo para classificar a
experiência. A linguagem nos dá nosso crivo mais básico. Ao nomear as coisas, nós
as inserimos em categorias linguísticas que nos auxiliam a ordenar o mundo.
Para o historiador do direito, não pode haver dúvida de que o "Código" é um símbolo
generous impulses, is nothing less than a moral idiot in regard to the ´monster´ he has created. Even at the end,
he cannot understand his own failure of moral imagination, and he dies still misapprehending the nature of his
guilt. He is thus at once a great hermetic scientist, an astonishing genius at breaking through human limitations,
and a pragmatic monster, the true monster of the novel. His trespass is beyond forgiveness, because he is
incapable of seeing that he is both a father, and a god, who hás failed to love his marred creation”(p. 9). Em
tradução livre: "Victor Frankenstein, ainda que possua impulsos generosos, é nada menos que um idiota moral
em face do "monstro" que criou. Mesmo ao final, ele não é capaz de entender o fracasso da própria imaginação
moral, e morre sem chegar a compreender a natureza de sua culpa. Ele é, portanto, a um só tempo, um grande
cientista hermético, um gênio dotado de uma capacidade assombrosa em superar as limitações humanas, e um
monstro pragmático, o verdadeiro monstro do romance. Sua transgressão é imperdoável, porque ele é incapaz
de ver que é ao mesmo tempo um pai, e um deus, que fracassou por não conseguir amar sua criação arruinada".
Em favor de uma história crítica do direito, que compreende o seu “objeto” como algo mais que um sombrio
“reflexo” e como algo distinto de uma asséptica “redoma de marfim”, ressaltando a sua espessura histórica,
argumentemos como bons racionalistas (e, mais que isso, como bons moralistas): se desprezamos o problema de
entender a fundo as “circunstâncias” que nos “determinam” (e dentro das quais nos movemos) e os
“instrumentos” que “manejamos”, corremos o risco de ignorarmos, como Victor Frankenstein, o significado de
nossos próprios atos e, inadvertidamente, criar-nos a nós mesmos como monstros.
3
Para uma discussão teórico-metodológica, ver a síntese de Antônio Manuel Hespanha (2005, p. 38/41).
304 SIGNIFICADOS DO CÓDIGO CIVIL NO DISCURSO DE JURISTAS DA PRIMEIRA REPÚBLICA:
PEQUENA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA COMPREENSÃO CRÍTICA DA CULTURA JURÍDICA
BRASILEIRA
(GROSSI, 2007, p. 89), cuja emergência histórica traduz polêmicas, tensões e aspirações
associadas à afirmação da cultura jurídica burguesa na Europa do século XIX (GROSSI,
2007, p. 88/113) e à sua ulterior projeção e difusão para muito além do ambiente europeu,
notadamente em uma América Latina desejosa de "modernização", diante da qual o Brasil
aparece como caso excepcional de uma codificação "tardia", em que "foi o Código Civil
desejado, projetado, desenhado, mas nunca realizado no século XIX" (FONSECA, 2010, p.
16). De toda forma, parece importante ressaltar que, à época da codificação civil brasileira, o
"Código símbolo" (GROSSI, 2007, p. 89), em meio às peculiaridades locais, está presente no
discurso dos juristas, com toda a sua força simbólica. E essa força da "idéia de Código" está
muito longe de ser desprezível, dada a sua radicalidade, que já se mostrara tão nítida no
contexto europeu originário:
(...) havia também, como se dizia, a radicalidade da ´ideia codigo´. Ela será mais do
que uma mera ideia: será um mito, um símbolo. O código será celebrado, recitado,
louvado. Recebido como "o documento do cidadão", será tomado como uma
conquista civilizacional perene, eterna, inalienável. Não por acaso Napoleão dirá que
ele, o Imperador, será lembrado não pelas batalhas que havia vencido, mas, sim,
pelo seu código. E também não por acaso a iconografia da época mostra Napoleão
sendo coroado pelo tempo, enquanto escreve na pedra o seu código. A noção de
código está vinculada não apenas à ideia de organizar a realidade mas também à
intenção de modelar a própria realidade política e social. O direito, na modernidade
jurídica, investe sobre a realidade, conformando-a (FONSECA, 2010, p. 14/15).
Estamos, portanto, diante de uma noção "radical", cuja presença ativa indica, quando
menos, um processo de transição cultural no que diz respeito aos modos de conceber a
experiência jurídica (e bem assim, no que diz com os modos de "conceber o mundo"); surge,
porém, o problema de se compreender em que termos, com que significados e com quais
implicações essa noção - acompanhada de uma problemática e de um "simbolismo"
distintivos - é recepcionada, imaginada, apropriada e articulada no discurso dos juristas
brasileiros, à época da codificação civil. Obviamente, "esgotar" o tema é uma tarefa hercúlea
e certamente ainda distante; entendemos, por isso mesmo, que esse é um terreno que pede
para ser percorrido. Se é assim, nos propomos à análise e interpretação de algumas evidências
de um "discurso autoconsciente da codificação" no Brasil das primeiras décadas do século
XX. Trata-se de um período em que o projeto modernizador ainda procura vencer as
resistências tradicionais, porém já se mostra fortemente prevalente no plano da doutrina, que
acompanha e impulsiona o movimento de centralização jurídica estatal que se busca
consolidar - processo que, para sua compreensão, exige uma leitura atenta às suas
peculiaridades “locais”.
Nosso objetivo principal, neste trabalho, é auscultar os textos dos juristas envolvidos no
projeto codificador, no intento de realizar uma leitura crítica da compreensão que esses
sujeitos demonstram ter acerca da experiência jurídica em que estão inseridos, e dos discursos
que recepcionam e produzem, em busca da sua contextualização no âmbito de um projeto
histórico, dirigido à "modernização jurídica" brasileira, cujas especificidades permanecem em
grande parte inexploradas, tendo-se constituído apenas recentemente em objeto de
preocupação da historiografia jurídica.
Busca-se, com isso, contribuir para os esforços de investigação da história da cultura
jurídica brasileira na primeira república, a partir de uma iniciativa orientada à compreensão
crítica do imaginário jurídico da época - visto que o direito é também "uma forma de imaginar
o real" (GEERTZ Apud HESPANHA, 2005, p. 100) - tentando desvelar, na medida do
possível, as operações inerentes à formação e aos usos dos conceitos e expectativas
organizadores da experiência jurídica, tal como podem ser surpreendidos na obra dos juristas.
Trata-se, antes de tudo, de proceder a uma leitura "densa" de cada "texto dentro do
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
305
contexto”: acreditamos que essa abordagem permite, ainda que a partir de textos
presumivelmente produzidos desde a perspectiva dos "vencedores", enxergar (e avaliar, no
seu contexto) algumas das opções, das escolhas de fundo, das apostas e das exclusões que
marcaram o processo codificador.
Como fontes primárias foram utilizados o "Código Civil dos Estados Unidos do Brasil
Commentado por Clovis Bevilaqua", de 1916; o "Parecer Juridico" inacabado de Ruy
Barbosa, de 1905, sobre o "Projeto Bevilaqua" de Código Civil, dirigido à Comissão Especial
do Senado; o compêndio de Affonso Dionysio Gama, intitulado "Theoria e Pratica dos
Contractos por instrumento particular no direito brasileiro" (2ª Edição), de 1919; artigos
doutrinários de diversos autores, como Pedro Lessa, João Mendes Júnior, Reynaldo Porchat e
Pontes de Miranda, publicados em periódicos da época, com destaque para a “Revista de
Direito Civil, Commercial e Criminal” de Antonio Bento de Faria; também consultamos
sentenças judiciais do período, especialmente do momento imediatamente subseqüente à
promulgação do Código Civil.
Nossa abordagem das fontes pode ser descrita como uma "história do discurso",
orientada à compreensão e à interrogação dos textos, mediante procedimentos de análise
qualitativa, privilegiando as dimensões da significação intencional, da intertextualidade
implícita e do contexto intelectual, pelas quais se busca, sobretudo, identificar a visão social
de mundo e as opções sócio-políticas comuns aos seus produtores, isto é, às "escolhas de
fundo" que delimitam, no ideário jurídico, o papel dos juristas, da lei, da "ciência" e do
legislador; a construção e a concretização dessas escolhas, por sua vez, são buscadas no plano
das "influências" intelectuais e da sua recepção "local" e ativa.
Os textos, aqui, são tomados, portanto, como manifestações historicamente situadas de
uma “consciência da experiência” jurídica que, por sua vez, ao constituir uma cultura
jurídica, faz-se estruturante da própria experiência, da qual ela é parte, talvez a mais
importante.
Insista-se, bem entendido, que as “idéias” não “flutuam” sobre a realidade. Os juristas,
como todos aqueles que “agem” no mundo, precisam “ler” o mundo, de uma forma mais ou
menos criativa, mas sempre de acordo com um quadro cultural que ultrapassa os próprios
“sujeitos”, e respondendo a expectativas, problemas e “pressões” que chegam de todos os
lados. O contexto social, de alguma forma, sempre estará ali presente, ainda que “filtrado”,
como é inevitável (e aqui são precisamente os “filtros” que nos interessam, mesmo porque
estão muito longe de desempenhar um papel meramente “passivo”). Como lembra Antônio
Manuel Hespanha (2005, p. 86/87):
(...) quando M. Bakhtin defende que o mundo não pode ser apreendido senão como
um texto e que, portanto, a relação entre “realidade” e representação tem que ser
necessariamente entendida como uma forma de comunicação intertextual, está
apenas a insistir nesta idéia de que todo o contexto da acção humana, ao qual esta
acção necessariamente responde, é algo que já passou por uma fase de atribuição de
sentido.
Falamos, portanto, de juristas dos inícios do século XX, como “intelectuais” social e
temporalmente situados, que interagem, nas suas obras, com o processo de codificação do
direito civil. Partimos então da pergunta: o que o Código signif

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