Suspensão do recalque, retorno à barbárie?
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Suspensão do recalque, retorno à barbárie?
Estudos da Língua(gem) Linguagem, psicanálise e memória Suspensão do recalque, retorno à barbárie? Procura-se uma saída... Suspended repression, return to barbarism? Search for a solution... Rachel Sztajnberg* Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro (SPCRJ/Brasil) RESUMO A suspensão das fronteiras que o recalque impõe à constituição subjetiva substituiu o mal-estar, derivado da inserção no campo de interditos, por um vazio, gerado pela destituição dos ideais e pelo esfacelamento da ordem simbólica que regiam até então as relações sociais humanas. Outros imperativos, sustentados por compensações ilusórias e satisfações imediatistas, tamponam precariamente a ausência das construções criativas de um estilo pessoal de ser. A singularidade ficou sacrificada quando o plural e o global adquiriram uma posição de destaque e impuseram ao sujeito contemporâneo uma adesão incondicional a protótipos prêt-à-porter incessantemente repostos. Migrar, incansavelmente, de uma demanda a outra exaure esse ser hodierno flexível e insuficiente para corresponder a tudo que é esperado dele. Seu corpo é colonizado, mais um instrumento utilitário; sua fala é *Sobre a autora ver página 241. Estudos da Língua(gem) Vitória da Conquista v. 11, n. 1 p. 229-241 junho de 2013 230 Rachel Sztajnberg chapada, sem sutilezas, sem um segredo, sem o sagrado. Não representa, apresenta; não identifica, incorpora; não transfere, desloca. Carece de um sentimento de autoria e responsabilidade, daí sua apatia. Ou seu excesso. Culpa, pouca; impotência e desesperança, muita. O que pode fazer a Psicanálise hoje por esse sujeito? PALAVRAS-CHAVE: Recalque. Vazio. Apatia. Excesso. ABSTRACT The suspension of barriers that repression imposes on the subjective constitution substituted the malaise set off by the insertion into the field of prohibiton, for a void generated by the destitution of ideals and the decay of the symbolic order that thus far ruled social relations. Other imperatives, sustained by ilusory compensations and immediate gratification, temporarily cover up the absence of creative endeavor in stylizing a personal way of being. Singularity was sacrificed when plurarity and globalization acquired a vantage position which is imposed on the contemporary subject. Unconditional adhesion to prêt-à porter prototypes are incessantly enforced. Ever migrating from one demand to the next exhauts this nowadays being, pliable and insufficient to all that is expected of him. His colonized body turned into another utilitarian instrument: his speech is flat, poor in subtlety, secrets or sacredness. He doesn’t represent, but presents, does not identify, incorporates, also doesn’t transfer, but displaces. He lacks authorship and responsability, thus he is apathetic. Or excessive. Little guilt, plenty of impotence and hopelessness. What can Psychoanalysis do for such a subject today? Keywords: Repression. Void. Apathetic. Excessive. O futuro é uma espécie de banco no qual vamos depositando, um por um, os cheques de nossas esperanças...ora, não é possível que todos os cheques não tenham fundos [...]. Mário Quintana Nessa preciosa reflexão poética interessa-nos a veemente e irredutível constatação que nela está contida: não é possível viver sem esperança. Se é essa uma falta da qual não podemos dar conta, porque Suspensão do recalque, retorno à barbárie? Procura-se uma saída... 231 mais que uma falta, ela reflete um vazio que despoja a existência de sentido, vale a pena evoluir em torno desse significante esperança e pensar que lugar tem hoje esse derivado da articulação delicada entre o desejo e os ideais na constituição subjetiva. Num mundo que sofre transformações meteóricas, de sorte que os conceitos e valores sobre os quais cada um sedimenta o seu estilo de ser caducam quase que meia hora depois de serem instituídos, não poderíamos supor que o sujeito aí inserido preserva o mesmo funcionamento de outras épocas. O habitat humano é obviamente mais instável, e a noção de futuro não tem a mesma representação de outros tempos. Apesar de todas as “seguranças” contemporâneas que os avanços científicos e tecnológicos podem propiciar, o futuro nunca esteve tão incerto, uma vez que a permanência é uma condição que quase caiu em desuso. Preservar já não é mais importante na cultura do descartável, e o valor efêmero dos objetos produz efeitos antes impensáveis na forma dos sujeitos se constituírem e se relacionarem. Até há pouco, o recalque, em sua dimensão tanto traumática, quanto estruturante, garantiu uma ordem nas relações sociais humanas, ainda que ao preço de um mal-estar gerado por uma economia psíquica que administrava os impulsos, só liberados depois de fazê-los passar por um crivo de censura. A sexualidade e a agressividade tinham que obedecer a um código de sanções que, caso fosse transgredido e denunciado, clamar-se-ia por uma punição. A culpa, avalizada pelos preceitos religiosos, jurídicos e filosóficos, constituía-se como marca da subjetividade. Em contrapartida, as instituições acenavam com uma recompensa: o “bom” sujeito receberia os louros na terra, ou ganharia o reino dos céus. Poderia, então, optar entre o crime e o castigo, ou renúncias e prêmios. A cultura assegurava certa proteção, se o sujeito se inserisse nessa ordem, regulado por uma relação de causalidade – o bem se louva, o mal se paga –, que orientava o seu funcionamento. As “tábuas da Lei”, vigorando como seu ponto de referência, permitiam a construção de ideais sólidos e duradouros, sobre os quais se assentavam os projetos e a fé na possibilidade de sua realização. As barreiras balizadoras do limite, dentro dos quais o sujeito tinha assegurado seu campo de ação, ruíram quase que da noite para o dia. Em muitos aspectos, o homem se tornou muito mais livre... e, com certeza, mais perdido. Com a suspensão das fronteiras que o recalque 232 Rachel Sztajnberg impõe, a figura do Pai, provedor e protetor, mas também o criador do interdito, foi de novo aniquilada. Seu lugar ficou vazio, e os órfãos têm que recheá-lo com os artifícios que agora se encontram a seu dispor. Cada um tem que inventar seu próprio pai, pai gozador, já que a ditadura do gozo substituiu o regime da Lei nos tempos hodiernos. O que isso tem significado para a Humanidade é o que estamos todos querendo saber. Testemunhamos um retorno à barbárie, que hoje teria outra feição, mais sofisticada? Como dar conta da existência num mundo onde se pode tudo ou quase tudo? O que está hoje no lugar da culpa e da possibilidade de reparação, e o que garante a singularidade onde reina o plural e o global? Acolhemos no divã o sujeito que está lá fora: na maior parte das vezes muito informado, até demais, e muito precário em sua capacidade de introspecção. Sabe de tudo, e muito pouco ou quase nada sobre quem ele é. Do que padece? Olha-nos com espanto ou fala sobre seu corpo, o depositário de uma dor que não entende nem sabe de onde vem. Como não há, certamente, psiquismo desencarnado, é aí nesse corpo que a dor se enraíza, uma vez que ele é tratado como o mero instrumento de um gozo. Tem uma função utilitária, serve para ser exibido como uma escultura, ou disponibilizado a serviço de uma onipotência maníaca - um excesso - que desrespeita seus limites e seus contornos. Um corpo colonizado e submetido às exigências idealizadas. Quanto ao discurso, ele é desprovido de qualquer graça, tampouco se depreende nele um cunho pessoal, original. É uma fala linear, chapada, desprovida de sutilezas e senso crítico. Não sem razão Charles Melman nos fala de uma nova economia psíquica, e que, se não acessamos o inconsciente, não é porque ele não esteja lá, mas o ausente é o sujeito dele, o interlocutor que dele possa dizer. Surpreendemo-nos com a falta de um enigma a ser decifrado, com a incômoda transparência do discurso. Onde os véus que protegem o íntimo, o sagrado, se tudo parece despudoradamente escancarado, como se não houvesse mais interditos? É dificil saber que função ocupamos nessa interação, já que a transferência não se instala ou, pelo menos, não nos moldes tradicionais. Suspensão do recalque, retorno à barbárie? Procura-se uma saída... 233 Pelo vício de aquiescência, nosso analisando, se é que ainda podemos chamá-lo assim, cumpre as regras porque está acostumado a acatar o que lhe é imposto. Convencem-no de que ele precisa urgentemente do computador e do celular de última geração e de que ele não pode deixar de ver o filme mais recente do diretor mais badalado do momento; que a comida japonesa agora é in, e a chinesa out, e ele adere a todos os imperativos propostos sem hesitar, para não se tornar um outsider. Incorpora, assim, os regulamentos genéricos do trabalho analítico e, até mesmo, a regra básica. Mas o que lhe vem à cabeça e a quem está endereçado? Quem fala, se ali não se encontra mais o ser conflitado, cindido, e sim um ser compactado pelas informações que absorve em bloco e que mimeticamente reproduz? E a quem se dirige aquele que funciona, mas não existe? Se ele não é, como se reportar ao outro? O registro da transferência só se faz viável quando alguma filiação pode ser reconhecida e uma demanda pode ser construída. No entanto, testemunhamos a presença de um ser atormentado por novos interditos. Agora, ele não pode ser feio, não pode envelhecer, não pode sofrer e, de preferência, não deve morrer. O que é inerente à natureza humana é experimentado como um defeito que gera vergonha, é o pecado dos nossos dias. Vergonha essa não referida a uma moral, como antes, mas a um sentimento de inadequação, insuficiência e ridículo. O sujeito, irremediavelmente condenado à sua humanidade, não está apto a corresponder aos modelos imaginários e aos tirânicos ideais previamente formatados que lhe são exteriores, são encomendas vindas de fora. Não cumpri-las repercute internamente como uma indignidade. Além disso, vive-se imerso num caldo onde a diferença nunca foi tão mal suportada. Todos têm de fazer a mesma coisa, comprar o mesmo, um modelo uniforme que deve ajustar-se a todos, porque só esse presta. A radical eliminação do diferente expande-se em todas as direções e afeta severamente o campo relacional. Organiza-se, então, um sistema que instiga ao ter, provoca necessidades, uma parte delas fícticia e equivocada. Sua dimensão consumista impõe o acúmulo, mas não 234 Rachel Sztajnberg transforma, não diverge. Não tem um cunho criativo, não personaliza, é genérico. Genérico e fluido, volátil, a qualquer momento pode deixar de ser importante, um outro item já o substituiu. Não há tempo nem espaço para a elaboração das perdas, para os desinvestimentos, tudo é trânsito. Como consequência, uma falha na integração da identidade e uma inconsistência nas formações identificatórias. Se quisermos recuar ainda mais, veremos a deficiência das representações, a dissolução do universo do simbólico e uma regressão aos signos. O que antes deixava traços, vestígios recolhidos aqui e ali, passíveis de uma seleção – isso sim, aquilo não – e conformadores de uma singularidade, agora são elementos em profusão, mais apresentados do que representados, a demandar uma adesão incondicional . Sua absorção se dá mais sob a égide do eu ideal do que do ideal do eu, e a falta de mediação desencadeia uma avalanche de sedutores apelos ao eu inflado maniacamente e sem instrumentos para resistir ou filtrar alternativas. Falo em resistência sim, porque ela tem sua dimensão necessária e benigna, o elemento conservador tem a sua razão de ser e marca um núcleo constitutivo do sujeito do qual ele reluta em abrir mão, pois ali está o cerne do que ele é. No entanto, quando a resistência é abolida, o resultado são seres-esponja, alienados e manipulados, aderentes a qualquer proposta idealizada ou ilusória. Na ausência de objetos dotados de uma qualidade que inclua a constância, as relações tornam-se mais permeadas pelos deslocamentos do que pelas transferências. Os contatos são fugazes, superficiais e deles resulta uma subjetividade móvel, referida a objetos permutáveis, em pouco tempo expelidos e repostos por outros, e assim sucessivamente. O valor estruturante dos objetos transicionais (WINNICOTT, 1975) perde o seu estatuto para dar lugar aos objetos meramente transitórios (MCDOUGALL, 1983), mais próximos de se caracterizar como fetiches. Dinheiro, drogas, objetos glamourosos, aí incluídos outros seres-objetos, atraem os que se tornaram siderados pela satisfação instantânea. O excesso se manifesta na excitação frenética, no erotismo banalizado, no barulho que atordoa, na abundância de ofertas de produtos alienantes e que se anunciam como imprescindíveis. Tudo Suspensão do recalque, retorno à barbárie? Procura-se uma saída... 235 isso tampona, pelo menos provisoriamente, o grande vazio deixado pela ausência de referências fixas e consistentes, asseguradoras das filiações, das pertinências que atenuam a dor implacável que a consciência do trágico destino humano naturalmente suscita. Contrariamente aos padrões de outras épocas, o valor da estabilidade foi totalmente distorcido, e se era tomado antes como louvável, símbolo de confiabilidade, hoje aponta o caduco, o prescrito. Manter-se por muito tempo num trabalho já não é bem visto, não indica um plano de carreira, uma trajetória elogiável, soa mais como acomodação, conformismo, ausência de ambição. Sabemos que a continuidade é condição sine qua non para o desenvolvimento do sentimento de si na constituição do sujeito e que um fracasso do ambiente em garantir os meios para que se estruture um padrão pessoal de ser do qual ele se aposse resulta em uma proliferação de seres adaptados, submissos, até capazes de uma complexidade “técnica”, mas onde a criatividade genuína geradora de uma sensação verdadeira de existir e pertencer? Se não se sentem se construindo, que sentido vai ter para eles a preservação? Que diferença faz, então, manter ou destruir, quando os sujeitos não se sentem implicados? A autoria e a responsabilidade são o corolário de um processo de maturação que supõe uma interação benigna com o ambiente, a partir da qual a preocupação (concern) com o que acontece fora do mundo interno passa a se dar. Se existem atropelos nesse processo, o interesse pelo entorno, que, naturalmente, adviria, fica prejudicado, e, no lugar do interesse e empatia, brotam a apatia, a indiferença. Onde se instalam, a solidariedade e as alianças ficam neutralizadas. O isolamento e a solidão reverberam no interior de cada um, e esse vazio também provoca efeitos catastróficos. A expansão vertiginosa do virtual e o poder da mídia, para além de sua função informativa, reduzindo distâncias e ampliando a comunicação de forma muito proveitosa, veicula imagens, muitas vezes sensacionalistas, que, de tanto escancarar o horror da selvageria (um real demasiadamente revelado), banalizam as cenas escandalosas a ponto de 236 Rachel Sztajnberg tornar o espectador defensivamente apático, no lugar de indigná-lo. Até porque, através desses meios, ficção e realidade, verdadeiro e falso não têm contornos distintos no universo das imagens. Mas o que é ainda pior nessa divulgação é o efeito pernicioso que ela pode produzir, de incitar a violência naqueles de constituição mais precária e mais suscetíveis à adesão destrutiva. Haveria que se pensar se, nesses casos, a inflação do imaginário, em detrimento do simbólico, não “sugere” ao espectador uma possibilidade de, atuando de maneira semelhante, reproduzindo façanhas como as que vê projetadas, ganhar igualmente um lugar de destaque, uma posição espetacular que o retira da condição medíocre e anônima para virar, enfim, também... artista popular. Outro desdobramento importante dessas vicissitudes é a marca de impessoalidade que permeia os encontros. Mais descompromissados e anônimos e, consequentemente, menos sujeitos e mais indivíduos, esse seres ficam mais à mercê dos impulsos desenfreados, tanto mais quando desprotegidos e abandonados ao regime do cada um por si. A violência torna-se mais bruta e indiscriminada se o inimigo não está circunscrito e identificável, e pode ser qualquer um ou qualquer coisa que faça disparar uma sanha mortífera. Temos testemunhado dispersas explosões de ódio das quais temos tido dificuldade de apreender o sentido. Parecem-se mais a uma pura descarga, desprovida de uma mínima elaboração. A escravatura, o Holocausto se estruturaram sobre alguma base, como o narcisismo das mínimas diferenças que sustentava a relação opressor-oprimido. A agressão hoje, contudo, percorre uma via absolutamente gratuita e desorganizada. Como entender tudo isso? Na falta de sujeito responsável por seus atos (protótipo da saúde preconizado por Winnicott), os objetos também se tornam imprecisos e de valor duvidoso. Uma aderência maciça e fluida, mais no registro da incorporação do que carregada de investimentos identificatórios, torna-os ora enaltecidos e imprescindíveis, ora obsoletos e ejetáveis. Um sujeito imprevisível, porque demasiadamente flexível, circula entre eles, sem amarras. Suspensão do recalque, retorno à barbárie? Procura-se uma saída... 237 A depressão e a melancolia, mascaradas ou escancaradas, apontam a crueza da morte psíquica, da anulação da linguagem como veículo das negociações comunitárias, reduzindo à condição de meros sobreviventes os seres dos nossos dias. Quem hoje ainda tem alma, é uma pergunta aflita de Kristeva (2002), referindo-se à ausência de identidade sexual, subjetiva e moral. Como faltam o discurso, o texto e o contexto, a passagem ao ato torna-se inevitável. A falta de mediação remete inexoravelmente ao terreno do dual, e cada um se move impelido pelo “pega pra capar” do “ou eu ou ele” nas arenas pós-modernas. Perdão pela omissão, dei-me conta, neste momento, que, nos embates mais extremados, a radicalidade vaticina: nem ele nem eu. Não será esse o começo do fim? Quando a vida não vale mais a pena ser vivida, quando ela fica barata, e viver não é mais preciso, o que resta, então, senão as estratégias de sobrevivência a que convidam as satisfações imediatas, intensas e fugazes? A profundidade se perde, as aspirações são rasas e urgentes, ninguém pode esperar, porque o amanhã não existe. Se os cheques de nossas esperanças não têm fundo, como disse Quintana, os artefatos ilusórios e o prazer fácil suprem, à guisa de prótese, as lesões narcísicas do homem contemporâneo. A experiência clínica nos aponta o tempo todo que a fragilidade estrutural dos que nos procuram não permite a erradicação abrupta dos artifícios defensivos com os quais se protegem minimamente. Se amiúde, por falta de qualidade construtiva ou criativa, esses “gatilhos” os colocam em risco, eles são também, paradoxalmente, o que os salva do abismo que os ameaça, na falta de um cerne ou de um self genuíno e consistente. Para nós, sobra a sensação de que não estamos fazendo nosso trabalho direito, o que nos obriga a suportar um desconforto e uma estranheza ainda maior do que a que já nos cabe irremediávelmente em nosso lugar. Como intervir sobre os rompantes maníacos, se eles são um recurso encobridor do constrangimento de não se sentir real? No outro polo, como despertar do torpor, da apatia o sujeito inerte que está diante de nós e que não se envolve, como se seu único compromisso fosse com o desejo de nada? 238 Rachel Sztajnberg No esforço de abrir novas frentes de trabalho, muitos de nós temos tentado explorar alternativas de investimento psíquico a serem provocadas. Lambotte (1999), pesquisadora francesa que tem nos dado o prazer de compartilhar com ela de suas empenhadas investigações, chama a atenção para a importância da captação do interesse como uma saída (discreta) da apatia do melancólico de nossos dias. Nomeia como objeto estético esse item que faz deslizar da aridez fixa do deserto de representações para algum “lugar” que possa ser nomeado. Trata-se de, a partir da instalação e reconhecimento de algumas diferenças, algum colorido ou variação de texturas, propiciar a invenção de algo que provoque menos que um desejo, mas suscite alguma atração, possa se desenvolver e minimamente se desdobrar. Nem objeto a, tampouco o transicional, este objeto teria um estatuto peculiar de marcador desse interesse a impulsionar um mais além, ainda que limitado e circunscrito a algumas áreas a serem banhadas por alguma erotização. Para ela, se o paciente ganha o gosto de decorar a casa, ou se fica cativado por um objeto de coleção (que contém o +1, um próximo a ser buscado), seu olhar deslocou-se do vazio, algo já o abastece e dota de algum sentido, o que até então era só um apego anobjetal. Como toda nova ideia, essa pode ser polemizada: como distinguir a dimensão benigna dessas aquisições “estéticas” daquelas aderências paralisantes aos artefatos e ideais forjados para servir mais aos interesses mercadológicos do sistema do que ao próprio sujeito? Com a precariedade de seus recursos discriminatórios, para onde se dirigirá o interesse se os objetos-fetiche se exibem insistente e sedutoramente? Como sair da apatia, pela via do objeto estético, e não se precipitar na mania, é o que ainda temos que pesquisar mais e formular melhor, penso eu. Esse homem contemporâneo inibido, retraído narcisicamente está cansado de ser si mesmo, segundo Ehrenberg (2000), importante pensador francês da atualidade. Ele teoriza sobre um sentimento de impotência avassalador, gerado por um excesso de autonomia, somada a uma demanda exigente de iniciativa pessoal, a qual ninguém dá conta de atender, e que remete ao abandono. Uma liberdade excessiva assola Suspensão do recalque, retorno à barbárie? Procura-se uma saída... 239 esse homem, e se ele já não tem porque se sentir culpado, uma vez que sua desimplicação e alienação lhe garantem sua isenção, o que o consome agora é sentir-se insuficiente e mais solitário do que nunca. Esse sujeito de hoje tem que dar conta de se tornar um homem de ação, um sucesso. Ser hoje é ter e fazer. Mas a intenção e o desejo não partem de uma criação interna. É um olhar, uma imagem que vem de fora que o constitui. Ele não se inventa num espelho que o reflete, ele é que tem que refletir o que está fora. “Eu sou uma fachada”, acusou um paciente quando tomou consciência da sua falta de interioridade. Se as imagens sobrepujam as ideias, as sensações ofuscam os sentimentos, a essência se perde pela ausência de ligação. O investimento maciço na performance cobrou seus preços. Os laços se tornaram mais frouxos, os compromissos ético-sociais, mais diluídos, e as filiações, quase inexistentes. Ou, então, assistimos sua contrapartida nos agrupamentos em torno de propostas fundamentalistas ou evangélicas, não necessariamente de natureza religiosa. O fundamentalismo científico em todas as suas vertentes rivaliza, em sua radicalidade mágica, com as ofertas transcendentais. Tanto um quanto outro operam um arremedo mesmo de tábua da lei ou da salvação, a previnir do horror do caos e do aniquilamento. “Quando o céu se esvazia de Deus, a terra se enche de ídolos”, lembra Karl Barth. A ilusão é um poderoso recurso em face de uma lucidez desoladora. O homem de hoje, desorientado, se perde no meio de outros homens como ele, “sem gravidade”, como nomeia Melman (2003), todos órfãos soltos no espaço, anônimos, buscando por onde agora ancorar seus pontos de referência identitária. Pensa-se esse momento histórico como que atravessado por um movimento perverso, despojado, no entanto, de uma conotação moral. A perversão estaria mais referida aos princípios das relações sociais, na forma como cada um se serve do outro como objeto utilitário e descartável, que não requer dele seu apreço. A falta dessa liga pressupõe um interesse pelos objetos em si, pelo que deles se pode extrair para seu próprio desfrute, mas há carência de aplicação nos ideais, que parecem em baixa na bolsa de valores dos investimentos psíquicos. Eles parecem 240 Rachel Sztajnberg ter sido substituídos pelas idolatrias, um retorno à paixão pelo bezerro de ouro. No entanto, essa volta representa um grande perigo para a preservação da espécie, porque, como sinalizou Vittorio Messori em Algumas razões para crer: “O culto dos ídolos não é inofensivo, pois os deuses têm sede de sangue humano.” O tempo e a historicidade deixaram também de ser os aliados da humanidade. As transformações meteóricas pulverizam a demarcação de continuidade entre passado, presente e futuro, e o aqui e agora nunca tiveram tanta relevância. Em função dessa perspectiva monolítica, onde o presente se perpetua interminavelmente, o desperdício é grande. Não se sabe o que vale a pena poupar e com que fim. Se nada é durável, melhor que se esgote logo. Também a herança, o patrimônio cultural ou de outra ordem têm um prazo de validade muito curto. Tudo é rapidamente esquecido e reposto, já que o que se segue supera o anterior e supõe seu abandono. Segundo esses critérios, até a Psicanálise em sua versão tradicional é vista muitas vezes como um produto anacrônico, em face das urgências de alívio dos sofrimentos da alma e a impaciência reinante com o que é mais elaborado e demanda mais tempo do que o que se tem para gastar. Nosso trabalho consiste na reconstituição de uma história, a partir de uma narrativa sobre si mesmo que o sujeito tece ponto a ponto, lenta e arduamente. Exercício inusitado para o homem contemporâneo, que vive uma vida “picotada” e tem dificuldade de ligar fatos, fazer um patchwork subjetivo conforme as suas vivências. Esperar e construir requerem uma operação trabalhosa, que já não têm muito espaço de aceitação no sistema vigente. Até mesmo o que provoca a demanda, a esperança de poder viver melhor, com mais prazer, está referida a um modelo de felicidade estereotipada e pré-construída, nos moldes genéricos dos anúncios publicitários. O prêt-à-porter substituiu com sucesso a confecção artesanal, e onde ficamos nós, que nada sabemos de produção em série e de serviço Express? Este texto poderia ser entendido como a proclamação do derradeiro Apocalipse, e seu autor não mais que um legítimo arauto da Suspensão do recalque, retorno à barbárie? Procura-se uma saída... 241 desgraça. Não é assim. Minha intenção foi apenas esboçar uma tentativa de análise das inquietantes questões com que temos tido que nos haver hoje desde o nosso lugar. Lacan fez uma vez uma referência ao progresso, sinalizando que tudo que é ganho de um lado é pago de outro, e é sobre esse preço que tentamos especular. Além disso, abrir mão das ilusões não significa perder a esperança. Temos um compromisso, como profissionais, de promover a redução do sofrimento ao mínimo indispensável. E, como humanos, de organizar uma fratria mais construtiva, alicerçada em pilares mais confiáveis. Em tempos de Big Brother, isso já não é pouca coisa. Referencias Bibliográficas EHRENBERG, A. La fatigue d’etre soi: depression et societé. Paris: Poches Odile Jacob, 2000. KRISTEVA, J. As novas doencas da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. LAMBOTTE, M.C. O discurso melancólico: da fenomenologia a metapsicologia. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 1999. MCDOUGALL, J. Em defesa de uma certa anormalidade: teoria e clínica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Medicas, 1983. MELMAN, C.O homem sem gravidade: gozar a qualquer preco. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2003. WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. Recebido em abril de 2013. Aprovado em maio de 2013. SOBRE A AUTORA Rachel Sztajnberg é membro titular da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro (SPC-RJ). E-mail: [email protected]