“Sobrevivendo no inferno” - um manifesto-escritura sobre a

Transcrição

“Sobrevivendo no inferno” - um manifesto-escritura sobre a
“Sobrevivendo no inferno” - um manifesto-escritura sobre a teologia da
periferia.
Henrique Yagui Takahashi
Universidade Federal de São Carlos
[email protected]
Resumo:
O seguinte trabalho prentende analisar o discurso crítico do grupo paulistano de rap
Racionais MC's, a partir das letras de músicas e da estética musical (sonoridade, ex. barulho de
armas de fogo). Isto, devido ao rap reinvidicar uma “voz” para os que politicamente, no sentido
de institucionalizados ou institucionalizantes, não possuirem, ou seja, o rap considerado como a
“voz da favela”. Além disto, o estudo do Racionais MC's deve por ser o mais representativo no
cenário do rap brasileiro, pelo pioneirismo dentro do gênero musical, assim como pela ampla
divulgação e reconhecimento nas periferias, principalmente na cidade de São Paulo, e os
discursos feitos nas imprensas televisivas e impressas. O enfoque se dará no álbum Sobrevivendo
no inferno de 1997, que foi o disco responsável pelo seu reconhecimento nacional na grande
mídia, com uma vendagem de 500 mil discos e premiações no VMB da MTV brasileira. O próprio
título do álbum já apresenta seu conteúdo. Há um teor religioso predominante em algumas
músicas como por exemplo: Jorge da Capadócia, Gênesis e Capítulo 4, Versículo 3, que abrem o
álbum com os seguintes sentidos: prece como proteção à vida caótica no “crime”, a
reinvidicação de uma “identidade” na fronteira (“Eu tenho uma bíblia véia e uma pistola
automática) e uma proposta de conflito contra o “sistema” através de uma “teologia da
periferia”. Este teor religioso, que propõe e se apresenta como conflitiva, tem uma relação
sincrônica, com a criminalidade, dando para o próprio “crime” uma característica conflitiva, que
no limite, é política. As demais músicas são diagnósticos da “vida periférica” e fecha com a
música Fórmula Mágica da Paz que seria uma proposição de resolução dos “problemas” na vida
dos moradores das periferias. Assim o álbum se apresenta como um manifesto político-escritura
religiosa de uma teologia da periferia.
1 – Introdução:
Desde o final dos anos de 1980, surge nas periferias da cidade de São Paulo1, um novo
tipo de gênero musical: o rap2. Um dos principais grupos de rap que surge neste período é o
Racionais MC's3 composto por Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay. A importância deste
grupo ocorre por vários motivos: são pioneiros na produção de rap no Brasil, juntamente com
outros grupos importantes, tais como Sampa Crew e Thaíde & DJ Hum que lançaram as primeiras
coletâneas desse gênero musical4. Além disso, a singularidade desse grupo evidencia-se, pois são
um dos principais responsáveis pelo reconhecimento do rap tanto nas periferias urbanas 5 – como
forma de produção artística representativa dos pares –, quanto no mainstream midiático – como
expressão legítima da periferia, havendo uma aproximação de jornalistas e acadêmicos 6; além
de uma abertura ao gênero musical rap em programas televisivos especializados na temática da
música7.
Em 1997, após o lançamento do álbum Sobrevivendo no inferno, o Racionais MC's se
tornam nacionalmente reconhecidos e considerados o principal representante do rap nacional.
Com músicas mais “pesadas”, tanto no sentido das batidas (beats) quanto das palavras
utilizadas. A criminalidade e a violência são temas recorrentes nas letras dessas músicas, além
do apelo religioso mais explícito. Assim há um discurso político-religioso que representa,
simultaneamente, uma cosmovisão do modo de compreensão da vida cotidiana na periferia e
uma posição crítica a respeito da opressão do “sistema”.
2 – Mudanças nas periferias:
Nos anos de 1960-70 durante o período do regime militar no Brasil, ocorria uma expansão
do parque industrial e um crescimento econômico que denominou-se de “milagre econômico”.
Em busca de ascensão social, migrantes das regiões do Nordeste, Minas Gerais e Paraná vão em
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Aponto a origem histórica do rap na cidade de São Paulo, pelo desconhecimento sobre a origem do rap
nas demais cidades brasileiras. A “origem” do rap, no contexto global, se dá nos EUA no início da
década de 80.
Rap significa rhythm and poetry que na tradução em português é “ritmo e poesia”. E faz parte do
movimento hip-hop que abrange: a dança denominada break, pois há vários movimentos de “quebra”;
a produção de imagens denominada grafite, na qual utiliza-se os muros das cidades como painel; e o
rap com uma musicalidade ritmada através dos beats e rimas cantadas sobre a vida cotidiana na
periferia.
Quando foi tratar do grupo Racionais MC's, utilizaremos no singular (o Racionais), pois é como os
próprios integrantes ou mesmo interlocutores do grupo denominam-o (em nenhum momento eles
falarão “os Racionais”). Entretanto o trato do grupo no singular não demonstra uma perda de
individualidade na produção de cada integrante, mas ao mesmo tempo, os integrantes possuem uma
co-produção ou mesmo participação na produção de uma música, através de palpites ou cantando na
música.
Consciência Black e O Som das Ruas, ambos de 1988.
Inicialmente na periferia paulistana, mas em um segundo momento, o rap torna-se conhecido nas
outras periferias brasileiras.
Por exemplo: a entrevista de Mano Brown à Roda Viva em 2007 e o artigo de Maria Rita Khel chamado
“Radicais, Raciais, Racionais – a grande frátria do rap na periferia de São Paulo”.
Programa Yo! Apresentado pelo rapper Thaíde.
direção à cidade de São Paulo, pois esta é uma das principais cidades brasileiras que expandiu
seu parque industrial. Com a intensificação do fluxo de migrantes, há uma expansão da malha
urbana para comportar esses novos moradores. Tal expansão se dá no sentido periferia,
tornando-se essas “periferias” - originalmente e majoritariamente - regiões de moradia desses
operários migrantes. Durham (1973) analisou esse processo de migração, pensando como se dava
as mudanças de condutas desses migrantes oriundos de regiões “tradicionais”, onde possuiam
laços paternalistas e familistas, e os romperiam, devido a característica individualizadora das
metrópoles8. A autora demonstra que não há esta ruptura, mas somente uma atualização da
lógica familista para o mundo metropolitano e argumenta que terá três instituições
fundamentais na sociabilidade9 que perdurará com certas alterações até os anos de 1990: o
trabalho como projeto de vida a longo prazo, a família como unidade de cooperação econômica
e a associação religiosa.
A partir dos anos de 1970-80, os operários que trabalhavam para ascensão social (do
círculo familiar), agora o estatuto “trabalhador” visa reinvidicar melhorias na infraestrura das
periferias e nas condições de trabalho. Essa mudança no estatuto caracteriza-se por uma
formação de “novos personagens”, “novos atores políticos” baseados em três matrizes
discursivas10: i) a renovação da ideologia socialista-operária que se denominou como “novo
sindicalismo” e se objetificou nas mobilizações dos metalúrgicos do ABC; ii) a elite intelectual e
os jovens da classe média que aproximou do marxismo nas universidades; e iii) os grupos
pauperizados da periferia com o apoio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) com base na
Teologia da Libertação11 e se mobilizaram para melhorias sociais objetivas, nas periferias
urbanas.
Enquanto nos anos 1980 as formas de associativismos mais presentes eram via
movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos, quando estes se institucionalizam, nos anos
de 1990, as formas de sociabilidades que emergem nas periferias urbanas são: o “mundo do
crime”12 como forma política de regulação e gestão da violência e do mercado ilegal; e a
religião, no sentido de uma cosmovisão e um associativismo expresso através da ascensão
pentecostal, dos chamados “evangélicos”.
Nesse contexto há a ascensão do neoliberalismo como política econômica hegemônica,
que é expressa através do declínio dos países socialistas na competição político-econômico
global. No campo do trabalho, mais especificamente, todo projeto de vida através do trabalho
operariado devido à estabilidade dada pela “carteira-assinada” e salário fixo, agora há uma
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10
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12
Ver Simmel (2005).
Para autora, oposta à litetura acadêmica hegemônica do período, não havia nesse período uma
mobilização e “conscientização” política por parte dos migrantes operários, mas sim uma preocupação
com a ascensão social de cada operário.
Ver em Sader (1988).
As CEBs iniciaram em diversos países da América Latina nos anos de 1960, a partir de uma redefinição
da Igreja Católica para uma orientação de como o cristão deve se portar no mundo profano, visando
uma reflexão da situação de pobreza e exclusão social à luz da fé cristã, como forma de “libertação” à
estrutura injusta capitalista, o que aproximava da teoria da dependência de viés marxista.
Ver em Feltran (2008) e o conceito de “mundo” em Arendt (1987).
“flexibilização” no trabalho que exige menor quantidade de mão-de-obra e maior qualificação.
Há nos anos de 1990, uma reestruturação do sistema, que anteriormente, era fabril
fordista/taylorista13 para um caracterizado pela: produção por demanda, a presença do
trabalhador em todas as etapas da produção, flexibilização e “robotização” da indústria, tal
sistema é denominado como toyotista. Essa restruturação gerou na cidade de São Paulo, um
aumento na taxa de desemprego que era de 7% em 1986 para 20% nos anos 2000 (Feltran, 2009).
Com o aumento do desemprego, o fluxo migratório para São Paulo estancou, gerando uma
mudança na identificação destes moradores da periferia. Pois antes, esses moradores eram
migrates oriundos de várias regiões brasileiras, sendo identificados portanto na sua “terra
natal”. Entretanto com o estancamento no processo migratório, a geração dos anos de 1990
(filho dos migrantes), seriam a geração que nasceria na própria periferia. Agora não se
identificam mais como “baiano”, “pernambucano”, “cearense”, mas sim como “paulistano” do
Heliópolis, Paraisópolis, Capão Redondo, Sapopemba (Jardim Elba, Parque Santa Madalena):
Quando eu comecei a fazer pesquisa com essa geração de meninos, hoje
com um pouco menos de 20 anos de idade, o mundo do migrante que vinha
trabalhar em São Paulo já estava muito distante deles. Os meninos com
quem converso em pesquisa de campo são de Sapopemba, são do Jardim
Elba, são do Parque Santa Madalena, eles são “da periferia”, têm
claramente esse marcador identitário inscrito em suas subjetividades, em
seus modos de vestir e falar. E mesmo em seus corpos: as práticas
corporais, as tatuagens, os brincos dos rapazes e os piercings no umbigo
das meninas mostram onde eles fincam suas raízes. Não há portanto um
projeto de estar aqui para conseguir uma melhoria que eles não
conseguiam lá em outro território, de origem, como havia antes. O lugar é
aqui, o tempo é hoje. (Ibidem:12).
Esse enraizamento desses jovens na periferia paulistana possibilitava um maior contato
com a esfera de consumo global. A década de 1990 é um período que abre as portas das
importações, com a entrada de produtos de “consumo global” em massa. Assim esses jovens
estão inscritos num contexto onde o “consumo” é um importante marcador identitário, para
Zaluar (2007) o consumo é um dos meios de definição de novas identidades, particularmente os
jovens. Já para Guattari (1996) haveria uma “cultura de massa”, que seria fundamental para a
produção de uma subjetividade capitalística:
13
Sistema criado no início do século XX e se caracterizava pela produção em massa através da linha de
montagem, na qual o trabalhador era responsável por apenas uma parte da produção, não necessitando
uma qualificação na mão-de-obra.
O que caracteriza os modos de produção capitalísticos é que eles não
funcionam unicamente no registro dos valores de troca, valores que são da
ordem do
capital,
das
semióticas
monetárias
ou
dos
modos
de
financiamento. Eles funcionam também através de um modo de controle da
subjetivação, que eu chamaria de “cultura equivalência” ou de sistemas de
equivalência na esfera da cultura”. Desse ponto de vista o capital funciona
de modo complementar à cultura enquanto conceito de equivalência: o
capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva.
(Guattari, 1996:15-16)
A partir dessas crises e transformações no contexto das periferias paulistanas, emerge
outra esfera social que passa a competir, no sentido de legitimação, com o Estado, igreja,
movimentos sociais, trabalho com “carteira assinada”. Este é o “mundo do crime” que tensiona
vários aspectos da vida cotidiana dos moradores das periferias:
Tensiona o mundo do trabalho, porque gera muita renda para os jovens, e
simbolicamente é muito mais atrativo para eles do que descarregar
caminhão o dia todo, ou entregar panfletos de farol em farol; tensiona a
religiosidade, porque é indutor de uma moralidade própria, híbrida, em
que códigos de conduta são estritos; tensiona a família, porque não se sabe
bem o que fazer com um filho “na droga”, ou com outro que traz R$ 500
por semana para casa, obtidos “da droga”; tensiona a escola, porque os
meninos “do crime” são mal vistos pelos professores, mas muito bem vistos
pelas alunas mais bonitas. (Feltran, 2009:15)
No aspecto religioso há uma cosmovisão que sustenta essas mudanças. A perspectiva do
trabalho operário que permitia um planejamento a longo prazo, um “projeto de vida”,
aproximava-se da lógica temporal cristã. A partir das mudanças que enfatizam o consumo, o
individualismo, a vida próspera no “aqui e agora”, a cosmovisão que as sustentam é do
neopentecostalismo14 que ganha força no campo religioso a partir da década de 199015:
Deus promete ao dizimista ricas bênçãos e, dentre elas, a de repreender o
devorador. Certamente Deus está se referindo a todo espírito de miséria,
de pobreza e de injustiça que rouba, mata e destrói o homem. Existem
demônios atuando sob a direção de Satanás no sentido de levarem os
Há também as religiões afro-brasileiras que possuem menor força frente ao pentecostalismo e
neopentecostalismo.
15
A fundação da Igreja Universal do Reino de Deus é de 1977, liderada pelo bispo Edir Macedo. Em 1991 há
a compra da Rede Record por Edir Macedo.
14
homens à miséria e à pobreza indignas (…) Quando damos nossas ofertas
para a obra de Deus, estamos nos associando a Ele em seus propósitos. É
maravilhoso saber que Deus deseja ser nosso sócio e que podemos ser
sócios de Deus em sua missão de salvar o mundo. Ser sócios de Deus
significa que nossa vida, nossa força, nossos dons e nosso dinheiro passam a
pertencer a Deus, enquanto suas dádivas como paz, alegria e prosperidade
passam a nos pertencer (Soares, 1985:61,141)
Esse processo de usufruto da “vida terrena” como modo de vida religiosa, se dá nas
transformações de valores pentecostais que promoviam a desvalorização e afastamento do
mundo “profano”, influenciado pela matriz puritada da ascese intramundana como forma de
assegurar os costumes e hábitos, que possibilitava o caminho para a “salvação”. Agora com a
lógica de consumo, do imediatismo mais aflorados, há uma transformação no “mundo religioso”
que oferece uma nova cosmovisão que assegure este novo estilo de vida (Berger, 1985). Surge o
neopentecostalismo, baseado na teologia da prosperidade, que promove uma“forte inversão de
valores no sistema axiológico pentecostal. Fazendo isso ao enfatizar quase que exclusivamente o
retorno da fé nesta vida, pouco versando acerca da mais grandiosa promessa das religiões de
salvação: a redenção após a morte” (Mariano, 1993:158). Ou seja, “a posse, a aquisição e
exibição de bens, a saúde em boas condições e a vida sem maiores problemas ou aflições são
apresentados como provas da espiritualidade do fiel” (Ibidem:157) assim, a teologia da
prosperidade seria uma base espiritual para todas essas novas transformações a partir dos anos
de 1990.
3 – Racionais MC's:
É neste contexto que o grupo de rap Racionais MC's surge na cidade de São Paulo. O grupo
é originário do Capão Redondo16 composto por: Mano Brown, Edy/Edi Rock, Ice Blue e KL Jay 17
que surge em 1988 até os dias atuais. O surgimento do Racionais, neste contexto é descrito por
Mano Brown e KL Jay em entrevistas concedidas no programa Ensaio (2003) e Roda Viva (2007)
da TV Cultura, no documentário Fim de semana do rap nacional18 (1999) pela MTV Brasil e no
programa de rádio da 89 FM (2011).
Poderíamos selecionar fases para compreensão de cada “período” do Racionais, de modo
que a separação se dá nas mudanças discursivas do grupo nos últimos 20 anos de carreira19. A
escolha dessas fases são feitas a partir das relações contextuais, temtáticas, discursivas, da
estética musical, midiáticas, entre outros, que possibilita selecionar “fases” - de modo arbitrário
16
17
18
19
O local Capão Redondo ficou conhecido principalmente nas músicas e por Mano Brown e Ice Blue, que
moraram neste bairro.
Todos pseudônimos, na ordem, de: Pedro Paulo Soares Pereira, Edivaldo Pereira Alves, Paulo Eduardo
Salvador e Kleber Geraldo Lelis Simões.
Os depoimentos neste documentário são de vários anos, não havendo as datas de tais depoimentos.
Ver em Takahashi (2011).
– na trajetória do Racionais MC's. Essas fases são: 1) fase de viés “movimento político” dos
álbuns Holocauto Urbano (1990), Escolha o seu caminho (1992) e Raio-X do Brasil (1994); 2) fase
do “crime” e “evangelização”, além do boom midiático dos álbuns Sobrevivendo no inferno
(1997) e Nada como um dia o outro dia (2002); e 3) fase “empresárial”: acordo com a Nike,
Mano Brown como empresário das bandas Big Ben Jhonson e Black Rio, além de ser responsável
de lançar alguns rappers para o mercado musical. E com o Racionais, o lançamento do álbum Tá
na chuva (2009), com as participações de novos integrantes no grupo: Dom Pixote e William
Magalhães.
Para este artigo, selecionaremos a segunda fase do grupo, a fase onde o “crime” e a
“evangelização” tornam-se temas e modos discursivos fundamentais para os conteúdos líricos
das músicas. Mais especificamente, selecionaremos um álbum dessa fase o Sobrevivendo no
inferno de 1997.
4 - “Sobrevivendo no inferno”:
Esse é o quarto álbum do grupo lançado em 1997 – apresentando uma maior maturidade
musical e poética – que gerou um reconhecimento na grande mídia brasileira. Exemplo desse
reconhecimento são as produções dos videoclipes Diário de um detento e Mágico de Oz; e a
apresentação e premiação no VMB da MTV em 1998, onde apresentou a música Capítulo 4,
Versículo 3 iniciado com uma “pregação” feita pelo Pregador Luo20, além das premiações de
Escolha da audiência e categoria videoclipe de rap. A vendagem desse álbum segundo KL Jay foi:
“vendeu 500 mil cópia e 500 mil pirata [risadas]. Um milhão de cópia” (Documentário MTV de
1999).
O viés religioso desse álbum aparece não somente nas músicas, mas também de outros
modos. Na capa do CD há uma cruz no fundo preto com “Racionais MC's” escrito em letra
vermelho-sangue, além do salmo escrito na capa: “Refrigere minha alma e guia-me pelo caminho
da justiça” (Salmo 23, cap. 3). Outro salmo aparece no final do videoclipe Diário de um detento
onde há uma cena de crianças da favela bricando de “tiroteio”: “... e mesmo que eu ande no
Vale da sombra e da morte, não temerei mal algum porque tu estás comigo” (Salmo 23, cap. 4).
Os salmos são poesias/cânticos de característica doxológica, ou seja, são formas de louvor e
glorificação a Deus. Esse louvor e glorificação se dá “musicalmente”, ou acompanhados de
instrumentos musicais ou com declamados de forma cantada.
O significado dos salmos é a representação da aliança entre Deus e o homem, que
permite ao homem construir a história. Pois Deus é um “libertador” que ouve o clamor do povo,
mais especificamente a fé dos pobres e oprimidos que reivindicam direitos, denunciam a
injustiça e resistem aos poderosos. Essa aliança entre Deus e a fé do povo possibilita a libertação
e a criação de um novo “mundo”, ou seja, é de caráter profético e messiânico. Exemplos dessa
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Nome artístico de Luciano de Santos Souza que iniciou a carreira no grupo de rap Apocalipse 16.
libertação na bíblia é a história de Davi. Samuel21 foi ordenado por Deus para que ungisse Saul22,
tornando-se o primeiro rei de Israel, e que este derrotasse os inimigos que atacavam o seu povo.
Entretanto Saul não conseguiu derrotar o povo inimigo de maneira eficaz e se tornava decadente
motivado pela sua arrogância, portanto Deus instruiu a Samuel escolher o novo rei de Israel.
Samuel secretamente unge Davi como o próximo rei. O povo buscava alguém alcamasse o “mau
espírito” de Saul, e este selecionou Davi como seu escudeiro. Posteriormente um gigante
chamado Golias solicitou um confronto ao exército israelita, entretanto o exército teve medo do
gigante. Assim, Davi decidiu enfrentar Golias: “Davi, porém, disse ao filisteu [Golias]: Tu vens
contra mim com espada, e com lança, e com escudo; eu, porém, vou contra ti em nome do
Senhor dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel, a quem tens enfrentado” (1 Samuel 17:45).
A partir da vitória, Davi se tornou o líder dos guerreiros. Com medo e inveja, rei Saul começou a
perseguir e tentar assassinar Davi, esse fugiu em direção a Judá onde conseguiu apoio dos
“desesperados” na caverna do Adulão: “Ajuntaram-se a ele todos os homens que se achavam em
aperto, e todo homem endividado, e todos os amargurados de espírito, e ele [Davi] se fez chefe
deles; e eram com ele uns quatrocentos homens” (1 Samuel 22:2). Esses “foras-da-lei” que se
atraíram a Davi devido às suas
palavras ministradas, segundo algumas interpretações 23,
transformando de homens endividados e “amargurados de espírito”, para soldados valentes e
leais. Com esse “bando” Davi fez um acordo com o rei de Gate (Aquis, filisteu), ao lado de sua
terra natal Judá, pois Davi era importante em casos militares. Davi contava a Aquis que estava
saqueando os povos ao sul do Reino de Judá, enquanto estava eliminando a terra que lhe foi
concedida por Aquis: “Davi não deixava com vida nem homem nem mulher, para os trazer a
Gate, pois dizia: Para que não nos denunciem, dizendo: Assim Davi o fazia. Este era o seu
proceder por todos os dias que habitou a terra dos filisteus” (1 Samuel 27:11). Em um embate
dos filisteus contra os israelitas, os israelitas perdem: “Morreu, pois, Saul, e seus três filhos, e o
seu escudeiro, e também todos os seus homens foram mortos naquele dia com ele” (1 Samuel
31:6). Com o trono do Reino de Israel, Davi torna-se rei de Israel, após vários confrontos de
“resistências”.
O motivo de apresentar a história de Davi é relacioná-lo com a utilização do salmos pelo
Racionais. Davi torna-se um guerreiro importante na Bíblia e em várias passagens demonstra o
seu louvor a Deus para se proteger dos inimigos. Davi é ungido de Deus e recebe proteção divina
contra a inveja, a traição, o confronto no campo de guerra. É uma figura bíblica que está em
constante situação de conflito e sempre envolvido com uma parcela de assassinatos para tornarse o rei de Israel. Nas músicas do Racionais, ocorre também a solicitação de uma proteção
divina, assim como Davi. Mas essas músicas expressam o cotidiano das periferias, principalmente
o seu teor violento da “vida no crime”, ou vida loka24.
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Personagem bíblico considerado um dos último juízes.
Guerreiro e rei de Israel.
Ver Pr. Costa Junior da Igreja Batista Vida Nova.
No álbum de 2002 Nada como um dia após o outro dia, o Racionais lançam duas músicas homônimas:
Vida loka parte I e Vida loka parte 2.
O Racionais se apropriam do Salmo 23, mais especificamente dos capítulo 4 e 3:
“Refrigera-me a alma. Guia-me pelas veredas da justiça por amor do seu nome” e “Ainda que eu
ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; o teu
bordão e o teu cajado me consolam”25. Esse salmo é atribuída ao Rei Davi, enquanto esse estava
cercado por tropas inimigas em um oásis. Há portanto um sentido de afastamento dos perigos e
perseguições a partir da proteção derivada da Providência Divina. Poderia haver, no caso do
Racionais, uma relação do Salmo 23 com São Jorge, já que o número 23 é uma referência ao
santo26. Este é considerado um “santo guerreiro”, um dos mais populares do catolicismo. A lenda
que se refere ao santo é do seu combate contra o dragão 27. Esse dragão possuia um hálito
venenoso que poderia matar toda uma cidade, assim exigia-se o sacrifício de donzelas, a
próxima vítima seria a princesa do reino (região da atual Líbia), mas Jorge foi enfrentar o dragão
para salvá-la. As escamas do dragão não poderia ser perfurada por espada ou lanças comuns,
entretanto Jorge com a proteção de Deus, sacralizando sua arma e armadura, conseguindo
atingir o dragão.
O álbum Sobrevivendo no inferno inicia com a música Jorge da Capadócia que seria uma
espécie de prece para uma proteção divina:
“Ogum iê!”/Jorge sentou praça na cavalaria/E eu estou feliz porque eu
também/sou da sua companhia/Eu estou vestido com as roupas/e as armas
de Jorge./Para que meus inimigos tenham pés/e não me alcancem./Para
que meus inimigos tenham mãos/e não me toquem./Para que meus
inimigos tenham olhos/e não me vejam./E nem mesmo um pensamento
eles possam ter/para me fazerem mal/Armas de fogo/meu corpo não
alcançarão/Facas e espadas se quebrem/sem o meu corpo tocar./Cordas e
correntes arrebentem/sem o meu corpo amarrar./Pois eu estou vestido
com as roupas/e as armas de Jorge/Jorge é de Capadócia/Salve
Jorge!/Salve Jorge!/Jorge é de Capadócia/Salve Jorge!/Salve Jorge! (Jorge
da Capadócia, 1997)
Enquanto essa proteção divina para o Rei Davi e São Jorge é para o combate e conflito
contra os inimigos: outros povos que estão no Reino de Israel ou o dragão que ameaça a cidade.
Nesse álbum a prece de proteção contra os inimigos será devido à “vida do crime”, porque é
uma vida onde muitos se tornam invejosos, traem, mentem e portanto formando-se muito
inimigos. Esse álbum poderia ser entendido como uma releitura da Bíblia atualizada na “vida do
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A mudança de citação utilizada é devido as diferentes maneiras que as bíblias são escritas e traduzidas.
Selecionei essas citações diferentemente utilizadas pelo Racionais, para se basear em uma versão da
bíblia. Entretanto o sentido das frases são as mesmas.
23 de abril é a data de morte de São Jorge. Há um álbum de Jorge Ben chamado 23, possuindo a figura
de São Jorge na capa.
Entendido também como demônio.
crime”.
Em seguida há a música Gênesis:
Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor. O homem me deu a favela, o
crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta. Eu? Eu tenho uma bíblia
véia, uma pistola automática e um sentimento de revolta. Eu tô tentando
sobreviver no inferno. (Gênesis, 1997)
O livro Gênesis é o primeiro da bíblia, conta a origem do mundo e do homem. Para o
Racionais há uma separação moral da criação. Deus é o polo criador “bom” e o homem é o polo
criador “mal”. A origem criadora de “tudo” por Deus possui um caráter de bondade, inclusive a
criação do homem: “Também disse Deus: façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra” (Gênesis 1:26).
Entretanto ocorre a corrupção moral da criação de Deus, o homem, através de Eva (mulher) ao
ser enganada pela serpente e desfrutar da árvore do conhecimento 28. Deus se enfurece e expulsa
Adão e Eva do Jardim do Éden (paraíso). Esse trecho representa a genealogia da moral humana,
com Deus criando o “bom” e o homem corronpendo a moral, criando o “mal”. A partir da
expulsão ao paraíso há sucessivas demonstrações de corrupção moral do homem e a consequente
fúria de Deus. O primeiro homício de Abel por Caim 29 motivado por inveja, que gerou uma
sucessiva linhagem de homens que cometem “maldade”. Deus portanto se arrepende: “Viu o
Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau
todo desígnio do seu coração; então se arrependeu, o Senhor de ter feito o homem na terra, e
isso lhe pesou no coração. Disse o Senhor: Farei desparecer da face da terra o homem que criei,
o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito”
(Gênesis, 6:5-6-7). Assim Deus anuncia o dilúvio para “limpar” a terra dos corrompidos,
colocando Nóe, homem justo e íntegro, para fazer a arca e criar uma nova “humanidade”. Assim
o Racionais descreve que para sobreviver no mundo “corrupto” e “imoral” dos homens precisa-se
simultaneamente: uma bíblia como proteção divina e uma pistola como proteção mundana, que
geram uma subjetividade de revolta.
É através desse “sentimento de revolta” que justifica e abastece um conflito que
transformará esse contexto de violência e “imoralidade” do homem. Há portanto uma teleologia
político-religiosa da periferia, descrito pelo Racionais, a respeito da dominação do “sistema”
contra os dominados: pretos30, pobres e “criminosos”:
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Conhecimento no sentido moral do termo. Homem torna-se conhecedor do que é “bom” e “mau”.
Abel e Caim são os filhos de Adão e Eva.
O termo “preto” é utilizado como identificação nas periferas, deixando o termo “negro” para uma identificação
ligada a política.
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram
violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. Nas
universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas,
um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é
Primo Preto, mais um sobrevivente. (Capítulo 4, Versículo 3, 1997)
Essa música do Racionais, Capítulo 4, Versículo 3, reforça o sentido de escritura religiosa
desse álbum. O quatro de “capítulo 4” pode ser entendido como o quarto álbum do grupo,
enquanto “versículo 3” pode ser entendido como a terceira música. Analogamente a bíblia, com
as separações feitas por livros (Gênesis, Êxodo, Salmos, Provérbios, etc), capítulos e versículos.
Outro sentido, é uma analogia aos salmos utilizados pelo grupo: “salmo 23, versículos 4-3”.
Assim, após a explicação da origem das drogas, das “trairagens”, das putas, todas “criações” do
homem31 em Gênesis; o Racionais exemplifica (e/ou faz uma “pregação”) de sua posição crítica
e transformadora em relação a esse mundo do homem:
Minha intenção é ruim/esvazia o lugar/Eu tô em cima eu tô afim/um, dois
pra atirar/Eu sou bem pior do que você tá vendo/O preto aqui não tem
dó/é 100% veneno/A primeira faz bum, a segunda faz tá/Eu tenho uma
missão e não vou parar/Meu estilo é pesado e faz tremer o chão/Minha
palavra vale um tiro e eu tenho muito munição/Na queda ou na ascensão
minha atitude vai além/E tenho disposição pro mal e pro bem/Talvez eu
seja um sádico, um anjo, um mágico/Juiz ou réu/um bandido do
céu/Malandro
ou
otário/padre
necessário/Revolucionário,
insano
sanguinário/Franco
ou
atirador
marginal/Antigo
e
se
for
moderno,
imortal/Fronteira do céu com o inferno/astral imprevisível/como um
ataque cardíaco/no verso/Violentamente pacífico,verídico/Vim pra sabotar
seu raciocínio/Vim pra abalar o seu sistema nervoso e sangüíneo/Pra mim
ainda é pouco/Dá cachorro louco/Número 1 dia/terrorista da periferia/Uniduni-tê/o que eu tenho pra você/Um rap venenoso ou uma rajada de PT/E
a profecia se fez como previsto/1, 9, 9, 7, depois de Cristo/A fúria negra
ressuscita outra vez/Racionais, Capítulo 4, Versículo 332. (Idem)
O “sujeito discursivo” (Racionais) vive nesse mundo corrompido do homem. Enquanto
Deus pune os homens pela desintegração moral, aqui o Racionais se propõe a punir os homens.
Há uma tensão que gera um paradoxo na “formação” do sujeito. Segundo Hall, a subjetividade e
31
32
Homem no sentido bíblico. Contraste entre divino e mundano.
Há três trechos principais das músicas que terminam com a frase “Racionais, Capítulo 4, Versículo 3”.
Após essa frase há uma voz que canta como em um coro de igreja: “Aleluia!”, “Aleluia!”, “Racionais no
ar filha da puta, pá, pá, pá”.
seu consequente processo de formação identitária é fruto de uma subjetividade produzida por
experiências33. A experiência vivida pelo “sujeito discursivo” é paradoxal em relação a ética
cristã, pois de um lado há a criação do amor e natureza por Deus e de outro há a criação da
injustiça, das corrupções pelo homem. O resultado desse “paradoxo” é a revolta do “sujeito
discursivo” que se assemelha em experiências de violência, preconceito e crime com outros
sujeitos das periferias urbanas. E é tida a partir de um sujeito que vive nesse mundo do homem
e que revolta-se, o resultado é “um rap venenoso ou uma rajada de PT”.
Entretanto essa revolta possui caráter teológico “E a profecia se fez como previsto/1, 9,
9, 7, depois de Cristo/A fúria negra ressuscita outra vez/Racionais Capítulo 4, Versículo 3.”
(Idem). Pois o contexto vivido pelos hebreus que foram escravizados no Egito é similar ao
contexto vivido pelos pretos, pobres e moradores da periferia em São Paulo. No Egito, a
quantidade de hebreus eram maiores do que a quantidade de egípcios, portanto o faraó ordenou
que todo hebreu homem fosse morto. Entretanto, Moisés, sobreviveu desse ordenamento após
ser deixado pela mãe no rio Nilo. Moisés foi instruido por Deus a exigir ao faraó a libertação dos
hebreus:
Disse ainda o Senhor: Certamente, vi a aflição de meu povo, que está no
Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o
sofrimento; por isso, desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios e para
fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e ampla, terra que mana leite
e mel; o lugar do cananeu, do heteu, do amorreu, do ferezeu, do heveu e
do jebuseu. Pois o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e também
vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo. Vem, agora, e eu
te enviarei a Faraó, para que tires o meu povo, os filhos de Israel do Egito.
(Êxodo 3:7-8-9-10)
Contudo, o faraó recusa a exigência e explora cada vez mais o povo hebreu. Assim Deus
para provar Sua exigência de libertação dos hebreus lançou dez pragas: 1) as águas se tornam
sangue, 2) rãs, 3) piolhos, 4) moscas, 5) peste nos animais, 6) úlceras, 7) chuva de pedras, 8)
gafanhotos, 9) trevas e 10) morte de todos os primogênitos egípcios e animais, menos dos filhos
do povo hebreu. Assim o faraó permite a libertação do povo hebreu.
Jesus Cristo é considerado, também, como responsável pelo “Novo Êxodo” libertando
toda a humanidade. O Racionais retomam essa noção de “Êxodo”, como possível “libertador”
dos pretos, pobres da periferia. Na abertura do show no VMB de 1998, antes da música Capítulo
4, Versículo 3, há uma “pregação” do Pregador Luo em um cenário obscuro iluminado com uma
cruz formada por velas e vários “irmãos” escutando a “pregação”:
Você! Você se considera um homem livre? Você pensa que é um homem
33
Ver em Hall (1997).
livre, mas é um escravo! Mesmo podendo andar pela rua, você não passa de
um prisioneiro! A bíblia conta a história de um povo, que durante
quatrocentos anos foram escravizados! Que durante quarenta anos vagou
pelo deserto, a história do povo de Israel. [Aleluia!] Assim como vocês, esse
povo estava desvalorizado, humilhado, sem moral e sem esperança. Mas
um dia Deus apareceu na vida desse povo! E prometeu levá-los para a terra
da liberdade! Uma terra que emana leite e mel chamada Canaã! Uma terra
onde eles seriam verdadeiros homens livres [Aleluia!] Sabe irmãos, eu
também já fui como vocês, envolvido com várias mulheres, com vários
(inteligível) e com vários (inteligível). Achava ali a segurança poderia ser
feita por um revólver e com um revólver eu poderia impor a minha moral
[Aleluia! Aleluia!]. Mas eu estava errado! Eu era um simples escravo! Até
que um dia o Senhor, glória Deus, apareceu em minha vida. Me fez um
homem negro livre! Um homem livre como vocês podem ser! Livre da dor e
do sofrimento! Mas ouçam irmãos, o mesmo sistema que
humilhou e
escravizou no passado. O mesmo sistema que humilhou e escravizou o povo
de Deus no passado. Humilha vocês hoje! [Aleluia!].
Essa perspectiva e leitura do Êxodo sob a ótica da escravidão no Brasil, permite uma
leitura do negro sob um viés teológico. O Racionais trás essa leitura para o contexto atual dos
“negros” nas periferias urbanas.
Faz frio em São Paulo/pra mim tá sempre bom/Eu tô na rua de bombeta e
moletom/Dim dim dom/rap é o som/Que emana no opala marrom/E
aí/chama o Guilherme/chama o Vander/Chama o Dinho e o Gui/Marquinho
chama o Éder, vamo aí/Se os outros manos vem, pelas ordi tudo bem
melhor/Quem é quem no bilhar, no dominó/Colô dois manos um acenou pra
mim/De jaco de cetim/de tênis, calça jeans/Ei Brown, sai fora/nem vai,
nem cola/Não vale a pena dar idéia nesses tipo aí/Ontem à noite eu vi na
beira do asfalto/Tragando a morte, soprando a vida pro alto/Ó os cara só a
pó, pele o osso/No fundo do poço, mó flagrante no bolso/Veja bem,
ninguém é mais que ninguém/Veja bem, veja bem, eles são nosso irmãos
também/Mas de cocaína e crack,/whisky e conhaque/os manos morrem
rapidinho sem lugar de destaque/Mas quem sou eu pra falar/De quem
cheira ou quem fuma/Nem dá/nunca te dei porra nenhuma/Você fuma o
que vem/entope o nariz/Bebe tudo o que vê/faça o diabo feliz/Você vai
terminar tipo o outro mano lá/Que era um preto tipo A/e entrava numa/Mó
estilo/de calça Calvin Klein/e tênis Puma/Um jeito humilde de ser/no
trampo e no rolê/Curtia um funk/jogava uma bola/Buscava a preta dele no
portão da escola/Exemplo pra nós, mó moral, mó Ibope/Mas começou colar
com os branquinhos do shopping/"Aí já era"/ih mano outra vida, outro
pique/só mina de elite/balada, vários drink/Puta de butique/toda aquela
porra/Sexo sem limite/Sodoma e Gomorra/Faz uns nove anos/Tem uns
quinze dias atrás eu vi o mano/Cê tem que vê/pedindo cigarro pros
tiozinho no ponto/dente tudo zuado/bolso sem nenhum conto/O cara
cheira mal/as tia sente medo/muito louco de sei lá o quê logo cedo/Agora
não oferece mais perigo/Viciado, doente, fudido, inofensivo/Um dia um PM
negro veio embaçar/E disse pra eu me pôr no meu lugar/Eu vejo um mano
nessas condições: não dá/Será assim que eu deveria estar?/Irmão, o
demônio fode tudo ao seu redor/Pelo rádio, jornal, revista e outdoor/Te
oferece dinheiro, conversa com calma/Contamina seu caráter, rouba sua
alma/Depois te joga na merda sozinho/Transforma um preto tipo A num
neguinho/Minha palavra alivia sua dor/Ilumina minha alma/louvado seja o
meu Senhor/Que não deixa o mano aqui desandar, ah/E nem sentar o dedo
em nenhum pilantra/Mas que nenhum filha da puta ignore a minha
lei/Racionais capítulo 4 versículo 3. (Capítulo 4, Versículo 3, 1997)
A polaridade moral entre “bem” e “mal” é expressa na trajetória do “Preto tipo A” para
“neguinho”. A característica do primeiro – polo positivo – é “estilo”, “roupas de marca”,
“humildade”, “trabalho”, “dava rolês” e tinha sua “preta”. A transição “moral” desse sujeito se
dá no contato com os “brancos” e vício das drogas ambas derivadas “sistema”. Teologicamente o
“sistema”34 é caracterizado como uma figura demoníaca e seguir Deus seria a maneira de como
os “manos”35 não se permitissem a adentrar no sistema opressor. Enquanto Deus através de
Moisés libertou os hebreus dos egípcios, agora Deus através dos Racionais libertam os pretos e
pobres da periferia sob o domínio do “sistema”, dos brancos. Essa demonização do “sistema” e
do “branco” possui influência dos Black Panther e de Malcolm X36:
A biografia do Malcolm X: foi a segunda vez que minha cabeça virou do
avesso. (…) O bagulho de cor, né mano? Raça, preto, branco, uns baratos
que ele dizia que acontecem lá e você vê acontecer aqui igualzinho. Você
pensa: “Pô, o cara tá falando a verdade, ele não tá contando mentira”.
Abracei com as dez, né? Estava quase virando terrorista. Eu não gosto mais
ou menos das coisas. Tudo que eu gosto eu sou fanático, tá ligado? Tipo
34
35
36
Sistema no sentido de “sistema capitalista”, “sistema judiciário”, todo sistema opressor aos moradores
da periferia.
Pretos, pobres e da periferia.
Ambos surgem no período durante e posterior do Civil Right Moviment na década de 1960.
fanático religioso. Se sou santista, ou se gosto de rap, sou fanático, se sou
preto, sou fanático pela minha cor. Quando eu li o Malcolm X eu fiquei
louco, fiquei fanático. Virei uma bomba ambulante. Quase fiz umas
merdas. (Mano Brown na Perseu Abramo, 2001)
O primeiro de matriz marxista possui como objetivo a libertação da opressão da “América
Branca”. O segundo compreende a exploração racial sob a ótica teológica do islamismo,
possibilitando retomar as verdadeiras origens dos negros, a África. Defendendo o uso da
violência como auto-defesa e a eliminação da supremacia branca em relação à exploração dos
negros, libertando totalmente esses sob o governo dos brancos, criando-se um “Estado Negro”.
Jornais dizem que tem provas que os fiéis de nossa religião tem ficha na
polícia. Não tem como ser um negro nos Estados Unidos sem ter uma ficha
policial. Martin Luther King esteve na cadeia. James Farmer esteve na
cadeia. Todo negro dos Estados Unidos que ficou cansado do inferno que
vive foi para a cadeia. Eles são acusados de desordeiros. Moisés foi para a
cadeia. Daniel foi para a cadeia. Não há um homem de Deus na Bíblia que
não tenha sido preso quando se levantou contra a exploração e a opressão.
Eles acusaram Jesus de desordeiro. Não fizeram isso? (Malcolm X)
O Racionais portanto, descreve o “nós” oprimido, aqueles que fariam parte do “Êxodo
Negro”.
Quatro minutos se passaram e ninguém viu/O monstro que nasceu em
algum lugar do Brasil/Talvez o mano que trampa de baixo de um carro sujo
de óleo/Que enquadra o carro forte na febre com sangue nos olhos/O mano
que entrega envelope o dia inteiro no sol/Ou o que vende chocolate de
farol em farol/Talvez o cara que defende o pobre no tribunal/Ou que
procura vida nova na condicional/Alguém num quarto de madeira lendo à
luz de vela/Ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela/Ou da família
real de negro como eu sou/Um príncipe guerreiro que defende o gol/E eu
não mudo, mas eu não me iludo/Os mano cú-de-burro têm, eu sei de
tudo/Em troca de dinheiro e um carro bom/Tem mano que rebola e usa até
batom/Vários patrícios falam merda pra todo mundo rir/Ha ha, pra ver
playboy aplaudir/É, na sua área tem fulano até pior/Cada um, cada um:
você se sente só/Tem mano que te aponta uma pistola e fala sério/Explode
sua cara por um toca-fita velho/Click plá plá pláu e acabou/sem dó e sem
dor/Foda-se sua cor/Limpa o sangue com a camisa e manda se fuder/Você
sabe por quê? Pra onde vai Pra quê?/Vai de bar em bar/esquina em
esquina/Pegar 50 conto/trocar por cocaína/Enfim, o filme acabou pra
você/A
bala não é de festim/aqui não tem dublê/Para os manos da
Baixada Fluminense à Ceilândia/Eu sei, as ruas não são como a
Disneylandia/De Guaianazes ao extremo sul de Santo Amaro/Ser um preto
tipo A custa caro/É foda, foda é assistir a propaganda e ver/Não dá pra ter
aquilo pra você/Playboy forgado de brinco, um trouxa/Roubado dentro do
carro
na
avenida
Rebouças/Correntinha
das
moça/as
madame
de
bolsa/dinheiro, não tive pai não sou herdeiro/Se eu fosse aquele cara que
se humilha no sinal/Por menos de um real/minha chance era pouca/Mas se
eu fosse aquele moleque de tôca/Que engatilha e enfia o cano dentro da
sua boca/De quebrada sem roupa, você e sua mina/Um, dois/nem me viu,
já sumi na neblina/Mas não, permaneço vivo/prossigo a mística/Vinte e
sete anos contrariando a estatística/Seu comercial de TV não me
engana/Eu não preciso de status nem fama/Seu carro e sua grana já não
me seduz/E nem a sua puta de olhos azuis/Eu sou apenas um rapaz latinoamericano/Apoiado por mais de 50 mil manos/Efeito colateral que o seu
sistema fez/Racionais, Capítulo 4, Versículo 3. (Capítulo 4, Versículo 3,
1997)
Mesmo que o sistema opressor produza sujeitos inofensivos como o “nóia”37 e o
“patrício”38 ou sujeitos nocivos, como os “criminosos”. O Racionais “contrariam” essa produção
de sujeitos, são nocivos (se opondo aos “noias” e os “patrícios”) e conseguem sobreviver (os que
estão no “crime” morrem mais rapidamente), demonstrando que essa teologia da periferia
permite “sobreviver no inferno”.
5 – Considerações finais:
O álbum Sobrevivendo no inferno representa uma fase onde a temática do “crime” e da
religião tornam-se mais explícitos e fundamentais na construção das músicas. Isso devido ao que
pessoalmente os integrantes dos Racionais MC's vivem particularmente e demonstra contexto das
dinâmicas sociais presentes nas periferias urbanas no final da década de 1990.
Esse trabalho enfocou nas primeiras três músicas do álbum, pois são a três músicas
principais e iniciais que dão o caráter religioso do álbum. São músicas de apresentação que
representam a posição discursiva do grupo, principalmente na música Capítulo 4, Versículo 3. As
demais músicas do álbum representam os diagnósticos do grupo a respeito da vida cotidiana na
periferia. Havendo apenas a penúltima música, Fórmula Mágica da Paz, como um apelo contra a
excessiva violência exercida entre os “manos”. Assim o álbum pode ser representado, como uma
37
38
Viciado em drogas.
Negros que se tornam submissos ao “sistema”.
“nova” escritura bíblica, uma releitura da bíblia sob a ótica da violência e criminalidade nas
periferias urbanas, no limite, seria uma produção de uma teologia da periferia expressa pelo
Racionais MC's como um manifesto-político e simultaneamente uma escritura-religiosa.
6 – Referências Bibliográficas:
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Paulus, 1985
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Perspectiva, 1973
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2009
_______________. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de
São Paulo. Tese de Doutorado, IFCH, Unicamp, Campinas, 2008
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Unicamp, IFCH, 2009
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PIMENTEL, Spensy. O livro vermelho do hip-hop. Monografia USP, 1997
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SILVA, Ana Claudia Cruz da. Antropologia da Cultura e da Política em grupo afro-culturais.
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SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Mana 11(2):577-591, 2005
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