Considerações sobre a escola e a mídia impressa

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Considerações sobre a escola e a mídia impressa
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Considerações sobre a escola e a mídia impressa
Carlos Alberto Faraco
1. A linguagem verbal
A linguagem verbal é marca constitutiva e, portanto, característica
básica da espécie humana. Humanidade e linguagem verbal estão, assim,
numa relação intrínseca de mútua dependência.
Outras espécies animais têm também suas linguagens. No entanto, o
estudo comparado da linguagem verbal e das linguagens dos outros animais
deixa evidente que há diferenças profundas entre elas. E não se trata apenas
de diferenças quantitativas, mas qualitativas: as linguagens dos outros
animais não se aproximam nem remotamente da linguagem verbal. Não
podem sequer ser consideradas como uma versão mais simples desta.
Para deixar isso claro, basta lembrar algumas das características da
linguagem verbal: ela permite a articulação de um número infinito de
enunciados (tecnicamente, dizemos que a linguagem verbal faz uso infinito
de meios finitos); seus signos – seja os da articulação sonora (fonemas,
sílabas), seja os da articulação morfossintática (morfemas, palavras,
locuções e frases) – são discretos, isto é, são decomponíveis e
recombináveis ao infinito (tecnicamente, dizemos,então, que a linguagem
verbal é dotada de dupla articulação e de recursividade).
A estas características, somam-se ainda as seguintes: seus signos não
estão limitados à situação imediata (a linguagem verbal permite aos seres
humanos falar do passado – dá-lhes, portanto, a condição da memória –;
permite-lhes falar do futuro e de todo o inexistente; permite-lhes falar do
que está na situação de comunicação e do que está dali ausente ou distante;
permite-lhes mentir e criar realidades imaginárias); seus signos são
semanticamente indeterminados (do que decorre seu caráter polissêmico e
plurívoco – os signos da linguagem verbal não têm uma significação una e
fixa, mas deslizam entre múltiplas possibilidades significativas
determinadas a cada nova situação de comunicação, respondendo assim à
abertura e imprevisibilidade da vida humana).
As linguagens dos outros animais, em contrapartida, têm um número
sempre finito de enunciados; seus signos são massivos (isto é, não são
decomponíveis e recombináveis; são desprovidos, portanto, da dupla
articulação e da recursividade; só o todo do enunciado significa); seus
signos respondem apenas à situação imediata e são semanticamente
determinados (e, por isso, carregam uma significação única e fixa, ou seja,
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são unívocos – ou, dito de forma mais técnica, há uma relação um a um
entre o significante e o significado).
Em razão disso é que se diz que enquanto o ser humano substitui a
imediação da experiência pela mediação dos signos, os outros animais
vivem exclusivamente na imediação da experiência.
Além disso, nós humanos somos seres de muitas linguagens.
Expressamo-nos também pelos gestos, pelas expressões faciais, pelas
posturas corporais, pelas imagens fixas e em movimento, pela música e
assim por diante.
Estas linguagens aparecem isoladamente (por exemplo, uma música,
um quadro, o logotipo de uma empresa, uma mímica) ou em combinação:
dançamos ao som de uma música; produzimos um filme publicitário que
combina imagens e música. E podemos combinar todas estas linguagens
com a linguagem verbal: musicamos um poema; compomos a letra para
uma música; combinamos a fala com gestos e expressões faciais; cantamos
(combinando o corpo com a música e a linguagem verbal); fazemos um
filme (nele combinamos imagens, música e linguagem verbal); e assim por
diante.
Usamos essas linguagens, combinadas ou não, tanto em situações
práticas do cotidiano, quanto em atividades artísticas. A mímica, por
exemplo, está nas nossas brincadeiras e na nossa comunicação face a face
(quando não podemos ou não queremos falar, mas precisamos ou queremos
passar uma mensagem para alguém próximo de nós); mas é também uma
das mais antigas atividades artísticas da humanidade e visível ainda hoje
nas nossas ruas e praças ou nos nossos teatros.
Combinamos imagens e palavras na publicidade impressa (outdoors,
revistas e jornais); mas, com a mesma combinação de linguagens, criamos
histórias em quadrinhos; fazemos publicidade na televisão combinando
imagens, música e palavras; e usamos a mesma combinação de linguagens
para criar um filme ou um desenho animado; usamos palavras escritas para
deixar um bilhete avisando que não viremos jantar; mas também para
compor poemas; utilizamos cores para identificar diferentes estações do
metrô e para ordenar o tráfego de veículos nas esquinas; mas também para
pintar quadros ou grafitar paredes; aproveitamos o movimento corporal e a
música para apresentar comercialmente uma nova coleção de roupas num
shopping; e igualmente para criar coreografias de balé clássico ou moderno
ou de break dancing.
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Quando usamos, então, o termo linguagem, estamos nos referindo a
um conjunto bastante complexo de formas de comunicação e significação.
Esse complexo conjunto inclui a linguagem verbal, mas também todas as
outras linguagens como a música, o desenho, a pintura, a linguagem de
sinais dos surdos, a escultura, a dança, os gráficos, os gestos e toda a
expressão corporal – essa pluralidade de linguagens que nos constituem
como seres simbólicos.
Nós humanos somos, pois, seres de muitas linguagens e vivemos não
propriamente numa biosfera, mas numa densa semiosfera. E nela a
linguagem verbal tem, por várias razões, um lugar especial. O filósofo
russo da linguagem Valentin N. Voloshinov destaca, dentre as razões que
conferem a ela esse lugar especial, as seguintes: a ubiquidade da linguagem
verbal na vida humana e o fato de toda a realidade da linguagem verbal se
dissolver por completo em sua função de ser signo (é, por isso, o meio mais
puro e genuíno da comunicação social e dá forma a toda e qualquer
manifestação simbólica humana).
Além disso, pela possibilidade de ser produzida sem nenhuma
intervenção de qualquer instrumento ou material extracorporal, a
linguagem verbal converteu-se no material sígnico por excelência da vida
da consciência, dando materialidade ao discurso interior.
Por fim, Voloshinov destaca o fato de que é com a linguagem verbal
que acompanhamos e comentamos todas as formas da criação da
consciência social (que ele chama de criação ideológica, no sentido
específico – como as definia o filósofo alemão Ernst Cassirer – das formas
simbólicas do espírito humano tais como as artes, as ciências, o direito, a
filosofia, a religião, etc.).
Partes destas formas se materializam na linguagem verbal (a
literatura, a filosofia e o direito, por exemplo) ou estão com ela combinadas
(o canto, o cinema e a religião, por exemplo). No entanto, a compreensão
de todas elas não ocorre sem a participação da linguagem verbal e
particularmente do discurso interior. Isso, diz Voloshinov (pág. 39), não
quer dizer que a linguagem verbal possa simplesmente substituir qualquer
outro signo. Uma obra musical ou uma imagem pictórica não podem
traduzir-se adequada e integralmente pela linguagem verbal; nem um ritual
religioso pode ser substituído em sua totalidade exclusivamente pela
linguagem verbal. Contudo, o processo de compreensão de todas estas
manifestações semióticas se apóia na linguagem verbal e se faz
acompanhar dela.
Embora a linguagem verbal seja ubíqua e, por isso mesmo, nos seja
profundamente familiar, nós ainda não conseguimos penetrar filosófica e
cientificamente em todos seus segredos e mistérios. Sabemos mais do
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universo e das manifestações da vida do que sabemos da estrutura e
funcionamento da linguagem verbal. Ela tem sido objeto de estudo
sistemático há mais de dois milênios e mesmo assim não conseguimos
ainda deslindar satisfatoriamente sua complexidade.
Igualmente, quase nada sabemos sobre como as crianças passam de
não falantes a falantes. Sabemos apenas que se trata de um processo
universal, isto é, ele acontece em todas as partes do mundo, com todas as
crianças (salvo aquelas afetadas por profundas deficiências mentais ou
acentuadas limitações auditivas) mais ou menos na mesma faixa etária (em
torno dos dois anos), de modo espontâneo (não é preciso ensinar a língua
da comunidade à criança, basta que ela esteja em contato com seus
falantes) e redunda num conhecimento pleno da estrutura da língua embora
sejam limitados e precários os dados que lhe são efetivamente oferecidos.
Essas características universais do processo têm alimentado a
hipótese (ainda sem suficiente desdobramento material, mas sem a
existência de outra que possa competir, de fato, com ela) de que a
linguagem verbal está geneticamente inscrita no cérebro humano, ou seja,
de que ela é uma propriedade da nossa espécie.
A hipótese (chamada de inatista ou genética) não afirma que as
línguas propriamente ditas estão inscritas geneticamente no cérebro, mas
sim a condição de todas as línguas – a chamada Gramática Universal,
entendida como um saber inato que define “língua humana possível”, saber
que, combinado com os dados da experiência, orienta cada criança em seu
processo de descobrir a estrutura da língua de sua comunidade e de se
tornar seu falante.
Também nada sabemos sobre a origem da linguagem verbal, ou seja,
quando e como ela começou a se manifestar na linha evolutiva da espécie
humana. Não sabemos igualmente se houve algum tipo de linguagem préhumana (um estágio linguístico/semiótico anterior à linguagem verbal
como a conhecemos hoje), nem sabemos se na origem havia uma única
manifestação da linguagem verbal (ou seja, uma única língua – conforme
sustenta a hipótese da monogênese) ou se já no início havia uma
pluralidade de manifestações (ou seja, muitas línguas – conforme a
hipótese da poligênese).
Qualquer que tenha sido, porém, a origem da linguagem verbal
(mistério que, pela falta absoluta de dados, talvez nunca consigamos
decifrar), é costume estipular que a humanidade fala (ou seja, dispõe da
linguagem verbal como a conhecemos hoje) há aproximadamente cem mil
anos (que, segundo se infere dos dados paleontológicos disponíveis, é mais
ou menos a idade da espécie Homo sapiens sapiens).
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2. A linguagem verbal escrita
O meio básico de expressão da linguagem verbal é a oralidade, ou
seja, a expressão articulada de sons produzidos pelo aparelho fonador. Com
o passar do tempo, a humanidade criou um segundo meio de expressão – a
escrita. Se comparado ao meio oral (que tem perto de cem mil anos), o
meio escrito é recentíssimo (foi desenvolvido apenas há aproximadamente
cinco mil anos). Por outro lado, enquanto todos os grupos humanos
conheceram no passado e conhecem no presente o meio oral de expressão,
apenas alguns grupos desenvolveram o meio escrito no passado e há ainda
hoje muitas línguas ágrafas.
Assim como o meio oral precedeu em milênios o meio escrito na
história da humanidade, ele também o precede na história do indivíduo: as
crianças passam a falar por volta dos dois anos (e, como dissemos antes, o
fazem espontaneamente, isto é, sem necessidade de ensino sistemático);
contudo, só começam a se apropriar da escrita por volta dos cinco anos (e
dependem, para isso, de ensino formal).
Há grandes diferenças entre os dois meios de expressão da
linguagem verbal (cf., para mais detalhes, Jahandarie 1999, cap. 8). O meio
oral, por exemplo, conta, na composição do processo de significação, com
o apoio gestual e facial e dispõe de uma ampla gama de recursos
prosódicos (a cadeia falada tem uma linha melódica que lhe é dada pela
entoação e pelo jogo da intensidade e duração com que se proferem os
segmentos sonoros). Tudo isso falta ao meio escrito. Ele é, de certa forma,
um meio parco de expressão.
Para compensar estas enormes faltas, criaram-se alguns recursos
gráficos (como a pontuação ou a mudança de fonte). Estes, no entanto, por
mais indispensáveis e úteis que sejam, não conseguem jamais alcançar o
peso e as nuanças significativas da prosódia ou ainda do apoio gestual e
facial que acompanham a fala.
Um dos grandes desafios de quem aprende a escrever é, então,
adequar sua expressão a este meio parco de recursos. É ser capaz de ir da
abundância de recursos da oralidade para a pouquidade de recursos da
escrita, desenvolvendo a capacidade de explorar as características do meio
escrito para fazê-lo significar adequadamente, de modo a compensar suas
lacunas.
Outro dado importante a lembrar é o fato de que o meio oral se
realiza fundamentalmente na comunicação face a face. O interlocutor,
portanto, está presente e isso dá à fala uma dinâmica bastante peculiar: ela
pode se apoiar extensamente em informações contextuais (e, com isso,
pode dispensar um elevado grau de explicitação textual) e não precisa ser
detalhadamente planejada (vai definindo seu rumo à medida que se
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processa e em consonância com as reações dos interlocutores). A temática
da conversa pode, em razão disso tudo, ser difusa e coesivamente aberta.
A comunicação pelo meio escrito, por sua vez, não conta com a
presença física do interlocutor. E isso tem profundas implicações para o ato
de escrever: é preciso, por exemplo, preencher essa ausência por uma
imagem do interlocutor (escreve-se para alguém ler e é preciso, então,
definir quem será o interlocutor – imagem que pode ter como referente um
indivíduo bem concreto, como nunca carta pessoal, ou uma determinada
categoria de indivíduos, como, por exemplo, o público leitor de um jornal).
Por outro lado, pelo fato de não ser possível apelar extensamente ao
contexto imediato, é preciso que o escrito alcance alto grau de explicitação
textual. E, como não se pode contar com a presença física do interlocutor, é
preciso prever suas possíveis reações e a elas responder ou adequar o texto
antecipadamente. O ato de escrever exige, então, cuidadoso planejamento
prévio; sua temática não pode ser difusa, mas deve ser centrada,
sequencialmente bem trabalhada e apoiada em recursos coesivos
estritamente controlados. Falhas graves em qualquer desses aspectos
comprometem a compreensão e, por consequência, a interlocução.
Um dos grandes desafios de quem começa a trabalhar com a escrita
é, então, aprender a ajustar sua expressão à ausência física do interlocutor e
à impossibilidade de contar com as referências contextuais imediatas. No
primeiro caso, é preciso tornar a imagem do interlocutor elemento
constitutivo do ato de escrever (em outras palavras, quem escreve deve
exercer dois papéis – deve ser o autor e, ao mesmo tempo, deve colocar-se
na posição de seu provável leitor, monitorando assim o que escreve). No
segundo, é preciso controlar a textualização de modo a garantir que a
significação se realize mesmo na ausência do apoio contextual imediato.
Apesar das limitações e das exigências estritas que caracterizam o
meio escrito, este tem sobre o meio oral a vantagem da permanência. A fala
é efêmera e evanescente (os romanos tinham já um dito que resumia bem
este caráter fugaz, volátil da fala: verba volant, scripta manent, ou seja, as
palavras (faladas) voam, os escritos permanecem). Já o meio escrito dura
enquanto durar seu suporte. Assim é que podemos ler textos antiquíssimos,
embora muito pouca coisa tenha sobrado do que foi dito oralmente há
poucos instantes.
Essa propriedade de permanência do meio escrito é responsável pela
importância que ele adquiriu na história humana. Com a escrita, a
humanidade pôde transcender os limites do tempo, do espaço, da
comunicação face a face e da cultura apenas oral e local. Tornou-se
possível também o registro do conhecimento e, com isso, ampliá-lo
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exponencialmente. Não é à toa, portanto, que se diz ter sido a invenção da
escrita a maior realização tecnológica da humanidade.
É verdade que o século 20 trouxe a possibilidade técnica de se gravar
o falado, de estancar seu caráter evanescente. No entanto, a maior parte dos
eventos apenas falados continua sem registro, até mesmo por razões de
ordem prática: são incontáveis e, salvo em casos muito específicos, é
absolutamente irrelevante gravá-los.
O século 20 trouxe também várias possibilidades técnicas de
transcender a milenar limitação do meio oral à interação face a face. A
comunicação oral adquiriu a possibilidade de ser mediada
tecnologicamente por meio do telefone, do rádio, da televisão, do
computador. Romperam-se assim os limites do espaço próximo e se
amplificou enormemente o alcance do meio oral. Em alguns casos, como o
da televisão, por exemplo, o número de destinatários alcançáveis
simultaneamente por uma só fonte enunciativa pode facilmente chegar à
cifra de muitos e muitos milhões.
Ganha-se incalculavelmente em extensão, mas perde-se a
possibilidade da alternância contígua de locutores e da réplica imediata.
Isso cria, evidentemente, outras condições para a comunicação oral humana
que vê amplificada, em grandezas quase incalculáveis, o que, de certa
forma, já estava presente na comunicação face a face institucionalizada
como na escola, na igreja ou no tribunal – lugares em que a fonte da
enunciação se dirige a muitos simultaneamente e a eventual alternância de
locutores e a possibilidade de réplica costumam ser rigidamente
controladas por regras explícitas ou implícitas. Mas, apesar disso, podem
ainda eventualmente ocorrer, possibilidade que desaparece (salvo em
simulacros) nos meios de comunicação de massa.
O meio escrito, por ser tradicionalmente destinado à comunicação à
distância, só admitia a alternância não contígua de locutores e a réplica
remota. Isso, de certa forma, continua acontecendo, embora o
desenvolvimento da comunicação mediada por computador tenha trazido a
possibilidade da sincronia, ou seja, da troca de mensagens escritas on-line,
o que acarreta também novas condições para a comunicação pelo meio
escrito.
Destaque-se, nesse sentido, que o desenvolvimento da internet e sua
difusão social (calcula-se hoje que o Brasil conta com 75 milhões de
internautas – cf. O Estado de S. Paulo, 10/01/2010. p. B12) têm expandido
enormemente o uso da escrita em e-mails, blogs e sites. Pode-se afirmar
que nunca se escreveu tanto e nunca antes tanta gente se envolveu
cotidianamente com a escrita em proporções semelhantes.
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Essa expansão tem, claro, acarretado mudanças significativas no
modo de realizar as práticas sociais de escrita: relativizam-se, em muitos
espaços do meio eletrônico, várias das tradições discursivas historicamente
constituídas na era do domínio soberano do livro e das outras mídias
impressas. Os textos saem quase no ritmo da fala (estão se constituindo
outros gêneros e outros padrões de textualidade), predominam as
variedades linguísticas pouco monitoradas e até mesmo a forma de grafar
as palavras passa por um processo de estenografização. Isso tudo não
significa que as tradições discursivas historicamente constituídas serão
simplesmente abandonadas. Elas continuarão valendo para determinadas
situações, influenciarão as novas tradições que estão em construção, assim
como receberão influências destas novas tradições.
3. Breve história do meio escrito de expressão
A criação do meio escrito de expressão da linguagem verbal se deu,
como dissemos anteriormente, há aproximadamente cinco mil anos na
Mesopotâmia. A escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios, é o mais
antigo sistema de escrita conhecido até hoje (cf., para mais detalhes,
Higounet 2003). Os estudiosos destacam que o surgimento da escrita
acompanhou o surgimento de sociedades humanas mais complexas, com
atividades produtivas e comerciais extensivas e com poder estatal
estruturado.
O aumento da complexidade da vida econômica e social trouxe
consigo a necessidade do desenvolvimento de sistemas de registros gráficos
de contabilidade e administração. A criação do meio escrito de expressão
da linguagem verbal respondeu basicamente a esta necessidade.
A escrita é fundamentalmente um desenho e, nesse sentido, dá
continuidade à antiga experiência humana com o registro figurativo do
mundo que observava (os animais desenhados nas paredes da caverna de
Altamira, na Espanha, por exemplo) ou das ações que aí ocorriam (as cenas
de caça desenhadas nas paredes da caverna de Lascaux, na França, por
exemplo).
Progressivamente (e sob determinadas demandas práticas), a
humanidade percebeu que podia também desenhar a linguagem verbal, ou
seja, transpô-la para uma superfície e fixar seu caráter efêmero e
evanescente.
Nesse processo, variou o elemento verbal tomado como referência.
Em alguns contextos, criaram-se signos gráficos que representavam
palavras. É o caso da escrita inicial dos sumérios (desenvolvida por volta
do quarto milênio antes de Cristo), dos egípcios (terceiro milênio antes de
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Cristo) e dos chineses (segundo milênio antes de Cristo) – a única das
escritas antigas ainda em uso.
Em outros contextos, criaram-se sistemas silábicos em que cada
signo representa uma sílaba, como na escrita da língua da ilha de Chipre
anterior à ocupação grega (séculos V e IV a. C.), na escrita da corte dos reis
persas aquemênidas em Persépolis (séculos VI a IV a. C.) e na escrita
japonesa atual (desenvolvida no século IV d. C.).
Os signos dos sistemas de base logográfica foram, de início,
verdadeiros pictogramas, ou seja, tinham semelhança com o objeto
representado. Com o passar do tempo, os pictogramas foram perdendo esse
caráter figurativo e se transformaram em logogramas, signos abstratos que
passaram a evocar a palavra em si sem a mediação da imagem do objeto, o
que garantiu maior amplitude e funcionalidade ao ato de escrever (já que
nem todas as palavras fazem referência a objetos visíveis e figuráveis).
Por outro lado, os sistemas logográficos, a partir de logogramas
representativos de palavras monossilábicas, desenvolveram, com o passar
do tempo e por um processo de abstração, signos de caráter puramente
silábico, ou seja – como destaca o linguista suíço Ferdinand de Saussure
em seu Curso de linguística geral (p. 36) – certos logogramas, distanciados
de seu valor inicial, terminam por representar unidades composicionais da
articulação sonora em si.
Para entender o processo de abstração subjacente a essa sutil mas
profunda transformação, bastaria imaginar que, se a escrita do português
fosse logográfica, haveria um logograma para a palavra pé. Com o tempo,
este logograma passaria a ser usado também para representar a sílaba /pé/
em qualquer palavra como, por exemplo, a sílaba inicial de pele, pedra,
pérola. Ou seja, o signo, além de sua função logográfica, teria adquirido a
propriedade de representar uma sequência sonora silábica.
De novo, essa mudança aumentou a funcionalidade do sistema de
escrita pela sensível diminuição do estoque de signos necessários: uma
escrita silábica precisa de muitíssimo menos signos do que uma escrita
logográfica.
Por esse processo, os sistemas logográficos se tornaram mistos, com
sua base logográfica suplementada por silabários. A partir destas
representações silábicas se chegou, posteriormente, à escrita alfabética,
cujo elemento verbal de referência não são as palavras ou as sílabas, mas as
consoantes e as vogais.
Embora as unidades verbais tomadas como referência para a
construção da escrita alfabética sejam consoantes e vogais, é preciso deixar
claro que essa escrita nunca é fonética no sentido estrito do termo, isto é, as
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letras não representam diretamente os sons da fala, mas sim as unidades
funcionais da língua (chamadas tecnicamente de fonemas). É, nesse
sentido, uma escrita de base fonológica, ou seja, toma como referência uma
representação abstrata da articulação sonora da língua e não propriamente
sua pronúncia. Considerando que a pronúncia varia muito entre regiões,
grupos sociais, estilos de fala e mesmo na linha do tempo, uma escrita
estritamente fonética seria de pouco alcance e baixa funcionalidade.
A progressiva passagem de sistemas logográficos para sistemas
silábicos e alfabéticos é também, como já observamos acima, uma
progressão de economia de meios não desprezível. Assim, se um sistema
logográfico precisa de muitos milhares de signos, um sistema silábico não
precisa mais do que um estoque de cinquenta ou sessenta deles e um
sistema alfabético funciona perfeitamente com não mais do que duas a três
dezenas de signos. Essa escala de economia de meios dá, obviamente,
grande versatilidade e funcionalidade ao sistema alfabético, além de
favorecer um domínio mais rápido da notação escrita.
O princípio da escrita alfabética já é visível na escrita ugarítica. Os
escribas de Ugarit, importante centro urbano portuário na costa do
Mediterrâneo oriental (onde hoje está o litoral da Síria), adaptaram, por
volta do século XV a. C., os signos da escrita cuneiforme dos sumérios
para representar não palavras ou sílabas, mas basicamente consoantes.
Quase ao mesmo tempo, os fenícios desenvolveram também uma
escrita alfabética basicamente consonântica e cujos signos (as letras)
serviram de fundamento para o alfabeto hebraico e também para o alfabeto
grego e, por meio deste, para o alfabeto latino – o mais amplamente usado
no mundo moderno.
Os gregos (por volta do ano 1.000 a. C.) adotaram e adaptaram as
letras fenícias, acrescentando-lhes símbolos para a notação integral das
vogais. Este alfabeto, com vinte e três letras, serviu de modelo para outros
alfabetos europeus (o dos godos e dos eslavos, por exemplo), em especial
para o alfabeto latino que começa a ser delineado por volta do século VII
ou VI a. C. e alcança seu formato clássico por volta do século I a. C.
A diversidade de formas de escrita, observáveis na história e na
atualidade, são exemplo tanto da engenhosidade humana, quanto da vasta
riqueza cultural da humanidade.
4. A escrita e a cultura letrada
A criação da escrita teve duradouros impactos na cultura humana. Se,
de início, o meio escrito teve funções essencialmente práticas, logo passou
a ser usado no registro da poesia, das crenças, da memória coletiva, das leis
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sociais e do conhecimento em geral. Paralelamente à cultura oral, foi,
então, tomando forma a cultura letrada que transformou profundamente a
vida humana.
A inscrição das leis foi dando a base para a organização de
sociedades cada vez mais complexas; a fixação das crenças acabou por
estruturar religiões que espalharam suas visões de mundo e preceitos de
vida por grandes espaços geográficos; a escrita do imaginário favoreceu a
transmigração intercultural de símbolos, valores e arquétipos, resultando
numa explosiva espiral criativa; a escrita amplificou enormemente o
potencial de memória da humanidade; e, por fim, o registro do
conhecimento permitiu o seu crescimento exponencial à medida que
facilitou o desenvolvimento de modos de organização intelectual mais
sistemáticos e monitorados e, portanto, de práticas cognitivas mais
abstratas e formalizadas que levaram, por exemplo, ao desenvolvimento da
matemática, das ciências e das tecnologias.
Quando falamos, então, de cultura letrada estamos nos referindo não
apenas aos sistemas de transcrição gráfica da linguagem verbal (a escrita
não se esgota na notação), mas, fundamentalmente, de uma vasta e
complexa rede de práticas cognitivas, saberes e práticas socioculturais que
a criação destes sistemas tornou possível.
Mencionamos anteriormente que o meio de expressão escrita,
diferentemente do meio de expressão oral, exige, para seu domínio,
atividades de ensino sistemático. Dessa forma, a instituição escolar, em
qualquer dos seus formatos históricos, é fruto da criação da escrita e existe
milenarmente para dar acesso ao código gráfico e, principalmente, para
transmitir a cultura letrada. Podemos dizer, então, que escrita, escola e
cultura letrada estão historicamente em relação simbiótica.
A prática continuada da escrita foi motivando o desenvolvimento e a
consolidação de tradições discursivas que vão desde as convenções gráficas
(corporificadas nos diferentes desenhos dos logogramas, dos silabogramas
e das letras, e na composição da página) até a formatação dos modos de
dizer, materializados estes em diferentes gêneros e tipos de textos e no
privilegiamento de determinados elementos lexicais e morfossintáticos da
língua considerados adequados para a expressão escrita, ou seja, a própria
prática da escrita foi delimitando as variedades da língua passíveis de
ocorrerem nela (realidade linguística a que damos hoje o nome de norma
culta).
Aprender as práticas escritas exige um mergulhar em todas essas
tradições discursivas. Trata-se de uma complexa experiência cognitiva que
não começa nem termina com o domínio do alfabeto. A alfabetização é
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apenas o momento específico de aprendizado do sistema de notações
gráficas.
E dizemos que não começa nem termina com a alfabetização
porque, como mostrou detalhadamente o psicólogo russo Lev Vigotski, a
criança, em seus primeiros anos de vida e anteriormente ao aprendizado do
alfabeto, deve vivenciar todo um conjunto de experiências simbólicocognitivas (conjunto a que ele deu o nome de pré-história da escrita)
materializadas principalmente nos jogos e brinquedos infantis e nos
rabiscos e desenhos.
Segundo Vigotski (p. 141), os gestos de representação simbólica
presentes em cada uma dessas atividades devem ser vistos como momentos
diferentes de um processo essencialmente unificado de desenvolvimento
em direção à linguagem escrita. Haverá descontinuidades, saltos,
retrocessos e avanços, mas subjacente a todas estas atividades semióticas
há um mesmo funcionamento simbólico a caracterizar sua unidade e
continuidade.
Por outro lado, a criança deve também passar pela percepção das
funções sociais da escrita alcançada, em especial, pela observação do uso
da escrita pelos adultos, pela experiência da leitura que os adultos fazem
para ela, pelo manuseio de livros e revistas, pelos jogos com as letras e
números, etc.
As experiências simbólico-cognitivas do desenho e do brinquedo e o
contato com a língua escrita mediado pelos adultos são fatores constitutivos
do processo de letramento da criança e a preparam para o trabalho escolar
sistemático com o alfabeto e a linguagem verbal escrita.
A eventual falta destas experiências da pré-história da escrita nos
anos anteriores à escolarização – o que é comum na vida das crianças
pertencentes a segmentos sociais pouco letrados (com pais analfabetos ou
apenas precariamente alfabetizados e escolarizados) – afeta negativamente
o processo de alfabetização.
Nosso sistema escolar público tem vivido agudamente este problema
que se manifesta nas grandes dificuldades que enfrenta para alfabetizar as
crianças. Nossa escola tem ainda de descobrir meios para preencher, antes e
durante a iniciação ao alfabeto, essa lacuna de letramento. Temos de
reconhecer que ainda nos falta uma pedagogia da alfabetização de crianças
oriundas de meio social pouco letrado adequadamente inserida numa
pedagogia do letramento.
Dominado o alfabeto (desvendada a lógica da notação gráfica), o
processo deve, então, continuar com novas experiências sociocognitivas de
letramento que passam pela fixação das convenções gráficas (a ocupação
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da página, a grafia das palavras, a acentuação e a pontuação), mas
principalmente pela a familiarização com os gêneros e tipos de textos de
ampla circulação social (sua leitura e produção), o que inclui o domínio das
características da norma culta.
Neste ponto, é interessante lembrar que a própria conquista do
alfabeto e da lógica da escrita alfabética pela criança passa por estágios de
desenvolvimento, como mostrou, na década de 1920, o psicólogo russo
Alexander Luria e, posteriormente, dentro do quadro da psicologia
piagetiana, a psicóloga argentina Emilia Ferreiro em seu trabalho conjunto
com a pedagoga espanhola Ana Teberosky.
Estes estudos mostram a criança, diante da escrita, como um ser
cognitivo ativo, levantando e experimentando hipóteses, fazendo invenções
e tentativas num processo que, dinamicamente inter-relacionado com a
mediação dos adultos, resulta no desvendamento da lógica da escrita
alfabética.
Luria (p. 188) considerava indispensável que os educadores que
trabalham com crianças de idade escolar estejam familiarizados com esta
ação cognitiva ativa da criança para poderem exercer adequadamente seu
papel de mediadores do conhecimento e para não caírem no equívoco de
reduzir a criança a um ser cognitivo passivo. É nesse sentido que Vigotski
(p. 144) vai afirmar que cabe ao educador fazer com que o domínio da
escrita seja desenvolvimento organizado, mais do que aprendizado.
A observação de toda essa rede de processos cognitivos envolvidos
no domínio da escrita mostra como este meio de expressão verbal foi
progressivamente se tornando uma elaborada e complexa arte, revestindose de sofisticados procedimentos técnicos e sendo recoberta por
expectativas socioculturais específicas quanto a seu modo de realização e
de uma densa teia de valores sociais.
Com isso tudo, o meio escrito de expressão adquiriu também relativa
autonomia frente ao meio de expressão oral. Longe de ser mera transcrição
da fala ou mero instrumento auxiliar, secundário, suplementar da expressão
oral, a escrita é, na verdade, um modo específico de verbalizar, é uma
forma de expressão da linguagem verbal com características e dinâmicas
próprias.
Nesse sentido, dominar o meio oral não é condição suficiente para
dominar o meio escrito. Embora inter-relacionados por serem meios de
expressão da mesma linguagem verbal, cada um tem seu próprio modo de
existir. São, no fundo, irredutíveis um ao outro e, por isso mesmo,
demandam, para seu domínio, experiências e trajetórias cognitivas
específicas.
14
A importância que a escrita foi adquirindo na vida das sociedades
humanas e o prestígio daí resultante puseram o texto escrito – em especial
os textos canônicos (religiosos ou artísticos) da cultura – no centro das
preocupações intelectuais. O cuidado em garantir o registro e a transmissão
sem alterações do texto religioso (como na cultura hindu) ou do texto
literário (como na cultura grega) redundou no desenvolvimento de ramos
do conhecimento dedicados especificamente ao estudo do texto escrito.
Dentre estes, está a filologia criada pelos eruditos agregados à
Biblioteca de Alexandria, a maior biblioteca do mundo antigo, fundada no
século III a. C. Nela se reuniu uma grande coleção de manuscritos gregos
antigos com textos de poetas, dramaturgos, filósofos e historiadores. Seu
corpo de estudiosos se dedicou não só a catalogar todo esse precioso
acervo, mas principalmente a estabelecer, a partir do estudo criterioso dos
fragmentos disponíveis, o texto que se poderia considerar como definitivo
da obra de cada um dos autores gregos clássicos. Por razões óbvias, os
grandes poemas de Homero (Ilíada e Odisséia), escritos provavelmente no
século VIII a. C., receberam particular atenção dos estudiosos alexandrinos.
Esse criterioso trabalho se fazia necessário porque os manuscritos do
mesmo texto variavam entre si ou estavam danificados e rasurados; tinham
lacunas, trechos obscuros, acréscimos ou cortes indevidos. Dedicando-se a
fixar uma forma aceitável dos textos clássicos, os sábios alexandrinos
preservaram e nos legaram todo um conjunto de obras fundamentais da
cultura humana.
Para realizar esse trabalho inestimável, os sábios alexandrinos
tiveram de criar os métodos que, mesmo aperfeiçoados posteriormente,
constituem ainda hoje a base de qualquer atividade de edição crítica dos
textos reconhecidos como clássicos da cultura – textos literários,
filosóficos, religiosos.
O estudo criterioso dos textos levou os filólogos alexandrinos a
descrever e comentar a língua que ali encontravam: aspectos de métrica,
ortografia e pronúncia; a distribuição das palavras por classes (nomes,
adjetivos, pronomes, verbos, advérbios, conjunções, etc.); a estrutura
sintática da oração simples (sujeito, predicado, complementos, adjuntos) e
dos períodos (coordenação e subordinação); o uso das figuras de linguagem
e assim por diante.
Com o tempo, esses estudos passaram a constituir um ramo
autônomo do conhecimento: a gramática. Costuma-se atribuir a um desses
filólogos alexandrinos, Dionísio Trácio, do século II a.C., a autoria da
primeira gramática conhecida. Ao consolidar descrições de aspectos da
língua grega, sua obra foi tomada como modelo dos estudos gramaticais
posteriores.
15
Dionísio Trácio conceituava a gramática como “o conhecimento
empírico do comumente dito nas obras dos poetas e prosadores” (cf.
Chapanski, 2003), ou seja, o estudo da língua conforme usada comumente
pelos escritores em seus textos. Enquanto a filologia estudava e comentava
os textos dos grandes escritores (fixando-lhes a melhor forma), a gramática
se concentrava no estudo das características da língua correntes na sua
escrita.
O objeto do gramático era, portanto, a língua escrita exemplar, ou
seja, a língua dos grandes escritores. E o gramático perseguia dois
objetivos: descrever essa língua e, ao fazê-lo, estabelecer um modelo, um
padrão a ser seguido por todos os que escrevem. Por isso, a gramática já de
início se tornou matéria da escola – instituição que, em princípio, teria
como uma de suas tarefas ensinar as pessoas a escrever bem.
5. Escrita e escola
À relação simbiótica que mencionamos anteriormente entre escrita,
cultura letrada e escola agregaram-se, portanto, o estudo do texto e o saber
gramatical, que passaram a ser tidos como os fundamentos da educação
linguística.
É precisamente essa teia de relações que vamos encontrar definida na
obra pedagógica clássica da cultura greco-romana, a Institutio Oratoria,
escrita por Quintiliano em 96 d. C.1
Nesse trabalho, o objetivo principal do autor é dar diretrizes para o
ensino de retórica, ou seja, para a formação do homem que fala bem em
público. A educação formal em Roma era voltada exclusivamente para os
jovens aristocratas do sexo masculino e seu ideal era formar bons oradores,
ou seja, homens capazes de defender teses frente aos juízes e de discursar
no Fórum ou no Senado com excelência e beleza.
O centro da educação romana estava, portanto, na educação
linguística. E Quintiliano a dividia em três momentos: a) iniciava-se pela
alfabetização (ou seja, pelo domínio do código alfabético); b) passava pelas
aulas do grammaticus (o professor responsável pelo exercício da leitura e
do comentário dos textos dos grandes escritores – encarados como os
modelos a serem criativamente seguidos pelos aprendizes – e também pelo
ensino de gramática, ou seja, das propriedades da língua escrita); c) e
terminava com o professor de retórica com quem, então, se trabalhava a
aquisição da competência oratória.
1
O livro de Quintiliano pode ser lido em tradução para o inglês no endereço
http://honeyl.public.iastate.edu/quintilian/ (acessado em 20/12/2009). Os capítulos IV a IX do livro 1
podem ser lidos em português em PEREIRA 2005.
16
Neste ponto, é importante destacar que a prática da oratória como
desenvolvida na cultura greco-romana é um elemento típico da cultura
letrada. Embora seja uma prática oral, seu desenvolvimento histórico e suas
características refletem claramente as competências que a escrita deu à
humanidade.
A articulação e a apresentação oral de um longo argumento decorrem
dos modos de organização intelectual mais sistemáticos e monitorados e,
portanto, das práticas cognitivas mais abstratas e formalizadas que a escrita
viabilizou. Nesse sentido, um discurso oral tem, no seu substrato, o modo
de articulação do texto escrito. Em outras palavras, a escrita teve efeitos
significativos até mesmo sobre a oralidade. Daí estarem imbricados, na
pedagogia de Quintiliano, o trabalho com a língua escrita e o
desenvolvimento das práticas oratórias.
A educação para a escrita foi, na antiguidade, sempre para poucos
porque, durante milênios, a escrita foi prática socialmente muito restrita.
Esteve vinculada apenas aos núcleos do poder econômico, político e
religioso. Só no último milênio e meio é que este perfil começou a ser
progressivamente alterado. E alguns acontecimentos desse percurso
merecem especial destaque.
Primeiro, o desenvolvimento do design do códice – o objeto
antecessor imediato do livro como o conhecemos hoje. Por volta do século
V d. C., o códice já havia substituído na Europa os antigos rolos de papiro.
O segundo acontecimento fundamental foi o desenvolvimento da
tecnologia do papel; e, finalmente, a invenção da prensa de tipos móveis
por Gutenberg no século XV.
O códice introduziu inúmeras vantagens sobre os antigos rolos, em
especial a possibilidade de encadernar um texto longo integralmente num
só volume, com todas as decorrentes facilidades para seu manuseio. A
tecnologia do papel, por sua vez, permitiu diminuir sensivelmente o
tamanho dos volumes. E a prensa de tipos móveis viabilizou a produção do
livro em grande escala. Com isso, foi possível amplificar o alcance social
da língua escrita – multiplicou-se a prática social da escrita, ampliou-se o
público leitor e a prática social da leitura individual e silenciosa e iniciouse a construção de grandes bibliotecas públicas.
Podemos, então, dizer que desde o século XV a humanidade
ingressou na era do livro. E este se manteve por 500 anos como o suporte
central, soberano e quase exclusivo do registro e da circulação da cultura
letrada.
Todo esse processo histórico que acabamos de resumir foi
responsável, portanto, pelo despertar da necessidade de se disseminar o
17
domínio da leitura e da escrita. O século XVI vai, então, conhecer a
primeira grande onda moderna de alfabetização de expressivos segmentos
sociais – a tecnologia permitia a multiplicação de livros, os ideais
humanistas do Renascimento estimulavam o saber letrado e a Reforma
religiosa conduzida por Lutero, ao formular o princípio do sacerdócio
universal de todos os crentes, desencadeava a necessidade de todos terem
acesso ao texto bíblico.
Para alcançar este último objetivo, dois pré-requisitos se impunham:
era preciso traduzir o texto bíblico para as línguas modernas e, ao mesmo
tempo, alfabetizar o maior número possível de pessoas. A difusão do
pensamento religioso reformado foi acompanhada de uma intensa atividade
de tradução da Bíblia (iniciada pelo próprio Lutero, que fez a tradução para
o alemão) e de um forte movimento pedagógico alfabetizador.
Abria-se assim a modernidade. De um lado, as línguas vernáculas, ou
seja, as línguas vivas modernas, começavam a ocupar o centro da vida
cultural escrita, progressivamente substituindo o latim. E, de outro, a
humanidade conhecia seu primeiro grande ciclo de expansão no número de
alfabetizados e leitores, em especial nos países europeus que adotaram os
princípios da Reforma.
No início do século XVII, em 1627, foi publicado o primeiro tratado
pedagógico moderno, a Didática Magna de Jan Comenius (intelectual
ligado à tradição religiosa reformada).2 Pode-se dizer que sua obra é a
síntese pedagógica desse novo tempo. Nela, o autor defende, por exemplo,
que toda a juventude, de um e de outro sexo, deve ser enviada às escolas
públicas, ou seja, deve-se ensinar tudo a todos (e não só aos jovens
aristocratas do sexo masculino). Por isso mesmo, a educação fundamental
deve ser primordialmente na língua materna e não em latim.
Com esta última proposta, Comenius reflete todo o processo
renascentista de valorização das línguas modernas e rompe com a tradição
pedagógica medieval que tinha o latim como língua de ensino e como
objeto central da educação linguística.
Esse ideal pedagógico medieval sobrevivia na pedagogia dos jesuítas
conforme consubstanciada no documento Ratio Studiorum, que, publicado
em 1599, orientou até o século XVIII a educação nos países católicos,
conduzida basicamente por aquela ordem religiosa.3
2
Há uma edição recente do livro de Comenius em português (São Paulo, Martins Fontes, 2006). O texto
em português é também acessível no endereço eletrônico
http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/didaticamagna.pdf (consultado em 20/12/2009).
3
O texto da Ratio Studiorum pode ser lido em português no livro Código pedagógico dos jesuítas,
organizado por Margarida Miranda (Lisboa: Esfera do Caos, 2009). Há tradução para o inglês disponínel
no endereço eletrônico
http://www.bc.edu/libraries/collections/collinfo/digitalcollections/ratio/ratio1599.pdf (acessado em
20/12/2009)
18
Nesse sentido (e também pelo fato de a Ratio Studiorum limitar a
educação aos jovens do sexo masculino), o pensamento de Comenius
contrasta fortemente com o que postulavam os jesuítas. No fundo, mais
uma manifestação do embate entre o moderno e o arcaico.
Comenius se distancia também da pedagogia medieval e dos jesuítas
ao defender que não se deve aprender a língua a partir da gramática, mas a
partir dos autores apropriados. Ou seja, a gramática deve ser apenas
auxiliar (como era, aliás, em Quintiliano). O núcleo da educação linguística
deve ser, primeiro, o contato direto e permanente com os textos dos bons
autores e, segundo, a prática contínua com vistas a desenvolver as
competências de fala, leitura e escrita.
Foi durante o período medieval que a gramática pulou da posição de
saber auxiliar para a de saber central. Como sabemos, a língua da cultura
letrada na Europa ocidental foi o latim mesmo depois do fim do Império
Romano e assim permaneceu durante toda a Idade Média. No entanto,
quanto mais distante das fontes vivas, mais complexo o seu domínio.
O latim, nestas circunstâncias, era, de fato, uma língua segunda (não
era mais a língua materna de ninguém) e artificial (não dispunha mais de
referências vivas). Para se aprender tal língua, era preciso conhecer prévia e
detalhadamente sua estrutura gramatical, o que só se alcançava (em
decorrência da falta de modelos vivos) pelo seu estudo sistemático e
altamente monitorado. Não é de admirar, portanto, que o ensino da
gramática tenha passado a ocupar o lugar central na educação linguística
medieval e que os jesuítas, dentro do espírito conservador da
Contrarreforma, o tenham mantido na mesma posição.
Ainda hoje este antigo embate – ou seja, saber que lugar deve ocupar
o ensino da gramática na educação linguística – está presente nas
discussões sobre o ensino de língua materna. Ainda hoje o arcaico e o
moderno se digladiam na arena das ideias pedagógicas.
Uma segunda grande onda alfabetizadora veio a ocorrer de meados
do século XIX em diante. Agora, o móvel eram, principalmente, as
demandas da produção industrial que, à medida que crescia e se sofisticava
tecnologicamente, ia exigindo trabalhadores cada vez mais qualificados.
Soma-se a essa demanda econômica o desenvolvimento do
pensamento político saído das revoluções burguesas do século XVII
(inglesa) e XVIII (americana e francesa). Esta nova maneira de pensar a
sociedade e o poder político colocou, como justificativa do exercício do
poder político, a soberania do povo no lugar do chamado direito divino dos
reis. E transformou os indivíduos de súditos de um monarca em cidadãos
com igualdade de direitos políticos. Ter acesso à educação passou a ser um
19
requisito básico para o exercício pleno da cidadania e democratizá-la
passou a ser meta das sociedades industriais avançadas.
Como decorrência desses fatores econômicos e políticos, os países
europeus industrializados e os Estado Unidos já haviam universalizado, no
fim do século XIX, o ensino fundamental de quatro séries e vieram a
universalizar o de oito séries na metade do século XX e o ensino médio por
volta da metade da década de 1950.
6. A situação brasileira
Esta onda alfabetizadora e educacional não alcançou, porém, os
países periféricos. Ainda hoje o Brasil, por exemplo, se ressente desse
atraso. Só muito lentamente foi diminuindo sua população analfabeta. O
número de analfabetos no país é ainda relativamente elevado – as
estatísticas dizem que cerca de 12 % da população adulta são analfabetos.
Pior, no entanto, é saber que, conforme dados publicados pelo IBGE
no ano de 2009 (cf. Folha de S. Paulo, 14/07/2009), 12% das crianças
brasileiras de 8 e 9 anos são analfabetas – índice que chega a 23% no
Nordeste e a absurdos 38% no estado do Maranhão.4 Não só não temos
conseguido eliminar o analfabetismo adulto, como continuamos a produzir
novas gerações de analfabetos.
Os índices do Censo Escolar MEC - IBGE mostram que há uma forte
correlação negativa entre índices de analfabetismo e o IDH (Índice de
Desenvolvimento Humano) de cada região: quanto maior o índice de
analfabetismo, menor o índice de desenvolvimento humano. Portanto,
nosso desenvolvimento social se ressente fortemente da lacuna histórica
que nos acompanha há séculos.
Acrescentemos a estes dados, o Índice Nacional de Alfabetismo
Funcional - INAF.5 Em sua quinta edição (realizada em 2005), o INAF
mostrou que só 26% dos brasileiros na faixa de 15 a 64 anos são
plenamente alfabetizados. Ou seja, leem corriqueiramente, entendem textos
longos medianamente complexos e escrevem com relativa fluência. Este
percentual equivale a aproximadamente 30 milhões de pessoas numa
população de quase 200 milhões.
Aproximam-se desse dado os resultados de Retratos da Leitura no
Brasil, pesquisa periodicamente realizada pela Câmara Brasileira do Livro.
4
Estes dados estão disponíveis na página do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Endereço eletrônico: www.ibge.gov.br (acessado em 10/01/2010).
5
Os dados do INAF podem ser consultados na página do Instituto Paulo Montenegro/ IBOPE. Endereço
eletrônico www.ipm.org.br (acessado em 10/01/2010).
20
Em sua última versão (2007), essa pesquisa indica que são só 26 milhões os
brasileiros que consomem livros regularmente.6
Por outro lado, nós entramos no século XXI sem ainda ter
universalizado sequer a educação fundamental de oito séries. Quanto ao
ensino médio, não temos ainda qualquer horizonte visível de
universalização.
Ainda hoje, mais de cem anos depois da formalização da disciplina
de língua portuguesa na escola (que ocorreu oficialmente em 1872), o nível
de letramento da maioria das nossas crianças e adolescentes é baixíssimo e,
pior, não tem evoluído desde que começamos a avaliar o domínio de leitura
das crianças da quarta e da oitava séries e dos jovens concluintes do ensino
médio.
O SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e a Prova
Brasil – o primeiro criado em 1993 e realizado a cada dois anos até 2005
quando foi substituído pela Prova Brasil, que vem se realizando até hoje –
revelam índices baixíssimos de domínio da leitura.7
O SAEB de 2003, por exemplo, apontou que apenas 5% dos alunos
da quarta série tinham desempenho adequado nos testes de compreensão de
leitura; apenas 9% dos alunos da oitava série e apenas 6% dos concluintes
do ensino médio.
Uma conclusão óbvia desses dados que não evoluem há quase vinte
anos é que o nosso sistema escolar não sabe letrar a maioria de seus alunos.
Não conseguimos ainda, portanto, renovar nosso ensino de língua materna;
falta-nos criar uma pedagogia capaz de responder efetivamente à demanda
da educação letradora democrática.
Apesar desse atraso e dessas lacunas, a história não nos dá descanso.
Hoje, já não basta letrar para o livro e seus parceiros da mídia impressa
(jornais e revistas). As bases tecnológicas do registro e da circulação da
informação e do conhecimento se alteraram profundamente. De certo
modo, estamos vivendo uma revolução tecnológica semelhante à que
ocorreu com a invenção da prensa de tipos móveis. É mais que evidente
que terminou o ciclo de 500 anos do domínio exclusivo e soberano da
mídia impressa.
7. A mídia impressa e as outras mídias
6
Os dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil podem ser consultados na página do Instituto PróLivro/ Câmara Brasileira do Livro. Endereço eletrônico www.prolivro.org.br (acessado em 10/01/2010).
7
Os dados do SAEB e da Prova Brasil estão disponíveis na página do INEP – Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais. Endereço eletrônico www.inep.gov.br (acessado em 10/01/2010).
21
Este ciclo está se encerrando principalmente em decorrência da
criação e disseminação dos meios técnicos que viabilizaram a chamada
comunicação de massa – o cinema a partir dos primeiros anos do século
XX, o rádio a partir da década de 1920, a televisão a partir da década de
1950 e, finalmente, a internet a partir da década de 1990.
Com esses novos meios, criaram-se alternativas robustas para a
circulação massiva da informação. O cinema, o rádio e a televisão
preencheram um imenso vazio. Em todo o mundo, a massa dos analfabetos
plenos ou funcionais foi finalmente alcançada pela informação, pela
sedução da oralidade e principalmente pela sedução da imagem.
A parcela efetivamente letrada da população mundial perdeu a sua
quase exclusividade de acesso à informação. Por outro lado, a literatura –
referência central na era do livro – conheceu, neste mesmo período,
competidores poderosos no cinema e na televisão. Livro algum consegue
alcançar um quantitativo de público semelhante ao de um filme ou de uma
novela ou série televisiva.
Isso tudo não significa dizer que o livro e a mídia impressa em geral
estejam mortos. A mídia impressa continua conosco e temos de continuar a
lidar com ela e a letrar para ela. As mudanças tecnológicas que o século
XX produziu não destruíram (nem vão destruir) a mídia impressa. Estão
sim redesenhando suas funções culturais, ao mesmo tempo que redesenham
o próprio sentido de palavras como alfabetização e letramento.
Mergulhar na cultura letrada implica hoje aprender a transitar por
vários suportes tecnológicos simultaneamente (todos eles, aliás, direta ou
indiretamente correlacionados com a língua escrita e frutos da cultura
letrada). É preciso dominar sua base material. Mas não só isso. Se a
alfabetização tradicional não se esgota no domínio do alfabeto, mas
pressupõe a imersão nas tradições discursivas das práticas sociais de escrita
e a apreensão da lógica cognitiva que subjaz a ela, do mesmo modo a
alfabetização e o letramento para o mundo virtual multimidiático e
hipertextual não se esgota no domínio das suas bases materiais.
A sociedade e a cultura atuais estão construindo novas tradições
discursivas e desenvolvendo novas lógicas cognitivas a partir do
cruzamento de linguagens e suportes que a tecnologia permite. Sem perder
os ganhos do grande ciclo do livro, passamos a dispor de outros muitos
caminhos para a informação e para o conhecimento. Temos de aprender a
conciliar isso tudo. Temos de aprender a transitar neste mundo infinito e
sem limites. Temos de aprender a desenvolver nossas capacidades críticas e
produtivas neste meio.
Alcançar estas metas no Brasil, porém, não é tarefa fácil,
considerando que entramos na era da imagem e do meio virtual
22
multimidiático e hipertextual sem ter sequer universalizado o domínio do
alfabeto e sem ter democratizado o acesso à mídia impressa. Ou seja, as
mudanças tecnológicas e culturais nos alcançaram sem que tivéssemos
consolidado razoavelmente a cultura do livro e da linguagem escrita.
Estamos ainda, portanto, desafiados a formular e concretizar um
projeto político-pedagógico capaz de vencer este atraso ao mesmo tempo
que responde às novas realidades e demandas postas pelas tecnologias da
informação e da comunicação.
8. Para um projeto pedagógico letrador
Parece-nos que a pedra angular deste projeto político-pedagógico
deverá ser um compromisso com a expansão do letramento da maioria dos
alunos, já que eles vêm de segmentos sociais historicamente excluídos do
acesso pleno à escrita e à cultura letrada. Não se trata (como destacamos
anteriormente) de dar aqui uma interpretação restrita a essa expressão. Ela
não diz respeito apenas à alfabetização e ao domínio do saber
enciclopédico tradicionalmente cultuado e transmitido pela escola. A
cultura letrada pressupõe obviamente a alfabetização e compreende um
certo acúmulo relativo de saberes cuja construção e expansão só se
tornaram possíveis pela criação da escrita e redundaram, por exemplo, na
matemática, nas ciências e tecnologias que, apropriadas pelo capital,
trouxeram as mudanças produtivas e socioculturais da atualidade.
No entanto, o mais importante não é em si esse produto histórico que
a escrita viabilizou, mas as práticas cognitivas e socioculturais que se
desenvolveram com seu surgimento e expansão. Como bem sintetiza Britto
(2004, 133):
O aspecto mais significativo do desenvolvimento da
escrita, contudo, foi a expansão da possibilidade de memória
registrada e de formas de organização intelectual mais
sistemáticas e monitoradas. A principal diferença entre o texto
escrito e a oralidade não está na reorganização do fluxo
sintático, mais controlado e descontextualizado, mas na
possibilidade de novas performances cognitivas, entre as quais
se destacam certos processos de formalização do pensamento,
o que teria conduzido, entre outras coisas, ao desenvolvimento
da matemática e das ciências positivas e instaurando uma
cultura escrita, que supõe produtos culturais e modos de
participação que vão além do conhecimento de normas de uso
do código.
23
Quando falamos de cultura letrada estamos nos referindo, então, a
uma complexa rede de práticas cognitivas, saberes e práticas sociais
vinculadas direta ou indiretamente com a leitura e a escrita. A imersão
nessa rede é requisito para transitar com autonomia nas novas condições de
existência dadas no mundo contemporâneo. Como destaca Britto (2004,
134):
Quanto maior o letramento, maiores serão, entre
outras coisas, a manipulação de textos escritos, a realização de
leitura autônoma (sem intervenção ou apoio de outra pessoa), a
interação com discursos menos contextualizados ou mais autoreferidos, a convivência com domínios de raciocínio abstrato, a
produção de textos para registro, comunicação ou
planejamento, enfim, maiores serão a capacidade e as
oportunidades do sujeito de realizar tarefas que exijam
monitoração, inferências diversas e ajustamento constante.
Neste sentido, o letramento, mais que alfabetização ou o
domínio das regras de escrita, é um estado ou condição de
quem se envolve em numerosas e variadas práticas sociais de
leitura e da escrita.
Nossa escola fundamental e média não tem conseguido oferecer essa
indispensável imersão na cultura letrada à maioria da população escolar.
Num outro projeto pedagógico, será preciso, então, rediscutir sim o ensino
de português. Mas não apenas ele. Uma escola letradora – que toma as
práticas socioculturais da cultura letrada como um eixo organizador das
atividades escolares que articula trabalho, ciência e cultura (nos termos da
escola unitária defendida por Kuenzer, 2000) – terá forçosamente de
ultrapassar a concepção de que o letramento é tarefa exclusiva do professor
de português.
As práticas cognitivas de todas as áreas escolares, as suas diferentes
formas de linguagem, a articulação verbal específica dos saberes aí
constituídos, as diferentes formas de interação oral e escrita presentes em
cada área põem a escola disciplinar tradicional sob radicais interrogações,
apontando a possibilidade de uma efetiva educação transdisciplinar como
defendem Britto (2004) e Kuenzer (2000) – uma educação que não
abandone as especificidades de cada área, mas seja capaz de articulá-las em
sínteses superiores, sem as quais não se pode compreender o mundo
contemporâneo e não se pode agir eticamente nele com autonomia
intelectual e pensamento crítico.
24
A escola atual, no entanto, está longe dessa perspectiva. Ela ainda é
arraigadamente disciplinar. A área de língua portuguesa chega, inclusive, a
ser dividida em três subdisciplinas (gramática, redação, literatura), o que,
além de revelar uma concepção fragmentadora do ensino, deixa
transparentes os eixos que norteiam a ação escolar nessa área. Há uma clara
perspectiva conteudística preocupada em transmitir um saber gramatical
rarefeito e perpassado de um normativismo anacrônico e estéril; e em
repassar um saber enciclopédico sobre autores, obras e “escolas” literárias.
Está, portanto, longe de oferecer uma experiência de reflexão científica
sobre a organização e o funcionamento social da linguagem. E está mais
longe ainda de contribuir para uma experiência viva com a literatura e com
as outras práticas discursivas da sociedade contemporânea. Uma consulta
ao material didático apostilado que circula com grande sucesso na rede
particular de ensino é suficiente para desvelar como a escola se pensa.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) têm contribuído
pouco para alterar a prática escolar tradicional. Elaborados no contexto da
reforma do ensino proposta na sequência da aprovação, em 1996, da nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação, os PCNs buscaram, em princípio,
expressar os desafios da contemporaneidade para a educação. Afastaram-se
da maneira tradicional de estabelecer a programação escolar: não arrolam
conteúdos, mas dão destaque ao domínio das competências sociocognitivas
que garantem o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento
crítico.
Há, evidentemente, várias razões para a pouca reverberação escolar
dos PCNs, a começar pelo próprio fosso que separa a universidade e a
escola média (embora os professores desta sejam formados por aquela). Por
outro lado, a transmissão do saber pronto e apostilado dá, certamente, mais
segurança à prática escolar, em especial àquela de um professor
sobrecarregado de aulas, mal remunerado e sem formação adequada.
Nesse sentido, embora os PCNs procurem dar um norte para projetos
pedagógicos inovadores, a programação escolar tradicional é que, de fato,
continua pautando o fazer da escola.
Mesmo o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que adquiriu
força ao ter seus resultados adotados pelas instituições de ensino superior
em seus processos de seleção, tem repercutido pouco no sentido de alterar a
ação tradicional da escola. Na área de língua portuguesa, o ENEM,
paradoxalmente, reforça essa ação, pelo menos em seu conceitual.
O exame não se propõe a ser um teste de domínio de conteúdos (não
é, portanto, um teste de saber enciclopédico), mas visa testar competências
e habilidades dos egressos da escola média. Em outros termos, o conceitual
que sustenta o ENEM procura dirigir o foco da avaliação não para os
25
conteúdos que os alunos dominam, mas para as relações cognitivas que são
capazes de estabelecer e para aquilo que são capazes de fazer com os
conteúdos e essas relações cognitivas.
À primeira vista, as diretrizes pedagógicas do ENEM parecem estar
mudando significativamente a direção da avaliação escolar da língua no
país: deixam de verificar o conhecimento de conteúdos gramaticais e de
história literária e pautam a avaliação por uma grande competência e por
algumas habilidades de uso.
No entanto, apesar dessa aparente inovação, o ENEM, na área da
língua, apenas reproduz a velha concepção pedagógica que toma a parte
pelo todo. Ao estabelecer o domínio da norma culta como a competência
máxima a ser atingida ao fim da escolaridade média, o ENEM isola a
norma do conjunto a que ela pertence e no interior do qual ela tem efetivo
sentido social, isto é, o grande caldo das práticas sociais da cultura letrada.
Em consequência disso, as diretrizes do ENEM vão no sentido
contrário àquele do discurso pedagógico que vem circulando entre nós,
desde pelo menos a década de 1980. Esse discurso, em contraposição a um
ensino centrado no conhecimento de nomenclaturas e conteúdos
gramaticais, tem colocado o domínio das atividades de fala em situações
formais e das atividades de leitura e de escrita como primordiais no ensino
e, corretamente, atrela o domínio da norma culta ao amadurecimento
daquelas atividades.
Por outro lado, aquelas diretrizes, ao inverterem o discurso
pedagógico e ao isolarem a norma culta, apenas reiteram, sob um manto de
aparente inovação, a clássica reificação e fetichização escolar da norma
culta. O produto maior da escolaridade na área da língua não pode ser o
domínio de um objeto recortado no abstrato (como tradicionalmente se faz
na escola brasileira), mas – como temos intensa e extensamente debatido há
décadas (embora sem maiores repercussão nas práticas escolares efetivas)–
o domínio de práticas sociais próprias da cultura letrada, no interior das
quais (e só aí) faz sentido falar de norma culta.
As diretrizes do ENEM não deixam o domínio das práticas de escrita
totalmente de fora do processo de avaliação. Contudo, a forma como o
conjunto está apresentado deixa claro o equívoco de se priorizar o
conhecimento da norma e a ele subordinar o domínio das práticas de leitura
e produção de textos.
Isso posto, pode-se afirmar que mesmo as incisivas intervenções do
Estado brasileiro, nos últimos dez/doze anos, no sentido de redirecionar a
escola fundamental e média – como os PCNs, o ENEM e, mais
recentemente (a partir de 2005), a extensão do Programa Nacional do Livro
26
Didático para o ensino médio – não têm conseguido estimular uma ação
inovadora e transformadora. O caminho do possível ainda está por se fazer.
Vale, então, repisar aqui algumas das coordenadas que, nas últimas
décadas, têm sido formuladas, com base numa determinada concepção de
linguagem, sobre possíveis ações pedagógicas na área específica de língua
portuguesa. Elas podem subsidiar a elaboração de projetos pedagógicos
comprometidos com a perspectiva de uma escola letradora, não só por
delinear uma nova prática de ensino da língua, mas também por dar
diretrizes para o desenvolvimento das práticas de linguagem(ns) através do
currículo, isto é, aquelas que são indispensáveis seja na especificidade de
cada área, seja na articulação transdisciplinar.
Entre nós, as concepções mais tradicionais tendem a reduzir a
linguagem ora a um conjunto de regras (a uma gramática); ora a um
monumento (a um conjunto de expressões ditas corretas); ora a um mero
instrumento de comunicação e expressão (a uma ferramenta bem-acabada
que os falantes usam em certas circunstâncias).
Podemos observar que todas essas concepções têm algo em comum:
elas entendem a linguagem como uma realidade em si (um sistema
gramatical, um monumento, um instrumento); como se ela tivesse vida
própria, despregada de seus falantes, da dinâmica das relações sociais, dos
movimentos da história.
Nossa concepção recusa esses olhares que alienam a linguagem de
sua realidade social concreta. Inspirado nos trabalhos do Círculo de
Bakhtin (cf. Faraco 2009 e a bibliografia ali comentada), nós a concebemos
como um conjunto aberto e múltiplo de práticas sociointeracionais, orais ou
escritas, desenvolvidas por sujeitos historicamente situados.
Pensar a linguagem desse modo é perceber que ela não existe em si,
mas só existe efetivamente no contexto das relações sociais: ela é elemento
constitutivo dessas múltiplas relações e nelas se constitui continuamente.
Por outro lado, os próprios falantes tomam forma como sujeitos
históricos e como realidades psíquicas em meio a essa intrincada rede de
relações socioverbais e pela interiorização da própria dinâmica da interação
socioverbal.
Somos, nesse sentido, seres de linguagem, constituídos e vivendo
num complexo feixe de relações socioverbais. De forma alguma, podemos
ser reduzidos a meros aplicadores de regras de um sistema gramatical; ou a
meros reprodutores de um certo monumento linguístico cristalizado; ou,
ainda, a meros usuários de um instrumento externo a nós.
Desse modo, ensinar português é, fundamentalmente, oferecer aos
alunos a oportunidade de amadurecer e ampliar o domínio que eles já têm
27
das práticas orais de linguagem e especialmente garantir-lhes o domínio
das práticas escritas. Em língua materna, a escola, obviamente, nunca parte
do zero: os alunos têm uma experiência linguística acumulada. Cabe-nos,
no entanto, criar condições para que esse domínio dê um salto de
qualidade, tornando-se mais maduro e mais amplo.
Na saída do Ensino Médio é fundamental que nossos alunos tenham
adquirido efetiva autonomia naquelas práticas de linguagem que devem ser
de domínio comum de todos os cidadãos, que são indispensáveis à vida
cidadã e que transcendem os limites das vivências cotidianas informais.
Trata-se tanto do domínio amplo da leitura, da escrita e da fala em
situações formais, quanto do desenvolvimento de uma compreensão da
própria realidade da linguagem nas suas dimensões sociais, históricas e
estruturais.
Concebendo a linguagem como um conjunto de práticas
sociointeracionais, garantimos um tratamento pedagógico não burocrático à
leitura, à escrita e à oralidade. Vamos encará-las como atividades sociais
significativas entre sujeitos históricos, realizadas sob condições concretas.
Em qualquer atividade de linguagem é, assim, fundamental
reconhecer sua realidade sociointeracional; reconhecer a presença do outro,
mesmo quando não diretamente visível – quer daquele que nos convida à
interlocução, autor que é dos textos que lemos ou ouvimos; quer daquele a
quem convidamos à interlocução, destinatário que é dos nossos textos
escritos ou orais.
Ler pressupõe, em primeiro lugar, familiarizar-se com diferentes
tipos de textos oriundos das mais variadas práticas sociais (em especial da
literatura, do jornalismo, da divulgação científica, da publicidade).
Pressupõe também o desenvolvimento de uma atitude de leitor
crítico, o que significa, entre outros aspectos, perder a ingenuidade diante
do texto dos outros, percebendo que atrás de cada um há um sujeito, com
uma certa experiência histórica, com um determinado universo de valores,
com uma intenção.
Ler pressupõe também uma compreensão responsiva, o que implica
reagir ao texto, dar-lhe uma resposta, concordando com ele, ou dele
discordando; rindo dele, emocionando-se com ele, aplaudindo-o, refutandoo, assimilando-o, fazendo-lhe a paródia, e assim por diante.
Neste ponto, é importante dizer que ler e texto não estão aqui sendo
usados como termos restritos à linguagem escrita. Estamos entendendo ler
em sentido mais amplo, como a ação de recepção crítica e responsiva de
textos escritos ou falados. E mais: por extensão queremos abranger também
28
a recepção (leitura) de manifestações (textos) em outras linguagens,
combinadas ou não com a linguagem verbal.
Essa extensão nos ajuda a compreender de forma integrada a
linguagem verbal e as outras linguagens (as artes visuais, a música, o
cinema, a fotografia, a televisão, a publicidade, as charges, os quadrinhos, a
infografia, bem como a linguagem matemática e as linguagens científicas),
percebendo seu chão comum (são todas atividades sociointeracionais entre
sujeitos históricos) e suas especificidades (seus diferentes suportes
tecnológicos; seus diferentes modos de composição e de geração de
significados).
Ao mesmo tempo, aquela extensão nos permite propor, para a leitura
das outras linguagens, as mesmas ações que previmos para a leitura dos
enunciados falados ou escritos, ou seja, a leitura crítica e responsiva.
Obviamente, cabe à área de língua portuguesa, em sua
especificidade, se concentrar nas atividades de leitura dos textos em
linguagem verbal. No entanto, não pode deixar de oferecer aos estudantes
uma experiência de leitura de outras linguagens, considerando, de um lado,
que somos seres de múltiplas linguagens; e, de outro, que a sociedade
contemporânea amplificou a circulação de textos nas mais variadas
linguagens, exigindo uma múltipla capacidade de leitura de seus cidadãos.
Quanto à leitura dos textos em linguagem verbal, é importante dizer
também que, em língua portuguesa, jamais podemos descuidar da relação
dos alunos com o texto literário. Essa é, sem dúvida, uma das mais
significativas experiências de leitura que a escola pode e deve oferecer,
abrindo os horizontes dos nossos alunos para a riqueza do modo estético de
representar o mundo e de trabalhar a linguagem.
Além de merecerem uma abordagem que dê destaque às suas
especificidades, os textos literários abrem um fértil espaço para um
trabalho integrado com textos verbais oriundos de outras esferas da
atividade humana (por exemplo, do jornalismo ou da divulgação científica),
criando uma rede para múltiplas leituras do mundo e para a compreensão e
apreensão do potencial expressivo da linguagem.
Os textos literários permitem também um trabalho integrado com
outras linguagens (artes plásticas, música, cinema), criando condições para
a percepção do fazer artístico em geral, seja de suas especificidades, seja de
suas dimensões histórico-culturais.
O primordial aqui é conquistar os alunos para a leitura em geral e
para a incorporação da literatura (e da arte) em suas vidas. E isso depende
de eles sentirem a força e a beleza do estético por dentro, como
expressando sentidos de vida. O pior que a escola pode fazer é burocratizar
29
essa relação, tornando o texto literário mero meio para estudos gramaticais
ou teóricos; ou cercando-o de enfadonhas obrigações e excessos de
tecnicalidades.
Mesmo o estudo da história literária não pode se perder em
tecnicalidades ou conhecimentos estáticos. Há que se aproveitar a história
literária para uma compreensão dinâmica da nossa história cultural,
oferecendo aos alunos a possibilidade de apreender o presente como
resultado e parte de toda uma complexa história.
Quanto à produção de texto, cabe, em primeiro lugar, reiterar que o
ato de escrever deve ser visto como uma atividade sociointeracional. Ou,
dito de outra forma, escrevemos para alguém ler. Isso implica reconhecer
que o interlocutor é um dos condicionantes do nosso texto. Em
consequência, a escrita cobra de nós uma ação de contínua adequação do
nosso dizer às circunstâncias de sua produção.
Por isso, ao propor atividades de escrita, é preciso buscar sempre
contextualizá-las e, ao mesmo tempo, insistir para que o aluno mostre seu
texto para os colegas. É uma das formas que temos para contornar um certo
artificialismo inerente à prática escolar de escrita, transformando-a numa
atividade efetivamente geradora de sentidos.
Claro, há também outras formas como a divulgação dos textos no
jornal da escola, em murais da classe, em livros artesanal e coletivamente
produzidos ou, ainda, no jornal do bairro, da igreja ou da cidade. De
qualquer modo, o olhar do colega será um fator fundamental para o aluno
aprender a incorporar ativamente a figura do interlocutor no seu processo
de escrita.
Acrescente-se a isso outra importante atividade: a apreciação coletiva
de textos sob a orientação do professor. Outra vez, essa atividade permite
que o aluno perceba o texto como leitor e aprenda a fazer o que todos os
que escrevem com autonomia fazem, isto é, monitorar a sua própria escrita,
sendo, ao mesmo tempo, autor e leitor.
Essa importante e indispensável atividade era já proposta por
Quintiliano em seu livro Institutio Oratoria, do ano 96 d. C. a que fizemos
referência anteriormente. Dizia ele: “Se o texto é ruim, percebi que é útil
que o aluno reescreva depois de ter o texto analisado junto comigo e ele
estimulado a fazer ainda melhor” (2, IV, 13).
Todas essas balizas devem conduzir cada aluno a perceber a
relevância da prática da refeitura de seus textos. Embora o refazer seja
inerente ao ato de escrever (nenhum texto sai pronto da primeira vez –
basta ver o testemunho dos grandes escritores), o aluno precisa vivenciá-la
numa prática significativa de escrita.
30
Por tudo isso, é importante que se crie um ambiente de ‘oficina’ para
as práticas de escrita, isto é, a escrita não deve jamais ser encarada como
uma tarefa burocrática, mas como uma atividade em que a turma se sinta
coletivamente envolvida com a preparação, apreciação e refeitura dos
textos.
Em todo esse processo, os alunos deverão ir percebendo, aos poucos,
quanto a prática significativa da escrita (isto é, a escrita como uma
atividade sociointeracional) é desafiadora e cativante: envolve, entre outras
ações, determinar os interlocutores, adequar-se ao gênero, planejar o texto,
organizar sua sequência, articular suas partes, selecionar a variedade
linguística (mais ou menos formal), dialogar com os discursos que circulam
socialmente. Além, é claro, de transitar pelos imensos recursos expressivos
acumulados ao longo do incessante fazer histórico com a linguagem,
realizando aí escolhas em vista das intenções, dos interlocutores e da
construção de um modo personalizado de dizer (isto é, da construção de seu
estilo) como parte do próprio processo de desenvolvimento da sua
identidade.
Ao mesmo tempo, por meio dessa prática, se evita o caminho que
sugere ser o domínio da escrita decorrente de exercícios mecânicos ou do
controle de algumas técnicas. O amadurecimento de nossa condição de
autores só se dá em meio a um conjunto de experiências com a linguagem e
a cultura letrada. Temos, como dissemos anteriormente, de mergulhar nas
tradições discursivas características da escrita.
Esse amadurecimento requer leitura diversificada, crítica e
responsiva; pressupõe uma significativa ampliação de repertório (uma
leitura ampla do mundo); está aliado ao desenvolvimento de uma oralidade
mais sofisticada; exige uma reflexão básica sobre o funcionamento
estrutural e social da linguagem e uma compreensão de nosso lugar neste
funcionamento.
Em outras palavras, só obtemos esse amadurecimento a longo prazo
e explorando múltiplos caminhos. Daí a importância de um programa de
ensino bastante diversificado e consistente para o conjunto das séries
escolares, em especial na escola pública, cujos alunos, em sua maioria, vêm
de segmentos sociais que não têm suficiente experiência com a linguagem
escrita e a cultura letrada.
Por outro lado, a escola não pode descuidar da oralidade, seja pelo
efeito positivo que seu desenvolvimento tem sobre o conjunto das práticas
de linguagem, seja pela relevância que o falar em situações formais tem
para a vida cidadã.
Não precisamos, é claro, ensinar aquelas práticas que aprendemos
espontaneamente no nosso cotidiano (a conversa informal e corriqueira).
31
No entanto, a escola precisa oferecer aos alunos a oportunidade de
amadurecer o falar com segurança e fluência em situações formais (isto é,
no espaço público, diante de um conjunto plural de interlocutores), seja em
atividades de transmissão de informações, seja no debate.
As práticas com a oralidade, em especial aquelas que envolvem
debate, são uma oportunidade especial para o amadurecimento do convívio
democrático, seja pelo exercício do direito à livre expressão, seja pelo
reconhecimento do direito do outro à livre expressão, seja, sobretudo, pela
polêmica civilizada, a qual pressupõe, entre outros fatores, uma escuta
respeitosa, uma enunciação clara e sustentada de opiniões e a abertura para
novos argumentos e pontos de vista.
Por fim, não podem faltar na programação escolar as atividades de
reflexão sistemática sobre a linguagem verbal, ou seja, atividades que se
voltem para a compreensão da realidade da linguagem nas suas dimensões
sociais, históricas e estruturais
Entendemos que não cabe, ao ensino de português, concentrar-se
exclusivamente numa dimensão prática, ou seja, oferecer aos alunos o
domínio das atividades sociointeracionais de fala, de leitura, de escrita.
Junto com esse importante trabalho, é necessário realizar sempre uma ação
reflexiva sobre a própria linguagem, integrando as práticas socioverbais e o
pensar sobre elas.
Esse pensar envolve tanto a compreensão da realidade estrutural da
linguagem (isto é, de sua organização gramatical), quanto, e especialmente,
a compreensão de sua realidade social e histórica (isto é, da variação
linguística).
Num país que ainda demoniza a variação linguística, refletir sobre
ela na escola tem uma relevância toda especial: os alunos precisam
aprender a perceber, sem preconceito, a linguagem como um conjunto
múltiplo e entrecruzado de variedades geográficas, sociais e estilísticas; e a
entender essa variabilidade como correlacionada com a vida e a história dos
diferentes grupos sociais de falantes.
Só assim desenvolverão uma necessária atitude crítica diante dos
pesados preconceitos linguísticos que embaraçam seriamente nossas
relações sociais. Com isso, a escola estará estimulando práticas positivas
frente às diferenças e contribuindo para a reconstrução do imaginário
nacional sobre nossa realidade linguística.
Acreditamos que a escola ainda não encontrou um caminho
pedagógico adequado para tratar da variação linguística (ver Bagno 2007).
Parece faltar ainda uma superação crítica da “cultura do erro” – que tão
profundamente molda nosso modo de olhar a linguagem. Parece que temos
32
ainda medo da variação e continuamos uma sociedade que não quer
reconhecer sua cara linguística.
Só enfrentando o desafio de construir uma pedagogia da variação é
que teremos condições de tratar adequadamente do problema da norma
culta, reconhecendo a importância de a escola garantir aos alunos o acesso
ao padrão culto real (e não o padrão anacrônico ainda apresentado por
nossas gramáticas e livros didáticos) e condições para seu domínio.
Os padrões de língua constituem, numa sociedade moderna e
democrática, caracterizada por complexidade e pluralidade em elevado
grau, indispensáveis elementos de agregação social e cultural. Isso, porque,
embora emergindo continuamente da diversidade sociolinguística, eles
transcendem os limites do regional e do específico, contribuindo para a
construção de uma relativa unidade linguística.
A norma culta não é mais, como foi no passado, bem exclusivo dos
grupos sociais dominantes; ela precisa ser cultivada e difundida como um
fator de inclusão sociocultural dos cidadãos. No Brasil, paradoxalmente, o
padrão culto, em especial o padrão escrito, pelo seu caráter artificial e
arbitrário, tem sido fator de lastimável exclusão (cf. Faraco, 2008).
A norma culta não é um objeto abstrato e com vida própria, que deva
ser estudado em si. A norma culta precisa ser compreendida, antes de mais
nada, no contexto amplo da cultura letrada: ela é constituinte dessa
dimensão cultural e nasceu, como valor sócio-histórico, de seu
desenvolvimento. Em consequência, seu aprendizado é, antes de tudo, um
efeito de um convívio amplo com material linguístico em norma culta. Seu
estudo mais sistemático tem de ser, nesse sentido, complementar e não
visto como um a priori.
Além disso, a norma culta precisa ser compreendida não como a
única manifestação da língua, mas como uma dentre as suas muitas
variedades, tendo funções socioverbais específicas: ela é esperada em
situações formais de fala e, principalmente, na maior parte das práticas de
escrita. Nesse sentido, ela não pode ser um objetivo escolar isolado de
outros. Ela não pode ser estudada por si, mas sempre subordinada ao
processo pedagógico geral de amadurecimento do domínio das práticas
orais e escritas de que ela é ingrediente.
Por outro lado, ao trabalharmos com a norma culta, não podemos nos
render ao normativismo, atitude que tradicionalmente sustentou o seu
estudo na escola. O normativismo toma a norma culta em si (desvinculada
de suas funções próprias) e como um monumento pétreo (invariável e
inflexível), apresentando-a ao estudante como uma camisa de força.
33
O normativismo, por não dimensionar adequadamente a variação
linguística, condena como erro (em termos absolutos) todas as formas que
não estão de acordo com aquilo que está prescrito dogmaticamente nos
velhos manuais de gramática. Como essa codificação foi artificial na
origem (o padrão brasileiro foi fixado aleatoriamente por intelectuais
elitistas do século XIX – que ignoraram as peculiaridades do padrão real
falado no Brasil – cf. Faraco 2008) e ficou congelada nas nossas
gramáticas; e como o padrão real falado continuou mudando no tempo,
esse artificialismo é cada vez maior entre nós, o que complica
enormemente nossas relações com a norma culta (somos um país perdido
em confusão nessa área) e, por consequência, seu ensino.
Acreditamos que a escola, renovando criticamente seus modos de
ensinar a norma culta, poderá contribuir significativamente para
superarmos os nós que tradicionalmente embaraçam o seu domínio no
Brasil e para reconstruirmos o imaginário nacional sobre a língua
portuguesa que aqui se fala e se escreve.
Quanto à realidade estrutural da linguagem, algumas considerações
são, de início, necessárias. Lembremos, em primeiro lugar, que o ensino de
português centrou-se historicamente no estudo gramatical (como herança
da concepção pedagógica que moldou, direta ou indiretamente, nosso
sistema educacional – a pedagogia da Ratio Studiorum dos jesuítas).
Embora concordemos com todas as críticas que, nos últimos cinquenta
anos, apontaram o equívoco dessa centralidade, acreditamos que os
conteúdos gramaticais não devem desaparecer de todo da programação
escolar.
No entanto, entendemos que também aqui a escola ainda não
encontrou um caminho pedagógico alternativo para lidar com a questão
gramatical – um caminho que não ponha a gramática no centro do ensino,
mas que não deixe de oferecer aos estudantes a oportunidade de refletir
sobre a organização estrutural da linguagem verbal. Essa reflexão, por seu
turno, não deve ser pensada como um objetivo em si, mas como um saber
auxiliar ao amadurecimento das práticas orais e escritas da linguagem e,
portanto, a ele integrado.
Construir uma pedagogia da gramática é, fundamentalmente,
desenvolver a capacidade de pensar cientificamente a linguagem. Pode-se
fazer isso, por exemplo, abordando os temas gramaticais por meio de
diferentes trajetos, combinando percursos mais intuitivos (que estimulam a
capacidade de observação dos fenômenos da língua) e percursos mais
expositivos (que estimulam a construção de um saber mais sistematizado
daqueles mesmos fenômenos).
34
Outra coordenada importante diz respeito à necessidade de limitar o
estudo de conteúdos gramaticais a um conjunto básico e com clara
pertinência funcional. De novo, vale fazer referência a Quintiliano. Já há
quase dois milênios dizia ele, com muita propriedade: “Nada do que diz
respeito à gramática fará mal, salvo o que é inútil” (1, VII, 34).
Assim, não é preciso abordar todos os temas gramaticais, nem perder
tempo com aqueles detalhes e preciosismos que devem ficar para os
especialistas. Nesse sentido, a pergunta crucial é: que informações nos têm
sido, de fato, úteis na nossa própria experiência de falantes e observando a
experiência de outros falantes?
De um lado estão, certamente, os elementos gramaticais
indispensáveis para se entender as referências que ocorrem nos verbetes do
dicionário (considerando que, pela vida afora, recorremos a ele em nossas
atividades de leitura e escrita). Aqui entra fundamentalmente a
classificação das palavras, a qual se articula com uma visão geral da
estrutura do léxico e de seus mecanismos de expansão.
De outro lado estão os dados gramaticais que contribuem tanto para a
compreensão de certas propriedades da norma culta (em especial
fenômenos de concordância e regência), quanto para um trabalho mais
consciente de construção e entendimento dos textos. Aqui entra a sintaxe
das sentenças simples e complexas.
O estudo de conteúdos gramaticais, pautado por critérios de
relevância funcional e articulando intuição e sistematização, encontra um
terceiro trajeto importante na discussão coletiva de textos dos alunos.
Como vimos anteriormente, expor os alunos a seus textos (para que
os vivenciem com um olhar externo) é atividade indispensável para eles
desenvolverem a capacidade de monitorar a sua própria escrita (de assumir,
ao escrever, dois papéis – o de autor e o de leitor).
O eixo organizador dessa atividade é verificar (intuitivamente) se o
texto está claro (considerando que ele se destina a um interlocutor) e que
ajustes são eventualmente necessários para aperfeiçoá-lo (seja para deixá-lo
mais claro, mais adequado aos interlocutores; seja para explorar
alternativas expressivas, saídas do vasto estoque de possibilidades que a
língua nos oferece; seja ainda para aperfeiçoar sua textualidade).
O importante em toda essa dimensão do ensino de português é que os
tópicos sejam desenvolvidos sempre subordinados ao domínio das
atividades de fala e escrita, isto é, sejam sempre pensados por um critério
de efetiva relevância funcional. Tanto a pedagogia da variação, quanto a da
norma culta e a da gramática não podem – como temos enfatizado neste
texto – ser pensadas em si e isoladamente dos objetivos maiores, quais
35
sejam o domínio da oralidade e da escrita. O trabalho com a variação, a
norma culta e a gramática tem de ser, como já propunha Quintiliano,
auxiliar, suplementar ao trabalho com a leitura, a escrita e a oralidade.
9. Formação dos professores
Um projeto político-pedagógico assim concebido pressupõe,
obviamente, um professor adequadamente formado para ele. Nessa
formação, é indispensável um estudo das propriedades da linguagem verbal
e de seus meios de expressão, bem como das consequências pedagógicas
dessas propriedades, conforme tentamos mostrar neste texto.
Mais importante, porém, é garantir que todo professor (e não apenas
o professor de português, considerando que todas as atividades escolares
são, no fundo, relacionadas à cultura letrada) esteja bem letrado. Dito de
modo simples e direto: nenhuma escola será letradora se seus professores
não forem eles bem letrados. Impossível desenvolver nos alunos as práticas
sociais de leitura e escrita sem que os professores sejam leitores maduros e
pessoas que dominem a escrita com autonomia.
Como vimos neste texto, há um déficit significativo no letramento da
população brasileira. Não é de admirar, portanto, que nossa escola tenha se
mostrado, até agora, incapaz de letrar efetivamente a maioria de seus
alunos, em especial os que vêm de segmentos sociais com pouca
experiência letrada e que, em geral, estão na escola pública.
O grande desafio educacional da sociedade brasileira é quebrar o
ciclo deste atraso, investindo no letramento dos professores já em
exercício, reestruturando a formação geral dos novos professores e
repensando as práticas escolares.
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