MAREAR-Texto integral da peça

Transcrição

MAREAR-Texto integral da peça
MAREAR
Isabel Pereira dos Santos
Para todos os partipantes da oficina
de
criação
peça
e
que
me
sobretudo
inspiraram
para
os
esta
actores,
actrizes e técnicos que me apoiaram
na aventura da sua criação :
Lídia Fontes Ribeiro, Márcia Ribeiro,
Marta
do
Prado,
Léontili
Lilisson
Miguel
Luís,
Eduardo
Coroa,
Cordeiro,
Jéjé
José
Camuiri,
Frederico Borges e Marilda Carvalho;
e
ainda
para
Patrícia,
Teresa,
Tatiana, Miquelina, Roberto, Carole,
Daniel,
Nancy
e
todos
os
outros
participantes da oficina de formação
teatral...
PERSONAGENS
LIA ( LIANA) , actriz africana.
JOÃO, jovem actor português. Benfiquista.
PROENÇA, actor português, natural dos Açores. Usa no dedo
um anel de licenciado. O mais velho do grupo.
CATARINA, actriz, jovem.
RICARDO, actor angolano. O mais jovem do grupo.
MARIANA., actriz portuguesa. A mais velha das actrizes.
MARTA, actriz brasileira.
ROBERTO, um amigo brasileiro, que não pertence ao grupo de
teatro.
O texto foi escrito para o Théâtre lusophone du Québec,
que reúne actores lusófonos e lusófilos, mas poderá ser
apresentado por qualquer grupo lusófono e multicultural
sediado num país cuja língua oficial não seja o português.
2
A acção passa-se num teatro. Ao fundo da ,
numa estrutura que serve de guarda-roupa
estão penduradas várias peças de vestuário
e
adereços.
Haverá
também
no
espaço
teatral, alguns assentos e um televisor. O
écran do televisor está virado para a
e
não é visível dos espectadores..
Cena 1.
A espera
No vestíbulo do teatro os actores misturamse com os espectadores que começam a chegar
para assistir ao espectáculo. Os actores
têm um ar preocupado e olham constantemente
para porta de entrada do teatro e para o
relógio. Cumprimentam os espectadores e
conversam um pouco com eles.
Esta cena pode ser completamente reescrita
ou ou adaptada às condições concretas da
representação teatral, tendo em conta as
características do grupo de teatro e do
lugar onde a peça é apresentada.
ACTOR/ACTRIZ 1
ACTOR/ACTRIZ
( a um espectador que conhece «realmente»
) : Olá, que bom ver-te! Estás bom ? ( … )
Tanta gente… Que vergonha... Eu não sei,
não sei como isto vai ser... Enfim…
2 ( a outro espectador conhecido ) :
Olá !
Então, como está ? Também veio ver isto ? (
… ) Vamos ver… Não sei que dizer… Não sei,
não sei. Mas
que eu nunca mais me meto
numa destas, disso pode ter a certeza...
Isto é, isto é…
Olhe, uma falta de… Não
vale a pena… ( Despede-se ) Tenho que ir...
Desculpe… ( … ) Depois falamos…
3
A actriz LIA fala ao telemóvel. Tenta sem
sucesso que os espectadores em redor dela
não se apercebam do teor da conversa…
ACTOR/ACTRIZ 3
( dirige-se a outro espectador ) : Está com
um ar um pouco cansado… Já tomou café ? Vá
tomar um café. Não quer ? E uma água ? Não
quer ? Vá… Tem tempo... Tem muito tempo.
Não se preocupe… Isto está um bocadinho
atrasado… Já sabe como é…
LIA
( que continua ao telemóvel. Pode usar a
língua do país em que o grupo se encontra
) : Boa noite… O Sebastião, por favor... (
... ) Não sabe ? Como é que não sabe ? (
... ) Desculpe… Sou uma amiga. Do teatro. (
… ) Sim, é. É isso… Olhe, se por acaso
souber dele, pode pedir-lhe que me telefone
? ( ... ) Liana… ( … ) Sim, Liana, é isso
mesmo...
É mesmo urgente ! ( … ) Muito
obrigada. ( Desliga. Olha em redor. Cada
vez mais nervosa, marca outro número ) Bom
dia, fala a Liana. ( … ) Sim, é isso mesmo…
Por acaso sabe dizer-me onde anda o
Sebastião ? ( ... ) Pois tem, pois tem ! (
... ) Não, estamos todos à espera dele… ( …
) Olhe, isso gostávamos nós de saber ! ( …
) Obrigada, desculpe o incómodo. Obrigada…
A LIA pode ainda fazer outras chamadas,
tentando contactar o referido Sebastião. A
conversa pode desenrolar-se em português ou
na língua do país onde se apresenta o
espectáculo.
Finalmente, os actores que se encontram no
vestíbulo reúnem-se e falam entre eles, em
voz baixa, sempre com um ar preocupado;
tomam depois a direcção dos camarins.
O jogo dos actores, neste preâmbulo deve
ser o mais realista-naturalista possível.
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Pretende dar-se aos espectadores a sensação
de que estão a viver uma situação «real»,
ainda exterior ao teatro.
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Cena 2.
O anúncio feito ao público
Os
espectadores
instalam-se
nos
seus
lugares. Os sinais de luzes e de som de
ínicio do espectáculo podem ser feitos
várias vezes, demonstrando alguma confusão.
De vez em quando pode aperceber-se a cabeça
de um actor que espreita para a sala. Algum
barulho de passos, de cadeiras que se
arrastam… Finalmente, aparece em cena um
actor, muito bem vestido e penteado, com um
lenço
branco
na
mão.
Tem
um
ar
comprometido.
PROENÇA :
Perdão… Minhas senhoras, meus senhores…
Minhas senhoras, meus senhores… ( Aclara a
voz, tosse… ) Queiram desculpar… Minhas
senhoras, meus senhores, caros amigos,
muito boa noite...
Em nome do nosso grupo de teatro ( diz nome
da companhia )
quero agradecer a vossa
presença.
Estamos
muito
contentes
que
tenham vindo, e estamos muito contentes de
vos ver, até porque é por isso que cá
estamos…
Quer
dizer…
Mútuamente…
Reciprocamente.
Todos,
espectadores
e
actores, não é ? Enfim… Mas já que estamos
a falar assim, com toda a franqueza (porque
eu quero falar-vos assim, olhos nos olhos,
mesmo se, bom, a expressão não é a mais
feliz que eu podia ter ido buscar, porque
falar-vos olhos nos olhos, daqui, de cena,
com
os
projectores
todos
ligados,
é
díficil, quase impossível…) Mas pronto,
isto é só uma imagem… O que eu quero dizer,
o que eu tenho para vos dizer… Bom é um
pouco complicado… Pois… Minhas senhoras e
meus
senhores,
amigos,
neste
momento
estamos com um problema… Um problemazinho…
No fundo, é só um problemazito técnico, uma
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coisa mínima, uma insignificância que por
acaso até já nos está a começar a
enervar... Já passa um bocado da hora… (
Olha o relógio ) Pois é, já passa um bom
bocado…
A LIA surge de um dos lados da cena.
Continua com o telemóvel colado ao ouvido.
Fala muito baixinho. Gesticula. O PROENÇA
olha-a, irritado.
LIA
( para o PROENÇA ) : Desculpa lá… Ali atrás
não se consegue ouvir nada. ( Atrapalhada
sorri para os espectadores e atravessa a
cena. Vai colocar-se num canto, como se não
quisesse dar nas vistas. Continua a falar
em voz baixa ao telemóvel )
PROENÇA
(
embaraçado
) :
Uma
maçada,
estes
problemas… Mas é, é verdade, ali atrás não
se consegue apanhar a rede. Ainda há pouco
eu estive a tentar falar com a minha
mulher, para lhe dizer que… Bom… Isso agora
não tem importância. Eu estou aqui porque
quero, aliás queria, quer dizer, queremos
todos pedirmo-vos as maiores desculpas…
Porque isto não estava previsto... Assim
que possivel daremos ínicio ao espectáculo…
( Continua
na língua do país onde a
representação tem realmente lugar ) C’est
ça... Nous avons un problème. Un petit
problème… Bon… Ce que je veux dire c’est
que, bon, c’est pas si grave que ça, je dis
ça comme ça… C’est ma façon de parler...
Mais, là, je suis un peu… disons… mal à
l’aise, avec… Avec tout ça… Je m’excuse,
nous
nous
excusons
tous…
Alors,
en
attendant qu’on règle ce qui doit être
réglé, vous pouvez profiter – pourquoi pas?
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- pour faire connaissance avec votre voisin
de siège! Excelente idéé ! On va apprendre
quelques mots de portugais: «bom dia»,
«como está», «teatro» «MAREAR» ( articula
lentamente as frases que diz em português
). Allez ! Tous ensemble : «teatro» ! ( ri,
nervoso. Vê-se claramente que está só a
tentar fazer passar o tempo ); vous pouvez
encore
aller prendre un petit café... Je
ne sais pas, moi, au fond, je vous dit ça
comme ça - mais qu’est-ce que vous voulez ?
- je me sens responsable, en tant que
comédien bien entendu… Pas en tant que
technicien, je ne suis pas technicien...
Vous me suivez ? Alors, c’est ça…
Pois é, em nome do grupo de teatro, eu
quero agradecer a vossa presença. Assim que
possível
daremos
início
ao
nosso
espectáculo. Já não deve demorar muito.
Contamos com a vossa compreensão. Afinal,
nós somos todos pessoas responsáveis…
LIA
(que
fala
ao
télemóvel,
furiosa) :
…irresponsável ! Irresponsável é o que esse
fulano é ! Ai digo, podes crer que digo !
PROENÇA
( continua cada vez mais nervoso ) : …Estes
problemas técnicos, dizia eu, são uma
grande responsabilidade, lá está, a tal
responsabilidade, justamente… E é por isso
que é preciso tratar deles com a atenção
que merecem, para que a segurança dos
actores e do público e vice-versa, não seja
de forma alguma ameaçada… É. Parece que
temos que esperar mais um bocadinho… (
Sente-se que fala para ganhar tempo ) Mas
não faz mal… Até estamos bem aqui, todos
juntos. É… Estes acontecimentos culturais
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lusófonos, que infelizmente não abundam
como gostariamos, servem para isso mesmo…
Para
que
nos
encontremos
e
confraternisemos. Para que falemos a língua
lusa…
A actriz CATARINA entra discretamente em
cena e fica a ouvir o PROENÇA. O barulho ao
fundo de cena aumenta gradualmente. De vez
em quando apercebe-se uma cabeça, ou um
vulto furtivo atrás das cortinas.
PROENÇA :
Afinal o teatro é uma festa e essa festa
não deve ser entendida strito sensu – ou
seja, de uma forma estricta -, como a festa
do palco, mas lactu sensu -ou seja, de uma
forma alargada ( ilustra com gestos, muto
paternalista ) ; quero eu dizer: o teatro
deve também ser a festa dos espectadores...
Não importa. Entretanto podem também ler o
programa, que até ficou muito bem, melhor
do que eu esperava… Ou sei lá, podem ir
tomar uma bica, beber uma aguardente de
cana, uma caipirinha, uma cachacinha, um
sumo de tomate... ( Acha-se engraçado )
CATARINA
( aos espectadores ) : Desculpem… Só uma
palavrinha…
A CATARINA chama o PROENÇA de lado.
Discutem em voz baixa, mas com vivacidade.
A CATARINA, tem a última palavra. O PROENÇA
limpa o suor com o lenço branco…
CATARINA
( de novo directamente aos espectadores, na
língua do país em que a representação
decorre) : Bonsoir, mesdames, messiers.
Merci de votre patience. Je ne sais pas
très bien par où commencer, mais bon, c’est
ça, la vérité c’est que, comme vous avez
déjà compris, nous avons un problème, un
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GRAND problème… Nous sommes désolés... Je
ne sais pas trop quoi dire… La réalité
c’est que…
PROENÇA
( interrompe ) :
La réalité ! A
! O que é a realidade quando se
palco ? A realidade é a ilusão… (
a Catarina, implorante ) Eu posso
poemas…
realidade
está num
Olha para
dizer uns
CATARINA
( interrompe, secamente ) : Como eu estava
a dizer...
Aumenta o barulho das cadeiras e da
conversa, ao fundo de cena. A CATARINA é
obrigada a falar cada vez mais alto.
CATARINA :
Isto é uma situação muito delicada. Mas eu
não gosto de conversa só para empatar. As
coisas são o que são. Ora muito bem :
minhas senhoras e meus senhores, amigos, é
com o coração apertado que vos informo que,
infelizmente, não poderemos apresentar este
espectáculo, como estava previsto.
( Continua na língua do país onde decorre o
espectáculo ) Nous ne pouvons pas vous
présenter ce soir, le spectacle MAREAR !
Nous sommes désolés !
PROENÇA
( para o fundo de cena ) : Menos barulho aí
atrás, se faz favor ! Isto é uma vergonha !
Uma cambada de selvagens !
Cena 3.
Blá-blá-blá-blá
O JOÃO irrompe em cena, com uma cadeira
nas mãos, O RICARDO e a MARIANA seguem-o. A
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MARIANA transporta um enorme
roupa de cena, sobre rodas.
JOÃO
cabide
de
( pousa a cadeira no chão, zangado ) : Diz
lá, ó Proença, onde é que estão os
selvagens ? Vá, diz ! Eu cá trabalho, meu
caro amigo ! Pois! Estava ali atrás, a
trabalhar ! Como sempre, aliàs ! Ontem
estive aqui até às duas da manhã ! Duas da
manhã, ouvistes bem ?
A LIA, a MARIANA e o RICARDO tentam acalmar
o JOÃO.
LIA:
Vá lá, João… Calma… Vá lá…
RICARDO :
Deixa-o, tu sabes como ele é…
CATARINA :
Pois é. É compreensível, o João dá tudo o
que pode ao grupo de teatro. Damos todos… É
por isso que estamos assim, todos enervados
com esta situação… Este espectáculo é muito
importante para nós... Mas, como eu estava
a dizer-vos, dois dos actores do grupo,
ainda não chegaram… E o pior é que não
fazemos a mínima ideia de onde é que eles
estão. Temos estado a fazer os impossíveis
para os contactarmos, mas nada… Todos os
nossos esforços foram vãos...
LIA:
Eu telefonei para a mãe dele, para a
namorada, eu sei lá… Até para o café ! Olha
só não liguei para os bombeiros…
MARIANA :
Eu, pessoalmente, acho isto uma pouca
vergonha, uma falta de consideração, mas o
que querem que a gente faça ? Sim, ponham-
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se no nosso lugar. Sem eles é impossível
apresentar o espectáculo ...
PROENÇA :
LIA :
MARIANA :
Eu bem disse que não lhes deviam ter dado
papéis tão importantes…
E agora o que fazemos ?
Eu já vos digo o que fazemos : desfazemos o
cenário e vamos para casa.
Retira uma peça de um figurino de cena do
cabide e começa a dobrá-la.
LIA :
Ir para casa ? Assim ? Não, isso não. Não
podemos… Temos que fazer qualquer coisa.
RICARDO :
É sempre assim... Fazer qualquer coisa, não
importa o quê… Depois queixam-se que as
pessoas se interessam cada vez menos pelas
actividades da comunidade. Sobretudo os
jovens.
CATARINA :
Deixa os jovens em paz.
enchem a boca a falar dos
servir os jovens mas para
próprios. No fundo não tem
oferecer-lhes.
LIA :
Isso é como as histórias da lusofonia :
muitos discursos mas nenhuma acção concreta
para a promover.
JOÃO :
CATARINA :
Discursos.
Discursos é o que melhor nós sabemos fazer
!
MARIANA :
Eu acho que nem isso sabemos fazer…
Há pessoas que
jovens não para
se servir a si
nada de novo a
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TODOS
( podem criar várias imagens caricaturando
discursos enfatuados ) : Blá-blá, blá-blá !
Interesse da comunidade ! Blá-blá-blá, bláblá-blá ! Recreio e cultura !
Blá-blá,
blá-blá, blá-blu… Defesa da língua ! Blúblú, blá-blá-blú… Bacalhauzinho ! Blá !
Todos uns malandros ! Bláááááá... Tenho
dito !
Aplaudem-se. Beijam as mãos uns dos outros…
CATARINA
( interrompe ) : Então e nós ?
Estamos
aqui a falar dos outros e a fazer
exactamente a mesma coisa. Isto agora é só
blá-blá,
blá-blú…
Conversa
fiada,
discursos...
Temos
que
encontrar
uma
alternativa…
MARIANA :
Não adianta tentarem convencer-me. A minha
decisão já está tomada : eu vou-me embora.
JOÃO :
Espera...
MARIANA :
Não espero nada. Eu cá já disse o que tinha
a dizer. Isto não tem geito nenhum, é uma
situação absolutamente rídicula… Até já
estou a imaginar o que as pessoas vão dizer
amanhã. E eu, aqui, metida no meio desta
alhada… Mas a culpa é minha e só minha.
Devia ter ouvido as pessoas que me disseram
que isto não ia dar nada ! Mas não… Sempre
pronta a acreditar na força transformadora
das linguagens artísticas, nas dinâmicas
criativas dos paradigmas humanistas… Uma
palerma naive, é o que eu sou… Uma palerma
! Mas agora acabou ! PARA MIM, ACABOU !
PROENÇA :
Mas, espera lá, então agora é assim ? Cada
um diz e faz o que lhe dá na gana ? Ora,
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está muito bem, eu cá não tenho nada
contra. Com licença... Eu vu ver o futebol.
Está já na hora do jogo.
O PROENÇA senta-se em frente da televisão
e, numa atitude de provocação, acciona o
telecomando.
Cena 4.
O Futebol
Ouve-se a voz do jornalista televisivo que
comenta o jogo de futebol. O RICARDO
aproxima-se do televisor.
JORNALISTA (off) : …super decisivo para o campeonato !
Este jogo cheio de emoções fortes… Este
jogo que a Televisão Lusófona está a
trasmitir em directo… E atenção, neste
momento, as duas equipas voltam a dar
entrada no relvado e o público vibra, o
público aplaude… ( Aplausos off )
JOÃO
( aproximando-se ) : Quem está a ganhar ?
Ninguém lhe responde.
JOÃO
( num tom muito alto ) : Quem está a ganhar
?
PROENÇA
( baixa o volume do som da televisão ) : E
quem querias que ganhasse, quem ? O Porto,
como sempre...
JOÃO :
Conversa…
Benfica !
PROENÇA :
Viva o Porto !
Porto !
Eu cá sou do Benfica.
Viva o Benfica !
Viva o Porto !
Viva
o
Viva o
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Os ânimos inflamam-se.
JOÃO :
É o maior ! É o maior !
PROENÇA :
É o campeão ! É o campeão !
Interropem
abruptamente
a
discussão
precipitam-se sobre o televisor…
e
LIA:
Daqui a pouco vai começar a telenovela no
outro canal…
MARIANA
( com os objectos e as roupas que arrecadou
nos braços ) : Parece que tenho tudo que
emprestei para o espectáculo. ( Verifica )
Os óculos de sol, o vestido de baile, o
lenço de seda… Está tudo… ( Põe os óculos
de sol ) Então, adeus...
CATARINA :
Não… Mariana, por favor, não te vás embora,
não nos faças uma coisa dessas...
LIA :
Não nos deixes assim...
MARIANA :
Vou ! Vou e já devia ter ido há muito mais
tempo. Tantas coisas que eu podia ter feito
e não fiz, por causa dos ensaios, por causa
dos espectáculo ! Tanta coisa… Eu nem sei
… Tanta coisa…
Cena 5.
O cansaço
A luz isola a MARIANA.
MARIANA :
Já são cinco para as cinco. ( Retira os
óculos de sol e coloca-os sobre a cabeça )
Estou cansada. Ainda terça-feira e eu já
tão cansada. É este trabalho. É este
escritório. O ar aqui dentro não presta, o
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ar aqui está viciado. Agora vou apanhar o
autocarro, vou passar pelo supermercardo,
vou comprar uma lata de sopa de massa
chinesa e depois vou para casa. Aqueço a
sopa e como-a mesmo em frente da televisão,
a minha mantinha de lã sobre os joelhos.
Vai fazer-me bem, uma sopinha, depois de um
dia destes. Eu gostava o de escrever um
livro sobre o cansaço, gostava tanto. De
manhã, levanto-me cheia de energia, sentome na beira da cama e respiro, respiro
profundamente…
(
Respira
profundamente
várias vezes ) E sinto-me bem, sinto-me
viva. Então, prometo que vou começar a
escrever : «O cansaço… O cansaço é um dos
problemas… um dos problemas que actualmente
afecta… ››. ( Desencorajada ) Não… (
Recomeça a «escrever» ) «O cansaço é uma
folha de chumbo, pesada e cinzenta, que…
que nos esmaga e oprime…» Não. O tom do
livro tem de ser mais pessoal… Descrever a
sensação de vazio e de peso que sinto, às
vezes. Falar dos domingos de manhã, em
casa. Falar das segundas feiras, de manhã,
no trabalho. Nomear a sensação de vazio… (
Procura ) Não sou capaz. Quando saio daqui
estou vazia, vazia… Vou para casa. Devia ir
até ao ginásio, mas não tenho coragem,
sinto-me cansada demais para ir pôr-me
acorrer no tapete que nem uma estúpida. Era
melhor ir até ao parque, mas também não
tenho coragem, estou cansada demais para ir
até ao parque.
… Com tudo isto já são três para as cinco.
Daqui a pouco é de noite, daqui a pouco são
horas de ir dormir. É. Os dias são tão
pequenos no Inverno… Passam a correr. Hoje
abri sete novos dossiers, fechei cinco
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dossiers, dei quatro ou cinco pareceres,
analisei dois pedidos de asilo político,
cinco casos de deportação… É um problema,
esta gente que agora chega de todo o lado,
desses lugares da guerra, da fome… Sei lá…
Tanta miséria… Também, se eu fosse pensar
na humanidade sempre que abro um dossier...
Não. Eu já não penso, aliàs não tenho tempo
para pensar, não tenho tempo para nada.
Quando era mais nova era diferente, não
sei, mesmo no Inverno… Pensava muito,
levava horas a pensar, pensava em coisas
extraordinárias, pensava na Humanidade.
Agora não… Já não me ponho assim, a pensar
nisso tudo. Não sei, as coisas mudaram.
Incrível ! As coisas que eu fazia quando
era mais nova !, as coisas que eu pensava…
É… Um aborrecimento.... Porque afinal, hoje
em dia, as pessoas perdem todas um tempo
horrível nos engarrafamentos.
( Mudança de tipo de interpretação. Aos
outros actores ). Então, antes de me ir
embora, eu quero dizer-vos que até gostei
muito de… Quer dizer : passei aqui momentos
muito… ( muito comovida ) Deixa… Não. Não
vale a pena... Tolices… Adeus…
Põe os óculos de sol e precipita-se para a
saída de cena.
Cena 6.
A telenovela
O som volta ao televisor.
LIA :
Não, Mariana… Não te vás embora…
CATARINA :
Vá, Mariana…
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LIA :
Sonhámos tanto com este momento…
CATARINA :
Vamos fazer teatro...
A LIA pega num pau, adopta uma pode teatral
e bate as pancadas de Molière.
RICARDO
( ainda em frente do televisor ) : Hei !
Façam menos barulho ! Assim não conseguimos
ouvir nada !
MARIANA :
Parece-me
futebol.
JOÃO :
E porque não ? Já que não há espectáculo,
sempre é uma consolação...
MARIANA :
Uma consolação para ti ! Eu nem gosto de
futebol… Mas vocês são mesmo assim, só
pensam em vocês ! Como se tivessemos todos
a mesma sensibilidade…
CATARINA :
Vocês vão recomeçar a discutir ?
MARIANA :
É ele, não vês, só pensa nele, não tem
consideração por nínguém. Nem sequer pelo
público !
PROENÇA :
E tu, diz lá… Foi por respeito pelo público
que arrusmáste a trouxa para ir embora?
RICARDO :
Calma, gente… Calma… Que mal é que tem a
gente ver um bocadinho do jogo ? Sempre
estamos
entretidos,
sempre
estamos
sossegadinhos ! Parece-me que sempre é
melhor ver futebol que discutir… E se o
Sebastião e a Clarisse chegarem, pronto !
que
não
estamos
aqui
para
ver
18
Fecha-se
a
televisão
espectáculo !
e
começa-se
o
LIA:
João, vá lá, muda para o outro canal, só
para ver se já começou a telenovela…
JOÃO :
Nós não estamos aqui para ver telenovelas…
LIA:
Ai não ?
estamos…
PROENÇA :
Sempre é uma maneira de matar o tempo…
MARIANA :
Matar o tempo. É exatamente isso que
estamos aqui a fazer. A matar, a assassinar
o nosso precioso tempo ! As noites, os
fins-de-semana que eu dei ao grupo de
teatro para criar este espectáculo, e agora
uma coisa destas… Quantas vezes eu fui
directamente do trabalho para os ensaios !
Eu acabava as aulas e corria para o teatro.
Nem tempo tinha para comer.
CATARINA :
Mas para ver o futebol do senhor,
LIA :
E eu, às vezes
telenovela…
nem
tempo
tinha
para
a
MARIANA :
E eu perdi o último episódio… Não sei o que
se passou…
LIA:
Olha, a Madalena de Vilhena esteve a falar
com o professor Telmo, e ele vai daí,
encheu-se de coragem e disse-lhe umas
quantas verdades - coitada, ela até chorou,
eu adorei, adorei, aquilo eram lágrimas a
sério, nada de cebola, via-se mesmo a
emoção a vibrar no rosto dela… Uma grande
actriz !
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MARIANA :
Eu acho que o Telmo fez muito bem, eles
andavam mesmo a merecê-las ! A Madalena e
sobretudo aquele Manuel, o marido dela, às
vezes até exageram… Sempre a falar de
Portugal, sempre a dizer à filha, àquela
pobre Maria, que isto aqui não presta e que
num dia ainda vão voltar para a terra...
Que gente ! Baralham a miúda…
CATARINA :
E o pior é que essas histórias não se
passam só na telenovela. É a realidade de
muitos filhos de imigrantes. A minha
vizinha, para não ir mais longe : vejam lá
que miúda só pode sair com portugueses…
LIA:
Ontem, o Telmo até disse à Madalena que era
importante honrar e respeitar o passado,
mas que também era preciso saber viver no
presente…
Ricardo, faz favor, muda de
canal ! Vá !
O RICARDO aumenta o volume da televisão,
com ar de desafio…
JORNALISTA ( off ) :
«…e já cinco minutos jogados, da
segunda parte, cinco minutos de grande
futebol, caríssimos espectadores !
Uma
experiência exaltante, um jogo decisivo
para o campeonato ! Um jogo que vai ficar,
que já está, já está na história do futebol
…»
MARIANA :
Não ouviram ? Nós pedimos que baixassem o
som dessa porcaria !
O RICARDO baixa o som da televisão…
LIA:
Cambada ! Cultura nenhuma...
de futebol !
Alimentam-se
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MARIANA :
Todos uns alienados !
LIA :
E no episódio de hoje, a Madalena de
Vilhena vai começar a embalar as coisas
para enviar para Portugal… Foi o que eles
mostraram
nas
«cenas
do
próximo
episódio»... Gostava mesmo de ver o que se
vai passar…
MARIANA :
Bom, se não houver espectáculo ninguém nos
pode impedir de ...
CATARINA :
Mas vocês estão a gozar connosco ? Então,
agora
dizemos
às
pessoas :
«Minhas
senhoras e meus senhores, muito obrigada
por terem vindo. Como já se aperceberam,
hoje
não
haverá
teatro.
Mas
não
se
preocupem,
porque
no
lugar
de
um
espectáculo que até, diga-se de passagem,
era
um
bocadinho
chato,
vamos
poder
apresentar-vos um
magnífico jogo de
futebol…
OS ACTORES
( em coro, os olhos postos na televisão ) :
Remata, remata agora !
CATARINA :
…Ou uma vibrante telenovela…
AS ACTRIZES
( em coro ) :
CATARINA
( ainda ao público ) : Então, façam o favor
de escolher : telenovela ou futebol !
RICARDO
( sem qualquer ironia ) : Também podemos
deitar uma moeda ao ar...
JOÃO :
Não ! É melhor pedir às pessoas que se
pronunciem. Assim, resolve-se o problema
Ai, coitadinha dela !
21
democráticamente e ao mesmo tempo fica-se
a conhecer o gosto das maiorias : se a
maioria dos espectadores prefere o futebol
ou a telenovela…
MARIANA
( irónica ) : As pessoas se calhar até se
prestavam
ao
vosso
jogo.
Já
estão
acostumadas a brincadeiras de mau gosto.
LIA:
Mas a ideia de lançar uma moeda ao ar não é
assim tão má...
PROENÇA :
Vá lá ! Quem é que tem uma moeda ?
JOÃO :
Eu não… Estas calças que tenho vestidas nem
são minhas…
RICARDO :
Pede-se uma moeda a um espectador…
LIA :
Vá,
depressa
!
Despachem-se
telenovela está mesmo a começar…
CATARINA :
Em vez de pedir uma só moeda a um só
espectador podemos aproveitar a ocasião e
fazer uma colecta de fundos para o grupo de
teatro…
MARIANA :
O teatro tem um papel social que não pode
ser minimizado sobretudo porque a nossa
sociedade, está a ficar cada vez mais
virtual, cada vez mais alienada e a
afastar-se dos valores fundamentais que…
que
a
Durante o discurso inflamado da MARIANA, o
RICARDO e o JOÃO retiram do cabide de cena
dois chapéus e juntos alcançam o espaço dos
espectadores, onde começam a passar os
chapéus.
22
Cena 7.
Uma moedinha…
RICARDO :
Vá lá… Alguém tem uma moedinha ?
favor… A senhora, quer contribuir ?
JOÃO :
Uma moedinha, para uma boa causa !
Uma
moedinha.... Ajudem os artistas, ajudem o
teatro !
CATARINA :
Financiem o teatro. O teatro é um serviço
Façam
público.
Com os chapéus, o RICARDO e o JOÃO recolhem
algumas moedas junto dos espectadores e
depois regressam a cena e entregam os
chapéus com o dinheiro recolhido à LIA. O
RICARDO deve reservar-se uma moeda.
JOÃO
( para os espectadores ) : Muito obrigado
pela vossa generosidade...
Em voz baixa a LIA
moedas recolhidas.
começa
a
contar
as
LIA :
Um…Um e meio… Um e oitenta… Dois…
RICARDO :
Então lá ao nosso joguinho. É muito
simples . Aqui está a nossa moedinha… Eu
vou lançá-la ao ar, assim… ( exemplifica )
…e se calhar caras, vemos o jogo de
futebol, se calhar o outro símbolo, vemos a
telenovela.
LIA
( àparte, acabando de contar o dinheiro ) :
É incrível… Recolhemos… ( Diz a quantia
recolhida )
23
RICARDO :
Ora, atenção… Um, dois, três… ( Lança a
moeda ao ar ).
Cena 8.
Preconceitos
JORNALISTA (off):
PROENÇA :
Goooooolo !
Golo !
Golo !
Goooooolo !
O RICARDO e o JOÃO precipitam-se sobre o
televisor.
JOÃO :
Golo ?
Mas golo, onde ?
Golo nada !
Estava fora de jogo ! O árbito não viu. Não
vê nada o parvalhão do árbitro !
PROENÇA :
É golo ! É golo ! É golo e mais nada !
Goooolo ! Goooolo !
MARIANA :
Ai, no que é que eu me vim meter…
CATARINA :
Bom, eu tenho uma ideia… Com licença ! (
Desliga o televisor )
PROENÇA :
Hei, isso não é justo ! O que é isso ?
JOÃO :
Nem lançámos a moeda ao ar…
RICARDO
E o jogo está quase a terminar...
CATARINA :
Óptimo. Mas eu tenho
contar histórias.
LIA:
Que histórias ?
PROENÇA
Histórias de imigração...
uma
ideia…
Vamos
24
LIA :
Pronto ! Tinha de ser… Lá vão eles começar
a falar do bacalhau a murro e do fado…
CATARINA :
Podemos, por exemplo… pegar numa cadeira (
pega numa cadeira )… e sentarmo-nos… (
Senta-se. Alguns dos outros actores podem
fazer o mesmo ) Não. Aqui não… ( Desloca a
cadeira e coloca-a face aos espectadores )
Aqui… Em frente do público… Agora, podemos
começar a contar as nossas histórias, as
histórias dos nossos pais… Era uma vez… (
Para os colegas ) Porque não ? Afinal, as
nossas histórias veem dos quatro cantos do
mundo…
JOÃO :
Não dá… Não tem geito ! De qualquer modo,
mesmo tentando seguir a tua ideia, não dá…
Falta alguém para contar histórias do
Brasil…
MARIANA :
É ! Um grupo que enche a boca de lusofonia,
que
quer
passar
por
ser
inovador
e
descentralizado
e
depois
zás
!
apresenta um espectáculo sem brasileiros.
Isto até dá vontade de rir !
JOÃO :
Sinceramente eu não consigo perceber o que
se passou com a Clarisse... Ela é sempre
tão responsável, tão solidária... Ainda
ontem ficámos aqui, eu e ela, a trabalhar
até às duas da manhã. Os dois, a verificar
os adereços todos, a arrumar os camarins…
PROENÇA :
Ai, sim ? «Você» e a brasileirinha até às
duas da manhã ? A trabalhar nos camarins,
«cara»?
25
Música de samba. Toda a gente começa a
dançar… A música pára. Todos retomam as
posições que ocupavam antes da dança.
PROENÇA :
Palmas para o João
trabalhar no duro !
lá ?
JOÃO :
Eu já estava a estranhar as tuas piadas
machistas ! A trabalhar, sim, a trabalhar
no duro, enquanto o Proença estava em sabe
lá Deus que bar, a rodar o seu anel de
doutor e a
falar com ares de importante
sobre
o
trabalho
que
dá
fazer
um
espectáculo
de
teatro,
sobre
a
interioridade do actor, sobre…
CATARINA :
Calma, pessoal ! O que vem a ser isto agora
? É verdade, a minha ideia não é boa… O
João tem razão. Não teria geito pretender
contar
histórias
representativas
da
diversidade lusófona, sem ter entre nós uma
voz evocadora do Brasil…
RICARDO :
Não é a solução ideal… Mas é melhor mandar
as pessoas para casa ?
Começam todos a
cima dos outros.
TODOS:
que esteve ontem a
…Até que horas, diga
discutir.
Falam
uns
por
Sim ! / Não… / Pode lá ser! / É incrível !
/ Cá para mim, cá para mim… / Eu já disse
a minha opinião ! / Cala-te, por favor ! /
Etnocentrista
!
/
Etnocentroquê?
/
Etnocentrista a tua tia ! / O que é que ele
disse ? / Deixa lá, é parvo/ ‘Tá-se a
armar…/ Se não fosse o público, eu dizia-te
umas quantas!
26
RICARDO :
Calma, gente. Calma… Deixa isso para lá.
O RICARDO afasta-se dos outros.
Cena 9.
Se os meus problemas fossem esses…
RICARDO
( aos espectadores ) : Olá... Eu chamo-me
Ricardo, e estou mesmo muito contente por
estar aqui convosco. Acho que é bom a gente
poder assim encontrar-se e falar. É uma
maneira de nos conhecermos, para lá dos
preconceitos grosseiros que temos uns sobre
os outros. Porque afinal, a gente se
frequenta um bocadinho, fala a mesma
língua, mas não se conhece muito… Não sei
como explicar direito… Eu não gosto de
ficar a enrolar e desenrolar palavra,
explicando tudo, para trás e para diante…
Mas
eu olho para vocês aí e sei que
percebem o que eu quero dizer, quando falo
de encontro verdadeiro.
Atrás do RICARDO a discussão continua… O
RICARDO observa os amigos durante um
momento…
RICARDO
( de novo para os espectadores ) : Estão a
ouvi-los ? Eu não sei quantas vezes já os
ouvi discutir sobre a língua portuguesa,
sobre o português brasileiro, sobre o
brasileiro,
sobre
os
velhos
reflexos
colonialistas dos portugueses, sobre…eu sei
lá !
Era antes, durante e depois dos
ensaios. É mesmo o desporto favorito deles.
Eu num canto, a ouvir música… Eles diziam
que eu achava essa história da língua
cansativa porque sou jovem. Eu deixava-os
27
falar... Às vezes aumentava o volume da
minha música… Eu sou angolano e os meus
problemas são outros. Olha, o que eu
gostava mesmo, mesmo, é que os meninos do
meu país pudessem todos…
A discussão continua. As vozes elevam-se e
abafam as palavras do RICARDO.
RICARDO
( e quando o som da discussão volta a
baixar ) : …mas mesmo assim eu acho óptimo
estarmos todos aqui. Já é um começo, ainda
que às vezes a gente não saiba muito bem
por onde começar. As nossas histórias são
diferentes… ( Aos outros actores ) Ei,
pessoal… Párem de discutir. Párem ! Deixemme falar… ( Grita ) Deixem-me falar, por
favor !
TODOS
( páram de discutir. Avançam lentamente
para o RICARDO ) : Sim… Claro que te
deixamos falar… Nós gostamos imenso de te
ouvir… Gostamos muito de ouvir a tua
opinião… A tua opinião é sempre muito
importante para nós.
LIA
( àparte ) : É isso mesmo. Eles esquecem-se
sempre de pedir a nossa opinião…
RICARDO :
Mas olha, eu estou de acordo com a
Catarina. Já que estamos em cena e que os
espectadores estão aqui, diante de nós,
podemos tentar contar histórias…
JOÃO :
Eu sei lá contar histórias…
CATARINA :
Toda a gente sabe contar histórias !
28
Cena 10.
Histórias
LIA:
Vocês lembram-se daquela história... Eu
nunca mais me esqueci… Aquela da mulher que
esteve dois anos sem notícias do marido que
tinha emigrado para o Canadá ?
O filho
nasceu já depois de homem ter partido...
MARIANA
Sim, sim… Ela só soube que estava grávida
depois, já ele tinha embarcado.
PROENÇA :
Espera… Essa história é verdadeira. Foi o
Senhor Oliveira que ma contou quando nos
veio ajudar a montar a cena.
LIA :
É… E o marido esteve quase dois anos lhe
dar notícias... Ela sem saber de nada e
sózinha, com aquele filho...
RICARDO :
A pobre já pensava que ele tinha arranjado
outra.
MARIANA :
Era uma outra época… As condições de vida
do povo eram muito duras… Às vezes nós
esquecemo-nos disso... E no entanto, é esse
o nosso passado…
JOÃO :
O marido
chamava ?
PROENÇA :
JOÃO :
dela…
Ai…
Como
é
que
ele
se
Não sei. Não me lembro... Mas isso não tem
importância…
Tem importância sim ! Esse homem teve um
rosto, tinha uma mulher, teve um filho,
teve desgostos… Teve uma vida. E cada vida
tem um nome…
29
RICARDO :
Chamava-se Mário…
JOÃO :
Sim. O Mário... O Mário tinha arranjado
trabalho numa quinta e nem sequer podia
sair de lá… Lembram-se ?
CATARINA
Claro que me lembro… Fui eu que fiz de
Augusta, a noiva dele, quando depois, no
ensaio, improvisámos essa situação…
PROENÇA
E era o Sebastião - que sabe-se lá onde é
que anda a estas horas - que fazia de
Mário, o tal português imigrado.
JOÃO :
Espera… Tu podes muito bem fazer o papel do
Sebastião…
Vá,
concentra-te…
Pega
nesta
mala… Pega nesta mala, Mário! ( Dá uma mala
de viagem ao MÁRIO-PROENÇA).
MÁRIO (PROENÇA):
Mário. Eu chamo-me Mário… O Mário dos
Açores…
A CATARINA começa a cantar uma canção de
embalar e passa a interpretar o personagem
de AUGUSTA. Talvez ponha um lenço nos
cabelos e recolha nos braços uma boneca. Os
outros
actores
adoptam
também
novas
atitudes e criam outros personagens.
Cena 11.
A carta
AUGUSTA ( CATARINA )
( faz sinal para que os outros se calem
) : Schhh ! Façam menos barulho! Pronto !
Acordaram-me a criança ! ( Consola o filho
) Não chores, meu filho, não chores...
Recebi uma carta. Uma carta da América.
Acordaram-me a criança. Agora tenho que
voltar a cantar-lhe uma canção.
30
A LIO começa a cantar uma canção de
embalar e transforma-se em APARECIDA. Pode
talvez usar alguns acessórios de um dos
trajos tradionais da mulher africana..
AUGUSTA:
Este meu filho é assim, não consegue
adormecer doutra maneira. ( Retira do bolso
uma carta ) Está a ver ? Foi esta a carta
que ele me mandou… ( Para a MULHER-MARIANA)
Quer ler ?
MULHER (MARIANA): Não sei se deva. Uma carta é uma coisa
íntima. Não é para se ler assim em voz
alta, diante de tanta gente.
APARECIDA (LIO):
Todas as cartas de imigrantes se
parecem umas com as outras. Que venham do
Norte ou do Sul, do Este ou do Oeste. São
cartas cheias de perguntas que talvez nunca
encontrem resposta…
MENINO (RICARDO): Afinal porque é que eu parti ?
MÁRIO :
E se eu tivesse ficado ?
pena ?
Será que valeu a
MULHER:
Como é que eu seria se tivesse ficado no
lugar onde nasci ?
Seria a mesma, seria
outra ? Como é que seria ?
AUGUSTA:
Quando o meu Mário me escreveu esta carta,
que o professor da aldeia fez o favor de
ler, porque eu não sabia o que lá estava
escrito, porque nunca fui à escola, quer
dizer, fui um pouquinho, mas depois fiquei
em casa a ajudar a criar os meus irmãos
mais pequenos, e tive muita pena porque eu
até não era nada desajeitadinha para as
31
letras e para as contas, mas a minha mãe
não podia, já muito fazia ela, levava as
vacas a pastar, saía tão cedo, coitadinha,
e o meu pai muito menos, trabalhava longe,
pois era, o coitado. Ora, como eu estava a
dizer, o professor leu a carta que ele me
tinha escrito a dizer que já tinha a vida
alinhadinha e que eu já podia ir ter com
ele. Já este filho tinha quase dois anos.
Dois anos sem notícias, sem saber se estava
morto ou vivo, se ainda pensava em mim
ou... Cala-te filho, filho lindo, não
chores ! Deixa ouvir o senhor professor… (
Ao PROFESSOR-JOÃO ) Senhor professor, faça
então o favor…
O PROFESSOR-jOÃO aproxima-se da Augusta e
aceita a carta.
PROFESSOR(JOÃO) ( lê ) : Espero que estejas de boa saúde na
companhia dos teus pais e irmãs e do meu
pai e da tia Júlia e do resto da tua e da
minha família, assim Deus queira...
AUGUSTA/PROFESSOR
( em coro ) : Eu estou a escrever-te esta
carta para te dizer que temos muita coisa
para dizer um ao outro, mas assim de
repente nem sei por onde começar, mas não
te apoquentes, que está tudo bem, graças a
Deus.
AUGUSTA
( continua, como se conhecesse a carta de
cor ) : Ao princípio isto por aqui foi
muito difícil porque a morada que eu trouxe
não funcionava já, eles disseram-me que não
era ali, e depois eu andei às voltas, às
voltas, perdido dum todo, que eu nem te
conto, por esta terra fria que parece não
ter fim.
32
AUGUSTA/MÁRIO : Passei muito, muito e foi tanto que ainda
me doi falar disso e depois, mulher, não te
quero maçar com essas coisas porque tu aí
também deves ter as tuas apoquentações…
APARECIDA
(
quase em
Nunca…
segredo):
Ele
nunca
me
escreveu…
MENINO :
Quem sabe... Talvez que ele tenha escrito…
Talvez que a carta se tenha perdido. Com
essas guerras todas, por aí, não se sabe…
Nada é certo, nada é seguro…
APARECIDA:
Nada é certo, nada é seguro… Ele partiu
trabalhar nas minas, disse que ia fazer
muito dinheiro nas minas. Eu disse nada.
Que podia dizer ? Não havia trabalho lá na
terra. Fiquei à espera. O tempo a passar, a
passar e nada. Às vezes me punha a pensar…
Horas a pensar, todas as vidas que ele
podia ter pegado… Se tinha ido para muito
longe, para o estrangeiro, e que estava na
América… Se tinha morrido… À noite dava
volta e mais volta na cama e depois via ele
a correr atrás de mim, na praia, eu de
sapato na mão, ele a rir e a chamar, a
chamar… ( Chama muito alto ) «Aparecida,
volta aí ! Aparecida, eu vou pegar você! »
Mas não pegava, que eu sem sapato, olha,
sempre corri muito ligeiro…
MENINO :
Ele nunca me escreveu. Notícias nenhuma.
Nenhuma. No outro dia alguém me disse que
ele vivia em Roterdão. Isso mesmo. Ro-terdão. Fui ver no mapa. É mesmo lá, na
Holanda, esse tal Roterdão… Ao pé do mar.
Será que ele ainda se lembra dos passeios
que davamos na baia de Luanda, ele a correr
33
atrás de mim, eu a dizer : «não me apanha,
não me apanha ! »… Não disse nada à minha
mãe… Para quê ? Talvez nem seja verdade.
Talvez que ele não viva nesse tal Roterdão,
mas em Antuérpia, Dusseldorf, Colónia,
Clermont-Ferrand,
Manchester,
Zurique,
Atlanta, Dallas… É. Tudo nome de cidade que
estava no mapa, onde eu o procurei. Mas é
díficil descobrir direito, só cidade grande
é que vem lá, nesse mapa. E se ele foi
parar a uma aldeia, como posso saber ? Se
ele foi parar a lugares como Victoriaville,
Wollongong, Corumbau ? Como saber ? (
Distancia-se dos outros ) Pai, estás aí,
estás aí, pai ? ( Pausa ) Nem sequer um
postal pelos anos... Talvez que ele não
viva em Victoriaville, mas em Lisboa, em
Marselha... Agora é só pelo Natal que ainda
custa... A gente mesmo sem querer fica à
espera… Diz que não, mas no fundo fica… É…
Ainda custa um bocadinho…
MÁRIO :
Afinal porque é que eu parti ?
APARECIDA:
E se tivesse ficado ?
pena ?
MULHER:
Como é que eu seria hoje se tivesse ficado
no lugar onde nasci ? Seria a mesma, seria
outra ? Como é que seria ?
PROFESSOR
( lê ) : Agora já estou a trabalhar na
cidade e já estou menos sózinho que estava
lá naquele Norte, numa «ferma››, eu até ía
dando em maluco, sem me poder fazer
entender, porque não havia lá ninguém que
percebesse
a
nossa
língua.
Aqui,
na
manufactura, é diferente e há imigrantes.
Será que valeu a
34
MÁRIO :
Mas,
mesmo
acompanhado,
tenho
muitas
saudades de ti. Eu estou a juntar dinheiro
para te mandar chamar para a minha beira e
logo que estiver tudo arranjado eu digo…
AUGUSTA/PROFESSOR
( em coro ) : …E tu vens, que isto não é
bom, nem para ti nem para mim, estarmos
assim tão separados, com tanto mar entre
nós, e isto não é vida é só sofrimento…
AUGUSTA:
… Às vezes até, que Deus me perdoe, mas às
vezes
penso
se
vale
a
pena
tanto
sacríficio, se não teria sido melhor ficar
aí à tua beira, mas depois acabo por voltar
à razão porque tem que ser, e eu tenho
esperança. Dá os meus respeitos e os meus
cumprimentos à toda a tua famíla e dá
também um beijo ao meu pai e lê esta carta
a todos, para que eles vejam que eu estou
até estou bem, e que fiz muito bem em vir,
porque isto aqui, já se sabe, é muito duro,
muito frio e muito longe e a gente tem
horas de grande desânimo, mas eu aqui tenho
futuro, porque a terra é muito grande e aí,
diz-me lá, ó mulher, que futuro é que a
gente tinha ?
MÁRIO :
A aí, diz-me lá, ó mulher, que futuro é que
a gente tinha ?
AUGUSTA
:
Um beijo para ti, mulher, com muita afeição
e carinho e saudades, que tu nem sabes, do
teu marido…
MÁRIO
( aproxima-se
Afasta-se )
da
AUGUSTA
) :
…Mário.
(
AUGUSTA :
Depois, no ano seguinte, veio a carta de
chamada e a Augusta foi ter com ele...
35
Levava já o filho pela mão. Dois anos sem
notícias…
MENINO :
Tanto tempo à espera…
A AUGUSTA abandona
canção de embalar.
cantando uma canção
Mudança de situação
actores regressam ao
Cena 12.
a cena, cantando a
A APARECIDA segue-a,
de embalar africana.
e tempo teatrais : os
presente.
A very successfull story…
PROENÇA :
Histórias
labuta…
tristes.
Histórias
MARIANA :
Histórias de outro tempo…
LIA :
Não, não. Histórias bem de hoje…
PROENÇA :
Eu penso que nós
histórias
tristes.
exemplos positivos !
CATARINA :
Então, e a realidade esconde-se ? Varre-se
para debaixo do tapete ?
Do que é que
vocês têm medo ?
PROENÇA :
Não é medo… É que as histórias tristes não
dão uma boa imagem... O que é que serve
contar os nossos problemas na praça pública
?
CATARINA :
E que serve guardá-los só para nós ? Que
serve mostrar uma fachada de bem-estar
bacôco, que esconde uma série de problemas
de integração da nossa comunidade ?
não
É
de
muita
devemos contar
melhor
mostrar
36
LIA :
A maioria já tem suficientes preconceitos
sobre nós... Para quê dar-lhes uma ajuda ?
CATARINA :
Os
teus
reflexos
proteccionistas
protegem a mediocridade…
MARIANA :
No fundo, os imigrantes só gostam de
histórias de sucesso : os que chegaram,
viram e venceram… «Venit, vinit et vinxit»,
como diziam os romanos. «I arrived, I saw
and
I
won»,
como
se
diria
hoje…
«Successfull storys !
CATARINA :
Very successfull storys !
TODOS :
Very successfull storys !
só
Os actores formam uma imagem representativa
de uma «Very, very successfull story».
Podem para o efeito usar roupas, chapeús e
outros acessórios do guarda-roupa da cena.
CATARINA :
« Successfull storys» com a fralda de fora…
TODOS :
«Very successfull storys», com a fralda de
fora!
Os
actores
formam
de
novo
a
imagem
representativa
de
uma
«Very,
very
successfull story» mas acrescentam-lhe um
sinal que nega a mensagem, por exemplo,
tirando os sapataos e mostrando as meias
routas.
CATARINA :
Os outros, os que chegaram e não venceram,
os que chegaram e se perderam, desses não
se gosta muito de ouvir falar.
JOÃO :
Quem é que não gosta ?
37
CATARINA :
As maiorias preguiçosas e os seus dignos
representantes.
Os actores desfazem o quadro da «Very, very
successfull story»…
RICARDO
E depois ?
Nós não
agradar às maiorias...
estamos
aqui
para
PROENÇA :
Bom, então depois não se queixem. Depois
não digam que eu não vos avisei.
RICARDO :
Não, não esquecemos, mas corremos o risco.
CATARINA :
O prazer do risco e dos caminhos menos
frequentados. O prazer de desafiar as
ideias que nos querem impôr porque assim é
que é, assim é que deve ser… O prazer de
falar e agir livremente… É por aí que
iremos.
LIA
Então vá !
sempre…
Vamos pelo sonho. Pelo sonho,
Dão
as
mãos.
Música.
Iniciam
uma
coregrafia, imediatamente interrompida pela
CLARISSE,
que
irrompe
na
sala
de
espectáculo, ofegante.
Cena 13.
A chegada da Clarisse
CLARISSE :
Espera! Espera aí, pessoal ! Qu’é isso !
Surpresa geral. Todos rodeiam a CLARISSE,
muito contentes.
TODOS
( falando uns por cima dos outros ) :
Clarisse ! / Estavamos mesmo preocupados
contigo ! / Nem imaginas a nossa aflição !
38
/ Sabes lá… / Tão contente de te ver !/ Tu
nem imaginas…
LIA:
Eu sabia que ela não nos ia deixar assim !
CLARISSE :
Minha
nossa,
estava
tão
aflita,
tão
preocupada ! Não dá para imaginar ! Mas eu
vou contar tudo direitinho, para vocês…
MARIANA
( oferece uma cadeira à Clarisse ) : Sentate aqui, vá. Menina, que cansada que ela
está…
JOÃO:
Mas conta… O que é que te aconteceu ?
CLARISSE :
Nem imagina… Um problema no trabalho...
Faltou uma colega minha e o patrão não me
quiz deixar sair antes de acabar tudo ! Eu
pedi, implorei, até chorei, e ele nada…
PROENÇA :
É.
«Eles»
são
exploradores !
CLARISSE :
Desculpa aí, eu não sei se estou a perceber
direito o que você está a querer me dizer,
mas sabe… o meu patrão é português ! Mas
vocês estavam aqui à minha espera ? E os
espectadores também ? Nossa, que gente
legal ! Até me deixam assim meio comovida…
(
Aos
espectadores
)
Oi,
gente
!
Obrigada... Obrigada mesmo, pela vossa
compreensão… Que eu peço desculpa... Uma
história que nem dá para contar ! Tinha de
acontecer comigo ! Mas olhe, eu vinha aí,
de táxi - claro, vim de táxi para chegar o
mais depressa possível - e vinha a pensar
que talvez houvesse por aí pessoal a
dizer : «claro, é a brasileira que falta,
brasileiro chega sempre atrasado… Ficou por
assim…
Todos
uns
39
aí a namorar !»
Ideia feita, não é
Porque eu, chego sempre aí, na hora...
?
MARIANA :
O importante é que já chegáste !
CLARISSE :
Mas agora contem vocês para mim, tudo o
que aqui se passou…
JOÃO
Tu nem imaginas...
:
PROENÇA :
Bem, primeiro não sabiamos o que fazer… Mas
o que nos ajudou foi o jogo… Estivemos a
ver o futebol. ( Pega no telecomando e
acende o televisor ) O jogo deve estar
mesmo a acabar !
A CATARINA retira o telecomando das mãos do
PROENÇA e apaga o televisor…
CATARINA :
LIA:
Sim… Mas depois decidimos que era melhor
apagar a televisão…
E começámos a contar histórias. Iamos
assim, um pouco à toa, pelo sonho…
CLARISSE :
À toa pelo sonho ?
Nossa, que lindo !
Pelo sonho a gente vai sempre um pouquinho
à toa… E agora, posso ir com vocês ?
Cena 14.
«Pelo sonho é que vamos» …
Tornam a dar as mãos. Jogo-coreografia a
partir do poema de SEBASTIÃO DA GAMA :
«Pelo sonho é que vamos».
CATARINA :
«Pelo sonho é que vamos.
MARIANA :
Pelo sonho é que vamos.
Comovidos e mudos.
40
LIA:
Chegamos, não chegamos ?
Haja ou não haja frutos,
Pelo sonho é que vamos.
RICARDO :
Basta a fé no que temos,
Basta a esperança
Naquilo que talvez não teremos.
CLARISSE :
Basta que a alma demos,
Com a mesma alegria,
Ao que desconhecemos
E ao que é do dia-a-dia.
TODOS :
Chegamos ? Não chegamos ?
Partimos. Vamos. Somos.
Brincam. Riem. A situação poderá lembrar um
jogo infantil.
LIA :
CATARINA :
Que bom !
É isso… Vamos pelo sonho.
Depressa !
Sim, pelo sonho, sem olhar para trás…
Cena 15.
Frangos
JOÃO :
Calma… Esperem lá !
isso demora?
LIA :
O quê ? O sonho ?
um certo tempo.
MARIANA :
Se demorar tanto
durou a criar…
CATARINA :
E depois ?
Quanto tempo é que
Não sei… Deve demorar
como
este
espectáculo
Qual é o problema ?
41
CLARISSE :
Problema nenhum, menina !
tempo para nos conhecermos.
Assim
tivemos
PROENÇA :
Mas é verdade que as pessoas já falavam…
RICARDO :
Deixa
lá,
as
pessoas
adoram
falar.
Sobretudo as que não sabem fazer nada.
CATARINA :
Blá-blá, blá-blá...
JOÃO :
Eu só quero saber quanto tempo demora essa
história dos sonhos que vocês querem contar
!
CATARINA :
Ó João, demora o tempo que fôr preciso !
JOÃO :
Óptimo, é o que eu queria saber… Então,
está bem… Eu vou buscar uns frangos.
MARIANA :
Espera aí, será que eu ouvi bem
queres ir buscar frangos, agora ?
JOÃO :
Porque não ?
Se vamos ainda aqui ficar
precisamos de comer. Tu sabes muito bem
como é que é Mariana. Eu gosto de sonhar,
mas também gosto de ver futebol… E agora,
começo a ter fome. Não te esqueças que eu,
hoje, fui o primeiro a chegar… E depois,
não demora nada, eu vou ali ao restaurante
da esquina… O restaurante do…
CLARISSE :
Schch ! Espere aí, cara, não diga o nome do
restaurante. Não se esqueça que você está
num teatro. O pessoal ia até pensar que
você estava a fazer publicidade…
JOÃO :
Publicidade de borla…
?
Tu
42
MARIANA :
De borla não tinha geito nenhum… Mas se ele
pagasse…
CLARISSE :
É verdade… Se ele pagasse… Olha, a gente
até podia pedir ao cara do restaurante para
assinar um contrato de publicidade com o
grupo.
RICARDO:
Publicidade a
espectáculo ?
CLARISSE :
Menino, pense bem… Sempre era uma maneira
de angariar uns fundos… Você sabe como a
situação financeira do grupo está, não sabe
?
CATARINA :
A nossa situação está à imagem do respeito
que
as
nossas
instituições
têm
pela
cultura…
MARIANA :
Sim… Mas não vamos falar disso aqui, em
público…
CATARINA :
De qualquer forma as histórias dos poderes
pequeninos
das
comunidades
portuguesas
pequeninas são sempre iguais e sempre
igualmente desoladoras.
MARIANA :
Mas não podemos esquecer que somos todos
portugueses…
LIA:
Somos todos portugueses… Essa mania que
eles têm de nos enfiarem todos no mesmo
saco, é um reflexo muito velho !
RICARDO :
Bem gostava eu ! Minha mãe viveu e
trabalhou como uma negra em Lisboa, durante
20 anos e nunca lhe deram a nacionalidade.
Teve que voltar a imigrar…
um
restaurante
no
nosso
43
CATARINA :
Também… Não é preciso ficar assim… Não foi
por mal. É uma maneira de falar... Vocês
têm uma sensibilidade aguda em relacção a
essas coisas…
LIA:
Não é por mal mas irrita...
PROENÇA :
É verdade. A Lia e o Ricardo têm razão. Eu
percebo-os muito bem, porque sou açoreano.
Vocês, os continentais, julgam-se o centro
do mundo…
RICARDO :
Do que é que tu estás
faltava ouvir esta ! (
«Africanos e açoreanos,
nada a ver, Proença, não
PROENÇA :
Tem, tem. É que às vezes eu tenho a
impressão que eles pensam que só existe um
modelo de pensar e de falar português. Que
só eles é que sabem…
CATARINA :
Mas afinal «eles» quem ?
PROENÇA :
Lá recomeçam elas…
a falar ?
Só me
Ridicularizando… )
uni-vos!» Não tem
tem nada a ver...
«Eles» quem ?
A MARIANA e a CLARISSE pegam num maço de
folhas de papel e exibem-nas, como se
fossem espadas. Preparam-se para um duelo.
MARIANA :
CLARISSE :
MARIANA :
Doutora, escreva aí…
Doutora, escreva aí…
A História, doutora… O peso da História… (
Avança ) Touché !
44
CLARISSE
( papel em riste, defende-se e contra-ataca
) : A demografia, doutora… Touché !
MARIANA :
A tradição…
CLARISSE :
A evolução…
Com grande «panache» as duas actrizes
rasgam as folhas em mil bocados e lançamnas aos pés da outra… Depois afastam-se,
altivas.
RICARDO :
Há anos que andam nesta guerra. A minha
semântica é melhor que a tua... Não há
paciência ! João, vamos embora. Eu vou
contigo aos frangos !
JOÃO :
É isso… Já que não podemos ver o futebol,
vamos tratar de comer !
MARIANA :
Eu já estava a estranhar que ainda ninguém
tivesse até agora defendido a Causa do
Frango Assado. A causa que mais adeptos tem
na comunidade…
RICARDO :
Mariana, não mistures as coisas…
MARIANA : :
O problema é esse : está tudo misturado. O
frango, o teatro, a sardinha assada, a
dança, a literatura, a feijoada…
PROENÇA :
Desculpem, mas ir aos frangos assim…
viram o mau aspecto ?
CLARISSE :
E tu com a conversa do mau aspecto ! Não
se deve fazer isto, não se deve fazer
aquilo, o que é que as pessoas vão pensar…
Já
45
Vive a tua vida e deixa de te preocupar com
o que os outros pensam !
LIA:
JOÃO :
Mas e o público ? O que é que fazemos com
o público ?
É verdade, tens razão, é aborrecido nós a
comer e o público a olhar…
RICARDO :
E se calhar, com isto tudo, eles também já
começam a ter fome !
Cena 16.
Convite para jantar
JOÃO
( para os espectadores ) : Também querem
comer um franguinho ?
Se quiserem é só
dizer, estejam à vontade. Quem vai buscar
um, vai buscar dois.
RICARDO :
Então vá… Aceitamos encomendas… Quem quer
frango assado ?
Junto dos espectadores, o JOÃO e o RICARDO
tomam notas das diferentes encomendas de
frango assado. SituaçÇao de imp^rovisação
livre.
JOÃO :
Pronto....
Já
está
tudo
aqui,
bem
apontadinho. E dentro de quinze minutos eu
estou de volta... Vá… Continuem sem mim,
depois eu integro-me, vocês sabem como é…
RICARDO :
Eu vou com o João, para o ajudar. Ele não
pode trazer tantos frangos sózinho. Volto
já. Continuem sem mim, depois eu integrome, vocês sabem como é…
CATARINA :
Já agora, que estamos nisto, eu também vou…
Compro umas garrafitas de vinho… Com um
46
franguito,
tinto !
fica
muito
bem
beber
um
bom
O JOÃO dirige-se a um espectador.
JOÃO
( a um espectador ) : O senhor tem carro ?
Está estacionado muito longe do teatro ?
Identifica um espectador que diga que tem
carro.
JOÃO
:
E não quer acompanhar-nos ? É que de carro
era mais rápido… ( À senhora que acompanha
o espectador )
A senhora deixa-o ir
connosco ?
CATARINA :
Ele volta já, nós não demoramos nada ! Não
fique preocupada…
JOÃO :
Ora aqui está uma senhora às direitas, que
até deixa o marido ir sózinho comprar
frangos. Assim é que é, uma senhora
generosa, um exemplo a seguir, pelas outras
senhoras aqui presentes ! ( Para os outros
actores ) Então, até já, a gente não demora
nada... Continuem sem nós, nós depois
integramo-nos, vocês sabem como é…
O JOÃO, o RICARDO e a CATARINA dirigem-se
para a saída, na companhia do espectador. O
RICARDO volta atrás.
RICARDO :
Esperem um bocadinho ! Esquecemo-nos
dizer uma coisa muito importante…
de
( Fala na língua oficial do território em
que decorre a representação teatral )
Attention, attention ! Est-ce qu’il a y a
encore,
ici,
dans
cette
salle,
des
spectateurs qui ne comprennent pas le
47
portugais ? Ils ne sont pas déjà tous
partis ? Bon… C’est que nous voulons, tout
simplement, vous informer que, comme nous
commençons à avoir une petite faim et que
le spectacle tout étant ce qu’il est ne va
pas vite, comme s’il était quelque chose
d’autre, nous allons chercher du poulet
grillé… Vous savez bien, le poulet, fait
partie de nos traditions… Le poulet grillé,
les
sardines…
Donc,
nous
partons
maintenant, mais vous n’avez pas à vous
inquiéter… Ça ne sera pas long… Et, bien
entendu, tradition portugaise oblige, il y
en aura pour vous aussi… D’ici dix… trente…
soixante minutes, nous serons de retour…
Até já… ( Àparte, para o JOÃO ) É só para
eles não ficarem à toa, sem perceber o que
se passa…
CATARINA :
Então, até já…
O JOÃO, o RICARDO,
ESPECTADOR saem.
a
CATARINA
e
o
Cena 17.
A deserção final
PROENÇA :
Enquanto eles vão comprar os frangos eu
aproveito e vou telefonar à minha mulher...
Continuem sem mim, eu depois integro-me,
vocês já sabem como é….
Sai. A LIA, a CLARISSE e a MARIANA ficam
sós em cena.
MARIANA :
Primeiro o futebol, agora os frangos. Isto
nem contado… Nem contado… Eu preciso de ir
48
apanhar ar. Isto deprime-me. Isto deprimeme. Deprime-me...
Sai a gritar…
CLARISSE :
Comecem sem mim, depois eu integro-me...
Mais fácil dizer que fazer, não é ?
A LIA acende a televisão…
CLARISSE :
O que é isso, menina, ver televisão agora,
diante do público? Falta de respeito.
LIA:
Vê-se mesmo que chegou atrasada... O
público já perdeu todas ilusões a nosso
respeito… Olha, agora cala-te. Deixa ouvir
a telenovela…
CLARISSE :
A novela ?
Vai começar a novela ! Minha
nossa ! Porque é que você não disse logo ?
Cena 18.
Enfim, a telenovela
A Clarisse e a LIA sentam-se em frente à
televisão. Ouve-se a voz da apresentadora.
APRESENTADORA(off) : … uma emissão da Televisão Lusófona
Utópica. E dentro de momentos, mais um
episódio
da
telenovela
afro-lusobrasileira, Frade Sousa na América. Aqui
Teresa Baptista Cansada das Gueguerras que
vos deseja um bom serão na companhia da
incorformista
equipa
da
TLU,
a
sua
Televisão…
Ouve-se a música da telenovela…
CLARISSE :
Ter um canal lusófono tão dinâmico ! Você
já viu a sorte que a gente tem ?
49
LIA:
Deixa ouvir… Olha, olha ! Lá está ela, a
Madalena de Vilhena. Coitada, hoje tem um
ar tão triste…
Seguem a telenovela. Trata-se de uma
adaptação «muito livre» da peça «Frei Luís
de Sousa», de Almeida Garret. A LIA
repete, em voz alta, o texto que é dito na
televisão.
MADALENA (off)/LIA: Com paz e alegria de alma… Um engano…
Um engano que seja. Deve ser a felicidade
suprema deste mundo. E que importa que não
o deixe durar muito a fortuna ? Viveu-se,
pode-se morrer.
Sem deixar de repetir em voz alta o texto
televisivo, a LIA, vai até ao guarda-roupa
buscar uma caixa de lenços de papel, para
limpar as lágrimas.
MADALENA (off):
Mas eu… Que não o saiba ele ao menos.
Que não suspeite este estado em que vivo.
Este medo, estes continuos terrores…
Cena 19.
O drama das Madalenas e das Marias
O monólogo da CLARISSE deve ser adaptado à
realidade de cada grupo e representação.
CLARISSE :
Medos e terrores ! A sua Madalena está
apavorada ! Mas minha nossa, coitadinha
dela, coitadinha da Madalena... Imagine só,
viver em Brossard… ( ou outro bairro
habitado pela classe média da cidade
imigrante da cidade em que se apresenta o
espectáculo ) .
Já se viu coisa mais
triste, menina ? Que no Quebeque, mais
50
piroso que Sainte-Thérèse só Brossard…
Brossard assim é como o Laranjeiro, em
Portugal, é assim como o Bairro do Bexiga,
em São Paulo ! ( À LIA ) Você não conhece
o bairro do Bexiga ? Pois olha, sorte sua
!
Mas eu, sabe, eu tenho uma tia que é
dentista – mas que também sabe dar massagem
americana direitinha e sabe fazer manicura
– e que, daí, emigrou para Portugal, e está
lá morando no tal Laranjeiro… Tadinha dela,
não é … E essa Madalena de Vilhena, uma
senhora tão bem nascida, com peedegree,
brasão, cartão Visa platinado, ter de mudar
de Lourenço Marques, quer dizer de Maputo,
para esse lugar sem geito, Brossard, com
esse Manuel de Sousa Coutinho, esse marido
chato, nacionalista babaca, beato, ainda
por cima, pirómano… Sim, porque essa
história de ele botar fogo no palácio, não
dá para perceber, não !
Ouve-se, na telenovela, o som de choro da
Madalena.
LIA:
Espera… Esta parte é mesmo triste… (
Dirige-se directamente aos espectadores )
Estou na frente de alguém ? Digam, estejam
à vontade, que a telenovela é para todos !
Aliás, fiquem a saber, que a telenovela já
fez mais pela lusofonia que todos os
ministros e subsecretários brasileiros e
portugueses juntos, sem falar da África,
porque isso, bom, a África… Ai, a África… (
Chora
)
Desculpem…
(
Adressa-se
directamente a uma espectadora ) A senhora…
( Aponta ) Sim, a senhora aí… Está a ver
bem ? Esse lugar não deve ser muito bom…
51
CLARISSE
( aproxima-se da espectadora ) : Venha daí,
venha sentar-se ali connosco ! Vá, não
hesite assim… Deixe para lá os filhos,
deixe o maridão, cinco minutos… Diga lá…
Há quanto tempo não existe para si, mesmo
durante cinco minutos ? ( Para o público em
geral ) Estão a rir ? Como se ela fosse a
única… ( A outra espectadora ) E a senhora
também,
venha...
Venha
comigo.
Ali,
naquelas cadeiras, na cena, vamos estar
muito melhor...
Senta-se em frente
espectadoras.
LIA :
da
televisão,
com
as
Faz favor… Se quiserem lenços de papel é só
puxar daqui.
Mostra às espectadoras a caixa dos lenços
de papel.
CLARISSA :
Olha, é o seu Nacib… Tá vendo ? Vem visitar
a vizinha Madalena…
No
escuro
quase
total,
todos
escutam
a
telenovela.
TELMO (off) :
A senhora está a ler ?
MADALENA (off) : Ah, sois vós, amigo Telmo !
leio.
TELMO (off) :
Não já não
Encontrei à pouco, no parque, o seu marido,
o Manuel de Sousa Coutinho. Disse-me que já
têm quase tudo pronto para a viagem de
regresso para Portugal. Vou sentir muito a
52
vossa falta e a falta da vossa filha, a
Maria.
MADALENA(off) : Você é muito amigo dela, Telmo ?
TELMO (Off) :
Muito. Conhecia-a tão pequenina !
MADALENA (off) :
Estou tão preocupada com a Maria, Telmo
! Desde que o pai lhe disse que iamos
voltar para Portugal, anda num estado...
TELMO (off) :
Madalena, a Maria não quer ir viver para
Portugal…
Sempre viveu aqui, é aqui que estão os
amigos…
MADALENA (off): Isso já eu disse ao meu marido, mas ele
não me quer ouvir…
TELMO (off) :
E a Madalena ?
MADALENA (off): Eu ?
O que quer que eu diga ?
Estou
contente
porque
o
meu
marido
está
contente, e eu gosto muito dele e sei que
ele aqui nunca foi feliz.
CLARISSE :
Vocês ouviram ?
Ela está contente porque
o marido está contente...
LIA:
É como se ela não existisse. Como se ela
não fosse uma pessoa, mas uma caixa de
ressonância da vontade familiar…
CLARISSE :
LIA:
Isso uma história muito antiga…
É uma história bem de hoje, menina… Tu
sabes lá. Pergunta aqui a esta senhora,
quantas Madalenas ela conhece por aí.
53
CLARISSE
( apontando a televisão ) : Olha, lá está
ele… Chegou a casa ! O Manuel de Sousa
Coutinho, o marido…
MANUEL (off) :
Boa tarde, Telmo. Olá Madalena. Já está
tudo
tratadinho.
Os
contentores,
os
seguros, a papelada toda !
MADALENA (off) : Manuel, eu e o Telmo estavamos aqui a
falar… É a Maria.
TELMO (off) :
É por causa da vossa partida para
Portugal, Manuel. A Maria não quer ir.
MANUEL (off) :
A Maria ainda não tem querer, é muito nova
para essas modernices. Aqui em casa quem
manda sou eu.
Cena
20.
Confidências
O PROENÇA regresssa à cena. Junta-se ao
grupo. Segue a telenovela…
CLARISSA :
Minha nossa ! Que homem chato
machista como já não se usa !
!
Um
LIA:
Coitado, no fundo, no fundo, ele até tem
bom coração…
PROENÇA :
É o Frade Sousa na América ?
CLARISSE :
Por favor, agora não… Cala-te !
LIA
( para o Proença ) : É a Maria, a filha da
Madalena de Vilhena… A miúda não quer ir
para Portugal… E agora senta-te e está
caladinho…
54
MARIANA :
A miúda nasceu aqui, é aqui que tem as
raízes.
PROENÇA :
Histórias de imigração… É sempre a mesma
coisa…
CLARISSE :
Não ! Isso é «cliché»! Cada história é
única. Na minha família, a minha mãe é que
queria voltar para a terra dela, o meu pai
nem queria saber… Ele se tinha integrado
bem, tinha um bom trabalho… A minha mãe se
sentia sózinha, perdida… ( Para uma das
espectadoras ) E na sua família, como foi
? Quer contar para a gente ?
Segue-se uma conversa-entrevista com as
espectadoras sobre a percepção que estas
têm da imigração e a rercursão que ela
teve nas suas famílas. A entrevista será
preparada antes de cada espectáculo tendo
em conta o perfil sociológico do país e da
comunidade onde o grupo se apresenta. As
perguntas devem ter sempre em conta a
sensibilidade das pessoas interrogadas.
Cena 21.
Trouxe um amigo também
O
RICARDO
regressa.
pela
entrada
público. Vem acompanhado pelo ROBERTO.
RICARDO :
do
Ei gente ! Chegámos... Os outros estão só
ali, a estacionar o carro.
Já não havia
frangos mas trouxemos pastéis de bacalhau.
Estão
uma
maravilha…
Quentinhos…
E
trouxemos este amigo também ! ( Aponta
para o ROBERTO que ficou atrás ) Chama-se
Roberto… ( Para o Roberto ) Anda, Roberto,
está à vontade… ( Faz as apresentações )
55
Olha, isto é o nosso teatro…
espectadores… Nos spectateurs…
Os
nossos
O ROBERTO cumprimenta os espectadores e os
actores.
ROBERTO :
Muito prazer… Roberto… Bob para os amigos…
CLARISSE :
Oí, Bob… Venha daí…
ROBERTO :
Eu não sou actor…
MARIANA
( vai buscar o BOB ) : Não faz mal, isto
também não é bem um espectáculo…
ROBERTO :
Mas estava anúnciado lá na entrada… HOJE.
TEATRO. MAREAR.
LIA :
Pois. Ea o que estava previsto.
Sebastião ainda não apareceu…
PROENÇA :
Estamos todos à espera do Sebastião.
MARIANA :
Nem queira saber… Um desperdício de tempo
e de energia…
CLARISSE :
E o mais díficil é aguentar assim de mãos
vazias, diante do público, sem nada para
dizer… Quer dizer, nada de interessante…
Até agora os espectadores até têm sido
compreensivos, mas eu não sei por quanto
tempo é que eles vão ainda aguentar…
PROENÇA :
Eu
já
disse
poemazitos…
MARIANA :
Não!
ROBERTO :
Se quiserem, posso cantar uma canção…
que
posso
dizer
Mas
o
uns
56
CLARISSA :
É, boa ideia, cara ! Uma musiquinha, para
aquecer aqui, o ambiente…
LIA :
João vai buscar a viola… ( Para o ROBERTO
) Eu posso cantar contigo…
Escolhem rápidamente o que vão cantar. O
JOÃO empresta a viola à LIA ( ou a outro
actor que saiba tocar ). Podem também
acrescentar-se a este improvisado conjunto
outros
instrumentos
músicais
Cantam.
Dançam.
No
final,
a
MARIANA
acompanha
as
espectadoras que assistiram à telenovela
até aos seus lugares.
Cena 22.
Encontros e reencontros
O JOÃO, a CATARINA e o espectador «do
carro» chegam.
JOÃO/CATARINA : Atenção, atenção… «Olhó» pastelinho
Chegaram os pastelinhos de bacalhau !
PROENÇA :
Já não era sem tempo !
MARIANA :
Vamos pôr a mesa.
!
O PROENÇA, ajudado por outros actores,
improvisa uma mesa, com materiais de cena.
RICARDO :
Cuidado !
JOÃO :
Um pouco mais ao centro !
57
CLARISSE :
Este pano serve muito bem de toalha…
JOÃO :
Eu abro a garrafa de vinho !
A CATARINA retira as flores que adornam um
chapéu de cena.
CATARINA :
E aqui está um lindo centro de mesa…
CLARISSE :
Pronto ! A mesa já está posta…
JOÃO
( levanta o copo e propõe um brinde ) :
nossa !
LIA :
Espera um pouco… Antes que comecemos a
comer eu quero dizer-vos uma coisa… Eu sei
que isto até pode parecer um pouco idiota,
mas no fundo, no fundo eu não estou tão
triste assim por não termos podido ainda
começar o espectáculo…
MARIANA :
O
atraso
do
Sebastião
deu-nos
a
possibilidade de falar da vida, da nossa
vida de todos os dias… Nunca temos tempo
para falar de nós…
LIA :
Eu gostei
contámos…
JOÃO :
Pena termos ficado a meio. Eu gostava de
ter sabido o que aconteceu depois com a
Mulher que ficou com um filho nos braços,
aquela que esteve dois anos sem notícias…
muito
das
histórias
que
À
nos
A CATARINA põe o lenço e pega na boneca
que
utilizou
na
Cena
11.
A
Carta.
Interpreta
de
novo
o
personagem
da
AUGUSTA.
58
MULHER:
Um dia veio a carta de chamada eu fui ter
com ele. Levava já o nosso filho pela mão.
Fomos viver para Montreal, na rua de São
Dominique, com a irmã dele.
A LIA volta
APARECIDA.
a
interpretar
o
papel
da
MULHER 2 :
Um dia apareceu na aldeia um homem e disse
que queria falar comigo e eu perguntei-lhe
a que vinha e ele ficou muito calado a
olhar para mim, a olhar… E estendeu a mão
e me deu esta medalha. E disse que tinha
prometido, de promessa que não se pode
romper, me trazer essa medalha de volta. (
Olha a medalha ) O meu marido dizia que
ela o protegia… Não a tirava nunca…
LIA:
O público também teria gostado de ouvir o
fim da história do homem que foi trabalhar
para Dallas… Ou para Sidney, já não sei. (
Pega num lenço branco e acena ) Adeus…
PROENÇA
( acena com um lenço ) : Adeus…
CATARINA :
Triste a história em que o Ricardo fazia
de Menino que não sabia do pai...
RICARDO :
Eu fazia de Menino que nÇao sabia do pai.
O RICARDO encontra imediatamente a postura
do personagem FILHO e aproxima-se do
PROENÇA-PAI.
PROENÇA
( confuso, para o FILHO-RICARDO ) :
Desculpe… Deseja alguma coisa ?
Sim ?
59
RICARDO :
( Um pouco envergonhado ) Não… Não é nada…
Sou eu que peço desculpa. Confundi-o com
outra pessoa…
O MENINO-RICARDO e o PAI-PROENÇA afastamse.
CATARINA
Esta cena devia ser diferente… Devia ser
uma cena muito mais alegre. O Filho e o
Pai que se encontram, que se abraçam…
RICARDO :
Era bom que a vida, às vezes, fosse assim,
parecida com uma peça de teatro.
MARIANA :
Há peças de teatro que acabam muito mal…
CLARISSE :
Se eu não tivesse chegado atrasada podia
também ter contado para vocês a história
de meu bisavô português. Ele regressou a
Portugal muito rico… As pessoas da aldeia
lhe chamavam o imigrante de branco.
O ROBERTO vai até ao guarda-roupa, põe um
chapéu e veste um casaco branco…
ROBERTO :
… Por causa de meus fatos de linho branco,
de meus chapéus… Outras vezes me chamavam
o «brasileiro torna-viagem». E riam de mim
e do meu geito novo de ser, de estar e de
falar… Mas depois eu mandei construir uma
escola para os meninos lá da aldeia e toda
a gente ficou muito contente…
CLARISSE :
Uma linda história, não é ?
CATARINA :
Mas houve também muitos que não voltaram,
que sofreram, que ficaram doentes.
60
MARIANA :
É a vida. Sabemos de
sabemos para onde vamos…
onde
vimos,
não
Longo e pesado silêncio. Ninguém sabe o
que dizer…
CLARISSE :
Há que encarar a realidade de frente,
gente. A esta hora o Sebastião já não vem.
JOÃO
A esta hora os pastéis
devem estar quase frios.
:
de
bacalhau
já
Novo silêncio embaraçado…
CATARINA :
Então ?
JOÃO :
Então o quê ?
MARIANA :
Então o melhor é acabar com isto de uma
vez por todas. Dizer muito claramente aos
espectadores que não vai haver teatro e
que podem ir para casa.
JOÃO :
Não contem comigo. Não sou bom para dar
esse tipo de recados…
RICARDO :
É… Nós até os tinhamos
comer frango assado…
MARIANA :
Porque
estávamos
Convencidos que o
chegar…
JOÃO :
Podemos dizer-lhes que como já não havia
frango assado…
ROBERTO :
Que pena acabar assim… Eu estava gostando
de estar aqui… Estava gostando de ouvir
essas histórias que vocês contaram aí…
convidado
para
a
fazer
tempo…
Sebastião ainda ia
61
LIA :
Deixem. Eu falo com os espectadores. (
Aproxima-se dos espectadores. Adopta uma
posição de familiaridade ) Minhas senhoras
e meus senhores, amigos… A esta hora é
pura utopia continuar a esperar pelo nosso
colega, o Sebastião. O espectáculo de hoje
está, por conseguinte, anulado. Agora é
que é. Lamento imenso que se tenham
deslocado em vão. Mas gostava de vos dizer
ainda que a situação que vivemos aqui esta
noite nos fez reflectir muito, sobre a
nossa visão da Arte, do teatro e da vida.
E eu creio que a partir daqui um outro
espectáculo irá nascer… Um espectáculo
onde vamos falar de nós e daqueles que nos
rodeiam. Um espectáculo onde vamos falar
da nossa vida. Eu pensava que a minha
história e a história da minha gente não
merecia ser contada. Não tinha graça… Esta
noite, diante de vós compreendi que afinal
não é assim… Obrigada pelo vosso olhar.
Foi ele que nos inspirou. Boa noite...
Entretanto, os outros actores aproximam-se
da LIA e escutam-na em silêncio.
TODOS
( para os espectores, num tom de grande
familiaridade ) : Boa noite…
JOÃO :
Nós vamos ainda ficar por aqui, para
arrumar a cena, conversar e claro !, a
comer e a beber mais um bocadinho… Se
quiserem, olha… Teremos muito prazer na
vossa companhia…
MARIANA
( afastando-se do grupo ) : Bom, não sei…
Seria conveniente assinalar que de um
ponto de vista sociológico o convite do
62
meu colega João é questionável… Todo o
acto teatral é
intrisecamente icónico.
Por isso, importa perguntar : que mensagem
passamos nós, actrizes e actores, quando
convidamos os espectadores para comer à
nossa mesa, neste momento e no contexto
desta representação caótica e frustrada (
para não dizer frustante ) ? Sim, que
mensagem ? A questão está lançada… Agora,
trata-se de reflectir…
Os outros actores voltam a rodear a mesa…
JOÃO :
Eu digo que os pasteis cheiram mesmo bem..
PROENÇA :
Estão
douradinhos,
como
eu
gosto…
(
apresenta o prato à MARIANA, para que ela
se sirva ).
MARIANA
( pegando num pastelinho ) Insisto… Que
mensagem passamos nós ?
CATARINA
( solene, levantando o copo ) : À nossa…
RICARDO
( na direcção dos espectadores ) : À vossa
!
TODOS :
Saúde !
Os actores ficam alguns segundos imóveis,
numa pose fotográfica.
Escuro.
Montreal, 2002/3
63

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