Considerações sobre a escola e a mídia impressa
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Considerações sobre a escola e a mídia impressa
1 Considerações sobre a escola e a mídia impressa Carlos Alberto Faraco 1. A linguagem verbal A linguagem verbal é marca constitutiva e, portanto, característica básica da espécie humana. Humanidade e linguagem verbal estão, assim, numa relação intrínseca de mútua dependência. Outras espécies animais têm também suas linguagens. No entanto, o estudo comparado da linguagem verbal e das linguagens dos outros animais deixa evidente que há diferenças profundas entre elas. E não se trata apenas de diferenças quantitativas, mas qualitativas: as linguagens dos outros animais não se aproximam nem remotamente da linguagem verbal. Não podem sequer ser consideradas como uma versão mais simples desta. Para deixar isso claro, basta lembrar algumas das características da linguagem verbal: ela permite a articulação de um número infinito de enunciados (tecnicamente, dizemos que a linguagem verbal faz uso infinito de meios finitos); seus signos – seja os da articulação sonora (fonemas, sílabas), seja os da articulação morfossintática (morfemas, palavras, locuções e frases) – são discretos, isto é, são decomponíveis e recombináveis ao infinito (tecnicamente, dizemos,então, que a linguagem verbal é dotada de dupla articulação e de recursividade). A estas características, somam-se ainda as seguintes: seus signos não estão limitados à situação imediata (a linguagem verbal permite aos seres humanos falar do passado – dá-lhes, portanto, a condição da memória –; permite-lhes falar do futuro e de todo o inexistente; permite-lhes falar do que está na situação de comunicação e do que está dali ausente ou distante; permite-lhes mentir e criar realidades imaginárias); seus signos são semanticamente indeterminados (do que decorre seu caráter polissêmico e plurívoco – os signos da linguagem verbal não têm uma significação una e fixa, mas deslizam entre múltiplas possibilidades significativas determinadas a cada nova situação de comunicação, respondendo assim à abertura e imprevisibilidade da vida humana). As linguagens dos outros animais, em contrapartida, têm um número sempre finito de enunciados; seus signos são massivos (isto é, não são decomponíveis e recombináveis; são desprovidos, portanto, da dupla articulação e da recursividade; só o todo do enunciado significa); seus signos respondem apenas à situação imediata e são semanticamente determinados (e, por isso, carregam uma significação única e fixa, ou seja, 2 são unívocos – ou, dito de forma mais técnica, há uma relação um a um entre o significante e o significado). Em razão disso é que se diz que enquanto o ser humano substitui a imediação da experiência pela mediação dos signos, os outros animais vivem exclusivamente na imediação da experiência. Além disso, nós humanos somos seres de muitas linguagens. Expressamo-nos também pelos gestos, pelas expressões faciais, pelas posturas corporais, pelas imagens fixas e em movimento, pela música e assim por diante. Estas linguagens aparecem isoladamente (por exemplo, uma música, um quadro, o logotipo de uma empresa, uma mímica) ou em combinação: dançamos ao som de uma música; produzimos um filme publicitário que combina imagens e música. E podemos combinar todas estas linguagens com a linguagem verbal: musicamos um poema; compomos a letra para uma música; combinamos a fala com gestos e expressões faciais; cantamos (combinando o corpo com a música e a linguagem verbal); fazemos um filme (nele combinamos imagens, música e linguagem verbal); e assim por diante. Usamos essas linguagens, combinadas ou não, tanto em situações práticas do cotidiano, quanto em atividades artísticas. A mímica, por exemplo, está nas nossas brincadeiras e na nossa comunicação face a face (quando não podemos ou não queremos falar, mas precisamos ou queremos passar uma mensagem para alguém próximo de nós); mas é também uma das mais antigas atividades artísticas da humanidade e visível ainda hoje nas nossas ruas e praças ou nos nossos teatros. Combinamos imagens e palavras na publicidade impressa (outdoors, revistas e jornais); mas, com a mesma combinação de linguagens, criamos histórias em quadrinhos; fazemos publicidade na televisão combinando imagens, música e palavras; e usamos a mesma combinação de linguagens para criar um filme ou um desenho animado; usamos palavras escritas para deixar um bilhete avisando que não viremos jantar; mas também para compor poemas; utilizamos cores para identificar diferentes estações do metrô e para ordenar o tráfego de veículos nas esquinas; mas também para pintar quadros ou grafitar paredes; aproveitamos o movimento corporal e a música para apresentar comercialmente uma nova coleção de roupas num shopping; e igualmente para criar coreografias de balé clássico ou moderno ou de break dancing. 3 Quando usamos, então, o termo linguagem, estamos nos referindo a um conjunto bastante complexo de formas de comunicação e significação. Esse complexo conjunto inclui a linguagem verbal, mas também todas as outras linguagens como a música, o desenho, a pintura, a linguagem de sinais dos surdos, a escultura, a dança, os gráficos, os gestos e toda a expressão corporal – essa pluralidade de linguagens que nos constituem como seres simbólicos. Nós humanos somos, pois, seres de muitas linguagens e vivemos não propriamente numa biosfera, mas numa densa semiosfera. E nela a linguagem verbal tem, por várias razões, um lugar especial. O filósofo russo da linguagem Valentin N. Voloshinov destaca, dentre as razões que conferem a ela esse lugar especial, as seguintes: a ubiquidade da linguagem verbal na vida humana e o fato de toda a realidade da linguagem verbal se dissolver por completo em sua função de ser signo (é, por isso, o meio mais puro e genuíno da comunicação social e dá forma a toda e qualquer manifestação simbólica humana). Além disso, pela possibilidade de ser produzida sem nenhuma intervenção de qualquer instrumento ou material extracorporal, a linguagem verbal converteu-se no material sígnico por excelência da vida da consciência, dando materialidade ao discurso interior. Por fim, Voloshinov destaca o fato de que é com a linguagem verbal que acompanhamos e comentamos todas as formas da criação da consciência social (que ele chama de criação ideológica, no sentido específico – como as definia o filósofo alemão Ernst Cassirer – das formas simbólicas do espírito humano tais como as artes, as ciências, o direito, a filosofia, a religião, etc.). Partes destas formas se materializam na linguagem verbal (a literatura, a filosofia e o direito, por exemplo) ou estão com ela combinadas (o canto, o cinema e a religião, por exemplo). No entanto, a compreensão de todas elas não ocorre sem a participação da linguagem verbal e particularmente do discurso interior. Isso, diz Voloshinov (pág. 39), não quer dizer que a linguagem verbal possa simplesmente substituir qualquer outro signo. Uma obra musical ou uma imagem pictórica não podem traduzir-se adequada e integralmente pela linguagem verbal; nem um ritual religioso pode ser substituído em sua totalidade exclusivamente pela linguagem verbal. Contudo, o processo de compreensão de todas estas manifestações semióticas se apóia na linguagem verbal e se faz acompanhar dela. Embora a linguagem verbal seja ubíqua e, por isso mesmo, nos seja profundamente familiar, nós ainda não conseguimos penetrar filosófica e cientificamente em todos seus segredos e mistérios. Sabemos mais do 4 universo e das manifestações da vida do que sabemos da estrutura e funcionamento da linguagem verbal. Ela tem sido objeto de estudo sistemático há mais de dois milênios e mesmo assim não conseguimos ainda deslindar satisfatoriamente sua complexidade. Igualmente, quase nada sabemos sobre como as crianças passam de não falantes a falantes. Sabemos apenas que se trata de um processo universal, isto é, ele acontece em todas as partes do mundo, com todas as crianças (salvo aquelas afetadas por profundas deficiências mentais ou acentuadas limitações auditivas) mais ou menos na mesma faixa etária (em torno dos dois anos), de modo espontâneo (não é preciso ensinar a língua da comunidade à criança, basta que ela esteja em contato com seus falantes) e redunda num conhecimento pleno da estrutura da língua embora sejam limitados e precários os dados que lhe são efetivamente oferecidos. Essas características universais do processo têm alimentado a hipótese (ainda sem suficiente desdobramento material, mas sem a existência de outra que possa competir, de fato, com ela) de que a linguagem verbal está geneticamente inscrita no cérebro humano, ou seja, de que ela é uma propriedade da nossa espécie. A hipótese (chamada de inatista ou genética) não afirma que as línguas propriamente ditas estão inscritas geneticamente no cérebro, mas sim a condição de todas as línguas – a chamada Gramática Universal, entendida como um saber inato que define “língua humana possível”, saber que, combinado com os dados da experiência, orienta cada criança em seu processo de descobrir a estrutura da língua de sua comunidade e de se tornar seu falante. Também nada sabemos sobre a origem da linguagem verbal, ou seja, quando e como ela começou a se manifestar na linha evolutiva da espécie humana. Não sabemos igualmente se houve algum tipo de linguagem préhumana (um estágio linguístico/semiótico anterior à linguagem verbal como a conhecemos hoje), nem sabemos se na origem havia uma única manifestação da linguagem verbal (ou seja, uma única língua – conforme sustenta a hipótese da monogênese) ou se já no início havia uma pluralidade de manifestações (ou seja, muitas línguas – conforme a hipótese da poligênese). Qualquer que tenha sido, porém, a origem da linguagem verbal (mistério que, pela falta absoluta de dados, talvez nunca consigamos decifrar), é costume estipular que a humanidade fala (ou seja, dispõe da linguagem verbal como a conhecemos hoje) há aproximadamente cem mil anos (que, segundo se infere dos dados paleontológicos disponíveis, é mais ou menos a idade da espécie Homo sapiens sapiens). 5 2. A linguagem verbal escrita O meio básico de expressão da linguagem verbal é a oralidade, ou seja, a expressão articulada de sons produzidos pelo aparelho fonador. Com o passar do tempo, a humanidade criou um segundo meio de expressão – a escrita. Se comparado ao meio oral (que tem perto de cem mil anos), o meio escrito é recentíssimo (foi desenvolvido apenas há aproximadamente cinco mil anos). Por outro lado, enquanto todos os grupos humanos conheceram no passado e conhecem no presente o meio oral de expressão, apenas alguns grupos desenvolveram o meio escrito no passado e há ainda hoje muitas línguas ágrafas. Assim como o meio oral precedeu em milênios o meio escrito na história da humanidade, ele também o precede na história do indivíduo: as crianças passam a falar por volta dos dois anos (e, como dissemos antes, o fazem espontaneamente, isto é, sem necessidade de ensino sistemático); contudo, só começam a se apropriar da escrita por volta dos cinco anos (e dependem, para isso, de ensino formal). Há grandes diferenças entre os dois meios de expressão da linguagem verbal (cf., para mais detalhes, Jahandarie 1999, cap. 8). O meio oral, por exemplo, conta, na composição do processo de significação, com o apoio gestual e facial e dispõe de uma ampla gama de recursos prosódicos (a cadeia falada tem uma linha melódica que lhe é dada pela entoação e pelo jogo da intensidade e duração com que se proferem os segmentos sonoros). Tudo isso falta ao meio escrito. Ele é, de certa forma, um meio parco de expressão. Para compensar estas enormes faltas, criaram-se alguns recursos gráficos (como a pontuação ou a mudança de fonte). Estes, no entanto, por mais indispensáveis e úteis que sejam, não conseguem jamais alcançar o peso e as nuanças significativas da prosódia ou ainda do apoio gestual e facial que acompanham a fala. Um dos grandes desafios de quem aprende a escrever é, então, adequar sua expressão a este meio parco de recursos. É ser capaz de ir da abundância de recursos da oralidade para a pouquidade de recursos da escrita, desenvolvendo a capacidade de explorar as características do meio escrito para fazê-lo significar adequadamente, de modo a compensar suas lacunas. Outro dado importante a lembrar é o fato de que o meio oral se realiza fundamentalmente na comunicação face a face. O interlocutor, portanto, está presente e isso dá à fala uma dinâmica bastante peculiar: ela pode se apoiar extensamente em informações contextuais (e, com isso, pode dispensar um elevado grau de explicitação textual) e não precisa ser detalhadamente planejada (vai definindo seu rumo à medida que se 6 processa e em consonância com as reações dos interlocutores). A temática da conversa pode, em razão disso tudo, ser difusa e coesivamente aberta. A comunicação pelo meio escrito, por sua vez, não conta com a presença física do interlocutor. E isso tem profundas implicações para o ato de escrever: é preciso, por exemplo, preencher essa ausência por uma imagem do interlocutor (escreve-se para alguém ler e é preciso, então, definir quem será o interlocutor – imagem que pode ter como referente um indivíduo bem concreto, como nunca carta pessoal, ou uma determinada categoria de indivíduos, como, por exemplo, o público leitor de um jornal). Por outro lado, pelo fato de não ser possível apelar extensamente ao contexto imediato, é preciso que o escrito alcance alto grau de explicitação textual. E, como não se pode contar com a presença física do interlocutor, é preciso prever suas possíveis reações e a elas responder ou adequar o texto antecipadamente. O ato de escrever exige, então, cuidadoso planejamento prévio; sua temática não pode ser difusa, mas deve ser centrada, sequencialmente bem trabalhada e apoiada em recursos coesivos estritamente controlados. Falhas graves em qualquer desses aspectos comprometem a compreensão e, por consequência, a interlocução. Um dos grandes desafios de quem começa a trabalhar com a escrita é, então, aprender a ajustar sua expressão à ausência física do interlocutor e à impossibilidade de contar com as referências contextuais imediatas. No primeiro caso, é preciso tornar a imagem do interlocutor elemento constitutivo do ato de escrever (em outras palavras, quem escreve deve exercer dois papéis – deve ser o autor e, ao mesmo tempo, deve colocar-se na posição de seu provável leitor, monitorando assim o que escreve). No segundo, é preciso controlar a textualização de modo a garantir que a significação se realize mesmo na ausência do apoio contextual imediato. Apesar das limitações e das exigências estritas que caracterizam o meio escrito, este tem sobre o meio oral a vantagem da permanência. A fala é efêmera e evanescente (os romanos tinham já um dito que resumia bem este caráter fugaz, volátil da fala: verba volant, scripta manent, ou seja, as palavras (faladas) voam, os escritos permanecem). Já o meio escrito dura enquanto durar seu suporte. Assim é que podemos ler textos antiquíssimos, embora muito pouca coisa tenha sobrado do que foi dito oralmente há poucos instantes. Essa propriedade de permanência do meio escrito é responsável pela importância que ele adquiriu na história humana. Com a escrita, a humanidade pôde transcender os limites do tempo, do espaço, da comunicação face a face e da cultura apenas oral e local. Tornou-se possível também o registro do conhecimento e, com isso, ampliá-lo 7 exponencialmente. Não é à toa, portanto, que se diz ter sido a invenção da escrita a maior realização tecnológica da humanidade. É verdade que o século 20 trouxe a possibilidade técnica de se gravar o falado, de estancar seu caráter evanescente. No entanto, a maior parte dos eventos apenas falados continua sem registro, até mesmo por razões de ordem prática: são incontáveis e, salvo em casos muito específicos, é absolutamente irrelevante gravá-los. O século 20 trouxe também várias possibilidades técnicas de transcender a milenar limitação do meio oral à interação face a face. A comunicação oral adquiriu a possibilidade de ser mediada tecnologicamente por meio do telefone, do rádio, da televisão, do computador. Romperam-se assim os limites do espaço próximo e se amplificou enormemente o alcance do meio oral. Em alguns casos, como o da televisão, por exemplo, o número de destinatários alcançáveis simultaneamente por uma só fonte enunciativa pode facilmente chegar à cifra de muitos e muitos milhões. Ganha-se incalculavelmente em extensão, mas perde-se a possibilidade da alternância contígua de locutores e da réplica imediata. Isso cria, evidentemente, outras condições para a comunicação oral humana que vê amplificada, em grandezas quase incalculáveis, o que, de certa forma, já estava presente na comunicação face a face institucionalizada como na escola, na igreja ou no tribunal – lugares em que a fonte da enunciação se dirige a muitos simultaneamente e a eventual alternância de locutores e a possibilidade de réplica costumam ser rigidamente controladas por regras explícitas ou implícitas. Mas, apesar disso, podem ainda eventualmente ocorrer, possibilidade que desaparece (salvo em simulacros) nos meios de comunicação de massa. O meio escrito, por ser tradicionalmente destinado à comunicação à distância, só admitia a alternância não contígua de locutores e a réplica remota. Isso, de certa forma, continua acontecendo, embora o desenvolvimento da comunicação mediada por computador tenha trazido a possibilidade da sincronia, ou seja, da troca de mensagens escritas on-line, o que acarreta também novas condições para a comunicação pelo meio escrito. Destaque-se, nesse sentido, que o desenvolvimento da internet e sua difusão social (calcula-se hoje que o Brasil conta com 75 milhões de internautas – cf. O Estado de S. Paulo, 10/01/2010. p. B12) têm expandido enormemente o uso da escrita em e-mails, blogs e sites. Pode-se afirmar que nunca se escreveu tanto e nunca antes tanta gente se envolveu cotidianamente com a escrita em proporções semelhantes. 8 Essa expansão tem, claro, acarretado mudanças significativas no modo de realizar as práticas sociais de escrita: relativizam-se, em muitos espaços do meio eletrônico, várias das tradições discursivas historicamente constituídas na era do domínio soberano do livro e das outras mídias impressas. Os textos saem quase no ritmo da fala (estão se constituindo outros gêneros e outros padrões de textualidade), predominam as variedades linguísticas pouco monitoradas e até mesmo a forma de grafar as palavras passa por um processo de estenografização. Isso tudo não significa que as tradições discursivas historicamente constituídas serão simplesmente abandonadas. Elas continuarão valendo para determinadas situações, influenciarão as novas tradições que estão em construção, assim como receberão influências destas novas tradições. 3. Breve história do meio escrito de expressão A criação do meio escrito de expressão da linguagem verbal se deu, como dissemos anteriormente, há aproximadamente cinco mil anos na Mesopotâmia. A escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios, é o mais antigo sistema de escrita conhecido até hoje (cf., para mais detalhes, Higounet 2003). Os estudiosos destacam que o surgimento da escrita acompanhou o surgimento de sociedades humanas mais complexas, com atividades produtivas e comerciais extensivas e com poder estatal estruturado. O aumento da complexidade da vida econômica e social trouxe consigo a necessidade do desenvolvimento de sistemas de registros gráficos de contabilidade e administração. A criação do meio escrito de expressão da linguagem verbal respondeu basicamente a esta necessidade. A escrita é fundamentalmente um desenho e, nesse sentido, dá continuidade à antiga experiência humana com o registro figurativo do mundo que observava (os animais desenhados nas paredes da caverna de Altamira, na Espanha, por exemplo) ou das ações que aí ocorriam (as cenas de caça desenhadas nas paredes da caverna de Lascaux, na França, por exemplo). Progressivamente (e sob determinadas demandas práticas), a humanidade percebeu que podia também desenhar a linguagem verbal, ou seja, transpô-la para uma superfície e fixar seu caráter efêmero e evanescente. Nesse processo, variou o elemento verbal tomado como referência. Em alguns contextos, criaram-se signos gráficos que representavam palavras. É o caso da escrita inicial dos sumérios (desenvolvida por volta do quarto milênio antes de Cristo), dos egípcios (terceiro milênio antes de 9 Cristo) e dos chineses (segundo milênio antes de Cristo) – a única das escritas antigas ainda em uso. Em outros contextos, criaram-se sistemas silábicos em que cada signo representa uma sílaba, como na escrita da língua da ilha de Chipre anterior à ocupação grega (séculos V e IV a. C.), na escrita da corte dos reis persas aquemênidas em Persépolis (séculos VI a IV a. C.) e na escrita japonesa atual (desenvolvida no século IV d. C.). Os signos dos sistemas de base logográfica foram, de início, verdadeiros pictogramas, ou seja, tinham semelhança com o objeto representado. Com o passar do tempo, os pictogramas foram perdendo esse caráter figurativo e se transformaram em logogramas, signos abstratos que passaram a evocar a palavra em si sem a mediação da imagem do objeto, o que garantiu maior amplitude e funcionalidade ao ato de escrever (já que nem todas as palavras fazem referência a objetos visíveis e figuráveis). Por outro lado, os sistemas logográficos, a partir de logogramas representativos de palavras monossilábicas, desenvolveram, com o passar do tempo e por um processo de abstração, signos de caráter puramente silábico, ou seja – como destaca o linguista suíço Ferdinand de Saussure em seu Curso de linguística geral (p. 36) – certos logogramas, distanciados de seu valor inicial, terminam por representar unidades composicionais da articulação sonora em si. Para entender o processo de abstração subjacente a essa sutil mas profunda transformação, bastaria imaginar que, se a escrita do português fosse logográfica, haveria um logograma para a palavra pé. Com o tempo, este logograma passaria a ser usado também para representar a sílaba /pé/ em qualquer palavra como, por exemplo, a sílaba inicial de pele, pedra, pérola. Ou seja, o signo, além de sua função logográfica, teria adquirido a propriedade de representar uma sequência sonora silábica. De novo, essa mudança aumentou a funcionalidade do sistema de escrita pela sensível diminuição do estoque de signos necessários: uma escrita silábica precisa de muitíssimo menos signos do que uma escrita logográfica. Por esse processo, os sistemas logográficos se tornaram mistos, com sua base logográfica suplementada por silabários. A partir destas representações silábicas se chegou, posteriormente, à escrita alfabética, cujo elemento verbal de referência não são as palavras ou as sílabas, mas as consoantes e as vogais. Embora as unidades verbais tomadas como referência para a construção da escrita alfabética sejam consoantes e vogais, é preciso deixar claro que essa escrita nunca é fonética no sentido estrito do termo, isto é, as 10 letras não representam diretamente os sons da fala, mas sim as unidades funcionais da língua (chamadas tecnicamente de fonemas). É, nesse sentido, uma escrita de base fonológica, ou seja, toma como referência uma representação abstrata da articulação sonora da língua e não propriamente sua pronúncia. Considerando que a pronúncia varia muito entre regiões, grupos sociais, estilos de fala e mesmo na linha do tempo, uma escrita estritamente fonética seria de pouco alcance e baixa funcionalidade. A progressiva passagem de sistemas logográficos para sistemas silábicos e alfabéticos é também, como já observamos acima, uma progressão de economia de meios não desprezível. Assim, se um sistema logográfico precisa de muitos milhares de signos, um sistema silábico não precisa mais do que um estoque de cinquenta ou sessenta deles e um sistema alfabético funciona perfeitamente com não mais do que duas a três dezenas de signos. Essa escala de economia de meios dá, obviamente, grande versatilidade e funcionalidade ao sistema alfabético, além de favorecer um domínio mais rápido da notação escrita. O princípio da escrita alfabética já é visível na escrita ugarítica. Os escribas de Ugarit, importante centro urbano portuário na costa do Mediterrâneo oriental (onde hoje está o litoral da Síria), adaptaram, por volta do século XV a. C., os signos da escrita cuneiforme dos sumérios para representar não palavras ou sílabas, mas basicamente consoantes. Quase ao mesmo tempo, os fenícios desenvolveram também uma escrita alfabética basicamente consonântica e cujos signos (as letras) serviram de fundamento para o alfabeto hebraico e também para o alfabeto grego e, por meio deste, para o alfabeto latino – o mais amplamente usado no mundo moderno. Os gregos (por volta do ano 1.000 a. C.) adotaram e adaptaram as letras fenícias, acrescentando-lhes símbolos para a notação integral das vogais. Este alfabeto, com vinte e três letras, serviu de modelo para outros alfabetos europeus (o dos godos e dos eslavos, por exemplo), em especial para o alfabeto latino que começa a ser delineado por volta do século VII ou VI a. C. e alcança seu formato clássico por volta do século I a. C. A diversidade de formas de escrita, observáveis na história e na atualidade, são exemplo tanto da engenhosidade humana, quanto da vasta riqueza cultural da humanidade. 4. A escrita e a cultura letrada A criação da escrita teve duradouros impactos na cultura humana. Se, de início, o meio escrito teve funções essencialmente práticas, logo passou a ser usado no registro da poesia, das crenças, da memória coletiva, das leis 11 sociais e do conhecimento em geral. Paralelamente à cultura oral, foi, então, tomando forma a cultura letrada que transformou profundamente a vida humana. A inscrição das leis foi dando a base para a organização de sociedades cada vez mais complexas; a fixação das crenças acabou por estruturar religiões que espalharam suas visões de mundo e preceitos de vida por grandes espaços geográficos; a escrita do imaginário favoreceu a transmigração intercultural de símbolos, valores e arquétipos, resultando numa explosiva espiral criativa; a escrita amplificou enormemente o potencial de memória da humanidade; e, por fim, o registro do conhecimento permitiu o seu crescimento exponencial à medida que facilitou o desenvolvimento de modos de organização intelectual mais sistemáticos e monitorados e, portanto, de práticas cognitivas mais abstratas e formalizadas que levaram, por exemplo, ao desenvolvimento da matemática, das ciências e das tecnologias. Quando falamos, então, de cultura letrada estamos nos referindo não apenas aos sistemas de transcrição gráfica da linguagem verbal (a escrita não se esgota na notação), mas, fundamentalmente, de uma vasta e complexa rede de práticas cognitivas, saberes e práticas socioculturais que a criação destes sistemas tornou possível. Mencionamos anteriormente que o meio de expressão escrita, diferentemente do meio de expressão oral, exige, para seu domínio, atividades de ensino sistemático. Dessa forma, a instituição escolar, em qualquer dos seus formatos históricos, é fruto da criação da escrita e existe milenarmente para dar acesso ao código gráfico e, principalmente, para transmitir a cultura letrada. Podemos dizer, então, que escrita, escola e cultura letrada estão historicamente em relação simbiótica. A prática continuada da escrita foi motivando o desenvolvimento e a consolidação de tradições discursivas que vão desde as convenções gráficas (corporificadas nos diferentes desenhos dos logogramas, dos silabogramas e das letras, e na composição da página) até a formatação dos modos de dizer, materializados estes em diferentes gêneros e tipos de textos e no privilegiamento de determinados elementos lexicais e morfossintáticos da língua considerados adequados para a expressão escrita, ou seja, a própria prática da escrita foi delimitando as variedades da língua passíveis de ocorrerem nela (realidade linguística a que damos hoje o nome de norma culta). Aprender as práticas escritas exige um mergulhar em todas essas tradições discursivas. Trata-se de uma complexa experiência cognitiva que não começa nem termina com o domínio do alfabeto. A alfabetização é 12 apenas o momento específico de aprendizado do sistema de notações gráficas. E dizemos que não começa nem termina com a alfabetização porque, como mostrou detalhadamente o psicólogo russo Lev Vigotski, a criança, em seus primeiros anos de vida e anteriormente ao aprendizado do alfabeto, deve vivenciar todo um conjunto de experiências simbólicocognitivas (conjunto a que ele deu o nome de pré-história da escrita) materializadas principalmente nos jogos e brinquedos infantis e nos rabiscos e desenhos. Segundo Vigotski (p. 141), os gestos de representação simbólica presentes em cada uma dessas atividades devem ser vistos como momentos diferentes de um processo essencialmente unificado de desenvolvimento em direção à linguagem escrita. Haverá descontinuidades, saltos, retrocessos e avanços, mas subjacente a todas estas atividades semióticas há um mesmo funcionamento simbólico a caracterizar sua unidade e continuidade. Por outro lado, a criança deve também passar pela percepção das funções sociais da escrita alcançada, em especial, pela observação do uso da escrita pelos adultos, pela experiência da leitura que os adultos fazem para ela, pelo manuseio de livros e revistas, pelos jogos com as letras e números, etc. As experiências simbólico-cognitivas do desenho e do brinquedo e o contato com a língua escrita mediado pelos adultos são fatores constitutivos do processo de letramento da criança e a preparam para o trabalho escolar sistemático com o alfabeto e a linguagem verbal escrita. A eventual falta destas experiências da pré-história da escrita nos anos anteriores à escolarização – o que é comum na vida das crianças pertencentes a segmentos sociais pouco letrados (com pais analfabetos ou apenas precariamente alfabetizados e escolarizados) – afeta negativamente o processo de alfabetização. Nosso sistema escolar público tem vivido agudamente este problema que se manifesta nas grandes dificuldades que enfrenta para alfabetizar as crianças. Nossa escola tem ainda de descobrir meios para preencher, antes e durante a iniciação ao alfabeto, essa lacuna de letramento. Temos de reconhecer que ainda nos falta uma pedagogia da alfabetização de crianças oriundas de meio social pouco letrado adequadamente inserida numa pedagogia do letramento. Dominado o alfabeto (desvendada a lógica da notação gráfica), o processo deve, então, continuar com novas experiências sociocognitivas de letramento que passam pela fixação das convenções gráficas (a ocupação 13 da página, a grafia das palavras, a acentuação e a pontuação), mas principalmente pela a familiarização com os gêneros e tipos de textos de ampla circulação social (sua leitura e produção), o que inclui o domínio das características da norma culta. Neste ponto, é interessante lembrar que a própria conquista do alfabeto e da lógica da escrita alfabética pela criança passa por estágios de desenvolvimento, como mostrou, na década de 1920, o psicólogo russo Alexander Luria e, posteriormente, dentro do quadro da psicologia piagetiana, a psicóloga argentina Emilia Ferreiro em seu trabalho conjunto com a pedagoga espanhola Ana Teberosky. Estes estudos mostram a criança, diante da escrita, como um ser cognitivo ativo, levantando e experimentando hipóteses, fazendo invenções e tentativas num processo que, dinamicamente inter-relacionado com a mediação dos adultos, resulta no desvendamento da lógica da escrita alfabética. Luria (p. 188) considerava indispensável que os educadores que trabalham com crianças de idade escolar estejam familiarizados com esta ação cognitiva ativa da criança para poderem exercer adequadamente seu papel de mediadores do conhecimento e para não caírem no equívoco de reduzir a criança a um ser cognitivo passivo. É nesse sentido que Vigotski (p. 144) vai afirmar que cabe ao educador fazer com que o domínio da escrita seja desenvolvimento organizado, mais do que aprendizado. A observação de toda essa rede de processos cognitivos envolvidos no domínio da escrita mostra como este meio de expressão verbal foi progressivamente se tornando uma elaborada e complexa arte, revestindose de sofisticados procedimentos técnicos e sendo recoberta por expectativas socioculturais específicas quanto a seu modo de realização e de uma densa teia de valores sociais. Com isso tudo, o meio escrito de expressão adquiriu também relativa autonomia frente ao meio de expressão oral. Longe de ser mera transcrição da fala ou mero instrumento auxiliar, secundário, suplementar da expressão oral, a escrita é, na verdade, um modo específico de verbalizar, é uma forma de expressão da linguagem verbal com características e dinâmicas próprias. Nesse sentido, dominar o meio oral não é condição suficiente para dominar o meio escrito. Embora inter-relacionados por serem meios de expressão da mesma linguagem verbal, cada um tem seu próprio modo de existir. São, no fundo, irredutíveis um ao outro e, por isso mesmo, demandam, para seu domínio, experiências e trajetórias cognitivas específicas. 14 A importância que a escrita foi adquirindo na vida das sociedades humanas e o prestígio daí resultante puseram o texto escrito – em especial os textos canônicos (religiosos ou artísticos) da cultura – no centro das preocupações intelectuais. O cuidado em garantir o registro e a transmissão sem alterações do texto religioso (como na cultura hindu) ou do texto literário (como na cultura grega) redundou no desenvolvimento de ramos do conhecimento dedicados especificamente ao estudo do texto escrito. Dentre estes, está a filologia criada pelos eruditos agregados à Biblioteca de Alexandria, a maior biblioteca do mundo antigo, fundada no século III a. C. Nela se reuniu uma grande coleção de manuscritos gregos antigos com textos de poetas, dramaturgos, filósofos e historiadores. Seu corpo de estudiosos se dedicou não só a catalogar todo esse precioso acervo, mas principalmente a estabelecer, a partir do estudo criterioso dos fragmentos disponíveis, o texto que se poderia considerar como definitivo da obra de cada um dos autores gregos clássicos. Por razões óbvias, os grandes poemas de Homero (Ilíada e Odisséia), escritos provavelmente no século VIII a. C., receberam particular atenção dos estudiosos alexandrinos. Esse criterioso trabalho se fazia necessário porque os manuscritos do mesmo texto variavam entre si ou estavam danificados e rasurados; tinham lacunas, trechos obscuros, acréscimos ou cortes indevidos. Dedicando-se a fixar uma forma aceitável dos textos clássicos, os sábios alexandrinos preservaram e nos legaram todo um conjunto de obras fundamentais da cultura humana. Para realizar esse trabalho inestimável, os sábios alexandrinos tiveram de criar os métodos que, mesmo aperfeiçoados posteriormente, constituem ainda hoje a base de qualquer atividade de edição crítica dos textos reconhecidos como clássicos da cultura – textos literários, filosóficos, religiosos. O estudo criterioso dos textos levou os filólogos alexandrinos a descrever e comentar a língua que ali encontravam: aspectos de métrica, ortografia e pronúncia; a distribuição das palavras por classes (nomes, adjetivos, pronomes, verbos, advérbios, conjunções, etc.); a estrutura sintática da oração simples (sujeito, predicado, complementos, adjuntos) e dos períodos (coordenação e subordinação); o uso das figuras de linguagem e assim por diante. Com o tempo, esses estudos passaram a constituir um ramo autônomo do conhecimento: a gramática. Costuma-se atribuir a um desses filólogos alexandrinos, Dionísio Trácio, do século II a.C., a autoria da primeira gramática conhecida. Ao consolidar descrições de aspectos da língua grega, sua obra foi tomada como modelo dos estudos gramaticais posteriores. 15 Dionísio Trácio conceituava a gramática como “o conhecimento empírico do comumente dito nas obras dos poetas e prosadores” (cf. Chapanski, 2003), ou seja, o estudo da língua conforme usada comumente pelos escritores em seus textos. Enquanto a filologia estudava e comentava os textos dos grandes escritores (fixando-lhes a melhor forma), a gramática se concentrava no estudo das características da língua correntes na sua escrita. O objeto do gramático era, portanto, a língua escrita exemplar, ou seja, a língua dos grandes escritores. E o gramático perseguia dois objetivos: descrever essa língua e, ao fazê-lo, estabelecer um modelo, um padrão a ser seguido por todos os que escrevem. Por isso, a gramática já de início se tornou matéria da escola – instituição que, em princípio, teria como uma de suas tarefas ensinar as pessoas a escrever bem. 5. Escrita e escola À relação simbiótica que mencionamos anteriormente entre escrita, cultura letrada e escola agregaram-se, portanto, o estudo do texto e o saber gramatical, que passaram a ser tidos como os fundamentos da educação linguística. É precisamente essa teia de relações que vamos encontrar definida na obra pedagógica clássica da cultura greco-romana, a Institutio Oratoria, escrita por Quintiliano em 96 d. C.1 Nesse trabalho, o objetivo principal do autor é dar diretrizes para o ensino de retórica, ou seja, para a formação do homem que fala bem em público. A educação formal em Roma era voltada exclusivamente para os jovens aristocratas do sexo masculino e seu ideal era formar bons oradores, ou seja, homens capazes de defender teses frente aos juízes e de discursar no Fórum ou no Senado com excelência e beleza. O centro da educação romana estava, portanto, na educação linguística. E Quintiliano a dividia em três momentos: a) iniciava-se pela alfabetização (ou seja, pelo domínio do código alfabético); b) passava pelas aulas do grammaticus (o professor responsável pelo exercício da leitura e do comentário dos textos dos grandes escritores – encarados como os modelos a serem criativamente seguidos pelos aprendizes – e também pelo ensino de gramática, ou seja, das propriedades da língua escrita); c) e terminava com o professor de retórica com quem, então, se trabalhava a aquisição da competência oratória. 1 O livro de Quintiliano pode ser lido em tradução para o inglês no endereço http://honeyl.public.iastate.edu/quintilian/ (acessado em 20/12/2009). Os capítulos IV a IX do livro 1 podem ser lidos em português em PEREIRA 2005. 16 Neste ponto, é importante destacar que a prática da oratória como desenvolvida na cultura greco-romana é um elemento típico da cultura letrada. Embora seja uma prática oral, seu desenvolvimento histórico e suas características refletem claramente as competências que a escrita deu à humanidade. A articulação e a apresentação oral de um longo argumento decorrem dos modos de organização intelectual mais sistemáticos e monitorados e, portanto, das práticas cognitivas mais abstratas e formalizadas que a escrita viabilizou. Nesse sentido, um discurso oral tem, no seu substrato, o modo de articulação do texto escrito. Em outras palavras, a escrita teve efeitos significativos até mesmo sobre a oralidade. Daí estarem imbricados, na pedagogia de Quintiliano, o trabalho com a língua escrita e o desenvolvimento das práticas oratórias. A educação para a escrita foi, na antiguidade, sempre para poucos porque, durante milênios, a escrita foi prática socialmente muito restrita. Esteve vinculada apenas aos núcleos do poder econômico, político e religioso. Só no último milênio e meio é que este perfil começou a ser progressivamente alterado. E alguns acontecimentos desse percurso merecem especial destaque. Primeiro, o desenvolvimento do design do códice – o objeto antecessor imediato do livro como o conhecemos hoje. Por volta do século V d. C., o códice já havia substituído na Europa os antigos rolos de papiro. O segundo acontecimento fundamental foi o desenvolvimento da tecnologia do papel; e, finalmente, a invenção da prensa de tipos móveis por Gutenberg no século XV. O códice introduziu inúmeras vantagens sobre os antigos rolos, em especial a possibilidade de encadernar um texto longo integralmente num só volume, com todas as decorrentes facilidades para seu manuseio. A tecnologia do papel, por sua vez, permitiu diminuir sensivelmente o tamanho dos volumes. E a prensa de tipos móveis viabilizou a produção do livro em grande escala. Com isso, foi possível amplificar o alcance social da língua escrita – multiplicou-se a prática social da escrita, ampliou-se o público leitor e a prática social da leitura individual e silenciosa e iniciouse a construção de grandes bibliotecas públicas. Podemos, então, dizer que desde o século XV a humanidade ingressou na era do livro. E este se manteve por 500 anos como o suporte central, soberano e quase exclusivo do registro e da circulação da cultura letrada. Todo esse processo histórico que acabamos de resumir foi responsável, portanto, pelo despertar da necessidade de se disseminar o 17 domínio da leitura e da escrita. O século XVI vai, então, conhecer a primeira grande onda moderna de alfabetização de expressivos segmentos sociais – a tecnologia permitia a multiplicação de livros, os ideais humanistas do Renascimento estimulavam o saber letrado e a Reforma religiosa conduzida por Lutero, ao formular o princípio do sacerdócio universal de todos os crentes, desencadeava a necessidade de todos terem acesso ao texto bíblico. Para alcançar este último objetivo, dois pré-requisitos se impunham: era preciso traduzir o texto bíblico para as línguas modernas e, ao mesmo tempo, alfabetizar o maior número possível de pessoas. A difusão do pensamento religioso reformado foi acompanhada de uma intensa atividade de tradução da Bíblia (iniciada pelo próprio Lutero, que fez a tradução para o alemão) e de um forte movimento pedagógico alfabetizador. Abria-se assim a modernidade. De um lado, as línguas vernáculas, ou seja, as línguas vivas modernas, começavam a ocupar o centro da vida cultural escrita, progressivamente substituindo o latim. E, de outro, a humanidade conhecia seu primeiro grande ciclo de expansão no número de alfabetizados e leitores, em especial nos países europeus que adotaram os princípios da Reforma. No início do século XVII, em 1627, foi publicado o primeiro tratado pedagógico moderno, a Didática Magna de Jan Comenius (intelectual ligado à tradição religiosa reformada).2 Pode-se dizer que sua obra é a síntese pedagógica desse novo tempo. Nela, o autor defende, por exemplo, que toda a juventude, de um e de outro sexo, deve ser enviada às escolas públicas, ou seja, deve-se ensinar tudo a todos (e não só aos jovens aristocratas do sexo masculino). Por isso mesmo, a educação fundamental deve ser primordialmente na língua materna e não em latim. Com esta última proposta, Comenius reflete todo o processo renascentista de valorização das línguas modernas e rompe com a tradição pedagógica medieval que tinha o latim como língua de ensino e como objeto central da educação linguística. Esse ideal pedagógico medieval sobrevivia na pedagogia dos jesuítas conforme consubstanciada no documento Ratio Studiorum, que, publicado em 1599, orientou até o século XVIII a educação nos países católicos, conduzida basicamente por aquela ordem religiosa.3 2 Há uma edição recente do livro de Comenius em português (São Paulo, Martins Fontes, 2006). O texto em português é também acessível no endereço eletrônico http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/didaticamagna.pdf (consultado em 20/12/2009). 3 O texto da Ratio Studiorum pode ser lido em português no livro Código pedagógico dos jesuítas, organizado por Margarida Miranda (Lisboa: Esfera do Caos, 2009). Há tradução para o inglês disponínel no endereço eletrônico http://www.bc.edu/libraries/collections/collinfo/digitalcollections/ratio/ratio1599.pdf (acessado em 20/12/2009) 18 Nesse sentido (e também pelo fato de a Ratio Studiorum limitar a educação aos jovens do sexo masculino), o pensamento de Comenius contrasta fortemente com o que postulavam os jesuítas. No fundo, mais uma manifestação do embate entre o moderno e o arcaico. Comenius se distancia também da pedagogia medieval e dos jesuítas ao defender que não se deve aprender a língua a partir da gramática, mas a partir dos autores apropriados. Ou seja, a gramática deve ser apenas auxiliar (como era, aliás, em Quintiliano). O núcleo da educação linguística deve ser, primeiro, o contato direto e permanente com os textos dos bons autores e, segundo, a prática contínua com vistas a desenvolver as competências de fala, leitura e escrita. Foi durante o período medieval que a gramática pulou da posição de saber auxiliar para a de saber central. Como sabemos, a língua da cultura letrada na Europa ocidental foi o latim mesmo depois do fim do Império Romano e assim permaneceu durante toda a Idade Média. No entanto, quanto mais distante das fontes vivas, mais complexo o seu domínio. O latim, nestas circunstâncias, era, de fato, uma língua segunda (não era mais a língua materna de ninguém) e artificial (não dispunha mais de referências vivas). Para se aprender tal língua, era preciso conhecer prévia e detalhadamente sua estrutura gramatical, o que só se alcançava (em decorrência da falta de modelos vivos) pelo seu estudo sistemático e altamente monitorado. Não é de admirar, portanto, que o ensino da gramática tenha passado a ocupar o lugar central na educação linguística medieval e que os jesuítas, dentro do espírito conservador da Contrarreforma, o tenham mantido na mesma posição. Ainda hoje este antigo embate – ou seja, saber que lugar deve ocupar o ensino da gramática na educação linguística – está presente nas discussões sobre o ensino de língua materna. Ainda hoje o arcaico e o moderno se digladiam na arena das ideias pedagógicas. Uma segunda grande onda alfabetizadora veio a ocorrer de meados do século XIX em diante. Agora, o móvel eram, principalmente, as demandas da produção industrial que, à medida que crescia e se sofisticava tecnologicamente, ia exigindo trabalhadores cada vez mais qualificados. Soma-se a essa demanda econômica o desenvolvimento do pensamento político saído das revoluções burguesas do século XVII (inglesa) e XVIII (americana e francesa). Esta nova maneira de pensar a sociedade e o poder político colocou, como justificativa do exercício do poder político, a soberania do povo no lugar do chamado direito divino dos reis. E transformou os indivíduos de súditos de um monarca em cidadãos com igualdade de direitos políticos. Ter acesso à educação passou a ser um 19 requisito básico para o exercício pleno da cidadania e democratizá-la passou a ser meta das sociedades industriais avançadas. Como decorrência desses fatores econômicos e políticos, os países europeus industrializados e os Estado Unidos já haviam universalizado, no fim do século XIX, o ensino fundamental de quatro séries e vieram a universalizar o de oito séries na metade do século XX e o ensino médio por volta da metade da década de 1950. 6. A situação brasileira Esta onda alfabetizadora e educacional não alcançou, porém, os países periféricos. Ainda hoje o Brasil, por exemplo, se ressente desse atraso. Só muito lentamente foi diminuindo sua população analfabeta. O número de analfabetos no país é ainda relativamente elevado – as estatísticas dizem que cerca de 12 % da população adulta são analfabetos. Pior, no entanto, é saber que, conforme dados publicados pelo IBGE no ano de 2009 (cf. Folha de S. Paulo, 14/07/2009), 12% das crianças brasileiras de 8 e 9 anos são analfabetas – índice que chega a 23% no Nordeste e a absurdos 38% no estado do Maranhão.4 Não só não temos conseguido eliminar o analfabetismo adulto, como continuamos a produzir novas gerações de analfabetos. Os índices do Censo Escolar MEC - IBGE mostram que há uma forte correlação negativa entre índices de analfabetismo e o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de cada região: quanto maior o índice de analfabetismo, menor o índice de desenvolvimento humano. Portanto, nosso desenvolvimento social se ressente fortemente da lacuna histórica que nos acompanha há séculos. Acrescentemos a estes dados, o Índice Nacional de Alfabetismo Funcional - INAF.5 Em sua quinta edição (realizada em 2005), o INAF mostrou que só 26% dos brasileiros na faixa de 15 a 64 anos são plenamente alfabetizados. Ou seja, leem corriqueiramente, entendem textos longos medianamente complexos e escrevem com relativa fluência. Este percentual equivale a aproximadamente 30 milhões de pessoas numa população de quase 200 milhões. Aproximam-se desse dado os resultados de Retratos da Leitura no Brasil, pesquisa periodicamente realizada pela Câmara Brasileira do Livro. 4 Estes dados estão disponíveis na página do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Endereço eletrônico: www.ibge.gov.br (acessado em 10/01/2010). 5 Os dados do INAF podem ser consultados na página do Instituto Paulo Montenegro/ IBOPE. Endereço eletrônico www.ipm.org.br (acessado em 10/01/2010). 20 Em sua última versão (2007), essa pesquisa indica que são só 26 milhões os brasileiros que consomem livros regularmente.6 Por outro lado, nós entramos no século XXI sem ainda ter universalizado sequer a educação fundamental de oito séries. Quanto ao ensino médio, não temos ainda qualquer horizonte visível de universalização. Ainda hoje, mais de cem anos depois da formalização da disciplina de língua portuguesa na escola (que ocorreu oficialmente em 1872), o nível de letramento da maioria das nossas crianças e adolescentes é baixíssimo e, pior, não tem evoluído desde que começamos a avaliar o domínio de leitura das crianças da quarta e da oitava séries e dos jovens concluintes do ensino médio. O SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e a Prova Brasil – o primeiro criado em 1993 e realizado a cada dois anos até 2005 quando foi substituído pela Prova Brasil, que vem se realizando até hoje – revelam índices baixíssimos de domínio da leitura.7 O SAEB de 2003, por exemplo, apontou que apenas 5% dos alunos da quarta série tinham desempenho adequado nos testes de compreensão de leitura; apenas 9% dos alunos da oitava série e apenas 6% dos concluintes do ensino médio. Uma conclusão óbvia desses dados que não evoluem há quase vinte anos é que o nosso sistema escolar não sabe letrar a maioria de seus alunos. Não conseguimos ainda, portanto, renovar nosso ensino de língua materna; falta-nos criar uma pedagogia capaz de responder efetivamente à demanda da educação letradora democrática. Apesar desse atraso e dessas lacunas, a história não nos dá descanso. Hoje, já não basta letrar para o livro e seus parceiros da mídia impressa (jornais e revistas). As bases tecnológicas do registro e da circulação da informação e do conhecimento se alteraram profundamente. De certo modo, estamos vivendo uma revolução tecnológica semelhante à que ocorreu com a invenção da prensa de tipos móveis. É mais que evidente que terminou o ciclo de 500 anos do domínio exclusivo e soberano da mídia impressa. 7. A mídia impressa e as outras mídias 6 Os dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil podem ser consultados na página do Instituto PróLivro/ Câmara Brasileira do Livro. Endereço eletrônico www.prolivro.org.br (acessado em 10/01/2010). 7 Os dados do SAEB e da Prova Brasil estão disponíveis na página do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Endereço eletrônico www.inep.gov.br (acessado em 10/01/2010). 21 Este ciclo está se encerrando principalmente em decorrência da criação e disseminação dos meios técnicos que viabilizaram a chamada comunicação de massa – o cinema a partir dos primeiros anos do século XX, o rádio a partir da década de 1920, a televisão a partir da década de 1950 e, finalmente, a internet a partir da década de 1990. Com esses novos meios, criaram-se alternativas robustas para a circulação massiva da informação. O cinema, o rádio e a televisão preencheram um imenso vazio. Em todo o mundo, a massa dos analfabetos plenos ou funcionais foi finalmente alcançada pela informação, pela sedução da oralidade e principalmente pela sedução da imagem. A parcela efetivamente letrada da população mundial perdeu a sua quase exclusividade de acesso à informação. Por outro lado, a literatura – referência central na era do livro – conheceu, neste mesmo período, competidores poderosos no cinema e na televisão. Livro algum consegue alcançar um quantitativo de público semelhante ao de um filme ou de uma novela ou série televisiva. Isso tudo não significa dizer que o livro e a mídia impressa em geral estejam mortos. A mídia impressa continua conosco e temos de continuar a lidar com ela e a letrar para ela. As mudanças tecnológicas que o século XX produziu não destruíram (nem vão destruir) a mídia impressa. Estão sim redesenhando suas funções culturais, ao mesmo tempo que redesenham o próprio sentido de palavras como alfabetização e letramento. Mergulhar na cultura letrada implica hoje aprender a transitar por vários suportes tecnológicos simultaneamente (todos eles, aliás, direta ou indiretamente correlacionados com a língua escrita e frutos da cultura letrada). É preciso dominar sua base material. Mas não só isso. Se a alfabetização tradicional não se esgota no domínio do alfabeto, mas pressupõe a imersão nas tradições discursivas das práticas sociais de escrita e a apreensão da lógica cognitiva que subjaz a ela, do mesmo modo a alfabetização e o letramento para o mundo virtual multimidiático e hipertextual não se esgota no domínio das suas bases materiais. A sociedade e a cultura atuais estão construindo novas tradições discursivas e desenvolvendo novas lógicas cognitivas a partir do cruzamento de linguagens e suportes que a tecnologia permite. Sem perder os ganhos do grande ciclo do livro, passamos a dispor de outros muitos caminhos para a informação e para o conhecimento. Temos de aprender a conciliar isso tudo. Temos de aprender a transitar neste mundo infinito e sem limites. Temos de aprender a desenvolver nossas capacidades críticas e produtivas neste meio. Alcançar estas metas no Brasil, porém, não é tarefa fácil, considerando que entramos na era da imagem e do meio virtual 22 multimidiático e hipertextual sem ter sequer universalizado o domínio do alfabeto e sem ter democratizado o acesso à mídia impressa. Ou seja, as mudanças tecnológicas e culturais nos alcançaram sem que tivéssemos consolidado razoavelmente a cultura do livro e da linguagem escrita. Estamos ainda, portanto, desafiados a formular e concretizar um projeto político-pedagógico capaz de vencer este atraso ao mesmo tempo que responde às novas realidades e demandas postas pelas tecnologias da informação e da comunicação. 8. Para um projeto pedagógico letrador Parece-nos que a pedra angular deste projeto político-pedagógico deverá ser um compromisso com a expansão do letramento da maioria dos alunos, já que eles vêm de segmentos sociais historicamente excluídos do acesso pleno à escrita e à cultura letrada. Não se trata (como destacamos anteriormente) de dar aqui uma interpretação restrita a essa expressão. Ela não diz respeito apenas à alfabetização e ao domínio do saber enciclopédico tradicionalmente cultuado e transmitido pela escola. A cultura letrada pressupõe obviamente a alfabetização e compreende um certo acúmulo relativo de saberes cuja construção e expansão só se tornaram possíveis pela criação da escrita e redundaram, por exemplo, na matemática, nas ciências e tecnologias que, apropriadas pelo capital, trouxeram as mudanças produtivas e socioculturais da atualidade. No entanto, o mais importante não é em si esse produto histórico que a escrita viabilizou, mas as práticas cognitivas e socioculturais que se desenvolveram com seu surgimento e expansão. Como bem sintetiza Britto (2004, 133): O aspecto mais significativo do desenvolvimento da escrita, contudo, foi a expansão da possibilidade de memória registrada e de formas de organização intelectual mais sistemáticas e monitoradas. A principal diferença entre o texto escrito e a oralidade não está na reorganização do fluxo sintático, mais controlado e descontextualizado, mas na possibilidade de novas performances cognitivas, entre as quais se destacam certos processos de formalização do pensamento, o que teria conduzido, entre outras coisas, ao desenvolvimento da matemática e das ciências positivas e instaurando uma cultura escrita, que supõe produtos culturais e modos de participação que vão além do conhecimento de normas de uso do código. 23 Quando falamos de cultura letrada estamos nos referindo, então, a uma complexa rede de práticas cognitivas, saberes e práticas sociais vinculadas direta ou indiretamente com a leitura e a escrita. A imersão nessa rede é requisito para transitar com autonomia nas novas condições de existência dadas no mundo contemporâneo. Como destaca Britto (2004, 134): Quanto maior o letramento, maiores serão, entre outras coisas, a manipulação de textos escritos, a realização de leitura autônoma (sem intervenção ou apoio de outra pessoa), a interação com discursos menos contextualizados ou mais autoreferidos, a convivência com domínios de raciocínio abstrato, a produção de textos para registro, comunicação ou planejamento, enfim, maiores serão a capacidade e as oportunidades do sujeito de realizar tarefas que exijam monitoração, inferências diversas e ajustamento constante. Neste sentido, o letramento, mais que alfabetização ou o domínio das regras de escrita, é um estado ou condição de quem se envolve em numerosas e variadas práticas sociais de leitura e da escrita. Nossa escola fundamental e média não tem conseguido oferecer essa indispensável imersão na cultura letrada à maioria da população escolar. Num outro projeto pedagógico, será preciso, então, rediscutir sim o ensino de português. Mas não apenas ele. Uma escola letradora – que toma as práticas socioculturais da cultura letrada como um eixo organizador das atividades escolares que articula trabalho, ciência e cultura (nos termos da escola unitária defendida por Kuenzer, 2000) – terá forçosamente de ultrapassar a concepção de que o letramento é tarefa exclusiva do professor de português. As práticas cognitivas de todas as áreas escolares, as suas diferentes formas de linguagem, a articulação verbal específica dos saberes aí constituídos, as diferentes formas de interação oral e escrita presentes em cada área põem a escola disciplinar tradicional sob radicais interrogações, apontando a possibilidade de uma efetiva educação transdisciplinar como defendem Britto (2004) e Kuenzer (2000) – uma educação que não abandone as especificidades de cada área, mas seja capaz de articulá-las em sínteses superiores, sem as quais não se pode compreender o mundo contemporâneo e não se pode agir eticamente nele com autonomia intelectual e pensamento crítico. 24 A escola atual, no entanto, está longe dessa perspectiva. Ela ainda é arraigadamente disciplinar. A área de língua portuguesa chega, inclusive, a ser dividida em três subdisciplinas (gramática, redação, literatura), o que, além de revelar uma concepção fragmentadora do ensino, deixa transparentes os eixos que norteiam a ação escolar nessa área. Há uma clara perspectiva conteudística preocupada em transmitir um saber gramatical rarefeito e perpassado de um normativismo anacrônico e estéril; e em repassar um saber enciclopédico sobre autores, obras e “escolas” literárias. Está, portanto, longe de oferecer uma experiência de reflexão científica sobre a organização e o funcionamento social da linguagem. E está mais longe ainda de contribuir para uma experiência viva com a literatura e com as outras práticas discursivas da sociedade contemporânea. Uma consulta ao material didático apostilado que circula com grande sucesso na rede particular de ensino é suficiente para desvelar como a escola se pensa. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) têm contribuído pouco para alterar a prática escolar tradicional. Elaborados no contexto da reforma do ensino proposta na sequência da aprovação, em 1996, da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, os PCNs buscaram, em princípio, expressar os desafios da contemporaneidade para a educação. Afastaram-se da maneira tradicional de estabelecer a programação escolar: não arrolam conteúdos, mas dão destaque ao domínio das competências sociocognitivas que garantem o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico. Há, evidentemente, várias razões para a pouca reverberação escolar dos PCNs, a começar pelo próprio fosso que separa a universidade e a escola média (embora os professores desta sejam formados por aquela). Por outro lado, a transmissão do saber pronto e apostilado dá, certamente, mais segurança à prática escolar, em especial àquela de um professor sobrecarregado de aulas, mal remunerado e sem formação adequada. Nesse sentido, embora os PCNs procurem dar um norte para projetos pedagógicos inovadores, a programação escolar tradicional é que, de fato, continua pautando o fazer da escola. Mesmo o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que adquiriu força ao ter seus resultados adotados pelas instituições de ensino superior em seus processos de seleção, tem repercutido pouco no sentido de alterar a ação tradicional da escola. Na área de língua portuguesa, o ENEM, paradoxalmente, reforça essa ação, pelo menos em seu conceitual. O exame não se propõe a ser um teste de domínio de conteúdos (não é, portanto, um teste de saber enciclopédico), mas visa testar competências e habilidades dos egressos da escola média. Em outros termos, o conceitual que sustenta o ENEM procura dirigir o foco da avaliação não para os 25 conteúdos que os alunos dominam, mas para as relações cognitivas que são capazes de estabelecer e para aquilo que são capazes de fazer com os conteúdos e essas relações cognitivas. À primeira vista, as diretrizes pedagógicas do ENEM parecem estar mudando significativamente a direção da avaliação escolar da língua no país: deixam de verificar o conhecimento de conteúdos gramaticais e de história literária e pautam a avaliação por uma grande competência e por algumas habilidades de uso. No entanto, apesar dessa aparente inovação, o ENEM, na área da língua, apenas reproduz a velha concepção pedagógica que toma a parte pelo todo. Ao estabelecer o domínio da norma culta como a competência máxima a ser atingida ao fim da escolaridade média, o ENEM isola a norma do conjunto a que ela pertence e no interior do qual ela tem efetivo sentido social, isto é, o grande caldo das práticas sociais da cultura letrada. Em consequência disso, as diretrizes do ENEM vão no sentido contrário àquele do discurso pedagógico que vem circulando entre nós, desde pelo menos a década de 1980. Esse discurso, em contraposição a um ensino centrado no conhecimento de nomenclaturas e conteúdos gramaticais, tem colocado o domínio das atividades de fala em situações formais e das atividades de leitura e de escrita como primordiais no ensino e, corretamente, atrela o domínio da norma culta ao amadurecimento daquelas atividades. Por outro lado, aquelas diretrizes, ao inverterem o discurso pedagógico e ao isolarem a norma culta, apenas reiteram, sob um manto de aparente inovação, a clássica reificação e fetichização escolar da norma culta. O produto maior da escolaridade na área da língua não pode ser o domínio de um objeto recortado no abstrato (como tradicionalmente se faz na escola brasileira), mas – como temos intensa e extensamente debatido há décadas (embora sem maiores repercussão nas práticas escolares efetivas)– o domínio de práticas sociais próprias da cultura letrada, no interior das quais (e só aí) faz sentido falar de norma culta. As diretrizes do ENEM não deixam o domínio das práticas de escrita totalmente de fora do processo de avaliação. Contudo, a forma como o conjunto está apresentado deixa claro o equívoco de se priorizar o conhecimento da norma e a ele subordinar o domínio das práticas de leitura e produção de textos. Isso posto, pode-se afirmar que mesmo as incisivas intervenções do Estado brasileiro, nos últimos dez/doze anos, no sentido de redirecionar a escola fundamental e média – como os PCNs, o ENEM e, mais recentemente (a partir de 2005), a extensão do Programa Nacional do Livro 26 Didático para o ensino médio – não têm conseguido estimular uma ação inovadora e transformadora. O caminho do possível ainda está por se fazer. Vale, então, repisar aqui algumas das coordenadas que, nas últimas décadas, têm sido formuladas, com base numa determinada concepção de linguagem, sobre possíveis ações pedagógicas na área específica de língua portuguesa. Elas podem subsidiar a elaboração de projetos pedagógicos comprometidos com a perspectiva de uma escola letradora, não só por delinear uma nova prática de ensino da língua, mas também por dar diretrizes para o desenvolvimento das práticas de linguagem(ns) através do currículo, isto é, aquelas que são indispensáveis seja na especificidade de cada área, seja na articulação transdisciplinar. Entre nós, as concepções mais tradicionais tendem a reduzir a linguagem ora a um conjunto de regras (a uma gramática); ora a um monumento (a um conjunto de expressões ditas corretas); ora a um mero instrumento de comunicação e expressão (a uma ferramenta bem-acabada que os falantes usam em certas circunstâncias). Podemos observar que todas essas concepções têm algo em comum: elas entendem a linguagem como uma realidade em si (um sistema gramatical, um monumento, um instrumento); como se ela tivesse vida própria, despregada de seus falantes, da dinâmica das relações sociais, dos movimentos da história. Nossa concepção recusa esses olhares que alienam a linguagem de sua realidade social concreta. Inspirado nos trabalhos do Círculo de Bakhtin (cf. Faraco 2009 e a bibliografia ali comentada), nós a concebemos como um conjunto aberto e múltiplo de práticas sociointeracionais, orais ou escritas, desenvolvidas por sujeitos historicamente situados. Pensar a linguagem desse modo é perceber que ela não existe em si, mas só existe efetivamente no contexto das relações sociais: ela é elemento constitutivo dessas múltiplas relações e nelas se constitui continuamente. Por outro lado, os próprios falantes tomam forma como sujeitos históricos e como realidades psíquicas em meio a essa intrincada rede de relações socioverbais e pela interiorização da própria dinâmica da interação socioverbal. Somos, nesse sentido, seres de linguagem, constituídos e vivendo num complexo feixe de relações socioverbais. De forma alguma, podemos ser reduzidos a meros aplicadores de regras de um sistema gramatical; ou a meros reprodutores de um certo monumento linguístico cristalizado; ou, ainda, a meros usuários de um instrumento externo a nós. Desse modo, ensinar português é, fundamentalmente, oferecer aos alunos a oportunidade de amadurecer e ampliar o domínio que eles já têm 27 das práticas orais de linguagem e especialmente garantir-lhes o domínio das práticas escritas. Em língua materna, a escola, obviamente, nunca parte do zero: os alunos têm uma experiência linguística acumulada. Cabe-nos, no entanto, criar condições para que esse domínio dê um salto de qualidade, tornando-se mais maduro e mais amplo. Na saída do Ensino Médio é fundamental que nossos alunos tenham adquirido efetiva autonomia naquelas práticas de linguagem que devem ser de domínio comum de todos os cidadãos, que são indispensáveis à vida cidadã e que transcendem os limites das vivências cotidianas informais. Trata-se tanto do domínio amplo da leitura, da escrita e da fala em situações formais, quanto do desenvolvimento de uma compreensão da própria realidade da linguagem nas suas dimensões sociais, históricas e estruturais. Concebendo a linguagem como um conjunto de práticas sociointeracionais, garantimos um tratamento pedagógico não burocrático à leitura, à escrita e à oralidade. Vamos encará-las como atividades sociais significativas entre sujeitos históricos, realizadas sob condições concretas. Em qualquer atividade de linguagem é, assim, fundamental reconhecer sua realidade sociointeracional; reconhecer a presença do outro, mesmo quando não diretamente visível – quer daquele que nos convida à interlocução, autor que é dos textos que lemos ou ouvimos; quer daquele a quem convidamos à interlocução, destinatário que é dos nossos textos escritos ou orais. Ler pressupõe, em primeiro lugar, familiarizar-se com diferentes tipos de textos oriundos das mais variadas práticas sociais (em especial da literatura, do jornalismo, da divulgação científica, da publicidade). Pressupõe também o desenvolvimento de uma atitude de leitor crítico, o que significa, entre outros aspectos, perder a ingenuidade diante do texto dos outros, percebendo que atrás de cada um há um sujeito, com uma certa experiência histórica, com um determinado universo de valores, com uma intenção. Ler pressupõe também uma compreensão responsiva, o que implica reagir ao texto, dar-lhe uma resposta, concordando com ele, ou dele discordando; rindo dele, emocionando-se com ele, aplaudindo-o, refutandoo, assimilando-o, fazendo-lhe a paródia, e assim por diante. Neste ponto, é importante dizer que ler e texto não estão aqui sendo usados como termos restritos à linguagem escrita. Estamos entendendo ler em sentido mais amplo, como a ação de recepção crítica e responsiva de textos escritos ou falados. E mais: por extensão queremos abranger também 28 a recepção (leitura) de manifestações (textos) em outras linguagens, combinadas ou não com a linguagem verbal. Essa extensão nos ajuda a compreender de forma integrada a linguagem verbal e as outras linguagens (as artes visuais, a música, o cinema, a fotografia, a televisão, a publicidade, as charges, os quadrinhos, a infografia, bem como a linguagem matemática e as linguagens científicas), percebendo seu chão comum (são todas atividades sociointeracionais entre sujeitos históricos) e suas especificidades (seus diferentes suportes tecnológicos; seus diferentes modos de composição e de geração de significados). Ao mesmo tempo, aquela extensão nos permite propor, para a leitura das outras linguagens, as mesmas ações que previmos para a leitura dos enunciados falados ou escritos, ou seja, a leitura crítica e responsiva. Obviamente, cabe à área de língua portuguesa, em sua especificidade, se concentrar nas atividades de leitura dos textos em linguagem verbal. No entanto, não pode deixar de oferecer aos estudantes uma experiência de leitura de outras linguagens, considerando, de um lado, que somos seres de múltiplas linguagens; e, de outro, que a sociedade contemporânea amplificou a circulação de textos nas mais variadas linguagens, exigindo uma múltipla capacidade de leitura de seus cidadãos. Quanto à leitura dos textos em linguagem verbal, é importante dizer também que, em língua portuguesa, jamais podemos descuidar da relação dos alunos com o texto literário. Essa é, sem dúvida, uma das mais significativas experiências de leitura que a escola pode e deve oferecer, abrindo os horizontes dos nossos alunos para a riqueza do modo estético de representar o mundo e de trabalhar a linguagem. Além de merecerem uma abordagem que dê destaque às suas especificidades, os textos literários abrem um fértil espaço para um trabalho integrado com textos verbais oriundos de outras esferas da atividade humana (por exemplo, do jornalismo ou da divulgação científica), criando uma rede para múltiplas leituras do mundo e para a compreensão e apreensão do potencial expressivo da linguagem. Os textos literários permitem também um trabalho integrado com outras linguagens (artes plásticas, música, cinema), criando condições para a percepção do fazer artístico em geral, seja de suas especificidades, seja de suas dimensões histórico-culturais. O primordial aqui é conquistar os alunos para a leitura em geral e para a incorporação da literatura (e da arte) em suas vidas. E isso depende de eles sentirem a força e a beleza do estético por dentro, como expressando sentidos de vida. O pior que a escola pode fazer é burocratizar 29 essa relação, tornando o texto literário mero meio para estudos gramaticais ou teóricos; ou cercando-o de enfadonhas obrigações e excessos de tecnicalidades. Mesmo o estudo da história literária não pode se perder em tecnicalidades ou conhecimentos estáticos. Há que se aproveitar a história literária para uma compreensão dinâmica da nossa história cultural, oferecendo aos alunos a possibilidade de apreender o presente como resultado e parte de toda uma complexa história. Quanto à produção de texto, cabe, em primeiro lugar, reiterar que o ato de escrever deve ser visto como uma atividade sociointeracional. Ou, dito de outra forma, escrevemos para alguém ler. Isso implica reconhecer que o interlocutor é um dos condicionantes do nosso texto. Em consequência, a escrita cobra de nós uma ação de contínua adequação do nosso dizer às circunstâncias de sua produção. Por isso, ao propor atividades de escrita, é preciso buscar sempre contextualizá-las e, ao mesmo tempo, insistir para que o aluno mostre seu texto para os colegas. É uma das formas que temos para contornar um certo artificialismo inerente à prática escolar de escrita, transformando-a numa atividade efetivamente geradora de sentidos. Claro, há também outras formas como a divulgação dos textos no jornal da escola, em murais da classe, em livros artesanal e coletivamente produzidos ou, ainda, no jornal do bairro, da igreja ou da cidade. De qualquer modo, o olhar do colega será um fator fundamental para o aluno aprender a incorporar ativamente a figura do interlocutor no seu processo de escrita. Acrescente-se a isso outra importante atividade: a apreciação coletiva de textos sob a orientação do professor. Outra vez, essa atividade permite que o aluno perceba o texto como leitor e aprenda a fazer o que todos os que escrevem com autonomia fazem, isto é, monitorar a sua própria escrita, sendo, ao mesmo tempo, autor e leitor. Essa importante e indispensável atividade era já proposta por Quintiliano em seu livro Institutio Oratoria, do ano 96 d. C. a que fizemos referência anteriormente. Dizia ele: “Se o texto é ruim, percebi que é útil que o aluno reescreva depois de ter o texto analisado junto comigo e ele estimulado a fazer ainda melhor” (2, IV, 13). Todas essas balizas devem conduzir cada aluno a perceber a relevância da prática da refeitura de seus textos. Embora o refazer seja inerente ao ato de escrever (nenhum texto sai pronto da primeira vez – basta ver o testemunho dos grandes escritores), o aluno precisa vivenciá-la numa prática significativa de escrita. 30 Por tudo isso, é importante que se crie um ambiente de ‘oficina’ para as práticas de escrita, isto é, a escrita não deve jamais ser encarada como uma tarefa burocrática, mas como uma atividade em que a turma se sinta coletivamente envolvida com a preparação, apreciação e refeitura dos textos. Em todo esse processo, os alunos deverão ir percebendo, aos poucos, quanto a prática significativa da escrita (isto é, a escrita como uma atividade sociointeracional) é desafiadora e cativante: envolve, entre outras ações, determinar os interlocutores, adequar-se ao gênero, planejar o texto, organizar sua sequência, articular suas partes, selecionar a variedade linguística (mais ou menos formal), dialogar com os discursos que circulam socialmente. Além, é claro, de transitar pelos imensos recursos expressivos acumulados ao longo do incessante fazer histórico com a linguagem, realizando aí escolhas em vista das intenções, dos interlocutores e da construção de um modo personalizado de dizer (isto é, da construção de seu estilo) como parte do próprio processo de desenvolvimento da sua identidade. Ao mesmo tempo, por meio dessa prática, se evita o caminho que sugere ser o domínio da escrita decorrente de exercícios mecânicos ou do controle de algumas técnicas. O amadurecimento de nossa condição de autores só se dá em meio a um conjunto de experiências com a linguagem e a cultura letrada. Temos, como dissemos anteriormente, de mergulhar nas tradições discursivas características da escrita. Esse amadurecimento requer leitura diversificada, crítica e responsiva; pressupõe uma significativa ampliação de repertório (uma leitura ampla do mundo); está aliado ao desenvolvimento de uma oralidade mais sofisticada; exige uma reflexão básica sobre o funcionamento estrutural e social da linguagem e uma compreensão de nosso lugar neste funcionamento. Em outras palavras, só obtemos esse amadurecimento a longo prazo e explorando múltiplos caminhos. Daí a importância de um programa de ensino bastante diversificado e consistente para o conjunto das séries escolares, em especial na escola pública, cujos alunos, em sua maioria, vêm de segmentos sociais que não têm suficiente experiência com a linguagem escrita e a cultura letrada. Por outro lado, a escola não pode descuidar da oralidade, seja pelo efeito positivo que seu desenvolvimento tem sobre o conjunto das práticas de linguagem, seja pela relevância que o falar em situações formais tem para a vida cidadã. Não precisamos, é claro, ensinar aquelas práticas que aprendemos espontaneamente no nosso cotidiano (a conversa informal e corriqueira). 31 No entanto, a escola precisa oferecer aos alunos a oportunidade de amadurecer o falar com segurança e fluência em situações formais (isto é, no espaço público, diante de um conjunto plural de interlocutores), seja em atividades de transmissão de informações, seja no debate. As práticas com a oralidade, em especial aquelas que envolvem debate, são uma oportunidade especial para o amadurecimento do convívio democrático, seja pelo exercício do direito à livre expressão, seja pelo reconhecimento do direito do outro à livre expressão, seja, sobretudo, pela polêmica civilizada, a qual pressupõe, entre outros fatores, uma escuta respeitosa, uma enunciação clara e sustentada de opiniões e a abertura para novos argumentos e pontos de vista. Por fim, não podem faltar na programação escolar as atividades de reflexão sistemática sobre a linguagem verbal, ou seja, atividades que se voltem para a compreensão da realidade da linguagem nas suas dimensões sociais, históricas e estruturais Entendemos que não cabe, ao ensino de português, concentrar-se exclusivamente numa dimensão prática, ou seja, oferecer aos alunos o domínio das atividades sociointeracionais de fala, de leitura, de escrita. Junto com esse importante trabalho, é necessário realizar sempre uma ação reflexiva sobre a própria linguagem, integrando as práticas socioverbais e o pensar sobre elas. Esse pensar envolve tanto a compreensão da realidade estrutural da linguagem (isto é, de sua organização gramatical), quanto, e especialmente, a compreensão de sua realidade social e histórica (isto é, da variação linguística). Num país que ainda demoniza a variação linguística, refletir sobre ela na escola tem uma relevância toda especial: os alunos precisam aprender a perceber, sem preconceito, a linguagem como um conjunto múltiplo e entrecruzado de variedades geográficas, sociais e estilísticas; e a entender essa variabilidade como correlacionada com a vida e a história dos diferentes grupos sociais de falantes. Só assim desenvolverão uma necessária atitude crítica diante dos pesados preconceitos linguísticos que embaraçam seriamente nossas relações sociais. Com isso, a escola estará estimulando práticas positivas frente às diferenças e contribuindo para a reconstrução do imaginário nacional sobre nossa realidade linguística. Acreditamos que a escola ainda não encontrou um caminho pedagógico adequado para tratar da variação linguística (ver Bagno 2007). Parece faltar ainda uma superação crítica da “cultura do erro” – que tão profundamente molda nosso modo de olhar a linguagem. Parece que temos 32 ainda medo da variação e continuamos uma sociedade que não quer reconhecer sua cara linguística. Só enfrentando o desafio de construir uma pedagogia da variação é que teremos condições de tratar adequadamente do problema da norma culta, reconhecendo a importância de a escola garantir aos alunos o acesso ao padrão culto real (e não o padrão anacrônico ainda apresentado por nossas gramáticas e livros didáticos) e condições para seu domínio. Os padrões de língua constituem, numa sociedade moderna e democrática, caracterizada por complexidade e pluralidade em elevado grau, indispensáveis elementos de agregação social e cultural. Isso, porque, embora emergindo continuamente da diversidade sociolinguística, eles transcendem os limites do regional e do específico, contribuindo para a construção de uma relativa unidade linguística. A norma culta não é mais, como foi no passado, bem exclusivo dos grupos sociais dominantes; ela precisa ser cultivada e difundida como um fator de inclusão sociocultural dos cidadãos. No Brasil, paradoxalmente, o padrão culto, em especial o padrão escrito, pelo seu caráter artificial e arbitrário, tem sido fator de lastimável exclusão (cf. Faraco, 2008). A norma culta não é um objeto abstrato e com vida própria, que deva ser estudado em si. A norma culta precisa ser compreendida, antes de mais nada, no contexto amplo da cultura letrada: ela é constituinte dessa dimensão cultural e nasceu, como valor sócio-histórico, de seu desenvolvimento. Em consequência, seu aprendizado é, antes de tudo, um efeito de um convívio amplo com material linguístico em norma culta. Seu estudo mais sistemático tem de ser, nesse sentido, complementar e não visto como um a priori. Além disso, a norma culta precisa ser compreendida não como a única manifestação da língua, mas como uma dentre as suas muitas variedades, tendo funções socioverbais específicas: ela é esperada em situações formais de fala e, principalmente, na maior parte das práticas de escrita. Nesse sentido, ela não pode ser um objetivo escolar isolado de outros. Ela não pode ser estudada por si, mas sempre subordinada ao processo pedagógico geral de amadurecimento do domínio das práticas orais e escritas de que ela é ingrediente. Por outro lado, ao trabalharmos com a norma culta, não podemos nos render ao normativismo, atitude que tradicionalmente sustentou o seu estudo na escola. O normativismo toma a norma culta em si (desvinculada de suas funções próprias) e como um monumento pétreo (invariável e inflexível), apresentando-a ao estudante como uma camisa de força. 33 O normativismo, por não dimensionar adequadamente a variação linguística, condena como erro (em termos absolutos) todas as formas que não estão de acordo com aquilo que está prescrito dogmaticamente nos velhos manuais de gramática. Como essa codificação foi artificial na origem (o padrão brasileiro foi fixado aleatoriamente por intelectuais elitistas do século XIX – que ignoraram as peculiaridades do padrão real falado no Brasil – cf. Faraco 2008) e ficou congelada nas nossas gramáticas; e como o padrão real falado continuou mudando no tempo, esse artificialismo é cada vez maior entre nós, o que complica enormemente nossas relações com a norma culta (somos um país perdido em confusão nessa área) e, por consequência, seu ensino. Acreditamos que a escola, renovando criticamente seus modos de ensinar a norma culta, poderá contribuir significativamente para superarmos os nós que tradicionalmente embaraçam o seu domínio no Brasil e para reconstruirmos o imaginário nacional sobre a língua portuguesa que aqui se fala e se escreve. Quanto à realidade estrutural da linguagem, algumas considerações são, de início, necessárias. Lembremos, em primeiro lugar, que o ensino de português centrou-se historicamente no estudo gramatical (como herança da concepção pedagógica que moldou, direta ou indiretamente, nosso sistema educacional – a pedagogia da Ratio Studiorum dos jesuítas). Embora concordemos com todas as críticas que, nos últimos cinquenta anos, apontaram o equívoco dessa centralidade, acreditamos que os conteúdos gramaticais não devem desaparecer de todo da programação escolar. No entanto, entendemos que também aqui a escola ainda não encontrou um caminho pedagógico alternativo para lidar com a questão gramatical – um caminho que não ponha a gramática no centro do ensino, mas que não deixe de oferecer aos estudantes a oportunidade de refletir sobre a organização estrutural da linguagem verbal. Essa reflexão, por seu turno, não deve ser pensada como um objetivo em si, mas como um saber auxiliar ao amadurecimento das práticas orais e escritas da linguagem e, portanto, a ele integrado. Construir uma pedagogia da gramática é, fundamentalmente, desenvolver a capacidade de pensar cientificamente a linguagem. Pode-se fazer isso, por exemplo, abordando os temas gramaticais por meio de diferentes trajetos, combinando percursos mais intuitivos (que estimulam a capacidade de observação dos fenômenos da língua) e percursos mais expositivos (que estimulam a construção de um saber mais sistematizado daqueles mesmos fenômenos). 34 Outra coordenada importante diz respeito à necessidade de limitar o estudo de conteúdos gramaticais a um conjunto básico e com clara pertinência funcional. De novo, vale fazer referência a Quintiliano. Já há quase dois milênios dizia ele, com muita propriedade: “Nada do que diz respeito à gramática fará mal, salvo o que é inútil” (1, VII, 34). Assim, não é preciso abordar todos os temas gramaticais, nem perder tempo com aqueles detalhes e preciosismos que devem ficar para os especialistas. Nesse sentido, a pergunta crucial é: que informações nos têm sido, de fato, úteis na nossa própria experiência de falantes e observando a experiência de outros falantes? De um lado estão, certamente, os elementos gramaticais indispensáveis para se entender as referências que ocorrem nos verbetes do dicionário (considerando que, pela vida afora, recorremos a ele em nossas atividades de leitura e escrita). Aqui entra fundamentalmente a classificação das palavras, a qual se articula com uma visão geral da estrutura do léxico e de seus mecanismos de expansão. De outro lado estão os dados gramaticais que contribuem tanto para a compreensão de certas propriedades da norma culta (em especial fenômenos de concordância e regência), quanto para um trabalho mais consciente de construção e entendimento dos textos. Aqui entra a sintaxe das sentenças simples e complexas. O estudo de conteúdos gramaticais, pautado por critérios de relevância funcional e articulando intuição e sistematização, encontra um terceiro trajeto importante na discussão coletiva de textos dos alunos. Como vimos anteriormente, expor os alunos a seus textos (para que os vivenciem com um olhar externo) é atividade indispensável para eles desenvolverem a capacidade de monitorar a sua própria escrita (de assumir, ao escrever, dois papéis – o de autor e o de leitor). O eixo organizador dessa atividade é verificar (intuitivamente) se o texto está claro (considerando que ele se destina a um interlocutor) e que ajustes são eventualmente necessários para aperfeiçoá-lo (seja para deixá-lo mais claro, mais adequado aos interlocutores; seja para explorar alternativas expressivas, saídas do vasto estoque de possibilidades que a língua nos oferece; seja ainda para aperfeiçoar sua textualidade). O importante em toda essa dimensão do ensino de português é que os tópicos sejam desenvolvidos sempre subordinados ao domínio das atividades de fala e escrita, isto é, sejam sempre pensados por um critério de efetiva relevância funcional. Tanto a pedagogia da variação, quanto a da norma culta e a da gramática não podem – como temos enfatizado neste texto – ser pensadas em si e isoladamente dos objetivos maiores, quais 35 sejam o domínio da oralidade e da escrita. O trabalho com a variação, a norma culta e a gramática tem de ser, como já propunha Quintiliano, auxiliar, suplementar ao trabalho com a leitura, a escrita e a oralidade. 9. Formação dos professores Um projeto político-pedagógico assim concebido pressupõe, obviamente, um professor adequadamente formado para ele. Nessa formação, é indispensável um estudo das propriedades da linguagem verbal e de seus meios de expressão, bem como das consequências pedagógicas dessas propriedades, conforme tentamos mostrar neste texto. Mais importante, porém, é garantir que todo professor (e não apenas o professor de português, considerando que todas as atividades escolares são, no fundo, relacionadas à cultura letrada) esteja bem letrado. Dito de modo simples e direto: nenhuma escola será letradora se seus professores não forem eles bem letrados. Impossível desenvolver nos alunos as práticas sociais de leitura e escrita sem que os professores sejam leitores maduros e pessoas que dominem a escrita com autonomia. Como vimos neste texto, há um déficit significativo no letramento da população brasileira. Não é de admirar, portanto, que nossa escola tenha se mostrado, até agora, incapaz de letrar efetivamente a maioria de seus alunos, em especial os que vêm de segmentos sociais com pouca experiência letrada e que, em geral, estão na escola pública. O grande desafio educacional da sociedade brasileira é quebrar o ciclo deste atraso, investindo no letramento dos professores já em exercício, reestruturando a formação geral dos novos professores e repensando as práticas escolares. Referências Bibliográficas BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007. 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